8 minute read

1. Sobre termos, conceitos e por onde vamos

Next Article
Notas

Notas

A expressão teatro sagrado pode ser empregada para fazer referência a diferentes contextos em que o teatro esteve associado à religiosidade, seja em celebrações dionisíacas na Grécia Antiga, ou medievais cristãs, ou mesmo em formas espetaculares orientais ou ritualísticas. Essa expressão, no entanto, quando empregada por Antonin Artaud, em 1936, nos textos Um atletismo afetivo e O teatro de Séraphin, que integram seu livro O teatro e seu duplo, introduziu no vocabulário teatral outra referência na relação do teatro com a dimensão sagrado-simbólica, que, embora dotada de estruturas ritualísticas e significativamente influenciada pelo teatro oriental, distingue-se dela e ganha características próprias.

Christopher Innes, autor do livro Holy Theatre Ritual and the Avant Garde (publicado em 1984, pela Cambridge University Press, e traduzido ao espanhol em 1992 como El teatro sagrado: el ritual y la vanguardia, ainda inédito em português), desenvolve um estudo em que defende o teatro sagrado como uma das vanguardas artísticas europeias do século XX. As características de vanguarda, ele afirma, estão sujeitas a dois elementos que levam ao reconhecimento de características comuns: propostas artísticas e propostas políticas de renovação.

Advertisement

Innes agrupa por afinidades filosóficas diferentes estilos teatrais e temas, reconhecendo uma grande diversidade e até mesmo antagonismos dentre o recorte de seu estudo, mas apontando, em linhas gerais, aspectos semelhantes em aspirações. Seu objetivo consiste em analisar princípios gerais de vários projetos teatrais,

Ismael Scheffler

estabelecendo uma pauta para que se possa considerar ainda outras pesquisas não mencionadas por ele. Em seu livro, o autor destaca que alguns fundamentos que compõem o teatro sagrado já estão presentes em movimentos artísticos antecedentes. Desde o romantismo, passando pelo simbolismo, pelo expressionismo e pelo surrealismo, o desejo progressivo pela abstração, pelo simbólico, por elementos interiores e noturnos, resultando nesta “aspiração à transcendência, ao espiritual em seu sentido mais vasto.” (Innes, 1992, p. 12). Esse movimento artístico possui, segundo Innes, um precursor: Alfred Jarry. Ele faz esse apontamento considerando as diversas montagens da peça Ubu Rei, de Jarry – como as de Jean-Louis Barrault, Peter Brook, Joe Chaikin e dos Beck –, mas também reconhece essa influência pelo fato de vários teatros levarem o nome do dramaturgo, como o teatro fundado, em 1926, por Artaud e Roger Vitrac. Innes destaca, como referência máxima do teatro sagrado, os escritos de Antonin Artaud e o trabalho de encenadores como Jean-Louis Barrault, Peter Brook, Jerzy Grotowski, Eugenio Barba, Richard Schechner, Joe Chaikin, o grupo Living Theatre, incluindo também dramaturgos como Jean Genet, Eugène Ionesco, Samuel Beckett, entre outros. Em comum, Innes aponta o interesse predominante no irracional e no primitivo com “duas facetas básicas e complementares: a exploração de estados oníricos ou os níveis instintivo e subconsciente da psiquê, e um enfoque quase religioso no mito e na magia, a experimentação com pautas rituais e ritualistas de atuação.” (Innes, 1992, p. 11). O autor também chama a atenção para o interesse em modelos dramáticos arcaicos e a presença “de obras imagéticas e quase religiosas ou psicodramas: obras que representam arquétipos ou sonhos e empregam estruturas ritualísticas, substituem a comunicação verbal por símbolos visuais e pautas de som, ou dependem de uma extrema participação do público numa tentativa de despertar respostas subliminares, baseando-se no subconsciente” (Innes, 1992, p. 13-14), rechaçando a linguagem e a lógica verbal como elemento fundamental do teatro.

Artaud e o Teatro Sagrado

Este “retornar às raízes do homem” (Innes, 1992, p. 11) conduz à investigação do primitivo, com um olhar mais antropológico sobre o fazer teatral e sobre diversas manifestações cênicas que propõem uma percepção diferente da realidade imediata.

As aspirações heroicas de transformação artística e social, presentes em todos os movimentos das vanguardas europeias do século XX, também aparecem nesse agrupamento. Innes afirma que esses artistas buscavam meios de descobrir as fontes do instinto poético, tendo objetivos politicamente radicais.

Pode-se reconhecer, frequentemente, a existência de certa hostilidade contra a civilização contemporânea, um desprezo à organização social e às convenções artísticas, aos valores estéticos, aos ideais materialistas, à estrutura e lógica burguesas. Innes (1992, p. 18) defende que existe uma concepção errônea de que a proposta seja apolítica. Ele ressalta que a busca pelo primitivismo não se configura por um escapismo. Tampouco o valor atribuído ao subconsciente é uma fuga da realidade. O teatro ritualístico e mítico não está num polo oposto ao do teatro político. A insistência numa revolução espiritual justamente pretende “uma mudança fundamental da natureza humana como requisito para a alteração social.” (Innes, 1992, p. 18). O homem necessita ser sacudido para uma visão nova, despertado para a vida. Mudando-se o indivíduo se acredita na possibilidade de transformação do social.

Para se compreender o significado de sagrado é preciso tomar o termo sob uma perspectiva diferente da cristã contemporânea. O cientista da religião Mircea Eliade (2001) já destacou que “para o mundo moderno, a religião como forma de vida e concepção do mundo confunde-se com o cristianismo” (p. 133), alertando para a necessidade de se compreender o termo sagrado em um sentido mais amplo.

Artaud tinha uma compreensão de que a dimensão sagrada é muito mais ampla do que a associação imediata que o Ocidente faz com o cristianismo. Foi Artaud mesmo quem definiu sua concepção, em 1932: “eu tenho do teatro uma ideia religiosa e metafísica, porém no sentido de uma ação mágica, real,

Ismael Scheffler

absolutamente efetiva. E é preciso entender que tomo as palavras ‘religioso’ e ‘metafísico’ em um sentido que não tem nada a ver com a religião ou com a metafísica, da maneira que são entendidas habitualmente.” (Artaud, 1995 p. 79). Esse aspecto artaudiano também é destacado pelo pesquisador brasileiro Cassiano Sydow Quilici:

[...] nos textos específicos sobre a cultura mexicana, Artaud transita com grande liberdade por uma pluralidade de referências tradicionais, que abrangem diferentes épocas e regiões do mundo. Ele ancora-se na convicção de que existiria uma unidade profunda, subjacente a elas, pelo menos no que diz respeito aos seus princípios essenciais: [...] “Quem não vê que todos esses esoterismos são um só, e querem em espírito dizer a mesma coisa?”1 (Quilici, 2003, p. 62).

Innes (1992) afirma que “ao mesmo tempo, e junto com o materialismo e a política radical, o cristianismo é frequentemente rechaçado como órgão oficial do establishment social, sendo que a ‘santidade’ deste teatro é irreconhecível a partir das normas religiosas convencionais, ou melhor, onde mais próximos são os nexos com a religião, resulta sacrílego.” (p. 12). O sagrado, como apresentado por Innes, diz respeito a um sentido mais amplo e abrangente, mais antropológico.

Para uma melhor compreensão dos conceitos empregados por essa proposta teatral, parece-me pertinente estabelecer uma correlação com a Hermenêutica Simbólica, uma vez que ambas não apenas possuem termos comuns, mas, principalmente, os utilizam num mesmo viés de entendimento. É importante ressaltar que termos como “símbolo” e “mito”, por exemplo, são usualmente empregados com diferentes significações, algumas vezes até mesmo contraditórias entre si, sendo, portanto, importante estar atento.

É na primeira metade do século XX que o universo simbólico começa a ser estudado no Ocidente, após vários séculos de rejeição.

Artaud e o Teatro Sagrado

Gilbert Durand – que se denomina um discípulo continuador de Gaston Bachelard, e que integrou o Círculo de Eranos de 1964 até 1988, quando o grupo acabou, sendo apontado como um dos principais nomes da última fase –, em A imaginação simbólica (1988), identifica três momentos na história ocidental que rejeitaram o símbolo como compreendido pela Hermenêutica Simbólica: o cartesianismo e o cientificismo, o conceptualismo aristotélico e o dogmatismo religioso. Ele identifica a oposição gradativa ao símbolo em um período correspondente aos últimos seis ou sete séculos. O estudioso afirma que à presença epifânica da transcendência, as igrejas opuseram dogmas e clericalismos; ao pensamento indireto, os pragmatismos opuseram o pensamento direto, o concepto (diferente de percepto); e à imaginação abrangente (taxada de “senhora dos erros” e de falsidade) a ciência construiu as correntes racionalistas da semiologia, apoiada na explicação positivista. Para Durand (1988), “esses famosos três estados sucessivos do triunfo da explicação positivista são os três estados da extinção do símbolo” (p. 24), sendo o progresso da consciência um aniquilamento do simbólico. Conforme Durand, essa tradição provocou descrença e redução na consideração do símbolo, que, por sua vez, foi sendo resgatado ao longo do século XX. A Hermenêutica Simbólica, campo de estudos da antropologia filosófica, apresentou importante contribuições neste sentido. O Círculo de Eranos, grupo que congregou pesquisadores de diversas áreas (antropólogos, psicólogos, fenomenólogos, mitólogos, orientalistas, entre outros), provindos de diversos países, especialmente europeus, articulava-se em Ascona, na Suíça, numa composição interdisciplinar de caráter filosófico-científico.

Cada pesquisador trabalhava a partir de uma perspectiva específica sobre questões comuns previamente propostas, todos seguindo correntes paralelas de investigação. Esse grupo foi composto por várias gerações de estudiosos que, de 1933 a 1988, realizaram conferências anuais, publicando 57 volumes sobre esses encontros: os Eranos-Jahrbücher (anuários).

Ismael Scheffler

Especialmente na primeira fase, o grupo funcionou fortemente influenciado pelos pensamentos de Carl Gustav Jung. Na origem do Círculo de Eranos, encontram-se três personalidades que conferiram uma tridimensionalidade cultural aos estudos da Hermenêutica Simbólica, o que nos ajuda a compreender os fundamentos teóricos das pesquisas do grupo: a) a fundadora, Olga Fröbe-Kapteyn, a “grande mãe”, que, instigada por estudos místicos orientais, pretendia estabelecer um diálogo entre a cultura ocidental e a cultura oriental; b) Rudolf Otto, autor do livro O sagrado: aspectos irracionais na noção do divino e sua relação com o racional, de 1917, considerado o padrinho do grupo, nunca participou das conferências mas o influenciou, não apenas batizando-o como Eranos (palavra grega que significa “comida em comum”), como também emprestando a ele seu método hermenêutico-compreensivo, que se baseia na interpretação empática da essência vivida – enquanto fenomenologista da religião, deu importante contribuição para a elaboração do Círculo; c) Carl G. Jung, considerado o inspirador do grupo, contrapunha seus estudos de psicologia arquetipal à fenomenologia de Rudolf Otto, trazendo assim a hermenêutica das profundidades (Ortiz-Osés, 1994). É interessante observar que, no mesmo período em que o grupo se articulava, nos idos da década de 1930, Antonin Artaud, na França, escrevia seus manifestos e suas propostas teatrais. Tanto os integrantes do Eranos quanto Artaud foram atraídos pela psicologia e pelas manifestações culturais do Oriente, o que os levou a elaborar pensamentos extremamente significativos para a cultura ocidental.

Conforme o pesquisador espanhol Andrés Ortiz-Osés (1994), Eranos buscava uma aproximação “cultural” com o Oriente, considerando-o como um outro complementar. Compreendendo que a razão não possibilita um entendimento integral do ser humano, Eranos se propunha a compensar a unilateralidade da razão, confrontando-a com a questão simbólica, na tentativa de confluir o mito e a razão para chegar a uma visão intermediária e complementar. A questão do sentido ocupava lugar central em Eranos: o sentido da

This article is from: