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Capa: Foto Parede e Porta Foto: Anderson de Souza Local: Porto Alegre/RS/Brasil Edição e tratamento de imagem: Anderson de Souza
Informe C3 / v. 04, n. 14, (abr/mai. 2013). – Porto Alegre, RS : Processo C3 e Indepin Editora, 2013. On line. Disponível em: http://www.processoc3.com Bimestral ISSN: 2177-6954 1. Cultura. 2. Artes. 3. Corpo. 4. Moda. 5. Educação 6. Pesquisa CDD: 301.2 370.157 793.3 646
Classificação: 18 anos O conteúdo apresentado pelos colaboradores (textos, imagens...) não são de responsabilidade do Processo C3 Grupo de Pesquisa e da Informe C3 Revista Digital. Nem todo opinião expressa neste meio eletrônico ou em possível verão impressa, expressam a opinião e posicionamento dos organizadores e responsáveis por este veículo.
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EXPEDIENTE Ano 04 - Edição 14 Abril - 2013
Direção Geral e Coordenação Editorial: Wagner Ferraz Editores Camilo Darsie, Miriam Piber Campos e Wagner Ferraz Pesquisa e Organização: Processo C3 - Coletivo de várias coisas Equipe Editorial Anderson de Souza, Camilo Darsie, Miriam Piber Campos e Wagner Ferraz Projeto Gráfico e Direção de Arte: Diego Mateus, Miriam Piber Campos e Wagner Ferraz Edição de Arte e diagramação: Diego Mateus / diego.mateus@live.com Arte da Capa: Anderson de Souza
Prof. Dr. Alexandre Rocha da Silva (UFRGS/RS); Prof. Dr. Samuel Edmundo Lopez Bello (UFRGS/RS); Prof. Dr. Luis Henrique Sacchi dos Santos (UFRGS/RS); Profª Drª Kathia Castilho (UAM/SP); Prof. Dr. Luciano Bedin da Costa (UFRGS/RS); Profª Drª Marta Simões Peres (UFRJ/RJ); Profª Drª Fabiana de Amorim Marcello (ULBRA/RS); Prof Dr Airton Tomazzoni (UERGS/RS); Profª Drª Marilice Corona (IPA/UNISINOS/ RS); Profª Drª Sayonara Pereira (USP/SP); Profª Drª Magda Bellini (UCS/RS); Prof Dr Celso Vitelli (ULBRA/ RS); Profª Drª Daniela Ripoll (ULBRA/RS); Prof. Ms. Leandro Valiati (UFRGS/RS); Profª Ms Luciane Coccaro (UFRJ/RJ); Profª Ms Flavia Pilla do Valle (UFRGS/RS); Prof Ms Camilo Darsie de Souza (INDEPIN/UFRGS/RS); Profª Ms Eleonora Motta Santos (UFPEL/RS); Profª Ms Giana Targanski Steffen (UFSC/SC); Ms Zenilda Cardoso (UFRGS/RS); Profª Ms Miriam Piber Campos (INDEPIN/RS); Ms Luciane Glaeser (RS); Ms Jeane Félix (UFRGS/RS); Ms Alana Martins Gonçalves (UFRGS/RS); Profª Ms Sabrine Faller (INDEPIN/ RS); Ms Luiz Felipe Zago (UFRGS/RS); Ms Carla Vendramin (RS); Prof Esp Anderson de Souza (FATEC/ SENAC/RS); Prof Esp Wagner Ferraz (INDEPIN/Processo C3/RS); Profª Drª Luciana Éboli (Unilasalle/RS); INDEPIn Editora - Editora Associada - Porto Alegre/RS
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Conselho Editorial:
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Foto: Diego Mateus 6
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ÍNDICE - Articulações Acadêmicas” – pág. 13
Wagner Ferraz
- Representações de Corpo e Arte na Dança Conteporânea – pág. 18 Luciane Moreau Coccaro
- Movimento de Contestação ou Agressão ao Corpo? Uma discussão sobre a Body Modification e a arte da performance na década de 90 – pág. 28 Carla Ruiz
- o ensino de história e as representações dos sem-terra nos livros didáticos – pág. 52 Andresa silva da costa mutz
- encontro de saberes: culturas tradicionais e populares no universo acadêmico reflexões dessa experiência na unb– pág. 66 maíra gurri de oliveira e wesley da silva oliveira
- as pessoas com deficiência não são nem anjos, nem demônios – pág. 82
Miriam Piber Campos
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- o falo na composição da mulher em oposição ao corpo que se decompõe como confrontação: tudo a mercê da morte. – pág. 44 Bartira Dias Albuquerque
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AGRADECIMENTOS Agradecemos também a todos que de forma direta ou indireta colaboraram com o Processo C3 e com o Informe C3.
Agradecimentos desta edição Luciane Moreau Coccaro Rio de Janeiro/RJ
Anderson de Souza Porto Alegre/RS
Diego Mateus Porto Alegre/RS
Carla Ruiz São Paulo/SP
Bartira Dias de Albuquerque Fortaleza/CE
Andresa Silva da Costa Mutz Esteio/RS
Maira Gussi de Oliveira Wesley da Silva de Oliveira Brasilia/DF
Miriam Piber Campos Porto Alegre/RS
Camilo Darsie Porto Alegre/RS
INDEPIn
Porto Alegre/RS
Luciane Glaeser São Paulo/SP
Celso Viteli Porto Alegre/RS
Luciane Cocaro Rio de Janeiro/RJ
Zenilda Cardozo Porto Alegre/RS
Jeane Félix Brasilia/DF
Marta Peres Rio de Janeiro/RJ
Alana Martins Goncalves São Leopoldo/RS
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APRESENTAÇÃO
Articulações Acadêmicas Wagner Ferraz Um corpo de que se articula. Um corpo de textos, uma composição que se faz em revista, em periódico... Reunir textos de diferentes temática nesta edição da INFORME C3 foi um desafio para articular com ênfase acadêmica e também um desafio de tempo. O desafio do tempo já virou rotina para compor as edições deste periódico, mas o desafio de articular temas é uma “saborosa brincadeira”.
Agradeço a todos envolvidos que participaram de algum momento, ou de todo, o processo. Agradeço aos autores dos textos que tiveram a paciência de aguardar e se empenharam na produção de seus artigos.
Um abraço! Wagner Ferraz
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Durantes meses os artigos foram recebidos e o diálogo com os autores se deu para os ajustes necessários. Em seguida alguns colaboradores, que compõe o conselho editorial, trabalharam na avaliação dos textos enviados, e assim tudo foi se articulando, todas as partes envolvidas se conectavam articulando tudo de forma, muitas vezes, nova para quem estava na organização de todo o processo. Muitas alterações pelo caminho, mas no final chegamos a essa publicação com o apoio de tantas pessoas.
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Representações de corpo e arte na dança contemporânea Luciane Moreau Coccaro1
Resumo As representações de corpo e arte na dança contemporânea se constituem no tema desse estudo numa abordagem antropológica. A proposta é propiciar uma reflexão aos artistas da dança – estudantes, professores, pesquisadores e criadores em dança – sobre os termos arte e corpo num contexto da dança contemporânea. Repertoriando assim algumas definições sobre arte, corpo e dança cênica. Palavras-chave: criação artística, representações de corpo, dança contemporânea
Abstract The representations of body and art in contemporary dance are the theme of this study constitute an anthropological approach. The proposal is to provide a reflection of dance artists - students, teachers, researchers and developers - on the terms and body art in the context of contemporary dance. Just listed some definitions about art, body and stage dance. Keywords: artistic creation, representations of the body, contemporary dance
1 É Professora Assistente do Departamento de Arte Corporal no Curso de Dança da Universidade Federal do Rio de Janeiro - UFRJ. Mestre em Antropologia Social pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul - UFRGS - e graduação em Ciências Sociais pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul - UFRGS. Foi professora substituta do curso de Graduação em Ciências Sociais na Universidade Federal do Rio Grande do Sul - UFRGS. Foi Professora Adjunta do curso de Licenciatura em Dança da Universidade Luterana do Brasil e professora titular de Antropologia do Corpo e da Saúde no Pós em Enfermagem junto ao Instituto de Administração Hospitalar e Ciências da Saúde e no Pós de dança da UNIVATES/Lajeado; além de Professora titular na Faculdade Decision da Fundação Getúlio Vargas, ministrando a disciplina de Sociologia, no curso de Administração de Empresas. Prêmio Açorianos de Melhor Bailarina (2000/POA) e como atriz ganhou Prêmio Volkswagen na montagem da Cantora Careca (2003/SP). Participa como membro do Corpo Editorial da Informe C3, ISSN 2177-6954, nas versões: Articulações Acadêmicas e Revista Digital. Organizadas pelo Processo C3 tendo como associada a Editora Indepin. Site: www.processoc3.com 14
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Num estudo que envolve criação artística e corpo na área da dança contemporânea, as fronteiras entre as possíveis maneiras de se fazer dança são objeto de constantes demarcações. Dependendo do contexto sociocultural em que o sujeito está inserido variam suas concepções de dança, corpo e arte. O que é específico afinal da dança contemporânea? Uma vez que a colocamos como englobante, num discurso plural que tenta abarcar a diferença e a alteridade. De que corpo e de que arte está se falando? No conto “Um artista da fome” Kafka (1996) narra à história de um faquir que preso a uma jaula num circo é visto dia a dia definhando e ficando cada vez mais magro e menor, até o momento em que ele é indagado sobre a razão de seu jejum e ele responde: eu não como porque não encontrei o alimento que me satisfaz.
2 Segundo STRAZZACAPPA (2006) em 2002 a CBO – Classificação Brasileira das Ocupações. Informe C3 - Edição Especial Articulçações Acadêmicas. Porto Alegre, v. 04, n. 14, abr, 2013. www.processoc3.com
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Kafka nos fala de um artista da fome, a meu ver abrindo um espaço de discussão sobre uma cultura do artista, ou melhor nos dando pistas de construção de uma imagem do que é ser artista. Com inspiração neste conto gostaria de ampliar e direcionar a questão do que é ser artista especificamente para o campo da dança contemporânea. O que diferencia um artista da dança de outros artistas? Quais os significados de ser artista da dança2? O que mobiliza a criação artística em dança contemporânea? Quais as representações de corpo, de dança e de arte de artistas da dança? Como se fabrica um artista da dança? Qual a relação entre visão de mundo e práticas de aprendizado em dança contemporânea? Qual a relação entre técnica e presença artística no momento performático da apresentação cênica? O que é estar num estado de cena? Segundo Strazzacappa (2006) em 2002 a CBO – Classificação Brasileira das Ocupações – escolheu o uso do termo artista da dança para englobar na área da dança as atividades como: professor, estudante, bailarino, pesquisador, produtor, ensaiador, diretor e coreógrafo. Para romper com as distinções, pois todos são considerados artistas. Essa classificação é um prato cheio para uma investigação com olhar antropológico sobre o que é arte nas práticas, em suas representações e suas implicações.
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Na perspectiva da Antropologia do Corpo a cultura exerce papel fundamental na construção de padrões de corpo e esses contaminam visões e práticas de dança. No contexto da dança contemporânea, termos como arte, técnica, criação coreográfica e até o próprio termo dança contemporânea mereceriam um estudo aprofundado sobre seus significados. Arte em um contexto antropológico Noção de arte num contexto antropológico se constituiu num objeto de estudo a partir da obra Primitive Art de Franz Boas (1955). Segundo ele, fundador da linha de pesquisa antropológica chamada Particularismo Histórico, as diferentes culturas teriam suas construções simbólicas de acordo com seu processo histórico. A antropologia da arte foi inaugurada com Boas rompendo com a noção ocidental de arte ligada à técnica e à estética3, visão presente até hoje no imaginário social sobre a arte. Segundo Geertz (1997) a arte pode ser entendida em seu contexto histórico e cultural, associada às noções de técnica e estética. Essa visão de arte nos seus aspectos simbólicos e históricos, mas também ligada à técnica e a estética é fundamental nesse estudo para entender os artistas da dança em suas criações artísticas. Gell (1998) se contrapõe a idéia de arte como reprodutora de aspectos sociais e culturais. Esse autor enfatiza mais do que aspectos simbólicos da arte, noções como intenção, agenciamento, causa, resultado e transformações. A antropologia da arte deveria estudar as instituições artísticas e o que ele classifica como mundo da arte. Bourdieu (1996) viu a possibilidade de campo artístico, mundo da arte, existir no plano ideal - mais do que na prática - como uma construção dos próprios artistas em suas necessidades de criar identificações como forma de distinção social. Esse pensamento interessa para problematizar a existência na prática de campos artísticos na dança contemporânea junto ao universo pesquisado. Eco (1981) analisando a noção de estética em Adorno e em Benjamin problematiza até que ponto as definições de arte elaboradas pelas estéticas são suficientes para entender o contexto do surgimento de 3 A palavra estética atualmente, no senso comum, está relacionada à estética física do corpo, à idéia de salão de beleza e o que se faz nesse tipo de lugar do que à arte. Estética no fundo é um conceito que não se encontra somente no universo artístico, mas em outras atividades humanas.
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poéticas. O estudo das poéticas seria o mais indicado pelo autor pensando num conceito de artisticidade. Algo que emerge com as criações em arte. Segundo Pareyson (2001) a poética seria o campo que envolve as criações artísticas, tudo aquilo que se refere ao fazer, ao processo de feitura de uma obra de arte. Enquanto a estética daria conta de sistemas classificatórios mais gerais sobre a arte, pensando nas relações entre conteúdo e forma. Na dança conteúdo e forma são corpo. Neste artigo importa pensar de que maneira emerge a artisticidade, a poética de cada criação coreográfica junto ao universo pesquisado. Na tentativa de problematizar noções entre estética e poética4 ad hoc, percebendo tais visões como construídas num contexto cultural nascido num determinado momento histórico e suas contaminações. Corpo e Corporalidade nos artistas da dança: como se dá a preparação corporal para a dança cênica?
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Sobre o aspecto poético no doutorado pretende-se investigar na Teoria da Performance BAUMAN (1993) e ZUMTHOR (1999).
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Corpo e Corporalidade A relação entre corpo e cultura está descrita em autores de diferentes áreas do conhecimento sobre o corpo, o presente estudo faz uma breve reflexão dessas visões, na tentativa de fazer dialogar o campo da antropologia do corpo com o campo das pesquisas em dança. A concepção de corpo de Mauss (2003) desconstrói a idéia de uma natureza do corpo. Seu pressuposto básico é de que nada é natural, todo o mínimo gesto ou postura são construídos socialmente. E quanto mais os interpretamos como gestos naturais, mais significa que foram incorporados em nós por meio de aprendizado e hábito. Podendo ser considerados como uma segunda natureza, assim naturalizados em nós. A maneira como o corpo se movimenta e se comporta em sociedade varia de cultura para cultura. Corpo como matriz de significados em Víctora (1995) reforça a influência da cultura no corpo. Esse pensamento se aproxima da noção de corpo mídia de Katz (2001) que pressupõe um corpo relacional, sujeito às informações do mundo via contaminação. Essas visões podem ser comparadas com a de Gil (1997), de corpo permutador de códigos, para o autor o corpo não fala, ele faz falar sobre a cultura.
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Merleau-Ponty (1999) afirma que somos corpo, ao invés de termos um corpo fora de nós. A noção de corpo carne do autor aponta para um pensamento contrário a idéia de corpo instrumento. Nossas experiências no mundo estão carnificadas, encarnadas em nós. Para Csordas (1988) o corpo não só faria a ponte entre natureza e cultura, o corpo é a base existencial da cultura, o sujeito da cultura, para isto o autor examinou criticamente duas teorias de incorporação: a de Merleau-Ponty (1962) e a de Bourdieu (1977; 1984); e propõe o colapso das dualidades, acabar com a dualidade corpo e mente. O paradigma de embodiment, incorporamento, ou corporalidade é entendido como emoções sentidas no corpo e como estas são controladas, porque o que está em jogo é a relação entre sujeito = corpo e emoções. As maneiras como as pessoas entendem, experimentam e falam sobre suas emoções está relacionada com o senso de imagem corporal: A imagem corporal é um mapa ou representação do grau de investimento do sujeito no seu corpo e nas suas partes (GROSZ 1994: 83 apud Lupton). Esse investimento nos remete a Dantas (1999) que fala de um corpo disponível obtido através do processo de improvisação dentro da formatividade de Pareyson (2001). Formatividade é um fazer que se aprende fazendo, que se cria criando. O corpo do bailarino em cena pode ser considerado o seu campo de ação (DURANTI & GODWING, 1992). Na dança a dramaturgia e os sentidos das ações estão no corpo. O corpo é visto como um capital5, ele é tema central em nossa cultura, isso aparece na maneira como investimos na nossa aparência (Goldenberg, 2007). É decisivo pesquisar na dança contemporânea se o corpo é um capital. Como se constrói um corpo na dança contemporânea? Qual o grau de investimento nele? Se o corpo do bailarino é um campo de ação, as técnicas de dança podem ser vistas como ações no corpo. Qual o valor da aquisição de técnicas nos corpos? Louppe (apud Lima 2003) em relação à técnica fala de corpos híbridos na dança contemporânea, alguns aparelhados e outros desaparelhados. Nessa lógica as técnicas podem ser consideradas um capital?
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Segundo Bourdieu (1989) há o capital social – adquirido de acordo com pessoas influentes, contatos e há o capital cultural – acesso aos bens simbólicos (livros, filmes etc) nessa lógica também podemos ver o corpo como um capital, um bem com valor simbólico. 18
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Noção de Técnica
6 Este habitus aparece na prática: O habitus como indica a palavra é um conhecimento adquirido, é também um haver, um capital. (...). Assim como a hexis indica a disposição incorporada, quase postural (Bourdieu, 1989: 61). Se não faz parte da consciência não há intencionalidade nas ações, isto se deve ao fato de que para Bourdieu as relações sociais são mais importantes, mais reais que os próprios sujeitos que elas vinculam. Quer dizer que as estruturas falam mais dos sujeitos que as próprias intenções, vontades conscientes desses sujeitos. Outro conceito importante para este trabalho é o de campo de Bourdieu também, este conceito engloba um sistema de relações entre as pessoas no interior de um grupo, na qual cada uma pertence a uma posição social. Para esta pesquisa é relevante definir campo artístico, que o autor trabalhou em relação à literatura e artes plásticas. O pressuposto básico da existência de campo é que haja uma divisão no interior do mesmo, entre profissionais e profanos, que corresponde aos especialistas e aos leigos respectivamente. A regra que rege o campo é o domínio dos códigos desse campo, tendo posse de um capital simbólico adquirido pela inserção no grupo. Chamo a atenção de que não há regra explícita para a entrada no campo, mas o sujeito só entrará se possuir um conhecimento dos códigos internos, no caso da dança leia-se técnica de dança? Informe C3 - Edição Especial Articulçações Acadêmicas. Porto Alegre, v. 04, n. 14, abr, 2013. www.processoc3.com
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Vem de Mauss (2003) a noção de técnica corporal: (...) as maneiras como os homens, sociedade por sociedade e de maneira tradicional, sabem servir-se de seus corpos. Técnica não restrita à cena, mas englobando qualquer aprendizado social. Técnica é um uso particular de corpo (Barba, 1995: 9). Barba faz uma distinção entre as técnicas estudadas por Mauss, - técnicas cotidianas - em oposição às técnicas extracotidianas, que dizem respeito aos momentos de representação artística. Tomazzoni (2001) rebate o termo Extracotidiano criando o termo neo-cotidiano, pois acredita que um estado de representação cênica não se refere a um extra corpo, mas ao mesmo corpo do cotidiano reinventado. O que o hábito tem a ver com reinvenção? Mauss fala de hábito corporal: Estes habitus variam com os indivíduos e suas imitações, mas, sobretudo com as sociedades, com as educações, com as conveniências, com as modas e com os prestígios (Mauss, 2003: 214). Bourdieu propõe a definição de habitus6, por considerar que esta categoria vai além das relações objetivas entre as pessoas, envolve a percepção que as pessoas têm do mundo, consiste naquilo que os sujeitos internalizaram do mundo objetivo devido a sua inserção e posição num
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determinado grupo. Qual a situação da concepção de um espetáculo? Quais os habitus compartilhados de background entre os artistas da dança? Estado de presença cênica Na Poética do devaneio de Bachelard (2006) as imagens poéticas proporcionam o devaneio quando essas emergem na consciência como algo da alma criadora. O autor traz a importância das imagens poéticas na imaginação criadora. Essas imagens são vistas nesse projeto como fundamentais à criação artística. Como nos aproximamos delas? Em vez de noção de corpo cênico como extracotidiano7 ou neocotidiano8 usa-se o termo Estados Corpóreos9 pra falar do corpo em cena numa visão antropológica no sentido de ser situacional e transitório. Estados Corpóreos engloba as representações de corpo dos bailarinos em cena: estados mentais e de espírito que são corpo, noção de corpo como sentimentos, percepções e pensamentos. Em cena temos corporalidades em trânsito. Essa discussão se insere numa abordagem contemporânea de dança cênica ao propor a idéia de trânsito entre as artes, assim como noções de técnicas e poéticas como indissociáveis na criação. Este artigo traz a hipótese de existir uma estreita relação entre técnica e cena. Cada criador estaria construindo/desconstruindo a cada criação/espetáculo/ obra/performance uma determinada poética linkada numa técnica. Há uma espécie de cultura de dança contemporânea, mas muitas vezes não sabemos muito bem do que estamos falando quando falamos dela, pois certos conceitos não são explicitados. A dança contemporânea está imersa num discurso pró diversidade e pró alteridade, Mas este discurso abre brechas para a indeterminação, Ao final, este artigo fez uma breve revisão da bibliografia sobre o corpo, a arte e a dança contemporânea. E demarcou algumas especificidades de um campo de estudo em dança na contemporaneidade no que se refere a certas referências de corpo e de arte. 7 8 9
BARBA, 1995. TOMAZZONI, 2001. Estados corpóreos é o nome de um espetáculo criado por mim em 2008, no qual cada cena tinha como princípio uma mudança de um estado a outro em cena. A inspiração veio do estudo das três energias de Arthur LESSAC – potence, radiance e buoyance. Energia da lama, de choques elétricos e da água respectivamente. Nessa obra a partir dessas três energias transitei por sete estados de presença cênica. Desse espetáculo, da experiência de estar em cena surgiu o mote pra se pensar em concepção de corpo como estado corpóreo num descontínuo e transitório fluxo de energias, imagens e emoções. 20
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MOVIMENTO DE CONTESTAÇÃO OU AGRESSÃO AO CORPO? Uma discussão sobre a Body Modification e a arte da performance na década de 90 Carla Ruiz1
Resumo Este artigo é uma análise do movimento estético que toma forma no Brasil, na década de 90 intitulado Body Modification. E também de como a arte utiliza-se do corpo através da performance. As formas de modificação utilizadas no período, o choque que as mesmas causavam nas pessoas e a forma como elas se popularizaram rapidamente, além de um breve histórico da arte performática. Para isso serão abordadas visões de dois participantes sobre como algumas pessoas ainda pretendem contestar a sociedade atual através de manifestações artísticas e com o uso do corpo. Palavras-chave: Body Modification, Performance, Body Art, Década de 90 Abstract This article is an analysis of the aesthetic movement popular in Brazil in the 90`s called Body Modification. And also how the art makes use of the body through performance. The forms used in the modification period, the shock that they were causing in people and how they became popular quickly, and a brief history of performance art. We will address two views of participants about how some people still want to challenge the current society through artistic expressions with the use of the body. Key words: Body Modification, Performance, Body Art, 90’s
1 Licenciada em História/UNICID, cursa graduação em Psicologia e Pós Graduação em Arte Terapia/UNIP. Tem experiência com História pesquisando Body Modification e Performance, realizou a Performance “2 become1” com Thiago Soares, tem experiência com Moda e Figurino, e ministra a “Oficina de Criatividade: Interagindo os quatro elementos” no espaço Mundo Pensante. Realizou pesquisa com o tema Body Modification também em astrologia. 24
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Práticas corporais: A Body Art e a Body Modification O tema do corpo na arte é um fenômeno com valor desalienante, que une a produção a seu produto, ou seja, liga o corpo humano a seus comportamentos Jorge Glusberg
As práticas e rituais envolvendo o corpo estão presentes em nossa cultura há muito tempo. É possível pensar em um número ínfimo de maneiras de manipular o corpo, seja mudando sua forma original, utilizando-se de adornos para deixá-lo mais belo, ou para diferenciar-se do padrão social, seja trabalhando-o de forma artística, para contestar algum estigma da sociedade ou realizar um trabalho teatral. Pensando nas maneiras de trabalhar com o corpo, podemos abordar duas manifestações importantes no século XX, a Body Art e a Body Modification, que podem dialogar entre si, porém não são práticas iguais.
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Introdução Percebe-se, a partir da segunda metade do século XX, a popularização de práticas corporais que podem ser relacionadas a mudanças na aparência física, como as tatuagens, e a rapidez com que a moda dita tendências. E no campo das artes, vemos a performance tomar um espaço de destaque. Na década de 90, o corpo começa a ser tema bastante discutido, a padronização corporal é imposta por uma sociedade capitalista extremamente consumista; a cirurgia plástica tem seu auge também nesse período em que o medo de não pertencer à sociedade cujo belo é ser magro e ter o corpo esculpido, e também cujo medo da velhice é presente. O presente artigo trata do estudo de um movimento contrário a esse corpo modelado e padronizado da década de 90, a body modification, e também de manifestações artísticas que utilizam o corpo como forma de contestação a padrões sociais, a performance. Como fonte principal para este trabalho contamos com entrevista realizada com duas pessoas de destaque na cena da modificação corporal brasileira, Thiago Soares, o T.Angel que é performer e adepto dessas práticas desde 1997 e a Body Piercer Zuba, que trabalha com modificação corporal desde 1992 e é uma das precursoras da técnica em São Paulo.
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Pessoas que fazem mudanças no corpo como tatuagens ou piercings, ou mesmo as cirurgias plásticas, seja por motivos estéticos ou não, são adeptos da Body Modification. Observamos que tatuagens, piercings, escarificação, implantes e também os rituais de suspensão são os principais componentes da Body Modification. Os adeptos dessas práticas são chamados de Modern Primitives, termo criado por Fakir Musafar e utilizado para: [...] indicar o modo de vida de indivíduos que, mesmo sendo membros de uma sociedade que se desenvolve baseada na razão e na lógica, se guiam pela intuição e colocam o corpo físico como centro de suas experiências. Esses indivíduos, que associam o conhecimento às sensações, respondendo a impulsos primitivos e se utilizando do conhecimento obtido pelas sociedades que há milhares de anos praticavam modificações corporais, se permitem qualquer tipo de manipulação corporal. (PIRES 2005, p. 102)
Para Pires (2005), as artes visuais causam impacto nas pessoas, trabalham com diversos sentidos do espectador, como repulsa, encanto ou mesmo a indiferença, porém para ela a linguagem que utiliza o corpo como suporte para a arte é a que mais causa impacto, afinal o corpo confere um caráter sagrado e “a nossa cultura há séculos determina que o corpo seja preservado da exposição pública, pois ele é o reduto da intimidade e da dor.” (p.22) T.Angel também fala um pouco sobre o padrão ocidental, no qual as pessoas fazem de tudo para ficarem bonitas de acordo com o ideal estabelecido, cortando e perfurando o corpo – que para ele também é sacralizado - tanto ou até muito mais do que os adeptos da Body Modification, que a fazem para ficar diferentes. “Eu acho que a plástica, ela vai estar pro sujeito como um elemento da modificação corporal. A única diferença é que a cirurgia plástica, ela é socialmente aceitável, porque ainda tá dentro do preceito cristão, branco, moral e a modificação corporal, como você interfere de uma forma que justamente agride o corpo, a cirurgia plástica agride tanto quanto. Mas enfim, foge da coisa cristã, do corpo limpo, corpo puro e aí vai ter um preconceito social [...]” (T. Angel, 16/04/2010)
Na Body Modification existe o conceito de extremo e não extremo. Piercings e tatuagens seriam já aceitos pela sociedade, não 26
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se enquadrando nas modificações extremas. Já piercings em locais menos comuns, escarificação, implante e rituais de suspensão seriam considerados práticas extremas, que chocam. Para T.Angel “tudo o que você pode colocar como cirúrgico, implante, o tongue split (língua bifurcada) é extremo, e tatuagem e piercing seria o não extremo, já que é só perfurar e marcar”. Zuba nos mostra o que era extremo na década de 90, período que inicia seu trabalho como Body Piercer, e o que ela considera extremo hoje: “Olha, naquela época extremo, que as pessoas ficavam assim muito... é, achavam muito estranho, na época dei até uma entrevista sobre isso, era o piercing genital. Nossa, piercing genital, imagina... as pessoas achavam muito estranho, ficavam muito assustadas. O extremo hoje em dia é mutilação, aqui tem quem faça. Já me procuraram e me nego a fazer.” (Zuba, 04/02/2010)
Partindo do conceito de representação adotado por alguns adeptos da Body Mod, podemos refletir sobre os entusiastas das práticas corporais, com intenção de passar uma mensagem maior, de cunho social, como ocorre através da Body Art e da arte da performance.
A Performance e a Body Art possuem um tom contestatório e não somente estético, como pode ocorrer com a Body Modification. Durante as performances, muitos artistas unem arte e vida, transformando rituais do nosso cotidiano em arte. A performance também pode causar repulsa ao público que a assiste, por trabalhar com fluidos corporais, como sangue, urina ou excrementos. A Performance é um campo vasto, onde estão incluídas as artes do teatro e da dança, todas envolvendo o corpo, porém de formas diferentes. Para alguns estudiosos e performers, a Body Art ligada à performance é a que envolve os limites do corpo, ou mesmo os limites do espectador, não apenas uma atuação. É aquela que envolve o individual do artista e seus espectadores, na qual ambos se expõem, o primeiro através da obra e o segundo transmitindo sua sensação ao presenciar o evento. A Body Art possui então um tom pessoal, autobiográfico, mostra Informe C3 - Edição Especial Articulçações Acadêmicas. Porto Alegre, v. 04, n. 14, abr, 2013. www.processoc3.com
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“A performance é um questionamento do natural e, ao mesmo tempo, uma proposta artística. Isso não deve causar surpresas: é inerente ao processo artístico o colocar em crise os dogmas – principalmente os dogmas comportamentais.” (GLUSBERG, 2009, p.58)
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o pensamento do artista. “O indivíduo constrói um senso de identidade pessoal ao criar ‘narrativas próprias’ que contenham sua compreensão do próprio passado, presente e futuro.” (CRANE, 2006, p.37). Breve histórico da Body Modification e da Performance Ao pensar modificação corporal, não podemos falar somente de tatuagens, piercings ou cirurgias plásticas. Muitas práticas que modificam o corpo são usadas em culturas diversas e desde tempos remotos. Podemos citar alguns exemplos, como os corsets usados para modelar a cintura da mulher, os sapatos chineses que mantém os pés pequenos ou mesmo as argolas usadas no pescoço das mulheres girafa. Fazer um histórico da arte performática é complicado, pois não há um marco que defina a origem desse tipo de manifestação artística. Algumas ações ocorreram durante o futurismo e Marinetti era seu maior representante. Na década de 20, Marcel Duchamp raspou seu cabelo em forma de estrela, mostrando que artista e obra se fundem em uma mesma realidade, e que o próprio artista pode ter a presença estética, ser a própria tela. Ainda na década de 20, Duchamp se deixa fotografar como mulher. Em 1931 no Brasil, Flávio de Carvalho realiza uma performance na região central de São Paulo, andando em uma procissão no sentido oposto a todos e ainda, vestindo uma boina, o que era inaceitável para os fiéis. Flávio de Carvalho estudava o comportamento humano, a reação diante de situações extremas, como esta, denominada ‘Experiência n° 2. No período da segunda guerra mundial a tatuagem era utilizada como forma de diferenciação e de exclusão social. As ditas minorias, ao chegarem no campo de concentração, eram marcadas por um número tatuado em seu antebraço, para mostrar-lhes o pertencimento à escória social. Na década de 50, a Action Painting de Pollock é quem chama a atenção na arte performática, já que através dela, o pintor que rompe com padrões da pintura, derrama tinta em vez de passá-la com pincel e caneta. Para Alan Kaprow, o artista deve passar da expressão corporal na pintura somente, para trabalhar com os outros sentidos, visão, som, movimentos, odores. A lista de materiais se expande, não tendo limites para a nova arte, o happening. Kaprow diz que “um Happening não pode ser reproduzido” e que “as linhas entre arte e vida devem ser mantidas tão fluidas e talvez tão indistintas quanto possível.” (SANTAELLA, 2003,
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2 Ao assistir uma palestra no MAM-SP, como participante do curso de formação de educadores para a 29° Bienal, soube que o museu já possui uma performance em seu acervo. Esse tema gera grande discussão, afinal a performance agora só pode ser encenada lá, em datas específicas, o que foge completamente da idéia inicial do que seria uma performance, espontânea e com intenção de passar uma mensagem ao público. Informe C3 - Edição Especial Articulçações Acadêmicas. Porto Alegre, v. 04, n. 14, abr, 2013. www.processoc3.com
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Na Europa, movimento semelhante já ocorria: o Fluxus, que contou com a adesão de artistas, cineastas e músicos, como John Cage. O Fluxus era um movimento antiarte, já que ele não era propriedade de nenhum museu e galeria. Hoje, a performance já pode ser adquirida por museus2. Também nesse período no Brasil, é lançado o manifesto neoconcreto, que pensava a arte não mais como objeto, mas como um ‘quase-corpo’. Pensando em obras que incluam a participação do público, podemos citar Hélio Oiticica com os Parangolés e Lygia Clark com seus objetos relacionais. Ambos não são performers, mas serviram de influência para os novos artistas, por trabalhar suas obras com a participação do público. Flávio de Carvalho, em 1956 faz uma nova performance que lembra muito os happenings norte-americanos, ele a chama de ‘experiência n°3. Para tal, cria o New Look, que seria uma roupa adequada para o homem dos trópicos, já que no Brasil, muitos homens usavam terno durante o nosso verão muito quente, ele a desfila pelas ruas do centro de São Paulo. Durante a década de 60 na Europa, temos o grupo de Viena, o Wiener Aktionismus formado por Hermann Nitsch, Otto Mühl, Gunter Brüs e Rudolf Schwarzkogler. Seus trabalhos quebravam tabus sociais e trabalhavam com práticas de automutilação e auto-sacrifício. Em 1970 o Teatro Oficina em parceria com o Living Theatre executa uma performance intitulada ‘Favela’ que consistia em envolver o cotidiano dos moradores à atuação dos atores. Foram presos e expulsos do país. Outro exemplo é o de Antonio Manuel, que inscreveu seu próprio corpo como obra no XIX Salão Nacional de Arte Moderna. Após a recusa de seu trabalho, o artista se coloca nu nos corredores do evento, sua performance, Corpobra se mostra um exercício de liberdade diante do regime vivido. Outros trabalhos de cunho político são importantes no Brasil durante a ditadura militar. Artur Barrio, com sua Situação T/T1 embrulhava pedaços de carne em trouxas e abandonava pela cidade, fazendo referência aos crimes dos militares. Cildo Meirelles com Inserções em Circuitos Ideológicos transmite mensagens políticas através de itens de uso cotidiano e de alta circulação, tais como cédulas monetárias e garrafas de coca-cola.
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No cenário internacional, a agora Body Art, consistia em o corpo não ser mais tão importante quanto o que é feito com ele. A Body Art é muito mais pessoal e biográfica que a performance e nela aplica-se o uso de outros materiais, como o vídeo: “A performance de Barry Le Va, Velocity Piece 1 e 2 (1969, 1970): ao correr de um lado para o outro de uma sala, batendo violentamente seu corpo contra duas paredes a uma distância de 15m uma da outra. Essa ação durou até sua resistência se esgotar. Um equipamento estéreo gravava os sons de seus movimentos no espaço, ao mesmo tempo em que sua atividade ficava visualmente registrada nas manchas de sangue com que seu corpo marcava a parede.” (SANTAELLA, 2003, p.258)
Os trabalhos femininos começam a ganhar destaque, e elas exploram a diferença corporal que possuem diante dos homens. Elas trabalhavam a “nudez e o abjeto sob o ponto de vista da ação e do olhar femininos”. (ibid, p.263). Em Interior scroll Scheneemann fica nua em pé sobre uma mesa, retira da vagina um estreito e comprido rolo de papel com texto de autoria própria sobre sua percepção dessa parte íntima da mulher. A performance consiste na leitura desse material. A artista plástica Orlan, que realiza cirurgias plásticas, reconstruindo o corpo, chamando a atenção do espectador para os múltiplos processos cirúrgicos aos quais algumas pessoas se submetem para alcançar o corpo ideal. Ela inspira-se em formas ligadas à história da arte, sem medo de transformar inclusive seu rosto. Uma performance de Marina Abramovic que obteve grande repercussão foi Rhythm 0. Nela, a artista se coloca ao lado de uma mesa com diversos objetos de provocação: uma arma, uma bala, uma serra, um garfo, uma escova, um chicote, um batom, um vidro de perfume, tinta, facas, fósforos, uma pena, uma rosa, uma vela, água, correntes, pregos agulhas, tesouras, mel, uvas, gesso, enxofre e azeite, entre outros objetos e materiais. Um texto escrito na parede dizia: “Há 72 objetos na mesa que podem ser usados em mim como desejados. Eu sou o objeto.”3 Ao falar sobre mulheres importantes no campo da performance, não podemos nos esquecer de Marcia X no Brasil, que explora relações entre 3 Disponível em: http://www.scribd.com/doc/8665323/O-Ataque-Ao-Corpo-NaBody-Art- acessado no dia 14/05/2010
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Década de 90. Ainda contestamos algo? Opiniões divergentes sobre o mesmo tema A década de 90 é marcada por movimentos sociais isolados, tais como ONGs, movimentos de combate a AIDS, de auxílio a comunidades carentes; porém não há mais uma grande movimentação política como a vista no período ditatorial. As pessoas nesse período consomem principalmente por status, para inserir-se em contextos sociais. Percebe-se a padronização da moda e do que é considerado in. Também nesse período a valorização do corpo malhado, sarado é concebida e “[...] numa sociedade onde o corpo malhado apresenta-se como objeto de adoração e classificação, não possuí-lo é não estar inserido.” (BERGER, 2006, p.63) Devido a essa padronização, e a estética imposta no período juntamente com os avanços tecnológicos e na medicina, inicia-se o boom da cirurgia plástica no Brasil. Nesse período há uma super valorização da juventude, este culto ao corpo, o medo que as pessoas adquirem de
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arte, erotismo e religião. Na performance Desenhando com terços a artista “desenha” imagens de pênis utilizando-se de terços. Após sua morte, um registro fotográfico dessa performance seria exibido na exposição Erotica, os sentidos na arte no CCBB, porém o próprio centro cultural censurou a obra. Na década de 70, Fakir Musafar faz sua primeira apresentação pública em São Francisco. Em 1973, Jim Ward funda a revista Piercing Fans Internacional Quartely. Nesse período a tatuagem também começa a sair da clandestinidade. Na década de 80 a arte começa a retornar às origens da pintura e escultura, e também volta a ser tida como objeto de consumo. As ações nesse período nos remetem mais à valorização do consumo e do mundo da moda, que começa a ditar regras. Aumenta o uso de recursos como o vídeo e a fotografia. No Brasil na década de 80, a reabertura política possibilita uma profusão de novas atividades artísticas e alguns incentivos como os eventos: “II ciclo de performances no Sesc de São Paulo e o VI Salão Nacional de Artes Plásticas – INAP/Funarte no Rio de Janeiro que, segundo Darriba, conferiu o prêmio Gustavo Capanema especial para performance ao artista José Eduardo Garcia de Moraes, nome indispensável ao falar sobre arte contemporânea brasileira.
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envelhecer e mostrar as marcas que a idade traz faz com que elas se submetam a diversas cirurgias plásticas no rosto também. Podemos pensar em alguns grupos que iniciam com a Body Modification no Brasil nesse período para diferenciar-se do padrão estabelecido. Já tínhamos os punks e os roqueiros que eram adeptos da Body Mod, mas somente de piercings e tatuagens. Para Zuba, o Mercado Mundo Mix foi um dos maiores responsáveis pela expansão das técnicas de modificação corporal presentes, o Mundo Mix e a noite paulistana divulgaram a prática do piercing em São Paulo. E os clubbers e cybers, que também são grupos que se diferenciavam do padrão imposto no período, são os destaques desse período. T.Angel comprova a importância do Mercado Mundo Mix ao relatar que seu primeiro piercing foi feito após uma visita ao mesmo em 1997, quando ele tinha 15 anos e iniciou seu processo de modificações corporais. Na segunda metade dessa década, o piercing já não era a única técnica de Body Mod presente, as técnicas agora discutidas são outras, como escarificação que pode ser obtida através de incisões – cutting – ou de queimaduras – branding – o pocketing, técnica que fica entre o piercing e o implante e o próprio implante, transdermal ou subdermal. Após a popularização do piercing em São Paulo, podemos perceber uma preocupação maior por parte dos profissionais, que também incentivaram os adeptos, com a higiene e certa medicalização dos procedimentos. Antes, como Zuba relata, os estúdios de tatuagem se preocupavam muito com aquele visual underground, com demônios na parede e depois estes lugares passaram a ter cara de clínica, bem branquinhos. Segundo Braz (2006), o processo de medicalização da prática da Body Modification pode vir como resposta a críticas de médicos, psicólogos, psiquiatras a respeito da mesma, que alegam um problema social o debate em torno da ‘mutilação’ do corpo. Partindo deste questionamento, podemos pensar como os praticantes vivem o preconceito na área de trabalho, afinal muitos adeptos relatam que tem dificuldade para conseguir emprego devido às marcas corporais, além do preconceito social ou dentro da própria família. “Na nossa sociedade, a tatuagem é um dos principais indicadores de alguns grupos sociais e é altamente refutada e mal-vista por outros grupos no interior dessa mesma sociedade. Só para citar um exemplo, quando
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uma pessoa resolve doar sangue em qualquer hospital ou banco de sangue, tem primeiro que responder um extenso questionário que mapeia, além de doenças que possam ser transmitidas pelo sangue, padrões de comportamento que possam indicar pertencimento a grupos considerados de risco pela sociedade mais ampla. Pergunta-se, entre outras coisas, se a pessoa porta alguma tatuagem. Se a resposta for positiva, as perguntas seguintes abordam se a pessoa já manteve relacionamentos sexuais-afetivos com pessoas que tenham tido passagem pela polícia, com homossexuais ou se tem AIDS[...]” (BERGER, 2007, p. 15)
Ao falar de preconceito, T.Angel reflete sobre a sociedade capitalista e o padrão de trabalhadores que a mesma pretende ter:
A modificação corporal extrema e as performances na década de 90 trabalham com o conceito do irreal, do corpo multimídia, adaptado aos avanços tecnológicos. Os artistas desse período como Stelarc trabalham com tecnologia ligada ao corpo, para ele o corpo é “uma espécie de carapaça anacrônica da qual é urgente se livrar”. (apud LE BRETON, 2003, p.50) Stelarc trabalha o tema da máquina humana, transformando-se em ciborgue. Suas funções fisiológicas são substituídas pela tecnologia, mostrando-nos a pós-modernidade, o ser humano interagindo com a tecnologia com seu corpo ligado a computadores. Em 1997 Marc Quinn apresenta sua obra Self, na exposição intitulada Sensation na Royal Academy os Art, em Londres que consistia em uma escultura de sua cabeça feita com 4.5 litros do seu sangue, quantia essa, que equivale a quantia média total do corpo. Para manter a escultura em estado sólido a mesma é conectada a um sistema frigorífico. T.Angel também já questionou o corpo artificial em suas performances, ao falar de suas modificações, cita os chips que vai ter no Informe C3 - Edição Especial Articulçações Acadêmicas. Porto Alegre, v. 04, n. 14, abr, 2013. www.processoc3.com
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“Eu sofri um monte de preconceito, poxa, ah vou discutir capitalismo agora? (risos). Mas é verdade, não tem como não falar, é o sistema do capital, eles querem pessoas iguais, para desempenhar funções que as pessoas não pensem, não questionem. E não sei se assusta de repente chegar um corpo diferente, e de repente, sei lá, a empresa por pensar que pessoa tem um corpo diferente, ela vá ser uma pessoa diferente, vai ser, não tem jeito. Eu acho que o preconceito já nasce daí, do capital querer pessoas iguais assim, que não questionem nada, fantoches.”(T.Angel, 16/04/2010)
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coração o transformando em meio humano, meio robótico.
“[...] eu fiz uma performance que eu construí o sistema venoso externo artificial, e eu usava os buracos novos que eu tenho no corpo, eu passava o caninho pelo nariz, pelo buraco da orelha de dentro, pelo mamilo, então é toda uma construção externa artificial que só foi possível porque eu tenho modificação corporal, pra fazer até a discussão que eu queria, sobre a artificialidade do corpo.” (T.Angel, 16/04/2010)
Refletindo sobre a Body Modification estética ou contestatória, Zuba relaciona a Body Mod como forma de rebeldia, para chocar socialmente. O mais importante para mostrar contestação seria a simbologia da modificação, como ela relata: “Uma vez um cara quis fazer uma escarificação duma... da anarquia no peito. Aí fiz, porque ele queria um... anarquista total o cara! Tudo ele se baseava na anarquia na vida dele.” (Zuba, 04/02/2010)
A motivação de T.Angel hoje é discutir questões sociais. Para ele o corpo “está ok. Mas falta alguma coisa pra ser completo” e “esse processo vai até a morte”. A motivação de Zuba é estética, de decorar o corpo, concordando com a frase de Fakir Musafar “o corpo é tua casa, a tua casa é como você quiser, não fazer isso é não viver”: Para Zuba, a maior preocupação que a popularização do movimento da Body Modification trouxe é essa questão da higiene, da preocupação com quem trabalha clandestinamente. A vigilância sanitária hoje fiscaliza melhor as condições de trabalho dos profissionais, o que para muitos não é interessante. Uma das preocupações de T.Angel é a moda da modificação, pessoas muito novas enchendo o corpo de tatuagens e piercings e correndo o risco de arrepender-se depois. Para ele, ter muita tatuagem, por exemplo, torna a pessoa uma celebridade, a mesma vai ter seu Orkut acessado, o Facebook4 cheio de amigos, o que incentiva adolescentes a iniciarem-se no meio sem muita maturidade e percepção de corpo.
4 Dessas redes sociais, o Orkut é bastante difundido no Brasil e o Facebook ganha espaço agora no Brasil, mas mundialmente é uma das maiores redes de contatos sociais existentes no momento. 34
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Conclusão Através da análise das entrevistas, foi possível perceber como as opiniões sobre este tema podem ser diferenciadas e como ainda os adeptos da modificação corporal em qualquer uma de suas formas sofrem preconceito na sociedade contemporânea. Pudemos perceber também como a modificação corporal foi popularizada e como algumas práticas foram inseridas no padrão de beleza vigente, fazendo com que outras pessoas busquem métodos mais dolorosos e diferenciados com intenção de chocar as outras pessoas, mas respeitando seus próprios padrões estéticos. Pudemos concluir que a Body Modification pode ser associada a um movimento de contestação, quando unida a arte da performance, quando estuda-se o corpo para tentar transmitir uma mensagem através de seu uso, e também pode ser associada a um movimento estético, sendo passível de comercialização e tornando-se elemento componente do padrão estético atual.
Entrevista com Zuba – concedida no dia 04 de fevereiro de 2010. Entrevista com T.Angel – concedida no dia 16 de abril de 2010.
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O falo na composição da mulher em oposição ao corpo que se decompõe como confrontação: tudo a mercê da morte. Bartira Dias de Albuquerque1
Resumo Como pensar a mulher e os jogos dos corpos nessa sociedade de consumo que se inspira no ideal grego, mobilizando comportamentos com rigores e crenças cientificas delimitadas por fé cristã? O que caracterizaria a sociedade não seria a apreensão pelo falo, designando inúmeros discursos e escondendo o que há de principal na alma: A morte? Não seriam nossos discursos e pensamentos meros anfitriões de uma fé cega estabelecida pela morte, mas que dá centralidade ao corpo? Como seria relacionar o ser mulher da sociedade moderna com dispositivos que estabelecem a relação intrínseca da morte com o falo? Neste artigo desejo pôr estas reflexões que nos inserem numa sociedade, que não se indaga sobre a impregnação de valores que exalam modernidade, mas se enfia nos empreendimentos de uma moral cristã-científica saturada de Grécia Antiga. Palavras-chaves: Mulher, composição, corpo, falo, alma, morte, sociedade moderna, dispositivos, moral cristã-científica. Em época de eleições segue-se à tona o discurso que resulta no controle do corpo feminino e mais indiretamente da criança, como ordem para respostar à população o homicídio na conduta feminina. Mais uma vez a sociedade insere ao comportamento feminino a criação da mulher doméstica, essencializada e tecnizada onde encontramos o saber fazer e poder, ausente de um elemento primário: o sujeito de si. Cabe aos moralismos examinar o que se reporta a mulher num limiar de transformação-evolução. 1 Graduada em Ciencias Sociais pela Universidade Estadual do Ceará (UECE), Escritora, Artista Visual e Mestranda em Educação brasileira na Universidade Federal do Ceará (UFC).
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Mas como questiona Nietzsche: “O que em nós aspira realmente à verdade? (...) Nós questionamos o valor dessa vontade. Certo. Queremos a verdade: mas por que não a inverdade? Ou mesmo a insciência?2” Esta vontade de verdade para inspirar valores dos quais sugere uma perturbação frente à vida, estipula enunciados que controlam afirmações de verdade para se apoderar de corpos, legitimando o engano da morte e controlando todos os efeitos de um corpo, que já foi bastante pré-definido por todo um processo histórico. “é possível que se deva atribuir à aparência, à vontade de engano, ao egoísmo e à cobiça um valor mais alto e mais fundamental para a vida.” 3
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Além do bem e do mal,1992.p.09 Idem,p.10 Idem,p.12
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Vamos há uma necessidade de mudar o modo de ver, através de valorações que vão para além da lógica, tratemos de um indeterminado que não gira em torno da verdade, “que não seja precisamente o homem a medida de todas as coisas” como já questionava Nietzsche na citada obra. Vamos pensar o que vem antes do corpo, o que está escondido nos discursos científicos para examinar os valores morais e determinar as verdades atuais. Vamos buscar visualizar o que vem através dos discursos vinculados ao corpo feminino como uma área composta pelo falo que é dividida pela economia da morte. “Reconhecer a inverdade como condição de vida: isto significa, sem dúvida, enfrentar de maneira perigosa os habituais sentimentos de valor; e uma filosofia que se atreve a fazê-lo se coloca, apenas por isso, além do bem e do mal.” 4 Na sociedade vigente, à mulher cabe exercer sua força no que diz respeito a tal investimento de si, relacionado ao trabalho e consumo que controla seu corpo a um cuidado específico do corpo engajado a um padrão de comportamento principiado pelo falo. À mulher cabe achar-se bonita enquanto frágil sedutora de uma prole masculina. Ela se encontra dentro de efeitos menores de poder que se demonstra dentro do próprio exercício de mãos dadas com o seu falo, pois à fêmea deverá ser sempre menor para representar um belo casal, ela necessita de segurança e não de um companheiro, e se a sua opção for outra mulher, uma aparenta ser mais máscula ou então que sejam ninfas para deliciar as fantasias sexuais masculinas.
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Formaremos um esquema da mulher moderna tão atual, quanto virtual e real, eis uma verdade predominante sobre ela: Ser mulher é: Ser elegante, bonita, inteligente, trabalhadora, vaidosa, emotiva, cautelosa, mãe, sensual, estilosa, performática: Uma Barbie, um conto de fadas. Vaga... Vaga para uma entrada manipulada da forma MACHO. Seja pelo trabalho, sexo ou procriação. A forma MACHO é sua microempresa. Exerça seu instinto como se fosse um saber íntimo da fatalidade de se ter um homem. Não se pode reclamar, não é permitido ficar feia, envelhecer, morrer e o pior de todos os males: solidão. Quando se abre uma porta para optar sobre seu corpo, negam-lhe o direito de conduzi-lo em última instância, com a recusa da morte pela moral cristã científica. Eleições brasileiras sempre se finalizam com certo saber-poder da igreja-ciência que determina campanha-vida. Discurso da vida que mata a própria vida fazendo uso do corpo feminino. Mas não é este o corpo em questão, não é ele o centro da gravidade e sim uma economia vinculada ao dispositivo maior: morte. Morte que essencializa a moral: O empreendedorismo do corpo. Não é o corpo feminino que se manipula, mas o que ele é capaz de deter com o dispositivo da morte. O aborto negligencia a família e pior que isto o que vem por trás do que esta se avizinha. O aborto negligencia o eu investimento e o eu consumo. Mesmo que em certos países há uma tolerância ao aborto, há o discurso maior da vida e do amor maternal, por isto pouco se opta fazê-lo, já que este constitui uma moral que perpassa o saber família e propriedade, onde se documenta a beleza que é viver em conjunto-casa a se investir em crianças. A criança delimita o propósito da vida que insere o fazer e o saber feminino. A Economia da Morte visa estabelecer o lugar, o comportamento e o além corpo, que tal um pós-corpo e mais virtualmente um pós-humano, como pensou Nietzsche e Heidegger? Sugere-se assim; o estar; o certificar-se, o expandir-se. A mulher corpo que dá vida, nega-se ao aborto e faze-se sexo feminino e corpo-criança que dentro dos jogos de saberes científicos e de uma moral cristã, constrói ao ser, o ter, que se estabelece numa economia da morte onde se desenvolvem funções e sentidos para esterilizar o exercício do pensar, da inquietação e da perturbação de estar morto e se fazer viver. À família tem que se estabilizar para criar seus filhos, eis um advento
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Foucault,M. Microfísica do Poder,1998.p.3
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que segura à morte o tempo todo em prol da vida, implicando numa série de necessidades que esgotam a essa instituição o direito de morrer e de matar. As necessidades se elaboram pelo tempo e numa série de efeitos provocados pela economia da morte. Dois deles, a desconfiança e o exercício dos crimes de amores que são mais desenvolvidos pela família. Quem está mais próximo é quem mais maltrata, paradoxalmente é quem você mais pode contar, e segundo pesquisas científicas: homens vivem mais e melhor quando constituem o laço matrimonial. Às mulheres cabe desconfiar enquanto mães, cabe a elas se introduzirem numa série de práticas fiscalizadas por mais inseguranças e aos filhos insere-se o comportamento do delatar e com isto delete-se a memória num deleite de seguros provocados pela vontade que seus especialistas ascendem às suas sensibilidades. Há centralidade maior que a da morte? Não é parte da economia política pensada em torno disso? Há potência maior para estimular a circulação da moeda que investir em crimes e agora com uma falsa centralidade do corpo, esta economia está cada vez maior em torno de doenças ditas como mentais, aumentando-se os estupros, abusos sexuais e pedofilias, tudo isto girando em torno da construção família? Dentro destes a ilegalização do aborto no Brasil para incrementar os nascimentos de bebês e uma proposta bem elaborada para os discursos da desconfiança, capazes de produzirem neuroses, doenças, asilos, instituições, funções e mais especialidades. A morte e seus excessos. Há algo mais lucrativo que pensar o corpo através da morte, sem que esta seja diretamente apresentada e muito pelo contrário é encoberta por inúmeros dispositivos? “Não são simplesmente novas descobertas; é um novo regime no discurso e no saber, e isto ocorreu em poucos anos.” 5 Não temos uma continuidade dos fatos, mas acontecimentos. Não algo apaziguador quanto pensar a construção do feminino através de uma evolução num discurso de inclusão, que trouxe a tentação da verdade pela história e um discurso científico que controla o corpo, mas sim, trata-se de pensar algo ensurdecedor, que trouxe ao feminino uma reflexão maior, algo que não pode ser manipulado e deve existir como confrontação a esta espécie de corpo engajado numa moral cristã e fé científica. “O que faz com que o poder se mantenha e que seja aceito é simplesmente que ele não pesa só como uma força que diz não, mas que
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de fato ele permeia, produz coisas, induz ao prazer, forma saber, produz discurso.” 6 A verdade está sempre sendo produzida, até onde vale para o novo capitalismo. Ela está nas regras que separam o verdadeiro do falso, cheia de efeitos de poder. Ela é produzida nos discursos científicos delimitando a vida com certezas e comprovações, afirmando-se no seu poder de individuação, normalização, compondo a norma com a ciência num discurso médico-moral. Será mesmo o corpo, o sujeito? Será mesmo o pós-humano o principal elemento? Não é a morte, este sujeito que nunca mudou porque nunca de fato veio à tona como elemento discursivo, mas apenas um elemento escondido girando em torno de uma moral cristã científica? E não será por isso que entre a idéia platônica, o Deus da idade média e o homem como sujeito-objeto não houve a menor transição? Enfim, deixo esta brecha como um exercício do pensar, não há novidades, mas caminhos que se entrelaçam em torno de corpos femininos e elementos sujeitos e sujeitados que são decorrentes da maneira que somos “naturalmente” encaminhados a refletir os acontecimentos através da ciência para uma vida capital. As necessidades das fragilidades que vão se destrinchando em favor de uma economia política, sustentada por discursos científicos unidos à moral platônica reformulada pelo cristianismo e adicionada ao capitalismo, existem como verdade e se operam por seus efeitos individualizantes de subjetividade. Tão logo a filosofia, a história e toda e qualquer ciência começam a acreditar em si mesma e numa tirania impõem à vida a conformidade com as regras. Eis a morte dos corpos e dos pensamentos.
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Idem, p.8
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O Ensino de História e as Representações dos Sem-Terra nos Livros Didáticos Andresa Silva da Costa Mutz1
Resumo Este artigo é resultado de minha pesquisa de mestrado quando analisei os usos que se faz da pobreza no neoliberalismo. O foco foram narrativas sobre sujeitos pobres envolvidos nas disputas por terra nos últimos 20 anos no Brasil. O corpus de análise esteve composto por vinte e três livros didáticos de História publicados no país entre 1985 e 2005, que apontaram também para um conjunto de enunciados acerca dos sem-terra que circulavam em revistas semanais, jornais, documentários e sites na internet. As ferramentas teóricas ou conceitos que orientaram a pesquisa são provenientes da vertente pós-estruturalista dos chamados Estudos Culturais em Educação. Os resultados colocaram em evidência a produtividade dos jogos de poder que atravessam a política cultural de identidade a qual estão relacionados os múltiplos discursos sobre os sujeitos sem-terra em um país de dimensões continentais como o Brasil.
Palavras-chave: Ensino de História, Livro Didático, Reforma Agrária, Movimentos Sociais, Identidade.
Apresentação Era meu primeiro ano como professora de história na rede privada de ensino. Apresentei o tema da Reforma Agrária para as crianças das turmas de 6ª série do ensino fundamental, conforme o currículo escolar previa. O que eu não previ foi o impacto que minha prática pedagógica teria sobre alguns pais de meus alunos. Posteriormente à discussão ocorrida em aula sobre o problema da má distribuição de terras no Brasil, fui convocada para uma reunião administrativa junto ao serviço de supervisão escolar. Era 1 Licenciada em História, Mestre e doutoranda em Educação (UFRGS, em andamento) na Linha de Pesquisa dos Estudos Culturais em Educação. Professora de História na rede privada por dez anos. Atualmente Bolsista CAPES. Tenho pesquisado as racionalidades conferidas à pobreza na lógica neoliberal, com ênfase nas diferentes pedagogias culturais que nos regulam a conduta em relação à pobreza e o consumo e, em especial, os efeitos dessa regulação na marcação das diferenças e a exclusão social. 48
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Sobre o corpus da pesquisa Por razões que já mencionei anteriormente, minhas atenções se voltaram para a escola. Optei por analisar um conjunto de vinte três livros didáticos da área de História, publicados entre 1985 a 2005. A opção por tal volume de manuais justifica-se pela raridade do tema em cada publicação didática. Problematizei meu objeto de pesquisa a partir de um conjunto 2 Utilizo a expressão sem-terra para fazer referência aos homens e mulheres que, assumindo a falta de uma terra pra se fixarem, se filiam ao Movimento Sem-Terra (MST) no Brasil. Os integrantes de tal movimento são narrados cotidianamente assim na sociedade brasileira. Nos mais diferentes veículos de comunicação, nas escolas e demais espaços culturais, são chamados de sem-terra. Esses sujeitos assumem tal identidade e ainda lançam mão de outros símbolos que, juntamente ao nome “sem-terra” costumam evidenciar a sua filiação ao movimento e às lutas pela Reforma Agrária, como o uso de camisas, bandeiras e bonés vermelhos, por exemplo. Por vezes utilizo outro termo, os sem terra, grafado sem hífen. Faço isso sempre que me refiro a outra identidade, aquela dos sujeitos pobres do campo que não estão necessariamente vinculados a algum movimento social. Fiquei atenta a esse fato quando, ao manusear o material de pesquisa selecionado, como livros didáticos, revistas, jornais e filmes. No caso, corria uma utilização indiscriminada de um ou outro termo em tais produções. Uma ação aparentemente inocente por parte de quem está narrando esses sujeitos, mas se considerarmos que a linguagem. Informe C3 - Edição Especial Articulçações Acadêmicas. Porto Alegre, v. 04, n. 14, abr, 2013. www.processoc3.com
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preciso que eu justificasse mais detalhadamente e talvez até repensasse minhas opções teóricas, afirmavam-me os administradores. As aulas de história estavam parecendo “revolucionárias demais” e as crianças haviam voltado naquela semana para casa “defendendo a invasão de terras”, acusavam-me alguns pais de alunos. A partir de tal incidente passei a prestar mais atenção nos diversos discursos sobre os movimentos sociais envolvidos na questão agrária brasileira. Interessei-me pelas narrativas que circulavam em jornais, revistas e programas televisivos acerca dos sujeitos sem-terra2. Foi quando percebi que eram mesmo muito semelhantes, em seu conteúdo, àqueles que eu ouvira na escola entre meus alunos. Dei prosseguimento a minha pesquisa de mestrado que apontou para a complexidade do fenômeno social a qual estão inscritos os sujeitos sem-terra em um país de dimensões continentais como o Brasil. No caminho investigativo deparei-me com narrativas que circulavam nos manuais didáticos posicionando esses sujeitos na sociedade, marcando sua identidade como criminosos, vagabundos, baderneiros, mas também como heróis, mártires, sonhadores, miseráveis e dignos de pena. O texto que ora apresento propõe um reflexão acerca desses jogos de poder que envolvem a marcação da(s) identidade(s) dos sujeitos pobres do campo.
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mais amplo de obras, atentando para as recorrências, deslocamentos e rupturas que as poucas páginas destinadas à questão dos sem-terra apresentavam. Mas, apesar da inicial centralidade do livro didático em meu cenário investigativo, algumas mudanças metodológicas ocorreram. E foram os próprios manuais que ao longo do caminho investigativo, remeteramme a incursões por outros espaços pedagógicos como revistas, jornais, documentários e sites da internet, por exemplo. Toda essa produção cultural compõe, em seus enunciados acerca dos sem-terra, um discurso um tanto heterogêneo e repleto de atravessamentos relativo aos pobres na sociedade capitalista, o que me permitiu problematizar os usos que nossa sociedade de consumo faz da pobreza. Justifico esse trânsito de análise do livro escolar para outros artefatos mais ligados ao campo da mídia, pela filiação de minha pesquisa a um referencial teórico que entende a cultura também como pedagogia. Nesse sentido, “o cultural torna-se pedagógico e a pedagogia torna-se cultural” (WORTMANN, 2007, p.77). Ou seja, entendo que esses espaços midiáticos fazem circular representações que assumem um caráter pedagógico ao produzirem significados e estabelecerem subjetividades. De alguma forma a trama discursa da mídia - assim como o texto didático - instaura verdades acerca dos sujeitos sem-terra, ensinando as crianças e jovens de nosso país lições sobre justiça, criminalidade, economia, etc. Sobre as ferramentas teóricas utilizadas O conceito de representação foi um operador útil para pensar a noção de identidade sem-terra. Tomei-o segundo o sentido que lhe atribuem pesquisadores brasileiros no campo da Educação que em seus estudos se apropriam das ideias de teóricos pós-estruturalistas como Gilles Deleuze, Jacques Derrida e Michel Foucault, por exemplo. Assim, seguindo Maria Lucia Wortmann (2001) entendo que “a representação participa da constituição das coisas, não sendo vista como um mero reflexo dos eventos que se processam no mundo” (p.156). No mesmo entendimento, Marisa Vorraber Costa (2004) acrescenta que “neste caso, quem tem o poder de narrar o outro, dizendo como está constituído, como funciona, que atributos possui, é quem dá as cartas da representação, ou seja, é quem estabelece o que tem ou não, estatuto de realidade” (p.77).
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3 Segundo Costa (2002), “a expressão virada lingüística refere-se às movimentações no campo da filosofia em que o discurso e a linguagem passam a ser considerados como constituidores da realidade. Segundo as concepções que se afinam com a virada lingüística, nosso acesso a uma suposta realidade é sempre mediado por discursos que não apenas a representam, falam dela, mas a instituem. Quando se fala de algo também se inventa este algo” (p.140). 4 Como lembra Elí Henn Fabris, “artefato cultural é qualquer objeto que possui um conjunto de significados construídos sobre si” (FABRIS, 2004, p.258). Informe C3 - Edição Especial Articulçações Acadêmicas. Porto Alegre, v. 04, n. 14, abr, 2013. www.processoc3.com
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Dessa forma, tratar da questão dos sem-terra e suas representações em livros didáticos e demais artefatos culturais significa lidar também com a questão da política cultural da identidade. Expressão que em geral, como explica Costa (2002) “vem sendo utilizada para referir-se às estratégias políticas implicadas nas relações entre o discurso e o poder” (p.139). Nesse caso, diz respeito aos jogos de poder que produziram as identidades sem-terra no interior da nossa cultura. De modo que o currículo escolar e o livro didático sejam entendidos como espaços onde se dão as lutas ou embates identitários em torno dos sujeitos sem-terra. Merece ser considerado também o fato de que o entendimento de linguagem adotado aqui deriva das reflexões decorrentes da chamada virada linguística3 proposta por teóricos pós-estruturalistas. Dessa maneira admite-se que na estrutura de nossa linguagem, para cada afirmação que fazemos, assumimos implícita ou explicitamente uma série de negações que nos permitirão marcar pela diferença a identidade de determinado sujeito. Tomaz Tadeu da Silva (2007) reforça essa ideia quando afirma que “em um mundo imaginário totalmente homogêneo, no qual todas as pessoas partilhassem a mesma identidade, as afirmações de identidade não fariam sentido” (p.75). Assim, ao refletir sobre como os sem-terra são apresentados às crianças e jovens escolares, essa pesquisa pretende atentar para as identidades atribuídas a eles, bem como para os processos classificatórios que essa identificação pressupõe, afinal, como ensina Silva (2007) “a afirmação da identidade e a marcação da diferença implicam, sempre, as operações de incluir e excluir” (p.83). Ao pensar as ações relacionadas à marcação de uma identidade – dividir, classificar, hierarquizar – todas produzidas na cultura pela linguagem e, portanto, submetidas à arbitrariedade das relações de poder, pressuponho justificável a opção, entre os múltiplos artefatos culturais4
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que compõem a maquinaria escolar5, por trabalhar com a análise dos livros didáticos, pois me permite problematizar a questão social dos sem-terra operando com os conceitos de representação, identidade e diferença. As publicações escolares são entendidas, nesse caso, como parte de um conjunto maior de saberes que valida e legitima determinadas verdades, instituindo realidades acerca dos sujeitos e objetos desse mundo. Faço referência aqui à noção de currículo, segundo o que afirma Silva (1996) “o nexo íntimo e estreito entre educação e identidade social, entre escolarização e subjetividade, é assegurado precisamente pelas experiências cognitivas e afetivas corporificadas no currículo” (p.184). Ao me referir ao currículo estou entendendo-o, segundo Costa (1998), como “um conjunto articulado e normatizado de saberes, regidos por uma determinada ordem, estabelecida em uma arena em que estão em luta visões de mundo e onde se produzem, elegem e transmitem representações, narrativas e significados sobre as coisas e seres do mundo” (p. 41). As narrativas presentes nos livros didáticos são discursos que pretendem dizer aos estudantes quem eles são e quem são os outros. Por tudo isso, penso ser indispensável articular aos conceitos até aqui utilizados outro operador conceitual significativo no entendimento do processo de constituição da identidade sem-terra: o poder, entendido aqui não como um objeto, mas como uma relação. Foucault (1995) explica que nas relações entre indivíduos livres “o exercício do poder seria uma maneira para alguns de estruturar o campo de ação possível dos outros” (p.245). De modo que as questões a serem problematizadas em minha investigação passam sempre pelo entendimento do poder como rede a ser mapeada em seu funcionamento. Como lembra Silva (2007) a afirmação da identidade e a enunciação da diferença traduzem o desejo dos diferentes grupos sociais, assimetricamente situados, de garantir o acesso privilegiado aos bens sociais. A identidade e a diferença 5 Tomo emprestado esse conceito, Manquinaria Escolar, explicitado por Julia Varela e Fernado Alvarez Uria (1992) em um artigo no qual os autores esboçam as condições históricas e sociais que contribuíram no processo de estruturação da escola como a concebemos hoje: uma instituição inventada com o objetivo de fabricar determinados tipos de sujeitos.
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estão, pois, em estreita conexão com relações de poder. O poder de definir a identidade e de marcar a diferença não pode ser separado das relações mais amplas de poder. A identidade e a diferença não são, nunca, inocentes. (p.81)
Isto posto, passo a explicitar que dispus cada um dos conceitos anteriormente apontados em torno de um operador conceitual chave na construção e entendimento de meu objeto de pesquisa: a ideia de um dispositivo de segurança que opera na racionalização da pobreza. Tomei dispositivo no sentido que lhe atribui Foucault (2003) como um conjunto heterogêneo de elementos da cultura devidamente agenciados através das múltiplas ligações estabelecidas entre si e disposto de maneira a alcançar um objetivo estratégico ou responder a uma determinada urgência. Ou, nas próprias palavras do autor “estratégias de relações de força sustentando tipos de saber e sendo sustentadas por eles” (p. 246).
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Algumas experiências de análise Trago agora um recorte dos achados obtidos durante as análises realizadas em minha dissertação, pois acredito que irá nos permitir uma aproximação mais empírica dessa complexa rede de discursos que se organizam em torno da pobreza no interior do dispositivo neoliberal a que faço referência Destacarei apenas um dos enunciados do conjunto maior de verdades que vi circular nos manuais didáticos, ou seja, que estavam naturalizados no interior do discurso que tem orientado as narrativas sobre a pobreza no espaço escolar. A linha de força que pretendo destacar é o enunciado que narra para as crianças esses sujeitos pobres do campo envolvidos em movimentos sociais como “tudo aquilo que não deveremos desejar” para nós mesmos e nossa família. Sendo assim, posso afirmar que uma das mais importantes lições que aprendi com os livros didáticos de história é que o fim dos SemTerra e daqueles que se envolvem com tais sujeitos é sempre trágico. As representações de morte, prejuízo moral ou econômico, associadas com frequência a eles pode ser entendida como uma advertência: “preste atenção ao que acontece com aqueles que são como eles!”. Um alerta constante para nós: “é preciso cuidado!”. Somos convocados a pensar a partir de uma verdade: somente com muito esforço pessoal e trabalho poderemos nos salvar do fim trágico que acompanha a pobreza. Por isso,
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fujamos dela. Deve-se entender que o dispositivo discursivo está operando na racionalização da pobreza do campo, fixando à identidade SemTerra o signo trágico da morte como o fim esperado para aqueles que se conduzem nos limites da aceitação numa sociedade capitalista de consumo. Para um indivíduo do campo, não ter terra significa não ter emprego e, por conseguinte, estar fora do mercado de consumo. Sujeitos nessa condição se tornam alvos de novas linhas de força do dispositivo que os reabilitará, caso se deixem seduzir pelos enunciados que associam consumo à produtividade e individualização, remetendo-os à condição de consumidores habilitados, o que em nossa sociedade significa o acesso aos direitos e deveres como cidadãos. Em um dos livros de Schimdt (2001) analisados, chamou-me a atenção uma figura, do tipo fotografia, onde podemos ver uma porção de caixões funerários fechados e cobertos por bandeiras do Movimento Sem-Terra. Uma fotografia produzida em meio a lutas pela terra ocorridas na contemporaneidade é utilizada no livro didático para ilustrar um texto explicativo referente à Cabanagem, conflito ocorrido também por questões ligadas à terra, mas no período de 1834 à 1840 no Pará. No texto, lêse que a revolução – Cabanagem – ocorrera por conta da exploração dos latifundiários sobre os cabanos. Decorre da leitura que o manual nos fornece, entendermos que a região era marcada pela agitação e palco para a ação de bandos armados que faziam justiça com as próprias mãos, distribuindo bens roubados para os carentes, e com o apoio da igreja que “benzia as armas dos rebeldes”. Segue o texto do manual na pág. 148: “Os pobres falavam em distribuir terras e acabar com a escravidão. E havia quem levantasse a possibilidade de arrancar o couro delicado dos brancos”. E, por fim, faz-se o registro da morte de um dos líderes cabanos: “Vicente Ferreira de Paula foi espancado e amarrado ao sol com uma camisa apertadíssima de couro...ela ia secando e encolhendo. Ele vomitava sangue. ‘Assim morreram os camponeses no Brasil’” (p. 148). São muitas as narrativas que se assemelham a essa nos outros livros didáticos analisados. Esse enunciado a que fiz referência parece ter uma força tremenda em nossa sociedade. Por isso, tenho sugerido que a maior lição que se tem ensinado, quando se analisa história agrária brasileira às crianças em idade escolar, que estou a destacar até aqui, é: Olhe para os Sem-Terra, para a pobreza rural, veja seu fracasso e mantenha-se longe de uma conduta que se assemelhe a desses sujeitos.
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Até aqui procurei sustentar a hipótese de que é possível encontrar, nos materiais empíricos selecionados para essa pesquisa, representações mais ou menos homogêneas acerca dos Sem-Terra. De fato os livros didáticos confirmaram parcialmente essa suposição que lancei como ponto de partida de minha investigação. Mas pude me surpreender com as rupturas e/ou deslocamentos dessas identidades que também se mostraram presentes nos manuais. Entendi tais desvios como evidencia das novas condições sociais resultantes da condição pós-moderna em que nos encontramos e passei a discuti-las a partir de um forte marcador social da contemporaneidade, o consumo. Por isso, penso que seja possível apresentar ainda uma marcação, mais específica do que esse enunciado apreendido nos livros didáticos que explicitei acima. Trata-se do nomadismo. Uma marca que perpassa os outros diferentes enunciados regularmente atribuídos à identidade Sem-Terra com que tive contato em minha investigação. A marcha desses sujeitos é entendida por muitos autores dos livros que analisei como a representação mais significativa desse movimento, aparecendo muitas vezes nas aberturas de capítulos em imagens que ocupam quase a totalidade da página. É o caso do manual escolar de Macedo (1996), onde vemos tal representação a marcar a centralidade da caminhada, da marcha, do nomadismo entre os sem-terra. Uma fotografia realizada sob um ângulo mais aberto, o que nos permite enxergar ao longo de uma movimentada rodovia o movimento de muitas pessoas, homens e mulheres, com bandeiras vermelhas nas mãos e bonés vermelhos na cabeça, caminhando entre carros e caminhões. Esta é uma das mais produtivas figuras selecionadas para este artigo e que representa os sem-terra nos manuais escolares, expondo com muita pertinência a ambivalência na sociedade pós-moderna. Sujeitos que estão sempre em movimento, mas parecem não chegar a lugar algum. Na pressa dos cidadãos da cidade, os pobres do campo podem ser considerados obstáculos à mobilidade, obstruindo passagens em vias públicas. São seres anacrônicos que ainda buscam fixarem-se a um território, paradoxais em tempos de fascínio pela mobilidade e extraterritorialidade. A sutileza da contemporaneidade está no fato de que os Sem-Terra, enquanto reivindicam um espaço para se fixar, confirmam seu atraso e sua inutilidade em uma sociedade marcada pela mobilidade. Ao mesmo tempo, na contramão dessa marca, eles se põem em movimento. Mas
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essa marcha não é suficiente para lhes conferir uma identidade afinada com os tempos pós-modernos, afinal, de maneira um tanto contraditória ao que se poderia esperar daqueles que estão em movimento, esses estão marchando em direção à posse de uma terra, à produção agrícola, ao trabalho cooperativado, à subsistência. Tudo na contramão do que considera normalidade na sociedade de consumo extraterritorial, mecanizada, individualizada e consumista. Voltemos a Bauman, que ao definir as diferenças de compreensão do tempo-espaço entre os habitantes do Primeiro Mundo e os do Segundo, insiste na questão da mobilidade. Na citação que segue, o autor faz referência direta aos imigrantes ilegais que tentam a sorte na Europa ou Estados Unidos da América. De qualquer maneira, penso que por serem todos – sem-terras, imigrantes, miseráveis urbanos – tratados como refugo humano da globalização, podemos tomá-la como medida para entendermos por que os pobres do campo são representados com tanta frequência como imóveis numa situação de perigo social. Vejamos o que Bauman (1999) tem a nos dizer Os primeiros viajam à vontade. Divertem-se bastante viajando (particularmente vão de primeira classe ou em avião particular), são adultos e seduzidos a viajar, sendo sempre recebidos com sorrisos e de braços abertos. Os segundos viajam às escondidas, muitas vezes ilegalmente, às vezes pagando por uma terceira classe superlotada num fedorento navio sem condições de navegar mais do que outros pagam pelos luxos de uma classe executiva – e ainda por cima são olhados com desaprovação, quando não são presos ou deportados. (p.97 e 98)
De fato, os livros didáticos que analisei me remeteram a essa representação da marcha como imperativo da identidade Sem-Terra, mas é preciso estar alerta, pois a mobilidade aqui é uma armadilha que fixa esses sujeitos na posição de andarilhos. Não se trata de uma opção. Estão sempre em movimento e por isso são identificados como um sem-terra. Se optarem por se fixar em algum lugar, logo chamarão a atenção das autoridades e da sociedade, ativando novas linhas de força do dispositivo de racionalização da pobreza a fim de conferir certa lógica à existência desses sujeitos.
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Para finalizar A principal lição que aprendi com essa pesquisa foi a de que é no interior da cultura que os discursos são naturalizados e nos assujeitam. Isso se dá, muitas vezes, sem que possamos perceber, em nosso cotidiano escolar. Por isso é importante discernir e compreender as condições de possibilidade que tornaram visíveis e dizíveis os discursos. É nossa tarefa procurar a especificidade do objeto do qual se fala e que existe em uma dada realidade. Podemos descrever o lugar, as instituições, os sujeitos autorizados a narrar, discursar sobre tal objeto. Dessa forma somos desafiados, como educadores, a capturar as superfícies de contato que permitem abstrair conceitos que estão a operar na prática do escolar. Enfim, o que não podemos mais fazer é ignorar as diferentes estratégias que se dispõem em uma economia do discurso acerca da pobreza, fazendo proliferar, escassear e se legitimar uma verdade em detrimento de outra. Tomar a pobreza como objeto natural diante de nossos alunos e alunas poderá significar a neutralização do potencial transformador da realidade que a docência nos oferece.
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Encontro de Saberes: culturas tradicionais e populares no universo acadêmico – reflexões dessa experiência na UnB1 Maíra Gussi de Oliveira2 Wesley da Silva Oliveira3 RESUMO Esse artigo buscou resgatar a experiência da disciplina “Artes e Ofícios dos Saberes Tradicionais”, ofertada pelo Departamento de Antropologia, da Universidade de Brasília (DAN/UnB), no 2º/2010, refletindo sobre a relação dessa experiência com os processos sócio-históricos da população brasileira – processos de exclusão e desvalorização das culturas tradicionais e populares formadoras da identidade do nosso povo. Também buscou refletir sobre algumas possibilidades de mudanças paradigmáticas, em que a discussão sobre as propostas pedagógicas apontam para o reconhecimento desses saberes e para uma transformação dos convencionais papéis assumidos por professores e alunos e das formas de gestão da aprendizagem e produção do conhecimento. Palavras-chave: Encontro de saberes, Saberes tradicionais, Universidade, Educação problematizadora. Encounter of Knowledges: traditional and popular cultures in the academic universe – reflections about this experience at UnB ABSTRACT This article describes the experience carried out in the course “Arts and Works of Traditional Knowledges”, offered by Antropology Department at 1 Este artigo é baseado nas reflexões coletivas ocorridas na disciplina “Artes e Ofícios dos Saberes Tradicionais” e foi organizado pelos autores em questão. O mesmo foi apresentado à turma, que o reconheceu como posicionamento do grupo a respeito da experiência. 2 Graduanda em Serviço Social pela Universidade de Brasília e Pesquisadora do Grupo de Pesquisa sobre Tráfico de Pessoas, Violência e Exploração Sexual de Mulheres, Crianças e Adolescentes - Violes/SER/UnB e do Núcleo de Estudos da Infância e Juventude – NEIJ/CEAM/UnB. 3 Graduando em Pedagogia pela Universidade de Brasília e Bolsista do PET Conexões de Saberes: Música do Oprimido/CEAM/UnB.
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the University of Brasilia (DAN/UnB), in the second semester of 2010, reflecting about the relation between this experience and social-historical processes present in Brazilian society - exclusion processes and depreciation of traditional and popular cultures which form the identity of the Brazilian people. The authors also discuss some possibilities for paradigmatic changes in that considerations about pedagogic strategies point to the need of acknowledgment of these knowledges and the transformation of conventional roles assumed by teachers and students and of the ways of organizing the teaching learning process and the production of knowledge. Key-words: Encounter of knowledges, Traditional knowledges, University, Problematizing Education.
1 – INTRODUÇÃO
Esses desenvolvimentos, os quais foram codificados matematicamente numa visão do universo baseado na mecânica clássica, deram aos seres humanos um poder sobre a natureza que tem, até recentemente, produzido um sempre crescente e aparentemente sem limites, suprimento de bens materiais. Mergulhada na exploração desse poder, a humanidade tendeu a mudar seus valores para valores que promovem uma realização máxima das possibilidades materiais que esse poder possibilita. Foram assim suprimidos os valores associados com as dimensões do potencial humano que haviam constituído os fundamentos de culturas anteriores. O empobrecimento da própria concepção de ser humano causado por essa omissão das outras dimensões está absolutamente coerente com a concepção “científica” do universo como uma máquina, na qual o ser humano não é mais que uma pequena engrenagem. (D’Ambrósio, 1994)
A universidade, neste contexto, é o espaço destinado para a
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Pensar na proposta do Encontro de Saberes requer, antes de tudo, refletir sobre o nosso processo de construção do conhecimento, sua estruturação e suas implicações nos processos educativos e formadores de nossa sociedade. A sociedade brasileira, e consequentemente a universidade brasileira, porta-voz da cultura ocidental dominante, foi construída sobre os pilares do positivismo e do cientificismo, que pretendem se validar como única fonte de saber e dizem justificar “progressos” e desenvolvimentos “ilimitados”.
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formação de sujeitos (re)produtores de conhecimento. Conhecimento este que está a serviço de um modelo político econômico estruturado nas desigualdades e que necessita de estratégias para se manter. Uma dessas estratégias é a alienação, a não-consciência de si, do outro, do todo e de todas as relações que aí se encontram. A educação e os processos educativos, assim, reproduzem as relações sociais de poder, os mecanismos de exploração e de manutenção dessas opressões. A instituição universitária também pode se constituir como um espaço privilegiado de desconstrução desse paradigma, reintegrando ciência e cultura, superando a fragmentação da unidade corpo-menteespírito, de forma que o humano reconheça sua condição de integrante da natureza, possibilitando, então, novas visões ancoradas em uma variedade de culturas, no respeito à biodiversidade, em outros modelos de desenvolvimento e novos processos de aprendizagem. 2 – O PROJETO ENCONTRO DE SABERES4 O Projeto Encontro de Saberes é resultado da parceria estabelecida entre a UnB, por meio do Instituto Nacional de Ciência e Tecnologia de Inclusão no Ensino Superior e na Pesquisa, do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico, com o Ministério da Cultura, por meio da Secretaria da Identidade e da Diversidade Cultural. Este atende a meta proposta pela Câmara Interministerial de Educação e Cultura, criada em 2006 e regulamentada pela Portaria Normativa Interministerial Nº 1 de 04 de outubro de 2007, de incorporar os mestres de ofício e das artes tradicionais nos vários níveis de ensino. Tendo em vista essa diretriz interministerial, o Projeto desenvolvido na UnB teve como principais objetivos: - incluir no ensino superior como docentes os mestres e mestras representantes da rica diversidade de saberes e práticas tradicionais em todas as áreas do conhecimento (arte, tecnologia, saúde, psicologia, cuidado com o meio ambiente, cosmologia, espiritualidade); - reconhecer plenamente o valor desses saberes e o protagonismo de seus mestres como sujeitos da arte e do pensamento humanos. 4 A apresentação feita neste item é baseada no projeto escrito que orientou a construção da disciplina. Ele pode ser encontrado em: http://www.encontrodesaberes. com.br.
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Para alcançar os objetivos propostos, a disciplina foi guiada pela pedagogia do encontro, perspectiva pedagógica que integra o pensar, o sentir e o fazer, valorizando o “processo” e não simplesmente o “produto final” e dialogando modelos de aprendizagem tradicionais com o modelo convencional acadêmico. Essa pedagogia favoreceu trocas entre os professores da UnB, que têm “uma oportunidade rara de estabelecer um contato próximo e intenso com os mestres tradicionais. Eles poderão assim compreender como foram construídas trajetórias artísticas e saberes que prescindiram inteiramente da formação curricular letrada”, e os/as mestres/as dos saberes tradicionais, que “aprenderão com seus parceiros letrados outras dimensões de conhecimentos e saberes aos quais não tiveram acesso”. Atentando, entretanto, para a importância da presença dos estudantes, que participam diretamente, enriquecendo essas trocas, pois “não há docência sem discência” (FREIRE, 1996). Assim, esse espaço pretende ser epistêmico e experiencial, apresentando um conteúdo disciplinar específico e também uma prática permeada de sentidos e ensinamentos que valorizem os saberes tradicionais, possibilitando transformações a todos que participem desse processo. Como resultado objetivo, pretende-se alcançar a inserção de Cátedras Livres de Ofícios e Artes Tradicionais em universidades públicas e privadas brasileiras. Há muitas razões para defender esse projeto. Contudo, gostaríamos de salientar a importância do reconhecimento dessas tradições e saberes como constituintes da identidade do povo brasileiro, recontando a história desses “Brasis” e rompendo com a perspectiva eurocêntrica, de forma a viabilizar uma consciência nacional crítica, possibilitando ao povo brasileiro ser sujeito de sua própria história. Nessa perspectiva de mudanças e inovações, a UnB tem um compromisso histórico, do qual sua própria criação é marca, expresso por um de seus principais idealizadores, Darcy Ribeiro, quando nos fala da universidade necessária ao povo brasileiro, em que sua mais alta responsabilidade consiste “no exercício das funções de órgão de criatividade cultural e científica, e de conscientização e crítica da sociedade” (Ribeiro, 1975: 241) ou nas palavras do Presidente da República, João Goulart, ao sancionar a Lei nº 3.998, de 15/12/1961, que instituiu a Fundação Universidade de Brasília como “uma universidade modelada em bases novas que, para todas as demais, constituísse estímulo, para dar sentido espiritual e assegurar autonomia cultural” (Plano Orientador
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da Universidade de Brasília, 1962). É importante ressaltar que as mudanças de perspectivas vêm sendo discutidas há algum tempo, como é observado nas declarações dos Fóruns sobre Ciência e Cultura da UNESCO. A Declaração de Veneza (1986), por exemplo, aponta que “reconhecendo-se as diferenças fundamentais entre a ciência e a tradição, constatamos não a sua oposição, mas a sua complementariedade”, recusando todo sistema fechado de pensamento. As Declarações de Vancouver (1989) e de Belém (1992) aprofundam uma visão integral de ciência, cultura e natureza. A culminância desses fóruns resultou no I Congresso Mundial de Transdisciplinaridade (Portugal, 1994) com a Carta da Transdisciplinaridade. Esta última, mais uma vez chama atenção para a necessidade de: (...) rejeitar qualquer atitude recusando diálogo e discussão, descartando se a origem dessa atitude é ideológica, científica, religiosa, econômica, política ou filosófica. Conhecimento compartilhado deveria levar a uma compreensão compartilhada no respeito absoluto para com as diversidades individuais e coletivas unidas por nossa vida em comum na mesma Terra.
No Brasil, apesar de todas as relações sócio-históricas dificultadoras do reconhecimento dos diversos saberes, tradições e identidades, a Constituição Federal de 1988 não só preconiza a garantia dos direitos culturais, como delega ao Estado a função de proteger as “manifestações populares, indígenas e afro-brasileiras, e as de outros grupos participantes do processo civilizatório nacional”, em seu artigo 215 e no parágrafo 1º desse mesmo artigo. O Estado garantirá a todos o pleno exercício dos direitos culturais e acesso às fontes da cultura nacional, e apoiará e incentivará a valorização e a difusão das manifestações culturais (Art. 215, Constituição Federal de 1988).
Para efetivar essa garantia e reconhecimento, foram criadas leis como a Lei 10.639 (2003) e seu complemento, a Lei 11.645 (2008), que estabelecem as diretrizes e bases da educação nacional, para incluir no currículo oficial da rede de ensino a obrigatoriedade da temática “História e Cultura Afro-Brasileira e Indígena”. Contudo, essas leis precisam
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ser ampliadas, incluindo o ensino superior, para que os profissionais em formação efetivem essa mudança em suas práticas profissionais e pessoais. 3 – A EXPERIÊNCIA DA DISCIPLINA “ARTES E OFÍCIOS DOS SABERES TRADICIONAIS” E SUA CONTRIBUIÇÃO PARA A UNIVERSIDADE
Cássia Castro (IDA/UnB). O segundo módulo pelo Mestre Benki Ashaninka - Presidente do Centro Saberes da Floresta (Yorenka Ãtame), da Apiwtxa Associação do Povo Ashaninka do Rio Amônia (AC), que desenvolve um trabalho de conhecimento da floresta comprometido com a proteção ambiental e o reflorestamento - acompanhado da Professora Nina Laranjeira (FUP/UnB). O terceiro pela Mestra Lucely Pio - Mestra raizeira da Comunidade Quilombola do Cedro (GO), integrante da Articulação Pacari de Plantas Medicinais do Cerrado e autora da Farmacopéia do Cerrado - acompanhada da Professora Silvéria Santos (Enf/UnB). O quarto pelo Mestre Zé Jerome - Mestre de Congado e Folia de Reis do Vale do Paraíba, Marechal de Cunha (SP) - acompanhado pelo Professor Antenor Ferreira (Mus/UnB). E o último, pelo Mestre Maniwa Kamayurá – Arquiteto tradicional de casas xinguanas - acompanhado pelo Professor Jaime Almeida (FAU/UnB). As vivências dos módulos da disciplina fizeram com que a turma assumisse outras posturas, comportamentos e ritmos, que não os de
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3.1 – A Experiência A disciplina “Artes e Ofícios dos Saberes Tradicionais” foi anunciada no Seminário Internacional “Encontro de Saberes: a Inclusão dos Saberes Indígenas, Afro-americanos e Tradicionais na Universidade”, realizado na Universidade de Brasília, de 13 a 16 de julho de 2010, e rapidamente se disseminou pela universidade. A disciplina foi estruturada em cinco módulos, cada um com seis aulas. Os mestres foram acompanhados por professores parceiros das áreas afins. Os/as estudantes, dos diversos cursos da universidade, fizeram diários reflexivos, que puderam compartilhar entre si, fortalecendo trocas interdisciplinares. O primeiro módulo foi realizado pelo Mestre Biu Alexandre - Mestre do Cavalo Marinho Estrela de Ouro de Condado (PE) - acompanhado pelas professoras Luciana Hartman (IDA/UnB) e Rita de
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corpos sentados, enfileirados e silenciados. Com eles, nos deparamos com novas/outras possibilidades de aprender. Mas muitos se perguntarão: aprender o que? Seria Mestre alguém que talvez nem tenha passado pela escola? E sendo, seria mestre de quê? Essas questões, que podem facilmente surgir, inclusive carregadas de pré-conceitos, demonstram o quanto nos afastamos de nossas raízes brasileiras e o quanto pensamos a educação enquanto educação formal, instrumentalista e pragmática, que desconsidera a importância do saber popular ou mesmo sua existência. Por que não considerar Mestre aquele cuja existência expressa a integralidade do ser, o auto-conhecimento, a comunhão, a afetividade, a espiritualidade e a paixão por cada momento da vida? Estes não seriam, afinal, saberes e valores indispensáveis à educação e consequentemente ao processo formativo? Afinal qual o sentido da educação? Segundo Angelim e Rodrigues (2009): A sociedade humana em evolução gera conhecimento para sobreVIVER e TRANScender – sentido fundante da educação – expressandose e comunicando-se por sons/ silêncios do corpo/ voz/ língua falada/ canto/ de instrumentos de percussão (primeiro tambor)/ sopro/ corda/ teclado, por luzes/ sombras, por cores, por movimentos de gestos/ dança/ toques físicos sutis/ virtuais, por imagens fixas das pinturas rupestres, da grafia/ escrita pictórica/ ideográfica/ fonética/ alfabética/ códigos/ sinais/ símbolos/ desenhos/ fotos, por números, por imagens em movimento. (ANGELIM e RODRIGUES, 2010: 91). Foram estes os grandes ensinamentos que os mestres nos trouxeram durante os módulos. Ensinaram-nos suas formas de sobreVIVER e TRANScender, os seus labores corporais, manuais, artísticos, intelectuais, seus valores, suas formas de organização baseados na solidariedade e coletividade, suas riquezas de expressões que perpassavam caminhos da oralidade, do corpo, da mente e do espírito, caminhos pelos quais, talvez, nem o mais hábil literato ou acadêmico com linguagem extremamente elaborada e refinada, mesmo que poética, poderia alcançar pois:
As coisas estão longe de ser todas tão tangíveis quanto se nos pretendia fazer crer; a maior parte dos acontecimentos ocorre num espaço em que nenhuma palavra nunca pisou. (Rilke apud Lacerda, 2000:6).
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E, por isso, é difícil grafar as experiências vividas, pois há expressões que somente podem ser sentidas. Porém, deixem que aquilo que não se expressa tingindo com letras os papéis se manifeste na alegria de viver, nas sensações, na força, na energia e no impulso que nos faz alcançar lugares que jamais chegaríamos pela razão. Isso só foi possível porque o intelectual compartilhou espaço com o intuitivo, com o sentimento, com a emoção. Fomos tomando consciência à medida que nossa compreensão ultrapassava a lógica e a racionalidade do ser. Foi sentindo nossos corpos, o ar que respiramos, os sons que nos cercam, que passamos a perceber o significado de ser parte integrante do todo. Fomos entendendo aos poucos o que significa “Ser integral”. Todos esses processos, de aprendizagem, significação e ressignificação, de encontro do sentir com o emocionar, com o pensar e com o fazer, de se reconhecer enquanto parte integral do todo e no todo, ou seja, o processo de compreensão do que é vida, despertados pelos mestres, para além dos conteúdos curriculares, desencadearam uma série de mudanças e transformações.
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3.2 – Repercussões e análise pedagógica dessa experiência A experiência de um semestre de convivência com mestres e mestras de artes e ofícios dos saberes tradicionais, com professores e professoras das áreas afins, com toda a equipe e coordenação pedagógica do projeto e conosco (granduandos) desencadeou a tomada de consciência desse processo e uma análise crítica sobre a universidade, nos motivando a tomar posicionamentos políticos que reflitam sobre os processos educacionais que tangem essa disciplina e essa instituição. No sentido de concretizar essa nova proposta, as contradições da transitoriedade emergiram, carregadas das dificuldades de desconstrução de modelos historicamente instituídos e da possibilidade de ação-reflexãoação... que propicia mudanças. A empolgação de receber os mestres e as mestras na universidade como professores/as-educadores/as significa uma conquista sem precedentes, porém, ao mesmo tempo, todas as pessoas envolvidas devem ter clareza da concepção do encontro de saberes e de sua proposta, considerando: o conhecimento da história e acúmulo de discussão na área; os avanços, retrocessos e dificuldades; as legislações e conteúdos que reconhecem e congregam o popular, o tradicional e o acadêmico. Esse acesso à informação torna-se crucial para que as pessoas se envolvam com o projeto, o defendam e proponham caminhos para sua consolidação. Nesse aprender necessário à mudança de paradigma há que se ter clareza de qual mudança desejamos, ou seja, qual a proposta pedagógica, qual a orientação, qual concepção de educação, quem é esse aprendiz, qual o papel desses/as professores/as e mestres/as, como promover o
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verdadeiro encontro de saberes para: (...) chamar (o outro) para dialogar com o nosso, na perspectiva de que somos nós os anfitriões, e podemos convidar a se sentarem conosco à mesa, no banquete da reflexão acadêmica, outros pensadores, com certeza mais experientes e profundos (Rodrigues, 2003 apud Angelim e Rodrigues, 2010).
É nessa direção que as nossas reflexões e contribuições caminham, e de uma forma simples, como nos disse Mestre Biu Alexandre “Não adianta ‘aprender’ Cavalo Marinho, tem que entender o que é Cavalo Marinho”. Ou seja, não adianta simplesmente aprender a encontrar saberes, é necessário entendê-los. Entender o que realmente significa ter na universidade um mestre nordestino, analfabeto e de sotaque “arretado”; uma mestra raizeira quilombola; mestres indígenas, que, por vezes, pouco falam português; e tantos outros mestres e mestras de culturas tradicionais e populares que não têm seus saberes reconhecidos, significa reportar-se à história do Brasil e discutir o processo mais amplo de exclusão econômico, étnico-racial, cultural e regional, que ocorreu e ocorre neste país para manutenção de uma determinada “ordem”. Em outras palavras, o que define a identidade da comunidade quilombola do Cedro (Mineiros-GO), por exemplo, não é somente o conhecimento que têm das plantas do cerrado, é a própria razão de ser do quilombo, símbolo de resistência à opressão que os negros e negras sofreram e sofrem no Brasil; assim como a identidade indígena do povo Ashaninka (AC) é marcada pela resistência dos povos indígenas em defesa da floresta e de suas culturas, do qual o manejo agroflorestal é trabalho que simboliza essa luta. Caso contrário, correremos o risco de cometer superficialidades e não fazer o debate com a profundidade que ele exige, podendo levar a não superação de práticas discriminatórias, que subjulgam o povo brasileiro. Cabe à universidade, então, destinar espaços aos mestres e ampliar o acesso e permanência a parcelas de nosso povo historicamente excluídas deste espaço, para que contribuam em pé de igualdade, a partir da desconstrução das relações de poder instituídas, com a construção da história e identidade desse país. Outro aspecto fundamental para se alcançar essa desconstrução é realizar um profundo debate acerca dos processos educacionais e da Informe C3 - Edição Especial Articulçações Acadêmicas. Porto Alegre, v. 04, n. 14, abr, 2013. www.processoc3.com
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própria concepção de educação que deve estar ancorada no projeto de sociedade que vislumbramos. A superação dos processos de exclusão na sociedade brasileira passa necessariamente pelo debate da educação, uma vez que esta dialeticamente contribui para permanências de um modelo societário e/ou para construção de outros modelos. A construção de outros modelos exige reconhecer a possibilidade de mudança. Como nos diz Freire, “o mundo não é. O mundo está sendo”. Dessa forma, “nos tornamos capazes de intervir na realidade, tarefa incomparavelmente mais complexa e geradora de novos saberes do que simplesmente a de nos adaptar a ela” (FREIRE, 1996:77). Para tal, é necessária a formação de sujeitos críticos e autônomos, cuja educação ocidental capitalista não dá conta, exigindo “outra educação”. Podemos encontrar essa “outra educação” na concepção de educação problematizadora de Paulo Freire, em Pedagogia do Oprimido, em que esta nos apresenta como as contradições e opressões sociais se manifestam nas relações entre os indivíduos em seu processo de formação, de educação. Assim, as relações de poder que sustentam o atual sistema são baseadas em relações de opressão, que não são inerentes ao ser humano e que tentam ser naturalizadas por meio de mecanismos ideológicos de dominação. Mecanismos que são internalizados pelos oprimidos, que passam a adotar o discurso do opressor, levando a não superação dessa condição. A educação, neste contexto, apresenta-se como ferramenta ideológica que age na conformação dos indivíduos a essa situação, naturalizando relações hierárquicas de poder como parte do processo formativo das pessoas. Por isso, muitas vezes, nos perguntamos “Mas o professor não sabe mais? Não deveria ele gerir o processo de aprendizagem?”. E esquece-se que a aprendizagem é troca, não transferência; é diálogo; é reconhecer o outro e a outra, suas histórias, saberes e experiências. “Ei! Eu não sou anônima!”, como disse um estudante em um dos momentos de troca coletiva durante a disciplina. Freire reforça essa perspectiva: “Ninguém educa ninguém, ninguém se educa sozinho, os homens se educam entre si, mediatizados pelo mundo” (FREIRE, 1986). Então, vê-se a necessidade de superar a contradição educadoreducando, em que:
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O educador é o que educa; os educandos, os que são educados; o educador é o que sabe; os educandos, os que não sabem; o educador escolhe o conteúdo programático; os educandos, jamais ouvidos nesta escolha, se acomodam a ele; o educador, finalmente, é o sujeito do processo; os educandos, meros objetos. (FREIRE, 1986:67).
A educação problematizadora, na contramão desse pensamento, baseia-se no autêntico diálogo, em que o educador é educando e o educando é educador, mutuamente, uma vez que ao educarem, são educados e ao serem educados, educam. Nesse processo, a autonomia dos educandos deve ser respeitada e ao professor cabe desempenhar o papel de facilitador da organização grupal5, conduzindo à progressiva autonomia da aprendizagem grupal ao combinar papéis de animador, organizador e consultor (ANGELIM, 1988). A figura que segue abaixo representa possíveis etapas do processo de autonomia da aprendizagem grupal, ou seja, o momento em que os educandos passam coletivamente a serem sujeitos de sua formação.
5 O termo facilitador, neste contexto, não deve ser interpretado com o sentido atribuído pela tendência pedagógica liberal não-diretiva, em que o professor deve assumir o papel de facilitador do processo de ensino e aprendizagem. Queremos dizer que o professor deve facilitar a organização grupal com o intuito de que o grupo se auto organize, consolidando o processo de autonomia da aprendizagem. Para isto, o professor deve reconhecer a autonomia dos educandos de gerir seus processos de aprendizagem, não centralizando em sua figura, de forma que ele seja animador (compreendido como aquele que dá ânimo, vida, ação, movimento, entusiasmo), como nos aponta Freire: “o bom professor é o que consegue, enquanto fala, trazer o aluno até a intimidade do movimento de seu pensamento. Sua aula é assim um desafio e não uma ‘cantiga de ninar´” (FREIRE, 1996: 52). Posteriormente, passa a ser organizador, coordenador (ordenar com), e, por último, consultor.
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Esta figura expressa a tendência de evolução das interações no círculo de cultura, em que o grupo começa referenciando-se no facilitador da organização grupal, que assume o papel de animador e passa gradativamente a se posicionar como participante do grupo, assumindo o papel de organizador, até que os participantes assumam uma coesão grupal que consolide o processo de autonomia da aprendizagem grupal, cabendo ao coordenador agora o papel de consultor (ANGELIM, 1988). Esse processo pôde ser verificado na experiência da turma B dessa disciplina, ainda que as contradições da transitoriedade apresentadas anteriormente tenham evidenciado resistências às mudanças propostas e praticadas. Vale ressaltar que essas resistências são compreendidas como contradições inerentes a todos os processos de desconstrução
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e construção. Porém, a turma buscou superar essas contradições, constituindo sua identidade grupal e assumindo a gestão do seu processo educativo, sustentado na construção coletiva, entendida como:
(...) não necessariamente de todos que fazem tudo. Ao contrário, há distinto fazeres e habilidades. Daí a necessidade de criar espaços que estimulem e oportunizem diferentes fazeres, que se articulam em torno de objetivos comuns. A construção coletiva apresenta-se como idéia-força capaz de articular singularidades, num esforço propiciador da potencialização dos indivíduos, elevando-se ao autêntico processo de sua humanização e libertação criadoras (CONSULTA POPULAR, 1999).
4 – CONSIDERAÇÕES FINAIS Esse artigo buscou refletir sobre a importância de experiências como a relatada na formação de estudantes universitários, numa perspectiva de mudança de concepções epistemológicas, políticas e sociais para a construção de uma outra história brasileira, que respeite e dialogue com as artes, ofícios e saberes tradicionais e populares. Essa experiência possibilitou um clima na UnB propício ao fortalecimento da proposta, em que, mesmo com o encerramento da disciplina, por ter sido um projeto piloto, amparado por várias parcerias, e apresentar dificuldade de financiamento pela universidade para mantêlo, grupos de estudantes e professores estão se movimentando para dar continuidade às discussões suscitadas nesta experiência, de forma que o encontro de saberes não se restrinja a uma disciplina, que deve ser ofertada continuamente, mas também permeie o projeto políticopedagógico da instituição, tendo em vista que a UnB prepara-se para o Congresso Estatuinte Universitário, com previsão para 2011. Deseja-se, com isso, que as políticas públicas de Educação e de Cultura sejam compromissadas com a defesa de nossas raízes, abertas à diversidade, ofereçam igualdade de condições, e independam da boa vontade de governantes e de grupos organizados com essa pauta. Esse é o reconhecimento de uma dívida social e a construção de uma ordem societária calcada nas verdadeiras necessidades humanas e no protagonismo do povo brasileiro na construção de sua própria história.
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REFERÊNCIAS
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ANGELIM, M. L. P, RODRIGUES, M. A. M. Evoluindo e gerando conhecimento. In: Educação Superior a Distância – Comunidade de Trabalho e Aprendizagem em Rede (CTAR). Amaralina Miranda de Souza, Leda Maria Rangearo Fiorentini e Maria Alexandra Militão Rodrigues (org.). Brasília: Universidade de Brasília, Faculdade de Educação, 2009. ANGELIM, M. L. P. Educar é descobrir – um estudo observacional exploratório. Universidade de Brasília/Faculdade de Educação. Dissertação de Mestrado. v.1.1988.pág. 45-46. BRASIL, Lei 10.639. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Leis/2003/ L10.639.htm. Acesso em: 23/01/2001. __________, Lei 11645. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ ato2007-2010/2008/lei/l11645.htm. Acesso em: 23/01/2001. BRASIL, Ministério da Cultura. Portaria Normativa Interministerial Nº 1, de 04 de outubro de 2007. CONSULTA POPULAR. Brasil: alternativas e protagonistas. 1999. D´AMBROSIO, Ubiratan (org.). Declaração dos Fóruns de Ciência e Cultura da UNESCO: Veneza, Vancouver, Belém: Carta da Transdisciplinaridade. Brasília: Ed. Universidade de Brasília, 1994. (Coleção textos universitários) FREIRE, Paulo. Pedagogia do Oprimido, 13ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1983. __________, Paulo. Pedagogia da Autonomia: saberes necessários à prática educativa. São Paulo: Paz e Terra, 1996. LACERDA, Nilma Gonçalves. Cartas do São Francisco. Conversas com Rilke á beira do Rio. Projeto Caminho das Águas. Brasília, 2000. Projeto Encontro de Saberes: a integração dos ofícios e das artes tradicionais no universo acadêmico. Disponível em: http://www.encontrodesaberes.com.br/index. php?option=com_content&view=article&id=51&Itemid=66 . Acesso em: 22/01/2011. RIBEIRO, D. A universidade necessária. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1975. UNB. Plano Orientador da Universidade de Brasília – Editora Universidade de Brasília, 1962.
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As Pessoas com Deficiência não são nem anjos, nem demônios Miriam Piber Campos1
RESUMO As análises que compõe esse artigo se constituíram de um recorte que fiz a partir de algumas problematizações que surgiram durante o processo de construção de minha Dissertação de Mestrado em Educação2. Na qual, procurei tensionar os recorrentes discursos que são criados com relação aos corpos das pessoas consideradas “diferentes”, como sendo muitas vezes corpos sem beleza e sem atrativos. Palavras-chave: Deficiência, corpo, anjos, demômios, pessoas com deficiência Meus/minhas leitores/as devem estar se perguntando qual foi o motivo que me levou a dizer que as pessoas com deficiência não são nem anjos, nem demônios3. Para que vocês possam entender um pouco melhor, é necessário, primeiro, que eu teça alguns breves comentários com relação ao que se entenderia por anjo e por demônio, ou melhor, como seriam representados os anjos e os demônios historicamente4. 1 Mestre em Educação, Psicopedagoga Institucional e Pedagoga com Habilitação em Orientação Educacional pela Universidade Luterana do Brasil – Canoas/RS. Atualmente é Diretora Pedagógica do INDEPIn. 2 Que possui como título: “Nem anjos, nem demônios: Discursos e representações de corpo e de sexualidade de pessoas com deficiência na Internet”. 3 Utilizo-me da metáfora do anjo e do demônio para sinalizar que, ao serem representadas dessa maneira (por algumas instâncias como a família, a escola, entre outras), as pessoas com deficiência estariam no primeiro caso desprovidas das representações “pecaminosas” e “impuras” atribuídas à sexualidade, diametralmente oposto ao segundo caso, em que seria exatamente o exercício dessas representações que as distanciariam da “pureza angelical e pueril” atribuídas aos anjos. 4 Faço tais considerações não a partir de uma religião especifica, tampouco busquei textos de estudiosos acerca desse assunto, fossem eles do campo da mitologia, demonologia, angeologia, esoterismo etc., embora muitos dos textos que consultei se circunscreveram a uma ou outra dessas perspectivas. As considerações que faço, a seguir, foram construídas a partir da leitura desses diferentes textos, os quais não me preocupei em aferir com a apresentação de referenciais bibliográficos, uma vez que a ideia foi a de fazer um texto, portanto, de certo modo, das representações correntes que circulam acerca dos anjos e dos demônios.
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A palavra anjo tem origem grega — angelo derivado de angellos — e significa mensageiro ou emissário, o que nos levaria a dizer que os anjos são os mensageiros de Deus. Mas existem duas categorias de anjos: os anjos considerados maus, ou seja, os demônios, e os anjos bons ou simplesmente classificados como anjos de guarda. Isso nos leva, muitas vezes, a termos a sensação de que a palavra anjo está impregnada de uma representação de retidão moral, motivo esse que justificaria a sua frequente utilização para referendar todos esses seres, tanto bons quanto maus, que não pertenceriam à humanidade. Os anjos bons seriam considerados seres puros e dotados da mais alta perfeição. Sendo assim não têm idade, nem possuem um corpo físico. Como detêm todo o saber, não precisam aprender nada neste mundo e não possuem nenhum tipo de desvio moral. Também é atribuído a eles a condição de não terem um sexo definido, ou seja, eles não são nem do sexo feminino, nem do masculino. Isso deve-se a condição de serem considerados criaturas superiores ao homem, ou seja, estão acima desse tipo de classificação. Isso nos levaria a representá-los como sendo seres assexuados.
Os anjos bons passariam, então, a representar a energia e a pureza do conhecimento de Deus. Isso porque, geralmente, quando falamos em anjos, os associamos às visões religiosas ou bíblicas, ou até mesmo às artes, nas quais passamos a conviver com representações de jovens de cabelos compridos de cor loura, avermelhada ou castanho-clara, de olhos geralmente azuis e com traços andróginos, providos de asas erguidas ou em repouso, algo que predomina até os dias atuais. Ou, ao contrário, como um ser com guampas, tridente, com uma fisionomia assustadora e, geralmente, com uma cor avermelhada, que vive em um lugar feio e sombrio. Muitas dessas telas de arte têm como representação seres que habitavam o mundo divino, o inferno e o terreno. As representações dos anjos maus (ou gênios do mal: anjos caídos, belzebu, diabo, espírito maligno, satanás, demônio etc.), em sua grande maioria, estão atribuídas às pessoas feias, malvadas, ruins, mesquinhas e, outras vezes, até mesmo às crianças travessas, sapecas, birrentas etc. (quando são utilizadas as expressões: essa criança parece que está com o diabo no couro, essa criança tem parte com o capeta etc.). Informe C3 - Edição Especial Articulçações Acadêmicas. Porto Alegre, v. 04, n. 14, abr, 2013. www.processoc3.com
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Os anjos bons possuiriam as próprias virtudes e direitos, o que lhes conferiria o direito de agir em nome de Deus. Sendo assim, os anjos poderiam manifestar-se nos homens por meio de nossos pensamentos e ideias, isso por eles terem uma inteligência muito superior à atribuída aos homens. Esse Motivo os levaria a nos auxiliar por intermédio dessa inteligência, induzindo-nos a fazermos boas escolhas na hora de termos que praticar alguma coisa (podemos pensar, por exemplo, nas cenas de desenho animado, em que um anjo e um demônio ficam tentando induzir os personagens a realizarem o que eles querem), ou seja, nos auxiliam a termos boas ações (ou não, caso dos anjos maus), a sermos corretos, virtuosos, a praticar o bem a nós e ao próximo, entre outros.
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Os anjos maus ou demônios, nas crenças da Antiguidade e no politeísmo, poderiam ser configurados como anjos que representam a ilusão, a cobiça, a avareza, o sexo exacerbado, o egoísmo, entre outros, podendo ser definido como uma junção de forças que vibram de forma inferior ou negativa. Eles não gostam de ambientes perfumados, limpos, agradáveis, bem como de lugares onde haja bebês, por acreditarem que, com essas presenças, podem perder suas forças. Nas religiões judaicas e cristãs, anjos maus ou demônios podem se configurar como sendo aqueles anjos que, tendo se rebelado contra uma vida de submissão a Deus, foram expulsos do céu e enviados ao inferno. Isso fez com que o universo passasse a ser dividido em dois reinos, o de Deus e o do Diabo. Dessa divisão resulta que tudo aquilo que se afastar de Deus (ainda que aparentemente) representará o mal. Os demônios passariam a representar essa “realidade”, a corporificação do mau que teria sua origem no comportamento perverso, dirigido para a satisfação do vício, dos atos brutais, das más ações, dos desejos carnais etc. É possível dizer que, para algumas crenças religiosas, essas representações de anjos bons e maus constituem modos de governamento através da religião. Em muitas dessas religiões, descobriremos que eles (os anjos bons e maus) também estão registrando todas as nossas ações, boas ou más, mesmo as que são praticadas sem ter ninguém por perto. Constituindo assim, modos de nos auto-governarmos. Entretanto, não são somente as religiões que proclamam a crença ou não nos anjos. Hoje existe uma quantidade imensa de produtos, livros e lojas associadas aos anjos bons ou maus. Tais produtos procuram fazer com que “guiemos” as nossas condutas por intermédio do que os anjos nos dizem/representam. Um exemplo dessa variedade de produtos existentes sobre anjos pode ser encontrada na própria capa que utilizei para a dissertação. (retirada de http://photos1.blogger.com/img/12/1814/640/ anjos.jpg).
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Confesso que essa capa foi encontrada por acaso em uma de minhas incursões pela Internet (mesmo tendo encontrado uma variedade de sites, que apresentam imagens ou textos referentes aos anjos bons ou maus). Ela foi muito significativa para mim por se “encaixar”, muito bem, tanto com o título de minha dissertação quanto com a analogia que criei em relação à sexualidade das pessoas com deficiência. Ao olharmos mais detidamente para essa imagem, veremos dois anjos, ou seja, um “anjo bom” que é representado por uma mulher e um “anjo mau ou demônio” que é representado por um homem. O anjo que é representado pela mulher possui um corpo bem delineado e asas mais arredondadas e delicadas, enquanto o anjo representado pelo homem possui um corpo atlético, forte e imponente, asas mais bicudas e com pouca delicadeza (algo como asas de morcegos). O anjo homem encontra-se nu, enquanto o anjo mulher está coberto até os pés por seus longos cabelos, ficando apenas com uma parte de seu braço e de sua perna à mostra. Também é possível observar que o anjo homem é mais alto que o anjo mulher e que ele segura o rosto do anjo mulher enquanto ela coloca suas mãos sobre os seus ombros, como se eles estivessem se preparando para se beijarem. Os dois são apresentados de perfil, basicamente com duas cores (o branco e o azul) e, ao olharmos toda a imagem, conseguiremos enxergar, ao fundo, na parte de cima, uma cor preta; e, na parte de baixo, aparece algo como um esfumaçado meio azulado, que se mistura com os longos cabelos do anjo mulher.
A imagem pode ainda nos dizer muitas outras coisas, dependendo do olhar que lançarmos sobre ela. Um outro modo de olhá-la poderia ser no sentido de tentar romper com as representações de que o anjo mau ou demônio não poderia se aproximar ou desejar o anjo bom ou, o contrário, que o anjo bom não poderia ceder aos apelos corporais e sexuais do anjo mau ou demônio. Sob essa perspectiva, podemos dizer que as cores azul e branco (essa com uma maior predominância, possivelmente indicando que ambos são anjos) que adornam tanto o anjo bom, quanto o anjo mau e o fundo da imagem geral, que é composto pela cor preta, que poderia ser atribuída às trevas e a cor azulada, como representando o céu; ao se mesclarem, essas cores representariam, provavelmente, os rompimentos
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É possível ler a imagem representada pelo anjo mau ou demônio como permeada por uma sexualidade cheia de virilidade e energia, algo que geralmente seria atribuído ao homem. Talvez por isso o fato dele encontrar-se nu, como que exibindo o seu corpo, como sendo um conjunto composto única e exclusivamente por uma sexualidade inabalável. O mesmo não acontece com o anjo bom, representado pela mulher, já que ela carrega consigo uma representação que até bem pouco tempo atrás acompanhava as mulheres (ainda hoje, em certas culturas): não poderem expressar mais abertamente sua sexualidade. Isso poderia explicar o fato de o anjo mulher ter o seu corpo coberto com os seus longos cabelos, como uma maneira de encobrir a sua sensualidade e beleza, para, assim, não ser desejada ou cobiçada — ou, pelo contrário, para ativá-la mais.
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que começam a ser apresentados na sociedade contemporânea (mesmo que vagarosamente) referentes às relações de/entre gêneros e, principalmente, sexuais. Se os anjos bons e maus, o céu e o inferno — da imagem/capa, começam a se amalgamarem como que apresentando outras maneiras para se olhar e falar de/sobre o homem e a mulher, sobre seus corpos e suas sexualidades nos dias atuais, isso poderia se constituir em um ponto muito interessante também, para se pensar esse mesmo assunto em relação às pessoas com deficiência. Vocês devem ainda estar se perguntando: Mas e daí Miriam? O que isso tudo tem a ver com o corpo e a sexualidade das pessoas com deficiência? É exatamente isso que procurarei mostrar a partir de agora. Isto é, busco apresentar como as pessoas com deficiência vêm sendo inventadas na contemporaneidade, através de uma multiplicidade de identidades, discursos e representações que são construídas a partir dos padrões de normalidade vigentes. Discursos e representações que os inventam, disciplinam, normalizam, passando a construí-los como sujeitos, que parecem ser, algumas vezes “(in)visíveis” e, em outras vezes, sujeitos assexuados ou hipersexualizados e, como tais, assujeitados a esses padrões. Isso pode ser exemplificado pelo relato de Fabiano Puhlmann5 que, ao falar sobre sua sexualidade, diz: “sou transparente dentro do possível, não tenho nenhuma vergonha de dizer que senti em minha pele o que é ser visto como um ser assexuado, mas não me deixei abater pelas aparências”. Partindo desse excerto, reporto-me neste momento, à analogia que criei com relação às pessoas com deficiência. Disse que elas não eram anjos, pensando no fato de serem representadas como pessoas que não possuem sexualidade (por exemplo, o caso de Fabiano), assim como os anjos bons a que me referi no início deste capítulo, por serem seres que só representariam a bondade, a qual não estaria ligada a uma opção sexual (seriam seres andrógenos), nem a uma relação sexual ou carnal. Ao contrário, os demônios, por serem possuidores de maus pensamentos, poderiam representar uma grande parcela das pessoas com deficiência, vista como possuidora de uma sexualidade exacerbada e fora do controle, pela ideia de que elas também incitariam as outras pessoas a terem maus pensamentos, afastando-as do caminho do bem. É possível dizer que, apesar dos avanços nas sociedades — e falo, em particular, da ocidental — ainda existem assuntos que continuam sendo considerados tabus, como é o caso da sexualidade e da deficiência. Isso é ainda mais grave quando tais temas estão articulados, tal como faço aqui, falando de corpos e de sexualidades das pessoas com deficiência. O simples fato de pensarmos que uma pessoa com deficiência pode manter relações sexuais ou mesmo pensar que ela tenha um corpo bonito e desejável costuma ser algo incômodo, ou até mesmo abominável 5 Disponível em: <http://www.sentidos.com.br/canais/materia.asp?codpag=1057& codtipo=2&subcat=54& canal=talento>: Acesso em: 2 dez. 2004.
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para uma grande parcela da sociedade. Isso é enfatizado por Fabiano Puhlmann6 quando ele diz que as “questões como a sexualidade, ainda é [sic] consideradas um verdadeiro tabu entre a maioria das pessoas e, em especial, e com maior intensidade, entre os portadores de deficiências física, visual, auditiva, mental e múltipla”. Tal posicionamento pode ser atribuído às representações criadas e postas em circulação com relação às pessoas com deficiência, as quais insistem em demarcar a deficiência (a doença, a síndrome, a deformidade, a falta) e não a pessoa em si. Em razão disso, atribuímos a elas representações que passam a posicioná-las como pessoas assexuadas7 (i.e., vistas como despossuídas de sexualidade, como vimos anteriormente) ou mesmo como hipersexualizadas (portanto, perigosas para o convívio em sociedade). Podemos dizer que, em tais representações, aparecem o medo e a desinformação da sociedade ao falar sobre tal assunto.
Vemos, com esses relatos, que a sexualidade não é, como muitos podem pensar, uma justaposição de desejos provenientes de impulsos naturais. Ela tampouco é o conjunto de preceitos permitidos e proibidos que determinam o que se pode e o que não se pode fazer. Antes, ela é, aqui, entendida como uma ação discursiva que tem um efeito produtivo, não apenas no sentido de influenciar ou contribuir na construção de determinado significado (como no caso dos ditames de como deve ser nossa sexualidade ou das pessoas com deficiência), mas no sentido mesmo de instituir essa sexualidade. Para Pinel (1993), por exemplo,
6 Disponível em: <http://www.sentidos.com.br/canais/materia.asp?codpag=1057& codtipo=2&subcat=54& canal=talento>: Acesso em: 2 dez. 2004. . 7 Embora a própria noção de assexualidade se constitua em um tipo de sexualidade, em muitos casos, com relação às pessoas com deficiência, não seria uma opção ser assexuado, mas sim, uma imposição. 8 Disponível em: <http://www.sentidos.com.br/canais/materia.asp?codpag=1057& codtipo=2&subcat=54& canal=talento>: Acesso em: 2 dez. 2004. Informe C3 - Edição Especial Articulçações Acadêmicas. Porto Alegre, v. 04, n. 14, abr, 2013. www.processoc3.com
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No relato de Fabiano Puhlmann8, por exemplo, é possível ver o quanto o corpo e a sexualidade da pessoa com deficiência tornam-se algo “proibido” — é como se a sexualidade não tivesse uma visibilidade, mesmo para alguém que antes era tido como “normal”. Ele mesmo foi um adolescente “normal” (tornou-se deficiente aos 18 anos de idade), “descobrindo”, como qualquer adolescente de sua idade, seu corpo e sua sexualidade. Ao tornar-se deficiente, no entanto, ele teve que (re) aprender/(re)aceitar as mudanças que ocorriam com o seu corpo. Tudo isso, destaca ele, foi agravado pela negação, rejeição e representação presentes na sociedade – como ele mesmo diz, a pessoa com deficiência passa a ser vista como “[...] uma espécie de dragão sem fogo”, ou seja, como alguém que pode assustar, mas que não representa perigo algum – já que ela passa a ver as pessoas com deficiência como assexuadas ou ingênuas.
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um dos mitos mais comuns é pensar que as pessoas deficientes são assexuadas. Esta idéia geralmente surge a partir de uma combinação entre a limitada definição de sexualidade e a noção de que o deficiente é neutro, não tem as mesmas necessidades, desejos e capacidades do não-deficiente. [...] O mito oposto, o do deficiente como alguém perigosamente hipersexuado, costuma a aparecer explicitamente quando se trata dos deficientes mentais. O medo de que a informação provoque uma conduta promíscua por parte do deficiente não permite que as pessoas percebam que a maioria das condutas inadequadas é, na verdade, produto do isolamento, da segregação dos sexos e da ignorância sobre a sexualidade (p. 310).
Como é possível perceber nesse excerto, as pessoas com deficiência não são “nem anjos, nem demônios”. Essas representações, construídas ao longo dos tempos em relação a elas, estão muito mais ligadas à falta de entendimento que temos sobre o corpo e a sexualidade propriamente dita do que com as pessoas com deficiência. Como salienta Weeks (1999), “embora se possa argumentar que as questões relativas aos corpos e ao comportamento sexual têm estado, por muito tempo, no centro das preocupações ocidentais, elas eram em geral, até o século XIX, preocupações da religião e da filosofia moral” (p. 39). Isso poderia justificar o fato de a sexualidade ser negada às pessoas com deficiência, não pelo fato dela não existir, mas pelo fato de ser “ocultada”, escondida, já que, como salientou Weeks (1999), elas eram questões da religião e da filosofia moral. Tal ocultamento/negação fez com que as pessoas com deficiência fossem consideradas, muitas vezes, como pessoas “possuídas pelo demônio”, sendo, em razão disso, condenadas à morte ou enclausuradas. Tais práticas, bem como as representações a elas associadas, inviabilizaram o exercício da sexualidade das pessoas com deficiência por representarem um perigo às sociedades até o século XIX. Mesmo que hoje os tempos sejam outros, é possível destacar o quanto a sociedade contemporânea gerencia os comportamentos tanto das pessoas ditas normais quanto das pessoas com deficiência, mesmo que elas não se dêem conta disso. Para as pessoas com deficiência, esse processo já se inicia no momento em que elas são rotuladas como sendo deficientes (às vezes, desde o momento do nascimento, ou após algum tipo de acidente); processo esse que se opera na direção de levar os sujeitos a assumirem diferentes lugares9. É isso que também acontece na seção Talento, em que cada entrevista está dividida por área de deficiência, apresentando representações que criam para elas uma “identidade deficiente”. Uma vez que as identidades são sempre produzidas, elas marcam e interpelam os sujeitos que se assumem ou 9 Cada um na sua área de deficiência, seja ela física, mental, visual, auditiva ou múltipla.
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não como sendo deficientes. Essa necessidade de classificação parece feita com “o propósito” de manter uma “almejada” ordem social. Uma ordem que, nas palavras de Bauman (1998), “significa um meio regular e estável para os nossos atos; um mundo em que as probabilidades dos acontecimentos não estejam distribuídas ao acaso, mas arrumadas numa hierarquia estrita” (p. 15). Esta busca por uma estabilidade, conforme o autor, também faz com que exista aquilo que Pinto (1989) denomina de uma “pluridiscursividade do social” e pressupõe “a existência de uma constante luta entre discursos na busca de interpelarem novos sujeitos” (Id., 1989, p. 37), marcando e reafirmando suas diferentes identidades, as quais só passam a ser determinadas depois de um processo de produção das diferenças, que é sempre social e cultural. “A diferença, e, portanto, a identidade, não é um produto da natureza: ela é produzida no interior de práticas de significação, em que os significados são contestados, negociados, transformados” (SILVA, 2001, p. 25).
Dessa maneira, essas diferenças são nomeadas/classificadas, passando a circular através de determinadas representações que demarcam e instituem dadas identidades. “Determinar e excluir o outro é fundamental para que se possa delimitar o que é idêntico no sujeito em questão: o processo que estabelece identidade e o que demarca uma fronteira entre o que é idêntico (mesmo) e o que é diferente (outro)” (TUCHERMANN, 1999, p. 106). Essa diferença reafirmaria a não-similitude existente entre as pessoas com deficiência e as pessoas não-deficientes. A pessoa não-deficiente exerceria uma determinada superioridade em relação às pessoas com deficiência, fazendo com que essas passassem a assumir uma posição de estranho, do outro. Tal operação exige, “portanto, a construção de um jogo de posições relativas. Para estabelecer a identidade, é necessário tomar-se um parâmetro que permita caracterizar a identidade e diferença” (Id., ibidem.). Assim, se ela é uma pessoa com deficiência, ela, inevitavelmente, não poderia assumir a identidade da pessoa não-deficiente, sendo que o contrário também é verdadeiro. Entretanto, se todos são iguais perante as leis de nosso país, parece contraditório dividir a sociedade em pessoas com deficiência de um lado e pessoas não-deficiente de outro. Essa separação causa, muitas vezes, “confusão” para ambos os lados. Nas palavras de Woodward Informe C3 - Edição Especial Articulçações Acadêmicas. Porto Alegre, v. 04, n. 14, abr, 2013. www.processoc3.com
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Como em todo o processo de produção da identidade, a identidade da pessoa com deficiência passa a existir quando há, “fora dela”, outra identidade, a da pessoa não-deficiente. Esta é a identidade que a pessoa com deficiência não têm/não é e isso lhe dá condições de existência e a distingue por aquilo que ela passa a não ser. Assim, assumir ser uma pessoa com deficiência é também assumir não possuir a identidade da pessoa não-deficiente, ou seja, não ter sua estética, seu corpo, sua sexualidade. Nas palavras de Tuchermann (1999), “o corpo é também o limite que separa o sujeito ou o indivíduo do mundo e do outro, lugar de onde se pode determinar a alteridade” (p.106).
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(2000), “a emergência dessas diferentes identidades é histórica; ela está localizada em um ponto específico no tempo” (p. 11). Essas diferentes identidades, sejam elas de gênero, raça, etnia, etc., não podem ser concebidas como algo pronto/definitivo, pelo contrário, elas fazem parte, como afirma Woodward (2000), de um processo que passa por constantes transformações, subjetivando os sujeitos em determinados momentos históricos. Em outras palavras, assim como em todo o processo de produção de identidade, passa a existir uma identidade relacional entre as pessoas com deficiência e as pessoas não-deficientes, de modo que a deficiência (caso dos que não nasceram deficientes, mas que se tornaram ao longo da vida) seja exatamente essa busca pelo restabelecimento de “uma identidade perdida” em algum lugar do passado. Ao fazerem isso, elas também passam a se constituir com novas identidades. Podemos pensar que, mesmo para os que “nasceram” deficientes, a norma10 é buscar aproximá-las o máximo possível dos parâmetros definidos para a normalidade, na medida em que eles se constituíram como deficientes de um determinado tipo no domínio da linguagem.
REFERÊNCIAS BAUMAN, Zygmunt. O mal estar da Pós-modernidade. Trad. de Mauro Gama e Cláudia Martinelli Gama. Rio de Janeiro: Ed. Jorge Zahar, 1998. PINEL, Arletty Cecília. A restauração da Vênus de Milo: dos mitos à realidade sexual da pessoa deficiente. In:. RIBEIRO, Marcos (Org.). Educação sexual: novas idéias, novas conquistas. Rio de Janeiro: Rosa dos Tempos, 1993. p. 307-325. PINTO, Céli Regina Jardim. Com a palavra o Senhor Presidente José Sarney: o discurso do plano cruzado. São Paulo: Editora Hucitec, 1989. SEÇÃO TALENTO. Disponível em: <http://www.sentidos.com.br/canais/ mais materias.asp? subcat=54&canal=talento> Acesso em: 2 dez 2004. SENTIDOS. Disponível em: <http://www.sentidos.com.br/canais/> Acesso em: 2 dez. 2004. SILVA, Tomaz Tadeu da. O Currículo como fetiche: a poética e a política do texto curricular. Belo Horizonte: Autêntica, 2001. TUCHERMANN, Ieda. Breve história do corpo e de monstros. Lisboa:
10 Nas palavras de Ewald (2000), a norma pode ser entendida como “um princípio de comparação, de comparabilidade, uma medida comum, que se institui na pura referência de um grupo a si próprio, a partir do momento em que só se relaciona consigo mesmo, sem exterioridade sem verticalidade” (p. 86). 86
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Vega, 1999. WEEKS, Jeffrey. O corpo e a sexualidade. In. LOURO, Guacira Lopes (Org.); Tradução dos artigos: Tomaz Tadeu da Silva. O corpo educado: Pedagogias da sexualidade. Belo Horizonte: Autêntica, 1999. p.35-82. WOODWARD, Jeffrey. Identidade e diferença: uma introdução teórica e conceitual. In: SILVA, Tomaz Tadeu da. (Org.). Identidade e diferença: a perspectiva dos Estudos Culturais. Petrópolis. RJ: Vozes, 2000. p. 07-72.
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