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Apresentação da edição espanhola

O paradigma do cuidado como desafio educativo

É o nosso momento. O paradigma do cuidado como desafio educativo é fruto de um processo e é o início de uma nova etapa para a Fundação SM. Em 2018, a Fundação SM e o seu Conselho de Curadores adotaram uma linha estratégica de trabalho para o futuro, que dizia: “Consideramos que o desenvolvimento do mundo e da humanidade exige um novo paradigma de civilização que inspire um novo paradigma educativo baseado na ética do cuidado. Este paradigma contribuirá para gerar iniciativas como base na inclusão, equidade e qualidade, que fomentem o diálogo entre diferentes pessoas, que criem condições para o encontro entre os atores educativos e promovam modelos de ação comuns, redes de aprendizagem para o bem de todos os povos e regiões, respeitando as culturas próprias de cada lugar”.

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Partilhei o processo que levou à elaboração deste livro muito de perto com Luis Aranguren, a quem conheci há mais de uma década. Aprendi muito com ele, ouvi-o como professor, conversei e partilhei uma visão do mundo, a sua, que tem as suas raízes no evangelho de Jesus de Nazaré. A nova etapa que se inaugura para a Fundação SM está relacionada com a publicação deste livro, que permitirá, no futuro, formular e articular as iniciativas acima mencionadas.

O título do livro “É o nosso momento”, que já era originalmente muito apropriado, torna-se muito pertinente ao acabar de ser escrito durante os meses de confinamento, devido à pandemia com a qual vivemos desde a primavera de 2020. No momento em que escrevo estas linhas, em apenas cinco meses, os números da pandemia são assustadores: 16,2 milhões de casos verificados, 649.000 mortes em todo o mundo. Os especialistas garantem que vão continuar a aumentar... Os dados objetivos desta grande crise planetária revelaram que um dos graves problemas da humanidade é a relação desajustada das pessoas com o meio ambiente, com a natureza, mas também com os seus semelhantes.

É impressionante como uma parte da população mundial, possivelmente representada pelos grupos mais favorecidos, anseia por uma vacina todo-poderosa para nos libertar desse mal. O desejo de voltar à normalidade é constantemente ouvido. Para que “normalidade”? Porém, a comunidade científica de diferentes áreas (epidemiologistas, biólogos, etc.) considera que esse desejo não é uma garantia total para a resolução do problema. Só a consciência coletiva de que faze-

mos parte de um todo e de que, juntamente com os demais seres vivos, fazemos parte de um sistema que tende ao equilíbrio, nos pode salvar. Por outras palavras: ou nos salvamos todos ou ninguém se salva.

Como nos diz o professor Bernardo Toro no prólogo, “temos a dotação genética para sobreviver à pandemia, mas se não mudarmos o nosso comportamento face ao planeta e entre nós, será muito difícil sobreviver”. Temos muitos indícios e dados credíveis do que está a acontecer no planeta. Esse alerta é possivelmente o motivo mais importante, senão o último, de que esta geração dispõe para produzir mudanças reais e efetivas.

Embora alguns pensem que esta crise é o fim do mundo, é preferível pensar que é o fim de um mundo que deve acabar, para que a humanidade possa seguir o seu caminho. Pode ser o fim do mundo das certezas, da arrogância que nos faz sentir invulneráveis, da autossuficiência do poder do dinheiro e da política. Cada vez mais, temos dados que confirmam o facto de vivermos num mundo em que nem tudo é calculável, previsível e em que nem tudo está sujeito às nossas ordens. A nossa ignorância está relacionada com a nossa incapacidade de compreender um mundo de interdependências, com um excesso de informação e ruído tecnológico que foge ao nosso controle e cresce sem um desenvolvimento ético em paralelo.

A compreensão da dinâmica local-global em termos de vulnerabilidade comum ultrapassou-nos de igual modo. A globalização é um processo que não foi acompanhado de instrumentos de proteção social suficientes e que tem vindo a ultrapassar os Estados, como ficou demonstrado nesta pandemia. Precisamos de desenvolver o pensamento e as possíveis articulações para a governação global se quisermos alcançar os objetivos de equidade, educação, democracia, prosperidade e transição ecológica, que foram formulados, no âmbito das Nações Unidas, através dos Objetivos de Desenvolvimento Sustentável para 2030.

Podemos afirmar que o que também está, hoje, está em crise é o envelhecido modelo de progresso - a civilização humana mediu os seus avanços a partir de uma suposta luta imaginária contra a natureza durante séculos. São muitas e muito evidentes as realidades que questionam o conceito otimista de progresso de épocas passadas: uma crise climática com o crescente colapso ecológico, crises migratórias em crescimento descontrolado, aumento das desigualdades so-

O paradigma do cuidado como desafio educativo

ciais, discurso de ódio e as falsas dicotomias que hoje inundam os nossos meios de comunicação de massa e as redes sociais, para citar algumas que me parecem chave.

Ao mesmo tempo, estamos a testemunhar a forma como o legado recebido pelos da nossa geração (eu pertenço à geração baby boom), de que uma boa educação académica era garantia de uma carreira profissional de sucesso, se está a desfazer. Estamos a ver jovens superqualificados em mestrados e doutoramentos que parecem ter de mendigar empregos precários, sem garantias de desenvolvimento profissional, social ou económico. Vemos, também, milhões de jovens na América Latina que não encontram outro meio de subsistência vital que não seja o narcotráfico, o crime organizado, o tráfico de pessoas, o tráfico de armas... Todas estas são ocupações que os levam a uma esperança de vida inferior a trinta anos. Este não é um futuro desejável para ninguém.

Perante este panorama, a Educação em maiúsculas torna-se a peça-chave e estratégica para enfrentar uma transformação do sistema de “humanidade planetária” de que fazemos parte. Por isso, este livro é direcionado à escola ou sistemas educativos de quase todo o mundo. Ou melhor, aos atores-chave da educação em cada lugar e em cada cultura.

José Laguna afirma no seu último livro, Escuelas que “futurean” (PPC, 2020), que “a escola se encontra no epicentro de uma crise sistémica que deve enfrentar como tal. A instituição escolar que só lida com a atualização tecnológica das suas salas de aula estará prestando um péssimo serviço aos seus alunos e ao planeta. Não só deve a escola incluir novas disciplinas (Robótica, Programação, línguas estrangeiras...) que contribuam para a formação instrumental dos seus alunos para um mundo tecnológico e global, como deve, também, reconstruir opções de valor que promovam a sua competência sapiencial”.

É, no entanto, toda a sociedade, e não apenas a escola, que deve assumir, com plena consciência e responsabilidade, o desafio que enfrentamos nas nossas vidas. Para a Fundação SM, é uma satisfação poder contribuir com seu grão de areia neste campo, sendo coerente com sua missão.

Essa reconstrução passa por uma renovação plena de estruturas, processos e relações. Assim o expressa Luis Aranguren na sua Introdução: “Não haverá mu-

danças na civilização se não houver um salto espiritual pessoal para uma auto compreensão da vida a partir dos cuidados que recebemos. É impossível modificar um sistema desumanizado sem uma mudança profunda na consciência. É a própria vida e sua capacidade de a tornar vivida, que nos pede uma nova maneira de ordenar a realidade e de nos instalarmos nela. A isso chamamos mudança de paradigma. Isto é alcançado através de um salto interior, aquele que vai ao mais profundo de nós mesmos”.

Neste caminho que iniciamos com esta publicação, fomos acompanhados por algumas pessoas que nos serviram de inspiração e conselho. Há mais de quinze anos, conheci o professor Bernardo Toro, filósofo e estudioso de várias disciplinas, colombiano de nascimento, que aconselha muitos governos e instituições em toda a geografia latino-americana. Ele acompanhou a Fundação SM como assessor e conselheiro todos estes anos e, com ele, aprendi muito sobre a importância do cuidado como paradigma ético que permeia todas as áreas das organizações humanas e, principalmente, o campo da educação. Aprendi a olhar para o nosso trabalho com autocrítica e a ousar propor caminhos futuros para o bem comum, contando com quem se atreve a transformar a realidade do dia a dia a partir dos pequenos hábitos do quotidiano, a partir da experiência relacional. Somos seres relacionais e nessas relações também estão incluídas as nossas relações com o meio ambiente, com o planeta, com os mais próximos e com os que estão mais distantes. Aprendi a compreender quais são as fontes de iniquidade e desigualdade no nosso mundo. Isso ajuda-me a decifrar e propor processos para tentar evitá-los, embora não seja uma tarefa fácil.

Com Luis Aranguren conheci, há três anos, Leonel Narváez, sociólogo, teólogo e também um homem sábio da humanidade. Na Colômbia, em 2003, Leonor fundou, com Paula Monroy e um grupo de bons colaboradores, a Fundação para a Reconciliação, que se espalhou por mais de vinte países. Com eles, aprendemos o verdadeiro significado das palavras “perdão”, “reconciliação”, “presente”, “oblação”. Com eles e com a sua proposta de Escola de Perdão e Reconcialiação (ES.PE.RE), percorremos vários territórios da América Latina e de Espanha. Com eles, entendemos que DAR e CUIDAR são as duas tarefas básicas do ser humano. Porque ao dar e ao cuidar geramos vínculos com os outros seres humanos, e muitos vínculos geram comunidade. Educar sob essa perspetiva é educar para o futuro de uma cidadania global que, juntos, todos devemos construir.

O paradigma do cuidado como desafio educativo

Gostaria, também, de partilhar o iminente aparecimento de outro livro sobre a pedagogia do cuidado e do perdão, de autoria colombiana e que será publicado pela Fundação SM em breve. Juntamente com este, serão um bom material para trabalhar com comunidades de educadores, com jovens, com famílias, com instituições de ensino na América Latina e Espanha. Oxalá, possam, também, ser traduzidos para outros idiomas, levando a uma maior divulgação, para o maior bem possível.

Quero agradecer à equipa de Arte da SM, Pablo Núñez e Sara Rioja, pelo excelente trabalho de edição que realizaram, a fim de que a sua mensagem e “conteúdo” sejam coerentes e transmitam a riqueza de valores que partilhamos há muitos anos.

Estou muito grato ao Luís Aranguren pelo seu compromisso com a Fundação SM e com os valores que nós, todos os que a representamos, tentamos, há anos, incorporar. O Luís é uma pessoa que procura ser coerente com esses princípios e valores ao longo da sua vida e na realização das suas tarefas.

Desejo que todos os que tiverem a sorte de ler e trabalhar o conteúdo deste livro possam colocá-los em prática, aprendê-los e ensiná-los a outros para que a cadeia evolutiva da nossa humanidade continue a crescer em liberdade, justiça, dignidade e equidade. Esse é o meu desejo para todos nós que, em qualquer área, nos dedicamos à educação e à cultura. Obrigado, educadores e educadoras, pelo vosso generoso dom.

Javier Palop Sancho

Pedrezuela (Madrid), julho de 2020

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