Lagarada capixaba
Janaina Behling – Body-Chronicles by a Brazilian Woman in a Pandemic Portugal – Simplíssimo Editora, 2021. pg. 1
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Pe Pererê perê pepê. Pe Pererê perê pepê. Janaina Behling – Body-Chronicles by a Brazilian Woman in a Pandemic Portugal – Simplíssimo Editora, 2021. pg. 2
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A
moqueca no meio do Alentejo, em plena lagarada,
dentro de um tachão pocado lavado por dona Joana como se fosse o menino Jesus, era mais uma vez deitado aos estalos da fogueira improvisada no chão como a uma manjedoura. Manjar. Grita que é verdade. No lugar do pão de sal a broa quente. No lugar de arapuãs, besouros. No lugar de bagual apenas potros. No lugar de barbaquá tanquespisantes. No lugar de embuás os caracóis. No lugar da gamboa a estopa. No lugar danhaca, da catinga das grainhas, o louro fresco e um punhado avantajado de alecrim.Alho e cebola. Mais alho e mais cebola. Iá! De repente um maço de coentro. Dona Isabel quis meter couve como sempre e como sempre não deixaram. Moqueca num vai couve dona Isabel. Aié? Ãtão? Não ia ser a moqueca daquela que Junha e Guilherminha sentiam no peito quando falavam com as tias. Era só mais uma temporada com os primos distantes, enfiados naquelas cantorias e naqueles bailados de socar o vinho de terra granitada e xistosa. Não ia ser aquela de que se tenta conseguir algum dinheiro pra voltarem das férias, ali com as tias alentejanas velhas e direitas, quando já sabiam que entre meados de abril e fins de setembro só poderiam colher mirtilos na Serra da Estrela, depois de apanharem caquis no outono, que fazem bem pras vistas, pra pele e pro crescimento dos ossos. Mas couve, não. Nem courgettes. Nem rabanetes. Nem as azeitonas da estação passada em azeite puro. O azeite Janaina Behling – Body-Chronicles by a Brazilian Woman in a Pandemic Portugal – Simplíssimo Editora, 2021. pg. 3
sim. As azeitonas não. Robalotinha em fartura módica, regado a muito limão amarelo e sal que parecia torresmo. Não ia ser a moqueca que as tias pediram, apesar das taruíras pretas subindoa parede do barracão em baculejo como os porcos, de longe, também darem grete na pg. 40
lama comendo kiwi. Ia ser improvisada como a maioria das coisas na vida estrangeira. Do tacho ao pirão, açorda. Elas queriam ser artistas, as gêmeas, igual Ivete Sangalo, embora nascidas e benzidas na igreja de Nossa Senhora do Rosário de Vilha Velha, no Estado do Espírito Santo e não na Bahia, embora certo respeito seja o mesmo, quando não se está no Festival do Crato, mas querendo oferecer outro tipo de tipicidade, uma coisabrasileira que transborda, a oferenda, às vezes mal-usada, às vezes mal compreendida, a oferta, seja duma canção, duma lembrança, uma cura. Mas cantar e dançar era possível apenas entre uma roça e outra de estação em estação, porque Ivete chegou em Portugal pela porta da frente, as meninas, pela dos fundos, bem fundos, então demora mais pra serem tratadas como pessoas, especialmente enquanto não aparecia uma oportunidade artística válida, especialmente na terra xistosa, porque todas as oportunidades que queriam calariam o canto alarido dos meninos salazares, suas sobrancelhas grossas e vozes pontuais, sempre um tom acima das cachopas de vestido desbotado em preto e paninhos nos cabelos virgens, como as gêmeas já não eram. Mas, as cantoras sem canção sempre voltavam ali pra Odemira, Janaina Behling – Body-Chronicles by a Brazilian Woman in a Pandemic Portugal – Simplíssimo Editora, 2021. pg. 4
voltavam pralipra aldeia onde por muito tempo foram confundidas com os alemães do Tamira, umaespécie de índio do avesso, com chapéu de feltro no lugar do acangatá. Tamira era uma comunidade ecológica de palavras poucas, como devem ser as pessoas na Beja.Poucas palavras são muito importantes pra dar espaço ao falatório. Elas não eram depoucas palavras, as meninas, mas aprenderam a equacionar geometrias verbais e então oferecer moqueca às tias imigradas dum passado cujas cantorinas se perderame se acharam e se perderam de novo no oceano. Se as meninas, que apesar de lindas eram naturalmente estranhas, eram sempre muito educados diante do passado alheio,
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do presente é que não gostavam, porque futuros ficam melhores sem bandas de axépra dar lugar ao pimba. É tudo.
Os rapazes sabiam que de onde elas vinham também se via o mar, mas não sonhavam com o mar delas porque não sonhavam nem com o deles e porque são mesmo caipiras, sempre de braços ocupados ou cruzados pra elas, vez por outra escolhendo coisas pequenas pra dar. Migalhas. O que eles podiam fazer pras visitas,garantidas de se irem pra onde vieram no dia seguinte, depois da janta, é apareceremcom peixes sem multiplicação pra imolarem, embora preferissem uma bela entremeada salgada e feijão gordo, mais nada. Ou sardinhada. O mais interessante, no entanto, é que o tachão pocado (com ênfase no Ó) acabou se tornando uma peça bruxesca a cada visita das moças. Pocado quer dizer estourado, no caso, de bastante uso e com rachaduras misteriosamente nunca aprofundadas. De barro preto e dimensões avantajadas, era a única palavra que remetia às meninas no aumentativo, Janaina Behling – Body-Chronicles by a Brazilian Woman in a Pandemic Portugal – Simplíssimo Editora, 2021. pg. 5
para além do fato de o Barro Preto de Bisalhõesser patrimônio imaterial da Unesco, algo que provavelmente poucos sabiam ou davam importância, pela forma artesanal de trabalhar o barro, dominada por velhosde no mínimo oitenta anos em Vila Real. A olaria negra era já misteriosa, o mesmomistério que fazia as meninas conseguirem colheitas em todas as estações, ou dos costumes estranhos das tias em noites de lua cheia. Um tachão pocado era então um tacho grande já curado; Já untado com azeite centenas de vezes por dentro, por fora e ao fundo, com o auxílio de muitos panos produzidos ali mesmo, por alguma rendeira cega, sempre sentada em plano nenhum,a não ser o de encontrar quem colocasse o tacho no chão com fogo embaixo. Rachaduras convictas, lascas mínimas, nenhum arranhão, superfície corretamente côncava como as mãos dos santos ou dos pedintes nas feiras e arraiais, o som opaco e gutural a cada assentamento, como se fosse possível ouvir a voz dos retirantes pg. 42
incondicionais ou das bestas adormecidas pelo tempo. Nenhuma alça a mais ou a menos pra promessa certa de caber nas mãos, sejam de dedos lisos e compridos ou curtos e roliços, geralmente reumáticos, porque nenhuma criança seria capaz de suportar seu peso argonauta, nem mesmo Davi, nem mesmo os griôs, nem mesmo os erês, nem mesmo os caribocas e os escoteiros lobinhos. Talvez uma dúzia de duendes de orelhas pontiagudas e olhos diferentes e dentes cerrados e inconclusos. Talvez fadas madrinhas. Seu perfume exalava uma mistura de urucum, cúrcuma e carqueja do meio, mas ninguém sabia de nada disso até o dendê Janaina Behling – Body-Chronicles by a Brazilian Woman in a Pandemic Portugal – Simplíssimo Editora, 2021. pg. 6
desaparecer e surgir a verdade dos arrefecimentos na panela de barro enterrada no chão sem couve. E erasempre guardado onde ninguém sabia, o tacho e suas histórias estranhas que interrompiam a autoridade dos demais durante a janta, quando dona Joana contava histórias assombradas que nada tinham de axé. Uma delas é horripilante. Numa manhã de Santa Fortuna, entre um nevoeiro frondoso de umidade parada e o início de uma tarde cômoda, tropeçando entre os cascalhos indefinitos das vielas que dividiam as casas sem dividir a intuição, naquele cheiro seco de madeira queimada, dona Joana, a amiga das tias, recebeu a visita duma sobrinha distante e a filha. Conforme picam as cebolas na frente do tachão preto, ela sempre conta essa história. A moça da história nunca foi muito próxima ali da aldeia do pai, irmão de dona Joana. Mas certa vez resolveu visitar a tia, irmã do pai distante. Uma penumbra qualquer estava nos olhos da criança cheia de dedos dentro da boca e olhos cada vez mais vidrados, quanto mais as visitas se aproximavam da casa. Curiosamente, de fato, a tia tinha a luz da arrecadação acesa em plena seis da tarde. Era grande a dispensa, com uma cama enorme e um baú lá dentro, antigos, pesados, definitivos. Só a luz acesa realmente não fazia sentido, já que não havia comida guardada entreas prateleiras de tábuas honestas. Pintura descascada. Luz acesa em pleno dia, onde
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é costume estar tudo apagado, conforme a energia em Portugal é uma fortuna. A moça sugeriu apagar a luz, economizar sempre. Inútil. Dona Joana fez que não ouviu.Mesmo o cômodo imenso e vazio, era iluminado, Janaina Behling – Body-Chronicles by a Brazilian Woman in a Pandemic Portugal – Simplíssimo Editora, 2021. pg. 7
e as visitas ainda foram acomodadas no chão do corredor que levava à cozinha. Estopa limpa. Mas as visitasnão conseguiram dormir em paz. Especialmente a criança de olhos vidrados que começava a ofegar conforme a noite se ia e o vulto surgia. Um vulto. Só a criança via. Um homem. Onde? Que homem? A criança ofegante. Ofegante. Ofegante. No dia seguinte a moça teve de perguntar à dona Joana o que se passava, com a dispensa acesa e vazia. Dona Joana parecia acreditar numa resposta inacreditável, mas não dizia mais que frases esparsas e ventava por dentro das palavras. De tanto a moça insistir, finalmente, dona Joana conta que o seu pai, avô da moça, bisavô da menina,fez uma promessa de deixar a vida assim, com uma dispensa vazia e de luz acesa, desde quando morreu sua irmã, tia Catarina, que a moça não conheceu. Antes de morrer o velho lembrou da bendita da luz acesa. Fosse vela, fosse lampião. Nunca no escuro. E assim dona Joana fez até então. Na noite seguinte, era a moça quem não conseguia dormir. Vidrada na luz. A criança, daquele jeito. Acordava, dormia pequeno. Quando acordou e viu. O homem. Criança mente e manipula. Todo mundosabe. Mas pânico é difícil de fingir, é coisa mais de adulto. O homem lá outra vez. Atormentada, dona Joana apagou a luz pra acalmar a criança e o vulto surgiu do nada. Era mesmo um homem enorme e ao contrário. Não humano. Com dois ou três passos estava com as visitas debaixo do braço, imobilizadas, e sumiu com elas assimque dona Joana apagou a luz outra vez, acreditando que foi tudo vertigem. Não foi.Elas desapareceram. Nunca mais voltaram. E todo ano, antes das sobrinhas partirem outra vez, era o mesmo ritual. Contaressa história sem saber o que ela tinha a ver com as meninas. Janaina Behling – Body-Chronicles by a Brazilian Woman in a Pandemic Portugal – Simplíssimo Editora, 2021. pg. 8
Talvez qualquer pessoa
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estranha deva sentir medo, um medo profundo, mesmo se quiser apenas improvisar uma moqueca e tanto no tachão pocado, que ficasse alentejana sem ser chamada de peixada, pra não aborrecer as memórias dos mortos, que fosse. Ou improvisar tão alentejadas que nem sejam mais moquequeiras até esquecerem os palcos onde jamais cantariam. E vermelhos os pés da gente da aldeia, era tão estranho. As unhas, os cantos das unhas, os unheiros, as feridas, os calos, era vermelho entre os dentes e o hálito fundo daquela terra humilde e sombria. Deve ser por causa das uvas, da lagarada.
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