América Latina - Raízes sociopolítico-culturais

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Introdução

AMÉRICA LATINA RAÍZES SÓCIO-POLÍTICO-CULTURAIS

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UNIVERSIDADE CATÓLICA DE PELOTAS Chanceler D. Jayme Henrique Chemello Reitor Alencar Mello Proença Pró-Reitora de Graduação Myriam Siqueira da Cunha Pró-Reitor de Pós-Graduação, Pesquisa e Extensão Vini Rabassa da Silva Pró-Reitor Administrativo Carlos Ricardo Gass Sinnott EDUCAT - EDITORA DA UCPel Editor Wallney Joelmir Hammes CONSELHO EDITORIAL Wallney Joelmir Hammes- Presidente Lino de Jesus Soares Luciano Vitória Barboza Luiz Roberto Bitar Real Vilson José Leffa

EDUCAT Editora da Universidade Católica de Pelotas - UCPel Rua Félix da Cunha, 412 Fone (53)2128.8297 - FAX (53) 3225.3105 - Pelotas - RS - Brasil


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Introdução

JANDIR JOÃO ZANOTELLI Bacharel em Ciências Sociais e Jurídicas Filosofia e Teologia Doutor em Filosofia Livre Docente em Filosofia da Educação

AMÉRICA LATINA RAÍZES SÓCIO-POLÍTICO-CULTURAIS

3ª Edição

EDUCAT Editora da Universidade Católica de Pelotas PELOTAS - 2007


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© 2007 Jandir João Zanotelli Direitos desta edição reservados à Editora da Universidade Católica de Pelotas - EDUCAT Rua Félix da Cunha, 412 - Fone (53)2128.8297 Fax (53)3225.3105 Pelotas - RS - Brasil E-mail:educat@phoenix.ucpel.tche.br Editora filiada

1ª edição - 1998 2ª edição - Rev. e ampliada - 1999 3ª edição - 2004 2ª impressão - 2007 PROJETO EDITORIAL EDUCAT EDITORAÇÃO ELETRÔNICA Ana Gertrudes G. Cardoso CAPA Signus Comunicação Arte: Alexandre Feijó Ilustração: BOCHICCHIO,Vicenzo Rafaello. Atlas do Mundo Atual. São Paulo: Atual, 2003.

Z33a

Zanotelli, Jandir João América Latina: raizes sócio-político-culturais / Jandir João Zanotelli - 3 ed. - Pelotas: EDUCAT, 2007. 158p. ISBN 85-7590-020-X I. Antropologia II. Título CDD 301.0981 Índice para catálogo sistemático antropologia: américa latina


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A Ruth, Vinícius e Rosana, Daniel, Luciana, Eloí e Camila A todos aqueles que não se contentam com folhas e superfície mas que buscam raízes profundas para alicerçar Esperanças e edificar a Paz na Justiça

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SUMÁRIO PRÓLOGO / 9 INTRODUÇÃO / 11 I - O NÚCLEO ÉTICO-MÍTICO DOS PRÉ-SEMITAS / 21 1. A mudança na compreensão de Espaço e Tempo / 21 2. Pré-história e História / 24 3. Indicações espácio-temporais dos pré-semitas / 27 4. Núcleo ético-mítico dos pré-semitas / 29 II - O NÚCLEO ÉTICO-MÍTICO DOS INDO-EUROPEUS / 37 1. Contexto espácio-temporal / 37 2. Núcleo ético-mítico indo-europeu / 39 3. Implicações desse núcleo ético-mítico sobre o direito / 50 III - O NÚCLEO ÉTICO-MÍTICO DOS SEMITAS / 53 1. Contexto espácio-temporal / 53 2. Núcleo ético-mítico dos semitas / 54 3. Implicações da concepcão semita de direito / 65 IV - O ESTADO DE CRISTANDADE / 71 1. Aspectos gerais / 71 2. Os primeiros cristãos / 75 3. A Construção do Estado de Cristandade / 83 4. A Religião determina a Política / 99 5. A Política determina a Religião / 105 6. Fim da Cristandade e recomeço do Cristianismo / 146 CONCLUSÃO: A América Latina e o Estado de Cristandade / 149 BIBLIOGRAFIA / 157

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Prólogo à 3ª Edição Esta terceira edição não tem modificações. Sai a público assim mesmo para atender a apelos amigos de quantos adotaram este pequeno e despretensioso trabalho. Vejo que é útil para introdução ao contexto de nossas realidades. Fica sempre comigo a promessa de tornar sua linguagem mais acessível. Isto será para o próximo passo. Sou grato a tantos quantos, colegas e amigos, incentivam com suas críticas e sugestões. Grato, também, à denodada equipe da EDUCAT. Pelotas, novembro de 2004. Jandir João Zanotelli.


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INTRODUÇÃO

Dentre as raízes da América Latina, dois fatores destacam-se como fundamentais: por um lado as culturas ameríndias, anteriores à invasão européia e por outro o Estado de Cristandade que forjou a identidade européia e que fez da América Latina uma Cristandade Colonial. Sem raízes não há árvore. A árvore, porém, não coincide apenas com suas raízes. O solo, o húmus, o sol, a chuva, o vento, a lua, as estações e a história de sua capacidade de assimilação e defesa fazem de cada árvore, com suas raízes, um corpo saudável ou raquítico, vigoroso ou doentio. As raízes, contudo, dizem muito da identidade de cada árvore. Se é imprescindível estudar as culturas ameríndias, pré-semitas, para não perdermos a memória e a identidade ameríndia, por outro lado não se entende as culturas, e a identidade americana sem localizar a América Latina no quadro geral de desdobramento do Estado de Cristandade muitas vezes confundido com o Cristianismo e com a Civilização Ocidental. A Civilização Ocidental tem como expressão máxima a Sociedade Moderna, iluminista, liberal, burguesa e capitalista com seu contraponto dialético: o Socialismo. O capitalismo mercantilista, colonial, manufatureiro, industrial, imperialista, que, após a crise de 1929 se faz capitalismo do Estado de Bem Estar Social, da Trilateral, da divisão em blocos e da globalização, tem como suporte ideológico o liberalismo, o neo-liberalismo expresso pela Revolução Inglesa e Francesa, pela independência dos EUA, pelo pensamento iluminista, racionalista, idealista e ao mesmo tempo empirista e positivista. O lema da Revolução Francesa de “liberdade, igualdade, fraternidade” como justificativa para liquidar o Antigo Regime do direito divino dos reis e da religião como determinante


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da política, caminhará para a perspectiva positivista de Augusto Comte que, com a “lei” dos três estados buscava: “O amor por princípio, a ordem por meio e o progresso por fim”. Os neo-positivismos bebem da mesma fonte. A ideologia que informa o capitalismo nasce de dois pressupostos dialeticamente inconciliáveis e unidos: a propriedade e a liberdade. A propriedade como o romano “jus utendi et abutendi” (o direito de usar e abusar) nasce e se estabelece como valor fundamental na Filosofia Grega e no Direito Romano - expressões máximas da Cultura Indo-européia. É antes de mais nada, apropriação particular e cumulativa dos meios de produção e não apenas dos produtos, dos bens econômicos de troca, como também dos bens de uso (neles incluídos, os alimentos, vestuário, habitação, cultura, poder e Estado, família e religião). A concepção antropológica do homem como proprietário é anterior e fundante do direito de propriedade. O homem, em sua relação exclusiva com a natureza é o dono, aquele que faz da sua propriedade o que ele quiser. Ele é solitário, masculino ou melhor dizendo, macho. Neste mundo não há lugar para a mulher. A liberdade enquanto dimensão insondável, imperscrutável, intocável do outro que, face à face comigo, pergunta ou responde à minha proposta e que me põe em questão, enquanto novidade absoluta e criadora e que, por isso, merece o mais absoluto respeito; essa noção radical de liberdade surge com a experiência histórica dos Semitas. Dentre eles, a dos hebreus e cristãos. A liberdade é manifestação da alteridade do outro e do próprio fundamento de toda a alteridade: o Outro Absoluto. O outro homem é outro de mim e não apenas um outro eu, espelho de mim, reflexo de minha mesmidade. O outro me surpreende e me põe em crise. É a experiência monoteísta da liberdade que se expressa na ética revolucionária do reconhecimento de que nada é deus senão Deus, e, por isso, se tudo é criatura de Deus, então o homem é livre e igual ao outro. Nada está acima do homem senão Deus. O próprio homem e sua obra e seus sonhos não estão acima da homem. E, por outro lado, a transcendência do homem e para o homem não é obra e fabricação do homem, nem para si nem para o outro homem. A liberdade, como reconhecimento da alteridade do


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outro, como um não-dobrar-se diante de nenhum ídolo, diante de nada (nem da lei, nem da autoridade, do cosmos ou dos acontecimentos, nem de si mesmo) é a profética possibilidade da fraternidade. A propriedade e a liberdade fundiram-se no Estado de Cristandade, quando o Cristianismo (monoteísta, criacionista, comunitário, profético, dos pobres) juntou-se à estrutura, organização e funcionamento do Império Romano a partir especialmente de 313 d.C. (uma vez que a tradução da mensagem cristã em categorias da Filosofia Grega já vinha acontecendo desde o século I dC.). O Estado de Cristandade é o fundamento da Sociedade Moderna Burguesa, Capitalista, Liberal bem como das utopias e experiências socialistas que nascem como contraposição. A Sociedade Moderna é, antes de mais nada, a laicização, a secularização do Estado de Cristandade. Do Estado de Cristandade surge a possibilidade da ciência e da técnica moderna: tanto enquanto desmitização do universo e da natureza que deixam de ser tabus insondáveis e intocáveis para mostrar-se à mão, disponíveis ao manuseio do homem, bem como enquanto expressão do homem como sujeito que se apropria das coisas e que faz a história. A filosofia e a ciência modernas seriam impensáveis sem o Estado de Cristandade. E não se lhes alcança o fundamento e sentido, inclusive o sentido da crise em que hoje se encontram, sem superar criticamente o Estado de Cristandade. Tentaremos mostrar a contradição real entre propriedade e liberdade, contradição que o liberalismo só consegue jungir na condição de que a liberdade, que se expressa no direito como condição do contrato e como fundamento da igualdade de todos perante a lei, não se realize na vida concreta da propriedade e do mercado. A liberdade, a igualdade, a fraternidade só são defensáveis no liberalismo, conquanto fiquem no campo meramente formal, jurídico, abstração feita da realidade concreta do homem e dos homens. Essa condição implica em negação da liberdade real, das necessidades reais e na afirmação da propriedade como critério exclusivo e excludente. Ainda mais, a liberdade, a igualdade, a fraternidade constituir-se-ão no biombo encobridor, na ideologia mascaradora da


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desigualdade social e econômica. Essa junção, porém, nasce de dentro do Estado de Cristandade. O Ocidente e sua cultura supõe e consiste nessa abstração, nessa simulação. Vale a ética se dela abstrairmos o conteúdo concreto. Vale o direito enquanto realização da liberdade e igualdade se ele não interferir na vida econômica, social e política. A ética, a moral e a religião só valem no plano privado, como coisa privada, como como relatividade da veleidade de cada um. Vale o direito e a liberdade se ficarem no plano formal, abstraída a existência concreta. Compreender o Estado de Cristandade em seu nascimento, estruturação e expansão, bem como em sua crise e destruição é condição para compreender a Sociedade Moderna e Contemporânea em seu núcleo ético-mítico essencial. Assim como é condição para inteligir o que acontece em cada país da América Latina, moldada que foi, pela Europa, como Estado de Cristandade Colonial. Não nos ocupa, nem preocupa, o sofisma do determinismo histórico das condições econômico-sociais, nem o determinismo idealista de uma história produzida exclusivamente pela ideologia, pela política, pela cultura, e pela religião. A dicotomia, sempre e de novo mal posta, de infra x supra-estrutura, já foi suficientemente esclarecida por ambos os lados. Partimos da premissa de que a História de cada homem e de todos os homens, e em cada momento, é sempre condicionada pelo econômicosocial, bem como é empuxada, empurrada, revolucionada também pelas idéias, pelos valores, pelas utopias. O homem não é fruto apenas de suas necessidades, de suas pulsões, de seu passado, mas também de seus sonhos, de seus desejos, de suas esperanças. Sem a utopia da alteridade cristã nunca se compreenderá, por exemplo, o sonho, a luta, a força do socialismo, nem em sua genial análise da exploração do homem pelo homem (no fetichismo da mercadoria) nem em sua perspectiva escatológica (de término ou consumação da história no comunismo, na igualdade e na liberdade). Somos latino americanos. Nossa cosmovisão, nossa compreensão do mundo, do homem, da história, da ciência, de Deus condiciona, legitima, justifica, situa, fundamenta nosso agir e, por sua vez é condicionada, valorada, fortalecida e consolidada pela ritualização econômica,


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política, social, cultural, religiosa de nosso agir social, bem como por nossas idiossincrasias íntimas. E essa nossa “Weltanschauung” (visão de mundo) nos dá identidade e lugar no conjunto das nações do mundo de hoje. Como se caracteriza nossa visão de mundo, de onde proveio, em que nos identifica e diferencia dos outros homens? São questões que, em momentos definitórios da História sempre vêm à tona. E na hora em que o Mercosul aproxima os países do sul da América Latina, nossas palavras, nossas histórias, nossos passados e nossas esperanças se confrontam, olham-se face à face e, nos desvelam diferenças de posturas, de valores e realizações que, ao mesmo tempo que nos diferenciam uns dos outros também nos unem quando, juntos, olhamos para os países do Norte, para os blocos do Nafta, da União Européia, dos Tigres Asiáticos e Japão e para a matriz européia. Nossas histórias e situações nos aproximam da conflitada e desfigurada África, bem como das lutas pelo desenvolvimento da Ásia. Fomos todos, desde há muito, caracterizados e constituídos pela Europa, como países do Terceiro Mundo. E antes de destacar o que nos diferencia, como países do Mercosul, é importante destacar o que nos torna semelhantes. É preciso descobrir a origem e a constituição de nossas semelhanças. A etiologia de nossa identidade. Quais são esses traços identitários? Somos latino-americanos? Se o somos, não aceitamos facilmente que o sejamos segundo a visão preconceituosa que os países do Primeiro Mundo têm de nós. Mas o fato de sermos tratados preconceituosamente, estigmatizados como indolentes, preguiçosos, andarilhos, improvisadores, não muito sérios em cumprir os compromissos empenhados, etc... de não termos nem merecermos espaço, voz e vez nos meios de comunicação daqueles países, o fato ainda de sermos esquecidos e negados, mesmo e especialmente nos fatos em que somos lembrados (carnaval, futebol e escândalos) essa contraposição, essa discriminação, é também um lugar de nossa identificação. É preciso recolher com cuidado os vetores de nossa identidade e o processo de nossa identificação.


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Este trabalho não pretende esmiuçar, em detalhes, cada um dos traços identitários dos países do Mercosul. Não pretende exaurir as características próprias de cada um desses países, mas situar no conjunto maior da “cultura ocidental e cristã” a etiologia de nossa identidade, como pano de fundo em que se inscrevem e analisam as práticas e perspectivas concretas de nossos povos. Nossa hipótese de trabalho é a de que o Estado de Cristandade, constituído a partir de 313 dC. como fusão do Império Romano indoeuropeu com o Cristianismo semita, - e imposto à América Latina como colonização, é a matriz etiológica mais relevante de nossa cultura e de nossa compreensão. Propomos, portanto, para critério de análise da Civilização Ocidental e do mundo atual, especificamente para a América Latina, o núcleo ético-mítico estabelecido pelo Estado de Cristandade, que não pode ser confundido com o Cristianismo nem com a Idade Média e que é posto definitivamente em crise com o Concílio Vaticano II, a partir de 1962. Tomamos aqui a palavra cultura no sentido mais amplo possível do termo. Ela abrange todos os modos de “comportamento”, todos os modos de pensar, de agir e fazer do homem no mundo. Ela abrange a economia e as infindas maneiras que o homem inventou de trabalhar a natureza, de simbolizar, de conhecer, de elaborar e aplicar técnicas, de prover a própria subsistência e produzir sua existência e reproduzí-la; abrange as formas, processos e meios de falar, de expressar-se, de comunicar-se, de interrelacionar-se; abrange as maneiras de organizar-se em grupos, famílias, sociedades, de elaborar critérios e normas de conduta, de conviver, de fazer política; abrange as formas de crer, de simbolizar e ritualizar as crenças, as formas de pensar, de valorar, de julgar, de compreender-se no mundo, enfim todas as formas de existência. O homem é, assim, sua cultura, não apenas enquanto infra ou supraestrutura, mas como existência, como um modo concreto de haver-se consigo e com suas circunstâncias como ensinava Ortega Y Gasset. Ela abrange as estruturas e instituições em que o homem arma a sua existência, os símbolos e linguagens, os processos e ritos, a criatividade e a produção humana, os critérios, os caminhos e a história de o homem aceder ao mundo, aos outros, a si mesmo e à Transcendência. Não


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necessitamos insistir de que o homem é ao mesmo tempo criatura e criador da cultura. Para poder decifrar a fisionomia cultural dos países do Mercosul, o núcleo ético-mítico produzido e socializado pelo Estado de Cristandade será o horizonte interpretativo - essa é nossa hipótese -. Especialmente porque, a partir dos processos de independência dos países vizinhos e, da proclamação da República no Brasil, houve, o encobrimento, o disfarce, a mistificação, a negação dessas raízes culturais (muito bem compreensível como produto do próprio Estado de Cristandade), como se o liberalismo, os socialismos, o positivismo e as economias, as políticas de dependência não tivessem origem e significação no Estado de Cristandade. Este marco referencial, é, também, segundo nossa hipótese, o horizonte interpretativo da cultura mundial hoje: essa aldeia global de que falava Mc Luan. Nossa hipótese é que a antropologia e a cosmovisão da América Latina e, nela, dos países do Mercosul, derivam do Estado de Cristandade que, destruindo as culturas ameríndias, africanas e asiáticas através da colonização, da modernização, da europeização do mundo impôs e impõe seus padrões de conduta, seus padrões epistemológicos e valorativos através da economia, da política e de todos os processos de inculturação. Assim, antes de perguntarmos pelos traços exóticos, acidentais e incidentais de nossa cultura devemos perguntar pelo substrato básico, fundamental dessa nossa identidade. Com isso não pretendemos originalidade, uma vez que sob muitos ângulos esse assunto já foi examinado. Pretendemos, didaticamente reunir dados para que seja compreensível esse critério e horizonte de nossa interpretação. O desenvolvimento do tema estrutura-se nos seguintes passos: • Buscamos, na esteira de Paul Ricoeur, o núcleo ético-mítico como esquema representativo das culturas e das sociedades; • Situamos o Estado de Cristandade como um modo de ser e um conjunto de instituições e padrões culturais que se estabeleceram na Europa a partir da fusão de Império Romano e Cristianismo;


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• Estabelecemos para a história, surgimento, consolidação e expansão do Estado de Cristandade as seguintes etapas: - de 313 dC a 800 dC: fusão do Império Romano e Cristianismo, constituindo a base do Estado de Cristandade; - de 800 a 1648: a determinação do econômico-políticocultural pelo religioso tomando a Igreja como co-extensiva à sociedade européia e às sociedades a ela agregadas; - de 1648 a 1962: a determinação do religioso pelo político e econômico, tornando-se o horizonte religioso a ideologia do Estado Moderno e liberal; - de 1962 em diante acontece a definitiva crise do Estado de Cristandade, e, no pluralismo cultural, a busca de raízes e fontes. Situada a América Latina dentro do processo de expansão do Estado de Cristandade e de europeização, em suas vicissitudes, indicaremos minimamente as conseqüências culturais como horizonte constitutivo de nossos valores e referências. Assim, nosso trabalho constará de duas partes: Numa primeira parte trataremos das raízes, das fontes do Estado de Cristandade. Na segunda parte acompanharemos o surgimento, estruturação e expansão do Estado de Cristandade incluindo inferências sobre a constituição da Sociedade Moderna e Atual e incidências sobre a América Latina. Dividimos a tarefa em quatro capítulos e uma conclusão. Iniciaremos destacando o núcleo ético-mítico dos povos pré-semitas. Um segundo capítulo será destinado ao núcleo dos povos indo-europeus. Um terceiro apontará o núcleo ético-mítico dos semitas. Um quarto acompanhará a fusão de indo-europeus e semitas na constituição e expansão do Estado de Cristandade. Concluiremos mostrando que o Estado de Cristandade, que não coincide com o Cristianismo, nem com sua ética, elaborará um horizonte novo de valores e significações (fundidos à economia, à política, à cultura, e à religião). A crise da Civilização Ocidental é crise ínsita em sua própria constituição. É a expressão dialética de suas contradições que pedem uma superação, inclusive como retorno prospectivo às raízes. A América


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Latina, e os países do Mercosul, só conquistarão um horizonte de interpretação que lhes permita diálogo e esperanças comuns se, e na medida em que, superarem o horizonte cultural (que é ontológico e antropológico) do Estado de Cristandade.


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CAPÍTULO I O NÚCLEO ÉTICO-MÍTICO DOS PRÉ-SEMITAS

O Estado de Cristandade, constituído como acoplamento de elementos civilizatórios semitas e indo-europeus não pode ser compreendido sem que compreendamos o surgimento dos indoeuropeus e semitas no contexto global das civilizações pré-semitas. Para compreendermos as civilizações pré-semitas, algumas observações sobre o contexto da história da humanidade:

1. A mudança na compreensão de espaço e tempo Vivemos num tempo e num espaço cuja extensão e profundidade maravilha e espanta. A noção e a compreensão do tempo e do espaço mudou vertiginosamente nos últimos tempos, mormente no século XX. O tempo - Há um século os homens ainda discutiam se o universo e os homens foram criados por Deus há 4 ou 5 mil anos antes de Cristo. A genealogia de Jesus Cristo exposta pelo evangelista Mateus no primeiro capítulo de seu Evangelho e a trazida pelo também evangelista Lucas, dão conta que, de Jesus a Adão (o primeiro homem), haveria 42 gerações o que, por mais que exageremos, nunca atingiria 4.200 anos. Se a Bíblia fosse um tratado científico ou de História, (e não o é,) ao invés de uma mensagem teológica, uma interpretação, uma hermenêutica dos fatos da história, o universo e o homem teriam sido criados juntos e há pouco mais de 3 ou 4 mil anos. O calendário judeu, em vigor até hoje,


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pareceria corroborar com esta idéia. Através de múltiplos testes como os do Carbono 14, Urâniochumbo etc. sabe-se hoje com grande margem de segurança que algumas pinturas rupestres encontradas nas cavernas da cadeia montanhosa que divide a Europa em Norte e Sul (Lascaux, por exemplo) foram feitas há mais de 30.000 anos. As pinturas da caverna de Boqueirão da Pedra Furada perto de S. Raimundo Nonato, ao sul do Piauí, no Brasil, datam de mais de 8.000 anos. O Zinjântropo, (mais de 100 cadáveres) descoberto pelo casal Lickey em 1968 numa caverna recoberta pela lava do vulcão Kilimandjaro na região dos Grandes Lagos da África, com sinais de que enterrava os mortos, utilizava o fogo, fabricava e guardava anzóis, e usava colares, data de 1.750.000 anos. Cientificamente pode-se admitir hoje que o homem habita este planeta terra há mais de 3.500.000 anos. Sabe-se que os vertebrados já existiam há 240.000.000 de anos. Que a vida principiou sobre a terra, em suas mínimas condições, há cerca de 4.000.000.000 de anos. Que a terra, antes disso, gastou outros 4 bilhões de anos para esfriar sua crosta. Que a explosão solar que originou a terra aconteceu há mais de 10 bilhões de anos. E que o universo tem mais de 500 bilhões de anos.1 E esse tempo inimaginável é apenas uma parte da paciência criadora de Deus. Deus não tem pressa para criar o universo, dizia Teilhard de Chardin.2 A evolução criadora do universo desde a primigênia energia, passando pela constituição das galáxias e do cosmos, pelo nascimento da vida que avança do vegetal ao animal e ao humano numa complexificação crescente e ascendente em direção ao espiritual, ao amoroso, ao transcendente, é, hoje, para a consciência cotidiana de cada um de nós, não apenas uma utopia e um sonho, mas um dado que a ciência e o pensamento quase exigem. 1

Cf. Atlas Mirador Internacional, pg. 49-61, Rio de Janeiro, Enciclopaedia Britannica do Brasil Publicações Limitada, s.d.

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TEILHARD DE CHARDIN,P. Le milieu divin. Oeuvres. Paris, Seuil, 1957, pg.134.


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A consciência do tempo imensamente grande é uma experiência inconcebível para a compreensão popular até duas gerações atrás. Por outro lado, é possível hoje dividir um segundo (que era o tempo menor para muitos de nossos antepassados) em um milhão de vezes: um milionésimo de segundo...e isto a criança vivencia hoje com seu pequeno e barato relógio digital. O espaço também se abriu diante de nós. O espaço pequeno e definido que mediava nossa casa da casa do vizinho, nossa vila da outra vila, nossa vila da cidade, nossa cidade da capital do Estado e do País, de nosso país ao centro da Europa, Ásia... tornou-se insignificantemente pequeno. A circunferência da terra é de pouco mais de 42.000 km. É bem menor que o número de km. percorridos por nosso automóvel de trabalho. A distância entre a terra e a lua (384.000 km. quando Armstrong lá chegou) era um pouco maior do que aquela que a luz percorre em um segundo (300.000km). A terra que faz parte do sistema solar, dista do sol um pouco mais de 149.000.000 km. Nossa galáxia (Via Láctea) que compreende mais de 100 milhões de “sistemas solares” demora 200 milhões de anos para dar uma volta sobre si própria. O universo cujo diâmetro é mais do que 8.000.000 de anos luz, isto é, mais de 74 sextilhões de quilômetros tem mais de 100 milhões de galáxias. O espaço cósmico se faz cada dia mais espantosamente amplo e indefinido.3 Nosso endereçamento postal cresceu: João das Quantas, rua da Berlinda No. 007, Cep 96090-000, Bairro Laranjal, cidade de Pelotas, Estado do Rio Grande do Sul, país Brasil, continente Americano, planeta Terra, sistema Solar, galáxia Via Láctea...neste Universo. Por outro lado o milímetro (a menor divisão espacial para muitos de nossos antepassados) é divisível hoje em muito mais do que um milhão de vezes... O espaço se tornou infindamente grande e infindamente pequeno...O espaço e o tempo, porém não são infinitos. 3

Cf. Atlas Mirador Internacional, pg. 9-15.


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A noção de espaço e tempo gerou no século XX a sensação de pequenez e quase insignificância dos conhecimentos do homem. Tirou-nos a prepotência de pensar que sabemos tudo sobre o universo e sobre a história. Relativizou nossas certezas geográficas, políticas e até antropológicas e abriu um espaço muito maior para a pesquisa séria e humilde. O absolutismo do discurso tem cada vez menos sentido.

2. A Pré-história e a História A Pré-História. Dos caminhos percorridos pela humanidade

desde seu aparecimento na terra sabemos muito pouco. Supondo que os conhecimentos do homem atual resultem como soma, imbricação, re-invenção dos conhecimentos obtidos pelos homens, pelos grupos, pelos nomos, pequenas cidades e civilizações ao longo dos séculos (pretensão etnocêntrica e egocêntrica por demais) podemos concluir que conhecemos alguma coisa do passado porque conhecemos alguns aspectos do presente. Os sinais e indícios deixados pelos homens antes da escrita revelam, mas ao mesmo tempo escondem, o homem e o humano. Os documentos escritos, em número e abrangência consistentes para revelar a cultura, só aparecem um pouco além de 4.000 aC. A partir daí costumamos falar em história. O que vem antes é pré-história. O homem, desde o Australopithecus de cerca de 4 milhões de anos (no Plioceno) até o desenvolvimento da escrita, passou por grande evolução biológica, progresso técnico em manipular a natureza e os fatos, desenvolvimento mental e interação com os outros homens. Assim se costuma dividir a pré-história em período da pedra lascada (paleolítico) e o da pedra polida (neolítico) quando o homem realiza a primeira das três grandes revoluções: a descoberta da agricultura (12.000 anos aC.) depois da descoberta do pastoreio


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(cerca de 18.000 aC.).4 A revolução agrária conformará a história dos homens até a revolução industrial que aconteceu há pouco mais de 300 anos. Hoje (desde meados do século XX) vivemos a terceira grande revolução tecnológica que é a do conhecimento. Com a agricultura o homem transforma totalmente seu modo de viver. De nômade, coletor de frutos, raízes, tubérculos e caçador passa a ser sedentário, ao longo dos maiores cursos d’água onde se agrupa não só com sua família cada vez mais extensa, como também com outras famílias e grupos formando o clã, a tribo, nomos e vilas. Intensifica-se a divisão do trabalho e a organização social, o intercâmbio através de trocas do produto excedente, a união dos nomos em unidades maiores, até que por volta de 4.000 aC. surge a primeira civilização. É a civilização dos Sumérios englobando e reestruturando a vida dos povos que habitam entre os rios Tigre e Eufrates (a Mesopotâmia). A produção cerâmica que se intensifica após 10.000 aC. e a utilização de metais (cobre, estanho, chumbo, prata, ouro e depois o bronze) aparece mais significativamente depois de 6.000 aC. Ao invés de viver passivamente no ambiente, o homem vai estruturando, organizando seu ambiente vital. A História. Acostumaram-nos a olhar a História a partir dos critérios estabelecidos pelas civilizações indo-européias (especialmente Grécia e Roma) que, pelo Renascimento “civilizaram” a Europa, que por sua vez “civilizou” , europeizou o mundo. Com Hegel (1770-1831), aprendemos a olhar a Europa e, especificamente o Império Inglês, a cultura jurídica francesa e a filosofia alemã, como centro e culminância da História que seria uma só, que seguiria a senda do progresso desde a primitividade oriental até o apogeu da “atualidade” ocidental.5 Assim a história da humanidade, do universo, a história universal, a partir da pré-história seria assim dividida: 4

TOFFLER, Alvin. Powershift. As Mudanças do Poder. Rio Record, 1995.

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Cf. PREISWERK e PERROT, Etnocentrismo e história bem como GARAUDY, Roger O Ocidente é um Acidente.


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a) a História Antiga: a começar pela Antiguidade Oriental com as primitivas e incipientes culturas do Egito, da China, da Índia, dos Medos e Persas, da Mesopotâmia e culminando na Antiguidade Clássica de Grécia e Roma com as grandes e imortais culturas da Filosofia, da Administração Política e do Direito. A História Antiga iria desde 4.000 aC. até o fim do Império Romano em 476 dC.; b) Depois viria a Idade Média (476-1453 dC.), a idade das trevas, do obscurantismo em que a Civilização soçobra no barbarismo e na irracionalidade; c) A Idade Moderna (1453-1789) que inicia com o renascimento das culturas greco-romanas, marca também o advento da Europa, da Civilização, das Luzes, da Razão, do Progresso, a certidão de nascimento que cada nação européia faz questão de exibir de si mesma; A Idade Moderna também envolve a façanha européia de sair da periferia do mundo árabe, para criar sua própria periferia colonizando a América, a África, a Ásia e assim europeizando o mundo; d) A História Universal chegaria, assim, à maturidade, com seu ápice na Revolução Francesa (1789) quando iniciaria a Idade Contemporânea. A contemporaneidade da História de todos os homens (e não apenas da história européia) seria o Império Inglês, a Filosofia Alemã e o Direito Francês. É nisso que cada país deveria medir sua contemporaneidade histórica, para saber até que ponto está na Civilização ou na Barbárie. O indo-europeu seria o portador da civilização e do progresso. A História que é uma só, vai do Oriente para o Ocidente e a Europa central é a atualidade da História, o contemporâneo do progresso. A história dos outros povos, a periferia da História, tem sentido somente enquanto referência ao centro da História que é a Europa. A América, a África e a Ásia só têm sentido na atualidade contemporânea da Europa. E assim, nós latino-americanos, aprendemos desde a mais tenra idade como pessoa e como país, que a essência de nosso ser (econômico-político-cultural-social) era a


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Europa. Lemos a interpretação da nossa história através de livros e autores europeus e, quanto mais líamos, tanto menos latino-americanos ficávamos. Mais alienados e perdidos. Ao contrário, o pequeno inglês que lê sua história através de seu historiador Toymbee quanto mais lê tanto mais identificado com sua terra, suas torres, seu passado e seus projetos fica. E o século XX conhece bem a que ponto chegou essa interpretação etnocêntrica e genocida da História. As civilizações indo-européias, porém, não são as mais antigas civilizações que a humanidade construiu. Outras as antecederam e não tinham núcleo ético-mítico6 igual ao dos indoeuropeus, nem lhes era inferior. Destacaremos, para evidenciar isso, os três maiores e mais significativos núcleos ético-míticos das civilizações “antigas”, observando, mesmo que indicativamente, as civilizações Présemitas, as Indo-européias e as Semitas, tentando acompanhar a influência que nos deixaram, quer individualmente quer em suas exclusões e inclusões operadas na História. A história das civilizações como macro-sistemas instrumentais ou das culturas como horizontes ontológicos de compreensão, poderia dividir-se em três momentos progressivos: o da organização das seis primeiras totalidades civilizadas; o da irrupção da exterioridade nômade e invasora dos indo-europeus; e, em terceiro lugar, a lenta expansão da exterioridade semita que irá fazendo-se sujeito da história mundial.7 3. Indicações espacio-temporais dos pré-semitas a) Depois das revoluções do neolítico: a da pecuária (cerca de 18.000 aC) e a da agricultura (cerca de 12.000 aC ), da cerâmica (cerca de 6.000 aC ), dos metais (cobre, bronze...); 6

Cf. RICOEUR, Paul. História e Verdade, Rio, Forense, 1968 e Conflito das Interpretações. Rio, Imago, 1978.

7

DUSSEL, E. Método, pg 222.


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b) Ao longo dos maiores cursos d’água que propiciam a agricultura: Rios Tigre e Eufrates, rio Nilo, rios Indo e Ganges, rio Amarelo, Lagos Textoco e Titicaca na América, os homens inventam totalidades de “sistemas de instrumentos, símbolos, instituições denominadas de altas culturas”. c) Essas seis grandes culturas denominadas de pré-semitas tem a seguinte ordem cronológica: • A Alta Cultura Mesopotâmica ou do Sumer com destaque para os Sumérios que, ao redor de 4.000 aC. já estão perfeitamente organizados em civilização. Os Semitas e Indo-europeus invadirão essa cultura por volta de 2.500 aC. • A Egípcia já estruturada em 3.200 aC. A civilização egípcia será transformada especialmente após o Médio Império com a invasão dos Hicsos e outros povos por volta de 1750 aC. 8 • A Civilização do vale do Rio Indo, com as importantes cidades de Mohenjo-Daro e Harapa... já organizada por volta de 2.500 aC. será transformada com a invasão dos indo-europeus por volta de 1.500 aC. quando surgirão os Reinos Arianos da Índia. • A Civilização do Rio Amarelo desde o século XVII aC. será transformada também com a invasão dos povos ocidentais em 1.202 aC quando nascerá o Império Chinês. • Nas mesetas de México, Guatemala e Yucatan, surgirá a cultura maio-asteca já florescente na cultura do Teotihuacan de 300 dC e que será destruída pela invasão européia de 1519 dC. em diante. • E na América do Sul, no altiplano do Peru e Bolívia surgirá o Império Inca com uma cultura já clássica do Tiahuanaco constituída desde 300 dC.9 e que será invadida e destruída pelos espanhóis em 1531dC. 8

BURNS, E. M. História da Civilização Ocidental I, pg.48.

9

DUSSEL, Método, pg. 206.


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4. Núcleo ético-mítico dos pré-semitas: Essas seis civilizações, como “as colunas primeiras e quaseindependentes da história universal”10 e que vão do Ocidente para o Oriente, ao contrário do que pensava o iluminismo-racionalismo europeu de Hegel, têm um núcleo ético-mítico com semelhanças extraordinárias como as que seguem: • Desconhecem a propriedade da terra. A terra, identificada com a mãe, ou irmã, não é objeto de propriedade (especialmente a propriedade identificada com o jus utendi et abutendi - o direito de usar e abusar - que lhe atribuirão os romanos indo-europeus)11 . Da terra se tem a posse de uso comum de um povo e suas glebas são possuídas em rodízio, evitando que uma família possua sempre a pior e outra a melhor parte. A posse e não a propriedade é a forma originária pela qual o homem organiza suas relações com o mundo e com os outros homens. Por ela o homem busca satisfazer suas necessidades. Necessidade não só de alimentos, abrigo, segurança, mas também de energia vital que dê sentido à vida e ao viver.12 A posse se liga

10

Ibidem.

11

“A pré-história, a história da organização social que precedeu toda a história escrita, era, ainda em 1847, quase desconhecida. Depois, Haxthausen descobriu na Rússia a propriedade comum da terra, Maurer demonstrou que esta constituía a base social de onde derivavam historicamente todas as tribos teutônicas e verificou-se, pouco a pouco, que a comunidade rural com posse coletiva da terra era a forma primitiva da sociedade desde as Índias até a Irlanda. Finalmente, a organização interna desta sociedade comunista primitiva foi desvendada em sua forma típica pela descoberta decisiva de Morgan, que revelou a natureza verdadeira da gens e seu lugar na tribo. Com a dissolução dessas comunidades primitivas, começa a divisão da sociedade em classes diferentes e, finalmente antagônicas”. ENGELS, Fr. A Origem da Família, da Propriedade Privada e do Estado. Nota à 2a.Ed. inglesa de 1888 in Textos, de K.Marx e Fr. Engels, S. Paulo, Ed. Sociais, 1977, pg. 21-22.

12

Cf. a interessante parábola que o romancista James Redfield elabora sobre a relação do homem com o mundo, os outros homens e Deus na cultura maio-asteca: A Profecia Celestina, Rio, Objetiva, 1993.


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diretamente à necessidade e ao uso. A propriedade se vincula não à necessidade e ao uso, mas, ao excedente pelo excedente e, nos tempos modernos, ela está completamente desvinculada da necessidade e do uso. Como as seis civilizações utilizam intensamente a cultura de regadio, a água passa a ser objeto principal de sua atenção. “A água é a lei; por isso quando as águas chegam tudo está de acordo com a lei. Quando, porém, a chuva falta o mais débil é presa do mais forte, porque a água é a lei” 13 . O ayllu dos incas (de cem famílias ou de 10.000) divide cada gleba em 3 partes: uma para a família, uma para a comunidade e uma para o inca e a burocracia estatal (razoavelmente pequena de 30.000 funcionários para uma população de 11.000.000 de pessoas. O RS, com 9.500.000 de habitantes tem (em 1997) quase um milhão de funcionários, consideradas as esferas municipais, estaduais e federais)14 • Há um lugar social evidente para a mulher. Isto aparece não só na ocupação e desempenho de cargos e funções econômicas, políticas e sociais como também na simbologia dessas culturas que representam suas divindades em formas femininas. Há aqui deuses e deusas, há reis e rainhas. O machismo ainda não havia sido introduzido pelo indo-europeu.15 A mulher fornece a essas culturas 13

Satapathabrahmana XI,I,6,24, in MORA,F. La Filosofia en la Literatura Sánscrita, México, UNAM, 1968, pg. 9.

14

Cf. RIBEIRO, Darcy. As Américas e a Civilização. Cf. tb. GADELHA, Regina. As Missões Jesuíticas do Itatim; KERN, Arno. Missões, uma utopia política; LUGON, C.L. A República “comunista” cristã dos Guaranis.

15

Está superado o preconceito sociológico-antropológico de certo positivismo que via na agricultura desses povos o fundamento do matriarcado, procurando machista e etnocentricamente atribuir às condições da produção agrícola e o papel da mulher na agricultura a determinante cultural que dava lugar destacado para a mulher. É óbvio que o papel desempenhado pela mulher na agricultura e no anterior período de coleta, como nas mais destacadas funções sociais ritualizava e reforçava seu significado social e cultural. A condição, porém, não pode ser confundida com causa e fundamento significativo. Cf. MURARO, Rose Marie, in MALLEUS MALLEFICARUM, O martelo das Feiticeiras, pg. 5-17, Rio Rosa dos Tempos, 1991.


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uma integração entre o afeto, a sexualidade, o intelectual e o produtivo que, depois com os indo-europeus, serão opostos e subordinados ao racional, à ordem e ao institucional. • O “comunitário” é mais importante que o individual, não havendo espaço sequer para a sobrevivência fora da comunidade.16 O crime e o mérito mais importante é aquele que mais prejudica ou beneficia a comunidade. Assim as penas variam de acordo com a importância que a comunidade atribui ao ofensor e ao ofendido. O “comum” dos pré-semitas não é ainda, porém, o comunitário dos semitas ou da história contemporânea onde a consciência de participação individual e pessoal é definidora. • Integrado no universo o homem vive a lei do eterno retorno do mesmo sem destacar propriamente a responsabilidade histórica, livre, ética.17 O universo fundado, desde o início, a partir de elementos pré-existentes, indiferenciados, caóticos tende a retornar a seu início, para, então, tudo recomeçar indefinidamente. O mundo não foi criado como novidade. Nada há de novo sob o céu. Tudo é repetição, retorno, à mesmidade do início. O universo, como toda a realidade, é, como dirá Aristóteles depois, eterno. Tudo na história e no movimento do universo se explica enquanto é referido à fundação, ao início. Mesmo quando, como os maio-astecas, guardam zelosamente as tradições e a consciência dos valores que

16

Ser excluído de uma comunidade, não poder participar da única realidade humana para cada um, que era a comunidade, era o mesmo que decapitá-lo, matá-lo, entregálo à impossibilidade de articular significativamente sua vida. Mesmo no mundo contemporâneo, a experiência dos exilados políticos fala alto sobre esse tipo de condenação que leva muitos, no desespero da anomia, ao suicídio. E Sócrates preferiu ser executado e morto (399 aC) do que fugir de sua pólis ateniense. A apatria era pior que a morte. Cf. PLATÃO, Apologia de Sócrates, in Os Pensadores, S. Paulo , Abril Cultural, Vol II, 1974.

17

DUSSEL, Método, pg. 206


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os ancestrais lhes legaram,18 mesmo quando os ciclos do tempo cósmico (as idades do sol, da água...) não se repetem, sua “consciência histórica” não abrange a irrepetibilidade dos gestos (portanto, a consciência de historicidade propriamente dita) e a responsabilidade individual pelo caminhar da história.19 O mito enquanto narração que os antepassados legaram sobre o que os deuses lhes revelaram da fundação do universo é, por isso o caminho, a racionalidade que os pré-semitas usam para entender-se e entender a realidade. Este componente (o da historicidade) será trazido, aportado, pelos semitas. • Simbologia não-formal. Os pré-semitas seguem o princípio de que é preciso deformar a forma e desfigurar a figura para poder significar. A forma e a figura não traduzem, não revelam a realidade, apenas a ocultam e espantam. Sua arte, por isso, não tem o princípio da funcionalidade (da utilidade: a arquitetura, por exemplo, como forma de conquistar e dominar o espaço) e sim o da significação (da inutilidade, da gratuidade): a beleza é generosidade, encantamento. Assim seus templos não são um espaço conquistado para guardar estátuas (como os dos indo-europeus) nem para a liturgia. Sua matemática (embora de altíssima qualidade, e capaz de calcular com a maior precisão a construção de monumentos como as pirâmides...) não trabalha, não labora, só e principalmente com o princípio da formalidade enquanto tal. Há números

18

A memória é uma dimensão essencial da historicidade. Não, porém, a memória como repositório do passado e sim como refundação do presente original, novo. A história é, ao mesmo tempo, memória, acontecimento e esperança que se faz ação inovadora e responsável, irrepetível, única.

19

PORTILLA, Miguel León. La Filosofia Náhuatl. México, Unam, 1979 pg. 193 e seguintes.


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que não são formas vazias20 , já são cheios: o número um (que já significa fundamento e divindadade), o três (o celeste), o quatro( o terrestre), o par e o ímpar, à semelhança daquilo que a escola Pitagórica ensinará, depois, no sul da Itália. Essas seis civilizações trabalham com pirâmides e com semelhante orientação solar21 ...Os deuses e o próprio homem são representados por monstros, por deformações, por esfinges, porque decididamente dizem e pensam que a parábola, o mito, a poesia e não o conceito claro e distinto(como os indo-europeus imaginam) é o único modo de aceder à verdade das coisas, do mundo e de Deus. “Flor e canto (poesia) é o único modo de falar da verdade na terra”22 dizem os tlamatinimes astecas. Os mitos não são para eles formas degeneradas ou infantis de compreensão (como dirão os indo-europeus) mas uma forma de racionalidade que ultrapassa, inclusive, a própria razão23 . Assim o que é formal, escrito, não se sustenta por si mesmo, só tem sentido na convivência e na fala oral, no diálogo e não no museu formal do livro. O principal, o mais valioso, o mais importante nunca se escreve, dirá depois Platão24 . • O homem se encontra inserido no universo com seus deuses. “Nós sabemos que o homem branco não entende nossos costumes. Para ele, um pedaço de terra é igual a 20

O número é símbolo, significação e não apenas forma vazia à espera que o preenchamos de qualquer conteúdo como, por exemplo o número um ou o número três que podem ser enchidos com frutas (3 laranjas), com homens (1 ou 2 homens). Em si mesmo o número já carrega uma simbolização e uma realidade: normalmente o um significa o começo, o divino, a raíz. Os pares indicam dependência, os ímpares indicam geratriz...

21

Impressiona ver que as Pirâmides do Egito e as do México têm idêntica orientação geodésica e solar embora umas no hemisfério sul e as outras no hemisfério norte.

22

Poema Nahuatl, in PORTILLA, pg. 142 ...

23

Cf. REALE, Giovanni. História da Filosofia Antiga II, pg.40.

24

Ibidem pg. 12 e ss.


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qualquer outro; porque ele é um estranho que vem de noite e toma da terra o que necessita. A terra não é sua irmã, senão seu inimigo, e quando a conquistou, segue adiante. Deixa as tumbas de seus pais para trás e não se importa com elas. Seqüestra a terra de seus filhos. Nada lhe importa. (...) O ar é valioso para o homem pele-vermelha. Porque todas as coisas partilham da mesma respiração: os animais, as árvores e o homem (...) todas as coisas estão relacionadas. Tudo o que fere a terra ferirá também aos filhos da terra...” (Chefe da tribo dwanwish, Seathl, 1855.25 • Após a morte o homem será julgado (como no Egito) especialmente quanto ao fato de ter sido ou não mentiroso ou se oprimiu os fracos.26 Era inconcebível para os maias, astecas e incas que o homem mentisse, especialmente se ele fosse testemunha ante o julgamento de alguém ou se fosse autoridade. O fato de Pizarro não ter cumprido a palavra de deixar os incas em paz se recebesse um volume de ouro que enchesse uma sala, espantou mais os índios do que ele ter decidido covardemente assassinar o inca. E se o homem faz parte do universo, se as estações, o sol e a vida são mantidos com o sangue de jovens sacrificados, entregar-se para manter a vida e a ordem era o maior gesto de desprendimento e de moral. O homem não vive para comercializar sua salvação individual.27 Esses poucos elementos culturais dos povos pré-semitas revelam sua organização social e política, bem como sua estrutura econômica. O que mais impressiona é que, sendo essas culturas as primeiras grandes colunas civilizatórias da humanidade, guardam 25

GUADARRAMA, P. y otros. La Filosofia en America Latina. Bogotá, Buho, 1993, pg.41.

26

Livro dos Mortos do Antigo Egito, S. Paulo, Hemus, 1982, cap. XVIII...

27

PORTILLA, pg. 203.


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em suas entranhas a mais primigênia experiência, os arquétipos culturais mais primitivos de que os homens têm notícia. Dizer, como pretendia o positivismo europeu do século XIX, que esse era apenas o estágio infantil da humanidade, desprezível, portanto, é negar valor à longa e meditada caminhada que o homem fez sobre a terra (de cerca de 4 milhões de anos). Parece demasiada e infatil soberba de nossa parte. Nem tudo o que vem depois é melhor apenas e somente porque vem depois.


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CAPÍTULO II O NÚCLEO ÉTICO-MÍTICO DOS INDO-EUROPEUS

1. Contexto espácio-temporal “Não existe uma raça indo-européia, mas somente uma civilização comum ao conjunto de povos habitantes das planícies eurasiáticas (desde a Alemanha até a Sibéria Ocidental1 ) durante o Neolítico”. (...) Esta sociedade teria sido dominada por chefes de clãs, “domadores de cavalos” e “pastores de povos” donos de gado e - o que distingue os indo-europeus dos povos mais antigos conhecendo o cavalo e o carro, que lhes possibilitaram seus deslocamentos e explicam seus êxitos”.2 Estes povos provindos do norte invadem a Anatólia, a Mesopotâmia, o vale do Rio Indo, a Europa atual e inclusive a China reformulando econômica, política, cultural e religiosamente as civilizações afro-asiáticas pré-semitas. Presentes na estepe euroasiática desde o IV milênio aC. ( cultura do Kurgão entre os mares Negro e Cáspio e as montanhas do Cáucaso) irrompem sobre os povos do sul por volta do final do III milênio aC.3 Das planícies entre o Baixo Volga e o Dnieper expandem-se: “1. Pela Trácia, Ilíria e Danúbio, na direção do sul e do ocidente, os ítalo-celtas dirigem-se para a planície do Pó, Europa Central e Gália, onde se sucedem à Idade do Bronze, de 2.100 aC a 900 aC 1

A grande estepe euro-asiática (dos Cárpatos ao Khingan, limitada ao norte pela Sibéria e ao sul pelo Tibet e os montes do Cáucaso) é o centro das grandes civilizações primitivas. DUSSEL, Enrique. America Latina y Conciencia Cristiana. Quito. Don Bosco, sd, pg. 23.

2

PETIT, Paul. História Antiga. S. Paulo, Dif. Européia do Livro, 1964 pg. 25 e 26.

3

DUSSEL, E. Método, pg 225.


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, as civilizações dos “canecos em zonas (Reno-Danúbio) da Boêmia e a dos “campos de urnas”, bem mais importante na Lusácia. Nesta época, os jônios, primeira vaga dos aqueus, descem para a Tessália, Grécia, Peloponeso, donde lançam sobre Creta a expedição de 1750 aC, que pôs fim ao período dos “primeiros Palácios”(...); 2. Partindo igualmente da Trácia, mas pelo Bósforo ou pelas planícies do Cubã, no sopé do Cáucaso, os indo-iranianos dirigem-se para sudeste, para a Bactriana e a Índia, antepassados dos Medos e Persas da época clássica; 3. No centro, enfim, após haver atravessado o Bósforo e destruindo Troia II, os hititas estabelecem-se no coração da Anatólia e, tocando à sua frente os asiáticos, desencadeiam na Mesopotâmia a invasão dos cassitas e no Egito a dos hicsos”.4 Assim “os primeiros a aparecer foram os luvitas (Lulubi) na Anatólia no séc. XXV aC. , depois as culturas Aujetitzer na Europa central (séc. XXII aC); os hititas e proto-helenos aparecem no séc. XX aC. tudo isto na idade do bronze. Na idade do ferro sucedemse em ondas os Kassitas, os hicsos, os mitanos, os protoilírios, protoceltas, ários até o sç. XV aC. Depois virão os arianos, aqueus, protoitálicos, até o séc. XIII aC. Os protofrígios, medos persas, citas, sármatas, sakas, chueh-chi ou tokários até o séc. II aC.”(...) As imigrações ou invasões germânicas, a partir do ano 100 dC e até o século VII são os últimos movimentos massivos desses povos. “No ano 300 dC. o império romano, o império persa, o império chinês e os reinos arianos da Índia haviam dominado todas as grandes culturas neolíticas agrícolas da idade do bronze”.5 A maior expressão das culturas indo-européias será a cultura grega (que se firma já em 1.100 aC. e especialmente no século IX

4

PETIT, pg. 26.

5

DUSSEL, Método, pg. 226.


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aC. com Homero)6 e a romana7 que inicia por volta do ano 1.000 aC e que, como Império, dominará o mundo conhecido.

2. Núcleo ético-mítico indo-europeu a)Mais do que agricultores, os indo-europeus são pastores. Criam o gado e utilizam o cavalo como montaria ou como fôrça motriz de suas carruagens. São os primeiros povos a utilizar o ferro. Com isso eles tem os dois elementos técnicos mais importan6

Sobre as tribos comunitárias primitivas acontece a invasão dos indo-europeus e outros povos alpinos vindos do norte, os jônios, por volta de 1.200 aC. Em seguida virão os aqueus que conquistam Micenas, Troia e Creta. Em seguida virão, até o ano 1.000 aC. os dóricos que completarão a conquista da costas gregas e das ilhas do mar Egeu. Os poemas homéricos (Ilíada e Odisséia), do século IX aC. guardam preciosas informações dessas transformações que os indo-europeus operaram sobre as populações autóctones de traços pré-semitas(Burns, pg. 150-151). Esses invasores, com ferro, cavalo, gado e pequena agricultura, por volta de 800 aC. já organizaram as cidades-estado. Virão depois as reformas de Sólon (594 aC), virão as guerras contra as outras cidades e os Persas. Virá o século de Péricles com a experiência da Democracia Ateniense (461 aC...). Virá o predomínio dos macedônios com Alexandre Magno (338...aC), o Império e a Civilização Helênica (336-323 aC) e as grandes escolas filosóficas dos Sofistas, de Sócrates (+ 399 aC) , de Platão ( + 347 aC) Aristóteles (+322 aC), as escolas do helenismo: epicuristas, estoicistas, céticos e a incorporação do Império e da Civilização Helênica pelos Romanos (146 aC).

7

Para contar sua história e sua identidade, os romanos diziam-se descendentes de Enéias (herói da guerra troiana e que os deuses conduziram até o Lácio) e que, por volta de 753 aC, por seus descendentes Rômulo e Remo (salvos pelos deuses das águas do Tibre e amamentados pela loba) teriam fundado Roma. Essa auto-referência à ascendência grega quer um mito de fundação como identidade da cultura indoeuropéia helênica, sem que jamais os romanos pudessem se igualar intelectualmente com seus pretendidos pais. Evidencia isto sim, que os valores indo-europeus da civilização grega formam o arquétipo civilizatório profundo da romanidade. Com isso Roma deixa em segundo plano os valores pré-semitas de seus povos autóctones. Os indo-europeus que invadiram a Itália desde o norte trazendo a cultura do gado, do cavalo e do ferro bem como da roda serão seguidos pelos etruscos e depois pelos gregos. (Burns 212). As grandes etapas da civilização romana incluem o período da República (500 aC...) com suas lutas entre patrícios e plebeus, as conquistas sociais destes e as leis das XII Tábuas (445 aC), as conquistas militares e a anexação de toda a península italiana (até 265 aC), a anexação do norte da África e do Império Helênico (até 146 aC), a Pax Romana de Roma como o único império com César Augusto (desde 27 aC...), o enfrentamento com o profetismo judeu-cristão e com a pressão dos “bárbaros” desde antes do ano 100 dC, a fusão do Império Romano com o Cristianismo (desde 313 dC) e sua queda em 476 dC.(Burns, 147-148). Seguirá depois o Estado de Cristandade.


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tes da antigüidade para o domínio e a guerra. O cavalo será o veículo humano mais veloz até 1860 dC, quando será superado pela locomotiva a vapor. O ferro fornecer-lhes-á ferramentas e armas só suplantadas pela pólvora já na idade moderna. Por outro lado, a criação do gado, muito embora lhes fornece abundante alimento, não lhes exige o sedentarismo e, portanto a urbanização até por volta de 2.500 aC. A grande família, ou o clã se desloca com o gado na grande estepe euro-asiática. b)A experiência originária desses povos é a do homem (alma) frente à natureza. Ser é dominar a natureza. Ser é ser dono, dominus, proprietário. Ser homem é dominar, ser proprietário: do gado, da terra, dos outros, de Deus, e de si mesmo. Há duas formas de dominar: vencendo o outro (através da guerra com o cavalo e a espada) ou con-vencendo o outro (através da lógica). A propriedade, a guerra e a lógica marcam e definem seu núcleo ético-mítico. c) Os povos indo-europeus são “portadores de uma cultura com um horizonte ontológico altamente coerente, que posteriormente na Grécia e na Índia será logicamente pensado em apertada racionalização”8 . A lógica como forma suprema e exclusiva de racionalidade faz com que identifiquem um pensar formalmente correto com um pensar verdadeiro. A verdade está na lógica e ela visa à conquista e domínio, à apropriação. A verdade não é fundamento, alicerce sobre o qual o homem possa edificar sua dignidade e identidade, mas é apenas forma e estrutura da propriedade e do poder. Mesmo no auge do pensamento indo-europeu representado pela filosofia grega, a verdade não exige do homem 8

DUSSEL, Método, pg. 225. Compare-se o budismo na Índia, enquanto ascese sistemática de negação dos desejos até que o homem, por obra exclusiva de seu esforço, se integre no Nirvana, com a Filosofia de Platão que propõe a dominação e superação do corpo e seus desejos através da ginástica, da música, da matemática e da Filosofia. A determinação de todas as coisas e de todo o significado a partir de um princípio único e último do qual tudo deflui e é compreendido contrapõe-se ao mito polissêmico dos povos pré-semitas.


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aquiescência, acolhimento, abertura, saída de si mesmo. Mas representará o grau supremo de captação dos princípios que regem o universo e o conhecimento, através dos quais o homem articula para si um âmbito, um domínio seguro. O homem se assegura do universo e do próprio deus através da lógica. E com a coerência lógica, os indo-europeus dominarão a frágil e efêmera estrutura mítica das culturas pré-semitas, mostrando-as como incoerentes, inseguras e arbitrárias. Só a lógica traria a segurança e o domínio do homem sobre tudo a partir de um único e último princípio do qual tudo se deduz e compreende. Nele a multiplicidade das coisas do mundo e da vida se reduzem à unidade, à mesmidade. f) Esse monismo ontológico faz com os indo-europeus interpretem a natureza em sua luminosidade diurna, solar, divina a partir do único princípio que é causa e razão de tudo: deus. O princípio e a razão não são interpretados como recurso humano para ordenar e reunir (com-preender) as coisas que permanecem diversas e múltiplas, mas como se fossem a própria natureza das coisas. O homem tem a capacidade de intuir (intus + ire: ir dentro, adentrarse) a essência das coisas, sua figura e forma de ser, e de escalonar todas as formas numa pirâmide encimada pela Unidade. A Unidade é o ser, o fundamento, a causa, a razão de ser. A alteridade, a diversidade, a multiplicidade é o não-ser, o sem-sentido, o absurdo. d)O ser é o que se vê, o visto, o permanente, o desde sempre, o que se mostra à luz do dia.9 De nada adianta ao homem estar armado de espada ou lança e a cavalo para defender seu gado e sua propriedade do outro homem que, na visão do proprietário, é sempre ladrão e usurpador, se não houver a luz do dia para ver e identificar a propriedade e sua invasão. A luz é a condição para o homem ser. À noite “todas as vacas são pretas” dirá Hegel. Por isso o indo-europeu faz da luz, do dia, o princípio de sua propriedade. 9

Ibidem.


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O dia é “deus”10 , o princípio que permite ao homem dominar. O ser é a luz, o dia, o não-ser é a noite, as trevas, a não-visão. O sol como símbolo da racionalidade e da masculinidade, como nunca tem vigência entre os indo-europeus11 . Na Filosofia Ocidental do Século XX, Jean Paul Sartre reforça a perspectiva visual do conhecer e dominar. Ver é controlar, possuir, manter o outro sob o domínio, mesmo que ele não perceba e imagine estar seguro em sua privacidade, em seu escondimento, em sua liberdade e originalidade. A Sociedade é como um grande olho anônimo que nos controla e tolhe a liberdade. E no anonimato nem pode ser enfrentada, encarada para afastar a dominação. e) A essência de cada coisa é sua figura visual, sua imagem, seu “eidos”. O domínio da natureza se faz pelo conhecimento visual (físico ou intelectual12 ) dessa imagem ou forma, “idéia universal” da qual as coisas são apenas sombras. Essa idéia se escalona desde a forma matemática até o Princípio Supremo do Uno x Díade.13 A dialética é o método pelo qual se ascende ao Princípio Supremo, deixando para trás as sombras do conhecimento sensível e do senso comum. g)O homem (só o homem masculino) a cavalo, com o ferro, defende o gado e a propriedade, à luz do dia. “O homem é por 10

Deus, dia, dyus-pitar, theos, Zeus, são outros tantos nomes atribuídos à divindade na língua sânscrita, e sempre significando luminosidade, condição para a visibilidade. Assim como o dia, deus é o instrumento do homem para ver e dominar sua propriedade. Zeus, cujo nome exprime a essência do celeste, “como Dyaus, conserva os valores onomásticos de “brilho”e de “dia” e, etimológicamente, esse termo está tão relacionado com dios como com o latim dies” ELIADE, Mircea. Tratado de História das Religiões, pg. 109.

11

Cf. ELIADE, Mircea. Tratado de História das Religiões, 161 e ss.

12

Há dois modos humanos de ver: o sensível através do olho e o inteligível (de intus + legere: ler dentro) através da inteligência ou “nous” e o que é visto é ordenado pelo “logos”. Assim o logos formata, ordena, estrutura o conhecimento em frases, discursos, raciocínios.

13

Cf. PLATÃO, Sofista, 242c.


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natureza melhor, a mulher pior; aquele apto para comandar, esta para obedecer”, dirá Aristóteles.14 Das três dimensões da alma humana (a racional, a irascível e a concupiscível) na mulher predomina a concupiscível - da sensorialidade, da paixão, do sentimento, do desejo. Assim também os trabalhadores são dominados pela dimensão concupiscível da vida; a virtude para eles consiste na continência. A irascibiliade própria dos guardiães da cidade tem como virtude a coragem. A racionalidade tem como virtude a sabedoria, insistia Platão. E o homem, dirá Aristóteles, é um animal racional. A educação consiste em domar o desejo e a sensibilidade, dominar a irascibilidade e alcançar a sabedoria racional. O feminino, a sexualidade, a sensualidade, a sensibilidade é negada, assim como toda a corporeidade, refugiando-se o machismo na racionalidade e no domínio. Não há espaço para o feminino na cultura indo-européia. Não há espaço na economia, na política, na cultura e muito menos na religião. A negação, porém, é uma forma de afirmação contraditória, como alienação. h)Xenofobia e etnocentrismo: A Grécia é a síntese entre Ásia e Europa, o umbigo do mundo. Quem não é grego, “o bárbaro é inferior por natureza...e é natural que os gregos dominem sobre os bárbaros”.15 O mito de Prometeu é emblemático para a cultura grega indo-européia. Prometeu, é lucidez, esperteza e inteligência... “os que habitam os países frios e a Europa são cheios de impulsos, mas carecem de inteligência e não fizeram progresso nas artes, razão pela qual gozam de maior liberdade, mas não têm um verdadeiro governo e não são capazes de dominar os seus vizinhos. Os povos da Ásia são inteligentes e hábeis no progresso técnico, mas privados de vivacidade de espírito, de modo que continuam a viver como escravos e servos. A estirpe grega, assim como ocupa uma posição geográfica intermédia entre a Ásia e a Europa, 14

ARISTÓTELES. Política, A 5, 1254 B. 13-14

15

EURÍPIDES, Efigênia em Aulide, v. 1400. Cf. Política, A2, 1252 b 8.


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participa dos caracteres que distinguem os povos de uma e da outra; por isso, é inteligente e de espírito vivo, vive em liberdade, tem as melhores constituições e poderia dominar sobre todos se fosse unida sob uma única constituição”, dizia Aristóteles.16 i)O humano é o homem (masculino) individual, sozinho, enquanto dono (através da ação e do conhecimento visual, lógico, técnico) do gado, da terra, da família, dos trabalhadores, de Deus e de si próprio. A mulher não existe enquanto mulher. Ela só existe no homem enquanto meio, utensílio para que o homem gere filhos. Na Grécia, especificamente, a mulher aparece como a desgraça do homem, castigo que os deuses impuseram ao homem para que ele não pudesse pensar e ser lógico e, assim, dominar o universo e os deuses (Cf. Pândora no mito de Prometeu Acorrentado, como também Jocasta no mito de Édipo o Rei17 ). As funções sociais da mulher ( que não participa da polis e da vida pública; quem decide da vida do filho ao nascer é o homem...), os símbolos sociais mais relevantes ( não há deusas, nem rainhas, só há mulheres de deuses...) mostram a mulher como aquela que não importa socialmente a não ser para gerar filhos, intrigas e guerras. A canção que Chico Buarque de Holanda fez com o título “Mirem-se no exemplo daquelas mulheres de Atenas” reflete muito bem a situação da mulher na cultura indo-européia. j)A racionalidade autosuficiente, distintivo primeiro do homem (o homem é um animal racional, dirá Aristóteles) não predomina na mulher. Platão diz que, dos três tipos de almas (a racional, a irascível e a concupiscível), na mulher bem como nos trabalhadores braçais, predomina a alma concupiscível, nos soldados a irascível e nos homens dirigentes, filósofos, a alma racional. Pela racionalidade (o método) o homem é capaz, sozinho, de alcançar o 16

ARISTÓTELES, Política, H 7, 1327 b 23-33.

17

Cf. KITTO, H.D.F. A Tragédia Grega, especialmente pg. 217 e ss.


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primeiro princípio das coisas pelo qual tudo se explica. Esse princípio último, causa última do conhecimento e da realidade, os indo-europeus denominarão “deus”. k) Deus (theos), como o dia, é o instrumento que o homem usa para pôr ordem em seus pensamentos e ordenar a realidade em vista de sua dominação. Deus, como um humano, é o dono, o proprietário do universo e quer ser dono do homem. Para ser homem é preciso adonar-se, apropriar-se de deus. Deus é um concorrente do homem e além das características do homem (inveja, raiva, alegria, sexualidade, desejo, fome, necessidade,...) ele é imortal. É um homem que não morre, embora, às vezes queira. Quem dá o poder aos deuses, aos homens, à natureza, porém, é a moira, o destino contra o qual não adianta lutar... É interessante observar que os indoeuropeus não tem propriamente sacerdotes (tem adivinhos, pitonisas, vestais...) nem ritos sacrificiais expiatórios ou laudatórios. O homem não pede perdão nem aos homens nem aos deuses, nem os louva: apenas oferece algum sacrifício para que os deuses não se enfureçam contra o homem, não estraguem a vida do homem. A organização social, as leis, a moral, a ética nada tem a ver com os deuses. A religião se reduz a um conjunto de normas morais externas a serem seguidas ou a um punhado de ritos para afastar o azar. A religião é uma espécie de comércio com os deuses (“o pagador de promessas”) e infantiliza o homem, podando-o em sua liberdade, criatividade e racionalidade. O homem se auto-salva pela racionalidade lógica (Sócrates, Platão, Aristóteles) ou pela racionalidade ascética (Buda) superando por si só a ignorância ou os desejos até fundir-se no todo, no nirvana. O homem não precisa nem dos outros nem de Deus ou dos deuses para se salvar e ser homem. Ele se basta, e se basta na medida em que é proprietário de tudo através do conhecimento. A vontade, a decisão, a liberdade não contam por si, são consequência do conhecimento: basta conhecer o bem para ser bom (Sócrates, Platão).


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l) Dualismo antropológico e moral. O homem é um composto temporário de um corpo e de uma alma. A alma é uma entidade divina, que provém do céu, é imortal, é racionalidade (logos) e intelecto (nous) pela qual o homem alcança a universalidade imaterial, os princípios, o divino... Ela está ligada ao corpo (que é mau, prisão e expressão ambígua: sema [prisão] e soma corpo) para castigo e expiação de um êrro que a alma cometeu no céu (cf.carruagem alada: o cocheiro não consegue controlar seus dois cavalos que puxam a carruagem para lados opostos e assim a precipitam no abismo da terra...18 ). O corpo é aparência (maya) e prisão. A alma luta, suspira por se libertar dos grilhões do corpo (fonte do desejo, da sexualidade, da libido, das necessidades materiais, do limite, do pecado...) e ela o consegue através: do conhecimento, da disciplina e ascese (castigos corporais) e finalmente pela morte. A alma que não se purificar através desses processos re-encarnar-se-á novamente19 sem poder fugir da roda da existência (budismo e brahmanismo... as castas, a reencarnação como arma ideológico-política) e se fundir no todo (nirvana). Os desejos são maus, devem ser negados, suprimidos. Pela ascese (e pela morte) o homem se liberta do corpo para buscar os bens do espírito: a contemplação do Bem e do Belo. m) Ser dono e proprietário, porém, não é trabalhar. A riqueza, os bens, não vêm do trabalho, vêm da natureza, do destino. Trabalhar é próprio de quem não possui predominantemente a alma racional. O ócio (otium) e não o negócio (nec-otium) caracteriza o homem. Ócio e racionalidade para os indo-europeus, andam juntos. Por isso os indo-europeus introduzem na história (de todas as culturas ou civilizações que eles invadem) a escravidão como forma sistemática de produção. O “escravo” como prisioneiro de guerra e utilizado em tarefas domésticas existe em todas as culturas, 18

PLATÃO, Fedro, 249.

19

PLATÃO, Fédon, 81 c.


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não, porém, o escravo enquanto força de trabalho no modo de produção. Para isso é preciso a concepção de que um homem possa ser dono, proprietário não só da terra como também de tudo o que há sobre a terra, inclusive dos outros homens. Para isso é preciso entender o outro homem como não-homem, como sem alma, como coisa... E o homem humano, o que vive do ócio não deve sujar suas mãos em tarefas “servis”, rebaixar-se e viver para ganhar o pão e atender necessidades básicas. “Todos os homens que diferem de seus semelhantes tanto quanto a alma difere do corpo e o homem do animal ( e estão nessa condição aqueles cuja tarefa implica o uso do corpo, que é o que eles têm de melhor), são escravos por natureza e, para estes, o melhor é submeter-se à autoridade de alguém...É escravo por natureza quem pertence a alguém em potência ( e por isso torna-se posse da alguém em ato) e só participa da razão no que diz respeito à sensibilidade imediata, sem possuí-la propriamente, enquanto os outros animais não tem nem mesmo o grau de razão que compete à sensibilidade, mas obedecem às paixões. E o seu modo de emprego difere de pouco, porque uns e outros, os escravos e os animais domésticos, são utilizados para os serviços necessários ao corpo” 20 n) É interessante observar que a democracia ateniense (modelo ético e político para todo o Ocidente) era praticada pelos cidadãos (não mais do que 17.000 sobre uma população de 265.000 da Ática cuja capital era Atenas) e na ágora (praça pública) onde nunca se reuniu mais do que 3.000 pessoas que se diziam ociosos, mesmo que tivessem empresas comerciais e as exercessem através de testas de ferro21 . Era uma democracia para alguns, todos eles baseados na escravatura e no trabalho alheio. E se democracia significa igualdade de tratamento dentro do mesmo grupo, Esparta

20

ARISTÓTELES, Política, A 5, 1254 b 16-26.

21

Cf. GARAUDY, R. O Ocidente é um Acidente.


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é melhor modelo que Atenas. Lá todos os mandantes, inclusive as mulheres governavam a cidade quando os homens iam à guerra. o) A historicidade física. Os indo-europeus não têm noção de pessoa senão como indivíduo racional. Não tem idéia de historicidade, pois vivem a lei do eterno retorno do mesmo, tudo compreendido como natureza física. A história como o conjunto de fatos passados (anedotário) que o historiador narra (Heródoto, Tucídides...) não tem um fio condutor que os leve a qualquer futuro. É mestra da vida enquanto ensina que tudo se repete. Os fatos não são únicos, irrepetíveis e pelos quais haja efetiva responsabilidade do homem. É o destino que tudo conduz ao eterno retorno do mesmo...O destino, a moira, a ananké, a necessidade está acima dos deuses e dos homens; a vida do homem e de tudo está presa às garras de sua fatalidade. Na verdade o homem que só é humano na medida em que for dono, proprietário, dominus, basileus, senhor, está tragicamente vinculado ao destino. O homem nunca vence o destino. Só pode obedecer ou tentar ludibriá-lo. O homem, afinal, como diria Sartre é um deus impossível. O sentimento de “nojo” de Sartre, do “trágico” de Nietzsche, da “angústia” de Kierkegaard, de “ser para a morte” de Heidegger enquadram-se nessa apercepção. p) Contraditoriamente o homem que se define como dono, proprietário do gado, da terra, da família e dos outros, de deus e de si mesmo, não consegue apropriar-se do universo porque esse é eterno, incriado, divino, intocável, tabu. A transgressão é a única possibilidade que o homem tem para ser: enquanto tal, porém, o homem deve ofender os deuses e o destino, as leis e, então sucumbe (Cf. a tragédia grega: Édipo o Rei, de Sófocles).22 Mas o erro, a ofensa, a transgressão não estão sob o controle do homem e por isso 22

A maior transgressão é a sensualidade, a sexualidade, a afetividade, a corporeidade para essa cultura machista e patriarcal. O homem se desumaniza quando se deixa conduzir pelos valores que a feminilidade traz. A racionalidade é a única virtude. Cf. BYINGTON, Carlos Amadeu no prefácio à obra MALLEUS MALEFICARUM, O martelo das feiticeiras. Rio, Rosa dos Tempos, 1991 pg. 19-46.


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não há porque pedir perdão, porque arrepender-se, porque louvar... a natureza e o destino tudo determinam. O homem não responde pelo seu erro. Como diz nosso ditado popular “o homem deve agüentar no osso do peito o rojão que o destino lhe dá” sem gemer, sem chorar, porque “homem que é homem não chora, chia como coruja”. Sem amaldiçoar, nem bendizer, simplesmente agüentando. Se a mulher chora e lamenta é porque é fraca, menos humana. O homem deve ser altivo, sobranceiro às vicissitudes que o destino lhe reserva. q) A arte, ao modelo matemático do triângulo isósceles, expressão da idéia (da forma, da essência) perfeita de uma coisa, tem três características: equilíbrio, proporção e harmonia. A verdade é tanto maior quanto mais abstrata for sua expressão (a universalidade, a generalidade, traduzida como a essência de algo). A forma, a figura, a idéia traduzem a realidade e só elas o fazem. A razão é auto-suficiente para alcançar os fundamentos causais e explicativos de tudo: ela se implanta como método. O método da estrita racionalidade lógica é, porém, incompatível com o conhecimento vulgar, o senso comum, os preconceitos e sentimentalismos da plebe. O sentimento, o desejo, a vida, a existência devem ser deixados de lado para se poder atingir a verdade e a realidade. Em síntese: ser é ter (apropriar-se de, ser dono de), ter é poder, o poder se conquista pelo saber, o saber que vale e que conta é o saber lógico e que se faz matemática, que se faz ciência, que se faz técnologia (enquanto domínio da natureza, dos outros, de Deus e de si mesmo). Tudo é utensílio posto à mão para a manipulação. A modernidade será a explosão disso.


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3. Implicações desse núcleo ético-mítico sobre o direito a) Para o indo-europeu, a propriedade é o fundamento de todo o direito (jus utendi et abutendi). Todos os outros direitos derivam da propriedade. As relações sociais, as relações econômicas, culturais, familiares e religiosas derivam da propriedade23 . Por isso o escravo não tem direito. A “capitis diminutio” se faz em função da propriedade. O ideal de justitia também. b) A natureza (a ordem natural, a lei natural) é o fundamento da propriedade, assim como da liberdade, e da organização econômica, política e social. A alma racional (que alguns a têm em melhores dimensões do que os outros) é o fundamento do “animal político”. A natureza humana é diversa para cada segmento de homens: assim uns são, por natureza, escravos, outros, soldados e guardiães da cidade, outros filósofos e condutores do povo. Assim a definição de Direito Natural como “suum cuicumque tribuere, neminem laedere, honeste vivere” (dar a cada um o que lhe pertence, o que é seu, não lesar a ninguém, e viver honestamente) não é definição de Direito Natural e sim a definição indo-européia de Direito. c) Se a natureza diferencia os homens, o jusnaturalismo como fundamento do direito (para os indo-europeus) implica em direitos desiguais. A justiça, como o “atribuir a cada um o que lhe é devido” implica em tratar os desiguais segundo sua natureza e para mantê-los na condição de desgiuais. A exclusão social ou os privilégios nascem da própria natureza. O sucesso ou fracasso social nada mais são do que a expressão da natureza própria de cada ator, de cada agente cuja qualidade natural a sociedade nem sempre reconhece, cometendo assim uma injustiça: tratar os diferentes 23

Processos judiciais que datam das primeiras décadas do século XX e que estão arquivados no Foro de Pelotas, qualificam uns pelo ofício, pela profissão, pelo trabalho e a outros como “proprietários”, simplesmente. Os direitos políticos (votar e ser votado) no Império do Brasil eram ligados à propriedade...


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como iguais, nivelando tudo ou pretender igualar os desiguais fazendo do Direito um instrumento de igualitarização. (Os semitas mostrarão que a justiça não só consiste em tratar desigualmente os desiguais mas, ultrapassar a “igualdade” priorizando os mais fracos, os excluídos). d) O direito, a justiça, a norma nada dizem da ética ou da moral. A ética, a moral são subjetivas, privadas ao passo que o direito e até a religião enquanto fundamento do direito são públicos, formais, objetivos (Cf. F. de Coulanges. La cité antique). Os indoeuropeus insistem em que a racionalidade é o fundamento da ética e do direito; esquecem, porém, que a racionalidade que é fundamento do direito e da ética é a racionalidade dos interesses da classe dominante. É a racionalidade do direito de dominar e, portanto, de excluir. O poder, para eles, é o fundamento do direito. e) O direito, inclusive o “das gentes” é um direito que resulta do fato da guerra. O vencedor tem direito. Os vencidos tem todos os deveres: os impostos (a coerção, a imposição dos vencedores), a colônia (o tributo), o Império (a força dos exércitos e da espada) originam, fundamentam a justiça. O Direito é, na verdade, a autodefesa que a propriedade erige para si mesma, com concessões periféricas aos excluídos, para que a defesa se faça mais eficaz e consentida. f) A liberdade, a decisão, a vontade não são decisivos, fundamentos do direito, a não ser como expressão de domínio, como se verá no projeto liberal da Revolução Francesa. Reiteramos que nenhum povo, nenhuma comunidade, nenhuma pessoa realizou apenas e tão somente o núcleo ético-mítico de sua civilização, nem o núcleo concretizou-se plenamente como idéia pura e distinta. Mas a experiência original, marcante e por isso


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definidora de sua identidade é seu núcleo ético-mítico, inclusive como utopia. E essa será sua maior influência para a História.


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CAPÍTULO III O NÚCLEO ÉTICO-MÍTICO DOS SEMITAS

1. Contexto espácio-temporal Os semitas são um grupo de povos procedentes do deserto da Arábia. Em meados do III milênio aC. invadem as zonas baixas da Mesopotâmia e toda a meia-lua do Oriente Médio até o rio Nilo. A primeira civilização semita é a dos Acádicos (2.500 aC.) que se instalam perto da desembocadura do Tigre e Eufrates, na margem ocidental. “Virão depois os cananeus (XXIV aC.), os fenícios que, no ano 3.000 aC. já haviam fundado Biblos; os babilônicos reinarão sob Hamurabi (1792-1750 aC.) até deixar lugar aos assírios. Por outro lado, os arameus ocuparão a Síria desde o séc. XIV aC., até que os hebreus organizem seu primeiro reino na Judéia com Davi (1010-970 aC.)”. Semitas são todos os árabes em sua maior parte vinculados ao Islão desde Maomé que, ao morrer em 632 dC., já havia unificado a Península Arábica. Até o ano 800 dC os árabes já haviam conquistado todo o norte da África, a Espanha, e todo o Oriente Médio até os confins da Índia. Necessário é, também, não esquecer que o cristianismo tem laços de parentesco cultural com estes povos.1 Assim, os semitas enfrentarão os indo-europeus no confronto cultural mais importante da história humana. Até o ano 800 d.C. podese dizer que houve uma semitização do mundo transformando os impérios romano, persa e hindu, no sacro império de Carlos Magno, no império bizantino dos ortodoxos e nos califados árabes que vão da Espanha ao rio Indo e Tarim2 . 1

DUSSEL, E. Método, pg. 227.

2

Ibidem.


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2. Núcleo ético-mítico dos semitas • Na imensidão do deserto pontilhado por pequenos e salvadores oásis, criando cabras (das quais extrai o leite, o queijo e a carne...), conduzindo caravanas que vão de oásis em oásis no lombo de camelos (que ele domesticou) e com a pele castigada pelo sol diurno, pelo frio noturno e pelos ventos de areia, o semita elabora um núcleo ético-mítico original. • Seu posicionamento fundamental não é como o do indoeuropeu, frente à natureza para dominá-la, mas sua “posição primigênia é o face-a-face (cara a cara) de um beduíno que, na imensidão do deserto, divisa outro homem e espera que se aproxime para poder reconhecê-lo; será preciso esperar que a distância se faça proximidade para poder perguntar ao recém-chegado: Quem és? Seu rosto, curtido pelo sol, pelo vento de areia, pelas noites frias e pela áspera vida de pastor nômade, é a epifania3 não do “outro eu”, mas do “outro homem”, sem similitude comum a tudo o que foi vivido pelo eu até este instante do face-a-face”.4 • O outro é outro de mim. A lógica que me vincula a ele não é a “lógica da totalidade”5 , mas a “lógica da alteridade”, da “outridade”. A resposta que vem do outro vem de onde eu não tenho acesso, onde minha mão não alcança, onde eu não tenho domínio: vem da liberdade. Este abismo insondável que o rosto do outro traduz e esconde (no pudor... penumbra), só me é acessível pela palavra do outro (pela resposta) na qual eu creio. Sem crer, não alcanço o sentido, não alcanço o outro. Não há demonstração, prova, teste, que me garanta o 3

Epifania significa (do grego epi - faino) a aparição em público (de um rei, por exemplo, quando assoma à janela do palácio para saudar o povo reunido na praça), a mostração, a revelação.

4

Ibidem, pg. 227-228.

5

Ibidem, pg,.228.


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sentido da palavra do outro. Não adianta esquadrinhar-lhe o rosto, as impressões digitais, o suor, a adrenalina, o código genético. De nada adiantam os detetores de mentiras... E, crendo na palavra dele, poderei ser enganado, traído. A relação humana na liberdade é lealdade, veracidade, amor, justiça, como pode ser também, traição, mentira, desamor. E, mesmo crendo na palavra do outro esta não me é dada transparente, unívoca com um só sentido. Preciso saber interpretar o que ele quer dizer através do que ele diz e o que ele não diz, nem consegue dizer. O silêncio, antes, durante e depois da palavra situa e fundamenta cada palavra e cada gesto. E o silêncio significativo não se esgota nem se expõe numa palavra ou num gesto. Cada palavra o anuncia e esconde como transcendência, o espaço da alteridade. “O homem semita situa na origem a posição do face-a-face: o homem ante a mulher, o pai ante o filho, o irmão ante o irmão, o habitante ante o peregrino que precisa ser hospedado...”6 • “O mistério do outro revela-se por sua palavra, exigindo justiça”.7 Aquilo que me permite perceber a alteridade é o desamparo, a exclusão, a injustiça da totalidade de um sistema. O sistema (econômico, político, social, cultural e religioso) é o espaço da mesmidade, na qual todos se identificam na segurança do pertencer. O excluído do sistema que clama por um lugar, fende, racha a totalidade do sistema exigindo sua superação para que possa ser incluído. Essa alteridade é negada e excluída pelo pensar indo-europeu. • A essência da palavra, não é a fala, a prolação8 , o proferir, o dizer, o ditar, mas o ouvir, o auscultar, o escutar. Ouvir, escutar, é condição e possibilidade da fala. Quem não escuta não fala. Todo surdo 6

Ibidem, pg. 228. A partícula “ante” não significa apenas oposição, enfrentamento, contra-posição, negação, mas significa novidade, não identificação niveladora, não mesmidade, significa alteridade.

7

Ibidem, pg. 228.

8

De prolatar.


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de nascimento é mudo. Vice-versa não acontece. Ouvir, porém, não é escutar sons, signos... é escutar, acolher o outro enquanto outro. Através daquilo que ele diz, e daquilo que ele não diz, daquilo que ele quer dizer e daquilo que ele não consegue dizer devo escutá-lo também no que ele deve dizer. Por isso escutar é mais ativo que falar. Por isso ouvir é interpretar. E interpretar, segundo os semitas, é dispor-se a acolher a novidade que nasce da liberdade do outro. O real, o verdadeiro, o fundamental, é aquilo que se escuta e não aquilo que se vê como pensavam os indo-europeus. O essencial não é o visto mas o escutado e o escutar.9 • “O sagrado, o divino, nunca é a fysis (a natureza), a totalidade, mas “o outro”, o inominado, a exterioridade, o “nada” como liberdade incondicionada da “pessoa” (Pessoa, de persona: prósopon significa “rosto” máscara que revela e desvela ao mesmo tempo que esconde). A luz só ilumina o rosto, sem desvelar seu mistério”.10 É no rosto, nos olhos, no coração, na presença e na vida do outro homem que o homem encontra o sagrado, o transcendente, o divino. • Deus é o totalmente outro, que se pré-nuncia, fala, revela (e esconde) através do rosto do outro que utiliza a natureza como linguagem. O universo é fala, foi falado, pronunciado por Deus. E o homem foi pronunciado, proferido, prolatado por Deus como fala solene, especial (imagem e semelhança de Deus). A fala coincide com o próprio Deus ( “No princípio era o Verbo, o Verbo estava em Deus e o Verbo era Deus...” (Evangelho de João cap. I.). O homem, à imagem e semelhança de Deus, fala (Gen. 1,26...).11 Deus, Javé, não coincide, porém, com sua fala. O mundo, a história, o homem, são palavra de Deus e por meio dessa palavra podemos ter acesso a Javé. 9

Cf. ZANOTELLI, Jandir. Ontologia do Diálogo, Pelotas, Educat, 1996.

10

Ibidem, pg. 228.

11

Cf. ZANOTELLI, Jandir. A Relatividade do Discurso. Pelotas, 1998, in Revista da UCPel.


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Essa palavra, como toda a palavra, ao mesmo tempo, porém, esconde, vela, encobre o rosto e a presença de Javé. Para descobrir Javé em sua fala (que é o mundo, a natureza, a história) é preciso um processo de interpretação, de hermenêutica existencial e de fé. • O homem é aquele que fala: nomeia (utiliza, organiza, planeja) o mundo, expõe-se ao outro como pergunta (convite...), convoca o outro para o Encontro, através do mundo, na nudez (sem máscara) enquanto passeia com Deus à brisa da tarde.12 Ser homem é falar. A fala, enquanto ouvir, é a essência do humano. E tudo o que o homem faz é linguagem: a economia, a organização social, as relações sociais, políticas, culturais e religiosas, tudo é linguagem. A intersubjetividade como relação comunicativa, é traço característico dos semitas e entre os cristãos a intersubjetividade comunitária.13 • E Javé (Deus) é um só, criador de tudo (= 7) o que existe (do céu = 3 e da terra = 4).14 Nada do que existe é Deus senão Javé. Por isso, o homem não pode adorar (não deve ajoelhar-se diante de, submeter-se a) nada, nem o sol, nem as estrelas, nem o universo, nem homem algum, nem autoridade alguma, nem lei alguma, nem moral alguma, nem tradição, nem a si mesmo... Porque há um só Javé que cria o homem à sua imagem e semelhança, e tudo o mais como palavra, por isso o homem é livre, e o outro homem que lhe é igualmente outro, é radicalmente irmão, “osso dos meus ossos, carne de minha carne”.15

12

Cf. o modelo mítico da radical criação do universo e do homem nos 2 primeiros capítulos do Livro do Gênesis.

13

DUSSEL, El humanismo semita, pg. 48.

14

Nos textos do Gênesis o número 3 representa o celeste, o divino e o número 4 representa o terrestre, a número 7 que é a soma dos dois representa a totalidade. Assim para dizer que o pomar que fora proposto como projeto para o homem era um pomar totalmente irrigado o texto diz que o pomar era irrigado por 4 rios. Para dizer que Deus criou todas as coisas diz que Deus fez o mundo em 7 dias. Para dizer que Matusalém era um homem temente a Deus diz que ele viveu 969 anos (tudo múltiplo de 3).Para dizer que Jó era um homem muito rico diz que ele tinha 800 bois (múltiplo de quatro e zero).

15

Gên.2,23.


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• Javé que criou tudo o que há, cuja presença enche todos os céus, não se mostra ao homem no estrondo gargalhante do poder e sim na brisa silenciosa do rosto do outro que clama por justiça. E a verdadeira religião consiste em amar ao próximo como a si mesmo e a Javé acima de tudo. O julgamento decisivo do homem será: eu tive fome e tu me deste de comer, eu estive necessitado e tu me ajudaste,16 dirá a cada um Javé...Quem diz que ama a Deus que não se vê e não ama a seu irmão que ele vê, é um mentiroso... porque Deus é amor (cf. 1a.Carta de S. João) Quem não ama e não pratica a justiça não é de Deus (1a.Jo, 3,10). Explorar o outro, roubando-lhe o salário é como assassiná-lo e Javé não aceita um sacrifício que é fruto do roubo e da exploração do outro (Eclesiástico 34,21...). O homem, portanto, não encontra a Deus nas nuvens ou na intimidade de si mesmo. Deus, Javé só se encontra quando o homem nu (despido da falsidade e da injustiça) constrói com o outro homem um mundo fraterno... Então todos os gestos serão sacramento de comunhão com os outros e com Deus, e por isso, realização de si mesmo. Os gestos, as palavras, as ações significam e realizam o que significam. Todo o universo, todos os entes e toda ação é para o homem sacramento (palavra, gesto sensível que significa e realiza o encontro, lugar de encontro) do outro homem e de Javé. E tudo será sacramental. Assim o corpo, o pão que se ganha e se reparte a cada dia, o perdão, a profissão e os serviços, a sexualidade, o morrer. A vida que o homem realiza e por isso celebra. Toda a vida, toda a cultura é assim linguagem e sacramento. • O homem é radicalmente chamado, vocado, convidado para o bem. O mal, a traição, a mentira, o encobrimento, embora seja fato histórico contundente e esmagador, no entanto não define a essência e a natureza do homem. Simbolicamente: não há casamento possível entre a serpente (símbolo da perversidade e do mal) e a mulher (a descendência do homem). O homem não pode ser identificado pura e simplesmente com o mal. O homem é aquele que vive da Esperança: um dia haverá em que a descendência da mulher esmagará a cabeça da serpente que 16

Evangelho de Mateus, 25, 31...


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permanentemente lhe procura morder o calcanhar.17 Não acreditar na recuperabilidade do homem ante o mal, declarar o homem como definitivamente mau, incorrigível, é negar o humano para todos os homens, é negar Javé e sua Promessa de redenção que gera a Esperança do homem e do humano. Por isso a História é a realização da Promessa que nunca se esgota numa realização concreta e finita mas que, como Esperança baseada na fidelidade de quem promete, alimenta a superação permanente de toda concreção histórica. • Não há lugar para o dualismo antropológico ou ético como entre os indo-europeus. O homem é uno: não é feito de dois pedaços, duas partes, um corpo e uma alma.18 Há integração entre animus e anima, entre afetividade e racionalidade, entre trabalho e festa, entre finitude e transcendência. Por isso não há que se falar em imortalidade ou, pior ainda, em reencarnações da alma. Há sim a Redenção, a “ressurreição da carne” , como os cristãos proclamam ao final de seu credo. O semita, e dentre eles os cristãos, nunca falam de alma como uma parte do corpo. Alma, para eles, significa homem. O homem, como diz S. Paulo, pode ser carnal ou espiritual, mas é o homem inteiro, uno e não é um pedaço dele que é carnal ou espiritual. Quando os cristãos traduziram a mensagem cristã em categorias da filosofia grega, muitos equívocos aqui foram introduzidos (o corpo como parte má que deve ser castigada para libertar a alma...) A teologia cristã como teologia da história da revelação de Deus nos fatos históricos (Kayrós) passa então a ser uma teologia sistemática, racional, com argumentos à maneira grega.19 Assim também, para o semita, a ação do homem é una. Não há como nem porquê separar o público do privado, o subjetivo do objetivo, o moral e o legal. A subjetividade é inter-subjetividade 17

Gn 3,15.

18

DUSSEL, El humanismo semita, pg. 22.

19

Cf. DUSSEL, Desintegración de la Cristiandad Colonial y liberación, pg. 25.


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comunitária. Assim a economia, a política, a educação, a organização social, a paternidade, a maternidade, a sexualidade ou são sacramentos de comunhão com os homens e com Deus ou são traição, pecado, negação do outro homem e de Deus e por isso negação do próprio homem. O homem espiritual não é aquele que nega o corpo, que nega os valores econômicos, familiares, estéticos...(tidos como materialismo) mas é aquele que faz de todos esses valores o gesto sacramental da comunhão. • Temporalidade da existência humana e do cosmos: Historicidade. O mundo e a história tem um início radical, com uma promessa e um fim radical, uma escatologia. A tensão escatológica é suporte e a força da historicidade.20 Criado do nada, o mundo e o homem têm uma vocação e uma destinação: a parusia, isto é, a manifestação plena, face à face de Javé a cada homem e de cada homem com todos os homens (a manifestação do Reino de Deus). A fidelidade de Javé à sua palavra empenhada (em cada realidade criada, em cada gesto histórico e, derradeira e definitivamente em Jesus Cristo) é a garantia da Esperança. O impacto da Esperança na História, ao mesmo tempo que relativiza cada fato e momento como o “ainda não” de sua derradeira verdade, ao mesmo tempo plenifica e faz cada fato e gesto ultrapassar-se a si mesmo, antecipando a parusia no “aqui e agora” e conferindo a cada fato um significado definitivo e irrepetível. Esse impacto da Esperança21 dá sentido à nossa busca da Verdade; dá sentido à necessidade de superação de toda a dialética enquanto “espera de toda síntese, no adiamento do desenlace de todas as dialéticas”.22

20

DUSSEL, El humanismo semita pg. 88. Cf. Também TRESMONTANT, Claude, CHIFFLOT, Th.G, BULTMANN, sobre Teologia e História.

21

Cf. RICOEUR, Paul. História e Verdade, pg. 16-17.

22

Ibidem, 16.


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E a história será julgada em cada gesto pela Palavra de Javé que garante a Esperança e pelo Último Dia em que o Reino de Deus se fizer parusia.23 Se o homem é livre, responsável até o fim por seus atos que se praticam cara-a-cara, face-a-face, com o outro homem, os fatos se tornam irrepetíveis, insubstituíveis, e acontece a historicidade. O semita introduz na história dos homens a categoria revolucionária da historicidade. Não há lei do eterno retorno, não há reencarnações que nos livrem da roda do tempo e da vida, há sim a história que, nascida de um sonho acalentado de Deus (“O Espírito de Deus pairava sobre o abismo” Gen 1,1.), aponta para a parusia escatológica da plenitude dos tempos. E, sendo todos os fatos historicizados, nenhum fato histórico se torna absoluto como se nele acontecesse o fim da história, a culminância de tudo. E nem há o cabalístico fim dos tempos marcado para o fim de cada era, de cada século, de cada milênio. Se um só é o Senhor do universo e da história, o homem não pode ajoelhar-se, render-se, submeter-se a nenhum projeto como se ele fosse definitivo. Quando Roma dizia de si mesma ser imortal, divina e seu imperador um deus, os cristãos morriam mas não reconheciam, não ajoelhavam, porque um homem que se ajoelha diante do que quer que seja, que não Javé, deixa de ser humano, nega-se a si mesmo. A civilização ocidental, o Estado de Cristandade, pretenderá, depois, transformar-se na Civilização, no Cristianismo como tal e não como uma das expressões, limitada, precária, relativa do Reino de 23

“O Último Dia, para a filosofia, não pode ser o sonho de qualquer happy end no horizonte fantasmático de nossos combates; é nesse sentido que o “Reino de Deus está próximo”; é essa proximidade que mantém aberta a história. (...) O Último Dia funciona como idéia-limite no sentido kantiano...Esta fixação de um limite quebra a pretensão dos filósofos de declarar o sentido coerente de tudo quanto vai acontecer. Estou sempre deste lado do Juízo Final; ao estabelecer o limite do Último Dia, destituo-me de minha cátedra de juiz último. Assim, a última palavra não é dita em lugar algum: não sei ainda como concordam o Dizer e o Fazer, de que modo coincidem a verdade da percepção, a verdade científica, a verdade ética etc...” RICOEUR, Paul, História e Verdade, pg. 16-17. O impacto da Esperança indica à Filosofia e à reflexão os limites e as possibilidades. A precariedade da reflexão quando presa a si própria e ao Princípio Fundante colocado por ela mesma (como proprietária auto-suficiente) transforma-se em “ racionalizações mentirosas” e num agir violento. Nesta Esperança a Filosofia é protegida contra ela própria em suas fontes e sua motivação profunda. Cf. pg. 18.


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Deus. Pretenderá dizer que sem ela não há salvação e que a salvação consiste no projeto que ela tem em mãos aqui e agora. E em nome desse ídolo imolará muitas vítimas... O fato histórico é prenhe de significação, palavra, sinal de Deus que fala. É preciso saber interpretá-lo; e sua hermenêutica não deriva do raciocínio e da demonstração ao estilo indo-europeu. Assim os fatos econômicos, os fatos e relações políticas e sociais, as criações culturais e artísticas, ao mesmo tempo que expressam o homem, também falam de Deus que propõe a esperança e julga o fato e seu valor. • A comunidade e a inter-subjetividade comunitária é outra característica própria do ethos semita. O homem não é indivíduo que possa ser pensado isolado. É pessoa, relação subsistente,24 comunhão. A comunidade não é apenas o comum do pré-semita, mas uma realização da liberdade, um reconhecimento dos outros, a epifania do Reino de Deus (cf. Atos dos Apóstolos,2,42...). Ninguém se salva sozinho. Pertencer a um povo, participar da promessa e de sua esperança buscando a perfeição numa e duma comunidade enquanto profeta que se compromete com a libertação de sua comunidade é ser servidor de Javé.25 • O cristianismo, entre os semitas, também não labora com o conceito de propriedade exclusiva dos bens. “Sobre toda a propriedade recai uma hipoteca social” (João Paulo II). Os homens são depositários dos bens que Deus destinou a todos os homens.26 E ser depositário infiel é pior que ser ladrão. Em Israel, a cada 7 anos eram perdoadas as dívidas e a cada (7 x 7 =) 49 anos as terras retornavam às antigas famílias que, por dívidas, lhes tinham perdido a posse.

24

Cf. Tese de doutorado de Carlos Cirne Lima Die Personalen Glauben.

25

DUSSEL, Desintegración de la Cristiandad...pg. 42.

26

Cf. Constituição Pastoral Gaudium et Spes produzido pelo Concílio Vaticano II.


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Em síntese, o núcleo ético-mítico dos semitas, traz para a história a concepção de alteridade pessoal que permite compreender a história, o mundo, a vida, Deus, a sociedade a partir da liberdade e da participação. Os primeiros cristãos tinham, na pessoa e na mensagem de Cristo o mais avançado e exigente modelo dessa perspectiva, muito embora nas limitações econômico-político-culturais de seu tempo. Quando o cristianismo se fundiu com o Império Romano e com a Filosofia Grega, apareceram as contradições do núcleo ético-mítico semita em confronto com o do indo-europeu. As comunidades cristãs antes da cristandade eram o lugar da comunhão e da liturgia. Eram numerosas. Havia mais de 2.000 no mediterrâneo. Havia grande liberdade na invenção litúrgica. Cada comunidade tinha sua liturgia. E é por isso que não existia o que depois se chamará “catolicismo popular”, porque toda a devoção do povo, do pequeno povo, podia expressar-se na liturgia central. Cada comunidade tinha sua liturgia; havia famílias numerosas de liturgias. Os grupos cristãos, comunidades de base, reuniam-se para as mediações litúrgicas partindo de esquemas muito simples, que preenchiam, porém, com sua vida cotidiana, segundo a diversidade comunitária. Estas comunidades de base eram pequenas. Todos se conheciam uns aos outros e cada um podia repartir com todos seus sofrimentos e suas alegrias, suas necessidades e sua generosidade. De um ponto de vista filosófico e teológico, produz-se aos olhos daquelas comunidades, o confronto de duas compreensões do existir e do ser. Por um lado os indo-europeus: cuja compreensão do ser é, se assim pudéssemos resumí-la, “o que está presente e permanente ante os olhos”; o ser é presença e permanência; isto, para os gregos era a ousia. E como o ser, ao final, é o uno, os indo-europeus tem todos uma como tensão para o panteísmo. Por outro lado, e contra essa visão, está o pensamento judeu-cristão. Judeu porque os cristãos da primeira hora eram, em grande parte, judeus e porque, metafisicamente, os cristãos


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não trouxeram novas teses. A criação, a visão de homem e de história do cristianismo é judia. O que o cristianismo aporta é uma radicalização antropológica em Jesus Cristo; é uma nova etapa antropológica dentro da tradição judaica; o cristianismo, porém, não aporta novidade metafísica a um nível radical. O que há é um choque, talvez o mais interessante da história universal. A comunidade mediterrânea viveu essa experiência fundamental desde dentro da cultura helenística. Necessitou “refundá-la” (dar-lhe nova base), isto é, fê-la transcender seu horizonte de compreensão indo-européia e grega do ser (que para eles era o último) e traçou para ela um outro horizonte compreensivo. Ao traçar-lhe, outro horizonte, transformou-a absoluta e radicalmente, porque para o grego o ser cósmico é eterno e divino. Para o judeu-cristão o ser cósmico é compreendido como criado, e a partir daí, tudo muda. Tudo, absolutamente, inicia como novidade. Este cosmos divino (para os gregos) é profanizado e dessacralizado pelos cristãos. A lua deixa de ser deusa para transformar-se num astro criado a serviço do homem. O próprio sol, a terra, os astros, o imperador... Esta profanização do cosmos é a base do surgimento do mundo moderno, do nosso mundo. Jamais o homem teria chegado à lua se não tivesse antes produzido essa revolução teológica. Esta fundamental revolução na história da humanidade é produzida por aqueles cristãos perseguidos do século II, época definitória e importante, e que deveríamos voltar a estudar com muita atenção pois, é possível que hoje nos encontremos em situação similar àquela. A situação do pensador cristão, hoje é muito parecida com a de Justino, Atenágoras, Taciano.27 Não se pode dizer que o núcleo ético-mítico dos semitas tenha sido vivido em sua integralidade por alguma de suas civilizações e muito menos pelo conjunto de todas elas. Muitas vezes esse núcleo é vivido por alguns desses povos como contradição e negação. Não se pode, no entanto, negar que essa experiência primigênia semita tenha sido fundadora da cristantade em suas raízes e suas utopias. Por isso o 27

DUSSEL, Descristianización...pg. 46.


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núcleo ético-mítico dos semitas permanece como critério crítico de suas próprias realizações, máxime quando nascer o Estado de Cristandade.

3. Implicações da concepção semita para o direito

a) Hammurabi No início do segundo milênio antes de Cristo, os amorreus, semitas como os acádicos que já haviam se estabelecido às margens do rio Eufrates por volta de 2.500 aC., invadem também a região do Sumer e estabelecem sua cidade e centro cultural em Babilônia, um pouco ao norte de Acad tendo como xeque Sumuabum. Seu quatrineto Hammurabi (1728-1686 aC.) levou a civilização babilônica ao apogeu. Exímio administrador público procurou implantar “o direito e a ordem no país” num “esforço enorme de fazer reinar a justiça em seu reino. Ele mesmo fazia questão de ser a última instância nos casos de justiça e qualquer cidadão tinha o direito de recorrer ao rei”.28 O Código de Hammurabi que é posterior ao de Urukagina de Lagash (do terceiro milênio antes de Cristo), posterior também à coleção de leis do rei Ur-Nammu (aprox. 2050-2032 aC), posterior também ao código de Bilalama de Eshnunna (séc. XIX aC) e ao de Lipit-Ishtar de Isin (1875-1865 aC.), tem um prólogo, um corpo de leis e um epílogo. No prólogo Hammurabi apresenta-se como o soberano chamado pelos grandes deuses Anum, Enlil, Shamash e Marduk “para fazer surgir a justiça na terra, para eliminar o mau e o perverso, para que o forte não oprima o fraco, para, como o sol,... iluminar o país”.29 No epílogo reprisa que essas leis visam a que “o forte não oprima o fraco, para fazer justiça ao órfão e à viúva, para proclamar o direito do país 28

BOUZON, E. O Código de Hammurabi, 2a. Ed. Petrópolis, Vozes, 1976, pg. 11.

29

Código I, 30 in BOUZON, pg. 20.


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em Babel...para fazer direito aos oprimidos” (Código, XLVII, 60-70). “Que o homem oprimido, que está implicado em um processo, venha diante de minha estátua de rei da justiça, e leia atentamente minha estela escrita e ouça minhas palavras preciosas. Que minha estela resolva sua questão, ele veja o seu direito, o seu coração se dilate”.30 As leis 1. protegem com severidade a lisura do processo, a veracidade das testemunhas, punem os delitos praticados contra a prestação da justiça, (a ordália é admitida, a pena de morte é a sanção para muitos delitos, e a “lei de Talião” se insere como equilíbrio das partes: olho por olho dente por dente); 2. Leis que regulam o direito patrimonial; 3. O direito de família e herança; 4. O direito penal para punir lesões corporais; 5. Direitos e obrigações e convenções e especialmente para Médicos, Veterinários, Barbeiros, Pedreiros, Barqueiros; 6. Leis que regulam preços e salários; 7. Leis que se referem à escravatura. A verdade, a justiça, o direito não nascem da vontade, do capricho do homem, mas são inspirados, ditados por Deus. Os valores transcendem os fatos e os capricchos do homem. Na estela aparece o deus Marduk entregando o código a Hammurabi como na Bíblia Javé escreve em tábuas de pedra os dez mandamentos para Moisés. O direito não é vivido como consumação ideológica (justificativa dos interesses de quem edita e aplica a lei) mas como corretivo, como contra-ideologia para permitir que os excluídos do sistema possam ser reconhecidos e ter abrigo no sistema, apesar do sistema. O direito é endereçado prioritariamente para proteger os excluídos, para que os fracos não sejam oprimidos. b) Os hebreus “Para os semitas a justiça é menos uma atitude passiva de imparcialidade do que um engajamento ‘apaixonado’ do juiz em favor daquele que tem o direito, determinando, segundo o caso, a condena30

Código XLVIII, 10-20, in BOUZON, pg. 109 -110.


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ção ou a libertação antes que uma posição neutra e ambivalente: “fazer a justiça”.31 Os 10 mandamentos, estupenda síntese do direito existente e, ao mesmo tempo, projeção, programática constituição de um povo, que Moisés conduz do cativeiro para uma terra de liberdade, resumem-se em dois: “Percebendo que ele havia calado os Saduceus, os fariseus reuniram-se em grupo e um deles, para embaraçá-lo, perguntou: Mestre, qual é o maior mandamento da Lei? Jesus disse: Amarás o Senhor teu Deus de todo o teu coração, de toda a tua alma e de todo o teu espírito, eis o maior e o primeiro dos mandamentos. O segundo lhe é semelhante: amarás teu próximo como a ti mesmo. Nesses dois mandamentos se resume toda a Lei e os Profetas” Mt, 23, 34-40. O critério último da moral e do direito é a proteção do pobre e do fraco (órfão, viúva e estrangeiro) do doente, do injustiçado, do excluído... Is. 58,6 e 61,1-2. Esse será o critério definitivo de julgamento de toda a história e de toda a ação: “tudo o que fizestes ao menor (mais humilde, mais desamparado) dos meus irmãos foi a mim que o fizestes” Mt, 25, 31-46. Sem essa priorização não há justiça nem direito para os semitas hebreus e cristãos. É por isso que eles criam vários institutos jurídicos, como o perdão das dívidas e o retorno das terras às famílias que delas foram privadas, por dívidas, a cada 49 anos: o ano sabático 7 vezes 7. Por isso os pobres tem direito a recolher o que sobra ao final das colheitas... Por outro lado, o monoteísmo absoluto que eles professam relativiza o universo, a lei, os sistemas, a autoridade de quem quer que seja, possibilitando a liberdade pessoal e a igualdade fraterna. Por isso unem ética e direito de tal forma que não há possibilidade de justiça sem misericórdia. E a misericórdia não é apenas compaixão, pena, condescendência do mais forte para com o mais fraco. É sim reconhecimento da dignidade pessoal para além de toda circunstância econômica e política. O homem é depositário dos bens que Deus criou 31

DUFOUR, Xavier Léon. Vocabulaire de Theologie Biblique, Paris, Cerf, 1962, pg 516517.


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para todos os homens e em benefício de todos os homens. “Sobre todos os bens recai sempre uma hipoteca social”. Para os semitas e especialmente para os hebreus o valor ou os valores que orientam a organização do mundo (econômico, político, social, familiar...inter-pessoal, histórico) não são fruto da elaboração, da criação humana. A narração mítica da criação do mundo (Gn.1 e 2) situa a fala do homem como derivada do criador (do qual o homem é imagem e semelhança) e a estruturação do mundo em forma de pomar, totalmente irrigado (com 4 rios) e com todos os frutos possíveis, centrado (centro significa critério, valor) na árvore da ciência (ciência é mais que saber ou conhecer, mas produzir o conhecimento desde si no encontro com o outro) do bem e do mal. “Podereis comer de todos os frutos do pomar, mas não tocareis nos frutos da árvore da ciência do bem e do mal, pois no dia em que deles comerdes, indubitavelmente morrereis”(Gn 2, 16-17). A história do crime (Caím e Abel) e da exploração de um grupo ou classe sobre outro grupo, do homem sobre a mulher, bem como a história da ética, derivam do fato de o homem ter posto a mão no critério de organização da vida. O mundo, a vida, a história são palavras (proferidas, prolatadas por Deus) e trabalhadas pelo homem (enquanto descoberta, ausculta, acolhimento, audição.. “Quando Javé Deus criou a terra e o céu não havia ainda nenhum arbusto nos campos sobre a terra e nenhuma erva tinha crescido nos campos, pois Javé não tinha ainda feito chover nem havia homem que cultivasse o chão” (Gn. 2, 5). A erva, o fruto, a história dependem, pois da chuva (que vem do céu, na visão cosmológica de então) e do braço do homem. A construção do mundo (de toda obra cultural do homem) deriva de dois fatores inseparáveis: a chuva e o braço do homem (a inspiração divina e o trabalho do homem). O valor como critério não tem apenas a dimensão da pretensão, da vontade, da mão (que manipula) do homem (de um ou de todos os homens). O valor ultrapassa a veleidade do homem e o convoca para além de si mesmo, para o outro que, na nudez (de todas as máscaras e subterfúgios) se encontra com o homem passeando com Deus à brisa da tarde, num


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pomar totalmente irrigado e com todos os frutos. Essa utopia (aquilo que ainda não tem lugar mas que é necessário, é preciso que o tenha) dos semitas, colocada como proposta e esperança, do homem que, através da fala articula, nomeia, domina o universo com o outro homem e faz de tudo um pomar com todos os frutos, estruturada à base do valor do Encontro realizado na nudez com Javé, permitiu pensar o ético e o jurídico da forma mais crítica (profética) de que a humanidade teve conhecimento. É bom salientar sempre de novo que a experiência histórica dessa utopia, mesmo no cristianismo, teve a limitação, a precariedade das circunstâncias em que se realizou e não pode ser pensada apenas como identificada com essa ou essas experiências. O Estado de Cristandade (enquanto identificou e fundiu a ética semita com o Império Romano) foi até certo ponto negação dessa utopia. O “pomar”, o paraíso, a sociedade perfeita foi identificada com a cristandade medieval (Imperial, civilizatória e salvacionista) que deveria ser implantada em toda a terra para que resultasse “um só reino e um só pastor” (na interpretação ideológica de Felipe II). Nesse sentido a própria obra de Thomas Morus (Utopia, 1516) é uma denúncia da morte daquela esperança semita. Descobrir o valor, que aparece ao homem como novidade, como surpresa e que o desloca para fora de seu mundo e de sua vontade egocêntrica, é não só tomar conhecimento dele, ter notícia dele, mas envolver-se com ele, e fazê-lo práxis (guia, fundamento da obra cultural) de sua ação tanto em relação com a natureza quanto com o outro homem. O valor não se descobre senão existencialmente, praxicamente, e nunca como teoria, conceito, idéia universal (tão ao gosto dos indoeuropeus).


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O estado de cristandade

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CAPÍTULO IV O ESTADO DE CRISTANDADE

1. Aspectos gerais O Estado de Cristandade é, por muitos, confundido com o Cristianismo. O Estado de Cristandade não é, porém, nem sinônimo de Cristianismo, nem de experiência semita. O Estado de Cristandade, herdeiro do império romano indoeuropeu que se fundiu com o cristianismo (semita) é uma totalidade institucional econômico-político-cultural-religiosa constitutiva, emblemática, cerne da identidade da “Civilização Ocidental”, também chamada de “Civilização Ocidental e Cristã”. O estudo da Modernidade e pós-modernidade só é possível se mediada pela compreensão da constituição, da história e da crise do Estado de Cristandade. O Estado de Cristandade não é um fenômeno apenas religioso, próprio da Idade Média européia e confinado àquele período histórico. Ele é, na verdade, o horizonte interpretativo de toda a história do Ocidente, da constituição da Europa renascentista, moderna e contemporânea e, conseqüentemente, de toda a “civilização” que a Europa esparramou pelo mundo em forma de religião, ciência, tecnologia, economia, política e organização social. É impossível entender o liberalismo, o neo-liberalismo, o socialismo, o positivismo, o existencialismo, as ciências modernas bem como o mercantilismo, o capitalismo industrial e pós-industrial, a globalização, o mercado e a marginalização nas divisões do mundo, dos mercados e da renda interna a um país, sem os conceitos, valores, sem o núcleo ético-mítico do Estado de Cristandade. Impossível entender os conceitos de democracia e de partici-


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pação, de subjetividade e comunidade sem essa mediação. Para isto, é preciso acompanhar o nascimento, a estruturação e a história do Estado de Cristandade desde o início. Ele nasce como fusão do Império Romano com o Cristianismo e se estenderá, como totalidade em si mesma e para si mesma, até o século XV e, tumultuado em suas contradições, até os dias de hoje. A Igreja cristã entendida em suas funções eclesiais (função cultural ou simbólica, função pastoral e função profética), como em suas estruturas eclesiásticas (como as eclesiástico-políticas, eclesiástico-sociais, culturais etc), articulou-se com o Estado e com a sociedade romana (e depois com a Europa e com todo o mundo ocidentalizado), num tipo de relação de inclusão e dependência, que denominaremos de Estado de Cristandade. A realidade social em todos os seus níveis: o econômico (a produção e reprodução material da vida), o político (a sociedade política, fundamentalmente o Estado com seus poderes legislativo, judiciário, executivo, burocrático, policial e militar), o social (a família, os estamentos sociais, as diferentes organizações profissionais, de lazer, esportivas), o cultural (a escola e os meios de formação permanente, a arte, os meios de comunicação) e o religioso (as estruturas hierárquicas e de base, com sua tríplice dimensão: cultural/simbólica, pastoral e profética),1 do Império romano e do Cristianismo se fundirão gerando um novo modo de consciência e de realidade que será a matriz de todo o pensar e agir no Ocidente: O Estado de Cristandade. O Império Romano que conquistara e sucedera o Império Helênico (246aC.), herdando a cultura indo-européia grega e dominando toda a orla civilizada do Mediterrâneo, por volta de 250 dC mostra sinais evidentes de decadência e desmoronamento (o Império Romano finda em 476 dC). Os fatores desse declínio serão adiante abordados.

1

RICHARD, Pablo. Morte das Cristandades e Nascimento da Igreja. S. Paulo, Paulinas, 1982, pg. 11.


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Os cristãos, que sofreram, até o ano 300, nove grandes perseguições massivas do Império Romano, (desde a de Nero em 68 dC) já se haviam infiltrado na filosofia, na política, na estrutura e organização do Império a ponto de se tornarem massa crítica de muita importância, muito embora sua intermitente clandestinidade. Aos poucos a ética semita enfrentará a estrutura do Império Romano e o mundo todo conhecido, formando com ele unidades, totalidades, “ecúmenes” que marcarão a história posterior. Os semitas, em confronto com os indo-europeus (e ambos em confronto com os pré-semitas), criam três grandes totalidades civilizatórias que, entre si disputam o poder até 1571dC:2 a cristandade bizantina, a cristandade latina e o mundo islâmico. a) A cristandade bizantina. Constantino funda Constantinopla em 330 dC. como sua residência e esta é tomada pelos turcos siberianos em 1453. Bizâncio, “a segunda Roma, esplendorosa já com Teodósio (379-395) e com Justiniano (527-565), à sombra da igreja de Santa Sofia, chega com Heráclius (610-641) até o coração da Mesopotâmia e conquista o império sassânida; é a sucessora do império romano indo-europeu. “Os ‘padres gregos’ (bizantinos: os primeiros grandes teólogos) da Igreja significaram o transfusão da ontologia da totalidade física (grega) na meta-física da alteridade pessoal, caindo, no entanto, na ratoeira de uma profunda helenização”.3 As categorias gregas do conhecimento centradas na visão, na forma, nos princípios são o oposto das categorias semitas do ouvir, da alteridade, da

2

A Batalha naval de Lepanto entre Cristãos e Turcos em 1571 dC. eliminará a frota maometana, e com ela a influência turco-árabe, até sua reorganização através da criação da OPEP (Organização dos Países Exportadores de Petróleo) em 1964. Nesses 400 anos os turcos e árabes se constituíram em periferia da Europa, invertendo-se o papel de centro-periferia até então exercido por eles.

3

DUSSEL, Método, pg. 228-229.


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confiança e da historicidade. Lembremos que a igreja de Santa Sofia em Bizâncio, começou a ser construída em 531 e é a primeira igreja totalmente inspirada na perspectiva cristã.4 Hoje é mesquita dessa capital turca que se chama Istambul. A cristandade bizantina separar-se-á da cristandade latina em 1054 originando as igrejas ortodoxas que se espalharão pelo leste europeu e pela Rússia. b) O mundo islâmico é fundado por Maomé ( que vive entre 506-532) e seguido pelos “califas”. Conquistada Meca em 623, e que será a capital do islamismo, unificada a Arábia com suas 35 tribos até 630, conquistando Bostra (634) e Yarmuk (636) o Islam toma, também nesta data, a Palestina. Alexandria (ao norte do Egito), é tomada em 643, e sua famosa biblioteca incendiada. Pouco depois é a vez de Damasco no Oriente Médio. Em 711, depois de conquistar todo o norte da África, o Islam ultrapassa o estreito de Gibraltar e invade a Espanha, sendo detido em Poitiers, depois dos Pirineus e já próximos a Paris, por Carlos Martel, rei dos francos, em 732. Os árabes islamitas ficarão na Espanha até 2 de janeiro de 1492.5 O mesmo exército que conquistou Granada (o último reduto árabe na Espanha), em janeiro de 1492, em outubro chegará à América, com Colombo. A mesma Espanha que se constitui expulsando os árabes, descobre e invade a América. Transposto o rio Indo (limite ocidental da Índia), os maometanos dominarão e articularão, com suas caravanas de comércio que vão desde a China até o Atlântico, os povos ao redor do Mediterrâneo, do mar Vermelho e do Oceano Índico. A dinastia dos Abássidas de Bagdá (750-1258) pode, com razão, considerarse rainha do mundo.6 4

Em forma de cruz como o lugar da liturgia, de tijolos crus por fora e com a beleza toda no interior, deformando a forma e desfigurando a figura (como no Cristo Pantocrator que, em sua figura esguia, seus olhos descomunais impressionam), integrando a natureza vegetal, animal, humana e tudo em forma de oração.

5

SUESS, 1992, pg.7.

6

DUSSEL, Método, pg. 229.


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c) A cristandade latina Com sede em Milão e depois em Roma, esta cristandade abrangerá toda a Europa ocidental e todo o mundo europeizado a partir do século XV, pelo projeto imperial salvacionista que integrará, em suas entranhas, a América (do Norte e do Sul), a África, especialmente a sub-equatorial, a Ásia e Oceania. Daqui por diante denominaremos de Estado de Cristandade a Cristandade Latina que manterá intercâmbio e conflito com a Cristandade Bizantina.

2. Os primeiros cristãos (até 313 d.C) Os primeiros cristãos, logo após a morte e ressurreição de Cristo, e em seguida ao Pentecostes, porque pregam aberta e corajosamente a mensagem e a pessoa de Jesus são perseguidos, em Jerusalém. Dispersam-se por todo o mundo conhecido de então, especialmente pelo vasto Império Romano que ia do Atlântico à Índia. As primeiras comunidades cristãs eram assim caracterizadas: “Os cristãos mostravam-se assíduos ao ensinamento dos apóstolos, fiéis à comunhão fraterna, à fração do pão e às preces. O temor de Deus dominava todas as mentes: numerosos eram os prodígios e sinais praticados pelos apóstolos. Os fiéis punham tudo em comum; vendiam suas propriedades e seus bens e repartiam os valores obtidos entre todos segundo as necessidades de cada um.... tomavam suas refeições com alegria e simplicidade de coração... louvavam a Deus e tinham a simpatia de todo o povo. A cada dia o Senhor acrescentava novos fiéis...”7 A comunidade era o centro da vida dos primeiros cristãos. Uma profunda convicção na pessoa e na proposta de Cristo, uma fé profundamente enraizada pelo catecumenato (3 anos de catequese 7

Atos dos Apóstolos, 2, 42-47.


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e acompanhamento), faziam com que o batismo fosse quase que um pacto comunitário de sangue sobre o túmulo dos mártires abatidos pelas perseguições. A fé, a Eucaristia e a caridade alimentavam o monoteísmo desses homens e mulheres que não cediam ante às ameaças do Império e do poder. São impressionantes, neste sentido as cenas, na época das perseguições, que revelam os cristãos sendo presos e mortos porque não sacrificavam aos deuses, ao deus imperador, porque não ofereciam um grão de incenso sequer a eles, nem comiam das carnes dos sacrifícios. Guardavam a convicção de que um homem que se ajoelha, que se dobra diante de um ídolo,8 trai não só a fé religiosa mas a sua humanidade. Deixa de ser homem, se desumaniza. Este monoteísmo renitente, radical, insubmisso, inconformista, profético, era visto, pelos donos do poder romano, como intolerância, oposição, subversão, resistência a todo o projeto do Império Romano. No século IV dC, S. Nilo recomendava aos cristãos: “Sede simples em tudo, na vossa existência, no vosso vestuário, nas vossas palavras, nos vossos gestos, nas vossas relações com o próximo. Tende em vista a moderação e desprezai a riqueza. Sede bons e afáveis para com vossos irmãos, sem rancor para com os que vos ofendem, humanos e complacentes com os humildes. Velai por aqueles que estão a braços com a dor, com as mágoas e com a provação. Não desprezeis absolutamente ninguém. Sede amáveis, alegres, honestos e expansivos para com todos”.9

8

Ídolo é uma realidade, objeto ou entidade finita, limitada, criada e transformada em divindade, em absoluto. Divinizando um objeto opera-se uma tríplice alienação: o mundo relativo e finito perde sua finitude e relatividade inclusive como manifestação sacramental do absoluto; Deus é negado como transcendência; e o homem se faz escravo e dependente de sua própria criatura. Por isso, para um idólatra, é impossível ser fraterno ou reconhecido como igual ao outro: só admite a relação de senhor e escravo no sentido mais profundo. Ídolo pode ser um objeto, uma pessoa, uma autoridade, um sistema, uma lei, uma moral, um ideal ou utopia concretizada como definitiva.

9

ROPS, 1960, pg. 597.


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A igreja cristã sabia-se e dizia-se “povo de Deus”, “mistério e sacramento de Salvação”. Enquanto povo de Deus, sabia-se convocada por Deus, unida num só batismo e numa só missão: servir a todos e levar a todos os homens o Evangelho, a “boa nova” de Jesus Cristo que é para todos os homens e para o homem inteiro. Esse Evangelho é Esperança escatológica do resgate da dignidade do homem. É uma igreja missionária, servidora. A organização interna, com funções diversas, não divide os cristãos em leigos x hierarquia, mas os une e identifica. Não é o poder nem a burocracia que lhes dá identidade e comunhão. Mas é a comunhão que dá sentido à instituição, aos ritos e à burocracia. A comunidade eclesial é sinal e sacramento de salvação para todos. Sinal, porque expressa, mostra, anuncia como é possível ser homem, integrando tudo no plano de Deus que se fez Palavra Definitiva em Jesus Cristo. E sacramento porque não só expressa e anuncia a salvação mas ao mesmo tempo realiza, a começar daqui, da história, a redenção do homem. A história, o universo, o homem são radicalmente convocados, chamados e santificados na obra sacramental que os homens realizam unidos com Deus, em Jesus Cristo. A história, a ação dos homens não é negada, anulada numa suposta fuga para o transcendente, mas é resgatada, recolhida, endereçada, reconhecida como expressão e realização dos homens em toda a sua dignidade. E, por último, a Igreja cristã se diz mistério de salvação porque a redenção do homem e do humano não consiste apenas no intra-histórico mas remete à intimidade insondável de Deus, porque ultrapassa (não passa por cima, por alto, mas recolhe e reconhece) e funda escatologicamente a história.10

10

Destaque-se aqui a diferença absoluto entra essa perspectiva de historicidade e a da “Teologia do Progresso” própria da Idade Moderna européia e conseqüência do Estado de Cristandade.


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Assim, essa comunidade unida, missionária, servidora, alegre, mesmo quando perseguida e sofredora, sabe que a salvação que ela anuncia e busca realizar a cada dia, não consiste nela mesma, que a comunidade não esgota a salvação, nem é proprietária da salvação. O dom que ela recebeu, e que é para todos os homens, ela o anuncia pela palavra, pelos gestos, pela vida e o celebra como liturgia e como caridade. E a celebração é memória do passado ao mesmo tempo que antecipação do que virá, daquilo que deve e que precisa acontecer. Por isso, a comunidade não se instala definitivamente numa estrutura como se ela fosse a realização plena do projeto de Cristo, e é essencialmente profética. Comunitária, monoteísta e profética, a vida cristã dos primeiros séculos permanece sempre como horizonte da história da igreja. Na verdade esse monoteísmo profético era revolucionário, libertário inconciliável com a “adoratio”11 que devia ser prestada ao imperador, como se ele fosse deus e, nele, aos critérios de vida e organização econômico-político-social-cultural do Império Romano. O cristianismo era profético: ao mesmo tempo em que anunciava a todos a grande notícia da libertação e da fraternidade, denunciava a opressão, a tirania idolátrica. A autoconsciência dos cristãos era, na verdade, uma verdadeira consciência histórica, sua teologia uma teologia da história, uma hermenêutica dos fatos históricos como “Kayrós”, reveladores da estreita relação do homem com Deus.12 Por isso efetivamente revolucionários. Daí as 11

ROPS, 1960, pg. 469. A “adoratio” consistia numa cerimônia de dobrar o joelho diante do Imperador. Quem dobra o joelho se mostra impotente, submisso, diante do outro raeconhecido como todo-poderoso, divino, Deus.

12

Os fatos históricos são kairóticos porque revelam a intenção salvadora e a ação providencial de Deus na História. No fato histórico encontram-se a ação do homem e a ação de Deus. Para a comunidade cristã, nada estava definitivamente definido, interpretado, posto. Todo o fato é ao mesmo tempo uma provocação à ação do homem. Em cada fato é preciso interpretar a vontade, o convite, a provocação, a voz de Deus. Para isso é preciso atenção, ausculta, acolhimento, inventividade, criatividade constante. Impossível para uma comunidade instalar-se no definitivo deixando de peregrinar rumo ao Reino de Deus que é promessa e chamamento. Nada estava assegurado prévia e magicamente. Nem a interpretação do mundo e da História, nem a salvação. Tudo se faz permanente compromisso e caminhada. Era preciso profetizar.


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perseguições que o Império Romano lhes movia. Durante as perseguições (que haviam amainado nos 30 anos anteriores a Dioclesiano) os cristãos viviam na clandestinidade. Sem templos, sem reuniões em praça pública (estas se faziam no interior das casas e nos labirintos das catacumbas), sem símbolos exteriores que os identificassem (o peixe: acróstico de Cristo em grego, e o bom pastor com a ovelha às costas são exceção), sendo todos os cristãos antes de mais nada “leigos” (para vós sou bispo, convosco sou cristão...Sto. Agostinho) sendo o bispo responsável por uma comunidade e auxiliado pelos presbíteros e diáconos (para a administração), os cristãos tinham na festa da Páscoa da Ressurreição a celebração central da liturgia anual.13 O cristianismo se fortalecia com o sangue de cada mártir. “Temos o costume, dizia Euzébio, o historiador, de nos reunirmos sobre os seus túmulos, fazendo ali as nossas orações e honramos assim as suas almas bem-aventuradas”14 E é conhecida a frase de Tertuliano: o sangue de cada mártir é semente de novos cristãos. O Império Romano promoveu dez grandes perseguições sistemáticas contra os cristãos, desde Nero (68 dC) até Dioclesiano (303 dC). Este assume em 284 dC, organiza o império em duas e depois em quatro partes com quatro imperadores (a tetrarquia): ficando Maximiano (como Augustus) e Constâncio Cloro (como Cesar) no Ocidente; e ficando Dioclesiano (como Augustus) e Galério (como Cesar) no Oriente. Quatro eram as capitais: Tréveris, Milão (no Ocidente), Sírmio e Nicomédia (no Oriente). A perseguição aos cristãos (que inicia em 24/2/303) foi violenta especialmente por parte de Galério, no Oriente Médio e Egito.

13

A salvação e a Redenção que Cristo trouxe aos homens não são apenas fruto do sofrimento e da morte de Jesus e sim, e fundamentalmente, de sua Ressurreição. O essencial, para o Cristão não está na dor e na morte. Por isso o ano litúrgico encaminhava toda a vida cristã para a grande festa da Páscoa da Ressurreição.

14

ROPS, 1960, pg. 594.


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Em 1o/03/305 renunciam os dois augustos (Maximiano e Dioclesiano) substituindo-os os respectivos césares: Constâncio Cloro (favorável aos cristãos) e Galério. Em lugar destes sobem para césares Flávio Severo (também tolerante para os cristãos) e Maximino Daia que, com Galério é encarniçado perseguidor no Oriente. Como a tetrarquia estabelece que os césares serão designados pelos augustos, Constantino filho de Constâncio Cloro (morto em 306) é aclamado como augusto pelas tropas. Maxêncio, filho de Maximiano, por se ver preterido, dá um golpe e se proclama augusto em Roma. “Como, na mesma ocasião - 311 - Galério (leproso e convertido ao cristianismo!) dava a alma ao Criador, a situação encontrava-se relativamente clara: no Oriente, Maximino Daia e Licínio, herdeiros de Galério; em Roma, Maxêncio; em Milão e Tréveris, Constantino. Mas duas cabeças para o Ocidente, Constantino e Maxêncio estavam de acordo em pensar que uma delas era demais”.15 Por isso pensam que um deverá eliminar o outro. Em 28 de outubro de 312 Constantino, depois de deixar seguras as fronteiras do Reno, depois de por-se em acordo com Licínio que governava a região do Danúbio dando-lhe sua irmã Constança em casamento, atravessados os Alpes, Constantino entra em Roma. Na batalha da Ponte Mílvia vence a Maxêncio que, fugindo, morre afogado. Durante a batalha, diz-se que Constantino teria aderido ao Cristianismo. Teria visto uma cruz luminosa no céu com os dizeres: “com este sinal vencerás”.16 Esta cruz estaria, depois, em seu estandarte, em sua bandeira. No entanto, Constantino só aceitará o batismo quando no leito de morte (337). Outros dizem que sua mãe

15

ROPS, Daniel. A Igreja dos Apóstolos e dos Mártires. Porto, Tavares Martins, 1960. Pg. 485.

16

ROPS, 1960, pg. 487. A cruz e a espada serão as armas do Império. A cruz, porém, ficará subordinada ao Império e à espada.


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Santa Helena, que era cristã, tê-lo-ia influenciado em favor dos cristãos. Por esperteza política ou não, este homem, inteligente, mas de cultura medíocre, de um temperamento ambivalente que vai da clemência à violência cruel e sanguinária17 (a ponto de matar seu filho Crispo, sua mulher Fausta, seu sogro Maximiano, seu cunhado Licínio, e de “mandar lançar às feras os chefes germanos vencidos... e de ter torturado, até à morte, seis mil prisioneiros suevos”18 só perdendo em violência para Galério e Maximino Daia), Constantino, em fevereiro ou março de 313, reúne-se em Milão com Licínio e ambos promulgam o Edito de Milão ( cartas que ambos dirigiram a seus respectivos comandados...): A liberdade de religião não pode ser constrangida, e é preciso, quanto às coisas divinas, permitir que cada um obedeça ao movimento de sua consciência... Nós queremos que todo aquele que queira seguir a religião cristã possa fazê-lo, sem qualquer receio de ser incomodado. Os cristãos tem plena liberdade de seguir a sua religião... O que concedemos aos cristãos é igualmente concedido a todos os outros. Cada um tem o direito de escolher e praticar o culto que prefere, sem ser lesado na sua honra e nas suas convicções. Está nisso a tranqüilidade do nosso tempo.19 A partir de 313, o cristianismo é livre. Já não é necessário viver

na clandestinidade, nem é preciso grande convicção para ser cristão. Já não é necessária grande preparação como a do catecumenato. O batismo, como ato de inserção na comunidade e na fé cristã, transforma-se aos poucos num ritual de iniciação à

17

ROPS, 1960 pg 496: “praestantissimus, pupilus, latro” isto é prestigioso, infantil e ladrão sanguinário eram seus apelidos.

18

ROPS. 1960 pg. 496.

19

Eusébio, in ROPS, 1960, pg. 490-491.


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romanidade. Um grande grupo dos soldados que acompanham Constantino na entrada de Roma são ali mesmo batizados sem preparação e sem compromisso. E como os cristãos estavam em todos os gabinetes do Império e como a reflexão cultural estava predominantemente com os cristãos, já era de “bom tom”, já não era ser “atrasado”, dizer-se cristão. Os cristãos estão do lado vencedor. Muitos se fazem cristãos. A partir de 313, inicia-se o processo de fusão de Império Romano e Cristianismo originando o Estado de Cristandade que vigorará até os dias de hoje. Essa fusão estrutural, porém, já fora precedida pela interpretação teológica: É porem, ali, em fins do século I, quando se produz a ruptura. Já nesse tempo, a teologia que, tinha sido até então a descrição ou a explicitação da revelação de Deus na história, irá se helenizar. Passar-se-á, então, de uma consideração reflexiva do que foi a história da revelação de Deus a seu povo, para uma teologia sistemática que começará a argumentar à maneira grega.20

A história do Estado de Cristandade ir-se-á, pois, constituindo desde 313 ou antes mesmo e abarcará, de um modo ou de outro, os 17 séculos posteriores. Podemos distinguir 4 grandes etapas pelas quais passou o Estado de Cristandade: A etapa de fusão e formação 313-800; A etapa de predomínio da religião sobre o Estado, a Economia e a Política tendo a religião a mesma abrangência que o Estado 8001648; A etapa em que o Estado e a Política determinam a religião cristã 1648-1962; A etapa de crise da Cristandade e renascimento do cristianismo 1962...

20

DUSSEL, Desintegración de la Cristiandad Colonial y Liberación. Salamanca, Sigueme, 1978, pg. 25.


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3. A Construção do Estado de Cristandade. (313 -800) Ao mesmo tempo em que Constantino dava liberdade à religião cristã, fazia-se e se proclamava protetor do cristianismo. Devolveram-se à Igreja os bens confiscados. O erário público contribuiu para a construção de edifícios cristãos como Igrejas, lugares de reunião e cemitérios. A imperatriz Fausta oferece seu suntuoso palácio do Latrão para residência do papa Milcíades. O mercado público de Roma é transformado em catedral (igreja onde o bispo pontifica sentado, de cadeira, ex cátedra). Os clérigos, sacerdotes e bispos agora estarão isentos dos impostos municipais. Por outro lado, a religião cristã tornada “lícita” merecia cada dia mais ajuda e colaboração da população... Em Roma, “as igrejas multiplicam-se e são cada vez mais luxuosas.”21 A adesão ao cristianismo se torna mais fácil, “muitas crianças já nascem cristãs, quer nas famílias já cristãs, quer nos lares mistos, onde se torna habitual que o esposo cristão mande batisar os filhos e as filhas”.22 As conversões, às vezes, são superficiais, como na Armênia cujo rei Tiridates se converteu e, de um dia para o outro, transformou todos os templos pagãos em igrejas cristãs e os sacerdotes dos ídolos foram ordenados como clero cristão.23 Um terço da população do Império Romano, calculada em 100 milhões de habitantes, em meados do século IV, era cristã.24 Portanto, antes de 380 mais de 30.000.000 de habitantes do Império Romano são cristãos. 21

ROPS, 1960, pg. 575.

22

O papa Júlio manda erigir duas basílicas: Santa Maria do Transtibre e a dos Santos Apóstolos; o papa Libério funda Santa Maria Maior e, na sua casa natal, Dâmaso cria o título de São Lourenço in Damaso. No Palatino, nas dependências do Palácio imperial, aparece a capela de S. Cesário e, muito perto ao lado do Circo, a de Santa Anastásia. E ainda dessa época datam as partes antigas de São Clemente; a basílica de São Paulo é ampliada e realizam-se trabalhos vários na de São Pedro...ROPS, 1960, pg. 573.

23

ROPS, 1960, pg. 575.

24

ROPS, 1960, pg. 575.


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O bispo de Roma, cuja liderança já era reconhecida pelo clero e outros bispos cristãos antes da perseguição promovida por Dioclesiano, adquire agora um status maior, quase como imperador dos cristãos. Suas insígnias assemelhar-se-ão cada vez mais às do imperador. O nome de “sumo pontífice” que era do imperador passa a ser o do bispo de Roma, o grande pai dos cristãos (papa). As prerrogativas de honra e precedência que são dadas ao imperador também são dadas ao bispo de Roma. Os bispos já não são eleitos como no início, valerá cada vez mais o processo de cooptação ao mesmo tempo em que o clero e o povo terão agora modesto papel.25 Por outro lado, o imperador, para bem administrar e organizar o Império, exige a unidade da Igreja. Os grandes debates teológicos: sobre a pessoa de Jesus Cristo, (enquanto homem, enquanto Deus); sobre Maria, (se mãe de Deus ou do homem Jesus); sobre a Trindade de Deus etc. e que Constantino julgava divagações inúteis e pueris...deveriam, segundo ele, ser resolvidos de uma vez e terminar com a instabilidade que proporcionavam à vida pública. Para unificar o pensamento cristão, o imperador convoca o o 1 . Concílio Ecumênico de todos os bispos para Nicéia (325), paga as despesas de viagem e manutenção de todos, mas exige o consenso: unidade e ordem era seu lema e sua política. Este Concílio, como se sabe, organizou a lista dos princípios que todos os cristãos deveriam confessar e professar: o “credo” que, depois, será completado no Concílio de Constantinopla (381). O credo niceno-constantinopolitano é rezado ou professado pelos cristãos católicos na liturgia da missa, até hoje. A centralização e unificação ideológico-dogmática da Igreja será também a base para o controle da doutrina e para o combate às dissidências e heresias.

25

ROPES, 1960, pg. 582.

26

ROPS, 1960, pg 507.


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Constantino se intitula a si próprio “bispo do exterior”,26 enquanto os bispos eram os bispos de suas dioceses, como se verá a seguir. Os concílios ecumênicos até o de Latrão bem depois do ano mil, serão todos convocados pelos imperadores. E é ainda o próprio imperador Constantino quem compõe as orações que os soldados devem recitar. E na capela imperial de Bizâncio (que Constantino transforma na suntuosa 2a. Roma, onde ele sozinho manda sem a intromissão da nobreza romana) é ele quem conduz a liturgia. Grato pela liberdade, pelos serviços que a família imperial prestava ao cristianismo (Helena mãe de Constantino e suas filhas tinham, por exemplo mandado restaurar o Santo Sepulcro em Jerusalém), no ano 335dC., para celebrar o trigésimo aniversário do reinado de Constantino, o bispo Eusébio de Cesaréia, dizia em sua homilia: "É um novo Moisés". Assim, se o Reino dos Céus é governado por um só Pai e o mundo terreno o é por Cesar. Ele é um lugar tenente de Deus, de quem recebeu, por intermediação de Cristo, a função de assegurar na terra "o plano de Deus para os homens". Ele é como um "pastor, pacificador, mestre, médico das almas e pai... amigo e predileto de Deus".27 Mais tarde os papas lamentarão profundamente essa intromissão do poder civil na Igreja: o cesaropapismo. Esta confusão acontece apesar dos protestos de homens como Santo Atanásio que, no concílio de Milão bradava: “Não é lícito misturar o poder romano com o governo da Igreja... e essa submissão ao poder é um procedimento semelhante ao dos ‘eunucos’ ”. 28 É uma castração da fecundidade profética e transformadora do cristianismo. E o bispo Ósio de Córdova advertia Constantino: “Não interfiras nos assuntos da Igreja”.29 Mesmo assim, a intromissão e confusão se fez

27

EUSÉBIO, Laud. Constant. 5:7, 2

28

ROPS, 1960, pg. 556.

29

PETIT, 1964, pg. 323.


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cada vez maior. Mais tarde, Bizâncio, porque segunda Roma e capital do Império Romano, quererá fazer-se diretora política e religiosa do Império. Seu bispo reconhecerá para o de Roma, somente precedência, mas não chefia e direção. Por outro lado, o centralismo administrativo de Roma influenciará na relação dos bispos entre si e com o de Roma, diminuindo sensivelmente a importância e o papel dos bispos de província. O cristianismo está, portanto, intimamente associado à reforma do Estado levada a cabo pelo grande imperador. Reconhecida para com o seu protetor, a Igreja aceita dali por diante os costumes estabelecidos pelo protocolo imperial; não se opõe sequer às genuflexões perante ele (adoratio) e dir-se-ia que quase o inclui em sua hierarquia, entre os seus chefes designados por Deus... os funcionários cristãos não negarão o seu concurso para a defesa do Império... o Palácio Imperial é de fato um palácio cristão onde padres e bispos são numerosos... À nova nobreza dos nobilíssimos, ilustres, perfeitíssimos e claríssimos, Constantino, imperador cristão, entende dar-lhe (não sem ilusões) as bases do lealismo e da virtude.30

Estas serão a base institucional do poder feudal, que atravessará a Idade Média. A partir de Constantino e definitivamente com Teodósio (378-395) o cristianismo se faz não só religião livre (313) mas religião oficial do Império (380 e 387) e por fim religião única do Império (391).: “todos os povos...do império...devem aderir à fé cristã”31 “todos os povos devem ligar-se à doutrina niceana (do Concílio de Nicéia), a de Dâmaso e a de Pedro de Alexandria e reconhecer a doutrina da Santíssima Trindade”.32 30

ROPS, 1960 pg. 506.

31

ROPS, 1960, pg. 682.

32

PETIT, 1964 pg. 323.


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O fato de o imperador cristão Teodósio declarar o cristianismo como a religião oficial do Império significará que: de agora em diante todas as funções, todos os cargos do Império só poderão ser preenchidos por cristãos. Obviamente, todos quererão ser cristãos e os pais batizarão seus filhos logo ao nascer para que possam ascender aos postos e escalões da estrutura do Império. Não é o batizando quem responde pela adesão à fé e à comunidade cristã. Supõe-se que a família responda pela criança, mesmo quando os pais não tiverem fé, nem forem cristãos. O mesmo Imperador Teodósio em 391 declara que o cristianismo é a única religião admitida no Império: não há lugar, não só nos cargos e funções públicas, mas no próprio território do Império, para quem não seja cristão. Serão proibidos e banidos os ritos, os cultos, os símbolos, os deuses, os sacerdotes, os templos pagãos. Quem não se converter fugirá para longe do poder, para a periferia do Império (para os bairros distantes, os vilarejos, os ‘pagi’: pagãos), para a clandestinidade. O batismo será ao mesmo tempo o ato político de assunção da cidadania: quem é batizado é cidadão romano. Por isso os pais cuidarão, por convicção religiosa ou não, que os filhos sejam batizados ainda crianças. É da maior conveniência. E a preparação para o batismo e para a fé? E o compromisso, antes levado até à morte, com Cristo, sua mensagem e com a comunidade? E a profecia? Haverá cada vez menor espaço para isso. Os interesses do Estado e os interesses da Igreja se aproximam e cada vez mais se fundem e confundem. O Império Romano será Império Cristão: um Estado de Cristandade As vicissitudes da Igreja correrão, de agora em diante, por conta das vicissitudes e das políticas dos imperadores. Elas serão as mesmas. As políticas benfazejas de um imperador favorecerão o crescimento estrutural da Igreja, as políticas nefastas devastarão a Igreja, cada vez mais umbicalmente ligada ao Império. Assim, o imperador Juliano (o apóstata), que governa de 361 a 363, tendo em vista as injustiças, os sectarismos de que é vítima por parte de seus


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primos e descendentes de Constantino (e que se dizem cristãos e defensores do cristianismo contra o paganismo), Juliano deixa de ser cristão e busca, com todas as forças, fazer o Império voltar a um paganismo renovado e militante, eliminando a Igreja. Com sua morte, porém, o paganismo será definitivamente sepultado. A Igreja cristã adota a estrutura geográfica, econômica, política e social, as instituições, a burocracia e, em parte, a ideologia do Império Romano como suas. Os cristãos tentam evangelizar o Império Romano e com o Império Romano, já não como os primeiros cristãos, mas fundindo-se, negociando, fazendo acordos e, por fim, assumindo o Império. Disto resultou o Estado de Cristandade. Usar o poder para evangelizar será uma tentação e uma realidade constante na história posterior, a tal ponto que poder e evangelização se confundirão como na conquista da América...As funções de organização, de burocracia, de normatização e de controle crescerão mais que as de profecia, de pastoral e de fermentação da realidade, na direção dos desígnios de Deus. A divisão geo-política do Império será agora a divisão da Igreja. O Império era dividido em províncias e estas em municípios. As províncias, por sua vez, foram, na reforma de Dioclesiano, agrupadas em dioceses. A Igreja adotará, então, a diocese romana, a província e o município como sua divisão. Na diocese romana (as grandes regiões do Império), que era dirigida por um vicarius, haverá uma Igreja com autoridade superior à das províncias: estas arqui-dioceses serão a de Antioquia para a Síria e regiões vizinhas; a de Éfeso para a Ásia; a de Alexandria para o Egito; a de Cesaréia para a Pérsia; a de Heracléia ou Constantinopla para a Grécia (com Ilíria e Roma). Às províncias romanas, corresponderão agora as dioceses regionais e depois simplesmente dioceses. Os municípios ou cidades serão paróquias. A importância das arquidioceses e dioceses serão depois decididas. Assim, Teodósio convoca o Concílio de Constantinopla (381) onde se determina a preeminência dos bispos de (arqui-


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)dioceses (súper-províncias: Antioquia, Alexandria, Cesaréia, Éfeso) cabendo ao bispo da capital Constantinopla o segundo lugar, logo depois do bispo de Roma. Assim como em Roma está o Imperador, assim o bispo de Roma terá um papel cada vez mais definido de coordenador universal. O bispo de cada diocese (e não mais das comunidades) será responsável pela Província e terá as mesmas prerrogativas e privilégios que o Governador da Província. O presbítero, que agora será o pároco, ou padre, terá privilégios semelhantes ao do alcaide ou prefeito municipal. Com o auxílio de Teodósio, o papa Dâmaso, consegue eliminar os hereges arianos e donatistas.33 O braço do Estado está a serviço da Igreja e faz reconhecer o primado do bispo de Roma. Santo Ambrósio, bispo de Milão, orienta, repreende o imperador Teodósio (especialmente pelo massacre de Tessalonica (390), defende a autonomia da Igreja em matéria espiritual e seu direito de intervir em matéria temporal, obtendo de Teodósio a última e radical condenação do paganismo(391). Na oração fúnebre a Teodósio, Ambrósio estabelece bem claro os interesses da Igreja à frente dos interesses do Estado.34 Por outro lado, acontece também a hipertrofia da hierarquização da Igreja. Fora da Hierarquia, os leigos, cada vez mais, à medida que avançamos para a Idade Média, deixarão de ter

33

O sacerdote Ario, de Alexandria pregava que Cristo não é Deus, é uma criatura de Deus, admirável sem dúvida e que, portanto não havia encarnação de Deus nem redenção realizada por Deus. Cristo era venerável, justo, homem bom que revelava Deus mas não era Deus. Maria, portanto, não era mãe de Deus e sim mãe do homem Jesus no qual Deus se manifestava. Essa posição destruía toda a teologia e perspectiva cristã. Ao lado de Dario e antes dele Donato colhia na África a insatisfação de ser a África relegada a um segundo plano, uma vez que o centro do Império (Roma e o Oriente Médio) dominavam a Igreja. Pregava uma Igreja mais austera e condenava os cristãos que, nas perseguições delataram os outros e entregaram objetos sagrados aos policiais. O Concílio de Nicéia convocado por Constantino condenará a ambos, mas, mesmo assim o pensamento continuou, pois um pensamento não se mata com a espada. Cf. ROPS I:526 e ss.

34

PETIT, 1964, pg. 324.


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papel significativo na Igreja, quer como pensadores, teólogos, filósofos, políticos, quer como liderança. Ser leigo significará cada vez mais “estar por fora”, estar excluído, ser incompetente, ser ensinado, ser obediente numa Igreja (que coincide com a sociedade) que coincidirá com a Hierarquia.35 Por outro lado, os cargos civis vão, aos poucos, coincidindo com os cargos eclesiásticos. A Igreja, cada vez mais co-extensiva à totalidade da sociedade, será cada vez mais identificada com a hierarquia e esta se espraiará e subdividirá para oferecer um número cada vez maior de cargos. Assim, se antes havia hierarquicamente Bispos, Presbíteros e Diáconos, agora haverá funções e cargos muito distintos de: Papa, Cardeal, Arcebispo, Bispo, Monsenhor, Cônego, Padre (presbítero), Diácono, Sub-diácono, Leitor, Acólito...As ordens religiosas constituídas de leigos, especialmente as femininas, são sempre representadas por um procurador clérigo. A Idade Média, com o feudalismo, consistirá, pois, também e fundamentalmente nesses dois processos: na clericalização da sociedade (tanto quantitativa como qualitativamente) e na hierarquização da Igreja, e, portanto, da sociedade.36 O pensamento, a “ideologia”, a mensagem cristã, sem a preparação severa para a vida cristã como a dos primeiros séculos,

35

Em 11 de fevereiro de 1906, Pio X, numa carta encíclica Vehementer Nos assim se expressava: “Portanto, esta sociedade, em virtude de sua própria natureza, é uma sociedade hierárquica; ou seja, uma sociedade composta de distintas categorias de pessoas: os pastores e o rebanho, isto é, os que ocupam um posto nos diferentes graus da hierarquia, e a multidão dos fiéis. E essas categorias são de tal modo diferentes umas das outras, que só na categoria pastoral residem a autoridade e o direito de mover e dirigir os membros para o fim próprio da sociedade; por outro lado, a obrigação da multidão não é outra além de deixar-se governar e obedecer docilmente às diretrizes de seus pastores” in CAMACHO, Ildefonso, pg. 256. A diferença entre clérigo e leigo é de direito divino e o leigo é aquele que se identifica com o “não”: tem tem poderes de dirigir, de administrar, de ensinar e de falar. O leigo será “ apenas destinatário da ação da Hierarquia ou, quando muito, instrumento de sua atuação” CAMACHO PG. 258.

36

FRANCO JR. Hilário, O Feudalismo, pg. 12 e 21.


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tende a incorporar elementos contraditórios que, apesar do grande discernimento e combatividade de homens da estirpe de Santo Atanásio, Santo Hilário de Poitiers, São Basílio, Santo Ambrósio, Santo Agostinho...infiltrar-se-ão como doença no Estado de Cristandade nascente. Assim o arianismo (de Ario) e donatismo (Donato) e o maniqueísmo (Manés ou Mani) trazem elementos do racionalismo formalista indoeuropeu, o dualismo metafísico, um puritanismo quase sádico-masoquista de desprezo ao corpo, ao sexo como se pode ver no texto insidioso do maniqueísmo: Desde toda a eternidade há, portanto, duas divindades, dois princípios decididamente adversos. Quer lhes chamemos Bem e Mal, Luz e Trevas, ou Deus e Diabo, estamos sempre a formular o mesmo antagonismo. A história do mundo resumese na luta terrível desenvolvida pelo Deus do mal, pelo poder das trevas para invadir o reino da claridade. A criação inteira é o lugar desse combate; ela não é mais que uma inextricável mistura de bem e de mal, de luz e de trevas, num conflito perpétuo. O próprio homem é divino, luminoso pela alma, mas, pelo corpo, é opaco e arrastado para o mal. A história de Adão e Eva é um episódio da luta entre o bem e o mal, pois o homem tem o desejo de obedecer a Deus, ao passo que a mulher impura encarna a tentação.... Em moral é preciso ajudar o bem contra o mal, isto é afastar de si tudo o que é material e diabólico, e evitar ofender a parte luminosa, divina que está no mundo...” Ser virtuoso consiste antes de mais nada em não mentir, não matar, não comer carne e alimento impuro, e não fazer sexo...37

Estas idéias, embora combatidas, periodicamente virão à tona no Estado de Cristandade. Como se pode ver, este conteúdo ideológico está longe da perspectiva semita e cristã.

37

ROPS, 1960, pg. 563-564.


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A Idade Média feudal trará também o enrijecimento da estratificação social dividindo a população em 3 segmentos (quase castas) fundamentados ideologicamente até na teologia. Assim Deus teria feito três espécies de homens: uns para rezar, outros para governar e guerrear e outros para trabalhar. Reforça-se assim a idéia indo-européia e platônica de que há três espécies de homens estabelecidas pela natureza criada por Deus e que a “vocação” em cada uma delas deriva da natureza e de Deus. É por natureza que os governantes são governantes, os sacerdotes são sacerdotes e os trabalhadores são trabalhadores.38 Lembremos que a justiça, segundo Platão consiste em cada um fazer aquilo que por natureza lhe compete e que pela lei é chamado a fazer.39 A cada casta dessas competiria uma virtude: aos trabalhadores a temperança, aos governantes a fortaleza e a coragem, aos filósofos (teólogos e hierarquia da Igreja agora!) a sapiência ou sabedoria. O máximo grau de humanidade está com os últimos.40 O Império Romano era uma sociedade urbana e “naturalmente a crise se manifestava mais claramente nas cidades, com as lutas sociais, a contração do comércio e do artesanato, a retração demográfica, a pressão do banditismo e dos bárbaros”.41 38

Observe-se que o Darwinismo social tão evidente em interpretações da sociedade no século XX pode muito bem encontrar aqui fundamento para a naturalização dos processos e leis sociais.

39

PLATÃO, República IV, 432. Para os romanos o direito que abrangia o jus civile, o jus gentium e o jus naturale, tinha como ideal o programa estóico de que todos os homens são iguais por natureza. Cícero dizia que “o verdadeiro direito é a razão justa, consoante à natureza, comum a todos os homens, constante, eterna. Promulgar decretos contra esta lei é proibido pela religião; nem pode ser ela revogada ainda mesmo parcialmente, nem temos, quer o senado quer o povo, o poder de nos livrar dela” . De República, III, 22. Esta lei antecede o Estado. Para os romanos, porém, permanece como ideal utópico. Este ideal renascerá como o direito romano para fundar a Modernidade. O Estado de Cristandade permanecerá como a idéia grega de que é sempre a natureza que diferencia os homens em estamentos, e esta natureza é criada por Deus.

40

PLATÃO, República IV, 428...

41

FRANCO JR. Hilário. O Feudalismo. S. Paulo, Brasiliense, 1983 pg. 10.


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Com a diminuição da mão de obra escrava, com o esgotamento das minas, com a diminuição do volume de impostos e conseqüentemente o “empobrecimento” da classe dominante e que dirigia o Estado, com a deteriorização dos costumes e a “terceirização” da defesa entregue à coordenação e à ação dos bárbaros, o ideal romano se esvai e o Império está à deriva, já em fins do século IV. Querendo participar das benesses que o Império Romano oferecia, os jovens povos godos, vizigodos, vândalos, hunos etc... pressionavam por todas as fronteiras e, finalmente quando invadiram, desacomodaram, destruíram as estruturas e instituições romanas. Em 408 Roma é incendiada e saqueada. Em 476 o último imperador (Rômulo Augústulo) entregava Roma aos invasores bárbaros e aos cristãos.42 É cada vez mais impossível manter um Império centralizado e urbano. A cidade já não oferece segurança para os patrícios viverem. Processa-se então a grande migração urbano-rural que esvazia as cidades. Com o processo intenso de ruralização da sociedade, especialmente no Ocidente latino, a economia, a cultura incluindo a expressão e organização religiosa, fazem-se agrárias em seu fazer e em seus símbolos, deixando o horizonte da urbanização para trás. Roma que, na época de Nero (68 dC), tinha 1.050.000 habitantes terá, ao dobrar o novo milênio, não mais do que 10.000

42

Para explicar a invasão dos indo-europeus e povos “bárbaros” sobre o Império Romano não basta aludir ao fato de que esses povos da periferia do Império eram mais jovens e que, como qualquer imigração buscam apenas inserir-se na estrutura do Império. Esses povos jovens, aguerridos, excluídos pelo Império que via neles uma ameaça à paz e ao bem-estar romanos, invadem, derrubando as resistências (o que também implica em destruição) por não reconhecerem em Roma direitos absolutos e quase divinos como ela mesma se atribuía. Por outro lado as estruturas e instituições esclerosadas e excludentes do Império não tinham capacidade para acolher a força , as necessidades e a juventude desses povos. Roma caiu porque tinha os pés de barro e porque tinha apodrecido em sua economia, organização social, política e cultural, como dirá Santo Agostinho em sua obra A Cidade de Deus (cf. Jean Touchard, História das Idéias Políticas,I)


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habitantes.43 Os ricos, diante da instabilidade e insegurança do Império, diante da derrocada das instituições urbanas, retiram-se para as propriedades rurais, seguidos de seus escravos e clientes colonos e com eles farão o pacto de defesa e ajuda mútua.44 Os escravos subirão de status transformando-se em servos da gleba; os clientes livres também se tornam servos, baixando de status. Ambos, não mais escravos de uma pessoa mas de uma gleba de terra, ficarão amarrados a ela, com suas famílias para sempre. Nos feudos rurais que serão organizados produz-se o que se consome e se consome o que se produz. Já não haverá propriamente excedentes para a comercialização. Não haverá mercado interno, nem haverá países para esse mercado. A civilização bizantina permanecerá uma exceção. A infra-estrutura para o intercâmbio e para o comércio praticamente desaparecerá. Assim as pontes, as estradas, a moeda, os títulos comerciais, os comerciantes, os meios de transporte e hospedagem deixarão de existir no Ocidente europeu. As trocas se farão por escambo. A Igreja também se ruralizará em seus símbolos, em suas práticas pastorais e seus métodos45 e será parte integrante do feudalismo. No feudalismo o Estado de Cristandade se consolidará cada vez mais. Estado, Igreja e Sociedade serão cada vez mais uma só realidade. 43

“Por volta do ano 1.000 não havia no Ocidente cristão, nenhuma cidade de 10.000 habitantes, mas em 1300 existiam 55 delas” FRANCO JR, H. O Feudalismo, 71. E se a maior cidade espanhola, em 1519 , quando o Império Asteca foi invadido, era Sevilha com 110.000 habitantes, Technotitlan, a capital asteca tinham 300.000 equiparando-se às maiores da Europa e do mundo como Palermo, Paris, e maior que Veneza, Londres etc. Cf. MC BURNS, I, pg. 343.

44

“Os grandes proprietários, desde que passaram a ter o controle sobre um grupo numeroso de servos, entrincheiraram-se em suas propriedades , desafiaram o governo central e governaram como magnatas feudais” MC Burns, I, : 246.

45

Assim a liturgia de procissões, a vela, o linho, o vinho, o pão de trigo, o ritmo das estações ( a Páscoa acontecerá sempre no início da primavera européia, no primeiro Domingo que suceder à lua cheia após 22 de março) assim a liturgia das horas etc...e a mentalidade agrária na interpretação teológica.


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A pulverização do Estado, com a fragmentação do poder central, resultava em miríades de pequenos estados (os feudos), com um castelo no alto do monte, com uma pequena área comum de pasto e lenha, e minúsculas glebas de terra onde residia e trabalhava o servo. O senhor que, por sua vez, era vassalo de outro senhor, oferecia “proteção e justiça” ao servo que tinha todos os deveres de produção e de guerra. A privatização da defesa fez com que cada feudo se defendesse como pudesse ou se associasse a outro feudo para repelir os invasores, para se defender nas permanentes correrias, tropelias e guerras patrocinadas pelos bárbaros ou por senhores lutando entre si.46 Com a crise do Império Romano a Igreja com sua hierarquia vai assumindo inclusive a magistratura civil. Depois de 476, em muitas ocasiões, a única autoridade do Império do Ocidente será exclusivamente o papa, e nas províncias os bispos e, seus auxiliares os párocos nos municípios. Assim o papa é também o imperador e, por outro lado, o imperador muitas vezes, a pretexto de proteger o cristianismo, desempenhará as funções de papa como na convocação e encaminhamento dos concílios ecumênicos que acima aludimos. A administração de cada província ficará em mãos de um príncipe que, ao mesmo tempo (muitas vezes), é bispo e que cobrará impostos, exercerá o poder legislativo, executivo e judiciário. Fundem-se assim Império Romano e Cristianismo: a estrutura econômica, política, social, cultural de Roma (e Grécia) com a ética semita do cristianismo. Da fusão resultou um novo Estado: o Estado de Cristandade que marcará profundamente toda a história do Ocidente. Esse processo que inicia com a tradução do cristianismo em categorias da filosofia grega, como já vimos acima, (já no final do século I), culminará com a organização que a Igreja fará de todo o Império catequizando bárbaros, estruturando a vida social, econô46

FRANCO JR. H. O Feudalismo, 20.


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mica e política, cultural e religiosa como se um império fosse. Esse modo de ser cristão, que se estruturará no interior do Estado de Cristandade permanecerá por muito tempo como se fosse a única e legítima realização possível do cristianismo. E, consolidados pelo costume, esses padrões de conduta econômicos, políticos, sociais e culturais, parecerão para o Ocidente como o óbvio e necessário. Durante mais de 1000 anos, tiveram assim os europeus a realidade toda “definida pelos poderosos eclesiásticos da Igreja cristã”47 como sendo espiritual, pondo no centro da vida a idéia que os sacerdotes fazem do plano que Deus tem para a humanidade. Não interessa a posição social de cada um (aristocrata ou camponês) para a vida espiritual definida em termos de salvação. A vida é uma prova espiritual em que se conquista ou se perde a salvação seguindo as forças de Deus ou do diabo. Quem interpreta as escrituras e garante a salvação são os clérigos, interpretando todos os fenômenos da vida como vontade de Deus ou malícia do diabo. O mundo é unificado e seguro em direção da salvação, dentro das instituições pré-fixadas, e sob a autoridade e arbítrio exclusivo da hierarquia da Igreja. Para se ligar com Deus, com o universo, consigo mesmo e com a salvação não é preciso arriscar-se, empenhar-se, basta seguir a orientação dada e obedecer. Essas instituições e esses padrões de conduta garantem a verdade sobre o universo, sobre a justiça, sobre a fé e a ética. E, mesmo quando se lhes faça oposição, como na Idade Moderna, será ainda uma oposição no interior e a partir do mesmo Estado de Cristandade. Assim a revolta protestante, o laicismo moderno, a revolução burguesa usarão os critérios próprios do Estado de Cristandade para o questionamento. O ideal que se consolidará ao longo de toda a Idade Média será uma versão intra-mundana do que Cristo anunciou: “haverá um só reino e um só pastor”. Uma só sociedade, um só império e 47

REDFIELD, J. pg. 26.


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um só pastor: uma sociedade perfeita: a Cristandade. Mais tarde, por volta do século VIII, reconhece-se que essa sociedade perfeita e única possa ter duas cabeças: a religiosa e a civil (sacerdotium et imperium), muito embora a cabeça civil esteja subordinada à religiosa. Ao final da Idade Média e até o Concílio Vaticano II (19621965), um ramo importante e preponderante da teologia identificada com o Estado de Cristandade insistirá que a Igreja é uma “Sociedade Perfeita, desigual e hierarquicamente constituída...como o corpo místico de Cristo”.48 A Idade Moderna insistirá na tese da separação de Igreja e Estado. Na verdade, o que a burguesia moderna pretende é a autonomia diante dos poderes da hierarquia do Estado de Cristandade e do conseqüente direito divino dos reis, separando Igreja e Estado. Ambos, porém, são polos do mesmo Estado de Cristandade.49 Assim a distinção entre consciência política e consciência religiosa que os semitas tinham trazido à história tão marcadamente, acaba esmorecendo e se anulando no decorrer do Estado de Cristandade. Como no estado romano a função de Cesar e a de Pontifex confundiam-se na mesma pessoa e na mesma instituição. Do pensamento grego e romano resultarão influências para o Estado de Cristandade com ressaibos de dualismo antropológico e ético, de racionalismo naturalista de essência, forma, substância,

48

CAMACHO, Ildefonso. Doutrina Social da Igreja, S. Paulo, Loyola, 1991.

49

É interessante observar como nas suversões que pretendem levar os ideais da Revolução Francesa a toda a Europa desde 1811 até especialmente a Primavera dos Povos de 1848, o liberalismo procura combater a estrutura da Igreja unida aos Impérios com o apelo à religião de Jesus Cristo. O RS será marcado com a influência dos ideais de imigrantes italianos condenados e proscritos nas revoluções pela Unificação da Itália como Tito Lívio Zambecari, Rosseti, G.Garibaldi, que escrevem (Garibaldi e F. Anzani) ao papa Pio IX apelando para que ele protagonize reformas e ajude na unificação e depois o combatem porque o papa se ligou aos franceses contra a República Romana e Italiana. Acabam combatendo a religião dos papas buscando inspiração na Religião de Cristo: uma religião que protege os pobres, que dá dignidade a todos. Uma religião que se coaduna com Liberdade e República. Cf. DUMAS, Alexandre. Memórias de Garibaldi pg. 170 e ss.


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natureza, idéia, razão, como se conceitos cristãos fossem. A alma e não o homem, o masculino e não o homem,50 o ócio e não o serviço, o trabalho como castigo e pena, o poder e não a simplicidade do servir, a propriedade e não a posse e o uso, o indivíduo e não a comunidade, a negação do corpo e a fuga do mundo como se fossem virtudes, a obediência cega a uma norma e a uma autoridade e não a profecia...Tudo se torna absoluto e, como tal, inquestionável. O discurso absoluto se cristaliza em dogma. Com isso resultará, para a Idade Moderna, a sacralização da propriedade, do poder e da racionalidade instrumental. Quem discorda ou denuncia o sistema é, agora, um heterodoxo, um fora do sistema, portanto fora da verdade, um herege e como tal é, não só um opositor, um subversivo, mas um criminoso e pecador. O crime é pecado e o pecado é crime. Justiça é o cumprimento da lei, tendendo a identificar-se a lei positiva (do Estado ou da Igreja) com a lei natural e divina. E a interpretar como natural o direito positivado que interessasse ao sistema. Com a valorização e absolutização do direito positivo, posto, estabelecido resultará, para a Idade Moderna um positivismo jurídico sem transcendência. O válido, os valores não ultrapassam o definido e fixado. O julgamento feito pela Igreja vale como ordem para que o Estado imponha a sanção, quando não é ela mesma que o faz. O Estado de Cristandade criará um sistema repressor, que vai além das raias da loucura, com a Inquisição, como se verá. A Igreja, no Estado de Cristandade, de perseguida passa a ser agora perseguidora enquanto identificada com o Estado que, segundo a perspectiva romana, é absoluto. De 313 até a noite de natal do ano 800, podemos dizer que se completa a fusão e confusão entre Império Romano (indo-europeu) e cristianismo (semita), com dois núcleos ético-míticos que se

50

Cf. H.KRAMER e J. SPRENGER. O Martelo das Feiticeiras: Sobre a situação da mulher e da sexualidade na Idade Média e a Inquisição.


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mostravam inconciliáveis. O Estado de Cristandade resultante será identificado, por muitos e por muito tempo, com a Igreja Cristã (mesmo após as divisões entre protestantes e católicos em 1529...) ou também com a Civilização Ocidental, também chamada de cristã.

4. A Religião determina a Política - Uma Sociedade com duas cabeças 51 (800-1648) Dentro do Estado de Cristandade, muitas foram as formas de prevalência da Religião Cristã sobre o Estado. Desde a forma absoluta e quase teocrática sancionada pela bula “Unam Sanctam” do papa Bonifácio VIII em 1302 que pretende remeter-se à teologia de S. Paulo pela qual todo poder deriva de Deus e reinvindica a potestas directa Ecclesiae in temporalibus (o poder direto da Igreja nas coisas temporais) qualificando os soberanos como simples delegados e ministros destituíveis “ad nutum et patentiam sacerdotis”, até formas mais amenas de intervenção como a potestas indirecta Ecclesiae in temporalibus da Contra-reforma do Concílio de Trento (1542-1565) impondo limitações aos governantes quando as coisas terrenas digam respeito à salvação eterna dos governados. Por outro lado na luta contra um Estado que procurava subjugar a Igreja, quer diretamente alegando que a Igreja é uma parte do Estado, quer indiretamente dizendo que o Estado tinha imperium indirectum in spiritualibus (o poder indireto nas coisas espirituais) alegando que a autonomia da Igreja em matéria religiosa podia ser limitada pelo interesse temporal e político da socie-

51

A fusão de Cristianismo e Império Romano no Estado de Cristandade será visualizada até 1962, quando acontece o Concílio Vaticano II, como a construção de uma Sociedade Perfeita, única, com dois poderes ou cabeças: o Imperium e o Sacerdotium sendo o primeiro subordinado ao segundo.cf. CAMACHO, Ild. 256.


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dade civil,52 a Igreja, como veremos, criou uma tentativa de equilíbrio através de concordatas (século XV em diante) pelas quais os governantes católicos se faziam defensores da Igreja, protetores, ao mesmo tempo que ordenadores da igreja. Na noite de natal do ano 800 Carlos Magno, rei dos francos e descendente dos reis cristãos Meroveu e Pepino o Breve53, é coroado como “Augusto coroado por Deus, grande e pacífico imperador dos romanos” pelo papa Leão III. Nasce assim o Sacro Império Romano-Germânico ou simplesmente Império Cristão do Ocidente. Carlos Magno, na ocasião, estava irritado e surpreso porque o papa que o coroou era protegido seu contra os rebeldes romanos (rebeldia que ele sufocara atendendo o pedido de socorro do papa) e ele “não considerava de modo algum sua própria autoridade como limitada por uma soberania superior da Igreja. Legislava livremente em assuntos religiosos, fiscalizava todas as nomeações para cargos eclesiásticos e dava instruções aos sacerdotes e aos bispos, quer quanto à moral, quer quanto aos sermões”.54 Contudo, o fato de Carlos Magno ter sido coroado pelo papa, dará aos papas, de agora em diante, o argumento fundamental para definir as pretensões de supremacia da Igreja sobre o Estado. O raciocínio emblemático que servirá de base para o Estado de Cristandade será este: Deus é o dono, o proprietário do mundo; o papa é o representante de Deus na terra; o rei é o delegado do papa;55 os homens, para se salvarem, devem ser súditos do rei (que

52

Cf. BOBBIO, Norberto e MATTEUCCI, Nicola. Diccionário de política, pg. 623 e ss.

53

Pepino o Breve foi quem concedeu ao papa grandes áreas territoriais nas quais organizar-se-ão os Estados Pontifícios.

54

BURNS, 1968, I, pg. 272.

55

O papa seria o detentor de todo o poder no céu e na terra em nome e em lugar de Deus. Como lhe é impossível exercer o poder pessoalmente, por limitação física, então o papa delega o exercício de alguns poderes ( o poder civil ) a uma pessoa de sua confiança: o Rei ou Imperador.


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foi ungido pelo papa), fiéis do Estado de Cristandade e, portanto, subordinados ao papa, e assim obedientes a Deus. Como nunca, agora é usado o texto evangélico: “Todo poder me foi dado, no céu e na terra”... “tudo o que atares (perdoares) na terra será atado no céu, e tudo o que desatares (não perdoares) na terra será desatado no céu”56 como referindo-se a Pedro, o chefe dos apóstolos e primeiro papa. O significado teológico-religioso do texto se confunde agora com o significado econômico-político-social representado pelo Estado de Cristandade. O papa, enquanto representante de Deus, e detendo a totalidade do poder e da propriedade dos bens terrestres que são de Deus, e como não consegue exercer todo o poder pessoalmente, delega parte desse poder (o poder civíl, o poder econômico e político) a um rei, ungido por ele e subordinado a ele. Assim, a religião manda, determina, a política, a economia e a cultura. Quando um rei se sublevar, não aceitando ser subordinado do papa, será destituído e o povo impedido de obedecer-lhe e prestar-lhe fidelidade, como foi o caso de Henrique IV imperador alemão. Após 3 dias de penitente espera em plena neve, em Canossa, foi perdoado pelo papa e tornou à sua condição de imperador. O papa Inocêncio III declara que “é dever do papa olhar pelos interesses do Império Romano, pois que este deve a sua origem e a sua autoridade final ao papado”.57 A luta, porém, pela hegemonia do poder (secular x espiritual) dentro do mesmo Estado de Cristandade, prolongar-se-á até o século XX. Se, de 800 a 1648 predomina o poder da Igreja sobre o Estado, depois desta data acontecerá o contrário: o Estado dominará a Igreja. Ambas as posições, porém, pertencem ao mesmo Estado de Cristandade. A criação do colégio dos cardeais (1059), como eleitores do papa, afim de fugir à influência dos imperadores nessas indicações são parte dessa luta. 56

Mt, 16,19.

57

BURNS, 1968, pg. 362.


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Estado de Cristandade, juntando dialética e contraditoriamente a organização econômica, política, social e cultural do Império Romano e como substituto daquele império por um lado, e por outro a religião cristã com sua perspectiva monoteísta, profética, comunitária e de serviço, será marcado, consolidado e evidenciado pelo fazer histórico dos períodos que a Europa denomina de Idade Média e Moderna, por inúmeros fatos e influências como: • O desenvolvimento do feudalismo cujos traços foram aludidos acima; • A ascensão do poder temporal dos papas e da hierarquia eclesiástica e a constituição de bens e territórios ligados à Igreja e ao Vaticano, especificamente a formação dos Estados Pontifícios.58 • A centralização do poder eclesiástico e a constituição de uma estrutura burocrática de poder e representação do Vaticano. • Os movimentos milenaristas, o susto do ano 1.000 (alarmantes profecias do fim do mundo ao final do milênio) depois de um século e meio de desagregação social e econômica, de obscurantismo e deterioração cultural. • A arte românica59 das catedrais no caminho das peregri58

O papa João XXII, (1316-1334) “o mais forte e autoritário dos pontífices de Avinhon” determina a elevação de impostos em todos os territórios do Ocidente cristão para obter recursos e implementar obras, tendo recolhido a fortuna de mais de um milhão de florins, realizando obras ostentatórias e pondo em questão o valor da pobreza para os cristãos (especialmente contra os irmãos espirituais) e gerando protestos veementes na Inglaterra, França, Germânia, protestos esses que mais tarde reaparecerão na crítica que Lutero faz à simonia (venda de cargos eclesiásticos) e indulgências em 1529. O conjunto arquitetônico do Vaticano e seus museus revelam essa ambiguidade de fusão de religião e poder manifesto pelo Estado de Cristandade. Cf. LLORCA, VILOSCADA e MONTALBAN, Historia de la Iglesia Catolica, III, pg. 67 e ss.

59

As Igrejas da arte românica revelam bem o susto do ano mil. Os milenaristas pregavam o fim do mundo ao final do milênio. A arte revela a expectativa do Juizo Final que Cristo realizaria. Por isso as grossas paredes, com portas em funil determinando o limite entre o lugar sagrado e o profano, a quase penumbra no interior com luz filtrada de pequenos vitrais, os símbolos de Cristo Juiz acima da meia lua, a quase levitação das imagens que olham para frente na expectativa do julgamento e que não se ligam às outras imagens. Cada qual buscava a sua salvação e o perdão dos pecados como o pagamento das penas através de indulgências que eram oferecidas pela Igreja nas cruzadas ou peregrinações, na confissão e comunhão. Passado o susto do ano mil, a arte gótica que inicia por volta de 1150 celebra a vida a comunidade, a luz, o colorido numa renda de pedra que transforma toda a natureza em oração e alegria...


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nações, especialmente de Santiago de Compostela até Roma, tradução das penitências e expectativa do juízo final. • A unificação da Sociedade, Estado e Igreja (a Igreja coextensiva à sociedade) põe nas mãos da Igreja o controle da política e da Sociedade através de instrumentos como os da excomunhão e da interdição e especialmente através da Inquisição. • A Inquisição, instituição judiciária criada para descobrir e reprimir a heresia, nasceu em 1184 na Assembléia de Verona; teve a tortura e pena de morte estabelecidas contra os hereges com Inocêncio III (1198-1216) e tomou a forma definitiva com Gregório IX em 1231. Ela se constitui numa aberração indefensável. Situase no quadro contraditório do Estado de Cristandade: “De um lado a unificação ideológica, a ambição do poder político, a intolerância da constestação, baseada na coerção moral e física, apoiadas na excomunhão, no confisco dos bens, na guerra de conquista, na tortura, na prisão perpétua e na pena de morte em nome de Cristo. Do outro o despojamento total e a entrega social, física e espiritual pelo amor a Cristo” representado pelo reconhecimento da legitimidade eclesial da missão de Francisco de Assis e seus 11 companheiros em 1209 na basílica de S. Pedro.60 Processo hediondo aquele com delação, segredo, engodos e mentiras, tortura e penas cruéis em nome do cristianismo, em nome da manutenção da ordem, em nome do Estado de Cristandade. No Concílio Vaticano II a Igreja inicia a pedir perdão. • A insubmissão aos controles do Estado de Cristandade são tratados como heresias, crime e pecado e não como rebelião e radicalismo (ou dissidência) ante uma situação econômico-político-social injusta e anti-cristã: Pense-se nos cátaros ou albigenses; nos dualismos; na negação do mundo, do homem, da história; na reencarnação... na auto-salvação através da renúncia, da indigência, do sofrimento, e até do suicídio, da castidade; na fuga do mundo

60

BYINGTON, in KRAMER e SPRENGER. O Martelo das Feiticeiras, pg. 30.


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num espiritualismo desencarnado, contra a autoridade,61 contra os símbolos e imagens religiosas, contra os sacramentos. • O processo de educação que se concentra nos mosteiros, nas escolas catedrais implantadas por Carlos Magno, com sua “escolástica” e seu currículo de trivium e quadrivium.62 Escolas e Universidades tendo como autoridades Aristóteles e Platão, tendo seus reitores escolhidos pelos alunos e tendo um chanceler designado pela Hierarquia e seus professores autorizados por ela63 para debater as grandes questões ideológicas, filosófico-teológicas e do direito que afetavam a vida do Estado de Cristandade. • As guerras “santas” nelas incluídas as cruzadas (de 1096 a 1270). Assim o pacifismo cristão não terá mais espaço no Estado de Cristandade, e a guerra terá sua justificativa desde Santo Agostinho e depois Tomás de Aquino, Francisco de Vitória, etc como forma de garantir a paz. Como se o extermínio do outro, a guerra sob qualquer forma coubesse na concepção cristã e efetivamente garantisse a paz. Assim o Estado de Cristandade se faz antipacifista e sacralizador da guerra, especialmente quando esta vier travestida de “civilização, conquista e evangelização”. A instituição da cavalaria e da proibição de fazer guerra em dias e períodos considerados sagrados, ao mesmo tempo que disciplinam e restringem a brutalidade da guerra, ao mesmo tempo autorizam e sacralizam a guerra. • A separação entre as Igrejas cristãs do Oriente e do Ocidente (1054), entre a Cristandade Bizantina e a Latina, mais crise de poder do que crise de fé.

61

Se o único sacramento de salvação é o auto-sacrifício e o sangue da auto-tortura, a autoridade eclesiástica já não tem poder sobre os fiéis e sua salvação.

62

As sete artes liberais segundo Boécio eram: a gramática, a retórica, a lógica (trivium); a aritmética, a geometria, a astronomia e a música (quadrivium).

63

A primeira universidade, a de Bolonha, surge em 1088. Até 1453 já serão quase 60 universidades na Europa.


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Cada um desses fatos apenas exemplificativos consolida ainda mais a fusão entre Império Romano indo-europeu e a Igreja cristã, no Estado de Cristandade. O Estado de Cristandade como totalidade institucional e cultural acabada e suficiente em si mesma, dará aos cristãos segurança e até prepotência uma vez que eles, e só eles pensam deter as chaves do reino dos céus e a interpretação ‘correta’ e única da vida e da história. Ser europeu e ser cristão (entendido como participante do Estado de Cristandade) será uma e a mesma coisa. O Estado de Cristandade será o arquétipo determinante da identidade européia e de toda cultura gerada pela Europa. Ele será o determinante do Estado Colonial de Cristandade implantado pela Europa em toda a América. E a Europa procurará incorporar ao Estado de Cristandade, por todos os meios, a América, a África, a Ásia e a Oceania.

5. A Política determina a Religião - Duas sociedades soberanas. 1648-1962 No bojo da Idade Média, no seio do Estado de Cristandade, é gestada a Idade Moderna. Dentre as características fundamentais da Idade Moderna podemos destacar: o nascimento, a estruturação e o predomínio do mercado como condicionamento e determinante da economia, das relações sociais, da política e da cultura com a conquista e colonização do mundo; a laicização dos valores religiosos presentes no Estado de Cristandade sob a forma de simulação como é o caso da liberdade, da igualdade e da fraternidade; o estabelecimento da ordem burguesa como capitalismo mercantil, manufatureiro e industrial-financeiro liberal e sua contraposição, o socialismo; a interpretação científica e pragmático-tecnológica do universo como domínio apropriável e de produção; a tradução filosófica e ética do homem como subjetividade conquistadora e doadora do significa-


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do ao mundo e à história; em tudo a dialética contraditória de liberdade e propriedade. Por volta de 1453: • Passara o susto do ano mil, (o mundo não acabou... e a vida continuava); • Renasceram as cidades e constituíram-se as “burgos” com sua organização econômica e do trabalho (as corporações), com suas universidades e catedrais, recortando-se no contexto feudal como o “locus libertatis”; o servo da gleba, no interior da cidade se faz trabalhador livre na estrutura da corporação: aprendiz, companheiro, mestre. Nela, não se pode falar de exploração do trabalho por parte do mestre, propriamente dita. Quando o nepotismo toma conta da corporação e o burguês livre fortalecido pela relações comerciais propuser aos companheiros a formação de novas oficinas sob o regime de encomenda aprofunda-se a exploração do trabalho do companheiro pelo burguês proprietário da oficina e do produto. • Rearticulou-se a vida econômica e a acumulação do capital através do comércio “internacional” com o Oriente e não como fruto de um mercado interno (o mercantilismo como forma de organização econômica, política, social e cultural e predominantemente português no século XVI, espanhol no século XVII e inglês depois); • Ressurgiram e ou nasceram as instituições bancárias e da economia monetária tão necessárias ao comércio e ao mercantilismo nacionalista; • Declinou o feudalismo, com a unificação do Estado nacional e a reafirmação de suas funções (de garantir a ordem, a infraestrutura, a educação e a soberania) por força do interesse e do dinheiro dos banqueiros e burgueses, pelo apoio da nobreza em falência, pela colaboração da Igreja que quer o consenso religioso e o combate aos infiéis ao redor de um rei e uma dinastia; • Houve verdaderio “Renascimento” das instituições grecoromanas, como o direito, as artes (arte gótica), a literatura, e a


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concepcão naturalista do mundo própria da desmitização do universo operada pelos semitas (na direção das ciências) e da manipulação: o universo é objeto de manipulação, de conhecimento sensorial e matemático, objeto da “interpelação provocadora, asseguradora e calculadora, (...) (objeto da) interpelação produtora”,64 objeto de domínio técnico e científico, um fundo de reserva produtora calculável e manipulável; • Refez-se o mercado de mão de obra na direção do trabalho assalariado e escravo (diante do despovoamento das glebas: a peste negra de 134865 matara um terço dos europeus, em sua maioria servos da gleba; as cruzadas (8 de 1096 a 1270) e guerras dizimavam as populações mais pobres); desloca-se a produção dos ofícios das corporações para a produção de mercadorias de um mercado sempre maior, regido pela burguesia. • A Europa, nas mãos dos árabes e turcos islamitas, estrangulada tanto geográfica e territorialmente como economicamente (tomada de Constantinopla 1453) busca seu futuro no Atlântico; • As grandes descobertas como as da bússula, da vela triangular (caravela e toda a arte da navegação em escolas como as de Sagres), do canhão, da imprensa (cada uma delas é uma revolu64

HEIDEGGER, Martin. Carta a Kojima in O Fim da Filosofia ou o Começo do Pensamento, pg. 14 e 17.

65

De 1050 a 1350 a população européia triplicara. A urbanização crescente (e sem os mínimos princípios de higiene) e o desmatamento para acolher novas famílias originou secas e enchentes e por fim a peste negra. No mínimo um terço da Europa morreu. Villoslada e Llorca falam que metade da população morreu entre 1348 e 1350: cerca de 40 milhões de pessoas. “parece que se tratava de uma peste bubônica muito contagiosa que, partindo da China penetrou na Índia e na Ásia Menor; dali passou para o Egito e norte da África, enquanto desde Grécia e Constantinopola se extendia aos países eslavos e germânicos e até a França, Itália, Espanha, Inglaterra e mesmo Islândia e Groelândia” ...Em Avinhon morreram 62.000 pessoas, isto é metade de sua população Llorca, Villoscada e Montalban. Historia de la Iglesia Catolica III, pg. 107. Em conseqüência não havia quem cultivasse os campos, e a fome e a miséria atacaram a Europa. Os servos serão substituídos por assalariados com salários inflacionados. Surge então a solução da escravidão como força de trabalho, especialmente dos negros da África. Outra conseqüência da peste negra foi a peste moral e espiritual: grupos de penitentes, para buscar aplacar a ira de Deus, flagelavam-se até o sangue e até a exaustão: “O derramamento do sangue pela flagelação era o único e verdadeiro sacramento” de salvação . Ibidem 109.


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ção) inspiram outros horizontes e aventuras; Nessas circunstâncias a Europa (primeiro Portugal, depois a Espanha e França e culminando com Holanda e Inglaterra), rearticulada e imperial, formará seu projeto de expansão e conquista. Assim, um rei forte, com as armas e o poder econômico dos burgueses e, especificamente, dos banqueiros (que, de Florença e Veneza, se deslocam para a Espanha e Portugal); com a colaboração da nobreza agregada ao redor do rei; com a bênção, delegação e acompanhamento da Igreja, esses Impérios mercantis salvacionistas66 atiram-se sobre a América, sobre a África e sobre a Ásia, semitizando o mundo inteiro e implantando o Estado de Cristandade em toda parte como colonização e “tarefa civilizatória”. Assim a América Latina será “descoberta”, conquistada e transformada numa Cristandade Colonial e o Brasil num conjunto de latifúndios de monocultura, escravagista e exportadora. O ethos da Cristandade caracterizará nossos valores e instituições da América Latina, desde então. Aos poucos, os reis e príncipes, à frente de suas nações unificadas, com poder econômico que lhes vem do comércio (20%) e das manufaturas, com exércitos regulares para defender o comércio, adquirem cada vez mais força e contrapõem-se aos outros príncipes e ao papado para firmar sua autonomia e soberania. A soberania do Estado Nacional frente ao Império que, enquanto tal, absorvia e subordinava muitas nações e povos a um poder central que se dizia de direito divino, e frente à Igreja que pretendia ainda manter subordinados os Estados políticos à religião, será questão decisiva para o projeto da burguesia moderna. Já não se pensa numa sociedade perfeita e única com uma ou duas cabeças como se pensou no início e ao longo da Idade Média, 66

RIBEIRO, Darcy. As Américas e a Civilização. Petrópolis, Vozes, 1977 pg. 51... Na mesma Igreja de S.Pedro, no mesmo ano de 1209 o mesmo papa reconhece como legitimamente cristão a ordem franciscana do Povarelo de Assis e determina o extermínio dos albigenses no sul da França.


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mas em duas sociedades perfeitas (Igreja e Estado), cada uma delas com seu governo e soberania, sendo que, aos poucos, a soberania será requerida apenas para o Estado. A Igreja teria autonomia interna para regular sua vida, mas a vida externa da Igreja deveria ser regulada pelo Estado. A vida pública em sua totalidade deveria estar regulado pelo Estado. Religião e ética são vistas como de âmbito privado. Aliás, a Igreja e o cristianismo deveriam ser instrumento e ideologia do Estado.67 A soberania, aliás, já não é atribuída ao príncipe que governa por direito divino, nem ao Império ou ao Estado em si mesmo, nem ao papa ou à Igreja como hierarquia e sim ao povo. É o povo quem detém a autonomia e a soberania, dele é o poder de governar e legislar, é ele quem confere e delega ao governante o poder (Ulpiano). O povo é fonte do poder através do voto ou do costume (Juliano). Ele é o titular do direito e do poder mesmo quando delegue (temporária e revogavelmente) o exercício a um ou mais representantes como se fossem seus procuradores. O povo, em sua maioria (Marsílio de Pádova) atribui o poder executivo, nunca porém o poder legislativo que predomina sobre aquele.68 Quem será o povo? A totalidade dos cidadãos (universitas civium)? A totalidade dos que tem direitos civis? A massa da população incluindo os escravos e mulheres? Os que realizam o pacto social? A Idade Moderna tropeçará sobre suas próprias perguntas. Se, a partir de 1059, os reis, príncipes e imperadores já não podem se imiscuir na escolha do papa (agora escolhido internamen-

67

A obra de Marsilio de Padova Defensor Pacis (1326) exaltando o poder do imperador que, como encarnação do povo, deve conduzir à paz contra a discórdia provocada pelo papado, pregando uma monarquia democrática e eletiva, com todo o poder inclusive sobre a Igreja que é pars et officium civitatis, pregando uma coroação laica do Imperador, será usada para fundamentar a soberania do Estado e da Sociedade frente à Igreja e ao absolutismo na modernidade.

68

Cf. BOBBIO, Norberto. Diccionário de Política, Democracia, pg. 493 e ss.


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te pelo colégio cardinalício),69 pela Bula de Ouro de 135670 os papas se afastam de qualquer ingerência na eleição do imperador. Se a razão (no sentido grego) pretende emancipar-se da fé, se a política se emancipa da ética (Machiavel), se as Nações se emancipam de Roma, a Idade Moderna que inicia (oficialmente) em 1453 será a explosão das contradições do Estado de Cristandade. A revolução protestante (Zwínglio, J. Huss, Lutero, Calvino) e as subsequentes guerras de religião que culminam no Tratado de Paz de Westfália (1648) definirão dali para diante o Estado de Cristandade, onde já não será a religião quem determinará a política e a sociedade, mas ao inverso, a política definirá a religião. O tratado dirá: “Cujus regio ejus et religio”, isto é, a religião de um povo será definida pelo seu príncipe. Aos príncipes territoriais cabe o direito de reforma de suas igrejas, podendo desterrar de seus Estados a todos os que não se conformassem com a religião determinada pelo príncipe.71 Assim a Suécia será protestante porque seu rei (Gustavo Adolfo) é protestante. A Espanha será católica porque seu rei é católico... Mas o papa já não terá poder para definir, mesmo nos países católicos, a política desses países. O papa só poderá atuar sobre os países católicos como Portugal, Espanha e França através de uma concordata conhecida como de “Padroado”. Pelo Padroado os reis serão protetores e responsáveis pela religião em seus países. Eles indicarão os bispos (geralmente por

69

Em meio às lutas “Das Investiduras” em que os príncipes querem impor seus candidatos ao papado, o papa Nicolau II confia a escolha do papa aos cardeais. Para a eleição de um novo papa já não concorrem o povo, o clero ou os governantes políticos e sim apenas os bispos escolhidos especialmente pelo papa anterior para esta tarefa. Os bispos nomeados eleitores do papa chamam-se cardeais.

70

Pela Bula de Ouro editada pelo Imperador Carlos IV, o Imperador seria dali por diante eleito por 7 príncipes do Império, três eclesiásticos (os arcebispos de Mogúncia, Tréveris e Colônia) e quatro seculares ( O rei de Boêmia, o conde do Palatinado renano, o duque de Saxônia e o margrave de Brandeburgo), sem a intervenção do papa como acontecia até então.

71

VILLOSLADA, P.G. e LLORCA, B. História de la Iglesia Catolica, III. Madrid, BAC, 1960, pg. 887.


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lista tríplice) que lhe devem fidelidade por juramento, para que Roma os nomeie. Eles criarão e sustentarão o clero, as dioceses, os seminários, o culto e a pastoral...A religião ficará subordinada ao Estado e o príncipe terá mais poderes na organização religiosa que o próprio bispo ordinário. Nenhuma norma ou determinação religiosa vinda de Roma aplicar-se-á no âmbito de um Estado com o regime de Padroado, sem que o dirigente político aceite e aponha um “cumpra-se”. Por outro lado o rei será, como no Brasil Império, o árbitro supremo em dirimir as questões e conflitos religiosos.72 E nos países protestantes o príncipe, dentro do Estado de Cristandade, será o chefe e definirá absolutamente as questões religiosas. Quando o papa Alexandre VI (espanhol) pretender dividir o mundo descoberto entre Portugal e Espanha,73 o que acontecerá no tratado de Tordesilhas (de 1494), e ao comunicar aos países europeus a descoberta da América o rei espanhol receberá do rei da França, Francisco I, um comunicado sarcástico: ‘‘Gostaria que espanhóis e portugueses me mostrassem onde está o testamento de Adão, que dividiu o mundo entre Espanha e Portugal’’.74 Mesmo a função de intermediação do papado será cada vez mais contestada. A religião do Estado de Cristandade acaba quase como ideologia do Estado Moderno, tão longe do ideal dos primeiros 72

Quando os bispos D. Vital e D. Macedo pretenderem obedecer determinações do papa sobre a questão de aceitar ou não a permanência de maçons nas ordens religiosas, os atingidos recorrerão ao Imperador que determinará a reinclusão dos excluídos. Por não obedecerem, os bispos serão julgados e condenados à prisão com trabalhos forçados em 1874. Cf. BRUNEAU, T. Catolicismo Brasileiro em Época de Transição, 57 e ss.

73

“Não como árbitro internacional mas como vigário de Cristo e cabeça da cristandade” Alexandre VI, na Bula Inter Caetera (3.5.1493 e outra de igual teor em 4.5.1493) doa a Portugal e Espanha “as ilhas e terras firmes que descobriram ou descobrirão a ocidente” pertencendo a Portugal as que estiverem a oriente de cem léguas das ilhas dos Açores e as que estiverem a ocidente serão de Castela. O Tratado de Tordesilhas estabelece uma linha a 370 léguas dos Açores. LLORCA, VILLOSCADA e MONTALBAN. Historia del a Iglesia Catolica, III, 472.

74

AQUINO, JESUS, OSCAR:49.


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cristãos e que os “hereges” tanto quiseram reviver a seu modo. Será preciso que o Concílio Vaticano II (1962-1965) com a lucidez de um João XXIII, declare que é necessário “aggiornare” (atualizar) a Igreja, voltar às raízes... para que o Estado de Cristandade seja definitivamente posto em questão. A partir do Vaticano II, um pouco por toda parte, entre católicos e protestantes inicia aquilo que Pablo Richard denominou “Morte das Cristandades e renascimento da Igreja”.75 Numa Idade Moderna, que, para os europeus, inicia com os descobrimentos (1453) e termina com a Revolução Francesa (1789), e numa Idade Contemporânea que, também para os europeus, inicia com a Revolução Francesa e vai até hoje, que núcleo ético-mítico prevaleceu? Tentaremos relacionar dele alguns traços elementares que modelam a identidade do Ocidente: • O capitalismo mercantil (até 1648), manufatureiro(até 1767), industrial (desde 1767)76 e, agora, pós-industrial nascido do

75

São Paulo, Paulinas, 1982.

76

“A sociedade burguesa moderna, que brotou das ruínas da sociedade feudal...simplificou os antagnismos de classe ... entre burguesia e proletariado. Dos servos da Idade Média nasceram os burgueses livres das primeiras cidades; desta população municipal, saíram os primeiros elementos da burguesia. A descoberta da América, a circunavegação da África ofereceram à burguesia em ascenso um novo campo de ação. Os mercados da Índia e da China, a colonização da América, o comércio colonial, o incremento dos meios de troca e, em geral, das mercadorias imprimiram um impulso, desconhecido até então, ao comércio, à indústria, à navegação, e, por conseguinte, desenvolveram rapidamente o elemento revolucionário da sociedade feudal em decomposição. A antiga organização feudal da indústria, em que esta era circunscrita a corporações fechadas, já não podia satisfazer às necessidades que cresciam com a abertura de novos mercados. A manufatura a substituiu. A pequena burguesia industrial suplantou os mestres das corporações; a divisão do trabalho entre as diferentes corporações desapareceu diante da divisão do trabalho dentro da própria oficina... A própria manufatura tornou-se insuficiente; então, o vapor e a maquinaria revolucionaram a produção industrial. A grande indústria moderna suplantou a manufatura; a média burguesia manufatureira cedeu lugar aos milinários da indústria, aos chefes de verdadeiros exércitos industriais, aos burgueses modernos. A grande indústria criou o mercado mundial preparado pela descoberta da América. O mercado mundial acelerou prodigiosamente o desenvolvimento do comércio, da navegação, dos meios de comunicação...” MARX, K. e ENGELS, F. Manifesto do Partido Comunista, 1848. In Textos, pg. 22-23.


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e no Estado de Cristandade,77 estabelecerá a liberdade de empreender e de contratar como valor absoluto, e como sinônimo da liberdade e das liberdades, que determinará as relações de produção e de acúmulo do capital, a organização social, a organização do Estado e da política, a cultura, a religião numa perspectiva indoeuropéia travestida de cristianismo...Em tudo, porém, prevalece o Estado de Cristandade. Pelo mercantilismo a Europa estabelecerá a articulação da América, da África e da Ásia num sistema colonial que enriquecerá a metrópole e jungirá a colônia como Terceiro Mundo dependente econômica, política e culturalmente. Em cada fase do capitalismo (mercantilismo, manufatura, industrialização, crises de mercado, Estado do Bem Estar Social, Trilateral e o grupo dos 7, agora dos 8) o fôsso entre Norte e Sul, entre Metrópole e Colônia, entre Primeiro e Terceiro Mundo mais se agravará. A teoria da dependência a partir de 1950 o evidenciará. O mercado é a nova divindade e a nova religião: onisciente e todo poderosa, insondável e portanto intocável. A mão invisível do mercado conduz a história dos homens ao progresso contínuo e indefinido, à perfeição.78 O progresso como acúmulo de riquezas 77

Cf. WEBER, Max. A Ética Protestante e o Espírito do Capitalismo. É por demais conhecida a ilação que se extrai de Calvino: Porque entre o homem e Deus há um abismo insondável e porque o homem é absolutamente pecador e pecado, por isso não há ponte entre o homem e Deus. O homem não é capaz de se salvar. Só Deus é capaz de salvar o homem. E o faz gratuitamente, privilegiando alguns com a pré-destinação para a salvação. Não há injustiça no fato de Deus só pré-destinar alguns para a Salvação. Quem é pre-destinado é abençodado, quem é abençoado tem sucesso. O sucesso se mede pelo dinheiro, e o dinheiro se acumula com trabalho e poupança no planejamento. Quem não tem sucesso é porque não foi abençoado por Deus. Por isso se um homem pré-destinado por Deus para a salvação deixar de atender a seu sucesso e progresso, para atender a seu irmão ou amigo necessitado (portanto não abençoado) pondo em risco a bênção e a salvação é um insensato. “Amigos são amigos, negócios à parte”. O progresso, o sucesso, a usura (que para os cristãos era pecado), o lucro, o segredo como alma do negócio passam a ser éticos, manifestação de salvação, a própria manifestação de Deus. O egoísmo passa a ser a maior virtude. A compaixão, a comiseração, o amor são então pecaminosos, sentimentalismo que deve ser combatido. A dureza de coração, a frieza, a busca do sucesso, essa é a virtude.

78

cf. SUNG, Jung Mo. Teologia e Economia. Petrópolis, Vozes, 1994 e ASSMANN, Hugo - HINKELAMMERT, Franz. A Idolatria do Mercado. Petrópolis, Vozes, 1989.


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ou de técnicas de produção que visam sempre a maiores e mais rápidas riquezas, justifica-se por si próprio. É o fatal caminho da história. O mercado inicialmente era apenas o lugar da compra e venda de bens excedentes, o lugar do comércio, o lugar em que os bens produzidos, não para o consumo e sim para a troca, eram transformados em “objeto de compra e venda”, em mercadoria. Esses lugares privilegiados em cada cidade e encruzilhada (dos caminhos que, ao final da Idade Média européia, conduziam os comerciantes internacionais de feudo em feudo), as “feiras” e suas praças, tornaram-se não só o núcleo geográfico-habitacional de maior relevo e expressão, como também o próprio símbolo da sociedade. Hoje os shopings e a internet são esses locais. O mercado passou depois a significar o próprio comércio, a instituição do mercadejar, do comprar e do vender. Nessa instituição, cada vez mais abstrata e simbólica, desvinculando os bens e produtos das necessidades dos homens,79 e transformando os desejos em necessidades, tudo se transforma em mercadoria. A mercadoria se transforma em fetiche e, enquanto tal, anuncia-se como misteriosa realidade que tem leis próprias que ultrapassam a racionalidade do homem, que ultrapassam o cálculo e o controle do homem. Só o mercado conhece os caminhos da história. Só ele dirige a história. Suas leis são as “leis naturais” da evolução e da história. Assim as leis econômicas e sociais são “naturalizadas”. E a naturalização da sociedade transferirá para esta as conclusões de Darwin (sobre a origem e evolução das espécies vivas, sobre a sobrevivência do mais forte e apto na luta pela vida), com Spencer, Malthus, e todos os novos darwinistas sociais.

79

Se, para a época do mercantilismo (até 1648...), a riqueza era identificada com moeda e metais preciosos; se a riqueza foi depois identificada pelos fisiocratas, com a terra e a natureza que, só elas produzem os bens, se depois a riqueza foi identificada com a capacidade produtiva ou com o mercado comprador...hoje a riqueza é abstratamente a lucratividade de apostas sobre apostas representada por impulsos de computador: o cassino do mercadejar em si mesmo.


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Com isso, retira-se toda responsabilidade política, ética ou moral sobre o mercado, sobre o emprego e o desemprego, sobre a exclusão e o acúmulo de renda: tudo se faz inevitável.80 O homem deve evitar a “tentação” de querer conhecer o mercado para nele interferir (o que representa um sacrilégio contra o homem, contra a História e contra a liberdade) especialmente para extrair dele políticas sociais que visem a atender os excluídos. Os excluídos, foram excluídos do mercado (do mercado de trabalho, de consumo, da propriedade) pelo próprio mercado porque incompetentes, peso histórico que a própria lei ‘salutar’ da livre concorrência procura afastar. Não há porque, e mesmo porque seria um pecado contra a história e contra Deus que criou a liberdade, interferir no mercado. Não há porque ter compaixão dos excluídos. Não há porque tentar incluí-los num sistema que os julgou inaptos e, por isso, os relegou à exclusão e à sua própria miséria. A culpa da exclusão é dos próprios excluídos. Os desempregados são desempregados porque não tem a competência exigida pelo mercado. E a competência é tarefa exclusiva do competidor. Ou, então e contraditoriamente, é graça e predestinação de Deus. Assim os privilégios sociais são mérito dos competentes. É uma lei “natural”. Assim a economia e suas relações determinam inapelavelmente a política, a cultura e até a religião. Assim, a virtude, hoje, consiste em ser egoísta (cuidar de si e de seus negócios com competência) ajudando o mercado a progredir e não perder tempo e atrasar o progresso histórico com incompetentes e ‘naturalmente’ perdedores. Se cada um for egoísta e cuidar de si, o mercado arranjará tudo, da melhor maneira possível, articulando, ligando, e endereçando o interesse de cada um para o progresso da história de todos. E nada poderá resistir à lei e a auto-determinação de progresso e globalização desse mercado.

80

FORRESTER, V. O horror econômico, pg. 106.


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Por isso o capitalismo liberal e neo-liberal insiste tanto na qualificação da mão de obra como a chave para resolver o subdesenvolvimento, o desemprego e as crises. A culpa do desemprego é sempre do desempregado. A solução passa por sua qualificação cada vez mais sofisticada. Na maior produtividade do trabalho está o lucro do empresário e o emprego do assalariado. Mesmo, quando todas as estatísticas mostram que nenhuma qualificação da mão de obra resgatará o emprego para todos os trabalhadores que foram excluídos do trabalho pela mecanização e por toda a tecnologia, ainda assim se propala que a escola, a qualificação do trabalhador é o passaporte seguro para o emprego ou trabalho. Mesmo quando se sobe que o desemprego maciço e mundial que cresce a cada dia é irreversível dentro dos parâmetros do mercado moderno. Os dados mais otimistas apontam para o retorno possível de ¼ dos desempregados, via qualificação.81 Os excluídos, dizem, não o são apenas porque não tiveram sorte, porque abandonados pela fortuna eventual mas, os são, porque culpados ética e religiosamente. Não foram pré-destinados por Deus para a salvação. São pobres, miseráveis (em todos os sentidos), excluídos porque viciados (preguiçosos, indolentes, vagabundos, "lumpen" andrajosos, sem caráter, (traidores). E, enquanto maus, não merecem compaixão: merecem castigo, controle, punição. Neles não se pode confiar. Tudo, neles, está pervertido: a higiene, a moral, a família, a cor... Só se pode confiar em quem faz por merecer a confiança e estes tem sucesso na vida e não são excluídos.

81

O capitalismo que quer única e exclusivamente o lucro, não tem como objetivo criar empregos e lugares de trabalho. Mesmo quando os políticos prometem empregos a todos, mesmo quando se subvenciona o capital para que ele crie empregos, mesmo quando toda a cultura ocidental cimentada sobre o trabalho como valor exige que os “desocupados” procurem emprego, isto tudo não passa de disfarce para o desespero e para o horror econômico gerado pelo capital que torna dispensáveis cada vez mais e em maior velocidade aos empregos assalariados. Cf. Forrester, Op. Cit.


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O capitalismo nasce como bem anotou Marx, do fetichismo da mercadoria e do mercado: uma simbiose de propriedade e religião, uma síntese de indo-europeu e semita em sua contradição: o Estado de Cristandade. Impressiona ver como a linguagem utilizada pelos teóricos do mercado e do fim da história, Friedmann, Hayek, Fukuyama, é uma linguagem totalmente religiosa e retirada do âmbito religioso gestado pelo Estado de Cristandade. Fala-se de um conhecimento místico do mercado, da incognoscibilidade e das virtudes divinas do mercado que põe e julga a história premiando os bons (competentes) e castigando os maus (com o inferno da exclusão, do desemprego, da fome e da morte). Fala-se da virtude, da esperança, da parusia... O modelo é o do Estado de Cristandade laicizado e transformado em religião do mercado. • O trabalho não é visto como o exercício criador, comunicativo e livre do homem, como realização, mas como castigo, pena. Ou é exercido para acumular poupança e ter sucesso econômico e social, demonstração da pré-destinação para a salvação eterna, na teologia calvinista. O trabalho já não é a expressão e realização comunicativa (lingüística) da identidade e dignidade do homem: trabalho vivo. Não é a inserção do homem no universo que o cerca buscando nele a utilidade de bens que satisfaçam suas necessidades, ao mesmo tempo que acrescenta harmonização “ecológica” e estética ao mundo e faz do mundo um gesto de comunicação com o outro homem e com a transcendência. O trabalho passa a ser visto apenas como manipulação e dominação da natureza, subordinando-a à veleidade do homem proprietário. O trabalho é determinado pela propriedade e existe em função dela. A propriedade como riqueza e poder se constitui, se mantem e se expande através do trabalho próprio ou, e antes de mais nada, através da exploração do trabalho dos outros: como força de trabalho. O trabalho produz a riqueza e os bens para saciar as


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necessidades, mas também e principalmente produz bens excedentes destinados ao mercado. Produzir bens excedentes para o mercado é, para o proprietário, a função essencial do trabalho. Trabalhar produzindo bens para além das necessidades da auto-reprodução da vida social de trabalhador é realizar um trabalho a mais, um plustrabalho que se traduzirá em mais tempo de trabalho ou em maior produtividade do mesmo tempo de trabalho. A exploração desse plus é a essência do capitalismo.82 O trabalho será apenas um ingrediente na produção do capital, subsumido no capital, como força de trabalho. Nesse sentido o trabalho nada tem a ver com o homem, nem com as necessidades do homem, nem com o sentido da vida do homem. Tanto faz se o trabalho for realizado por um animal, por forças da natureza ou pelo músculo do homem. O homem fica desvinculado do trabalho e de seu produto. Por isso o trabalho pode ser visto como esforço, desforço, força, desvinculado da finalidade e do valor: apenas ergonomia. Por isso, nessa perspectiva, subsumido no capital, o trabalho não pode se ligar à festa do consumo, às necessidades saciadas que refazem a vida e à solidariedade humana. Trabalho será apenas desforço, luta e castigo e a divisão do trabalho será a lógica dessa luta e castigo. E para sacralizar essa visão do mundo e do trabalho, nada melhor do que cantar o mundo como “um vale de lágrimas”, lugar de “desterro”. E então a religião não passará de “ópio do povo” que, alienado de sua dignidade de homem constituída por sua natureza criada e criadora para construir um mundo solidário na esperança, passa a “agüentar” o mundo e a vida como opostos ao divino e à graça enquanto localiza o céu fora do mundo, para além do mundo. 82

“Com o desenvolvimento da burguesia, isto é, do capital, desenvolveu-se também o proletariado, a classe dos operários modernos, que só podem viver se encontrarem trabalho, e que só encontram trabalho na medida em que este aumenta o capital. Esses operários, constrangidos a vender-se diariamente, são mercadoria, artigo de comércio como qualquer outro; em consequência, estão sujeitos a todas as vicissitudes da concorrência, a todas as flutuações do mercado” MARX, ENGELS. O Manifesto... in Textos, pg. 26-27.


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Como se o céu e o inferno não iniciassem aqui, não se expressassem aqui e não se prenunciassem na obra do homem e na realidade mundana. Como se o mundo não fosse sacramento. O mundo é prenúncio do céu, da plenitude da história e do homem, plenitude esta que nunca coincide com a obra do homem, de um período ou de todos os períodos históricos. Que os ultrapassa, que os perfura mas se planta aqui, inicia aqui, inclusive como utopia. Mas isto é negado pela modernidade no bojo do Estado de Cristandade. Na modernidade, o trabalho ou é alienação do homem ou é a concreção do homem como absoluto, o que não deixa de ser radical alienação em favor da subjetividade, em favor do lucro, da riqueza e do poder em si mesmos. Produzindo para o mercado do capital, o trabalho também é visto como mercadoria, cujo valor é determinado pelo mercado. O próprio capital não é senão o acúmulo de quantidade sempre maior de trabalho expressa em dinheiro. Acumulação essa que, reinvestida de ciclo em ciclo, tornou-se hoje super-acumulação e consequentemente um subconsumo que, no limite do sistema orgasticamente impulsionado pela revolução micro-eletrônica leva o capitalismo à fronteira de sua loucura.83 A Idade Moderna reduziu o trabalho à força produtiva do capital e da propriedade e, como tal, na lógica da produção, transformou-o vertiginosamente em supérfluo. Como o homem se reduz à força de trabalho, tanto o trabalho como o emprego e o homem, no mercado feito global se fez supérfluo, estorvo, prejudicial à propriedade e ao capital. E hoje o mercado globalizado e total determina a dispensabilidade do trabalho e dos trabalhadores em escala gradativa, célere e irreversível, excluindo do mundo da vida que, para o Ocidente é apenas o mundo do trabalho, quase 500 milhões de

83

Cf. KURZ, R. Os últimos combates, pg. 328-329.


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trabalhadores.84 Ao mesmo tempo que corta empregos, “efetivos”, como racionalização da economia e como a norma mais eficaz para economizar, e vive a realidade do não-emprego, cinicamente se age como se os empregos voltassem, como se a crise fosse apenas temporária, que a retomada do emprego é apenas questão de mais qualificação da mão de obra, apenas questão de empenho e procura. E não só as empresas, como também os governos subservientes a esse “pensamento único” que reina depois da queda do muro de Berlim,85 fazem suas “lições de casa” cortando os efetivos, culpando os funcionários como causadores dos desequilíbrios das contas públicas. A lógica da lei “Camata”, no Brasil obedece a essa doutrina de minimização do Estado a serviço do mercado. Ao mesmo tempo em que se praticam os rituais de promessas de empregos para todos: “rituais nos quais cada um pretende acreditar, a fim de melhor persuadir-se (cada vez mais dificilmente) de que se trata apenas de um período de crise, e não de uma mutação, de um novo modo de civilização já organizado, e cujas lógicas supõem a evicção do emprego, a extinção da vida assalariada, a marginalização da maioria dos humanos”.86 Lógica que diz que é preciso demitir para evitar o desemprego. Que diz ainda que o desemprego é um mecanismo salutar da lei de livre concorrência para estimular a todos à qualificação e à produtividade através da rotatividade do emprego e que fora do trabalho não há salvação e que o trabalho, assim como o objeto do amor, é tanto mais querido quanto mais ausente e difícil. E, religiosamente, cita-se a Bíblia em que o homem é condenado a ganhar o pão com o suor de seu rosto

84

Segundo as estatísticas da OIT de 1997 haveria no mundo mais de um bilhão de pessoas desempregadas ou sub-empregadas e a previsão de alguns analistas é a de que em 2.010 haveria no mundo trabalho apenas para 20%, se tanto, dos homens. 80%, excluídos do trabalho e do mercado, estariam condenados à miséria e à morte. Cf. A Armadilha da Globalização.

85

FORRESTER, V. pg. 101.

86

FORRESTER, pg. 107.


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(Gen, 3) ou S. Paulo quando diz que quem não trabalha não merece comer,87 para sacralizar o trabalho traduzido como emprego. Interessante é observar que num sistema de luta por mercados que originou duas guerras mundiais e mais de uma centena de guerras regionais, depois da crise de 1929 e o subsequente Estado do Bem Estar Social sugerido por Keynes que ofereceu ao gueto dos países mais industrializados um bônus de privilégios sociais e se acenou que eles poderiam ser para todos os países, agora, após a queda do muro de Berlim e o desmoronamento da União Soviética(1989), os verdadeiros objetivos do sistema, tornado global, tornaram-se patentes: “da exploração à exclusão, da exclusão à eliminação” dos trabalhadores que se fizeram supérfluos e nocivos cada vez mais ao sistema.88 Esvaziaram-se os partidos e os sindicatos que, agora pregam o Acordo Trabalhista pelo qual, para salvar a integração ao mercado de trabalho, é preciso resignar-se a aniquilar os ganhos sociais dos tempos keynesianos do Estado de Bem Estar Social. Trabalhar mais recebendo menos, sem segurança do emprego e sem previdência, saúde, habitação e segurança.89 E os anunciadores dessas medidas encolhem os ombros e dizem com a maior sem-cerimônia: “infelizmente” não há outro caminho a tomar. As leis do mercado e da globalização o exigem. É preciso escolher dentre os males o menor. “Infelizmente” não há lugar para todos, dirá FHC ao anunciar as medidas de adequação às exigências do mercado representado pelo FMI. “Infelizmente” haverá mais desemprego, mais inflação, decréscimo econômico. “Infelizmen-

87

“A sublimação, a glorificação, a deificação do trabalho provêm daí. Não apenas ruína material suscitada pela sua ausência. Se o Padre Eterno lançasse hoje a maldição: “Ganharás o pão com o suor do teu rosto!”, isso seria entendido como uma recompensa, como uma bênção! Parece que se esqueceu para sempre que, até bem pouco, o trabalho era muitas vezes considerado opressor, coercitivo, infernal, geralmente.” FORRESTER, pg. 112.

88

FORRESTER, pg. 17.

89

KURZ, R. Os últimos combates, 314 e ss.


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te”... Como se não houvesse possibilidade e responsabilidade política nenhuma ante a sanha do deus mercado global. Mas este será apenas um breve período de crise. Depois?...Bem, depois é outro capítulo. E nós temos que ser objetivos, realistas, atendo-nos aos dias atuais! O ideal, a utopia da sociedade moderna centrada no mercado será a riqueza, a opulência, o consumismo. Viver para ganhar dinheiro. E isso significará o acúmulo geométrico de bens por uns poucos, a concentração sempre maior da riqueza e o empobrecimento progressivo de cada vez maior parcela da sociedade. Em nome do “crescei e multiplicai-vos...dominai a terra” do Gênesis, uns poucos, sob a inspiração da “liberdade” e da “predestinação”, estabelecem o privilégio e a propriedade exclusiva como utopia e como realidade “cristã” e “humana”. E a lógica do capital que busca reproduzir-se e multiplicar-se a si mesmo, por si mesmo e para si mesmo, é encarada como óbvia e “natural”, mesmo que para ela sejam sacrificados os homens com suas necessidades, com sua fome, seu frio, sua carne e seus desejos. A pobreza como exercício da liberdade, da fraternidade, da ternura e do serviço solidário dos primeiros cristãos e de um Francisco de Assis (1188-1226) parece aberração para a Idade Moderna, quase um escândalo, como foi a ternura vigorosa de Cristo. Ser pobre (que não significa ser miserável), ser simples, ser pequeno, é prejuízo, negação do homem e do humano. A qualidade melhor de vida se mede pelo ostentatório, pelo grandioso, pelo acúmulo progressivo, pelo volume de consumo. E para que haja ostentação, é preciso que haja miséria, fome, indigência. A sacralização dessa utopia gestada na Idade Moderna permite que a exibição de fabulosas riquezas acumuladas por poucos à custa do trabalho de muitos que descambam para a miséria, não seja vista como escandalosa, como acinte, deboche, provocação, e sim como manifestação da bênção de Deus.


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• A propriedade, praticamente absoluta, ao estilo indoeuropeu, como co-natural ao homem.90 Ser é ter, ter é poder, poder é saber e o saber que importa é o lógico, o matemático, o científico enquanto leitura calculada e mensuração do universo, e que se faz técnica: instrumento de intervenção no universo. O livro da natureza está escrito em figuras geométricas e fórmulas matemáticas, quem não conhece matemática e geometria não saberá lê-lo, diriam Copérnico e Galileu.91 A apropriação do universo como depósito calculável de produção, se faz pela técnica e esta se imposta lógicomatemático-experimentalmente. O universo é objeto calculável e manipulável diante de um sujeito demiurgo e produtor. A propriedade como poder absoluto e ilimitado de manipulação (“é meu e faço dele o que eu quiser”) é correlata à subjetividade absoluta da modernidade. Toda limitação da propriedade é uma intra-limitação, uma auto-limitação, e, na verdade, uma simulação de limitação, porque é apenas uma hetero-limitação, exigindo uma limitação dos outros até o sacrifício da própria vida.92 O capitalismo como autodetermi90

Apesar dos protestos veementes que encontramos ao longo da Idade Média e Moderna como o de Santo Agostinho que insistia que o que nós possuímos de supérfluo pertence aos pobres, ficar com o supérfluo é roubar dos pobres que não tem o necessário.

91

HIRSCHBERGER, J. História da Filosofia Moderna, pg. 51.

92

Na “Civilização” européia ocidental a propriedade não é tomada como meio, instrumento para a realização da vida do homem, para o bem estar dos homens. Ela é fim e o fim de todos os fins. Por ela tudo se faz instrumento. Assim a organização social, política, cultural e a própria religião tornam-se instrumentos, mediações da propriedade, o direito mais fundamental e sacrossanto. Da propriedade derivam todos os direitos e todas as obrigações. Identificar alguém como proprietário é definí-lo como portador constitutivo dos direitos. Exemplo disso pode ser encontrado nos processos jurídicos no forum de Pelotas em que uma das partes pretende fazer vingar sua proposição porque “proprietário”. A própria posse é definida juridicamente como decorrente da propriedade. Como propriedade menor, definida em seus contornos pela propriedade. Quem tem a propriedade tem mais direito do que quem tem a posse. Esta é realização, concretização daquela. A posse só tem sentido jurídico quando jungida à propriedade. A propriedade se tem independentemente da posse. Isso se evidencia ainda mais quando a posse leva à propriedade como no caso do usucapião. E a propriedade exclusivista da Sociedade Moderna burguesa só prospera pela eliminação progressiva e cumulativa da propriedade dos trabalhadores, e do produto do trabalho, diria Marx em seu Manifesto.


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nação (por parte das elites) da economia e da organização social e política, exige e impõe limites aos participantes do mercado, limites e exclusões que deveriam ser aceitos como lei natural da evolução e da história, em nome da onisciência do mercado, em nome da auto-reprodução do mercado. O Estado de Cristandade, sacralizando a propriedade e nela subsumindo a liberdade pessoal e relacional como o trabalho, fundindo-a num instituição de poder e riqueza, deu autonomia à propriedade que, laicizada, se fez a nova divindade do mercado. E temos, então o protótipo de homem ocidental: proprietário, masculino, solitário, ganhador de dinheiro e fazendo do ganhar dinheiro o seu ideal, sua ética e sua divindade. A salvação se mede pelo sucesso, o sucesso pelo dinheiro, o dinheiro pelo processo acelerado de sua acumulação. Já está sobejamente discutida a influência que as relações econômicas de produção exercem sobre a organização social, sobre a organização política, sobre a instituição de valores, símbolos e expressões culturais e religiosas de uma sociedade. Relações econômicas de cooperação, de colaboração tendem a favorecer uma sociedade de estruturas sociais, políticas e culturais solidárias. Relações econômicas de exploração do trabalho, com plus trabalho e plus valia, tendem a gerar uma sociedade, uma política e uma cultura de exclusão e exploração. Não é preciso insistir que o rebote de uma cultura, de relações políticas e sociais assimétricas podem influir e muito sobre a mudança das relações econômicas. O que fica evidente, porém, é que no Ocidente operou-se a sacralização de um modo de produção, de um modo excludente de sociedade, de uma cultura da exclusão (incluindo a absolutização da subjetividade) e que isso resultou da laicização das estruturas do Estado de Cristandade. Como nunca o materialismo histórico de pensar a economia e o mercado como constituintes da política, da cultura e até da religião se tornou a ideologia da classe dirigente. Na identidade das estruturas políticas do Ocidente que trazem a marca do Estado de Cristandade, queremos destacar apenas


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exemplificativamente: O Estado, a Democracia, a Participação, e as estruturas legais. • O Estado Nacional. Para garantir os interesses mercantilistas da burguesia nascente a Europa Moderna gestará o Estado Nacional. Ou, como diz Darcy Ribeiro: impérios mercantis salvacionistas.93 Para assegurar o comércio internacional, dentro de uma Europa feudal, agrária, com o Estado pulverizado em minúsculos feudos em permanentes tropelias e confrontos, a burguesia nascente precisa unificar e fortalecer o Estado.94 Aliam-se nesta empresa os interesses de um rei suserano que quer impor seu mando sobre os outros vassalos e fortalecer a coroa; o interesse dos comerciantes que querem menos impostos para seu comércio e garantia militar; o interesse dos nobres empobrecidos que buscam títulos e posição; o interesse do clero que visa a dilatar a fé e combater os infiéis. Surgem assim os Estados Nacionais europeus a começar por Portugal (1383) e Espanha (1492). O Estado Nacional se fez o modo político da Europa Moderna. Unificando as funções do poder nas mãos do príncipe definido como soberano que garantiria “a paz interna do país, a eliminação do conflito social, a normalização do exercício da força através do exercício monopolista do poder” a modernidade criará o Estado Moderno unitário, centralizado, totalitário e absoluto (Hobbes), como máquina e aparato “para a gestão do poder, operando segun-

93

As Américas e a Civilização, pg. 54.

94

Marx e Engels, no Manifesto do Partido Comunista de 1848 assim descrevem o avanço político da burguesia: “Classe oprimida pelo despotismo feudal, associação armada administrando-se a si própria na comuna; aqui, República urbana independente, ali, terceiro estado, tributário da monarquia; depois, durante o período manufatureiro, contrapeso da nobreza na monarquia feudal ou absoluta, pedra angular das grandes monarquias, a burguesia, desde o estabelecimento da grande indústria e do mercado mundial, conquistou , finalmente, a soberania política exclusiva do Estado representativo moderno. O governo moderno não é senão um comitê para gerir os negócios comuns de toda a classe burguesa” Manifesto...in Textos, pg. 23.


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do procedimentos cada vez mais definidos” pela racionalidade e técnica.95 Até a Revolução Francesa, pode-se dizer que o aparato de gestão social e política do poder unificado no Estado de Cristandade, separa cada vez mais a organização social (das camadas, hierarquias e classes sociais) do exercício exclusivo do poder político por parte do Estado. O Estado Moderno unificado na pessoa de um “soberano”, soberania que terá também e acima de tudo um caráter territorial, deixará, aos poucos de depender do auxílio financeiro dos nobres e de seu controle de gastos, para, através do controle financeiro e econômico da sociedade dispor de seu próprio fundamento financeiro e assim manter seu exército, sua estrutura burocrática e suas políticas. Ao invés de realizar a interlocução de poder com as “camadas sociais” e seus representantes (a nobreza, o clero e o terceiro estado) o príncipe realiza a interlocução com os indivíduos (súditos e ou cidadãos) e seus interesses. A mediação dos interesses individuais é realizada pela burguesia como classe hegemônica porque dominante economicamente. Assim o Estado Liberal, com fundamento na racionalidade subjetiva da modernidade e não mais na fé ou no direito divino dos reis faz-se instrumento de domínio da classe dominante. O objetivo desse Estado (mundano, racional e técnico) é o bem estar da sociedade (subentendendo que o bem comum é o da classe dominante), a ordem e a superação dos conflitos sociais. Um estado cada vez mais burocrático que, no domínio e hegemonia da burguesia, esconde o processo crescente de exclusão dos dominados. Este Estado terá como racionalidade e lógica a defesa do mercado (espaço específico de domínio e hegemonia da burguesia), a regulação dos interesses do mercado (com sua liberdade de contratar e empreender), a defesa do capital e de sua lógica.

95

SCHIERA, Pierangelo. In BOBBIO, N....Diccionario de Política, pg. 632.


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Dir-se-á depois que o Estado laico (sem interferência ou dependência religiosa de qualquer credo e especialmente de qualquer hierarquia clerical), técnico e neutro como o pretendem ser a ciência e a técnica modernas, operando com critérios de racionalidade (econômica, política, ética e cultural), e impessoalidade,96 tendo a legalidade e publicidade dos atos como fundamento, será a realização dos ideais de “igualdade, liberdade e fraternidade” tão sonhados pela humanidade. Assim a universalidade e moralidade dos atos políticos (vistos como racionalidade subjetiva) garantiriam a igualdade social, o bem estar de todos e a paz. Nem se cogita da inseparabilidade dos interesses econômico-sociais em relação aos interesses políticos. Bastará dar igualdade política (todos são iguais perante a lei) para que haja igualdade econômica e social. Na verdade, o Estado Moderno será o instrumento de domínio dos que detêm o domínio econômico e a hegemonia socialcultural. Verdadeiro instrumento de exclusão e de justificativa da exclusão. E tudo em nome dos princípios mais sagrados cultuados pelo Estado de Cristandade. A igualdade, a liberdade, a fraternidade serão apenas a ideologia da dominação e da propriedade. A contradição, porém, nunca poderá, sob pena de exigir ser superada, ser exposta em sua clareza e nudez. Sempre aparecerá a propriedade como possível para todos. O lucro, a riqueza, o poder, a decisão

96

“Onde quer que tenha conquistado o Poder, a burguesia calcou aos pés as relações feudais, patriarcais, idílicas. Todos os complexos e variados laços que prendiam o homem feudal a seus “superiores naturais” ela os despedaçou sem piedade, para só deixar subsistir, de homem para homem, , o laço frio do interesse, as duras exigências do “pagamento à vista”. Afogou os fervores sagrados do êxtase religioso, do entusiasmo cavalheiresco, do sentimentalismo pequeno-burguês nas águas geladas do cálculo egoísta. Fez da dignidade pessoal um simples valor de troca; substituiu as numerosas liberdades, conquistadas com tanto esforço, pela única e implacável liberdade de comércio. Em uma palavra, em lugar da exploração velada por ilusões religiosas e políticas, a burguesia colocou uma exploração aberta, cínica, direta e brutal... Do médico, do jurista, do sacerdote, do poeta, do sábio fez seus servidores assalariados” Manifesto...in Textos, pg. 23-24. Assim também as relações familiares, a relação sexual, as relações com a pátria são absolutamente subvertidas pela sociedade burguesa. Pg. 34- 35.


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política são para todos. É apenas questão de tempo e de progresso. O caráter excludente da propriedade absoluta, apenas hoje, aflora na fala dos políticos quando dizem que o caráter global e natural do mercado é ineludível, inevitável, gerando “sacrifícios” (leia-se desemprego, miséria e morte) para muitos “infelizmente”! O Estado passa a ser o único e absoluto modo de organizar e gerir o poder, organismo supremo que visa a cuidar do “bem comum”, garantindo com o monopólio do exercício da força e da violência, a “segurança” de todos (leia-se do mercado).97 Esse Estado poderá ter maior ou menor dimensão segundo a necessidade maior ou menor de intervenção na sociedade e para garantir a ordem e o progresso do mercado. No final do século XX o Estado já pode e já deve, dizem, ser reduzido ao esquema mínimo, uma vez que o próprio mercado se auto-governa e dita as políticas em nível nacional e global.98 Não há porque sustentar um Estado retirando do mercado aquilo que o mercado produz, mas deve ser reduzido à mínima expressão e poder. Nem o Estado deve participar do mercado como produtor de bens e serviços. E o Estado de Bem Estar Social é uma contradição que deve ser deixada para trás. Nada de retirar do mercado recursos

97

Para a superação da apropriação particular dos meios de produção e, portanto, para possibilitar a construçào de uma sociedade igualitária, Marx supõe a estatização como mediação necessária, imprescindível. Cf. O Manifesto...in Textos pg. 34 -35.

98

O mercado utilizará do Estado conforme suas necessidades. Assim na época do Mecantilismo (até 1648 no mínimo) exige-se que o Estado garanta o comércio com seus exércitos, com a garantia dos monopólios, com a centralização da alfândega e do controle monetário de importações-exportações; na época das Manufaturas (até o início da revolução industrial – 1767) o mercado se fez projeto nacional; na época industrial pretende-se que o Estado garanta mercados e não se intrometa no mercado. É a época clássica do liberalismo do laissez faire em que o Estado é combatido como estorvo do mercado. Diante das crises de mercado que levaram desde a conferência de Berlim (1885), às guerras mundiais e regionais e da quebra da bolsa de Nova York de 1929, o Estado é reclamado como o mediador e o garantidor do mercado através de concessões de bônus de Bem Estar Social, e isto especialmente nos países mais industrializados. Na última década assistimos ao desmonte do Estado por parte do mercado tornado global. Agora o mercado se basta a si mesmo. Tudo o resto é instrumento do mercado e para o mercado.


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para investir em políticas sociais (saúde, educação, segurança e previdência) e atender os desvalidos, os excluídos pelo mercado porque incompetentes. Mais do que nunca evidencia-se o político como determinado pelo econômico e pelos interesses econômicos da classe dominante. E tudo como se fosse natural, óbvio, inevitável. Como se não houvesse outro caminho. É a sacralização operada pelo Estado de Cristandade e agora laicizada. Querer conhecer o Mercado (pretensão temerária e impossível) para nele interferir (absurdo hediondo) retirando dele recursos para distribuir entre todos, garantindo políticas sociais igualizadoras (tarefa inútil e desumana) é o que o homem não pode, não deve e não sabe fazer. É o mercado que dirige a História e não vice-versa, afirmam. O direito e a justiça como formalização da liberdade de mercado e regulação de toda a sociedade em função dessa liberdade se encaixam aqui. O Estado e o Direito só tem função de liberação da economia às suas próprias leis “naturais”, desregulamentar tudo o que aprisionava o mercado, e permitir a globalização privatizada do mercado e dos controles. O mercado, assim desregulamentado e globalizado, regulamenta e determina a economia, a política, a sociedade e a história. O Estado Nacional já não tem sentido, função e poder. Só se o permite quando obediente e submisso ao mercado mundial, abstrato, anônimo, cada vez menos vinculado à produção e ao consumo, cada vez mais apenas virtual, cada vez mais cassino financeiro de apostas sobre apostas e sobre o futuro de cada aposta. Por isso o Direito não pode ter pretensão igualizadora, nem a justiça consiste em algo diverso do que dar a cada um o que lhe pertence, isto é, colocar a cada um no seu devido lugar, lugar esse determinado pelo mercado. Por isso a luta teórica para compreender o Direito apenas como um fato determinado pela sociedade, leia-se mercado, retirando dele toda pretensão moral ou ética. O direito é apenas um fato, um fato social, dirá o jus-positivismo. Não


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há lugar para a transcendência de valores. Os valores ressumam dos fatos e se esgotam nos fatos como a lei natural da história e do progresso. E o Direito justifica, legaliza sempre os concorrentes vencedores do mercado. Não há lugar econômico, político, social, cultural, jurídico ou religioso para incluir os excluídos pelo “ídolo” do mercado. E os vencidos, excluídos, sacrificados pelo mercado, inúteis e supérfluos, ainda têm um sentido: o de, com seu sacrifício, reconhecer o sentido todo-poderoso e inelutável do mercado e de seu julgamento histórico que os exlcui.99 Assim como o Estado Moderno, os ingredientes da Democracia, da participação popular, das instituições políticas como referendum, eleições, concursos, políticas sociais, são inseridos na lógica do mercado. E enquanto definidos pelo mercado, só podem existir como simulação. Dois fatos da Revolução Francesa evidenciam o que queremos dizer. Em 15 de maio de 1789, dois meses antes de eclodir a revolução, Condorcet apresentou o projeto burguês de educação segundo os ideais que inspiravam e motivavam a exigência de mudança social. A educação deveria ser universal (para todos), pública (sustentada pelo Estado), gratuita e laica (o Estado seria o educador do cidadão ao invés da Igreja clerical e ultrapassada).

99

Impressiona ver como os excluídos elaboram um processo de auto-punição masoquista culpando-se a si próprios pelo insucesso, pela marginalização, pelo desemprego, pela exclusão. O mercado com competência sádica absoluta e através dos meios de comunicação tão eficientes, inculca a ideologia de que a livre-concorrência é a lei natural, inevitável, de que os excluídos o são por incompetência destes, de que vale o sacrifício de procurar e cada vez com mais insistência os poucos empregos que restam, de que vale a pena ganhar cada vez menores salários mas garantir o emprego, e de que finalmente o trabalho (o emprego) é a suprema honra de um homem, juntamente com o respeito à propriedade e à liberdade de mercado. Impressiona ver como os excluídos brandem por si mesmos esses valores como se eles os tivessem criado ou descoberto. E assim se fazem dóceis vítimas para o “necessário” sacrifício que o progresso, o desenvolvimento, a ordem e a paz exigem (leia-se o mercado). Lembremos que ninguém é escravo se não erguer dentro de si um altar para o seu senhor e dominus. E homens ajoelhados diante do ídolo (mercado) é o que o mercado exige. É isto o que opera a sacralização do mercado.


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Vem a revolução. Os três estados (nobres, clero e povo) choram de emoção quando na noite de 26/8/1789 são declarados extintos os privilégios medievais que concediam aos nobres e ao clero todos os direitos e aos burgueses, camponeses e ao povo todos os deveres. Agora todos serão iguais nos direitos e deveres. Elege-se uma Constituinte e em 1791 a Constituição declara que todos são iguais perante a lei; todos poderão votar e ser votados contanto que paguem o equivalente a 3 dias de salário como imposto anual. Dos 24 milhões da habitantes da França, 22 milhões de camponeses são assim excluídos do voto. E o projeto de educação ficará assim definido: a educação será universal (tanto quanto possível); será laica (só o Estado tem o direito de educar); será pública (mas também aberta a iniciativas privadas); será gratuita apenas para aqueles que demonstrarem genialidade e não tiverem recursos para pagar sua educação (os alunos da pátria). Assim a educação primária, gratuita e universal só acontecerá na França a partir de 1882 (um século depois). Se, de fato, a educação e a participação política não pode, não deve ser igual para todos (porque a propriedade particular do mercado não o permite), no entanto é preciso anunciar como se fossem para todos. A isso se chama de simulação, disfarce, ideologia e alienação. Assim a sociedade moderna européia resolve a contradição ínsita no Estado de Cristandade entre propriedade e liberdade. Renasce na Europa moderna a perspectiva indo-européia da propriedade exclusiva vinculada à guerra e à lógica. Os outros, o inferno de minha liberdade, são usurpadores, invasores, concorrentes e devem ser vencidos ou con-vencidos. A essência da política é, então, a inculturação e a guerra. A guerra (sempre justificada e “santa”, quente ou fria), a eugenia (justificando a eliminação dos menos aptos), as discriminações e exclusões, os malthusianismos sempre encontram no Estado de Cristandade algum fundamento.


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Para defender a Cristandade (subentendida como realização definitiva do cristianismo), identificada com a Europa e a cultura européia, com a Civilização Ocidental, valem todos os meios e recursos. A guerra para combater aos que se opõem e atacam a Europa será santa como toda a atividade da Cristantade. Assim será santa a guerra (cruzadas) contra os árabes, turcos, muçulmanos. Será santa e santificada a conquista de novas terras e novas gentes para a Europa e para a Cristandade. Será santa a conquista ibérica aos árabes e a organização dos reinos de Portugal e Espanha. Santa será a expulsão dos judeus de Espanha e Portugal por não aceitarem converter-se ao cristianismo. Santa a conquista econômica e o mercado estabelecido (inclusive o lucro antes tido como pecado de usura e, portanto como crime dentro do Estado de Cristandade). Santa a catequização e a educação civilizadora. Santa a colonização. Com os navios da conquista vinham comerciantes, nobres, militares e o clero. A tomada de posse da terra, que era dos índios, se fez pela celebração da missa e pela implantação da cruz. E no interior de todas as fortalezas, ao longo dos países conquistados, sempre haverá uma capela e um sacerdote para abençoar os canhões e as espadas. E as fortalezas sempre terão o nome do santo padroeiro do chefe militar: Santa Teresa, S. Luiz, Santa Tecla... A inquisição dominou, controlou avassaladora todos os povos colonizados. Como se pode ver, a perspectiva pacifista do cristianismo transforma-se em justificação da guerra. A conquista, (ou invasão) da América, da África e da Ásia serve-nos como um exemplo paradigmático de como o Estado de Cristandade pode oferecer argumentos ideológicos para justificar a exclusão. Esses argumentos, até hoje, permanecem no ideário simbólico popular como se fossem quase-naturais, óbvios... Assim, Francisco de Vitória(1492-1542), como filósofo e teólogo da Coroa Espanhola, embora fundamente o direito internacional dos tempos modernos na autodeterminação dos povos (e


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especificamente dos povos indígenas frente à conquista), embora fale do direito de propriedade dos índios como direito natural, embora reconheça 7 títulos ilegítimos para a dominação dos índios e a usurpação de suas terras,100 na verdade justifica o direito da Coroa de invadir, fazer guerra até o extermínio contra os índios, trazendo como argumentos: a) Direito de livre comunicação (jus peregrinandi) : é o direito que todos os homens tem de percorrer outras terras e de nelas permanecer; direito de livre comércio internacional; direito de participar dos bens comuns; direito de livre empresa. O que na prática resultou no seguinte: “os espanhóis tem direito a viajar para as terras dos índios, estabelecer-se nelas, comerciar com os índios e explorar seus recursos; como isto é, segundo Vitória, um direito natural (“direito das gentes”), se os naturais (índios) não o respeitarem, pode a Espanha castigá-los até com a guerra total para defender o direito de seus súditos.” A resistência que os índios opõem à invasão de suas terras pelos espanhóis é vista por Vitória como violência injustificada e malévola contra os espanhóis ‘injustamente agredidos’.101 b) Propagação da religião cristã: os cristãos tem direito de pregar o cristianismo aos bárbaros. Se estes resistirem, pode-se lhes fazer a guerra. c) Manutenção da religião: se alguns bárbaros se converterem e seus soberanos quiserem fazê-los voltar à idolatria, os espanhóis podem fazer-lhes guerra. d) O poder temporal indireto do papa: Os bárbaros convertidos poderão ter do papa um soberano cristão e derrubar o pagão se o solicitarem. 100

O títulos ilegítmos são: 1. O domínio universal do imperador; 2. O domínio universal do papa; 3.o direito de descobrimento; 4. Resistência dos índios em receber a fé cristã que lhes é anunciada; 5. Os pecados dos bárbaros; 6. Escolha voluntária dos índios; 7. Doação especial por parte de Deus. (in GUADARRAMA, P. La Filosofia en America Latina, pg. 69)

101

GUADARRAMA, 1993, pg. 70.


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e) Governo tirânico: a tirania dos senhores dos bárbaros é motivo suficiente para intervenção e guerra. f) Se a maioria dos bárbaros quiser outro senhor, os espanhóis podem apoiá-los com guerra. g) Aliança para a guerra: como os romanos, ao expandir o Império, valiam-se de alianças com povos amigos fazendo com justiça guerra aos inimigos do amigo, assim também os espanhóis podem fazê-lo. h) Selvageria e barbarismo dos povos descobertos: os descobridores, representantes da civilização, tem direito de submeter os bárbaros e pô-los a seu serviço incluindo seus bens, por direito de colonização, uma vez que os bárbaros são servos por natureza.102 A guerra é lícita e justa, especialmente quando declarada por “repúblicas perfeitas” como as de Castela e Aragão. É lícito empregar todos os meios para isso, como também ressarcir-se de todos os gastos. Ginés de Sepúlveda nascido em 1490, encarregado que foi pelo bispo de Sevilha para defender os colonizadores contra os índios e especialmente contra Bartolomeu de las Casas (que defendia ferrenhamente os índios),103 é mais direto e explícito em usar o Estado de Cristandade e seus “direitos” para massacrar os índios: os índios são inferiores por natureza. Os espanhóis têm direito a submetê-los como escravos; se os índios se rebelarem contra seus novos e legítimos senhores, os espanhóis podem fazerlhes guerra em legítima defesa, submetê-los à força, despojálos de seus bens e utilizá-los como servos”... o direito natural se reduz a um só princípio: “o perfeito deve imperar sobre o imperfeito, o forte sobre o fraco”. Submeter os índios é, não só,

102

GUADARRAMA, P. et allii, 1993, pg. 71-72.

103

Em vão Bartolomeu e um grupo significativo de bispos e sacerdotes tentava defender os índios mostrando que todos os homens são iguais por natureza e que a mensagem cristã supõe a liberdade e o respeito Cf. GUARRAMA, 1993, pgs. 54 e ss., bem como o grande significado da cultura indígena pgs. 23 e ss.


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uma tarefa civilizatória dos espanhóis mas também uma obra de caridade para com os pobres índios, que são bárbaros, incultos, ímpios, desumanos... A guerra é santa para submetêlos, castigá-los por seus horrendos pecados e conduzí-los à verdadeira religião e salvação eterna.104

É evidente a confusão de cristianismo com Igreja e desta com o Estado de Cristandade. É evidente também como o poder e a propriedade determinam a ética e o direito segundo as conveniências do Estado de Cristandade. Por outro lado, a Europa Moderna elabora uma visão de mundo, uma lógica interpretativa que condiga com a propriedade como fundamento do pensar e do agir. Nasce assim a ciência moderna e a filosofia da subjetividade. A subjetividade individual enquanto consciência constituidora do mundo (Cogito ergo sum...Descartes), derivada da consciência conquistadora. Assim, poder-se-ia dizer que o Cógito pensante e constituidor do sentido e do ser das coisas deriva do Conquiro ergo sum (conquisto, logo sou) dos Impérios Mercantis Salvacionistas. O ser, o pensar, o sentido, o direito, a ética, a verdade derivam do ter e o ter é fruto da expropriação dos outros através do canhão, do cavalo, do navio e da imposição de uma ideologia religiosa. O conceito de subjetividade deslocará o de comunhão, inter-subjetividade, relação e marcará a modernidade pelo individualismo liberal. A solidariedade real, a comunicação, a compaixão, o amor e a justiça serão compreendidos como valores, atitudes, comportamentos que nascem, definem-se e se esgotam na subjetividade. Não há nesse horizonte a possibilidade da alteridade do outro. Não há, para o homem horizonte algum além do homem individual, além da subjetividade. O outro é apenas e simplesmente outro eu, que eu defino a partir de minha subjetividade. O outro não acrescenta nada

104

GUADARRAMA, 1993, pg. 75.


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de novo ao meu eu. Apenas dificuldade, resistência, oposição que o eu deve tolerar, romper, ou destruir para realizar-se a si mesmo. A subjetividade sob as mais diferentes formas será o critério definidor da Modernidade. No Estado de Cristandade o saber é memória, autoridade, tradição e não utopia, adivinhação, antecipação, criatividade, conhecimento, novidade. O presente e o futuro são, a exemplo dos mitos, dissolvidos no passado de cuja herança e patrimônio a hierarquia da Igreja é guardiã e intérprete exclusiva. A Idade Moderna rebelar-se-á contra isso de duas maneiras: pensando utopicamente e cientificamente. O hoje se resolve na observação positiva de fatos sensíveis e matematizáveis. O futuro será pensado na imaginação para além e contra o magistério da Igreja. Contra o Estado de Cristandade, a Sociedade Moderna afirmará que só o pragmaticamente presente é verdadeiro. O passado não faz parte do saber. Só o presente, o objetivo, o prático, o útil e eficaz será chancelado como saber. No pragmático presente e no futuro utópico não cabe o controle da Igreja. Aí está o espaço de liberdade e de auto-afirmação laical. Este espírito de liberdade, independência, insubmissão, e de ataque debochado até, ao clero e seu pensamento foi interpretado apenas como perdição, má fé, ação diabólica, sem jamais ter-se vinculado ao espírito também profético de que tanto faziam questão os semitas. Os dois polos, como já se disse, pertencem ao mesmo fenômeno: o Estado de Cristandade. O esquecimento e a profanização da História. O Estado de Cristandade reduzirá a História a si mesmo. Ele é a consumação da História, a “Cidade de Deus” construída no meio da “Cidade dos Homens”.105 Muito embora a História não passe de um peregrinar por este vale de lágrimas para retornar a Deus, esta História não tem presente nem futuro senão como sua negação. Em reação, a modernidade afirmará que a História já não tem um sentido sagrado (enquanto epifania e revelação de Deus) nem 105

Cf. Sto. Agostinho A Cidade de Deus.


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como revelação do humano no mistério da criação, da vocação e missão, da promessa e da Esperança plantada por Deus no coração do homem mas é exclusivamente a expressão do homem limitado a si mesmo em suas lutas e sonhos. A História se laiciza e profaniza.106 A História, na Idade Moderna acaba sendo identificada com o progresso. E o progresso como acúmulo de técnicas derivadas da ciência empírico formal, não tem lugar para o significado, para a novidade criadora nem para a escatologia que tensiona a existência em direção a uma finalidade e meta histórica e supra-histórica. A história tem sentido acabado em si mesma sem necessidade de um começo e um final radical e transcendente. Por isso mesmo, a História acaba sendo deshistoricizada esgotando-se num positivismo que, à semelhança da cultura indo-européia, nega a possibilidade da novidade radical, revivendo a idéia do eterno retorno do mesmo. A ideologia do progresso, na modernidade, por dialética contraditória, nega a possibilidade do imaginário, do novo, do livre, do desejo radical. Está presa à contradição do Estado de Cristandade. O “homem unidimensional”, no positivismo científico em todas as suas ramificações (inclusive a do materialismo histórico) retiraram da história a historicidade.107 A história é objeto da

106

DUSSEL, 1978, pg. 28.

107

“Assistimos hoje à agonia daquilo que poderíamos chamar de mitos fundadores da modernidade. Quase tudo que a cultura moderna proclama orgulhosamente como verdades científicas definitivas revela-se mitologia falhada. Um dos mitos da modernidade que soçobram é o da automaticidade do progresso histórico, ou do sentido da história. Torna-se cada vez mais evidente que não há progresso necessário e inevitável, como também que a história não constitui um processo racional, segundo leis cientificamente cogniscíveis”. A história não é previsível e os economistas que sempre prevém os acontecimentos depois que eles aconteceram e “sabem” dar explicações “científicas” são blefadores. Nem a história virtual como dedução lógica de alguns pressupostos acontecimentos é científica. A história é o reino da irracionalidade, da imprevisibilidade. .. “os economistas acertariam mais se levassem em conta as contingências e alternativas , superando os determinismos positivistas que professam e que os levam, com excessiva freqüência, a colocar a sociedade em perversos leitos de Procusto. E o que é pior: em nome de uma discutível cientificidade que lhes permite subtraírem-se ao controle democrático” FREITAS, Décio. Oráculos do caos. Correio do Povo, Porto Alegre, 7/12/1997, pg. 29.


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ciência (e segundo o modelo da Física). O socialismo “utópico” deve ser superado pelo socialismo “científico”. O progresso é a lei da história. Progredir de onde para onde? Essa pergunta “metafísica” não cabe ser formulada, porque é inútil e não leva a lugar nenhum. E a organização da sociedade em direção ao progresso científico cabe aos engenheiros sociais do comportamento (Skinner). No entanto, a utopia (aquilo que ainda não aconteceu mas que é necessário, urgente e essencial que aconteça) ronda permanentemente a casa do homem, as noites e os dias do homem. É a esfinge que, ou a deciframos ou ela nos devora. A ética semita continua sendo a possibilidade crítica do Estado de Cristandade e da Sociedade Moderna. Subordinada ao mercado, a visão profética e libertária do cristianismo fica, na modernidade, castrada em sua fecundidade. A Idade Moderna revelará, como conseqüência do Estado de Cristandade, a perspectiva criadora e revolucionária, ao mesmo tempo tornada impossível, do monoteísmo semita. Mas a contradição não pode ser revelada às claras. É preciso simular. Elabora-se então a cultura moderna da simulação que pervade a organização social, a organização política, as instituições culturais, a ciência, a filosofia e a arte. Mais, estabelece-se a teoria do conhecimento de que é impossível conhecer sem simular e que o conhecimento não passa de simulação. A subjetividade se faz critério e fundamento do agir e do conhecer. De que não há objetividade possível. De que a objetividade é também um modo subjetivo de ver. Assim o relativismo, levando até o nihilismo, passa a ser critério de conhecimento, de ética, e especialmente de política e de religião. Para que possam conviver a ética semita e visão de homem como propriedade, no mundo moderno, é necessário que aquela ética não tenha eficácia e referência à realidade. Que ela nada transforme. Que ela nada comprometa nem exija compromisso. Assim o ideal semita de liberdade, igualdade, fraternidade, justiça, verdade e amor servirá apenas para alimentar a sensibilidade no


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plano privado, mas não terá aplicação na realidade econômica, social, política e cultural. Servirá apenas como “ideologia” no sentido pejorativo do termo (má e falsa consciência), como a expressão formal da utopia, uma vez que na vida prática impera o mercado e sua lei. Religião, ética, valores não tem lugar na praça do mercado. Só valem para conforto intimista e subjetivo, na privacidade e no silêncio de cada um. Aos poucos, na fusão do “Imperium et sacerdotium” que originou o Estado de Cristandade, triunfará o imperium ditado pelo mercado. Como se pode ver, o Deus único, Javé, dos semitas e de Jesus Cristo, o monoteísmo revolucionário e libertário dos primeiros séculos do cristianismo é agora transformado pela ‘civilização ocidental e cristã’ em idolatria do mercado diante do qual todos se curvam. E o ídolo, a quem se atribui qualidades de divindade como a onipresença, onisciência, transcendência insondável e incompreensível, como todo-poderoso julgador da história e do destino dos homens, exige sangue, sacrifícios humanos.108 Implanta-se assim a religião sacrificialista do mercado, com sua teologia, seu código moral, seus sacerdotes e seus altares, seus rituais e seus sacrifícios. O dualismo antropológico, ético e metafísico insinuar-se-á, apesar do esforço de bispos e papas em sentido contrário. Assim o mundo será o campo de luta de dois princípios: o Bem e o Mal, o Espírito e a Matéria, a alma (espírito puro) e o corpo (que aprisiona a alma). O sexo como carne é contra o espírito... E essas múltiplas maneiras de dualismo: materialismo x espiritualismo, mundo x céu, corpo x alma, Deus x homem, transcendência x imanência, razão x fé, etc. apresentam-se como excludentes mútuas quando, na verdade, ambos os lados da dicotomia e da dialética são filhos

108

Cf. HAYEK, Fr. , FRIEDMANN,M. , FUKUYAMA... in SUNG, J.M. Teologia e Economia, Petrópolis, Vozes, 1994. Cf. ASSMANNN, H. A Idolatria do Mercado, pg. 291...


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gêmeos da mesma contradição, mantida como contradição: o Estado de Cristandade. Nenhum dos polos é mais humano ou mais cristão que o outro. Assim, materialismo ou espiritualismo são iguais, sinônimos. Nenhum dos dois é cristão. Nenhum dos dois é humano. Ambos expressam, isto sim, o Estado de Cristandade. São a dialética do Estado de Cristandade. Esta mentalidade maniqueísta e cátara não deixará de tentar os cristãos, muitos dos quais pensam o mundo como “um vale de lágrimas”, lugar de prova, tentação e expiação. A história será simples aparência, “faz de conta”, que não tem conteúdo nem consistência, e a busca da salvação da alma será a única finalidade do homem na terra. O castigo e o sofrimento serão pedagogia e redenção tanto nesta, como na outra vida.109 O ascetismo do corpo, o castigo ao corpo sob todas as formas, a educação como processo de fuga do corpo e do mundo para o ideal do Bem e do Belo, desprezando a vida cotidiana e do trabalho manual traz à baila a mentalidade grega e indo-européia do homem ocioso. A insistência de que Cristo salvou o homem por causa de seu sofrimento e morte na cruz, deixando de lado o aspecto principal da teologia cristã da redenção que é a Ressurreição e o poder transformador da Ressurreição (o amor, a justiça, a fidelidade, a esperança...), aprisionou a religião na tristeza e na resignação ao sofrimento como pode ser exemplarmente verificado na Imitação de Cristo de Th. de Kempis.

109

PLATÃO, Górgias, 523...”Acontece que todo homem que cumpra uma pena que lhe foi aplicada com razão torna-se melhor e lucra com isso e serve de exemplo aos outros, a fim de que, vendo-o sofrer o que sofre, sejam tomados de temor e tornem-se melhores... De qualquer maneira, o proveito lhes vem somente através de dores e sofrimentos, seja sobre a terra seja no Hades; com efeito não se pode ficar livre da injustiça de outra maneira” . Semelhante reflexão pode ser feita sobre o Purgatório onde o homem pecador (cujo pecado foi perdoado mas a pena não foi totalmente expiada) seria purificado pelo sofrimento contabilizado em tempo: dois anos de purgatório...


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A perda do sentido sacramental (enquanto significação, en-

contro e realização do homem com o outro homem e do homem com Deus) da vida, da ação, do trabalho, do lazer, da festa, da corporeidade, do carinho, da carícia, da beleza, da justiça, do amor humano, das “realidades terrestres” é cada vez mais acentuada na Idade Moderna, a partir do Estado de Cristandade. O lazer e a festa adquirem um caráter exclusivo de distração ou no máximo um sentido de catarse e não de intensidade de encontro e de relacionamento entre os homens, nem de aprofundamento do significado da vida, de celebração da vida. O leigo, assumindo a posição “laical” de excluído que lhe foi atribuído pelo Estado de Cristandade, passa para a clandestinidade e para a oposição surda e secreta110 como acontece no surgimento das ciências naturais. A física será o modelo de toda a ciência. Fora da Universidade e do controle da Igreja, surgem as academias de ciências (Royal Society da Inglaterra em 1660, a Academie des Sciences de Paris em 1666) que combatem a Filosofia e a Teologia Escolástica. Seu lema: “não admitir em Física, nenhum conceito que não tenha sido submetido à comprovação empírica”,111 excluindo para sempre o argumento de autoridade.112 Virão depois os 110

Mesmo quando essa resistência se mostrar obediência passiva e bajuladora, como ovelhas pachorrentas de um rebanho amorfo, que são tangidas e conduzidas, perdidas e reconduzidas, ao invés de ter iniciativa, sugestão, participação e discernimento. Quando essa dependência conseguir assomar à superfície, ela se fará, negação, independência, desligamento odiento e perseguidor. O surgimento do anticlericalismo, nas mais diversas formas denota essa crise de crescimento e independência de quem foi, por muito tempo, abafado, excluído da participação. O liberalismo, a maçonaria, o positivismo, os socialismos far-se-ão anticlericais porque são movimentos leigos e que, enquanto tais não tinham lugar e vez no Estado de Cristandade. Vê-los como maus porque rebeldes e insubmissos é preconceito etnocêntrico do Estado de Cristandade. A possibilidade de um diálogo real da Igreja cristã com esses grupos e tendências supõe a ultrapassagem do Estado de Cristandade.

111

GUADARRAMA, pg 109.

112

A autoridade que poderia (porque representante da hegemonia cultural) fundar a verdade de uma afirmação, sempre estaria contra os leigos porque foi adotada pelo grupo hegemônico como autoridade. Portanto, aceitar o argumento de autoridade (é verdadeiro porque Aristóteles ou Santo Tomás de Aquino disseram) era negar qualquer possibilidade de iniciativa por parte do leigo. Assim a Ciência e a Filosofia, a Cultura modernas nascerão e crescerão fora e contra a Igreja.


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grupos secretos: os carbonários, os maçons e livre-pensadores. O pensamento laico, agora, contra a teologia, a teocracia e a “metafísica” tende para o positivismo, para o ateísmo, contra todo o controle do Estado de Cristandade. O anti-clericalismo, o antidogmatismo, o anti-regalismo, o iluminismo racionalista e positivista marcará o pensamento laico, longe da Igreja e contra a Igreja. O caráter reativo desses movimentos supõe o Estado de Cristandade como constituidor deles. Sem o Estado de Cristandade não teriam sentido. O machismo indo-europeu misturado com o patriarcalismo da perspectiva semita é evidente no ocidente nas relações, nos símbolos e funções...(econômicas, políticas, sociais, culturais e religiosas). Não há lugar para a mulher. Daí suas lutas por emancipação, por igualdade e , como disseram as mulheres latino-americanas em Cancun, o feminismo pode ser um machismo invertido. As mulheres estão redescobrindo a humanidade para além do machismo e do feminismo, mas o critério para essa descoberta já não é o Estado de Cristandade: “porque mães, exigimos que nossas pátrias sejam um útero para nossos filhos”.113 Esse Ocidente machista e patriarcal necessariamente produz a cultura do “complexo de Édipo”: a mulher como sexualidade, sensibilidade, afetividade como corporalidade, é negada em sua feminilidade pelo marido, vincula-se, então, ao filho como lugar exclusivamente seu, negando o marido; o marido quer a esposa como propriedade, como meio e quer o filho como sua imagem e semelhança, como sua vinculação existencial; o filho não pode possuir o afeto a vinculação existencial da mãe, porque fazê-lo seria transgredir a ordem e a racionalidade do pai; para ter a mãe o filho precisa “matar” o pai simbolicamente. Mas, para possuir a mãe, relação espúria e proibida o filho negará a mãe como mãe e a si mesmo como filho. Não há lugar para o filho senão como parricida.

113

Cf. ZANOTELLI, J. Ontologia, pg. 96.


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Não há lugar para ninguém.114 Essa aberração relacional não é natural como diz alguma psicanálise (nem todos os povos tem o complexo de Édipo). Ela é fruto da cultura do Estado de Cristandade.115 • O sincretismo religioso junta Jesus Cristo e sua mensagem, com elementos míticos indo-europeus resultando num mundo povoado de deuses, almas penadas, demônios e lobisomens, de magias “negras” ou não, que operam por si sós, confundindo poderes e influxos, fetichizando a vida em todos os níveis.116 O fatalismo paralizador e que hoje é divulgado massivamente (horóscopos, cristais, videntes, bruxos, adivinhos...) diz que nada acontece por acaso, tudo já está predeterminado pelo destino, tudo tem a sua hora. Ao invés da perspectiva semita de um destino como destinação, convocação, chamamento para a construção de um mundo novo, este fatalismo paralisa e mata. A confusão com as categorias gregas de tempo e lugar atribuídas a Deus (“Deus já sabe...Deus já sabia o que vai acontecer...”), aniquila a criatividade do homem e deixa-o infantilmente entregue à sonolência de aguardar para ver no que vai dar. A Esperança fica assim reduzida à passividade, a utopia à ilusão. O acirramento das contradições econômicas, sociais, políticas entre as classes, entre regiões, entre o Norte e Sul, com o aprofundamento da exclusão (o Brasil é hoje, 1999, o campeão

114

Cf. BYINGTON, no Prefácio de MALLEUS, O Martelo das Feiticeiras.

115

DUSSEL, Para uma ética da Libertação latino-americana, Vol. III. S. Paulo Loyola, 1977.

116

PLATÃO, Fédon, 81 “E é preciso acreditar meu amigo, que esse corpóreo ( o peso do corpo colado na alma em virtude dos prazeres e paixões) seja pesado, terreno e visível; a alma que a isso foi reduzida está como vergada sob o peso e volta a ser arrastada para o mundo visível por medo do invisível e do Hades, como se diz; ela vai vagueando em torno dos monumentos fúnebres e dos sepulcros, junto dos quais foram vistos espectros e sombras de almas. São fantasmas sob os quais se apresentam essas almas que não se libertaram e purificaram, participam ainda do visível e, por isso, são vistas... e essas almas não são as dos bons mas dos maus, que são obrigadas a andar errantes em torno desses lugares, cumprindo a pena de sua malvada existência passada... até que se prendam a um novo corpo”.


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mundial de privilégios e exclusões) trouxe à tona o dramático tema do fim, do fim da história, do fim da esperança, do fim das soluções racionais e institucionais e por isso, o renascimento do demoníaco, do irracional, do macabro, dos “dráculas”, dos messianismos religiosos e políticos, dos milagres e curas, da solução de todos os problemas através de orações mágicas, da Nova Era, do pentecostalismo. E os meios de comunicação potencializaram ao máximo essa vertigem. A exigência sádico-masoquista de ascese, de doação, de entrega, de contribuição (inclusive e principalmente financeira) em nome da fé, que já não tem razões para oferecer, é a expressão paroxística de um Ocidente que, na contradição do Estado de Cristandade, perdeu o rumo. A subjetividade moderna (o homem como sujeito e dono de si mesmo) gerou também a arte da subjetividade (a arte moderna) e a pós moderna do individualismo e do coletivismo individual: expressionismo, impressionismo, dadaismo... Se, ser homem é ser proprietário, o amor ao próximo será visto como meio de agradar a Deus, meio de salvação e não realidade em si mesma, consistente e libertadora. Amar o próximo por causa de Deus, buscando cada qual a sua felicidade “eudaimonia” numa escala ascendente de prazeres, subordinando todos à contemplação do Bem e do Belo...que se vê como proporção, ordem, harmonia...117 tudo típico do indo-europeu. Esquecem-se os valores do dom, da gratuidade, do perdão, da alteridade, da transcendência. A generosidade deixa de ser critério de saudabilidade e passa a ser interpretada como artimanha e compra de afeto. Ser generoso é não ser adequado à lógica da racionalidade e do mercado, é ser imbecil quando o que impera é o “tirar vantagem” o obter lucros em toda relação pessoal vista do ângulo mercantil.

117

REALE, Giovanni. História da Filosofia Antiga. S. Paulo, Loyola, 1994, II, pg. 232. Conquiro ergo


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Se, por outro lado, os atos, gestos e fatos históricos, a criação histórica, forem apenas meios, apenas ilusão, aparência, uma vez que o essencial está no céu, no além da história... para quê construílos? A história é negada como ilusão. O refúgio do homem está no além, sem contato, sem vinculação com a História. Lembremos que para os semitas, e entre eles os cristãos, o Reino de Deus, a trans-história começa aqui. Para estes a história é antecipação, sinalização, sacramento do Reino... A História não é negada, não cabe a alienação tão exorcizada por Marx: “o explorado deve agüentar os sofrimentos na terra para depois receber a recompensa e o justo julgamento no céu”. 118 A síntese que se procurou implantar na burgo: homem, natureza, Deus, (expresso tão bem pela arte gótica, por Francisco de Assis...) terá dificuldades para dominar a mentalidade moderna, tão presa que está ao poder, à estrutura do Estado de Cristandade. Os valores humanos, da vida, do sexo, da natureza, da beleza, do conhecimento científico e filosófico, do bem estar, da paz e da criatividade acontecerão como conquista, por vezes, contra a Igreja, de uma burguesia que constrói o capitalismo e precisa destronar a religião que fundamenta a política (indissoluvelmente unida à nobreza no Estado de Cristandade). A filosofia moderna (Descartes, Kant, Hegel, Marx, Kierkegaard, Husserl, Heidegger...) aconteceu fora da Igreja Católica e quase sempre contra ela. O mesmo pode se dizer das ciências desde Galileu e Copérnico, da medicina, da arte, da literatura, sem falar da ideologia e da política que culminam na Revolução Francesa. E, por contraditório que isto seja, foram os semitas, foram os cristãos que, desmitizando o

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Contudo, não se pode ficar apenas com a meia-crítica elaborada por Marx. Se é verdade que o monoteismo semita libertário o faz ver o “fetichismo” da mercadoria e a alienação dos que sacralizaram o Estado de Cristandade como o cristianismo definitivo chamando a isso de ópio do povo, também é verdade que ele não conseguiu levar o critério monoteísta e libertário a relativizar qualquer criação socialista ou comunista como sendo apenas uma expressão da liberdade do homem. É’ preciso completar a análise crítica de Marx para encontrar a possibilidade utópica (e não apenas ilusória) do humano.


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mundo (cheio de divindades para os pré-semitas e indo-europeus) abriram-no à manipulação, à conquista, à elaboração humana através da ciência e da técnica. O mundo moderno, porém, desmitizado, se fez apenas objeto de uma subjetividade prepotente e apropriadora e não o lugar da vida, da convivência, da significação e da linguagem. 6. Fim da Cristandade e recomeço do Cristianismo (1962...) Dilacerado o Estado de Cristandade pelas lutas do liberalismo no capitalismo mercantil, colonial, manufatureiro, industrial e pós-industrial; dilacerada a humanidade pela luta de classes e de mercados, com duas guerras mundiais(1914 e 1939) e inúmeras guerras regionais; estabelecida a globalização e trans-nacionalização da economia, da política, da cultura;... em meio a tudo isso, um papa lúcido, que fora eleito para cumprir um mandato ‘tampão’, (sucedendo a Pio XII em outubro de 1958), João XXIII convocou o concílio Vaticano II para retornar às raízes da perspectiva cristã. Tarefa dificílima essa de revisar criticamente o Estado de Cristandade e recuperar a seiva do cristianismo. Os 3 anos de Concílio (1963-1965) reunindo mais de 3.000 bispos do mundo inteiro, presentes os teólogos de todas as tendências e diante da burocracia quase invencível da cúria romana, com muito estudo e debate, fixou o começo do fim do Estado de Cristandade. O reconhecimento do pluralismo cultural e ideológico no mundo, o reconhecimento de que a Igreja já não era co-extensiva à sociedade, nem era uma sociedade perfeita, hierarquicamente determinada, senhora do mundo e da salvação, mas que era povo de Deus, a serviço de todos os homens, unida por um só batismo e uma só missão sendo o status de leigo a condição comum a todos... mudou a perspectiva e a identidade da Igreja e na Igreja. O Concílio Vaticano II foi um acontecimento religioso e eclesial católico, é verdade. Seu significado, porém, transcende o religioso para influenciar todos os campos: o econômico, o políti-


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co, o social, o cultural para todos os homens. A influência na América Latina, na África, Ásia fez-se sentir com intensidade. E o Estado de Cristandade, anquilosado, enferrujado e ainda existente em todos os países do mundo, em toda a América Latina... começou a se desfazer. A Igreja volta às comunidades, à perspectiva profética e de serviço, já não como hierarquia mas como “povo de Deus”, buscando transformar a realidade a partir de dentro, e não a partir das estruturas e das funções de poder...procurando ser efetivamente servidora dos homens, definindo como prioridade a profecia, a causa dos excluídos e dos pobres, 119 guardando as lições que o Estado de Cristandade deixou (algumas amargas) e abrindo para o leigo o espaço cada vez mais amplo e complexo. Enfim, o Estado de Cristandade que marcou definitiva e profundamente o núcleo de valores do Ocidente inicia a entrar em crise. Uma crise dramática e traumática porque atinge toda a estrutura econômica, política, social e cultural da sociedade ocidental. Sem uma visão crítica do Estado de Cristandade é impossível entender que na história “O Ocidente é um acidente120 ” apenas. E que a história não terminou como quer Fukuyama. Que os socialismos e liberalismos (que tem suas raízes no Estado de Cristandade) sofreram um acidente ou um cataclisma gerado também pelo fim do Estado de Cristandade. O Ocidente não é lugar suficiente para fundar os valores do homem, da história, e da religião. A Justiça, o direito, a norma devem buscar seu fundamento para além do Ocidente (que hoje abarca o mundo todo). Por isso os núcleos éticomíticos dos pré-semitas e dos semitas, confrontados com o do indo-

119

Cf. documentos do Vaticano II, de Medellin, Puebla.

120

GARAUDY, Roger. O Ocidente é um Acidente. Rio, Nova Fronteira, 1979. • Apelo aos Vivos. Rio, Nova Fronteira, 1979 • Projeto Esperança, Nova Fronteira, 1979.


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europeu, para além do Estado de Cristandade, parece indicação necessária. As raízes do núcleo ético-mítico do Ocidente estão no Estado de Cristandade. As raízes do Estado de Cristandade estão na ética cristã e semita fundidas com a estrutura e instituições indo-européias do Império Romano e Civilização grega enquanto oposição dialética. Recuperar a experiência dos pré-semitas, dos semitas e indoeuropeus é recuperar a própria memória e raiz. A compreensão crítica e a superação de nossa sociedade com todos os seus problemas e tensões supõe o resgate daquelas raízes. E com memória poderemos construir a utopia necessária que albergue nossos sonhos e nossa dimensão inteira de homem. Isso não é permanecer no passado mas enraizar esperanças para além das ilusões a que nos acostumaram. Para que seja possível a fé e a generosidade. Para que seja possível o homem e a história.


Conclusão

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CONCLUSÃO A América Latina e o Estado de Cristandade

Relida criticamente a História do Ocidente e nela a História da América e, especialmente da América Latina, podemos concluir que: 1. A História não inicia no oriente asiático e africano para culminar na contemporaneidade da história e da cultura européias e especialmente no Império Inglês, no Direito Francês e na Filosofia Alemã que dominam o mundo no século XIX e no século XX até, no mínimo, o final da segunda guerra mundial como no-lo deram a entender a filosofia e a historiografia européias. 2. A Europa se constituiu como Europa (moderna, capitalista, industrial e pós-industrial, positivista, liberal e/ou socialista) a partir da matriz sócio-político-cultural do Estado de Cristandade. Nessa matriz estão contraditoriamente unidos os núcleos éticomíticos indo-europeu, priorizando a propriedade e a razão instrumental, e o semita que privilegia a liberdade, a alteridade e o monoteísmo. Os povos pré-semitas estão aí incluídos como excluídos, como negados, como periferia. 3. A Europa, nascida e estruturada na modernidade, enquanto modernização, europeizou o mundo através de seu projeto “civilizatório” mercantil salvacionista, no qual a América Latina foi programada e constituída como uma Cristandade Colonial, escravagista, monocultora, exportadora e por isso latifundiária.


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4. A capital hegemônica e “metropolitana” da economia, da cultura, e da política européias e que se fez capital mundial, deslocou-se de Portugal e Espanha para Holanda e Inglaterra a partir de 1648; para os Estados Unidos e União Soviética depois das guerras mundiais do século XX e hoje (depois de 1965), depois de trilateral_ , se fez globalizada e por blocos regionais._ Muda a capital, permanece, porém a mesma hegemonia econômico-político-cultural armada desde dentro, e a partir do Estado de Cristandade. 5. A estrutura econômico-político-social da América Latina colonial dependente, incluída no Estado de Cristandade metropolitano (com as concordatas de Padroado) dentro da organização do mercado, gestou, nessas nações e populações americanas, o sentido da dependência econômica, política, social e cultural que se traduziu em atitudes como de: subserviência, imitação, sobre-valorização do estrangeiro, desprezo pelo autóctone, a começar pelo índio, pelo negro, pelo mestiço, pelo cafuzo. A assunção de padrões de subalternidade, de marginalização e exclusão por parte do povo, do governo, da Igreja elaborada teoricamente pelos intelectuais como necessidade de branqueamento da raça, da alma e da cultura e como negação da identidade ameríndia foi fator decisivo na elaboração de nossa identidade histórica. 6. A proclamação da independência política, que deslocou o poder das mãos da elite metropolitana de além mar, para as do grupo mestiço da América latina e que antes era “capataz” da metrópole, intermediando a exploração da colônia, não alterou para os países independentes a dependência e a submissão à metrópole européia. Antes facilitou a submissão da América Latina aos interesses econômicos da Inglaterra e depois a dos Estados Unidos, em substituição à metrópole portuguesa ou espanhola. O sistema produtivo escravocrata, monocultor, exportador, latifundiário de sesmarias e “haciendas” continuou como dantes. A independência


Conclusão

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política formal não realizou a independência econômica, social e cultural, mas até certo ponto, aprofundou, encobriu, justificou, cristalizou a dependência. 7. A inserção da América Latina no mercado europeu-norteamericano, de corte manufatureiro, industrial e pós-industrial feznos, progresivamente cada vez mais, perdedores enquanto fornecedores de matéria prima cujos preços eram fixados pelas metrópoles e importadores de produtos manufaturados cujos preços também eram fixados pela metrópole. Essas perdas com as trocas internacionais nunca permitiram que a América Latina ingressasse na era industrial senão só recente e derivadamente. 8. Nossa dependência levou à eliminação formal da escravatura por insistência e exigência do mercado industrial dominado pela Iglaterra, muito embora teorizássemos o fato como obra de altruísmo e humanidade. Até hoje os filhos de escravos sofrem a identidade de incluídos como excluídos e marginalizados no sistema econômico, político e social. 9. A substituição da mão de obra escrava por imigrantes europeus, marginalizados lá pelo mercado industrial e desejados aqui como barateamento do custo de produção também se inscreve no contexto civilizatório europeu. Assim, a imigração européia, buscada, incentivada, justificada pelas nações latino-americanas como um processo de “branqueamento” da raça e, com isso, de modernização da mão de obra e dos cérebros para fazer nascer e incrementar a industrialização, dentro dos parâmetros positivistas da “ordem e do progresso” , insere-se no horizonte da imitação e da dependência de uma Cristandade Colonial e pós-colonial. 10. Os critérios e os valores, a partir dos quais a América Latina elaborou sua identidade cultural desde a crise do sistema colonial, situam-se nesse contexto. Para exemplificar:


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a) O positivismo, e antes de mais nada, como uma epistemologia: “só é verdadeiro o que for comprovado experimentalmente, sensorialmente” invadiu e conformou a América Latina por ocasião das lutas e/ou declaração de independência política e reorganização dos Estados Nacionais. O modelo de ciência do positivismo é a física. A América Latina adotou uma ideologia positivista, um discurso positivista e não uma realização científica, mesmo que positivista. Até hoje, apesar das reformas educacionais, o problema fundamental da América Latina é a produção científica e em consequência a produção tecnológica. O sistema produtivo na América Latina não carecia de outra tecnologia além do que a tradição e a natureza ofereciam para quem produzia em latifúndios, extensivamente, com mão de obra escrava ou quase escrava e para exportar, gastando o resultado em suntuosidades. A não utilidade da técnica fez do positivismo aqui uma quimera teórica, uma ideologia apenas e não uma real produção científica. Um tema de discurso público. E antes de mais nada o positivismo como interpretação da história. Para ele, a história única (da humanidade) teve três estágios: o da teocracia infantil dos povos primitivos e medievais aferrados aos deuses ou a Deus como explicação de tudo, e governados pelo clero belicoso e irracional; o da metafísica dos heróis que punham em princípios imaginários a causa da realidade (como o Ser, a Razão, a Idéia...); e por fim o da ciência positiva que, para explicar os fatos, não necessita mentir nem imaginar causas, mas que explica os fatos por outros fatos sensíveis e comprováveis. A América Latina, compreendida nesses parâmetros, era sinônimo de atraso, obscurantismo religioso e irracional, ou, quando muito perdida em elucubrações metafísicas, excluída por si própria das sendas do progresso e da civilização. Esta maneira de interpretar a América Latina ainda se faz sentir em muitos de nossos “cientistas”.


Conclusão

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O positivismo como ideologia pretendia explicar o atraso da América Latina frente ao progresso e civilização europeus e norteamericanos pelas dicotomias: Progresso/retrocesso, civilização/ barbárie, ordem/caos, evolução/revolução, experiência/razão, futuro/passado e que se expressam pelos fatores ou causas “comprováveis” do atraso como: • sectarismo político, intolerância e dogmatismo representado pelo ideal republicano que não passa “de um manto enganoso das mais execráveis tiranias”_ . • O estatismo de nosso direito, ao invés de garantir os direitos individuais como fizeram a Revolução Inglesa, Francesa ou Norte-americana_ . Confunde-se direito público (ligado ao atraso) com direitos individuais que garantam a liberdade. • A mania normativista e regulamentadora que pretende legislar sobre tudo e todos os detalhes impedindo a livre participação e a democracia; o caudilhismo, o servilismo de partido, a autoridade do funcionário acima da autoridade da lei, a iconolatria do catolicismo_ • O espírito de corpo, o corporativismo do clero e dos militares que se apegam ao passado impedindo o progresso_ • Para o argentino Domingo Faustino Sarmiento (18111888) a causa do atraso da América Latina não é apenas política (“erros e ambições desenfreadas dos governantes”), a causa do atraso é a miscigenação e o conflito de raças. É preciso branquear a raça, limpar o sangue, incentivar a imigração européia que traz consigo a ciência, a indústria e a civilização. “Alcancemos os Estados Unidos. Sejamos a América, como o mar é o oceano. Sejamos Estados Unidos”._ Os conceitos de raça, de miscigenação (incluindo Gilberto Freire), de pluralismo étnico-social-cultural lançam raízes no pensamento positivista e sua dialética ideológicojustificadora cujo horizonte se perde no interior do Estado de Cristandade. • Por fim, é da geografia, do clima, da demografia, dos traços psicológicos, a responsabilidade do atraso. Ou como o nosso


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Luís Pereira Barreto (1840-1922) dizia: as causas de nosso atraso são a Igreja e a Academia que geram a confusão entre ciência e teologia._ O objetivismo positivista como critério e valor epistêmico, político, social e histórico, assim como reação anti-positivista na América Latina através do espiritualismo e da metafísica, não se compreendem sem suas raízes no Estado de Cristandade. b) O espiritualismo surge como reação ao positivismo. Assim Rodó que opõe o espírito de Ariel próprio da América Latina (essencialmente espiritual, estético, imaginativo, criador) ao espírito de Calibán, anglo-americano (grosseiro, sem atrativo, representando os apetites, os interesses e utilidades materiais). Este espírito arielista tem suas raízes na tradição cristã (o bem) e na tradição greco-romana (a beleza)._ Igualmente o mexicano José Vasconcelos que critica o fetiche positivista do progresso expansivo e indeterminado, acentuando a superioridade dos valores religiosos acima dos estéticos e destes sobre os emotivos indicando como antípoda ao positivismo que a humanidade segue três estágios: o material ou guerreiro, o intelectual ou político e o espiritual ou estético. O mesmo se diga do argentino Alexandre Korn ou do uruguaio Carlos Vaz Ferreira, bem como do peruano Alexandre Deustua, do chileno Enrique Molina ou do mexicano Antonio Caso. c) O machismo enquanto conceito e enquanto realidade sócio-cultural na América Latina não pode ser compreendido sem o núcleo ético-mítico dos indo-europeus bem como sem o patriarcalismo semita fundidos no Estado de Cristandade. As questões sexuais como virgindade, desvio, fidelidade, virtude, pecado, prazer, iniciação, casamento, divórcio, paternidade, pátrio poder etc...são incompreensíveis na América Latina sem o contexto do Estado de Cristandade. O lugar social de cada sexo nas funções


Conclusão

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econômicas, políticas, religiosas, culturais tem a mesma bússula. d) O mesmo pode-se acenar, apenas provocativamente, para os valores de inventividade, improvisação, ociosidade versus trabalho, participação e democracia, lugar e não-lugar, fronteira, festa, liberdade, informalidade, a natureza como paisagem, etc... e) Uma religiosidade popular sincrética com as Virgens (Ex.: Guadalupe, Aparecida, de Lujan ...), com os santos, os ritos mágicos, uma religiosidade que solidificou a estrutura social excludente e discriminadora e não gerou uma ética solidária. f) Por fim, o resgate de valores que permitem uma postura crítica, solidária, integradora do racional-emocional, razão e desejo, comunicação e identidade supõe a ultrapassagem do modelo sócio-político-cultural do Estado de Cristandade. São ainda as raízes semitas e as pré-semitas que permitem ver além do Estado de Cristandade e o resgate de valores antropológicos, econômicos, políticos, sociais e culturais que permitam uma utopia mais densa de esperança para os Latino Americanos e para os povos do mundo inteiro._ As raízes da América Latina não estão apenas em suas entranhas. Foram constituídas como colonização por um Estado de Cristandade sobre antiquíssimas e riquíssimas culturas indígenas, com mão de obra escrava (indígena e negra) e com uma utopia civilizatória própria de Impérios mercantis (depois industriais) salvacionistas. Para elaborar sua identidade, a América Latina deverá amassar seus sonhos, com essas raízes e essa história. É nessa direção que vão os pensadores da Filosofia da Libertação, tão questionada e reprovada pelos interessados na manutenção do status quo. A alteridade como critério e valor é uma verruma que perfura as paredes da tradicional dependência, mostrando e alargando as brechas por onde possa escorrer a seiva libertária dessa América Latina.


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Para isso é preciso desconstituir a Cristandade que se implantou tão profundamente como se fora a raiz única e definitiva da América Latina, para buscar na vertente primeva dos valores semitas e pré-semitas, em confronto com os indo-europeus, a possibilidade crítica de uma utopia que seja o espelho e a garantia de nossa identidade e dignidade. Sem o critério da alteridade nosso discurso não passará de encobrimento, disfarce, justificação do interesse de alguns. E então, audientes à Esperança e à Paz que nascem da Justiça poderemos ensaiar na América Latina um Encontro e uma fala nova e radical: AMIGO, EMPRESTA-ME TEU OUVIDO PARA QUE EU POSSA FALAR! E HAVERÁ ENTÃO O INÍCIO DE UMA OUTRA CANÇÃO: A CANÇÃO DA LIBERDADE REAL.


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