Sótãos e Porões

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JANDIR JOÃO ZANOTELLI RUTH AVILA ZANOTELLI

SÓTÃOS E PORÕES CONTOS – CAUSOS E PROSAS

PELOTAS EDUCAT 2008


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SÓTÃOS E PORÕES CONTOS – CAUSOS E PROSAS


Contos – causos e prosas

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© 2008 Jandir João Zanotelli Ruth Avila Zanotelli Edição do(s) autor(es) Editora da Universidade Católica de Pelotas Rua Félix da Cunha, 412 Fone (53)2128.8030 - Fax (53)2128.8229 Pelotas - RS - Brasil E-mail: educat@phoenix.ucpel.tche.br Loja virtual: http://educat.ucpel.tche.br Editora filiada à

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PROJETO EDITORIAL EDUCAT EDITORAÇÃO ELETRÔNICA Ana Gertrudes G. Cardoso CAPA Luis Fernando M. Giusti

Z33s

Zanotelli, Jandir Sótãos e Porões : contos - causos e prosas / Jandir Zanotelli; Ruth Zanotelli. - Pelotas : EDUCAT, 2008. 212p. ISBN 978-85-7590-117-5 1. Literatura brasileira - contos Título.

I. Zanotelli,Ruth. II. CDD B869.3

Ficha catalográfica elaborada pela bibliotecária Cristiane de Freitas Chim CRB 10/1233


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Dedicatória A Vinícios, Rosana, Ana e Juliana A Daniel, Rachel e Pedro A Eloí e Camila A Luciana, Paulo e João A Carolina, Laura e Luisa


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SUMÁRIO Sótãos e porões ............................................................. 7 Tia Lídia ....................................................................... 10 Um lugar para pousar o olhar ........................................ 14 Vendeta......................................................................... 17 Na chácara .................................................................... 23 Dimensões da alma ....................................................... 27 O herdeiro ..................................................................... 30 A saia de Lilá ................................................................ 40 Voltando para casa ........................................................ 42 A vastidão do silêncio ................................................... 47 Por um tango em Buenos Aires ..................................... 49 O silêncio ...................................................................... 54 A fala do silêncio .......................................................... 57 A tapeçaria.................................................................... 59 Veranico de maio .......................................................... 63 Véspera de Reis ............................................................ 65 Sob o signo de Capricórnio ........................................... 68 Lua Cheia...................................................................... 72 Proximidade do Natal.................................................... 73 Redemoinho .................................................................. 76 Natal em Fontoura Xavier ............................................. 79 Chuva ........................................................................... 86 Festa na capela .............................................................. 88 Briga de Facão .............................................................. 94 Silêncio na chácara........................................................ 98 Padre Foscalo................................................................ 100 A Europa de Leonel ...................................................... 104 A encruzilhada .............................................................. 116 A estrela de Páscoa ....................................................... 120 A vaca de Santo Antonio............................................... 124 O ninho do cavalo ......................................................... 128


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Um baralho para a chuva............................................... 130 Aurélia .......................................................................... 134 Piratini? ........................................................................ 139 Um telefone para Milta ................................................. 146 O hotel da Sila .............................................................. 149 João Sem Terra ............................................................. 153 A pescaria de Botton ..................................................... 158 O teatro da vila.............................................................. 163 Os comunistas ............................................................... 167 A sexualidade e as freiras .............................................. 170 A pescaria de Leonel ..................................................... 173 Sonho de Guri ............................................................... 177 Gosto de Liberdade ....................................................... 180 Morena.......................................................................... 191 O brique político ........................................................... 199 Mariota ......................................................................... 205


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SÓTÃOS E PORÕES Jandir Não importa que a tenham demolido A gente continua morando na velha casa em que nasceu. Mário Quintana

O sótão da casa da minha infância tinha música. Lá em cima ficava o quarto meu e de meu irmão. Bem pertinho do telhado. Telhado de zinco. A chuvinha fina de inverno dedilhava músicas, a noite inteira, bem pertinho do ouvido. Um cochicho no calor fofo do edredon de penas. Depois das orações da noite, rezadas em voz alta para que mamãe pudesse conferir lá em baixo, o sono macio vestia a alma da gente. Então os sonhos vinham montados em cavalos em carreira de cancha reta, no fundo dos potreiros, ou mergulhando em arroios com mil peixes, em mil aventuras à beira dos perigos, em guloseimas de frutas e doces com sabor da mão da mãe. Às vezes o perigo tomava conta: caindo, caindo da janela, lá do alto. Depois do susto, novamente o soninho ao som da chuva. Quando a chuva era forte, enérgica, barulhenta, regada de pedras, raios e trovões, era gostoso saber-se protegido, aninhado no sótão: tão perto da chuva e tão longe da intempérie. Nos cantinhos do sótão de nossa casa, escondíamos nossos segredos, nossos medos, nossos sonhos. E no porão? Bem, no porão da casa da minha infância havia escuros insondáveis atrás das pipas de vinho,


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das fieiras de salames, das tábuas e dos cheiros dos queijos. Em meio a prensas de torresmos, a toucinhos dependurados, a tachos para a banha e para o açúcar mascavo, ferramentas esparramadas e mil quinquilharias que convidavam a tropeçar, na pouca luz que apenas se esgueirava pelo portão semi-cerrado. “A luz, os relâmpagos e os trovões fazem mal ao vinho”. Nos cantos, sobrava sempre uma suspeita de fantasmas. Não eram almas penadas. Não havia gemidos ou gargalhadas. Mas a presença afetuosa e sábia de avós, de bisavós, de cabelos brancos e olhos serenos, cujas mãos acariciavam permanentemente as pipas. Às vezes, no denso silêncio da meia noite, um barulho no porão. - Escuta! Que será? É lá no porão, dizia a avó. Entre os olhos parados da avó e a boca aberta dos netos havia espaços para o estranho, quase arrepio... - Algum rato, ou algum gato caçando um rato...ou um lobisomem tomando vinho! Deve ter deixado cair a caneca... insinuava o riso maroto do avô. A paz do porão, recolhido no silêncio de si mesmo, fundava a casa no originário. No mistério do aqui e do além. No mistério do passado, do antepassado e que se faz presença... O sótão, lá em cima, avizinhava-se do céu. A casa que não tem sótão nem porão, onde esconderá os fantasmas? Ficarão eles perdidos, perambulando pelos campos em noite de luar, refugiandose na sombra escura das árvores do arroio? Ou cavalgarão o minuano, assobiando nas cercas de arame ou na cumeeira das casas de palha? Muitas noites eu cismo: será possível fundar uma casa sem sótão e porão? Sem olhos assustados de crianças


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perscrutando escuros perigosos? Sem os segredos da chuva fina perto do ouvido? A casa de minha infância tinha um sótão e um porão. Este pequeno livro pretende revisitar sótãos e porões de nossa alma. Em cada canto trastes, velhas ferramentas ou brinquedos em desuso, poeira, alguns fantasmas e alguns sonhos que teimam em bailar na penumbra antes do amanhecer. Pelas frestas das janelas, que já não fecham direito, um raio de lua, um piscar maroto de uma estrela bisbilhotam. A gente também inventa o que viu e ouviu. Não estranhe, se, entre tantas coisas do porão ou do sótão, re-encontrar alguns brinquedos quebrados que um dia você perdeu.


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TIA LÍDIA Ruth

Esta história é verdadeira, sim senhor! Eu não vi, mas ouvi minha avó e meu pai contarem. Dizem que tia Lídia era a mulher mais bonita de toda a fronteira. Eu a conheci já velha. Lembro-me e quando eu tinha uns sete anos, meu pai foi visitá-la levando um garrafão de cachaça. Ela morava na fronteira com o Uruguai, no município de Bagé, numa casa branca, no alto de uma coxilha de onde se avistava um mar de campos pontilhados pelo gado. De longe vimos aquela figura esguia, vestida de preto, com uma mão na cintura e a outra em aba sobre a testa como para enxergar melhor quem vinha chegando. Ao descermos do carro um sorriso iluminou o rosto encarquilhado, de pele escurecida pelo sol, onde brilhavam dois olhos muito azuis que se acenderam ainda mais ao fitar o garrafão que meu pai segurava. Entramos na casa, tia Lídia sentou-se na cadeira de balanço, depositou o revólver que trazia na cintura numa mesinha, chamou meu pai para perto e entre um trago e outro, contava seus causos e ria feliz. Mas vamos à história! Eram três irmãs: Maria Lídia a mais velha, Maria de Fátima a do meio e Maria Eugênia a caçula. Maria de Fátima e Maria Eugênia cresceram sob os cuidados da mãe, dama portuguesa que viera parar nas asperezas da


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fronteira com o Uruguai, por força de um casamento arranjado com o coronel Francisco de Souza, dono de vasta possessão de terras, herança de seu pai, major Eleutério de Souza. Eudóxia, a esposa, cultivava hábitos considerados refinados para aqueles pagos. A casa grande da estância tinha sido feita pelos escravos e pouco se distinguia da dos peães. Paredes de pedra, piso de chão batido, coberta de palha santa-fé. Eudóxia mandou recobrir o piso da casa grande com tijolos, fez o marido comprar móveis e louçaria importados ,cultivou um jardim à frente e um pomar aos fundos. As duas meninas menores aprenderam a bordar, a fazer rendas, cuidar do jardim e proteger a pele muito clara com mangas compridas (mesmo no calor do verão) e chapelões de palha. Maria Lídia, para desgosto da mãe, preferia vestir bombachas, dispensar o chapéu e acompanhar o pai nas lides do campo.Aprendeu a manejar o laço e o revólver como o melhor dos campeiros. Em dias de carreira, aparecia garbosa montada em seu cavalo com arreios enfeitados de prata, diferente das outras moças, que usavam selas com assento de veludo e andavam a cavalo sentadas de lado. A mãe temia pelo futuro da filha, pois quem casaria com uma mulher que usava bombachas em vez de saias? Os rapazes olhavam-na com cobiça (dizem que ela era uma formosura) , mas permaneciam a uma distância cautelosa . Maria de Fátima e Maria Eugênia casaram-se cedo, em meio a grandes festas. Cada vez que vinham visitar os pais, dirigiam um sorriso de escárnio para a irmã que via os anos passarem sem que nenhum pretendente se aproximasse dela. – “Arruma esses cabelos!”. “Não anda


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tanto no sol!”. “Veste uma saia”.-diziam. Maria Lídia saía arrastando as alparcatas em direção ao galpão. Algum tempo depois, para surpresa geral, casou-se com o major Laurindo, homem viúvo, sem filhos, trinta anos mais velho que ela, dono da maior estância das cercanias. Quando partiu na charrete, ao lado daquele quase estranho, então seu marido, nem olhou para as duas irmãs que acompanhadas dos filhos, abanavam da porteira. Cinco anos depois o major Laurindo morreu, deixando Maria Lídia com um filho pequeno e aquela vastidão de campo e gado para cuidar. O capataz da estância, vendo aquela lindeza de propriedade, tendo uma mulher por herdeira ,começou a se dar ares de dono, vomitando ordens. Ela ainda estava fechada em casa, guardando luto, quando espiando pela fresta da janela, viu o capataz conversando com uns negociantes de gado .Afivelou o cinturão com o revólver, botou os homens a correr, mostrando que naquelas terras, quem fazia a lei, era ela. Daquele dia em diante, administrou a estância com austeridade, disciplinando a peonada, negociando com os outros estancieiros de igual para igual, controlando gado e dinheiro e não havia nas redondezas mulher mais respeitada do que ela. Nunca mais visitou as irmãs. Referia-se a elas com ressentimento e um certo desdém, pois ao ficarem viúvas não souberam administrar seus campos, entregando-os a pessoas inescrupulosas, perdendo pouco a pouco o patrimônio. ..................................................................................


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Da janela da sala, tia Lídia apontou para a coxilha em frente: –Estás vendo aquela tapera, meu sobrinho? Era da Maria de Fátima. Ficou viúva, enrabichou-se por um sujeitinho da cidade. Pois ele vendeu todo o gado e sumiu com o dinheiro. De desgosto ela abandonou tudo e foi embora. Era ao entardecer. O sol começava a deitar-se, esparramando seus raios melancólicos sobre os cimos dos morros. Os últimos raios tingiam de dourado os galhos mais altos das árvores. As canhadas já se cobriam de sombras. Ouvia-se o mugido triste das vacas no curral e o canto de um quero-quero distante. Tia Lídia ficou um tempo em silêncio, olhar ausente. Meu pai também calou-se, como que num gesto de respeito. A sala estava na penumbra. Não sei se foi impressão minha , mas creio que vi uma lagrima brilhando no canto do olho de tia Lídia. Ela assoou o nariz, levantou-se da cadeira e disse, “bueno, vou até a cozinha pedir um chimarrão” .


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UM LUGAR PARA POUSAR O OLHAR Jandir

Sábado. À tardinha. Chácara do Paraíso: este é seu nome. Aninha salta e balança na rede. Vinícius brinca com ela mais do que ela. Rosana prepara cheiroso feijão. Claudionor, em silêncio, contempla o verde azulado dos morros mais distantes. Ruth reúne Aninha e Yasmim para contar a história de dona baratinha que achou a moedinha e queria casar; e da branca de neve, chapeuzinho vermelho e outras historinhas que ela emenda e inventa. Luciana irrompe, dentre o cantar dos pássaros, telefonando de Palmas do Tocantins para matar saudades e pretextar informações e debates sobre o projeto de mestrado a respeito de criminalidade e direito penal. O sol quente de início de primavera suscita sons de mil insetos, pássaros e cães. E eu esparramo minha alma pelas canhadas até encontrar os arroios, e subir pelas encostas até se perder no verde–azul do horizonte. Há ânsias de parto em todas as coisas neste iniciar de primavera. A vida, recolhida no coração da terra para fugir aos frios do inverno, balbucia agora novas manhãs, novos brotos, novas promessas titubeantes de frutos. Daniel informa, por telefone, que está retornando, velas enfunadas, da ilha de Torotama. Amanhã virá almoçar conosco. Em meio a tantas cores, odores, cantares, chilreios, dispo-me da áspera nudez da cidade e encaminho os passos


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em busca da integração da vida que fala de cada um, que fala de mim, de meu amor, que fala de Deus. Aqui, vencida a estradinha tortuosa e poeirenta, as árvores se avizinham das casas que, sem luz elétrica, recolhe o silêncio como propriedade sua, como um dom. A tarde se escoa com as sombras, pela ladeira. Os pássaros cadenciam seus cantares. E orquestram, do mais grave ao mais agudo dos sons, a inspiração para todos os acórdãos. Aqui, quando tudo silencia, as estrelas brincam no horizonte e o nascer e por do sol são sempre novos. Aqui o ouvido alarga sua amplitude, e o originário inesperadamente se faz presença. As lembranças adensamse no essencial e o tempo remete ao que deve vir. Aqui comparece o apelo à generosidade e as estratégias políticas, - com suas espertezas, seus mensalões, sua corrupção e simulação - mostram a monstruosidade de sua negação, de sua racionalidade cínica do poder pelo poder. Ouvindo o silencio que regenera e remenda os trapos barulhentos de nossa alma, que cicatriza as feridas de traições dolorosas, a paz é um halo carinhoso que cuida de tudo, que embala e robustece o caminhar. Resta então um cálido espaço para a voz e o rosto do outro em sua outridade radical. Há um recomeçar da confiança, há um convite para o encontro, um perdão que se faz começo de todas as coisas. De súbito, porém, o telefone: - Você esqueceu da reunião? O burburinho da vida parece convocar ao banal, ao cotidiano, do trabalho, do emprego, do salário. Grita que é preciso espantar, escorraçar, exorcizar este silêncio. E, então, nos lembramos que é preciso agir, agitar. E, porque as crianças pulam, gesticulam, correm e cantam, por isso nos acostumamos a pensar que os encontros são feitos de


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assuntos, de novidades, tagarelices. Que o silêncio faz mal. Dói. Esquecemos que a vida baila no silêncio das coisas. - Não posso ir, justifica a minha ausência. “Mania de reunite inútil, penso... Só porque está marcada na agenda”...


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VENDETA Ruth

Quando fechei a última porteira antes de chegar à estância, já avistei o movimento. A casa branca ficava no alto da coxilha. Na frente, quatro umbus enormes. Nas raízes salientes várias pessoas sentadas. À esquerda da casa, no galpão de pedra com telhado de santa-fé, alguns cavaleiros entregavam suas montarias aos cuidados de um peão. Enrolei um palheiro sem pressa, tive de fazer concha com a mão para o vento não apagar a chama do isqueiro. A vida da gente é como esta chama, pensei. Um sopro e zás! Montei a cavalo e segui a passo, procurando retardar o que me esperava. O rosto brejeiro de Manuela não me saía da mente. Via com o pensamento o modo como jogava a cabeça para traz quando zombava, os cabelos esvoaçantes, os trejeitos de menina-moça vaidosa, o corpo bem feito, os seios rijos... Era pouco mais que uma criança mas sabia o poder que exercia sobre nós. Não havia um rapaz em toda a redondeza que não desejasse namorar Manuela. Lembrei a última vez que nos vimos. Estávamos no jardim, acabara de chover. Ela encostou-se na parede da casa e parecia não perceber os pingos que escorriam do telhado, molhando sua blusa. Parecia triste. Preocupada talvez? Não sei, não quis me dizer. Será que se tivesse insistido teria evitado a tragédia? Amarrei meu cavalo no palanque em frente à porteira e atravessei o jardim a passos lentos. Embaixo de uma árvore, o índio Miguel afiava uma faca. Estava


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carneando um borrego. Era preciso alimentar todo o povo que viera solidarizar-se com a família. O animal já estava morto, pendurado na árvore pelas patas de traz. Com um movimento rápido e preciso da faca, Miguel arrancou primeiro os bagos, depois com um risco da lâmina cortou a barriga e começou a soquear para apartar o couro. Parecia estar fazendo aquele trabalho com raiva. A intervalos parava para limpar o suor da testa com o dorso da mão e olhar de esguelha para o padrasto de Manoela. Miguel era uma espécie de agregado. Chegara à estância quando o marido de tia Chiquinha ainda era vivo. Aparentava ter uns dez, onze anos. Não dava para calcular, pois estava muito magro e nem ele sabia a idade que tinha. Deram-lhe esse nome porque chegara durante a enchente de São Miguel e porque dizia se descendente dos antigos índios missioneiros. Recebeu roupa, comida e abrigo. Dormia no galpão em cima de uns pelegos porque não aceitava dormir no alojamento dos peões. Era pau para toda a obra: puxava água da cacimba, cuidava da criação. Era hábil como esquiador e manejava a faca como ninguém. Ajudou a cuidar dos filhos do patrão e tinha uma afeição especial por Manuela, mas depois que tia Chiquinha viuvou e casou de novo, voltou a ser nômade, oferecendo seus serviços nas estâncias vizinhas, reaparecendo quando menos se esperava. Valdomiro, o padrasto, de bombachas, alpargatas, chapéu enterrado na testa, lenço branco no pescoço, estava apoiado na parede perto da entrada principal. Cabisbaixo, fumava um palheiro após o outro. Na verdade, mais mascava que fumava.. De vez em quando dava uma cusparada para o lado. Quando passei por ele, apenas grunhiu em resposta ao meu cumprimento. Sempre olhando para os pés, afastou-se rapidamente para os fundos da casa.


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Não simpatizava com Valdomiro. Era um homem violento, chegado à bebida e à farras. Comentava-se que fora soldado de aluguel e participara de degolas durante os muitos entreveros que agitaram a campanha gaúcha na revolução de 93. Ninguém gostava dele. O que tornava Valdomiro mais repulsivo aos estancieiros das redondezas, era o fato de ter lutado contra os Maragatos e de usar o lenço branco, símbolo dos Chimangos, o que consideravam uma provocação. Tia Chiquinha viuvou cedo, com cinco filhos por criar. Manuela era a mais velha. Enrabichou-se pelo peste e casou mesmo contrariando a família. È que na solidão do pampa, o inverno é frio e penoso. A sala estava na penumbra. Em volta cadeiras e bancos ocupados pelas mulheres que rezavam baixinho ou apenas olhavam para as mãos, com ar pesaroso. No centro estava Manoela, dentro de um caixão branco, tendo um terço nas mãos cruzadas sobre o peito. Ao lado tia Chiquinha, toda de preto, soluçava apoiada na comadre Alzira. Fiz o sinal da cruz aos pés da morta e pensei no quanto estava linda. Parecia uma santa ou uma noiva...A noiva que eu desejara ter. Estranhei um arranhão no braço que mal aparecia sob a manga do vestido e um machucado do lado direito do lábio. Abracei minha tia que começou a chorar convulsivamente. Logo um choro contagioso tomou conta da sala. O cheiro das flores, de velas, a comoção daquela cena, me embrulhou o estômago. Saí para o jardim como quem emerge da água para não se afogar. Tio Alcides, irmão de tia Chiquinha veio em meu socorro oferecendo um chimarrão: “ morreu afogada”, disse enquanto estendia a cuia. “Jogou-se no lagoão e não sabia nadar. O que poderia levar uma menina tão linda cometer suicídio? Mas é de família, meu irmão mais moço também se deu um tiro na cabeça e até hoje ninguém sabe o


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motivo”. Aquilo ficou martelando no meu pensamento: Manuela suicidar-se, ela que era a alegria de viver em pessoa? Quando chegou a noitinha, o garrafão de cachaça começou a correr de mão em mão.. Afiei o ouvido para escutar o que um grupo de homens, já meio grogues, conversava: “foi o padrasto! Encontraram a pobrezinha nua e com o corpo machucado. As roupas rasgadas estavam espalhadas pelo mato. Há muito tempo ele espichava os olhos para ela”. Um ódio irracional me apertou a garganta, subiu para os olhos e chorei sem medo que me chamassem de fraco. Aquele foi o enterro mais triste que assisti, mas as desgraças não terminaram por aí.No outro dia, Valdomiro desceu para o mato para tomar banho no arroio. Logo depois tia Chiquinha desceu com a trouxa de roupa suja. Quando ela voltou a tarde ia pelo meio. O sol desceu num golpe, como costuma acontecer nestes pagos e como se fez noite e o marido não voltasse, minha tia foi ao galpão pedir a Miguel ir à sua procura. A peonada estava em volta do fogo tomando chimarrão: “Miguel se fué. Llevó sus aperos, su flauta, El perro y se mando a La fresca”, disse o castelhano. Dois peões prontificaram-se a ir em busca de Valdomiro. Encontraram-no a beira do arroio esvaindo-se em sangue: tinha sido castrado. Levaram-no para a casa grande da estância, mas nessa noite morreu. Foi enterrado no cemitério da família. Poucas pessoas formavam o cortejo: a viúva de preto como convinha, mas de olhos secos. Os empregados da fazenda e um ou outro curioso, que o defunto não tinha parentes que se soubesse. Ao chegarem ao cemitério, avistaram algo estranho sobre o túmulo de Manuela, que não dava para distinguir à


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distância. Ao se aproximarem deram com os “instrumentos” de Valdomiro, já murchos pelo calor do sol. O delegado de Bagé foi até o local do fato. Assuntou nos bolichos, perguntou na vizinhança, interrogou os empregados e a dona da casa mas ninguém soube informar quem fora o autor da façanha. Depois de dois dias se empanturrando com arroz de carreteiro e churrasco de ovelha, resolveu dar o caso por encerrado, pois ele não pretendia voltar àquele fim de mundo perdido no limite entre Brasil e Uruguai. O inverno naquele ano foi frio e chuvoso, obrigando as pessoas a ficarem em seus ranchos, de maneira que os comentários ficaram entre quatro paredes. Depois veio a época das ovelhas parirem, de cuidar do gado, de reconstruir os pontilhões levados pelas enchentes, de refazer as estradas tornadas intransitáveis pela chuva. O acerto das próximas carreiras e o boato de que estava por estourar nova revolução, não se sabia bem se do lado de lá ou do lado de cá da fronteira, ocuparam as conversas dos homens nos bolichos. Tia Chiquinha recomendava às criadas que botassem colchões e cobertas ao sol e que lavassem bem as caixas de madeira que vieram da cidade, pois a colheita de marmelos naquele ano seria farta e precisavam guardar marmelada para o inverno. Numa noite, perto do tempo de tosquia, Miguel voltou, jogou os pelegos e os pertences no galpão e ao clarear do dia seguinte apareceu com um braçado de lenha na cozinha e naquele rincão, onde o tempo se percebe pelo alternar das estações, a vida continuou igual ao que era antes das duas mortes. No dia de finados minha tia leva flores aos defuntos da família e de vez em quando remexe no fundo de um baú,


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onde num lenço de seda branca manchado de sangue, guarda enrolada uma adaga.


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NA CHÁCARA Jandir

Calo. Tomo um mate. Respiro fundo... Reúno as idéias que ameaçavam dispersar-se, perder-se nos desvãos do nada... A orquestra dos pássaros, infinitamente polifônica e polirítmica, cada qual aguardando a resposta do outro ao convite que lhe foi dado, compondo as horas e as cadências dos dias, traz de volta ao coração o silêncio que impera. E nos libera o pensamento às ondas das cores, das sombras, dos sons, à presença do outro que quer falar. Quantos pássaros! Como aguçar suficientemente o ouvido para colhê-los todos de uma só vez? São canários e canários, tico-tico rei, azulões, sabiás, bentevis, corruíras, almas-de-gato, calandras e pombas, as rolas, as juritis, o pombão de campo, as saracuras, os inhambus, jacus, queroqueros, os gaviões, periquitos, papagaios, andorinhas, e os sebinhos, perdizes, cocotas aos bandos e até beija-flores... e outros... e outros. É a vida que eclode, que envolve e convida a viver. No outro lado do arroio o jovem Francisco rasga a terra com seu arado, feliz pela esposa que, em casa, cuida do pão e da criança que vai nascer. O milho, o feijão, o alimento, o agasalho brotarão do útero fecundo desta terra que foi de seu pai, de seu avô e será de seu filho. A semente regada a suor e a desilusões na balança da venda, sempre dá para manter a esperança de um dia sem ladrões, sem falsas promessas e sem opressões. Chinelos de dedo, em seu


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tratorzinho, ele rasga e arruma a ladeira para o plantio. Amanhã será outro dia, depois do sono aconchegante com seu bem. E o silêncio, de vagarinho, com seu manto vermelho de pôr de sol, recolhe os cantares, ruídos e gestos para dentro do coração da noite. E então os grilos – onde estavam que não se ouviam? – mil rãs e sapinhos, e as corujas e os mochos acendem os vagalumes para passear. A lua, mulher feita, redonda, completa, salta do monte e recobre o silêncio da noite com um manto quase branco, quase leite transparente, protegendo as coisas com um halo de pudor que ao mesmo tempo mostra e esconde. E as coisas, os gatos e as crianças abotoam seus sonhos para dormir. O silêncio fala de todos os lados e passa de mão em mão no calor da cuia do chimarrão. Como fala o silêncio! O silêncio que tudo recolhe, oferece abrigo, raiz, horizonte a todo cantar. É mais fundo que a terra. É mais alto que o céu. Vinícius sentado na rede canta baixinho qualquer canto de ninar para Aninha que brigou com o sono e agora pediu abrigo no colo do pai. Rosana lhe pede: - Não deixa dormir antes do leite. A lua cheia desenha figuras com as sombras do arvoredo escondendo os fantasmas para fornecê-los aos contadores de historinhas. Ruth sente como o silêncio tudo reúne, em compacta presença que se pode quase apalpar com as mãos, e que


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envia, que convoca, que espera e acontece no rosto daqueles que se quer-bem. É preciso a paciência - a ciência da paz – para ouvir o silêncio que espera, que aguarda e que fala mais claro que todo o gritar. Ele é o testemunho dos pobres que clamam por justiça, por voz e por vez. Companhia solidária que encaminha ao coração. O silêncio dá o prêmio da quietude – como um dom seu – àquele que acata o metro e a medida do ser. A cidade, a estrada, o avião, a guerra, o mercado não conseguem silenciar o silêncio. Ele se insinua, se apresenta, mostrando o vácuo da falta, da necessidade, da urgência da preocupação de quem não sabe estar ocupado. O barulho, o estrondo das máquinas “muitas vezes confundidos com a voz de Deus”, são medo de ser, apenas fuga e distração quando não medidos na dimensão do silêncio. É preciso construir caminhos, erguer casas, arar a terra, fazer pautas musicais, para permitir que entre elas fale o silêncio. A oração, experiência de companhia de cada outro homem, mulher e criança, dos vivos, dos mortos, dos anjos e de Deus é escola de aprender a ouvir o silêncio que propicia o pão, o vestido, o cuidado, o cantar e a paz. Os sentidos embotados pelo ruído, pelo cansaço da mesmice do farfalhar urbano, aqui descansam. Aquietamse. Adormecem. E como árvore castigada pelo frio do inverno agora ensaiam rebrotes tímidos de primavera. Renovam-se os cheiros: cheiros de suor, cheiros de terra


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molhada, cheiros de flores, de merda fresca de vaca, de pão quente saindo do forno, de salames curando-se dependurados no galpão, mil cheiros libertos da anestesia de perfumes importados. Odores de pele, de crianças, de velhos, de jovens. Aqui o mundo recende de vida, do hálito de Deus. ........................................................................... O vento fresco da manhã, intrometendo-se nas folhas orvalhadas traz à pele o sabor do dia que começa. Na pele a noite enluarada, a água fresca que nasce das pedras do monte, o sol que brota entre nuvens espargindo preguiça e convocando ao trabalho, a irritação de duas moscas que não deixam pensar sossegado. O tato, o olfato, o gosto, a visão e a audição são efetivamente órgãos sensoriais, canais pelos quais o mundo variegado chega a nós e pelos quais nós nos afundamos no mundo. Ser no mundo sensorialmente, e na sensorialidade. A imaginação, o desejo, o pensamento, a razão, a empatia, a simpatia, a anti-patia, se faz vida e existência. Estar na unidade do todo, sentir a multiplicidade outra de cada coisa e de cada pessoa na unidade solidária do Ser que se faz Dom, Generosidade, exuberância, transcendência e apelo é uma oração que se faz prece, louvor, lembrança, pedido, silêncio. Do alto da varanda da singela casa da chácara tudo se deixa ver, tocar, sentir como proximidade distante, como distante proximidade, como enraizamento e libertação. A simplicidade do essencial nos despoja das vestimentas que escondem, das defesas que nos isolam, das bugigangas nas quais disfarçamos nossa pobreza de ser .


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DIMENSÕES DA ALMA Jandir

Recostada num canto de silêncio, na penumbra do anoitecer sem lua, encontrei minha alma desfazendo-se dos fantasmas que minha infância juntou das cestas de costura de minha avó e dependurados junto à cartucheira da espingarda de dois canos de meu avô. Fantasmas de causar horripilantes medos, de estragar folguedos, de estalar os dedos como quem quebra ossos... Fantasmas da encruzilhada, da mula sem cabeça, das bolas de fogo e da cinta chicote que meu pai mantinha num prego logo acima da mesa de jantar. E nesse despir-se e desnudar-se de minha alma, a sexualidade à mostra, lambendo os dedos lambuzados de mel que escorria dos favos túrgidos, maduros em plena primavera, descobri o menino que espiava por detrás da cortina a ânsia do dia que vem. Vinculada à teia de todas as mãos, minha alma sozinha abismava-se na solidão de dois olhos que guardavam escondido um pedaço da noite e que, do outro lado do mundo, convidavam à intimidade. Convite a caminhar perdidamente na imensidão da pampa. No alto das coxilhas, no limite do horizonte em direção à primeira estrela, o quero-quero anuncia a visita.


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Chapéu preto, capa preta, cavalo preto, sombra densa projetada no azul esmaecido do céu, o cavaleiro pára, assobia, aguarda que o silêncio lhe devolva a interrogação do “oh de casa” !. Dois cuscos latem e disparam a esconder-se atrás do rancho. Na fresta da janela dois olhos, negros como a meia noite, faíscam de ansiedade. Dois peitos firmes e plenos de ternura arfam como corações sob a camisola que só serve para evidenciar a exuberante silhueta. Depois do chasque que o patrão mandou, depois do “que resposta levo?” enquanto os olhos de relancina buscam o olhar, os lábios, alguma curva daquela china que o enfeitiçou nas últimas carreiras, Poti dá de rédeias e ensaia abrir estrada em meio à escuridão e as estrelas. A imaginação vai povoada, densa, sôfrega. No coral dos quero-queros e dos tajãs ele assobia a melodia do boi barroso. Pra consolar a saudade. O zaino parece empinar com galhardia um trote largo. No sonho de Guilhermina havia um rapto na garupa de um tostado. Ela agarrada ao peito nu e suado de um príncipe cor de cuia, protegida sob a capa de feltro que cheirava a cavalo indomado, em meio a um temporal que rasgava o campo de raios e fazia os arroios rugirem fora dos barrancos. E no ranchinho abandonado junto ao mato, houve naquela noite uivos de felicidade e dois corpos que se aquentavam nus até a madrugada. Joanito lembrava as histórias de sua mãe, vestida de chita na cozinha do patrão e correndo à janela sempre que os quero-queros denunciassem algum rumor.


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Na direção daquele esperar Joanito se foi um dia, dezessete anos feitos, à procura do assobio do boi barroso. Alguns juraram que o viram com um grupo guarani preparando canhões de bambus para brigar pela dignidade de Sepé.


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O HERDEIRO Ruth

Como acontecia todas as manhãs, os amigos estavam reunidos tomando chimarrão à frente da casa do Adão Barbosa. Enquanto a cuia passava de mão em mão, comentavam os acontecimentos locais, do estado, do país e do mundo. A solução para os grandes problemas da humanidade (em conversa) passava por aquele grupo. Naquele dia, o assunto era a viagem do major Hermenegildo Fagundes e de sua nova esposa. O major Hermenegildo pertencia a uma das famílias mais tradicionais daquela pequena cidade fronteiriça com o Uruguai e embora tivesse passado pelo quartel apenas como reservista, herdara o nome, a patente militar , campos e gado do avô paterno que se destacara por bravura na Guerra do Paraguai. Já fora prefeito da cidade por duas vezes, era sócio fundador e ex-presidente do Clube Comercial, atual presidente da Associação Rural e vice do Partido Libertador, portanto, qualquer acontecimento relacionado a ele era do interesse de toda a comunidade, ou pelo menos, era assunto que se espalhava rapidamente de boca em boca. Hermenegildo fora casado com dona Branca Silveira, como ele filha de fazendeiros e herdeira de vasta propriedade. Dona Branca era esposa dedicada, piedosa e segundo as palavras do historiador local, autor do livro“ Bosquejos Históricos de Remanso”, a dama mais refinada da cidade. Costumava freqüentar a missa todos os domingos, fazer generosas doações às obras de caridade e


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fazer promessas à Virgem para que lhe concedesse a graça de dar um filho ao major. Morreu de gripe espanhola sem que o tão desejado filho viesse. Depois da morte da esposa, Hermenegildo tornou-se um homem taciturno. Passava a maior parte do tempo na estância que administrava segundo o princípio de que cada coisa deveria ocupar o seu devido lugar. Seu compadre Felício, costumava visita-lo, pois dava-lhe pena ver um homem outrora tão sociável, vivendo como um ermitão. Durante uma dessas visitas, entre um chimarrão e outro, o major expunha suas teorias a respeito das diferenças: – Pois veja bem, compadre, alguns são fracos, sem iniciativa e precisam ser mandados por aqueles que receberam o dom do comando. Deus fez a mulher para parir e ficar à sombra da casa cuidando do marido e dos filhos e o homem para cuidar dos negócios e guerrear. Mesmo entre as mulheres existe diferença. Umas são recatadas, apegadas à vida em família e outras nasceram para putas. – E se existem putas – disse Felício com um brilho malicioso no olhar – é para serem desfrutadas! – Pois então, como eu ia dizendo, Deus fez o mundo desigual. Veja os negros, por exemplo. Por que Deus fez alguns homens de pele clara como o dia e outros escuros? A noite, as trevas não são citadas na Bíblia como sinônimo de danação? – Eu penso da mesma forma - respondeu Felício, passando a cuia de chimarrão. Não é que eu desgoste de negro, pois eles não têm culpa de terem nascido de cor, mas que fiquem no lugar deles e respeitem o meu. Mas que tem negro traiçoeiro, isso tem! – Aqui na estância só tenho dois a meu serviço: O Braz, que é o caseiro e o Galdino que é o melhor campeiro das redondezas, mas são negros de alma branca, da minha confiança! São crias minhas.


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À tardinha, o major esperava o retorno da peonada no galpão. Tomava uns dois ou três mates com eles, olhos e ouvidos atentos para ver se tudo estava nos conformes. Depois, dirigia-se à casa grande, descalçava as botas na soleira da porta, calçava os chinelos que já estavam à sua espera e ordenava que lhe servissem a janta. Solito na cabeceira da enorme mesa perdia a imponência. Dava pena tanta desolação. Às vezes mal tocava na comida, ficando mais na marmelada com queijo ou no arroz com leite. A cozinheira se esmerava para fazer os pratos de seu agrado e nada! Era falta de apetite pela vida. Mas voltemos aos amigos reunidos para o chimarrão da manhã na casa do Adão Barbosa. O Quéca foi o primeiro a falar: – Vi a chegada do Major ontem. Estava na janela de casa quando o carro encostou carregado de malas. Bonita moça arranjou o Major. Já não era sem tempo. – Dizem que aparenta ter uns vinte anos a menos que o Hermenegildo - disse o Tonico Farias. – É! Mulher nova é um perigo e ainda por cima, castelhana! –arrematou o Adão. – Não entendo o compadre, –resmungou o Felício ajeitando a erva do chimarrão com a bomba– pois se há duas coisas que o compadre detesta é negro e castelhano. – São as novas idéias chegando a Remanso. É a civilização! –exclamou o padre Aurélio que de passada para a Igreja, havia parado para tomar chimarrão e saber das novidades. Enquanto as opiniões pró e contra o casamento do Major vicejavam pela cidade, o casal desfilava sua felicidade pelas ruas e rodas sociais de Remanso. Dona Mercedes, a esposa, aparecia com um vestido novo a cada


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festa, provocando inveja nas mulheres e olhares cobiçosos nos homens. Na estância a rotina mudou: o patrão já não levantava de madrugada para determinar as tarefas do dia. Delegou à Galdino a responsabilidade de conferir os trabalhos da fazenda e à tardinha, em vez de tomar chimarrão no galpão, sentava com dona Mercedes ao pé do umbu para matearem juntos com algum visinho ou forasteiro de passada, pois o major era tido como homem hospitaleiro. Dona Mercedes administrava a casa com eficiência, cuidava da horta e do jardim que ficara um longo tempo abandonado. Braz, um mulato forte de vinte e poucos anos, era seu braço direito nessa tarefa, remexendo a terra, trazendo esterco para adubar, refazendo canteiros. Solícito, tornou-se a sombra de Mercedes. Hermenegildo orgulhoso mostrava para as visitas o pátio florido: tinha uma mulher jovem, bonita e prendada. No início da primavera a notícia de que haveria carreiras na cancha do Seu Nicolau, alvorotou a campanha. – Vamos Gildo? – disse Mercedes, adocicando a voz em tom de súplica – Vem gente da cidade e até do Uruguai. Depois das carreiras vai ter música! Hermenegildo vacilou. Era alérgico ao pólen das flores e a asma voltara a incomodar, mas como poderia negar um pedido da esposa? No domingo, lá estavam eles nas carreiras. Foram à cavalo. Ela, num selim de veludo vermelho e ele com arreios adornados de prata, com um medalhão com incrustações de ouro na peiteira do cavalo, onde se via as iniciais H e M entrelaçadas. O bolicheiro encaminhou-os para um toldo de lona destinado às autoridades – para que ficassem protegidas do sol. Providenciou cadeiras e refrescos, mas em pouco tempo ali só ficaram as mulheres, pois os homens foram fazer suas apostas e tratar de negócios.


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A conversa corria mansa sob o toldo: troca de receitas de chás e doces, notícias de casamento, batizados e namoros. Conversa de mulher. De repente, próximo ao partidor ouviu-se uma espécie de tumulto: um negro musculoso, montado em um cavalo branco, tentava segurar sua montaria que corcoveava e se empinava nas patas de traz, provocando gritos assustados nas mocinhas. A seguir saiu em disparada pela cancha e Mercedes pode ler, em meio à poeira, que nas costas do pala de cetim branco estava bordado em letras vermelhas, “Adão querido das meninas”. Além da fama de conquistador, Adão era exímio gaiteiro e à noite encantou a todos com sua música. Na tarde seguinte estava o casal tomando mate no jardim e comentando as carreiras com o compadre Felício, quando Galdino interrompeu a conversa: – Com licença! Major, o gaiteiro está pedindo pousada. É só por um dia. Amanhã segue para Melo, no Uruguai. – Pois bueno – respondeu o major– ele que se acomode lá pelo galpão. E seguiu a conversa interrompida. À noite, já estavam deitados quando ouviram a música. –Vamos espiar, –disse Mercedes, – sacudindo o major que já roncava – gosto tanto de música! –Te sossega mulher, não são horas e estou com sono! –Vamos Gildo, está tocando a “Mercedita”, minha música preferida! Mercedes não escutou resposta. O marido já dormia um sono profundo. Em novembro o Major anunciou a novidade: dona Mercedes estava grávida. Mandou carnear uma novilha e convidou a vizinhança para compartilhar de sua alegria.


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Contratou um gaiteiro, comprou vinho de um contrabandista e mandou vir cachaça da melhor qualidade do bolicho do Seu Nicolau, que a ocasião merecia. Finalmente teria um herdeiro, pois certamente seria um menino! A gravidez não foi muito tranqüila. Mercedes teve muitos enjôos e até os cuidados com o jardim teve que abandonar. Braz se esmerava por manter tudo em ordem e agradar a patroa, que por vezes permanecia na cama o dia inteiro. Então pedia licença para chegar na janela do quarto e perguntar se estava tudo bem, se D. Mercedes não tinha alguma recomendação a fazer... Hermenegildo aflito, perguntava se não seria melhor irem para a casa da cidade,com médico por perto ou quem sabem irem à Montevidéu onde tinha mais recurso e a família dela, mas Mercedes se negava a sair da estância. Para aumentar as preocupações do Major, uma manhã de inverno um peão veio avisar que o negro Galdino fora embora. Levou apenas a roupa do corpo, o cavalo, os arreios e uma mala de garupa. O major teve uma explosão de raiva: – Negro quando não caga na entrada, caga na saída. Logo agora que a Mercedes está por parir! Sem o seu homem de confiança, teve de dividir as atenções entre a esposa grávida e os afazeres do campo. Num entardecer chuvoso de julho rebentou a bolsa. A empregada mandou Braz buscar a parteira e avisar o patrão, que ainda não voltara do campo. O Major correu para a cabeceira da mulher e amorosamente enxugava o suor de sua testa com uma toalha. A parteira chegou, correu o marido para fora do quarto e começou o azáfama das mulheres na sua tarefa de facilitar a explosão da vida. Hermenegildo aflito, por vezes tapava os ouvidos para não ouvir os gritos da mulher e ao mesmo tempo, queria mantelos bem abertos para recolher o primeiro choro do filho.


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Depois de um tempo infinito a parteira apareceu na porta do quarto. – Como foi? – perguntou o Major – E meu filho? E Mercedes? – Está tudo bem – respondeu a parteira – É um menino, forte como um touro! Dona Mercedes está bem, mas muito cansada. Os dois agora precisam repouso. Vá dormir. – E o meu filho? Quero ver meu filho! – Já lhe disse para ir dormir – retrucou a parteira com voz enérgica – amanhã tem tempo! Hermenegildo atravessou o corredor em direção ao quarto de hóspedes. Ao passar pelas empregadas teve a impressão que evitavam o seu olhar, certamente era o cansaço. Na manhã seguinte, bem cedo as empregadas já tinham preparado o chimarrão quando ele levantou. – Seu chimarrão está servido. Vou preparar bolo frito como o patrão gosta – disse a cozinheira mais amável que de costume. – Fica para depois, agora quero conhecer meu filho. Ao entrar no quarto, Hermenegildo procurou não fazer barulho, pois sua mulher dormia. A ama embalava o menino nos braços e quando viu o Major aconchegou a criança ao colo num gesto de proteção. Ele aproximou-se, ergueu a manta que encobria a cabeça da criança e sua testa franziu. Por um bom tempo olhou o menino em silêncio, depois segurou-o no colo e decretou: – É a cara de meu avô! Vai se chamar Leopoldo como ele. A ama pensou que a foto do fundador daquela estância que estava na sala, um homem de nariz afilado, olhos claros e cabelos levemente ondulados, não tinha nada a ver com aquele recém nascido de pele escura, lábios


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grossos e nariz abatatado, mas cada um se enganava como queria. Mercedes que fingia dormir espreguiçou-se sentou na cama e disse: – Então, meu amor, não é lindo teu filho! E é machinho como era teu desejo! Grande festa no batizado, só que a alegria espontânea da festa do anúncio deu lugar a sorrisos constrangidos, palmadinhas nas costas e olhares fugidios. Léo era a paixão do Major que o levava por toda parte e orgulhosamente apresentava o seu filho e, se por acaso, alguém insistisse que ele não tinha a menor semelhança com a família, ele colocava a mão no cabo do revólver intimidando o interlocutor. O menino cresceu feliz. Foi uma criança alegre e um adolescente desinibido que encantava a todos com seu jeito brincalhão. Os pais quase não iam à cidade e quando chegou a idade escolar, foi mandado para o internato em Bagé. – Está na hora de nosso filho freqüentar a sociedade, seguir os passos do pai, ser um líder! – disse uma tarde D. Mercedes enquanto sorviam o mate da manhã. – Afinal, ele já está com dezoito anos. Era outubro, época de exposições na Associação Rural e de baile de debutantes no Clube Comercial. – O Léo vai nesse baile! – sentenciou o Major. Fraques confeccionados pelo melhor alfaiate da capital, vestido de festa comprado em Montevidéu, a família se preparava para a grande ocasião quando numa de suas costumeiras visitas o compadre Felício, depois de pigarrear duas vezes falou: – A diretoria do clube esteve reunida ontem. Reunião extraordinária.


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– Aconteceu alguma tragédia? Não me diga que o baile foi transferido! – Decidiram barrar a entrada do seu filho. Hermenegildo ficou pálido e em seguida, num acesso de fúria levantou-se jogando o banco em que estava sentado, longe. – Mulher! – gritou para D. Mercedes que estava dentro da casa. Prepara a bagagem, amanhã cedinho vamos a Remanso. E não esquece o meu revólver! De madrugada o major saiu levantando poeira em direção à cidade. Deixou Mercedes em casa e foi direto Para a residência do presidente do clube. – Sente amigo. Vamos tomar um mate! A que devo a visita do amigo assim tão cedo? –A minha visita é curta, pois não sou homem de medir as palavras e quanto a ser amigo, vai depender da sua resposta. Então estão querendo impedir que meu filho entre no clube? O presidente sorveu o chimarrão até ouvir a cuia roncar, ajeitou a erva com a bomba, verteu água na cuia e passou para o major: – Quero que o amigo entenda: está não é uma decisão minha, mas da diretoria. Eu particularmente não vejo motivo para uma atitude dessas, mas preciso acatar as decisões da maioria. – Quer dizer que o amigo não vê impedimento? – Não, por mim só vejo razão de orgulho para o clube receber tão ilustres figuras! O major aceitou o mate, esvaziou a cuia, pegou seu chapéu e despediu-se do presidente. Visitou um por um dos membros da diretoria e fez a mesma pergunta. Todos deram a mesma resposta: que era um orgulho receber tão ilustre família no baile. Voltou à casa do presidente e comunicou o resultado das suas incursões:


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– Já que todos estão de acordo, nos encontraremos no baile. O clube todo iluminado, damas de vestidos longos e estolas de pele , cavalheiros elegantemente trajados, grupos de mocinhas lançando olhares furtivos para os rapazes, procurando garantir o par para as danças, avós com suas jóias de família de braços com avôs de porte altivo, ninguém diria que na estância eram exímios nas lides campeiras e nas prendas domésticas. Um Ford reluzente parou à porta do clube e dele desceram sorridentes Hermenegildo, D. Mercedes e Leonardo de Campos Fagundes Neto, elegante em seu primeiro smoking, cabelos reluzentes e espichados com o auxilio de brilhantina. Após a apresentação das debutantes, a orquestra, vinda de Buenos Aires para a ocasião começou a tocar “El dia que me quieras”. Léo, garboso, atravessou o salão e tirou para dançar a loiríssima filha do presidente do clube.


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A SAIA DE LILA Jandir

Jacarezinho. Calor abafado de um fim de tarde de verão. Sentados, deitados, entrecostados no gramado verde debaixo da figueira diante da casa dos avós, uma dúzia de primos adolescentes ou quase jovens dizem bobagens em voz alta. Concurso do picaresco beirando o escandaloso, mas sempre contido nas entrelinhas, no quase dito, no “imagine o resto”. As meninas fazem de conta que se escandalizam, mas retorquem, provocam a imaginação dos rapazes. Mas tudo de longe...Tangenciando... Situações, ferramentas de trabalho, de religião, de escola, de sonhos, tudo é símbolo erótico, parábola sexual, convite ao namoro impossível. Por descuido intencional, as mocinhas, a começar pelas mais maduras, levantam um pouco mais a saia ou abrem um botãozinho a mais no decote. O que aparece, não é para aparecer. Apenas insinuação. Indicação. Epifania do real que só se mostra escondido e na condição de escondido, como diria Heidegger quando fala do Ser que fundamenta os entes. O pudor, a vergonha de não ser visto senão naquilo que aparece, protege os sonhos, os risos daqueles jovens. Lila, a mais bela e afoita, que até fora escolhida como miss da repartição em que trabalha em Porto Alegre, levanta um pouco mais a saia da perna direita enquanto finge olhar para os primos no lado esquerdo. Os hormônios que fazem os pelos explodir na cara e no corpo daqueles rapazinhos, provocam uma inquietude, uma solicitude inquieta, uma aflição, uma ânsia que o


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movimento das mãos, dos bolsos, dos olhos não conseguem aquietar. Nada encontra lugar para ficar, para estar. As posturas se decompõem pelo anúncio da saia de Lila. E ela sabe do buliço. No rosto quase paralisado das primas, com o escândalo e a inveja a desarrumar os olhos, a vontade de fazer o mesmo é barrada por todas as culpas hauridas da mãe e da avó, e por falta de treino e habilidade para insinuar. A religião, o pecado, a baixeza dos instintos, o limite e a mortalidade da carne, a primeira comunhão, a virgindade das santas a começar por Maria, tudo se faz barreira, impedimento, proibição... – “É..., Lila é despudorada, escandalosa, tentadora, caminho do mal. Cara de pau, porque ri como se nada estivesse acontecendo”. No rosto assustado, apavorado, de Nilo que faz força para olhar para outro lado, a saia azul-celeste, esvoaçante, quase transparente de Lila atrai como um ímã. E quando esta descruzou as pernas para melhor acomodarse e falar com o primo que, do outro lado, quase está encostado nela, Nilo vê o que queria, sem querer. Calcinhas cor de rosa... Faltou-lhe o ar, tossiu, pigarreou enquanto os olhos estavam petrificados fixos entre as pernas roliças, bem feitas de Lila. Todos perceberam o calor que avermelhou o rosto e os olhos de Nilo. Quase unanimemente os primos gritaram, rindo: – Ih... tem alguém que viu o mistério do diabo, por aí... Até Lila se perturbou: – Bem, por mais que enxerguem, não enxergarão mais que as calcinhas. E elas são cor-de-rosa. A gargalhada, como chuva após a tempestade, terminou o encanto da saia de Lila e trouxe a vida à realidade da grama, da sombra da figueira, dos trabalhos da vida rural, apenas entrecortados pela folga do domingo.


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VOLTANDO PARA CASA Ruth

– Este carro sacode mais que carroça! – É a estrada, mamãe, está cheia de buracos. – Falta muito para chegar? E os vimes? Ainda não vi os vimes! – Faz muitos anos que a senhora não vem aqui. Talvez não existam mais. – Sessenta anos! Estou com oitenta e dois. Os vimes eram lindos no inverno! Perdiam as folhas com o frio e as pontas dos galhos ficavam vermelhas. Quando eu via aquele fogaréu sabia que faltava pouco para chegar. – É... O tempo muda tudo. É possível que a senhora não encontre mais as pessoas e coisas que fizeram parte da sua juventude. Não sei por que a senhora insistiu em fazer esta viagem. – Espero que ainda exista o hotel. Os bailes no hotel eram concorridíssimos! Vestíamos as melhores roupas para ir dançar. Quanta ansiedade nos preparativos! Éramos um grupo de amigos, rapazes e moças e ficávamos apostando em quem seria nosso par! – A senhora já me contou essa história mil vezes, mamãe! Já me contou que a senhora tinha um grupo de amigos, que iam a todos os bailes, que num baile no hotel a senhora dançou toda a noite com um rapaz, e que se apaixonaram, e que por intrigas se separaram. Não precisa contar outra vez!


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– Hoje é sábado. Será que vai haver baile no hotel? Quero dançar um tango!. Vou pedir para os músicos tocarem um tango de Gardel ou quem sabe La Cumparsita. – Tua mãe já está delirando de novo! Imagina, com essa idade querendo dançar um tango! –Tem paciência, querido. Quem sabe como estarás quando tiveres a idade dela, se é que vais chegar até lá. Nervosinho como és. – Só quero ver que tipo de espelunca é esse hotel! –É só por uma noite. Satisfazemos um desejo da mamãe e amanhã voltamos para casa. Cecília passou o resto da viagem calada. Recostouse numa almofada e fingiu dormir. Era melhor fazer que não ouvia as reclamações da neta ao seu lado, dizendo-se apertada e fazer que não via a cara de amuado do genro. Quando a filha falou que já tinham chegado sobressaltouse, não reconhecia o lugar que tinha diante de si. O antigo vilarejo tinha se transformado numa cidade palpitante, com ruas movimentadas, carros, lojas, gentes. Olhou espantada para a larga avenida que fazia a divisa entre os dois países: de um lado o Brasil, de outro o Uruguai. – Onde fica o hotel, mamãe? Atônita, passeou os olhos cansados por um lado e outro da avenida em busca de um ponto de referência: – O marco, onde está o marco? O hotel fica perto do marco! – Deve ser aquela coisa horrorosa de cimento lá ao fundo. Vamos até lá, pai, já estou cansada de ficar neste carro. Bem que podias ter me poupado deste programa de índio. – Mais paciência, filha, estamos todos cansados! No final da avenida, o carro parou em frente a um prédio antigo onde ainda era possível ler em letras


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desbotadas “Hosteria de La Frontera”.Na portaria atendeuos um senhor de meia idade : – A sus ordenes. Qué desean? – Queremos três quartos, um de casal e dois simples, um para a senhora e outro para a moça, disse Mário. – Tenemos solo dos habitaciones, uma para la pareja y otra para la señora y la niña. – Pois que seja, ficamos assim mesmo. Poderia mostrar nossas acomodações? Enquanto caminhavam por um corredor estreito e mal iluminado, a neta ia resmungando: que aquele hotel era feio, que fedia a coisa antiga, que coisa antiga já chegava a avó, que detestava dormir perto de velhos, que a avó costumava acordar de noite e caminhar pelo quarto, que só a mãe para atender ao pedido de uma velha caduca que pensava que podia trazer de volta o passado. – Chega, Kity! Respeita a tua avó. É bom que fiques com ela, pois poderás ajudá-la caso precise de alguma coisa. – É fácil dizer isto, mãe. Tu vais ficar no outro quarto com o pai, vais dormir toda a noite! – Não sejas mal agradecida, quando queres uma roupa nova sabes bajular tua avó. E é bom não esquecer que a casa em que moramos é dela. – Estas son sus acomodaciones. El baño está en el fin del corredor. – Logo vi que este hotel era uma espelunca! Nem banheiro no quarto tem. – Dá para passar uma noite, querido. Mamãe não está encontrando suas referências e certamente vai querer abreviar o retorno.


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Durante o jantar, Cecília procurou conversar com o garçom. Perguntou nomes de pessoas, de famílias, disse onde moravam, o que faziam: “No señora, no los conozco”. Olhava para as pessoas procurando alguma semelhança, assuntando sobre se viviam ali há muito tempo e nada. Era como se tantas pessoas queridas, tão vivas em suas lembranças, tivessem se volatilizado. Após o jantar foram todos para os seus quartos. Ela deitou, virou-se para a parede mas não conseguia dormir: uma dor funda, indizível no oco do peito. Vontade de chorar tendo os olhos ardendo de secos. Sensação de absoluta impotência, de um não ser absoluto, de confundirse e fundir-se com a penumbra. Detestava quando a filha, o genro e a neta falavam dela como se não estivesse presente e, para arrematar, aquela viagem com que tanto sonhara estava sendo um fracasso. Os lugares de sua infância e de sua juventude não existiam mais. Desconhecia aquela cidade, aquelas ruas, aquelas pessoas anônimas e inexpressivas, sem história nem rosto. Apenas o velho hotel conservava alguns traços do que fora um dia. Decrépito como eu, pensou. Ouviu o velho relógio do saguão bater as horas. Tentou contar mas perdeu-se, as batidas chegavam fracas ao quarto. Segurou na cabeceira da cama para poder virarse. De uns tempos para cá, dormia mal, sentia muitas dores pelo corpo, especialmente nas articulações. Pensou que viver tantos anos nem sempre valia a pena, mas tinha medo da morte. A idéia de que sua hora chegasse e não tivesse ninguém para segurar a sua mão e ampará-la na travessia a apavorava. Sentiu vontade de ir ao banheiro, levantou-se, calçou os chinelos, abriu a porta com cuidado para não acordar a neta e saiu para a penumbra do corredor. Caminhava tateando a parede, procurando a porta do


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banheiro. “Ao final do corredor” tinha dito o senhor da recepção. Girou a maçaneta e viu-se no salão de baile. Uma luz tênue vinda da portaria passava pela porta, projetando no chão os desenhos em arabescos dos vidros. Cecília percorreu lentamente o salão, atenta a cada detalhe, como a conferir se o que via coincidia com os registros de sua memória. Tocou de leve, quase com um respeito religioso as cortinas desbotadas, contou quantos pingentes faltavam no lustre de cristal, parou na frente do espelho enorme, de moldura dourada, com várias manchas de mofo e não reconheceu aquela figura patética, um tanto desgrenhada, de chinelos e camisola que viu refletida no aço. “Essa não sou eu” – pensou –“esse corpo não é o meu”. Foi até o meio do salão, fechou os olhos e começou a rodopiar ao som de uma música que só ela ouvia. A música parecia vir de dentro dela .Começou distante, quase inaudível e foi crescendo aos poucos em intensidade e ritmo. Ela rodopiava de olhos fechados e em seus devaneios estava linda, com o vestido de broderie branco com a faixa azul que vestia no dia em que conhecera o seu grande amor. Podia até sentir a respiração dele em seu rosto, os lábios roçando sua pele, a felicidade infinita que jamais voltou a sentir. A dor veio acompanhada de uma sensação de peso muito grande, oprimindo o peito. Cambaleou. Sentia o coração explodir em mil pedaços e o corpo mergulhar num abismo escuro. A cabeça girava, seu corpo flutuava em espiral ao ritmo da música, tudo era muito confuso. A música continuava, agora suave. Uma infinidade de luzes se acenderam e Cecília pode ver que estava de volta ao salão e que outras pessoas dançavam e riam e que ele vinha ao seu encontro e lhe estendia a mão e que uma paz infinita tomou conta dela. Finalmente voltou para casa.


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A VASTIDÃO DO SILÊNCIO Jandir

O silêncio, desde o coração da noite, recolheu no vale protegido pelas colinas bordadas por matas e lavouras, todas as vozes e presenças. Banhou generosamente de orvalho o pasto verde que os animais satisfeitos colhem ao amanhecer. Pássaros, pássaros, pássaros, trinam, retrinam, cantam, chamam, respondem, pelo amor, pelo amado, na primavera. O galo, do alto de uma pedra, bate as asas espalhafatosamente e impõe seu cócóricóooo... E as galinhas parecem responder ao lado de seus ninhos, sim senhóoor, sim senhóoor... O peru, entonado ao lado da perua, arrasta as asas, implanta o soco de seu papo e anuncia que este páteo tem dono, glu, glu, glu, gluuu... Das casinhas simples dos agricultores que pintam de branco cada porção de terra lavrada, a fumaça das chaminés anuncia o chimarrão e café com bolo de milho, salame feito em casa, leite recém vindo da mangueira. Crianças levantam, embrulhadas em sono, tentando evitar a fatídica água fria para o rosto ainda quente. A fumaça sobe reta em direção ao céu como para convocar as nuvens para a chuva da tarde. E o jovem pai caminhoneiro que passa no asfalto lá no horizonte faz do ronco de sua enorme carreta o protesto por tanto pedágio, por tanto buraco que estoura peneus, que diminui o minguado ganho de seu transporte de soja desde a Serra até o porto de Rio Grande. De retorno?..., só areião de Santa Maria se o Ibama permitir em meio às suas


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fiscalizações inclementes. Sapato velho, já rasgado, (bem que ele gostaria do chinelo de dedo) reza para chegar ao porto antes da meia noite de sábado. Senão é esperar até segunda feira. A mulher e os filhos longe, aguçando o ouvido para esperar o caminhão que não chega. E tantas horas sem dormir abaixo de estimulantes, aumentam-lhe a raiva, a gana contra políticos corruptos que não permitem ao Brasil crescer e que só ajudam bancos, empreiteiras e exploradores do povo... O silêncio recolhe cuidadoso iras, amarguras, pressas, saudades, sonhos e suores plantando-os como sementes de um dia pleno de sol, de justiças e de noites calmas para o amor. O pombão e os nhambus, na recosta longínqua do outro lado da sanga, enfeitam o berro da vaca e o latido de cães, junto ao lavrador que, sol nascendo, vai para a terra misturar-se com as ânsias do mundo. Recolho-me à intimidade do silêncio para espreitar minha identidade de professor, de pai, de marido, de político e recosturar meu umbigo à placenta da terra mãe. No silêncio, cada coisa recobra seu lugar, seu papel, seu horizonte. E no mais íntimo, a Palavra que tudo nomeia e significa, apenas se faz audível. E eu alcanço um chimarrão à minha amada que, simplesmente me olha e sorri. Um sorriso é a festa no Silêncio. Uma brisa amena refresca a alma.


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POR UM TANGO EM BUENOS AIRES Ruth

Creio que a obsessão de Clarinha começou com a chegada de tia Alice de mais uma de suas viagens. A família toda reunida, olhos postos nas pesadas malas espalhadas pela sala. Clara, então com oito anos, olhava para elas como se dali pudesse sair o gênio da lâmpada e realizar todos os seus desejos. Tia Alice com um gesto teatral, jogou a pele de raposa que envolvia seu pescoço sobre o sofá e começou o que para Clara era um espetáculo de magia: um xale de lã macia para a avó, um broche de pedrarias viçosas para a mãe, uma faca com bainha de prata para o pai e assim cada um foi recebendo um mimo. Clara mal conseguia disfarçar a ansiedade. Alice já havia esvaziado uma mala. Será que esquecera dela? Ao abrir a outra mala a tia retirou um pacote embrulhado com papel brilhante, dizendo com voz solene: “E agora, para a minha princesa, outra princesa!” e depositou nos braços da menina a boneca mais linda que ela já vira. Durante muito tempo o assunto entre as mulheres da família, foi a viagem de Alice à Buenos Aires: as compras, os teatros as livrarias e especialmente o espetáculo que assistiu no Gran café de la Bolsa, onde conheceu Carlos Gardel. Clarinha cresceu vendo o pai sintonizar a Rádio Belgrano de Buenos Aires que em dias de chuva emitia um som rouco, seguido de trovoadas e entre um ruido e outro, as grandes orquestras de tango, Francisco Canaro, Aníbal Troilo, cantavam as desventuras de amores malogrados, de paixões avassaladoras, de desventuras afogadas num copo


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de bar. Anualmente chegava à sua casa um volumoso catalogo do London Magazine, situado na calle Florida, que oferecia desde vestuário até brinquedos e utensílios domésticos, a serem adquiridos por reembolso postal. Quando uma doença não diagnosticada pelos médicos da cidade afetou o primo Francisco, foi em Buenos Aires que tio Francelino foi buscar tratamento. Naquela cidadezinha de fronteira, era mais fácil viajar a capital da Argentina do que ao Rio de Janeiro. Quando completou quinze anos, Clara ganhou de tia Alice uma vitrola e vários discos de Gardel, que então era sucesso mundial. Aprendeu de cor a letra de todos os tangos. Cantava-os com tanta emoção que chegava às lágrimas e, nos seus devaneios de adolescente imaginava-se protagonista daquelas histórias de amor. Clara apaixonou-se aos dezesseis anos. Foi numa tarde chuvosa de inverno. Estavam jogando cartas, ela, as irmãs, o irmão e um amigo, o Manuel. Era a vez dele distribuir as cartas e quando entregou-as à Clara, suas mãos se roçaram.Foi como se um vulcão tivesse entrado em erupção, despejando uma lava ardente em seus corpos, queimando as faces. Em outubro, num baile no Clube Comercial assumiram publicamente o namoro. Dois anos depois, ficaram noivos. Manuel era filho único de mãe possessiva e pai doente. No inverno, as sucessivas crises de asma prendiam seu pai na cidade e ele tinha que cuidar dos negócios da família na estância. Às vezes passava mais de mês sem visitar a noiva que quando não estava envolvida com os trabalhos da escola Normal, bordava peças e mais peças de enxoval. Na noite do fatídico 24 de junho de l 935, após assistir a queima da fogueira na frente de casa, Clara entrou e foi à cozinha procurar algo quente para se aquecer. A casa


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estava em silêncio, os pais já estavam dormindo e os irmãos tinham saído para uma festa de São João. Serviu uma caneca de café e foi sentar-se na sala, ao lado do rádio, procurando sintonizar a rádio Belgrano. Em lugar dos costumeiros tangos, ouviu uma música fúnebre e o repórter com voz pausada e grave anunciar a morte de Carlos Gardel, na Colômbia, vítima de acidente aéreo. Jogou-se no sofá e chorou como se tivesse perdido um parente próximo. Naquele dia Maneco chegou tarde da fazenda. Pretendia visitar a noiva no dia seguinte, mas soube do acontecido e conhecendo a admiração de Clara por Gardel, resolveu dar uma chegada em sua casa. Viu que tinha luz na peça da frente, bateu de leve na porta. A moça com o rosto desfeito, espiou pela janela e ao ver quem era, abriu a porta e chorosa abraçou-se ao noivo. Para consolá-la Manuel prometeu que quando casassem, passariam a lua de mel em Buenos Aires. Confundiram-se alegria e tristeza com a perspectiva de realizar um sonho! Beijaram-se emocionados. Ela era a protagonista de uma ardente história de amor, como nos tangos! Já era alta madrugada quando Manuel abriu a porta da rua e saiu de mansinho. No almoço de domingo, anunciaram o casamento para dezembro. Clarinha comprou um corte de veludo preto, mandou a costureira fazer um vestido justo, com fenda do lado e decote em vê, descendo nas costas, encomendou para a florista uma rosa de cetim vermelho, pediu para a cabeleireira fazer um corte igual ao de uma artista de cinema, experimentou um batom púrpura. Sentia-se outra mulher. Para completar, tia Alice retornara da Europa, trazendo uma camisola branca, de seda com incrustações de renda francesa. Embrulhou-a em papel de seda azul, para não amarelar e guardou-a no baú do enxoval. Em setembro o pai de Manoel adoeceu e morreu. O casamento foi adiado. Seis meses de luto fechado e mais


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seis de meio-luto. No ano seguinte foi a mãe: entrou em depressão, enfiou- se na cama, não queria comer, só falava com o filho. Por dois anos seguidos os negócios foram mal, deu aftosa no rebanho, o preço do boi gordo caiu com a concorrência do Uruguai. Ele pedia compreensão da noiva. Tinha que equilibrar as finanças. Tinha a viagem de núpcias... Os anos foram passando e o casamento sendo adiado. Clara enchia os baús de crochês, bordados, sedas e rendas. A cada irmã, prima ou sobrinha que casava ela presenteava com lençóis e toalhas e recomeçava a bordar e crochetear. As ausências de Manoel eram cada vez mais longas e as visitas cada vez mais breves. As irmãs casaram, os pais morreram, as sobrinhas cresceram e casaram e ela sempre preparando o enxoval. Os vestidos para usar em Buenos Aires saindo de moda. Trinta anos ela esperou pelo casamento, até que uma tarde Manuel disse friamente que o noivado estava desfeito: iria casar em breve com a filha de um estancieiro visinho. Clarinha nada disse, não derramou uma lágrima. Os parentes e amigos não tinham coragem de falar sobre o noivado desfeito, pois ela agia como se nada tivesse mudado. Quando pouco tempo depois veio a notícia que Manuel sofrera um infarto fulminante, temeram por sua reação. Ela continuou impassível: vestiu-se com discrição, botou uma mantilha negra na cabeça e foi ao velório. Deu os pêsames à viúva, depositou flores aos pés do caixão, fez o sinal da cruz e saiu em silêncio. Olhares curiosos acompanharam-na... Chegando a casa, botou um disco de tangos a tocar enquanto fazia as malas. Bem no fundo, espichada para não amassar, a camisola de seda e renda branca; num canto da mala uma caixa com a rosa vermelha de cetim, depois sapatos, roupas, um casaco porque costumava fazer frio e


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por cima de tudo o vestido de veludo negro com fenda do lado. Mandou um recado para a irmĂŁ que nĂŁo estranhasse sua demora e partiu para Buenos Aires.


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O SILÊNCIO Jandir

O silêncio dormitava no interior daquele espaço. No coração do Silêncio bailavam vozes de pássaros em sinfonia infinda, gatos, cachorros, ovelhas e grilos, as historietas que vão povoando a alma tenra das crianças, o sax que revoluteia convidando à intimidade de todos os cantos e melodias, o sussurro dos namorados a segredar ternuras e juras, o olhar calado dos pais que contemplam as traquinices dos filhos e seus gestos de cuidado e proteção. E a lua cheia que pudorosamente esconde sua beleza atrás das nuvens, e o brilho e o calor do sol escondendo atrás da luz tudo o que é simples, penumbra, prenúncio. Os políticos zombam do silêncio na algazarra ruidosa do poder, das falcatruas, nos conchavos, na ostentação de carros, gestos e excelências. Aqui tudo é banal, corriqueiro, cotidiano, normal. E a humanidade dos homens que lutam, dos homens que rezam, das meninas que sonham, dos que semeiam esperanças se esvai por entre os dedos à espera de um momento de silêncio. O silêncio não é feito pela interrupção da fala. Nem fabricado pela inércia e inépcia do homem que não sabe o que dizer. Só silencia quem tem muito a falar, a dizer. A fala se nutre da riqueza do silêncio que, em tudo se anuncia escondido. Isto ensinou o velho Heidegger. Quem fala no silêncio? Fala o Ser? Falam os entes? Fala o homem? Fala Deus? Mais alto do que os gritos, mais audível do que todos os sons, o silêncio fala. Fala do ontem


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mais originário, do futuro mais radical, do presente mais concreto e misterioso. O ruído das máquinas que enche o mundo com suas bolsas de valores, de guerras, de latinhas coloridas, de sons arrancados de todas as coisas e em profusão de ritmos e trejeitos, de assintonias, faz-se passar pela voz da Transcendência, pela voz da história. E então o homem atordoado foge do barulho para a paz do campo ou da penumbra de uma igrejinha afim de descansar os tímpanos. Pensa então que o não-barulho seja o silêncio e que aí escuta a si próprio e ao próprio Deus. Não percebe que o Silêncio eclode, explodindo todas as palavras, no grito (às vezes sem palavras) do excluído clamando por justiça. Não percebe que a palavra principia e acontece como audiência à interpelação do mais simples, do mais pobre, do mais negado. Nessa interpelação está o sentido ou o não-sentido de todas as palavras, de todas as instituições, de todos os caminhos. Nesta manhã de domingo, no frescor da primavera, o Silêncio pairava sobre todas as coisas, protegendo o sono das crianças e o chimarrão dos mais velhos que precisam de assuntos (econômicos, políticos, sociais, culturais, religiosos...) para preservar o silêncio e preservar-se da interpelação do Silêncio. Ao longe, escuta-se uma balada gauchesca para ordenhar as vacas e pensar no amor. O dia se faz grande e limpo. No ruído de todas as vozes que o silêncio sustenta, ampara e funda, o silêncio se esconde aguardando momentos oportunos. Uma saudade imensa da infância, da voz da mãe, das ordens do pai, dos olhares de namoro, do canto gregoriano, dos corais improvisados de companheiros e companheiras italianas ao redor de um copo de vinho, do buliço dos filhos, das inconveniências da juventude, do


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marulhar suave das águas do arroio, tudo se fez presença no coração profundo do Silêncio.


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A FALA DO SILÊNCIO Jandir

O silêncio é raiz, coração, estuário de toda a linguagem. Do silêncio e para o silêncio falamos. O silêncio é o pudor de toda palavra. Sem o silêncio a palavra entra no vórtice da tagarelice banal, na prostituição do sentido, no barulho da gargalhada que nadifica a alegria. O Silêncio engendrou em seu coração a Palavra geradora de tudo. Do abismo do silêncio, longamente meditado e acalentado, nasceram as formas, as coisas, a vida, o homem. O tempo, o espaço, o universo e a flor falam do silêncio. No silêncio está o ritmo, a dança, o espaço, o tempo. O silêncio inaugura tudo, tudo convoca, tudo convida, tudo envia para o encontro. É no silêncio da brisa da tarde que o homem se encontra com Deus. É no silêncio que o homem se encontra, com o outro, radicalmente no “osso dos ossos e carne da carne”, na nudez da verdade, transformando o mundo num pomar com todos os frutos e completamente irrigado. Sem silêncio não há mundo, não há palavra, não há homem, não há Deus. Só o silêncio é capaz de recolher a palavra do excluído clamando por justiça...


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Não é a máquina, a bomba, o microfone, a algazarra do mercado, que ampliam e tornam audível a palavra. Só o silêncio permite ouvir. Os tons, os ruídos, as vozes como um apelo ao silêncio, haurem do silêncio sua harmonia, sua sintonia, sua distonia. Amigo, empresta-me teu ouvido para que eu possa falar... Ouvido que é acolhimento, confiança, silêncio... E então minha palavra fará o milagre de trazer para junto de nós o Silêncio originário, nutrindo a esperança do abraço absoluto no dia do Silêncio Pleno.


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A TAPEÇARIA Ruth

Assim que desliguei o telefone, tratei de ir, o mais rápido possível, à casa de Regina. Percebi pelo tom de voz e pelos soluços que desta vez era mais grave que das outras. Éramos amigas desde os tempos de colégio. Nossa amizade começou quando numa festa escolar, ela apareceu com uma roupa incrível e as colegas cercaram-na fazendo troça. Parecia um bichinho assustado, acuada num canto a chorar. Fui em sua defesa, e desde então Regina me elegeu como seu anjo da guarda. Confesso que essa tarefa nem sempre tem sido fácil, pois a sua vida conjugal é uma novela de TV: todos que estão assistindo percebem que as saídas estão saltando aos olhos, mas a protagonista escolhe sempre os caminhos mais tortuosos, apresenta as razões mais obscuras, os pretextos mais bobos, para que o Gran finale aconteça depois que a mocinha derramou um rio de lágrimas e então será feliz para sempre. Alberto, seu marido, era o rapaz mais assediado do grupo. Alegre, charmoso, bem situado profissionalmente e inconstante. Gabava-se de nunca ter feito aniversário de namoro: “não encontrei a pessoa certa”, desculpava-se. “Alguém que realmente seja feminina” e feminina segundo ele era uma mulher dócil submissa “uma mulher que esteja à minha espera quando eu chegar em casa, que goste do que eu gosto, que me alcance os chinelos e me faça carinho quando eu estiver cansado” Um dia, notou aquela menina tímida, reservada que não fazia parte do seu séquito de admiradoras. Foi conferir e acabou casando-se com Regina.


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O casamento foi a concretização de um sonho. Ela envolta numa nuvem de tule e renda branca, flores, luzes, festa, sorrisos e abraços. Fui madrinha. Entrando no clima, dei de presente ao novo casal uma tapeçaria representando Romeu e Julieta: ela no balcão, de braço estendido para alcançar a mão do Romeu que subia por uma trepadeira florida, estendendo o braço para tocar a mão dela. Regina pendurou-a em lugar de destaque, numa parede da sala de jantar, acima do aparador. Fez um bonito efeito e quando a vi, desejei ardentemente que aquele casamento fosse mais do que isso: um bonito efeito. Regina era ingênua, de uma ingenuidade já fora de moda, daquelas de romance água com açúcar, de contos da “Seleção das moças” que eu lia na adolescência. Creio que acreditava em contos de fada, pois pensava que ela e Alberto seriam felizes para sempre, assim, num passe de mágica, sem que eles precisassem, com muito empenho, com idas e vindas, com brigas e reconciliações, construir a vida a dois. Ela não contava com a fragilidade dos homens, nem com a vaidade, nem com o espírito de caçador que não pode ver uma presa sem sair à caça. Alberto era um predador. Nos primeiros tempos ela era protagonista de um filme com trilha sonora e tudo. Arrumava a casa ao som da “música deles”, a que tocara no baile quando dançaram pela primeira vez. À noite colocava velas e flores na mesa do jantar e a música tema do primeiro filme que viram juntos. Abandonou a faculdade e envolveu-se de corpo e alma em revistas de decoração, receitas culinárias, cursos de corte e costura, artesanato, etc. A pedido de Alberto, abandonou o cargo de professora para cuidar da casa e do marido. Afinal, ele ganhava bem e não precisavam do salário dela. Afastouse das antigas amigas, pois lhe aborreciam com suas conversas sobre namoros e festas. Agora era uma mulher


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(pensava nisto com certo gozo, com um sentimento de superioridade, de quem tinha sido escolhida) tinha compromissos, um marido... Tinha um presente seguro e um futuro previsível: casa própria com jardim e quintal, mais adiante filhos e depois netos... Acontece que em pouco tempo, Alberto não se enquadrou mais no script. A cada escapadela do marido Regina me chamava aos prantos e cada reconciliação dos dois, ela dizia que ele prometera ser a última vez. Com o tempo,Alberto já nem se preocupava em esconder seus romances, todos viam, todos sabiam e Regina sempre acreditando na última vez. Mas, senti naquele telefonema, na voz angustiada, no choro convulso que algo diferente acontecera. Encontrei-a no sofá da sala, encolhida em posição fetal. Tinha o rosto inchado de tanto chorar e mal conseguia distinguir o que me dizia entre soluços. Apontava para a tapeçaria da sala de jantar e dizia: – Olha! Olha! – Não sei o que queres me mostrar. Fica calma para podermos conversar. – Olha a tapeçaria, olha a Julieta! – Uma mancha de mofo escura encobria o rosto da Julieta. – O Alberto disse que quer a separação, que está apaixonado por outra! – E o que isso tem a ver com a tapeçaria? – Eu não tenho mais rosto! Ele quer me apagar da vida dele, e o que eu faço da minha? – Permaneci calada diante do inevitável. Tentei consolar minha amiga, disse que quem sabe uma outra vida mais feliz não estaria começando para ela, mas estava surda. Dizia que sem Alberto sua vida estava terminada.


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– Fala com ele! Ele te respeita, te ouve, sempre diz que és muito sensata. Quem sabe desiste dessa aventura. Tenho certeza que isso passa como das outras vezes. Foi uma longa e embaraçosa conversa com Alberto. Ele ponderou suas razões, disse ter pena de Regina e que iria tentar recompor o tecido daquele casamento que segundo ele, tinha sido um equívoco. Minha amiga telefonou, agradecendo minha intervenção. Parecia feliz: – Queria comunicar a novidade: estou grávida. O que faltava no nosso casamento era um filho. Ah! Quase ia esquecendo, lavei a tapeçaria com água sanitária. O rosto da Julieta ficou um pouco desbotado, mas a mancha de mofo saiu. Escrevo este texto, depois de visitar Regina. Alberto foi embora há nove anos. Na última discussão que tiveram ela implorou que ele reconsiderasse, mas foi em vão. Diante da recusa do marido ela enfiou-se na cama, onde permanece até hoje, negando-se a levantar. A mãe cuida dela e do filho. A tapeçaria foi levada para o sótão porque pela ação da água sanitária os fios se romperam, destruindo o rosto da Julieta.


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VERANICO DE MAIO Jandir

Ontem, a tarde se fez pesada, abafada, modorrenta. Trinta graus úmidos, sem vento. Calor fingido: por fora outono vestido de verão, por dentro um frio sem jeito que não sabe onde se acomodar. Nublado. Chuva? Talvez amanhã. A lua cheia irrompeu, esgueirando-se, nua, afastando os trapos incômodos de nuvens inúteis, juntou num canto da noite o calorão do dia e trouxe o ar suave e primaveril do fim de outono. A manhã surtiu serenada com uma aragem suave como queria Isaías para experimentar a presença de Javé. E do silêncio frio regado por meu chimarrão, depois dos galos, gritaram os –li-li-li-lá-lá-lá...li-li-li-lá-lá-lá dos jacus em quatro bandos ao redor das casas, os triiii-tri-tritriii... dos nhambus em escala descendente, a arruaça de periquitos, sabiás, bentevis, cotovias, canários, tico-ticos, e ao fundo os puuh-puuh dos pombões... A vaca escutando tudo convida seu terneiro para o café matinal com seu uuuh. Os aramados que cercam a casa fazem questão de ostentar o multicolorido de rosas, três-marias que Ruth plantou, enquanto as laranjeiras apresentam suas frutas, suas laranjas, bergamotas, e limões para o desfrute das crianças que sempre as acham muito azedas a ponto de arrancar lágrimas, mas as comem sempre de novo como festa da rusticidade da chácara. Enquanto os tufões varrem o sul da Ásia e os Estados Unidos, os tremores arrasam a China e assustam o Ceará, as inundações e as secas castigam em toda parte, os


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sem-terra invadem propriedades rurais com violência e deboche, os índios quase charqueiam representantes do governo e da Petrobrás, os governantes escondem as maracutaias de seus cartões corporativos e as ladroeiras do Detran, preparando novas promessas eleitoreiras para o fim do ano, eu tento perscrutar os segredos que Deus tem para o universo, para os homens. Um segredo que vem de longe, originário como supremo futuro para cada um. Penso no Pedro Afonso que nasceu há uma semana e que dorme plácido e contente depois das suculentas mamadas, no João Gabriel em seus oito meses que engatinha por todos os lados, que se apruma escorado em qualquer beirada de cadeira e que a mãe jura que está quase dizendo “mamãe”. Penso nas netas, na sapequice de perguntar por todas as coisas e que inundam a alma da gente com seus “eu te amo”. Penso nos alunos da universidade que, sem saberem para onde vão, sem profissão à vista se é que alguma possa estar ao alcance deles....


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VÉSPERA DE REIS Jandir

Choveu de madrugada. A natureza cobrou novo ânimo. Tudo se refez de verdor original. Flores, abelhas, beija-flores, pássaros. Nos jornais, os ministros do planejamento e da economia em combinação com Lula que jurara não criar nem aumentar impostos, estratégias e mais estratégias para recuperar os 40 bilhões que eles perderam com a não prorrogação da CPMF, como se tivessem sido roubados, fraudados. Como se a sociedade lhes devesse isso. Como se eles tivessem sido vítimas. Nada de diminuir a máquina. Nada de diminuir o custo. E disfarçado sob o manto de tributar lucros líquidos de bancos e câmbio, vem o peso do aumento sobre operações financeiras e importações castigando o bolso do pobre e remediado. A chuva fez bem à lavoura. Valdeci olha com alegria o milho que cresce, a acácia que explode, o pasto verde que sacia ovelhas e bezerros. José Dirceu evidencia a sujeira interna do PT. Compra de sede com caixa-dois, envolvimento de todos os companheiros no mensalão, mentiras, imposturas, a festa com o dinheiro público. A cadelinha linguicinha arrasta a barriga prenhe de filhotes, mostrando todos os dentinhos como se estivesse rindo. As crianças correspondem com sorrisos e afagos. “Que bonitinha... vó tu dá um cachorrinho pra mim”? O PMDB e o PT comemoram a liderança nas filiações. Todos querem pertencer ao partido que está ganhando!? Todos querem conseguir as mesmas


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mordomias e privilégios dos que estão no poder!? O que interessa não é a ética mas a eficácia, o lucro, a vantagem e suas espertezas!? Enquanto isso o ex-diretor do Banco Central dos EEUU diz que o Brasil ainda não está fora da área de turbulência econômica. Sobre os pente-de-macaco, em meio a tantas cores e flores, os beija-flores, - uma dúzia, no mínimo - saciam-se de mel, concorrendo com moscas e abelhas. Diante do anúncio de que os aposentados terão diminuição e os funcionários públicos não terão aumento, começa o zumzum por paralisação e greve. A Universidade Católica, ante a concorrência nem sempre por qualidade acadêmica, abre vestibular para fevereiro, à procura de alunos que ainda restam no mercado. Felizmente o prenúncio de um mês de janeiro seco e tórrido não se concretiza. Sempre alguma chuva, algum refresco, e, por aqui, sem vendavais ou granizos. A violência do clima acontece mais ao norte. O reencontro com velhos e saudosos amigos nas esquinas, nas filas de banco, nas celebrações litúrgicas, rejuvenesce o coração. O Laranjal, apesar da nova usina de tratamento de esgoto, ainda não está totalmente despoluído, a confiar nas informações de quem gostaria que estivesse pior. Mas a praia, com seus mutirões de limpeza, com a melhoria dos serviços e bares, com seus shows musicais, com as figueiras que abrigam chimarrões, amores e passeios, emoldura a beleza de viver no verão. Vale a pena suportar algum mosquito para acalentar o amor com a lua cheia que eclode das águas e faz da lagoa uma estrada luminosa. Vale a pena esperar o nascer do sol. Violência no trânsito. Dez por cento a mais que no ano passado!? Medidas punitivas, desde multas mais pesadas, criminalização, lei seca...!? Tudo isto é verdade. Ficam encobertas: a situação das estradas, 18% a mais de


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automóveis lançados nas vias públicas do Brasil em 2007, a falta de fundamento na educação que nos ajude a ver o significado da vida, a convivência respeitosa e pacífica que resulta da justiça e da amorosidade e não do aproveitamento, da utilização dos outros como instrumentos de satisfação egoísta... Há músicas no ar recordando os Reis Magos que vieram de muitos lados à procura do Menino que traria a Paz. É um tempo feliz para que reconheçamos, no rosto de cada criança, dos mais sofridos, a figura daquele que nos revelou que Ele está entre nós.


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SOB O SIGNO DE CAPRICÓRNIO Ruth “...era do signo de capricórnio e os desse Signo tem que lutar muito para vencer.” Lígia Fagundes Telles

– Acorda, Betinha. – A avó abre a janela, sacode a menina que dorme -Tenho que sair. Vou te deixar na casa da vizinha. – Ainda é cedo! – A menina cobre a cabeça com as cobertas, vira para o outro lado. – Não dá para dormir só mais um pouquinho? – Não faz manha. – A avó puxa as cobertas, pega a menina pelo braço..- Não posso me atrasar ! – Aonde vais tão cedo? – Betinha espreguiça-se, boceja. – Fiquei sabendo agora de manhã pelo rádio. - a avó seca os olhos com a ponta do avental, ajuda a menina vestir a roupa..-Um grande amigo, uma pessoa muito querida morreu. O enterro é às dez horas. Quero chegar mais cedo. – Toma teu café e não embroma. –Pega o caderninho de endereços disca um número no telefone. – Alô, quem fala? –Esfrega os olhos, troca o telefone de ouvido: Rôni. –Há quanto tempo! – Adalgisa? A que devo a lembrança?! – Lembra do Antenor? – Soluça, funga ..- Morreu! O enterro é hoje às dez horas. Pensei que poderias me acompanhar, afinal, tiveste parte nessa história. – Como poderia esquecer? – Rôni revira os olhos para cima, põe a mão na cintura. – È obvio que te


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acompanho, minha linda, nos encontramos na entrada do cemitério. – Já estou de saída. – A avó aparece na porta da cozinha vestida de preto.. – Anda logo, deixa de embromação senão perco o ônibus. Adalgisa chega ao cemitério, abraça Rôni comovida e em silêncio entram na capela. – Ai que tão cedo partiu meu Antenor. – A viúva passa o lenço no rosto, assua o nariz vermelho. – Nem se despediu da família, dos amigos. Não pude sequer ajeitar os negócios. – A morte não manda aviso.- A irmã segura a mão da viúva, inclina a cabeça aproximando-se do seu ouvido.Mas que outra coisa se poderia esperar? Levou uma vida de devasso! E vamos ser francas, de boa bisca te livraste. – Que descanse em paz. Mesmo morto continua bonito. – Adalgisa faz o sinal da cruz, reza contrita, aproxima-se do caixão . –A senhora certamente é a viúva? Meus pêsames. Esta é uma grande perda! Compartilho sua dor. – Meus pêsames. – Rôni estende a mão, inclina o corpo numa mesura. – Obrigada. – A viúva levanta a cabeça, olha espantada para aqueles estranhos.-É uma perda irreparável. – Conheces essa senhora? –A irmã cochicha no ouvido da viúva .–Repara como soluça. Desde que entrou aqui não parou de chorar! É alguma parenta do Antenor? – Nunca vi essa mulher e que eu saiba o Antenor não tinha parentes na cidade. – A viúva olha de canto de olho, torna a baixar o olhar. – Vai ver que é uma das antigas amantes. – Parece uma senhora distinta. – A irmã da viúva olha de soslaio a senhora de preto sentada do outro lado do


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caixão.– E depois, não é o tipo do Antenor. Ele gostava de franguinhas. – Quase não mudou, está apenas com alguns cabelos brancos e rugas nos cantos dos olhos. – Adalgisa funga, limpa as lágrimas com o lenço. – Parece que foi ontem que me tirou para dançar no baile em que fui escolhida como princesa! Quantas cartas mandei para ele, quantos convites para o cinema, quantos presentes! Até um blusão de tricô eu teci. E ele só me respondeu com desprezo. – De fato, fui eu quem sugeri que usasses o cognome de gatinha manhosa e as iniciais MG nas correspondências. – Rôni segura o braço da amiga, inclina a cabeça em sua direção, esboça um sorriso. – E que voz máscula ele tinha! – Olha como suspira! Parece que a viúva é ela. – A irmã fita a outra franzindo a testa. – Aí tem história, não sei o que é, mas que tem, tem! – Ela está chamando a atenção de todos. – A viúva desvia o olhar, sussurra. – Só me faltava essa, aparecer a outra na hora do enterro. E se o Antenor tinha outra família e eu nunca desconfiei! – Disfarça, amiga! – Rôni põe as mãos entre as pernas, fala de cabeça baixa. – A viúva está olhando para cá. – Eu sabia que meu amor por ele era para sempre! Casei com outro, tive meus filhos, netos, mas nunca o esqueci. Agora que ele está morto, pelo menos tenho o direito de chorar. – Diz Adalgisa. Chega o Padre: – Vamos rezar por este irmão que partiu. – Faz o sinal da cruz, borrifa o caixão com água benta o padre. – Que descanse em paz!


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– Chama os filhos e os vizinhos para perto. Cerquem o caixão. – A viúva fala entre dentes . Não quero aqueles estranhos por perto. – Fica junto de mim, gatinha. – Rôni agarra o braço da amiga. – Agora é o momento da família se despedir. – Preciso vê-lo pela última vez. – Adalgisa empurra com os braços, rompe o cerco, abraça-se ao caixão. – Também quero me despedir. – Eu te falei que aí tinha coisa! – fala cerrando os dentes, a irmã. – Agora o melhor é disfarçar e fazer de conta que é parente. – Vem comigo. – Rôni passa o braço pelos ombros de Adalgisa, levando-a para um canto. – Ufa! Ainda bem que o enterro terminou. – A viúva caminha apressada em direção à saída, esconde a boca com a mão espalmada, chega perto do ouvido da irmã. – Já imaginou se essa mulher resolve dar mais um escândalo? Se aparece algum bastardo e vem reclamar herança? No dia seguinte, em frente ao túmulo de Agenor, está uma coroa de crisântemos amarelos com uma faixa roxa onde se lê: SAUDADES ETERNAS. Preso à faixa com alfinete, um cartãozinho em que está escrito: Da sempre tua G M.


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LUA CHEIA Jandir

A lua quase-cheia, matrona de tetas grandes, estende um manto prateado e aveludado sobre o sonho das crianças que dormem, pertinho da proteção das mãos fortes do pai e do olhar atento da mãe. Aspirei profundamente a brisa fresca da noite cheia de luar. O coração sossegou. Tudo se faz silêncio para que os grilos e as rãs sejam ouvidas. O horizonte verde-azulado na infinitude do olhar se cobre de penumbra num convite ao chimarrão. Há um clima de pudor e de surpresa. A lua quase cheia surgiu para as tarefas da noite.


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PROXIMIDADE DO NATAL Jandir

Um sabiá-laranjeira desata seu trinado a bico solto a cinco metros de mim. No topo da anacauíta um casal de barreiros zombam em gargalhada das desgraças da vida. Dois cachorrinhos linguicinha se rebolcam a meus pés pedindo carinho. Um bispo, semi-consciente, em greve de fome pela não transposição do rio S. Francisco, deixa irrequietos o Senado, o Presidente, a CNBB. Histerias de Pastoral da terra e de MST? Uma pomba sentada no fio de telefone envia seus recados de puuh...puuh...puuuh. O Senado, que não aprovou a prorrogação da CPMF, aceitou que o presidente gaste onde e como quiser 20% do orçamento. Transparências!? Eleições! O sol saltou de dentro da lagoa no Laranjal, afastou duas nuvens e lambuza de luz as bunganvilhas vermelhas. A presidente da Argentina recém-empossada é importunada pelos Estados Unidos porque teria recebido dólares para a eleição. Guerra fria contra Chaves? Machismo? Ódio ao tango? Desespero de policial que já não consegue manter a ordem no mundo? Um cacho de rosas multicores, do mesmo pé, eclode em convite aos pássaros e ao amor. Meu bem, janela aberta do sobrado que olha o mato, dormita escutando os sabiás. O prefeito inaugurou uma estação de tratamento de esgoto: diminui a poluição da praia do Laranjal. No sonho


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de meninos e mocinhas desta noite bailam sungas e biquínis, e sol, e bola, e sorvete. O chimarrão cálido em sua espuma perfumada de histórias guaranis, ilumina os pensamentos e convida à interlocução. O PIB brasileiro do último trimestre cresceu mais do que o esperado: 5,4%. A esmola da bolsa-família prosseguirá, indefinidamente, aleijando a identidade, a auto-estima, a cidadania? Mas, pelo menos assim as pessoas comem!? E se não houver segurança, saúde e educação é por culpa do Congresso que não deixa o governo gastar!? Casamentos, aniversários, formaturas, prenúncios de frutas maduras. Véspera de verão. Nas alcovas ou nas rodinhas de wisky urdem-se os privilégios dos novos planos, das novas direções, das novas espertezas, das novas impunidades no arco-íris de todos os matizes: econômicos, políticos, culturais, religiosos. As pintoras já chegaram para branquear os muros e renovar paredes, tetos e grades. Boas profissionais, pobres, simples, laboriosas. As mortes por acidente de trânsito aumentaram em 60% neste ano. A indústria automobilística proclama recordes. Todas estrangeiras. Os bancos gabam-se de seus altos lucros. O dólar está caindo. As importações aumentam. Os brasileiros viajam para o exterior. A inflação está dominada. O serviço da dívida está controlado. O Brasil está na senda do progresso. Diz o governo? Diz o PT? A crise imobiliária americana não afetará o Brasil!? E a Democracia? E a participação? Se a economia vai bem, os brasileiros também!? A caixa de e-mails está repleta de lindas mensagens, paisagens, convites para correntes da sorte, da saúde, da felicidade. É o Natal que se aproxima. Os papais-noel de


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todas as lojas, de todos os gostos, empulham a imaginação das crianças e adultos. Pobre do menino Jesus! Que vontade de acalentar uma sólida utopia de amor, verdade, respeito e paz! De tomar um chimarrão ouvindo saracuras e sabiás e poder assobiar imitando pássaros! E desejando a você meu irmão, meu amigo, um Feliz Natal.


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REDEMOINHO Ruth

Na verdade, compadre, essa nossa campanha viveu sempre em guerra. Dos entreveros com os castelhanos na briga pela terra e pelo gado, eu só sei de ouvir meu avô contar. Meu bisavô e meu avô lutaram na Revolução Farroupilha. Foram muitos anos de luta, meu avô tinha treze anos quando começou e só peleou no finalzinho, mas ele sempre contava que as estâncias ficaram empobrecidas e graças aos trabalhos das mulheres e dos escravos que agüentaram com as lides do campo enquanto seus homens guerreavam, é que a província não foi à falência. Meu avô e meu pai também lutaram na guerra do Paraguai, mas não me pergunte qual foi o motivo da guerra porque até hoje eu não sei. O que eu lembro bem , porque essa eu de certa forma assisti, foi a Revolução Federalista de 1 893. Lembro como se fosse hoje o dia em que meu pai partiu. Dias antes os fazendeiros da região começaram a se reunir. Discutiam muito, falavam do governo e de um tal Júlio de Castilhos que queria tomar conta do poder botando de escanteio as lideranças da campanha. A luta já tinha começado, era pelos meados do mês de junho. Meu pai reuniu a peonada e mandou que azeitassem as armas e preparassem munição. De noite reuniu a família e comunicou que pela madrugada partiam para Bagé para se encontrarem com as tropas de Silveira Martins: iam lutar contra os Chimangos. A mãe chorava baixinho, limpando as lágrimas com a ponta do xale. Eu e minhas irmãs corremos para perto da mãe e nos abraçamos nela. Já corria


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a notícia que a revolução era sangrenta e temíamos pela vida do pai. Ainda era escuro quando começou o movimento. Acordei com o barulho dos cascos de cavalo. Abri a tramela da janela do quarto e espiei para fora: os peões encilhavam os cavalos, prendiam o laço nos tentos; as comitivas das outras estâncias começavam a chegar. Pulei da cama, vesti uma roupa quente e corri para o galpão. Meu pai tomava chimarrão sentado num banquinho, perto do fogo. Todos estavam sérios, calados. A cuia passava de mão em mão e não se ouvia nenhuma das fanfarronices de costume. Ao lado de meu pai, acocorado sobre os calcanhares, Claudiomiro, nosso peão mais antigo, enrolava vagarosamente um palheiro, com o olhar fixo no que estava fazendo, como se fosse a tarefa mais importante do mundo. Com a chegada dos homens do Francisco Sandim todos levantaram, foram examinar as montarias para ver se estava tudo em ordem. Meu pai voltou-se para o Claudiomiro e disse “Tu ficas, cuida do gado e de minha família” e virando-se para mim, entregou-me um revólver e o cinto com munição “ Cuida de tua mãe e irmãs. Se for preciso, atira para matar “. Fez um carinho no meu rosto, abraçou a mãe e as irmãs, vestiu o poncho, montou a cavalo e com um aceno seguiu à frente da caravana em direção ao nevoeiro denso que na minha aflição parecia engolir cavalos e cavaleiros. Dois anos depois meu pai voltou, cansado e envelhecido. Foram dois anos de agonia em que só nos restava rezar a cada notícia de degola. Ficávamos com o coração suspenso até receber notícia de que o pai estava vivo. Lembro bem daquele dia: era inverno, cerca de nove horas da manhã e a cerração ainda não tinha levantado. Estávamos na mangueira ordenhando as vacas quando avistamos um vulto emergindo do nevoeiro. Eu e a mãe


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corremos em direção à casa, pois eram tempos difíceis e não sabíamos se quem chegava era amigo ou inimigo. Na soleira da porta minha mãe olhou para a estrada e gritou “é ele!” e saiu correndo para abraçar o pai que já apeava do cavalo Nos primeiros dias não nos causou estranheza que o pai não falasse sobre a guerra, afinal, precisava descansar. Com o passar do tempo, queríamos saber dos acontecidos, dos entreveros, dos reveses e das vitórias, mas ele apenas abanava a cabeça, enchia os olhos d’água e com um aceno de mão pedia que o deixássemos em paz. O tempo foi passando e seu comportamento tornouse mais estranho. Tinha dias em que se refugiava no taquaral e quando íamos buscá-lo dizia:.”” Os homens estão chegando, não deixem que eles me vejam. Querem me degolar, querem me degolar!” Nunca mais o pai foi o mesmo e por mais que nos esforçássemos era raro vê-lo sorrir. Numa tarde de inverno ele sumiu. Procuramos por todos os lugares costumeiros sem sucesso. Quase noite os peões o encontraram morto, no mato, com metade do corpo dentro do arroio e na mão fechada um medalhão de ouro, desses de abrir. Dentro uma mecha de cabelo louro. Dias depois o major Francisco Saraiva foi fazer a visita de pêsames. Lamentou a morte de papai, desculpouse por não ter comparecido ao velório:” grande homem, grande amigo. Lutou como uma fera na revolução! Foi só depois que degolaram o capitão chimango com sua china, uma alemã mui linda, é que o compadre começou a cismar”.


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NATAL EM FONTOURA XAVIER Jandir

Antes de emancipar-se de Soledade, a vila de Fontoura Xavier era capela de Burro Morto. Sim, este era o nome da vila, hoje São José do Herval. A estrada da Produção que, de Canoas passa por Tabaí e Lajeado em busca de Soledade, arrastando-se pelo vale do rio Forqueta, encontra o Fão, engalfinha-se nos morros que formam precipício dos dois lados. Ganha, depois da vila dos queijos de Pouso Novo, o topo da serra onde fímbrias de antigos pinhais emolduravam a vila de casas de madeira de São José do Herval. Doze quilômetros depois vem Fontoura Xavier. Os pinhais, a mata atlântica, os ervais nativos, cada vez mais ralos, vão cedendo lugar ao campo ondulado de um verde azulado, salpicado de caponetes ao longo dos córregos, onde o gado multicolorido pasta pachorrentamente. Antes do asfalto a estradinha estreita com mil curvas fechadas, repechos difíceis, pedras soltas, ao fim da tarde trazia de Soledade o pequeno ônibus de 22 lugares, amarelo desbotado, com pequenas janelas de vidro que nunca abriam e cortinas que não funcionavam. Vinha apinhado de homens simples de chapéu grande, bota e bombacha, lenço ao pescoço e falando em voz alta. Revólver e adaga na cintura. As mulheres com filhos ao colo, vestido de chita, chinelinhos sem luxo. Os rapazes e as moças aproveitavam as frestas de silêncio na conversa e na atenção dos adultos para engancharem com o olho um namorico qualquer.


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Depois do ônibus que trazia as novidades de pessoas, cartas, recados, encomendas puxando para as janelinhas de madeira ou para a estrada curiosos e interessados, a vida serenava com a poeira que baixava e o frescor da noite que convidava a agasalhar-se. A buzina do ônibus de Neco e Nenê que passava, vinha sempre grávida de expectativas, surpresas, esperanças e decepções. O ônibus que saía de manhãzinha e retornava à tarde inaugurava e fechava o dia como o sino nas colônias italianas. Em meados de dezembro voltavam os rapazes e as moças, mais rapazes que moças, que foram estudar em algum internato de Soledade, Passo Fundo ou Lajeado. A vida ganhava colorido e promessa de algum baile, de alguma festa ao redor do Natal e dos Reis. A vila - casas de madeira sem pintura , muitas delas ainda cobertas por tabuinhas - , sem luz elétrica, - cada qual com seu lampião a querosene -, sem água encanada, – com seu poço e seus baldes -, lamentava o calor, a polvadeira e a seca daquele verão que iniciava. Combinamos: ao anoitecer, rapazes e moças que quisessem, ensaiaríamos uma encenação de Natal para apresentar na passagem de 24. Todas as noites. Dez dias seriam suficientes. Seria um auto de D. Marcos Barbosa com falas simples, fáceis de decorar e símbolos muito significativos sobre o nascimento de Cristo. Uma ou duas frases para cada um e envolveríamos uns quinze deles. O convite foi aceito com sofreguidão. Mais de trinta, ainda claro, banho tomado, camisa limpa, apinhavam-se em frente à capelinha de madeira, no gramado espaçoso no alto da colina, recém pintada de branco (com cal e sangue de boi para a liga). – Então, faremos um teatro?, pergunta Alfredo.


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– E por que não podemos fazer? Respondi. E será dos bons. É sobre o Natal. Vocês topam? – E nós seremos capazes? Arriscou Júlio. A gente é meio burro, a memória às vezes não ajuda! – Garanto a vocês, é simples, fácil e bonito. E também será uma chance de a gente se encontrar todas as noites até o Natal. Ou vocês não querem? – Queremos, queremos, foi a resposta em coro. – Precisamos de uma moça que seja bonita, para representar Nossa Senhora. Quem vocês sugerem? As moças se olharam, compararam, mediram para saber se tinham chance. Rosalina, já com 26 anos abriu um pouco mais o decote e atirou os cabelos para trás. Mas não havia como! Os olhares dos rapazes convergiram para Clari a tal ponto que ela enrubesceu. Para não perder o rebolado e a batalha Rosalina avançou: – Acho que deve ser Clari. Ela está no colégio, tem mais estudo. A aprovação dos rapazes foi unânime e imediata e as outras nem tiveram tempo para reagir. – E para o papel de São José, quem vocês sugerem? – Como era São José? Era gordo ou magro? Tinha barba?... - Eu acho que o Magrão pode ser, sugeriu Lino. Mas só por fora. Por dentro ele é o contrário de São José. Bota maleva nisso! Mas tem uma boa cabeça. – Mas que é isso Lino, retrucou Pedrinho, pensei que tu fosses meu amigo! – E os anjos? E os pastores?, e o pessoal de Belém?, e os reis magos? – Ué, que reis magros são esses?, perguntou Antoninho. Eu sempre pensei que os reis fossem gordos, comem do bom e do melhor...


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– Não é rei magro, seu bobo!, disse Isabel. São aqueles reis que vieram atrás de uma estrela, para trazer presentes ao Menino Jesus. Assim o elenco de atores foi “todo mundo”, para a felicidade e orgulho de todos. Li o texto inteiro explicando as cenas, distribuí os papeizinhos com as falas para decorar. Joana saltou: – E quem não sabe ler, como é o meu caso, do Oscar e mais alguns? – Quem mais não sabe ler? Perguntei aflito, percebendo o peso da pobreza concreta daquele nosso rincão. Mais cinco braços se levantaram. – Como vamos resolver isso? Quem sabe os que mais sabem ensinam os outros a decorar? E depois, no mês de janeiro, aqui mesmo na capela, à noite, porque não organizar umas aulinhas para aprender a ler e escrever? – Você ajuda a gente? Porque ir pra escola a gente tem vergonha, ajuntou Joana. – Mas está na cara! Pra mim é um prazer e até um passa tempo. Combinado? O consentimento de cabeça, montou nossa turma de alfabetização. – E os cantos? Perguntou Irma. – Bem, primeiro vamos escolher os cantos: Quem sabe Noite Feliz, sugeri. – Aquele dos sinos, Hoje a noite é bela... e aquele Nome Dulcíssimo... e aquele Boa noite meu Jesus, indicava Itelvina... Gino preferia O belo mês das flores... Antônio sugeria: – Por que não o Negrinho do Pastoreio? E aquele bonito: O Uirapuru? Julieta, tímida, enrubesceu ao sugerir:


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– E o Róseo Menino, feito de luz? Olhei-a com toda a simpatia que pude, para evitar dizer-lhe que aquele canto é eurocêntrico, racista piegas e falso... “Onde se viu o menino Jesus de cabelos loiros, olhos azuis...?” Amei aquela santa ingenuidade e só consegui dizer: – Por que não?! Assim todas as noites à luz da lua que, cada dia ficava mais cheia e próxima, e dois lampiões, ensaiávamos nosso Auto de Natal. Depois os cantos. Previamente, lá em casa, cada um de nossos irmãos treinou uma voz para depois ensiná-la ao sub-grupo na capela e garantir a polifonia. Irma ficou com o soprano, Ite com a segunda voz de mulher, Castilo e Gino com o tenor e Jandir e Leonel com o barítono. Os demais agregavam-se segundo sentissem afinidade de voz. À noite, quatro pequenos grupos com as vozes mais dissonantes do universo mas com a vontade e necessidade de participação para encontrar uma beirinha de autoafirmação, orgulho e identidade, fizeram acontecer nossas canções. Contanto que alguém sustentasse corretamente sua voz, as vozes destoantes eram perdoadas. E o convívio que crescia, amadurecia em promessas de amizades e até de achegos maiores, compensava o esforço. Ninguém faltava. Pelo contrário, juntavam-se mais e mais rapazes e moças que a gente ia acomodando nos grupos de canto. Duas noites antes do Natal, quando a lua estava completa, lasciva, madura e a brisa era suave como um convite, Sebastião e Rosa ficaram mais para trás do grupo que descia para casa ao final do ensaio. Na sombra do cinamomo não resistiram ao apelo de um apertão e um beijo estalado. O ruído chamou a atenção de todos. Parei, esperei por eles:


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– Posso dizer? Eles encabulados: – Pode, desculpe! – O amor é lindo. Cuidem dele! – Mas tu não vais contar pra mãe!? Suplicou Rosa. – Tua mãe não pode saber? Instiguei. – Ela me acharia uma puta! – Sossega, Rosa. É uma pena que as pessoas tenham tanto medo de amar e ser amadas. E o Natal não é a festa do amor de Deus feito carne? Os olhos de Rosa brilhavam. Sebastião gaguejava... Por fim, Natal. A capela brilhava. Assoalho encerado. O presépio num canto, perto do altar. Grande para caber pessoas. Papel amassado imitando pedras. Musgos. Um espelho no chão fazendo as vezes de um lago um lago, com dois patinhos de plástico. E um cocho para bercinho do Menino... Natal. O calor do dia deu lugar a uma leve brisa de vinte graus. Igreja às escuras. Não cabia mais ninguém. Só um lampião em cima do altar. Dez horas. O sino bateu a hora da missa do galo. O frei paramentado, de pé soou levemente a campainha. Silêncio total. Dois grilos no forro se faziam ouvir. Apaga-se o lampião. Trevas embrulhadas na luz da lua. Jorge com voz de barítono: – A humanidade andava nas trevas... Mas Deus amadureceu a esperança no coração dos homens... E Ele veio, pediu licença para entrar na família dos homens... Maria, em nome de todos, disse Sim. Gino, calça e camisa branca, vela acesa na mão, para dizer “eis o Salvador”, sua única frase. Atrapalhou-se: – Eis a vela, não... eis a luz...


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Eu, como ponto sussurrava-lhe: – Põe a vela no presépio... Atrás dele vinha Clari, linda, vestido azul e branco esvoaçante, um boneco tamanho natural nos braços. O foco de uma lanterna potente, de três pilhas, destacava a figura dela, saindo por detrás do altar e encaminhando-se para o presépio. Mais vaidosa do que nunca, veio de salto alto. Em frente ao altar, o assoalho liso traiu-lhe o passo. Resvalou. Caiu sentada. Quis levantar. Pisou na barra do vestido. Caiu de bruço. A capela uníssona ressoou com um: – Aaaaahhh! Clari chorava. Juntei o boneco a dois metros dela. Dei-lhe o braço e disse-lhe ao ouvido: – Vamos para atrás do altar... Clari chorava inconsolável: – Estraguei tudo... Fiz-lhe, com o dedo nos lábios sinal de silêncio. Olhei ao redor. Nem um copo de água. Peguei a garrafa do vinho do padre e ordenei: – Toma um bom gole... Vamos repetir a cena... Sem sapatos, pés descalços... Vai dar tudo certo... Fui até a frente do altar... A aflição de todos... cochichos... o desespero dos atores, fiz sinal que iria falar: – Assim a humanidade ia de tombo em tombo... Clari entrou humilde e mais bonita ainda. No canto da Noite Feliz o entusiasmo de todos redobrou. Rosalina, que havia iniciado um riso pelo fracasso de Clari, nada falou.


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CHUVA Jandir

Janeiro. Calor desmesurado. O sol queima. O suor brota. O mormaço chama temporal. Os trovões cansaram de ribombar a noite toda na concha arredondada dos morros da chácara. Finalmente a chuva. Chuva e vento. Para sacudir o pó, a sujeira das árvores. Aos poucos, a chuva fina, persistente, sem ruído. Só o ninar das goteiras do telhado ao redor da casa. Sono refrescante. Acalentador. Amanhece. As árvores quietas, recolhidas bebem a chuva que lava, refresca, regenera, nutre. Elas se concentram em suas raízes para que se aprofundem na escuridão da terra e se abram depois ao sol que se esconde folgado atrás das nuvens. Chuva calada. Caladeira. Cada plantinha mostra sua alma nova, renovada. Cada uma com seu estilo, seu tipo, sua roupagem de verdor. Fisionomias de infinitos verdes. Desde o verde mais claro até o verde escuro. Tudo mostra saúde. Alegria. Uma felicidade convidativa, dada, puro dom que vem de dentro e se expõe e se expande. Fala a alma da vida, a alma do mundo, fala Deus. As galinhas com seus pintos e franguinhos que ensaiaram o café da manhã numa pequena estiagem, agora voltam e se encolhem junto ao limoeiro, à laranjeira e à pitangueira, cabeça erguida, silentes, para que as gotas escorram pela penas e não lhes molhe a pele. O arroio recolhe as águas generosas, de todas as sangas, de todas as vertentes que se expandem felizes e lava as margens, rompe os obstáculos, até aqueles que Valdeci


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tenta implantar para organizar as águas em forma de piscina. O arroio ronca, bate, rebate, empurra, escava, socava, rebenta e explode em sua liberdade que busca o espaço mais amplo. Em busca do mar. E vem o convite para um café quentinho com roscas de polvilho, para melhor escutar a chuva. Nada acontece no mundo sem chuva que vem do alto e sem o braço do homem que cultive a terra, já dizia a Bíblia. Bendita seja a chuva que irriga as esperanças.


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FESTA NA CAPELA Jandir

Sábado quente de meados de dezembro. Guamirim, Fontoura Xavier. O velho Jeep coberto de lona verde-empoeirada do Frei Pascásio buzina em frente de casa. Eu o acompanharia na festa da capela lá no fundo do Fão, muito além de Três Pinheiros. Vem de túnica marron surrada porque sabe que a polvadeira vai ser grande. Na malinha de couro que fôra preta leva cálice, hóstias, uma garrafinha de vinho e duas velas, com os paramentos para a missa. – E para comer?, perguntei. Não é bom levar um fiambre? – Na festa deve haver alguma coisa que se coma, respondeu ele, tranqüilo. Uma hora de solavancos, curvas e pedras até chegarmos no alto do morro que dava para o rio Fão. Um pouco abaixo dali houve o massacre da Revolução de 1923. Foram pouco mais de trinta quilômetros. A cada freada a poeira nos recobria. Assim chegamos à casa de seu Alberto que nos esperava com dois cavalos encilhados para descermos à capela. Seis quilômetros. Uma hora e meia. Estrada não era. Uma trilha para andar a pé ou a cavalo com dificuldade. Ora descia em precipício, ora conseguia cinqüenta metros de semi-plano. Era preciso andar à distância um do outro para evitar que o cavalo que vinha atrás rolasse pedras que ferissem os que iam à frente. – Verdadeiro esconderijo, comentei.


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– Nem a polícia entra aqui, rotorquiu Pascásio. É verdade que muitos são foragidos da justiça. Escondem-se aqui. Mas são pessoas boas, simples como verás. – E esta é a única saída? – Eles têm uma estradinha, não muito melhor que esta, que margeia o arroio em direção a Barros Cassal. Mas este é nosso caminho mais curto. Para retirar os produtos que vendem, só em lombo de burro ou em pequenas carroças. De fato, quase nada vendem e quase nada compram. Um pouco de feijão e milho para comprar cachaça, sal e tecidos de brim para os homens e chita para as mulheres. Calçados? Quase não têm e quando têm é chinelo. Enfim chegamos ao vau do Fão, quase seco nesta época. – Vamos passar uma água fresca na cara, sugeriu o frei. Apeamos. Sacudimos a poeira maior da roupa. Lavamos mãos, pés e cabeça. “Que vontade de ficar aqui e tomar um banho, deve haver algum poço para mergulhar...” O pente de osso que Pascásio sempre levava no bolso serviu para alinhar um pouco o cabelo... Na frente da capela, há uns quinhentos metros dali, estava o povo todo reunido. Não mais do que oitenta pessoas entre homens, mulheres e crianças. Negros, cerca de dez. A maioria de cor parda, quase índio, quase negro, quase branco, ossudos, não muito altos, rosto grande, olhos e cabelos negros desgrenhados, mesmo o das mocinhas. Só os mais velhos usavam chapéu de palha e chinelo. As mulheres cobriam-se apenas com um vestido de chita quase transparente. Receberam o vigário com entusiasmo: as crianças saltavam pelo gramado, dois foguetes ribombaram pelos morros, e todos batiam palmas. Mal desmontamos e todos


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se jogavam em cima do padre pedindo a bênção. Frei Pascásio colocava a mão na cabeça de cada um dizendo: – Deus te abençoe, meu filho... E logo foi perguntando ao líder Gomercindo: – Como está a esposa Joana e os filhos?... e a vizinhança? – Estão bem, todos estão aqui... temos mais uma cria nova, nasceu no mês passado. – Vamos batizar a criança hoje? – Vamos... tem oito pra batizar... E dois casamentos. – Casamento? De quem? Insistiu Pascásio. – O Pedrinho, filho do Juvêncio com a guria do seu Zé Fernandes, e o meu sobrinho Bento com a filha do Joaquim. – Joaquim?... – É o Joaquim Flores que mora na barranca, perto de mim. – Então vamos começar a função logo, atalhou o padre. Na capela de madeira, telhado de tabuinhas, duas janelas sem vidro a cada lado, uma sala de seis por oito apinharam-se todos. Só ficaram fora seu Tonho e seu filho Zeca assando o churrasco de porco numa vala bem pertinho da igrejinha. O vento levava para dentro da capela, que também é a escola e o salão de reunião da comunidade, o cheiro gorduroso do assado, sabendo a torresmo. Paramentado de cinza e estola roxa como convém ao advento, frei Pascásio, atrás da mesinha vestida de toalha branca que havíamos levado e duas velas acesas ladeando o crucifixo, tomou o ar sério, professoral e paterno: – E então, todos estão em paz? Ou houve novas brigas desde a última vez que estive aqui? Porque, se houve briga, falação, mexerico, inveja está na hora de todos


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pedirem perdão e perdoar. Quem sabe vamos dizer em voz alta que pedimos perdão e perdoamos! E todos repetiam as palavras do sacerdote. – Mas olhem que isso é pra valer e não uma desculpa pra fazer tudo de novo! Depois perguntou pelo trabalho, pela colheita do feijão, pelo plantio do milho, pelas galinhas e porcos que criavam para a sobrevivência, pela limpeza da casa, das crianças, pela horta nos fundos do rancho para os repolhos, os tomates, os temperos... Se já tinham vendido seu feijão... que esperassem dez dias, se pudessem, porque soube que o preço iria subir. Usava o texto do Evangelho para explicar-lhes como se faz para viver como irmãos, para educar os filhos, para namorar e casar sob as bênçãos de Deus.... Que deveriam apoiar sempre a professora para que ela tivesse autoridade junto aos filhos... E assim percorria a vida nos mínimos detalhes, desde a sexualidade, a economia, a organização da comunidade, as notícias do mundo que, agora, poderiam ouvir no único rádio da redondeza o de seu Pedro, e dizia o nome deles como quem os conhecesse longamente, um por um. Enquanto isso, sentadas nos três bancos de madeira que estavam à frente do altar, oito ou dez mulheres, vestido desabotoado mostrando os dois seios absolutamente nus, amamentavam os filhos, na sem-cerimônia mais natural do universo. Quando esgotava um lado viravam a criança para o outro e, boca, ouvidos, olhos abertos iam escutando o padre. Confesso que aquela visão me perturbava, em meus dezoito anos de seminarista. Aqueles seios túrgidos, alguns redondos e jovens, tão à mostra, tão à mão, faziam balançar meus pensamentos de castidade e de vocação para o sacerdócio.


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Mas o padre impávido, em sua provecta sabedoria, falava-lhes na intimidade, como a amigos e filhos que se quer muito e desde há muito tempo. Foram quase duas horas de prédica, acompanhadas, como eu nunca havia visto, com a atenção e a concordância de todos aqueles matutos para quem a visita do padre era o momento culminante de civilização, de religião, de bênção. Depois perguntou aos noivos se era séria a intenção de casar. Perguntou-lhes se estavam arrependidos de todos os pecados passados para poderem comungar, uma vez que eles já tinham feito a primeira comunhão. Perguntou-lhes onde iriam morar, se tinham ou não a sua casinha, se estavam prontos a ter filhos que Deus daria, ele tinha certeza(?!)... Depois, os batizados, sem que ninguém arredasse pé da capela. Já passado o meio dia, veio o almoço. Seu Antonio tinha reservado um pedaço de costela, duas fatias de pão, um prato com dois tomates cortados e uma garrafa de gasosa, para nós. Foi um banquete para tanta fome. Os grupos, de família ou de jovens, sentados na grama, à sombra de quatro caneleiras, comiam o assado com cachaça. Os mais endinheirados dos rapazes ofereciam às namoradas uma gasosa. A cena das mulheres na capela e das moças tão sucintamente vestidas em suas chitas, rodava permanentemente em minha cabeça. Meia tarde, retomamos o caminho de volta. Íamos sós. Alberto pediu para ficar ajudando na festinha. Deixamos os cavalos desarreados, pastando à soga na casa dele e retomamos os solavancos de Jeep. Foi então que, Pascásio, perspicaz nos caminhos da alma, perguntou: – Que achaste da festa?


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– Ora, respondi, achei gozado o modo de vestir daquela gente!... – O que mais te intrigou foi o modo de vestir das mulheres, não foi? – Foi... – Pois tu sabes que o lugar onde mais experimento a presença de Deus é nesta capela? – Aqui? – Esta gente é pobre, muito pobre, miserável mesmo. Mal conseguem sobreviver. A maioria dos adultos é analfabeto. Eles se pensam fora da lei ou coniventes com os fugitivos da polícia. Dar-lhes uma palavra de esperança é o melhor que se pode fazer. E as mulheres, que só tem o leite do peito para dar aos filhos, dão-no com a generosidade absoluta de quem não tem nada a reservar. E enquanto se dão inteiras, elas acolhem, com que fome(!), a palavra de Deus. Há muita santidade neste gesto... Aqui a palavra de Deus é fecunda... Eu não sabia o que dizer ao coração diante do ridículo constrangimento que eu julgava ter passado. Houve um bom espaço de silêncio,... muito embora todo o ruído do Jeep...


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BRIGA DE FACÃO Jandir

Campo Novo, Fontoura Xavier. Sábado de sol primaveril. Festa do padroeiro. A bodega do Portela, em frente à igrejinha regurgitava de valentes que, já antes da missa, sedavam a garganta e esquentavam os ânimos com uma “purinha” que vinha da costa do Taquari. Maneco e Chico, cada um numa ponta do balcão, facão de três listras dependurado na cintura, trocavam olhares de ódio. Prometeram-se “desgalhar-se” a facão. Mas, em respeito, seria depois da missa. E em frente à Igreja. A turma do “deixa disso”, “que é isso”, “na festa do padroeiro?”, “vocês não têm vergonha?” parecia ineficaz frente à determinação dos dois. A ofensa? Qualquer ofensa... Desta vez parece que um chamou o outro de ladrão... O outro, embora o fosse, não poderia ser chamado assim na frente dos outros. Atrás do salãozinho da comunidade a fumaça indicava que o churrasco estaria em andamento. Três grupos de mocinhas próximas à escada da escola gesticulavam e gargalhavam em suas saias rodadas de chita colorida. Duas senhoras, vestido e véu preto, saem contritas do cemitério, que fica atrás da Igreja, onde foram depositar uma flor para o irmão que morrera esfaqueado no mês anterior. Foi no baile do seu Joca. Dois mestiços malencarados ofenderam a moral das irmãs. Ele tomou a


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defesa. Valentemente. Morreu no meio do salão. “Que Deus o tenha... que Deus o tenha”... Um bando de sete ou oito meninos apostam tiros de bodoque numa caneca sobre um moirão do aramado. Dez horas. Frei Pascásio, capuchinho em sua batina marron, cinto de corda com seus nós e cabelo cortado em coroa, chegou em seu Jeep. Um rojão de três tiros anuncia o início da missa. Dois fabriqueiros1, mal deixam o frei apear e já vão contando a promessa de briga para depois da missa: – É preciso que o senhor faça uma boa “chamada” no sermão para evitar as mortes, diz Alfredo. – Onde estão os dois? Pergunta o sacerdote. – Estão entrando na Igreja. Esconderam os facões debaixo da escada. – Então, deixa o assunto comigo, concluiu o padre, como quem já estivesse acostumado ao tema. Inicia a missa. Mal cabem todos na capela. As crianças acotovelam-se atrás do altar. Frei Pascásio pede que todos tenham consideração com as pessoas mais velhas para deixar-lhes os assentos. A professora puxa os cantos que ensaiou na escola. Os cantos antigos todos acompanham. Os novos só ela e os alunos sabem. O padre com a autoridade e experiência que tem, impõe ordem só com o olhar e elogia a boa preparação da professora. Nem é preciso pedir para que as crianças façam silêncio. No ato penitencial o sacerdote enfatiza que cada qual se arrependa de seus pecados sem olhar o pecado dos outros: que Deus gosta de um coração arrependido e sincero. As leituras e o Evangelho versam sobre: “olhai os lírios do campo...os pássaros do céu” e como Deus cuida 1

Fabriqueiro é um membro da diretoria da capela, no direito canônico.


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deles, que devemos viver sempre ocupados mas jamais preocupados... Deus cuida de cada um de nós. Mas é preciso que nós façamos a nossa parte: cuidar, sem preguiça, dos filhos, dos animais, das plantações e da comunidade. Insiste que neste ano não irá visitar e abençoar as casas que não tiverem uma boa horta cultivada e uma latrina para evitar doenças. Como o frei comentava depois com Leonel: – É a escola do cotovelaço e da rédea curta. Se eu não faço assim eles não comem verduras e os filhos andam cheios de vermes. A maioria atende. Nenhuma referência ou recomendação para evitar brigas. Nem a danação do inferno, nem a exigência de nos amarmos uns aos outros... Nada. Antes do final da missa: os batizados. São dois. Um deles é o terceiro filho de Antônio. O outro é de Joaquina e André. – Uéh! Vocês já vem batizar um filho?, pergunta a André. Pelo que me recordo, vocês não casaram na última vez que eu estive aqui, há quatro meses e meio? Eu não sabia que aqui as crianças nascem tão ligeiro. Dizem que um filho demora nove meses pra nascer... O de vocês é de quatro meses e meio!? E com ar maroto: – A não ser que vocês não só contam os dias, somaram também as noites. Assim quatro meses e meio de dias, e quatro meses e meio de noites completam os nove meses. Eu ainda não tinha pensado nisso. Mas abraçou-os com carinho e recomendou que cuidassem bem do filho a quem Deus daria hoje a graça do batismo. Depois a liturgia retomou o seu curso... Nos olhos dos fabriqueiros e dos líderes da comunidade está estampada, em letras garrafais, a


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preocupação e quase uma acusação: “vai deixar por isso mesmo?” “E se eles se matarem?” O padre conduz a missa com calma até a conclusão e a bênção final: – Ide em paz e Deus vos acompanhe! Todos se apressam para sair da igreja. A ansiedade baila no calor do sol. Frei Pascásio deposita, rapidamente, os paramentos sobre o altar e vai abrindo caminho com os braços até a porta da capela. Os dois beligerantes já estavam de facão em punho no gramado limpo. Um tentando acertar o outro no tilintado faiscante do perigo. Três ou quatro investidas e quase que Chico acerta a cabeça de Maneco. E o padre grita do alto da escada: – Isto sim que é briga boa! Vamos ver quem acerta primeiro! Mas tem que ser talho fundo, senão não vale a pena! Agora é tua vez Maneco... Te defende Chico!... Todos estupefatos olhavam para o padre... E então, aconteceu o que ninguém sonhava... Maneco afastou-se. Chico ficou parado. Ambos olharam para o padre e gaguejaram: – Obrigado padre, pela lição! Facão embainhado, cabisbaixos debandaram. A vergonha no coração. Na cancha de bochas, depois do churrasco, bailava no ar a pergunta: “brigar”?!


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SILÊNCIO DA CHÁCARA Jandir

Bem no alto da coxilha, na varanda escoltada pelas árvores que se fecham em proteção, árvores nativas, - pois aí nasceram elas, suas mães, suas avós-, plantei-me em meio aos verdes de todos os tons, para ouvir o clamor do Silêncio. Como ruge o silêncio aquietado no coração da noite! Esperou. Escutou. E agora, na brisa fresca, na explosão do amanhecer orquestrado por nhambus, jacus, sabiás, bentevis, cotovias... o silêncio que se fez manhã, coroou o açude de vermelho, e o açude, com olhos de sangue, avidamente engole o azul todo do céu com suas nuvens brancas que passeiam, num passeio infinito. As rãs saltam caçando os últimos insetos que a noite deixou. As árvores, por gentileza, educação ou pura generosidade, se afastam, deixando frestas para que meus olhos sôfregos passem e pastem sinais de presença de meu bem-querer. No lombo do horizonte, em seu cavalo sombra ele vem chegando, vestido rodado, com um balaio de sonhos que eu nunca sonhei. E eu grito: meu bem, não chegues tão perto que eu não possa te ver. Pois é preciso um bocado de espaço para ver teu rosto, teus lábios, teus olhos que se incendeiam esparramando rubor pelas faces, com medo de que o mistério do amor se desfaça e se perca num gesto brusco, inadvertido, banal.


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Tudo tão perto, tão íntimo, abismalmente perto, que me escapa no horizonte que o açude acaba de engolir.


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PADRE FOSCALLO Jandir

Padre Foscallo era brabo. As crianças tinham medo. Os velhos reconhecimento. Os jovens respeito. As velhas desculpavam suas ranzinzisses mas se queixavam das impaciências do padre chamando-as de “gnoranti”. Ele era um baluarte moral para aqueles filhos de imigrantes italianos, nem tão hábeis como seus pais, mas trabalhadores honestos que labutavam não apenas de sol a sol, mas desde a madrugada até a noite feita. Eram toscos, rudes, alguns quase broncos, pouca escola e fortes em seus músculos, em seu sexo, em suas determinações. Padre Foscallo mantinha-lhes as rédeas curtas: missa aos domingos ou, pelo menos, o terço na capela, confissão e comunhão pelo menos uma vez por ano por ocasião da Páscoa, batismo, crisma, casamento ainda virgens. Adultério? Nem falar, embora ele sempre soubesse de alguma escapadela dos malandros mais jovens. Divórcio? Separação? Nunca. O “até que a morte vos separe” era para valer. Que a mulher servisse ao marido em seus desejos e direitos para manter a unidade. No segredo da confissão ele insistia na paciência, na calma, na oração e no segurar os ímpetos, as raivas, os ódios e na colaboração com os mais pobres, os doentes, as viúvas e na participação das atividades da capela. De quatro em quatro anos ele promovia missões, com veementes pregadores de fora, para sacudir e manter viva a fé daquele seu rebanho.


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A guerra contra as blasfêmias era permanente, assim como o incentivo às vocações sacerdotais e religiosas: – A maior honra para uma família (sempre numerosa) é ter um filho padre, uma filha que dedique sua vida a Deus e à caridade, dizia sempre que pudesse. Os meninos olhavam para aquele padre alto, de batina preta, que chegava em seu cavalo zaino, alto, os arreios, estribos, rédeas, badana, pelegos sempre bem limpos, a capa de chuva impermeável enrolada e presa atrás do lombilho. Ele vinha como quem tinha poder, autoridade. Sua palavra era a verdade. Todos respeitavam: o prefeito, o delegado, o juiz, as lideranças. Quando ele instigava a ser padre, bem que a tentação fazia cócegas na alma da gurizada. Mas era preciso ter licença, permissão dos pais que sempre necessitavam de braços para a roça. E depois..., depois, na conversa dos quase-adolescentes sempre surgia a questão: mas padre não pode casar... dizem que são castrados! Mas isto só pode ser calúnia de comunista sem religião. E eles viam a festa, a glória quando uma freira ou um seminarista voltava vestido de padre para visitar a família. Quando algum menino resolvia buscava a via de ascensão social representada pelo sacerdócio, seu nome era anunciado no sermão da missa das dez de domingo. O ego do guri e de seus pais crescia palmos. Como se ele já fosse meio-padre. Já na escala da hierarquia eclesiástica a quem Deus dera todo o poder no céu e na terra. Padre Foscallo era frugal e simples, como convém à autoridade religiosa. Não se hospedava em casa de colonos. Seu cavalo sempre o deixaria na casa canônica. Nas festas de igreja sempre tomava um bom copo de vinho, incentivava a cantoria, os corais e os grupos de música instrumental. A orquestra da matriz de Encantado, fez-se famosa. Foscallo sempre à frente.


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Empreendedor, construía capelas, reformava a matriz com o auxílio da habilidade daqueles imigrantes italianos. Conciliador acima de qualquer pretexto, impunha-se como mediador das grandes rixas e negócios, na proteção de seus imigrantes italianos ante a ganância, a prepotência dos políticos e banqueiros. Todos se aconselhavam com ele. Casar ou não casar com aquele par?, Quantos filhos? Sair da roça? Migrar para o norte do Estado ou para o Paraná? E diante da doença, da vida e da morte? Ele a todos atendia, era uma segurança. Segurança que todos sabiam estava ancorada em Deus. E ele sabia fazer-se representante de Deus naquela terra. A confissão das crianças ele as ouvia atrás do altar. De um lado vinham as meninas. Do outro os meninos. Cada qual com mais medo das repreensões, dos puxões de orelha e dos xingamentos em voz alta. Toda a capela ouvia o que ele dizia a cada criança penitente e assustada. À confissão de um menino: – Matei cinco passarinhos e judiei do gato que sempre derruba o leite na cozinha Ele bradava: – Mas tu não sabe que isto não é pecado? Quem é que te ensinou estas besteiras? Gnorante...dum gnorante. Vai, vai rezar dez Ave-Maria e vai brincar... Mas se algum dissesse que desobedeceu aos pais ou respondeu à professora: – O quê? Tu não obedece a teus pais? Tu não respeita a professora? Isto Deus não quer. Te arrepende e reza dois terços inteiros de penitência. E que seja a última vez! Na semana seguinte, para os mesmos desobedientes repetia o mesmo sermão, enquanto insistia que as meninas fossem dóceis e escutassem muito suas mães.


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Noite de Natal, duas horas antes da missa do galo, sentado atrás do altar ele ouvia em confissão homens e rapazes. – Só os pecados mais grossos: roubar, infidelidade no matrimônio, blasfemar, masturbação, atos sexuais com animais, as brigas, as raivas demasiadas, calúnias. Resumido, para que todos possam se confessar antes da missa. Um jovem adolescente, alma inocente, contou que, entre muitos devaneios e sem saber como dizer falou que sonhara coisas “sujas” com a Virgem Maria... – E quando tu acordou? – Quando eu acordei tava todo lambuzado... – Disgrazziato de um demônio, tu não podia sonhar com qualquer outra menina da tua idade? Pede perdão à Nossa Senhora e te esforça por trabalhar mais e sonhar menos.


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A EUROPA DE LEONEL Jandir

Sete de julho, 2001. “Finalmente voaremos para a Europa”, pensa Leonel tentando segurar a alma de tanta ansiedade. Desde que o bisavós Francesco e Domênica vieram imigrantes em 1875 nenhum filho ou neto voltou. Sequer a passeio. Agora ele, bisneto, com quatro filhos uma nora e um genro viajarão. Jandir organizou as coisas: passaporte,visto e que sei lá... Cada um juntou os trocos que tinha para comprar o “pacote”. É caro. Mas é a viagem dos sonhos. Levarão camisetas com o brasão da família Zanotelli. E pouca roupa. Lá faz calor neste mês. É o quarto encontro internacional da família. Três no Brasil. Este será lá. Na raiz. O livro da árvore genealógica servirá de guia. E como é bom saber-se vinculado a raízes longínquas. Pequenino, ouvira tantas histórias do avô Narciso: sobre as dificuldades enfrentadas nos Alpes com suas neves, a pouca alimentação conquistada na pequeníssima gleba de terra da família (menos de dois hectares para doze bocas), os irmãos dele que morreram da pelagra. E ele então descrevia a pele que se rachava e partia, a anemia profunda, e, por fim a morte por qualquer gripe. Tinham pouca resistência, se dizia. A saudade do pai e dos irmãos mais velhos que migravam para o vale do Pó ou para a França do Napoleão tão odiado, à procura de trabalho para compor a mísera receita da casa. Narciso contava que ele viera com o pai Francesco e a mãe. Ele era o último dos seis irmãos. Cinco morreram


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antes da viagem. E para cúmulo da aflição dos pais ele, Narciso, já tinha 17 anos, na iminência de ser convocado para o exército sempre em guerra pelo Império AustroHúngaro. Dos vizinhos que foram, ninguém voltara vivo para a sua família. Resolveram apressar-se para inscrever-se a emigrar para a América, e especificamente para o Brasil. A passagem era de graça. Terras abundantes e quase dadas. E o clima, diziam, era semelhante ao de Trento. Leonel ouvia atento, curioso, apreensivo as histórias do avô. De como partiram de trem, até a França, e depois de navio desde o porto de Arbol (referia-se ao porto de Havre) até o Brasil. Paulo, tio de Narciso, também veio na mesma ocasião com toda a família. Mas veio com outro navio. Quando chegaram no Rio de Janeiro as autoridades brasileiras não deixaram os navios encostarem no Porto. “Tinha uma febre que matava”. (Depois Leonel soube que era a febre amarela e que dizimava o Rio de Janeiro naquela época). Mandaram que um navio fosse para o norte e o outro para o sul do Brasil, muito embora os protestos de todos pois o destino de todos era o mesmo: o Rio Grande do Sul. Assim, Francesco e Narciso nunca mais souberam notícias de Paulo e sua família. Pensavam que tivessem morrido. Pena, pensava Leonel, que meu avô não pode saber, nem meu pai soube que a família de Paulo cresceu e prosperou no Espírito Santo. Só agora Jandir descobriu as mais de duzentas famílias originadas de Paulo e localizadas em Santa Tereza, Colatina, Vitória e muitas outras localidades. Leonel não conseguia esquecer a festa do reencontro que os parentes fizeram em Vila Velha. Ele quase não conseguia falar de tanta emoção. Depois, escondia a quase-lágrima com um chiste espirituoso do dialeto trentino


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ou contava uma piada, que sempre as tinha prontas para qualquer situação. Lembrava de Ana, a esposa já falecida e que certamente vibraria com a viagem também. Isto Leonel lembrava olhando da janela do avião as paisagens tão variadas do litoral gaúcho e catarinense. São Paulo a Lisboa, nove horas de vôo sobre a imensidão do mar. Leonel continuava a lembrar do avô e suas memórias: – Foram mais de trinta dias de navio e enjôos. O pai Francesco cada vez mais fraco. Faleceu em seguida à chegada a Garibaldi. Um ano depois, casou com sua Tereza que conhecera na viagem. E tiveram 14 filhos. João, teu pai, foi o último. As lembranças do avô se intensificavam à medida que a Europa se aproximava conforme a indicação da flecha na telinha marcando a posição do avião. Depois de mais de oitenta anos, ainda permaneciam em seus olhos a imagem do avô Narciso, narrando satisfeito a carta que enviara aos parentes que ficaram na Itália e não quiseram migrar: – Aqui há fartura. Cada um de nós tem mais de vinte vezes o tamanho da terra que tínhamos aí. Os rios tem muito peixe. Os matos muita caça. A terra nem precisa de adubo. Neste ano, brincando brincando, colhemos mais de duzentos sacos de milho, feijão, afora batatas, mandioca, cana de açúcar e frutos em abundância. Hoje carneamos duas novilhas e doze porcos para fazer salames, toucinhos, “orçacóis”, torresmos etc. etc. É a segunda matança deste ano – escrevia para provocar os parentes que, em Cembra, faziam uma grande festa quando conseguiam um “maiale” para as festas do Natal guardando-o em salames para todo o ano. – As cabeças, as patas e as entranhas são dadas aos bugres que passam por aqui... Lisboa.


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– Pai, estamos na Europa. Ela começa por aqui. Estamos em Portugal. E ele, admirado: – Pensei que fosse a África. Quanto negro! – Estão embarcando para Angola, Moçambique... se lembra que Portugal, que colonizou o Brasil, era dona de quase metade da África, observa Jandir. – É, eu só tive dois anos de escola, mas me lembro da história dos escravos, dizia Leonel para pedir mais dados de história... Malas no hotel e a guia, uma bela portuguesa de olhos grandes, leva-nos a conhecer Lisboa e seus encantos. – Esta é a torre de Belém, dizia, frases prontas e decoradas. Este é o monumento aos navegadores que descobriram o Brasil e o mundo para Portugal. Naquela época Portugal era pequeno. – É verdade que só tinha um milhão e duzentos mil habitantes? Pergunta Basílio. – Era. – População menor que a de Porto Alegre!!! – E como conseguiram conquistar o mundo inteiro? insiste Leonel. A pergunta bailou como surpresa na cabeça de todos. Jandir também não quis responder. A história seria muito longa. – Esta é a praça do Porto reconstruída por Pombal depois do terremoto arrazador de 1755. – Aquele mesmo Pombal que expulsou os jesuítas do Brasil, acrescentou Ruth que caminhava lenta mas firme depois dez dias de uma cirurgia de pulmão. Os jesuítas tinham construído as reduções e missões no Rio Grande do Sul, na Argentina e Paraguai, tentando para eles uma pátria soberana de igualdade e fraternidade. Uma das primeiras tentativas socialistas do mundo. Sepé


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Tiarajú lutou por ela contra Portugal e Espanha. Foram massacrados, lembravam depois no hotel. Leonel comparava, meditava, cismava diante da grandiosidade dos palácios como o mosteiro dos Jerônimos cuja beleza maior para ele, era a coleção de carruagens imperiais, parecidas com as carroças coloniais das quais ele também entendia um bocado. Queria saber como freavam, a leveza das rodas, o molejamento, o avanço técnico de uma para outra... O significado da arquitetura gótica das colunas e vitrais, dos capitéis, das pinturas e afrescos pouco enterneciam sua alma de quase nonagenário curtido pelas agruras do trabalho na terra e da exploração de seus frutos, sabendo que o essencial está na justiça, no amor e na verdade que acontece cara-a-cara com pessoas concretas. De Lisboa para Madri. O centro, o Legislativo, o Correio, uma escapada até Toledo com seu alcácer, sua catedral, sua arquitetura. Leonel armazenava aquela inundação de informações e surpresas na prateleira histórica de sua vida de colono, perguntando sempre: “de onde tiravam tanto dinheiro para tudo isso”. Do fundo da surpresa crescia intrigante a indignação: do trabalho dos escravos? Da exploração dos índios? Das colônias? Com que direito? Sua alma se aquietava quando percorriam o norte da Espanha o noroeste de França com a beleza inútil do castelo de Chambord, os campos cultivados, palmo a palmo, o sistema de irrigação... O deslumbramento de Paris, com sua torre de Eifel, o passeio de barco pelo Sena, o dourado da praça da Concórdia, lugar de tantas execuções por guilhotina ou enforcamento, o museu do Louvre onde eles juntaram a produção artística de tantos povos saqueados, parecia não


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lhe interessar tanto. O mais intrigante para ele, foi o palácio de Versalhes. – Setecentos quartos? – E o maior número de hóspedes nunca ultrapassou cento e cinqüenta, acrescentou a guia. – Mas então para quê tanto quarto? – Para mostrar a riqueza e o poder dos reis alfinetou Jandir. – E com que dinheiro? – Ora, com o dinheiro do povo. Afinal para que serve o trabalho, a produção, e os impostos? Disse Ruth. – Pergunte à guia, quantos banheiros tinha este palácio?, sussurrou Jandir ao ouvido de Leonel – A guia ouviu e respondeu incontinenti: – Nenhum. As necessidades se faziam atrás das cortinas e/ou em penicos... Um mal-estar higiênico começou a tomar conta da imaginação e do estômago de todos... Uma chuvinha fina e fria começou a cair. Os jardins e os parques foram visitados de carruagem,... com suas histórias e episódios... Diante do monumento de Luiz XIV a cavalo, no centro da praça, Leonel não se conteve: – Então, este era o rei que mandou fazer este palácio? Mas é nanico! E tem botas de salto alto! Será que era para mostrar que era grande? Será que todo baixinho tem medo que os outros o vejam como ele é? – Basílio arrematou: e olha o cabelo dele alevantado para parecer maior. E era tão orgulhoso e vaidoso que dizia “a lei sou eu, o Estado sou eu”. Gino completou a análise: – Baita macho! E a guia ironizou:


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– Eles não costumavam tomar banho. Para que os piolhos não mordessem a cabeça, ele colocava uma salsicha no meio dos cabelos, sob a peruca. – Esta imponência é bonita, findou Leonel, mas não vale a pena. Não vale uma amizade. Parece que tudo é falso. Um disfarce para esconder alguma coisa que não sei o que é. Na verdade, ele apreendia a alma do projeto europeu de civilização, da contradição e da simulação. E buscava verdade, sinceridade, raízes reais. No dia seguinte, o vôo para Milão. – Bem, finalmente um lugar onde poderemos falar e entender, suspirou Leonel, pensando que soubesse falar italiano quando na verdade falava o dialeto trentino. – Aqui teremos certamente notícias do Brasil, que não tivemos nem em Portugal, nem na Espanha, nem na França, sublinhou Basílio que queria saber o resultado do jogo do seu Grêmio. Comprara jornais e revistas em toda parte, e nem uma notícia do Brasil. Pensava que em Milão da “Inter” e lugar de tantos jogadores brasileiros poderia saber do futebol do Brasil, assim como os noticiários de lá relatam minuciosamente os resultados do futebol italiano, português, espanhol etc.. Mas nada. Bem que Jandir o havia prevenido de que para a Europa o Brasil não existe. – Lá não se fala sobre o Brasil. Basílio não queria acreditar que o descaso fosse tanto. Diante da ruína do palácio dos Sforza, um pequeno descuido e lá se foram os duzentos dólares que Leonel colocara no bolso traseiro da calça. – Não é possível! - disse decepcionado e frustrado, tentando encontrar em outros bolsos o dinheiro que lhe faltara –. Aqui também roubam?


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Todos tentaram minimizar o incidente pedindo que cuidasse melhor de seu dinheiro. Que só guardasse os trocados no bolso e o resto ficasse no cinto interno, por debaixo da camisa. – Depois dizem que os brasileiros são ladrões, – falou alto Gino perto do guia, um jovem romano que dirigia nossa excursão pela Itália - , para que ficasse bem claro. O italiano que se falava nas ruas, muito embora não fosse o dialeto trentino, dava aos ouvidos de Leonel um tom de proximidade, um tom de quase familiaridade, de quase achar-se em casa. De vez em quando arriscava uma frase ao guia e ficava feliz por perceber que ele o entendia. A van deixou o vale do Pó depois de visitar rapidamente Bréscia e Verona para subir a Trento e Cembra onde haveria a festa da família Zanotelli. O coração batia cada vez mais forte enquanto os olhos quase parados de Leonel bebiam todas as paisagens, todas as cores, recortadas no contraforte azulado e branco dos Alpes. Quando uma placa sinalizou “Cembra”, Jandir pediu que a van estacionasse diante do cemitério. – Desçam um pouco. Observem os túmulos, as fotografias, as inscrições. Em silêncio, todos percorriam as fileiras de sepulturas, quase atônitos de encontrar não só os nomes, mas fotografias que pareciam de pessoas desde muito tempo conhecidas e reconhecidas. Efetivamente ali estava a raiz da família que emigrou para o Brasil. – Aqui viveram nossos antepassados?!, sussurrou Leonel. A recepção, a hospitalidade de Giorgio, Túlio, Maria, Antônio que Leonel já conhecia dos encontros do Brasil fizeram duas lágrimas fugirem de seus olhos. Ele quase não falava. Ria e chorava sem saber porquê.


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À noite, depois da janta alegre no alto da montanha à beira de um lindo lago, depois de deliciosos goles do vinho Turgau produzido pelos Zanotelli, depois de um infindar de abraçar-se, tocar-se, olhar-se à procura da mais íntima identificação, cada um foi hospedado numa família. O sono de Leonel estava inquieto, à espera do dia seguinte. De manhã, a surpresa geral. Haveria missa na igreja San Rocco onde foram batizados os bisavós, tataravôs e seus pais e seus avós... Partiriam todos em procissão da frente da vinícola de Túlio e irmãos. Nove e trinta. Todos reunidos. A banda de Cembra regida por Sergio Zanotelli pronta para o desfile. Só falta um. Falta Leonel. Onde estará ele? Pousou em casa de Maria, mas não aparece. Não seria bom chamá-lo? Vai atrasar toda a cerimônia... E eis que, então, surge Leonel, rigorosamente pilchado à gauchesca: bota de cano longo, bombacha pregueada de gaitinha, guaiaca larga, lenço vermelho maragato ao pescoço balançando sobre a camisa com os emblemas da família Zanotelli. Foi um alvoroço geral. – Mas que roupa é essa?, perguntava Antônio, o mais velho do grupo. – É a vestimenta oficial do Rio Grande do Sul, adiantou Jandir. – Que lindo, “Che bello”, mas porque vocês não vieram vestidos assim? Perguntava Alice. De nada adiantou querer acelerar o passo para recuperar o atraso. Todos queriam ver Leonel que, com oitenta e oito anos, anunciava aos parentes, no lugar dos antepassados, o orgulho de ser brasileiro, de ser gaúcho de ter identidade até na medula dos ossos.


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A missa solene, com incenso, coroinhas de sobrepeliz e coral, com a presença de deputados, prefeitos e toda a cidade, lembrava a migração em busca de uma esperança que se enraizava na família, na honestidade, na solidariedade, no trabalho e na fé. Padre Alex Zanotelli que dedica a vida aos miseráveis africanos de Korogocho, alertava a todos que, na opulência haviam perdido a “tramontana” (o horizonte da esperança). Leonel pensava fundo na história dos emigrantes que eram seus avós e bisavós e nos valores pelos quais tanto lutaram. Depois , a festa. Um dia inteiro de canções para saber se todos ainda as recordavam. E Leonel orgulhoso acrescentava uma estrofe mais, que os parentes italianos já não lembravam. E ria de si e de sua façanha. Era, ao mesmo tempo, criança, menino, jovem, italiano, brasileiro. Estava em casa. O grupo dos mais velhos, todos com mais de oitenta, cercou Leonel e perguntava e comparava e lembrava.... Ele não sabia se ria ou se chorava no dialeto que eles se admiravam tanto que Leonel guardasse tão bem. Água na boca, na alma e nos olhos, Leonel saboreava o sabor suculento das raízes familiares. Ah! Se Ana tivesse podido estar também! Lá do céu certamente ela se alegra, pensava. Ah! As histórias do avô Narciso! Cada qual trazia o vinho de sua casa e convidava insistentemente para que ele conhecesse sua “cantina”. Naquela noite Leonel sonhou que havia morrido. Que estava no paraíso. E que ele fazia amor com o maior vigor da juventude com sua Ana, dialetando o trentino. Acordou com o ruído de tratores e caminhões daqueles colonos parentes que já iam para a lavoura. Passavam antes em casa de Maria para despedir-se daquele “nono” tão parecido e tão parente de cada um. Encheram os braços de Leonel com garrafas e mais garrafas de vinho,


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com salames especiais, com “orçacóis” do tempo antigo, com abraços afetuosos respingados de lágrimas. Leonel não sabia o que fazer com tantos presentes. O grupo resolveu ajudá-lo a levar para o Brasil, um pouco em cada mala, por causa da alfândega. Seguiram viagem em direção a Veneza. Leonel já podia deixar-se deslumbrar com as coisas belas, com as gôndolas e canais, com as histórias como se delas ele fizesse parte. Depois, umas horas em Vicenza o lugar de origem dos Dalla Vecchia, dos quais descendia Ana. E foram a Padova. Leonel chorou, comovido, gaguejante ao chegar tão perto das relíquias de seu amigo, de seu santo padroeiro e protetor Santo Antônio. O coração parecia incapaz de conter tanta emoção. Por isso nem conseguiu apreciar com a devida surpresa a arte e a beleza de Florença. Em Assis suas pernas já estavam cansadas para subir a pé tantos degraus da basílica. Sentou-se à sombra do templo do Chiquinho de Assis em companhia de Ruth. Tomavam uma água mineral. A cabeça de Leonel se perdia a meditar na dignidade e na grandeza da simplicidade e da serenidade da igrejinha da Porciúncula, aquela igrejinha tão simples e pequena construída por Francisco e seus confrades e onde se podia apalpar a presença da graça. Em Roma Leonel parecia descansado e jovem para ver tudo. O Vaticano, as ruínas, as catacumbas, as colinas especialmente onde está sepultada Anita Garibaldi, a grande heroína, mais venerada pelos italianos que por nós brasileiros. Agora, quando o avião voa interminavelmente sobre os mares, de retorno, Leonel pensa em como reunir irmãos, filhos, netos para contar as maravilhas que viu: a tecnologia de estradas perfeitas, de irrigação computadorizada das macieiras com água das neves dos Alpes, da felicidade do


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encontro da família... Meu coração é realmente forte, pensava, enquanto bendizia a Deus numa oração silenciosa e grata.


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A ENCRUZILHADA Jandir

Bagé. Chuva de outubro. Há três dias não pára de chover. Padre João está mal: morre e não morre na Santa Casa. Finalmente o desfecho. Quatro horas da tarde. O trem para Cacequi passa às cinco. Padre João pediu para ser enterrado em sua paróquia. Era preciso embarcá-lo neste trem, do contrário só no dia seguinte. Impraticável. O trem era o único meio de transporte terrestre para Cacequi. As rodovias? As pontes caíram e o lodaçal tornou impossível trafegar. Era preciso liberar o corpo imediatamente. O IML demorava e demorava. “Parecem tardar de propósito”. O bispo D. José resolveu intervir. Tudo foi acelerado. Atestado de óbito, caixão, licença para transportar a Cacequi. Tudo pronto. São cinco e vinte. “Pode ser que o trem atrase como de costume”... Mas neste dia o trem saiu às cinco em ponto. E agora? D. José olhou para mim, chamou o Padre Firmino e nos pediu em voz baixa. Vocês não querem tentar alcançar o trem em Lavras? A estrada até Lavras ainda está transitável. Se vocês se apressarem pode ser que cheguem a tempo. Não parava de chover. Já estava escurecendo.


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Camioneta Rural Willys, tração nas quatro, o caixão na carroceria coberta de lona, e lá fomos nós. – Vamos tentar com tração simples, comentei. Anda mais. – Mas cuidado com o barro para não morrermos juntos, acrescentou Firmino. – Sei como se conduz no barro. Acostumei-me na lama vermelha de Soledade e Passo Fundo, gabei-me. Freio? Nem falar. É tudo no acelerador e no braço. Nem conseguimos rezar um pouco. O problema era chegar a tempo na estação perto de Lavras. – Que Deus nos proteja, disse o sacerdote agarrado no cano de apoiar as mãos no painel da Rural. – Amém, respondi eu, vencendo uma curva na alta velocidade de 60 quilômetros por hora e quase despencando na valeta. – Quem sabe você liga a tração nas quatro rodas, será mais seguro, disse Firmino. – Mais seguro, sim, mas perderemos o trem. – Então vai assim mesmo e seja o que Deus quiser. E assim deslizando de um lado a outro daquela estrada e acelerando para se manter na rota, chegamos à encruzilhada da Armada. Deixamos de lado o caminho da esquerda que leva a Dom Pedrito para ir diretos a Lavras. Cem metros depois, uma blitz de soldados do exército. Eram tempos de ditadura. Tempo de vigiar as fronteiras. Tempo de desconfiar de todos. Tempo em que a vida de cada um parecia ser uma concessão dos militares no poder. E Bagé era o lugar dos quartéis. Em meio à chuva, no centro da estrada um soldadinho, quase adolescente, empertigado na imponência de seu capacete de aço, de sua capa de chuva escondendo uma metralhadora, de braços abertos fazia sinal de parar. Paramos.


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– Os documentos! Disse com autoridade indiscutível... – Cá estão. Faça ligeiro que estamos com pressa, por favor. – Pressa? Por que? Estão fugindo de alguém? – Não é bem isso. É que devemos chegar em Lavras antes do trem. – O que levam aí? Dizia focando sua lanterna potente nos olhos da gente como para saber se falávamos a verdade. – É só conferir, repliquei. Quando ele abriu a sanefa trazeira e deparou com o caixão, veio pálido de lá e quase gaguejando perguntou: – É um defuuunto? – É um defunto, sim. Um defunto especial. É um padre. Devolveu-nos os documentos atabalhoadamente – Um paaadre? Perguntou espantado... Afastou-se dois passos, tropeçou e caiu sentado no barro...com sua metralhadora. O riso maroto de Padre Firmino e meu ficou contido no canto da boca... Saímos patinando e levantado lama. Comentei com Firmino os motivos do susto que ele estava levando: no meio da noite, noite chuvosa, de relâmpagos e trovões, numa encruzilhada que, por si só já é lugar do boitatá, do lobisomem, de almas penadas..., um defunto... um padre... e ele sozinho a inspecionar veículos em época de medo e de ditadura?! – Nem perguntou quem era o padre, acrescentou Firmino. Pôs seus documentos na carteira e alcançou-me os que ainda restavam sobre o assento para que eu os embolsasse.


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– Mas não são meus, respondi. Os meus já estão aqui e apontei para o bolso da camisa. – Ué! Mas meus também não são. Acendeu a lâmpada do teto e tentou ler... “Júlio...” Pelo espelho retrovisor avistei a uns 500 metros um carro que nos seguia fazendo sinal de luz e buzinando... apesar da pressa, resolvemos aguardá-lo. Era o pobre soldado acompanhando o motorista de outra camioneta que ele havia parado antes de nós e cujos documentos, pasmo, nos alcançou. – Me desculpem... me desculpem... mas acho que dei aos senhores os documentos errados. Devolvemos-lhe os papéis. – Deus te abençoe, meu filho, disse o Padre Firmino. Eu também sou padre. Não precisa ter medo de defunto. Os olhos tímidos, quase a chorar daquele soldadinho recruta, por trás de todo o aparato de autoridade, davam pena. – Será necessário tanto sofrimento para adquirir coragem?, disse Firmino. O sino da estação de Lavras já tocava a partida quando chegamos. Atravanquei a Rural na frente do trem, sob os protestos e os gritos do maquinista que chamava o policial. Quando souberam que era o caixão do vigário de Cacequi, os ânimos se encolheram e, em respeitoso silêncio embarcamos padre João para sua última morada. Padre Firmino, acompanhou-o. De retorno, sozinho, quase meia-noite, quis saber o nome daquele soldado..., de que cidade da Serra ele era. Deixei-lhe uma maçã para mastigar o medo.


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A ESTRELA DE PÁSCOA Jandir

A janela de nosso quarto, no sobrado simples e espaçoso de tijolo à vista, atira-se sobre o jardim cercado por palmeiras, pitangueiras, ipês amarelos, três-marias e rosas, e bougainvilles, pente de macaco, ameixas do Pará e flores...e flores. Cada flor, cada arbusto contém em sua alma o carinho, o afago, o suor da mão de fada de Ruth. Hoje, quando os pássaros explodiam em sua algazarra matinal, tão próximos, tão plúrimos em sua orquestra que pareciam entrar pela janela como apelo e saudação, Ruth me acordou com um carinho leve para me dizer: – As saracuras, os bentevis, os sabiás, os canarinhos e os João de Barro são pra ti! Os outros são pra nós... escuta! Acordei grato à existência que me deu esta companheira e, em silêncio, murmurei uma oração: “Na serenidade deste dia que amanhece, Senhor, venho pedir-te a paz, a sabedoria, a força, a alegria para ver, para ouvir, para cantar”... Olhei-a. Aqueles olhos vívidos de menina marota eram os mesmos da grama fresca ao luar em Santa Maria. ............................................................... Tínhamos terminado o encontro de jovens universitários. 1965. Os militares recém haviam tomado o poder. Medos, ameaças, fantasmas pairavam no ar, nas


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falas radiofônicas, nas ruas, nas secretarias das escolas e universidades... O Estado de Cristandade com suas monstruosas manifestações de Deus, Pátria, Família, tinha medo dos “comunistas” que ninguém sabia quem eram, o que pensavam, o que faziam, onde moravam. Todo estudante entusiasmado por ética, por igualdade social, por um mundo melhor, era suspeito de rebeldia, anarquismo, violência... Buscávamos, - cinqüenta rapazes e moças -, na beleza explosiva de urgências e esperanças, sinais no horizonte que permitissem vislumbrar uma aurora melhor, de um mundo efetivamente fraterno, justo, radicalmente solidário. Jovens cristãos. JUC. Um retiro de três dias. Preparação para a Páscoa. No último dia, depois da janta, brincávamos de interpretar traços psicológicos na caligrafia de cada um. Um inocente charlatanismo cigano misturado com o desejo de pegar na mão da menina, dizer-lhe ilusões sentimentais, para um achego mais quente, com vontade louca e inconfessável de um beijo. O gramado bem aparado e exuberantemente verde daquele fim de verão, num aclive suave entre o portão de entrada e a casa de retiros, convidava a sentar, a estar por estar e liberar a imaginação. A lua crescente extravasando a ramagem e escondendo na sombra copada das árvores os fantasmas da noite de nossa infância, esbaldava-se em luminosidades de prata como a desvendar discretamente os olhares e acenos amorosos que rapazes e moças se faziam como o permitido e abençoado, porque vivido às claras no meio da noite. Afinal, o Padre Firmino estava ali para garantir os limites de nossa moral e de nossos impulsos e especialmente para generosamente nos perdoar dos pecados de pensamentos, palavras e ações.


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Deitada na grama, braços abertos, com a saia rosa levemente puxada para cima para deixar entrever as pernas bem feitas e insinuações acima do joelho, a blusa de banlon com o decote um pouco mais aberto, Ruth deixava seu olhar perder-se na imensidão das estrelas que nesta noite tinham brilho especial. Ao lado dela, a uma distância que a discrição exigia e para não levantar suspeitas de minha atração por ela, muito embora queimasse o coração de vontade de encostarme nela, beijá-la, acariciar-lhe os seios e perder-me no desvario da paixão, disfarcei e provoquei: – Eu sei para qual estrela estás olhando! – Duvido, tu não és bruxo nem nada! Respondeu. – É para a estrela maior das Três Marias, exatamente em cima de nós. Ela me olhou. Eu senti naquele olhar a afeição mais profunda que minha alma. Amei-a naquela inspiração. Havia acertado em cheio. – Como é que tu sabes estas coisas? Seminarista tem curso de adivinho? – Quando a gente está ligado a alguém sempre se sabe onde está o coração da pessoa amada. Ela enrubesceu e nem a lua conseguiu esconder seu sobressalto. Fingiu que estávamos brincando de adivinhar e instigou em voz alta para que todos ouvissem, especialmente Lígia: – Então, descobre agora, para que estrela estou olhando. – É para a que fica no pé do Cruzeiro do Sul, disse lhe com segurança. – Acertou. Mas como é possível? – É pura sugestão. Tu és quem me sugere o que estás vendo e pensando.


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Lígia não se conteve: – E qual é a minha estrela? João Pedro interrompeu: – São todas as estrelas do céu! Desapontada porque eu não havia respondido, Lígia fechou-se em copas. Nada mais falei. Bastava-me ficar próximo de Ruth, sentir seu cheiro e não espantar a possibilidade futura. ................................................................. Por sorte, surpresa ou bênção casamos. Nossos filhos riem quando nos apanham divagando sobre uma estrela à qual nós atrelamos o arado de nossos sonhos.


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A VACA DE SANTO ANTONIO Jandir

Domingo à tardinha. Depois do terço na capela, dos jogos de futebol no páteo da escola, dos mergulhos incontáveis no poço do lajeado do arroio Esperança, as sombras descem do morro, alcançam o vale e, rápidas, engolem o cerro à frente para dentro do ventre da noite. É preciso correr para casa, para as tarefas do antes do escurecer. Vacas, do potreiro para a estrebaria. A ordenha. Milho, mandioca e lavagem aos porcos. Duas ou três braçadas grandes de pasto para os cavalos e bois no potreiro debaixo da estrada. As meninas cuidam das galinhas, pintinhos, ovos e da janta. Gino abre a cancela e controla a saída das vacas impedindo que os outros animais passem. As vacas passam mansas. Já sabem a direção. Mas dois terneiros grandotes inventam de querer passar também. Escaramuçam. Arremetem. Gino, com seus sete anos, tem medo. Recua. Eles fogem. – Irma, ataca...ataca os boizinhos por trás da casa! – Onde? Como? Atrapalha-se com as mãos, as pernas de seus seis aninhos e os bezerros fogem em direção à roça de milho novo com dois palmos de crescido. Corremos. Cercamos. Gritamos. Os cachorros ajudaram. E os dois tiveram que, contra toda a sua ânsia, voltar ao potreiro de onde saíram. E as vacas? Eram três. Duas já estavam na estrebaria.


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– E a Boneca?, perguntei. Não está aí? Nem atrás do paiol? – Por aqui ela não está, respondeu Gino. – Só falta ela ter fugido para a roça!, observou Ana, da janela da cozinha. Enquanto eu ordenhava as duas vacas, Gino pôs-se a procurar por Boneca. Já estava escurecendo. Noite sem lua. Fresquinho de primavera. A escuridão trazia e aumentava nossos medos. “Por que será que a noite escura faz a imaginação produzir tantos fantasmas?” Terminei a ordenha. Gino voltou, olhos espavoridos: – Nem sinal. – Olhaste lá nos fundos da cancha de bochas? No gramado alto perto das palmeiras? O portão na estrada da roça estava fechado? – O portão está aberto, mas ela não pode ter andado tão depressa estrada acima! Respondeu Gino. – E agora? Vamos tratar os porcos e os cavalos e depois iremos juntos procurar esta fujona. Ana que tudo observava desde o fogão a lenha, preparando a saborosa sopa de feijão, insistiu: – Façam tudo depressa e procurem esta vaca para que não aconteça que invada a roça do vizinho. Seria uma desgraça. Numa hora ela come quase um hectare de milho. Saímos, andamos, escutamos em cada beco, em cada canto e, nada. Fomos até o início da roça de milho que, ao todo não tinha mais que cinco hectares. Escutamos, aguçamos o ouvido. Só o chiado das corujas... Voltamos desanimados. – O pai vai nos dar uma surra, Gino choramingou. Quando Ana nos viu chegar sem a Boneca ficou mais aflita que nós:


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– Vocês não a encontraram? Mas é preciso achá-la. E logo. Imaginaram a reação do pai? E o visinho que já não é muito manso? Foi então que Ana agarrou-se a seu último recurso: Santo Antônio. – Jandir pega a egüinha baia e traga ela até aqui. Fui. Voltei em um minuto. Egüinha em pelo. Só de buçal. – Desce aqui e reza comigo o “Si quaeris miracula...” de Santo Antônio. Ele sempre ajuda a encontrar as coisas perdidas, disse Ana com fé. E agora monta, deixa a égua ir para onde quiser. Não dirija. Só bata com os calcanhares para que ela ande. Ela vai te levar lá onde está a vaca. E a baia foi andando, direto pela estrada da roça. Não se desviou, nem parou. Bem no fundo da plantação do milho ficava o mato imenso, intenso, escuro, com suas árvores de 30 ou 40 metros de altura, refúgio de ouriços, bugios e corujas com seus cantares estranhos e ameaçadores no meio da noite escura. É verdade que minha egüinha baia era meu radar, meu baluarte, minha chance de fuga. Mas, medo é medo. E cismava: por que será que as corujas chiam tanto em direção a gente? O mato já estava perto. Era o fundo da roça. A baia parou. À sua frente um enorme tronco de grápia da roça nova que meu pai cortou para plantar o milho. Cutuquei a égua. Insisti. Puxei o cabresto. Ela armou o pulo e saltou. Quase caí. Depois ela se foi sempre em direção ao mato. Quanto mais próximo, mais meu sangue gelava. O frio parecia maior... E então, ela estacou. Deitada à minha frente estava Boneca.


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Suspirei. Toquei-a para casa. Matutava: Como é que mamãe sabia que eu encontraria a vaca? De onde lhe vinha tanta certeza e segurança? Santo Antônio lhe obedecia? Ou ela obedecia a Santo Antônio? Nem perguntei...


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O NINHO DO CAVALO Jandir

– Meu filho, pega o tordilho que está no potreiro! Depressa que eu preciso sair! Castilo, bodoque dependurado no pescoço como se fora um escapulário bento, buçal numa das mãos, uma espiga de milho na outra, saiu piquete afora, à procura do tordilho. A primavera espouca flores, pássaros, aragens. Convite total à distração. Pés descalços ainda se lavam com as últimas gotas do orvalho. Numa das moitas de guamirim cheiroso, um ninho com três sabiazinhos, ainda implumes, bico aberto esperando a minhoquinha que a mãe foi buscar. Logo abaixo um tico-tico ensaia o primeiro vôo e cai no chão. Castilo apressa-se em apanhá-lo. Mas ele escapa ao primeiro ramo baixinho, e dali para outro e mais outro. O menino, olhos encantados, deixa o passarinho em paz. – Tão pequeninho! Mais abaixo, perto da sanga, um tatu que vinha para a toca, foge rolando pelo barranco ao pressentir a presença do caçador. O piá, em seus onze anos, foi ao fundo do piquete, espiou por entre as moitas, assobiou, escutou, chamou e,... nada de cavalo, nem de qualquer outro animal. - Vai ver que fugiram por algum rombo do arame, pensou. Resolveu voltar.


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Sestroso, entre a previsão de uma surra ou uma repreensão: – Pai, fui até o fundo do piquete e não encontrei o cavalo... E ficou esperando a reação do pai. Se de cólera, ameaça ou de blasfêmia. Entre a impaciência, a raiva e a ironia o pai perguntou: – Até agora? Mas tu olhaste bem no alto do umbu, se o cavalo não estava no ninho? Enquadrando o corpo para perto da porta, pronto para disparar, numa chispa de olhar maroto o guri arriscou: – Olhei, só tinha três ovos. Pensei que fosse de passarinho. A gargalhada da mãe na cozinha, desarmou o pai e a fuga do menino.


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UM BARALHO PARA A CHUVA Jandir

– Você sabe onde fica o Campo Novo? Você não pode imaginar. É um distrito de um distrito de Soledade. Lá onde o rio Taquari recém inicia engulindo as águas do rio das Antas, do Guaporé, do Jacaré e começa a andar mais manso depois de Encantado, antes de chegar aos pés de Lajeado e Estrela absorve as águas do Forqueta, que por sua vez já bebeu as águas do Fão. E lá onde as águas barulhentas do Forqueta despenca dos morros e das matas, ali pertinho fica Campo Novo. Na beirinha do planalto central que vai na direção de Carazinho, Passo Fundo, Erechim e Vacaria. Uma vez, ao amanhecer do século XIX, as araucárias imponentes com seus pinhões e suas gralhas azuis tomavam conta de toda a paisagem. Os pinheiros caíram, o campo se fez trigal, depois pastagem com caponetes baixos nas sangas, salpicados de pequenos rebanhos de fazendas infindas. Os imigrantes italianos desceram de Caxias e Garibaldi e foram trepando pelas encostas íngremes de Anta Gorda, Encantado, Capitão, Arvorezinha, Pouso Novo, Burro Morto, Guamirim e, na ponta dos pés, pescoço espichado olhavam para Soledade e Passo Fundo. Na década de sessenta, ainda restavam manchas verde-escuras de pinheiros nas grotas mais profundas do Forqueta e do Fão. Serrarias antigas, serrarias novas, recolhiam os últimos troncos que já não eram tão grossos nem tão longos, nem tão retos como aqueles que,


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antigamente cresciam juntos, centenários e juntos buscavam a luz do sol lá no alto. – Que bom que vocês chegaram, gritava alto de alegria, a mãe Ana lá da porta da casa velha de madeira, quando seis de seus filhos retornavam do colégio para as férias. Os quatro menores ficavam em casa. Iam à escola, “brizoleta” desbotada cuja professora já não era tão competente nem tão bem remunerada como na época do renovador da educação do RS. Leonel derruba as últimas seis toras do caminhão, recomenda a Castilo que o encoste no telhado, está choviscando e quase escuro. Passa pelo tanque para onde escorre a água limpa e fresca da fonte, lava a cara, as mãos e sobe com um sorriso largo iluminando a fronte. É uma festa. E a mãe, infalivelmente comenta: – Eu sabia que vocês vinham hoje. Eu senti de manhã e disse pro Leonel. – Então aqui não se precisa de telefone, rádio ou correio... vocês adivinham tudo, que maravilha!, comenta Ruth que namora um filho e vem da fronteira, de Bagé. Leonel confirma: – Hoje de manhã, na hora do café, falamos em vocês. E o buliço de abraços, exclamações e até impropérios amorosos e jocosos marcam aquele começo de noite de meados de julho. Gino relata as aventuras para vencer os últimos sete quilômetros de barro, barrancos, e empurra... empurra o fusca branco que a Ruth comentava: – Nunca mais eu entro aqui em dia de chuva com esses seus filhos, Leonel! Mentiram que a estrada estava boa, que viríamos tranquilamente. Descemos dez vezes para empurrar. Olha o estado em que estamos... A certa altura tivemos que tirar os sapatos para não deitar no barro. Eu só


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vim porque me pegaram dormindo quando ingressaram no corredor que vem da faixa. – Mas agora está tudo bem, atalhou Ana. Um bom banho. Estou esquentando esta panela grande de água. Não temos luxo, mas o Castilo fez com a lata de vinte litros um bom chuveiro... O chuveiro e a latrina são na rua, mas funcionam... Depois, banho tomado, cada qual foi se acercando do fogão a lenha, enquanto duas filhas preparavam uma sopa de feijão para a janta, a outra ajudava a mãe a fritar em banha nova de porco uma bacia enorme de bolinhos de chuva e grostolis. Cada qual falava mais alto. Cada qual queria contar. Leonel e Ana escutavam embevecidos aquele tumulto festivo da chegada dos filhos. Depois da janta, ao redor da mesa grande, canções e canções polifônicas da tradição italiana, gauchesca e canções religiosas. Cada um procurando afinar sua voz na proximidade do ouvido do outro, afinal havia meses que não cantavam juntos. Tudo tão simples e tão profundo, regado a pés de moleque de açúcar mascavo e temperado com funcho e ervas cheirosas que a mãe preparou para esperar a todos. O sono da paz apenas marcado com o ronronar de múltiplos roncos, afundou-se nos acolchoados de penas, nos travesseiros macios ao som da chuva mansa de inverno no telhado de tabuinhas logo acima das cabeças dos que dormiam no sótão. A chuva fina trazida por nevoeiros entre as copas dos pinheiros mantinha todos recolhidos dentro de casa. – Vamos jogar cartas?, provocou Gino. – Que remédio?!, atacou Ite. – Quatrilho, quem sabe jogar quatrilho? – Mas quem não sabe aprende.


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E lá passavam as horas entretidos e gabando-se da boa jogada, ironizando as falhas dos outros... enquanto as filhas mais velhas bordavam panos para o enchoval. No terceiro dia a sorte não sorria para Gino. Uma, duas, três partidas e as cartas péssimas, como que escolhidas para lhe dar azar. De mão, nem conseguia chamar. E quando era chamado para parceiro, levava o outro também ao fracasso. – Impossível que este jogo não vire!, resmungava ele. Perder algumas partidas, tudo bem! Mas perder sempre! É intolerável. A impaciência dele crescia, crescia. A certa hora, ele anunciou uma decisão drástica: – Se não não vier carta boa para mim, rasgo este baralho. Os parceiros olharam-se incrédulos: – Ele está blefando. Só pode. – Não te preocupes que agora a sorte vai mudar. Gino recebeu suas dez cartas, olhou-as e, frente ao espanto boquiaberto de todos, rasgou uma por uma. – E agora? Que fazer sem pelo menos um baralho para distrair o tempo?


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AURÉLIA Jandir

Adolescente. Treze anos. Mulatíssima. Um metro e sessenta. Olhos grandes encolhidos pelo medo e pelo sofrimento da vida. Cabelos longos, lisos, abundantes. Vestidinho de chita sem anágua, sem sutiã – que não se usava – para recolher os peitinhos que empurravam, pontiagudos e irrequietos a vida para frente. Envergonhada, pé no chão, trazia como bagagem num saquinho branco de sal, alguns trapinhos e uma estatueta de Santo Antônio para proteção. Veio na garupa do tordilho de papai. Ele encostou o cavalo na escada de pedra para facilitar que descesse. Mamãe já a esperava, porta e braços abertos, lá no alto: – Vem querida, vem! Tu és a Aurélia? Conheci tu mãe Antônia e teu pai Bastião. Eram pessoas muito boas. Aurélia subiu, tímida, os doze degraus e atirou-se nos braços de Ana como num último refúgio. Chorava e soluçava. Ana procurava consolá-la: – Não precisa chorar. Aqui tu vais ter casa e família. Nós seremos os teus pais. Leonel fora até o Jacaré atendendo o chamado de um conhecido de pescaria, o Bastião. Morava à beira do rio Taquari. Um ranchinho de palha, sem mobília, uma corrente preta e mal feita presa a um caibro sustentava uma única panela de ferro redonda sobre o fogo de chão. Três cepos funcionavam como cadeiras.


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A um canto estendido sobre um xergão – como se fora colchão – com algumas palhas de milho, gemia aquele mulato que fora forte e agora, esquálido finava-se de pulmonia. Com a voz aos solavancos, entre uma tossida e uma cuspida, conseguiu dizer: – Meu amigo Leonel, tô morrendo. Só tenho esta filha que é meu tesouro e minha vida. A mãe dela já morreu faz cinco anos. Não tenho com quem deixar. Queria que tu cuidasse dela pra mim. Por nossa amizade e pelo amor de Deus! Sei que vocês precisam de alguém pra ajudar a cuidar das crianças. Ela é boa e pode ajudar. Leonel quis desconversar... dizer qualquer coisa... mas ele suspirou, fechou os olhos e morreu. Leonel olhou para a menina que nem conseguia chorar ou gritar tamanho era o pavor instalado em seus olhos, em seus lábios magros que tremiam, em seus braços que caíam, e foi firme: – Pedido de teu pai, não posso negar. Irás comigo. Procurou desajeitadamente abraçá-la, engoliu a saliva em seco e, disfarçando a lágrima e o nó que lhe apertava o estômago, programou: – Primeiro cuidaremos do enterro de teu pai. João e Mário nos ajudam, não é verdade? - Certo, certo, - disseram. Levaram o corpo enrolado no poncho velho do falecido até a capela, quinhentos metros ladeira acima. Veio o tabelião. Veio o padre. Enterraram o miserável logo após o meio dia. Leonel, para por ordem em seu constrangimento, explicou ao padre e aos visinhos: – Bastião me chamou para pedir que eu levasse a Aurélia pra minha casa. Ela vai comigo. E nós precisamos, mesmo, de alguém que nos ajude.


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Leonel perguntou à menina se queria levar alguma coisa. Ela, em voz baixa e quase ininteligível: – Não tenho nada, só uns trapinhos. Se o padrinho Mário quiser levar o que tem no rancho, pode levar. Na hora de sair, Leonel não sabia se deixava ela ir a cavalo e ele a pé, se ele a cavalo e ela a pé – o que seria desumano –, e resolveu, brincando, para esconder sua atrapalhação de imigrante italiano: – Vem, sobe, monta na garupa, assim chegaremos mais cedo. .......................................................................... Eu olhava para aquela nova irmã, seis anos mais do que eu, com um misto de simpatia, de compaixão e com vontade de abraçá-la. Dei-lhe a mão como via os adultos fazerem. Ela ofereceu a ponta dos dedos, mas foi o suficiente para acender nossa amizade, nossa aliança, nossa cumplicidade. Mamãe organizou as coisas: – Deixa tuas roupinhas ali naquele quarto e vem me ajudar a aprontar a sopa da janta. Eram cinco quartos no sobrado velho de madeira onde nasceram meu avô e seus 14 irmãos, meu pai e seus 11 irmãos, onde nascemos os quatro irmãos. Uma salacozinha grande com seu focolar (fogão de tijolos e chapa de ferro), com seu secier (pia feita de madeira) com um balde de água fresca para beber e uma concha de cobre dependurada só para isso. Pobre Aurélia! Dali por diante, já não era eu, o mais velho a ser responsabilizado por todas as tarefas incumpridas da casa: água, lenha, milho para as galinhas, cuidar dos menores e estar sempre pronto e lépido para tudo. Agora ela era a mais velha. E já era mocinha. Tinha


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mais força do que eu e, portanto, mais obrigações do que eu. E papai fazia questão de ser exigente com ela. Nada de carinho, afeto, paparicar. “A educação se faz com disciplina e trabalho”. E para cumprir o mandato que Bastião lhe dera exagerava em repreender por qualquer falha e mantê-la sempre trabalhando. – É para o bem dela, – dizia à mamãe quando esta criticava sua violência desnecessária. – Ela é apenas uma menina, desamparada, precisa de muito mais amor do que os outros, - insistia Ana que procurava alimentá-la com carinho e incentivo. Assim Aurélia crescia, espichava, com uma preguiça enorme a tomar conta de seu corpo, com vontade permanente de dormir e dizendo sempre que estava cansada. Eu gostava dela. Um gosto ambíguo de irmão, de amigo, de curioso quase apaixonado. Fazíamos as incumbências juntos e nela eu tinha segurança e proteção. Por isso, por mais que brigássemos, jamais eu a entregava à repreensão de meu pai. Ela acreditava em mim e eu nela. Aos poucos, porém, ela se fez maior. Já não queria brincar comigo. O coração dela começou a voar. Voava para além dos montes, à procura de uma imagem. À procura de um “boi barroso” que se perdera nos fundos da estância e que ninguém conseguia achar. Seus olhos fitavam o vazio, misteriosos, escondendo um segredo que era só dela. Uma noite dessas, o olhar de papai fisgava nela, que, de vela na mão ia para seu quarto, alguma coisa de diferente. Mamãe estendeu sobre ela um manto mais seguro: – Agora que você já é moça, toma muito cuidado porque os homens sempre andam à cata do que não devem. Quem tem que se cuidar somos nós, mulheres. Cuida teu


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coração pra entregar ao homem de tua vida só depois do juramento no altar. Aurélia olhava Ana sem entender. Tinha vergonha de perguntar. “A vida de mulher é mesmo uma trabalheira”. Três anos depois migramos para Erechim. Ela ficou. Um jovem casal convidou-a para cuidar de suas duas crianças. Foi com eles para Ijuí. Migrações. Onde estará Aurélia? Que aconteceu com seus grandes olhos, seus cabelos negros, seus peitos prometendo luz, prosperidade e fartura aos jovens sequiosos de vida? Seu coração terá encontrado um verde vale para pousar? Onde estará a minha amiga? Não sei. Em duas ou três viagens para as Missões surpreendi-me perguntando por ela, até num programa de rádio. – É sua parente? – perguntou o coordenador do debate. – É mais. Mais que uma irmã, respondi. Ele me olhou. Tentou compreender. Fez mais um apelo a quem a conhecesse e, para meu consolo: – Pode ser que apareça.


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PIRATINI ? Jandir

Pelotas. Hotel do Germano em frente à Rodoviária. O mais barato. O mais em conta para um professor sem dinheiro dormir e apanhar o ônibus às sete horas para Piratini. – O senhor me acorda às seis? Tem café a essa hora? Posso confiar?, insistia eu ao dono daquela simplicíssima paragem que se apelidava de hotel. – Não precisa se preocupar. Mais de metade dos que aqui dormem pegam o ônibus das sete. Naquele quarto estreito, cujos móveis eram apenas uma cama e um bidê, a noite custava a passar. Ouvia os passos de todos quantos passavam pela calçada ao lado. Rapazes gloriando-se dos feitos sexuais da noite ou negociando com alguma prostituta uma migalha de amor. Caminhões e ônibus sacudiam o assoalho. Mosquitos zumbiam, irritavam, riam de mim no calor abafado de primeiro de março. “Mas é só uma noite”, pensava. É melhor dormir aqui do que num banco de madeira da Estação. Acompanhei as batidas de sino do relógio do mercado até as três. Quando ele marcou seis horas eu já estava de pé. Uma fatia de pão caseiro com manteiga da casa, meia xícara de café passado com leite era o desjejum. O ônibus da Princesa, surrado, descascado já estava postado em oblíquo na rua Mal. Deodoro. Um rapaz moreno, magro, alto, acomodava bagagens e mais bagagens nos porta-malas inferiores e cobrava de cada um uma


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gorjeta. Pacotes de jornais, sacos de mantimentos, ferramentas, arreios e demais encomendas. O cobrador, em pé, na porta, recebia os bilhetes de passagens e arrumava os envelopes de cartas para atirar perto das casas ao longo do caminho. Afinal o ônibus era o veículo de encomendas, de correio, de recados... – Tem lugar marcado? Perguntou uma senhora que, depois descobri ser professora. – É de quem chega primeiro, respondeu. Minha malinha de papelão estufava para conter as poucas roupas, livros, chinelos: minha mudança. A máquina de escrever Olivetti 22 e o violão iam na mão. Dei cinqüenta centavos ao arrumador de bagagens que agradeceu decepcionado. Esperava mais. Encontrei um lugar vago, janela, sobre o meio. – Bom dia, com licença, - pedi, a um senhor cinquentão, chapéu sobre os joelhos, vasto bigode e fumando um palheiro de espantar baratas. – Bom dia, pode passar – encolheu as pernas para que eu sentasse. Meu relógio de corda automática, vinte e cinco rubis, marcava pontualmente sete horas. O sino do mercado confirmava. O burburinho de gente atrasada, esfregando os olhos sonolentos, arrastando sacolas atrasava nossa partida. Quinze minutos. Saímos. Em cada esquina o ônibus parava para apanhar mais passageiros. O cobrador, simpático e gritalhão, insistia: – Mais aos fundos...mais aos fundos! Ainda cabe mais. Vamos colaborar! E homens de chinelos, bermuda e camisa, outros de bombacha, bota e chapéu, mulheres com vestidos simples de chita, crianças no colo, conversa em voz alta, acotovelavam-se no corredor, apoiavam-se como podiam nos assentos e nos assentados com protestos e “não foi


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nada”, “me dá o pacote que eu levo”... “senta a criança aqui”... Odores de suor e sovaco misturados com perfumes carregavam a atmosfera. A mocinha que sentava à minha frente usava um perfume melhor. Eu observava aquele povo e suas conversas tentando descobrir como eram os costumes em Piratini. Afinal, seriam apenas dez minutos de viagem segundo me afiançara o diretor geral do Ensino da Secretaria de Educação de Porto Alegre. Quando eu desistia da vaga de professor de Espanhol para Getúlio Vargas em troca de Didática Geral e Especial para Piratini, meu amigo professor Fanfa garantia: – Você não sabe onde é Piratini? É uma cidade pertinho de Pelotas. Dez minutos de ônibus. Se quiseres podes morar em Pelotas e lecionar em Piratini. Passaram-se quinze minutos e o ônibus ainda circulava na cidade de Pelotas. Chamei o cobrador e pedi: – Avise-me quando chegarmos a Piratini. Ele sorriu, confirmou com a cabeça. Mais dez minutos e o ônibus parou num vilarejo com meia dúzia de casas velhas. Já preocupado em não passar do meu destino perguntei alto ao cobrador: – É aqui Piratini? Ele, não sabendo decifrar se eu estava zombando ou perdido, respondeu polidamente: – Não, aqui é Capão do Leão. – Falta muito para Piratini?, insisti. – Falta! Foi sua resposta lacônica. Meu companheiro de assento, percebendo minha aflição, explicou: – Eu também vou a Piratini. É o fim da linha. Quando chegar lá eu aviso.


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Agradeci. E comecei a remoer: Será que Fanfa me enganou? Por que? Ou será que ele também não sabe onde fica Piratini? Uma hora e meia depois, depois de muita pedra, poeira e solavancos, depois da ponte do Império sobre o rio que meu vizinho disse ser o Piratini, o ônibus estacou frente a um bar, ao lado de um cemitério e uma escolinha. Todos desciam. E eu me apressei a confirmar: – É aqui Piratini? Meu companheiro de viagem explicitou: – Aqui já é município de Piratini. Aqui a gente toma café. Mais uma hora e estaremos na cidade. Não sabia se me zangava por ter sido enganado, se disfarçava o receio do desconhecido, se aproveitava o tempo para colher informações, se recolhia, pela janelinha estreita e empoeirada, imagens daqueles campos encapoeirados e montanhosos. Misturava-se a tudo a saudade de Bagé e da família...quando finalmente chegamos. No cocuruto avantajado daquele cerro, Piratini se esparramava em quase uma só rua ao longo da qual se encostavam o posto de gasolina, a escola, duas ou três lojas comerciais, o moinho do Noquinha e sua padaria, o cartório, o hotel, a praça da matriz com a prefeitura, a cadeia e o cinema. Uma aba maior que protegia a calçada indicava a estação rodoviária, ao lado de uma casa baixa de muitas portas e janelas onde morou Garibaldi. Logo adiante, bem no alto o museu ao lado da casinha enfumaçada onde um motor a diesel gerava luz algumas horas por dia. Um punhado de casas, sem muita conservação ainda guardava os segredo dos velhos tempos da República Farroupilha. Da estação rodoviária onde só cabia um ônibus até o único hotel, o hotel da Sila, eram cem metros. Deixei


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minhas coisas no hotel e fui logo à Escola Normal Ginasial Ponche Verde: duzentos metros pela rua principal. – O senhor trouxe os “fonos” de posse?, perguntou a diretora Zani. – Aqui estão! – Professor Jandir, o senhor tem curso superior!? É bom para a nossa escola. – É ele mesmo, – disse atrás de mim uma voz que me soava familiar. Virei-me e deparei com a figura amiga de um excolega de filosofia e de seminário: – Empídio? Que fazes aqui? – Faço o mesmo que tu vieste fazer. Abraçâmo-nos. E ele fez questão de insistir com Zani: – Essa é uma boa conquista. Precisávamos de alguém assim. Ao mesmo tempo em que eu não entendia todo aquele entusiasmo, sentia que no meio do estranhamento completo tudo começava a se fazer em ordem. Eu tinha uma referência. E uma referência amiga. Era possível confiar. Em quinze minutos ele me apresentava aos professores: – Esse pode resolver nosso impasse. E olhando para mim com a firmeza amiga de quem não aceita recusa: – Tu vais ser nosso diretor! Surpreso, espantado e sem saber o que pensar e dizer, observei: – Mas vocês nem me conhecem! Vamos devagar! Vocês estão brincando? – É sério, insistiu Empídio. Te explico no almoço.


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Entendi em minutos a complicada relação entre os professores do Ginásio Rui Ramos e da Escola Normal Ponche Verde que usavam o mesmo espaço físico em posição de guerra. Era preciso apaziguar. Era necessário mostrar propostas de educação. Havia um grupo disposto a ajudar. As questões burocráticas o prefeito resolveria com o Secretário de Educação do Estado. Pensei. Tentei encontrar condições inaceitáveis como as de trocar minhas nomeações para Filosofia e História de que tinha registro federal. A necessidade de contratar professores qualificados, pelo menos quatro. O prefeito que chegou ao final do almoço não me deixou esperar: – Se é isto que o senhor exige, resolvemos já. Apanhou o telefone de manivela e pediu uma ligação com Porto Alegre. A telefonista de Pelotas avisava que a linha para Porto Alegre estava ruim e ocupada, mas que aguardasse. Dez minutos depois falava com o Secretário e com Fanfa. Os telegramas de posse como diretor chegariam no mesmo dia. Valiam desde primeiro de março. Eu poderia convidar até quatro professores para qualificar o quadro. Só cabia dizer sim. Reuni os professores certifiquei-me se eles verdadeiramente me queriam e por quê. Conclamei a todos à união e colaboração. Todos se comprometeram. E onde encontrar professores formados ou quase formados que quisessem vir a Piratini? Melhor seria oferecer duas carreiras de vinte horas para cada professor. Lembrei-me de Bagé. Lembrei-me de Ruth que, aluna de Filosofia, em sua blusa rosa de banlon, instigava minha imaginação e minha esperança.


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Ela aceitou. Veio com Milta e Ivaldo. Algumas professoras choraram. Medo de perder o emprego. Eu cismava comigo mesmo: serĂĄ sĂł pelo emprego? Coisas de rapaz.


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UM TELEFONE PARA MILTA Jandir

Esguia. Um metro e setenta. Cabelos negros em suaves cachos. Olhos negros e grandes num rosto alongado. Lábios finos e delicados. Milta, em seus vinte e quatro anos estava concluindo o curso de Filosofia em Bagé. Queria lecionar. Costumes simples. Família pobre. Sonhos verdadeiros: lecionar, casar com um homem bom, ter três ou quatro filhos, viver entre colegas e amigos. Quando a amiga Ruth acenou com a possibilidade de ser professora em Piratini, ela não titubeou: – Vou contigo. Terei habilitação para lecionar Geografia e Didática. – Podemos alugar alguma casa juntas, ponderava Ruth. No início ficaremos um mês no hotel. É barato. Menos de um salário mínimo com as refeições. Ivaldo também vai. Vai em julho. – Quando irás, perguntou Jandir? – Segunda feira da próxima semana. – O caminho é fácil: vai-se a Pinheiro Machado. De lá, às quatro da tarde parte um ônibus para Piratini. Chega às seis. Te esperarei na escola Ponche Verde. Ruth vai no fim do mês. Dona Nilda, foi de pressa buscar um refresco para celebrar a boa notícia que acontecia para a filha: – Pode ser que tu esqueças o Valdo. Não é partido pra ti – e olhava para Ruth pedindo apoio e conivência. – A senhora acha que ela gosta dele?, atacou Ruth. Ela apenas brinca de namorar. Não se preocupe, sua filha


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sabe muito bem onde meter os pés e embretar o coração. Ela é mais esperta do que a senhora pensa. – Tomara! Concluiu Nilda passando os olhos e os copos para cada uma. Segunda feira. O ônibus saiu às dez. Quatro horas de espera em Pinheiro Machado. Uma revista, um manual de geografia do Brasil: aproveitarei o tempo, dizia de si para si. Quando o pequeno e velho ônibus Princesa encostou, Milta sentiu que a viagem era para o interior dos interiores. Assentos esfolados, janelinhas emperradas, cortinas curtas. Nada comentou. Apresentou o bilhete de passagem ao cobrador e sentou-se na segunda fila. – A senhora vai a Piratini ou desce antes? Perguntou o cobrador Oraci perscrutando-lhe a figura estranha. Ele conhecida um por um os habitantes de Piratini e do caminho. – Vou a Piratini. Sou professora. Vou para a escola Normal Ponche Verde, respondeu Milta. A escola fica perto da Rodoviária? – Não fica longe... Então a senhora é uma das professoras que o novo diretor contratou? – Acho que sim... Os senhores já sabem? – E o quê não se sabe em Piratini? Milta gostou do jeito franco, direto, simples daquele cobrador. Inspirava confiança. Sentiu-se à vontade enquanto o ônibus se deslocava de vagar, aos solavancos nos buracos e pedras, parando de quando em quando. Buzinava para chamar a atenção de algum morador a quem trazia um recado, uma encomenda, uma carta. Oraci sabia onde cada qual ficava. Um quilômetro antes gritava: – Seu Juvêncio, vá se despedindo que já estamos chegando em sua casa.


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E lá vinha o seu Juvêncio, tirava o chapéu, apertava a mão de cada um dos passageiros recomendando saudações à família. Quando o ônibus estacava frente ao portão da mangueira de pedra, Oraci apressava as últimas despedidas dele e retirava do bagageiro inferior o saco de sal, a farinha, o açúcar, os embrulhos das compras de Juvêncio que ainda ficava abanando para os outros que seguiam viagem. – A gente ganha pouco mas se diverte, dizia Oraci. Às seis e dez o ônibus encostou na pequena rodoviária de Piratini. Milta desceu, sacudindo a roupa para afastar o pó. Entre decepcionada e surpresa com o pacato movimento da rua, com as pobres condições da Rodoviária, com a singeleza da cidade, perguntou ao senhor que estava atrás do balcão: – Onde tem um telefone que eu possa usar? –Telefone? Respondeu o homem sem entender... Telefone pra quê? – Uéh! Telefone para chamar um táxi. – Táxi? Intrigou-se Osvaldo. Mas táxi pra quê? – Mas puxa! Um táxi para levar minha bagagem até um hotel! Seu Osvaldo olhou para aquela impertigada e pretensiosa criatura e arrematou: – Se vê que não é daqui! Aqui não existe táxi. E nem tem telefone. E o hotel? O hotel da Sila é o único que tem aqui. E fica ali na esquina a cinqüenta metros. Milta espantada, boquiaberta pensava com seus botões: quê balão! E logo na chegada! No dia seguinte não faltaram dois alunos que lhe perguntaram: – Professora, a senhora quer um telefone?


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O HOTEL DA SILA Jandir

Quando a rua Maurício Cardoso ao longo do cerro onde está Piratini, trazendo no lombo de um lado e de outro as poucas casas da vila, se bifurca para a praça da matriz e para uma ruela onde funciona o posto de saúde, bem no vértice da forquilha ficava o hotel da Sila. Quatro ou cinco degraus levavam até a sala de jantar com seis mesinhas quadradas. Quatro cadeiras em cada uma. A cozinha de doze metros quadrados, um fogão a lenha de seis bocas, um balcão-pia de granito carijó, uma mesa no meio, um armário com louças e era tudo. Ao fundo em nível mais baixo que a sala, oito quartos com duas camas em cada um, um bidê entre elas e um roupeiro. Um banheiro masculino, um feminino e uma pia à frente deles com um espelho que só refletia o vulto. Singelo, simples, pobre mas limpo. Dona Sila cuidava de tudo auxiliada por Túlia que trabalhava o dia inteiro, sem parar e sem se queixar, fazendo da fadiga infatigável da sua labuta seu trunfo, sua identidade, sua apresentação. Os rapazes gostavam de cantá-la e fazer-lhe propostas maliciosas só para ver a atrapalhação dela. Seu Amaral, marido de Sila, administrava as finanças. O cardápio não variava, mas tinha gosto de casa: sopa de legumes e massa, com ossos e tutano de rês, arroz ou massa, feijão, um bife, salada de tomates e cebolas, canjica de trigo, sagu ou ambrosia de sobremesa. Isto valia para o almoço e janta. Aos domingos a sopa era de


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pescoços e patas de galinha a carne era galinha assada. Ao ver tanto pescoço Empídio reclamava: – Essa galinha era cisne?, só tinha pescoço? O café da manhã incluía pão, leite, manteiga e marmelada. Túlia servia a todos, armava as mesas, com suas toalhinhas plásticas quadriculadas, retirava os talheres, trazia água e bebidas. Quando havia mais de quinze comensais entre viajantes, algum profissional liberal que vinha prestar serviços, ela se espremia e agitava mas conseguia dar conta do recado. Uma mesa ao fundo era sempre reservada para nós professores: Empídio, Ivaldo, Milta, Ruth e eu. Ivaldo, com agrados e algum bombom tentava comprar os privilégios de Túlia: – Um osso carnudo com tutano, guarda sempre para mim, mesmo que eu chegue atrasado, intimava. Túlia acedia. E quando chegávamos antes dele, ela fazia questão de recomendar: – Deixem um desses ossos mais carnudos para Ivaldo. Dizíamos sempre que sim. Descarnávamos o osso e o deixávamos pelado e branco na sopeira. Ao servir-se Ivaldo infalivelmente estrilava: – E o meu osso? Túlia, que fizeste com o meu osso? Isto não é osso que se apresente. Ela se desculpava que tinha escolhido os melhores para nós. E nós em coro censurávamos: – Que é isto Ivaldo!? Ela te quer bem. Te dá privilégios e tu a repreendes em público? Ele lançava um olhar feroz para nós prometendo vingança e resmungava enquanto se servia de outros pratos. Naquela mesa combinávamos as estratégias e táticas para o futuro. Empídio queria estudar medicina. Mas como


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o curso exigia tempo integral iria estudar Direito. Ivaldo e eu topávamos fazer o mesmo. Mesmo porque algumas universidades propiciavam concentrar as aulas do semestre nos meses de junho e novembro. Adiantaríamos nossas aulas na Escola e estudaríamos em Passo Fundo. Ruth e Milta terminariam sua faculdade em Bagé. E por que não criarmos um Segundo Grau em Piratini? Empídio responderia por Letras e Matemática, Ivaldo por História e Literatura, Ruth por Geografia, Milta por Moral e Cívica, Jandir por Filosofia. Convidaríamos o Dr. Rômulo para biologia, o Dr. Horta para química... Comentamos apenas entre nós. Ninguém nos ouviu. Após o almoço saímos a passo para a Escola. Três pessoas nos interceptaram: – Quando vai começar o Científico em Piratini? Empídio ria comentando: – E para que serve a eficiência da comunicação? Quando chovia o hotel da Sila era uma aventura. O corredor que dava acesso aos quartos alagava: três centímetros de água. Uma fila de tijolos soltos permitia, com muito equilíbrio e malabarismo chegar ao quarto sem água nos sapatos. Como à noite só havia luz elétrica até as dez horas, o barulho das pessoas pisando na água era um entretenimento: platch, platch, platch... Um domingo de manhã Milta não saía do quarto. E chovia. Ruth sugeriu bater para acordá-la. Lá fomos os quatro sobre os tijolos. Ruth tentou a porta. Ela não estava chaveada. Abriu com cuidado e irrompeu em gargalhada. Milta empurrara sua cama enviesada para junto da janela. Para escapar das goteiras, cobriu-a com a capa de chuva, abriu sobre tudo um guarda-chuva que desviava os pingos para o lado da cama. Sonolenta, afastou a capa, esfregou os olhos em baixo do guarda-chuva e cantarolou: “tomara que chova três dias sem parar”.


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O hotel da Sila era um refúgio para quem dependia do salário do final do mês. Mais ainda quando os vencimentos de professor atrasavam. Sila esperava, insistia, arranjava. Um milagre de sobrevivência. Aquelas mesas acompanharam jogos, brincadeiras, reflexões, olhares de simpatia, de amizade, de insinuações, de cumplicidades que se fizeram namoro, sofreguidão e juras que fecundaram o viver.


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JOÃO SEM TERRA Jandir

Cinco horas da tarde. Calor sufocante de janeiro. Na exígua sombra do rancho quinxado, paredes de barro, uma janelinha pequena e quadrada e uma porta baixa, João sorve seu chimarrão. Bombachas, alpargatas em fiapos, camisa aberta ao peito, os poucos cabelos desgrenhados, um palheiro pela metade atrás da orelha, fita o horizonte quase fechando os olhos. Alcança a cuia vazia para Juvelina sua mulher também sessentona, magra, vestido de chita em quadrinhos rosa desbotados, que acolhe a cuia e os olhos dele numa simpatia silenciosa e infinita. Sem palavras, vivem o calor acachapante da tarde, com cansaço e preguiça enquanto o pensamento vagueia pelas décadas passadas, pelo tempo de namoro, pelas alegrias do nascimento e crescimento dos três filhos que estão longe, na cidade, tentando vida melhor. No horizonte a sudeste nuvens carregadas avançam em contorcionismos macabros, empurradas por relâmpagos e trovões. Furacão. Mais do que na tempestade que se avizinha João pensa no furacão dos tempos atuais. Como a ganância arrasou os campos recolhendo os pobres para a marginalização na cidade, transformando-os em desempregados, angustiados, pedintes, violentos, vendo as filhas se prostituírem como se fosse moda, “trabalhadoras do sexo” como ouviu falar.


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Jurou que morreria no campo, em sua pequena chácara, junto com as árvores, os pássaros, os bois, ouvindo o ruído do riacho nas pedras. Seu cismar se fez mais triste depois da visita do doutor Ario, um advogado indicado pelo filho Alfredo e que viera para comprar o sítio. Queria pagar o preço de terra nua, sem contar as benfeitorias, o preço que as empresas plantadoras de eucaliptos estipulam: 580 dólares por hectare. Sem responder, João calculou quanto receberia por seus 45 hectares e viu que era menos do que necessitaria para comprar uma casinha numa vila popular da cidade. Disse depois que sempre quis viver sossegado com sua Juvelina, tomando seu chimarrão em paz ao amanhecer e ao entardecer, enquanto ela preparava um doce de figo e um pão de forno de barro à espera dos filhos que sempre chegavam. Nem sempre vinham juntos. Às vezes os netos – eram cinco, dois guris e três meninas – vinham antes, para o almoço de sábado, para andar a cavalo, para comer pitangas e guabijús, para tomar banho pelados na sanga sem avisar a ninguém, porque se as mães soubessem seria um escândalo. A vivacidade deles era uma festa. A conversa com o doutor Ario foi um balde de água gelada. Acolhido com um chimarrão e um convite para o almoço, sentiu-se em casa e pronto para externar as idéias que, a ninguém tinha exposto com tanta realidade. Tentava o ilustre advogado, ostentando seu grosso anel com enorme pedra vermelha no dedo, convencê-lo de que a vida é assim mesmo, que, assim como entre os animais, os mais fortes engolem os mais fracos. Que os mais competentes são premiados com a riqueza, com o poder, com a honra. Os incompetentes, os mais fracos, por culpa sua ou por obra do destino, são feitos para servir aos


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mais fortes, para obedecer, para serem guiados na ordem da sociedade. Que nisso, não só não há injustiça, mas o que é justo acontece assim. Imaginar que haja uma justiça que torne todos iguais, imaginar que a solidariedade, a compaixão, a ajuda aos mais necessitados seja virtude, isto foi uma invenção dos fracos para não serem explorados e para se negarem a servir aos mais fortes. Que dias melhores virão, que haja um céu à espera dos honestos, que Deus fará justiça àqueles que aqui não a tiveram, isto tudo é conversa de padres e pastores para poder mandar na vida e na alma dos mais pobres, arrancando-lhes os últimos centavos como empréstimo a Deus, como investimento na esperança. Que na verdade o homem anda em círculos, como cachorro atrás de seu rabo, sem futuro e sem esperança, solitário, abandonado a seu destino de nascer, crescer e morrer como uma árvore, como um boi. Que esperar é ilusão, confiar é enganar-se, ser solidário é ser panaca e trouxa. É ser doente. É fugir dos limites da vida, como o amor, este doce engano que os ingênuos se fazem mutuamente, como se fosse verdade, como se fosse pra valer, como se alguém até hoje tivesse sido fiel. A gente se engana, se ilude, foge do real porque é covarde para se matar e matar os outros. João, quieto, de cuia na mão, sem nada responder, olhava o advogado com um olho enquanto com o outro olhava mais longe, as pálpebras se fechando como para não errar o alvo concentrando-se no principal. Passou a mão no cabelo, alisou a barba crescida de uma semana e balbuciou apenas: – Pois é, cada um faz a vida como lhe apraz! – Mas o senhor não concorda comigo?, insistia o doutor, à procura de um aliado, de um conivente.


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– Concordar com quê mesmo? Com a sua descrença? Com a sua saúde? Retrucou João encostando-se mais na cadeira. – Se é coisa que eu nunca tive é úlcera no estômago, nem prisão de ventre. Como de tudo, durmo bem, gosto do cheiro de terra molhada, de merda de vaca e de flores. – Mas o senhor ainda acredita no céu, no inferno, na vida depois da morte? Provocava Ario. – Olha, o senhor sabe que eu quase não tive escola. Fui só até o terceiro livro. Sei mal e mal escrever e ler. Minha fé é simples como a de meus pais e meus avós. Ensinei a meus filhos serem honestos, a nunca negar a palavra empenhada, a dizer a verdade olhando no olho com quem se fala, a nunca negar ajuda a quem precisa, a ter um coração generoso pensando sempre que ninguém é melhor que a gente nem a gente melhor que ninguém. – Rezo de noite com a mulher velha, continuou, pedindo a bênção para os filhos e de manhã agradecendo por um novo dia. Gosto de ver como as árvores crescem, botam flores, sementes que se afundam na terra e renascem na primavera. Eu sinto a presença dos que já morreram assim como sinto a presença que quem está aqui. Nem sempre vamos à igreja. Não gosto de padre que transforma a religião em política, que transforma a comunidade em partido. – Então o senhor pensa que nem eu: todo o político é enrolador, trapaceiro e mentiroso, alfinetou o advogado procurando uma pontinha de consenso. – Vou lhe confessar, disse João. Votei no Lula. Eu, minha mulher e acho que os três filhos. Confiei no discurso dele: reforma agrária com seriedade e com fundamento, com terra para trabalhar, com preços razoáveis para os produtos, com comércio garantido; indústrias novas e muito mais empregos; cuidado com a educação, com a saúde, com


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a segurança para todos; enfim um país sem mentira, sem roubalheira de quem a gente pudesse ter orgulho. Muita gente importante assinava em baixo: os bispos, professores, sindicatos, movimentos dos sem terra etc. etc. E o que se viu? Mensalão, sanguessuga, dinheiro em cueca, roubo, mentira, “eu não sabia”, “a culpa é dos outros”. Parecem estar ajoelhados, acocorados, adorando o poder. E pra ganhar de novo a eleição a esmola da bolsa família comprando descaradamente o voto dos pobres. Mas eles vão levar o troco. E nem todos os políticos são assim. – Com que idade o senhor está seu João? Indagava o doutor quase com pena daquele velho que ainda esperava mudar o Brasil. – Tenho oitenta e dois anos e nunca deixei de votar, responde rápido João. Tenho certeza que um dia o Brasil será melhor. Afinal, os erros, as cabeçadas ajudam a encontrar o caminho. Penso também que os que dizem que nada pode melhorar, que esperar e confiar é ilusão, é porque querem justificar a covardia de não tentar ser melhor ou a pretensão de ser onipotente e santo que nem Deus, ou ainda a desculpa para explorar impunemente os outros. – Bem, chega de conversa fiada, cortou Juvelina. O almoço está na mesa. Vamos logo se não ele esfria.


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A PESCARIA DE BOTTON Jandir

– Então vais comigo? – Estou pronto!, respondeu Beto, àquele repto de pescador que era o Padre Botton. Segunda feira à tarde era o espaço semanal de seu descanso das correrias de sua pastoral. Felicidade era vê-lo sentado à beira de um arroio ou de um açude, contemplando estrelas ou um pedaço de lua, e gabando-se ao companheiro que seu jundiá, que sua traíra sempre eram os maiores. Conhecia um por um os estancieiros da bacia do Rio Negro que ia de Bagé para a República do Uruguai. Conhecia os homens pouco afeitos às liturgias, a não ser em missa de sétimo dia por algum defunto próximo, ou na festa de finados, quando todos apareciam junto ao cemitério: as mulheres lavando e botando flores novas, as moças namorando, os homens armando negócios e carreiras de cancha reta. Um congraçamento real. Conhecia as mulheres e suas lamúrias de tristezas da vida e da pouca atenção que os maridos lhes davam. Conhecia as moças pelos pecadinhos de maus pensamentos, de tentações de namoro e invejas e mentiras... Os meninos pelas peraltices de desobediência e de maltrato aos animais... E todos, todos abriam-lhe os portões com alegria quando ele aparecia em seu fuça velho e branco, pedia licença para uma pequena pescaria.


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Naquela tarde dona Francisca esperava o Padre Botton com a iguaria que ele mais apreciava: abóbora caramelada com leite gelado e ambrosia feita por ela. Botton aceitou a gentileza, deu uma bênção à casa, aos animais e habitantes da fazenda, avisou que retornariam em meio à madrugada sem despedidas... E apressou-se para chegar ao lugar da pescaria. Na porteira que abria a mangueira para o campo com a várzea do rio Negro lá no fundo, Botton gritou saindo também do fusca, pois Beto tinha descido para abrir: – Não atira, não atira... você é louco! Sabe que bixo é aquele? Beto, que viera da Serra, paralisou, de bodoque em punho, apontando para um lindo animalzinho que andava rasteiro como uma pequena raposa, listrado de branco e preto. – É um zorrilho... continuou o padre de batina preta e chapéu gauchesco de aba larga. Se tu acertas ele mija e o fedor é mortal...Nunca mais sai da roupa. – Espera que ele se afaste um pouco, abre a porteira de vagar, que nós queremos é pescar... Beto abriu a porteira. Esperou Botton passar. Fechou. E como o bixinho já ia longe arriscou um bodocaço. O zorrilho levantou o rabo e esguichou seu líquido fétido na cerca. Beto disparou para o carro. No retorno, às quatro da manhã, o fedor ainda era insuportável. Antes do escurecer já estavam a postos junto ao rio, com isca nova de lambari que captaram no açude. A noite sem lua, o calor com leve brisa prometiam. Vinte metros de distância um do outro, comunicavam-se apenas por psiu... um fiu... fiiiu... assobiado para avisar que o peixe correu, que o peixe é


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grande... O silêncio recolhia aqueles risos levemente esboçados de alegria, de repto, de vitória... Quando o sininho amarrado à ponta da linha tilintava, o outro respondia com fiu... fiiiu... em desafio como a dizer: “eigatê barbaridade, que esse é grande, quero ver o pulso para fisgar o taura”. E a resposta do companheiro não se fazia esperar: fiu... fiu.. fiu... fiu: esse é bom, não é como o “lambarizinho” que meu amigo tira... Uma hora depois do escurecer já não eram tão fortes nem tão freqüentes as beliscadas. Foi aí que o Botton achegou-se a Beto para provocar: – Eu peguei três jundiás e duas belas traíras e tu? – Examine aí, retrucou o amigo. São seis. Pena que só uma traíra. Botton se pôs a examinar a grama onde Beto colocara os peixes ainda vivos e riu zombeteiro: – Seis é? Aqui eu só vejo dois. Vai ver que os outros foram ao campo pastar. Beto não entendeu a brincadeira e foi conferir também. De fato só havia dois. E os menores. Olhou com ar desconfiado e disse rindo: – Será que os seus cinco não migraram daqui? – Não, não é verdade, não... – Então deixa eu ver os seus. E lá foram, lanterninha fraca em punho, à procura dos peixes que Botton disse ter pego. – Estão aqui, apontava ele para o espaço entre duas árvores... Aqui... aaaaq... Mas não pode ser... Só uma traíra?... e os outros? – Será que foram pastar como os meus?, provocou Beto.


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Pararam surpresos, desconfiados, desiludidos. No silêncio denso de escuridão, somente o barulho de alguma estrela, um quero quero ao longe e o berro de um boi na direção da sede da fazenda. E,... um ciciar de palhas secas que algum pé de vento ou de algum cachorro há alguns metros daí... – Desgraçado, irrompeu Botton. É um zorro, um ladrão refinado e esperto. É tão macio na caminhar que nem o percebemos a dois metros de distância... – Ah, ele é o testemunha que não nos deixa mentir sobre o número e o tamanho dos peixes... Quantos, eu disse que peguei? Eram dez?... – Ih, agora vale tudo e já não se sabe quem mentiu... Até o aparecimento da lua pescaram mais cinco lindas traíras e Botton concluiu: – Temos o suficiente para um bom almoço, podemos voltar. E não há peixe mais saboroso que traíra. – Espere um pouco, disse Beto. Tem um mamando aqui. Deve ser traíra. Jundiá não mama. Na ponta do dedo ele tinha um derradeiro prazer de sentir o peixe que beliscava, mamava, mamava,... mordeu... e disparou... Deu-lhe linha para que corresse um pouco e para que ela abocanhasse bem o lambari... E então, com um puxãozinho seco fisgou-a. Ao sentir-se presa, a traíra deu um tirão forte, para escapar... já era tarde... Aos sobressaltos sobre a água ele veio até a barranca. Beto aproveitei o embalo e puxou-a para cima da grama. – Essa é a maior, apressou-se. Botton não perdeu tempo: – Éh, o último ou aquele que escapou sempre são os maiores... Antes que o campo acordasse, regurgitando de sons e de cores que surgiam da noite que se adelgaçava, imprecisa, e anunciadora, eles já estavam perto da cidade.


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Botton gostava daqueles campos. A pescaria lhe fazia bem. Alimentava-o para toda a semana. Quando pensava em evangelizar os mais pobres das vilas, recordava o grito de tantos índios e de tantos pobres mortos naquelas bandas sem saber porque. O evangelho daquela época fundamentava o poder, o domínio, em nome de Deus. Ao mesmo tempo a brisa quase molhada daqueles ventos, lhe lavavam a alma como um novo batismo e uma nova bênção. Botton pensava-se feliz inserido na graça do pampa e colhia energia para escutar, para animar, para anunciar que Deus veio ao mundo para nos ensinar a pescar. Pena que no rio de Jesus, o Jordão, não havia traíras.


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O TEATRO DA VILA Jandir

– O quê? Minha filha trabalhar? Então eu não sou homem suficiente para sustentar a família? Dizia Vadico na Vila do Torrão, em Bagé. Morava, como todos os vizinhos, num rancho de barro, estruturado com varas de bambu, uma janelinha pequena, uma porta, duas peças: sala e cozinha e um quarto. Os rapazes dormiam na sala. As moças, eram duas, no quarto ao lado da cama dos pais. Vadico trabalhava na Charqueada. Recebia um salário mínimo. Podia levar alguns ossos para sopa e carne de terceira a preço mais baixo. Os dois adolescentes, depois da escola, perambulavam todo dia pela cidade ou jogavam futebol em alguma pracinha sem grama. As moças, dezesseis e dezoito anos, já não iam para a escola. Ficavam com a mãe, sem nada a fazer senão varrer o chão de barro batido do rancho e escutar novelinhas de rádio. A missa na capelinha, uma pequena quermesse organizada pelo padre Boton, algum enterro era o espaço de sua vida social. Ver um filme? Com que dinheiro? Um por ano talvez, matinê das duas de domingo para ver um Mazaropi. O namoradinho de uma poderia ser a chance de a outra acompanhar, como era costume. Baile? Eram sempre no centro da cidade. Difícil. Caro.


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– E por que não fazermos uns teatrinhos, sábado à noite para esta gente?, propus. Padre Boton aceitou, incentivou: – pega uns teatrinhos educativos e que será uma grande diversão para eles. – Deixa comigo. Na missa de domingo, propus que, sábado à tarde ensaiaríamos um teatro. Quem quisesse participar, que viesse. Rapazes, moças, crianças maiores de 10 anos. Eles mesmos seriam os atores. Pensei: eles não virão. Mas, por que não tentar? E vieram. Vieram mais de vinte. Expliquei-lhes que nós mesmos inventaríamos uma peça. O que eles gostariam de representar? Um casamento infeliz? Uma briga de compadres? Um namoro proibido? A resposta foi entusiástica. Queriam tudo. Todos os temas. Qualquer coisa. Combinamos que ensaiaríamos neste sábado, no domingo à tardinha e apresentaríamos a primeira peça no próximo sábado. Todos poderiam participar. Que convidassem as famílias. O primeiro trabalho intitulava-se: Um casamento proibido. Bem ao estilo Shakespiriano, um rapaz pobre amava uma menina rica. Os pais dela proibiam. Ela amava a ele loucamente. Combinavam encontros furtivos. A mãe descobria. Prepara o envenenamento do rapaz quando ele foi visitar a querida. Ao vê-lo envenenado, ela quer se matar também. Os amigos socorrem e o rapaz não morre. E tudo acaba bem. Um sofá velho era o único móvel no palco da escola que servia de capela.


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Mais de cem pessoas apinhadas na escolinha. A roupa da menina, conseguiram-na emprestado. Sapato de salto para dizer que era importante. Cabelos com lantejoulas pra dizer que era de festa. A calça do rapaz dava pela canela. O casaquinho de brim só fechava um botão. Os sapatos, sem carpim, eram maiores que os pés. Mal penteado pra dizer que era pobre. A caracterização que o grupo fazia de seus personagens era um teatro em si mesmo. Começa a primeira cena: A moça sentada no sofá, lixando as unhas. Alguém bate na porta. Ela atende... “meu amor... meu querido”... e quando vão se beijar aparece a mãe no outro lado da sala: – Tina, quem é? E ao ver o rapaz: – É um mendigo, um pedinte... dá logo um pedaço de pão e que ele se vá embora... – Mas mãe, este é o Joaquim... que eu te falei... o meu namorado... – O quê? Este pé-rapado? Ele não tem vergonha de querer freqüentar a nossa casa? O bate-boca continua, Tina aflita querendo explicar, querendo o consentimento, e a mãe impiedosa... o namorado quieto... Até que, por fim a mãe tolera que eles conversem no sofá, por meia hora. Nada mais... A mãe manda a empregada servir um suco e põe veneno no copo do rapaz... A empregada se atrapalha e na hora de entregar os copos diz: – Pode beber, ele não está envenenado... Tina se apercebe e diz para ele não beber... Vem depois uns docinhos que ele come ingenuamente e com sofreguidão. Um deles estava envenenado. O rapaz cai. Tina pede socorro. Entram dois rapazes que passavam pela rua. Sacodem o moço. O docinho salta longe... Ele revive...


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A mãe retorna, esperando vê-lo morto. Espanta-se. E o rapaz provoca: esse veneninho a gente tira com um trago de canha. Bate-boca. Acusações... Vamos chamar a polícia. A mãe cede. Eles podem namorar. A filha criará juízo a tempo. Na última cena os noivinhos se casam. Choro de alegria. E os assistentes batem palmas e choram juntos. Bonito e triste como diria uma senhora. Assim, a cada semana, uma peça nova. Inventada por eles mesmos, intercalando alguma trova, alguma poesia, e até cinco minutos de bons conselhos éticos. Padre Boton, não perdia um sábado.


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OS COMUNISTAS Jandir

Na porta da capela de S. Carlos, depois da missa das nove, os colonos acotovelavam-se em silêncio. Cada um fumando seu palheiro, enquanto Antônio Fachin e Felice Montesanto fumavam cachimbo. – Será mesmo que Décio virou comunista? Perguntou José Fellini para todos e para ninguém. Os olhares de todos se entrecruzaram em sinal de: será? – Acho que o padre está exagerando, - apostou Felice. Só porque não veio duas vezes à missa...! – Mas os dois filhos mais velhos também não vieram. Preferiram ir caçar – agregou Luiz Santoli. – É os Perginatto andam com umas idéias diferentes. Desde o avô deles, todos são garibaldinos, aqueles anticlericais que os nossos sempre diziam eram amaldiçoados pelos padres. – Dizem até que são a favor de Getúlio Vargas e agora, como fim da picada são a favor da reforma agrária do Brizola. Querem tirar todas as nossas terras e eles estão a favor. É o comunismo puro. E comunista não gosta de religião. Por isso eles não aparecem. – Mas a mulher dele, a Betina e quatro filhas estão aí. Elas não tem culpa, - considerou Angenor. Em meio a estes cochichos apareceu o padre Foscallo na porta. – De que estão conversando?


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– Tamo conversando dos comunista, - atalhou José, recém casado, em seus vinte anos. – Como eu já disse pra vocês, os comunistas, em primeiro lugar acabam com a religião. Em seguida acabam com a família. Aprovam o aborto para assassinar crianças inocentes. Dizem que matam também os velhos e os aleijados. Quando Deus não manda o diabo é que dá as leis. Um bando de preguiçosos comandam o governo e mandam todos trabalhar pra eles. Dizem que todos são iguais, mas os pobres é que pagam o pato – ensinava o padre. – Dizem que lá em Caxias tem uma dúzia de comunistas que blasfemam contra Deus e todos os santos e ninguém faz nada com eles, - falou entusiasmado, Pedro. – Bom, bom, - disse o padre – se todos os que blasfemam fossem comunistas, Jacarezinho seria a Rússia soviética. Eu sei pelas confissões... – Sim, mas a gente se arrepende, eles não... acrescentou Júlio em cuja boca, de cada três palavras, duas eram blasfêmias. Na volta para casa, José e Pedro que eram compadres, comentavam: – Acho que o padre tem razão. A besta vermelha do Apocalipse deve ser o comunismo. É só guerra, ódio, matanças, revoltas. Os filhos não respeitam mais os pais e os mais velhos. As mulheres não obedecem mais os maridos. Os rapazes e as moças acham a coisa mais fácil e divertida comer a merenda antes do recreio. Muitos já nem querem casar... Ouvi dizer que umas mulheres nem querem amamentar os filhos pra não ficar de teta caída... É o fim... falava José... – E os nossos nonos que vieram embora da Itália para achar uma terra que pudessem trabalhar e um lugar para educar a família longe dessas loucuras que já estavam por lá – finalizou Pedro...


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À noite, depois da janta, Mariota com setenta e cinco anos, escutava os filhos e o marido falar...falar... e sentenciou maliciosamente: – Isto é conversa dos padres. Então Deus vai permitir uma besteira dessas? Cada um deveria cuidar da própria vida e não falar mal dos outros. No dia seguinte o Repórter Esso da hora do meio dia anunciava que os Estados Unidos perderam a guerra do Vietnam. E que o Brizola fez uma reforma agrária no banhado do colégio... – Onde fica o Vietnam? - perguntou Alice à irmã mais velha. – Acho que fica na África ou na Itália... Mas tu imaginaste fazer uma reforma agrária num banhado? Só coisa de comunista mesmo!


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A SEXUALIDADE E AS FRERAS Jandir

– Eu sou uma pecadora, uma cínica. Vivo no colégio das freiras, dizendo que serei uma irmã e passo o dia e a noite pensando em sujeira. Será que Deus não poderia me dar a graça de me livrar das tentações da carne? É só me distrair. E lá estou eu pensando em sexo. – Oh mana! Que bom! Graças a Deus! Vou te mandar uma carta, para não gastar muito com telefone. Ainda hoje. E conversaremos nas férias. Já estão próximas. – Mas eu nunca leio tuas cartas, as freiras abrem, examinam e se não forem convenientes, não entregam pra gente. – Ah elas censuram a correspondência? Então deixa que eu me entenderei com elas. “Minha querida irmã! Hoje descobri que Deus é incompetente. Quando criou todas as coisas, criou-as incompletas, uma necessitando da outra, fê-las sexuadas. Você sabia que as plantas, os animais e os homens são sexuados? Um atrai o outro, se encanta pelo outro, procura o outro e do encontro nascem outros entes vivos como festa da vida? Acho que você está experimentando o prodígio da vida no próprio corpo. Agora que és adolescente, teus seios incharam, intumesceram, os mamilos ficaram salientes. A bunda cresceu, arredondou-se e, na surpresa de um belo dia ou noite, de dentro de ti verteu sangue: menstruaste. Sei que te assustaste, não sei com quem falaste.


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As freiras fogem disso como o diabo da cruz, como se elas não menstruassem, como se não tivessem seios, como se não sentissem vontade de ter relações sexuais. Confundem inocência com ingenuidade, pureza com burrice, amor com divagação em direção às nuvens. Como se Deus morasse apenas no alto das nuvens e longe de nós. Longe do corpo. Longe do sexo. Como se Jesus Cristo não tivesse sido gestado durante nove meses no útero de Maria. Como se ele tivesse nascido sem sexo, sem pênis, sem testículos, sem atração sexual. Como se ele nunca tivesse mamado. Como se Maria e José não tivessem cuidado de seu alimento, da limpeza de suas mijadas e cagadas. Éh mana! O sexo com toda a sua complexidade fisiológica, com sua complexidade endócrina, psicológica e social, é uma bênção de Deus. É um sinal da vida que ele criou para todos e em todos. É preciso conhecer bem o sexo e nossa vida Instalar-se na vida que nos foi dada e fazer dela um hino de gratidão, de louvor e de construção do mundo. Mesmo uma virgindade, uma castidade que é o cuidado para que a vida não se torne banal, superficial, de valeta, exige a afirmação da sexualidade. Dostoievski, aquele grande escritor russo, dizia que, ou uma mulher é ao mesmo tempo virgem, amante e mãe ou não é nada. Pois só é virgem aquela que se entrega total e somente ao amor. E não ao ódio, à inveja, à banalidade. Só é amante aquela que é virgem. E aquela que ama e é virgem é sempre fecunda, mãe. O amor sempre é fecundo. O problema que todos nós enfrentamos é o de como viver sexualmente, sadiamente? Não é fugindo, negando, escondendo. Se o amor e o sexo podem-se fazer e acontecer em muitos níveis, desde a sensorialidade pura e simples até o amor pelo outro, em sua dignidade, em sua identidade, sem fazer dela um objeto para si, um objeto de prazer.


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Na sexualidade tudo é puro, tudo é santo, incluindo a atração que sentimos pelos outros e que provocamos nos outros. Resta saber se sabemos ser completos no amor e na sexualidade. Depois conversaremos”. – Mano, é você? Você disse que me escreveria e ainda não recebi sua carta. – A é? Deixa as freiras lerem. Elas também precisam saber. Nas férias conversaremos. – Alô, quem fala? É o Jandir? – Sim. O que manda irmã Dirce? – Gostaria que você fizesse uma palestra para nós nas férias de dezembro, é possível? – Com todo o prazer, irmã. E sobre que assunto? – Sobre o Natal, a vida... – Só para as irmãs? – Só. Somos quinze. Pois é. Deus que criou todas as coisas, criou os homens: homem e mulher... – Mano, o que você disse para as irmãs? – Por que, mana? Só disse a elas que elas eram minhas irmãs, e para as irmãs a gente abre o coração. E falei direto sobre o sacramento da sexualidade... – O quê? E elas? – Pelo vermelhão do rosto, acho que sentiam bastante calor... Na noite de Natal, na porta da Igreja, irmã Matilde, que retornou ao nome original de Ida, apresentou encabulada: – Alfredo, um amigo meu. – Seu amigo? Que prazer! Feliz Natal para vocês. – Obrigaaaaado, professor. Muito obrigado. Havia lua cheia e muita estrela no céu.


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A PESCARIA DE LEONEL Jandir

Sábado de manhã. Dezembro. Proximidades do Natal. Ao lado do caminhão Ford 64, esfolado, amassado, desbeiçado em seus paralamas e latarias de tanto bater-se nas estradinhas estreitas no meio do mato para retirar toros para a serraria, Leonel convida em forma de convocação: – Vamos pescar? Nos fundos do campo do Cecílio. Um arvoredo lindo. Deve ter peixe. E nada de levar comida. Sal, erva-mate, banha e um pouco de pão. O resto sai da água. Empoleirados sobre o reboque e agarrados como podiam, no timão do truco, os dez filhos, noras, genros, namorados. Alguns pelegos, uma frigideira e uma caçarola, uma lata grande de bolachas que Ana fez questão de levar para o lanche da tarde e lá se foi Leonel, campo fora, para a aventura da grande pescaria. Umas dez traíras e alguns jundiás e estaria feita a janta. O almoço? Arroz com charque, gordo e pouco, só para incentivar a festa da janta. Afinal era uma pescaria. Leonel assobiava, peito inflado dirigindo seu alquebrado Ford, quase um orgasmo de felicidade por chefiar a expedição de toda a família, na festa rústica de estar inserido em a natureza. Aos pés de uma pequena e límpida cachoeira, de acesso complicado de pedras e cipós, todos colaboram para limpar um espaço para o acampamento na mata espessa, enquanto os meninos lançam de pressa os lambarizeiros na água à busca de isca para pescar traíras e jundiás.


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– Olhem, olhem, aqui biliscam... tem peixe... este é o primeiro, um belo lambari... até pena faze-lo de isca... Leonel, no alto de uma pedra de onde podia avistar o horizonte verde azulado, com os picos e curvas da Encosta da Serra, inala um longo trago de seu palheiro e comenta com o filho: – Parecem seios de mulher! Implantado no coração da mãe terra, aquele lavrador de altos montes e úmidas planícies, convidava à experiência sensual dos sonhos de pescaria. Sonhos da vida. Parecia dizer: – A natureza só se entende no rosto de uma mulher. A mulher só se entende no coração da vida e do universo. A terra está grávida de mistério. Na mulher está o mistério. O resto vem depois... Estranho modo de falar de sexo aos filhos... Os olhos dele que quase se fechavam para melhor pensar, pareciam conectar-se com a sabedoria dos povos multimilenares com a Gaia dos gregos, com a Isis dos Egípcios, com a Pachamama dos Incas, com a Névoa densa dos Guaranis, que tudo produz, que tudo sustenta, que tudo acolhe na profundidade escura de suas entranhas e que permite aos pinheiros lançar-se ao mais alto céu... – Escuta, escuta... e convidava a harmonizar o ouvido na escala “natural” dos pássaros, nhambus, pombas, bentevis... para que a voz coral de nossas canções extraísse do seio da terra os segredos e mistérios da transcendência. Ah, ali ele era rei, a natureza com suas dádivas, os filhos com seus buliços na expectativa dos grandes peixes que não vinham. Mas que, certamente estavam escondidos nos poços mais profundos, mais abaixo ou mais acima, nunca se sabe... Duas ou três dúzias de lambaris, duas joaninhas e um cará todo espinhento, foram o aperitivo completado


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com um galo velho comprado às pressas, já noite escura, lá nas casas da fazenda... À noite, linhas na água, que não se moviam, sininhos que não tilintavam, um gole de vinho e canções polifônicas que todos cantavam ecoando no silêncio da mata e no burburinho da cachoeira, antes da guerra contra os mosquitos que pareciam insaciáveis. Cada um recostado em seu canto, ao redor da fogueira cuja fumaça ajudava a espantar os pernilongos escutava as histórias de assombração, aquelas verdadeiras que os avós haviam contado. E a escuridão da mata, e o chiado da coruja, e, ao longe, a escala descendente do ouriço procurando a água, guardavam os fantasmas não muito longe dali. E adultos e crianças renovavam um pouco seus medos antigos para sentir mais uma vez os calafrios do tempo imaginário da infância. Manhãzinha, sol nascendo, nuvens vermelhas ameaçadoras: – Vamos embora que vem chuva. E se chover não sairemos deste fundo de campo. – Antes, porém, um mergulho nesta água que não nos deu peixes. E malditos sejam os mosquitos, gritou Gino. E quase ao mesmo tempo todos estavam na água. A algazarra total só poupou do banho o pai e a mãe, - com a roupa que vieram... Leonel não agüentou. Saltou também, para um refresco. E começou a chover. – Vamos, vamos, vamos.... Roupas enroladas numa lona sobre o reboque, a mãe e alguns trastes na cabine... e a cem metros o caminhão começou a patinar na grama...


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– Todos empurrando... cuidado com a derrapagem... acelera Leonel...Olha a sanga, olha o lodo.... E agora? – Vamos até a fazenda pedir uma junta de bois emprestada... O bois vieram. A chuva caía. No início uma festa no verão. Depois o encharcamento. Quatro longas horas até chegar à estrada. Mais meia hora e todos, baldes e mais baldes da água corrente do tanque de lavar roupas, para tirar um pouco do barro e a sujeira maior. – Que saudade de um café quente com bolinhos de chuva, suspira Basílio. – Enquanto vocês se lavam os bolinhos estão na mesa, respondeu Ana. E a avaliação da pescaria: – Que mico! Que indiada! Nunca mais... e os mosquitos? Que é aquilo? – É pra retemperar a saúde acudia Leonel.


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SONHO DE GURI Jandir

Longe de casa. A pobreza absoluta recolhida numa fronha, pela metade. Duas camisas de mangas curtas, duas calças de brim coringa, duas cuecas e nada mais. Os avós conduziram o menino até a porta. Padre Bento, quarentão, quase careca, jovialidade concentrada no rosto e nas mãos, recebe: – Seja bem-vindo. Os senhores são? – Somos avós. Os pais não puderam vir. Estão doentes. .. Vem sem dinheiro... mandarão depois. Cheiro de cimento e cal...Seminário por terminar: um refeitório amplo em baixo, salas de aula no segundo piso, uma capela digna de imigrantes italianos e alemães e noutra ala a clausura das irmãs junto à lavanderia e ao forno. No terceiro piso, o grande dormitório comum. No fundo do páteo, um galpão de jogos e adubos para o plantio de trigo. Quarenta e sete meninos de 11 a 12 anos em busca da quinta série do ensino primário: um vestibular para o ginásio, o exame de admissão. Vindos de muitos rincões e pequenas cidades do norte do RS, todos são novatos, inexperientes em questão de internato e organização dos estudos. Quantas brigas, quantas discussões daqueles préadolescentes em busca de um lugar e uma identidade! E todos com vocação a padre segundo declarou o vigário de cada um incentivando os pais a deixarem ir o menino para o seminário.


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Depois da janta e dos jogos e da oração na capela, todos, em silêncio para o dormitório. – É, o seminário é o espaço do silêncio e da meditação. A conversa, o buliço é para o páteo, para o recreio. Nas filas, que existem para tudo, nas salas de aula e de estudo, no dormitório e especialmente na capela, o silêncio é a regra. Até para secar a louça, a irmã Joaninha organizava o trabalho dos meninos com infindáveis e repetitivas orações de “Santo Anjo do Senhor... Ave Maria... e glórias e glórias...” – Assim se presta mais atenção e se quebra menos pratos. A irmã Joaninha, pequena, miúda, cabeça e corpo cobertos com suas vestes religiosas, era como uma irmãzinha de cada menino e sisuda como a mãe de cada um ao mesmo tempo que impunha respeito e familiaridade para aqueles pequenos órfãos. Naquela noite, longe de casa e agarrados a um sonho que os levaria não se sabe bem aonde, André sonhou: Aos pés de uma escadaria de 14 degraus ele olhava para a cruz imensa de madeira escura que se erguia no topo, à sombra da capela, cujos vitrais coloridos de vermelho, azul e amarelo estavam quebrados, com enormes, sujas e velhas teias de aranha. Lá na frente, no altar devastado pelo tempo, tremeluzia a lamparina indicando que ali estava o Santíssimo. Impossível rezar. Só vontade de livrar-se das teias de aranha. Mas aquela, em tudo era a capela do seminário, recém inaugurada. Ao acordar, André olhou para Demétrio na cama ao lado: – Tive um sonho... – Silêncio, sussurrou Demétrio, depois do café você me conta...


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– 14 degraus?...14 anos de estudo para a ordenação!? Uma cruz escura e pesada no topo? Uma igreja demolida e ultrapassada envolta em teias de aranha? Eu acho que esse é o sonho do teu medo... quando tiveres outro sonho, garanto que vai ter jogo de futebol, banho de sanga e corrida de cavalo, em pelo... Fizeram-se amigos. Até confidentes. Coisas de guri. Coisas de futuro. Coisas de distância dos olhos e das mãos protetoras da mãe. Quando as brigas por um lugar ao sol se intensificavam entre aqueles quase-adolescentes, prematuramente adultos para responder por si e por seus pais que não conseguiam pagar as mensalidades, quando o rigor do inverno os apanhava sem roupas adequadas, quando as exigências desmedidas em matemática, desenho ou geografia procurava extrair deles o que eles não tinham, quando as parcas notícias de casa indicavam problemas de saúde do pai, da mãe e dos irmãos, a cruz no alto da escadaria parecia intensificar seu peso e sua sombra.


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GOSTO DE LIBERDADE Jandir

Bagé. 1965. Uma nova diocese. Limitada pelas dioceses de Pelotas, Santa Maria e Uruguaiana e com a fronteira do Uruguai. O bispo? Um padre entusiasta da missa das crianças aos domingos na catedral de Passo Fundo. D. José Gomes. Uma realidade absolutamente nova. Seis padres velhos nas principais cidades. As paróquias não estão estruturadas em capelas como entre os imigrantes italianos e alemães na Serra. Aqui o padre, no modelo mais antiquado da Cristandade, ministra os sacramentos especialmente do batismo, do casamento, reza missas para os defuntos que essas não podem faltar, visita alguma escola para ver se alguma professora ajuda com catequese, e depois? Depois vai pescar. Como reunir o povo para catequizar, para celebrar a Páscoa, pelo menos, para evangelizar? De fazenda em fazenda, estâncias e distâncias enormes, com meia dúzia de peões que vivem, comem e dormem no galpão, com a senhora da casa vivendo com alguma filha na casa grande e o patrão quase sempre ausente, o padre tenta dar bons conselhos, consolar os aflitos pela morte de um parente próximo... Aos peões? Contar alguns “causos” da Bíblia para inculcar algumas regras morais de conduta. E aqueles infelizes que não casam porque não tem terra, não tem casa, não tem dinheiro perguntam seguidamente: – Por que o padre não casa?


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E o padre: – Ih!, se, para sustentar um padre pobretão e solteiro os fiéis gemem... com mulher e filharada, então, “adeus guaiaca do povo”. E fica por isso mesmo,como se o casamento ou não do padre fosse apenas uma questão de sustento, de guaiaca. – Mas..., – insinua caborteiro um peão xucro sentado em seu banquinho de tripé de couro, chapéu preto de abas largas quase lhe tapando os olhos, e que relincha toda vez que vê um rabo de saia... – não fazem o serviço nos padre – e faz sinal de cortar com a faca – lá no colégio? – Que nada, - responde o padre – rosto vermelho e quase deixando cair o chimarrão – a gente está inteiro, mas faz força pra se controlar... porque a natureza é a natureza!!! – Pois é... pois é. Impossível evangelizar com tão poucos padres, sem uma estrutura mínima de formação do clero, sem influir decisivamente na educação de professores a quem se possa minimamente anunciar o Evangelho de Jesus Cristo e as normas da Igreja. Era preciso criar um seminário para formar padres. Haveria vocações? Sem famílias firmemente cristãs como acontece em toda esta fronteira, sem vida de igreja, de oração, de missa dominical, como sonhar com meninos que queiram ser padres? Era preciso incitar, convocar, provocar, incentivar quem quisesse, seja lá de que condição fosse, econômica, política, social, cultural... Pode ser. E muita reza... E vieram: filhos de lavadeiras, filhos de mães solteiras, filhos de prostitutas, filhos de fazendeiros, filhos de imigrantes da Vila Nova. Quarenta e sete neste primeiro


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ano de 1965. A heterogeneidade completa, a completa mistura de cores, de costumes, a democracia cosmopolita impensável nos seminários de Passo Fundo, Erexim, Santa Maria onde os seminaristas tinham sempre o sotaque, a cor, o trejeito da enxada colona e da reunião da capela onde o padre tinha a mesma cor, o mesmo sotaque, os mesmos preconceitos que eles. Veio Caio, o “Café”, negro, gordo, folgazão e deitado nas costas dos outros. Veio o Luís, magro, alto “como vara de apanhar laranja”, com mais de um metro e setenta e apenas treze anos. Veio o Eredi, que tinha dois irmãos e nenhum deles conheciam o pai, que era diferente para cada um. Vieram dos rincões, das periferias, uns poucos de famílias mais sólidas. Vieram quarenta e sete. Vinte e sete para a primeira série ginasial e vinte para a segunda. A antiga e imponente sede dos Magalhães fora doada à Mitra para sediar o seminário. A menos de um quilômetro da Charqueada, numa esplanada vasta e aberta que deveria ter sido magnífica em suas ruelas, seus coretos em meio a laguinhos, o terreno todo drenado. Muito tempo abandonado, depois da falência, o prédio semi-destruído, ainda guardava no subsolo o algibe que apanhava as águas da chuva em meio às casas, com capacidade de 80.000 litros, agora atulhado e sujo. As amplas salas dos dois andares eram suficientes para biblioteca, duas salas de aula, um pequeno anfiteatro, a cozinha imensa com sala de jantar que daria para todos os seminaristas. Faltava um salão para dormitório, com banheiros, água encanada. Depois, já se poderia começar. O próprio bispo, bermuda e camiseta, com a ajuda de mais alguns, se pôs a cavar valas para trazer a água, a erguer o pavilhão para dormitório, a limpar, a roçar... No


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suor dele, no esforço dele, ninguém poderia dizer que o seminário não era sua mais prioritária e urgente tarefa. No dia marcado, terça feira à tarde, uma semana passada do carnaval, chegou o bando, misturando timidez, barulho e já saudade dos pais que se despediam. O acolhimento com um bom café da tarde, a apresentação de cada um, orientações fundamentais sobre a necessidade de que o grupo se quisesse bem, se ajudasse..., que todos evitassem rixas e fofocas..., os horários fundamentais: levantar às cinco e meia da manhã; meditação, oração e café, às sete horas. Das oito às onze e meia: quatro horas de aula. Depois do almoço e da arrumação da louça e da cozinha – um grupo por semana - , descanso e brinquedos até às duas. Das duas às três e meia: estudo “sério”. Café e uma hora de trabalho. Jogo, higiene...às sete: janta. Às nove e meia deitar. Para queixas, denúncias, reclamações, sugestões estava reservada a “hora da verdade”, às segundas feiras, às oito horas da noite. Ninguém receberia queixas em particular contra quem quer que fosse. Tudo devia ser feito em público para dar chance de defesa ao acusado. Primeiro dia, a tarde tranqüila, festiva, cada qual comendo os bombons, frutas e doces que as mães lhes deram. Na hora de dormir, porém, os risos serenaram. O receio, os fantasmas de estarem sós, longe de casa, desamparados, começaram a rondar os olhos e o coração daqueles meninos semi-adolescentes. – Quem vai dormir conosco lá no pavilhão? Perguntou Orlando, quase pedindo... – Ora, vocês! Cada qual deite e durma, que por aqui não há bandidos – insistia provocadoramente frei Pascásio.


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Neste alto não há mosquito. Podem deixar as persianas abertas. O ventinho da noite refresca. Quando a noite se fez inteira, sem lua e o céu esbanjando estrelas, o silêncio se aprofundou. A imaginação dos meninos foi trazendo de mansinho o fantástico escondido nos refolhos da infância. O que fazer? Encolher-se quieto debaixo do cobertor para que eles passem sobre a cama sem se aperceber de seus medos? Ou fazer ruído para espantá-los? Café, que para valentia só tinha o tamanho de seus setenta quilos, iniciou a provocação atirando o travesseiro no primeiro colega ao lado. Este resmungou, devolveu o travesseiraço acertando no terceiro. Em poucos segundos o circo do barulho estava armado. Ninguém conseguia dormir. De nada adiantava os “psiiiuu”, “cala a boca”, “vamos dormir”... No tumulto, Francisco e Neco, atravessaram o páteo, foram até o quarto do professor que dormia num quarto do sobrado: – ..fessor, tá uma bagunça aquilo lá, o Café não deixa ninguém dormir. – Uéh! Quem faz as regras lá são vocês, não foi isso que combinamos ontem? E lá se foram os dois desolados. – O professor mandou dizer que é para todos dormir e fazer silêncio! Um minuto depois a anarquia recomeçou. – Café, fica quieto. – Tu não é meu pai! Nova tentativa junto ao professor para que interferisse...e nada... Instantes depois era o Café quem batia à porta do professor: – ... fessor! ...fessor! Gritava ele em soluços.


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Ao abrir a porta, o professor se assustou. O rosto todo ensangüentado, lá estava o gorducho... – Eles me deram um tamancaço, bem aqui no nariz... – Então esta sanguera toda é apenas sangue de nariz! Vai lavar esta cara ali na pia que logo tudo passa. Examinou mais atentamente e o professor viu que nada de grave acontecera. – Agora vá para a cama e não volte a incomodar. – Foi um santo remédio, comentavam os outros no dia seguinte. Aos poucos eles aprendiam que não haveria normas sobre eles, a não ser as muito gerais de funcionamento da casa, mas que eles próprios deveriam organizar as regras da convivência. O pressuposto era simples: o grupo que elabora as normas de sua vida, tem, no próprio grupo a legitimidade e a autoridade para exigir seu cumprimento. Foi assim, que na segunda à noite vieram sugestões de normas aos borbotões: no dormitório haveria silêncio absoluto, luz apagada, até a hora de levantar... Pascásio apenas observava: e, se alguém tiver dor de barriga, se alguém precisar ir ao banheiro... sai tropeçando nas camas na escuridão? E se alguém precisar de ajuda? Aos poucos o ímpeto extremista daqueles adolescentes, cedia à razoabilidade... – Então, quem sabe, a cada semana um fica de responsável para atender as primeiras necessidades, ou avisar o professor e frei Pascásio...? Quem sabe uma lâmpada fraquinha ilumine um pouco o dormitório? Quem sabe as pessoas falem baixinho para não acordar os outros? Quem sabe...? Quem sabe...? Assim organizaram-se os grupos que, semanalmente, em rodízio, ajudavam a cozinheira a preparar as refeições e a lavar a louca, a fazer o pão no


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forno de barro, pão que servia também a dois orfanatos da cidade. Pão gostoso, fofo e bem crescido segundo orientava um soldado cujo pai tinha padaria lá na Serra. Outro grupo limpava o chão e os banheiros, outro organizava as meditações e as liturgias, outro lavava a roupa de todos, etc. A despensa sempre aberta atestava a evolução psicológica daqueles meninos. O consumo de pão e alimentos no primeiro mês foi duas vezes superior ao do terceiro mês. A saudade, a insegurança, o medo era afogado no pão. A alegria da convivência grupal substituía aos poucos o pão e a muita comida. Frei Pascásio, perspicaz educador, comentava: “não só de pão vive o homem”... Ninguém viveria de graça no seminário. A pensão era de vinte reais por semana. Como pagar? A resposta era só uma: com o próprio trabalho. E o trabalho consistia em: freqüentar as quatro aulas pela manhã, estudar uma hora e meia à tarde e noitinha, e desempenhar as tarefas destinadas ao grupo naquela semana. Deveriam ainda, em conjunto, arrumar os canteiros da horta, limpar o campo de futebol. O pagamento desse trabalho, que cada um anotava em sua caderneta, era de vinte e cinco reais. Cinco reais para um cinema, um refrigerante e alguma guloseima. Ao final da manhã de sábado cada qual fazia o cálculo das horas trabalhadas, pois, poderia ser acrescida até três horas-extra por semana, rendendo mais dois reais. O professor conferia a caderneta e pagava o estudante que, ia até o ecônomo pagar sua pensão semanal. Quem, não tivesse dinheiro, tinha o prazo de uma semana para quitar seu débito. Ninguém receberia dinheiro de fora. Se os pais quisessem contribuir, davam o dinheiro ao seminário que pagava os alunos conforme seus trabalhos.


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Foi assim que, Café e Eduardo, este último filho de um grande fazendeiro, resolveram pescar no arroio que passava aos fundos, ao invés de ir à aula. Fizeram isto durante três dias. Trouxeram um peixinhos que comeram a sós, acintosamente, diante dos outros. O acerto de contas de sábado indicou que eles tinham quinze reais a receber. Como pagar a pensão? Frei Pascásio lembrou a regra: uma semana para quitar o débito. Naquele domingo o Internacional de Porto Alegre jogava partida decisiva do campeonato com o Guarani em Bagé. Todos estavam ansiosos para ir ao jogo. Entrada? Dois e cinqüenta. Café e Eduardo não tinham dinheiro. Tentaram pedir emprestado. Ninguém tinha sobrando. E lá ficaram os dois a recuperar as horas que perderam na pescaria. Estudaram o domingo todo e fizeram as horas-extra da semana para nivelar débitos e créditos. Na segunda feira à noite ninguém falou sobre o caso. Censura? Para que? A liberdade? Ah, a liberdade! Tonico e Celso, como a maioria, domingo à tarde, foram comer sorvetes no centro. Já noite foram ver um filme que, suspeitavam, seria picante. O filme terminou às onze e meia. O último ônibus para a Charqueada recém saíra. E agora? São seis quilômetros. Voltaram felizes e cansados pelos trilhos do trem. Janta? Fritaram uns ovos, pão e leite. Deixaram a louça suja em cima do fogão e foram dormir. De manhã, ao preparar o café, o grupo da cozinha, detectou a sujeira. Era fácil saber quem foi. Mas ninguém piou. Na “hora da verdade”, dava pena ouvir as acusações contra a desordem deixada. Reconhecendo a culpa os dois


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pediram ao grande grupo que lhes desse um castigo. Eles mereciam. Foi então que a solidariedade grupal se mostrou em toda a sua legitimidade: – O quê? Nós ainda teremos o trabalho de escolher um castigo para aplicar em vocês? Vocês é que devem saber! – Quem sabe nós faremos uma rifa para pagar o ônibus do time da Vila do Torrão que convidamos para jogar daqui a quinze dias? Silêncio. E organizaram a rifa até conseguir trazer o time. Enquanto isso Nico e Afonso lembravam do baile de São João. Animação na vila de Santa Tereza da Charqueada. No salão da antiga igreja que era escola, haveria um baile. Entre os seminaristas pairava a dúvida. – ...fessor, a gente pode ir pro baile? Arriscou timidamente Nico. – Mas por que vocês perguntam? As normas que nós organizamos juntos, prevêem a proibição de ir ao baile? – Não! Mas sabe né... a gente...a gente é seminarista! – Quem sabe se vocês podem ou devem ir ao baile são vocês mesmos. Vocês querem que a gente seja a justificativa para não pensar e decidir? Seis seminaristas no baile. O professor também. Num canto da sala, sorvia uma cerveja, enquanto acompanhava seu pequeno grupo. Eram menores. A lei exigia. A certa altura, no meio da sala, Neco e Afonso discutiam, dedo em riste, quase ao ponto dos sopapos, por causa de uma menina.


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O professor aproximou-se. Eles pararam. – Vamos embora. Já passou da meia noite. Olhos relampejando, mas sem dizer uma palavra, voltaram. Entre todos a expectativa pela palavra do professor. Esse nada falou senão: – Boa noite! – Boa noite, todos responderam em meio à desilusão... Segunda à noite. – Alguém tem algo a dizer, a propor, a reclamar? Perguntou o frei. – Ah, eu tenho, - saltou Aristeu. Engoliu a saliva. Estava um pouco pálido. – Sábado, no baile, eu senti vergonha de ser seminarista. Eu não imaginava que o Neco e o Afonso tivessem a cara de pau de brigar no meio do salão. E brigar por uma menina como a Dilcéia, que é nossa amiga e colega. Uma menina correta, boa, simples. Não sei o que eles pensaram: como dois machos a brigar por uma fêmea. Que vergonha! Ao invés de dançar e brincar com todos, foram disputar um par. A gente sabe que está no seminário para estudar para padre. Sabe que a Igreja, por enquanto, não permite que os padres casem. Se isto está certo ou errado não interessa. O que vale é que esta é a regra. Se quisermos ser padres sabemos que não podemos casar. Ora, ora, ora, e se não casaremos, para que iludir uma menina cheia de vida e de sonhos prometendo a ela o que não daremos? A não ser que queiramos casar, então devemos ir embora daqui. Eu senti uma coisa mentirosa no ar. Senti vergonha. O silêncio dependurado acima das cabeças e em baixo dos pés, deixava a todos em suspenso... – Mais alguém quer falar? Ninguém fez menção.


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– E vocês que foram acusados, o que têm a dizer? – Pois é, iniciou Nico. A gente não pensou. Foi inconseqüente. Burro. Criamos um problema pra muita gente. Pra Dilcéia. Pros pais dela. Pros colegas... – E pra vocês não criaram problema nenhum? Acrescentou Anselmo. – Nós vamos ter que pedir desculpas pra ela. Mesmo que seja difícil distinguir amizade e paixão. A meditação do dia seguinte foi sobre o sexo, a atração sexual como um dom fabuloso que Deus deu aos homens e que é preciso resguardá-lo no respeito e no pudor para que ele possa manifestar o rosto e o convite de Deus e dos homens. Como? Cada um pense o caminho. Dos quarenta e sete, poucos ficaram padres. Muitos ficaram amigos. Muitos guardam com saudade um começo de esperança e liberdade.


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MORENA Jandir

A cuia pequena, morena, cabe bem na palma da mão. Erva verdíssima em colmo. Bomba de prata com bocal de ouro. Olhos perdidos no verde escuro da mata cerrada que cobre as montanhas abruptas da boca do vulcão há milhões de anos adormecido. Uma nuvenzinha branca passeia pela metade do morro destacando ainda mais a mata, o céu e o silêncio. Intimidade de cratera, montanha, verde e memórias. Cabelos tingidos de preto para disfarçar a idade. Pele com algumas cicatrizes do tempo e alisada com cosméticos perfumados. A nova vida é armada com todos os cuidados. Nem sempre os filhos aprovam a liberdade dos pais. É preciso não machucar os próximos e encontrar um espaço para respirar. Morena, assim a chamou desde pequena o pai, busca um riso novo, uma risada plena. É preciso fazer da vida uma risada plena. É preciso inventar a vida que contenha, não apenas os seis primeiros dias da criação, mas também o sétimo, o do domingo, o dia da festa, do encontro com os outros e com Deus. Ensaia canções antigas, com cada irmão que encontra, em sua bela voz de soprano... Falta porém, alguma coisa. Uma sensação incômoda de que a vida lhe deve. Que todos lhe devem alguma coisa. E ela não sabe se o essencial é cobrar, exigir ou doar, perdoar. Busca retornar à infância. Pouco restou de feliz.


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E a infelicidade ela resolveu esquecer, sepultar, abandonar. Afinal, para que servem memórias tristes? Duríssima era a lida da roça. Sempre o foi. Recorda o que a mãe contava. A dureza de seus primeiros anos de casamento. A labuta desde antes de clarear o dia até bem entrada a noite. Não tinham terra. A terra era cedida, à meia. A mãe casou quase de improviso porque seus pais mudavam-se para a colônia nova que se abrira ao norte do Estado, no Paiol Grande, Erexim em direção à costa do rio Uruguai. Seis anos de trabalho desumano, plantando feijão, milho na terra dos outros. Na colheita por melhor que fosse a safra, pouco restava ao casal que já tinha quatro filhos. Era preciso sair daquela vida. O suor misturado com injustiça doía demais. Um caminhão em sociedade com dois parentes poderia render muito mais, resolveu o pai. Dois anos de barro, chuva, atoleiros transportando madeira do planalto para as margens do Taquari. Noites ao relento, sem alimento e agasalhos, poupando até os centavos para obter dinheiro para uma colônia de terras, terras novas lá perto do sogro. Amigos e parentes se evolavam para lá. Por fim, o pai vende o caminhão aos outros sócios, e compra seus trinta hectares de terra negra, fértil, com matas, pássaros e caça, na linha Pinhão. – Vamos embora, a mudança a gente amontoa no caminhão. Uma lona cobrirá tudo. A impaciência da mudança. O verão está passando. Tudo empacotado esperando o dia apropriado. Era preciso preparar a terra, antes do inverno, para semear o trigo. E os dias estão passando.


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Morena, a menor dos quatro filhos, com seis meses, está mal. Fraca, com tosse, está mirrando. – Não passará desta semana – dizia o médico. Ana, na angústia renovada de já ter perdido o segundo filho, braços caídos ante a impotência de salvar a filha, reza... Uma reza funda, absoluta, que sempre culminava na entrega a Deus: “sia fatta la volontà di Dio”. Que sofrimento ver um filho sofrer! E tão pequeno. Tão franzino. Uma casquinha de vida. A semana passou. O domingo chegou. A situação da menina não muda. Esperar? Continuar a esperar? Na hora da sopa da noite, o pai encara a mãe com resolução: – Amanhã vamos embora. Não adianta esperar. Ela não morreu até agora, pode ser que se recupere noutro lugar. – Mas, se morrer no caminho? - geme aflita aquela mãe. – Oh, enterraremos ela onde morrer. – Em qualquer valeta!?, suspira a mãe. – Enterrada aqui ou em qualquer outro lugar, um anjinho desses vai para o céu de qualquer forma. Caminhão carregado com os poucos trastes. Ameaça chuva. Um argumento a mais para não pensar na agonia da filha. – Vamos, depressa que já vai chover. Precisamos estar em Passo Fundo antes da chuva. O lodaçal de terra vermelha é impraticável. A despedida não era alegre. Nos olhos abertos de cada um, a interrogação: o que será? Loucura? Só as crianças pareciam não perceber. Localizadas na carroceria aberta do caminhão, gritavam e abanavam, como se estivessem indo a um passeio.


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Vencida a tortuosa e pedregosa subida da Guabiroba, um precipício só, do começo ao fim, agora, já na beirinha do planalto, Ana grita a Nelo: – Pára, pára um pouco..., Nelo! Olha só! E apontava para a cabecinha da filha, que, lânguida, já não se movia há uma semana... Morena ergueu a cabeça como se recuperasse a vida, abriu os olhos e chorou. Ana chorou de alegria na cabine do velho Chevrolet. – Ela está viva, ela está viva, bendito seja Deus! – Não te disse que o ar puro aqui de cima lhe faria bem? – comentou Nelo, para achar uma desculpa em meio a tanta aflição. E começou a assobiar “Saudades do matão...” Tarde da noite, e com a bênção de não terem apanhado chuva, Nelo encosta o caminhão no hotelzinho muito conhecido de suas viagens de transporte de madeira, em Getúlio Vargas. Mariana, gorda senhora dona do hotel, apressou-se a preparar uma sopa quente, e um leitinho para a pequena. Ana não se continha de alegria, muito embora a outra filha estivesse um pouco desarranjada. À tarde do dia seguinte chegavam na Barra do Rio Azul e na linha Pinhão. Cuia na mão, Morena recolhe essa memória original e originária. Triste, mas cheia de vida. Lembra, depois, a vida rústica do Bentevi. Acompanhar os irmos mais velhos em todas as lidas: cuidar dos pintos e galinhas, buscar água na fonte com baldes mais pesados do que agüentavam suas forças, buscar lenha, ir à roça capinar.... E quando os irmãos mais velhos saíram para estudar, ela, com onze anos ficou a responsável por todas as


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tarefas, por toda a escadinha de irmãos que vinha abaixo. Se não podia arar com os bois, podia carregar a carroça de pasto e abóboras, podia encher os balaios de espigas de milho e carregar a carroça enquanto o pai amontoava o milho quebrado. A carroça que tombou lá na eira de mandioca: ela, literalmente presa na caixa tombada, sem ter a quem recorrer. Com uma pedra cava uma toca para sair lá debaixo. E saiu. Gritou pelo pai. Recebeu a maior repreensão por não ter governado corretamente os bois. Foi injusta a surra. Foi injusta a repreensão. Ainda hoje dói. Carregar peso, sempre acima das forças, ir ao moinho distante quatorze quilômetros e retornando à noite, sozinha, sem tempo para lembrar que estava com frio ou com fome, com os medos tranzindo-lhe a alma pequena. Tantos trabalhos, tantas cicatrizes, nem lhe permitem lembrar a doçura do colo do pai sempre reservado para a sua Morena. Tanto era o privilégio que fazia inveja às outras irmãs. Privilégio? Compensação? Pagamento para tornar possível uma nova dívida? Amar e castigar tanto, parece dialética inconciliável às memórias da mulher madura, com seu chimarrão. Por que será que, em tantas famílias de imigrantes italianos os filhos deviam suportar tanto rigor, tanta cicatriz do trabalho? Tempos difíceis aqueles! Cicatrizes na alma. E quando Morena beirava os quinze, a faina de casa, em Guamirim, tornou-se insuportável. Cuidar da roça? Cuidar do açougue? Cuidar dos irmãos menores? Sem tempo para estudar, sem tempo para sonhar? Apenas trabalhar? Cumprir o dever e sempre dever mais? Sete horas de uma manhã de primavera. – Pai, estou indo para a cidade à procura de um emprego.


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Nelo, atônito, procurou os olhos de Ana para buscar alguma razão e só encontrou neles o gesto materno, o gesto que vem das entranhas: – Fazer o que? Deixa-a ir, váh. Nelo nem se despediu. E ela, com um trocado alcançado pela mãe conseguiu meia passagem, a outra, Popo o motorista do velho ônibus, deu-lhe de presente. E foi para a liberdade, para a escuridão da incerteza. Trabalhar como empregada doméstica, qualquer trabalho, para poder estudar. E na constância teimosa de todos os dias, conseguiu o segundo grau, apesar da carência de tantos anos sem estudar. Apesar do português sofrível, que sempre lhe barraria a Universidade. Mas tinha aprendido a enfrentar cada dificuldade, cada contratempo. Uma oportunidade? E lá estava ela com seu currículo. Afinal, aprendera na pele, na carne, nos ossos e na alma o que é auto-determinar-se. Que a vida deve ser inventada e governada. Queria um lugar ao sol. Um pouco de paz depois de tanta turbulência. Casar? Bem que lhe era um sonho. Mas, com alguém que a subordinasse como sabia de sua mãe e de sua própria experiência? Começou a perceber sua beleza e cuidar dela com redobrado esforço. Era um trunfo para um casamento. Os jovens, porém, temiam sua auto-determinação. Era difícil quebrar aquele braço forte. Era melhor buscar um carinho mais dócil. Os inconseqüentes ela não queria. Um velho enamorou-se de sua beleza, de sua jovialidade, de sua comunicabilidade. Propôs-lhe


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casamento em troca de toda a sua fortuna. Ela pensou, meditou, falou, ouviu a mãe: – O que vale na vida é o amor, minha filha. Até que um dia o chefe de seu setor de trabalho, rapaz bem apessoado, aproximou-se de sua vida. Gostou dele. Ainda hoje não consegue lembrar bem se estava apaixonada por ele. Se era amor, necessidade, carência. Mas ele era jovem. Tinha a segurança econômica que ela nunca experimentara. Era agradável e culto. E, quem nos poderá dizer quando efetivamente amamos? E, como ouvira tantas vezes dizer entre as mulheres italianas, pensou: o amor amadurece com a convivência. O tempo transformará o gostar em amar. Vieram os filhos. E o tempo não amadurecia o amor. Havia demasiada cobrança e, nada pior para o amor do que a cobrança. Transforma a espontaneidade gratuita do amor em comércio. Em violência que destrói o poder. E o poder do amor descamba em burocracia, em normatização, em mesmidade que chateia e aborrece, tanto aquele que dá como aquele que recebe. Vivia bem. A casa fornida, linda, limpa, organizada. Era bom receber os amigos. Bom ir à missa com o marido e os filhos. Bom sentir-se entre os principais da cidade. O esporte e o social serviram de refúgio para tantas horas... Por fim, em meio a tantos trabalhos, ele adoeceu. Redobraram os cuidados, os deveres, as cobranças. E o coração gasto, enferidado, estiolado e murcho deu sinal de alerta. Morrer? Enterrar-se? Ou buscar uma última luz no entardecer? E o tempo amadureceu nela a vontade de um amor que fosse real.


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Na cuia do chimarrão empilham-se tantos pensamentos. Memórias e esperanças com um gosto amargo e gostoso de sorver.


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O BRIQUE POLÍTICO Jandir

– Trabalhar como empregado? Patrão? Horário? Normas e xingamentos? Dobrar o lombo para que os outros batam? E vendo a exploração, o roubo que fazem do produto que você criou? Não foi isto que meu pai me ensinou, comenta Leonel a seu filho. Numa casa simples de madeira, alugada, com ampla garagem e páteo, Leonel pensa instalar um brique, compra e venda de coisas velhas e que tenham alguma serventia. Assim gastará seu tempo de aposentado: contribuiu sobre dez salários mínimos e agora só recebe três e meio da Previdência. – Eu sempre trabalhei de sol a sol, de escuro a escuro, como agricultor, pequeno criador de gado e de suínos, caminhoneiro, açougueiro, pequeno comerciante, bolicheiro do interior. Sei muito bem o que é trabalhar e suar. Sempre fui pobre com meus filhos. Sempre cumpri com minhas obrigações. Não devo nada a ninguém. E vocês me sugerem trabalhar como guarda de um clube? Para acatar ordens de quem não sabe dar ordens? Meu bisavô, meu avô quando vieram da Itália, meu pai e meus tios jamais aceitaram trabalhar como empregados. Os brasileiros pensavam que eles viriam para substituir escravos. Enganaram-se, e feio. Eu nasci pra mandar no meu nariz, pra colaborar em tudo com meus amigos, com minha comunidade, pra ser responsável com minha família, e ajudar um pouco àqueles que têm menos. Mas ser


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empregado, não! Definitivamente, não, discursava este homem ante o sonho de seu pequeno bolicho. – Pretensioso! Exclamou Ana, ao servir-lhe carinhosamente um chimarrão. Todos trabalham como empregados. E não perdem pedaço. Outros suplicam por um emprego. O governo promete e não dá. E tu não aceitas nem o de vigia que não exige esforço! – Garanto que ganharei mais com meu brique! – Não quero duvidar de tua capacidade de fazer negócios, arrematou Ana, mas até hoje não vi ninguém enriquecer com isso! – Mas quem quer enriquecer? Você já viu um rico feliz? Nem tempo tem para fazer um churrasquinho com seus amigos. Porque ele não tem amigos. Só tem invejosos ou puxa-sacos. E eu sempre soube que todo “lambe botas” sempre traz às costas uma adaga para a traição. Prefiro liberdade e lealdade à riqueza. Uma semana depois lá estava ele, comprando bicicletas, armários, pias, fogões, cadeiras, mesinhas, lustres, máquinas de costura singer movidas a mão, panelas de ferro, balanças, lampiões, penicos, vasos sanitários, portas, janelas, uma quinquilharia que ele ia depositando, dependurando, organizando no espaço que tinha. Gino, quando viu as aquisições do pai recomendou logo: – Peça recibo de tudo... nunca se sabe se não é roubado! Cada cliente que chegasse para perguntar, para vender, para comprar, para trocar, era uma hora de prosa. A conversa quase sempre iniciava com observações sobre o preço das coisas, o pouco dinheiro, a mentira do governo de que tudo está bem, as dificuldades dos pobres... para voltar-se incisiva sobre os políticos, os projetos de governo, sobre a honestidade deles e terminava com


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vituperações sobre os pobres que se deixam enganar, que não acreditam nos que lutam ao lado deles e a necessidade de saber quem é quem para as próximas eleições. As últimas notícias de rádio, TV e algum jornal eram repassadas de boca a boca. Muito mais que um negócio, o brique era uma escola. Ana, sempre por perto, conversava com as mulheres, sobre o jeito de criar os filhos, de ter princípios de vida, ao mesmo tempo que sabia de suas doenças e penúrias e procurava encaminhar alguma solução. Aos poucos o brique se tornava ponto de referência até para conferir os preços das coisas, coisas novas e usadas: o material de que eram feitas, o acabamento e a estética, a utilidade e a beleza das coisas. Leonel tornava-se, para aqueles pobres, um homem confiável. É verdade que ele lucrava um pouco: comprava por dez e vendia por quinze em três vezes. Sem formalidades, sem papel, tudo na confiança. Raramente alguém deixava de pagar suas prestações. Se atrasava, pedia mais uns dias. Tudo se acertava. Cada contato, porém, era espichado para o debate das questões econômicas, políticas, sociais, culturais e até religiosas. Entre aquela gente, na singeleza de seus pequenos negócios, Leonel, que só tinha o segundo livro de escolaridade, mas que entendia no âmago os grandes desafios da vida humana, sentia-se feliz. Muitas vezes, ao remexer suas velhas e gastas mercadorias, surpreendia-se assobiando uma canção de juventude. Um dia a camioneta da polícia encostou. – Seu Leonel, o senhor tem uma bicicleta monark, vermelha e sem o porta-mala? – Tinha. Comprei ontem. Vendi ontem. Comprei por 45 e vendi por 50. Por que?


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– Porque a bicicleta era roubada. Não foi um rapaz magro e alto que lhe vendeu? O senhor pegou recibo dele? Leonel percebeu a enrascada em que se metera. Tentou disfarçar: – Mas não seja por isso. Eu sei para quem vendi. Mora a uma quadra daqui. Vamos até lá. Se a bicicleta foi roubada eu devolvo os 50 ao Xico e os senhores devolvem a bicicleta a seu verdadeiro dono. – O problema não é só este seu Leonel! É que comprar de um ladrão é crime. Crime de receptação. – Receptação? Que é isso? Eu nunca roubei nada de ninguém. – Éh! Mas o senhor vai ter que ir até a Delegacia! – Delegacia? Leonel não sabia se embrabecia, se ficava calmo, se deveria levantar a voz... Naquele instante chegou Otelmo, o delegado. – Que está acontecendo aqui? – É que o seu Leonel, sem querer, foi receptador de uma bicicleta roubada... – Que bicicleta é? – Uma bicicleta velha. Ele se propõe a reavê-la e devolver. – Está bem, seu Leonel, o senhor nos entrega a bicicleta até amanhã na Delegacia e está livre. Mas cuide de sempre comprar com recibo. E se aparecer um fogão usado em ordem, me avise, que eu preciso comprar um. No dia seguinte, a agenda de discussões políticas no brique de Leonel incorporou o código penal inteiro: – É revoltante que a polícia e o governo dêem tanta atenção a roubos insignificantes que os pobres e miseráveis praticam e fecham os olhos para os crimes dos grandes, crime do colarinho branco, às falcatruas de milhões e milhões destinados à saúde, à educação, à habitação.


Contos – causos e prosas

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– É verdade que não está certo roubar muito ou pouco, seja de quem quiser, acrescentou Ana, que nunca ficava longe dos debates. Mas é injusto que só os pobres, os negros sejam presos e julgados. – E a impunidade incentiva o crime, acrescentava Leonel. Lembrava então dos tempos em que fora vereador de Fontoura Xavier, quando o trabalho de vereador era gratuito e uma honra, em que haviam sugerido a todos os convocados para compor o júri por crimes de morte de ser duros com os assassinos. Em pouco tempo a criminalidade diminuiu exemplarmente. – Grandes mesmo foram Getúlio e Brizola, meu tocaio, pontificava Leonel. Não perdia uma fala radiofônica nas sextas à noite na época da Legalidade, vocês se lembram? A gente aprendia. Como devia ser a reforma agrária, a reforma dos bancos que agora riem da nossa pobreza, a reforma da educação... Vocês lembram das “brizoletas” aquelas escolinhas esparramadas por todo o interior do Estado? Era uma professora, seus alunos, seu salário, e todos aprendiam. E quando saíram do governo saíram mais pobres do que entraram. – Mas como era a reforma agrária?, perguntava o Bastião. Eu não me lembro como era. Sei que tinha grupo de “onze” que chamavam de comunista. – Vocês não se lembram da reforma do Banhado do Colégio ali em Camaquã, da reforma que ele começou em Nonoai, das desapropriações que ele iniciou para assentar os filhos de colono que precisavam de terra para trabalhar? Não é como agora que o governo distribui terra e dinheiro para quem nunca pegou numa enxada, só porque são do partido dele!


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– Eu ouvi falar. Até me convidaram pra formar um grupo de invasão, disse seu Zé. Mas eu nunca fui agricultor. Tive medo dos banditismos. Assim, entre quatro cadeiras trocadas por um balcão, uma geladeira velha trocada por um fogão e uma pequena volta em dinheiro, a conversa corria solta, politizada. Seguidamente dois ou três chegavam apenas para ouvir o seu “brizola” e repartir alguma opinião. Quando algum político se achegava com ares de amigo, Leonel recolhia suas conversas, procurava aprumar-se em alguma formalidade neutra e só discutia o que ele ouvia do povo e das necessidades dos mais pobres. A liberdade de Leonel, em seu brique, era uma escola onde ética e política sempre teimavam em andar juntas. Os netos escutavam e aprendiam da vida daquele avô transformada em causos.


Contos – causos e prosas

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MARIOTA Jandir

Mariota, 96 anos, voltou cedo naquele domingo. Fora a Carazinho para o casamento do neto Volmar, filho de Alcides, o oitavo dos doze filhos que tivera. Dançara a noite inteira, com cada um dos netos presentes. Mais de 40 dos 89 espalhados pelo mundo. E não sentia cansaço nenhum. Uma leveza imensa serenava a alma. Voltava feliz. – Que bênção, uma família grande e unida!, comentava ao filho Agenor quando dobravam de Lajeado a Encantado pelas margens do Taquari. – Tem almoço pra mais gente? , foi gritando Agenor quando chegavam na casa antiga dos Zanotelli onde ela morava com a filha Ida. – E tem uma canja saborosa para quem esbanjou comilança no casamento ontem, respondeu Ida. – De fato, o churrasco estava bom, bom, bom. E a cerveja preta foi por demais, disse Mariota. À tarde, depois de uma longa sesta, sentada na varanda, olhava o entardecer com uma ternura radical. As sombras espichavam-se morro acima. O silêncio recolhia todas as vozes e movimentos e as estrelas surgiram em procissão por detrás do morro anunciando a paz. Enquanto a filha organizava a cozinha e o genro servia um chimarrão, suas lembranças esparramaram-se pelo vale à procura da origem e do originário. Lembrou seus tempos de menina, de mocinha, o casamento, os doze filhos, a multidão de netos dos quais


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nem lembrava certo o nome, mas cujo rosto e presença eram tão queridos. Lembrou as bodas de ouro, com a presença de seus oito irmãos, o Marqueto com noventa e oito anos e como cantaram juntos o dia inteiro, tomando vinho e sucos. Lembrou a curta doença e a viagem de João, seu marido, para a casa definitiva de Deus. Um nó na garganta quase não a deixava engolir seu chimarrão: já são vinte anos, mas parece que foi ontem. Um sorriso brejeiro passou-lhe pelo rosto quando lembrava as tardes em que tomava o ônibus urbano e fugia para Encantado para jogar bisca e tomar cerveja preta com Alfredo, um amor da adolescência. Agora ambos com mais de noventa anos poderiam permitir-se pelo menos ser bons amigos. Jogavam duas ou três horas, numa mesa da praça sombreada por frondoso ingazeiro, sem que ninguém os perturbasse, sem que ninguém estranhasse. Quando a filha preocupada, seguiu-a de longe, descobriu o motivo das escapadas. Ria para si própria da mãe que ainda guardava vivo um amor tão longínquo. Nunca disse nada à mãe, nem esta prestou contas ou pediu licença. Simplesmente ia, na liberdade de ir. Mas a memória mais quente, mais viva, vinha dos tempos primeiros. Mariota era a oitava de nove irmãos. Lugar privilegiado. Protegida contra os trabalhos mais pesados, as responsabilidades maiores e as repreensões mais ásperas que os mais velhos já haviam suportado e também contra os ciúmes de ser a última, a dengosa, a mimada, não sabendo bem qual o espaço que lhe tocaria. Tinha tempo para seus brinquedos, para suas imaginações e pequenas desobediências. Assim cresceu protegida em seus cismares no sobrado amplo de madeira sobranceiro no barranco do arroio Argola. Três quartos, cozinha e ampla sala em baixo.


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Em cima dois quartos para os rapazes e espaço para guardar coisas velhas. Casa quase igual a dos visinhos Zanotelli que ainda tinha um porão elevado para cantina com suas pipas e salames e para galpão com sua carreta, arreiames. João, o último dos quatorze filhos de Narciso Zanotelli caia-lhe bem na vista. Sisudo, pouco falante, cumpridor de todos os deveres, era afável, com a simpatia de quem está perto e rente, banhando-lhe os olhos e o rosto largo. Caía-lhe bem na alma aquele garoto forte que inspirava segurança e tranqüilidade. O coração de Mariota sonhava frequentemente banhar-se naquele lago sereno e que, certamente, tinha muito peixe na profundidade. Naquela tarde de domingo primaveril quando saíam da capela, após o terço e as litânias cantadas, o braço peludo dele roçou, como por acaso, no braço dela e Mariota sentiu um arrepio estranho a perpassar-lhe o corpo inteiro. Corou. Mas olhou para o outro lado para que ninguém percebesse a atrapalhação das mãos, dos pés e do rosário que quase lhe caía das mãos. João que quase quis se desculpar, não conseguiu articular palavra e disfarçou convidando o amigo Luís para uma cerveja. Mas ela ainda teve tempo para notar que algo se mexeu abaixo da cintura dela. Mas, não quis pensar, afastou com severidade aquela tentação. Esguia, olhos ligeiros, provocadores e tímidos, ela imaginava que algo bailava no pensamento, na fantasia dele fazendo-o perder-se pelas nuvens, florestas, imensidões. Efetivamente, aqueles cabelos negros, soltos sobre os ombros, ondulando ao vento, perseguiam a visão do rapaz. Ao subir o morro, em sua carroça, ainda madrugada João bendizia o vento fresco que lhe acariciava o rosto e lhe retirava um pouco das tentações que à noite sonhara.


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Mariota não disse nada. Ajudando a mãe a limpar a casa, a servir o café, a encaminhar o almoço, a recolher a roupa para lavar no arroio, surpreendeu-se várias vezes entoando canções que quase já não lembrava, só para dar um pouco de folga aos pensamentos e ao coração. A mãe pescou-lhe a divagação nos olhos e sorriu. João, arando a roça nova, lá no alto, percorria com o olhar atento a lavoura dos Agostini. Só via os irmãos. Ela não estava. Deveria ter ficado em casa. Mas, também, de nada adiantaria vê-la de tão longe. À noite, inventaria qualquer pretexto para ir até a venda de Jacarezinho. Assim, passaria, de vagar, em frente à casa dela e se a visse, esporearia seu cavalo para dizer, mentindo, que estaria com pressa. Domingo seguinte, festa de São Carlos padroeiro da capela de Jacarezinho. A missa iniciou às dez. Não havia lugar para todos nos bancos da igrejinha. João agarrou-se ao pretexto: os bancos para os mais velhos e crianças, o educação recomenda. Assim, de pé, no fundo do corredor, João podia contemplar, sem movimentos bruscos e como se não estivesse distraído das orações e da prédica, aquele anjo, - nem tão anjo assim, como depois dizia -, tão devoto, de rosário entre as mãos, livrinho preto das orações, de véu branco cobrindo-lhe a cabeça, sem esconder, porém, os cachos de cabelos que lhe emolduravam as espáduas. Depois do almoço nos barracões da Igreja, aproveitando a chance de ela estar por perto como quem, distraidamente, vai buscar qualquer coisa ou chamar alguém, João perguntou-lhe, como se fosse por simples amizade, se ele poderia oferecer-lhe uma gasosa. Mariota enrubesceu, gaguejou, baixou a cabeça e disse que sim. E lá se foi João, peito erguido, vitorioso, desconversando...


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O namoro? Quanta timidez! Quanta vigilância. Visitas? Só quinta à noite. Pouco mais de meia hora, porque no dia seguinte deveriam trabalhar. O noivado? Os pais acertaram tudo com um trago de graspa na venda do Picinini. E então eles casaram. Mesmo que Mariota tivesse um gosto secreto, jamais declarado por Pedrinho, o amor viria com a convivência. Tomando o chimarrão e olhando para os morros, no outro lado do Jacarezinho, Mariota ria da lembrança do susto da primeira noite. Nenhum dos dois sabia bem como fazer. Foi tudo na intuição mesmo. Vieram os filhos, quanto trabalho, quantos erros em querer impor demasiada disciplina e ordem. O amor ia superando e arranjando tudo. Lembrava da maldade que fizera e pela qual nunca pedira perdão nem a João nem a seus amigos. Quatro amigos do marido, infalivelmente, todos os domingos, depois das correrias das caçadas desde a madrugada arranchavam na casa deles para o almoço. Esfolavam as lebres perto do tanque de lavar roupas, contando em voz alta as façanhas da manhã. E cada qual trazia dois ou três cães. Era preciso preparar comida também para eles. Mariota pensava: almoço para os caçadores, ainda passa. Mas almoço para os cães, gastando com eles o que faltaria talvez para o bem estar dos filhos? Isto não! Enquanto João almoçava com os amigos na sala, ela levou a panela de comida para os cães. Esperou um pouco. E quando eles começaram a tombar em convulsão, ela entrou em casa correndo: – Acudam, acudam! Uma cobra pegou os cachorros! – Mas a todos? Uma cobra só?


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A pergunta ficou no ar. Ninguém quis responder. Nem a suspeita foi expressa. Nos domingos seguintes as caçadas minguaram, morreram. – Que maldade!, pensava Mariota. Lembrava também do parto, do nascimento, do crescimento de cada filho, com suas dores de barriga, seus chás, suas gripes e, felizmente, todos fortes e ainda vivos. Lembrava da neta que se preparava para ingressar na Medicina. Empolgada com seus estudos, comentara sisuda, amparada em todas as ciências: – Sabe vó, que cada gestação e parto é quase uma morte para o organismo da mãe? Eu fico pensando em ti que tiveste doze filhos... E ela, sorrindo maternal, do alto de seus 96 anos saudáveis e lúcidos: - Mas, minha neta, existe por acaso melhor modo de viver do que morrer deste jeito? ............................................................. Fez-se um silêncio longo na varanda, todo preenchido de presença e vida... Mariota de cuia na mão... – Em que está pensando, sogra?, perguntou-lhe Arlindo, vendo-a tão solta no horizonte. – Estou rindo das lembranças. A vida é uma bênção. – Uma bênção e um compromisso, completou o genro. Aquela noite foi tranqüila. Acordou tarde. O sol já ia alto quando a filha veio perguntar se queria o café na cama. – Não é preciso, já estou de pé, disse levantando-se lépida mais que o costume.


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Ao trocar a roupa sentiu leve tontura. Sentou na beira da cama. Respirou fundo e o mal-estar passou rápido como veio. E então ela percebeu tudo. Foi até a cozinha, tomou uma xícara de leite morno, olhou profundamente a filha e, cabelos brancos, soltos, como uma coroa, disse com a serenidade mais terna: – Filha hoje eu vou morrer. – Que é isso, mãe? Acudiu Ida em sobressalto. – Não é nada, filha. Sei que chegou minha hora. Chama um padre... – Eu vou chamar um médico e que venha logo, retrucou Ida. – Podes chamar o médico, mas eu quero é falar com um padre. Quero confessar e comungar. Em dez minutos vieram de Encantado, no mesmo automóvel, o médico e o padre. Mariota era um símbolo e um patrimônio a ser atendido... O médico sentiu-lhe o pulso e recomendou: – Agora, para o hospital! Seis filhos que moravam perto acudiram imediatamente. Andando, amparada na filha e no genro... Mariota sentou-se no sofazinho marron do quarto enquanto o Dr. Jacinto corria a buscar medicamentos. – Quero falar sozinha com o padre!, pediu Mariota. Conversou dez minutos com seu confessor, recebeu a comunhão, tomou um gole de água e disse: – Meus filhos cantem muito, cantem sempre, cantem. Cantar junta, reúne, une. Cantar é rezar, seja o canto que for, porque na união, no amor está Deus. Depois disse ao médico: – Agora pode cuidar de mim, obrigado.


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Cinco minutos depois ela dormia serena como a vela que se esgota. Para chorar, os filhos saíram para mais longe, para não fazer barulho.


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