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Epílogo

O paradigma do cuidado como desafio educativo

Leonel Narváez Gómez

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No momento da redação deste epílogo (junho de 2020), dois acontecimentos sem precedentes estão a espalhar-se com uma força quase incontrolável por todo o planeta. Por um lado, as marchas crescem em cidades dos Estados Unidos e do mundo em protesto contra o assassinato desumano de George Floyd, um cidadão negro americano com dificuldades comportamentais, cujo grito desenfreado de “Não consigo respirar!” está irado nos corpos de incontáveis milhões de pessoas que protestam contra o racismo e as muitas formas de discriminação e indignidade, já validadas tacitamente, nesta sociedade. Estas muitas discriminações e exclusões falam-nos de negligência, ódio e negação do outro.

Por outro lado, ao mesmo tempo, a Mãe Natureza, através dos seus seres mais pequenos, os microrganismos da covid-19, ergue-se em indignação para nos fazer compreender que já não pode suportar ser abusada, explorada, invadida pelos seres humanos que ela tão generosamente hospeda e alimenta.

Ambos os acontecimentos gritam aos gigantes da lama que dirigem governos e economias que o destino de todos depende do cuidado que temos por nós próprios, pelos outros e pela Mãe Natureza. E, ao mesmo tempo, revelam a realidade muito dura de milhares de milhões de seres humanos, excluídos e empobrecidos pela miséria e pela dor, e cujo destino irá condicionar, a partir de agora, o destino de absolutamente todos, tanto ricos como pobres.

Este livro é uma síntese didática valiosa dessa tarefa, uma das tarefas mais cruciais da humanidade nos próximos séculos: O CUIDADO.

Quando felicitei calorosamente o autor, atrevi-me a sugerir-lhe, com todo o respeito, que O CUIDAR é uma face da moeda da vida e que a outra face é DAR. Ele respondeu com entusiasmo: Quanto podem e devem dar de si o cuidar e o dar se nos dispusermos a eles!

Antes de encerrar o livro, deixem-me, então, propor algumas breves motivações sobre O DAR, ou melhor, sobre O DOM.

Sem dúvida, existem muitos outros casos semelhantes, mas agora ocorre-me lembrar-vos de algo fenomenal que aconteceu há oitenta anos no contexto do racismo mais cruel inventado pelos nazis. Maximiliano, solteiro e sem filhos, oferece-se para substituir um prisioneiro, casado e com filhos, condenado a morrer de fome porque um dos seus companheiros de prisão tinha conseguido escapar do campo de concentração de Auschwitz. Exausto da fome e pronto a morrer, Maximilian recebe na sua cela o médico nazi que o vem injetar com ácido carbólico, e consegue dizer-lhe: O ódio é inútil. Só o amor cria.

Este gesto hiperbólico de DAR, oferecendo até a própria vida, torna-se uma poderosa inspiração para compreender que Dar é uma das realidades mais profundas da existência humana. Os psicólogos diriam que eu sou o que dou..., e se eu não dou, não sou.

Um dos maiores desafios para posicionar a cultura do cuidado, diz o mesmo autor - inspirado por Maturana - é como ativar a expansão da consciência humana a fim de transformar a cultura patriarcal numa cultura matrística (o feminino de todos os seres humanos), basicamente feita destas duas inspirações centrais, dar e cuidar. Ambas são expressões do cérebro límbico, ou da afetividade, já presentes nos hominídeos muito antes do cérebro neocortical, encarregado do raciocínio, de aparecimento muito recente. Produto de uma cultura patriarcal fortalecida, principalmente com o surgimento da agricultura, há apenas cerca de 10.000 anos, são a propriedade privada, os exércitos, as armas, as guerras, as prisões, a escravidão, o racismo, a exploração implacável da natureza, e as múltiplas formas em que o conceito autoritário e violento foi transplantado para a educação, para a Igreja, para a religião, para os negócios e para tantas outras formas de violência que ainda hoje constituem um sério fardo para toda a humanidade. Esta cultura patriarcal, no caso específico da escola, tem sido caracterizada pela microfísica do poder e construções violentas como a competição, a culpa, o castigo, a exclusão e paradigmas velados, mas igualmente perversos para promover o sucesso, a luta pelo poder, a posse e o prazer.

Juntamente com o cuidado, a outra inspiração profunda da cultura matrística é a consciência de que tudo o que temos de cuidar é um DOM (a terra, a água, o

O paradigma do cuidado como desafio educativo

ar, as plantas, os animais...) e, sobretudo, a compreensão do mais transcendente e esquecido: a suprema dignidade da vida como um presente para mim e para os outros. O dom e o cuidado tornam-se, então, as duas tarefas básicas do ser humano. É por isso que o autor afirma: “Compreendermo-nos a nós próprios do ponto de vista do cuidado supõe deixarmo-nos configurar pelo dar e pelo receber”.

Assim, recuperar o dar e o cuidar é regressar às raízes mais profundas do ser humano. O cuidado, a cooperação, a compaixão, e a generosidade são as enormes vantagens deste paradigma matrístico que, felizmente, cada vez mais seres humanos estão a incorporar nas suas vidas.

Num livro muito comentado na altura (O Dom, 1924), o antropólogo Marcel Mauss revela uma visão profundamente valiosa: que o dom tem sido o pilar das sociedades primordiais precisamente porque o dom gera laços e muitos laços geram comunidade. A violência e a falta de laços – este é o cancro muito grave da humanidade.

Recordando que o dom - a oferta, o sacrifício - é um dos arquétipos primários em todas as culturas (Émile Durkheim, Mircea Eliade, René Girard) com Mauss, reconhecemos as muitas ambivalências que o dom pode ter, particularmente, a obrigação de reciprocidade que muitas vezes implica; e no entanto, como Jacques Derrida (e com ele tantos outros com a mesma perspetiva, como Hannah Arendt, Georges Bataille, Alain Caillé, Baron-Cohen), cabe-nos aceitar, mais uma vez, o desafio do dom puro, aquele que está despojado de interesse económico, dilui a cultura que assenta no monstro da dívida, e liberta da circularidade da troca e da simetria. É o que Paul Ricoeur chama à economia do dom e que aqui inauguramos com o termo economia oblativa ou desenvolvimento oblativo. Quando esse dia feliz chegar, as empresas já não trabalharão apenas para gerar lucro, mas também para aumentar o valor partilhado e a transformação dos seus ambientes. A economia circular, os bancos de tempo e as empresas de interesse coletivo (BIC) serão cada vez mais validados. Com Bataille, será demonstrado que a dimensão não utilitária é indispensável para alcançar o equilíbrio psicológico e social da cidade e dos seus cidadãos.

Na mesma perspetiva, é urgente destacar uma questão de importância capital. Contra a economia do ódio e da justiça punitiva, será também necessário propor a justiça dos cuidados, ou seja, a justiça restaurativa. Na famosa Orestéia do dra-

maturgo Ésquilo (século V a.C.), é narrada a tragédia na qual o ódio e a vingança na família de Atreus chegam ao fim. Apolo usa todos os seus poderes e transforma as fúrias (cães raivosos com coágulos de sangue na boca) em eumênides (mulheres bonitas, eretas, cheias de bondade) que permitem superar a tragédia aí gerada. Isto serve para realçar que, enquanto a justiça moderna se baseia nos princípios da distribuição e da proporcionalidade, a justiça restaurativa baseia-se no princípio das eumênides, ou seja, do cuidado e do dom.

O cuidado e o dom (desenvolvimento oblacional) são, então, duas das maiores tarefas para esta nova etapa-oportunidade de alargar a nossa consciência e lançar-nos para o salto evolutivo que a história nos pede. Muitos já começaram, estamos a segui-los, e em breve, seremos muitos.

Depois abrir-se-á outro horizonte sem fim, porque descobriremos outra das verdades mais profundas: que a perfeição do cuidado e do dom é o perdão. Nesse momento, a cultura patriarcal terá dado lugar à transformação mais radical do planeta.

Assim, teremos começado a responder a essas duas profundas limitações humanas: finitude e liberdade. O dom, na sua eterna multiplicação de energias oblativas, permite-nos semear sementes de bondade que carregam a sua própria energia e continuam a multiplicar-se ad infinitum, enquanto o perdão, com as suas reviravoltas narrativas e heroicas, passando da vingança à compaixão, liberta-nos do passado e torna possível futuros totalmente novos.

O Homo sapiens sapiens termina e o Homo reparans começa. Reparar - talvez a expressão mais profunda do dar, do cui-dar, da justiça e, finalmente, da ética.

“O ódio não serve para nada. Só o amor cria”.

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