Em que língua você sonha? Carta 2

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Em que língua você sonha? Janaina Behling – Carta2 2019

Querida Marta; Ao assistir sua última carta, decidi mergulhar mais uma vez em nossas conversas sobre o próprio Linha de Fuga, meu assunto de hoje. Em sua última carta descobri que se a morfologia do gesto estrutura um mapa do corpo no espaço é possível chegar a Deus quando respeita seu eixo. E é pensando em eixos que pergunto a você, querida, o que foi o Linha de Fuga? Entre a segunda e terceira semana do festival as pessoas já se conheciam

e

conversavam mais. Tive uma conversa com o Segi Faustino sobre como a dança é realmente um tipo de escrita porque suas palavras são projetáveis, mas num caderno sem linhas, mesmo se o corpo é standart. Esse caderno para ele é a vida, apesar de que sempre haverá um gesto mais projetável que outro. Depende do momento político, por exemplo. Para Sara Jaleco a dança não escreve nada até que se possa escolher ou ser escolhido por um novo trabalho. Mas reconhece que sem corpo não há texto. Silvia Coelho acredita que escrever é libertário, mas me pergunta sobre o grau necessário de altruísmo para se fazer uma performance. Para Mish esteve em causa a diferença entre as línguas de uma dança para outra. Falamos da língua portuguesa na Europa e suas ausências. Azenha chega a acreditar que o contato físico não significa mais proximidade para a conversação. Vidas em português dançam miúdo. No Brasil também. Enfim. embora não saiba se efetivamente obteremos uma resposta original na busca por definições, creio que são três os primeiros eixos que norteiam respostas sobre o Linha de Fuga. O primeiro eixo é o institucional. Linha de Fuga foi um laboratório e festival internacional de artes performativas que decorreu em Coimbra, entre 9 de novembro e 1 de dezembro de 2018. Para lá da dimensão de Festival aberto ao público, com a apresentação de espetáculos em vários locais da cidade, realizou um Laboratório que


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pretendeu promover, de acordo com a curadoria, o encontro entre artistas nacionais e estrangeiros para intercâmbio de práticas artísticas. Ficou acertado com a curadoria que a documentação focaria o laboratório, ou seja, aquilo que dá mais sentido à ideia de Linha de Fuga como local, lugar, espaço ou meio onde as coisas se encontram em busca do desconhecido. Faz sentido porque para Deleuze, por exemplo, Linha de Fuga é 'fugir' como um gesto que nos conduz a um novo modo de vida. E enquanto ato de coragem, 'fugir' possui o sentido de romper com o que é estabelecido. Zona de desconforto entre o sabido, o não sabido, o imediato e o processo. Nesse caso, creio que o segundo eixo é político. Linha de Fuga foi um evento que ultrapassou os limites cronológicos que costuraram pessoas de diferentes culturas na cidadezinha cuja língua come poeiras ibéricas. É um eixo que se desenha no utópico dos trópicos, como na projeção multicolorida que não se importava com os demais, apenas com os seus. O eixo político é como um manifesto antropofágico, no qual a poesia está nos fatos. Constatação rasa, eu sei. É para ser mesmo. É micropolítica. O folder do evento que encontrávamos em cada buraco da cidade era como um manifesto. Na cafeteria, no bar, no supermercado, na universidade, no banheiro da boate. Ali se podia ler “ainda que carreguemos nossas heranças culturais, hoje, num mundo global, nada impede o ser humano de encontrar e ser acolhido dentro de tribos (sic) com as quais se identifica, mesmo que em territórios longínquos de suas origens”. A parte mais legal: “não tem sentido a proteção das ‘nossas’ sociedades de outros povos”. A dimensão política do Linha de Fuga, enquanto laboratório, era um jogo de espelhos tribais. O terceiro eixo para mim é o estético. E é onde as palavras e as coisas se encontram, mesmo que o dizer dependa, em grande medida, do corpo num espaço desinstitucional e despolítico. O eixo estético traz à tona um cabedal de perguntas sem sentido somente possível em fuga: O que é morfologia do gesto? Todos dançam, mesmo imóveis? Em que língua você sonha? Percebo que quando falo de estética sem querer


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me apropriar do conceito é que entro no espírito de um festival em que o senso de coletividade não caga regras; Como se faz nas políticas convencionais, inclusive, da imagem e da escrita. Então, quero me dedicar apenas a este terceiro eixo hoje. Enfim, quando pensava e penso no eixo estético que ia se formando ao longo do festival não podia nem posso me esquecer de um antigo professor velhote brasileiro, o Jorge Coli. Para ele, se queremos falar de estética olhando nos olhos dela, quem sabe, numa linha de fuga, é importante distinguir os artistas e os autores. Acredito que uma estética em fuga pede a ajuda de um dicionário, onde se pode encontrar, em português, as seguintes definições: Artista: indivíduo que se dedica às artes ou faz dela meio de vida. Autor: aquele que é causa primária e principal. Assim, um é indivíduo, pessoa, ser concreto, como cada um de nós. O outro é causa, abstração. Para explicar como a distinção entre artista e autor é fundamental para definir a estética como um eixo do Linha de Fuga, penso no conceito de work-in-progress, que no contexto do laboratório trouxe artistas ao mesmo tempo iguais e diferentes. Iguais porque embalados por uma estética que, no mais das vezes, não sabemos se realmente esteve em função de desautorias muito importantes entre desterritórios. E diferentes pelo mesmo motivo. Encerro a carta de hoje desconcertada ao analisar somente esses três eixos do Linha de Fuga enquanto laboratório. Porque há o desejo de escrever o corpo da liberdade e não a liberdade do corpo. A própria documentação a que nos dispusemos deseja. Porque a memória é um tipo de justiça às palavras sem ego. Desejo que essa leitura lhe inspire a liberdade mais doce com que possa se lembrar da gente. Com carinho, Janaina


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