Ontologia do diálogo

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ONTOLOGIADODIÁLOGO

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UNIVERSIDADE CATÓLICA DE PELOTAS UCPEL Chanceler D. Jayme Henrique Chemello Reitor Jandir João Zanotelli Pró-Reitora Acadêmica Circe Maria Siqueira da Cunha Pró-Reitor Administrativo Aroldo Roberto dos Santos Peduzzi EDUCAT - EDITORA DA UCPel Editor Francisco Paulo de Almeida Lobo CONSELHO EDITORIAL Wallney Joelmir Hammes - Presidente Antonio Angenor Porto Gomes Elizabeth Pereira Zerwes Francisco Paulo de A. Lobo Maurício Campelo Tavares Oscar Luiz P. Brisolara

Coleção

HUMANITAS 2 COORDENADOR: TEÓFILO ALVES GALVÃO

EDUCAT Editora da Universidade Católica de Pelotas /UCPel - Rua Félix da Cunha, 412 Fone (0532) 22.1555 - FAX (0532) 25-3105 - Pelotas - RS - Brasil 2


JANDIR JOÃO ZANOTELLI Doutor em Filosofia e livre docente em Filosofia da Educação pela Universidade Federal de Pelotas Mestre em Antropologia Filosófica pela PUC/RS

ONTOLOGIA DO DIÁLOGO

EDUCAT PELOTAS - 1996 3


©

1996 JANDIR JOÃO ZANOTELLI Direitos desta edição reservados à Editora da Universidade Católica de Pelotas - EDUCAT Rua Félix da Cunha, 412 - Fone (0532)22.1555 Fax(0532)25.3105 Pelotas - RS - Brasil PROJETO EDITORIAL EDUCAT EDITORAÇÃO ELETRÔNICA Ana Gertrudes G. Cardoso Wilmar da Silva Marques CAPA Luis Fernando Giusti

Z33o

Zanotelli, Jandir João Ontologia do diálogo/ Jandir João Zanotelli - Pelotas: EDUCAT, 1996. - 110p. - (Coleção Humanitas, 2)

1. Ontologia 2. Metafísica 3. Filosofia I. Título II. série. CDD 20.ed. 100 117 128

Índice para catálogo sistemático Ontologia: Filosofia Filosofia: Metafísica

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APRESENTAÇÃO

Jandir João Zanotelli, nasceu na cidade de Encantado, Rio Grande do Sul, em 21 de julho de 1939. Bacharelou-se e licenciou-se em Filosofia pela Faculdade de Filosofia Nossa Senhora da Imaculada Conceição da cidade de Viamão, em 1961. Bacharelou-se em Teologia pelo Seminário Maior Nossa Senhora da Imaculada Conceição de Viamão, em 1964. Bacharelou-se em Direito pela Universidade Federal de Pelotas, em 1971. Realizou Mestrado em Antropologia Filosófica pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul, em 1976. Obteve o título de Doutor em Filosofia e Livre Docente em Filosofia da Educação, pela Universidade Federal de Pelotas, em 1977. Entre suas atividades didáticas, destaca-se a docência de Latim, Português, Organização Social e Política do Brasil, Teologia, Psicologia e Filosofia. Dos cargos e funções exercidas na área de educação, podem ser ressaltadas as seguintes: Diretor da Escola Normal Ponche Verde em Piratini, Coordenador do Departamento de Filosofia e do Curso de Filosofia, Pró-Reitoria Acadêmica e Reitoria (1987 até agora) da Universidade Católica de Pelotas, Presidente da AESUFOPE (Associação de Escolas Superiores de Formação de Profissionais de Ensino Superior no Rio Grande do Sul), Presidente do Conselho de Leigos da Diocese de Pelotas, Membro da Comissão Regional de Justiça e Paz do Rio Grande do Sul, Secretário de Educação do Município de Pelotas, Presidente da ABESC (Associação Brasileira de Escolas Superiores Católicas). Dos trabalhos publicados podem ser ressaltados: Uma Simbologia Latina Americana, Teologia da Morte, Teologia do Leigo, Perspectiva Filosófica, História do Pensamento, Tradução da Obra “Método para uma Filosofia da Libertação” de Henrique Dussel. Agora vem à lume, para os estudiosos de Filosofia da Linguagem, ou Ontologia da relação e do diálogo, esta preciosa obra que recebeu originalmente o título “O Horizonte da Linguagem”, tese apresentada 5


para obtenção do título de Livre-Docente. Horizonte é aquele ponto limite da visão humana em que se descortina, ao longe, a união do céu com a terra. Onde douram as auroras e os crepúsculos vespertinos. União que o autor estabelece, apontando a linguagem como o “caminho que conduz ao homem, enquanto EuTu”, partindo das ciências objetivantes (empírico-formais) até chegar ao Logos originário. A linguagem das ciências objetivantes não pode ser o caminho para se chegar à relação Eu-Tu. A objetividade não pode ser o horizonte, isto é, o critério, o ponto de vista, a perspectiva da linguagem. A objetividade, na linguagem de M. Buber não conduz à relação Eu-Tu, mas à existência Eu-Isso, que é experiência e utilização ou uso. É a relação do Eu com o objeto manipulável. “O mundo do Isso, ordenado e coerente, é indispensável para a existência humana”. Por isso, não é um mal em si. Torna-se um mal quando o homem se deixa dominar por esta atitude, que passa a orientar todos os seus valores e a renunciar à capacidade de decisão, responsabilidade e disponibilidade para o encontro com o outro (o Eu-Tu), com o mundo e com Deus. Para a educação é um desastre, quando uma psicologia comportamentalista passa a manipular as ações humanas, com base em estímulos e respostas. A educação transforma-se, então, em adestramento. A essência da linguagem, da cultura e do próprio homem só é descoberta pela descoberta de um logos originário, de um pensamento integrador, revelado por uma ontologia ou fenomenologia hermenêutica do ser. Ontologia da relação e do diálogo, em que o homem encontra a sua essência. Na relação dialógica Eu-Tu, o homem nunca é considerado meio, objeto, mas fim, sujeito. Também, para Buber, o diálogo é o testemunho originário e final da existência humana; e à linguagem atribui um sentido de portadora do ser; é a linguagem que mantém o homem no ser; por ela o homem se faz homem e se situa no mundo com os outros. A intencionalidade da linguagem é o princípio ontológico do homem como ser dialogal. E a problemática de Deus está integrada à pessoa humana como ser-de-relação. Deus é o Tu com quem o homem fala e não um Isso de quem o homem fala. Jandir mostra que a linguagem é complexa porque o homem é um mistério. Se a objetividade (ou as ciências objetivantes) fosse o horizonte da linguagem, estaríamo situados na ordem do problema e tudo poderia 6


ser resolvido. Conforme Jacques Maritain, o problema envolve um complexo nocional, de ordem intelectual, uma dificuldade intelectual que deve ser resolvida, como um quebra-cabeças. No problema puro não há conteúdo ontológico. O problema predomina onde há menos riqueza de ser. O mistério predomina onde há mais riqueza de ser, mais densidade ontológica. No domínio do problema, progride-se de forma linear, horizontal por sucessão ou substituição. Encontrada a solução de um problema, passa-se a outro, que exige nova solução. O problema fica resolvido. No domínio do mistério, progride-se de forma circular ou espiralar. O progresso se faz por aprofundamento, no mesmo ponto fixo, ao redor do mesmo centro, mergulhando verticalmente na espessura do mesmo ser. É o que acontece no campo espiritual. É, assim, por exemplo, que posso ler e reler um mesmo livro, fazendo novas descobertas. É, assim, que nunca termino de conhecer uma pessoa. Na solução do problema, entra a razão, a lógica. No desvelamento do mistério entra a pessoa toda. A pessoa toda fica comprometida, por adesão, por comunhão; inteligência e coração, sensibilidade e intuição. Para compreender a linguagem e, consequentemente, a pessoa como mistério, é necessário recorrer à hermenêutica, para desvelar o sub-entendido, para apreender a singularidade pessoal, para compreender o sentido, o significado nascido da vivência. A linguagem é o caminho para o Eu chegar ao Tu e constituir a relação ontológica Eu-Tu. Mas a linguagem, como expressão, como sinal, é, também, uma fonte de mal-entendidos. E as ambíguidades do falar aumentam quando se trata de conhecer a pessoa singular e única - mistério. O conhecimento da pessoa - do Tu - não se realiza da mesma forma do conhecimento das coisas: por definições, idéias abstratas, teorias; provas; demonstrações, como nas ciências empírico-formais ou na metafísica. Das coisas, pela ciência, podemos ter um conhecimento total e dominar, ser “donos” delas, senhores do universo. As coisas eu conheço através de provas. As pessoas eu conheço através de sinais. As realidades materiais, as coisas sensíveis são utilizadas pelas pessoas como mediação para expressar o encontro, como diz Zanotelli no último capítulo: a fala, a mímica, os gestos, o sorriso, o beijo, o abraço, as lágrimas, os presentes, o aperto de mão, a relação sexual são lugares de encontro das pessoas. Mas o sinal é ambíguo. Pede uma leitura, uma interpretação, uma 7


hermenêutica. Mas esta leitura é ambígua, varia de pessoa para pessoa. A mesma frase proferida pelo Tu, por qualquer pessoa provoca interpretações às vezes contraditórias. Porquê? Porque a leitura, a interpretação é um ato de liberdade. Nas ciências, todos se entendem. 2 + 2 = 4, sempre, em toda parte. É que a ciência e a metafisica são da ordem do geral. A pessoa é singular e única. No conhecimento das ciências (ou metafísica) entra em jogo a inteligência. No conhecimento da pessoa entra em jogo a totalidade da pessoa: a razão (no sentido existencial), sensibilidade, vontade, coração. Pelo coração estabelecem-se relações existenciais, não apenas conceituais. Por isso, a Metafísica, como horizonte de linguagem, “oculta a linguagem”, porque essencializa a verdade. Apela para causas primeiras e princípios últimos. Apela para o homem-razão, o logos (o “cogito”) - subjetividade pela qual o homem é sujeito e tudo mais é objeto manipulável, inclusive os outros. Zanotelli mostra que é preciso superar a Metafísica pela Ontologia: como um saber da totalidade, que vai até a origem absoluta. É aí que o “cogito”de Descartes é substituído pelo novo “cogito” existencial de Mounier quando diz: “Amo, logo a vida vale a pena ser vivida”. Essa busca de totalidade vai encontrar, no homem, “a essência da linguagem... como clareira do Ser, que se desvela; como abertura para ouvir, perscrutar os segredos e os silêncios”. Abertura que é acolhimento, disponibilidade, amor. “O Ser elege o homem como clareira, para ele dizer a verdade.” Mas que é o Ser? O Ser é dom gratuito, é mistério que se faz presença, intimidade, mistério no qual estou comprometido, que me penetra; é desafio que exige resposta (não indiferença). O Ser é Amor. E também Fé e Esperança. “A experiência da fé, vinculada ao Mistério, é a experiência originária de todo homem”, diz Zanotelli. “A experiência originária da linguagem é a experiência de Deus, como Logos: In principio erat Verbum”. “Cristo é a encarnação da palavra”. “E a oração é a experiência radical da linguagem”. A fé é a resposta, a adesão do homem à palavra de Deus: a revelação. E como adesão à revelação torna-se esperança: volta-se para o vir-a-ser, para o futuro, que é a essência do presente; e essência do próprio homem. O homem é futuridade, porque é projeto, como diz 8


Ortega y Gasset: “Viver é decidir constantemente o que seremos”. Conforme Zanotelli, pela Teologia a experiência da linguagem é experiência da história da salvação. A promessa da libertação é que funda a história e o caminhar do homem - toda sua esperança. No horizonte da promessa e da esperança, o homem experimenta o mundo como mensagem e dom de Deus. É aí que se experimenta como interlocutor de Deus, como comunhão com Deus, com os outros e com o universo. O amor-comunhão é a vocação e essência do homem; nele tudo adquire significação. A fé e a esperança se enraízam no amor. Mas o amor tem sua exigências ontológicas: de eternidade, disponibilidade, fidelidade, totalidade. Exige eternidade, porque ninguém ama com hora marcada, ou prazo fixo. Exige disponibilidade, pois quem ama está a disposição do outro; é presença ao outro; dá seu tempo ao outro. “Foi o tempo que perdeste com tua rosa que a faz tão importante” (Saint Eupéry). Exige fidelidade, pois quem ama é fiel ao amado, ao escolhido como único (não como um ou uma igual a muitos outros). Exige totalidade: corpo, sensibilidade, inteligência, vontade, profundidade. Isto significa que não basta um amor captativo ou possessivo. Isto acontece quando amo alguém ou alguma coisa, por causa do bem que me pode proporcionar. Por exemplo, amo uma cerveja bem gelada quando estou com sede; amo o meu automóvel pelo bem que me faz. Na realidade, amo o meu bem no outro. Não basta, também, um amor recíproco ou amor de troca. Amo alguém na medida em que me ama, na medida em que me proporciona alguns favores. Retribuo na mesma medida. O amor realmente humano é aquele que torna a “solidão solidária”. É o amor oblação; amor-comunhão (comum união). Amor doação gratuita, oferenda. Amor - Encontro. Nesta linha segue Nicolas Berdiaeff quando diz que nem a coexistência, nem a convivência, nem a participação nem a comunicação podem libertar o homem da solidão. Só a comunhão, no sentido de encontro, interrelacionamento profundo poderá libertá-lo ou atenuar a solidão. É o que, também, diz Zanotelli, clarificando com a bela e expressiva imagem do poço, em que analisa os níveis de aprofundamento da proximidade na relação com o outro. Descendo do relacionamento 9


anônimo e impessoal do encontro societário e grupal, passando pelo encontro no plano egoísta do subjetivo, até chegar ao nível mais profundo do transcendente, que é o nível do encontro pessoal, último, livre, em que todo encontro se torna encontro marcado (não encontro fortuito, casual); em que a pessoa encontra no fundo do poço, a vertente, a fonte viva que sacia a sede, a carência, a indigência (e toda pessoa é indigente, porque toda pessoa é inacabada); fonte viva que se chama Amor e que dá sentido à existência e ao horizonte de toda linguagem, de todo encontro, de toda relação Eu-Tu. Amor em que a pessoa surge como interioridade: intimidade, solidão solidária, comunhão e transcendência:em que a pessoa se move; em que encontra seu espaço de proximidade e distância, superioridade e inferioridade. Espaço da: - ética e religião; - corporeidade: seu enraizamento, sua fisionomia, seu sacramento; - sexualidade: que transcende a relação biológica, para se tornar humana, como gesto, comunicação e expressão da interioridade, do encontro e do amor; - historicidade: comemoração do passado voltada para o futuro, pela esperança. A obra de Jandir Zanotelli não deve ser lida como um romance, um livro de literatura ou um estudo de gramática ou de linguística. É uma obra profunda de ontologia do encontro Eu-Tu, que merece ser lida, relida e meditada. Apesar de ser uma obra filosófica, não frequenta a aridez de muitas obras do gênero. Na realidade utiliza um estilo prenhe de beleza, daquela “beleza gêmea da verdade”, de que fala Olavo Bilac, e que se transforma, certas vezes, em poesia. Mas se trata de uma Beleza substantiva, isto é, que resplandece pela substância, pelo conteúdo, pela própria verdade que exala. Contrapõe-se, pois, à Beleza que chamo de adjetiva. Isto é, aquela beleza que recende à forma, à roupagem que envolve o conteúdo, à semelhança de algodão doce. A leitura da obra de Jandir Zanotelli provoca em nós a vontade de realizar este encontro Eu-Tu, em que o Tu pode ser a pessoa humana, Deus, uma obra de arte, uma música, uma pedra, uma flor. É o que levava o Pequeno Príncipe a querer perder tempo para ir buscar água na fonte. É o que eu sentia, quando atirava água nos tomateiros, recebendo como resposta de gratidão o seu perfume silvestre. É que o perfume é a linguagem das plantas. Teófilo A. Galvão 10


SUMÁRIO

INTRODUÇÃO / 13 1.COMPLEXIDADE DA LINGUAGEM / 21 2.AS CIÊNCIAS FORMAIS E EMPÍRICO-FORMAIS COMO HORIZONTE DA LINGUAGEM / 27 3.A CIÊNCIA HERMENÊUTICA COMO HORIZONTE DA LINGUAGEM / 37 4.A METAFÍSICA COMO HORIZONTE DA LINGUAGEM / 43 5.A ONTOLOGIA COMO HORIZONTE DA LINGUAGEM / 51 6.A FÉ COMO HORIZONTE DA LINGUAGEM / 67 A linguagem do mito / 67 A linguagem da fé / 69 7.A LINGUAGEM COMO ARTICULAÇÃO DA EXISTÊNCIA / 79 O Ser é Encontro / 79 O homem só se compreende quando se encontra / 80 Societariamente / 83 Grupalmente / 84 Subjetivamente / 85 Transcendentemente / 86 Interioridade / 89 11


Transcendência / 90 Corporeidade / 92 Sexualidade / 94 Historicidade / 98 O outro como constitutivo do encontro / 99 As coisas como mediação linguística / 101 CONCLUSÃO / 105 BIBLIOGRAFIA / 107

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INTRODUÇÃO

Quem sou eu? Quem és tu? Eis as perguntas radicais que coincidem com a existência de todo homem e com toda a existência do homem. Eis a esfinge que ronda a casa e a estrada do homem. Esfinge que, não sendo enfrentada, não permite a paz nem a pátria, deixando o homem apátrida, desgarrado. Essas perguntas que são uma só, são a pergunta primordial. Dela derivam todas as outras perguntas. A primeira, não na ordem cronológica, mas primeira porque originária: dela nascem e para ela tendem todas as outras perguntas. Essa pergunta não é idêntica à pergunta: “quem é o homem?” Esta procede daquela e naquela haure suas dimensões. Esta pergunta é mais fácil e menos urgente. É mais fácil perguntar “quem é o homem?” (ou o que é o homem) do que perguntar “quem sou eu? Quem és tu?”. Na pergunta “quem é o homem?”, o homem toma distância de si mesmo, objetiva-se, categoriza-se, olha-se de fora. Na pergunta “quem sou eu? quem és tu”, o homem está totalmente implicado, não há como distanciar-se da pergunta. Esta é pergunta existencial (coincide com a existência) e não pode formular-se impune e inconsequentemente. Há nela uma exigência, uma urgência gritante de resposta, resposta que, em termos de objetividade, é impossível. Minha vida tem a dimensão da resposta que dou a essa pergunta. A pergunta “quem é o homem?”, se não fosse vista como um modo de articular a pergunta “quem sou eu? quem és tu?”, se não fluísse desta, teria como resposta aquilo a que visa a curiosidade caprichosa da vontade de poder: uma definição. Sabendo, porém, a resposta e todas as respostas até agora dadas à pergunta “quem é o homem?”, não terá ainda o homem resposta alguma para a pergunta “quem sou eu? quem és tu?”. Somadas todas as definições que o pensamento até hoje trouxe à questão 13


“homem”, pouco ou nada se sabe sobre “eu” e “tu”. Eu não me defino a partir do gênero próximo “animal” acrescentada a diferença específica “racional”. O homem enquanto “eu” é todo especificidade, unicidade. Diante do homem como “eu”, o outro homem aparece como “tu”, singularidade irredutível a qualquer gênero, irredutível também ao “eu”. De nada vale, então, todo esforço da filosofia em mais de dois mil anos de dedicação, de nada vale o trabalho do pensamento humano para compreender o homem? Se os caminhos para a essência do homem, encontrados até agora, não tivessem nascido da intimidade do mistério pessoal de cada pensador e filósofo, de nada valeriam. Seriam, aliás, um estorvo insuportável de que teríamos de nos livrar o mais depressa possível para poder encontrar uma resposta à pergunta “quem sou eu?” “quem és tu?”. Mas os caminhos da filosofia nasceram do silêncio longamente guardado, junto à fonte donde brota a pergunta originária “quem sou eu? quem és tu?”. O que não nasceu da reflexão radical e como reflexão radical não interessa à filosofia senão como a voz da publicidade que se deve ser reconduzida à fonte. Por isso as respostas à pergunta “quem é o homem?” são auxílio e pro-vocação ao pensamento para pensar “quem sou eu? quem és tu?”. O pensamento se faz então, gesto de solidariedade, um auxílio essencial. A filosofia, enquanto testemunha o mistério “Eu-Tu” se faz possibilidade de pensar, caminho indispensável para o homem. Na verdade, a resposta à pergunta “quem é o homem?” só ajuda a responder à pergunta “quem sou eu? quem és tu?” se nasceu diretamente como resposta a esta última. Onde, pois, o caminho que conduza ao “eu-tu”? Será o caminho da objetividade científica? Vivemos, é verdade, na era “mítica” da crença na objetividade, da crença na verificabilidade, na matematicidade, na cientificidade. O positivismo, reduzindo os fatos (inclusive os fatos humanos) ao observável, fez crer que a verdade coincide com a experimentação e que o código de transcrição do verificado (a linguagem científica) seria o lógico-matemático. De fato, dirá Martin Buber1, esse caminho só conduz ao “ele”, jamais ao Eu-Tu. 1

Martin BUBER. Yo Y Tu.p.9ss.

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Não nasceu com Augusto Comte essa perspectiva, nem vem de Kant ou de Descartes apenas. Ela está na raiz de toda a filosofia ocidental e só a essa se costumou chamar de Filosofia. A objetividade se impôs e se implantou a partir da subjetividade como critério de verdade. Parece pacífico admitir que toda ciência tenha nascido da filosofia, muito embora muitas hipóteses tenham nascido do mito, da religião e da superstição. Pacífico é também que a Ciência tenha objeto, método e autonomia ante a Filosofia. A ciência não é filosofia, e a filosofia não é ciência em sentido estrito. Aristóteles, ao falar dos graus do saber, coloca a “Proté philosophia” como uma “episteme” com “nous”. A filosofia não é apenas “episteme”. No entanto, já não é tão pacífica a questão das relações entre Filosofia e Ciência. Superado, porém, o positivismo do século XIX e o neopositivismo, já é claro que a Filosofia mantém para com as ciências uma relação fundante, crítica, que lhe estabelece os limites, o valor e o método, muito embora essa tarefa de fundação seja realizada pelo cientista na medida em que filosofa. Todo homem é filósofo. A Filosofia não se confunde também com a Teologia, muito embora Heidegger denomine toda a metafísica ocidental de onto-teo-logia. A filosofia enquanto metafísica, porém, nem é ontologia, nem fé. No entanto as relações e os limites entre a filosofia e a teologia parecem o “espinho na garganta” de todo o filosofar. Para Heidegger toda a filosofia é, para a Teologia, uma loucura e toda a teologia é para a Filosofia um sem-sentido. A Filosofia é exclusivamente pergunta, e sua pergunta originária é: “por que há o ente em geral e não o nada?”2. A Teologia é exclusivamente resposta e resposta absoluta que Deus deu ao homem a respeito de tudo. A Teologia já tem resposta a toda pergunta possível e por isso nunca pergunta “por que há os entes em geral e não o nada”, sob pena de, fazendo-o, descrer da resposta de Deus e assim renunciar à própria fé. A Filosofia baseia toda sua força no poder interrogante e pretende extrair da pergunta, sem apelar para a resposta de quem quer que seja, o que a pergunta tem de inesgotável e abismal. Assim o fundamento da pergunta não é ente algum nem qualquer resposta, mas a própria pergunta, isto é, o abismo, o nada. O fundamento 2

Martin HEIDEGGER. Introdução à Metafísica.p.33.

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da resposta é o dom, dado antecipadamente, como possibilidade de acolher o Dom. É graça, diria Buber3. Toda filosofia é ateísmo, dirá Heidegger. A Filosofia nasceu como ateísmo. Como “assebia”, deveríamos acrescentar, porque o teológico a que se refere Heidegger é o instituído socialmente e este não coincide com todo o teológico. Por isso a filosofia, enquanto questiona criticamente a cultura, desenraíza, desinstala as pessoas, é “assebia”, subverte também o teológico em busca do originário. Para a “Escola” medieval, a filosofia era a “ancilla Theologiae”, a servidora da teologia enquanto lhe preparava o caminho pelo rigor do raciocínio, pela eliminação da contradição lógica e pelo apelo final ao teológico como àquilo que lhe falta para poder ser o que é. A Teologia servia à Filosofia em dois sentidos: propondo-lhe temas jamais suspeitados pelo ouvido e pelo olho humanos, mostrando assim ao pensamento um horizonte inaudito como o horizonte próprio do pensamento e em segundo lugar indicando à filosofia o limite e o erro, e isso não só através de declarações dogmáticas, mas especialmente pela proposta que lhe apresentava. A Filosofia sem a fé é cega. É a Teologia que permite à Filosofia ver. Ela é aquilo que a visão é para o homem: permite ver. Heidegger diria, então, que essa filosofia já não era filosofia e sim um corolário da Teologia. Que o filósofo, para se manter como filósofo, não deve ouvir a Teologia. A Teologia já é resposta a toda pergunta e o crente não pergunta; quando disser que pergunta, ou mente (porque faz de conta que pergunta) ou renegou a sua fé e então já não crê (porque toda pergunta é uma desconfiança na resposta de Deus). Caberia, porém, aqui uma pergunta: pode um homem, existencialmente, ser exclusivamente filósofo? Pode a Filosofia, enquanto pergunta, cobrir a totalidade da experiência humana? A Filosofia enquanto ateísmo não traz em si, embora esquecido, o estofo da fé que renegou? Renegar a fé não é ainda um modo de responder ao chamamento divino, um modo de ter fé? Pode o ateísmo deixar de ser um antiteísmo e como tal uma teologia negativa? Haverá, acaso, um homem que ao mesmo tempo não seja teólogo, filósofo, cientista e ao mesmo tempo viva uma existência ordinária? Haverá um homem que não tenha fé? Haverá um homem cujo ser não 3

Martin BUBER. op.cit.p.9

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seja a existência e haverá uma existência cujo horizonte máximo não seja o ser e a fé? A fé não significa exclusivamente paz, entrega total, escuta obediente e generosa, mas também grito, lamúria, revolta, ataque, descaso, blasfêmia e angústia. Só no horizonte da fé a blasfêmia é blasfêmia e a angústia é angústia. E esse horizonte é o de todo homem. A fé é também o suposto e o suporte da convivência humana. Esta se funda na confiança (cum-fides), e sem o consenso do outro ninguém vive, ninguém é4. É de se perguntar novamente se o amor não pressupõe a fé. A fé apareceria então como uma dimensão de todo o homem concreto. A filosofia seria um modo de ser-no-mundo, um modo da existência e só é entendido como um modo no contexto de toda a existência. Ora o contexto de homem é o divino. No espaço existencial está o teológico, Deus5. Toma, por isso, maior sentido a última entrevista de Heidegger antes de morrer. Confrontadas as possibilidades do homem em sua ciência, em sua técnica, em suas teorias e filosofia só nos resta uma conclusão: “só um Deus nos salvará”. E, perguntado pelo repórter - isto não põe abaixo toda sua filosofia? Heidegger respondeu com duas palavras: “que seja”. Não será essa a maior perspectiva da filosofia de Heidegger? O que importa é que é impossível ser exclusivamente filósofo, ou teólogo, ou cientista; mas, assim como a ciência organiza e mediatiza a compreensão ordinária, assim como a filosofia funda criticamente as ciências, assim a fé é o horizonte de todo o filosofar, enquanto ela é o horizonte da existência, e a filosofia um modo existencial de ser. Toda pergunta nasce na existência e para a existência, buscando centrá-la no eixo que lhe dá sentido. A pergunta como tal é somente um caminho, e toda estrada, diz Saint Exupéry, só tem sentido porque “conduz à casa dos homens”6. A filosofia é um caminho. Sem caminho não se encontra a casa, mas sem casa nunca haverá caminho.

4

Carlos Cirne LIMA. Realismo e Dialética.p.3.

5

Edmundo Luiz KUNS. Deus no Espaço Existencial.p.137ss.

6

Antoine Saint-EXUPÉRY. O pequeno Príncipe.p.66.

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Não é o caminho que justifica a casa, é a casa que o justifica. Ele a indica como nascido dela, ele a sinaliza e mostra, ele conduz à casa. Mas sem a casa, que pode estar escondida no centro do deserto, tudo é extravio, descaminho, impensável. A filosofia nasceu do mito. Por que exatamente como negação do mito? O mito teria sido o modo originário, mesmo cronologicamente, da existência do homem, como o deu a entender a hipótese nunca justificada do positivismo? A filosofia, enquanto tentativa de superar o mito, enquanto tentativa de libertar do mito o homem, o universo e o Ser, não teria antes uma destinação teológica? A recuperação não seria uma volta ao teológico-originário, do qual o mito seria apenas decadência e extravio? O mito não necessariamente é decadência e extravio no sentido de que fora precedido pela teologia. A Teologia não veio cronologicamente antes do mito, ao menos não há necessidade de pensálo. Mas a fé que a teologia articula, a fé que o mito narra extraviadamente, a fé que funda e embasa o mito, no mito, clama por uma articulação. Clama pela teologia. O originário, extraviado no mito busca uma recuperação. Originário que, cronologicamente está antes e depois porque não vem antes nem depois. É o horizonte que não está aquém ou além das coisas. As coisas simplesmente estão no horizonte. O originário, a partir do qual o homem sempre pensa, a partir do qual o homem criou a filosofia como superação do mítico, originário esse ao qual o homem sempre retorna como o horizonte compreensivo de tudo não será o Ser enquanto mistério de comunhão que a fé aponta e a teologia articula? Não será o Ser que a consciência crente denomina e invoca como Deus e só a consciência crente pode fazê-lo?7. Onde, pois, o caminho que conduz ao homem enquanto Eu-Tu? Hoje mais do que nunca, surge o caminho da linguagem. Nela todos os caminhos se cruzam. Ela é a encruzilhada de todos os caminho que conduzem ao homem. Ela é o caminho de todos os caminhos. A linguagem, porém, deixou de ser um caminho, porque foi reduzida a um fenômeno objetivo, observável, manipulável pelas ciências e técnicas na voragem prometeica da vontade de poder. Por isso é 7

Gabriel MARCEL. El Misterio del Ser.p.183.

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preciso limpar o caminho da linguagem para possibilitar ao homem um acesso ao Eu-Tu, à sua própria Essência. O presente trabalho modestamente pretende contribuir para isso. Busca o caminho da linguagem, não só porque hoje é o mais encontradiço e anunciado e por isso mais proposto à reflexão e como tal dá a pensar e merece ser levado ao pensamento, mas também porque a linguagem é a essência de todo caminho. Ela é a origem e o próprio caminho. Buscando-a se estará buscando o originário do caminho e o caminho originário do homem. Eu-Tu só aparece na linguagem e enquanto linguagem. Não, porém, em toda a linguagem, ao menos diretamente. Eu-Tu só assoma à janela quando a linguagem estiver em sua própria casa. Salvando a linguagem como caminho, salvaremos a casa do homem, como a Essência mais essencial do homem: Eu-Tu. A importância deste trabalho prende-se ao que mais urge, se ainda pretendemos salvar o humano do homem. Sem recuperar a linguagem, da intempérie em que a mantém aprisionada a ciência e a metafísica, não haverá no pensamento um abrigo para o homem. O caminho dessa recuperação da linguagem como caminho para o homem precisa seguir os seguintes passos: 1) deter-se um pouco na complexidade da linguagem e perceber a irredutível multiformidade de aspectos; 2) perscrutar se o horizonte que as ciências vislumbram e supõe é horizonte suficiente para situar todas as montanhas e vales da linguagem; 3) fazer o mesmo em relação à metafísica; 4) buscar para a metafísica um horizoante adequado que a situe enquanto modo determinado de compreensão da linguagem; 5) articular para o homem uma casa nesse horizonte. O presente trabalho, iniciará com um questionamento sobre a complexidade do fenômeno linguístico e a impossibilidade de reduzí-lo ao mais simples, factual e objetivo (1). Buscará situar depois a ciência em sua perspectiva de compreensão da linguagem, tanto das ciências formais e empírico formais (2), como da ciência hermenêutica (3), e constatará a insuficiência do horizonte compreensivo. Para isso não se deterá em inventariar críticamente todas as teorias científicas da linguagem. Mas tomará os dados disponíveis da lingüística contemporânea articulando-os na direção do propósito: encontrar o horizonte último da 19


linguagem. Analisará depois a metafísica, mãe das ciências, enquanto horizonte da linguagem e concluirá da possibilidade de a metafísica abarcar a totalidade da linguagem (4). Evidenciará após, a ontologia como horizonte compreensivo da metafísica (5). Procurará apontar a fé como horizonte de toda a linguagem e de toda a compreensão, inclusive da compreensão ontológica da linguagem (6) e terminará indicando alguns traços de articulação da existência pela linguagem (7).

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1 COMPLEXIDADE DA LINGUAGEM

Que é a linguagem? Será a linguagem um complexo de signos? Será a linguagem uma função psicológica, organicamente condicionada e intelectualmente sistematizada? Será a linguagem o conjunto das línguas, enquanto a língua é o sistema de expressão falada, particular a cada comunidade, sistema institucionalizado e imposto aos indivíduos como vocabulário e como gramática? Sim, a linguagem é tudo isso, mas não só isso. A linguagem é som, gesto, signo, vocábulo, palavra, significante, significado, significação; mas nem só isso é linguagem. A linguagem é natural e artificial, é linguagem objeto e metalinguagem, é sintaxe, semântica e pragmática, implica referentes, conotação, denotação, proposições e sentenças, implica a locução, a ilocução e a perlocução do significado, implica sinais, ícones, índices e símbolos, mas nem só isso é a linguagem. Para a lingüística a “linguagem pode ser considerada como conjunto (virtualmente infinito) de frases bem formadas que podem ser engendradas por meio de determinada gramática, isto é, por meio de um conjunto finito de normas de engendramento, permitindo formar unidades complexas suscetíveis de revestir um sentido completo (as frases) por meio de certo número de elementos (que podem ser de natureza abstrata e que não são em geral apanhados diretamente como tais ao nível perceptivo)”8. A cibernética vê na linguagem uma estrutura ideal “com suporte físico (gráfico, acústico, elétrico, etc.) que permite a comunicação de informações através de um sistema de codificação, transmissão e 8

Jean LADRIÈRE. L’articulaltion du Sens.p.17.

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decodificação”9. No entanto a linguagem ultrapassa o que a lingüística e a cibernética dizem da linguagem. Nesse sentido, vale a pena escutar o que um poeta vigilante da palavra diz, pedindo a Deus que liberte a linguagem (que o liberte) das amarras da lingüística: “Da leitura sintagmática Da leitura paradigmática do enunciado Da linguagem fática Da fatividade e da não fatividade da oração principal Libera nos, Domine. Da organização categorial da língua Da principalidade da língua no conjunto dos sistemas semiológicos Da concretez das unidades no estatuto que dialetiza a língua Da ortolinguagem Libera nos, Domine! Do programa epistemológico da obra Do corte epistemológico e do corte dialógico Do substrato acústico do culminador Dos sistemas genitivamente afins Libera nos, Domine! Da camada imagética Do espaço heterótipo Das relações entre topos e macrotopos Do elemento supra-segmental Libera nos, Domine! Da semia Do sema, do semema, do semantema Do lexema Do classema, do mema, do Sentema Libera nos, Domine!

9

id.p.18.

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Da estruturação semêmica Do idioleto e da pancronia científica Da reliabilidade dos testes psicolingüísticos Da análise computacional da estruturação silábica das palavras [regionais Libera nos, Domine! Do vocóide Do vocóide nasal puro ou sem fechamento consonantal Do vocóide baixo e do semivocóide homorgânico Do glide vocálico Libera nos, Domine! Da lingüística frástica e transfrática Do signo cinésico, do signo icônico e do signo gestual Da clitização pronominal obrigatória Da glossemática Libera nos, Domine! Da estruturação exo-semântica e da linguagem musical Da totalidade sincrética do emissor Da lingüística gerativo-transformacional Do movimento transformacionalista Libera nos, Domine! Das aparições de Chomsky, de Mehler, de Perchonock De Chaussure, Cassirer, Troubetzkoy e Althusser De Zolkiewski, Jacobson, Barthes, Derrida, Todorov De Greimas, Fodor, Chao, Lacan et cetera Libera nos, Domine!”10. A linguagem não se resume em ser objeto da lingüística, captável por suas categorias. Na linguagem está o gesto, a expressão do homem. Na linguagem está a criação do homem, a ciência, a técnica, a cultura. Nela está a imitação, a invenção e a criatividade do homem. Na 10

Carlos Drummond de ANDRADE. Exorcismo. Folha da Tarde. Porto Alegre, 12/4/75 s.Col.,S.P.

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linguagem está o outro e o si mesmo, o eu e o tu, o encontro e o desencontro, a comunhão e o solipsismo, a dominação e a generosidade, o monólogo e o diálogo, a prosa e a poesia, a gramática e a literatura, a arte e a técnica. Na linguagem está o ódio e o amor, a esperança e o desespero, o medo e a angústia. Na linguagem está o abstrato e o concreto, os valores e a lógica, a pessoa e a comunidade. Na linguagem está a teoria e a práxis, a fala, a escrita e a cibernética. Na linguagem está a verdade e a falsidade, o juramento e a abjuração, a ética e a traição. Na linguagem está a ação do homem, o comportamento do homem, o homem, o nascedouro do homem, a expressividade do homem, a manifestação da realidade do homem. Haverá, na linguagem algo mais do que a realidade humana? A realidade humana será a realidade do homem? Mas o humano não ultrapassa o homem? Se é verdade que na linguagem está a filosofia e toda a controvérsia filosófica: o realismo, o idealismo, a fenomenologia; se é verdade que na linguagem está o objeto das ciências formais, empírico-formais e hermenêuticas, se nela está o homem, é também verdade que nela estão os deuses, está Deus, o Ser, o Sagrado, o Mistério. Na linguagem habita o homem, habitam os entes, habita o Ser. Na linguagem está o tempo e a eternidade, o passado, o presente e o futuro, o agora e o sempre. Na linguagem está o mito e a ultrapassagem, o aquém e o além, o interior e o exterior, a tagarelice e o silêncio, o recolhimento e a agitação, a reflexão e o borborinho sôfrego do relógio, o lugar do homem. Na linguagem está o Ser e o parecer, o exato-matemático e o existencial, o subjetivo e o objetivo. Na linguagem está o desvelamento e o velamento do Ser. Na linguagem está a economia, a política, a educação, a religião, a recreação e a família, o jurídico, as instituições e a cultura. Na linguagem está a esfinge da pergunta e o dom da resposta. Na linguagem está a dúvida e a fé, a certeza e a esperança, a ameaça e o convite, a gratidão e o pedido. Na linguagem está o dito e o não-dito, o texto e o contexto, o que deve e o que não pode, o explícito e o implícito, o unívoco, o equívoco e o analógico. Na linguagem está a essência e o modo, o conceito e a imagem, o retórico e o singelo, a eloqüência e o balbucio, o grito e o sussurro. Na linguagem está o peso e a leveza, o gracioso e o grave, a forma e a 24


dimensão, a cor e o calor, a mão e o olho, o rosto e o ouvido. Na linguagem está a expressão e a expressividade, a comunicação e a comunicabilidade, o apelo e a resposta, a significação e a indicação. A linguagem fala “de”, constata, significa, mas também implica o locutor e o interlocutor, “faz advir certo estado de coisas no qual ele (o locutor) está implicado” 11. A linguagem é auto-referência, heteroreferente, operatória e significativa. Quantas facetas terá a linguagem? Quantos rostos tem o homem? Três, como a esfinge egípcia? Quatro ou cinco, como a esfinge grega? Sem sombra de dúvidas ela é complexa, como é misterioso o homem. Poderá, então, alguém reduzir a linguagem a objeto da lingüística? Da fonologia? Da semiologia? Da semântica? Da pragmática? Da sintaxe? Para estudar a linguagem bastará distinguir dicotomias como língua e fala, sincronia e diacronia, forma e substância, significante e significado, sintagma e paradigma, palavra falante e falada? Será possível reduzir a linguagem a um fato observável? Mas um fato só é observável a partir de uma perspectiva. Um fato nunca é observável a partir de si mesmo e em si mesmo. O critério a partir do qual o observamos é sempre um ponto de vista. O critério, o ponto de vista não é encontrado como um fato, mas é sempre decidido, assumido. O critério a partir do qual o empirismo pretende olhar a linguagem como objetividade não é objetivo. A objetividade não parece ser o horizonte da linguagem. Não é a gramática ou a literatura vista como estilo e forma que possibilitam compreender a linguagem, mas a literatura e a gramática, o dicionário e a pragmática são compreensíveis unicamente a partir da linguagem. A linguagem enquanto significação (e esta não é a Essência da linguagem) não se reduz ao modelo binário lógico-matemático de certo ou errado, um ou zero: essência de toda a computação. O essencial não é compreender sinal e significado, significado e significante, código, codificador, decodificador e decodificação mas como e por que isso tudo acontece, como eles se ligam, quem os refere um ao outro. E dizer que no homem ou no pensamento acontece a referência não é suficiente para a compreensão. Na verdade, deveríamos compreender por que e para que o homem fala. Deveríamos compreender onde está a possibilidade de toda a codificação, de toda a sinalização, de toda

11

Jean LADRIÈRE. op.cit.p.11.

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emissão e transmissão, de toda a recepção e acolhida. Todo comportamento humano (e o comportamento é sempre humano) é linguagem. A cultura como comportamento sedimentado ou atuado, na complexidade infinita da obra humana, é linguagem complexa. Complexidade que resulta não só do fato de o fenômeno lingüístico ser multifacético, não só do fato de a intencionalidade, a liberdade, a decisão, a ética, a religião fazerem parte do fenômeno lingüístico, como também, e especialmente, porque esses fatos não são objetivos. Resulta também do fato de a objetividade não ser o essencial a um fato (mesmo a um fato objetivo). Como também pelo fato de a ciência restrita à objetividade ser incapaz de compreender a objetividade dos fatos. A objetividade é um modo de ver os fatos, e esse modo de ver os fatos não é o essencial em todas as culturas e em todos os tempos. A objetividade como modo predominante e depois exclusivo de ver os fatos foi inaugurada e articulada pela filosofia ocidental quando se fez metafísica, colocando o homem paradoxalmente, como subjetividade e como medida de tudo. Esse preconceito cultural não se funda no próprio preconceito, mas é fundado na metafísica. Um pensamento fragmentário, reducionista, simplista não consegue abranger a totalidade do fenômeno lingüístico, mas deforma, mutila e desfigura. Para compreender a linguagem é preciso um pensamento integrador que recolha, que junte, um Logos originário. Esse pensamento, porém, não poderá ser o científico, tampouco o metafísico. Um pensamento que pense integralmente a linguagem deverá ultrapassar a filosofia enquanto esta é metafísica, a única que costumamos denominar filosofia. É preciso um pensamento que seja ontologia, uma metalinguagem, que não seja apenas ciência hermenêutica, mas filosofia hermenêutica; uma fenomenologia hermenêutica do Ser. Então, no pensamento hermenêutico do Ser, assomará a essência da linguagem e da cultura, assomará o homem em todas as suas dimensões. E a dimensão física, psíquica, social, corporal, transcendente da linguagem será permitida. E todas as compreensões da linguagem terão lugar.

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2 AS CIÊNCIAS FORMAIS E EMPÍRICO-FORMAIS COMO HORIZONTE DA LINGUAGEM Em nossa tradição ocidental, paralela à divisão da metafísica em teologia, antropologia e cosmologia, “aparecem três modos de visualizar a linguagem... Correspondente à teologia, temos a mística do logos, uma espécie de teologia da linguagem; correspondente à antropologia, temos o humanismo da linguagem; e, correspondente à cosmologia, desdobrou-se uma espécie de lógica da linguagem”12. Ligados à primeira maneira de ver estariam Platão, Agostinho, J.Bohme e Hegel; à segunda, Cícero, Dante, Vico, Humboldt, a lógica das ciências históricas de Dilthey, a ontologia da compreensão de Heidegger e a hermenêutica filosófica de Gadamer; a terceira toma forma em Aristóteles, progride em Leibniz, passando por Descartes, abrange os expoentes da lingüística, a analítica da linguagem com os propulsores da “mathesis universalis” Frege, Russell, Wittgenstein, Carnap, a hermenêutica cartesiana de Paul Lorenzen e o pensamento do neopositivismo lógico. Na terceira perspectiva, a da analítica da linguagem e do neopositivismo lógico, a lingüística se fez a ciência da linguagem por excelência. Ligada às ciências formais e empírico-formais e, conseqüentemente, a toda a técnica ocidental que hoje cobre o mundo dos homens, essa perspectiva aparece, pelo volume de trabalhos realizados, pela presença cotidiana e permanente na técnica da computação, na cibernética, como a única perspectiva da linguagem. Na educação, na política, na economia e em todo o planejamento essa parece a única maneira de ver a linguagem. E toda outra linguagem, tenta-se lê-la neste tipo de alfabeto. A lingüística científica trata a linguagem a partir das características gerais de funcionamento. “Seu objetivo não é simplesmente 12

Ernildo STEIN. Metalinguagem e Compreensão nas Ciências Humanas. Revista Brasileira de Filosofia. 25(99), S.Paulo, Jul.,Ago., Set. 1975,p.316.

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analisar os mecanismos que operam nas diferentes línguas naturais existentes, mas descobrir os princípios mais gerais segundo os quais todas as línguas são organizadas, não somente as línguas naturais como também as linguagens artificiais criadas pela necessidade da pesquisa lógica ou da técnica informática. Tais princípios devem valer não somente para as línguas existentes como também para toda língua possível. A hipótese condutora aqui adotada é a de que toda linguagem é essencialmente operatória e por isso poderá ser descrita sob a forma de um sistema de regras. Essas regras, porém, não são quaisquer regras; devem responder a certas condições gerais encontradas em todo o sistema particular de regras (isto é, em toda linguagem concreta) e que têm a capacidade de fazer a linguagem ser o que é, a saber, um meio exteriorizante e articulador de uma vida significativa, aberta à comunicação. Será preciso trazer à luz essas condições gerais, não por meio de um método indutivo, isso seria uma tarefa desesperadora, mas propondo hipóteses sugeridas pelo estudo dos aspectos formais das línguas existentes, testando a capacidade de resolver os problemas levantados pela análise empírica das línguas. Se um sistema de normas, na medida em que for explicitado, representar um nível metalingüístico em relação à língua que rege, as condições gerais a que o sistema deverá responder situam-se em relação a ele, ao nível de uma metateoria”13. Esse texto, longo e magistral, de Ladrière nos situa por si só ante a problemática própria da lingüística. Assim, a lingüística contemporânea ao menos em alguns de seus expoentes mais representativos estuda a linguagem como o resultado da relação de três componentes: um componente sintático (conjunto formal de determinadas leis de engendramento); um componente fonológico (que se projeta ao nível da percepção em sons captáveis pelo ouvido humano); um componente semântico (formando um sistema de significações)14. A lingüística estuda, pois, a linguagem enquanto esta se inscreve num sistema como realidade objetivável, ao nível da exterioridade. Enquanto a linguagem é um processo de articulação e exteriorização de um sentido, carregada, pois, de intenção e comunicação, a linguagem já não é estudada pela lingüística enquanto ciência empírico-formal e

13

Jean LADRIÈRE. op.cit.p.9-10.

14

Noam CHOMSKY. Linguagem e Pensamento. p.31ss.

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estrutural apenas e sim pela reflexão, pela hermenêutica, que busca nas formas concretas de linguagem o conteúdo significativo, a vida significativa. E esse trabalho, iniciado pela reflexão como ciência hermenêutica, é depois culminado como filosofia. A analítica da linguagem, buscando uma teoria formal que explicite a lógica imanente à língua e a toda linguagem possível, se funda na perspectiva neopositivista, cujas raízes são o empirismo, o iluminismo racionalista e, ao final das contas, a metafísica ocidental. Os dois princípios básicos do neopositivismo são o princípio do empirismo e o princípio da verificabilidade como sentido das proposições. Pretende explicar causalmente tudo o que há sem apelo aos juízos de valor e subjetivismo tais como a metafísica e a teologia. Somente a ciência tem proposições com sentido. A filosofia só tem sentido como metalingüística da linguagem das ciências. Somente a ciência pode fornecer-nos um conteúdo de conhecimento, e a filosofia não pode ser senão uma metaciência encarregada de estudar o funcionamento da linguagem da ciência. Essa maneira de ver a ciência conduz à formulação de um projeto radicalmente reducionista: deve ser possível, em princípio, dar conta de todos os aspectos da experiência humana por meio dos métodos das ciências. Formulado em termos de linguagem, esse projeto se apresenta como um vasto programa de retranscrição de todos os modos da linguagem numa linguagem privilegiada, a das ciências. Em particular, a linguagem da fé será considerada como a formulação de uma representação ingênua, ligada ainda à mentalidade mitológica; buscarse-á explicar essa linguagem e a experiência que lhe corresponde num quadro de uma teoria científica adequada; por exemplo, por meio de uma concepção puramente operatória da afetividade15. O positivismo lógico do círculo de Viena teve larga influência sobre a analítica da linguagem. Esta objetiva analisar não o conteúdo e sim os enunciados da ciência, buscando linguagens ideais, ortolinguagens que sempre funcionam como metalinguagens, à luz das quais analisam logicamente a linguagem científica e filosófica. Basta pensar em B. Russell, R. Carnap, N. Goodman, W.O. Quine. Outros, porém, vendo a impossibilidade de uma metalinguagem artificial como derradeira metalinguagem de toda a linguagem, buscam referir a linguagem científico-filosófica à linguagem natural (do uso corrente), funcionando 15

Jean LADRIÈRE. op.cit.p.12.

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esta como a última metalinguagem. Basta lembrar G.Ryle e John L. Austin. Outros ainda buscam uma gramática universal que funde e possibilite explicar todas as gramáticas particulares visadas na competência lingüística do falante nativo, uma gramática gerativa, como é o caso de N. Chomsky. A influência de Wittgenstein sobre todos é notável, tanto do primeiro Wittgenstein, que procurava proposições elementares como critério de verificação da veracidade das proposições e que afinal concluiu que “se todas as proposições devem ser verificadas, nenhuma o pode, pois a série se estenderia ao infinito”; quanto do segundo Wittgenstein, que conclui que a linguagem se realiza como multiplicidade de jogos lingüísticos em diferentes formas de vida e que é a capacidade de usar a palavra em diferentes situações o que dá significação à palavra e por isso assim é aprendida. O segundo Wittgenstein, que já não é o do “Tractatus Logico-Philosophicus” e que exige a vida como metalinguagem, o Wittgenstein das “Philosophical Investigations”, influencia hoje, mais do que nunca a analítica da linguagem. As escolas lingüísticas de Oxford e Cambridge já estão moldadas na perspectiva do segundo Wittgenstein. Como se vê, é ainda o caráter familiar da sociedade humana, como a “polis” para o grego, o critério de verificação da linguagem. É da vida, do uso lingüístico primário “com a multiplicidade de seus jogos de linguagem que deriva todo uso secundário, como o jogo científico de linguagem da subordinação unívoca de sinal e designado”16, como também a construção de uma linguagem artificial, a ortolinguagem. A função de designação unívoca e teórica não é suficiente para explicar a linguagem. Por causa de Wittgenstein (o segundo) surge a concepção funcional operativa da linguagem (P.Lorenzen, J.Lohmann, Richter)17. Na multiplicidade orgânica da linguagem natural surgem muitas funções teóricas e práticas da linguagem, constituindo cada qual uma língua em si, emergindo, pois, vários jogos de linguagem com sentido próprio, haurindo cada qual seu sentido e possibilidade no todo da linguagem natural: assim a linguagem das ciências naturais (única válida para o neopositivismo), a linguagem da arte, da ética, da religião, da política. O que dá sentido à linguagem já não são os átomos lingüísticos, as proposições protocolares, mas a linguagem viva. 16

Emerich CORETH. Questões Fundamentais de Hermenêutica. p.33.

17

id.p.34.

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Cada vez mais a ciência e a filosofia da linguagem exigem do método que estuda a linguagem um alargamento que possibilite abranger todos os fatos da linguagem e não apenas as estruturas e a organização. Quando tomam a vida, a linguagem natural como horizonte de interpretação de todas as linguagens, a lingüística e a analítica da linguagem já abandonaram o positivismo científico para alçar-se acima, buscando um campo que se aproxima do “mundo vital” de Husserl, do “mundo” da hermenêutica existencial de Heidegger. Dentro do neopositivismo lógico, a linguagem é instrumento do homem. Um instrumento das ciências como dirá Popper18. A linguagem, como depósito de experiências científicas do passado, possibilita a quem a aprende assumir todas essas experiências. Sem linguagem, cada homem deveria recomeçar a experimentar tudo de novo. É a linguagem que faz o homem, especialmente a linguagem em suas duas funções especificamente humanas (de descrição e argumentação), pois, nas funções de expressão e comunicação, ela é comum aos homens e aos animais19. A linguagem como instrumento científico deve abandonar a ambigüidade e alcançar a univocidade. Só a linguagem unívoca é verdadeira, porque eficaz. A linguagem ambígua é inútil. Por isso a interpretação de um texto de ciência, especialmente de ciência humana (uma vez que as ciências naturais já organizaram para si linguagens unívocas universais), deve separar a particularidade da sistematicidade. Deve reduzí-la à sistematicidade. A verdade está no lógico, no universal, no sistemático. Saussure diria que à lingüística não interessa a fala e sim a língua que a fala revela. Não interessa o diacrônico e sim o sincrônico. Não interessa sintagma e sim o paradigma20. Nas ciências formais e empírico-formais a linguagem é operatória. Com ela articulamos as coisas a partir de fora. O horizonte dessas ciências é o formalismo lógico como sistema. A compreensão operatória se refere ao sistema de todas as formas possíveis de construção operatória. Nas ciências hermenêuticas a compreensão interpretativa se refere também ao sistema, não ao das ciências formais e empírico18

Karl POPPER. O Conhecimento Objetivo. p.161 ss.

19

id.p.151 ss.

20

Ferdinand de SAUSSURE. Curso de Lingüística Geral. p.107 ss.

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formais, mas ao sistema de todas as intencionalidades, de todas as referências, isto é, da vida significativa enquanto tal21. Em ambas as compreensões (a operatória e a interpretativa) acontece a mesma leitura: de um lado como de outro trata-se de alcançar a vida universal do sentido como fonte de todas as instaurações significativas. O pensamento operatório, enquanto pensamento puro, é pensamento de operação e como tal é operação e é compreensão como operação. Pseudo-reflexão, porque fora de si mesma, não só em seus resultados como no próprio movimento operatório, na auto-produção do campo formal abosoluto. A redução da linguagem ao sistema, às leis gerais de verificabilidade assim como de falsificabilidade, de confirmabilidade, de traduzibilidade ou de eficiência, a redução da realidade lingüística ao lógico só é possível dentro de uma filosofia que fez do “Cogito” o fundamento de “sum” e mais tarde fundamento também do “est”. O homem visto como subjetividade, ante o qual tudo é objeto, isto é, submetido à manipulação e domínio, utiliza a linguagem como instrumento de posse do objeto. Ante o sujeito tudo é objeto, inclusive o próprio sujeito, que, dessa forma, se torna imcompreensível. Não há então fins, mas unicamente meios. Meios de quê? De meios. E a razão se suicida declarando-se incapaz de compreender a realidade, ou melhor, declarando incompreensível a realidade. E como, logicamente, é impossível fundar a realidade, o homem-sujeito deverá permanecer no terreno da práxis, no terreno do operatório, onde impera o que é útil, eficaz, e é útil o que sacia necessidades imediatas. A técnica se justificaria tecnicamente. A redução da linguagem ao sistema não visa a verdade e sim a eficácia e a utilidade. A redução lógica da filosofia analítica e do neopositivismo não permite compreender a linguagem. Por quê? Porque não capta todos os fenômenos da linguagem? Porque deles só capta o mensurável, o objetivo, o exterior? Não. Porque, enquanto permanecem em si mesmos, fechados a qualquer reflexão que não tenha nascido de seu próprio seio, são incapazes de captar qualquer realidade. Incapazes de captar inclusive a si próprios. Na verdade, quando reduzem toda a linguagem ao verificável, ao objetivável, não percebe que a verificabilidade e a objetividade não são verificáveis nem objetiváveis em si mesmas. A 21

Jean LADRIÈRE. op.cit.p.182-183.

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objetividade não é um fato objetivo. A observabilidade de um fato não é ela mesma observável. A facticidade de um fato não é algo verificável. A verificabilidade (assim como os demais critérios acima aludidos) da analítica da linguagem como critério de verdade é inverificável, é um preconceito, um ponto de vista, diria Husserl. A analítica da linguagem como concretização do empirismo nada capta da linguagem, nem o aspecto sistemático, sintático e semântico. A compreensão exclusivamente sistêmica da linguagem é contraditória e absurda em si mesma. Foi o que o próprio Wittgenstein concluiu: Se uma proposição só tem sentido quando verificável, nenhuma tem sentido, pois essa mesma proposição é inverificável. Para captar a linguagem é preciso alçar-se acima do positivismo lógico e da analítica. É por isso que Wittgenstein, para salvar as pretensões, inclusive do positivismo lógico e da analítica, vai além do “Tractatus” e até contra o “Tractatus” e exige a vida como metalinguagem da linguagem. É por isso que, ao concluir com Einstein que a ciência não passa de uma grande hipótese, provisória e válida até suportar as experiências, Popper exige, apesar de não o dizer ou de dizer o contrário, uma instância além da ciência, para apreciar os passos, os limites, o horizonte que possibilite a ciência. A ciência vive da objetividade. Recebeu esse horizonte de sua mãe a filosofia, como metafísica da subjetividade. A filosofia ocidental nasceu como implantação de um método (logos) que, por si só, seria capaz de alcançar o fundamento, o destino dos entes. Esse método, lógica em si mesma, se manifesta como matemática, e a matemática é a linguagem e a alma das ciências e, conseqüentemente, da técnica. A pretensão da metafísica é que, diante do logos todo poderoso do homem (propriedade do homem, instrumento do homem), os entes e o Ser devam abrir-se e mostrar-se obrigatoriamente tais quais são. Na verdade, esse pretenso desnudamento é velamento, ocultação, esquecimento do Ser e dos entes. Não permite ao homem ser homem, aos entes serem entes e ao Ser ser Ser. Um pensamento, por isso, que permite à linguagem ser linguagem não pode ser esse pensamento. Deve ser um pensamento situado além da analítica, além também da metafísica da subjetividade. É preciso ir além da subjetividade, encontrando o homem e a linguagem além da objetividade, da positividade, da verificabilidade e mensurabilidade.

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O fato de as ciências européias, no final do século XIX, terem entrado em crise por se ter percebido que elas não abrangiam o mundo da vida, o fato conseqüente de se exigir outro método para apanhar os fenômenos da existência não significou “ipso facto” que se tenha saído do positivismo e da subjetividade. A fenomenologia e a hermenêutica nem sempre estão além daquela filosofia. Husserl intitula sua fenomenologia de positivismo superior. Sartre faz da subjetividade o cerne de seu filosofar. Chomsky vê, a partir de 1950, a extenuação do empirismo como possibilidade de explicar a linguagem. A descrença no empirismo exige a busca de um outro horizonte. Todo humanismo que pensa salvar o homem localizando-o como subjetividade, é frustrado e acaba negando o que pretende afirmar. A única chance de salvar o homem e a linguagem está além de todos os humanismos22. É no ser, como critério, que encontramos a possibilidade do homem e da linguagem. Ali “a palavra revela a coisa porque a reconduz ao seio do Ser, fazendo assim florescer, brotar o mundo e o seu aparecer”23. O pensamento de Ser, enquanto superação da metafísica, possibilita a metafísica, a subjetividade, a objetividade da ciência justamente, porque as reconduz à raiz. Se o sentido da linguagem não resulta do sentido de suas proposições, se o sentido das proposições não resulta do sentido atômico dos termos, mas resulta do código ou, como diz a Gestalt, do todo, que será este todo? O fundo? O horizonte? Mas que será esse horizonte de compreensão da linguagem? O mundo da vida? (como Husserl pensou?). O inconsciente, como o pensou Freud? O espírito da sociedade, como o pensou Durkheim? A natureza, como a pensaram Feuerbach e Marx? O Eu transcendental de Kant ou Husserl? O mundo, como o pensou Heidegger? O Ser? Deus? Na verdade, o significado do que é dito não está no dito mas no que não é dito e se queria dizer, e nem ainda aqui está o significado do dito, mas naquilo que se deveria dizer e que, no fundo do dito, permanecendo veladamente como horizonte do dito, apela para vir à luz. O silêncio é o horizonte da palavra. O subentendido. Ora, o silêncio, o contexto, o código, a vida, o mundo, o inconsciente, a cultura, a 22

Martin HEIDEGGER. Sobre o Humanismo. p.82-83.

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Thomas Ransom GILES. História do Existencialismo e da Fenomenologia.p.227.

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natureza, o Ser não cabem nos limites das ciências formais e empíricoformais. Nada disso é objetividade e univocidade. Fundamento de toda demonstração mas indemonstrável. Subentendido como fundamento do entendido. Entrelinha como fundamento da linha. Vida como horizonte dos jogos lingüísticos. Fundo que é a única possibilidade de compreender a linguagem e que não cabe nessas ciências. Para compreender a linguagem é preciso um saber que tematize a antecipação desse fundo subentendido. É preciso uma hermenêutica.

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3 A CIÊNCIA HERMENÊUTICA COMO HORIZONTE DA LINGUAGEM

O paroxismo das ciências naturais, do empirismo como caminho único de chegar à realidade e portanto de visualizar a linguagem e tudo o que é humano, entrou em crise ao final do século passado. O positivismo, buscando como justificativa última um sistema lógico, o idealismo e o nihilismo como apogeu da subjetividade, a psicologia nascente em forma de psicofísica se mostraram como simplificações demasiadas, que mutilam e excluem os aspectos da realidade que não podem explicar. O que não coubesse na perspectiva objetivista da ciência reduzida então às ciências formais e empírico-formais era rejeitado como sendo puramente imaginário, subjetivo, ilusório, irreal. O estudo da história, da vida e especialmente da psiqué mostravam cada vez mais a impossibilidade de êxito através da redução formal ao sistema. Dessa experiência de crise surgirá a ciência hermenêutica como necessidade. Fredrich Schleiermacher observava que a compreensão (modo próprio de conhecer a realidade humana) é a “reconstrução histórica e divinatória, objetiva e subjetiva, de um dado discurso”24. Toda compreensão se baseia numa adivinhação do sentido, adivinhação que antecipa o significado, antecipação que nasce do aprofundamento da vivência. Toda compreensão supõe uma vivência. Impossível conhecer algo somente objetivamente. O esforço por compreender o histórico e dar às ciências históricas um estatuto à altura do das ciências naturais fez com que Ranke, K.J. Droysen e especialmente Wilhelm Dilthey exigissem para os fatos do espírito ciências especiais. Droysen dizia que, se as ciências naturais esclarecem (explicam, dirá Dilthey), reduzindo causalmente cada fenômeno a leis gerais e necessárias, as ciências do histórico (do espírito, dirá 24

Emerich CORETH. op.cit.p.19.

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Dilthey), compreendem, isto é, apreendem o individual em sua peculiaridade e em sua significação. “A natureza nós a esclarecemos, mas a vida da alma nós a compreendemos”25. Rickert dirá que a natureza é explicada por leis, ao passo que a história e as culturas históricas são compreendidas por seus valores. Dilthey observava que na ciência não cabia imaginação criativa, autoconsciência, auto-sacrifício, senso de obrigação, amor, devoção, simpatia26. A vida não cabe na ciência gritarão Brentano, Kierkegaard e Bergson. Edmund Husserl mostrará que toda pretensão de objetividade sempre importa e implica um modo de ver as coisas, ela é uma perspectiva, uma interpretação, um ponto de vista. A interpretação é essencial ao fato, especialmente ao fato humano que consiste essencialmente em interpretação. Uma ciência e uma ciência rigorosa (a exemplo das ciências naturais) dos fatos humanos, deve tomar como fato base as condições de interpretação. Husserl, através da redução eidética e transcendental, buscará fazer da hermenêutica uma “volta às coisas mesmas”, seguindo o lema de seu mestre Brentano. A fenomenologia surge então como um método hermenêutico que tenta conduzir às coisas, a cada coisa e a todas as coisas. A ciência natural, reduzida a seus limites se mostrará um extravio, um descaminho, um beco sem saída. “Nos dias em que uma idéia podia ser silenciada mostrando-se que era contrária à religião, a teologia era a maior fonte singular de falácias. Hoje, quando qualquer pensamento humano pode ser desacreditado por ser marcado como anti-científico, o poder anteriormente exercido pela teologia passou para a ciência; conseqüentemente, a ciência tornou-se, por sua vez, a maior fonte singular de erro”27. E isso diz um grande cientista. Heidegger situará a compreensão como um existencial constitutivo ontológico do ser-aí. A compreensão não é um problema psicológico ou expressão vital, mas um existencial (e não uma categoria ou potência), constitutivo do homem, assim como a discursividade, isto é, a linguagem, e o sentimento de situação. A hermenêutica se fará, pois, não uma arte de interpretação mas interpretação originária do homem e do ser, 25

id.p.21

26

Frank MILHOLLAN e Bill E. FORISHA. Skinner e Rogers. p.131.

27

id. p.140-141.

38


isto é, faz-se filosofia. Interpretação que é sempre circular, como a propria estrutura do ser humano: “Toda interpretação, para produzir compreensão, deve já ter compreendido o que vai interpretar”28. O contexto significativo, como condição da compreensão, deve ser antecipado, pré-compreendido, para que se possa compreender algo, uma vez que algo só é compreendido enquanto referido ao contexto. O mundo, como horizonte da compreensão, o contexto, acontece na linguagem “porque toda compreensão se consuma na linguagem e nela se constitui o horizonte histórico da compreensão”29. É na linguagem que o Ser chega à fala e que a compreensão original do Ser se expõe historicamente. O problema fundamental da hermenêutica é aquilo que Heidegger denominou círculo hermenêutico e que Ladrière sintetiza assim: “No domínio da hermenêutica encontramo-nos com uma identidade entre o sujeito e o objeto. O objeto não pode ser apreendido senão através dos instrumentos de compreensão fornecidos pelo sujeito, mas a maneira pela qual o sujeito elabora seus instrumentos é determinada pelo conjunto de sua situação; ora é essa situação que constitui precisamente o objeto estudado que nos esforçamos por compreender... O conhecimento que se adquire do objeto modifica o próprio objeto e por conseqüência modifica o sujeito que o interpreta”30. Se todo conhecimento e compreensão nascem como pergunta, esta supõe, para ser feita, que se saiba o que se pergunta, do contrário a pergunta não teria direção nem sentido; supõe também um ainda não saber que se vislumbra no já-saber e por fim supõe um querer saber. Como se vê, o contexto é antecipado para compreensão do texto, e depois o estudo do texto clarifica e aprofunda a compreensão do contexto. Um não é causa e o outro não é efeito. Há uma reciprocidade de imbricação. Há um círculo de compreensão, que não é o círculo vicioso mas a própria essência da compreensão. A hermenêutica foi, desde muito, o método próprio da teologia. Aliás a teologia seria impossível de outro modo. O teólogo é aquele que busca compreender, sistemática e rigorosamente, a palavra, a mensagem de Deus e traduzí-la aos homens. Para isso necessita: 1) que seja 28

Martin HEIDEGGER. L’être et le temps. p.152.

29

Emerrich CORETH. op.cit.p.46.

30

Jean LADRIÈRE. op.cit.p. 46.

39


capaz de compreender a linguagem de Deus, que entenda o que Deus diz; 2) que traduza essa mensagem da linguagem de Deus em linguagem dos homens e assim transmita a mensagem aos homens com fidelidade. Esse trabalho de interpretação e tradução se exerce sobre uma mensagem a transmitir. A hermenêutica seria então a arte da compreensão e a doutrina da boa interpretação. Embora não seja segura a origem etimológica, esta contudo pode iluminar ainda mais o significado de hermenêutica. Seria o trabalho originário realizado por Hermes, o mensageiro entre os deuses e os homens, na mitologia grega. Hermes ouve dos deuses a mensagem para os homens e para isso compreende a língua dos deuses e a traduz em linguagem humana a fim de que a mensagem chegue ao distino. Desse trabalho de Hermes nasceu a linguagem. A hermenêutica é a essência originária da linguagem. A linguagem, por outro lado, nasceu na região do encontro entre os deuses e os homens. Ela é esse encontro. A linguagem que constitui a existência humana, é uma tarefa de mediação entre Deus e os outros. Ela é essencialmente testemunho e profecia, dirá Marcel. E sem Deus e sem os outros homens, a linguagem é uma impossibilidade. A hermenêutica nasceu para ser uma ciência dos fatos humanos, em contraposição às ciências naturais. Dilthey procurará nela uma lógica dos fatos históricos; Heidegger fará dela uma ontologia da compreensão; Gadamer fará dela a filosofia; Emílio Betti a fará não só uma técnica da interpretação mas a teoria normativa da interpretação. Pode-se dizer também que Austin, P. Lorenzen, Ryle e Evans fizeram dela um método científico de interpretação da linguagem. O mesmo talvez se possa dizer de Chomsky. A hermenêutica, enquanto ciência, permanece referência ao sistema. Ao sistema de todas as intencionalidades. Contudo, se as ciências formais e empírico-formais são pseudo-reflexão, porque acontecem fora de seus resultados e do próprio movimento operatório, como se viu no capítulo anterior, a hermenêutica, enquanto põe à luz significações, enquanto assume a significação em si mesma, pois nela as significações se mostram precisamente em sua função significativa, remete ao movimento fundamental de desvelamento, que é a própria existência. Existência que não é outra coisa senão surgimento puro do sentido, o vir à luz da significação. A significação é significação dela própria como atividade. E, enquanto busca evidenciar a vida significativa como termo último de referência de toda significação, já é verdadei40


ra reflexão, porque nela a vida significativa se interioriza, se reconquista a partir de seus produtos e refaz, no movimento segundo do pensamento crítico, o ato original de produção pelo qual ele se põe como vida significativa31. Que as ciências formais e empírico-formais não sejam capazes de abarcar toda linguagem parece hoje evidente, não só por exigência do pensamento como também pelo fato de a analítica da linguagem estar voltada para a linguagem natural como horizonte de interpretação. No entanto, a própria hermenêutica, enquanto permanece exclusivamente ciência, também é incapaz de compreender a totalidade do fenômeno lingüístico. Uma hermenêutica científica não é mais rigorosa, apenas mais limitada que uma hermenêutica metafísica, e essa por sua vez mais limitada que uma hermenêutica ontológica. Se as ciências formais, empírico-formais e hermenêuticas não se fundam a si próprias e, caso buscassem fazê-lo, seriam um contrasenso enquanto permanecem exclusivamente científicas, deve-se dizer que nenhuma das ciências é para a outra ou outras uma metalinguagem. Nelas não há linguagem privilegiada que se auto-elucide e elucide as demais. Contudo há entre elas um vínculo subentendido. É a questão da verdade que se pressupõe em si mesma. “Sabemos já o que é a verdade quando nos lançamos na conquista do saber; a idéia de verdade nos guia efetivamente. Seus pressupostos, porém, não podem ser inteiramente elucidados, pois não há para nós nem verdade acessível sob a forma de um dado puro, nem verdade totalmente acabada sob a forma de um a priori. A verdade está sempre por se fazer. Ela se precede, pois, e se anuncia ao mesmo tempo. Ela nos esclarece, mas permanece enigmática”32. A filosofia teria então o trabalho de mostrar (tarefa infinita) como a compreensão pode ser compreendida. Nisso a filosofia (se não fosse metafísica) seria ao mesmo tempo a “confissão de sua impotência e a audácia de uma esperança aberta sobre o infinito”33. As ciências da linguagem, enquanto não só permitem mas buscam um fundamento, já se encontram no horizonte da filosofia, quer da filosofia como metafísica, quer da filosofia enquanto ontologia. 31

id. p.183 ss.

32

id.p.49.

33

id.p.50.

41


42


4 A METAFÍSICA COMO HORIZONTE DA LINGUAGEM

Na metafísica a linguagem aparece como um conjunto de sinais arbitrários que expressam um pensamento, sendo o pensamento a representação, a duplicação das coisas. A linguagem é articulação fonética e significação34. Os elementos essenciais são a expressão e a significação (Phoné Semantiqué). A linguagem como exteriorização fonética de sentimentos, de movimentos vitais internos, de idéias, é obra humana. Ao som sensível associa-se um dado não sensível, o significado. O conjunto é uma palavra. “A essência da linguagem é concebida à luz das idéias de expressão, de forma simbólica, de comunicação enunciativa, de manifestação da vida vivida ou de estruturação da vida, nunca vista na totalidade da existência”35. Aristóteles dizia que as letras são sinais da voz (palavra), as vozes são sinais das paixões da alma, e estas são sinais das coisas36. A linguagem é logos e este é propriedade do homem. O homem é Zoon lógon éxon (o ser vivo que tem, que possui o logos). O logos, como fato do homem, se articula como juízo e como lógica. Há por trás dessa compreensão da linguagem uma antropologia e uma cosmovisão metafísicas. O logos é razão e como tal é método para explicar metafisicamente (a metafísica se move sempre no campo da explicação) as coisas, ligando-as causalmente a um primeiro princípio, a uma causa primeira. A causa primeira, justificativa lógica de toda contigência, é absoluta, unidade da diversidade, onde todo relativo

34

Thomas Ransom GILES. op.cit.p.283.

35

Martin HEIDEGGER. L’être et le temps.p.201.

36

Thomas Ransom GILES. op.cit.p.285.

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morre afogado no necessário. A lógica conduz apoditicamente à causa primeira, que se confunde com o princípio último, a razão última de explicação. A causa primeira é causa primeira porque é princípio último e não vice-versa. O que a constitui causa primeira e fundamento é o fato de ser princípio último do logos, a última razão explicativa. Nessa cosmovisão, a perspectiva mítica e a fé aparecem como ingenuidade e ilusão, tendo em vista que colocam como fundamento um “destino” inexplicável. A perspectiva parabólica, narrativa, da linguagem mítica e religiosa aparece como uma deficiência que deve ser vencida, como ambigüidade que deve ser reduzida à univocidade através de processos lógicos da definição categorial. A fé e o mito são, então, pré-racionais, no sentido que devem ser ultrapassados, como uma etapa para chegar ao mais completo e maduro. Os povos que as vivem são chamados de primitivos. As categorias expressam a essência das coisas, são em nós uma duplicação, uma representação da essência das coisas ou dos acidentes referidos sempre à essência. Assim a gramática, a ciência da linguagem correta, é a ciência linguagem lógica e se estrutura à base das dez categorias (hoje a lingüística admite nove), uma das quais expressa a substância e nove expressam os acidentes. O substantivo é o essencial da linguagem.O verbo, como substantivo temporalizado (e tempo é acidente), fica um pouco difícil de compreender. O tempo, como dimensão existencial, não cabe na metafísica; por isso, quando as ciências (que nasceram da metafísica) se referirem ao sincrônico e diacrônico da linguagem, falam linguagem que não compreendem, ao menos enquanto permanecem na perspectiva metafísica. Na metafísica, o homem é a medida de todas as coisas, muito embora (e por isso mesmo) se pense que a objetividade seja o critério da verdade. O homem, enquanto subjetividade, é o centro. A essência e propriedade do homem é o logos (o Cogito, dirá Descartes; o quero, dirá Nietzsche). O logos é o meio, o caminho que possibilita ao homem tomar posse, dominar o fundamento dos entes e os entes. A vontade de poder é o cerne do pensamento (da metafísica), dirá Nietzsche. A linguagem é método, é lógica, instrumento de domínio. Aquilo que é alcançado pelo método é o meta-físico, o fundamento, o “theos”. Assim a metafísica que busca edificar o pensamento na interdependência de fundamento e fundado, é lógica; é ôntica porque nela o Ser aparece exclusivamente enquanto fundamento do ente; é teista enquanto o fundamento é o 44


“theos” (Deus). É por isso, onto-teo-logia. O metafísico, o deus colocado logicamente como fundamento dos entes é o domínio do homem enquanto subjetividade. E Deus, como posse e domínio do homem já deixou de ser Deus. É por isso que na metafísica, há o retraimento de Deus, o esquecimento do Logos e o extravio dos entes. Não importa que se diga depois que o caminho para alcançar o Ser não seja o “lógico” e sim o emotivo, a intuição, etc., etc. O que importa é que, na metafísica, o Ser é propriedade do homem, seja qual for o caminho pelo qual é alcançado. O homem é dono do Ser e dos entes, é dono de si mesmo e dos outros. Nesse âmbito não há que falar em Dom, apelo, resposta, eu, tu, mistério. Não há simplesmente que falar, pois já não se sabe de que se fala. Este sonho prometeico de iluminar todos os entes, desnudandoos em seu ser e expondo-os na vitrina dos conceitos, foi o ideal dos gregos e passou a ser o ideal de todo o Ocidente. O homem, como um demiurgo, o homem que não é deus somente porque lhe falta a eternidade, é aquele que é capaz de conhecer todas as coisas, os entes e o Ser. A linguagem (o lógico) é o instrumento desse poder. O homem domina tudo pelo logos, que é sua essência e propriedade. O homem é razão: animal racional. O homem é essencialmente sujeito diante de quem tudo é objeto. “Com a subjetividade dos sujeitos nasce a objetividade dos objetos. Assim a metafísica ocidental é representação de objeto. A subjetividade inicia com Platão e cresce com Descartes, atingindo seu ápice em Nietzsche, nas ciências modernas e na primazia mundial da técnica”37. Diante do sujeito, os outros homens são objeto e o próprio homem como sujeito é objeto de si próprio e para si próprio. O Ser e os entes são objeto de manipulação do homem. Essa manipulação se concretiza como experimentação, como verificação e matematização. Assim a episteme aristotélica é a demonstração causal pela qual se mostra apoditicamente como algo deve ser para ser aquilo que é. O dever-ser quem o estabelece é o logos. A episteme se baseia em princípios, e em princípios últimos, tais como os da não-contradição, o da identidade, o do terceiro excluído. Esses princípios, evidentes por si sós, e em si sós, são a luz na qual tudo é visto e organizado. A ciência impõe uma visão, obriga ao assentimento. O outro homem, através do conceito universal articulado (lugar onde 37

Ernildo STEIN. O Transcendental e o problema de Deus em Heidegger.p.46.

45


reside a única possibilidade da verdade), é convencido, isto é, vencido. A verdade que só se faz de universais, não se refere ao singular, ao histórico, ao pessoal, senão enquanto faz parte do universal. O singular não deve ser considerado, pois pertence ao reino da empiria, da opiniática popular. A sociologia dirá mais tarde: não interessam as idiossincrasias e sim os padrões de conduta. A única chance de compreensão entre os homens é o conceito universal. O singular é incompreensível. A objetividade como critério de verdade nasce desse horizonte metafísico no qual o homem como subjetividade é o núcleo central. A objetividade é o critério de verdade de todo o Ocidente. As ciências nasceram quando este critério se impôs, renasceu (Renascimento). Copérnico, Galilei, Newton, Bacon, Ockam nadam nessas águas. Nesse âmbito nasce a Reforma religiosa. Nesse âmbito nasce o Estado Moderno. Nesse âmbito nasce o capitalismo mercantilista, industrial, financeiro e burocrático. Nesse âmbito surgem as invenções da imprensa, da pólvora e da bússula. Nesse âmbito é descoberto o mundo e surgem as utopias. E nesse âmbito se estruturam as gramáticas modeladas na gramática grega. Nesse âmbito surge o racionalismo cartesiano, o empirismo, o iluminismo, a democracia moderna, o positivismo, o idealismo, as ideologias, o mundo de hoje. Nesse âmbito nasceram os dualismos e as discotomias de materialismo e espiritualismo. A metafísica domina, assim, toda a cultura ocidental. E a linguagem também será pensada nessa perspectiva, mesmo e quando se busca para o humano uma ciência específica. A linguagem será estudada na fisiologia, na psicologia, na lógica e na sociologia. Não importa o critério de verificação que se adote, pois que a linguagem será sempre visada como verificável objetivamente. Mas como se verificará o silêncio, o inconsciente, o segredo, o mistério? Como se deverá tratar o que não se verifica, o que não é objetivo? Logicamente como algo subjetivo, inventado, ilusório, irreal. Assim se reduz a linguagem ao verificável e objetivo. Assim a metafísica oculta a linguagem e a mutila. Para alcançar um horizonte onde a linguagem possa mostrar-se tal qual é, é preciso perguntar não só pela possibilidade de uma ciência da linguagem como também pela possibilidade de uma metafísica da linguagem. De nada vale juntar dicotomias nascidas da metafísica e dizer que a linguagem é língua e fala, sintagma e paradigma, sincronia e diacronia... não basta dizer da linguagem o que a metafísica permite 46


que se diga, mas é preciso compreender por que a metafísica somente permite dizer isso da linguagem. É preciso compreender a metafísica em sua origem e fundamento. Qual o caminho que nos leva além da metafísica, à origem e fundamento da metafísica e, por isso, à própria metafísica? Heidegger apontou pistas para uma re-petição, para uma destruição da metafísica ocidental. G. Marcel declarou outros caminhos. É preciso percorrê-los. Quem sabe não devam ser dados outros passos! Todo pensamento de Heidegger é um esforço por destruir a metafísica alcançando-lhe os fundamentos e a possibilidade. A metafísica ocidental é gêmea do fenômeno do esquecimento do Ser. A questão prévia do sentido da verdade do Ser é o fio condutor desse trabalho de re-petição dos fundamentos da tradição ocidental. Assim ele vê a doutrina de Platão como uma mudança na “essencialização da verdade” e a constituição onto-teo-lógica da metafísica, permanecendo a essencialização da metafísica no esquecimento. Assim vê em Aristóteles o sistematizador da metafísica; na Crítica da Razão Pura de Kant a “fundamentação da metafísica”; na Lógica de Hegel e no nihilismo de Nietzsche, a “consumação” da metafísica; na poesia de Hölderlin e Rilke, ou no “Tempo de penúria” de Mörike, um anúncio da volta ao originário, além do metafísico. A superação da metafísica não depõe a metafísica mas a repõe em sua constante verdade, recompondo-lhe a essencialização originária38. “A metafísica é o fundamento em que se edifica toda a civilização ocidental. A tecnocracia desenfreada, o império da ciência, a estetização da arte, a fuga dos deuses, a massificação do homem, a organização planetária, a disposição da natureza, os estados tatalitários, a despotencialização do espírito, todas essas manifestações do mundo ocidental são criações e obras do predomínio da metafísica”39. O esquecimento do Ser na metafísica, enquanto se consuma na técnica planetária de hoje e cria para o homem esse mundo doloroso, é ainda o que mais dá a pensar, é ainda a maior pro-vocação ao pensamento e, por isso, o que merece ser pensado. No vórtice ensurdecedor da técnica o que mais se faz ouvir é ainda o silêncio, o deserto, o Ser esquecido, como chance de recuperação do originário ouvir e falar. 38

Carneiro LEÃO. Introdução à Metafísica de M. Heidegger.p.19.

39

id. p.22

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Para recuperar a metafísica é preciso ir buscar o originário donde nasce a metafísica. Antes da metafísica houve o pensamento dos que a metafísica denomina de “pré-socráticos”. Na verdade “os chamados filósofos pré-socráticos não são filósofos. São mais do que isso. São pensadores do Ser”40. A metafísica assim os denominou para canonizar Platão e Aristóteles como modelos de todo pensamento ocidental. Mas, se estudarmos esses pré-socráticos, não naquilo que disseram e que a metafísica disse que disseram e no sentido que a metafísica o entendeu, se ouvirmos o não-pensado do pensado e interpretarmos o pensado pela mensagem do não-pensado, então poderemos perceber na voz desses filósofos a voz do Ser e não apenas a voz dos entes (que, ao final das contas, só é voz da subjetividade); então poderemos morar e demorar noutra instância que não na da metafísica. Se não o conseguirmos ler “é porque o alarido da metafísica enchendo-nos os ouvidos do esquecimento do Ser, nos torna surdos para a voz da origem”41. É preciso libertar a linguagem da gramática “para um contexto essencial mais originário” e isso está reservado ao pensar e ao poetizar42. Quando a filosofia busca ser o que seu nome a conclama a ser (amor à Sabedoria) e não permanece apenas metafísica mas se faz ontologia, então ela busca interpretar o sentido de toda a linguagem. Da linguagem operatória das ciências empíroco-formais, da linguagem formal da lógica e da metemática, da linguagem interpretativa das ciências hermenêuticas, da linguagem auto-implicativa da fé, da linguagem de todos os sistemas lingüísticos como tais. A ciência formal tende ao sistema, mas o campo formal absoluto, que representa a antecipação vazia de um sistema total não é o campo absoluto simplesmente. Não é senão uma espécie de ‘a priori’ em relação à ‘physis’ e ainda não representa, sem dúvida, senão uma regiäo particular do ‘a priori’ enquanto meio operatório. Do mesmo modo a interpretação tende em última análise a encontrar a totalidade da vida significativa. Mas a vida significativa não é a vida absoluta. A filosofia inicia no movimento em que o pensamento se torna capaz de

40

id.p.25.

41

id.p.25.

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Martin HEIDEGGER. Sobre o Humanismo. p.25-26.

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trazer à luz a dimensão da vida universal como vida absoluta”43. Isso implica em buscar programaticamente a fundação última do sistema de atribuição na evidência das formas, fundação última das construções na operatividade em relação à natureza, fundação última das significações na vida do sentido em relação à ação. Para isso é preciso ultrapassar toda regionalidade, buscando um saber da totalidade regressiva e prospectivamente. Saber da totalidade que é ao mesmo tempo um retorno ao berço absolutamente inicial de fundação e um alargamento de horizontes até o horizonte último de um desenvolvimento universal. Compreender a fundação enquanto fundação, a partir do modelo de nossa própria ação, buscando coincidir com essa atividade originária imanente e ao mesmo tempo infinitamente distante de toda a atividade egológica, é fazer da filosofia um pensamento de constituição, colocado no interior dessa atividade constituinte. Por qual método se fará isso? Representado em que modelo? Pela intuição? Pela análise regressiva? Pela reflexão? “A compreensão própria à maneira filosófica de inteligibilidade é a de um pensamento que visa encontrar uma origem absoluta e coincidir com ela”44. A filosofia, evidenciando a lei de formação da totalidade, lei captada em sua origem, em seu funcionamento constitutivo e autoconstitutivo, toma a forma de um sistema. Seja o de uma reflexão total na qual se revela toda a vida do espírito absoluto, seja ainda o de uma descrição do vir-a-ser, no qual o absoluto se faz, seja enfim o de uma descrição da hierarquia dos graus de ser no esquema da analogia, a filosofia é sempre anseio de junção, de vinculação, fundado na exigência unificadora que é a própria fonte absoluta. “Assim os saberes se diversificam, a inteligibilidade se pluraliza, o logos se fragmenta. Sem dúvida, suas diferentes figuras históricas são chamadas a se reencontrarem no tempo da consumação sob a forma de uma celeberação comum do verdadeiro; não podemos, porém, nos representar essa coincidência. Não podemos senão marcar as diferenças e sublinhar mais ou menos as analogias que, passo a passo, estabelecem uma comunicação secreta entre as diferentes visadas do verdadeiro. Não há para nós comunicação visível e explícita senão nas origens, isto é, na visada fundadora de uma

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Jean LADRIÈRE. op.cit.p.184.

44

id.p.185.

49


crítica universal, compreendida como condição de instauração de um discurso adequado, isto é, de um sistema exaustivo da palavra”45. Como, porém, podemos marcar as diferenças e sublinhar as analogias se não vivemos, ainda que seja na esperança, o originário como palavra exaustiva? Na verdade o “espírito humano traz em si mais do que pode conhecer a cada instante; jamais cessou de caminhar adiante de si mesmo”46. A filosofia que busca a metafísica em sua origem, já não é metafísica, mas ontologia. A compreensão da linguagem exige como condição um posicionamento ético. A comunidade de comunicação é condição da possibilidade da ciência e da linguagem.46A. A verdade e o valor da ciência e de toda linguagem pressupõe esta decisão ética. A decisão ética não é fruto de um silogismo lógico. A ética em Aristóteles, na verdade, ou é apenas moral ou é um conhecimento anterior e mais fundante que a filosofia. É preciso pois, repensar os graus de saber por causas e sua recíproca relação: do saber fazer como técnica ou arte, do saber agir como ética, do saber saber como epistema e do saber os primeiros princípios como noesis. Não é verdade que cada um é superado pelo outro nível e por isso fundado por ele. À ética pode fundar todos os outros e não ser apenas um saber agir com conhecimento de causa. A ética como pressuposto do pensar exige que a metafísica seja superada pela ontologia.

45

id.p.186.

46

Jean LALOUP. A Ciência e o Homem. p.63.

46A

Karl Otto APEL. La transformación de la Filosofia I - II.

50


5 A ONTOLOGIA COMO HORIZONTE DA LINGUAGEM

A Metafísica viu a linguagem como propriedade do homem. Aristóteles, o sistematizador da Metafísica, inverteu a relação dos termos “homem”, e “logos”, tal como a vira Heráclito. E a metafísica é resultante dessa inversão. Heráclito havia dito: Lógon ántropon éxon (o Logos tem o homem). Aristóteles: o homem é zóon lógon éxon (o homem é um ser vivo que tem o logos). Na visão metafísica de Aristóteles a linguagem é um bem e propriedade do homem. A linguagem é um poder, uma faculdade, uma atividade do homem. Para Heráclito a linguagem também poderia ser um bem para o homem, como o disse Hölderlin, mas é um bem porque o homem pertence ao Logos. Na metafísica, o Ser, embora condicione a possibilidade da linguagem, é vazio, um princípio lógico, e conseqüentemente, toda a linguagem perdeu a força de apelo. O homem se perde na linguagem. Nela não se sabe mais do que se trata. Para alcançar a essência da linguagem, só nos resta voltar ao pensado e impensado de Heráclito. Aí o homem, como propriedade do Logos, é clareira na qual o Ser se desvela como presença que fala na linguagem. É porque o homem é pastor do Ser, dizedor, mostrador, clareira do Ser, que ele fala. É porque ele corresponde ao Logos, porque escuta o Ser, porque em seu recolhimento o Ser se patenteia como o silêncio que fala, que o homem tem a palavra. É somente quando a Palavra tem o homem que o homem fala. A essência da linguagem não está no dizer, no proferir, no vociferar, atribuindo significado aos entes, mas está no ouvir, no perscrutar os segredos do Mistério que se faz presente no silêncio do dito, e que no presente nos apela escondido. O ouvir não é conseqüência do falar, como o diz J. Marias47. 47

Julian MARIAS. Antropologia Metafísica. p.221.

51


“O ouvir é constitutivo do discurso. (...) Quando não ouvimos não entendemos. (...) Ouvir é a abertura existencial do ser-aí face ao outro, enquanto o ser-aí é ser-com-o-outro. O ouvir constitui mesmo a abertura primordial e autêntica do ser-aí”48. Na metafísica não há lugar para o ouvir. A metafísica interpreta o ouvir como passividade, como efeito do dizer, como derivado, inferior e desumano. Para a metafísica o sentido fundamental é o ver pelo qual se constata, se verifica, se comprova a pretensão subjetiva. Pelo olho se toma posse. O ouvir como um permitir que o outro se erga como outro junto a nós, como um acolher o outro, como disponibilidade, como amor e silêncio, não pode mesmo caber na perspectiva do homem visto como subjetividade. Por isso na metafísica não há lugar para a linguagem. Só há lugar para a tagarelice, para o ruído do dizer e do fazer. A metafísica é um ato de rebelião, de imposição, de auto-afirmação desconfiada: nela não cabe a audiência obediente. Nela já não se ouve a voz do Ser, seu apelo e seu destinar histórico; Nela só se escuta o imperativo adolescente da voz da subjetividade. Nela não se ouve a voz do homem nem a “reverberação” da voz do homem permitindo a cada ente mostrar-se tal qual é. Nela só acontece a veleidade e a arbitrariedade. Nela, ao invés do desvelamento recatado e nupcial do Ser, acontece a violentação caprichosa dos entes e do homem, exorcizando o Ser para o escondimento. O homem é propriedade do Ser. É o Ser que o erige como sua clareira, como o seu lugar. No recolhimento diligente do homem o Ser assume a palavra. “O pensamento dócil à voz do Ser procura encontrarlhe a palavra através da qual a verdade do Ser chegue à linguagem”49. O ser requisita o homem para falar, e a “primeira questão é saber como o Ser atinge o homem e o requisita”50. “A linguagem é a casa do Ser. Em sua habitação mora o homem. Os pensadores e poetas lhe servem de vigias. Sua vigilia é consumar a manifestação do Ser, porquanto, por seu dizer, a tornam linguagem e a conservam na linguagem”51. “Em sua essência a linguagem não é nem

48

Martin HEIDEGGER. L’être et le temps. p.201.

49

. Que é Metafísica. p.46.

50

. Sobre o Humanismo. p.49.

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id.p.24-25.

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a exteriorização de um organismo, nem a expressão de um ser vivo. Por isso também ela nunca pode ser pensada de acordo com sua essência a partir de seu caráter semasiológico, nem talvez mesmo a partir de seu caráter significativo. A linguagem é o advento do próprio Ser, que se clareia e se esconde”52. Para que a linguagem seja a casa do Ser é preciso que o pensamento do homem seja o pensamento do Ser. Pensamento do Ser enquanto pro-vocado pelo Ser, auscultado. Para tanto o pensamento precisa ser libertado da interpretação técnica que vê o pensamento como uma “techne”, “o processo de calcular a serviço do fazer e operar”53. O pensamento se faz assim (sob a técnica) teoria e como tal sente constantemente a necessidade de justificar sua existência diante das ciências54. Abandonando o Ser como o elemento do pensar, atrela-se o pensamento à lógica e se julga que o rigor do pensamento resida apenas na “exatidão artificial, isto é, técnico-teórica dos conceitos. Mas o rigor do pensamento se edifica na medida em que seu dizer permanece exclusivamente no elemento do Ser e deixa vigorar a simplicidade de suas múltiplas dimensões”55. O pensamento do Ser é simples e por isso se torna irreconhecível aos olhos da metafísica e “cresce a suspeita de que o pensamento do Ser sucumba à arbitrariedade, uma vez que ele não pode se ater ao ente”56. Mas o pensamento do Ser, porque simples, é sem lei? Jamais a primeira lei do pensamento, porém, não são as normas da lógica. A primeira lei do pensamento é destinar o dizer do Ser como o destino da verdade. Pois é pela lei do Ser que as regras da lógica chegam a ser regras57. E mais essencial, para o homem, do que todo e qualquer estabelecimento de regras, é encontrar um caminho para a morada na Verdade do Ser58. Mais

52

id.p.45.

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id.p.26.

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id.p.26.

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id.p.27.

56

id.p.98.

57

id.p.99 ss.

58

id.p.95 ss.

53


essencial que pensar logicamente é pensar a Essência do logos59. Na busca de um pensamento mais rigoroso que o conceitual, necessitamos ultrapassar a filosofia com seus ramos e normas, ir mesmo além das normas ‘éticas’, pois, “com a ‘lógica’ e a ‘física’, a ‘ética’ aparece pela primeira vez na escola de Platão. Surgiram no tempo em que o pensamento se tornou ‘filosofia’, a filosofia se fez episteme (ciência), e a própria ciência se transformou numa tarefa (Sache) de escolas e de atividades escolásticas! Através da filosofia assim entendida, nasceu a ciência e pereceu o pensamento. Antes desse tempo, os pensadores não conheciam nem ‘lógica’ nem ‘ética’ nem ‘física’. Todavia seu pensamento não era nem ilógico, nem imoral; e a physis, eles a pensaram numa profundidade e envergadura que toda a ‘física’ posterior nunca mais conseguiu atingir”60. Mas o pensamento é uma aventura. O pensamento “está preso ao advento (avènement) do Ser, ao Ser como ad-vento. O Ser já se destinou sempre ao pensamento. O Ser é como o destino do pensamento. Transformar em linguagem, cada vez, esse ad-vento permanente do Ser que, em sua permanência espera pelo homem, é a única causa do pensamento61. O pensamento constrói na casa do Ser. “O pensamento não cria a casa do Ser”62. “Em seu dizer, o pensamento eleva apenas à linguagem a palavra impronunciada do Ser(...). Clareando-se, o Ser chega à linguagem. Ele está sempre a caminho da linguagem. Assim a linguagem é elevada à clareira do Ser. Somente assim a linguagem é naquele modo misterioso que nos atravessa sempre com seu vigor. É na medida em que a linguagem, levada, destarte, à plenitude de sua Essência, for histórica, que o Ser se conserva na memória. É pensando que a ecsistência habita a casa do Ser”63. Quando, porém, já não se pensa, quando a filosofia se transforma numa técnica de explicação pelas últimas causas, cai-se na ditadura da publicidade. A linguagem, sob essa ditadura, numa objetivação sem 59

id.p.77.

60

id.p.84-85.

61

id.p.98.

62

id.p.91.

63

id.p.93.

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limites, será instrumento “a serviço da transmissão dos meios de troca”64, faz-se comércio. Oculta de sua referência ao Ser, a linguagem se esvazia e ameaça a própria Essência do homem. “A decadência da linguagem, ultimamente muito comentada e com bastante atraso - não é a causa mas já uma conseqüência do processo pelo qual a linguagem, sob o domínio da moderna metafísica da subjetividade, decai quase inevitavelmente de seu elemento. A linguagem continua a recusar-nos a sua Essência, a saber, que é a casa da Verdade do Ser. Ao invés ela se entrega, simplesmente, como um instrumento para o domínio do ente, ao nosso querer e às nossas atividades”65. Pensar é deixar-se apelar pelo Ser, é existir no inefável, no misterioso e no simples como o caminho do campo66. No pensamento desvelado e cuidadoso do pensador e do poeta “a proximidade calma de um vigor, que se impõe à força”, se essencializa como linguagem67. E a linguagem é então a casa do Ser, edificada em sua propriedade pelo Ser e disposta a partir do Ser, a morada da essência do homem68. Mas que é o Ser? A metafísica vê o Ser como um ente, como um aspecto (idéia), como o presente (das Auswesende), ou criticamente como o visado na prospectiva da representação categorial por parte da subjetividade69. O Ser, porém, não é um ente, nem é parte ou aspecto de um ente, nem é a soma dos entes, nem é o presente, nem o princípio lógico visado pela subjetividade. Não é “o mundo nem o fundamento do mundo, nem Deus”70. O Ser é o mais próximo e o mais distante. Mais próximo e mais distante do que qualquer ente. O Ser se mostra na causa, muito embora não consista em ser causa. Também não é efeito, fim, valor, embora em

64

id.p.31.

65

id.p.33.

66

. O Caminho do Campo.p.69 ss.

67

. Sobre o Humanismo. p.54.

68

id.p.55.

69

id.p.52.

70

id.p.51.

55


tudo isso ele possa desvelar-se, permanecendo escondido. O Ser é o inefável, o misterioso. Na experiência da Verdade do Ser aparece o Sagrado. No âmbito do sagrado se mostra o divino. No horizoante do divino pode-se nomear a Deus. Não se pode confundir o Ser com o transcendental da metafísica. O transcendental da metafísica é uma exigência lógica de unidade da diversidade. O transcendental é explicado e fundado em sua transcendentalidade pelo transcendente que, como “causa sui”, “motor imobilis”, se denominou Deus. Mas essa onto-teo-logia não resolve nem o problema de Deus nem o problema do Ser. "Este é esquecido e aquele morre”71. Por isso Nietzsche, na consumação da metafísica ocidental constatará: Deus está morto. A metafísica, desde o início o matara ao esquecer o Ser e ao projetar a subjetividade do homem como o Ser. Na verdade só falava do ser dos entes e de um ente feito efetividade, como material de trabalho72. O Ser e Deus aparecem apenas enquanto satisfazem uma necessidade lógica de fundamentação, de justificação da temporalidade e da finitude.73. Esse Deus, porém, é inoperante: “Esta é a causa como ‘causa sui’. Assim soa o nome adequado para o Deus da Filosofia. A esse Deus o homem não pode rezar nem sacrificar. Diante da ‘causa sui’ o homem não pode cair de joelhos, no temor, nem pode diante desse Deus tocar música e dançar”74. Mesmo o Deus cristão da teologia aliada à metafísica está morto: “O Deus cristão perdeu seu poder sobre os entes e sobre a determinação do homem. O Deus cristão é ao mesmo tempo a representação exemplar para o além-sensível em geral e suas diversas interpretações, para os ideais e normas, para os princípios e regras, para os fins e valores, erguidos sobre o ente, para lhe darem, em sua totalidade, um fim, uma ordem e - como sinteticamente se diz - dar um sentido”75. E mesmo como objeto da fé, se isto fosse possível, esse Deus é pura aparência. Observe-se, porém, que Heidegger fala da teologia e da fé vinculadas à metafísica e não simplesmente da 71

Ernildo STEIN. O Transc. e o Probl. de Deus em Heidegger. p.52.

72

Martin HEIDEGGER. Sobre o Humanismo. p.65.

73

Ernildo STEIN. O Transc. e o Probl. de Deus em Heidegger. p.45.

74

Martin HEIDEGGER. Identidade e Diferença. p.70.

75

. Nietzsche II. p.33

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teologia e fé cristãs. Há um modo de fazer teologia que não o da metafísica. Mas o pensamento que pensa o Ser, que não é metafísica, pensao como mistério. No perscrutar vigilante pelos sinais dos tempos, despojado da subjetividade, na disponibilidade e indigência, muito aquém (e por isso muito além) do racional e lógico, o homem como pastor do Ser, vive o Ser que se lhe faz o destino e dom. “O Ser é dom. É dom pelo qual é dado o próprio ente. O Ser se dá a alguém. Ele se oferece por excelência ao homem. Em última análise, o homem é, porque recebe o dom do aberto, da verdade, do Ser. É por esse dom originário que o Ser dá ao homem a sua essência”76. A essência do homem é a ‘Ereignis’, acontecimento-apropriação, pela qual o Ser é dom, e o homem acolhimento e gratidão. O Ser é dom. Mesmo na metafísica, para se compreender a causalidade, deve-se chegar a esse dado originário. Para não incidir numa cadeia causal infinita e impossível, a causa primeira deverá conter em si mesma a finalidade do seu agir. Seu agir é sem causa, é um agir sem motivo ou interesse, um agir que se basta a si mesmo. Um agir, portanto, gratuito e, por isso livre e liberado. Dom que não tem outro motivo senão dar-se. Contudo a metafísica não mantém na linguagem o Ser como dom porque não pode ou não quer pensar o homem como ‘Ereignis’. O homem como subjetividade não pode acolher, receber, ouvir, escutar o que o Ser lhe dá. Por isso esquece o Ser como dom e o pensa como afirmação e justificativa para a limitação do homem, como o justificador lógico de uma necessidade de superar a finitude. O dom é mistério. O dom não é o problemático. Seguindo G. Marcel77, diremos que o problemático se refere a um ente que se apresenta como um desafio a ser resolvido. O problemático é sempre solúvel, embora não imediatamente, e a possibilidade de resolvê-lo é o cálculo, o lógico-matemático, o racional, pelo qual prevemos e pro-vemos. O problema sempre se encontra dentro de um sistema, e a solução consiste em referí-lo à totalidade do sistema ou em inventar novo sistema (nova teoria ou hipótese) mais universal que o primeiro e que seja capaz de abranger o novo problema. O problema se explica, 76

Ernildo STEIN. O Transc. e o Probl. de Deus em Heidegger. p.45.

77

Gabriel MARCEL. op.cit. 177-187.

57


pois, através de leis gerais que se expressam lógico-matematicamente. O problemático se refere ao desconhecido, que deve ser demonstrado apoditicamente, aprisionando-o no método da causalidade lógica. Resolvido pela técnica, que é expressão da vontade de poder do homem, o problema desaparece, e a técnica (problema resolvido e vencido) se faz, cumulativamente, instrumento do homem para resolver sempre novos problemas. As soluções técnicas dos problemas se acumulam e a isso se denomina progresso. A história, porém, não se identifica com o progresso. Ao problemático o homem vence, e ao homem que se apresenta como problema o homem convence. O vencido (o convencido é um vencido) é sempre um derrotado, separado e, enquanto tal, é a alienação do vencedor. Nesse estado o homem não se reconhece e perde sua identidade. O mistério, porém, é presença. Não está diante de mim nem dentro de mim ou fora de mim, mas me envolve até a medula e me compromete. Nós é que estamos dentro do mistério78. O mistério é mais íntimo a mim mesmo do que eu sou íntimo a mim. Ele é a intimidade do homem. É inelutável. Não há como fugir dele. Não o percebemos como um ente, objeto, presente e oposto a nós, mas como presença na qual nós estamos presentes e que faz tudo ser presente, de presente, gratuitamente, como uma canção. O mistério não desafia nem ameaça, mas apela, destina, convoca, vocaciona na paciência sempre silenciosa do dar-se. Quanto mais desvelado, conhecido, tanto mais insondável. Não é o desconhecido e sim o mais conhecido, no qual o homem é reconhecido. Não é visível ou luminoso mas a própria luz. Radical exigência de transcendência, é carne. Exige resposta, definição. Impossível a indiferença. Não é genérico, mas a universalidade singular79. Mansidão desarmada à nossa mercê e por isso “invulnerável e sagrada”80. História e não progresso. Regresso originário. Não precisa de justificação. Ele é a justificação. Sacia insaciavelmente. Ele é surpresa, evento, ad-vento. O mistério é pessoal. Não se refere às coisas. Na relação interpessoal as coisas se tornam significativas, isto é, referidas à relação pessoal e

78

Xavier ZUBIRI. Naturaleza, História, Diós. p.363 ss.

79

Carl ROGERS. Tornar-se Pessoa. p.37.

80

Gabriel MARCEL. op.cit.p.175.

58


nesse sentido se mostram misteriosas. Nesse sentido o universo é meu corpo. É linguagem. E a linguagem é a celebração do mistério. O mistério reside no significativo, no intencional. Ele não só é significativo mas a própria significação. Nele tudo haure sentido: faz-se linguagem. O mistério tem estrutura dialogal: nele as pessoas são eu, tu, nós. Nunca são “ele”, como muito bem o diz Martin Bubber81. Na verdade o dom sempre é dom de alguém para alguém. Não há sentido em pensar o dom senão numa relação dialogal. Fora da relação pessoal, aliás, não há sentido simplesmente em pensar, como não há pensar sem sentido. O mistério do dom que é um dar-se é o Amor. Chegaríamos, assim, a concluir, por esse caminho, que o Ser é o Amor. Chamamento ao infinito pessoal, o mistério ilumina todo o sentido. E o mundo, enquanto conjunto de significações, estruturações do ser-com82, ganha profundidade. Resta aqui a pergunta crucial: Se o Ser, horizonte último de compreensão da linguagem, é esquecido pela metafísica e, conseqüentemente, pela ciência e técnica, como se terá acesso ao Ser? Haverá outro acesso a ele que não ele mesmo? O acesso ao Ser será acaso obra do homem? Haverá algum acesso ao Ser se o próprio Ser não instaurar esse caminho? A linguagem, diz-se, é o acesso ao Ser. Como se disse, porém, a linguagem é acesso ao Ser quando o pensamento for pensamento do Ser. Só este pensamento permite que o Ser se mostre como o Ser determinar a se mostrar. Como chamaremos esse pensamento dócil ao apelo do Ser, que situa a metafísica em sua raíz, como desgarramento tagarela e desvio da verdade do Ser, e portanto ultrapassa a metafísica? Chamá-lo-emos de filosofia? Poderíamos fazê-lo se a filosofia não se confundisse historicamente com a metafísica. Teologia? Mas esta tem seu âmbito próprio, tanto a teologia natural da metafísica como a da fé cristã. Poesia? Talvez. O poeta nomeia o Sagrado enquanto o pensador diz o Ser. O poeta é mediador. “Rejeitando o habitual, ele se coloca entre os deuses e os homens; lá onde se decide o que é o homem. Os deuses nos falam e o poeta é seu intérprete”83. O poeta e o pensador, como vigias

81

Martin BUBER. op.cit. p.10 ss.

82

Martin HEIDEGGER. L’être et le temps. p.109.

83

Thomas Ransom GILES. op.cit. p.294-295.

59


do Ser, protegem a palavra, “o mais perigoso de todos os bens” que foram dados ao homem. Ela arrisca o Ser e, se o homem é o que mais arrisca (Rilke), o poeta é, dentre os homens, o que assume o maior risco: “ele é lançado fora, exposto ao aberto, defrontando-se com o desmensurado, suporta a tensão extrema”84. Mas como chamaremos esse pensamento-poesia que vive ao desabrigo, na angústia pobre do pastorear? Será fé esse “abrir um crédito” ilimitado ao mistério? Será esperança essa disponibilidade paciente que perscruta os sinais dos tempos, a ver um gesto de manifestação do Ser que no entanto permanece velado? Será amor esse despojamento e entrega alegre que vai desde o eros, pela filia até o ágape?85. Se perguntássemos a Heidegger, aos pensadores hermeneutas e aos poetas que assim vêem o Ser qual o caminho que os conduziu à porta do Ser, a resposta pode surpreender. A perspectiva de Heidegger não é a perspectiva da teologia cristã enquanto superação da metafísica, que São Paulo denominou de loucura? Interessante é observar que toda a visada hermenêutica do filosofar nasceu não só da tarefa própria da teologia, como também de pessoas ligadas à teologia: Heidegger estudou com os padres jesuítas, matriculou-se em Teologia e meditou dois anos o Evangelho de São João. Aliás, ele mesmo o confessa: a perspectiva do Ser como Logos lhe veio da Teologia, embora acrescente que esse fundamento de seu pensar seja apenas fundamento enquanto está sempre ad-vindo. Dilthey, Schleiermacher, Kierkegaard, Marcel, Jaspers, todos pensam a partir da experiência teológica. E o próprio J.P. Sartre, na medida em que seu pensar é hermenêutico é um pensar a partir do teológico: uma teologia negativa. É sempre a partir da decisão e da vida que levam ante Deus, que os pensadores orientam seu pensar. Seria, aliás, de perguntar se houve alguma filosofia que não fosse assim. M. Merleau-Ponty sustenta que toda certeza é sustentada por uma crença primordial no mundo, em que há algo a conhecer, em que podemos conhecer. Todo conhecimento supõe uma fé fundamental no mundo86.

84

id.p.294.

85

Gabriel MARCEL. op.cit. p.187.

86

Maurice MERLEAU-PONTY. Fenomenologia da Percepção. p.279.

60


Carlos Cirne Lima mostra que todo relacionamento interpessoal, toda compreensão intersubjetiva supõe a fé (cum+fides)87. Sem um Deus, ou sem um ídolo que é o esquecimento de Deus, o homem entra num vácuo existencial que torna impossível a existência88. Mesmo Heidegger, quando, por um temor historicamente justificado, não aceita identificar Deus e o Ser, com medo de, colocando o ser como transcendental, situar a Deus como um ente transcendente, o faz com um zelo “religioso” para não blasfemar contra Deus e para permitir que Deus advenha como Deus 89 . Fá-lo para salvar e garantir a possibilidade da revelação90. Para que acabe, para a nossa época, o fato de “ser-lhe inacessível a dimensão da graça”. Porque isso “talvez seja a única desgraça”91. Na verdade, o horizonte a partir do qual Heidegger consegue repensar toda a filosofia ocidental, horizonte que lhe permite ver a subjetividade e a conseqüente objetividade da metafísica, chegando ao ápice na ciência e na técnica, como violência e esquecimento do Ser, como a desumanização do homem, como algo a ser superado e recuperado, esse horizonte é a experiência da fé. Nesse horizonte, a Verdade do Ser, a docilidade do pensar, o mundo como significação, a linguagem como a casa do Ser, o ser-com, e o homem como “Dasein”, “Ereignis”, são possíveis (a tarefa mais urgente do pensamento). A experiência da fé é a experiência originária de todo homem e do homem todo. Todo homem já viveu, consciente ou inconscientemente, explícita ou implicitamente, pacífica ou revoltadamente, sua vinculação com o Mistério. Aliás só nessa experiência radical o homem se percebe e percebe as coisas e os homens. Ela é o horizonte de toda experiência. O horizonte de todo o pensar. O horizonte de todo falar. A metafísica ocidental, que nasceu também dela e como esquecimento desta experiência de fé, deu a entender que a vinculação com o mistério fosse algo acidental ao homem. O homem, aliás, reduzindo o mistério ao problema, dominaria o “desconhecido” (assim a metafísica 87

Carlos Cirne LIMA. op.cit.p.3.

88

Xavier ZUBIRI. op.cit.p.363 ss.

89

Martin HEIDEGGER. Sobre o Humanismo. p.78.

90

Ernildo STEIN. O Transc.e o probl. de Deus em Heidegger. p.53.

91

Martin HEIDEGGER. Sobre o Humanismo. p.81.

61


denomina o mistério) com os instrumentos de sua técnica. O mistério permanece como aquilo que ainda não foi desvendado, descoberto, dominado; mas a metafísica coloca no coração da subjetividade a “esperança” (que não é esperança e sim veleidade e desejo medroso e incapaz) de um dia vir a dominá-lo. Assim a fé, a esperança e o amor seriam experiências infantis, míticas do homem. O mito, o religioso, o belo, o singular, o histórico, o finito, o existencial ou são incognoscíveis e, por isso, relegados ao âmbito da experiência subjetiva, individual, ou são de somenos importância ou, por fim, próprios da capacidade genial de algumas cabeças privilegiadas. Privilégio que não é para todos os homens. Em todo caso, o mistério e a linguagem do mistério seriam acessórios dispensáveis na bagagem humana. O homem é racional. O grego se embeveceu tanto com a descoberta do racional, do metódico, matemático (e este embevecimento contagiou todo o Ocidente e o marcou como tal) que fez dele a experiência original e originária do homem. Tudo o mais ou é preparação (assim o religioso e o mítico seriam uma etapa pré-científica) para o lógico ou é instrumento, conseqüência ou deturpação dele. Tudo o mais é ingenuidade e fantasia. A fé, porém, é a experiência originária do homem. Nela o lógico-racional-matemático, o formal e operacional, o significativo e o crítico, a ciência, a técnica, a filosofia, a teologia e a existência têm lugar e sentido. Cientificamente é impossível compreender a fé, bem como a filosofia. A filosofia é o âmbito de compreensão da ciência. Nem é filosoficamente que compreenderemos a fé. A fé é um horizonte mais amplo que permite à teologia ser teologia, à filosofia ser filosofia, à ciência ser ciência, ao mito ser mito e a ela própria aparecer tal qual é: fé. Se analisarmos a fé pela ciência, só captaremos da fé o que a bitola reducionista da ciência permite: a objetividade. Isso significa que não apanharíamos jamais a experiência da fé. Se a captássemos filosoficamente, só teríamos um sistema teórico universal crítico, jamais a experiência da fé. Mas na fé é possível compreender o filosófico como metafísica a ser superada e como ontologia, e teologia como articulação da fé, a ciência como formalismo ou operatoriedade, e a experiência natural e mítica em seu âmbito próprio. A fé é, portanto, o horizonte originário que possibilita compreender a linguagem radicalmente e globalmente. A fé não se reduz a ser horizonte de compreensão. Isso também ela o comporta. É isso e muito mais. Só aí a linguagem se faz celebração da verdade e de toda a verdade, na esperança. 62


A experiência originária da linguagem é a experiência de Deus como Logos. “No princípio era o Verbo ... o Verbo era Deus ... tudo foi feito por ele ... veio para o que era seu e os seus não o receberam ... aos que o receberam deu-lhes o poder de se tornarem filhos de Deus”92. Nessa experiência originária da linguagem o mundo aparece como palavra proferida pelo mistério e endereçada ao homem como interlocutor no mistério e do mistério. Nessa experiência originária o outro homem aparece como “osso dos meus ossos”. E o homem é guardião, responsável pela palavra. O homem não cria a palavra. Criar a palavra é inversão, mal, pecado, desumano. Criar a palavra e não ouví-la e guardá-la é fazê-la incompreensível, violência, Torre de Babel. Nessa experiência originária o homem vê Cristo como a realização da Palavra, e então a oração se fará a experiência radical da linguagem: “O pássaro voa, o peixe nada, o homem reza”. Colocar, porém, a fé como horizonte de compreensão não é minimizar a capacidade humana de pensar? Não é minimizar a ontologia, a metafísica, as ciências? Parece que não. Se, porém, a linguagem natural é metalinguagem para toda linguagem como o requer a analítica da linguagem, na linguagem natural, expressão da existência ordinária, não se inclui a fé? Na existência ordinária não há permanentemente o testemunho e a profecia? O Amor e a esperança estão fora da compreensão ordinária da linguagem natural? Se é verdade que na linguagem natural a fé não se separa do mito, da ciência e da filosofia, também é verdade, a partir da compreensão que a fé tem de si mesma e da existência, que não há homem sem fé. Se é verdade que a fé é permanente reconquista de uma autenticidade a partir do contexto inautêntico da publicidade, uma contínua decisão ante o chamamento que se escuta, também é verdade que a luta, a revolta, a blasfêmia e o ateísmo, a dúvida e o descaso só são compreensíveis a partir da fé. Na verdade o homem sempre decide sua vida como resposta a uma vocação. Ante a vocação, o apelo, o chamamento que, através dos outros e da vida se escuta, o homem é aquele que responde. Se todo homem é chamado, todos podem responder. Vão seria o chamamento se ele mesmos não criasse no homem a possibilidade de responder. E a possibilidade não só teórica, mas concreta, existencial.

92

LA SAINTE BIBLE. École de Jérusalem, Jo 1,1-12.

63


Essa capacidade respondente, essa “potentia oboedientialis” constitui a natureza do homem enquanto determinação positiva em direção à graça (a fé é graça) indevida e gratuita. A partir disso a resposta do homem é sempre dada na fé. A partir disso a fé se constitui horizonte de compreensão de toda a existência. Horizonte de compreensão de toda compreensão. Horizonte de compreensão da linguagem. Em que sentido, porém a fé (e a teologia como articulação da fé) pode ser horizonte compreensivo para a ontologia, para a metafísica e as ciências? A fé não é sobrenatural e a filosofia natural ao homem ? A fé não é arracional e a filosofia, em sua essência, racional? Se a fé não se confunde com a natureza humana, como dizer que todo homem tem fé? A distinção de natureza e sobrenatureza feita pela teologia medieval visou sempre mostrar o caráter gratuito, indevido da fé e da graça. Com isso, porém, nunca negou o caráter gratuito da criação e da existência de todo ente, máxime da existência propriamente dita: do homem. Se o dom da graça e o dom da existência não são idênticos, nem por isso ambos deixam de ser absolutamente gratuitos e indevidos. Muito embora “o caráter indevido da criação como ato da liberdade de Deus e a graça como livre dom à criatura enquanto já existente não sejam o mesmo dom da liberdade de Deus”93, muito embora o “espírito tenha sua plenitude de sentido sem estar sobrenaturalmente agraciado”94, contudo a graça permanece para o homem como o horizonte de sua transcendência espiritual95. Ante a graça o homem é “potentia oboedientialis”, e a “potentia oboedientialis” constitui sua natureza. Na realidade existencial do homem, que nunca é natureza pura ante uma sobrenatureza que se lhe pudesse acrescentar extrinsecamente, a graça ‘indevida’, liberal e gratuita de Deus é sempre presente quer como possibilitante de acolher a graça, quer como a articulação da resposta à graça. Na graça o homem nasce, vive e morre. A maneira de responder à graça, que também é graça, depende da decisão do homem. A distinção entre o devido ou não devido à natureza humana pressupõe que se entenda o que seja o ‘devido’. A dívida pressupõe um 93

Karl TAHNER. Escritos de Teologia. Vol. IV,p.240.

94

id.p.241.

95

id.p.241.

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poder de domínio: quando alguém tem algo que pertence (que é de domínio) a outro, está devendo este algo ao outro. Dizer que algo pertence a um ente como algo que lhe é devido, mesmo que seja para que este ente seja o que é, é pressupor no ente uma capacidade de domínio. Este ente é dono do que lhe é devido, mesmo que tudo o que lhe é devido lhe fosse dado como dom gratuito? Um homem que recebeu um dom é dono dele? A capacidade de acolher o dom e de responder a ele é a capacidade de adonar-se do dom? Tendo em vista que o homem é dado a si próprio, o homem é dono de si próprio? Se o homem é dom, dado a ele próprio, será acaso um exigir-se a si próprio, um dar-se a si próprio a partir do nada? Uma auto-doação da existência? Se, porém, admitido o absurdo impensável de uma auto-constituição absoluta do homem, o homem se auto-criasse e fosse dono de si próprio, como se poderia compreender a responsabilidade do homem; como compreender que o homem deva responder por seus atos e por sua vida; como compreender a ética, o Amor, a linguagem, a intersubjetividade, a compreensão? A distinção entre natural (aquilo que a um ente é devido como constitutivo próprio, aquilo que um ente precisa ter para ser o que é, aquilo sem o qual o ente não é o ente que é) e sobrenatural (aquilo que é acrescido ao natural como dom gratuito, absolutamente indevido) foi elaborada na defesa de que a graça e a Salvação de Deus não são exigência (da natureza) do homem e sim iniciativa liberal, gratuita de Deus que ultrapassa toda imaginação humana. Assim a racionalidade seria natural, e a fé sobrenatural. A racionalidade faria parte da natureza do homem (que é animal racional), a fé seria um acidente, pois sem a fé o homem continuaria ainda a ser homem. Teria, porém, existido algum homem em estado puramente natural? Essa hipótese não é apenas didática, para poder pensar a gratuidade da graça? Haveria hoje algum homem puramente natural? Os naturalistas? O homem da vida ordinária? O homem que renegou a fé? O homem que ainda não aderiu explicitamente a Cristo? Se Cristo é o Caminho, a Verdade e a Vida, haverá alguém que não o busque, muito embora nem todos trilhem os mesmos caminhos? Se todo homem é chamado a fazer parte do reino da Graça e se o chamado constitui o próprio espaço (a possibilitação) da resposta, haverá algum homem que não tenha fé? Na vida concreta, e não apenas suposta, o que se percebe é que há homens que dizem crer; há homens que dizem ter perdido a fé; há homens que dizem procurar a fé; há homens que dizem não ter fé; e há 65


outros enfim que dizem não querer ter fé, e outros que dizem invejar os que têm fé. Haverá alguém sem fé? Alguns confundem fé com certeza e emoção e quando não ‘sentem’ a fé dizem não ter fé. A partir, porém, da perspectiva da fé, é impossível afirmar que haja um homem sem fé. A perspectiva da fé como possibilidade concreta para o homem é uma realidade que o pensamento precisa pensar. A vida da fé que por vezes se faz vivência religiosa é um fato, como um tijolo é um fato. Mas, e aqueles que dizem não ter fé, que não querem ter fé? Deixarão, acaso, de ter fé pelo fato de o dizerem ou de não o quererem? E aqueles a quem a vida escondeu Deus? Nesses a fé dorme como a grama dorme no seio da terra invernosa, aguardando a primavera. Com isso, porém, não se dilui a fé, reduzindo-a ao existencial humano? Mas o existencial humano se restringe a ser simplesmente humano? Não será trair o homem reduzí-lo a uma dimensão que não lhe é própria, tendo em vista que a dimensão do homem é maior do que o homem, tendo em vista que a dimensão própria do homem é a fé? A fé pode não ser vivida tematicamente como o centro de atenção da vida humana, pode ser esquecida, abandonada, fustigada pela dúvida e pela revolta, ou pode também ser alimentada e fazer o homem crescer até que o homem atinja sua real estatura. No entanto, a fé sempre está aí, como ingrediente gratuito, pacientemente à espera do sim. A fé, na existência concreta, é o horizonte último de compreensão. Horizonte de compreensão da ontologia, da metafísica, da ciência, da vida ordinária. A fé não se esgota em ser um horizonte do saber, mas é também um horizonte, o horizonte apropriado do saber humano. A decisão ética, o agir ético, a realização ética como a determinação da “liberdade de cada homem como respeito total à liberdade dos outros homens”95A, não se funda na metafísica e se é tematizada organicamente pela ontologia ela brota da fonte mais profunda: a fé. A compreensão da linguagem tem portanto aí sua fonte originária. Até aqui, porém, a fé não foi tematizada. É preciso que o seja.

95A

Carlos Cirne LIMA. op.cit. p.95.

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6 A FÉ COMO HORIZONTE DA LINGUAGEM

Trata-se aqui da fé elaborada pela teologia cristã. Por que esta e não outra? Porque nossa experiência de fé é cristã; porque o cristianismo enquanto vida (e não somente enquanto instituição, cristandade) é ainda hoje o que mais dá a pensar; porque a cultura ocidental foi articulada em termos de onto-teo-logia-cristã. Antes, porém, algumas notas sobre a linguagem do mito. A LINGUAGEM DO MITO Mito é narração que em sua poeticidade reconduz ao começo originário onde o destino se revelou na palavra dos deuses. Funda-se no fato de a vida humana ser biográfica e não biológica (Ortega y Gasset). A vida enquanto narrável se articula num conto. O conto originário, porém, e aquele que em sua palavra tem o poder de nos situar no originário. Enquanto linguagem poética, o mito revela o homem como indefinível, como indecifrável, cujo sentido (e não explicação) só se encontra no destino do Ser. O destino, porém, no logos humano só se anuncia como escondido. O significado humano está escondido no mistério, que ultrapassa os deuses (todas as experiências concretas de Deus). O destino, que constitui significativamente cada ente em seu significado, não é alcançável por nenhum método, nenhum caminho lógico e sim apenas pela escuta confiante, pela disponibilidade atenta do crer. O mito implica uma dupla crença: nos antepassados e nos deuses. Nos antepassados, que contam o que os deuses lhes disseram a respeito da destinação. Nos deuses, que patenteiam o destino que cabe a cada homem. O mito experimenta a palavra como um poder. Saber o nome é ter 67


poder sobre. Dizer o nome é fazer acontecer. O nome é mágico. “Saber o nome é ter captado a essência da coisa e poder desde então atuar sobre ela”96. Deus, a força suprema do homem, não pode ter seu nome revelado ao inimigo, pois o inimigo, ao nomeá-lo, poderá usar essa força contra o fiel. O nome do homem é segredo dos íntimos, e o nome de Deus, sua nomeação, sua invocação é segredo dos iniciados. Revelar esse segredo aos profanos é a maior infidelidade ao grupo e a si mesmo. Nos Vedas a essência da mística é pronunciar a sílaba om. “Compreender essa sílaba é transcender a condição humana e perder-se na unidade divina”.97. O mito é a magia da palavra. Saber o nome é dominar, porque o nome é indissociável do ser. A palavra é um perigo, o palavrão é uma agressão, o retruco uma defesa. Para não ser dominado o homem guarda em segredo seu nome e o nome dos seus, apresentando-se com um nome falso, inofensivo, um apelido. Para Deus há nomes falsos, ritos falsos. No pára-choque de um caminhão em Pelotas estava escrito: “a ninguém direi o nome de quem amo”. E Gabriel Marcel faz um de seus personagens sentir-se traidor pelo fato de falar a um estranho a respeito da intimidade de um ente amado98. A criança, diante do perigo, afasta o perigo com um grito. E para dominar seu ambiente a criança sempre pergunta: como se chama? Essa magia da palavra está presente na filosofia socrática: conhecer o bem, a palavra, o conceito de bem é ser bom. Está presente na psicanálise freudiana: a cura se faz pela catarse, pelo desabafo, pela nomeação daquilo que é traumático. Está presente no ideal enciclopedista, na organização totalitária dos dicionários rejeitando o uso de certos nomes, censurando algumas palavras e recomendando outras. Está presente no ideal de um esperanto universal: basta que os homens pronunciem os mesmos vocábulos para que a todos aconteçam as mesmas coisas, para que haja paz e unidade. Mais do que nunca vivemos na era do mito, em seu sentido mágico. Ora, mito é súplica, exigência de ultrapassagem, de fundamentação. 96

Georges GUSDORF. La Palabra. p.16

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Jean LADRIÈRE. op.cit.p.191 ss.

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Katharine HANLEY. Réflexions sur la présence comme signe d’immortalité, d’après la pensée de Gabriel Marcel. Revue Philosophique de Louvain. 4(22),214, maio de 1976.

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A LINGUAGEM DA FÉ A fé é resposta que o homem dá à palavra interpeladora, reveladora de Deus. Adesão que faz o homem aceder a uma realidade invisível. A resposta pode ser a obediência do “Amém” ou a recusa desconfiada, a incredulidade. O “Amém, porém, ilumina a incredulidade do homem. É a afirmação pela negação. A fé não se confunde com sua linguagem; no entanto a fé acontece sempre como linguagem. A teologia não é a única linguagem da fé; no entanto a teologia é linguagem articulada da fé. Na ciência e na filosofia, enquanto metafísica, a palavra é palavra impessoal do sistema em sua vinculação ao universal. Na fé, porém, a palavra não expressa o sistema como nova aproximação do real, mas como revelação, isto é, “como livre manifestação da vontade de Deus sobre o mundo, na qual o destino do homem e de certo modo o ser mesmo de Deus estão implicados. A fé é resposta à palavra da revelação”99. A fé é ao mesmo tempo: a) aceitação do que é anunciado; b) esperança nas promessas da mensagem; c) vontade (decisão) ratificando a vontade de Deus, pondo-se à disposição de sua obra. Como acontece essa revelação e a quem acontece? De muitos modos Deus revela seu segredo ao homem. Pela criação todos os entes enquanto criação e criaturas revelam Deus. Pela palavra e ação proféticas dos homens que anunciam a Verdade, o Bem, que denunciam o erro, a injustiça e a falsidade. Em todas e em cada circunstância Deus fala. E fala a todo homem e a cada homem na interioridade. E como definitiva revelação de Deus, há Jesus Cristo. Cristo, como culminação reveladora só acontece para quem, na disponibilidade do silêncio, quiser ouvir. A palavra da revelação não é discurso ou teoria sobre Deus, sobre o homem ou sobre o mundo, mas manifestação visível do mistério de Deus em Jesus Cristo e por outro lado é conversão e convicta confissão da fé. A palavra da revelação não visa reduplicar representativamente o real (como a ciência e a filosofia) mas faz existir o que diz. Faz surgir originariamente uma realidade nova, a salvação, que não se reduz à do logos, nem à da physis, nem à da ação, nem mesmo à da vida universal. Uma atividade originariamente constitutiva onde a atividade constitutiva

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Jean LADRIÈRE. op.cit. p.187.

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e a palavra coincidem, onde a palavra não repete a realidade para compreendê-la, mas onde a palavra é uma nova criação, a instauração do reino de Deus. A revelação implica verdade, implica um modo de compreender Deus, o homem e o mundo. Implica uma cosmovisão. Ela é um horizonte compreensivo. Contudo, se a fé envolve efetivamente um saber, nem por isso ela é uma informação. É antes efetuação original. Não é como a operação formal, ação vazia, simulacro de efetuação. Há nela uma gênese concreta absoluta, não como particularização de um universal, mas como “surgimento puro, ruptura instauradora na qual toda realidade, inclusive a vida universal, é julgada e na qual é fundada uma ordem absolutamente original, irredutível a qualquer outra”.100. Por outro lado, a fé “não é uma explicação da revelação, nem um dicurso histórico ou dialogal, muito embora seja uma resposta”101. A fé é proclamação que, no dizer, faz ser o que diz. Assim, como a salvação coincide com seu anúncio, assim também a fé coincide com sua proclamação. Não como simples ratificação de princípios, ou como reconhecimento de verdades, ou ainda como louvor, mas como proclamação. A verdade da fé não é compreensível dentro do modelo do discurso científico e filosófico. Não é também a repetição de uma fórmula, de um cânon, magicamente eficaz, mas novidade absoluta que envolve a existência inteira. Não só inteligência e vontade mas o coração do homem onde “a existência inteira se assume, se arrisca e decide”102. Enquanto adesão à revelação, a fé é esperança da reveleção. A compreensão da fé é escatológica. “O que podemos compreender das proposições que proclamamos é o que nelas é promessa de comprennsão que virá. A relação entre fé e verdade é escatológica, isto é, plenamente atual e completamente por vir. Na proclamação do credo cumpre-se o que ele anuncia e ao mesmo tempo, porém, ele somente anuncia o que cumpre”103. A palavra da fé, pois, se refere a acontecimentos, implica um engajamento e comporta uma referência escatológica. Enquanto se refere a acontecimentos (o acontecimento central é a vida de Cristo ao qual o Antigo Testamento se refere como figura e ao qual as ações 100

id.p.188.

101

id.p.188.

102

id.p.189.

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posteriores se referem como centro), a fé é mostrativa e constatativa, na expressão de Austin e Evans. É verdade que não será constatativa como nas ciências empírico-formais. É de se perguntar, aliás, se a constatação, como simples transcrição de fatos de que fala a ciência, realmente existe. Se, na verdade, toda linguagem não seria performativa direta ou indiretamente? A linguagem da fé não só se refere a acontecimentos como teoria deles, mas os acontecimentos, na linguagem da fé, são ativos, eficazes. Ela faz ser o que diz no próprio dizer. E ela o diz numa dupla dimensão: como presente e tangível e ao mesmo tempo como ‘éscaton’: como aquilo que há de vir. Advento que já é presença e ao mesmo tempo apenas anúncio e esperança. Na fé, o presente é o futuro. O futuro não está além do presente mas é a essência do presente, é a profundidade do presente. A realidade presente é a originária e futura. A linguagem da fé é auto-implicativa. O acontecimento que ela anuncia não é exterior ao homem. Ela anuncia e realiza a própria implicação do homem com Deus. Por um lado proclama o engajamento de Deus com relação ao homem e por outro o engajamento do homem que responde a Deus. Evans104 mostra, num texto magistral, como a linguagem da fé é auto-implicativa na revelação e na fé em Deus criador: “Palavra de Deus: eu te ordeno existir como meu servidor (decreto). Resposta do homem: Eu vos pertenço, Senhor (conduta). Palavra de Deus: eu te estabeleço como meu intendente sobre a natureza (decreto). Resposta do homem: Seja-me dado cumprir as terefas que me dais (engajamento). Palavra de Deus: julgo a existência criada boa (veredito). Resposta do homem: aceito vosso julgamento, Senhor (conduta). Palavra de Deus: eu te prometo meu amor para sempre (engajamento). Resposta do homem: em vós ponho minha confiança (engajamento)”. O que Deus revela para o homem não são seus atributos, ou os atributos do homem e do mundo, mas seu plano íntimo, guardado desde antes da criação do mundo, o plano de fazer o homem participar da condição de filho de Deus em Jesus Cristo. É convite que implica reconhecimento e adesão. E a resposta acontece no próprio espaço criado pela revelação. A revelação constitui no homem o âmbito adequado para se mostrar e para acolhê-la. Mas, para isso, o homem precisa converter o coração. “A fé pressupõe sempre uma procura, a palavra plena da fé é precedida pela interrogação, pela espera, pelo 104

id.p.116.

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pressentimento”105, ou, como diz a teologia, pela “potentia oboedientialis”. Se a fé não é natural ao homem (no sentido escolástico), a “potentia oboedientialis” o é. Ela também, porém, é dom gratuito e, como a fé, é dada a todo homem como vocação e convite a uma resposta. A linguagem da fé não se interpreta na perspectiva da figura ou da metáfora. Estas sempre são interpretadas a partir do que é conhecido na cultura vigente. Não se interpreta também como símbolo, se as realidades implicadas no simbolo forem interpretadas a partir de critérios extrasímbolo, como o fez por exemplo o positivismo, para quem o simbólico é fruto de uma consciência ingênua, primitiva, infantil. É evidente que não se toma aqui o símbolo na acepção da analítica da linguagem. Também não pode ser interpretada como referência analógica da metafísica e da crítica, pois nesta não cabe diretamente o engajamento que constitui a essência da fé. É preciso deixar que a fé articule sua própria linguagem embora o faça usando dos sistemas e sinais de todas as outras linguagens. A linguagem ética, no entanto, parece o âmbito apropriado, o mais apropriado, em que a fé possa articular-se. “Na dimensão ética o homem aparece como exigência, que não é outra senão a modalidade segundo a qual seu próprio ser se revela como não igual a si mesmo e como que invocando um estado de adequação no qual o homem seria dado a si mesmo em sua verdade, na assunção e supressão da distância que o separa de si mesmo”106. Assim, a linguagem da ética poderia descrever, circunscrever uma região a partir da qual seria possível um acesso à realidade da qual fala a linguagem da fé107. Contudo, a fé permanece totalmente outra. A fé não se confunde com a ética, embora aconteça no ético. A fé situa a ética em sua derradeira dimensão. A teologia, enquanto articulação obediente da revelação e da fé e não enquanto simples ciência hermenêutica, ou demonstração crítico-metafísica, pode ser a articulação da linguagem da fé. Permitirá então que a palavra se revele. Pois a revelação é o auto-anúncio da palavra. “Mas a palavra que se revela é Deus mesmo, enquanto convoca o homem a partilhar de sua própria vida e o que ela revela é o próprio mistério da 105

id.p.239.

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adoção ou, mais exatamente, Deus mesmo em seu desígnio sobre o homem e em sua ação salvadora. Assim é a si própria que a palavra reveladora revela”108. A claridade da linguagem da fé não é a do discurso. A linguagem da discursividade é a da análise. A linguagem da fé é a da presença. Enigma e presença do mistério, que se faz mais insondável na medida em que se revela. O que a linguagem da fé anuncia, ela o propõe como esperança, como ‘éscaton’. A teologia articulou a experiência da linguagem, como a experiência da salvação, como a história da salvação. A primeira experiência teológica da linguagem é a da linguagem humana como relatividade, como confusão, ambigüidade, como ‘torre de Babel’. É a experiência da impotência da palavra. Mas esta experiência está situada num horizonte que permite experimentar a confusão, a ambigüidade como aquilo que não deve ser, como aquilo que precisa ser superado. Esse horizoante vivido concretamente como libertação (do Egito) é escatológico e parusíaco e se anuncia como um paraíso. O paraíso é o originário, não só como o princípio mas também como o último e definitivo. O homem precisa salvar a linguagem que divide, separa, encobre, dissimula, oprime, desune, mata, para levá-la ao desvelamento de si própria como verdade, liberdade, fidelidade, unidade, comunhão e vida. Na opressão, o homem sente sua incapacidade de salvar a linguagem, incapacidade de salvar-se a si mesmo. Por mais esforço que o homem faça, o mundo da linguagem (e nada do mundo está fora da linguagem) é uma torre de Babel. E no seio do pecado o homem experimenta, então, não como vinda do homem e sim como dom de Deus, a promessa de que o mal, o pecado, a Babel serão vencidos; que o homem não nasceu para a divisão, para este mundo, e que um dia ele esmagará a cabeça da serpente109. Essa promessa será para o homem o horizonte no qual o homem lerá todo acontecimento histórico. Essa promessa funda a história. Ela funda o caminhar do homem, em busca de sua linguagem. É nela que o homem perceberá o que é bom e o que é mau, o que é humano e o que é desumano, o que é linguagem e o que 108

id.p.237.

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LA SAINTE BIBLE, École de Jerusalem.Gen 3,15.

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não é linguagem. Ancorado na Promessa que o homem experimenta no âmago da confusão, o homem espera a salvação. A segurança do homem é a fidelidade do Deus que promete. Deus empenhou sua palavra. E articulando essa promessa como oração, convivendo com Deus que promete, o homem vai nomeando as coisas, vai aprendendo a falar (a desnudar-se ante o outro para ser com ele, “osso de meus ossos e carne de minha carne”), buscando encontrar sua unidade (que é a salvação) com os outros, através das coisas, enquanto passeia com Deus à brisa da tarde110. É nesse horizonte que o homem se enreda na tentação do não falar, onde falar pela metade, na traição a si, ao outro, ao mundo, a tudo. É no horizonte da promessa e da esperança que o homem experimenta o mundo como palavra de Deus, como mensagem e dom de Deus. É nesse horizonte que o homem experimenta as coisas como meio, lugar, instrumento, ambiente e carne da comunhão. É nesse horizonte que o homem interpreta a si mesmo como o interlocutor de Deus, como ser-com os outros e como articulador do universo. É nesse horizonte que o homem experimenta a palavra de Deus como norma, lei, diretriz. É nesse horizonte que ele experimenta o amor como a vocação e a essência do homem. E se experimenta como a imagem e semelhança de Deus. Portanto, é ainda nesse horizonte que ele experimenta Deus como Deus, como aquele que fala originariamente. É nesse horizonte que ele experimenta a precariedade e o valor da linguagem humana: nela se opera a articulação do mundo, a invocação de Deus, o desnudamento e a comunhão dos homens. Nela opera a força criadora da palavra de Deus. Nesse horizonte tudo se faz relatividade, relativo ao amor. E o econômico, o jurídico, o político, o científico, o cultural, o artístico, o brinquedo, o lógico adquirem identidade e significação. A esperança nasce da fé, da confiança na palavra empenhada por Deus. A fé e a esperança se enraizam no amor. Nele o homem experimenta a possibilidade de salvação. Nele o homem sabe que vencerá a morte. Nele o homem espera a ressurreição. A esperança é absoluta. “A promessa de eternidade (quem ama diz ao amado: eu te garanto que tu não morrerás) que nos dá esperança e segurança para vencer a morte está incluída em nosso amor”111. E o amor humano não 110

id. Gen 2.

111

Gabriel MARCEL. op.cit.p.294.

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é amor se não estiver carregado de possibilidades infinitas, se não for aberto ao infinito112. A esperança que não é auto-sugestão porque esta é uma crispação psiquica interior, ao passo que a esperança é aberta; a esperança que não é um desejo porque o desejo visa a um objeto, enquanto a esperança visa a uma pessoa113: só a experimenta quem é indigente114. No horizonte da promessa e da esperança andam os homens errantes pelo mundo, e a promessa amadurece-lhes o coração. Nesse horizonte, mais fruto da promessa que da esperança, o “Verbo de Deus se fez carne e armou sua tenda entre nós, e nós vimos a sua glória”115, e nele o homem viu a Palavra. Cristo é a palavra definitiva que Deus prometera ao homem. Palavra que é a luz de todo homem e que dá aos que nela crêem o poder de se tornarem filhos de Deus. No horizonte da fé, Cristo aparece como a Palavra definitiva, como a palavra originária. Como a palavra simplesmente. Em Cristo o mundo se manifestou como palavra de Deus, e a palavra do homem atento a Deus se faz profecia, mediação, oração, celebração do Mistério de Deus. Em Cristo, Deus se mostra em toda sua dimensão: Trindade de Pessoas na Comunhão absoluta. Na Trindade a palavra se manifesta em sua Essência Absoluta. O próprio Deus é linguagem. A essência da linguagem é a comunhão. Em Cristo, o modelo de toda linguagem é a comunhão trinitária. Em Cristo, o homem aparece em toda sua dimensão: destinado, vocacionado, chamado, escolhido, antes mesmo da criação do mundo, para participar da vida trinitária do Mistério de Deus, como filho de Deus em Jesus Cristo116. Aqui aparece o horizonte da linguagem do homem: participar da própria linguagem de Deus, participar da linguagem que é Deus. Nesse horizonte, jamais suspeitado pelo coração humano, os homens aparecem como irmãos em Jesus Cristo e irmãos de Jesus Cristo. Fraternidade que ultrapassa todo vínculo biológico, psicológico, social ou ético e que funda toda a fraternidade biológica, 112

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LA SAINTE BIBLE, École de Jerusalem. Jo 1,14.

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id.Ef 1,5.

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psicológica, social ou ética. Essa fraternidade se denomina Comunhão dos Santos: comunidade ontológica que torna possível toda intersubjetividade e toda fraternidade117. Nela a intersubjetividade vai muito além da subjetividade, nela já acontece a participação na vida três vezes pessoal de Deus. No horizonte da fé a história aparece como a história da Salvação, articulada pela linguagem. E a história, como decisão e participação na vida de Deus, sempre de novo retomada e esquecida, se mostra como pedagogia. Nela o homem assume posição no diálogo. Cristo surge como o divisor de águas; como aquele no qual se decide a história. Ele como Palavra definitiva de Deus, na proximidade tangível da carne é a medida da história. É a palavra prometida, empenhada até o fim. Nele, em sua Geração, Nascimento, Vida, Morte, Ressurreição, Pentecostes e Parusia, Deus cumpre sua Palavra. A Palavra se fez fidelidade. Nele toda palavra é interpretada e julgada. Ele é o horizonte de toda a linguagem. E toda linguagem se fez, então, sacramento de Cristo: a vida (batismo), a morte (a unção), a sexualidade (matrimônio), o pão (eucaristia), a profissão e a política (crisma e ordem), a traição e o perdão (penitência). Em Cristo, o pentecostes redime Babel, e a língua se faz compreensão, fé, esperança, ágape, prenúncio da Palavra Total. Em Cristo, todos os homens se fazem templo do Espírito Santo, morada do Deus trino. E os que aderiram a Cristo se fazem testemunhas e profetas desse fato inimaginável do Amor que vive entre nós. Nele a linguagem é testemunho, profecia, proclamação do Reino da Palavra, definitivamente inaugurado entre nós. Nele o homem espera a Parusia: o dia em que a Palavra será completa, será tudo em todos, a terra será definitivamente nova e o homem será uma canção de bem-aventurança. A palavra de Deus, que é revelação do segredo íntimo de Deus, e a palavra do homem, como obediência, Amém à palavra íntima de Deus, se jungem para formar uma só história: a história da Salvação, a história da Palavra que é feita de sim e de não, de traição e reconciliação, de exigência permanente de ultrapassagem. Esse é o horizonte que a fé propõe para a linguagem. Horizonte digno da linguagem. Horizonte que permite todos os outros horizontes, situando-os, porém, nos limites de cada um. Para pensar e manter um horizonte assim para a linguagem, é preciso ter coragem. A coragem de 117

Gabriel MARCEL. op.cit.101.

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ser simplesmente homem. Homem até o fim. Humano assim, porém, só Jesus. Para os outros resta a promessa e a esperança e a coragem de começar e recomeçar todos os dias e a cada dia. Recomeçar é sempre ser mais que ontem e antecipar o amanhã. Não é preciso que partamos do Absoluto para pensar a linguagem absolutamente. Mas também é preciso não ter medo (será isto medo?) de auscultar o divino quando ele se faz presente, sob pretexto de ficar só no campo da filosofia porque é costume fazê-lo. A suprema coragem é a indigência, e, por isso, a esperança daquele que abriu um crédito à voz que fala em toda linguagem e na linguagem apela, convoca e envia o homem para que se encontre com os outros, através das coisas, no Amor. A coragem daquele que, no espaço interior aberto pela ética, escuta a voz que o revela a si-mesmo como além-de-si. E na escuta orante da Palavra, o homem cada vez mais vê com clareza a si mesmo, a Palavra, os outros e o mundo. No horizonte dessa escuta, que é entrega e encontro, cada coisa estará em seu devido lugar, mesmo que o lugar de cada coisa seja a escatologia. A linguagem estará em sua casa.

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7 A LINGUAGEM COMO ARTICULAÇÃO DA EXISTÊNCIA

A linguagem é o encontro do homem com o outro, através das coisas, no Ser. Nisso se diz: 1) que o Ser não é algo que se encontre mas no qual acontece o encontro, ele é o lugar do encontro, o próprio encontro; 2) que a essência do homem é a linguagem, e a essência da linguagem é o encontro; 3) que o outro é constitutivo do encontro; 4) que as coisas são mediação e lugar do encontro. Com isso não se pretende esgotar o sentido da linguagem ou da existência. As linhas que seguem são apenas indicadores que buscam apontar para o âmbito onde se encontra a essência da linguagem como a casa da existência. Caminho apenas vislumbrado. O SER É O ENCONTRO Mistério pessoal, na gratuidade do Amor que se entrega, Dom que não é um sujeito entregando um objeto, mas a própria doação em pessoa, o Ser não é individual e solitário, mas comunhão solidária. Comunhão que não é outra coisa que a própria manifestação, que a própria expressão da Comunhão. Em sendo comunhão e Encontro, o Ser é o próprio acontecimento do Encontro, linguagem absoluta. Nela acontece a expressão absoluta, o apelo, o convite, a vocação absoluta, a comunicação e a resposta absoluta. A noção de encontro, comunhão e absoluto, não pode ser compreendida a partir da metafísica. Antes deve ser entendida a partir do originário que funda a metafísica. Por isso não cabe discutir, para fundar, as provas ou a dialética do absoluto. Ambas derivam, como tentativa lingüística, da experiência do absoluto, do Ser. 79


Sem amor, sem estar na verdade do Ser, impossível para o homem encontrar-se. Mas o amor, que possibilita originariamente o encontrarse, não é propriedade do homem nem fruto da subjetividade do homem. O Amor, bastando-se a si mesmo, é o bastante para o homem. Nele o homem se encontra com o outro, através das coisas. Ele cria no homem a boa vontade, e sem boa vontade é impossível o entendimento entre dois homens. Impossível que o homem se compreenda, se encontre ante o outro. Na falta da boa vontade jamais uma palavra será compreendida por alguém. Entre dois inimigos, qualquer palavra é ofensa. Entre dois amigos qualquer palavra é amor. Basta um gesto, uma senha, e o outro amigo logo compreenderá o que se quis dizer. Adivinhará, antecipando o significado porque já estava vinculado ao outro, presente ao outro no mistério do amor, na verdade do Ser.

O HOMEM SÓ SE COMPREENDE QUANDO SE ENCONTRA Não há compreensão possível senão como um encontrar-se com alguém, no Amor, através dos entes, do mundo. O homem sempre e cada vez se pensa como interlocutor no Mistério, o que também significa: como interlocutor do Mistério. Evitaremos a última formulação para que se não entenda que o homem encontra o Mistério, o Ser, o Absoluto, como se ele fosse um ente, fora do homem, diante do homem, objeto do homem. Pois é nele que nós nos conhecemos, nele nós nos identificamos, ou, na frase que Zubiri toma emprestada de S. Paulo, “nele somos e existimos”. Por isso, a oração, como a forma radical da linguagem, será, antes de mais nada, escuta, devotamento e obediência ao Ser e não um comércio visando lucros e méritos. O homem, como interlocutor no Mistério, é, por isso mesmo, o sinalizador, o mostrador, o revelador do Mistério. Ele testemunha o Mistério. No testemunho que um homem faz do Mistério, todo homem vinculado a ele lingüisticamente (e toda vinculação é sempre lingüística), tem acesso ao Mistério. Tem acesso ao outro homem. Tem acesso às coisas. Tem acesso a si mesmo. Será, porém, o testemunho, a única via de acesso? Parece que sim. Os outros caminhos são vias na medida em que derivarem deste. Por isso, um pensamento e uma linguagem que 80


não sejam testemunho são uma contradição em si mesmos. Uma filosofia que não testemunhe não é caminho, mas beco sem saída, extravio. O pensamento é linguagem. A linguagem é essencialmente diálogo. O pensamento não é linguagem no sentido positivista de Saussure e da filosofia analítica, como se fora só uma articulação de sinais verbais ou conceituais, mas, além disso e englobando isso, é a articulação do encontro que o homem realiza com o outro, através das coisas. O pensamento é essencialmente diálogo, mesmo quando o interlocutor é imaginário ou a própria imagem de si mesmo. A dialética é uma estruturação, uma organização, uma instrumentação do diálogo. No diálogo, a dialética tem sentido, e não ao contrário. No dialógico, o lógico tem significação. Assim, a Matemática, a Física, a Química, as ciências e a técnica adquirem lugar no encontro dialógico. A autonomia do lógico pensado em si mesmo é mera aparência. Na verdade, o homem jamais pensaria coisa alguma, jamais teria ciência ou técnica, se pensamento, ciência e técnica não fossem formas, jeitos de conviver. Jeitos de encontrar-se. Muitos fatos históricos (como as crianças abandonadas aos lobos ...) parecem contundentes nesse sentido. A psicologia atual, máxime a psicologia existencial, parece incisiva em mostrar que todo pensamento e toda consciência de si tem como mediação a experiência que o homem tem com os outros. O que pensam de mim, o que dizem de mim, o modo como se comportam em relação a mim, o acesso que me permitem e as proibições que me fazem é essencial na compreensão que tenho de mim mesmo. Muitas vezes, a tentativa de justificar a ciência e a técnica por si mesmas esconde, ou pretende esconder, um vício ideológico insustentável, uma atitude interesseira no pensar. Um preconceito que evita o pensamento. Todo pensamento, na verdade, e toda linguagem são marcados pela estrutura social, pela classe ou nível social, pela ideologia, pela cultura em que brotam. Quando, porém, a cultura não é levada ao originário, quando a ideologia não regressa à raiz, o horizonte interpretativo passa a ser a ditadura da publicidade, da impessoalidade, do anonimato, que nada mais é do que o medo do encontro, disfarce e fuga. Nada mais é do que a falta de coragem e de decisão. A alienação do homem. É preciso coragem para filosofar, dirá Marcel. Coragem de ser, dirá P. Tillich. Todo pensamento nasce ideologicamente situado. Mas um pen81


samento que não conseguir conduzir (como recondução prospectiva) o ideológico ao originário, não o fecundará, e a ideologia, ao invés de ser a casa do homem (onde mora o Ser e por isso onde podem morar todos os homens como hóspedes), será a prisão de cada um. A prisão de todos. Será a divisão, a morte do homem e o sepulcro do Ser (que idéia ridícula!). Para conduzir uma ideologia ao originário é preciso assumíla. Sem tomá-la nas mãos, sem articulá-la na linguagem pessoal, sem torná-la estritamente pessoal, não se consegue ultrapassá-la. Não se consegue fazê-la gerar a vida e abrigar o homem. A ideologia, a casa de um povo, é como a casa. A casa é a habitação exclusiva de cada homem, da família de cada homem. Nela alcançamos cada homem em sua unicidade, em seu nome e sobrenome. Nela (que tem lugares públicos e lugares íntimos), nos desnudamos. Nela acolhemos o outro que vem. Nela recebemos o hóspede. A ideologia que, historicamente, vem marcada pela revolução industrial massificadora, ficou ‘coisa de massa’, um ‘prédio público’. Ora, num prédio público não se pode hospedar ninguém. Acampar, talvez? Provisoriamente? Como protesto e exigência? A hospedagem implica a compreensão de que o outro que não mora conosco, o estranho, o estrangeiro, porque indefeso e na medida de seu desarmamento, seja sagrado, invulnerável118; por isso pode estar em nossa intimidade, lá onde as defesas, as vestimentas, o retórico, o lógico, o universal são inúteis e por vezes atrapalhação. Pois a ideologia, na medida em que é minha ideologia, me permite coabitar, conviver com os outros homens que não têm a minha ideologia, desarmados porque situados, além do ideológico, porque edificados sobre aquilo que funda a casa e o ideológico: o mistério do Ser. O decantado diálogo ideológico não se faz com pactuações ou enrijecimentos ideológicos mas com aprofundamentos ideológicos, na perspectiva (utopia - de esperança nascida da promessa) do leito nupcial, que é o segredo de toda casa. Quando o homem não detém nem mantém no pensamento a sua ideologia, nem por isso deixa de ter ideologia. Nesse caso, porém, a ideologia fica suposta como embute, como único válido: fanatismo que separa, que condena, que julga e que divide. A ideologia passa a ser, então, justificativa para todo absurdo, pretexto para a degradação humana. A antilinguagem.

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id.p.161 ss.

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Ser homem é ser-com. Não é apenas estar-com ou viver-com, mas isso se situa no ser-com. O homem é-com o outro homem em diferentes níveis de proximidade: societariamente, grupalmente, subjetivamente ou transcendentemente. SOCIETARIAMENTE Por societário entende-se aqui o que se refere à sociedade global que vive uma cultura. A cultura é a integração de todas as instituições (como as instituições econômicas, políticas, religiosas, educacionais e e culturais, as familiais e recreativas). As instituições são conjuntos de papéis e funções visando determinado escopo social. Os papéis são sistemas de padrões de conduta. Pois bem, ser-com nesse nível significa cumprir uma função, desempenhar um papel. Enquanto membro e representante de uma sociedade, um homem funciona apresentando a outro homem a fala, a linguagem, a cultura de sua sociedade. Ele mesmo fala. Quem fala por sua boa é a sociedade. É o reino do anonimato, do ‘se’, do ‘on’, do ‘man’, onde ninguém responde pela ação, mas o responsável é a moda, a instituição, o ‘ninguém’. Como nas frases: aqui se fala português, se come peixe, se namora, se casa, se vive, se morre desta ou daquela maneira. O responsável pela maneira e pela ação é o se. Ele é o sujeito da ação: o indeterminado, o impessoal (muito embora a gramática o chame pessoal). É o modo cotidiano de vida, a vida inautêntica em que o homem está perdido, alienado. É um modo de sercom, mas o modo da superficialidade, onde a linguagem não fala, mas repete, onde a linguagem é tagarelice, diz-que-diz-que. Esse é o modo comum da linguagem, não só porque mais encontradiço, mas também porque o homem sempre já está nele e a ele sempre regressa enquanto não se arrancar dele, na violência “neantisant’ (Sartre) da decisão (Marcel). Nele, o homem, esquecido do Ser, esquecido do outro, de si e dos entes, vive na errância, no torpor sonolento da quase inconsciência. Vive errando, vagabundo da curiosidade caprichosa, pronunciando sons como é ‘normal’ pronunciar, concatenando os termos, as decisões e as atitudes como é ‘normal’ fazê-lo transmitindo valores 'normais'porque é 'normal' fazê-lo. A moral do homem é, então, a moralidade média, a justiça é a da maioria presumida ou numérica. 83


Nesse modo a palavra é oca, desabitada e por isso inaudível, não escutada. É a crise da palavra que hoje impera, organizadamente. Em avalanche. Os homens, então, se espantam, no individualismo divisionista que resulta, de que o mais valioso e sagrado para uns é ridículo para outros. Tudo é ridículo. O homem já não tem nada a que se ater (Ortega Y Gasset). E a vida resvala, nojentamente, absurda (Sartre). Quando o homem, porém, se colhe a si mesmo resvalando na publicidade tagarela e, perguntando sobre si mesmo, se angustia ante o abismo, nasce então para o homem a possibilidade da redenção. Nasce aqui a chance da recuperação. Do retorno ao originário da linguagem. Tarefa esta jamais terminada; permanente utopia; tensão e história da qual a morte aparece como extrema possibilidade. Como a graça universal. A reconquista de si mesmo (desde a primeira vez já é re-conquista) não se faz, porém, em forma de consciência teórica, abstrata sobre a publicidade, mas como decisão e engajamento. GRUPALMENTE Ao invés de falar como representante de uma sociedade, em nome do impessoal e do anônimo, em nome da cultura, o homem, neste nível fala como representante e na qualidade de membro de um grupo. Não é preciso dizer que a existência não vinga senão enraizada num grupo. Sem consenso e sem participação grupal não há existência. O ser-com, neste nível, assume a modalidade da solidariedade, do consenso, da divisão das tarefas, da estratificação de cada um em seu devido lugar para sobrevivência e prosperidade do grupo. Mas ao mesmo tempo se faz ilha, sistema fechado ante o qual os outros são estranhos e potencialmente inimigos e onde a necessidade de defesa do grupo é disfarce para cada um salvar a ‘própria pele’. Onde a coesão é outro nome que se dá ao medo de ser si mesmo e de assumir o próprio destino. Onde o gregarismo gargalhante e chistoso é fuga ao silêncio onde fala a voz do Ser. Na interlocução grupal os homens não falam em nome próprio mas em nome e como representantes do grupo. Quem fala não é um eu diante de um tu, e por isso não acontece um nós. Mas quem fala é ainda o “se” (man) colorido com a soma das necessidades de cada membro do grupo. Assim como no primeiro nível quem fala é a sociedade através 84


de um representante que atua como representante, assim aqui quem fala é o grupo. Não são as pessoas do grupo. Quem fala é o sobrenome e não o nome. O grupo, porém, já está mais próximo à pessoa do que o está a sociedade. Através do grupo, o ser-com disperso no anonimato societário inicia o caminho do recolhimento, da recuperação. E se a coesão social é imprescindível para a sobrevivência da sociedade, se a coesão grupal é indispensável para a sobrevivência das pessoas (a anomia leva à morte, dizia Durkheim), no entanto a coesão e a sobrevivência não têm seu fundamento nem na sociedade nem no grupo. É aí que elas acontecem mas não é daí que elas nascem. O homem é ser-com, não porque seja gregário, político ou familial, mas é familial, gregário e político porque é constitutivamente ser-com. SUBJETIVAMENTE O terceiro nível do ser-com é o nível da subjetividade. Nesse nível o homem não fala apenas como representante de sua sociedade, cultura ou grupo, mas fala como representante de seu querer, de sua vontade. Fala a partir dessa vontade que, então, já não é vontade e sim veleidade e capricho. Age, a partir de seu “gosto”, buscando satisfazer um desejo. Centrado na subjetividade, o homem faz de tudo, dos outros e de si mesmo, objeto que sacia necessidades. Tudo é instrumento de prazer, de auto-afirmação, de auto-realização, real ou potencial. Isso pode significar, então, que o Ser, o Amor, o afeto, a dedicação, o sofrimento, o trabalho, a arte, a moral, a religião, o jogo e a oração, enfim tudo pode ser usado como instrumento da subjetividade. Isso pode significar que o homem fala para que ninguém o ouça, para que ninguém o ouça nem ele se ouça a si mesmo, fala para não dizer nada, fala para que ninguém o descubra, fala para encobrir-se, esconder-se. O homem então estácom-o-outro para não ser-com ele. Compadece-se e presta favores e esmolas para livrar-se do outro. É correto para que o aplaudam. Reza (fórmulas) para evitar o sobressalto de se encontrar em Deus. A gratuidade e a generosidade não residem nesse nível. Pode, isto sim, residir aqui o disfarce de generosidade, o capuz da gratuidade e do “altruísmo”, como engodo, como instrumento para alcançar o alimento 85


da subjetividade. É a experiência desse disfarce que Sartre procura tematizar em sua filosofia. Seu pensar, que procura articular a subjetividade e fundá-la, não sai, porém, da metafísica da subjetividade. O horizonte de compreensão da subjetividade é ainda aí a subjetividade. Nesse nível, quem fala não é um eu ante um tu, mas uma subjetividade ante outra subjetividade. Por algum tempo, duas ou mais subjetividades podem pactuar uma convivência, buscando cada qual o máximo de proveito com o mínimo de esforço, buscando cada qual a sua gratificação; podem pactuar, inclusive, suportar um trabalho ou uma dor, mas nem por isso essa convivência perde o caráter arbitrário de subjetividade, da qual o homem anseia por libertar-se tão cedo possa. Os outros, nessa perspectiva da subjetividade, quando não se submetem como instrumentos; os outros, quando pro-vocam no olhar convidativo; os outros, quando desinstalam o homem em sua comodidade; os outros, enquanto exigem que o homem vá além de si mesmo; os outros, enquanto exigência de transcendência, são o inferno.

TRANSCENDENTEMENTE O quarto nível do ser-com é a transcendência. Aqui, o homem não fala como representante nem da sociedade, nem do grupo, nem de si mesmo em sua subjetividade, mas fala em seu nome próprio, em seu próprio nome. Não fala a partir do “gosto”, da veleidade, do capricho, muitas vezes instigados e organizados pela cultura, mas fala a partir do que ouve no silêncio longamente guardado da intimidade. Fala daquela região que Agostinho de Tagaste denominava de leito nupcial da alma com Deus. Lá onde o homem sozinho, diante de Deus, decide a sua própria vida. Fala, enquanto na vertente de seu ser, bebe e acolhe o apelo do Ser e lhe procura, no zelo vigilante de pastor, uma resposta digna. Fala o que aprendeu do Mestre interior119. A transcendência é a exigência mesma de transcendência120. A transcendência nos desloca para o deserto, onde ninguém está, onde não 119

Santo AGOSTINHO. De Magistro. p.115.

120

Gabriel MARCEL. op.cit. p.43 ss.

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se ouve voz alguma, e, no entanto, onde uma presença que irradia não se sabe de onde nos envolve e nos fala121. Uma imagem visual que nos permite pensar os níveis do ser-com é a de um poço. Podemos apanhar água e oferecer água da beira, da superfície do poço. Água que espelha o rosto de todos os transeuntes. Água turbada pelo vento e pela poeira. Água acessível a todos. Podemos depois apanhar e oferecer água do centro do poço, água envolvida na propriedade particular na segurança das paredes de pedra. Podemos, em terceiro lugar, apanhar e oferecer água do fundo do poço. Aí estão o lodo, as pedras. É o nível dA subjetividade para chegar à subjetividade é preciso remover, turvar, cavar, mexer. Por fim podemos apanhar e oferecer, não da água contida no poço mas da água da vertente, lá onde o poço nasce e se constitui. É o nível de transcendência. Para penetrarmos com alguém até o fundo do poço e, mais ainda, ir à vertente do poço, é preciso, aos poucos, saber mergulhar. A vida não transcorre sempre no fundo do poço. As pessoas não têm fôlego suficiente para tanto. E quanto mais profundo o mergulho, menor o espaço de tempo para aguentá-lo. Com efeito, não se consegue ficar sempre na intempérie, ao desabrigo, no desvelamento da verdade do Ser. Após cada mergulho volta-se à tona. Aparece, também, na imagem do poço, a sugestão para o pensamento de que a transcendência não está além, fora, acima da imanência. Fora da história, do cotidiano. Mas a “eternidade é a profundidade da história”.122. O originário do ordinário. Alcança-se a profundidade do poço mergulhando de cima para baixo. O imediatamente atingível é a superfície. Depois o fundo. Por fim a vertente. A imagem do poço diz também que a água contida no poço é abundante, potável, na medida em que se desobstruir a vertente. Na medida em que se permitir à vertente verter, pois, nessa medida, o poço adquire identidade, desde a boca até o fundo. Os modos de ser-com: a expressão, o apelo e a comunicação (no dizer inacabado de K. Bülher), seguem esses níveis, em direção à vertente. Assim um homem pode demorar com o outro homem na superfície tagarela e cômoda da boca do poço, na superfície dos modismos e do “se”. Pode, quem sabe, adentrar-se com o outro até a 121

Antoine de SAINT-EXUPÉRY. op.cit. p.79.

122

Gabriel MARCEL. op.cit.p.43 ss.

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habitação do outro, que é o grupo. Pode ir e permanecer uns instantes na subjetividade ou ir à raiz do poço, além do poço, à intimidade do poço. Pois a vertente não é do poço, mas sim, o poço é da vertente. É ela que o faz surgir como poço e o mantém como o lugar de desvelamento da vertente. O lugar que a vertente escolheu e destinou para pôr sua água à disposição. A vertente, ninguém a contém. Não se esgota, não se limita como o poço. Um poço fechado à vertente esgota-se, esteriliza-se em pouco tempo. Sozinho, o que um poço oferece ao final e ao cabo de si mesmo, é um pouco de lodo e de pedras, a insalubridade e a morte. A fonte, porém, é o nascimento simples, contínuo e eterno, como a canção e a poesia. Quanto mais água se buscar, quanto mais espaço se der à vertente, mais água dará. A água da fonte é sempre água viva. Quanto mais próxima à originária vertente, mais sacia. “Faz bem ao coração” diria o pequeno Príncipe. Na vertente toda taça, toda jarra, todo poço haure sentido. Nela tudo é reconduzido à identidade. Ela é o horizonte do poço. Na vertente o poço encontra sua dimensão, sua estrutura e sua lei. Não será o poço quem dará as leis à vertente, e é ridículo que ele pense bastar-se a si mesmo só porque é capaz de suportar na superfície um barquinho de papel. A fonte, como o brotar vigoroso e silencioso, é o horizonte do que vige e se mostra. Assim, a linguagem e as funções sócio-culturais (e toda cultura é linguagem), a linguagem e as funções grupais, a individualidade e o rosto peculiar de cada um encontram seu horizonte no Ser que, enquanto dádiva nascente, é o Amor. O Amor é o horizonte de toda linguagem e de todo pensar. É o horizonte do Ser porque se confunde com ele. Nele, o ódio, a traição, a mentira encontram lugar como aquilo que ainda não é, como aquilo que deve vir, como exigência, apelo a ser escutado, como canal a ser desobstruído, como poço a ser limpo, disponível. O amor revela o homem como linguagem e revela a linguagem do homem. Sem amor é impossível qualquer linguagem, qualquer pensamento. Sem amor não há consenso social, nem padrões sociais de conduta. O medo e a necessidade (Hobbes, Locke, Rousseau), como fundamento do convívio social não foi pensado até o fim. Na verdade, o medo e a necessidade são medo e necessidade de amor, fundados no Amor, que é sim esperança e horizonte. Sem amor não há grupo, participação, renúncia e trabalho. sem amor ninguém desnuda sua subjetividade ante o olhar do outro. Ninguém mostra sua intimidade se 88


não se souber acolhido, aceito, recebido. É nesse horizonte que ele se mostra. Do contrário, e como faminto, na expectativa desesperada, o homem se encobrirá, disfarçado num torvelinho de gestos e palavras ocas, à espera do mel que, nele, a abelha deposite. Cabe aqui o verso de Rilke: “Somos as abelhas do invisível. Juntamos o mel do visível na grande colmeia dourada do invisível”123. No amor, como horizonte lingüístico, o homem surge como: l) interioridade; 2) Transcendência; 3) Corporeidade; 4) Sexualidade; 5) Historicidade. Interioridade A interioridade não é um conceito espacial, assim como não são conceitos espaciais o acima, o abaixo, o fora, o dentro, se por espacialidade se entende o que disso pensou Descartes. O espaço como extensão está fundado no poder espacializante do homem124. Agostinho de Tagaste via na perspectiva cristã, três dimensões do espaço e do mundo: o “desuper”, o “fori” e o “intus”. O “desuper” é o “empírion”, o superior. É o lugar em que Deus mora em si mesmo. Deus mesmo é o seu lugar. O “desuper” é o horizonte que situa e funda o mundo. O mundo tem duas dimensões: o “intus” e o “fori”. O “fori” é a dimensão das coisas. O “intus” é o lugar da pessoa. Deus é o “desuper” como horizonte existencial é medida significativa de toda dimensão. Mas Deus também se encontra no “intus” como a própria interioridade do homem. Deus é mais íntimo ao homem do que o homem é íntimo a si mesmo. O homem não encontra Deus no “fori” ou como um “fori”, mas no “intus” o encontra como “desuper” que situa significativamente todas as coisas. O significado das coisas brota da intimidade e conduz à intimidade. Por isso o universo é linguagem que conduz à interioridade onde mora o único mestre que fala o significado do universo. O universo é simbólico, significação. Aprende-se a significação na intimidade do Mestre. Essa intimidade só a experimenta e existencializa quem convive com o Mestre. Nessa intimidade, que é oração, o centro nodal da pessoa, 123

id.p.201.

124

Martin HEIDEGGER. L’être et le temps.p.139.

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o homem adquire e garante toda a sua dimensão. Nela o tempo se faz eternidade porque eternidade não é extensão, mas sim intensidade de vida. Nela, o outro se mostra radicalmente próximo e no entanto o que faz a proximidade é uma distância infinita: o outro indica o lugar do mistério e, por isso, é misterioso, intocável, absolutamente respeitável. Essa distância, que é a presença da eternidade, é o pudor. O respeito, a delicadeza, o encanto e a admiração são faces do pudor. O pudor é a veste do sagrado toda tecida de silêncio, deserto, recolhimento. “Vi o infinito nos olhos grandes, parados, da mulher que meditava”, diz um verso. Quando o homem se recolhe à presença e deixa que a Presença o contemple, então ele está todo em casa, consigo próprio nas mãos, decidindo sua vida ante o olhar de Deus. Recebendo-se a si próprio como um dom, liberando-se à verdade do Ser e por isso liberando a si mesmo aos outros e aos entes o homem mora à beira da paz porque à porta do Ser. Consciente de si? “Pour-soi?” Pessoa, simplesmente. Solidão solidária. A solidão é sempre aprofundamento da comunhão ou é impossível a consciência de si, impossível qualquer consciência. É na, a partir, e para a comunhão que o homem alcança o deserto e a intimidade. O homem, porém, não é sua intimidade. Ela é maior que o homem. Ela é a Presença, o Mistério, o Amor. O Amor não é nosso. É ele que nos faz nascer, que nos faz crescer. É ele que nos poda e nos acaricia. É ele que nos mói até a extrema brancura e nos reconduz a si mesmo. O Amor basta-se a si mesmo. Ele é o bastante para tudo e para todos125, e nos constitui suas testemunhas e clareiras. Ele conduz nossos passos e não nós os dele. O Amor nos ultrapassa. Ele nos mata para fazer-nos viver. Ele é o lugar do homem. Como exigência de transcendência, ele é a transcendência do homem porque é a própria Transcendência. Nele, somos nós sem sermos nossos. Transcendência Não há, já se viu, como separar interioridade de transcendência. A Transcendência não está fora, longe, como também não está dentro do homem. Ela é a própria interioridade do homem.

125

Gibran Kalil GIBRAN. O Profeta. p.36.

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No acontecimento-apropriação (Ereignis) - cerne constitutivo da Essência do homem - o elemento acontecimento diz o Ser enquanto Dom, enquanto Transcendência que estabelece para si o homem como o lugar do Dom. O elemento apropriação diz o acolhimento (que é graça do Dom), enquanto espaço do Dom, interioridade. No pensamento recolhido, diria Heidegger, na reflexão segunda, diria Marcel, o homem transcende o “si mesmo” da subjetividade para alcançar-se a si próprio, desnudo, ante o olhar silencioso de Deus. Eu, si-próprio, que não é objeto ou sujeito mas pessoa. A Transcendência, como o “desuper” de Agostinho, não é espacial no sentido cartesiano. A Transcendência vivida como interioridade dá sentido e lugar a toda orientação espacial. É a partir desse horizonte que podemos falar de proximidade, distância, inferioridade, superioridade. A partir dele todas as coisas ganham seu espaço e lugar. As coisas se tornam, então, sinal, gesto, manifestação, expressão desse horizonte. Assim como a montanha faz esplender o horizonte enquanto este ilumina e delimita a montanha, assim a “Ereignis” é o contexto de toda significação. A linguagem, assim, elucida o homem como tensão, como nome, como mediação entre a Transcendência e a imanência, como espírito, como carne. A linguatem é o ato mesmo de transcender126. O caminho da Transcendência, o caminho da recuperação do corpo irrefletido, o itinerário do espírito, vai desde o deslocamento motor no mundo percebido até a comunicação silente do gesto, a linguagem e o pensamento. A linguagem transcende a língua, mas também transcende a palavra. Vive na palavra mas a transcende. Por isso, a expressividade (vocação infinita do homem) funda a história127 como o advento do Ser. Na pintura a expressividade se faz “a voz do silêncio” que torna visível a visibilidade porque se faz na invisibilidade128. Por isso, a expressividade não tem progresso129, mas arqueologia, volta ao originário enquanto

126

Maurice MERLEAU-PONTY. Fenomenologia da Percepção.p.449.

127

Gary Brent MADISON. La Phénoménologie de Merlelau-Ponty. p.104.

128

Maurice MERLEAU-PONTY. O olho e o Espírito. p.85.

129

id.p.90.

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antecipa a totalidade do futuro130. A linguagem é transcendência, também, porque traz em si o ideal de uma manifestação total131. E, se a voz da pintura é a voz do silêncio, toda voz da linguagem é a voz do silêncio. As palavras não nascem do pensamento (enquanto razão, lógica) mas do silêncio. Elas são filhas do silêncio132. O silêncio não é a ausência de sons, mas a possibilidade de todo som. O som manifesta o silêncio. O silêncio é o conteúdo e o significado do som. A música é apelo ao silêncio. Invocação. A música totalmente cheia de som é inaudível. “Quem me dera, dizia um músico, aprendesse a tocar as pausas!” A linguagem anuncia, pré-nuncia, envolve o silêncio ou, como diz Medinho, o vazio. “Voce sabe que, na verdade, o que o oleiro faz é cobrir o vento, o nada, porque uma peça de barro é isso: uma separação no vazio. Eu, quando estou trabalhando, não penso no vaso, na vasilha: penso no espaço que estou tapando. Não foi o que Deus fez? O que ele fez foi isso: mudar a forma do vazio. Ou não foi mesmo? Aí eu não penso no barro, mas como vai ficar o canto do lugar que eu vou cobrir”.132A Lingüisticamente, o homem é transcendência. A ética e a religião são disso manifestação patente. A oração é a forma suprema de ser homem. A suprema forma de falar. A suprema forma de linguagem. Corporeidade O homem, enquanto “Ereignis”, enquanto tensão entre imanência e transcendência, é corporeidade. O corpo não é a exterioridade de um interior. Não é a revelação do interior. Não é um instrumento do espírito. O homem não tem corpo, como algo de que pudesse lançar mão. Nesse sentido o corpo não é do homem. O homem também não é corpo, no sentido de se reduzir àquilo que o corpo mostra do homem. O corpo também não é parte do homem, paralela ao espírito. O homem também 130

id.p.92.

131

Maurice MERLEAU-PONTY. Fenomenologia da Percepção. p.221.

132 132A

. Sens.p.58. Oleiro MEDINHO, citado por Valty, Ivete Lara Camargos. O que é ficção? Col. Primeiros Passos, Ed. Brasiliense pp. 16/17, 1986.

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não é a carne que constitui o meu corpo como meu corpo e constitui os corpos dos outros como vinculados ao meu. Na verdade a carne ultrapassa o corpo. O corpo é uma dimensão do homem. Não é um objeto para um sujeito, quer se entenda por sujeito o Cogito ou a Natureza. O corpo é tecido intencionalmente. O corpo é cultura, linguagem. Ele é a síntese das retenções e protensões (Husserl) que eu vivo. Ele é a síntese da minha história, enquanto minha história é intersubjetividade e intercorporeidade. Todo tecido de contatos e vínculos, de comunhão e de medo, de disponibilidade e fechamento, de saudades e de esperanças colhidas no espelho vivo do olho do companheiro, o corpo é fundamentalmente fisionomia. Rosto. Nele o olhar propõe o homem. Olhar que pode ser charco ou iluminação. E quando o olhar amadureceu na estação calma do silêncio longamente guardado, na proximidade da Presença, ele se torna profundo, abismal, misterioso. Todo olhar que o encontra é levado a contemplar estrelas. É levado a ser simplesmente homem, ântropos: aquele que contempla as estrelas. E o homem que reside na profundidade abismal desse olhar é intocável. Esse olhar é logos, no sentido originário de recolhimento. Nele as coisas se recolhem à presença do Mistério. Nele o olho está em presença de si mesmo: é espírito133. Esse olhar ilumina o rosto, reveste o corpo todo com o manto do sagrado, do pudor. Muito além dos tabus tematizados pela picanalise (resta a ver se a psicanálise corrente sabe ver o que os primitivos entendem por tabu), o pudor não é medo mas reverência, deslumbramento no mistério pessoal. A palavra, prolatada pela boca e entendida pelo ouvido, é interpretada pelo olho. É através do olho do outro que o homem fala. Quanto mais profundo for o olhar do outro mais profunda é minha voz e meu silêncio. No olho do outro ele percebe a repercussão da fala, o sentido da fala, a fala simplesmente. Sem perceber a fala, é impossível falar. O olho do outro é parte integrante de meu aparelho lingüístico. Mas, e o cego? E a escuridão como horizonte da fala? E a luz como significado? Outros poderão elucidar. Não confundimos aqui o olhar de proprietário, prepotente indo-europeu segundo o qual o olho é o instrumento de apropriação do mundo e dos outros; instrumentos de

133

Maurice MERLEAU-PONTY. O Olho e o Espírito. p.85.

93


dominação à luz do dia133A. O corpo é linguagem. “O corpo não é um objeto, do mesmo modo que a consciência que dele tenho não é um pensamento”134. “Sou meu corpo, meu corpo é como um sujeito natural”135. O corpo é um poder de expressão. A reflexão jamais consegue alcançá-lo totalmente, jamais consegue coincidir com ele. Enquanto pré-reflexivo, está além do reflexivo. Do poder expressivo do corpo brota a linguagem136. “O corpo próprio é em si mesmo instaurador de sentido, abertura transformadora no seio da indiferenciação do ser natural”137. Há um poder de transcendência que atravessa o corpo. Por ele o homem é no mundo a própria transcendência do mundo. Corpo é enraizamento. O sujeito falante é enraizado no sujeito perceptivo e o transcende138. Corpo é encarnação e como tal é participação, diria Marcel. A participação vai desde a partição e o consumo de um bem até o associar-se a alguém numa cerimônia litúrgica e culmina como comunhão dos santos, muito além de toda objetividade139. Corporeidade é, existencialmente, percepção. Percepção é participação no universo e do universo. O universo é o corpo do homem. Sexualidade O corpo não é “o corpo das necessidades, o corpo biológico, corpo carente de um objeto específico que vem satisfazê-lo... O corpo... é referido enquanto “recortado” pela linguagem, investido eroticamente pelo outro, que cunha nele sua inscrição sexual; encontra-se, assim, submetido à ordem significante”.139A. 133A

Enrique Dussel. Método para uma Filosofia da Libertação. pg.226.

134

Maurice MERLEAU-PONTY. Fenomenologia da Percepção. p.231.

135

id.p.231.

136

id.p.220 ss.

137

Gary Brent MADISON. op.cit. p.68.

138

Maurice MERLEAU-PONTY. Fenomenologia da Percepção. p.449 ss.

139

Gabriel MARCEL. op.cit. p.100-101.

139A

Denise MAURANO. Nau do Desejo. p.162.

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A linguagem é sempre sexuada porque o homem é sexualmente. O homem não é sexo, nem tem sexo, mas é sexualmente. A sexualidade não é biológica, psicológica ou social. Acontece biológica, psicológica e socialmente, mas não se reduz a isso, nem nisso tem seu horizonte compreensivo. Assim a ciência não abarca todo o significado da sexualidade, porque a sexualidade não se reduz ao natural; ela é um poder de transcendência140. Disjuntivamente, o homem vive sobre a terra. Ou masculina ou femininamente. E quando o homem perde a fisionomia sexuada, perde a fisionomia humana, ou simplesmente perde a fisionomia. O drama do homosexual não consiste simplesmente, e como simplistamente alguns dão a entender, numa rejeição social a um problema biológico. O sexo não é biológico, é pessoal. Também não é um instrumento que um “espírito” (no sentido cartesiano) utiliza. Por isso não cabe falar em determinação do espírito sobre o sexo ou do sexo sobre o espírito. O mesmo se diga de sua mútua influência. Essa dicotomia cartesiana nasceu, como se viu, da metafísica da subjetividade. É verdade que a sexualidade é biologicamente condicionada: a mulher não pode ser pai. É verdade que a maneira de ser sexualmente se estrutura socialmente na intersubjetividade. Mas a sexualidade não é social como não é biológica. Estudos sobre a afasia mostram que ao se tornar afásico o homem se torna impotente para o sexo. Não é então, juntando características biológicas ou sociais, que conseguirá caracterizar a sexualidade em sua especificidade masculina ou feminina. A sexualidade, como tudo no homem, só pode ser compreendida no horizonte do mistério do Ser. A sexualidade como subjetividade é pornografia. Como também é pornografia a morte, os negócios, a política, ou, simplesmente, a linguagem quando somente subjetividade. A linguagem enquanto sexualidade é perigosa. O perigo não consiste na iminência de um dano físico ou social como o desvirginamento, a gravidez, a morte. Foi a cultura ocidental que, banalizando tudo (ao contato da subjetividade tudo se banaliza), fez consistir nisso, ou em coisas semelhantes, o perigoso. Na verdade, a linguagem enquanto sexualidade é perigosa porque nela se arrisca o Ser e a Essência do homem. E o poeta é quem mais arrisca. Pois a poesia é tecida na intersubjetividade sexual. 140

Maurice MERLEAU-PONTY. Fenomenologia da Percepção. p.220.

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A mulher é, para o homem, a maior linguagem, como o homem o é para a mulher. Antes, porém, de ser capaz de ouvir essa linguagem maior, o homem precisa aprender a linguagem sexuada pai - filho - mãe - irmão, precisa aprender a linguagem familial. A linguagem enquanto sexualidade é caminhada, pedagogia, utopia, esperança. Na verdade, jamais o homem consegue encher a medida da sexualidade. A estatura plena de mulher está à frente da mulher. A estatura plena de homem está adiante do homem. O homem promete à mulher mais do que pode dar. E a mulher anuncia ao homem um mundo que é maior do que ela mesma. Essa promessa não é trapaça, engodo, engano, mentira mas o anúncio de que a plenitude que está adiante é essencial para se compreender o limite do aqui a partir do qual se faz a promessa. Quem garante a promessa não é o limite mas, nas dimensões do limite, acontece a plenitude como escatologia. Hoje, como nunca, o homem vive sexualmente aturdido. As imagens culturais de homem e de mulher se descaracterizam e caem e não há outra imagem cultural que se imponha e se mantenha como critério do que deva ser a masculinidade e a feminilidade. A imagem freudiana, elaborada nos critérios da metafísica, só responde à vontade de poder do homem moderno. E ontologicamente pouco se pensou. Heurísticamente, pode-se dizer sejam as seguintes algumas características do masculino e do feminino: A mulher é essencialmente acolhimento, útero. Por isso, e como ele: 1) ela acolhe a vida que não é dela. Ela acolhe o dom. É o espaço da vida. Nela a vida se aninha. Nela a vida é, sempre de novo, esperada. Nela toda a vida é acolhida. O útero não escolhe alguma. 2) Ela alimenta e faz crescer a vida. Nela a vida se estrutura, solidifica, amadurece. 3) Ela envia a vida. Reter é morrer. Morte para a mãe e para o filho. Parir é enviar, dar à luz. Tudo isso, porém, não é apenas fisiológico, psicológico ou social. É ontológico. A feminilidade se expressa fisiológica, psicológica e socialmente, mas não se reduz a isso. A mulher, que é essencialmente acolhimento, não será feminina acolhendo somente o físico de alguém, o desejo de alguém, a subjetividade de alguém. A mulher só se encontra feminina (é a única maneira possível para ela) quando conseguir acolher alguém como pessoa. A pessoa é o lugar do Mistério. Plantada no mistério, “guardando todas as coisas no silêncio do coração”, na atividade infinita do acolher, a mulher ora. É por isso que a Igreja assumiu para si a imagem definidora de mulher. Só no 96


mistério, no re-colhimento que tudo a-colhe, a mulher pode ser ao mesmo tempo indissoluvelmente virgem, esposa (amante) e mãe, na expressão de Dostoievski. E isso não só e principalmente no campo fisiológico. Se a mulher é acolhimento, o homem é dom. A masculinidade consiste em doação. O homem dá do que recebeu como dom. E, enquanto dá, é força, retidão, justiça. Na doação o homem põe tudo em ordem. Masculinidade não consiste em dar coisas; quem somente dá coisas, o faz por medo da masculinidade. O homem não dá de seu capricho e subjetividade. Fazê-lo é ser prepotente. A imposição da subjetividade, ao invés do dom, desarticula as pessoas e as faz inimigas ou escravas. O homem masculino é aquele que já caminhou suficientemente na generosidade a ponto de dar sua intimidade, e a intimidade é o mistério do Ser. No homem o Ser se faz dom e consitui o homem masculino; na mulher ele se faz casa, habitação, agradecimento, canção. A masculinidade e a feminilidade acontecem nos gestos. Tudo é gesticulável. O corpo é o homem feito gesto. O gesto fundamental da linguagem, que é o homem, é a casa e o alimento. A casa, que tem as dimensões do homem, não é compreensível científica ou metafísicamente. A casa, como o lugar da acolhida, tem sala de visitas, onde acontecem os diálogos mais profundos e as bisbilhetices tagarelas. A casa, lugar do alimento: do mais saboroso e do mais insosso. A casa, lugar da intimidade tem o quarto, o lugar do desnudamento para as maiores intimidades e para as maiores desavenças: as desavenças que não se pode travar em público. A casa, lugar da água, da higiene, da purificação. A casa, o lugar das portas e janelas mais ou menos arejadas. A casa, na proximidade maior ou menor da outra casa. Proximidade que não é apenas reunião (urbanização), mas vizinhança. É difícil para o mundo ocidental metafísico, entender que, para unir os corações, é preciso afastar um pouco as tendas. A casa é o lugar que o homem fez para que a mulher o acolha e ele se doe a ela. É o lugar onde ambos acolhem os filhos. É o lugar onde a família acolhe o hóspede. A casa é o lugar do homem. A cidade é a proximidade da casa dos homens. A sexualidade que não é masculina, nem feminina, nem a soma de ambos é o que faz o homem ser masculino, a mulher ser feminina sem soma ou derivação ou negação; é horizonte lingüístico para ambos. Ele identifica o masculino como masculino, o feminino como feminino e o encontro de ambos como identidade e transcendência.

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Historicidade A linguagem, Essência do homem, é tensão. É temporalidade. É passado, dado, oferecido, acontecido, tradição. É futuro, como a possibilidade desse passado que ainda não veio. É advento, enquanto concreção (presente) da possibilidade (futuro) que se obtém do passado. O presente não é um átomo entre o passado e o futuro, mas é tensão entre o passado que se faz presente (se presenta) como sido e o futuro como o que ainda não chegou, mas que deve vir. É no horizonte do futuro que nós olhamos o passado e nele descobrimos não só o feito, mas a possibilidade ainda não feita do feito. O feito como possibilidade de vir. A história como linguagem do homem é passado, tradição e a possibilidade total da tradição, o futuro. A linguagem, enquanto recuperação hermenêutica do passado, é historicidade. A linguagem não é repetição do passado. É a memória do passado. A comemoração do passado. Comemoração como celebração do originário que é “arché” e “telos”. É arqueologia da palavra e teleologia da palavra. Tradição e profecia. Enquanto originária, a linguagem é palavra falante e não apenas palavra falada. Repetição, embora, a linguagem sempre supõe, de alguma forma, um estar no originário ainda que de maneira inconsciente, impessoal e inautêntica. G. Tarde dizia que toda imitação supõe uma recriação. O originário se faz experiência na voz do silêncio. O silêncio é manifestação da totalidade. Manifestação do futuro como esperança. Tenso, entre o limite e a totalidade, o homem espera. O homem espera o advento do mistério, o advento da verdade do Ser. Pois o Ser que se dá e se esconde, se oferece e se promete, é apenas adivinhável. A palavra não o apanha. Ele excede a palavra. E, no entanto, o excesso significativo que acontece na linguagem é ainda linguagem. Toda metalinguagem permanece sempre linguagem. A sugestão e o sugerido estão no horizonte da linguagem. A linguagem, que se nutre do limite e da provisoriedade precária, mediada por um contexto significativo vivido antecipadamente e ao mesmo tempo jamais alcançado, é historicidade. A linguagem, enquanto história, é tradição. A tradição, à luz de um projeto, se faz consciência histórica, se faz política e ação. É hermenêutica que se faz ideologia, “esse pensamento de mãos sujas”141,

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Ernildo STEIN. História e Ideologia. p.61.

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de mangas arregaçadas que decide a Essência do homem na práxis nascida do silêncio. A ideologia é a leitura da situação histórica visando à ação a ser realizada. É “estatuto de interpretação e transformação da realidade”142. A linguagem se torna, então, o peregrinar na finitude. “E a certeza de sermos peregrinos do absoluto na história não diminui nossa condição de peregrinos”143. A relação de esperança com o absoluto não é uma relação absoluta em si mesma. “Uma relação desabsolutizada com o Absoluto na história é a única maneira de salvar o homem em sua finitude”144 . O homem, inserido no conjunto das instituições culturais, é livre. E a liberdade é sempre possibilidade de transcender a própria cultura que envolve o homem145. E falar é, assim, viver um logos constituído, assumindo-o, levando-o ao horizonte. Porque história, a linguagem sempre diz menos do que precisa dizer e diz mais do que pode dizer. É a imanência transcendendo-se e a transcendência encarnando-se. Ela, porém, não é nem carne, nem transcendência, mas o advento inacabado da transcendência, o aprofundamento da imanência. Porque história, a linguagem é o advento do Ser. A história não é exterior, acidental ao homem. É a essência do homem enquanto advento do Ser. O OUTRO COMO CONSTITUTIVO DO ENCONTRO O outro é constitutivo do encontrar-me enquanto é “tu” ante o qual me revelo. O homem só se encontra com o outro. O homem não encontra o outro assim como não encontra as coisas e o Ser, “stricto sensu.” O outro é rosto que me faz face, fisionomia. Eu me defronto com ele e me confronto com ele. Se ele não estiver reduzido à condição de coisa, de objeto, ele põe um dique à minha subjetividade. Não posso marcá-lo com o selo da utilidade; posso, isto sim, nomeando-o, invocá-

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id.p.47 ss.

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lo. E ele responde ao apelo. É responsável. Meu poder não adere a ele. O outro escapa-me das mãos e dos olhos, é intocável. E quando penso tê-lo tocado, estou sozinho ante um objeto. O rosto do outro reverbera, devolve o nome que lhe dou, responde. Os animais, as pedras e as plantas guardam a denominação que o homem lhes dá como algo constituinte de sua própria essência. A essência da coisa é o significado e quem lhe revela o significado é o homem. Este, como clareira do Ser, edifica o mundo e o constitui enquanto refere tudo ao Ser. O outro é constitutivo do homem enquanto este é ser-com. O outro aparece ao homem como outro, abismo intocável, na proximidade do pudor. A ternura, enquanto proximidade, é delicadeza e respeito. Encantamento ante o mistério que no olho do outro mostra sua face. A alteridade do outro aparece em toda linguagem, mas especialmente na sexualidade. O drama do homem que vive centrado na subjetividade consiste na impossibilidade de tomar posse, de se adonar da outra pessoa. Essa vontade de domínio acontece nas relações familiais, na luta dos sexos, na supremacia de um ou de outro sexo. Na verdade, o homem jamais consegue dominar uma mulher e vice-versa. Quando pensa tê-lo conseguido é porque está enganado e ela o engana consciente ou inconscientemente. Uma mulher nunca se masculiniza e um homem jamais se feminiliza sob pena de perder a condição de pessoa. Na sociedade patriarcal, se o homem pensasse dominar a mulher e fazer dela sua imagem e semelhança, a mulher se refugiaria num âmbito inacessível para o homem, a partir do qual ela o dominava. Pense-se no âmbito da alimentação, do vestuário, dos valores religiosos, dos segredos da vida. Ambos pensavam dominar e ambos eram dominados. Ambos estavam sozinhos. Ninguém se reconhecia senão indiretamente. Falamos aqui num conceito puro de patriarcalismo, nas sendas de Max Weber. O outro, quando me encontro com ele no mistério, se faz minha própria possibilidade e está mais próximo de mim do que a subjetividade jamais sonhou. Só no horizonte do mistério do amor se compreende essa linguagem. O mistério e o único lugar onde o outro pode ser outro. E todo homem já experimentou de alguma forma o mistéio do amor. Do contrário nem se reconheceria e a nada conheceria. O outro, eu o reconheço. As coisas, eu as domino. As coisas são o reino do útil, os outros são o reino do inútil. Nada mais inútil que o amor. O único necessário para o homem é o supérfluo, dizia Ortega y Gasset. Na 100


realidade, eu me reconheço com o outro. Não é no outro que me reconheço. O reconhecimento é um ato de vinculação. É comunhão. A linguagem é sempre apelo ou resposta ao apelo: diálogo. É no diálogo que o raciocínio toma sentido. No raciocínio a proposição alcança significado. No juízo as palavras significam. Por si sós as palavras nada dizem. As categorias aristotélicas e suas sucessoras são uma abstração que não atinge o cerne da linguagem. A função lingüística de apelo de que fala K. Bülher não é separável das funções de significação e expressão. A expressão só acontece como apelo significativo. A significação é expressão que apela. O mesmo se poderia dizer das seis funções da linguagem apontadas por Jacobson. Ao possibilitar a uma pessoa a experiência do amor, o homem lhe diz: eu te garanto que não morrerás, diz Marcel. O homem só sabe que vive quando experimenta o amor. Quando não o experimenta, vive seu próprio óbito: a vida morta, o mundo como arbitrariedade. Na experiência do amor o homem sabe de sua vida, de sua morte, de sua eternidade. O amor contém em si a promessa da ressurreição (Marcel).

AS COISAS COMO MEDIAÇÃO LINGÜÍSTICA As coisas são mediação. Coisa é tudo o que é perceptível. O pensamento não é perceptível em si mesmo mas a expressão articulada do pensamento pode ser percebida e, nesse sentido, toda cultura é coisa. Coisa não é sinônimo de ente. O homem é ente mas não se reduz à coisa. No entanto, a coisa é uma dimensão do homem. Por isso o homem pode ser mediação do encontro. Condição de encontro, as coisas sempre são encontradas no mundo enquanto referidas ao mundo. Sua essência é a referibilidade, o estar-à-mão, a servibilidade146. Quem as refere é o homem. Elas carregam significações, mensagens; elas se deixam carregar de mensagem. O homem se faz presente nelas enquanto vai ao outro homem num apelo. Elas suportam a presença do homem que se encontra com o outro, no absoluto. Todas as coisas suportam o homem falante. Por isso o homem

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Martin HEIDEGGER. L’être et le temps. p.90.

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pode articular a linguagem através de todas as coisas e de cada coisa. As coisas são constitutivamente feitas palavras e o homem interlocutor. O homem pode inventar quantos códigos lingüísticos quiser, segundo cada situação histórica da intersubjetividade, e as coisas sempre estarão aí, à espera da significação que as faça ser. É em sendo o corpo, o campo, o suporte da significação que elas são significativas. O homem só as percebe como suporte significativo e muito tempo depois de tê-las usado significativamente. É na intersubjetividade que as coisas aparecem como são. As coisas nada falam de si mesmas. Nelas fala o homem enquanto pastor do Ser. O homem as experimenta como um ele, jamais como um tu147. As coisas, ante o homem, desafiam o homem a falar. São ponte que convidam o homem a passar para o outro lado. Mas a ponte só tem sentido enquanto vinculação de duas margens. Assim, na linguagem, todo gesto, todo sinal, símbolo e estrutura, todo signo, índice ou ícone, toda fonia ou grafia têm sentido e são o que são na significação. Sem significação nada é perceptível, imaginável, dizível. As coisas são a ponte, a carne, o meio pelo qual o homem se encontra com o outro no Ser. Nelas, a presença não é uma coisa, e toda presença que nelas está é comunhão. Nunca há a presença de um só homem nas coisas. Significação é sempre intersubjetividade. As coisas são, pois, o ‘sacramento’ do homem. ‘Sacramento’ do homem tagarela, social, grupal, subjetivo como também do homem encontrado no amor. E, então, as coisas são sacramento do Amor, da Graça, do Dom. Ambiguidade, as coisas dizem o que está no coração do homem. Acima de tudo, as coisas, enquanto proposta e desafio ao homem, falam de “dores de parto, à espera da revelação dos filhos de Deus”148. As coisas são ele, assunto, referência da relação Eu-Tu. “A palavra primordial Eu-Tu somente pode ser pronunciada pelo Ser inteiro”149. A palavra primordial Eu-Ele jamais pode ser pronunciada

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Martin BUBER. op.cit. p.10 ss.

148

LA SAINTE BIBLE, École de Jerusalem, Efésios.

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Martin BUBER. op.cit. p.9.

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pelo Ser inteiro150. “Quem pronuncia uma dessas palavras primordiais penetra nessa palavra e nela se instala”151. Casa do Ser, onde habita o homem, a linguagem é saudade de chegar, de ficar, muito além, no Originário que advém como promessa de vir, como garantia de chegar. Expectativa de revelação da palavra total. Celebração da esperança.

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id.p.10.

151

id.p.10.

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CONCLUSÃO Buscamos compreender a linguagem como possibilidade de acesso ao homem enquanto Eu-Tu. A linguagem se mostrou de início como complexidade irredutível. Além de ser objeto das ciências formais e empírico-formais, com todas as categorias e hipóteses derivadas desse modo de ver, linguagem se mostrou significativa e como tal só apreensível numa visada hermenêutica. Mas a linguagem apareceu também como objeto da filosofia enquanto esta é tentativa de compreender toda linguagem. Além disso, a linguagem surgiu como articulação da revelação e da fé. Evidenciou-se, então, a necessidade de um pensamento abrangente para compreender a linguagem em toda a sua complexidade. As ciências formais e empírico-formais se revelaram horizonte insuficiente, embora necessário, para abarcar a totalidade lingüística. Fundadas na filosofia analítica e no neopositivismo lógico, elas conduzem à aporia: toda proposição só é verdadeira quando verificável seu conteúdo; ora, essa proposição não é verificável; logo, nenhuma proposição é verdadeira. Por outro lado, a exigência da linguagem ordinária como metalinguagem transforma a lingúística de ciência formal ou empírico-formal em ciência hermenêutica. A ciência hermenêutica já aparece como reflexão. Capaz de articular a compreensão da linguagem num sistema de significações. Não é capaz, porém, de pensar o sistema em si mesmo. A metafísica, enquanto fundamentação lógica dos sistemas, enquanto explicação causal através dos primeiros princípios, amplia o horizonte de compreensão da linguagem. A metafísica, porém, reduz a linguagem ao que a linguagem tem de lógico enquanto o lógico é expressão da subjetividade. A ontologia, enquanto fundamentação da metafísica, enquanto pensamento do Ser, mantido pelos pensadores e poetas mostra à linguagem toda a possibilidade de compreensão. No entanto, a possibilidade concreta da ontologia, não está na ontologia. O que possibilita a atitude transubjetiva é a fé. A liberdade, enquanto liberar-se à verdade do Ser, enquanto comprometimento com o destino do Ser, enquanto acolhimento, indigência existencial concreta, só é possível e pensável no horizonte da fé. Como resposta pessoal a um chamamento que se escutou por qualquer modo que seja. Só nesse horizonte, a liberdade, a 105


ética e o destino são compreendidos em sua Essência mais essencial. A fé, enquanto horizonte existencial último, embora não se reduza a horizonte compreensivo, possibilita a compreensão tanto da ontologia como da metafísica; das ciências hermenêuticas, das ciências empírico-formais e formais, da vida ordinária e de si mesma. Se a fé não faz parte da natureza do homem, como o pensa a teologia, é porque o homem não é natureza pura. Se a ciência e a filosofia não são capazes de compreender a fé e por isso não a permitem, e se a fé é capaz de pensar a filosofia, a ciência e a si mesma, é porque a fé é o horizonte radical da compreensão. A linguagem da fé, performativa, auto-implicativa, incompreensível na causalidade lógica, indica que o horizonte de toda linguagem é a auto-implicação, onde o lógico-constatativo é meio e não vice-versa, em que só o lógico é possível. Deixar os campos de compreensão lingúística como linhas paralelas, sob pretexto de respeitar a autonomia da ciência, da filosofia e da fé, significa, parece, falta de coragem que encobre uma deserção. O homem liberado à verdade do Ser faz do pensamento, uma gratidão ao Ser (andenkenden Denken). E o pensamento grato faz da linguagem a celebração da verdade do Ser. A celebração do advento do Ser. A casa do Ser. O homem, como pastor do Ser, edifica na casa do Ser e mostra a linguagem como a Essência do homem. A linguagem aparece então como o encontro do homem com o outro, através das coisas, no Ser. Limites do presente trabalho? A explicitação do sentido da linguagem permanece sempre apenas uma esperança. O implícito como horizonte do explícito cada vez mais se faz implícito. O tema proíbe ser exaustivamente compreendido enquanto, ao mesmo tempo , convoca para sê-lo. O tema permanece apenas sugerido. A finalidade deste trabalho não visa a um tratado completo sobre a linguagem, apenas busca indicar o fio condutor que, seguido, conduza à essência da linguagem. Na verdade é apenas testemunho, profecia. Também não teve o presente trabalho a pretensão de examinar toda a tradição sobre a linguagem, dissecar todas as teorias. Tomou apenas as grandes linhas e a elas se ateve. Se o mais urgente não é apenas o estudo gramatical-lógico, psicológico ou sociológico da linguagem, mas sim, o advento do Ser, este, contudo, permanecerá a urgência sempre nova que convoca o ouvido vigilante a auscultar perenemente os sinais do advento. Este é apenas um mapa; o caminho se faz caminhando. Resta dizer ao cientista que seja homem-cientista; ao filósofo, que seja antes de mais nada humano; e ao teólogo, que seja simplesmente humano. 106


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IMPRESSÃO Editora Pallotti Santa Maria - RS Janeiro/96 111


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