Rio Grande do Sul

Page 1

Introdução

RIO GRANDE DO SUL ARQUÉTIPOS CULTURAIS E DESENVOLVIMENTO SOCIAL

1


Rio Grande do Sul Arquétipos Culturais e Desenvolvimento Social

UNIVERSIDADE CATÓLICA DE PELOTAS UCPEL Chanceler D. Jayme Henrique Chemello Reitor Alencar Mello Proença Vice-Reitor Cláudio Manoel da Cunha Duarte Pró-Reitor Acadêmico Gilberto de Lima Garcias Pró-Reitor Administrativo Carlos Ricardo Gass Sinnott EDUCAT - EDITORA DA UCPel Editor Francisco Paulo de Almeida Lobo CONSELHO EDITORIAL Adenauer Corrêa Yamin Alex Fernando Teixeira Primo Antônio Angenor Porto Gomes Bernardo Lessa Horta Carmen Lúcia M. Hernandorena Erli Soares Massaú Elizabeth Pereira Zerwes Francisco Paulo de A. Lobo José Costa Fróes Oscar José E. Magalhães Osmar M. Schaefer - Presidente Paulo D. M. Caruso Ricardo Andrade Cava Wallney Joelmir Hammes William Peres

EDUCAT Editora da Universidade Católica de Pelotas - UCPel Rua Félix da Cunha, 412 Fone (0-XX-53) 284.8297 - FAX (0-XX-53) 225.3105 - Pelotas - RS - Brasil 2


Introdução

Jandir João Zanotelli Agostinho Dalla Vecchia Ruth Avila Zanotelli

RIO GRANDE DO SUL ARQUÉTIPOS CULTURAIS E DESENVOLVIMENTO SOCIAL

EDUCAT Editora da Universidade Católica de Pelotas Pelotas - 2000 3


Rio Grande do Sul Arquétipos Culturais e Desenvolvimento Social

©

2000 Jandir João Zanotelli Direitos desta edição reservados à Editora da Universidade Católica de Pelotas Rua Félix da Cunha, 412 Fone (0-XX-53) 284.8297 - Fax (0-XX-53) 225.3105 Pelotas - RS - Brasil

PROJETO EDITORIAL EDUCAT EDITORAÇÃO ELETRÔNICA Ana Gertrudes G. Cardoso Júlio César Pereira do Amaral CAPA Luis Fernando Giusti Foto do monumento à Anita Garibaldi em Roma, Itália

ISBN 85-85437-61-8

Z33r Zanotelli, Jandir João Rio Grande do Sul: arquétipos culturais e desenvolvimento social / Jandir Zanotelli, Agostinho Dalla Vecchia, Ruth Avila Zanotelli.- Pelotas: EDUCAT, 2000. 372 p. 1. História - Rio Grande do Sul. I. Dalla Vecchia, Agostinho. II. Zanotelli, Ruth Avila. CDD 981.65

4


Introdução

“Há em mim a luz, estrela e estrada, o perdido e o ganho, a lã do rebanho” (Luiz de Miranda). Pido a los santos del cielo Que ayuden mi pensamiento: Les pido en este momento Que voy a cantar mi historia Me refresquen la memoria Y aclaren mi entendimiento. (Martin Fierro)

5


Rio Grande do Sul ArquĂŠtipos Culturais e Desenvolvimento Social

6


Introdução

APRESENTAÇÃO A pergunta e a investigação pelas raizes da cultura e do desenvolvimento social do Rio Grande do Sul são o desafio que corajosamente lançam Jandir Zanotelli, Agostinho Dalla Vecchia e Ruth Zanotelli em Rio Grande do Sul, Arquétipos Culturais e Desenvolvimento Social. É uma obra de abrangência interdisciplinar, locomovendo-se pelas paisagens da Filosofia, da Antropologia, da História, da Ética, da Política... Se este universo de saberes é cotejado com beleza e maestria pelos autores, não é, entretanto, o propósito do livro tratar de Filosofia, História etc. O texto nos transporta para mais longe, ou, se quisermos, o texto corta mais fundo. Sua pretensão é de mostrar os padrões culturais e ideológicos constitutivos da forrmação do Rio Grande do Sul e, conseqüêntemente, as simulações históricas inerentes a esse processo. Como escrevem os autores, o trabalho pretende “fazer uma quase etiologia de nosso núcleo ético-mítico[...]” para repensar e resgatar as raízes da história real”de nosso Rio Grande do Sul. De leitura agradável, o livro - em suas três partes: 1) História do Ocidente e da Europa em relação ao Estado de Cristandade; 2) História do Estado de Cristandade Colonial na América; 3) História do Rio Grande do Sul no Estado de Cristandade Colonial - suscita muitas questões. Diria mesmo que, mais do que dar respostas acabadas sobre nossos arquétipos culturais, levanta perguntas, provoca, seduz e pode até induzir à nobre arte da discussão e da polêmica. Servindo-se do método da analética, os autores apontam para alguns arquétipos expressivos do Rio Grande do Sul, como: da Propriedade, da Família e da Sexualidade, da Política, da Educação, da Ciência e Arte, arquétipos da Religião, dentre outros. A tese central do texto sugere que as raízes básicas da fisionomia do Rio Grande do Sul não brotaram deste solo, mas vêm de outras terras. Além do colonizador, o que medeia a formação e o desenvolvimento de nosso estado “é a institucionalização da estrutura simbólica e lingüística do Estado de Cristandade”. Os símbolos do Estado de Cristandade tornaram-se nosso arquétipos culturais. Além de diferenciar cristianismo e Estado de Cristandade, têm os autores a preocupação de mostrar que estes arquétipos “não são apenas padrões culturais”. Eles são muitas vezes contraditórios, “quase sempre sob forma de simulação”. Assim, a identidade do gaúcho e do 7


Rio Grande do Sul Arquétipos Culturais e Desenvolvimento Social

Rio Grande do Sul se debate entre um querer ser genuíno - onde os valores do índio e do negro clamam para ter assento existencial - e um projeto de cultura já pronto, “agasalhado de muita roupa”, de muitos ornamentos que desfilam pela nossa história política, econômica e educacional. O texto, juntamente com o testemunho do engajamento político, cristão e educacional dos autores, é uma análise e uma reflexão sobre nossos arquétipos culturais e um convite a todos os que amam nossa terra para, juntos, encontrarmos “sendas viáveis para o futuro.” Pelotas, setembro de 2000 Osmar Miguel Schaefer

8


Introdução

SUMÁRIO Introdução 1. De que se trata / 13 2. O problema e a hipótese / 13 3. Método / 14 4. Noções preliminares / 16 I – História do Ocidente como história do Estado de Cristandade 1. O Ocidente na interpretação hegeliana da história / 25 2. Um contexto para situar o Brasil e a América Latina / 27 2.1 Pré-semitas / 28 2.2 Indo-européias / 29 2.3 Semitas / 30 3. O Estado de Cristandade como fusão das culturas semitas e indoeuropéias e exclusão dos pré-semitas / 32 4. Arquétipos do Estado de Cristandade / 34 4.1. Trabalho, propriedade, mercado / 35 4.2. A organização social / 35 4.3. A sacralização do poder / 57 4.4. O conhecimento: razão instrumental e simulação / 63 4.5. A religião sacrificialista - a ética da exclusão / 67 4.6. Dualismo antropológico e ético – machismo / 69 4.7. A solidão da auto-suficiência / 75 4.8. A laicização no Estado de Cristandade / 84 II – A América na Civilização Ocidental do Estado de Cristandade 1. O projeto da Europa conquistadora / 89 2. A expansão do Estado de Cristandade e a conquista da América/91 3. A organização e crise do Estado Colonial de Cristandade / 100 III – O Rio Grande do Sul no Estado de Cristandade Colonial 1. Generalizações / 113 2. Os indígenas no Rio Grande do Sul / 115 9


Rio Grande do Sul Arquétipos Culturais e Desenvolvimento Social

2.1Traços gerais dos habitantes indígenas do RS / 115 2.2Missões e Reduções / 130 a) Primeiros contatos / 130 b) As Reduções do RS / 135 c) Os sete povos das Missões / 138 d) Estrutura e organização no apogeu das Reduções / 144 e) A destruição / 150 f) Arquétipos / 160 3. A construção da Sociedade e do Estado no RS / 162 3.1A “conquista” do território: estratégias, guerras e tratados / 162 3.2De Comandância a Capitania / 165 3.3De Capitania a Província (1807 - 1824) / 175 3.4De Província a Estado do Rio Grande do Sul (1824-1889) / 180 3.4.1 A participação do RS na independência / 180 3.4.2 Revolução Farroupilha e sua ideologia / 183 3.4.3 O Rio Grande do Sul na guerra do Paraguai / 189 3.4.4 O Rio Grande do Sul da imigração / 197 a) Fatores que permitem com-preender a imigração / 197 b) O Rio Grande do Sul que os esperava / 198 3.5O Estado do RS / 218 3.5.1 O castilhismo / 219 3.5.2 Abolicionismo e República / 223 3.5.3 Militarismo / 226 3.5.4 Revoluções e degolas: as lutas das elites / 228 3.5.5 O RS na revolução de 1930 / 231 3.5.6 O RS na última década de 1900 / 238 3.5.7 Os dois RGS / 241 4. Arquétipos culturais identitários do RS / 245 4.1. Arquétipos da organização econômica / 246 4.1.1 A propriedade e o latifúndio / 247 4.1.2 O trabalho como uma contradição / 251 4.2Arquétipos da organização social / 261 4.2.1 Família e sexualidade / 261 a) Família e a sexualidade desde a ótica dos índios / 262 b) Chinocas / 272 c) Família e a sexualidade na ótica do negro / 273 10


Introdução

d) Família e a sexualidade na perspectiva do gaúcho originário/ 275 e) Família e a sexualidade desde a ótica do colonizador europeu / 276 f) Mulheres açorianas / 278 g) A Família e a sexualidade na ótica da Cristandade Colonial / 281 h) Anita Garibaldi / 288 i) A mulher imigrante alemã e italiana / 290 j) As mulheres no sistema liberal positivista / 291 l) Algumas observações finais / 294 4.2.2 O galpão, a vizinhança, o bolicho, a vila / 298 a) O galpão / 298 b) A vizinhança / 299 c) O bolicho / 300 d) A vila / 303 4.2.3 Classes sociais e suas relações / 303 a) Classe dominante / 304 b) O trabalhador campeiro / 305 c) O colono imigrante / 310 d) O filho de criação / 311 e) O compadrio / 313 4.3Arquétipos da organização política / 315 a) A fronteira, os fortes, os militares / 315 b) Guerra, faca, degola: as elites e suas revoluções / 318 c) Coronelismo e caudilhismo / 319 d) República positivista como símbolo / 320 e) Imigração: comunidade, linha, capela, escola / 321 4.4Arquétipos da organização cultural específica / 322 Conclusão / 337 Anexo / 343 Bibliografia / 347

11


Rio Grande do Sul ArquĂŠtipos Culturais e Desenvolvimento Social

12


Introdução

INTRODUÇÃO 1. De que se trata? Este é um despretencioso trabalho sobre a cultura do RS. Procura entender os limites e as possibilidades de desenvolvimento social a partir da estrutura simbólica. Tematiza a formação dos arquétipos culturais, acenando para alguns deles. O conjunto, a totalidade sistematizada, organizada, dos padrões, dos papéis, das funções e espaços sociais, dos arquétipos de pensamento, de valores e comportamentos reúnem-se ideológica e interpretativamente numa cultura. Assim como a linguagem, os símbolos e o pensamento não podem ser interpretados apenas como representação da realidade, como designação e contemplação, nem como refração apenas em miríades originais de novas condutas1 mas como projeto, como orientação da práxis humana, como comportamento. Assim os arquétipos de uma cultura só podem ser vistos como matriz produtora e reprodutora de um modo de ser. Modo de ser que é, ao mesmo tempo econômico, político, social e cultural. Por isso, seguindo a reflexão de Paul Ricoeur, pretendemos reunir indicações para fazer uma quase etiologia de nosso núcleo ético-mítico, indicando como matriz cultural o Estado de Cristandade. 2. O problema e a hipótese Na “festa” dos 500 anos de Brasil, inquieta-nos o caráter acrítico de muitos posicionamentos. A ingenuidade cultivada por órgãos oficiais e da grande mídia parece dar a entender que o Brasil sempre foi assim. Que o projeto nacional que hoje impera e que vem de longa data (afinal são 500 anos de história), nasceu aqui como fruto da natureza. Que o destino da história da humanidade, guiado pelo progresso e pela racionalidade, aqui aportou pelas mãos dos portugueses em forma de “civilização” e de “evangelização”, estruturando as relações econômicas, políticas, sociais e culturais nos moldes da Europa moderna, em benefício de todos. Que o projeto português e europeu para a América foi o melhor que poderia ter acontecido para todos. Ocultando, esquecendo, negando, disfarçando 1

Cf. Mikhail Bakhtin. Marxismo e Filosofia da Linguagem. 13


Rio Grande do Sul Arquétipos Culturais e Desenvolvimento Social

que o benefício foi programado e realizado para uma elite em detrimento dos que construíram as riquezas e possuíam as terras, a ideologia hegemônica rejeita como perniciosa, inútil e falaciosa a idéia de repensar, “resgatar” as raízes e a história real. Na estrutura significativa da ideologia, como núcleo ético-mítico que orienta a interpretação e a ação, encontramos arquétipos que precisam ser desmitizados, decompostos, “desvelados” para que neles apareçam os caminhos e descaminhos de sua montagem e estruturação. É nesta senda que, andando à espreita dos arquétipos culturais do RS, perguntamos por sua origem e história. De onde vêm, de onde nascem, de que contribuições se compõem esses arquétipos? E como esses arquétipos configuram a realidade social, econômica, política do RS? Especificamente, como eles possibilitam nosso desenvolvimento social? A hipótese do presente ensaio é a de que o RS resulta predominantemente de sua história de inserção no Estado de Cristandade Colonial. Parece evidente, mas não o é. O RS constituído pelo Estado de Cristandade Europeu como Estado de Cristandade Colonial, negando e excluindo o negro e o indígena ou incluindo-os como excluídos, apresenta arquétipos próprios de cultura que armam e estruturam sua identidade. Assim, os arquétipos trazidos pelos colonizadores, de dentro do Estado de Cristandade, mediaram e medeiam a formação histórica do RS. As possibilidades utópicas, que também germinam nesses arquétipos, devem resgatar o possibilitado por suas raízes, sob pena de ser apenas um vôo no vazio, ilusão. 3. Método Situado o Estado de Cristandade em suas raízes e constituição,2 situada a Colônia Latino Americana no Estado de Cristandade Europeu em sua expansão, analisaremos a formação e a história do RS no contexto do Estado de Cristandade Colonial e concluiremos pelos arquétipos formadores dali derivados em suas múltiplas imbricações. 2

Está suposto que não se confunda Cristianismo com Estado de Cristandade, muito embora, alguns cristãos conformados ao Estado de Cristandade forcem a sua identificação. O Estado de Cristandade, como se verá, é uma armação institucional que resultou da fusão do Império Romano e suas estruturas econômicas, políticas, sociais e culturais com o Cristianismo dos 3 primeiros séculos, numa unidade que se mostra contraditória.

14


Introdução

Um mosaico? Miscigenação? Democracia etno-cultural? Dialética cultural à procura de uma síntese? Não se pode dizer que o trablho seja estritamente de história, ou de antropologia, nem sequer de Filosofia ou Sociologia. É algo de todos eles. Tarefa transdisciplinar? Talvez! O leitor que o julgue. Não pretende levar à exaustão as análises que faz sobre cada um dos arquétipos detectados. Tenta encontrar raízes de nossa cultura no contexto de toda a história e não apenas nos limites da história da Europa da qual nos fizemos caudatários. Por isso a própria história da Europa é aqui relativizada. O critério não é apenas universalista como o queria Hegel, que acabou idealizando a Europa como o começo e o fim da História. Tenta levantar memórias e utopias que abram veredas que permitam ver a floresta sem confundí-la com a única árvore que, embora copada, está à nossa frente, ou melhor, em nossa retaguarda. Tenta contribuir para a compreensão das possibilidades de nosso desenvolvimento social e cultural, enquanto mostra os limites e a fecundidade dessas raízes. O trabalho se divide em 3 partes: Um primeiro capítulo esboça a História do Ocidente e da Europa em relação ao Estado de Cristandade em suas raízes e desenvolvimento com os arquétipos respectivos; um segundo esquematiza a formação e história do Estado de Cristandade Colonial na América e suas consequências; por fim analisamos a inserção da história do RS no Estado de Cristandade Colonial, para concluir com os arquétipos daí resultantes e condicionantes. Ficam em aberto questões prospectivas sobre limites e possibiliades de nosso desenvolvimento social. A perspectiva teórica em que laboramos poderia ser chamada de trans-dialética ou analética da história. Não é apenas reflexo de uma Filosofia da Libertação, mas tem como referencial valorativo a necessidade de uma participação democrática efetiva na construção da sociedade. E sabe-se que uma sociedade é democrática quando, não só, não é excludente mas quando a inclusão se faz priorizando os mais fracos e não apenas quando são contempladas as “maiorias”. Se o “lumpen proletariado” da América Latina e que, cada vez mais, se faz maioria absoluta, não for incluído como prioridade das políticas sociais, nossa democracia e nossa identidade ficarão uma dissimulação. Reflete, ao mesmo tempo, um pensamento, uma ética e uma necesidade pedagógica. A bibliografia, como se verá, reúne informações dos historiadores que tematizam a Europa, a América e o RS, bem como a 15


Rio Grande do Sul Arquétipos Culturais e Desenvolvimento Social

história da Igreja e da Cristandade. Reúne também dados de antropologia, de ética e de filosofia. Este trabalho foi elaborado a seis mãos. A pesquisa e documentação bilbiográfica foi tarefa de três professores: Jandir, Agostinho e Ruth. A redação é predominantemente de Jandir. Por isso os defeitos devem ser atribuídos mais a Jandir do que aos outros. O capítulo sobre os arquétipos das relações sociais, excluindo a da sexualidade e família, é obra predominante de Agostinho, com acompanhamento de Jandir. O da sexualidade da mulher gaúcha é elaborado por Ruth e acompanhamento de Agostinho e Jandir. Assim, pode-se atribuir a obra a cada um dos participantes. 4. Noções preliminares Arquétipo: padrão originário e originante, arxé, princípio, origem, fundamento, exemplo, modelo, realidade padrão, tipo, protótipo, paradigma, exemplar, o primeiro e primário. Referímo-nos aqui a arquétipos culturais. Os arquétipos estruturam o modo básico de conhecimento e de agir de uma cultura. É pela ritualização e atuação que eles são explicitados e reforçados em cada momento ou época. Os arquétipos não se esgotam numa determinada realização epocal e teórica. Dão sentido a cada época, ao cristalizado, ao estabelecido, mas perfuram, relativizam a época e a realização, fecundam sua transformação e superação, gerando novas culturas e concretizações. O arquétipo é, pois, ao mesmo tempo apelo ao futuro, à abertura do atual, à possibilidade que não se esgota no ato, no agora, no aqui. Sua estrutura é dialética, ou melhor dizendo, analética.3 O arquétipo, enquanto raiz, faz retornar à fonte, ao início radical, situando, como diria Aristóteles, as coisas, o homem e a história no princípio que não é apenas começo mas também e fundamentalmente

3

Como reitera Paulo Freire pela enésima vez, referindo a historicidade à educação, a história não é predatada, pre-determinada por nada, nem pela economia, nem pela natureza, nem pela tradição, embora possa ser profundamente influenciada e condicionada; por isso a história está aberta, à frente como problema, como possibilidade. E os símbolos que referem a realidade humana mantêm aberto esse futuro como possibilidade e não apenas como memória e pré-determinação. Pedagogia da Indignação, pg. 125 e ss.

16


Introdução

fim, finalidade, “ telos” , utopia. Se a causa é o princípio de compreensão e explicação de tudo, a causa das causas é a causa final, o para-quê, a meta. Por isso o arquétipo junta raízes e esperanças. Muitas vezes, porém, o arquétipo é visado apenas como tradição e passado, como memória e padrão cultural que resiste a ser alterado. Nesse sentido, o utópico fica preso à tradição e à reprodução do mesmo: anula-se enquanto arquétipo. É impossível enchergar o passado olhando apenas para trás. É preciso, pois, superar essa deformação e pre-conceito de arquétipo, para ganhá-lo em sua fecundidade. Assim, por exemplo, o arquétipo de mulher que nos vem do Estado de Cristandade contém em si, por um lado, a dominação machista indo-européia que a faz subalterna, passiva, negação; por outro lado, porém, traz a possibilidade semita da superação com a alteridade, com a graça, com a gratuidade. Os arquétipos aparecem como uma realidade ou ação concreta, uma ação já realizada e que é modelo porque é concreta. É universal porque é única, irrepetível, e é única porque é universal. É sempre uma realidade analética e analógica.4 O arquétipo é ao mesmo tempo um modelo de conhecimento, um modelo de ação econômica, política, social, cultural e religiosa, um arranjo dos desejos e aspirações utópicas, um repertório de memórias e um caminho para a inserção social e cultural. Aparece no campo da consciência e no campo do inconsciente como jogo, como aparato de equilíbrio e mecanismo de defesa. Sempre retomado e adequado a cada pessoa e a cada momento da história, recriado a partir da memória e da utopia, o arquétipo é padrão, modelo, inspiração e critério.5 O arquétipo, portanto, como constituição simbólica da realidade, é, ao mesmo tempo, afirmação, constatação, reflexo da realidade, sua re-presentação, e, por outro lado e ao mesmo tempo, sua negação, sua “sublimação”, sua transcendência tanto como memória, como enquanto utopia. É negação e negação da negação. É dialética e analética. Os arquétipos são guardados, transmitidos, presentificados e 4

Para melhor entendimento de analogia e analética, enquanto fundamento e condição da dialética, cf. Zanotelli, A Analética como superação das dicotomias.No prelo.

5

“Todo arquétipo é vivo e não um fóssil do inconsciente humano. Por isso, em cada nova situação ganha configurações diferentes...Os arquétipos entram na construção das sínteses que globalizam a existência. O ser humano precisa unir enraizamento e abertura, luz e sombra, céu e terra, masculino e feminino” BOFF, 1998: 167-168. 17


Rio Grande do Sul Arquétipos Culturais e Desenvolvimento Social

sempre de novo retomados, através do mito e do rito. Em seus mitos, cada povo encontra seus arquétipos de significação, para constituir seu espaço cultural, sua identidade. Seus ritos tornam presente o arquétipo mítico e o fortalecem mostrando sua efetividade e sua eficácia histórica, pondo-os em ação. O arquétipo acontece na linguagem e como linguagem. Nele a linguagem mostra sua força desingnativa, sua força performativa como dizia Evans, sua força auto-implicativa, sua força expressiva e comunicativa enquanto constitui operativamente, no rito, a identidade dos falantes. O arquétipo não expressa apenas o que um povo é, mas presentifica-o, fá-lo acontecer.6 Os mitos, como narração da originação, da fundação do mundo, arquetipal, portanto, contém fielmente (sua forma não pode ser alterada ou traduzida) o que os antepassados ouviram (apreenderam, receberam) dos deuses que, enquanto coetâneos à fundação do universo, foram testemunhas dessa originação.7 Destacam-se aqui: a crença nos outros (antepassados) e nos deuses (inspiração interior) como condição de acesso à verdade da realidade atual. Para que um homem ou uma mulher encontre sua identidade, buscará no mito o modo arquetipal de criação do primeiro homem e da primeira mulher. Para conquistar a própria identidade, porém, não basta adequarse ao arquétipo enquanto matriz original, copiar, imitar. É preciso conquistar o originário, a raiz, o fundamento. E, como dizia o originalíssimo arquiteto Gaudi: ser original é voltar à origem. Diríamos também que voltar não é permanecer na mesmidade criada e estabelecida, mas é por-se a caminho, deslocar-se, é ganhar o futuro no fundo da origem: historicidade.8 O estabelecimento de arquétipos míticos não se faz racional 6

Cf. Jean LADRIÈRE. A articulação do sentido, pg. 92 e ss.

7

Cf. Mircea ELIADE. Aspectos do Mito.

8

Cf. H.G. GADAMER, Wahreit und Methode. Grundzüge einer philosophischen Hermeneutik. Tübingen, 2ª Ed. 1965, pg. 27: A constituição do sentido (e portanto da identidade) não é obra de uma subjetividade isolada e separada da história, mas só é explicável a partir de nossa pertença à tradição, pois o homem não pode superar sua facticidade, senão nela, porque vinculado aos costumes e tradições que marcam, condicionam, determinam sua experiência de mundo. É no horizonte da tradição de um todo de sentido, mediado lingüisticamente que compreendemos qualquer coisa no mundo. Não somos donos do sentido, nem somos donos de nossa tradição. Não conseguimos elevar à consciência a totalidade de nossos pre-conceitos, que nos foram passados, transmitidos, pela tradição. E ao falar, dentro da totalidade de sentido que a tradição elaborou, fazemo-nos sujeitos, identificados. Assim, o presente

18


Introdução

ou programaticamente. Surgem da vida, da existência, da intuição, do “inconsciente” individual ou coletivo e não são obra de um indivíduo, embora ele possa expressá-los genialmente. Não são obra de um método. O arquétipo e o mito fundam o método, e não vice-versa como queria Aristóteles. O conjunto dos arquétipos de uma cultura constitui seu núcleo ético mítico pelo qual ela se identifica e se distingue das outras e de si mesma em sua evolução e criação.9 Formam o self cultural de um povo, como modelos endógenos de conduta e produções imaginativas, contidas no inconsciente coletivo, como diria Yung.10 trabalho, ao sumariar alguns dos arquétipos, pré-concebidos de nossa compreensão pretende tornar possível elevar à consciência uns poucos traços de nossa identidade gaúcha. 9

“O núcleo criador das grandes civilizações, das grandes culturas, esse núcleo a partir do qual interpretamos a vida é que denomino por antecipação o núcleo ético e mítico da Humanidade” RICOEUR, História e Verdade, pg. 285. A cultura aparece como um complexo de valores ou valorações... valores que residem nas atitudes concretas ante a vida, enquanto formam um sistema e que não são postas em questão de maneira radical pelos homens influentes e responsáveis... “Entre essas atitudes interessam-nos particularmente as que se referem à própria tradição, à mudança, ao comportamento do cidadão frente ao estrangeiro e especialmente as que se referem ao uso dos instrumentos disponíveis... Onde reside este fundamento de valores? Penso que é necessário buscá-los em diversos níveis de profundidade. Num nível superficial, os valores de um povo se expressam nos costumes praticados, na moral de fato... Num nível menos superficial, os valores se manifestam por meio das instituições tradicionais...um sinal abstrato a pedir decifração... Parece-me que, se quisermos alcançar o núcleo cultural, é necessário mergulhar até o nível das imagens e símbolos que constituem a representação fundamental de um povo... As imagens e símbolos constituem o que se poderia denominar de o sonho acordado de um grupo histórico. Neste sentido falo de um núcleo ético-mítico que constitui o fundamento cultural de um povo. Pode-se pensar que é na estrutura deste subconsciente ou inconsciente que reside o enigma da diversidade humana...a Humanidade não se constitui em um só estilo cultural, mas apresentou-se em figuras históricas coerentes, acabadas: as culturas” pg. 286-287.

10

“Jung concebeu o self como a interação das forças conscientes e inconscientes na psique. Vejo também o self ou ser cultural, como a interação das forças conscientes e inconscientes nas instituições, nos costumes, nas leis, na imprensa, em tudo, enfim. Cada parte, por menor que seja, é sempre a expressão desse todo... Os arquétipos são as matrizes do funcionamento dos símbolos que expressam a normalidade e a patologia” BYINGTON, 1997: 22. Os arquétipos são “padrões de comportamento que existem no inconsciente coletivo, desde a mais remota ancestralidade. Figuras e símbolos que representam valores universais, presentes nas várias culturas”. BOFF, 1998: 186. 19


Rio Grande do Sul Arquétipos Culturais e Desenvolvimento Social

Em épocas de crise da identidade cultural, cada civilização procura fazer reviver, ressuscitar os arquétipos que lhe deram origem como é o caso da Civilização Ocidental que, nascida do Estado de Cristandade e dela tendo destacado o lado machista, da ordem, da racionalidade unidimensional, da ciência, da tecnologia, retorna hoje a confrontar-se com sua raiz profética, maternal, amorosa, da solidariedade, do amar o próximo como a si mesmo.11 E ante ela experimenta o abissal fosso que cavou, quase sua impossibilidade de ser. Dentre os arquétipos que alimentam a identidade e as esperanças, nas profundezas das tramas existenciais de todos os homens, os literatos encontram o do herói. Como diz Leonardo Boff: “Herói/heroína constitui também um arquétipo do inconsciente coletivo, presente e atuante em cada um de nós. Numa compreensão psicanalítica, arquétipo são grandes símbolos, paradigmas, padrões de comportamento acumulados no nosso inconsciente pessoal e coletivo, desde os primeiros albores do espírito. Eles nos orientam na forma como experimentamos as realidades vividas e sentidas...Os arquétipos são sempre ambivalentes: positivos e negativos. Vêm carregados de emoção e de fascínio. Por isso alguns os representam como deuses e deusas, guias interiores. Dentro de nós falam mediante sonhos, fantasias e representações mentais. Fora de nós, através de mitos, histórias, expressões simbólicas nas artes, na literatura e principalmente nas religiões...Escutar os arquétipos significa dar atenção à voz de nossa interioridade e criar espaço para que ela se manifeste. Ela nos obriga a ser críticos e vigilantes em face das contradições e dos excessos dos arquétipos que podem irromper avassaladores”.12 11

“O Século XX entra em sua última década perplexo diante do desmoronamento da ideologia materialista que o empolgou, guiou e revolucionou. A civilização ocidental se dá conta, por seus próprios descaminhos, de uma falta de valores para orientar seu desenvolvimento. Das profundezas geladas dessa dezidealização, reativam-se os arquétipos expressos nos mitos portadores dos símbolos históricos que orientaram o desenvolvimento das culturas. A civilização ocidental e as ciências modernas surgidas no Renascimento europeu, ao retornarem às suas raízes míticas, reencontram o mito cristão que lhes moldou os caminhos... A importância do papel civilizatório do mito cristão no terceiro milênio deverá incluir a continuação da elaboração dos seus símbolos que ainda não puderam ser devidamente integrados pela cultura” BYINGTON, Carlos Amadeu B. prefácio de O Martelo das Feiticeiras, 12ª edição, Rio de Janeiro, 1997, pg. 19.

12

BOFF, 1998: 114-115.

20


Introdução

E o homem, como a águia que se fez galinha e busca recuperar sua identidade de águia, perpassa em seu caminhar histórico de confronto com o arquétipo seis etapas de crescimento: “No processo de resgate e de realização de sua identidade, a águia viveu todas as estações desta jornada. Realizou plenamente o arquétipo herói/heroína: do agüente, do caminhante, do lutador, do mártir, do sábio e do mago. No termo do caminho encontrou o céu, o lar e a pátria da identidade”.13

A cultura de uma sociedade oferece a cada membro os padrões culturais necessários à existência, como decorrência explicitadora dos arquétipos míticos. A maneira e o processo pelos quais cada um acessa aos padrões e arquétipos revestem-se de infinitas formas: a conduta, a linguagem, a estrutura e funcionamento dos papéis e padrões, instituições, todas as formas de relacionamento e convivência (econômico-político-social-cultural...). Cada ação, cada gesto, cada produto, cada elemento revela, ensina, mostra, induz e exige o padrão e o arquétipo. As narrações, os mitos, os contos sintetizados, por vezes, em provérbios ou ditos são condensações de cultura, são cultura saturada de padrões e arquétipos. Vivemos tão saturados de preconceitos e projeções, como diria David Hume, que não conseguimos ver a realidade que nos cerca. Vemos apenas o que os padrões culturais e conseqüentes projeções nos permitem. Por isso é preciso “desconstituir”, “de-compor”, rever criticamente nossos preconceitos e projeções, nossos padrões culturais e utopias, para re-fundar uma compreensão da sociedade e da cultura com rigor crítico. Desconstituir e re-fundar não significam, porém, negar e anular o pre-conceito e a pro-jeção de um povo, de uma cultura dada, mas buscar-lhe a coerência e a possibilidade máxima que ela ( a cultura) permite. Historicizar a vida é, então, ligar memória e utopia, 13

BOFF, 1998: 124. Os grandes mestres que viveram em profundidade seu arquétipo de herói, que nada tem a ver com o militar ou prepotente, tornam-se eles próprios arquetípicos e simbólicos. “Uma vez transformados em símbolos e arquétipos mergulham no inconsciente coletivo. Fazem-se referências modelares para toda uma caminhada humana. Concretizam ideais sonhados e buscados por tantos” Ibidem, pg.138. Essas figuras, não são apenas as de Francisco de Assis, Madre Tereza de Calcutá, Buda, Mahatma Gandhi, Che Guevara, Martin Luter King, Rigoberta Menchú, Mãe Menininha do Gantois...Jesus Cristo, mas “pertencem ao cotidiano da vida familiar e social. São pais, mães, avós, irmãos e irmãs modelares, mestres...profissionais...” Ibidem , pg.138. 21


Rio Grande do Sul Arquétipos Culturais e Desenvolvimento Social

num projeto de viver. Muitas obras sobre a história do RS situam o significado de seus padrões culturais e sociais na sociedade renascentista e moderna européia, sem perguntar pelas raízes dessa mesma sociedade européia. Em não analisando essas vinculações, corre-se o risco de não interpretar a América Latina, e o RS especificamente, no contexto que realmente lhe dá sentido. É por isso que procuraremos demonstrar que os valores e arquétipos formadores da sociedade riograndense derivam especialmente da Civilização Ocidental, da Europa Moderna sim, mas enquanto esta é consequência predominantemente do Estado de Cristandade que se constituiu da fusão de valores contraditórios das culturas semitas e indo-européias. Dentre esses valores e arquétipos estão a propriedade, o machismo, a subjetividade liberal, o sistema de produção e reprodução aqui implantado, bem como a hospitalidade, a fraternização, a solidariedade necessária. A questão que se impõe é: se é possível interpretar a cultura e história do RS sem apelo ao Estado de Cristandade e especificamente ao Estado de Cristandade Colonial. Os arquétipos ( econômicos, políticos, sociais, culturais) aqui vigentes não foram influenciados pelo Estado de Cristandade? Nosso pressuposto é o de que a Cristandade, melhor, o Estado de Cristandade, é o arquétipo principal que condiciona e quase determina a identidade do RS. Quer pela implantação e delimitação no extermínio dos índios, quer nas lutas missioneiras e nas Reduções, quer na consolidação do domínio português e na estruturação da Comandância de S. Pedro ou na Capitania e Província, quer também na reação positivista e republicana, quer na organização das imigrações, o Estado de Cristandade, até hoje permanece como horizonte identitário de interpretação do RS. Está pressuposto o estatuto epistemológico que indica a mútua implicação entre cultura e modo de produção, de tal forma que a cultura não só expressa e visibiliza o modo de produção e cria a possibilidade de sua reprodução, como também fecunda e influencia suas mudanças e transformações. A palavra e o simbólico não são apenas expressão e representação da realidade, são modos de agir e transformar o mundo. Os arquétipos culturais do RS, não apenas transcrevem em pautas ideativas, padrões culturais fossilizados pelo tempo, não apenas expõem o modo de ser do gaúcho, mas fazem-no acontecer, historializando-o. O acontecimento de nossa identidade está nos arquétipos culturais que, 22


Introdução

desde as raízes, formam-se como o rosto e o coração dessa identidade que abrange também nossa esperança.

23


Rio Grande do Sul ArquĂŠtipos Culturais e Desenvolvimento Social

Branco Mapa do Rio Grande do Sul

24


O Rio Grande do Sul no Estado de Cristandade Colonial

III - O Rio Grande do Sul no Estado de Cristandade Colonial 1.Generalizações O Rio Grande do Sul é “ descoberto” , conquistado, invadido, organizado, no confronto dos Impérios Português e Espanhol, quando o Estado de Cristandade Colonial na América Latina já estava plenamente estruturado. Até 1620 toda a América Espanhola já havia sido institucionalmente construída com dioceses, vice-reinos, províncias, freguesias, vilas, bem como missões e reduções. Enquanto isso o Rio Grande do Sul permanecia excluído dos interesses portugueses e para os espanhóis a fronteira estava defendida pelas missões jesuíticas. Somente algumas incursões predatórias dos “ bandeirantes” e mamelucos paulistas, contra as reduções jesuíticas, davam conta da imensa riqueza do gado esparramado pelo extenso território gaúcho. No início de 1600 os jesuítas espanhóis ( os portugueses tentaram e não tiveram sucesso) criaram as reduções indígenas no Paraguai. Quando atacadas as reduções do Guaíra, os jesuítas deslocam as reduções para as duas margens do rio Uruguai (Rio Grande do Sul e Argentina). Na luta para defender os índios contra os mamelucos paulistas que caçavam escravos, o padre jesuíta Cristóvão de Mendonça é assassinado em 1635 quando procurava interceptar a bandeira de Antonio Raposo Tavares que vinha de São Paulo pelas Vacarias para o vale do Taquari. Raposo Tavares, mameluco presidente da câmara de vereadores de S. Paulo, arrazando, matando e prendendo, com a conivência e o auxílio do índio Parapoti, leva do Taquari a S. Paulo, em dezembro de 1636 vinte e cinco mil índios. Em 1637 vem a bandeira de Francisco Bueno.110 O Rio Grande do Sul, não terá organização política até a fundação do forte Jesus Maria e José, em 1737, em Rio Grande. Até 1561 as terras do Rio Grande do Sul, sem ser especificadas, faziam parte da Capitania de Martin Afonso de Souza. De 1561 a 1562 fizeram 110

ZANOTELLI, A saga: 114. 113


Rio Grande do Sul Arquétipos Culturais e Desenvolvimento Social

parte da Capitania de S. Vicente. Em 1737 constituiu-se Comandância do Presídio do Rio Grande de S. Pedro. Em 1738, o RS é anexado ao governo de Santa Catarina. Em 1760 tem governo independente de S. Catarina, mas subordinado ao Rio de Janeiro. Em 1807 o território do RS é elevado a Capitania Geral de S. Pedro do Rio Grande do Sul. Em 1809 o território é dividido em 4 municípios: P. Alegre, Rio Grande, Rio Pardo e Santo Antonio da Patrulha. Em 1824 é constituída (pela Constituição outorgada do Brasil independente) a Província do Rio Grande de S. Pedro. Com a República, em 1889, a Província passa a se chamar Estado do Rio Grande do Sul. Territoralmente situado entre a defesa do contrabando de prata de Potosi na cidade de Colônia do Sacramento e as façanhas genocidas dos bandeirantes paulistas, caçadores de escravos, o Rio Grande do Sul é integralmente apropriado em latifúndios de pecuária para os militares, funcionários e achegados à Coroa portuguesa até 1801.111 Economicamente, organiza-se em modo de produção pecuáriocharqueador, escravagista e dependente das necessidades do centro da colônia brasileira totalmente dedicada à mineração do ouro e pedras preciosas, desde o início do século XVIII, e mais tarde em função do café. Culturalmente empobrecido com a eliminação das missões jesuíticas e pelas distâncias até a capital da colônia brasileira e seu conseqüente esquecimento, o Rio Grande do Sul só terá significado cultural quando o resultado econômico das charqueadas e o ímpeto dos imigrantes implantar aqui um mínimo de estrutura política e, com ele, um sistema sócio-cultural mais abrangente. Politicamente nas mãos de militares, de para-militares ou do estancieiro que, na ausência de um sistema estatal de defesa, será ele próprio o militar, o senhor, o caudilho armado, o Rio Grande do Sul, no abandono do Império Brasileiro, fará sua revolução Farroupilha, participará da Guerra do Paraguai e se fará a República positivista a partir de Júlio de Castilhos. As mudanças políticas experimentadas pela América Espanhola em seu processo de independência, serão retardadas no Brasil: muitas ocorrerão durante o Império ou na instauração da República. Assim, no Rio Grande do Sul o antigo caudilho transmutar-se-á em coronel com a República. Com a religião ritualista e formalista, própria da elite, o padre dependente do estancieiro e do político, acaba como mostra Saint111

Cf. Saint-Hilaire

114


O Rio Grande do Sul no Estado de Cristandade Colonial

Hilaire, sendo o louvador e o abençoador das façanhas dos políticos e militares e o moralizador da obediência da população. Mitos, contos, superstições, sacramentos e rituais religiosos se confundem muitas vezes. Para compreender o Rio Grande do Sul, em sua história, é preciso vê-lo com os povos indígenas antes da invasão européia, vê-lo depois no surgimento e desenvolvimento das missões e reduções indígenas, nas lutas de expansão dos impérios lusitano e espanhol destruindo os aldeamentos missioneiros e delimitando fronteiras, na organização burocrática-institucional-militar, na distribuição das terras em latifúndios e sesmarias, no povoamento operado pela imigração, na estruturação da Comandância, da Capitania, da Província e do Estado em suas vicissitudes econômicas, sociais, políticas, culturais e religiosas. 2. Os indígenas no RS 2.1 Traços gerais dos habitantes indígenas do RS O Brasil já estava habitado há 12.000 anos antes de Cristo. O crâneo de Luzia, descoberto pelo arqueólogo Walter Neves, em Lagoa Santa, proximidade de Belo Horizonte, Minas Gerais, e que tem seguramente 11.500 anos; as descobertas da antropóloga Niède Guidon em Raimundo Nonato (Pedra Furada), Piauí e os vestígios humanos aí encontrados bem como as descobertas no Parque Nacional da Capivara fortalecem a hipótese de que o Brasil já era habitado, não só há 15.000 anos, mas há 50 ou 60, ou até há 80 mil anos. Pe. Ignácio Schmitz e a arqueóloga Sílvia Moehlecke Copé respeitam essas pesquisas e essas hipóteses. Dos grupos populacionais existentes no Brasil na época do descobrimento, com traços de miscigenação múltipla, com predomínio de regróides e ou mongólidos, originários da Ásia e ou da África, através do estreito de Bering, da Indonésia ou da Antártida nenhum deles é autóctone Nenhuma dessas sociedades que aqui se estabeleceram, era autóctone. Os grupos indígenas vieram da Ásia, provavelmente em migrações sucessivas, no decorrer da última glaciação. Foram pouco a pouco descobrindo e colonizando o imenso território brasileiro, procurando formas mais eficientes de 115


Rio Grande do Sul Arquétipos Culturais e Desenvolvimento Social

adaptação, inicialmente às paleopaisagens frias e secas da época glacial, posteriormente ao clima quente e úmido do pós-glacial. Alguns grupos permaneceram nômades e caçadores-coletorespescadores, principalmente os habitantes dos sambaquis do litoral e os caçadores nômades do pampa. Outros deram origem a sociedades muito complexas e diferenciadas, estabelecidas em aldeias de horticultores semi-sedentários no Amazonas e no Planalto brasileiro. (...) Os grupos indígenas foram, pouco a pouco, se estabelecendo nesses diversos ambientes com padrões adaptativos diferenciados, a partir de tradições culturais estabelecidas pelo menos desde 12 mil anos antes do presente.(...) No decorrer do período pós-glacial, nos últimos 10 mil anos, esses grupos se transformaram de maneira extraordinária, diferenciando-se entre si e estabelecendo fronteiras culturais importantes. (...) A tupinização do Brasil tropical e a guaranização do Brasil platino foram processos de ocupação e colonização gradual do território com a implantação de aldeias de horticultores semi-sedentários, a difusão da língua tupi-guarani, que se tornou “língua geral”, e novas tecnologias, como a cerâmica, a pedra polida e a domesticação de plantas (milho, mandioca, abóboras, feijões, pimentas, tabaco, algodão, amendoim, batatas etc). (...) Os diversos grupos indígenas tiveram importante contribuição a dar. A domesticação de plantas nativas (...) a mandioca-doce (aipim), o milho, as abóboras. Os feijões, o cacau, as pimentas e a batata doce são exemplos dessa contribuição cultural, e ainda hoje fazem parte de nossa dieta alimentar. O abacaxi,, a goiaba, o caju, o amendoim, o coco, o abacate, o butiá e o araçá...a rede...o chimarrão...os pratos feitos de milho e mandioca...cerca de 20% dos termos (de nossa língua) são herdados do vocabulário tupiguarani.112

Ao serem contactados pelos europeus, com a invasão que inicia em 1500 pelo lado atlântico, os povos indígenas que habitavam o atual RS podem ser divididos: em nômades como refere Bruxel ao falar dos trinta povos guaranis e que vivem em todo o Cone Sul: “ “os campeiros” como os charruas, em terras do Uruguai; os “silvícolas” como os kaingangues, nos matos impenetráveis da Encosta da Serra; e os “aquáticos” como os payaguás em suas canoas sobre as águas do rio Paraguai ao norte de Assunção”;113 e os semi-nômades como os

112

Arno Álvares KERN. Fronteiras Culturais e Colonizações. Zero Hora, Porto Alegre, 15/04/2000, pg. 4 do caderno Cultura.

113

BRUXEL, 1978, pg. 15-16.

116


O Rio Grande do Sul no Estado de Cristandade Colonial

guaranís.114 Especificamente o RS era povoado primitivamente (há mais de 6.000 anos) por índios de língua jê: nômades, coletores com vestígios de arco e flecha bem como cerâmica e conchas em sambaquis.115 No início do século XVII os aproximadamente 500.000 índios do RS eram divididos em três grandes grupos: jê, pampeano, guarani. a) O grupo jê, ou tapuias, representado pelos Kaingang, habitava os campos de cima da serra e os matos da região serrana. Eram divididos em parcialidades denominadas guaianás, coroados, pinarés, ibijaras, caaguas, gualachos, botocudos e bugres. Organizados em dois clãs exogâmicos: “o clã da lua que era de guerreiros, e o clã do sol formado por caçadores. O clã da lua dividia-se em metade votoro e na metade canheru. O clã do sol era formado pelas metades aniqui e camé. O pai escolhia o clã da criança afim de manter o equilíbrio entre os clãs”.116 Vivendo em pequenas aldeias de 5 a 6 cabanas, guiados por um chefe feiticeiro, caçando apenas os animais machos, em território demarcado para dois anos, e a terra pertencendo à comunidade, coletando pinhão e mel num sistema de distribuição comunitária,117 sendo exímios cesteiros, tecendo com fibras vegetais inclusive o caraguatá túnicas para as mulheres (os homens andavam nus e com um cinto na estação do calor, usando um manto quadradro, no frio) , os jês “praticavam a agricultura rudimentar. O homem preparava o terreno pela coivara e a mulher plantava e colhia. Cultivavam o milho, a mandioca, a abóbora e a batata doce”.118 E, seguindo ainda as indicações de Moacir Flores, podemos 114

Em 1500, três grandes grupos indígenas existem nas Américas: os nômades do gelo (esquimós ao norte e Patagões ao sul), os índios plantadores que se localizam ao longo do Rio Mississipi, e passando pelas Antilhas e pelo Rio Orinoco e pelos afluentes do Amazonas expandem-se pelos rios Paraguai e Paraná até o Rio da Prata como os Guaranis, e por outro lado os índios das Altas Culturas Urbanas: Maio-Astecas na América Central, os Incas na América do Sul além das culturas intermédias ao norte da América do Sul.

115

LAZZAROTTO, 1978, pg. 6

116

FLORES, 1986, pg.

117

“O casal realizava a coleta de pinhão, transformando-o em farinha. A coleta do mel era comunitária, cada homem recebia uma vasilha da outra família. No fim da tarde os homens se reuniam junto da aldeia, entrando todos ao mesmo tempo e entregando o mel à dona do pote” FLORES, 1986, pg. 6.

118

FLORES, 1986, pg. 7. 117


Rio Grande do Sul ArquĂŠtipos Culturais e Desenvolvimento Social

Mapa 1

118


O Rio Grande do Sul no Estado de Cristandade Colonial

dizer que os jês cuidavam muito da higiene corporal, enfeitavam-se com penas, penteados complicados e pinturas corporais (especialmente com o vermelho urucu e carvão), furavam o lábio inferior para uso de tembetá ou de batoque. De estatura mediana (entre 1,60 e 1,70 m), o caingang é bem proporcionado. Rosto oval, olhos pretos, brilhantes e inquietos, pele escura, acentuado toque mongol, o jê é taciturno, acolhedor, franco e solidário, agressivo e inimigo dos guaranis.119 Os instrumentos musicais, como flautas, chocalhos e maracás animavam suas danças e seus cantos. O controle social tinha como instrumento a expulsão temporária da choça comum ou a designação de tarefas femininas para os homens, bem como a entrega da mulher faltosa a outro homem. “A mulher jê até hoje é mais agressiva que o homem, chegando a bater no marido”, que não reage”.120 Os jês eram poligâmicos (tanto poliândricos como poligínicos) mas puniam o adultério com pena de morte para ambos os sexos. A geração era tida como exclusivamente resultante do pai. Percebida a concepção, o pai fazia dieta alimentar e se abstinha de atividades que poderiam prejudicar o filho nascituro. O repouso (choco ou couvade), após o parto, era do pai. A mãe continuava a trabalhar. Os cumprimentos eram dados ao pai. Acreditavam num Deus criador e civilizador que chamavam de Maré. O sol e a lua eram protetores das colheitas, da puberdade e da procriação. “A alma do morto, chamada de acupli, podia encostarse em alguém, trazendo-lhes doenças e até a loucura. Enterravam o morto em fossa, sem contato com a terra e junto com vasilha de água, cães e armas”.121 Destruídos por epidemias de origem européia e pela sanha dos bandeirantes a partir de 1630, suas terras divididas e entregues a imigrantes europeus no século passado que os eliminavam através de bugreiros, seus sobreviventes foram reunidos por Telêmaco Morocines 119

LAZZAROTTO, 1978, pg 7.

120

FLORES, 1986 pg. 7.

121

FLORES, 1986, pg 8. Obviamente, a noção de “alma” ou espírito nada tinha de semelhança com esses conceitos gregos e que entraram na Civilização Ocidental através do Estado de Cristandade. A alma a que se refere Moacir Flores é identificada pelos índios como o próprio morto. O indivíduo que nascia, crescia e morria não era constituído de pedaços (corpo e alma) como os europeus imaginavam e assim traduziam o pensamento indígena. 119


Rio Grande do Sul Arquétipos Culturais e Desenvolvimento Social

Borba em 1882 que os chamou de caingangues.122 b) Os pampeanos, de língua quíchua, eram constituídos pelos charruas, minuanos, iarós, guenoas e chanás, que viviam especialmente no sudoeste do RS e Uruguai. A este grupo também pertenciam os “arachanes” que viviam nas cercanias da Lagoa Mirim tanto do lado atual uruguaio como brasileiro.123 “Armavam suas tendas ou toldos em elevações de terra, construídas no meio de banhado, como meio de defesa,”124 inicialmente cobertos de esteiras de palha e depois com o couro do gado.125 A tolderia, reunião de famílias, formavam aldeias sem chefia centralizada, a não ser, temporariamente, em tempos de guerra. “Os charruas foram os mais belicosos. Temíveis na luta, à qual se lançavam com gritos e gestos impressionantes, guerreavam frequentemente contra outros indígenas e quando ocorreu a conquista, não se submeteram”.126 “Estes indígenas eram, em geral, de elevada estatura, e corpo avantajado; cabeleira preta, longa e lisa, feições faciais curtidas e enxutas, um olhar triste, davam-lhe, dizem os relatos da época, um aspecto feroz”.127 O charrua, especialmente, “de estatura mediana, era ágil e vigoroso, de cabeça grande, rosto largo, maçãs pouco salientes, pele cobreada, olhos pequenos, boca grande, lábios grossos, cabelos negros, grossos, lisos e abundantes, que usava compridos e soltos... pouco dado à arte, não tinha instrumentos musicais...detestava a pacatez do guarani... exímio no cavalgar e no uso das boleadeiras, lanças e laços”.128 122

FLORES, 1986, pg. 8.

123

TRAVERSONI, 1958, pg. 19.

124

FLORES, 1986, pg. 8.

125

O cavalo foi introduzido no RS em 1607 e o gado, a partir de 1634 quando, “por ordem do padre provincial Pedro Homero, o P. Cristóvão de Mendonça trouxe para a margem oriental do rio Uruguai 1.500 vacas (100 para cada Redução)” BRUXEL, 1978, pg. 115. O gado, provindo de S.Paulo, fora para Assunção em 1555, por via terrestre e do Peru chegavam vacas , ovelhas e cabras, logo após. O cavalo já entrara, por Buenos Aires, em 1537. Em 1580 o gado é levado para a Argentina. Em 1680, quando foi fundada a Colônia do Sacramento, ainda não havia gado no Uruguai. Distribuído em vacarias e estâncias o gado multiplicou-se prodigiosamente no RS, fornecendo às Reduções cerca de 10.000 cabeças anuais para abate.

126

TRAVERSONI, 1958, pg. 21.

127

TRAVERSONI, 1958, pg. 18.

120


O Rio Grande do Sul no Estado de Cristandade Colonial

Viviam da caça e da pesca. O veado, a ema, o nhambu e outras aves, bem como peixes, animais e crustáceos do banhado eram seu alimento. Colhiam também frutas como o araçá, cocos de palmeira e uma espécie de cebola nativa. Seu alimento era cozido ao fogo direto ou em panelas de barro. Sua bebida preferida era o hidromel: um aguardente feito de água e mel fermentados.129 Os chanás destacavamse como pescadores utilizando grandes canoas feitas de um tronco de árvore e nelas navegavam até 12 homens. Flechas, boleadeiras, lanças, e tacapes eram suas armas. Poliam a pedra esfregando-a em outra pedra e adicionando areia. Sua cerâmica rústica era secada ao sol ou queimada. Praticavam a poligamia. Quando a mulher envelhecia tomavam uma mais jovem. O adultério era resolvido com uma briga ou discussão entre os homens.130 Andavam nus. No inverno enrolavam-se em peles de animais. Tatuavam o corpo, pintavam-se, e usavam batoques. Dentre os pampeanos, os chanás enterravam seus mortos em pequenos cemitérios cercados por paliçada, e os charruas transportavam os ossos de seus defuntos para onde iam, à semelhança do que ocorre ainda hoje com tribos do centro do Brasil como as dos Bororos e Xavantes. Amputavam um dedo em sinal de luto pelos familiares falecidos, luto que era guardado por 10 dias.131 Acreditavam que toda pessoa tem um espírito guia que se revela após longo jejum. Seu cuidado com os mortos indica sua crença numa vida após a morte. “A vida semi-nômade, a falta de organização comunitária e de afinidades religiosas, dificultaram o aldeiamento dos pampeanos”132 muito embora as tentativas dos jesuítas em 1626 e dos franciscanos, dominicanos e mercedários, logo após. “Portugueses e espanhois ocuparam as terras dos pampeanos com fortalezas, vilas e estâncias: Colônia do Sacramento (1680), Sete Povos (1682). São Felipe de Montevideo (1726), São Pedro do Rio Grande (1737), centros de onde partiam os changadores, patrulhas militares, desertores e povoadores de terras vizinhas. As estâncias 128

LAZZAROTTO, 1978, pg. 14.

129

TRAVERSONI, 1958, pg. 20.

130

FLORES, 1986, pg. 8.

131

FLORES, 1986, pg. 8 e TRAVERSONI, 1958, pg. 22.

132

FLORES, 1986, pg. 9. 121


Rio Grande do Sul Arquétipos Culturais e Desenvolvimento Social

missioneiras, espanholas e lusas expandiram-se na área dos pampeanos, que reagiram violentamente, atacando as povoações de Santo Domingo Soriano e Colônia do Sacramento, saqueando estâncias em busca de cavalos, erva e fumo...133 encurralados pelos guaranis, os charruas uniram-se aos minuanos nas cabeceiras do rio Negro e foram massacrados e exterminados por ordem e comando do presidente uruguaio, Fructuoso Rivera em Salsipuedes em 11 e abril de 1831 numa emboscada traiçoeira. Depois, os restantes, numa cilada efetuada por seu sobrinho Bernabé Rivera, em Mataojo, em 17 de agosto de 1831. O que ainda restou foi dizimado, num verdadeiro genocídio em 1832 na povoação de Bella Unión. Os charruas não só foram exterminados fisicamente como for destruída sua cultura, e distribuídos em ostracismo seus líderes, cinco dos quais foram entregues a navios franceses como espécimes raras de “selvagens” americanos a serem estudados pelas academias da França. Foram eles: Ramón Mataojo, morto em Touluse embarcado em navio; a jovem Micaela Guyunusa ligada maritalmente ao mais jovem, LaureanoTacuabé; o cacique Vaimaca-Peru e Senaqué expostos para visitação pública dos “Champs élisées”. Guyunusa, grávida já desde Montevideo teria fugido com Tacuabé e procriado na França. Miterrand “cuyos altos pómulos y ojos achinados le confieren un aire exótico, se ufana de tener sangre charrúa...134 Os prisioneiros de “guerra” charrúas, em 13 de abril de 1831 foram levados a Montevidéu, distribuidos (mulheres e crianças) como “filhos de criação” de famílias que os quisessem. Os adultos morreram na prisão ou foram “deportados”. Somente um pequeno grupo conseguiu fugir para o Brasil. O índio Sepé, derrotando uma pequena patrulha de Bernabé Rivera, mata-o em Yacaré Cururú em 20 de junho de 1832: essa vingança, como diria velho e bêbado, lavou-lhe a alma. “Toma toda a água que queiras” gritou Sepé ao sanguinário Bernabé, perfurado de lança e jogado à beira de um banhado.135 O extermínio dos charrúas como projeto do primeiro governo da República do Uruguai, para pacificar os terratenientes do norte do rio Negro, e ouvindo os clamores de todos os latifundiários, foi, na verdade a execução final do projeto europeu sobre os povos da América: 133

FLORES, 1986, pg. 9.

134

“VIDART, Daniel. El Mundo de los Charrúas. Montevideo: Ed.Banda Oriental, 1998, 128.

135

MATTOS, Tomás de. Bernabé, Bernabé! Montevideo: Ed.Banda Oriental, 1997, 160.

122


O Rio Grande do Sul no Estado de Cristandade Colonial

era proibido ser americano. Expatriados de sua própria terra, porque comiam o gado que era seu, tratados como bandidos, selvagens, acobertadores de facínoras brancos, eles não podiam existir. Era preciso “purificar o sangue”, branquear a raça. Como aconteceu, também com os missioneiros no RS. c) Os Guaranis Pertencentes ao grande grupo de índios plantadores que os europeus encontraram na América e que não eram nômades e coletorescaçadores como os esquimós ou patagões, nem semi-sedentários como os índios do litoral brasileiro e, por outro lado, diferenciados dos índios das altas culturas urbanas como os maio-astecas e os incas, os guaranis, assim como os índios do vale do Mississipi, das ilhas do Caribe, do vale do Amazonas, do Orinoco e dos rios Paraná e Paraguai, viviam da agricultura complementada pela caça e pela pesca. Sua agricultura não é de regadio. Depende da chuva. A pluviosidade média das regiões ocupadas pelos índios plantadores é superior a 1.000 milímetros anuais enquanto que nas das culturas urbanas é inferior a 400 milímetros. No Rio Grande do Sul ocupavam os vales dos rios Uruguai, Ibicuí e Jacuí. “Além de caçadores e pescadores, frutívoros e meladores, eram agrícolas, com alguma plantação de milho,136 mandioca, batata doce, abóbora, amendoim e algodão...Após 6 ou 7 anos abandonavam os índios a terra cansada para continuar sua migração periódica, com a derrubada de mais um eito de mato contíguo...A abundância de caça e pesca e boa terra para a agricultura fez deles uma nação forte, capaz de expulsar outras tribos de seus territórios ou de absorvê-los”.137 “O guarani era de estatura média, compleição robusta, cabeça grande, rosto largo e ovalado, olhos pequenos e vivos, nariz levemente achatado, dentadura firme e sem cárie, tez bronzeada, barba rala,

136

137

No mito da plantação do milho que os guaranis nos legaram através dos missionários jesuítas está sua ampla antropologia e concepção de mundo: “Quando Tupã fez o homem ensinou-lhe a plantar milho: a uma passada larga uma cova da outra, em cada cova cinco grãos; o primeiro grão é para a terra, o segundo é para os pássaros, o terceiro para o outro índio, o quarto para Tupã e o quinto para o índio plantador” Impressiona a unidade entre ecologia, integração na vida, nos problemas sociais, na religião e tudo previsto no próprio ato de plantar milho. Ser homem guarani é plantar milho. BRUXEL, 1978, pg. 16. 123


Rio Grande do Sul Arquétipos Culturais e Desenvolvimento Social

cabelos pretos e lisos, andar rápido”.138 O interesse pela agricultura, o sentido comunitário (com sistema de posse da terra e trabalho coletivo com acentuado espírito “competitivo” ou de emulação), a liderança inconteste do cacique, a propensão para a arte (música, canto, pintura e escultura), o dom da imitação que facilitava a elaboração de trabalhos técnicos e artísticos com grande perfeição eram qualidades que os missionários mais destacavam nesses povos. “Havia entre os da mesma tribo verdadeiro comunismo: nenhum comia ou bebia sem repartir com os demais... Não conheciam a propriedade de terras ou de bens de raiz; nenhum possuía um campo como propriedade pessoal: era só enquanto lhe convinha ocupá-lo temporariamente, como um bocado de sol ou a sombra de uma árvore”.139 E Bruxel ao falar da utopia dos guaranis, salienta que, ao contrário do coletivismo na propriedade ou do individualismo pregado na Europa, os guaranis “não podiam viver e trabalhar individualmente nem queriam propriedade privada”.140 Podese dizer que a vivência comunitária era característica comum de todos os índios do Brasil.141 Por outro lado, preocupava os missionários o fato de os guaranis mostrarem antropofagia, poligamia, divórcio, ociosidade, imprevidência, volubilidade, feitiçaria e bebedeiras, sabendo-se, porém, que essas dimensões culturais tinham um significado próprio nessas culturas e que nem sempre coincidiam com a visão cristã. A força, a coragem, a capacidade de luta eram virtudes principais do guerreiro que, ao vencer o inimigo, consumia-o para absorver e assimilar suas qualidades. “A virtude principal do índio era a coragem, por isso era indomável, impassível na dor, orgulhoso na BRUXEL, 1978, 16-17.

138 139

SIMÕES LOPES NETO, 1955, pg. 46.

140

BRUXEL, 1978, pg. 19.

141

GANDAVO in HOLANDA, I, 74 informa que “em cada casa desta (tribo tupi) vivem todos muito conformes, sem haver nunca entre eles nenhumas diferenças: antes são tão amigos uns dos outros, que o que é de um é de todos, e sempre de qualquer coisa que um coma, por pequena que seja, todos os circunstantes hão de participar dela”. Se isto acontecia dentro de uma mesma maloca que abrigava um número sempre grande de pessoas, a cooperação também acontecia entre as malocas, entre os vizinhos: “mostram os selvagens sua caridade natural presenteando-se diariamente uns aos outros com veações, peixes, frutas e outros bens do país; e prezam de tal forma essa virtude que morreriam de vergonha se vissem o vizinho sofrer falta do que posuem”, diz Léry, ibidem.

124


O Rio Grande do Sul no Estado de Cristandade Colonial

vitória... Ao mesmo tempo era hospitaleiro, tendo por sagrada a pessoa do hóspede, mesmo inimigo”.142 A poligamia, embora generalizada entre os caciques, era mais uma questão de prestígio, influência e autoridade e menos uma questão de sexo.143 Ao acolher um visitante o cacique oferecia-lhe uma mulher para acompanhá-lo. Era questão de prestígio da tribo. Por outro lado os caciques, assim fazendo, ampliavam os laços de parentesco e afeição entre os familiares das esposas. “O homem tomava quantas mulheres podia sustentar, porém, a mais antiga tinha certos direitos e predominava sobre as outras. O divórcio era freqüente, sendo o motivo principal a esterilidade; o adultério por parte da mulher sujeitava-a ao divórcio, e um ato de cobardia por ele praticado dava à mulher o direito de repudiar o homem”.144 Os guaranis “acreditavam que as chuvas, o trovão, os ventos, eram mandados por uma pessoa muito poderosa, bem como as doenças e a morte, e reconheciam influências benéficas no sol e na lua: a estas forças que incutiam temor chamavam – Tupã - , as que causavam males eram obra de Anhangá.” Os pagés eram os cacerdotes, formados com extrema exigência e disciplina, ao mesmo tempo médicos que conheciam o poder das ervas para curar, capazes de dominar os animais ferozes e prever o futuro, servindo de intermediários entre os espíritos e os homens, sempre ouvidos nos casos graves de guerra ou de paz, nas pendências e até nos ajustes de casamento.145 Moacir Flores refere que os guaranis acreditavam que o ang ou alma do morto ao se desprender do corpo (o cadáver era enterrado em igaçabas) poderia escolher um dos três caminhos: reencarnar numa criança que nascia, encostar-se em alguém ou então seguir para o paraíso de Monan onde não faltaria caça e água. Um paraíso na terra, o Yvi Maray, a terra sem males será sua utopia. Sua teologia apresentava uma trindade: Monan (Deus criador e pai), Irin-Majé (a chuva e filho), Sumé (o Deus civilizador que ensinou a agricultura). O lado negativo, mau e destruidor dos deuses assim como há no homem o lado positivo e negativo, é representado pelos gêmeos filhos de Sumé, Aricoute ( o mau que mandou o dilúvio) e Temendonaré (o bom que ensinou o 142

SIMÕES LOPES NETO, 1955, pg. 42.

143

BRUXEL, 1978, pg. 17.

144

SIMÕES LOPES NETO, 1955, pg. 42.

145

SIMÕES LOPES NETO, 1955, pg. 44. 125


Rio Grande do Sul Arquétipos Culturais e Desenvolvimento Social

homem a sobreviver na grande enchente, refugiados em cima de palmeiras. Acreditavam também em gênios como Jurupari, Caapora, Curupira, Iara e Anhangá.146 Para os guaranis a erva mate (caá) e o tabaco (petim) tinham origem sobrenatural e eram usados nos rituais e adivinhações mais importantes. A erva mate que crescia nativa ao norte do Paraguai, nas encostas do nordeste do RS e nas quebradas do Erval, era o principal produto de venda e troca dos guaranis, sendo que, em épocas dos séculos XVII era usada como moeda. Por suas virtudes excitantes o caá (que era tomado em forma de farinha ou de mate frio, conforme é o tererê no Paraguai de hoje) e o petim serão inicialmente condenados pelos missionários. Depois, serão incentivados, em troca das bebidas alcoólicas que eram feitas de mel, milho ou mandioca fermentados e cuja ingestão causava bebedeiras e desordens.147 Os guaranis diziam “que a alma dos valentes iria, depois da morte, habitar as “montanhas azuis”, sendo esse paraíso vedado aos cobardes e aos traidores... e que a alma de outros ficava vivendo perto dos arranchamentos e que tomavam o corpo de uma ave, de um inseto ou outro animal para aproximar-se das pessoas de sua família”.148 O mito lenda de M’boi-tatá, (a cobra de fogo) que os guaranis guardavam ciosos traz indícios de vaga tradição de um dilúvio universal: “A M’boi-tatá era uma grande serpente, que dormia, havia já imenso tempo, quando houve uma longa noite durante a qual choveu tanto, tanto, que as águas cresceram e subiram até sobre as altas coxilhas; os homens viveram tristemente durante esse tempo; a mortandade dos bichos foi espantosa. A serpente, então, expulsa de sua toca, deu em comer os olhos das carniças, somente os olhos, e por isso seu corpo foi ficando transparente e luminoso, até que morreu e desmanchou-se em pedaços que ficaram esparsos pelos campos procurando, porém, juntar-se durante a estação dos calores. Quem topa com um deles pode ficar cego; mas também protegem os campos 146 147

148

FLORES, 1986, pg. 10. “Os guaranis proclamavam a origem sobrenatural do caá e do petim e usavam uns por indicação de um lendário pagé que, diziam, tinha aprendido de Anhang as virtudes e os males de tais ervas; nos conselhos da taba, caciques e pagés nada decidiam sem passar o cachimbo de tabaco e sem tomar alguns tragos de mate, cuja infusão faziam em água fria, pois que, ao parecer, a água fervente tira-lhe as virtudes” SIMÕES LOPES NETO, 1955, pg. 44. SIMÕES LOPES NETO, 1955, pg. 44-45.

126


O Rio Grande do Sul no Estado de Cristandade Colonial

contra aqueles que os incendeiam”.149 Esta lenda parece refletir a decadência dos povos guaranis após a desorganização das missões.150 Egon Schaden diz que “os estudiosos dos guarani são unânimes em considerá-los um povo profundamente religioso...o espírito extraordinariamente místico dos guarani contemporâneos tem despertado a atenção de mais de um pesquisador (Nimuendajú, Cadogan, Haubert e Milià)... e o consideram já existente na cultura guarani antes da conquista espiritual cristã”.151 Por outro lado a coerência e a consistência do conjunto mítico guarani aponta para o alto grau de reflexão filosófico-teológica na busca de um fundamento transcendente para a vida do homem. Sua cosmogonia e sua teogonia traz semelhanças com as dos incas e maias que, por indicações feitas aos conquistadores espanhóis em Buenos Aires, parece que eram conhecidas dos guaranis.152 Em síntese, os índios que habitavam o RS na época da conquista e logo após com os jesuítas, tinham núcleo ético mítico semelhante ao dos pré-semitas incas e maio-astecas: não aceitam a propriedade da terra ( nem a propriedade dos meios de produção, bem como do produto), ela é de posse e uso comunitário, há uma grande integração do homem no cosmos, conhecimento e religião se integram nos mitos, suas virtudes predominantes são as necessárias à comunidade como as de não mentir, ser corajoso e leal, solidário e saber partilhar. Por outro lado, a liberdade que a exuberante natureza lhes proporciona permite pensar que o homem não vive para trabalhar e sim trabalha para viver. Alguns traços culturais comuns, possíveis de aquilatar numa análise do modo de viver dos primitivos habitantes do território 149

SIMÕES LOPES NETO, 1955, pg. 45.

150

SANTOS, Julio Ricardo Quevedo dos – e BENTO FILHO, Carlos Cesar, Povoados Missioneiros e Idenditade Regional, in.Rio Grand do Sul Aspectos da Cultura, pg. 21 e ss.

151

SCHADEN, Egon. A Religião Guarani e o Cristianismo. In A População Missioneira, IV Simpósio Nacional de Estudos Missioneiros, Santa Rosa, Fafil D. Bosco, 1981, pg. 18-19.

152

Os espanhóis em Buenos Aires souberam pelos guaranis, da existência do Império Inca e suas riquezas. ‘Nuno Manuel descobriu o grande estuário (na 3ª expedição exploradora que Portugal enviou em 1506) e rio que os naturais chamaram – Paranaguassu – (Rio da Prata) e onde teve as primeiras notícias das riquezas longínquas e civilização peruana” SIMÕES LOPES NETO, 1955, pg. 52. 127


Rio Grande do Sul Arquétipos Culturais e Desenvolvimento Social

americano, em geral, podem ser atribuídos analogicamente também para os índios do RS. - A posse coletiva da terra e não a propriedade privada e exclusiva. A produção, mesmo não ultrapassando um nível rudimentar de coleta e de pequena agricultura, era normalmente distribuída entre as famílias dos coletores e produtores ou de regadio e de grandes proporções. A negação da propriedade privada tem como fundamento a idéia da terra-mãe, geradora do alimento e da vida. Seria absurdo apropriar-se da própria mãe. Distinta da postura da propriedade e de apropriação, a visão de posse coletiva da terra, permite o uso da terra segundo a sua finalidade de fonte recriadora da vida da comunidade. Este arquétipo permite fundamentar as relações sociais numa perspectiva de solidariedade e de justiça. Ninguém tem direito de se apropriar, comprar ou vender a própria mãe-terra. - Todos apresentam uma cultura e uma organização social profundamente vinculada à vida da natureza, portanto ao movimento do sol e da lua, ao ciclo das estações, do brotar, do florescer da vida e do seu recolher no seio da terra. - Todos apresentam divindades vinculadas aos fenômenos naturais e aos elementos da natureza. Os deuses são próximos e habitam este mundo assim como os espíritos maus. Feiticeiros, xamãs e outros líderes da comunidade dominam as tradições, os segredos da saúde, do originário e articulam-se com esta divindades do bem ou do mal. - A mulher ocupa um lugar especial na comunidade. À semelhança da terra mãe, ela é a rearticuladora da vida. É do seio da terra fertilizada e fecunda que brota a vida da natureza. É do seio materno que brota a nova vida, o novo ser. Ela foi fecundada, como a terra, por deus através do homem. A sexualidade tinha um caráter natural e sagrado por ser a mediação da procriação da vida. Não há noções morais e preconceitos culturais que reprimam a sexualidade masculina e feminina. A poligamia, quando existe, ou tem uma função social de préstimo ou agrado ao visitante ou faz parte da concepção de que o valor fundamental da mulher está na sua capacidade de gerar a vida no universo. O maior castigo era a impossibilidade de engravidar e gerar. - A vida familiar é profundamente vinculada à grande família. Uma criança orfã não fica sem pai ou sem mãe. A comunidade assume coletivamente estes papéis. - Na sua totalidade estes povos utilizavam o mito como forma de interpretar o universo e a vida. A regra comum aos povos pré-semitas 128


O Rio Grande do Sul no Estado de Cristandade Colonial

parece estar presente também aqui: é preciso deformar a forma e desfigurar a figura para poder significar. Ou, como diziam os tlamatinimes astecas: “flor e canto é a única via de acesso à verdade que o homem tem sobre a terra”. - A educação da criança se fazia e expressava através de lendas e fábulas que sintetizavam e traduziam de forma vivencial o modo próprio de ser e existir daquela comunidade. A cultura era essencialmente incorporada pelas vivências cotidianas, estruturadas e orientadas pelos mitos. Não se sabe da existência da escrita entre os índios da região do Mercosul. A melhor forma de transmitir a cultura era o mito. - Todos, de uma forma ou de outra tem a idéia de que o mundo foi feito perfeito desde o começo. O homem e a sociedade nasceram perfeitos. Ocorre que com o passar dos dias e da história a tendência das coisas é degenerar. A forma de sair da alienação, de libertar-se é buscar o passado perfeito e primitivo, o modelar. Isto era feito através da ritualização dos mitos da criação e de outros, em celebrações de caráter fundamentalmente religioso. Aqui o papel do mais idoso era privilegiado por ser ele o que mais se impregnara da sabedoria da vida. O velho não era valorizado pela sua produção, sim pela sabedoria que orientava as outras gerações mais jovens. O homem mais velho narrava, de forma ritual e sagrada, o mito da criação. Através da ritualização, acreditava-se, o mito entrava em ação e a vida perfeita, o homem original era rearticulado e re-presentificado no agora. O progresso, o avanço para frente, seria o regresso para o originário primitivo. A palavra pronunciada em forma de rito tinha este poder mágico e sagrado. - As danças e a música permitiam que, em cerimônias coletivas, o grupo de dançarinos, em ritos tribais entrassem em contato profundo com as forças da natureza, da terra, do fogo, da água e do ar. Os jovens guerreiros, no ritmo compassado e marcial do pé, do tacape e da voz, faziam estremecer o solo, e a força da terra como que se incorporava a seus corpos em transe. O contato com a natureza é direta e sem mediadores. O conhecimento gerado por esta relação é expresso através de mitos e histórias. O europeu racionalista, matemático, lógico e dominador, pelo contrário, se acessava à natureza através do conhecimento objetivo e da manipulação econômica. O branco europeu perdeu, assim, a capacidade de sentir153 e de usufruir a natureza154 .

129


Rio Grande do Sul Arquétipos Culturais e Desenvolvimento Social

2.2 Missões e reduções a) Primeiros contatos “Descoberto” o Brasil em 1500, e entregue que foi a comerciantes para a extração do pau brasil e outras especiarias (sendo que até 1503 foi arrendado ao cristão novo Fernão de Loronha), este foi dividido em Capitanias Hereditárias em 1532 para fins de colonização. A capitania mais ao sul, a de S. Vicente, iria do Rio de Janeiro ao meridiano de Tordesilhas (mais tarde localizado em Laguna). Com o processo de colonização (monocultura de cana de açúcar, em latifúndios, para a exportação e com mão de obra escrava) começa a caça (preação) ao índio onde quer que se encontrasse. No início serão os índios do litoral brasileiro e depois os índios do interior, especialmente os já reunidos em reduções pelo esforço evangelizador dos jesuítas. Ao mesmo tempo, no sul, começa a luta para salvar os índios da sanha bárbara dos mamelucos paulistas. Para isso, será importante a fundação pelos jesuítas do colégio e da cidade de S. Paulo em 1554. A expedição de Martim Afonso de Souza, de 1530, bordejando a costa brasileira, então objeto de pirataria de franceses e holandeses, passa pelo litoral do RS avistando ao longe a costa riograndense. Mas o RS ficará ainda por mais de um século fora dos projetos de colonização portuguesa.155 Em 1549, para melhor defender e ordenar a colonização portuguesa do Brasil cria-se o Governo Geral, sediado em Salvador da Bahia, e, com o primeiro governador vem um grupo de 6 jesuítas (cuja Companhia fora criada em 1541), chefiado pelo Pe. Manuel da Nóbrega. Outros 5 virão com o Pe. José de Anchieta em 1553.156 Pe. Leonardo Nunes é o primeiro missionário português, de que se tem notícia, que visitou a costa sul de Santa Catarina e nordeste do RS, em 1550.157 Em 1552 Pe. Leonardo já encontra índios “sem 153

A conhecida Carta do Cacique da Tribo Duwamish para o Presidente Franklin Pierce é disso veemente testemunho.

154

Cf. KURZ, Robert. Os últimos combates. Petrópolis, Vozes, 1997, 3ª ed. Pg. 46.

155

FLORES, 1986, pg. 13.

156

BRUXEL, 1978, pg.13.

157

BARBOSA, F. D., 1983.

130


O Rio Grande do Sul no Estado de Cristandade Colonial

Povos das miss천es Mapa 3

131


Rio Grande do Sul Arquétipos Culturais e Desenvolvimento Social

antropofagia e batisados por missionários itinerantes... Em 1555 os carijós (da costa de Santa Catarina) mataram os missionários João de Souza e Pero Correia, revoltados pela ação dos pombeiros, caçadores de índios”.158 Os padres jesuítas, a partir de S. Paulo, em 1554, e instados por insistentes apelos dos colegas de ordem religiosa no Paraguai, solicitam ao fundador da Ordem, residente em Roma, P. Inácio de Loyola, autorização para evangelizar as terras situadas entre S. Paulo e o Paraguai. O Governador Geral discorda, para não se intrometer em terras da Espanha. O rei da Espanha entrega as missões jesuíticas da América espanhola a Francisco de Borja que em 1568, na qualidade de 3o Superior Geral da Companhia de Jesus, enviou jesuítas espanhóis ao Peru. A pedido de Francisco de Vitória, bispo de Tucuman, os jesuítas chegam em 1583 à região do Paraguai, em cuja Assunción abrem um colégio em 1594.159 A união de Portugal e Espanha (1580-1640) facilitou o trabalho missionário ao sul e oeste do meridiano de Tordesilhas. Assim, os Padres João Lobato e Jerônimo Rodrigues, saindo de Santos em 1605 com 7 índios, tentam evangelizar os carijós por dois anos. O majoral indígena do litoral catarinense, Tubarão, dificultou a catequese, pois preava os índios para os pombeiros,160 assim como fará o índio Parapoti nos vales do rio Taquari por volta de 1630.161 Os dois missionários estabeleceram contatos com os araxãs, na laguna dos Patos, que não quiseram acompanhar os padres a Santos (150 deles foram escravizados pelo Capitão Mor). Chegaram até o rio Tramandaí (Taramandi) e descrevem os carijós como “a mais pobre gente que 158

FLORES, 1986, pg. 13.

159

BRUXEL, 1978, pg. 13-14.

160

161

FLORES, 1986, pg. 13-14. “Em 1624 dois de seus padres encontraram-se no sul catarinense, onde, segundo o relato do jovem padre Vieira, ‘conseguiram batizar 27 nativos’. De passagem pelas terras de um principal chamado Tubarão, tentaram convertê-lo, mas simplesmente levantaram sua ira, ‘tendo aquele selvagem dito que certamente Deus não o criara para o Céu e sim para morador da terra, e tanto era verdade que o pusera nessa e não naquele’. O relatório do P. Vieira acrescenta que, mais ao sul, os grupos aborígines se recusaram à concentração em aldeamento maior, ‘pelo embuste de alguns portugueses de má consciência’, que os queriam esparsos para serem ‘mais facilmente apanhados e vendidos como cativos’. BARBOSA LESSA, 1984, pg.24. Remetemos o leitor para ZANOTELLI, 1997, pg. 112-113.

132


O Rio Grande do Sul no Estado de Cristandade Colonial

haja no mundo... Já são muito poucos e parece que, devido ao apresamento que os brancos lhes dão, vão terminar desaparecendo. Andam cobertos dumas peles de couro de veado ou de ratão do banhado; mas não trazem esses pelegos por honestidade, senão por causa dos muitos frios e dos grandíssimos ventos que todo ano há. Nenhum comer comem por gosto senão por encher a barriga. Não usam sal, apesar de estarem junto do mar. O peixe e a carne comem mal cozidos. Há muita caça, mas de preguiça não a vão matar”.162 Em 1609 os padres Afonso Gago e João de Almeida, partindo do Rio de Janeiro, vão para a região dos Carijós, são atacados e retornam. Enquanto isso os jesuítas de Assunção iniciam a Redução de Guaíra. Os padres João de Almeida e João Fernandes, em 1617, expulsos pelos pombeiros da ilha de Santa Catarina, contactam com o cacique Anjo dos araxãs junto ao rio Mampituba e retornam ao Rio em 1619. Em 1622 os padres Antonio de Araujo e João de Almeida chegam a Santo Antonio da Patrulha no RS, então terras do morubixaba Caibi, que se mostrou hostil. Fundaram ali uma pequena aldeia, que não teve sucesso. Recuando a Laguna, os padres são enxotados pelos pombeiros.163 Em 1626, o P. Roque Gonzales de Santa Cruz, atravessando o rio Uruguai, funda, desde o Paraguai, a Redução de São Nicolau, no RS. É o início das grandes missões dos 7 povos: Candelária (1627), Caaró (1628), Pirapó (1628), S. Carlos (1631), Apóstolos (1631), S. Miguel (1632), S. Tomé (1632) Santos Cosme e Damião (1632), S. José (1633), Jesus Maria (1633), Natividade (1633), S. Joaquim (1633),

162 163

BARBOSA LESSA, 1984, pg. 23. Os pombeiros ou mamelucos, caçadores de índios “além das ‘bandeiras’, por terra, realizam ‘monções’, por água. Chegando à enseada de Laguna, ali deixam os barcos porque, para o sul, a costa não dá base de ancoragem. Abrem então suas trilhas pela arenosa planície. Chegam ao Taramandi, infletem para oeste, desvendam o estuário Guaíba, encontram o obstáculo do rio Caí, ultrapassam o rio Caí e têm a surpresa de encontrarem uma população maior, plantando milho, mandioca, algodão, tabaco, ou coletando erva mate. Inicia-se entre as duas gentes um útil comércio de trocas” BARBOSA LESSA, 1984, pg. 23-24. Os vales dos rios Caí, Sinos, Taquari, serão, em seguida lugar dos maiores apresamentos de índios, que serão recolhidos a um “curral de escravos” no atual distrito de Estrela denominado Corvo pelo chefe indígena Parapoti. 133


Rio Grande do Sul Arquétipos Culturais e Desenvolvimento Social

Sant’Ana (1633) e S. Cristóvão (1634).164 Santa Tereza é fundada, perto de Passo Fundo, em 1632 pelos espanhois jesuítas P. Francisco Ximenes e P. João Suarez.165 Em 1639 a, então fundada, província jesuítica dos Tapes,166 abrangia uma população de mais de 35.000 índios.167 Em 1635, o Pe. Inácio de Siqueira e Francisco de Moraes, em Laguna, encontram 62 embarcações de pombeiros que planejavam capturar 1.300 índios. Os índios escondidos no mato, fugindo dos pombeiros, e passando fome pois não podiam cultivar suas roças. Neste ano a bandeira Aracambi tenta inutilmente apoderar-se das Reduções. Em 1636 “apareceu a bandeira168 de Antonio Raposo Tavares, que destruíra as reduções do Guaíra. Vindo pelo planalto, desceram à campanha margeando o rio Taquari. Já ao pé da serra, fecharam um imenso curral, para recolher os índios. Saqueadas e destruídas as reduções de Jesus Maria, São Cristóvão e S. Joaquim, os povos vizinhos já debandavam. Voltou Raposo Tavares para S. Paulo, levando uns 20.000 escravos”169 Em 1637 “virá a bandeira de Francisco Bueno. Ele morre nos sertões do Taquari, como também morrem Gaspar 164

BRUXEL, 1978, pg. 22.

165

Cf. ZANOTELLI, 1997, 112.

166

SIMÕES LOPES NETO, 1955, pg. 84.

167

BRUXEL, 1978, pg. 27.

168

Bandeiras eram sociedades por ações montadas pela câmara de vereadores de S. Paulo para prear índios e vendê-los como escravos (FLORES, 1986, pg. 16)

169

BRUXEL, 1978, pg. 27. Em 1636 Raposo Tavares chega às margens do Taquari: “Tendo sob suas ordens 150 portugueses (mamelucos sul-americanos) e 1.500 índios tupis não bem mansos, entrou no Estado através do rio Pearas (Pelotas), seguindo por Caamo (Vacaria), Caaguá (cima da serra). Deste ponto, na Serra do Nordeste, tomou uma variante do caminho que deflexionava para oeste, atravessando o rio Ibia, entrando pela Taiaçuapé (caminho do porco do mato – margem esquerda do rio Taquari) local este onde se encontravam as paliçadas do índio Parapoti, na altura do distrito de Corvo, no município de Estrela... A partir do Caamo (Vacaria) onde havia aldeias povoadas de índios, começou a razia bandeirante e se verificou a quase completa escravização da população indígena. Daí, sujeitando as nações indígenas, e aumentando a leva com muitos outros que agregavam a si, pelo caminho, por vontade ou por força, levando-os para as paliçadas do Corvo onde eram vigiados e aguardando para serem recambiados para S. Paulo” (FERRI, Encantado, pg. 2930), via Laguna, deslocamento que de Estrela até o mar demorava 5 dias apenas.

134


O Rio Grande do Sul no Estado de Cristandade Colonial

Fernandes e João Manoel Preto. A bandeira se divide entre Jerônimo Bueno (que atacará as reduções do rio Ijuí) e André Fernandes, filho de Gaspar, que atacará a redução de Santa Teresa em Passo Fundo”170 . Fidelis Dalcin Barbosa informa que, através dos feitiçeiros os escravagistas bandeirantes compravam, a troco de um machado ou um vestido, 300 a 400 almas. A oposição a este tráfico custou a alguns missionários perseguição e até morte como é o caso do Pe. Cristóvão de Mendonza, que introduziu o gado no RS, sem falar nos “mártires de Caaró”.171 Os índios das terras do Rio Grande do Sul, foram, pois, contactados pelo litoral por missionários portugueses, ao mesmo tempo que os jesuítas espanhóis, fundavam as reduções que se localizavam no noroeste do RS, nos vales do rio Jacuí e no planalto central, perto de Passo Fundo. b) As Reduções no RS Do lado espanhol, na região de Iguaçu, depois de fundadas a Ciudad Real (1550) e Villa Rica do Espírito Santo (1570) para cujos proprietários eram encomendados os índios que trabalhavam nos ervais e, como os índios fugiam das “haciendas” e “encomiendas”, e para fixar as fronteiras que interessava à corte espanhola, foram os jesuítas autorizados a reunir os índios em reduções. Ficariam, assim, a salvo dos maus tratos dos “encomenderos” e da perseguição dos caçadores Raposo Tavares ficou 11 meses na região, inclusive em Encantado e, depois em 2.12.1636 as reduções de Jesus Maria e S.Cristóbal, perto de Rio Pardo, retorna a S. Paulo com a presa humana de aproximadamente 25.000 índios(ZANOTELLI, 1997, pg. 113-114). 170 171

ZANOTELLI, 1997, pg. 114. Pe. Ximenes, fundador de Santa Teresa, depois de descrever a viagem que, com índos fizera até as margens do Taquari, ao encontrar-se com Parapoti “um dos mais afamados mercadores, em toda a região de Ibia, amigo incondicional dos bandeirantes, dos quais era preposto e maioral...e que entregou toda sua nação... este grandíssimo velhaco, diz Ximenes: fiz-lhe queimar a casa e destruir quanto pude a comida, para que se vá dali” Parapoti incita os índios para matarem os jesuítas. O Pe. Cristóvão de Mendonza, sabendo que Raposo Tavares, (o destruidor das reduções de Guairá, no Paraná) se avizinhava com uma bandeira para aprisionar índios, vai ao Caaguá (S. Francisco de Paula) para impedir. É morto pelos índios ibiaiaras em Piaí, perto de Caxias do Sul em 26.4.1635 (ZANOTELLI, 1997, pg. 113). 135


Rio Grande do Sul Arquétipos Culturais e Desenvolvimento Social

de escravos. Assim, em 1610 os padres José Cataldino e Simão Masseta fundam as reduções de Loreto e Santo Inácio. Surgem depois, entre os rios Tibagi e Iguaçu mais 13 reduções de 1622 a 1629. Mas elas serão destruídas pela ganância desalmada de bandeirantes, em 1628, aliados ao Governo do Paraguai.172 O caminho que unia S. Paulo àquelas cidades paraguaias era também o caminho do contrabando da prata que vinha das minas de Potosí, e será o caminho da escravização dos índios que, em S. Paulo eram vendidos como se negros fossem, uma vez que era proibido escravizar índios no Brasil. “Segundo uma cédula real de Madri, foram cativados, nas selvas e nas reduções, mais de 300.000 índios entre 1612 e 1638, sendo vendidos em mercados brasileiros uns 60.000 escravos indígenas entre 1628 e 1631”.173 Reunindo o que sobrava do grande genocídio bandeirante, o padre Ruiz de Montoya, e seus companheiros conseguiram “ajuntar novamente cerca de 7.000 índios que se haviam embrenhado nas selvas, após a destruição de suas reduções pelos bandeirantes. Em centenas de balsas e canoas, desceram o rio Paranapanema-Paraná, juntamente com os 5.000 habitantes das duas reduções remanscentes, Loreto e Santo Inácio Mini, horas antes de ali chegarem os paulistas. No salto do Guaíra (Sete Quedas), as embarcações confiadas à correnteza se estraçalhavam de forma irreparável. Assim, não havia outra alternativa: era necessário abrir caminho por terra, carregando aos ombros os mantimentos, roupas, armas e demais pertences indispensáveis. Depois de assim andarem 25 léguas pelas selvas, como tardassem as embarcações pedidas às reduções do sul ( da região do Paraná), dispersaram-se muitos índios. Dos 12.000 emigrantes, uns 2.000 sucumbiram de fome ou de peste, outros 6.000 debandaram e só 172

173

“Os bandeirantes invadiram as reduções em 1628, contando com o apoio de D. Luis de Céspedes e Xérias, governador do Paraguai que era sócio do bandeirante e vereador Antonio Raposo Tavares. Os espanhóis de Vila Rica e Ciudad Real atacaram as reduções para capturar os missioneiros e vendê-los aos bandeirantes...Os nativos se revoltaram, instigados pelos Xamãs que sempre foram inimigos dos missionários. Os bandeirantes levaram 18.000 cativos para S. Paulo. Os padres Simão Masseta e Justo Mancilla seguiram a bandeira, recolhendo as crianças que os paulistas deixavam no caminho. Quando os sacerdotes entregaram as crianças no próximo acampamento, os bandeirantes ordenaram a chacina dos inocentes, para não atrasarem a marcha das mães. Das reduções de Guaira a S. Paulo ficou um rastro de sangue” (FLORES, 1986, pg. 16) BRUXEL, 1978, pg. 25.

136


O Rio Grande do Sul no Estado de Cristandade Colonial

uns 4.000 chegaram ao destino, entre os rios Paraná e Uruguai (1631)”.174 Assim as reduções que os jesuítas espanhóis haviam fundado na parte oriental e ocidental do rio Uruguai são incrementadas com a população indígena que fugia de Guaíra. Em 1632 o padre Cristóvão de Mendonça fundava a redução de S. Miguel, às margens do Ibicuí, e, em 1634 , introduz, desde o Paraguai, o primeiro gado no território gaúcho. Inaugura-se, assim, uma atividade que marcará definitivamente a economia, a sociedade e a cultura do Rio Grande do Sul. Martirizado o Pe. Mendonza em 1635, destruídas as reduções pelos bandeirantes em 1636 (Jesus Maria, São Cristóvão e S. Joaquim) por Raposo Tavares, e, em 1637 e 1638 ( as de Santa Teresa, S. Carlos , Apóstolos, S. Miguel, S. Tomé, Cosme e Damião e Natividade) pelas bandeiras de Francisco Bueno e Fernão Dias Pais,175 dispersos os índios que conseguiram fugir, refugiaram-se estes na margem ocidental do rio Uruguai, na redução de Concepción (4.195 índios). Decepcionados pelo resultado de captura e enfraquecidos ante a espera inútil de reforços da capital paraguaia, os bandeirantes de Fernão Dias Pais são assaltados pelos guaranis comandados pelo cacique Nicolau Ñeenguiru, da redução de Concepción. Padre Diego de Alfaro, incitando os índios ao combate, morre baleado por um memeluco. Encolerizados os índios redobram o denodo e vencem os mamelucos e enviam-nos aprisionados ao governador de Assunção Pedro de Lugo y Navarra que simulara defender os índios enviandolhes 60 soldados. Os soldados prisioneiros terão facilitada a fuga para S. Paulo.176

174 175

176

BRUXEL, 1978, pg. 25. Depois da Bandeira de Raposo Tavares, vem a de Francisco Bueno em 1637. Este morre nos sertões do Taquari juntamente com Gaspar Fernandes e João Manoel Preto. A bandeira se divide entre Jerônimo Bueno (filho de Francisco) e que atacará as reduções do rio Ijuí e André Fernandes que atacará a redução de Santa Teresa em Passo Fundo (ZANOTELLI, 1997, pg. 114). André Fernandes, expulsa os jesuítas espanhóis e deixa em seu lugar o pe. Francisco Fernandes de Oliveira, seu filho, igualmente jesuíta. André Fernandes, um bandeirante humanitário e benquisto dos índios, fez erguer junto à destruída Redução de Santa Tereza um povoado permanente, o primeiro fundado pelos portugueses. Este permaneceu durante 40 anos como ponto de parada obrigatória das falanges paulistas, capital do bandeirismo sulino chamado Igaí (BARBOSA, pg. 18). BRUXEL, 1978, pg. 27. 137


Rio Grande do Sul Arquétipos Culturais e Desenvolvimento Social

Em 1640 o padre Diaz Taño consegue de Roma a excomunhão para os escravizadores de índios cristãos. S. Paulo e Rio amotinaram-se e preparam nova expedição contra os índios missioneiros comandada por Jerônimo Pedroso de Barros com 500 mamelucos e 3.000 índios tupis. Esta vai a Iguaçu pretendendo surpreender os índios pelo rio Paraná. Uma enchente destroi suas quase 700 canoas. Os guaranis acampados em Mbororé “ultimavam suas fortificações e emboscadas sob o comando dos irmãos jesuítas, antigos militares, (destacando-se o arquiteto irmão Domingos Torres). Tinham os guaranís 300 bocas de fogo e até canhões de bambu gigante, retovados de couro cru, que aguentavam dois ou três tiros. Contra mais de 250 embarcações paulistas, tinham os guaranis apenas 80 barcos com uns 800 tripulantes. O camandante guarani, cacique Abiaru, iniciou o combate, afundando três barcos inimigos com um tiro de canhão. Após luta encarniçada, com muitas baixas, os bandeirantes pediram trégua, com o intento de se fortificarem. Mas o padre Romero, num gesto de justa indignação, rasgou a carta do inimigo à vista dos guerreiros guaranis, que não queriam trégua, mas paz. E a luta redobrou. Cairam uns 120 mamelucos e centenas de tupis, e todos os guaranis cativos foram libertados. Derrotados e perseguidos, rumaram os bandeirantes para S. Paulo, perecendo a maioria pelo caminho (1641)”.177 Com a restauração de Portugal em 1640, separando-se da coroa espanhola, cessam as bandeiras na região sul, bem como as missões dos padres portugueses. Entretanto, outras vitórias ainda obtiveram os guaranis sobre três bandeiras menores, em 1647, 1651 e 1656. c) Os sete povos das Missões Com as bandeiras muitos povos missioneiros se extinguiram, a maioria dos que restavam migraram para oeste e fundiram-se com outras reduções, até que em 1687, voltaram novamente à margem oriental do Uruguai para aproveitar o gado disperso e dando lugar assim aos 7 povos das Missões: S. Nicolau (1687), S. Luis Gonzaga (1687), S. Miguel (1687), S. Francisco de Borja (1690), S. Lourenço (1691), S. João Batista (1698) e Santo Angelo (1707). Foram, pois 30

177

BRUXEL, 1978, pg. 27-28.

138


O Rio Grande do Sul no Estado de Cristandade Colonial

as reduções: 8 no Paraguai , 15 na Argentina e 7 no Brasil(RS). Localizados a oeste do rio Jacuí, os guarani-missioneiros viveram uma experiência sem similar, num efetivo processo de transculturação, como diz Kern,178 como pode ser percebido pelos elementos que seguem. O gado que havia sido introduzido no RS em 1634179 proliferara prodigiosamente e, apesar da captura feita por paulistas e espanhóis, apesar da desordem após a destruição das Reduções entre 1636 e 1640, crescia livre e chucro nos vastos campos e de boas aguadas do centro e sul do RS e Uruguai. Ali se formou a grande Vacaria do Mar que ia de Guaíba a Montevideo. Prevendo a extinção dessa vacaria pela exploração de portugueses e espanhóis e sua apropriação em estâncias particulares,180 os jesuítas, depois de 1682 planejaram a fundação de uma nova vacaria, a dos Pinhais, nos campos de cima da Serra, com 100.000 cabeças iniciais. Ao atingirem 1.000.000 de cabeças a vacaria poderia oferecer 300.000 reses para o abate anual. Não houve acordo na contribuição de cada Redução para a formação da Vacaria dos Pinhais. Mesmo assim, com menor número de reses ela foi formada. Os paulistas descobriram a nova vacaria, levaram grande parte do gado para S. Paulo e o restante ficou dividido em estâncias privadas.181 O 178

KERN, 1982: 130.

179

Não é provável que tenha sido Hernandárias quem introduziu o gado no Uruguai, na foz do Rio Negro por volta de 1611 a 1617, pois não consta a existência de gado quando Colônia do Sacramento (1680) foi fundada pelos portugueses, conforme refere Flores. Mais verossímel é a informação de Bruxel que diz “ Em 1555 chegavam a Assunção, por via terrestre, as primeiras vacas, procedentes de S. Vicente (São Paulo, Brasil). Do Peru foram trazidas, pouco depois, vacas, ovelhas e cabras. O cavalo já entrara em 1537, quando os moradores da primeira Buenos Aires fundaram Assunção. O gado vacum, prodigiosamente multiplicado, foi levado ao sul pelos fundadores de Corrientes, Santa Fé e da Segunda Buenos Aires (1580). As Reduções, fundadas de 1610 em diante, iniciaram logo a criação de gado vacum, já para abastecimento de carne, já para o cultivo da roça, onde o trabalho de boi era indispensável. Para as Reduções do norte o gado terá vindo de Assunção, enquanto Corrientes o fornecia às Reduções do sul... Em 1634, por ordem do padre provincial Pedro Homero, o padre Cristóvão de Mendoza trouxe para a margem oriental do rio Uruguai 1 500 vacas (100 para cada Redução)” (BRUXEL, pg.115). Outra opinião é a de Simões Lopes Neto, cf. in Terra Gaúcha:86-87

180

“Espanhóis e portugueses descobriram a Vacaria do Mar, abatendo os animais para tirar o couro e o cebo, e retirando tropas para levar às feiras de Itu e Sorocaba. Em 1739 não havia mais gado na região” (FLORES, 1986, pg. 21).

181

BRUXEL, 1978, pg. 116. 139


Rio Grande do Sul Arquétipos Culturais e Desenvolvimento Social

governo, dizendo-se senhor e administrador das terras “devolutas” doava ou vendia a proprietários particulares as vacarias divididas em estâncias. Duas outras “vacarias”, a de S. Miguel e a de Japeju com cerca de 30 mil km quadrados em ambas as margens do Uruguai, e para criar 50.000 reses e destinadas à reprodução para todas as Reduções, também parecem não ter prosperado.182 Cada Redução tinha uma estância, distante do povoado, de grandes dimensões e várias invernadas nas proximidades da Redução. “Anualmente, as grandes estâncias reabasteciam as invernadas com as reses destinadas ao abate. As grandes estâncias da banda oriental eram limitadas pelo rio Uruguai, rio Negro, rio Jaguarão, Lagoa dos Patos e Encosta da Serra. As invernadas dos Sete Povos Orientais ficavam todas no planalto, para onde o gado subia pelo desfiladeiro de Santa Maria da Boca do Monte ou de Santiago do Boqueirão. Alguns Povos da margem ocidental do rio Uruguai tinham estância grande no lado oriental; outros, para as bandas de Santa Fé e Corrientes”.183

As estâncias eram divididas por obstáculos naturais e controladas por famílias de posteiros: “Os posteiros eram famílias indígenas, encarregadas de evitar a evasão do gado e de efetuar os necessários rodeios, para amansá-lo e acostumá-lo à vista do homem a cavalo, com a finalidade de facilitar sua futura remoção para as invernadas. Na estância grande de S. Borja, por exemplo, havia umas quinze capelas de posteiros. Com umas dez famílias por capela, esta estância contaria com algumas centenas de pessoas. O cura (ou seu sócio) tinha que percorrer, algumas vezes ao ano, toda a sua estância. Houve até, certo tempo, dois padres destinados exclusivamente ao atendimento espiritual das estâncias” (Ibidem).

Quarenta ou cinquenta tropeiros experientes, a cada ano (um trabalho que se extendia por dois ou três meses) iam até a estância da respectiva Redução e recolhiam entre 5 e 10 mil reses para o consumo 182

BRUXEL, 1978, pg. 117.

183

Ibidem.

140


O Rio Grande do Sul no Estado de Cristandade Colonial

e conduziam-nas até as invernadas de onde “se retirava algum gado para os pequenos pastos, nas cercanias do povoado, segundo as necessidades dos matadouros”.184 A carne chegava a constituir metade da ração alimentar nas Reduções. Os ervais. A erva-mate, (“Ilex Paraguariensis” ou Ilex-mate) era usada pelos médico-feiticeiros dos guaranis para inebriar-se e, assim fazer adivinhações e diagnósticos. Proibida, sua ingestão pelos espanhóis sob pena de excomunhão, porque tinha efeitos demoníacos, segundo denuciava o padre Diego Torres no Paraguai em 1610, foi depois liberada para substituir as bebidas fermentadas de mel, milho ou mandioca, com que os índios se embebedavam. “Reunidos em consulta, os caciques sugeriram aos padres que lhes dessem diariamente bastante erva-mate, e a bebedeira acabaria por si”.185 Como a erva-mate só crescia naturalmente ao norte do Paraguai, na serra de Maracaju e alguns pontos montanhosos do sul do Brasil (Paraná, Mato Grosso, Oeste Catarinense e Rio Grande do sul) como nas serras do Erval, vizinho da Lagoa dos Patos e na encosta da Serra, anualmente, uma expedição de índios ia buscá-la para toda a Redução, inicialmente para consumo e depois também para troca e exportação. A exploração da erva feita pelos “encomenderos” espanhóis levou a abusos em sobrecarregar os índios com fardos que iam para além de suas forças, sem considerar a insalubridade das florestas e do tempo. Inicialmente consumido pelos caciques, o mate passou depois para todos os índios e “dos índios para os conquistadores, e daí para os mestiços, crioulos, negros e povoações açorianas. E depois aos quartéis dos dragões e às colônias imigrantes, atravessando o tempo como algo valiosíssimo, conservando suas características e confirmando a tradição popular até nossos dias”.186 Hoje, seguramente “uns quarenta ou cinquenta milhões de pessoas da América do Sul tomam diariamente seu mate, sem qualquer prejuízo à saúde, antes pelo contrário”.187

184

BRUXEL, 1978 pg. 118.

185

BRUXEL, 1978, pg. 119.

186

ACRI, 1991, pg. 160.

187

BRUXEL, 1978, pg. 119. 141


Rio Grande do Sul Arquétipos Culturais e Desenvolvimento Social

Exportada de Santo Angelo para Corrientes, Santa Fé, Buenos Aires, Chile e dali ( pelo porto de Valparaiso) para o Peru ( pelo porto de Callao) e Lima ou, em outra rota, para Potosi, em longas viagens de carreta que duravam quase oito meses, a erva-mate chegou a ser usada como moeda entre as Reduções e cidades do Prata. A erva-mate, distribuída a cada família juntamente com a ração alimentar diária era preparada assim: “Os ramos sapecados à noite, eram logo amontoados num girau (grade de varas) com fogo lento por baixo, até estalarem de secos. Para sua melhor conservação, a erva, depois moída, era bem socada em sacos de couro cru ( “tercios”), que a comprimiam mais e mais à medida que se ressecavam... Os índios só aproveitavam as folhas que eles moíam em pilões de madeira. Peneirada para eliminar os pecíolos das folhas, a erva dos índios, chamada “caa-mini”(erva miúda), era muito forte e mais durável que a “caa-ibira” (era de pau, não peneirada) dos espanhóis, e custava o dobro.”188

A erva-mate era mascada (como folha), sorvida em pó ou com água fria, segundo ainda hoje costumam tomar o tererê os guaranis no Paraguai, ou em forma de mate chimarrão com água quente como o descreve Saint-Hilaire em suas notas de viagem pelo RS em 182021: “O uso dessa bebida é geral aqui. Toma-se ao levantar da cama e depois, várias vezes ao dia. A chaleira de água quente está sempre ao fogo e, logo que um estranho entre na casa, se lhe oferece um mate. O nome de mate é propriamente o da pequena cabaça onde ele é servido, mas dão-no também à bebida ou à quantidade do infuso na cabaça: assim diz-se ter tomado dois ou três mates quando se tem esvaziado a cuia duas ou três vezes. Quanto à planta que fornece essa bebida, denominam-na ervamate ou simplesmente erva. A cuia tem a capacidade de mais ou menos um copo; é cheia de erva até à metade, completandose o resto com água quente. Quando o mate é de boa qualidade, pode-se escaldá-lo até dez ou doze vezes sem renovar a erva. Conhece-se que a esta perdeu sua força e que é necessário trocála, quando, ao derramar sobre ela água fervente, não se forma espuma à superfície... Os verdadeiros viciados do mate tomam-

188

BRUXEL, 1978, pg. 121. “Alguns historiadores atribuem a torrefação da ervamate... aos jesuítas assim como a criação de uma lenda da erva de São Tomé”

142


O Rio Grande do Sul no Estado de Cristandade Colonial

no sem açúcar e, então, tem-se o chamado chimarrão...A primeira vez que provei esta bebida achei-a muito sem graça, mas logo me acostumei a ela e atualmente tomo vários mates, de enfiada, com prazer, até mesmo sem açucar. Acho no mate um ligeiro perfume, misto de amargor que não é desagradável...Há muitos méritos nessa bebida, dita diurética, própria para combater dores de cabeça, para amenizar os cansaços do viajante e, na realidade, é próvável que seu amargor torne-a estomáquica e, por conseguinte, necessária em uma região onde se come enorme quantidade de carne, sem os cuidados da perfeita mastigação.”189

E é ainda o mesmo Saint-Hilaire quem comenta o costume do mate implantado no RS: “Os meus hospedeiros ( da estância Boa Vista) tiveram esta manhã a feliz idéia de me mandar, por um negro, mate e um prato de biscoitos e fatias de queijo...Segundo o costume local o mate me foi servido em uma pequena cabaça (cuia) colocada sobre um guardanapo dobrado triangularmente. A cabaça apresentava vários desenhos esculpidos cuidadosamente. A bomba ( tubo munido de uma cabeça em forma de ralo de regador, com a qual se aspira a infusão de mate sem perigo de se engolir as folhas), nela mergulhada, era de prata.”190

Os índios usavam uma bombinha de taquara chamada taquapi: tacuá (cana oca) api (lisa ou alisada). Na base inferior “um paciencioso trançado de fibras, o bojo, impedindo que as partículas da folha fossem ingeridas.”191 A água era aquecida numa cambona ou chaleira, itacuguá: i (água) tacu (quente) e guá (recipiente) de cerâmica. Cada Redução cultivou ervais artificiais, inicialmente enterrando ramos até criar barbalho e cortando-o da planta mãe, descobrindo, depois a maneira de germinação das sementes. Por volta de 1750, os Sete Povos Orientais já tinham 700.000 pés de erva-mate (uns 100 pés por família). Para evitar a super-produção limitou-se a exportação a 12.000 arrobas espanholas anuais para os Trinta Povos.

189

SAINT HILAIRE: 83.

190

SAINT-HILAIRE, 1974, pg. 25.

191

ACRI, 1991, pg. 159. 143


Rio Grande do Sul Arquétipos Culturais e Desenvolvimento Social

O consumo interno, porém, não permitia sequer exportar a metade.192 O Rio Grande do Sul tem hoje, no chimarrão, um dos traços de identificação de sua cultura e o cancioneiro popular mostra as múltiplas funções e significados que tem o mate. Simbolizou e simboliza a tradicional hospitalidade do gaúcho. As mulheres fazem mate doce. d) Estrutura e organização no apogeu das Reduções Todas as Reduções obedeciam um plano urbanístico geral e estabelecido em lei. De forma quadricular, as cidades missioneiras, iguais umas às outras: “O centro axial era, invariavelmente, a grande praça quadrada (de 150 metros de lado), aonde convergiam as ruas principais (de 18 metros de largura). No lado norte ou sul da praça ficavam, normalmente, da direita para a esquerda: o asilo-orfanato, o cemitério, a Igreja e dois pátios. No fundo do primeiro pátio erguia-se a residência dos padres, e no lado oposto à Igreja havia algumas repartições: o quarto do porteiro, a escola, a sala de música e dança, a sala de armas, etc. O segundo pátio era rodeado de armazéns e oficinas mecânicas. Por trás do complexo cemitério-igreja-pátios estendia-se a horta dos padres... Nos outros três lados da praça alinhavam-se os blocos de casas dos índios. Não eram casas isoladas, mas conjuntos de várias salas enfileiradas sob o mesmo teto”...193

De grandes tijolos de adobe feitos de barro vermelho e secados à sombra, as casas tinham uma varanda em todo redor de 2 ou 3 metros de largura para proteger a construção. Cobertas de telhas queimadas, que protegiam as paredes da chuva, assim como eram os muros dos cemitérios e todas as construções, as casas tinham longa durabilidade. O branqueamento das paredes se fazia com caracóis queimados, moídos e dissolvidos em água com cola. Essas cidades guaranis eram, sem dúvida, muito superiores à estrutura urbanística das cidades espanholas. Pontes ou canoas e hospedarias gratúitas facilitavam as viagens e relações entre as Reduções.194 192

BRUXEL, 1978, pg. 122.

193

BRUXEL, 1978: 49.

194

BRUXEL, 1978, pg. 49-50.

144


O Rio Grande do Sul no Estado de Cristandade Colonial

As igrejas, inicialmente galpões de 3 naves, com paredes de paus trançados e cobertos de barro e o telhado de palha, depois obras originais de arquitetura com paredes de lajes de arenito ou de adobe, nunca de tijolo queimado, cobertas de telha queimada. Descansando o peso de 3 ou de 5 naves em troncos de madeira inteiriços, desarraigados em época e lua conveniente, trabalhados em forma prismática ou cilíndrica segundo a função de arcabouço ou de coluna livre como esteios, eram implantados “em covas de 2 a 3 metros de diâmetro devidamente empedradas” e erguidos com guindastes. “Na igreja de S. Miguel não foram usados os troncos porque o arquiteto usou o estratagema de dentear as lajes de modo que não se deslocavam”. Assim construídas, as igrejas não eram muito altas, embora acolhessem 6 mil ou mais pessoas, dando a impressão de peso e depressão.195 À frente da igreja, uma galeria espaçosa encimada por nichos e estátuas , servia para abrigar em dias de chuva, como lugar de encontro, antes da missa e do rosário, antes dos batizados e casamentos, bem como o lugar da “recepção solone de padres provinciais, bispos e governadores. Dali, hóspedes ilustres assistiam aos exercícios militares, jogos e encenações teatrais que os índios representavam na praça. Também os corredores laterais eram como vastas salas de reunião: os homens no corredor do primeiro pátio e as mulheres no corredor do cemitério, ouviam, todos os domingos, após à missa, a repetição do sermão do padre, proferida por dois caciques mais eloqüentes, em linguagem mais acessível a seu povo. No corredor do primeiro pátio também se reuniam diariamente os caciques e membros do governo, com o padre, para informações e consultas.”196 Os índios missioneiros, assistiam missa aos domingos e festas, com música e cantos197 e, os que quisessem, ainda podiam fazêlo todas as manhãs, antes de ir ao trabalho. As crianças, participavam obrigatoriamente da missa matutina e da reza do rosário ao final da tarde, rezas que duravam ao todo 2 horas. Todos os dias as crianças aprendiam as respostas do catecismo.198 Os sacramentos da confissão 195

BRUXEL, 1978 pg. 53-55.

196

BRUXEL, 1978, pg. 55.

197

Seguindo as diretrizes do Concílio de Trento, cada padre dizia sua missa diária. Os altares de cada nave serviam para isso. Ainda não concelebravam.

198

O catecismo é uma síntese da teologia cristã em forma de perguntas e respostas e estabelecido pelo Concílio de Trento, sob a sugestão de bispos espanhóis, assim como o mesmo Concílio deliberou pela criação dos Seminários como o lugar de 145


Rio Grande do Sul Arquétipos Culturais e Desenvolvimento Social

e da comunhão eram freqüentados assiduamente, mensal ou semanalmente por alguns. Para os adultos a congregação de Nossa Senhora e para os jovens a congregação de São Miguel, envolviam selecionadamente (somente os que mostrassem bons costumes) mais de 20% da população da Redução de Conceição. O envolvimento dos índios no arranjo exterior e interior das igrejas, o esplendor do culto divino, os muitos cantos religiosos cantados durante todo o dia e à noite, ritualizavam, confirmavam, consolidavam para cada índio a importância da religião acima de tudo. O papa Bento XIV propunha as Missões jesuíticas dos guaranis como modelo de vida cristã. O rei Felipe V felicitava os missionários pela “insuperável religiosidade, esplendor e devoção das igrejas guaranis e do culto divino”, conta-nos o padre Peramás.199 “Em 1700, a Sagrada Congregação para os Religiosos, recebia este informe oficial: ‘o ensino da religião é tal, que as crianças guaranis sabem melhor a doutrina cristã que, aqui, os espanhóis de 40 anos.”200 Ao lado esquerdo da Igreja, um pátio tinha aos fundos a residência dos padres (quatro ou cinco quartos de 5 x 5 ou de 6 x 6 metros, mais refeitório com uma adega subterrânea de 3 a 4 metros, cozinha e a sacristia que ligava com a Igreja, mobiliados segundo o gosto e modéstia jesuíticas); à esquerda do pátio, a escola com salas de música, sala de armas etc.; à esquerda, um segundo pátio cercado de oficinas e armazéns e aos fundos de tudo vinha a horta dos padres. “Todo esse complexo estava cercado de muro, com os portões chaveados, ao menos durante a noite, sendo proibida, também de dia, a entrada de mulheres de qualquer idade na ala residencial (dos padres), horta ou primeiro pátio.”201 O ensino de primeiras letras, embora recomendado pelo rei da Espanha e pela Ratio Studiorum (o estatuto que regulamentava o ensino jesuítico), avaliada a utilidade, foi oferecido aos filhos dos caciques e aos meninos de melhor capacidade.202 A todos eram educação dos futuros sacerdotes, para dar-lhes maior formação intelectual e moral, tendo em vista os desvios de conduta existentes na época da Reforma e ContraReforma. 199

BRUXEL, 1978, pg. 88.

200

BRUXEL, 1978, pg. 88.

201

BRUXEL, 1978, pg. 57.

202

Aos futuros governantes das Reduções e suas lideranças ensinava-se a ler, escrever, contar e algum ofício.

146


O Rio Grande do Sul no Estado de Cristandade Colonial

ministrados conhecimentos ( e até avançados) de técnicas agrícolas e pecuárias. Às meninas ensinava-se tricô, costura e bordado. A todos a educação cristã, até como forma de atingir os adultos. Os métodos? As Reduções, ao invés do castigo (que ainda vigia na Europa), preferem o método da emulação. Os alunos eram divididos em dois grupos rivais que buscavam vencer em conhecimentos e acertos o grupo antagônico e, assim todos, também os mais preguiçosos eram envolvidos pela pressão moral do chefe e dos companheiros. A emulação era também usada no trabalho e jogos. As notas eram anunciadas em reunião solene, na presença da comunidade, e aí eram elogiados os melhores e censuradas as condutas não recomendáveis. As ruínas das Reduções “revelam a extraordinária ação civilizadora dos jesuítas que, mediante a exclusiva colaboração do gentio, desenvolveram as artes, a agricultura, a pecuária e o próprio comércio exportador...Aqui surgiu a primeira tipografia do Brasil, a primeira fundição de ferro da América do Sul. Construíram-se órgãos, fundiram-se sinos. Teares ocupavam oficinas, servindo a lã e o algodão de matéria prima...imagens e estatuárias...”203 A música foi a arte que mais atraiu os guaranis. Com ela os padres conquistaram a simpatia do índio. “Navegando em canoas pelos rios, tocavam flauta e logo viam sair da floresta multidões de índios, que, fascinados pela melodia, os iam acompanhando pela margem.Cada redução dispunha de uma banda de música, com trinta a quarenta figuras. Algumas destas bandas chegaram a apresentar concertos em Buenos Aires. O P. José Cardiel chegou a declarar a propósito: Atravessei toda a Espanha, e em poucas catedrais ouvi músicas melhores do que estas.”204 Os índios guaranis cantavam ao ir e voltar do trabalho e, por isso, não gostavam de trabalhar sozinhos com a família. Preferiam sempre trabalhar em grandes grupos ou em comunidade. A educação missioneira também se mostrou eficaz na aprendizagem de técnicas militares como o demonstrou a guerra guaranítica. “Em poucos decênios, os jesuítas levaram os indígenas a um grau de civilização que a raça branca só obteve em milhares de anos.”205 203

BARBOSA, 1983, pg. 17.

204

BARBOSA, 1983, pg. 17

205

BARBOSA, 1983, pg. 17. 147


Rio Grande do Sul Arquétipos Culturais e Desenvolvimento Social

Segundo nos relata o padre Bruxel em sua excelente obra “em cada Redução havia umas trinta ou quarenta oficinas: de escultores, pintores, ferreiros, tecelões, chapeleiros, curtidores, carpinteiros, oleiros, açougues, etc. Enquanto o permitia o volume das matérias primas, localizavam-se as oficinas no segundo pátio. Outras situavam-se fora do povoado, como as olarias...as carpintarias...os matadouros. Na primeira metade do ano estavam em atividade todas as oficinas; na segunda, só as mais indispensáveis, pois era tempo de cultivar a terra. O primeiro semestre era o período mais indicado para construir ou reformar a igreja e as casas de moradia, abrir estradas, levantar pontes sobre os arroios, fabricar canoas, balsas e até grandes barcos a vela, para dez ou doze toneladas de carga. Era esse também o tempo para buscar o gado nas estâncias, trabalhar nos ervais, exportar erva-mate (mais de 80% da carga), algodão, melaço e açúcar para Buenos Aires ou Santa Fé, e importar ferramentas (tesouras, agulhas, anzóis, etc) ou matéria prima (para o fabrico de machados, facões, sinos etc.)”206

As mulheres, cuidavam dos serviços domésticos, e fiavam para a comunidade lã ou algodão por algumas horas por dia, cujos resultados eram entregues na quarta e sexta feira. A confeção das roupas era feita à mão, por costureiras profissionais, para evitar desperdício de tecido.207 Nas Reduções havia roças comuns e roças particulares de cada família. Este era, pelo menos o ideal proposto pelos jesuítas. Mas os indígenas, pelo “inveterado costume de tudo ter e fazer em comum, recorriam ao sistema de muxirão (mutirão), unindo-se várias famílias, para fazer sucessivamente todas as roças particulares do grupo.”208 Tagarelas e gregários os índios valorizavam o grupo. Contemplativos, lentos e volúveis, ora trabalhavam com afinco, ora desanimavam sob pretexto de cansaço. Os jesuítas incentivavam-nos pela competição organizando permanentes campeonatos de trabalho. O ócio, era para aqueles educadores a fonte de vícios e intrigas. Era 206

BRUXEL, 1978, pg. 66. Os tecelões às vezes continuavam a tecer mesmo no segundo semestre pois que para cada índio eram necessários 3 ou mais conjuntos de roupas de tecido de algodão safora os ponchos de lã.

207

BRUXEL, 1978, pg. 67.

208

BRUXEL, 1978, pg. 93.

148


O Rio Grande do Sul no Estado de Cristandade Colonial

preciso evitá-lo com o trabalho que não só era fonte de sobrevivência mas fator decisivo de educação. Desde os 7 anos os meninos eram agricultores e as meninas colhiam algodão e as menores espantavam os papagaios e periquitos que dizimavam os milharais. Ao clarear do dia, sinos e tambores acordavam a todos. Eram 6 horas diárias de trabalho. Os homens nas roças e oficinas e as mulheres em casa e na fiação. As crianças acima dos 7 anos ficavam entregues à comunidade, tanto para o trabalho, quanto para as 3 refeições diárias. Os trabalhos eram interrompidos 2 horas para o almoço. À tardinha as mulheres recebiam a erva mate e a carne para a família e todos voltavam para casa. Em pouco tempo a Redução mergulhava em profundo silêncio. Uma economia coletivista? Talvez. O certo é que serviu de modelo e utopia para muitos socialismos depois. O socialismo utópico da Europa teve aqui uma de suas mais significativas raízes.209 Os índios, originalmente saudáveis, sofreram profundamente com a vinda de europeus que lhes trouxeram doenças como gripe, varíola, sarampo, cáries dentárias etc para as quais os índios não tinham anticorpos para imunização. As Reduções, neste sentido, desenvolveram um processo de cuidados sanitários especialmente referentes a epidemias e que consistiam antes de mais nada em cuidados higiênicos, repouso e isolamento e incineração de lugares e choupanas preparadas para o isolamento, quando este findava. A medicina caseira com ervas e chás aprofundou-se com a vinda de médicos como o Ir. Montenegro que havia trabalhado 32 anos no Hospital Real de Madri e grande conhecedor de plantas medicinais e que escreveu aqui diversos livros de medicina. Os jovens índios que pertenciam à congregação mariana serviam como enfermeiros no cuidado com os doentes que ficavam em suas casas, porque os guaranis não queriam separar-se de seus enfermos.210 Não havia hospitais, e os enfermeiros passavam todos os dias pelas ruas e pelas casas receitando e distribuindo remédios, providenciando dietas. 209

210

É bom observar que o “Socialismo utópico” dos jesuítas e suas Reduções foi muito discutido na Europa após a expulsão dos jesuítas da América Latina (1767) e do Brasil (1759), especialmente nos colégios (eram os melhores da Europa) sustentados pelos padres da Companhia de Jesus na Germânia, Estados Pontifícios... Virão depois Proudhon, Owen a quem Marx tratava como socialistas utópicos. BRUXEL, 1978, pg. 107. 149


Rio Grande do Sul Arquétipos Culturais e Desenvolvimento Social

Em muitas cartas e documentos dos jesuítas aparece o “exímio talento artístico dos guaranis. Dotados de acurado senso de harmonia, compasso e ritmo, tinham eles forte propensão e extraordinária habilidade para o canto, música e dança...bem como para a pintura e a escultura.”211 O padre Antonio Sepp von Reinegg, em 1691 introduz a música clássica européia e diz que “os guaranis aprendem, com facilidade, qualquer tipo de instrumento musical e tocam, com perícia, as peças mais difíceis e complicadas dos mestres europeus.”212 Ele próprio cria em Japeju um conservatório de música para os mais talentosos índios das Reduções. Ali se fabricava todo tipo de instrumento musical: “órgãos, cravos, harpas, liras, cítaras, bandolas, tiorbas, violoncelos, violinos, fagotes, trompas, cornetas, clarins, oboés, flautas etc. Depois de certo tempo já havia mestres indígenas, que iam ensinando arte musical aos meninos...o número de músicos de cada um dos Trinta Povos era de 30 a 40.”213 Canto, música, dança e melodrama eram as principais diversões do povo nas muitas e grandes festividades. A pintura e, especialmente, a escultura eram também ocupações artísticas dos índios missioneiros. Os jesuítas usavam a arte, no sentido aconselhado desde Platão: para cultivar a sensibilidade em relação às verdades da fé e da moral, aos valores do espírito. “Para instruir a mente e formar o coração”214 . Integrava pois o processo educativo, civilizatório e evangelizador. E, dentro do Estado de Cristandade, serviam para cultivar o respeito às autoridades eclesiásticas e civis a quem os índios recebiam com melodramas e corais. e) A destruição Os Sete Povos missioneiros, enfim, prosperaram até que o Tratado de Madrid (1750) estabelecesse a desocupação espanhola da parte oriental do Uruguai que abrangia as missões do RS. Em vão Sepé Tiaraju, partindo da capital dos 7 Povos, Santo Ângelo, tentou deter a demarcação, enfrentando os exércitos português e espanhol. A expulsão dos jesuítas e o extermínio dos índios e suas reduções (em 211

BRUXEL, 1978, pg. 109.

212

BRUXEL, 1978 pg. 109.

213

BRUXEL, 1978, pg. 110.

214

BRUXEL, 1978, pg. 111.

150


O Rio Grande do Sul no Estado de Cristandade Colonial

1759 para o Brasil e 1767 para o restante da América espanhola) marca definitivamente o processo de decadência da experiência das Reduções.215 Quando, Saint-Hilaire, em 1820-21, visita o RS aí encontra guaranis como prisioneiros, como peões de estância ou componentes do exército de Artigas e diz: “Os guaranis são de uma feiura extrema e têm na fisionomia uma expressão de baixeza, devida unicamente ao sentimento de inferioridade, dependência e cativeiro a que se acham reduzidos atualmente. Todavia, examinados com atenção, mostram, entre os traços repugnantes que os caracterizam, um ar de docilidade indicadora de um caráter melhor...Alguns prisioneiros trazem ainda restos do antigo uniforme; outros tem péssimas roupas de cores variadas e chapéus de abas. Várias mulheres trazem enrolada à cintura, uma espécie de saia a que dão o nome de cheripá. A maior parte traz os cabelos longos e trançados...Por sua fisionomia, grossura de seus membros e modo de viver, os guaranis assemelham-se aos cossacos.”216

Cinqüenta e dois anos depois do martírio do pe. Mendoza, em 1687, toda essa população transferiu-se para a nova redução de S. Miguel, hoje no município de Santo Ângelo. Esta ficou sendo a capital dos Sete Povos. De São Miguel partiu Sepé Tiarajú para tentar deter o avanço dos espanhóis e portugueses na questão da demarcação, determinada pelo Tratado de Madrid, na década de 1750.217 As ruínas 215

216 217

Os jesuítas foram expulsos sob a acusação de ter criado um Estado dentro de outro Estado. Foi o fim do modelo das reduções. O Estado bourbônico chamou a si o problema das fronteiras como um problema estritamente militar. Expulsos e concentrados nos Estados Pontifícios, na Germânia... os jesuítas justificavam seu trabalho com os índigenas, escrevendo e propagando pela Europa a utopia comunitária das reduções. Os revolucionários anti-burgueses Malby, Morelli, Merlier ouviram falar delas e nelas se inspira Babeuf para as propostas de reforma agrária (1794). Por via indireta, o que havia sido um modelo evangelizatório, terminou sendo uma utopia político-econômica que chegou a inspirar grande parte da humanidade. DUSSEL, 1982:21. SAINT-HILAIRE, 1974, pg. 31. O Tratado de Madri (13.1.1750) e sua execução foram o atestado final de crueldade dos Impérios Ibéricos em relação aos índios missioneiros. O artigo 15 estabelecia: “A Colônia do Sacramento se entregará por parte de Portugal, sem retirar dela mais que a artilharia, armas, pólvora e munições(...), os moradores poderão ficar livremente nela”. O artigo 16 dizia: “Nas povoações e aldeias que a Espanha cede a Portugal 151


Rio Grande do Sul Arquétipos Culturais e Desenvolvimento Social

são hoje ponto turístico afamado no mundo inteiro. “Patrimônio da humanidade”, estabeleceu a ONU. Das culturas indígenas e das Reduções e suas vicissitudes permanecem no horizonte arquetipal do RS valores e paradigmas que é preciso destacar: em primeiro lugar, o núcleo ético-mítico pré-semita dos guaranis, ao que parece, continua no horizonte arquetipal do RS como um conjunto de valores e padrões culturais que não deveriam ter sido abafados e negados. Assim o gosto pela festa, pela vida comunitária, com seus conselhos e organização; a perseguição incansável da utopia de uma terra sem males; a veracidade e a coragem como distintivos do homem e do humano; o gosto pelo canto e pela expressão artística; a integração com a totalidade do cosmos, do divino, do social e ecológico, numa perspectiva sagrada; a liberdade acima de tudo; o vestuário (cheripá, botas); a alimentação (de carne e chimarrão). As Reduções aprofundaram alguns desses valores: a criação do gado com toda a sua estrutura e significado (estâncias, invernadas, piquetes... com posteiros, capatazes, tropeiros, laçadores...com o rodeio (parar rodeio), com o aproveitamento da carne para além do couro e do sebo, com rebanhos de ovelhas, com a organização comunitária da terra, da produção e da distribuição. A religiosidade festiva, a música, os melodramas encenando lutas de sarracenos e cristãos, os anjos bons contra os anjos maus, as lendas como as do M’boitatá etc. na margem oriental do Uruguai, sairão os missionários com todos os móveis e efeitos, levando consigo os índios para aldeias em outras terras da Espanha (...), entregarão as povoações à coroa de Portugal com todas as casas, igrejas, edifícios e as propriedades e posse de terreno”. Era decretar o extermínio de toda a história missioneira. Juntaram-se os índios dos Sete Povos e os de Yapeju e Nossa Senhora da Conceição para resistir, comandados por Nicolau Nenguirú, ficando Sepé Tiarajú para retardar o avanço dos exércitos de Gomes Freire de Andrade (Portugal) e Andonaegue (Espanha). Sepé Tiarajú, usando a tática de guerrilhas e queima da pastagem enquanto retirava o gado, é morto em 7.2.1756 na Sanga da Bica junto à atual S. Gabriel. Para vingar a morte do herói o exército missioneiro enfrenta as tropas imperiais na Coxilha de Caiboaté em 10.2.1756. A batalha durou uma hora e 15 minutos. Os imperiais, em maioria absoluta de número “mataram nas coxilhas, nos sangões, dentro das trincheiras, nas árvores, a cavalo e a pé, por toda a parte e sem piedade. Terminou a batalha! Uma hora e 15 minutos durou aquela hecatombe desenfreada. Mais de 1.500 índios jaziam mortos estirados nas coxilhas e canhadas de Caiboaté. Deixaram 127 prisioneiros e tudo o mais que restou de um exército destroçado. Os europeus tiveram quatro mortos e 40 feridos” FIGUEIREDO, Osório Santana. A cruel batalha de Caiboaté. Zero Hora, 6.2.1999 pg. 7 do Caderno de Cultura. 152


O Rio Grande do Sul no Estado de Cristandade Colonial

Os Sete Povos floresceram em paz durante 50 anos. Depois, a luta encarniçada entre Portugal e Espanha pelas terras aquém e além do Meridiano de Tordesilhas centrou-se na terras do atual RS e quem mais a padeceu foram os índios missioneiros. Depois da fundação de Colônia do Sacramento (1680) por Portugal e sua destruição e reconstrução, depois da fundação de Montevideo (1726) pelos espanhóis; depois da fundação do Forte de Jesus-Maria e José no atual Rio Grande (1737) por Portugal, para, estrategicamente, conquistar o território em litígio, criando fortes (S. Miguel, Rio Grande, Rio Pardo) e distribuindo as terras em sesmarias e trazendo colonos das ilhas de Açores, depois disso veio o confronto final e o foco do litígio serão as terras missioneiras dos Sete Povos. Estes serão atacados pelos exércitos dos dois impérios (espanhol e português). A pretexto da demarcação das terras para esses impérios, desencadeia-se o que os donos do poder costumam denominar de “Guerra Guaranítica”. Depois de longos combates os Sete Povos foram reduzidos a ruínas, que a vegetação encobriu. Mais tarde, as pedras serviram para a reconstrução de cidades que hoje levam o nome glorioso de alguns dos Sete Povos. Mas desde o alicerce das casas e das cidades esses povos ainda clamam por justiça. A decadência das Missões (os Sete Povos) é atestada por inúmeras testemunhas como Saint-Hilaire. Na viagem que empreendeu pelo RS em 1820-1821 de Porto Alegre até S. José do Norte pelo litoral; visitando Rio Grande, Pelotas, Taim, Chuí até Montevideo e daí até Uruguaiana, S. Borja, Missões, regressando por Santa Maria, Cachoeira, Rio Pardo até Porto Alegre deixou-nos impressionantes e qualificados retratos da realidade econômico-político-social-cultural de nossa terra. Em Salto, à beira do rio Uruguai, descrevendo uma aldeia de guaranis fugitivos da perseguição de Entre-Rios diz: “Constam do mobiliário dessas choupanas: um lampião de barro, um jirau e uma rede de lã. Sob os galpões, pendem, por toda a parte, pedaços de carne; e deitados no chão, sobre esteiras de couros, uma dúzia de índios se amontoam. Reparo que a rede é tão apreciada por esses índios daqui, como pelos do norte do Rio de Janeiro. Equipamento, por excelência dos homens que gostam de passar a vida nas nuvens. Logo, não há nada que mais convenha aos índios. O balanço da rede confere-lhes uma

153


Rio Grande do Sul Arquétipos Culturais e Desenvolvimento Social

espécie de embriaguez deliciosa para homens cuja existência é totalmente vegetativa”.218

Os índios minuanos ou charruas, unidos há muito tempo, vivem, agora, divididos “em pequenos grupos , submetidos a diferentes chefes de poder muito limitado; em geral, se recusam terminantemente a lhes obedecer. Quando um está descontente com seu chefe, deixa-o, indo reunir-se a outro grupo. Os homens não fazem absolutamente nada, senão correr pelos campos, bolear os cervos, os avestruzes e os cavalos...as mulheres se encarregam de tudo o mais”219 “A embriaguez é sua paixão dominante. Prontificam-se a dar tudo por uma garrafa de aguardente, e até as crianças, todos tomam essa bebida em excesso”. “Vestem ponches, mas atualmente só o chiripá...Por armas, lanças compridas e um arco pequeno, levando às costas uma aljava chata e quase quadrada, onde metem suas flechas. Montam a cavalo, em pelo, não empregam freio e, para conduzí-lo, servem-se apenas de uma corda ou de uma tira de couro...Tentaram, várias vezes, reuní-los em aldeias, mas sempre inutilmente. ‘Se Deus quisesse que fôssemos espanhóis ou portugueses, dizem eles, não nos teria feito minuanos. Passamos nossa vida de modo mais agradável que vocês, pois vocês trabalham e nós não fazemos outra coisa senão comer, beber e dormir220 “Encontramos uma estância...e, como as construções se reduzissem a um par de galpões atulhados de índios e índias, resolvi andar mais longe.”221 Apesar de autores preconceituosos e racistas como Cezimbra Jaques, Moysés Vellinho, Jorge Salis Goulart terem afirmado que a identidade rio-grandense nada deve aos indígenas e especificamente ao guarani, porque eles eram selvagens, bárbaros, ingênuos, cruéis, atrasados e incultos e de terem sido “integrados” à cultura brancaeuropéia que lhes era superior e mais civilizada, tendo eles próprios (os guaranis) buscado essa integração como mais preciosa, abandonando, assim seu primitivismo atávico; no entanto, pode-se dizer que o guarani e os índios em geral contribuíram para formar a identidade do RS. E não apenas a identidade do gaúcho rio-grandense. Juntamente 218

S-H, 217.

219

S-H, 218.

220

S-H, 218.

221

S-H, 219.

154


O Rio Grande do Sul no Estado de Cristandade Colonial

com os negros, os europeus imigrantes, os índios marcaram indelevelmente a identidade do RS. “O tempo legou ao homem rio-grandense do século XX, elementos da cultura tribal guarani, filtrados no processo de missionarização empreendido pelo padre jesuíta nos séculos XVII e XVIII.”222 Não houve miscigenação do branco com o indígena “posto que ocorreu uma eliminação pura e simples da etnia indígena riograndense.”223 Ocorreu, isto sim, um processo de transformação cultural que, fundindo elementos da cultura tribal guarani com a cultura européia na experiência das Missões e Reduções, ocasionou pelo confronto de identidades do luso com os missioneiros, um arquétipo cultural da identidade rio-grandense. A identidade rio-grandense carrega em si a negação do guarani missioneiro como constitutiva de si mesma. A negação, porém, como ensina a dialética, não elimina o polo negado. Este permanece sempre na síntese que se lhe segue como aquele que foi negado. A experiência das Reduções e das Missões nasceu, cresceu e morreu dentro da crise de relacionamento das coroas espanhola e portuguesa e de seus agentes com os índios que os colonos queriam como escravos ou encomendados. As necessidades são traduzidas por desejos e estes pelo desejo mimético que nega a própria identidade e constitui a identidade como negação do outro e como oposição (guerra, luta) ao outro. Assim se constituiu a identidade missioneira no RS enquanto permanente crise e oposição e restou para a identidade riograndense o fato de o RS ter nascido da negação, da eliminação do missioneiro. Primeiro ele foi eliminado pelas armas e pela apropriação (alienação) de seu território, de seu espaço econômico, política, eliminando assim as condições para a sobrevivência de sua identidade cultural. Depois ele foi incluído na identidade rio-grandense na condição de negado (como primitivo, ingênuo, bárbaro), como peão de estância. Nessa condição ele foi “mitizado” como ingenuidade primitiva e impotente, perfeitamente “integrado” à civilização superior do homem branco. Se os guaranis-missioneiros experimentam a crise de sua identidade missioneira que havia sido forjada com seus elementos tribais e com o aporte de elementos culturais europeus (do Estado de 222

DOS SANTOS e BENTO FILHO, pg. 22.

223

DOS SANTOS e BENTO FILHO, pg. 21. 155


Rio Grande do Sul Arquétipos Culturais e Desenvolvimento Social

Cristandade) e essa crise se faz por confronto com o luso espelhado na “Guerra Guaranítica” em que a identidade missioneira é vencida para ser aniquilada, a identidade rio-grandense trará sempre em sua memória arquetipal o fato de ter nascido por aniquilação do outro. A identidade missioneira, marcada pelo espaço geográfico, a organização de seus povoados, de seu trabalho, de sua organização social, política,224 por sua criação artística, por sua expressão religiosa e cultural encontra, no confronto com o luso-brasileiro e com os outros índios não cristãos, sua definição. “A Igreja e suas majestosas torres, a praça central, a cruz: eis a imagem perfeita, muda e inalterada das missões, símbolos que lembram o espaço missioneiro. É a estética barroca, prevalecendo nos ínfimos rincões da América. Muito mais que isso, é o exemplo do trabalho diuturno do indígena que, com muito suor, ergueu, pedra sobre pedra, ostentando e reverenciando os preceitos da civilização cristã ocidental.”225 Obrigados a militarizar-se, ante a sanha dos mamelucos, e diante da ambígua política de demarcação de terras das coroas ibéricas, os missioneiros, ao perderem a Guerra Guaranítica e suas lideranças, perdendo suas terras, sua organização política, e seus protetores (os jesuíticas expulsos em 1759 do Brasil e 1767-8 da América espanhola) sofrem uma profunda crise de identidade. Obrigados a ceder o espaço para as sesmarias luso-brasileiras, os missioneiros “perdem o estímulo para produzir e reconstruir o povoado”... “escravizados no trabalho de encomienda”, com o mato tomando conta de suas Igrejas e suas tradições.226 Desintegrado social e desorganizado economicamente “sob a pilhagem, apropriação e dizimação da comunidade”, sem as condições objetivas de sobrevivência, enfrentando um processo de descristianização, o missioneiro, disperso como mão de obra do latifúndio de criação do gado, fica marginalizado como peão de estância.227 Em atividades subalternas, e sem garantias, o missioneiro, vivendo como imagem ambígua de si mesmo, como dominado, encontrará sua subsistência de excluído e marginalizado econômica, social, política e culturalmente na dispersão do latifúndio. 224

Os guaranis “não reconheciam outros chefes que não fossem os dos seus próprios grupos locais” Brochado, 1975: 80.

225

DOS SANTOS e BENTO FILHO, pg. 23.

226

Ibidem pg. 26.

227

Ibidem pg. 26.

156


O Rio Grande do Sul no Estado de Cristandade Colonial

A identidade guaranítica, que fora construída pelo confronto com o outro, como reconhecimento social da diferença, após a Guerra Guaranítica faz os missioneiros perderem suas antigas referências, sem alcançarem novas referências. “Aprendem a viver com uma imagem ambígua de si mesmos, integrando alguns valores do “ser índio” com valores vantajosos do “ ser como o branco.”228 O processo de perda da identidade étnica dos guaranis “não é um processo apenas passivo, onde o indígena sofreu a ação do branco dominador. Ao longo do processo, o índio procuraria alcançar uma identidade mais qualificada, a do branco, símbolo do poder.”229 E ninguém é escravo, diria Hegel, se não erigir dentro de si um trono para seu senhor. A construção de uma identidade de dominado, inferior, bárbaro, ingênuo foi o mecanismo de defesa encontrado pelo missioneiro agora incorporado ao latifúndio pecuarista como mão de obra em tarefas desqualificadas e sem garantia, tal como a tartaruga no fundo do poço que, cansada de levar o balde na cabeça, afunda na água mal a tampa do poço é aberta. O vazio de identidade missioneira foi, por interesse de Portugal, preenchido com os valores do Estado de Cristandade português, procurando arrasar tudo o que pudesse lembrar a autonomia das missões e sua vertente espanhola. Assim se cumpria uma integração do cone sul da América nos interesses das coroas ibéricas, calcada sobre a destruição da identidade missioneira. “No bojo da mentalidade rio-grandense, passou-se a qualificar de ingênuo, bárbaro, selvagem, anacrônico tudo aquilo que se identificasse com o índio, num momento em que ele está num vazio, com falta de direção, pois em “mboi-guaçu”, ele já não acredita nos valores cristãos, muito menos indígenas, pois ocorria uma ruptura com os valores da sociedade missioneira. Assim a realidade dos guaranis passou a ser pensada e vivida como algo profundamente distinto e distante, chegando em alguns casos, a ser considerada primitiva.”230 Os guaranis, que abandonavam seus povoados e sua identidade, deixaram, no entanto ali gravados seus bens culturais e seu legado,231 como um grito e um protesto dos quais a identidade rio-grandense não é capaz de se desfazer. 228

BRANDÃO 1986:140.

229

DOS SANTOS e BENTO FILHO, pg. 28.

230

DOS SANTOS e BENTO FILHO, pg. 28.

231

Ibidem pg. 29. 157


Rio Grande do Sul Arquétipos Culturais e Desenvolvimento Social

Ou, como diria Darcy Ribeiro, “dos índios nós herdamos a jovialidade e a alegria de viver” apesar de tudo. E. Dussel destaca a ambígua função das reduções que, na perspectiva da Cristandade Colonial, eram utilizadas com finalidades religiosas de dilatação do cristianismo e com finalidades de controle político e expanção de fronteiras coloniais dos Habsburgos: As reduções foram, ao mesmo tempo, um modoelo de evangelização, usado por algumas ordens religiosas, mas, por outro lado, constituiram um modo pelo qual os Habsburgos puderam controlar politicamente certas regiões de fronteira onde seu poder não tinha mediações para exercer a hegemonia.232

Segundo E. Dussel, as reduções foram um sistema de civilização que permitiu que culturas intermediárias indígenas se tornassem culturas de agricultura sedentária. Deixa claro também a perspectiva política dos reis e administradores “ilustres”: A irrupção dos Bourbons na Espanha, e de Pombal em Portugal, já começa a esboçar uma estruturação diferente do Estado, e por isso a hegemonia de fronteira não repousará nas ordens religiosas mas nos corpos militares profissionais. A burguesia dependente do capitalismo industrial nascente, encontrará nas reduções em mãos da Igreja, um poder paralelo que procurará destruir de todas as formas. Será a decadência do modelo missional das reduções [...]233

As Reduções situam-se no meio de dois modelos extremos de evangelização. Por um lado estavam o modelo de “tábula rasa” no qual o índio não tinha nenhuma valor recuperável para a evangelização. Por isso, como uma criança, devia aprender tudo, desde zero. A cultura indígena não era própria para a evangelização e os costumes, a língua, a cultura, a religião até poderiam ser estudados para serem evitados e eliminados. Usando ou não de meios violentos, esse modelo desprezava radicalmente “o trabalho histórico que, durante séculos, milhões de seres humanos tinham produzido em nosso continente. Uma soberba 232

233

DUSSEL, E. et. al. Das Rduções Latino-Americanas às lutas indígenas atuais. IX Simpósio Latino-Americano da CEHILA, Manaus, 29 de julho a 1ºde agosto de 1981. São Paulo: Paulinas, 1982. Pg. 10. DUSSEL, 1982: 10

158


O Rio Grande do Sul no Estado de Cristandade Colonial

radical, então, aniquilava o que havia sido feito antes como se fosse algo bestial, não-humano, inútil. Este foi, de fato, o modelo mais comum.”234 Por outro lado estaria o modelo de uma igreja popular à semelhança das comunidades primitivas que tinham: “comunidade de bens, trabalhos, serviços, em igualdade de dignidade, sem clericalismos nem leigos passivamente observadores.”235 Aqui a comunhão era profunda, a participação era igualitária, o compromisso mútuo era consciente. Cada um tinha presentes os motivos de sua fé, e interpretava as escrituras e as tradições. Essas comunidades proféticas, monoteístas viviam da fé, da caridade profunda e da liturgia.. As reduções estiveram entre os dois extremos, nem evangelização de “tábula rasa” nem igreja popular dos primeiros tempos do cristianismo. Foi um modelo viável dentro de um Estado Colonial de Cristandade, onde o Padroado deixava poucas fissuras. Nem uma evangelização com responsabilidade total, adulta para os índios, nem o arrasamento de suas culturas. No entanto, porque necessárias para o próprio Padroado, as reduções conseguiram um espaço de liberdade e participação como nenhum outro modelo de evangelização conseguiu. Tudo isso deu ao indígena uma participação muito maior do que qualquer outro modelo de evangelização. Nas reduções do Paraguai eles escolhiam seus prefeitos, suas diversas autoridades, formavam seus mestres, organizavam a agricultura e a criação de gado, tinham noções avançadas de táticas e estratégias militares. Na realidade tinham alcançado o máximo de poder possível dentro de um férreo sistema de controle colonial. Era um método integral, na medida em que assumia a vida na totalidade: o trabalho manual, a vida da família, a educação, a vida política, a vida de lazer, a defesa militar.236

A idéia de criar Reduções já havia nascido com Bartolomeu de las Casas em 1520 e com o Tata Vasco de Quiroga quando pensavam erigir aldeias-hospitais para os índios. Os franciscanos e os jesuítas levaram-na adiante. 234

DUSSEL, 1982: 13

235

DUSSEL, 1982: 13

236

DUSSEL, 1982: 13 159


Rio Grande do Sul Arquétipos Culturais e Desenvolvimento Social

Sobre a relevância do projeto das Reduções, diz Darcy Ribeiro: “Através dos dois primeiros séculos de contato com os europeus, estes índios encontraram guarida e alguma proteção contra os colonos nas missões religiosas, principalmente jesuíticas.”237 Era necessário homogeneizar as culturas indígenas para facilitar a evangelização. E assim cada ordem religiosa dava a inculturação um enfoque diverso. Carmelitas e mercedários do Maranhão permitiam maior controle por parte do Estado e como que estavam a seu serviço. Às vezes participavam até da corrupção colonial. Por sua vez, os jesuítas entenderam o índio “reduzido” como um índio livre em relação ao índio “encomendado”. Neste caso a redução não era instrumento de controle mas uma situação de civilização. O índio reduzido tinha a posse da “cunha”, machado de ferro que permitia ao indigena plantador passar à idade do ferro, à agricultura, à sociedade urbana: um salto de civilização gigantesco.238 Uma revolução de símbolos e significações. Beneficiados por estarem na periferia, longe do centro de poder espanhol ou português, e ao estilo monástico, os jesuítas tentaram, na comunidade de bens, orações, cântico das horas, disciplina, assembléias, criar um modelo de “cristianismo feliz”. f) Arquétipos Que arquétipos resultaram da experiência missioneira para a identidade cultural do RS? Em primeiro lugar, com a experiência missioneira, o gaúcho aprendeu que é possível uma sociedade comunitária, com a partilha dos bens, serviços e saberes, com a expressão festiva de dança, teatro e de música da alegria de viver e de conviver. Que nem todos são escravocratas, usurpadores, traidores e genocidas. Que é possível adequar o modo de vida indígena e um modo organizado, como inspira o cristianismo. Que é possível ser livre e altaneiro sem necessitar refugiar-se no desepero da faca e da adaga. Aprendeu também que essa experiência de comunidade fraterna é perigosa, precária, sem que alguém os socorresse no momento da hecatombe. Foram seus próprios “amigos” que os assassinaram.

237

RIBEIRO, Darcy. 1979: 131.

238

DUSSEL, 1982:18

160


O Rio Grande do Sul no Estado de Cristandade Colonial

Como diria o chefe charrua a Frutuoso Rivera: veja Fructos, teus soldados estão matando os amigos! E por outro lado, o europeu descobriu a possibilidade mais humana, mais respeitosa e até amorosa de evangelizar. Descobriu no índio a alegria de viver. E por outro lado ainda, descobriu que o modelo europeu é visceralmente assassino, aniquilador, genocida, centrado na propriedade e no Estado de Cristandade e que não permite, sob pena de se extinguir, que haja verdadeiramente fraternidade. Que o Estado de Cristandade pouco tem a ver com o cristianismo. Que a alegria dos missioneiros que cantam sua vida, seu trabalho, sua religião, seu chimarrão...faz mal ao coração do modelo europeu. E que uma comunidade real, um “socialismo” efetivo só pode existir quando a propriedade não for o critério definidor da economia, da política, da cultura e da religião. As missões e as reduções era um mau exemplo: era preciso extirpá-lo para que a autoridade imperial, mercantil, salvacionista imperasse. Assim, o missioneiro que, não sendo apenas índio em sua cultura e sociedade, nem podendo ser missioneiro como aprendeu a ser e a crescer, torna-se, negado e proibido, um fator identitário do gaúcho.239 A identidade do gaúcho traz em seu âmago a necessidade e 239

Sobre o gaúcho o viajante Nicolau Dreys disse: “ Os gaúchos, nômades, estão em todas as parte onde há estâncias ou charqueadas, em que servem de peões. Parecem pertencer a uma sociedade agine, isto é, sem mulheres, tais como os antigos tártaros. Pelo menos, aparecem geralmente sem mulheres e manifestam mesmo pouca atração para elas (felizmente para seus vizinhos). Formaram-se originariamente do contato da raça branca com os indígenas. Sem chefes, sem leis, sem polícia, não têm da moral social senão as idéias vulgares, e sobretudo uma espécie de probidade condicional que os leva a respeitar a propriedade de quem lhes faz benefício ou de quem os emprega ou neles deposita a confiança. Convencido de que não lhe faltará alimentos, enquanto o laço não lhe faltar, o gaúcho veste-se com o estritamente necessário. Com o chiripá – pedaço de baeta amarrado em redor do corpo, da cintura para baixo. Por cima do chiripá, o cingidor – espécie de avental de couro cru destinado a receber a fricção do laço quando o animal faz força sobre ele. Uma camisa, se a tem. Uma jaqueta sem mangas. Um par de ceroulas com franjas compridas nas extremidades inferiores, e às vezes um par de calças por cima. Um lenço, quase sempre amarrado à cabeça. Um chapéu roto. Raras vezes um poncho completo; em lugar desse, um pedaço de baeta vermelho. O gaúcho parece apreciar o dinheiro, menos para suprir suas precisões, que são poucas, do que para satisfazer suas paixões ou alguns gostos instantâneos. Ele quer dinheiro, principalmente, para jogar ou para adquirir a posse de qualquer brinquedo, que, como nas crianças, excitou sua cobiça passageira. Por isso, enquanto tem dinheiro, ele pouco trabalha. O tempo passa-se em jogar, tocar ou escutar uma guitarra nalguma pulperia; e às vezes, porém com raridade, dançar uma espécie de 161


Rio Grande do Sul Arquétipos Culturais e Desenvolvimento Social

o fato de negar o missioneio. Ser gaúcho é e foi, proibir ao missioneiro que seja missioneiro. Já não sendo índio e, agora, proibido de ser missioneiro ele é o grito e o clamor do excluído que clama por justiça. Fazer de conta que nunca houve reduções, que nossos missioneiros são coisa do passado, que é preciso olhar para frente e construir uma sociedade solidária, tornou-se impossível para o RS, sem antes recuperar, resgatar, redimir a memória e pedir perdão ao excluído que carregamos em nossa identidade. Por outro lado, o arquétipo mais importante que os missioneiros nos legaram e que marca indelevelmente o RS é o da criação do gado e o do chimarrão. A estância, a invernada, o rodeio, o apartar o gado, a tropeada, a capela, a carne como alimento, o couro, o sebo, o churrasco, o vestuário que até hoje é lendário no RS. O familismo, o amor e o carinho pelos filhos.

3. A construção da Sociedade e do Estado no RS

3.1 A conquista do território: estratégias, guerras e tratados O território do atual Rio Grande do Sul, não teve significado maior para os colonizadores portugueses e espanhóis, a não ser a partir de 1680 quando o gado e o ouro se fizeram substitutos do açúcar português. Gonzalo Coelho teria sido o primeiro explorador da costa riograndense, em 1503, seguido de D. Nuno Manuel (1513), de João Dias de Solis (1516), português a serviço da Espanha, morto pelos índios charruas à entrada do estuário do Prata. A seguir, Cristóvão Jaques (1521) e Martin Afonso de Souza (1532) cujo irmão, Pero Lopes de Souza, penetrou no sangradouro da Lagoa dos Patos com uma nau, e chula grave, que vimos praticar por alguns deles. Quanto ao mais, pouca propensão parecem tem para os licores espirituosos, e a embriaguês é coisa quase nunca aparecida entre esses homens cujas disposições taciturnas e apáticas pouco se conciliam com a loquacidade e os movimentos desordenados da bebedice” in BARBOSA LESSA, Rio Grande do Sul, Prazer em Conhecê-lo: 209-210. 162


O Rio Grande do Sul no Estado de Cristandade Colonial

denominou o sangradouro de Rio de São Pedro.240 Antes de 1550 mercadores vicentinos penetravam pela lagoa dos Patos e pelo rio Guaíba e seus afluentes, comerciando com os aborígenes. Em 1550 padre Leonardo Nunes tentava a primeira evangelização portuguesa dos índios do RS, e cujas aldeias são destruídas pelos mamelucos paulistas à procura de índios para vender como escravos. Perdido o mercado do açucar para os holandeses que, combatendo os espanhóis, invadiram o nordeste do Brasil (1620 -1654) e ao saírem já não beneficiam o açucar português nem lhe oferecem sua exclusiva rede de comércio na Europa, Portugal busca no ouro e pedras preciosas a alternativa de exploração econômica do Brasil. “A descoberta de ouro em Curitiba e Paranaguá incentivou o plano de alargar as fronteiras do reino de Portugal até o rio da Prata241 ...D. Manuel Lobo aportou em 1o de janeiro de 1680 à península junto à ilha de S. Gabriel no rio da Prata, com 5 veleiros, desembarcando 200 homens, 60 negros, 2 jesuítas, 8 índias e uma mulher branca, para fundar a Colônia do Santíssimo Sacramento, com os objetivos de estabelecer um forte militar no rio da Prata e criar um porto livre de comércio242 ” Colônia, atacada pelos espanhóis de Buenos Aires (Antonio de Vera Mujica) e por 3.000 índios guaranis revoltados contra os massacres mamelucos, em agosto de 1680 é, depois (1683) devolvida a Portugal pelo tratado de Lisboa, uma vez que a Espanha estava em guerra com a Holanda. Para defender e apoiar Colônia, Domingos de Brito Peixoto funda em 1684 (depois de tentativas frustradas em 1676 e 1682) Laguna. Esta cresceu em função da pesca abundante e se tornou manancial de pioneiros que povoaram a terra rio-grandense, tanto pelo litoral como pela serra. Durante 20 anos Colônia prospera em agricultura, pecuária e como foco de intenso contrabando de couro, sebo e prata que provinha de Potosi. Atacada pelos espanhóis em guerra contra Portugal em 1704 240 241

242

BARBOSA, 1983, pg. 13-14. “Já em 1671, a câmara do Rio de Janeiro dirigia uma representação à metrópole, no sentido de fixar-se no Rio da Prata o limite meridional do Brasil, como raia natural que era da América Portuguesa e como depois se confirmou eclesiasticamente com a bula pontifícia de Inocêncio XI que, ao criar a diocese do Rio de Janeiro em 1678, assinalou este limite”BARBOSA, 1983, pg. 24. FLORES, 1986, pg. 22-23. 163


Rio Grande do Sul Arquétipos Culturais e Desenvolvimento Social

é abandonada por Sebastião da Veiga Cabral em 1705. Em 1724 iniciase a construção do presídio de Montevideo. Pelo tratado de Utrecht (1713) Colônia é devolvida aos portugueses e repovoada. Em 1734 é novamente atacada por Buenos Aires (D. Miguel de Salcedo) e resiste dois anos quando recebe socorro de Silva Paes que vinha do Rio de Janeiro com 7 navios de guerra. Para socorrer Colônia, que, a partir de 1726 tem Montevideo espanhol, no meio do caminho, Portugal funda o presídio de Jesus Maria e José em Rio Grande (1737). Pelo tratado de Madrid (1750) Colônia passa para a Espanha em troca dos Sete Povos das Missões. Pelo tratado de Paris (1763) Colônia retorna ao domínio português. Ceballos (de Buenos Aires) ataca e ocupa Colônia em 1777. Neste ano, pelo tratado de Santo Ildefonso Colônia passou definitivamente à Espanha.243 Definidos por Portugal os limites meridionais do Brasil como sendo o Rio da Prata, e fixadas Colônia e Laguna, impunha-se ocupar o imenso território que as separava. Muitos eram os pretendentes dessas terras como Salvador Correia de Sá e Benevides (1640, 1646, 1658), seu filho Martin Correia de Sá – Visconde de Asseca - , Manoel Jordão da Silva (1679), o capitão Francisco Ribeiro (1704), a câmara de vereadores de S. Francisco (1714), o conselheiro Antonio Rodrigues da Costa (1715), o padre Diogo Soares (1731) e outros. O governo português resolveu, porém, povoar o território através de comandâncias e sesmarias.244 Dentre os mamelucos, preadores de índios e comerciantes, alguns estabeleceram estâncias isoladas e por conta própria desde o final do século XVII, utilizando para isso o gado das vacarias e estâncias jesuíticas. Em 1715 o governador de S. Paulo, Francisco de Távora, ordenara ao Capitão-mor da vila de Laguna, Francisco de Brito Peixoto, que “fosse examinar e abrir caminho para o Rio Grande de Sam Pedro” , o que ele não fez por estar doente. Seu genro João de Magalhães, virá em novembro de 1725 e, com 31 homens iniciou a fundação da primeira povoação do RS, na margem norte do canal de Rio Grande, onde hoje está S. José do Norte. Seus primeiros moradores foram: Estácio Pires, Inácio Duarte, Custódio Pedroso, Inácio Valhocari, Aniseto de Brito, José Varise, Francisco de Medina e os índios Gaspar e Machado.245 243

BARBOSA, 1983, pg. 25.

244

FLORES, 1986, pg. 21.

164


O Rio Grande do Sul no Estado de Cristandade Colonial

Ali João de Magalhães instalou o primeiro estabelecimento pecuário do norte da Barra do Rio Grande.246 Depois da expedição de João Magalhães que se comprometia a trazer gado de Colônia, Maldonado e Montevidéo, outros lagunenses estabeleceram estâncias nos campos de Viamão que abrangia toda a região geográfica entre o Atlântico, o Guaíba, Mampituba, Caí, Sinos e Antas, com as lagoas do nordeste, até parte final do curso do Jacuí,247 especialmente em Tramandaí, Capivari, Viamão e Gravataí. Dante de Laytano destaca 5 árvores genealógicas de lagunistas que, quase todos vereadores em Laguna no ano de 1723, se fizeram pioneiros povoadores e fazendeiros no RS: Os Brito Peixoto, os Pinto Bandeira, os Prates, os Braz Lopes e os Souza Brasil. Diz ainda que “durante largo tempo foi o Continente um desdobramento da vila catarinense” citando Aurélio Porto.248 É por isso que jocosamente os lagunenses dizem: “rio-grandense que chega é lagunense que volta.”249 Na verdade, afora os primeiros e isolados estancieiros mamelucos, os primeiros estancieiros do Rio Grande procediam de Laguna e simultaneamente da Colônia do Sacramento (fugivos da intermitentes guerras, em busca de um refúgio seguro que as vastas terras do RS ofereciam) e, mais tarde, dos colonos açorianos que, de agricultores, tornaram-se fazendeiros criadores.250 Somaram-se a estes alguns militares transferidos de outras capitanias como as do Rio de Janeiro, Minas, Bahia, São Paulo... E “a estância é a célula matriz do Rio Grande” dirá João Borges Fortes.251 3.2 De Comandância a Capitania Laguna esvazia-se em direção ao Rio Grande. Levas de sertanistas provindos do Rio de Janeiro, Santos, Colônia chegam. Ao longo dos antigos roteiros surgem currais e pousos. “Entretanto, 245

BARBOSA, 1983, pg. 26 e 27.

246

BARBOSA, 1983, pg. 27.

247

LAYTANO, 1983, pg. 23.

248

LAYTANO, 1983, pg. 29.

249

BARBOSA, 1983, pg. 23

250

LAYTANO, 1983, pg. 28.

251

LAYTANO, 1983, pg. 9. 165


Rio Grande do Sul Arquétipos Culturais e Desenvolvimento Social

tornava-se necessário tomar posse oficial da terra, levantar uma fortaleza, fundar uma cidade como sede governamental, para neutralizar não apenas as pretensões da coroa de Espanha mas também de outras potências...como holandeses e de particulares como o judeu português Antonio da Costa”.252 A fundação do forte Jesus Maria José de Rio Grande era urgente e indispensável. O Rio Grande do Sul passará por várias denominações: desde 1562 o litoral do RS era registrado como da Capitania d’El Rei Nosso Senhor253 ou de Continente d’El Rey.254 A partir de 19/2/1737 será chamado Comandância do Presídio do Rio Grande de S. Pedro. Será Capitania de S. Pedro do Rio Grande do Sul a partir de 27/4/1809. Será Província de Rio Grande de S. Pedro do Sul a partir da Constituição Imperial de 1824. Estado do Rio Grande do Sul a partir da República 15/11/1889.255 Tendo a coroa comprado a sub-capitania de Paranaguá por 40 mil cruzados, depois de tomar Santo Amaro e quase à força as Donatárias de S. Vicente em 1709, cria a Capitania Geral de S. Paulo, autônoma da do Rio de Janeiro e com jurisdição sobre todas as paragens

252

BARBOSA, 1983, pg. 30 “O cristão novo português João da Costa, com casa de importação e exportação em Londres, viajou a Angola para inspecionar e receber as rendas do tráfico de escravos para o Brasil. Quando retornava, um pirata partiu em seu encalço. João da Costa rumou direto ao Brasil, entrando na perigosa barra do Rio Grande. O navio pirata, por ser de maior calado ficou ao largo. João da Costa percorreu a laguna dos Patos, fazendo seu levantamento cartográfico. Ao retornar a Londres, organizou uma companhia de colonização, para judeus perseguidos, na Barra do Rio Grande, contando com apoio de acionistas e do Parlamento ingleses. Mas quando pretendeu navios de guerra para proteger os colonos judeus, o governo inglês não aceitou a proposta, para evitar a guerra com seu aliado Portugal. João da Costa, com o capital dos acionistas ingleses, partiu para Moscou, onde organizou nova Companhia de Colonização, para judeus perseguidos, junto ao canal de Rio Grande, entre terras de Espanha e de Portugal, ótimo local para o comércio. Costa solicitou o apoio da marinha russa, que se negou porque estava em conquista territorial junto ao Mar Negro e os russos não queriam abrir outra frente de guerra na Europa. O governo inglês denunciou os planos de Costa a Portugal. João da Costa retornou a Londres, onde reuniu novos sócios e começou a aparelhar navios para transportar seus colonos, que terminaram desembarcando na América do Norte porque os lusos ocuparam o canal de Rio Grande.” Flores, 1986, pg. 28-29.

253

FLORES, 1986, pg. 21

254

LAYTANO, 1983, pg. 28.

255

ZANOTELLI, 1997, pg. 114.

166


O Rio Grande do Sul no Estado de Cristandade Colonial

do Sul.256 Da Capitania de S. Paulo desmembrar-se-á a de Minas Gerais, ficando ambas compreendidas na Repartição Sul com comando no Rio de Janeiro. As terras do RS, por isso, passaram para a jurisdição da Capitania de S. Paulo em 1710. Já Cristóvão Pereira dizia que a Barra do Rio Grande “é a única parte que se pode povoar e, ainda que tenha bastante largura, não é dificultoso o passar nela animais em razão de que, com maré vazia, tem bancos em que descansam, e tem já passado muitos com felicidade, conduzidos pelos mercadores de Laguna, e eu passei alguns em minha companhia.”257 Recuperada Colônia em 1716 e distribuídas as terras nos arredores a várias famílias de colonos açorianos que para lá foram com seus filhos, tradições e sementes de trigo, integrando-se com elas alguns índios nômades e alguns gaudérios, para ajudar na eventualidade; e tendo sido consolidado definitivamente para os espanhóis o forte de Montevidéo via Buenos Aires, era urgente a fundação de Rio Grande. O governador do Rio de Janeiro Gomes Freire de Andrada incumbe a José da Silva Pais socorrer Colônia sitiada, desmontar Montevidéo e erguer uma nova guarnição entre Laguna e Colônia. Este, depois de livrar Colônia e, não tendo o mesmo sucesso em Montevidéo, tenta fundar a guarnição em Maldonado. Desiste e retorna ao Rio de S. Pedro e, em 19 de fevereiro de 1737, levanta o fortim Jesus-Maria e José com uma estrutura militar de cerca de 200 homens. Aguardava-o aí Cristóvão Pereira com gado reunido para abastecer a tropa,258 com 1.500 cavalos e 160 homens, tendo levantado já alguns fortins ou paliçadas para a defesa.259 Meia légua distante do Forte, Silva Pais funda a vila de Rio Grande, com pequeno comércio, moradia de militares, com a Alfândega e o tesoureiro real para cobrar o quinto sobre o gado a ser exportado, e tudo à sombra da Igreja de S. Pedro.260 O resultado do imposto pago 256

BARBOSA LESSA, 1984, pg. 38.

257

BARBOSA LESSA, 1984, pg. 39.

258

259 260

Cristóvão Pereira havia recebido ordem de Silva Pais, desde o Rio de Janeiro para que acompanhasse por terra a Flotilha que ia a Colônia e que a aguardasse com suprimento de gado, no canal de Rio Grande BARBOSA, 1983, pg.32. Como a maioria das cidades do RS, Rio Grande cresceu “à sombra da Igreja, aos pés dos templos, ouvindo as vozes dos sinos” LAYTANO, 1983, pg. 31. 167


Rio Grande do Sul Arquétipos Culturais e Desenvolvimento Social

em espécie (gado reúno) era marcado com uma incisão na orelha e recolhido à fazenda real do Bojuru, ao norte de São josé do Norte sob a responsabilidade de Cosme da Silveira. A Comandância Militar de S. Pedro do Rio Grande, criada, pois, para auxiliar na defesa de Colônia, povoar as terras do RS e regular as relações entre os diferentes elementos povoadores “era constituída pela: a) Vila de Rio Grande, b) presídios dos fortes de Jesus-Maria e José, de Santana e de S. Miguel, c) guardas distribuidas nos passos, d) estâncias particulares, e) estância real do Bojuru e f) datas”261 . Já no dia 2.3.1737, concluída a construção do forte Jesus-Maria e José, o padre Jerônimo Pereira celebrava a primeira missa na capela de Santa Ana a primeira padroeira do Rio Grande do Sul, que, “em 25.8.1757, cedia lugar a S. Pedro.”262 Com rapidez e decisão, Silva Pais, em menos de um ano, estruturou a defesa da Comandância e estimula o povoamento dessas terras.263 Após, enquanto governador substituto do Rio de Janeiro ou governador da ilha de Santa Catarina à qual estava vinculado o RS, continuaria a incentivar a defesa e a vinda de colonos para essa região meridional.264 Difícil era, conter as deserções quando o tratamento desumano aos soldados era acompanhado do atraso dos parcos soldos.265 261

262

FLORES, 1986, pg. 29. Nascem assim também os fortes de S. Miguel e depois de Santa Teresa para defender a passagem entre a parte meridional da Lagoa Mirim e o mar, o Regimento de Dragões de Rio Pardo. BARBOSA, 1983, pg. 32.

263

Contra as ações de Silva Pais em todo o empreendimento desde Colônia a Rio Grande protesta o governo de Buenos Aires “com apoio em testemunhas fidedignas, não apenas de ter ocupado dito porto (Rio Grande), com sítios de Curral Alto e a Serra de São Miguel, como de ter atraído ao povoado, por esse meio e diligência, todo o gado vacum e cavalar daquelas cercanias, isto é, mais de 180.000 vacas e de 120 a 140.000 cavalos. O mais grave é que, mesmo depois de publicada a cessação das hostilidades, tinha mandado edificar uma fortaleza em pentágono regular com vinte e oito canhões montados, além de guarnecer a courela entre a Lagoa Mirim e o mar, com o que podia impedir a passagem dos espanhóis, e de fazer tratos de amizade com os índios Minuanos” HOLANDA, I, pg. 358.

264

VELLINHO, Moisés, do livro Fronteira, pg. 59-61. In BARBOSA, 1984, pg. 3334.

265

“Os soldados permaneciam 6 meses de serviço, sem folgas, comiam abóbora com farinha, e pelas mínimas faltas eram castigados com tratos de polé ou roda de pau.

168


O Rio Grande do Sul no Estado de Cristandade Colonial

A colonização açoriana. Não bastavam os fortes militares para garantir a Portugal o domínio do território. “A missão de ocupar, guardar, defender e aumentar o patrimônio territorial e moral da pátria, era uma missão de tal maneira transcendente, que os índios, animalizados, e os negros escravos, meros instrumentos humanos de trabalho, seriam incapazes de realizar. Os novos colonizadores precisavam receber o legado de conservar ilesos os ideais portugueses.”266 Quem poderia realizar essa tarefa? Na perspectiva do governador militar de Santa Catarina, José da Silva Pais, ninguém melhor do que colonos das ilhas dos Açores. A experiência da Colônia do Sacramento de 1716 com colonos açorianos mostrou-se exitosa, sem falar da experiência com 200 famílias açorianas levadas ao Pará em 1617 e outras tantas em 1666.267 Além disso já residiam em Rio Grande alguns militares e civis provindos dos Açores. Em Viamão e Rio Pardo vários deles já eram estancieiros. O arquipélago dos Açores ( 9 ilhas) foi descoberto (1427) e colonizado pela elite portuguesa a partir de 1439.268 “Em 1620 as ilhas estavam superpovodadas, e a população vivia em penúria, enquanto o Brasil continuava a ser um imenso deserto humano.”269 Se tivessem alguma montaria, qualquer oficial confiscava o animal e os arreios. Para o cúmulo de seus sofrimentos, não recebiam os soldos. Em 1742, os soldados do presídio do Rio Grande se revoltaram e prenderam os oficiais, mas continuaram prestando os serviços de guarda. O vice-rei enviou uma comissão que constatou o tratamento desumano dado pelos oficiais prepotentes. Transferiram os oficiais e perdoaram os soldados que receberam os direitos de irem para o lar depois do expediente diário, Ter montarias e pescar nas horas de folga para auxiliar no sustento da família. A partir dessas reformas, pararam as deserções.” FLORES, 1986 pg. 31. 266

BORGES FORTES, in BARBOSA LESSA, 1984, pg,. 55.

267

FARIAS, Vilson, pg. 238/

268

“Os elementos mais excelentes da península pertencentes à nobreza portuguesa. Dotado de natural vivacidade, trabalhador, liberal, hospitaleiro, generoso, alegre, expansivo, morigerado, caritativo, vigoroso e sóbrio, inimigo da vida militar” SOUZA DOCCA in BARBOSA, 1983, pg. 38.

269

BARBOSA, 1983, pg. 37. Motivava a imigração açoriana : “necessidade de sobrevivência em condições menos adversas; espírito de aventura; esperança de constituir riquezas; preocupação com o futuro dos filhos; a imensa fé que os movia; o desconhecimento da magnitude da viagem; a determinação de vencer os possíveis obstáculos” FARIAS, Vilson, pg. 300-301. O Terremoto de 1617 havia sido trágico para a economia, para a vida e sobrevivência nos Açores. “A partir da vinda dos casais para o Rio Grande (1751-1752) é que se pode dizer que iniciou a organização da sociedade do Rio Grande. Foi a 13 de abril de 1751, 169


Rio Grande do Sul Arquétipos Culturais e Desenvolvimento Social

A pedido de Silva Pais, (agosto 1742), em 9 de agosto de 1747 o rei D. João V assinou autorização para que famílias de agricultores se transferissem para o extremo meridional do Brasil. O pregão do mesmo dizia anunciava incentivos para isso como transporte, concessão de datas, ajuda de custo, ferramentas e alimentos, “regalias que...terminavam depois se esfumando no balaio das desilusões.”270 Assim, num crescendo, o governador de Santa Catarina receberá em 1748 um primeiro grupo de casais, em 1749 já virão mais de 100 famílias e em 1750 serão 300 famílias. Em 1752 um grande número271 dessas famílias chega a Rio Grande, Viamão, Rio Pardo, Santo Amaro, Taquari, Triunfo, Conceição do Arroio, Estreito e Mostardas e outros lugares às margens da Lagoa dos Patos e rios Jacuí e Taquari. O destino inicial para esses casais não era esse e sim as Missões.272 que o governador de Santa Catarina Coronel Manuel Escudero, mandou embarcar à força, na falta de voluntários, certo número de colonos já estabelecidos no Desterro (Florianópolis) SC, aproveitando a passagem por Santa Catarina de três pequenas embarcações que se dirigiam ao Rio Grande transportando farinha. Calcula-se que tenham desembarcado em Rio Grande, vindos de Santa Catarina, mais de 1.000 pessoas (cerca de 1.400). (...) Os casais açorianos enviados por Manuel Escudero Ferreira de Souza, foram colocados provisoriamente nas casas dos que viviam no Rio Grande, no presídio Jesus, Maria e José; outros alojaram-se nas terras circunvizinhas, nas ilhas do Martim e Torotama, principalmente o chamado Povo Novo; os doentes foram recolhidos ao hospital; dessa maneira ficaram até a chegada do Gen. Gomes Freire de Andrade” ROCHA, Santa Inéze Domingues. Anais do 4º Congresso das Comunidades Açorianas...in FARIAS, Vilson, pg. 240. Os cerca de 400 casais dispersos que foram, em seguida, inclusive pela invasão castelhana, deram origem a núcleos urbanos como Mostardas, Estreito, S. José do Norte, Torres, Gravataí, Taquari, Santo Amaro, Santo Antonio da Patrulha, Cachoeira, Conceição do Arroio, Triunfo, Rio Pardo, Viamão, Porto Alegre (Porto dos Casais) e ainda S. Lourenço do Sul (Boqueirão), Canguçu, Pinheiro Machado, Piratini, Arroio Grande, Bagé, Herval e Jaguarão. 270

BARBOSA LESSA, 1984, pg. 55-56.

271

Segundo Fidelis Dalcin Barbosa, (1983, pg. 38) citando Henrique Oscar Wiederpahn, o número de 4.000 casais de açorarianos que teriam vindo ao RS, inclusive segundo documentos oficiais, não pode ser verdadeiro. Com efeito, em 1780 havia aqui 10.503 açorianos, constituindo 55% da população do território rio-grandense.

“Destinados inicialmente a povoarem as Missões Orientais, cuja conquista, entretanto não se efetuasse, os colonizadores açorianos inauguraram na região da atual grande Porto Alegre e vizinhanças, um sistema revolucionário no Brasil, com pequenas propriedades, modificando-se, dessa maneira, as doações por sesmarias. O governo dava a cada casal açoriano ¼ de légua em quadrado, duas vacas, praças e a construção

272

170


O Rio Grande do Sul no Estado de Cristandade Colonial

Os “casais de número” açorianos, dedicavam-se à agricultura, especialmente ao trigo para obter excedente comerciável, e ao milho, o feijão, parreira, oliveira, temperos, animais domésticos como galinhas e leitões e produtos laticínios para consumo familiar. A peste da ferrugem que se abateu sobre o trigo, o calote do governo que requisitava o trigo e não pagava, liquidaram com a cultura do cereal. Os colonos, passaram para a pecuária de latifúndio, obtendo com facilidade grandes estâncias do governo.273 Ao longo do Jacuí, ao lado dos grandes estancieiros, nascem as primeiras charqueadas que, depois, aparecerão perto de Porto Alegre e predominarão em Pelotas. Assim, enquanto o trigo foi cultivado na região entre os rios Jacuí e Camaquã, o vale do Taquari produzia o bom mel, a laranja, a tangerina, e ao longo do rio Jacuí e em Rio Grande a videira com o vinho “jurupiga”. A presença da mulher açoriana,274 socialmente integrada traz ao RS outra fisionomia de família, de sociedade e especialmente de culinária. Agora, além do churrasco, haverá “a cheirosa comida de panela...como novo elemento de atração para que o andejo resolva fincar pé em uma casa. Da adaptação da gastronomia açoriana ou tramontana para as condições locais, surgem as primícias da culinária jacuiense. Manteiga e queijo. Pão de milho, beiju, broa de polvilho, bolinho de coalhada. Milho verde, quirera, paçoca, humita de milho, pipoca e farinha-de-cachorro. Quibebe de abóbora. Da outra banda do Atlântico vieram a salsa, o louro, o alecrim e a manjerona; para aqui se encontrarem com o feijão preto, o feijão mexido, a sopa de feijão. Com as criações de terreiro, surge a galinha cozida, assada ou ao molho pardo; o leitãozinho assado, queijo de porco, torresmo, sarrabulho, morcilha preta, morcilha branca e a linguiça. Da fartura da carne bovina de uma igreja, com provisão de sacerdotes das próprias ilhas.” BARBOSA, 1983, pg. 38. 273

“Nos livros de Registro Geral, guardados no arquivo público, consta que, de 1780 a 1800, foram feitas concessões de terras a mais de 100 açorianos com grandes estâncias em, praticamente, todos os atuais municípios da Campanha. Em 1814, grande número de açorianos e seus descendentes receberam sesmarias na Região Missioneira.” BARBOSA, 1983, pg. 38.

274

“As mulheres açorianas eram, em geral, belas, esbeltas, virtuosas, inteligentes, de olhos castanhos, de extrema vivacidade e de grande meiguice. Muitas eram de tez alvíssima e de olhos azuis, a denunciarem a descendência flamenga dos povoadores dos Açores” WIEDERPAHN, in BARBOSA, 1983, pg. 38. 171


Rio Grande do Sul Arquétipos Culturais e Desenvolvimento Social

resultam o ensopado de aipim, o cozido com pirão, a rabada, o mocotó, o mondongo, o guizadinho com abóbora ou batata, depois o charque desfiado, o charque frito com pirão...Para a criançada, fazem-se balas de mel ou guaco; ou uma chupeta de goiabada, em paninho, para o nenê não chorar...Sobremesas? Canjica de trigo com leite, em prato fundo. Ou a gostosa e aquecedora canjica de milho com vinho tinto caseiro e uma pitada de açúcar trazido de Santo Antônio da Patrulha.”275 Por outro lado, a presença da mulher dá estabilidade maior às relações familiares. A companheira e esposa já não será apenas a chinoca ou a prostituta, ou ainda a não reconhecida negra e índia, mas esposas de igual posição social que o homem. Assim, o machismo fortemente reinante nessas terras, será amenizado um pouco com o ingresso da mulher açoriana e portuguesa. Com os açorianos, profundamente religiosos, virá também o catolicismo popular, de santos e imagens, de procissões, novenas e tríduos, das festas do santo padroeiro, de Corpus Christi, do Divino Espírito Santo, dos Santos Reis Magos com seus “ternos de reis”. Por outro lado o catolicismo formal, dentro do Estado de Cristandade que unia o Estado e a Igreja, terá condições plenas de vicejar. Com os imigrantes vem o padre, erguem-se igrejas e capelas, com obediência ao calendário litúrgico da Igreja e às liturgias sacramentais de batismo, confissão, comunhão, casamento, extrema-unção...276 e um catolicismo extremamente tolerante, misturando religiosidade, sentimentos, superstições e o saber vivido.277 275

BARBOSA LESSA, 1984, pg. 73-74.

276

“No telhado das primeiras casas de alvenaria já surgem os cacos de telha, de um lado e outro, lembrando a pombinha do Espírito Santo. O Divino também, no “império” dos povoados. O Divino em toda a parte, com seu culto expresso nas bonitas novenas. E a procissão de Corpus Christi, com as toalhas enfeitando janelas. E uma fé profunda de que, afinal, toda essa aventura de ter cruzado o Atlântico há de dar certo algum dia...” BARBOSA LESSA, 1984, pg. 74.

277

FARIAS, Vilson, pg. 305. No calendário litúrgico, que preenchia o ano civil destacavam-se o ciclo natalino (6 de dezembro a 6 de janeiro), com os presépios, ternos de natal e festas natalinas. Em selguida os ternos de Ano Novo, Reis, S. Sebastião e Santo Amaro. Em março a Quaresma em preparação à Páscoa com total abstinência de comer carne e de relacionamento sexual. Na semana santa a procissão dos Senhor dos Passos. No Sábado de aleluia vinha a malhação do Judas, boneco que era arrastado, espancado e queimado. No Pentecostes vinha a festa do Divino (3 dias de festa) com suas bandeiras, seu cortejo imperial, com a missa festiva, com a coroação, bandas de música, os leilões, os fogos de artifício, a eleição dos festeiros e a grande festa dos festeiros no “império” do divino que era um salão paroquial.

172


O Rio Grande do Sul no Estado de Cristandade Colonial

O açoriano “embora inimigo da vida militar, viu-se, pelas circunstâncias, obrigado a tomar em armas em defesa de sua nova terra. Espalhando-se pela campanha como criador de gado, cruzandose com paulistas, lusos, espanhóis e índios, o açoriano perderá um pouco de sua nobreza, mas contribuirá para a formação do caráter do gaúcho, a um tempo altivo e belicoso, generoso e hospitaleiro.”278 Para ver a situação do RS, em 1774, três anos antes do Tratado de Santo Ildefonso que dá, por alguns anos, trégua à luta de fronteiras, nada melhor que o relatório do General Boehm ao vice-rei Marquês do Lavradio: “Esta Província, a mais meridional do Brasil, se chama Continente do Rio Grande. Na Linha de Quintão para o rio Jacuí, se encontra Viamão, situada numa elevação, ao centro de uma planície fértil e risonha. Aqui havia se estabelecido o governo, depois da perda de sua sede pela invasão de 1773. Mas agora o governador José Marcelino, com o objetivo de desenvolver o comércio, aproximou-se da água e se localizou à borda de uma bela bacia que, recebendo 4 rios, vai formar a lagoa dos Patos. Esta mudança de sede significará, naturalmente, a ruína de Viamão, cuja decadência já é visível. Os habitantes não são ricos o bastante para desenvolver adequadamente dois estabelecimentos ao mesmo tempo. Nossa Senhora dos Anjos, a 3 léguas de Viamão, sobre o rio Gravataí, é uma grande povoação onde o Conde de Bobadela estabeleceu muitas famílias de índios, com o objetivo de civilizálos e assim aumentar o número de vassalos de Sua Magestade. Mas até agora têm se mostrado infrutíferos os esforços para tirá-los do abrutamento em que se encontram, muito embora o governador José Marcelino trabalhe com o zelo de um fanático. De Porto Alegre, remontando o Guaíba, encontra-se a 30 léguas a povoação de Rio Pardo. É a colônia mais numerosa desse Continente. Não vou falar dos demais povoados, porque são de muito pouca Depois vinha procissão de Corpus Christi com ruas enfeitadas e as autoridades convocadas. . Em junho vinham as festas juninas iniciando em 13 com Santo Antonio, 24 com S. João e 29 com S. Pedro, com suas fogueiras e comes e bebes. Em novembro era a celebração dos finados com a reunião de toda a comunidade: ao lado dos cemitérios, enquanto as mulheres pranteavam os mortos, os homens faziam negócios e organizavam um churrasco à sombra de um caponete, os jovens namoravam. Assim as festas religiosas, as festas populares, tudo se integrava. 278

BARBOSA, 1983, pg. 39. 173


Rio Grande do Sul Arquétipos Culturais e Desenvolvimento Social

importância. A Corte tem um grande interesse nesse Continente, enviou das ilhas Açores um grande número de famílias de agricultores, que são a melhor parte desses habitantes, um povo trabalhador, frugal, simples e submisso. A cada família se dá, ordinariamente, ¼ de légua em quadro. Eles têm suas vacas de leite do qual fazem manteiga e queijo, e seus bois de tração, para trabalho na lavoura. A terra lhes dá com abundância o trigo, o milho e a mandioca. Estes homens poderão enriquecer o país se forem apoiados; mas, forçosamente, sentir-se-ão desencorajados na medida em que suas colheitas sejam requisitadas em nome do rei ou que seus filhos sejam convocados para as tropas. Outros habitantes do campo vivem do gado, que comercializam para S. Paulo ou para a ilha de Santa Catarina. Há nesta Província gado em abundância e se obteria muito melhor benefício se lhe fosse dado um mínimo de cuidado. Faz-se um enorme consumo. Mas o desperdício é incrível. Os principais criadores estão estabelecidos desde o arroio Palmares até o Jacuí. Entre essa gente se encontram alguns muito insolentes, que cometem desordens pela Campanha. Sua paixão por enriquecer, para tanto adquirindo gado de qualquer jeito, talvez seja uma das causas da desinteligência entre os dois soberanos, mas é algo que não se tem podido controlar. Há também gente que vive do transporte - usando carretas com duas rodas muito altas e atrelando 10 bois de 2 em 2 – e que enriqueceria se não fosse constantemente obrigada a servir de graça à condução de tropas e de outras coisas relacionadas com o rei. O ar é saudável, o clima é bom, mas já enfrentei tempestades de areia que chegam quase a cegar. E os ventos do sul e do sudoeste, no inverno, são intoleráveis.” 279

A nova conjuntura que se estabelece na Europa a partir de 1648 e mais ainda a partir de 1703, e com o declínio da produção do ouro e pedras preciosas em meados do século XVIII, Portugal aperta ainda mais as malhas do pacto colonial. Com Pombal os cerceamentos à manufatura na colônia brasileira, à marinha mercante, à criação de universidades e jornais passa a ser cada vez maior e mais controlada. Assim, por meio de Pombal, D. Maria a Louca, em 1785 proíbe a existência de manufaturas (que já não eram tantas) em todo o território colonial.280

279

BARBOSA, 1984: 84-85.

280

MARANHÃO I, 1979: 190.

174


O Rio Grande do Sul no Estado de Cristandade Colonial

3.3 De Capitania a Província (1807-1824) No contexto da Revolução Industrial liderada pela Inglaterra, que era a dona dos mares e do mercado mundial a partir do processo de produção manufatureira (1648-1767) e industrial (1767...) e suas exigências de expansão e consolidação do mercado comercial; no contexto da tomada do poder político pela burguesia na Revolução Francesa (1789-1815) e a expansão dos interesses franceses pela Europa continental sob a inspiração dos ideais daquela Revolução e implantados pelos exércitos conquistadores de Napoleão; sob a bandeira do liberalismo e do iluminismo que prega como a Revolução Francesa a República, a Democracia, a Soberania Nacional e consequentemente o fim do direito divino dos Reis e seu despotismo, bem como de seu fundamento: o Estado de Cristandade que determinava a política pela religião (especialmente pelo papado); no contexto da subjetividade idealista da Filosofia Alemã que fundamenta e justifica a subjetividade conquistadora e colonialista européia; no contexto da reação das monarquias européias contra Napoleão e a burguesia concretizada na Santa Aliança de 1815 pela qual os monarcas se protegem mutuamente contra toda usurpação popular e burguesa... No contexto latino-americano de crise do sistema colonial, com o esgotamento do modo de produção extrativista (ouro e prata) e agropecuário e diante da exigências do fisco das insaciáveis metrópoles; diante dos movimentos emancipacionistas de toda a América Latina liderados por San Martin e Bolívar, emancipações que iniciam com Haiti (1804) e culminam com o Uruguai (1828), fragmentando a América Latina em inúmeras pequenas repúblicas; no contexto de crise no interior da Cristandade Colonial e de seu suporte ideológico (iluminismo, cienticismo e positivismo dos “novatores”); no contexto de revanche à França que invadira Portugal (Junot 1808) apoiada pela Espanha, obrigando a família real portuguesa transferir-se para o Brasil, guiada e conduzida por navios ingleses que queriam o mercado brasileiro para si, neste contexto, D. João VI manda invadir Caiena (colônia francesa) e intervir no Prata para castigar a Espanha e liberar bases navais para a Inglaterra. A Comandância de S. Pedro do Rio Grande do Sul, que passa a Capitania em 1807, é profundamente afetada por estes contextos. Depois dos tratados de Madrid (1750 que provoca a guerra guraranítica e desestrutura as Missões) e de Santo Ildefonso (1777 que entrega Colônia do Sacramento e as Missões para a Espanha); depois da 175


Rio Grande do Sul Arquétipos Culturais e Desenvolvimento Social

conquista das Missões por José Borges do Canto (1801) o território das Missões e praticamente toda a atual delimitação do RS é incorporado ao Rio Grande do Sul e suas terras rapidamente apropriadas por particulares em duas décadas (até 1823).281 A definição das fronteiras e as conseqüentes guerras entre os Impérios Português e Espanhol, seus acordos, vicissitudes e estabelecimento de paz realizada pela alta burocracia desses Estados interferem diretamente sobre as terras, o modo de produção e a cultura do RS especialmente por sermos uma região de povoamento tardio (em comparação com o resto do Brasil) e de fronteira. Assim, Napoleão que, com um golpe de Estado em 1799, se faz dirigente supremo da Revolução Francesa e Imperador em 1804 conquista a Europa Continental procurando subordinar todos os territórios aos interesses da França. “Em 1807, o império napoleônico achava-se no auge da sua força. A Rússia fora obrigada a assinar o tratado de Tilsit com a França; a Áustria e a Prússia estavam submissas; A Itália fazia parte do império, com exceção de Nápoles, que era governada por José Bonaparte (irmão de Napoleão); Luiz Bonaparte, outro de seus irmãos era rei da Holanda; um terceiro membro da família, Jerônimo Bonaparte, governava a Westfália; a Espanha era aliada, o mesmo ocorrendo com a Dinamarca e a Noruega. E, isto é muito importante, por onde seus exércitos vitoriosos passavam, Napoleão destruía a antiga ordem tradicional, implantava constituições, adotava o código napoleônico e procurava modernizar as estruturas econômicas. Era a luta entre os velhos poderes aristocráticos e o jovem poder burguês (...). Em maio de 1808 Napoleão Bonaparte, movido por seus interesses políticos, forçou o rei da Espanha Carlos IV a abdicar, colocando em seu lugar seu irmão José.”282

Em toda a Espanha formam-se juntas de resistência contra Napoleão (lideradas pela Junta de Cadiz283 ) e em apoio ao filho de Saint-Hilaire, ao passar pelas Missões em 1821 já constata que todas as terras daquela vasta região foram apropriadas a particulares e em grandes latifúndios. 282 MARANHÃO e outros. Brasil História, I: 90 e 91.

281

283

A Junta de Cadiz elaborou uma Constituição que admitia a Monarquia mas obrigava o rei a jurá-la subordinando-se assim à “ vontade geral do povo”. Fernando VII jurou-a em 1812 e esta “Constituição Espanhola” servirá de modelo a todas as revoluções que os liberais promoverão na Europa. Cf. Garibaldi e seu papel na unificação italiana, in DUMAS, Memórias de Garibaldi.

176


O Rio Grande do Sul no Estado de Cristandade Colonial

Carlos IV, Fernando VII. O argumento principal era o direito de autodeterminação dos povos e a soberania nacional. Juntou-se a isso um grande motivo religioso pelo fato de Napoleão manter presos em Paris, além do rei da Espanha o próprio papa. Os cabildos (câmaras municipais) em toda a América Latina apoiando Fernando VII e especialmente os argumentos de autonomia, declaram a independência: Venezuela, México, Buenos Aires, Santiago do Chile (1810). Derrotado Napoleão, e devolvido o trono a Fernando VII (1814) este pretende o retorno da América Latina à condição de colônia e seus exércitos realizam verdadeiros massacres. É vencido (de 1816 a 1822) por San Martin na Argentina, Chile e Peru e por Bolívar a partir de Colômbia, Venezuela e Equador e Itúrbide no México) e os ideais de república e anticlericalismo se enraízam ainda mais nas novéis repúblicas independentes da América Espanhola. Diante da declaração de independência do cabildo de Buenos Aires (1810), o vice-rei Elío de Montevidéu pretende manter-se fiel à Espanha esperando o retorno ao trono de Fernando VII. O general Rondeau (por Buenos Aires) e Artigas representando os gaúchos, índios e pecuaristas do interior, explorados pelas elites de Montevidéu, cercam Montevidéu. Elío pede a D. João (casado com Carlota Joaquina, princesa espanhola) ajuda para repelir o ataque e manter a monarquia. D. Diogo de Souza à frente de 3.000 soldados acampa em Bagé (1811). Lord Stangford medeia a paz entre Buenos Aires e Montevidéu para que a Espanha continue a lutar contra Napoleão e os ingleses consigam os portos do Prata. Em 23 de julho Manuel Marques de Souza e Joaquim Curado ocupam Melo; em 5 de setembro conquistam o forte de Santa Tereza e em outubro a vila de S. Carlos. Quando conquistam Maldonado, Rondeau levanta o sítio a Montevidéu e, perseguido por D. Diogo, Artigas (que recusara um armistício) vai para a Argentina com 16.000 orientais ( “êxodo do povo oriental) em 10.12.1811. Em setembro Artigas, lutando contra Rondeau e contra os monarquistas, retorna e sitia e toma Monteviéu em setembro de 1812. Dona Carlota Joaquina assume as dores de Montevidéu e Carlos Frederico Lecor, com o exército “libertador”, com 10.000, desembarca e conquista Montevidéu em 20.1.1817. Artigas luta em guerrilhas por 4 anos. Derrotado em Entre-Rios “embrenha-se no Paraguai, onde,...em 1848 ele ainda vivia, aos seus 93 ou 94 anos, fruindo de todas as suas faculdades intelectuais e de quase todas as suas energias.”284 O cabildo 284

DUMAS, Alexandre. Memórias de Garibaldi, pg. 124. 177


Rio Grande do Sul Arquétipos Culturais e Desenvolvimento Social

de Montevidéu submisso a Lecor aceita a incorporação do Uruguai ao Reino Unido de Portugal, Brasil e Algarves e pelo tratado de 31.7.1821 o Uruguai é então incoporado com o nome de Província Cisplatina. Em reação, os nacionalistas orientais contra-atacam o Império Brasileiro, sob o comando de D. Carlos Maria Alvear e Juan Lavalleja que atacam e tomam Bagé em 23.1.1827, S. Gabriel em 12 de fevereiro, e batalham no Passo do Rosário em 20 de fevereiro, sendo o exército brasileiro comandado pelo inexperiente Marquês de Barbacena (Felisberto Caldeira Brant Pontes) que não conhecia “o terreno, o sistema de guerrilhas e a índole dos rio-grandenses.”285 D. Fructuoso Rivera, apoiado por Buenos Aires também assola a campanha riograndense e as Missões, em 1828, cujos fazendeiros até o apoiam tendo em vista o abandono e a má administração provincial do RS. A paz que estabeleceu a independência do Uruguai assinada em agosto de 1828 no Rio de Janeiro condicionava a retirada de Rivera do território rio-grandense. Ao retirar-se com “com 60 carretas carregadas de pilhagem, tropas de gado e índios guaranis,”286 Rivera deixou um rastro de espoliação das estâncias avaliada em mais de 100.000 cabeças de gado, incluindo a obra de Alvear. O descontentamento gerado com o governo brasileiro será incentivo à eclosão da Revolução Farroupilha que ocupará o período de 1835-1845. E o RS, em seu processo de formação de modo de produção agro-pecuário-charqueador-escravagista, terá seu gado, seus homens e sua história vinculados às vicissitudes cisplatinas. É neste período que o índio, especialmente o guarani, é absorvido como força de trabalho desidentificada em forma de peão de estância, nas terras apropriadas a particulares, enquanto a administração civil das Missões chega ao caos. A desidentificação do índio ocorre porque: a) ele já não tem a identidade de seus costumes tribais que ele deixou ao ser reduzido nas Missões; b) não é identificado com a cultura lusa que o combateu, nem com a espanhola que foi conivente com sua destruição; c) nem mantem a identidade de índio missioneiro. Nos arquétipos de identidade do gaúcho pesará sempre essa desidentificação como “aquele que não foi permitido ser”. É a afirmação do homem gaúcho como negação. Negação que até hoje, cantada em prosa e verso, 285 286

FLORES. História do RS, pg. 49. Ibidem, pg 51. Esses mesmos índios, juntamente com os charruas serão depois massacrados por Rivera em 1830 em Bella Union, no Rio Negro.

178


O Rio Grande do Sul no Estado de Cristandade Colonial

aparece como tipificação do “andarilho”, do peão que não se fixa nem se “aquerencia” a um lugar, a um patrão ou a uma mulher, e por isso é “livre”. Uma vez apropriadas as terras por particulares, já não resta espaço para o gaúcho primitivo, negro, europeu ou índio, que abatia livremente o gado disperso para seu alimento, para a venda do couro e sebo. Agora, todos os espaços ocupados, o andarilho é visto como ladrão, vadio, perigoso, desocupado que vive de bolicho em bolicho a se embebedar e a fugir da polícia. Quando incorporado à atividade social e produtiva como soldado ou peão, ele é incorporado como negado. Uma forma polida e aceita dessa negação é a transformação de sua cultura em folklore, no sentido pejorativo de um divertimento que não altera o status quo. A criatividade cultural encontra a delimitação do econômico-social-político estabelecido. Com a Revolução Farroupilha e sua idealização posterior esse arquétipo fará do gaúcho o patronímico do Rio Grande do Sul. O cultivo ao tradicionalismo em seus múltiplos aspectos tem sido revisado criticamente nos últimos tempos e a produção artística procura resgatar a afirmação do gaúcho para além de sua negação decantada. Quando, a partir da perspectiva liberal e positivista, o gaúcho foi idealizado e transformado em patronímico do rio-grandense, acima das reais exclusões e conflitos de classes e estamentos sociais, representando a cordata convivência de peães e patrões, com os mesmo ideiais, valores e regras, comendo do mesmo churrasco e partilhando os mesmos labores, ao redor da idílica vida galponeira e campeira, esvaziou-se o conteúdo conflitivo e identiificador do “gaúcho” transformado agora como: o ginete hábil nas lidas do gado, o demarcador de fronteiras e o forjador de pátrias.287

287

Na poesia tradicionalista do RS e especialmente na obra de João Simões Lopes Neto, enquanto se recolhe a palavra oral do peão em seus causos e contos, sempre está presente um grito e um alerta que o positivismo esparramou pelo RS: os que falam e o que dizem reclamam por uma pátria minimamente igualitária e livre. O ideal de República do positivismo não acontecerá sem os ideais da Revolução Francesa: liberdade, igualdade e fraternidadde. Assim, o folklore e a palavra oral, não podem ser interpretadas apenas como má consciência, como ideologia encobridora, mas também como procura de mudança e transformação. Sempre sobra latente o grito dos excluídos. O mesmo se diga da obra de Jayme Caetano Braun. 179


Rio Grande do Sul Arquétipos Culturais e Desenvolvimento Social

3.4 De Província a Estado do Rio Grande do Sul.(18241889) 3.4.1 A participação do RS na independência Depois das medidas de constrição do regime colonial em decadência288 a cuja testa estava o Marquês de Pombal, cobrando da colônia brasileira o que ela já não podia oferecer à metrópole portuguesa e que levaram à inconfidência mineira; depois que a corte se fixou no Brasil (reabrindo a possibilidade da indústria proibida por Pombal), tornava-se vexatório para o RS ser governado pelo capitão-general João Carlos de Saldanha de Oliveira e Daun, neto de Pombal. Os liberais do RS, inspirados nos ideais da Revolução Francesa, quando Daun visitava as Missões, reuniram uma assembléia para formarem um junta militar e destituírem Daun. Daun prende (agosto de 1821) os conspiradores remetendo-os ao Rio de Janeiro. Quando D. Pedro, em 9 de janeiro de 1822, rejeita a convocação das cortes de Lisboa para deixar o Brasil, resolvendo aqui “ficar” atendendo os interesses da elite brasileira que pretendia uma nação unida a Portugal mas com autonomia administrativa e econômica e não um retorno à colônia como queriam aquelas cortes, o RS, juntamente com S. Paulo, Rio de Janeiro, Santa Catarina, Cisplatina e Minas Gerais apoia o ato de independência, representado pelo coronel Manoel Carneiro da Silva e Fontoura, da junta militar do RS, que se incorporou à representação da Câmara Municipal do Rio de Janeiro para apoiar D. Pedro naquela decisão dizendo: “os rio-grandenses com espadas e vidas formam barreiras aos inimigos do Brasil no sul.”289 Apesar do não apoio às atitudes de D. Pedro por parte de Daun, em 22 de fevereiro de 1822, a tropa acompanhada por populares, dirigiu-se à frente do palácio e aclamou a no Junta Governativa que seria presidida por Daun e composta pelo Marechal João de Deus Menna Barreto, pelo brigadeiro Felix José de Matos, por Manuel Maria Ricaldes Marques, pelo birgadeiro José Inácio da Silva, por Manuel Alves dos Reis Louzada, pelo vigário Fernando José de Mascarenhas Castelo Branco, por Francisco Xavier Ferreira e pelo desembargador 288

289

O alvará de D. Maria I (mãe de D. João VI), de 1785 proibia o estabelecimento de manufaturas no Brasil, destruindo a incipiente industrialização brasileira, e foi revogado em 1.4.1808. FLORES, pg. 44.

180


O Rio Grande do Sul no Estado de Cristandade Colonial

José Teixeira da Mata Bacelar. Daun não apoiou a proclamação da independência que culmina em 7 de setembro de 1822. A câmara municpal de Porto Alegre pede sua exoneração 15.7.1822. Daun solicita a demissão em 29.8.1822 e é impedido de viajar a Montevidéu porque ali buscaria o apoio de 5.000 soldados lusos para lutar contra a independência. Uma nova Junta assumiu em 29.11.1823, presidida por José Inácio da Silva. Com a lei de 20.10.1823, cada Província do Império passou a ter um presidente e conselho, e depois, pela Constituição, um governo provincial. O primeiro presidente do RS foi José Feliciano Fernandes Pinheiro, nomeado em novembro de 1823 e empossado em março de 1824. A independência não foi um movimento popular. Nem tocou na maior chaga da sociedade que era a escravidão. Os escravos continuaram escravos, a elites crioulas continuaram a organizar o país segundo seus interesses. A Santa Aliança (1815), que restabelecera a ordem na Europa como estava antes de Napoleão negando-se a reconhecer qualquer desmembramento de território sem o consentimento de seu legítimo dono, apoiando Portugal, considerava D. Pedro um traidor, sem direito ao trono. A independência do Brasil fora uma traição. D. Pedro, pusilânime, que até dezembro de 1825 escrevia a seu pai (D. João VI) agora governando Portugal, assinando sempre “príncipe regente” quando era o Imperador do Brasil, defendia-se dizendo que fizera um estado “devido à vontade do povo.”290 Pressionado pelos liberais,291 D. Pedro convoca a Assembléia Constituinte que, sendo em maioria liberal, elabora “o projeto que limitava a extensão do poder executivo, transformando o legislativo em poder soberano, dentro de um sistema parlamentarista”292 seguindo o exemplo da Junta de Cadiz que obrigara em 1812 o rei a jurar a constituição, e como fizeram as cortes de Lisboa em relação a D.João 290 291

292

FLORES, pg. 45. “As deploráveis idéias francesa”, a influência do comércio inglês, e da Revolução Norte Americana e seu disputado comércio fazia com que “com os panos e os ferros vinham os costumes e as idéias, quando não formas de organização política, como a maçonaria e as sociedades secretas que proliferaram nas Américas portuguesa e espenhola” Maranhão et alii, Brasil História... Império, pg. 122. FLORES, pg. 45. 181


Rio Grande do Sul Arquétipos Culturais e Desenvolvimento Social

VI.

D. Pedro dissolve a Assembléia, outorga uma Constituição (1824) instituindo o poder Moderador pelo qual centraliza todo o poder no executivo. Os liberais chamam D. Pedro de traidor. A centralização do poder levará ao defenestramento de D. Pedro I em 7 de abril de 1831. Desconfiando do exército brasileiro chefiado por liberais,293 D. Pedro organiza sua própria força militar formada de mercenários, que lutariam por dinheiro, e integrada por jovens fortes e altos como eram os alemães e austríacos. Ordenou pois a “Jorge Antonio von Schaeffer, secretário da imperatriz Leopoldina, que percorresse os estados alemães em busca de soldados, os quais ficariam acantonados na corte para lhe garantir o poder absoluto”. Em 1824 virão 841 pessoas, das quais 38 virão ao RS para iniciar a colonização alemã em S. Leopoldo. Por outro lado, pode-se dizer que o RS marcou presença no processo de independência do Brasil através da pena liberal-maçônica de Hipólito José da Costa, o fundador da Imprensa Brasileira, que nasceu em Colônia e viveu sua infância em Pelotas, que , desde a Inglaterra escrevia seu Correio Brasiliense, periódico mensal de 72 a 140 páginas informando aos brasileiros sobre ciência, literatura, arte e principalmente política. O jornal entrava clandestinamente no Brasil através dos navios mercantes ingleses e pregava a monarquia constitucional, sem ser republicano e só aderindo à causa da independência em 1822. No entanto alimentava a liberalismo iluminista constitucionalista e elitista294 de nossos pró-homens da emancipação. A revolução pernambucana de 1817 procurou o apoio de Hipólito, mas este não aderiu senão como forma geral de pressionar o governo para as “reformas úteis”.

293

Apesar de o exército brasileiro contar com 40.000 homens (Washington tinha 18.000, Bolívar tinha 9.000 e S. Martin 8.000), a maioria de mulatos e pretos, eram comandados por liberais. FLORES, pg. 45.

294

“Ninguém deseja mais do que nós as reformas úteis, mas ninguém aborrece mais do que nós, sejam essas reformas feitas pelo povo... desejamos as reformas, mas feitas pelo governo, e urgimos que o governo as deve fazer enquanto é tempo, para que se evite sejam feitas pelo povo” in MARANHÃO, e outros. Brasil História...Império, pg. 111.

182


O Rio Grande do Sul no Estado de Cristandade Colonial

3.4.2 A Revolução Farroupilha e sua ideologia Os ideais liberais que eclodiram na Revolução Francesa espalharam-se por todo o mundo minando o absolutismo monárquico, negando a origem divina do monarca, e caracterizando-o como um empregado a serviço da sociedade e que poderia ser dispensado quando seus serviços não estivessem a contento dos interesses da sociedade. Sugeriam que a Constituição e as leis deveriam estar de acordo com os costumes e tradições, para garantir a liberdade e para serem respeitadas por todos inclusive pelo próprio governo, pregando ainda a federação para garantir a autonomia provincial com eleição de seus governantes e com os impostos recolhidos permanecendo no local de origem e garantindo a soberania absoluta do Estado sobre as organizações internas como por exemplo a Igreja, a Educação.295 Pelo contrário, D. Pedro que pensava dentro do absolutismo, dissolvera a Assembléia Constituinte, outorgara a Constituição de 1824, centralizara o poder no executivo e estabelecera um Estado unitário sem qualquer autonomia para as províncias, sem a participação desta na escolha de seu presidente que era nomeado por ele. Um pouco antes da Independência, o movimento constitucionalista e liberal minava todos os setores das elites brasileiras. Os comerciantes e militares portugueses do Rio de Janeiro e dos principais portos do Nordeste, reunidos no partido Português, buscavam seus antigos privilégios e monopólios, agitavam a revolução no Brasil, entusiasmados com a política das cortes de Lisboa. Não queriam a independência e sim seus privilégios. O partido Brasileiro agrupava a maioria dos proprietários rurais, burocratas, financistas e comerciantes, brasileiros, portugueses, ingleses e franceses, e que viviam no Rio de Janeiro à sombra dos favores da corte de D. João VI, eram conservadores, monarquistas e repudiando o liberalismo da revolução constitucionalista. Aderirão depois à independência como um mal menor. O partido dos Liberais radicais juntava a minoria dos proprietários rurais especialmente do Nordeste, os elementos das camadas médias e baixas da população, exceto os escravos, ligados às atividades urbanas: pequenos comerciantes, boticários, professores, jornalistas, padres e outros. Foi este o grupo que mais sustentou o movimento constitucionalista no Brasil. 295

FLORES, pg. 51. 183


Rio Grande do Sul Arquétipos Culturais e Desenvolvimento Social

Após a Independência, os liberais inconformados com os rumos dados por D. Pedro I, dividiam-se em dois grupos: os liberais moderados (chimangos monarquistas e republicanos) e a corrente liberal exaltada (farroupilha). Os moderados queriam mudanças através das leis e os exaltados queriam as mudanças através de revolução. Os farroupilhas comandaram as agitações nas ruas do Rio de Janeiro que forçou D. Pedro a abdicar em 7 de abril de 1831. Em 1832 Luiz José dos Reis Alpoim funda o partido farroupilha em Porto Alegre. Em 1833 os farroupilhas promovem o levante popular contra a Sociedade Militar de Porto Alegre que era acusada de tentar promover o retorno de D. Pedro I. Bento Gonçalves, em 1833, em contato com o Pe. Feijó e Evaristo da Veiga busca estabelecer o sistema federativo no Brasil. O Ato Adicional de 1834 concede mais autonomia às províncias, podendo suas Assembléias legislar sobre assuntos civis, judiciais e eclesiásticos, no âmbito mais estreito do Estado de Cristandade. A Assembléia do RS, ao passar de consultiva para legislativa (1834) e tendo a maioridade de deputados liberais, acusa o presidente Antonio Rodrigues Fernandes Braga, que havia sido nomeado por indicação de Bento Gonçalves, de déspota porque trocara de partido passando-se para os conservadores e traindo Bento Gonçalves. Em 20 de abril de 1835 Braga denunciava o movimento farroupilha como sendo republicano e separatista. Os líderes liberais farroupilhas que eram oficiais do exército, da guarda nacional, estancieiros e comerciantes, e que ocupavam os principais cargos públicos e militares, com a maioria na Assembléia, reuniam-se no Gabinete de Leitura “o Continentino” ou em casa de João Manoel de Lima e Silva e na casa do cônsul norte-americano para tramar a revolução: conquistar a igualdade política e o poder de decisão.296 Dentro de uma conjuntura nacional em que a oligarquia agrária do acúcar no Nordeste, do Café no centro-sul, e do gado no RS, que luta por conquistar o poder quer frente a outras facções na mesma região, quer frente ao poder central enfraquecido e desorganizado desde a renúncia de D. Pedro de 1831, diante de uma representação política restritíssima (de 1 a 3% da população),297 os setores populares, negros 296 297

FLORES, pg. 52. Em 1886 dentre uma população de 14 milhões de habitantes, somente votaram 117.671 eleitores por critério de renda anual superior a 100$000 por bens de

184


O Rio Grande do Sul no Estado de Cristandade Colonial

libertos, brancos despossuídos, pequenos trabalhadores rurais e urbanos, ensaiam em todo o Brasil um processo de participação política que explode em revoluções durante o período da regência especialmente de 1831 a 1835. Surgem assim a revolução dos Cabanos no Pará, a Balaiada no Maranhão, a Sabinada na Bahia. Na esteira do descontentamento por participação política das elites agrárias que visa à forma de organização do Estado descentralizado ou não, ou ao domínio do núcleo central de poder (conservador ou não) surge também a Revolução Farroupilha no RS. A reação das elites frente às revoluções realmente populares, “independentemente da cor política e partidária de que se vestisse o membro da elite dirigente; sua opinião era de que se tratava de manifestações de “assassinos”, “bárbaros”, “selvagens” que atentavam contra a “cultura”, “a civilização” e a “ordem”...Mesmo os grupos mais liberais da aristocracia rural, que eram os homens do 7 de abril ou do Ato Adicional de 1834, moderavam-se nas suas proposições, quando não as abandonavam inteiramente por um “regresso” à antiga ordem; estes perderiam completamente suas bases políticas de governo, entregando-o em 1837 aos conservadores” 298 É nesse momento histórico que o Partido Liberal e o Partido Conservador se unem para “salvar” a unidade nacional e o Estado Monárquico todo poderoso, o parlamentarismo sem povo nascido do conluio das elites agrárias contra todos os setores populares caracterizados por eles como incultos, perigosos e bárbaros. Aqui, como na Europa após da Revolução Francesa, a liberdade, a fraternidade, a igualdade serão apenas simulação para encobrir a repressão dos que buscam a participação no poder e na representação política. Como na Europa, serviu para justificar o surgimento da questão social da exclusão e da concentração econômica e política nas mãos dos iluminados aristocratas rurais e seus associados urbanos. Com a Regência houve sim um avanço liberal justificando, na organização da economia e da sociedade e do Estado a divisão internacional do trabalho e suas consequências nefastas que até hoje repercutem na sociedade brasileira. raíz, indústria, comércio ou emprego, excluindo menores de 25 anos, os filhos família, os religiosos, os escravos, analfabetos e as mulheres. Cf. MARANHÃO e outros. Brasil História, Império, pg. 212. 298

MARANHÃO e outros. Brasil História, Império pg. 211-212. 185


Rio Grande do Sul Arquétipos Culturais e Desenvolvimento Social

A Revolução Farroupilha ocupa o período de 20 de setembro de 1835 até 1ºde março de 1845. Inicia com a tomada de Porto Alegre e a deposição do presidente Antonio Rodrigues Fenandes Braga. Diante do não apoio dos liberais nacionais e diante do novo governador José de Araújo Ribeiro, primo de Bento que se passa para os conservadores e a quem a Assembléia da Província não dá posse, os farrapos induzem Antonio de Souza Neto a proclamar a república Rio-Grandense, em 11.9.1836.299 Divididos entre moderados (chimangos que não queriam a separação do Brasil) e radicais, atacados pelas forças imperiais que dominavam o porto e a barra de Rio Grande, os farroupilhas empreendem a tomada de Laguna, em Santa Catarina, como porto para exportação. Ao corsário Garibaldi encomenda-se a empreitada de fabricar dois lanchões (Seival e Rio Pardo) na fazenda da família de Bento às margens do rio Camaquã. Levados, depois em carroções do rio Capivari ao rio Tramandaí e ao mar para fustigar a marinha brasileira. Os revolucionário tomaram Laguna a 22.7.1839. Derrotados em 15.11 do mesmo ano retiram-se para o sul e inicia o declínio da revolução. Depois de muitas batalhas, cansada a população rio-grandense, Caxias assumiu a presidência da Província e, com tato organizou o exército, proibiu os saques, de tal forma que orientou a pressão popular para que a guerra findasse. Bento Gonçalves que havia sido eleito presidente da República por oficiais e vereadores de Piratini, inicia com Caxias as tratativas de paz. Antonio da Fontoura e David Canabarro se antecipam, Bento se exonera, e eles assinam com Caxias a Paz de Ponche Verde nos campos de Alexandre Simões em Jaguarão em 1.3.1845. Bento havia recusado terminantemente a oferta de Rosas presidente da Argentina que oferecera dinheiro para os farroupilhas sustentarem a luta contra o Império Brasileiro. Teriam sido palavras suas: “o primeiro estrangeiro que cruzar a fronteira fornecerá o sangue 299

“Os farrapos fundaram uma república separatista porque adotaram uma nova bandeira, escudo de armas e hino nacional, concedidam cidadania, consideravam os brasileiros como estrangeiros, mantiveram representantes diplomáticos no Prata e, em suas cartas, diziam que fundaram uma nova nação. Pela primeira vez, em território brasileiro, funcionou um Estado Republicano com presidente, ministros, coletorias, serviços de correio, exército, leis próprias e projeto de Constituição, tendo como capitais a vila de Piratini (10.11.1836 a 14.2.1839), Caçapava (14.2.1839 a 23.3.1840) e Alegrete até o término da guerra civil. O jornal “O Povo” que circulou de 1.9.1838 a 23.5.1840, era seu órgão oficial, publicando notícias, proclamações e decretos” FLORES, hist. RGS, pg. 53.

186


O Rio Grande do Sul no Estado de Cristandade Colonial

com que assinaremos a paz com o Brasil” A Revolução Farroupilha, que inicia em 20 de setembro de 1835 e termina em 28.2. 1845, levada à frente pela aristocracia pastoril, charqueadora e comercial do RS contra a política colonial centralizadora e burocrática da coroa do Rio de Janeiro trazia como motivações os interesses dessa classe dominante. Sendo economia subsidiária à produção de exportação do centro do país (ouro em Minas Gerais e Café no Rio e São Paulo) o charque cujo epicentro de produção era Pelotas desde 1780, o couro e o sebo tinham taxações e impostos iguais ou maiores que os dos iguais produtos do Prata, diminuindo assim os lucros dos criadores de gado e charqueadores do RS. Além disso, Buenos Aires e Montevidéu trabalhavam num sistema de divisão do trabalho ao modo capitalista, sem escravos. O alto custo do escravo para a produção do charque do RS, o estreito mercado interno relacionado também à escravatura, a concorrência de maior produtividade do charque do Prata, diminuíam as chances dos produtos do RS. A prepotência dos burocratas do Império, diretamente nomeados pelo Rio de Janeiro, exacerbava ainda mais os brios de certa independência que a classe dos charqueadores, criadores e comerciantes aliada aos militares havia conquistado ao longo dos últimos decênios. Os próprios estancieiros eram chefes armados de seus pequenos grupos de guerrilhas, em defesa do território nacional contra os castelhanos do sul. A expropriação dos antigos colonos (especialmente dos açorianos) e conquistadores que tinham recebido terras como recompensa pelas lutas e ocupação territorial, pelos charqueadores e estancieiros organizados em forma empresarial vai, aos poucos unificando o RS, na forma de produção do gado muar e bovino e do charque, exigindo do governo central condições de lucratividade que o sistema escravocrata não permitia. A probabilidade de êxito econômico dependia das vinculações políticas e da conivência com a burocracia imperial. “Era preciso ser influente na administração para tornar-se proprietário e, quiçá, próspero... No entanto, ao lado dos representantes da administração portuguesa que se integraram como proprietários na economia e na sociedade rio-grandense, continuaram a existir funcionários que se obstinavam em manter a dominação de estilo colonial típico. Com a vinda da corte para o Rio de Janeiro, em 1808, agravou-se este processo.”300 Cresceram as tensões e explodiram 300

MARANHÃO II : 232. 187


Rio Grande do Sul Arquétipos Culturais e Desenvolvimento Social

na revolução Farroupilha. A rápida adesão à Revolução que, de início, não tinha intenções separatistas, demonstra a unidade da camada proprietária do RS. O separatismo explícito na proclamação da República do Piratini e, após a conquista de Laguna, a da República Juliana em 1839, deveu-se ao sucesso da campanha e às intransigências do governo imperial. Caxias, habilidosamente, e sem a truculência com que havia liquidado a Cabanagem no Norte do país, preservando a propriedade e as reivindicações dos revoltosos consegue a pacificação de Ponche Verde. “A pacificação” em 1845, apesar de não realizar a federação, como aspiravam os revolucionários, acabou por consolidar o predomínio dos estancieiros. A maior parte de suas exigências foi aceita e fortaleceu-se a assembléia local, conseguindo-se manter um equilíbrio entre o poder central e o provincial ‘anunciando a aurora da dominação local dos estancieiros, charqueadores e exportadores’. A resistência dos gaúchos não havia sido em vão, os interesses da aristocracia hegemônica que se impunha (café e açúcar) tiveram ali que ceder. Porém, o Estado tutelador e paternal que se montava era capaz de aceitar um filho rebelde, para consolidar-se sobre o resto da nação.301 Nos 10 anos da Revolução foi suspensa a imigração européia para o RS. Estâncias e campos despovoados. Charqueadas arruinadas. Cresceu o espírito regionalista. Os ideais de Garibaldi, Rosseti e Zambecari de uma República liberal que marcarão as lutas pela unificação italiana aqui ficaram. Mais república do que democracia, mais liberalismo e maçonaria do que participação popular. No entanto, o RS ficará marcado para sempre com a exigência de um espaço próprio no contexto nacional. A democratização parcial da propriedade e da sociedade incentivada pela imigração fará do RS, uma cultura própria que se expandirá depois para Santa Catarina, Paraná, Mato Grosso e Nordeste do Brasil. Os pobres e os negros, porém, que participaram das lutas farroupilhas não tiveram o mesmo sucesso que seus chefes. Incorporados à luta porque os homens ricos e livres não queriam arriscar a vida na proeza, “negros e brancos marchavam, comiam, dormiam e morriam separados. Os oficiais dos combatentes negros eram brancos”.302 Os pobres continuaram como estavam, os pequenos 301 302

MARANHÃO II : 234. MAESTRI , Mário. Três Palavras Vazias. Zero Hora, 20/09/1999 pg. 15. As tratativas de paz, ao final da Guerra, se previram a liberdade para todos os

188


O Rio Grande do Sul no Estado de Cristandade Colonial

fazendeiros foram os que mais perderam, e os negros (quando não massacrados com a conivência de ambas as partes em luta) permaneceram na condição social de escravos. Os detalhes da Revolução Farroupilha podem ser vistos em obra específica. Anita Garibaldi, sempre ao lado do marido permanecerá como um símbolo das lutas e dos ideais desses tempos. Pacificada, a província se reestrutura, ainda sob a inspiração de Caxias. Volta a funcionar a Assembléia Legislativa (1.3.1846). Reorganizam-se as repartições fiscais (Alfândega de Porto Alegre, Rio Grande e S. José do Norte), aumenta a arrecadação de impostos e o vencimento dos funcionários. A instrução é incentivada com a criação do Liceu D. Afonso para preparar professores para o ensino primário (antes ensinava quem sabia e as disciplinas eram isoladas) com currículo também para agricultura, indústria e comércio a partir de 1854. A primeira escola normal com aulas de pedagogia é de 1869. Na perspectiva do Estado de Cristandade, a Igreja no Brasil era subordinada ao Estado. Na República do Piratini a Igreja do RS ficou sob a jurisdição do P.Francisco das Chagas. A maioria do clero não obedeceu. As igrejas ficaram abandonadas e sem vigários. Para reconstruir a Igreja no RS, em 7.5.1848 foi nomeado o primeiro bispo do RS: D. Feliciano José Rodrigues Prates. Uniu a Igreja no RS criando o seminário de formação do clero, em São Leopoldo. Expandiu-se a Santa Casa de Misericórdia criada em 1826. Reconstruiram-se pontes e balsas nos rios. Reiniciou a imigração alemã (1850). O Teatro S. Pedro foi inaugurado em 27.6.1858. 3.4.3 O Rio Grande do Sul na guerra do Paraguai Independente desde 1813, o Paraguai, sob o liderança absoluta de José Gaspar de Francia, constituiu-se numa ilha de progresso excepcional em comparação com os outros países da América Latina. combatentes e a não reescravização dos negros, foi por medo de organização de guerrilhas negras contra os brancos. A infamante entrega dos negros ao massacre em Porongos, mostra como a Revolução Farrouplha foi um movimento dos grandes proprietários que em nada mexeu, até reconfirmou o latifúndio e a escravidão no RS. Bento, ao morrer, legou meia centena de escravos. Distribuição de terras para os combatentes? Impensável. “A revolta Farroupilha pertenceu às elites. Nela, não há nada para ser celebrado pelas classes trabalhadoras e populares. Igualdade, Liberdade e Humanidade foram três palavras vazias escritas na bandeira farrapa” Idem, Ibidem. 189


Rio Grande do Sul Arquétipos Culturais e Desenvolvimento Social

Com uma reforma agrária que distribuiu todas as terras, inclusive as do Estado que haviam pertencido às Reduções Jesuíticas, sem ter uma classe latifundiária rica e isolada como acontecia entre seus vizinhos, mas com uma população agrária livre e numerosa, sem escravatura de espécie alguma, o Paraguai de Francia ia se fortalecendo num mercado interno que produzia tudo o de que necessitava para consumir, numa diversidade de produtos que iam desde frutas, trigo, milho, cereais, legumes e carnes, bem como se fortalecia com uma manufatura de tecidos e metalurgia. Ao falecer, em 1840, Francia deixava o Paraguai sem um analfabeto (enquanto o Brasil tinha mais de 90% de analfabetos), fabricava armas, munições, navios... Seus sucessores Carlos Lopez e o filho deste Francisco Solano completaram os caminhos de progresso, muito embora dirigidos por mão ditatorial: Assunción tinha a melhor universidade da América Latina, suas exportações equivaliam ao dobro de suas importações, os melhores artistas europeus dirigiam-se para a capital paraguaia, e aquele país era o que menor índice de criminalidade tinha na América. Ninguém podia andar armado no Paraguai. Esse desenvolvimento excepcional não poderia deixar de gerar inveja e raiva especial do comando do imperialismo industrial (a Inglaterra): era preciso extirpar aquele mau exemplo, do contrário a América Latina poderia se fazer independente econômica e polítcamente. Foi então que, sob o comando do embaixador inglês, os três países subordinados ao imperialismo, (Brasil, Argentina e Uruguai) planejaram o extermínio do Paraguai, em Buenos Aires, com a garantia de empréstimos ingleses para a façanha. O pretexto para começar deveria ser criado. Inconformada com a questão “Constatt”, um uruguaio de origem inglesa que, em 1859, tentara assassinar Carlos Lopez, a Inglaterra prende, em Buenos Aires, o navio Tacuary, onde viajava Francisco Solano Lopez em visita oficial a Buenos Aires e ameaça invadir o Paraguay com 14.000 homens. Queria não só o pedido de desculpas como também indenização a Constatt, apesar de “os principais especialistas em direito internacional darem publicamente razão ao Paraguai.”303 Depois vieram os desentendimentos com o Brasil por causa da questão da navegação do rio Paraguai (que aquele país considerava de navegação interna) e a questão dos limites na região do Mato Grosso. Em 1858, por um tratado com o Brasil, Lopez 303

MARANHÃO 3: 49.

190


O Rio Grande do Sul no Estado de Cristandade Colonial

franqueou o trânsito pelo rio Paraguai não só aos navios mercantis, como também aos militares. O Brasil abre, então à Inglaterra este direito prejudicando o comércio paraguaio. Veio depois a concorrência que o algodão de boa qualidade do Paraguai fazia na Europa aos tecidos ingleses. Os bancos de Londres, em Buenos Aires, os donos da “Ferrocaril del Gran Sur” juntaram-se com a oligarquia latifundiária e comercial do Prata (Lezama), juntamente com o sócio brasileiro dos ingleses (Mauá e seu banco) incentivam a invasão do Paraguai. O pretexto para a guerra do Paraguai será o apoio que Solano Lopez promete e dá ao derrotado Aguirre (do partido Blanco Uruguai) apoio, contra a política do Brasil (comandada por Saraiva) e argentina (de Mitre). Flores, colocado pelo Brasil à frente do Uruguai, assinará o tratado da Tríplice Aliança (Brasil-Argentina-Uruguai) contra o Paraguai que será elaborado pelo assessor diplomata inglês Mr.Edward Thornton em 10/7/1864. O Paraguai reage pensando que, assim como fora tomado o Uruguai, também será subjugado o Paraguai aos mesmos interesses. Os acontecimentos da Guerra do Paraguai, com suas versões oficiais hoje desmascaradas mostram que ela foi planejada, financiada e realizada para destruir aquela nação que não tinha um milhão de habitantes (Brasil tinha 7 e a Argentina mais de 2 milhões). Planejada para 3 meses como dizia seu chefe supremo (Mitre), a guerra durou 5 anos e, foi concluída com a eliminação de quase (75%) toda a população masculina adulta (acima de 12 anos) guarani. O Paraguai perdeu 600.000 pessoas, o Brasil mais de 33.000 homens.304 Ao final do conflito, quando a capital do Paraguai já havia sido tomada, e suas tropas disimadas, quando Caxias se recusa a continuar o massacre, o Conde d’ZEu realizará a façanha de eliminar até o último homem, não importanto se as batalhas se dessem contra crianças com 12 anos de idade: um verdadeiro genocídio. O exército nacional inicia a guerra como grupamento sem representação social e política, ao contrário da guarda nacional que defendia a corte e a oligarquia rural e comercial escravocrata, e termina a guerra com grande força e importância. “No oficialato, a presença de elementos das nascentes classes médias, que regressavam do Paraguai carregados de láureas, tornava a profissão de armas bem mais respeitável, um fator de ascensão social, o que seria aprofundado com 304

MARANHÃO 3: 55. 191


Rio Grande do Sul Arquétipos Culturais e Desenvolvimento Social

o desenvolvimento das escolas militares.”305 A abolição da escravatura (muitos escravos lutaram bravamente na guerra) e a República seguirão como conseqüência. O Rio Grande do Sul estará profundamente envolvido na Guerra do Paraguai. Ao início, a maior parte do exército brasileiro (de 18.000 homens) era formada por gaúchos tanto na infantaria como e especialmente na cavalaria. “Os contingentes fundamentais dessa arma eram formados por gaúchos, já que, desde a Guerra Cisplatina, os conflitos externos de importância em que o Império se envolveu foram todos na região Platina, contígua ao Rio Grande do Sul. E também porque os gaúchos, desde o período colonial, tinham nos conflitos de terra da fronteira um elemento de seu modus vivendi; o exército nunca combatia os platinos sem um forte apoio de tropas irregulares, fornecidas pelas estâncias. No restante do Brasil, era como se o exército efetivamente não existisse.”306

Houve descuido e imprevidência, por parte do governo imperial brasileiro, em relação à defesa da fronteira do Brasil no Rio Grande do Sul. Com efeito, muito embora já houvessem os aliados declarado oficialmente guerra ao Paraguai (1/5/1865), os 16.000 homens do exército brasileiro permaneciam em Paysandu, enquanto 2.000 homens sem uniforme, sem munição e sem preparo estavam ao mando de Frederico Caldwell que dava as ordens desde Cachoeira para o comandante da divisão David Canabarro que não obedecia, ficando descansado em sua estância do Ibirocaí. Nem o barão de Jacuí, imóvel em Bagé dava importância a todos os rumores de que o Paraguai invadiria a fronteira. No rigor do inverno, em 10 de junho de 1865, o exército paraguaio de 10.000 homens, desde Santo Tomé, atravessa o rio Uruguai e ataca S. Borja. Canabarro acampado no Passo das Pedras, entre Iraqui e S. Borja, “em lugar insalubre onde vários soldados contraíram tifo”, havia licenciado os oficiais por 12 dias, deixando apenas 30 soldados para defender S. Borja. “Argentinos fugitivos e desertores paraguaios anunciavam constantemente que os invasores marchavam com 4.800 infantes, 2.400 cavaleiros, 50 carretas com canoas e 8 canhões...O Cel. Fernandes Lima não acreditou na notícia, permanecendo em seu acampamento em Passo das Pedras.”307 Na 305

MARANHÃO 3: 63-64.

306

MARANHÃO 3: 57.

307

FLORES: 57.

192


O Rio Grande do Sul no Estado de Cristandade Colonial

manhã do dia 10, porém, 400 soldados paraguaios, em 20 canoas atravessam o rio. 146 soldados brasileiros tentam contê-los. Embora o Corpo de Cavalaria 22 com 260 soldados viesse em socorro, a invasão aconteceu. Aguardaram os paraguaios o total desembarque para o dia seguinte quando souberam da presença de uma força de 600 homens que resistiriam. À noite,tomada de pânico, a população (menos os estrangeiros e escravos) abandona S. Borja, “as famílias fugiam a pé, a cavalo ou em carretas, levando tudo o que podiam carregar nos braços.”308 “Velhos, senhoras e crianças, empolgados por um pânico indescritível, abandonaram a vila em doida confusão..., comovente multidão caminhando estrada a fora, à mercê do destino...enquanto o primeiro corpo de voluntários, sob o comando do Cel. João Manoel Menna Barreto, lhes protegia a retirada...Durante a noite, o intrépido batalhão abandonou S. Borja, que ficou entregue ao inimigo.”309 “A vila e as estâncias vizinhas foram saqueadas durante 8 dias e tudo o que foi considerado inútil, como livros, relógios de parede, mobília e louças, foram destruídos na rua.”310 No dia 7 de julho, os paraguaios invadem Itaqui que é abandonada por seu habitantes. O socorro de tropas e canhões, que Canabarro traria de Santana do Livramento, não chegou a tempo. E quando o inimigo avançava para o sul Canabarro só observava, mesmo em lugares de difícil travessia do rio Ibicuí. Manda cavar trincheiras para defender Uruguaiana e, depois ao verificar que eram precárias, manda abandonar a cidade, muito embora estivesse abarrotada de víveres e tecidos, pois pretendia resistir por muito tempo. “A cidade foi entregue ao inimigo com os armazens e alfândegas abarrotados de gêneros e víveres.” 311 Os paraguaios ocuparam Uruguaiana de 5 de agosto a 18 de setembro de 1865. Só se renderam quando terminaram os víveres que, imprevidentemente haviam esbanjado ou inutilizado. Cercada pelos aliados e, com a presença de D. Pedro II que viera para comandar a retomada, poupandonos da vergonha de ser comandados por Mitre, em pleno território nacional. Entregaram os paraguaios suas armas, e foram liberados, comandados que eram pelo Ten.Cel. Antonio Estigarribia, auxiliado pelo Padre Duarte. 308

FLORES: 57.

309

MAIA: 208.

310

FLORES: 57.

311

FLORES: 58. 193


Rio Grande do Sul Arquétipos Culturais e Desenvolvimento Social

Não só a invasão da fronteira, como toda a guerra do Paraguai, marcará a história do Rio Grande do Sul. Mais do que ninguém seus soldados a sustentaram. Muitos ilustres gaúchos foram seus comandantes. Quase todos os grandes generais da guerra paraguaia foram rio-grandenses: Manoel Luiz Osório, Marquês do Herval, “herói de todos os combates em que tomava parte”312 (Humaytá, Avahy, Peribebuy e especialmente Tuiuti, patrono da arma da Cavalaria); Manoel Marques de Souza, conde de Porto Alegre (Curuzu, Curupaity: “obedeço porque sou obrigado”, disse quando Flores e Polydoro ordenavam retirada); José Joaquim de Andrade Neves, barão do Triunfo, chefe da cavalaria (assalto de Villa do Pillar, Potrero Obella, ferido em Lomas Valentinas, morre em Assunción em 9.1.1869 delirando: “mais uma carga camaradas”); os generais João Manoel Menna Barreto e José Luiz Menna Barreto (Peribebuy); José Antonio Correa da Câmara, visconde de Pelotas com as derrradeiras vitórias em Villeta em Aquidaban, junto com João Nunes da Silva Tavares ‘Joca Tavares’, barão do Itaqui, “que alcançou e matou”313 Solano Lopez em 28.2.1870); Antonio de Souza Netto (Passo da Pátria); Joaquim Marques Lisboa, marquês de Tamandaré, comandante das forças navais brasileiras (Humaytá...). Cada município do RS se mobilizou e faz questão de narrar os feitos de seus concidadãos na Guerra do Paraguai. “Herval forneceu soldados e oficiais em número superior a qualquer outra circunscrição brasileira, guardadas as proporções censitárias.”314 Hervalenses são Joca Tavares e Astrogildo Pereira da Costa, barão do Aceguá que hospedou D. Pedro II quando veio para o front da guerra. Outros 25 oficiais: coronéis, tenente coronéis, tenentes, capitães e alferes. Muitos morreram e outros soldados voltaram mais pobres e até miseráveis, sem contar com enfermidades mentais e de “paludismo” adquiridas nos campos do Paraguai.315 E todos se perguntavam pelo sentido de 312

MAIA: 216.

313

MEDEIROS, Manoel da Costa. História do Herval: 107.

314

MEDEIROS: 107

315

Ouço de Ruth Machado Ávila Zanotelli, minha esposa, que seu bisavô João Bittencourt Machado, de Bagé, participou da Guerra do Paraguai, na cavalaria. Ao retornar, transtornado pelas loucuras da guerra, quando alguém batesse à porta, escondia-se entre as árvores do fundo do páteo gritando: os inimigos estão chegando. A dezena de casas e prédios que possuía em Bagé, “vendeu-os” por quase nada, apressadamente, sob o medo da guerra iminente. A guerra, essa loucura insana, marcou indelevelmente os que dela participaram. O mesmo confirmam os netos de

194


O Rio Grande do Sul no Estado de Cristandade Colonial

tal carnificina. Observamos que o comando da defesa da fronteira e de Uruguaiana era do mesmo chefe Farroupilha David Canabarro.316 Não somente os feitos dos chefes guardados pela memória oficial merecem menção. Multidões de brasileiros e, notadamente gaúchos, “voluntários” recrutados à força, brancos e negros, participaram desse genocídio que foi a guerra do Paraguai. Sendo que 33.000 brasileiros lá deixaram a vida. E, apesar da ufania com que eram narrados os inúmeros episódios de valentia, coragem, violências e extermínios, mesmo que isso servisse para manter o moral elevado da soldadesca, contudo, ficou o gosto amargo dessa estúpida guerra a marcar, como arquétipo, a cultura e a história do Rio Grande do Sul. O Rio Grande do Sul herdará da guerra do Paraguai: a continuidade e o aprofundamento do espírito militar de suas elites;317 e quando a importância dos militares de carreira crescer no Brasil, o RS sediará inúmeros quarteis e escolas militares, como nenhuma outra região do Brasil e, reivindicará soldos e direitos militares como assunto decisivo para a política positivista de Castilhos, Borges de Medeiros e João, Ruth Moreira Machado e João André. 316

“O Conde d’Eu observou que o general David Canabarro, por ter lutado ao lado dos Farrapos, tinha muitos inimigos no exército brasileiro, que, mesmo sem razão, acusavam-no de ser o único responsável pela invasão dos paraguaios. Vinte anos depois da Revolução Farroupilha, as feridas ainda não estavam cicatrizadas, revolvidas pelo ódio e pela vingança” FLORES, 1986: 60.

317

Já Saint-Hilaire havia notado, quando de sua viagem ao Rio Grande do Sul em 1820-21: “A fronteira meridional, há muito tempo goza apenas curtos intervalos de paz, mas, salvo algumas tropas vindas de S. Paulo e Santa Catarina, todos os soldados que combateram a Espanha são naturais da própria Capitania. Nenhum recrutamento foi feito nas províncias mediterrâneas e setentrionais. Disso resulta que, enquanto os habitantes dessa Capitania se tornam completamente militarizados – dotados de um sentimento nacional que só a guerra faz nascer - , os povos das outras capitanias caem pouco a pouco na inércia... Esta Capitania seria de qualquer modo escola para as outras...Em geral, os homens daqui são extremamente corajosos; contam-se deles milhares de feitos que demonstram sua intrepidez. Estão sempre dispostos às mais árduas lutas, mas ao mesmo tempo é difícil sujeitá-los a uma disciplina regular. Para guerrear, deixam, sem pesar algum suas famílias, mas, após a vitória, procuram retornar aos lares. Nunca desertam pela cobardia, mas o fazem frequentemente quando os deixam inativos. Quando, antes da batalha de Tacuarembó, o conde da Figueira convocou os habitantes, foram os desertores que, em maioria, atenderam o chamado. Apresentaram-se não somente porque viram o país ameaçado, mas ainda porque o conde prometera torná-los aos lares logo fosse o inimigo vencido” SAINTHILAIRE: 74. 195


Rio Grande do Sul Arquétipos Culturais e Desenvolvimento Social

Getúlio Vargas. Este militarismo impregnará nossa cultura.318 Também aqui, como para todo o Brasil, a abolição da escravatura, a República e o militarismo serão consequências da guerra do Paraguai. Esse militarismo impregnará a vida contidiana do gaúcho e se expressará na linguagem, no vestuário (revólver e adaga), na solução de conflitos feita à ponta de faca, na alimentação, na literatura, especialmente na trova e nos “causos”, nos títulos honoríficos, no tratamento dos trabalhadores, nos valores, enfim.319 A violência aterradora dos combates ensinou “a não deixar inimigo vivo, prisioneiro ou ferido. A regra fundamental era o degolamento, quase sem exceções. Atingidos pela cólera, maleita e outras doenças, nos territórios inóspitos e pantanosos do campo de batalha, aqueles homens, sem qualquer consciência dos móveis da violência que lhes era imposta, só poderiam manter o moral elevado, em seguidas carnificinas vitoriosas (...) terminada a batalha, os guaranis, muitos deles garotos, pediam clemência. ‘Ao serem repelidos, rolavam uns sobre os outros na lama e eram mortos a golpes de sabre ou esmagados sob os cascos dos cavalos. O massacre durou uma hora. Ninguém deu ordens de parar.”320 Essa violência reaparecerá nas degolas bárbaras e estúpidas das revoluções gaúchas de 1893 e 1923. O sangue jorrando, a degora impiedosa de bois e de homens, o berro e o grito, a guerra e a morte enrijecerão a alma e a sensibilidade de homens e mulheres e “marcarão na paleta” nossas tradições. Essa foi uma guerra suja: 318

O mesmo Saint-Hilaire observava, já em 1821, que, ao mesmo tempo que o civil se fazia militar, sempre que convocado para defender a fronteira contra castelhanos, contanto que, terminada a guerra retornasse para casa, não tratava bem suas milícias. Vinte e sete meses de soldo atrazado, uniformes rotos, alimentação exclusiva de carne assada. Por outro lado, os criadores ressentiam-se das inúmeras requisições de seu gado para alimento da tropa sem pagamento por parte da Província Cf. pg. 181, 202, 165, 152, 131, 92, 88... Sempre armado, como um pequeno príncipe de suas coxilhas, seguido por seus peães, o gaúcho é um militar civil desde o nascimento do RS. Estes soldados provincianos, “lutam às suas próprias expensas, pois em 11 anos de serviço, apenas receberam dois anos e meio de soldo e somente um uniforme. Contudo nunca deixaram de estar em armas, longe de suas famílias e de seus lares, e de fornecer gado e cavalos, sem retribuição alguma” (152). “De tal modo habituados ao militarismo e ao ar fechado dos oficiais (os gaúchos) não acreditam que um homem simples e honesto possa ter importância” (181).

319

Cf. DALLA VECCHIA, Agostinho. As noites e os dias.

320

MARANHÃO 3: 60 e 62.

196


O Rio Grande do Sul no Estado de Cristandade Colonial

Guerra do Paraguai, guerra suja e devastadora de povos; guerra de rapina, mantida e camuflada por interesses obscuros; guerra inteiramente contrária ao sentimento popular que a repudiou e a ela se opôs e a combateu; guerra manipulada em conciliábulos tortuosos, em que os povos eram distribuídos como cartas de baralho; guerra engalanada de palavras hipócritas e enganadoras, bonitas e mentirosas, atraentes, porém falsas; guerra com uma mão ultramarina apresentando o ouro e outra, nativa, recebendo-o como lucro e recompensa para assassinar irmãos e vizinhos; guerra suja...321

Ao final da guerra do Paraguai, por influência inglêsa, o xiripá será substituído pela bombacha, a gaita e a polca integrarão a cultura musical do RS. Hoje, em 20 de setembro de 2000 a comemoração da Revolução Farroupilha acontece em todas as cidades do RS com muito brilho, orgulho e empolgação com desfiles de cavalarianos e prendas, vestidos a rigor,322 com danças, e em tudo, incluído o discurso do Sr. Governador, um linguajar campeiro. 3.4.4 O Rio Grande do Sul da Imigração a) Fatores que permitem compreender a imigração Expulsos da Europa que se modernizava e industrializava sob a inspiração do liberalismo, cujos símbolos eram a estrada de ferro e a fábrica, os agricultores, que recém deixavam o regime feudal (1848), 321 322

POMER, sd: 10. A partir de 1989, por decreto do Governo do Estado, os trajes gauchescos de bombacha, bota, e esporas, chapeu de barbicacho, lenço (vermelho ou branco) e as prendas com vestido rodado e pouco decote, igualam-se a trajes de gala, traje oficial para qualquer ocasião. Já não é o traje pobre e desprezado do peão de estância ou do fazendeiro e das chinocas. É traje oficial dos gaúchos. A bombacha ingressou com a Guerra do Paraguai, os lenços com as revoluções, especialmente de 1893 e 1923, e os vestidos das prendas a partir de 1948, com o movimento tradicionalista. E o tradicionalismo que, segundo Paixão Cortes, hoje envolve mais de 8.000.000 de pessoas em mais de 1.500 CTG (centro de tradições gaúchas), se, ao mesmo tempo serviu à metade norte do RS (predominantemente imigrante) para afirmar, reforçar e confirmar uma identidade cultural com o povo gaúcho, ao mesmo tempo que serve para encobrir gritantes contradições sociais sob a aparência de igualdade e harmonia, no entanto também serve (e isto se percebe pelo entusiasmo da juventude, na falta de outros símbolos, mais autenticamente igualitários) para irmanar, para apontar a necessidade de igualdade e para o orgulho de ser gaúcho. Cada vez mais elas apontam para a necessidade utópica da construção de uma sociedade igualitária e livre, sem submissões aos desmandos de um centralismo imoral. 197


Rio Grande do Sul Arquétipos Culturais e Desenvolvimento Social

proprietários de ínfimos lotes de terra que não permitiam sustentar a família e exigiam a constante migração temporária pela Europa à cata de parcos salários que lhes permitissem completar o orçamento familiar, aspiram imigrar para um lugar que lhes permitisse: uma gleba de terras suficiente para congregar o trabalho da família; manter seus valores morais, sociais e religiosos ameaçados pelo liberalismo individualista e anticlerical; poder progredir e, quem sabe, enriquecer. O êxodo rural-urbano concentra agricultores que buscam emprego nos centros mais industrializados (Londres, Paris, Turim, Milão, Viena). A grande indústria aniquila a pequena indústria local. A mão de obra abundante, pelo fracasso do sistema de produção agrícola feudal e familiar, explora os trabalhadores nos latifúndios do arroz do vale do Pó, nos poucos empregos da incipientes indústrias, devendo muitas famílias serem sustentadas pela assistência social dos municípios. O constante estado de guerra desses países e o permanente recrutamento militar, (Áustria-Hungria, Alemanha que se unifica em 1871, Itália que se unifica em 1861, os movimentos revolucionários na perspectiva socialista como o de Mazzini na Itália) dizimam os jovens agricultores, ceifando a melhor força de trabalho das famílias. A miséria que se abate sobre as populações rurais com a fome, a desnutrição, as endemias (como a pelagra), a mortalidade infantil elevada, além do recrudescimento dos impostos sobre os produtos agrícolas, são outros tantos fatores que explicam o ambiente favorável à emigração européia especialmente depois de 1850. Esse contexto europeu da emigração pode ser exemplificado com o que aconteceu com o Trentino, ao norte da Itália.323 b) O Rio Grande do Sul que os esperava Por outro lado, o capitalismo que se fez industrial, com suas exigências sempre maiores de um mercado mundial (globalização), transformava a periferia do sistema (isto é a América Latina, a África e a Ásia) em fornecedora de matéria prima e mercado consumidor dos produtos industrializados na metrópole (européia e norte-americana). Assim o período que se denominou de “Imperialismo”, a partir especialmente de 1873, aviltou o preço dos produtos agrícolas produzidos no Brasil e tornou insustentável a escravatura. Era mais 323

Cf. Zanotelli: A Saga de um Imigrante Trentino.

198


O Rio Grande do Sul no Estado de Cristandade Colonial

eficiente, mais barato e mais progressista empregar mão de obra assalariada do que comprar escravos, cuja importação já era proibida desde 1849. Para substituir a mão de obra escrava nada melhor do que incentivar a imigração de mão de obra qualificada da Europa. Em 1808, quando a família real portuguesa, fugindo de Napoleão, vem para o Rio de Janeiro, “a mão de obra era, na totalidade, escrava. A Europa, porém, já vivia os ares do capitalismo que, por interesse próprio, era contra a escravidão. A Inglaterra, centro do capitalismo pressiona para acabar com a escravidão e consequentemente com o tráfico de escravos, substituindo-os por mão de obra livre e assalariada. Com isso cresceria o mercado consumidor dos produtos ingleses. Inicia então o incentivo à imigração: D. João VI, através de um decreto de 25 de novembro de 1808, assegura aos estrangeiros, pela primeira vez na história do Brasil, o direito à propriedade de terras em território brasileiro, e a distribuição gratuita de terras sob a condição 324

Em 1815 o Brasil (na mesma época e no mesmo rumo da Conferência de Viena) é declarado Reino Unido a Portugal e Algarves. E para obedecer às necessidades de mercado reclamadas pela produção inglesa o Brasil deveria, além de abrir os portos às nações amigas (leia-se Inglaterra) em 1808, abolir gradativamente a escravidão conforme cláusula de compromisso assinado com a Inglaterra. Com efeito, o escravo não tem dinheiro para comprar, e a Inglaterra precisa do maior número de pessoas que tenham algum dinheiro para comprar seus produtos. A Inglaterra havia suprimido o tráfico de escravos (1807) e abolido a escravidão (1833) nas Antilhas (suas colônias). Assim a escravidão no Brasil vai diminuindo em número por submissão aos interesses ingleses e por exigência do capitalismo. Tudo isso porém, envolto num discurso humanista e libertário ao estilo da Revolução Francesa. É interessante observar que a independência do Brasil não modificará em nada a condição dos escravos bem como da maioria da população brasileira. Apenas mudam os donos do poder. Em 1818, segundo Perdigão Malheiro, citado por Maranhão et alii in Brasil História, vol 2 pg. 273, o Brasil tinha 1.887.900 habitantes livres, (neles compreendendo 259.400 indígenas, quase todos marginalizados da vida do país) e 1.930.000 escravos. Mais de metade da população brasileira, portanto, era escrava. Em 1826 o Brasil que, para ter reconhecida sua independência declarada em 7.9.1822, pagara a dívida que Portugal tinha para com a Inglaterra, agora se compromete a não mais importar escravos da África (essa lei só foi promulgada em 1831).A Inglaterra, pelo Bill Aberdeen de 1845 não só proibia por motivo de ‘humanidade’ a saída de escravos da África, como também se autorizava a interceptar navios negreiros, confiscá-los tanto no mar como na costa. A lei Eusébio de Queirós de 1849, assim determina para o Brasil: o fim do tráfico de escravos. Continuará, porém, o contrabando. Em 1861, é declarado livre o sexagenário: livra-se o senhor de sustentar o escravo após os 60 anos, e o escravo é livre para passar miséria e morrer de fome. Em 1871, é declarado livre todo nascido de escrava, mas seu senhor 199


Rio Grande do Sul Arquétipos Culturais e Desenvolvimento Social

de que elas fossem imediatamente medidas e cultivadas.324 Para substituir a mão de obra escrava,325 pensa-se em imigrantes europeus dos países industrializados. Assim em 1819 chegam 1.666 colonos suíços (outros 350 haviam morrido na viagem) se localizam na região de Nova Friburgo no Rio de Janeiro.326 Em 1824, o já Imperador do Brasil D. Pedro I solicita a vinda de 1.000 rapazes alemães para a guarda imperial. A estatura alta, brancos, cabelos loiros daqueles moços daria melhor aparência do que uma guarda composta de negros ou mulatos, de estatura baixa e pouco refinamento dos brasileiros. Os melhores daquele grupo ficaram na guarda nacional e outros (126) vieram para o Rio Grande do Sul, iniciando a primeira colônia de imigrantes em S. Leopoldo. Em 1826 é criada para os alemães a colônia de Três Forquilhas e a de Torres no RS, em 1828 a de S. Pedro de Alcântara em SC, em 1828 a do Rio Negro no PR, em 1829 a de Santo Amaro em SP. Por outro lado os proprietários de latifúndios ( obtidos, ou por doação do Governo ou por estratagemas cartoriais), subdividem suas propriedades em colônias e vendem-nas aos colonos. Ao longo do rio dos Sinos nascem Mundo Novo em 1847 (Taquara), Padre Eterno em1850, Sapiranga e Picada Verão. Em 1846 Bom Princípio, em 1848 Caí, em 1857 Montenegro e, por fim Nova Petrópolis. Ao longo do rio Taquari, em 1853 surgem Lageado e Estrela, em 1868 Teotônia. A Província cria em 1849 Santa Cruz e, em 1855 Santo Ângelo (Agudo). poderá contar com seu trabalho até aos 18 anos para compensar o custo de sua criação. Em 1888 é, finalmente, declarada extinta a escravidão no Brasil. A escravidão formal foi extinta, as condições de escravidão e semi-escravidão perduram, para alguns, até os dias de hoje. Dentro da revolução industrial a escravidão se tornou inútil, onerosa e prejudicial. Mais barato e eficiente seria contratar um empregado ou fazer contrato de parceria com imigrantes para as fazendas de café. ZANOTELLI. Zanotelli a Saga: 55 e ss. Os dados sobre imigração, a seguir foram extraídos, em sua maioria de ZANOTELLI. Zanotelli a Saga de um imigrante trentino.

325

326 327

De BONI e COSTA, 1979, pg 27. A dissertação de mestrado, inédita, de Nilo Bidone Kolling, UFPEL, abril 2000, trabalha o tema “Educação e Escolas em Contexto de Imigração Pomerana no Sul do Rio Grande do Sul – Brasil” demonstrando a identidade étnico-cultural dos pomeranos que organizaram suas comunidades autônomas, num “independentismo” religioso, social, cultural que até hoje se faz visível. Mostra como as categorias indicadas por M. Weber sobre a ética protestante, informam o trabalho, o lazer, a ideologia dos pomeranos nesta região. Como a valorização do trabalho (num contexto em que nem os proprietários latifundiários e charqueadores, nem os trabalhadores

200


O Rio Grande do Sul no Estado de Cristandade Colonial

Rheinghanz , em 1858 cria a colônia de S. Lourenço, perto de Pelotas.327 Quando, em 7/4/1831, o Imperador D. Pedro I renuncia, entregando o Império ao filho ainda criança ( período da Regência...), os latifundiários que eram contra a colonização forçaram os parlamentares a cortar as verbas destinadas à imigração. Pelo Ato Adicional à Constituição de 1834 “passou-se às Províncias, carentes de recursos, o encargo de promover a vinda de estrangeiros, esquecendo-se, além do mais, de dar a elas no mínimo a condição fundamental para tanto: terras (estas, enquanto devolutas, pertenciam ao governo Imperial). Só em 1848, pela lei 514, é que as Províncias seriam contempladas com algumas léguas quadradas, nas quais poderiam assentar colonos”...328 O RS recebeu, como as demais províncias, 36 léguas quadradas de terras devolutas, e com elas criou as colônias de Santa Cruz, Santo Ângelo(Cachoeira), Nova Petrópolis e Monte Alverne.329 Os lotes foram doados aos imigrantes, segundo a lei provincial 229 de 1851 e de acordo com a lei Geral 601 de 1850. Em 1847, Nicolau Vergueiro, um latifundiário cafeicultor de mentalidade liberal e que lutava contra a escravatura, introduziu em sua fazenda em S. Paulo imigrantes europeus, especialmente alemães: 80 famílias com 400 pessoas, com um contrato de parceria. O contrato foi burlado especialmente com a obrigação de os colonos se abastecerem nos armazéns da fazenda, de tal forma que os altos preços ali cobrados e o baixo preço pago pelo café produzido, aprisionavam os colonos a uma dívida que sempre aumentava. A condição desses colonos assemelhou-se a dos escravos. Em 1857, em 26 fazendas escravos davam a menor significação senão como estigma de baixeza social, econômica...) como sinal de salvação e de predestinação insere na Região Sul do RS uma cunha crítica; e que, no entanto, pouca conta se dará à experiência pomerana, em primeiro lugar porque grupo minoritário (étnica, econômica, política, cultural e religiosamente) e porque os interesses do grupo dominante não poderia permitir sem perder o fundamento de sua hegemonia. O familismo, o retraimento, a desconfiança, aparecem como mecanismos dedefesa de um grupo imigratório que aqui não encontrou a possibilidade prometida de uma nação pomerana sob o Cruzeiro do Sul, e que só teve desilusões de políticos e lideranças. Mesmo assim guarda sua identidade na língua falada (sem que a escola ensine), nos costumes tradicionais e na desconfiança-certeza de que integrados aos valores e cultura global do RS, perderiam suas últimas chances de identidade. São uma dezena de comunidades que povoaram o interior dos (hoje) municípios de Pelotas, S. Lourenço do Sul, Turuçu, Cangussu, Morro Redendo e Arroio do Padre. 328

De BONI e COSTA, 1979, pg 27.

329

De BONI e COSTA, R .1979: 28 e 63. 201


Rio Grande do Sul Arquétipos Culturais e Desenvolvimento Social

e 88 belgas.330 A denúncia da condição de trabalho aqui, foi ouvida na Europa e a Alemanha, Inglaterra, França e Suíça proibiram ou dificultaram a emigração para o Brasil. A lei de terras, n. 601 de 18/9/1850 e seu regulamento de 1854 estabeleciam que as terras já não seriam dadas, mas vendidas aos imigrantes. Aos brasileiros que não tivessem terra e especialmente aos ex-escravos não era permitida a venda de terra. Assim se mantinha o latifúndio e nas terras montanhosas, de matas, difíceis para a criação do gado, ficariam os imigrantes. Essa lei possibilitava a naturalização voluntária dos imigrantes, após dois anos de permanência no país e os dispensava das obrigações militares. A falta de incentivos por parte do Império para a imigração depois de 1831, a Revolução Farroupilha (1835-1845), a impossibilidade de os imigrados alemães naturalizarem-se brasileiros até 1832, podendo naturalizarem-se de imediato somente a partir de 1846 dificultando com isso sua integração à sociedade brasileira, tudo levou a estacionar a imigração para o Rio Grande do Sul entre 1830 e 1847. “Entre 1824-1830, entraram na Província 4.856 alemães, sendo que, entre 1847-1854 verificou-se um total de 2.635.”331 E de 1850 a 1867, quando saiu o decreto 3.784 incentivando a imigração, arrefeceu ainda muito o fluxo de europeus para o Brasil. Os parlamentares escravocratas reforçaram a idéia de que às Províncias cabia incentivar e apoiar a colonização. As Províncias, porém, não dispunham de recursos para isso. Entregavam a incumbência a particulares. Mesmo após a lei 514 de 28/10/1848. Assim, o Estado brasileiro entregava terras a particulares para serem loteadas e vendidas aos imigrantes ao preço de 1.500 réis ao hectare. As companhias particulares organizavam a imigração e vendiam as terras entre 36.000 a 40.000 réis ao hectare. Algumas Províncias, como o Rio Grande do Sul promoviam, elas próprias a imigração. O interesse pela imigração de europeus “autores do desenvolvimento industrial e agrícola” em seus respectivos países não era, porém, só do Brasil. Argentina, Colômbia, México, Austrália, Estados Unidos faziam propaganda buscando atrair esses possíveis imigrantes. A guerra de propaganda na Europa foi, às vezes, escandalosa, mentirosa e sempre incisiva, com redes de informantes, 330 331

FRANCESCHINI in GROSSELLI, 1987, pg 240. LANDO, Adair M. e BARROS,E.C. Capitalismo e Colonização – Os alemães no RGS in RS: imigração colonização, 1980: 26.

202


O Rio Grande do Sul no Estado de Cristandade Colonial

aliciadores e representantes em cada país, em cada pequena região de emigração. Se o Brasil oferecia as melhores condições legais e de intenções, os Estados Unidos ofereciam as melhores condições objetivas. Assim, dos 5 milhões de alemães que emigraram, apenas 140 mil vieram para o Brasil (nem 5% ). De 1820 a 1926 entraram nas diversas províncias brasileiras 4 milhões de imigrantes; nos EU , de 1820 a 1920 entraram 26 milhões de europeus; na Argentina de 1857 a 1926 entraram mais de 3 milhões de europeus.332 De 1819 a 1940 entraram no Brasil 253.846 alemães, 1.513.115 italianos e trentinos, 1.462.117 portugueses, 598.802 espanhóis.333 A ganância dos particulares, o fracasso de colônias anteriores,334 a má fama de que o Brasil gozava na Europa pelo não cumprimento dos contratos, além da contra-propaganda de que aqui o clima era terrível, as epidemias grassavam e o Brasil vivia em estado absoluto de miséria e subdesenvolvimento, limitavam a imigração. Quatro são os fatores apontados por Grosselli para o malogro da colonização até 1870: “a falta de seleção dos imigrantes que muitas vezes eram artesãos, soldados ou com outras profissões e que não se adaptavam absolutamente ao cultivo da terra; a absoluta falta de vias de comunicação que impedia a comercialização dos produtos agrícolas; a localização de muitas colônias em territórios de clima tropical, não adequados à colonização européia; a proximidade das colônias aos latifúndios que desestimulava os colonos e impedia o desenvolvimento da pequena propriedade.”335 A economia brasileira precisava de mão de obra. Os escravos já não entravam no Brasil no volume necessário, tendo em vista o ataque permanente da frota inglesa: em 1849 entraram 54.000 africanos e em 1852 somente 700. 336 O desenvolvimento capitalista era incompatível com a escravidão porque ele exigia a liberação de todos os fatores da produção: da mão de obra, do mercado de matérias primas, de consumo, de comércio... O desenvolvimento europeu e norte-americano era visto como sendo fruto da raça branca, indo-européia. Por isso, pensava-se, que, 332

GROSSELLI, 1987, pg. 241

333

CARNEIRO in GROSSELLI, 1987, pg. 238.

334

Como a experiência de Colonização empreendida por Tabacchi no Espírito Santo em 1873 e a de Vergueiro nas plantações de café em S. Paulo.

335

GROSSELLI, 1987, 238.

336

De BONI e COSTA, pg. 29 203


Rio Grande do Sul Arquétipos Culturais e Desenvolvimento Social

para alavancar o progresso no Brasil era necessário o ingresso de imigrantes brancos, preferentemente alemães, ingleses, suíços, franceses, belgas e do norte da Italia. Era preciso branquear a raça. O mesmo fez a Argentina quando trucidou os índios do interior para dar lugar aos brancos que deveriam imigrar. O mesmo fez o Uruguai. Imaginava-se que o branco que havia construído o progresso europeu (apenas porque era branco), vindo para cá, construiria aqui o mesmo progresso, sem levar em consideração as condições em que se deu o desenvolvimento desses países europeus. Como se o progresso deles não estivesse ligado diretamente às condições de troca de nossa matéria prima (paga a preços cada vez mais aviltantes e fixados por eles) com os produtos industrializados por eles (e cujos preços cada vez mais elevados eram também fixados por eles). Como se nosso modelo colonial, latifundiário, exportador e escravagista fosse o mesmo que o da Europa. Não resta dúvida que a imigração trouxe a aceleração do progresso econômico e social especialmente nas regiões de sua maior incidência. Por outro lado, deve-se salientar que os imigrantes europeus vinham também com essa mentalidade que explodirá, depois, nas motivações das duas guerras mundiais, especialmente na segunda, onde o super-homem que levaria a humanidade à perfeição seria o de raça indo-européia... Os italianos, que vieram depois de 1900, traziam na lembrança as fracassadas guerras da Etiópia e Líbia contra os negros que nunca se deixaram vencer.337 Por outro lado, o contato com os escravos, aqui, reforçou o preconceito de que o negro é indolente, preguiçoso, infiel, mentiroso... Como se, (e sem acatar a afirmação), para sobreviver como escravo, houvesse outra possibilidade...E como se a escravidão não fosse o mais vil e mentiroso, desumano e brutal modo de viver e trabalhar. O Brasil insistiu, na primeira metade do século XIX, em trazer alemães para criar, entre a população portuguesa do RS e a espanhola do Rio da Prata, um núcleo de desenvolvimento que servisse também 337 338

MONTANELLI, Indro. L’Italia di Giolitti, 1975, pg. 123 e ss. Os colonos açorianos que foram trazidos por Portugal para Santa Catarina e depois para o Rio Grande do Sul a partir de 1746, para povoar de uma vez essa região reivindicada pelos castelhanos, localizaram-se na Barra do Rio Grande e São José do Norte e, após o ataque de Ceballos de 1763 deslocaram-se para Viamão e Porto dos Casais (Porto Alegre), para Rio Pardo, Triunfo e Taquari, alguns para Pelotas. Foram ao todo cerca de 5.000 colonos. Lembremos que a população do RS em

204


O Rio Grande do Sul no Estado de Cristandade Colonial

como um dique para as pretensões rioplatenses.338 A guerra Cisplatina que o Brasil teve de 1818 a 1851, com a Argentina, o recomendava. Assim de 1824 a 1889 entraram no RS 25.000 colonos alemães. Surgiram, porém, dificuldades com as colônias alemãs: dificuldades em se integrar à vida nacional, em harmonizar sua cultura com a brasileira, em falar a língua portuguesa. Os contatos constantes com a pátria mãe, o fato de entre eles terem vindo não apenas agricultores mas técnicos, intelectuais, homens de ciência e de negócios facilitava sua auto-organização. A tal ponto que a idéia surgida na Alemanha de criar a Grande Alemanha com seus milhões de emigrados espalhados pelo mundo, e acolhida aqui por apenas alguns intelectuais, perturbou as autoridades do Império. As idéias expostas num jornal de língua alemã dava oportunidade de assim concluir. A falta de comunicação, o exclusivismo da raça e a conservação de suas tradições e religião protestante levantou também a desconfiança especialmente da Igreja Católica. Com efeito, a religião católica era a religião oficial do Império brasileiro, dentro do Estado de Cristandade e na institucionalização do padroado. O Sul do Brasil poderia transformar-se numa zona dominada pelos protestantes. Os conflitos entre comunidades luso-brasileiras e alemãs chegaram ao clímax do incêndio provocado na Exposição teutobrasileira de 1882.339 Era preciso, pois, isolar o problema circundando as colônias alemãs com colônias de imigrantes italianos e de outras nacionalidades. Para incentivar a imigração o decreto imperial n.3.784 de 19.1.1867 estabelecia: As novas colônias seriam criadas pelo Estado, com a dimensão mínima de 15 hectares (até 60 hectares), podendo o imigrante escolher o lote, ao preço de 2 a 8 réis à braça quadrada (4.48m2) para os lotes rurais, e 40 a 80 réis para os lotes urbanos. O pagamento podia ser feito a prestação ( em cinco anos) com o acréscimo de 20% e o título então seria provisório. O colono tinha o prazo de dois anos para residir e cultivar a terra, do contrário o lote iria a leilão. O colono recebia com a terra, 20.000 réis como auxílio para os gastos dos primeiros meses. Tinha a chance de trabalhar em obras públicas, como abertura de estradas, ao salário diário de 1.500 réis sendo que o Diretor vigiaria para que no mínimo cada adulto tivesse a chance de 15 dias de trabalho remunerado por mês e 90 dias por semestre, dando 1800 era de cerca de 60.000 habitantes. 339

GROSSELLI, 87 pg 243. 205


Rio Grande do Sul Arquétipos Culturais e Desenvolvimento Social

preferência aos chegados mais recentes. O colono receberia ainda, ferramentas, sementes, auxílio para a derrubada das árvores para ter um espaço a cultivar e erguer sua casa, sendo que esses valores eram adiantamento para serem pagos junto com a terra e naquelas condições. Se ele não tivesse como se sustentar nos primeiros dias, o valor para isso também lhe seria adiantado. Nas colônias não poderiam residir escravos nem pessoas que tivessem escravos. A colônia teria também um prédio para acolher os colonos que chegassem e ainda não tivessem escolhido o lote. Deveria ter um asilo para órfãos. E a colônia seria dirigida por uma Junta Colonial composta de um Diretor, um médico e 6 colonos que já houvessem quitado suas obrigações financeiras. Era uma lei excelente para os colonos, considerando-se que, embora comprados, os lotes rurais poderiam ser pagos com, aproximadamente, 80 dias de salário por trabalhos nas estradas. Mesmo assim não aumentou muito a migração para o Brasil senão a partir de 1875, quando o Império contratou com Joaquim Caetano Pinto Júnior ( contrato assinado em 30 de junho de 1874) a introdução no Brasil de “100.000 imigrantes alemães, austríacos, suíços, italianos do norte, bascos, belgas, suecos, dinamarqueses e franceses, agricultores, sadios, trabalhadores de boa moral, nunca menores de 2 anos, nem maiores de 45, salvo os chefe de família. Destes imigrantes, 20% podem exercer outras profissões”(Cláusula I).340 E isto num período de 10 anos, recebendo Caetano Pinto 120.000 réis para cada um dos 50.000 primeiros imigrados, 100.000 réis para os 25.000 imigrantes sucessivos e 60.000 réis pelos últimos 25.000. Observe-se que os gastos totais de Caetano (incluindo propaganda e pagamento de agenciadores, passagem e toda a despesa de viagem ) não ultrapassava a 45.000 réis para cada imigrante. As despesas todas estavam cobertas, nada devendo ser cobrado dos colonos imigrantes, nem mesmo a passagem e os lotes deveriam ser vendidos aos preços estabelecidos no decreto 3.784. Pelo contrato, o Império brasileiro se recusa a assumir outra responsabilidade além das cláusulas do contrato. E quando, para exemplificar, os colonos trentinos, tendo renunciado à cidadania austríaca, quiserem repatriarse porque não foram cumpridas algumas cláusulas, não encontrarão resposta no Estado brasileiro. Os custos, porém, desse empreendimento, levarão o Império a suspender essas condições para a imigração (e o 340

GROSSELLI,1987, pg 250.

206


O Rio Grande do Sul no Estado de Cristandade Colonial

contrato) em 1877, tendo em vista também a difícil situação econômica do Brasil. A Província do Rio Grande do Sul em 1870 vivia uma situação bem diversa da encontrada pelos imigrantes alemães em 1824 quando vieram para S. Leopoldo: “A população provincial saltara de 110 mil para 440 mil pessoas. Em vez de 5 municípios, eram agora 28, divididos em 73 paróquias. A cidade de Porto Alegre contava com 30.583 habitantes, pelos dados do recenseamento de 1872. O resto da população dividiase de modo muito desparelho pelo solo gaúcho. Um sexto [mais de 70.000] dos habitantes residiam na zona de colonização alemã. Nos campos de Cima da Serra, a paróquia de S. Francisco de Paula contava com 5.360 habitantes, a de Vacaria com 5.755, e a de Lagoa Vermelha com 4.744. No Planalto Médio, a de Passo Fundo tinha 8.368 habitantes, a de Soledade 9.177 e a de Cruz Alta 8.402. Maior população encontrava-se na Depressão Central, no Litoral e na Campanha. Entrementes, cerca de 87 mil quilômetros quadrados de serras, na Encosta Nordeste e no Alto-Uruguai, principalmente, permaneciam como terras devolutas.”341

A modernização do capitalismo industrial no Brasil, muito embora ocorresse em função do capitalismo europeu e norte-americano, tinha aqui no RS algum reflexo: havia já estradas de ferro, a rede telegráfica que a acompanhava, um incipiente sistema bancário, navegação fluvial e lacustre com barcos a vapor que ligava Rio Grande, Pelotas, Porto Alegre, Cachoeira, Rio Pardo, Taquari, Lageado e Caí, Montenegro... A produção pecuária era agora complementada com produção agrícola das colônias alemãs. “A economia cresce, a cultura toma lugar de destaque, há uma assistência social organizada, o regime educacional é bom, aparecem as bibliotecas públicas e a Escola Normal torna-se estabelecimento modelo.”342 As dissenções políticas haviam amainado: A guerra dos Farrapos (1835-1845) terminava em paz e o governo imperial voltava a investir em obras públicas na região da Campanha. A Guerra do Paraguai (1865-1870) já fora concluída. A revolta dos Muckers, na região alemã fora apaziguada. A lei Provincial 304 de 30/11/1854 já estabelecia que os lotes, 341

De BONI e COSTA. pg. 62

342

LAYTANO, in De Boni e Costa 79: 75. 207


Rio Grande do Sul Arquétipos Culturais e Desenvolvimento Social

no RS, não seriam mais doados aos colonos imigrantes e sim vendidos, à vista ou a prazo de 5 anos sem juros, haveria adiantamento para despesas de viagem e auxílio para os primeiros meses. A hospedagem e o transporte desde Rio Grande seriam gratuitos. O custo médio de um lote era de 120.000 réis equivalente a: 80 dias de trabalho em obras públicas, ou 40 sacas de milho, ou 850 litros de cachaça, ou 350 galinhas, ou 130 kg de manteiga.343 Em 1869 a Província requereu ao Império a concessão de mais duas glebas para colonização. Em fevereiro de 1870 o pedido foi atendido e concedidas 32 léguas quadradas ao preço de 1 real à braça quadrada. Em 24 de maio de 1870 o Presidente da Província criava as colônias Conde d’Eu e Dona Isabel entre o rio Caí e os Campos de Vacaria localizando uma à esquerda e outra à direita da estrada dos tropeiros que ia de Maratá ao rio das Antas. Enquanto se demarcavam os primeiros 500 lotes em Conde d’Eu, a Província do Rio Grande do Sul contratava com Caetano Pinto Júnior344 a entrada de 40.000 imigrantes no espaço de 10 anos ao preço de 60.000 réis para cada adulto e 25.000 réis para cada menor de 10 anos. Estes valores eram a diferença do preço da passagem EuropaEU e Europa-Brasil. Essa vantagem visava compensar o atrativo que os EU ofereciam e assim procurar captar imigrantes para o Brasil, uma vez que o custo para a imigração ao Brasil seria igual ou inferior do que o custo para os EU. Em 1872, chegam ao Rio Grande do Sul os primeiros imigrantes trazidos por Caetano Pinto. São 1.354. Serão 1.607, em 1873. E 580 em 1874, e 315 em 1875. A custos elevadíssimos para a Província: 288 contos de réis, equivalentes a 1/6 de seu orçamento. Em 27 de outubro de 1875, a Província pedia ao Império que assumisse as colônias Conde d’Eu e Dona Isabel e que a Província fosse reembolsada dos valores já gastos. O governo imperial aceitou. Em 1873 Conde d’Eu tinha 80 lotes medidos e 20 cultivados. Em 1874 lá moravam 74 pessoas. Em 20 de maio de 1875 chegam os primeiros imigrantes italianos ou trentinos.345 343

GROSSELLI, 1987 pg 179.

344

O mesmo que havia contratado com o Império o ingresso de 100.000 colonos, e acima aludido.

345

A data oficial da imigração italiana é 20 de maio de 1875. Antes , porém , devem ter chegado alguns trentinos (então austríacos). A Província do RS registra de 1859 a 1875 o ingresso de 729 italianos provindos de Montevideo e Buenos Aires. Por

208


O Rio Grande do Sul no Estado de Cristandade Colonial

Relação das principais colônias criadas no RS após 1870.346 Colônias

Criação

Mudanças

Emancip.

Conde d’Eu (Prov)

24-5-1870

1875 - Imper.

1884

Garibaldi - Carlos Barbosa

Dona Izabel (Prov)

24-5-1870

1875 - Imper.

1884

Bento Gonçalves

Fundos Nova Palmira ( Imper)

1875

1884

Caxias do Sul Flores da Cunha Farroupilha S. Marcos

11-3-1887 Colônia Caxias

Municípios Atuais

outro lado, em Pelotas, RS, registra-se a entrada dos primeiros imigrantes italianos provindos de Montevideo em 1843-44, certamente por influência de Garibaldi que, nesta época havida deixado a luta Farroupilha e com 1.000 cabeças de gado como pagamento vai vendê-las em Montevideo. Em Montevideo é contratado para defender Montevideo contra Buenos Aires, criando então seu exército de camisas vermelhas (“camicie rosse”). Por informação dele os italianos de Montevideo emigram para Pelotas. São cerca de 70, com ofícios urbanos (conforme nossa pesquisa nos registros em Pelotas). Por outro lado a presença de italianos no RS marcou a Revolução Farroupilha (18351845). Fugindo da perseguição do Antigo Regime reabilitado em 1815, e seguindo as idéias revolucionárias e socialistas de Mazzini que defendia a “Jovem Itália” com um programa de: Unidade e República e tendo como divisa: “Deus e Povo; Pensamento e Ação” Giuseppe Garibaldi, marinheiro da Ligúria, vem para o Rio de Janeiro em 1835. Lá encontra um grupo de italianos: Rossetti, Giovanni Battista Cuneo, Luigi Carniglia, Domingos Torrisano e Castellini que são convencidos pelo Conde Tico Livio Zambeccari a participar da Revolução Farroupilha no RS. Zambeccari era chefe do Estado-Maior de Bento Gonçalves e havia sido preso na batalha do Fanfa com Bento Gonçalves da Silva, Onofre Pires da Silveira Canto e Corte Real e, com eles, enviado para o Rio de Janeiro. É assim que Garibaldi entra na Revolução. Cuneo, residindo em Montevidéo intermediará a ida de Garibaldi para aquela cidade em 1843 e provavelmente ambos endereçarão para Pelotas um bom grupo de italianos que residiam em Montevideo. Em 1/10/1873 surge em Pelotas a sociedade italiana “Unione e Philantropia”. Pouco depois surgem a Sociedade de Socorros Mútuos “Circulo Garibaldi”, a Sociedade Choral Italiana, a Sociedade Italiana 20 de Setembro e são unificadas em 18/10/1883 sob o nome de Sociedades Italianas Reunidas(nossa pesquisa). 346

Nossa pesquisa nas prefeituras respectivas. 209


Rio Grande do Sul Arquétipos Culturais e Desenvolvimento Social

Encantado (partic)

1882

1915

Encantado - Arroio do Meio (1934) Nova Brescia (1964)- Guaporé (1886) - Anta Gorda (1964) - Ilópolis (1964) - Capitão (1992) - Arvorezinha (1964) Relvado (1992)

Silveira Martins (Imperial)

1877

1882

Silveira Martins

Alfredo Chaves (Imperial)

1884

Veranópolis - Nova Prata - Nova Bassano - Cotiporã

Antonio Prado Imperial

1885

Antonio Prado

Mariana Pimentel (Imperial)

1888

Mariana Pimentel

Guaporé (Partic)

1892

Vila Nova de Sto. Antonio (Imperial)

1888

Vila Nova

Barão do Triunfo (Imperial)

1888

Triunfo

Jaguari (Imp)

1889

Jaguari

Ernesto Alves (Imperial) 1890

210

1886

Guaporé - Muçum Serafina Correa


O Rio Grande do Sul no Estado de Cristandade Colonial

Marques do Herval (Repúbl)

1891

S. José do Herval

Marau (Partic)

1892

Marau - Vila Maria

Nova Araçá (Particular)

1892

Nova Araçá

Ciríaco (Partic.)

1892

Ciríaco

Paraí (Partic.)

1892

Paraí

Davi Canabarro (Particular)

1892

Davi Canabarro

Erechim (Partic.)

1908

Erechim - Aratiba Itatiba do Sul - Três Arroios - Jacutinga Vila Áurea - Viadutos Guarama Severiano de Almeida

Marcelino Ramos (Particular)

1908

Marcelino Ramos

211


Rio Grande do Sul Arquétipos Culturais e Desenvolvimento Social

Em síntese, o Rio Grande do Sul , no Império brasileiro que aguardava os imigrantes europeus na década de 1870 era: n Uma Província de um império (o único na América; os outros países da América se independizaram como repúblicas) que produz gado, trigo, charque, couros em latifúndios escravagistas e monocultores. Produz frutas e produtos agrícolas nas colônias alemãs de minifúndios. n O Brasil, independente politicamente de Portugal desde 1822, vive um neo-colonialismo capitalista dependente especialmente da Inglaterra. Uma oligarquia rural luta para manter a escravatura e uma burguesia liberal pretende eliminá-la para adequarse aos parâmetros do capitalismo inglês e do liberalismo francês... n A religião oficial do Império é o catolicismo compreendido no horizonte do Estado de Cristandade e nas concordatas do padroado. O liberalismo positivista e maçônico já levanta suas teses: ensino público e não particular, separação de Estado e Igreja, subordinação da Religião ao Estado (bispos são presos porque acompanham o papa na condenação à maçonaria em 1873), anticlericalismo, a religião tida como mentalidade obscurantista e que não permite a ‘liberdade’ preconizada pela Revolução Francesa; as ciências ‘positivas’ como única forma legítima de conhecimento, a República (e não a monarquia) como única forma democrática de governo... n O Rio Grande do Sul, dentre todas as Províncias do Brasil, era a que melhores condições reais oferecia aos imigrantes: um clima temperado, à semelhança do clima europeu; terras férteis, inexistência de endemias e febres; ótimas condições contratuais para aquisição, pagamento e cultivo dos lotes, muito embora situados nos confins dos latifúndios e sem meios adequados de transporte. A excelência dessas condições eram ressaltadas pelas cartas de P. Bartholomeu Thiecher e que eram publicadas nos jornais do norte da Itália, influenciando a vinda de novos imigrantes. n Para os imigrantes o Brasil e, nele, o RS representavam um grande “sonho”, uma “cucagna”, a terra da abundância, da liberdade, da construção da família e do futuro. 212


O Rio Grande do Sul no Estado de Cristandade Colonial

n Para a Província do RS e para o Império brasileiro representava o povoamento de áreas descobertas e suscetíveis de serem invadidas por castelhanos; a imigração multi-étnica isolava o “perigo” da autonomia dos alemães; a garantia de produção agrícola, complementando a produção do café e da pecuária, evitando a necessidade de sua importação; o branqueamento da raça tão ao gosto de nossa ideologia colonial; o aporte de mão de obra qualificada para a industrialização, como condição de nosso progresso. Os imigrantes que, desde 1824 chegam ao RS eram das mais variadas nacionalidades e etnias: Alemães, Austríacos, Italianos, Franceses, Portugueses, Espanhóis, Poloneses, Judeus, Japoneses, Ingleses e Escoceses, Russos brancos. Por que vinham? Para fugir às guerras napoleônicas que devastavam a Europa? Por causa e para fugir às revoltas nacionalistas e camponesas do século XIX na Europa? Como excedentes de um crescimento populacional no continente europeu que necessitava ser equilibrado? Fugiam das revoltas proletárias? Do crescimento das cidades que os alijava como mão de obra a ser expelida? A progressiva mecanização da agricultura que acabava com a função da pequena propriedade? Fugiam do empobrecimento geral das terras? Os mercados para os produtos manufaturados que os agricultores faziam eram cada vez mais reduzidos? Havia vantagens econômicas e sociais para a Itália como acentuava o fundador dos padres carlistas destinados a assistir os imigrantes italianos: “redução da população nas cidades, eliminação do perigo de revoltas sociais e expansão da influência italiana no exterior”?347 Se o Brasil e o RS os queriam, quer para ocupação das matarias como um dique contra as invasões do Prata, quer para produzir alimentos para os núcleos urbanos, uma vez que os imigrantes açorianos, em sua grande maioria debandaram para a criação do gado, quer como necessidade de branquear a raça ou a necessidade de substituir o braço escravo, mais caro e menos produtivo que os europeus, se, ainda, para o lucro dos empresários da imigração, o que importa afinal é que esses fatores marcaram o RS da imigração. Em primeiro lugar não cabe a ridícula idéia de que os imigrantes no RS conseguiram algum sucesso ou porque eram melhores que os caboclos e negros, ou porque, eram “predestinados por Deus” 347

DACANAL, J. H. A imigração e a história do Rio Grande do Sul. In RS Imigração e Colonização: 278. 213


Rio Grande do Sul Arquétipos Culturais e Desenvolvimento Social

ou quejandas afirmações que só puderam grassar pela América Latina por causa do modelo excludente europeu que procuraram imitar. Se eles venceram, foi porque as condições o permitiram. Embora recebessem suas pequenas glebas de terra em lugares de difícil acesso e sem a mínima infra-estrutura,348 no entanto receberam terras, o que não aconteceu com os negros e caboclos que foram se localizando na periferia das unidades produtivas do antigo sistema da oligarquia pecuária. Se outra coisa não permitissem os lotes coloniais, embora demandassem renúncia e sacrifício extremos, permitiram uma boa alimentação a uma prole numerosa que, ao mesmo tempo, fortalecia a identidade e a defesa das comunidades coloniais, também permitia, aos poucos possibilidades neurônicas para estudar e pensar. Enquanto isso aos negros e caboclos, marginalizados, nem a alimentação abundante, nem a possibilidade biológica do pensamento foram permitidas. Por outro lado a Igreja, especialmente a católica, integrada ao Estado, naquilo que se chama Estado de Cristandade, mostrou-se mestra e condutora de seus fiéis, para construir aqui um estado cristão e católico. Com a estrutura de suas capelas, paróquias e missões por um lado; e por outro com os juvenatos e seminários para a formação de padres e religiosos como lideranças desses imigrantes, catalizava a cultura, garantia a identidade e acompanhava a evolução.349 Ao mesmo tempo, através de excelentes colégios dirigidos pelos jesuítas, pelos lassalistas e maristas, etc. a Igreja e os imigrantes educam suas classes médias emergentes, enquanto educam a elite da oligarquia anterior. Na verdade, pode-se dizer, com Dacanal, que os imigrantes foram ideologicamente cooptados pelo sistema anterior oligárquicomercantil, esquecendo sua própria história e integrando-se ao pensamento da oligarquia decadente. Assim, o pensamento político dos imigrantes aproximou-se do reacionário e, em todo o caso, jamais revolucionário, a não ser por exceção. O integralismo entre os 348

349

A dissertação de Mestrado de Nilo Bidone Kolling (UFPEL 2000) sobre a imigração pomerana em S. Lourenço em 1858 para terras de matas e montanhas, nos confins das sesmarias de criação de gado e povoadas por índios e negros fugitivos e organizados em quilombos e quase sempre massacrados, sem estradas, sem casas comerciais, sem médicos, sem sacerdotes ou pastores, devendo o mais letrado do lugar assumir a função de professor, pastor, médico e líder, é disso boa demonstração. O mesmo se pode dizer que valia, e am alguns casos com mais crueza, para a região norte do RS. Ibidem: 275.

214


O Rio Grande do Sul no Estado de Cristandade Colonial

imigrantes alemães e o apoio ao governo de Getúlio Vargas pelos imigrantes são exemplificativos. A pregação e o acolhimento de um imaginário anti-comunista entre os imigrantes que se intensifica no período após 1945, através de uma imprensa contundente como o Jornal do Dia, o Correio Riograndense e Unitas, através de sermões, campanhas eleitorais, criando uma identidade católica ou cristã para os imigrantes enquanto obedientes ao clero e enquanto anti-comunistas, torna público esse enquadramento na ideologia própria da classe dominante do RS.350 Por outro lado a identificação que os políticos fazem, no mesmo período, entre catolicismo e anti-comunismo, utilizando a este como arma assacada contra os adversários para vencer eleições e trazendo como argumento a palavra dos papas e bispos contra o comunismo, sem importar o conteúdo ideológico da posição adversária, é indício claro de que a Igreja fala desde o interior de um Estado de Cristandade, quer esteja este romanizado (como é o caso da religião trazida pelos imigrantes) ou ainda pendente do Padroado (como era o caso da memória do catolicismo da Campanha meridional). A demonização de tudo o que se opunha à autoridade eclesiástica (tomada como sinônimo de Igreja) passou dos objetos: sexualidade, liberalismo, democracia, república, secularismo e laicismo para o comunismo (destruidor da religião, da família, da tradição, da autoridade eclesiástica, e da propriedade).351 O bem coincide com um capitalismo ajustado à doutrina social da Igreja e sem excessos, com a autoridade do pai na família, com a mulher sendo guardiã dos valores religiosos e familiares, com a ordem e o respeito à autoridade constituída, e com a paz. Esta evidência reacionária está sendo rompida agora, quando os marginalizados da agricultura e da industrialização operada em grande escala pelos imigrantes, insurgem-se contra essa ordem, como é exemplo o Movimento dos Sem Terra. A identificação cultural e ideológica do imigrante com a oligarquia anterior é surpreendentemente evidente na maneira como os imigrantes cultuam as “tradições gaúchas” especialmente mistificadas pelo liberais positivistas. Por todo o Brasil, por onde os filhos de imigrantes se espalharam levam consigo a idéia, e o projeto de um CTG. Por isso tem razão Dacanal quando mostra o engraçado 350

351

RODEGHERO, Carla Simone. O diabo é vermelho: imaginário anticomunista e a Igreja Católica no RS, 1945-1964. Passo Fundo: UPF, 1998, pg. 17. RODEGHERO: 136. 215


Rio Grande do Sul Arquétipos Culturais e Desenvolvimento Social

de que um Governador (filho de imigrantes) presida entusiasticamente as comemorações da semana Farroupilha, revolução esta que aconteceu meio século antes da chegada dos imigrantes.352 E as tradições folklóricas serão misturadas e amalgamadas com as “tradições gaúchas” de tal forma que Caxias do Sul é a cidade gaúcha com maior número de Centros de Tradições Gaúchas do RS. Outro exemplo é a adoção de posturas de racismo ainda mais acentuadas que as da oligarquia agro-mercantil. Nesta, a escravidão havia, pelo habitual, “arredondado” os modos de tratar com o negro e o caboclo. O confronto do imigrante com o negro e o caboclo traz em si não apenas a inquestionada situação de subserviência, mas também a questão identitária: é preciso que sejam vistos como não-negros, como não-caboclos quando da inclusão do imigrante na sociedade gaúcha. Não se pode negar que os imigrantes mudaram a face do RS. Suas comunidades religiosas, lideradas por seus padres ou “leigos”, com suas capelas, suas escolas e colégios, seus cemitérios, seus salões paroquiais, seus valores tradicionais arraigados, seu sotaque e seu “quase novo idioma”, sua culinária e temperos próprios, sua indústria que começa em fundo de quintal e se expande, com suas universidades “comunitárias” que surgiram e se impuseram sem muito apoio do governo, seus intelectuais formados em juvenatos e seminários, com sua arte e literatura, seus políticos que tomam cada vez mais conta do cenário: com governadores, deputados, prefeitos com sobrenomes nada lusos... Calaram fundo na consciência dos imigrantes os hábitos de cooperação que engendraram em suas “linhas” ou capelas: desde o repartir, com os vizinhos nacos de carne fresca dos animais que abatiam, como socorrer à viúva no cultivo de suas terras no primeiro ano (ou mais) após o falecimento do marido; os empréstimos dados e tomados sob a garantia da palavra empenhada; o trabalho em mutirão (“puxerão”) para colher a uva e fazer o vinho, para debulhar o trigo ou o milho, enfim, para as tarefas que se prestassem à cooperação. Marcante era também a maneira pela qual não só os parentes, mas a vizinhança toda ajudava a preparar para os noivos a casa, o pequeno dote, os instrumentos de trabalho, de tal forma que o casamento se constituía num evento profundamente comunitário. Destaque-se ainda os ritos religiosos conduzidos na capela 352

DACANAL, J.H. A Imigração e a História do RS: 271 e ss.

216


O Rio Grande do Sul no Estado de Cristandade Colonial

construída pela comunidade em cada “linha”, o orgulho de quem tinha sido “fabriqueiro” (membro do conselho diretor) da capela e ainda mais da paróquia, os “terços” cantados por toda a comunidade, os corais dirigidos pelo mais entendido em canto, as festas dos padroeiros e de cada domingo, os jogos nos salões da comunidade. Solidificava ainda mais o relacionamento comunitário o sistema de visitas em serões regados a vinho, “brodo” e cantorias. Enquanto isso aconteciam os namoros, os negócios. O sucesso econômico da pequena propriedade do imigrante elevou sua auto-estima, sua esperança e sua memória. E isto o levou a confrontar-se com a região e a improdutividade do latifúndio da Campanha. Daí muitos focos de divergência política. Justificam-se, assim, para alguns, os ufanismos até raciais de que “os melhores” têm sucesso e, por outro a discriminação das elites atribuindo aos imigrantes uma desqualificação social e cultural. Nos últimos decênios crescem e se multiplicam, entre os descendentes de imigrantes, os projetos de narração da própria história. Pululam os encontros de família, as “árvores genealógicas”, o resgate da cultura e da arte do imigrante, para guardar a identidade ameaçada pela simples absorção ou pela dispersão de seus valores culturais. A valorização da comunidade, do trabalho e da iniciativa de cada um, do espírito desbravador (às vezes confundido com destruidor de ecossitemas) e pioneiro, a propriedada privada dos frutos da trabalho e sua poupança, o medo de perder tudo isso pela subversão dos “comunistas” são outros tantos símbolos sócio-culturais que os imigrantes fazem questão de ver referidos a si. Disto resulta compreensível a defesa do que é de sua região contra a invasão de outros pretendentes, a defesa do estatuído contra o “demasiado” inovador. Daí também a facilidade de composição política com as diversas facções de sua região e oposição evidente entre Serra e Campanha. A dispersão, a difusão cultural, as migrações internas ocorridas nas últimas décadas, tendem a diluir essas marcas comunitárias, ao mesmo tempo que elas se fazem contribuição rarefeita para a cultura de todo o RS. Com a contribuição dos imigrantes a cultura do RS tornou-se polimorfa. A identidade gaúcha adquiriu traços bizarros e multiformes: ao mesmo tempo a pecuária cedendo espaço à agricultura do trigo, do soja e do arroz; valores comunitários que se juntam aos próprios do ensimesmado peão de estância; sotaques que põem à luz visões de mundo próprias dos portugueses, dos vizinhos castelhanos fazendo da questão fronteiriça um traço essencial de nossa identidade; sotaques 217


Rio Grande do Sul Arquétipos Culturais e Desenvolvimento Social

lusos, açorianos, memelucos, italianos, alemães, pomeranos, poloneses, japoneses etc. Caldeando tantos sabores e cores, o RS, elabora um novo tipo humano. O gaúcho já não é apenas o estancieiro, charqueador, comerciante, peão ou aquele que leva à cidade os costumes da campanha revividos nos CTGs mas celebrará suas festas da Independência ou da Revolução Farroupilha, cantando e dançando em múltiplos ritmos e memórias. Permanecem como arquétipos: a memória pré-semita dos índios guaranis, charruas..., a memória dos tempos quase socialistas das missões e reduções, a memória da destruição da identidade missioneira e indígena, a memória da invasão, da implantação de estâncias e fazendas, a memória das charqueadas, a memórias das guerras, a memória da imigração, as memórias que se contradizem, que se fundem e confundem. Já não é possível falar em bloco de uma cultura gaúcha como se ela fosse apenas a do fazendeiro, do peão, do charqueador.353 Outros arquétipos dissolvem o antigo, guardam e superam seu poder identitário e indicam um novo mundo. 3.5 O Estado do RS Com o advento da República (1889) a Província se transforma em Estado do RS. Marcado pela especificidade do povoamento, com as lutas de fronteira, com o deslocamento e integração dos povos indígenas enquanto negados, com seu sistema pecuário-charqueador escravagista, secundado pela produção agrícola e industrial da imigração, batizado no corpo e na alma pela contraditória guerra do Paraguai, com o gosto amargo do irredentismo da Revolução Farroupilha não de todo digerido, com um Estado de Cristandade esfarrapado pelo pouco clero submisso à autoridade civil e com um só e recente (1848) bispado, com o fermento dos ideais da Revolução Francesa, do Iluminismo, do Racionalismo, do Liberalismo, do 353

EvaldoMuñoz Braz lembra observações pertinentes de estrangeiros sobre o gaúcho: Wlat Whitman em seu “Leaves of Grass” (1855, escreve: “Vejo o gaúcho que cruza a planície, vejo o incomparável ginete com laço na mão, vejo-o sobre os pampas na perseguição do gado selvagem, na região inóspita”. Charles Darwin, em sua viagem no Beagle quando, no rumo das Galápagos, encontrou gaúchos, descreve-os com eloquência: nunca vi pessoas mais orgulhosas de seu trabalho, um atividade tão simples”. Já Willian Cody ( o famoso Búfalo Bill) no afã de apresentar o conjunto dos melhores cavaleiros do mundo em seu circo equestre, tinha em sua trupe não só caubóis americanos, como lanceiros ingleses, cossacos, cavaleiros de Buskashi e o monarca dos pampas- modéstia à parte, o nosso gaúcho”. Embraz@voyager.com.br. in Gomez,F.A Os gaúchos. Correio do Povo, 15.9.99 pg.4

218


O Rio Grande do Sul no Estado de Cristandade Colonial

Capitalismo europeu e norte-americano e do Positivismo sacudindo os interesses e as consciências, o RS prepara um momento novo com o abolicionismo, a República e a modernização. Do RS republicano, para o presente trabalho, destacaremos e episodicamente, apenas alguns fenômenos como: o positivismo castilhista com o abolicionismo, a República, o militarismo, as revoluções e degolas das elites, a diversidade de desenvolvimento regional. 3.5.1 O Castilhismo O positivismo castilhista marcou indelevelmente a fisionomia do RS no final do século XIX e metade do século XX. Através de Getúlio Vargas marcou também o Brasil. O povoamento do RS é marcado pela presença militar em vilas fortificadas e estâncias. São militares que se transformam em pecuaristas e tropeiros os que se fixaram na Província para ocupar o espaço e dilatar as fronteiras do Império Português. São agricultores, especialmente açorianos, mamelucos e lagunenses chamados a dar densidade populacional à imensidão verde de nossos pampas e para garantir pela posse o que depois se discutirá como direito. O trigo dos colonos açorianos, no início de 1800, abastece a Província e a capital da Colônia. Pestes, desestímulo de preço, requisições abusivas para abastecer as tropas e o governo levam o trigo ao fracasso. Em 1821 RS importa trigo. Os colonos passam a ser pecuaristas, uma atividade mais lucrativa e menos trabalhosa. A pecuária e a indústria saladeiril deterão em seus quadros os políticos de maior influência do RS. Ao final do Império, porém, a indústria do Charque declina em importância e lucratividade. Montevidéu e Buenos Aires suplantam nossa indústria da carne. Não trabalham com escravos (que custam muito caro e não produzem o que produz um operário assalariado). Sua tecnologia é mais avançada e a qualidade de seu produto é melhor. As políticas protecionistas não resolvem o problema estrutural latifundiária, senhoril e escravagista do RS. A partir de 1860 inicia-se a desarticulação econômica do sul do Estado. O comércio cresce em importância. A estância com a dimensão de sesmaria (3 léguas: limitação legal) é ampliada por concessões obtidas em nome do filho, filha...do estancieiro. As distâncias e a dificuldade de comunicação e defesa exige mútua ajuda entre estâncias e fortins, e sempre no pretexto da 219


Rio Grande do Sul Arquétipos Culturais e Desenvolvimento Social

defesa das fronteiras contra os castelhanos. Surge assim, um patriciado militar com rígida hierarquização social e disciplina. O estancieiro é um líder militar, e o peão subordinado é um soldado disciplinado. A vida cotidiana é caracterizada como vida militar e suas regras. Há uma violência simbólica que recai sobre o peão. Este, pequeno em número e disperso não tem condições nem psicológicas, muito menos reais, de lutar por suas causas e por sua igualdade-liberdade. Luta, sim, pelas de seus dominadores como sendo suas. A inserção do peão nas causas sócio-econômico-político-culturais de seus patrões é reforçada pelo fato de que a formação profissional do peão era feita na lida cotidiana e não na escola. Para isto valia muito a disciplina, a lealdade, a hierarquia e o cavalo, o laço, a adaga e o revólver. Com os imigrantes europeus, inicia-se o modelo agrário exportador com uma economia de pequena propriedade, mão de obra familiar e policultura de subsistência. O excedente, pouco em quantidade, (banha, milho, trigo) é exportado. O setor secundário (artesanato e industrial) cresce ombreando com S. Paulo, no início do século. O acúmulo de capital deixa, aos poucos, de ser oriundo exclusivamente do setor primário para resultar, cada vez mais, do setor do comércio, onde também cresce o poder político. No vazio do poder entre as elites agrárias que se enfraqueciam e as novas elites comerciais que cresciam acontece a República e a política castilhista. O movimento liberal oriundo da Revolução Francesa e da Primavera dos Povos Europeus (1832 e 1848), bafeja nossas plagas e alterna-se no poder do Império Brasileiro com os conservadores vinculados ao pensamento do “Ancien Régime”, cresce no RS com a Revolução Farroupilha e a Guerra do Paraguai. Predomina na nova elite liderada por Gaspar Silveira Martins e que tem sua base no coronelismo e o caudilhiusmo político-militar da campanha gaúcha. Os privilégios e protecionismos do charque caem com a proclamação da República e os conflitos entre liberais e conservadores virão à tona na Revolução de 1893. O PRR (Partido Republicano Riograndese) fundado em 1882 reúne ideologicamente: o federalismo, o abolicionismo e o positivismo. Sua base política são as classes médias urbanas, os fazendeiros serranos, e os pecuaristas dissidentes bem como os comerciantes e industriais emergentes. Seu líder e maior intelectual é Júlio de Castilhos. Por outro lado os imigrantes representaram oposição ao coronelismo tradicional, e serão um dos pilares de votação ao PRR, apesar do ultramontanismo do catolicismo e o germanismo 220


O Rio Grande do Sul no Estado de Cristandade Colonial

evangélico entre os protestantes, que eram opostos ou nada tinham a ver com o liberalismo e muito menos com o positivismo. Pela centralização autoritária e burocrática do poder, pela truculência dos coronéis locais e pela escola como aparelho ideológico do Estado, o castilhismo far-se-á ideologia dominante até 1930, com pequena inflexão após a Revolução de 1923 e a conciliação de Getúlio Vargas. Na prática domina a cultura gaúcha até hoje. “Um chefe, um programa e uma disciplina” eis a essência do PRR segundo o viés positivista. O culto ao chefe que impõe sua liderança e torna coeso o partido será marca da política populista evidente também no Governo de Getúlio a partir de 1930. Uma República e não um Império, federativa e não unitária, presidencial e não parlamentar, temporal e não espiritual e, em síntese: ordem por meio e progresso por fim. Esse positivismo ímpar no Brasil, foi aqui pensado por Júlio de Castilhos, implantado na Constituição Estadual de 1891, implementado por Borges de Medeiros e Getúlio Vargas, e resiste até hoje. A carta gaúcha de 1891 procurou, pautando-se pela concepção doutrinária positivista, romper com toda a tradição ideológica que até então se tinha constituído como fonte inspiradora, e mesmo como finalidade principal, das normas constitucionais. Assim, já em seu preâmbulo, a nova Constituição é promulgada ‘em nome da Família, da Pátria e da Humanidade’, e não como vinha sendo feito até então: “em nome de Deus todo Poderoso” ou em “nome do povo-soberano”. Este caráter simbólico revela o ideal castilhista de entender que “o regime republicano deve manter-se à margem de todos os dogmas teológicos ou metafísicos herdados do passado. Não pode invocar senão seres reais, dignos de afeição e de respeito.”354

Em que consistirá o progresso e a ordem? No ideal burguês e liberal de enriquecer e consumir, de endeusar a liberdade como livre arbítrio e necessitar ser ateu? No ideal de fazer da ciência experimental e matemática o único saber digno do homem, sem utopias outras que permitam compreender a sensibilidade, a silidariedade com todos os homens e consigo mesmo? No ideal de um moralismo político, com a retidão na gestão da coisa pública (que é em si um grande avanço), mas sem perguntar se todos os homens deveriam ser atendidos em suas necessidades por aquilo que é público e comum? Mantendo a 354

TAMBARA, 1995: 80-81. 221


Rio Grande do Sul Arquétipos Culturais e Desenvolvimento Social

mesma estrutura econômica e social que gerava por si mesma a exclusão e marginalização de vastas camadas? Visto de longe, o positivismo se parece um pouco com os mecanismos de defesa de que fala a psicanálise: uma necessidade de defesa de leigos excluídos e controlados numa sociedade clerical do Estado de Cristandade e, por outro lado, como uma patologia quando esse mecanismo de defesa se absolutiza em si mesmo. O positivismo serviu como uma luva ideológica para a situação econômica, social, cultural e religiosa do RS. Por um lado os latifundiários e novos comerciantes, a pequena elite emergente, encontrava na culpabilização da Igreja e do clero, a desculpa para justificar os problemas de atraso, de incivilização, de falta de tecnologia do RS. Foi porque o RS foi colonizado por portuguêses católicos que não temos o progresso. Foi porque o clero só pregava a salvação eterna que os negócios econômicos não progrediram, nem as técnicas (fruto das ciências) foram geradas, a exemplo do que acontecia nos EU e outros lugares colonizados por protestantes. É interessante notar que a romanização da Igreja católica do Brasil, especialmente na segunda metade do século XIX, é vista pelo positivismo como causa de desordem e estagnação. Não questiona o padroado que atrelava religião e política desde antes do “descobrimento”. Na verdade o que pretendia dizer é que, assim como no Império, assim também a República devia mandar na religião e fazer dela sua justificativa ideológica. Para isso o clero e a hieraquia eram empecilhos. Por outro lado, a sociedade gaúcha, já não necessitaria pensar em sonhos e superstições religiosas como as que se referem à finalidade última do homem, ao sentido último da ética, aos fundamentos da justiça, aos pressupostos da igualdade, liberdade e fraternidade. Essas questões deveriam ser pragmaticamente resolvidas pelos líderes políticos, pelas “forças produtoras”, ou pelos cientistas. Pois, fora da ciência não há conhecimento. Só há preconceito. Punham-se, assim, as elites gaúchas, fora do alcance de qualquer questionamento. A situação gritante dos índios, dos negros, da plebe já não feriria os ouvidos “cultos” e “civilizados” da elite. Eles os excluídos estavam fora, longe da civilização e, só negando suas defesas (que eram religiosas e do bom senso) eles conseguiriam chegar à ciência e à liberdade. O castilhismo associou a necessidade de líder da cosmovisão positivista ao caudilhismo próprio do RS. “Apesar das concepções comtianas tornarem o coronelismo emergente mais avançado que o 222


O Rio Grande do Sul no Estado de Cristandade Colonial

típico coronel do Império, a impregnação caudilhesca constituía um freio, caracterizando, em última instância, sua essência conservadora, mesmo quando se apresentasse fenomenicamente de forma revolucionária.”355 3.5.2 Abolicionismo e República O Rio Grande do Sul situou-se no abolicionismo, não só acompanhando o movimento nacional, mas inserindo nele seus específicos motivos. Assim, não apenas as exigências do capitalismo industrial inglês que insistia desde 1808 (e mais ainda em 1827, 1849...) com a abertura do mercado brasileiro às mercadorias inglesas, forçando nossa exportações, também as de charque e obrigando-nos a realizar a guerra genocida contra o Paraguai; como também a modernização da indústria saladeiril do Prata que competia tecnologicamente com nosso charque fazendo com que a mão de obra escrava se tornasse muito mais dispendiosa que a assalariada; o oportunismo político das oposições do Império que fazem do liberalismo uma bandeira humanista e libertária pensando que a abolição destruiria a Monarquia, para o que de fato colaborou;356 sabiam os cafeicultores conservadores que o apoio da Monarquia à abolição transformá-los-ia em opositores, ficando o Império sem apoio político. O Partido Republicano Rio-grandense apoiou a abolição porque queria a República; incentivou a antecipação da abolição por leis municipais (Pelotas 1884), coordenadas por comissões abolicionistas e que, na verdade amenizavam a situação, sem extinguir a escravidão, garantindo também cláusulas de serviço obrigatório dos libertos. Por outro lado, Júlio de Castilhos, criou a polêmica questão militar envolvendo o governador interino Marechal Deodoro da Fonseca, repercutindo na política brasileira. Maior tumulto provocou a moção aberta contra a Monarquia do vereador Aparício Mariense de S. Borja que obteve solidariedade em outros municípios e em S. Paulo 355

TAMBARA 1995: 81.

356

FLORES, 1986: 76

357

“ 1º - Que a câmara representasse à Assembléia Provincial sobre a necessidade de dirigir-se esta à Assembléia Geral para que, dado o fato lamentável do falecimento do Imperador, se consulte a Nação por plebiscito, se convém a sucessão ao trono, ainda mais competindo este a uma senhora obcecada por sua educação religiosa e casada com um príncipe estrangeiro”...FLORES 1986:76 223


Rio Grande do Sul Arquétipos Culturais e Desenvolvimento Social

e Santos.357 A República representou, como o foi para a Revolução Francesa, o triunfo das idéias liberais, da sociedade laica e laicista, dos ideais do positivismo científico e político, a inserção na sociedade moderna baseada não somente na agricultura e no comércio , mas, com o predomínio da indústrialização. Ficava definitivamente para trás o antigo regime do poder absoluto dos reis e de sua matriz teológica e divina, bem como da influência da religião do Estado de Cristandade no ordenamento político, social e cultural. Mais do que nos outros estados do Brasil, o RS se moldou, então, na perspectiva do positivismo de Augusto Comte, Miguel Lemos, Teixeira Mendes e na compreensão de Júlio de Castilhos. O racionalismo científico tomando como modelo a Física e sua experimentação e mensuração matemática, retirando da Igreja o poder e o dever de ensinar e fazendo do Estado o grande educador (em lugar da Igreja), previa um currículo em que predominava o estudo das ciências naturais. Como Comte havia previsto, as ciências eram o único saber humano e racional, expressão do progresso da humanidade que passara pelo estágio teocrático (com a ditadura da superstição, da crendice e da religião e do clero), pelo estágio metafísico (da Idade Média e Moderna com a procura imaginativa de princípios, causas e entidades abstratas). Com a industrialização e a adequação da sociedade e da cultura às suas exigências, a humanidade estaria entrando no estágio definitivo do progresso, liderado pelos banqueiros, e pelos cientistas. Sem religião e sem metafísica, as sociedades que saíam do atraso para a claridade do moderno ensinavam a ciência (Matemática, Astronomia, Física, Química, Biologia, Sociologia e Psicologia). A religião nova seria a religião da Humanidade. A indústria era a síntese do novo estágio da humanidade. Assim, no RS, a) Luta-se pela industrialização. O modelo agropecuário, ou charqueador é criticado como causa do marasmo da economia e da cultura. O ideal industrial trazido pelos imigrantes, segundo o modelo e liderança da Inglaterra, seguida dos emergentes países como Alemanha (desde 1850), França (desde 1800), Estados Unidos (desde 1850), Itália (desde 1850), e Canadá e Japão (desde 1890), deverá ser o horizonte econômico para o RS; b) Luta-se pela República e por sua manutenção, mesmo que isto custe o barbarismo de muitas vítimas como na Revolução de 1893; c) Luta-se por um ensino público, estatal, laico e científico para educar a todos e conduzílos à cidadania; d) Centraliza-se o poder sob o pretexto de eficiência e 224


O Rio Grande do Sul no Estado de Cristandade Colonial

eficácia, reduzindo a democracia à República e transformando o coronelismo em caudilhos políticos e populistas; e) Pugna-se pela separação de Igreja e Estado, empurrando a religião para a esfera do privado e relativizando todos os critérios de ética, enquanto se impunha uma moral laica e positivista. Identificada a religião com o clero e a hierarquia eclesiástica, combate-se a religião como superstição e atraso atávico. Assim, os grupos fechados e secretos laicos (carbonários, maçonaria...)que surgiram na Idade Moderna para combater o poder da Igreja e dos Reis, tomam as rédias do poder e fazem de conta que a população gaúcha adira ao positivismo. Na verdade, essa ideologia servia a uma parte da classe dirigente, pois cada parte interpretava a doutrina segundo seus interesses. A elite emergente defendia-o por causa da industrialização e da ordem preconizada. A elite agro-pastoril defendia-o para se mostrar moderna e fazer frente aos reclamos éticos da Cristandade. E tudo, em nome da liberdade. Surge, assim, a reforma educacional de Castilhos, a exemplo do que ocorrera no Uruguai, surge a centralizasção do poder para garantir a ordem necessária para o progresso. Surgem centros de estudos científicos agrários (as escolas de agronomia), as faculdades para formar bacharéis em Farmácia, Odontologia, Medicina etc. Os estudos jurídicos são implantados também na perspectiva positivista e para consolidar um estudo sociológico e “científico”da sociedade. Os cursos de Direito contém em si mesmos os estudos mais eruditos de sociologia e de “Filosofia” entendida como culminância das ciências para determinar o método científico e combater superstições e metafísicas. Dentro do Estado de Cristandade que, embora de modo específico, moldou o RS enquanto Comandância, Capitania e Província, o laicismo, também aqui, permanece no horizonte da mesma Cristandade. Assim o poisitivismo anti-clerical busca sua raiz e inspiração no próprio Estado de Cristandade. Os “leigos”, excluídos do poder econômico, político e social, durante a Idade Média, assumem o mesmo poder sacralizado, a mesma propriedade sacralizada e transformada em mercado, a ciência dogmaticamente sacralizada e acrítica, e formam uma sociedade laica e cidadã. Neste sentido é impressionante o que se fala, neste período, nas escolas, do método científico, da necessidade das ciências naturais, da excelência de seus resultados para a técnica e indústria. No entanto, como nunca, a ciência e a cientificidade se esgotam em discurso ideológico. Pesquisa científica? Método científico rigoroso aplicado ao saber? Muito pouco. 225


Rio Grande do Sul Arquétipos Culturais e Desenvolvimento Social

Nossos livros de Física, Química e Biologia citam as experiências feitas em Paris, no sub-solo da Europa...e aqui? Os verdadeiros cientistas, como acontece até hoje, sofrem para levar adiante suas experiências. 3.5.3 Militarismo Por outro lado, o militarismo cresce e encontra fundamento na política positivista do RS. Se o fazendeiro e seus peães sempre foram arregimenatados para garantir a fronteira contra os castelhanos, se o fazendeiro sempre foi militar (formal ou informalmente) defendendo suas terras, agora, depois da Guerra do Paraguai, o RS se faz o espaço privilegiado da formação militar. Como nenhum estado do Brasil, o RS teve quartéis e escolas militares. Assim, podia Borges de Medeiros, em 1908, negociar com o governo da República o soldo dos militares em troca da política do Café com Leite pela qual (desde Taubaté 1906) S. Paulo e Minas Gerais acertaram que a presidência da República seria sempre ou paulista ou mineira. Assim, cada cidade da metade sul do RS, poderia gabar-se de ser cidade dos quartéis. E esta formação militar que impregnou a sociedade civil ofereceu a maioria dos presidentes do Brasil no período da ditadura pós 1964. E o resquício de “coronel”, “comandante” etc... são visíveis na estrutura social do estado, assim como no tratamento social do dia a dia. É nesse período, da Velha República, que, ao mesmo tempo em que a parte sul do estado goza de sua maior influência econômica e poder político, está também marchando para a sua decadência. O norte do estado, especialmente o vale do Taquari e dos Sinos, bem como a Serra, crescerá em poder econômico e influência política de tal forma que, a partir de 1950 o equilíbrio inclina a balança para a economia e a política oriundas da imigração com sua agricultura e sua industrialização. O sistema agro-pecuário-charqueador entra em crise desde a década de 1860, aprofunda-se com a incapacidade de inovação tecnológica no início do século XX sem a capacidade de frigorificar o tratamento da carne, e entra em franco declíno a partir do modelo industrial-nacionalista-populista que Getúlio imprime a partir de 1930. A falência do Banco Pelotense, o terceiro maior banco do Brasil, com 96 agências, inclusive nas grandes praças de comércio internacional, leva consigo o orgulho e a possibilidade econômica de muitas famílias ricas do sul do RS. Muitas economias dos imigrantes também afundaram com o Banco Pelotense. Mas o golpe foi mortal ao orgulho da elite agro-pecuária do sul. 226


O Rio Grande do Sul no Estado de Cristandade Colonial

Hoje, as teses que falam da separação da metade sul do RS, realçam o depauperamento do setor agro-exportador e do pouco caso do governo federal e estadual em relação à região. Esquecem que essa região sempre teve muito mais investimento público do que a região norte: estradas de ferro, rodovias federais, portos, aeroportos, 3 universidades federais, escolas técnicas de agricultura e industria, organismos de fomento que a parte norte não teve em tamanhas proporções. Esquecem ainda que o sistema fundiário, ao norte, teve a ocupação permanente de toda a família numerosa, que valorizava sobremaneira o trabalho e a comunidade, a poupança e a frugalidade que permitem poupanças módicas e multiplicadoras. Na parte sul, dominada desde as origens, pelo trabalho escravo e pela ociosidade das elites, por uma cultura livresca e com tinturas de humanismo, incapaz de um posicionamento realmente crítico às estruturas sociais e culturais, embora embalado na crendice de um progresso quase automático que a humanidade teria, dividido por um racismo social permanente, e sem uma postura construtiva científico-tecnológica, passou a viver das saudades do passado. Impressiona ver como, em meio à crise de desemprego e anomia que se agiganta, como as elites não encontrem caminhos para uma integração de propósitos. É muito comum, numa situação de decadência, que os dirigentes prefiram rir da desgraça alheia e menosprezar os esforços e os sucessos dos outros. Enquanto isso espera-se que as políticas governamentais (geralmente chefiadas e influenciadas pelos políticos de outras regiões) tragam a solução econômica, política, social e cultural. Com a infra-estrutura invejável que tem (estradas, portos, comunicações, energia, terras planas com água e sol abundante...) com a proximidade dos países do Mercosul, com mão de obra abundante e capacitada por uma rede incomum de escolas e universidades, com volume de poupança muito grande e que escoa para outros mercados através do mercado financeiro, o que falta para a região é alternativa de projetos econômicos que fujam da pecuária extensiva, da produção com pouca qualidade e altos custos e, especialmente de um projeto cultural e social que leve à integração e à real democracia. A crise do sistema agro-pecuário, reflexo no RS da estrutura econômico-político-social da Velha República do Café com Leite, reflete-se também na exigência sempre maior de um proletariado vinculado à incipiente industrialização e aos reclamos de uma nova elite ligada ao processo de industrialização e às necessidades dos pequenos agricultores imigrantes. O movimento tenentista que sacode 227


Rio Grande do Sul Arquétipos Culturais e Desenvolvimento Social

o Brasil desde 1922 e 24, tem no RS a significativa participação da Coluna Prestes, que luta pela moralização da política contra a corrupção de chefes militares mancomunados com a oligarquia agrária. A moralidade tão própria do positivismo e as exigências de igualdade do Partido Comunista (fundado em 1922) fermentam a sociedade e eclorirão na revolução de 1930 exigindo lisura nas eleições, até então comandadas pelo cabresto dos coronéis e seus currais eleitorais. Esse moralismo manifestou a insatisfação e a crise do sistema agro-pastoril. Exige-se uma nova sociedade, uma nova organização do exército, uma nova política. Até o final da Velha República e desde os meados do século XIX, as letras, as artes, a imprensa brilham em Pelotas. O hotel Aliança criado por imigrantes italianos em meados do século XIX foi o primeiro, em todo o Brasil a ter água encanada em todos os quartos, luz elétrica e telefone. O melhor conjunto arquitetônico neo-clássico da América Latina está em Pelotas. Grandes escultores como Caringi marcam as cidades do RS. João Simões Lopes Neto traz à tona a radiografia do homem gaúcho, com mestria inigualável e só reconhecida depois. A rede de água e esgoto, de Pelotas, sua planificação urbana merecia a admiração internacional. Suas escolas, inclusive as dedicadas exclusivamente às meninas, acolhem um grande número de estudantes de todas as regiões do Estado. Ao final da década de 1880 Pelotas tinha 11 jornais em circulação. Seu teatro, Sete de Abril (desde 1834) e Guarany ostentavam óperas e eventos culturais de grandes companhias teatrais. 3.5.4 Revoluções e degolas: as lutas das elites Forjado o RS pela liderança de caudilhos que, ao mesmo tempo, garantiam a casa, o campo e as liberdades, sempre reforçado pelas contínuas tropelias e guerras de fronteira e ocupação, era de se esperar que a proclamação da República em sentido positivista e unitário como o foi, não seria bem quista pelas elites do campo organizadas ao redor de seus caudilhos. O doutor da cidade, comercial, charqueadora, moderna e “civilizada” terá como ideologia o positivismo e como liderança Júlio de Castilhos (chimangos). O campo, apegado aos valores e feitos tradicionais será liderado por José Silveira Martins e como figura prototípica Gumercindo Saraiva (maragatos). “Proclamada a República em 1889, a primeira constituição, de 228


O Rio Grande do Sul no Estado de Cristandade Colonial

1891, refletiu desde o início, o confronto entre os liberais, partidários de um governo forte, e os federalistas, defensores de uma ampla autonomia estadual.”358

A violência, o excesso, as degolas marcaram esta revolução em que as elites se digladiavam através de seus liderados e que em nada lucraram com a carnificina protagonizada. Restaram os contos e quase “causos” de valentias, de temeridades, de façanhas, sem que os lutadores subessem bem o sentido daquela luta, sabendo apenas, e era o suficiente, de que seu chefe e caudilho era Gumercindo ou Castilhos. “A revolução de 93 teve a duração de 31 meses e fez nada menos de 10.000 vítimas. Destas, mais de mil morreram por degolamento, calculando-se meio por baixo, sem querer forçar os algarismos. Chegase a esta conclusão levando-se em conta a estatística das duas grandes sessões de degola da revolução – Rio Negro e Boi Preto – perfazendo ambas total aproximado a 700 gargantas secionadas.”359 Em Rio Negro, aproximadamente 20 kms. de Bagé na estrada velha que vai de Bagé a Hulha Negra, passando o “Passo das Mortes”, à esquerda, há bem pouco tempo ainda se divisava o lugar da mangueira de pedra em que foram degolados por Adão Latorre, um negro capataz e servidor dos irmãos Joca e Zeca Tavares e que odiavam os Pedroso (Zeca e Maneca), mais de 300 chimangos, em 28 de novembro de 1893. Foram poupados apenas os que pertenciam ao exército, porque lutavam por profissão e pelos protestos que levantavam contra a degola. A vingança pessoal, o acerto de contas determinou essa chacina. As tradições, muitas vezes captadas pelo Padre Antonio Botton, em suas andanças por Hulha Negra, dão conta que Adão degolou sozinho as mais de trezentas vítimas. Confirmam também a versão de Reverbel quando diz: “ficaram dois testemunhos, (um mudo e outro sonoro) do local do combate de Rio Negro: a mangueira de pedra, de onde eram retirados os prisioneiros para serem degolados, e uma lagoa, onde seus cadáveres eram lançados e que receberia o nome de Lagoa da Música, por causa dos gemidos que até hoje se desprendem em uníssono do fundo daquelas águas”.360 Almas penadas, gemidos e choros, muitos dizem ouvir, obviamente no contexto imaginário de tamanha violência. 358

SANGUINETTI, J.M. O caudilho gaúcho, um arquétipo. Prefácio de A Cabeça de Gumercindo Saraiva de Tabajara Ruas e Elmar Bones. Pg. 19.

359

REVERBEL, Carlos. Maragatos e Picapaus: 52.

360

REVERBEL, 1985: 57. 229


Rio Grande do Sul Arquétipos Culturais e Desenvolvimento Social

E Pe. Botton acrescentava: é o clamor do sangue de irmão que brada ao céus, como se narra na Bíblia quando Caim matou Abel. Muito embora a degola de origem espanhola viesse do Prata, ela era aplicada somente em revoluções por desumana e bárbara.361 Enquanto dois homens seguravam a vítima com as mãos para trás, Adão cotucava a garganta do infeliz para que erguesse a cabeça e assim, segurando-o pelos cabelos, cortava-o de orelha a orelha. De um menino de 14 anos que seria poupado se solicitasse misericórdia Adão recebeu a afronta: “corta nego maleva, que gaúcho não se achica”. A segunda sessão de degola patrocinada por vingança em relação à primeira foi a do Boi Preto, perto de Palmeira das Missões, em 5 de abril de 1894, quando o Coronel Firmino de Paula (chimango) degola mais de 300 prisioneiros maragatos. Esta revolução marcada por 4 fases, terminou com a morte e o esquartejamento de Gumercindo Saraiva e a morte de Saldanha da Gama em fins de abril de 1895. O acordo de paz foi assinado em Pelotas, no dia 10 de junho de 1895. Permanecia de pé uma das principais causas da revolução: a intocabilidade da constituição castilhista e com a qual Borges de Medeiros governaria no Estado 25 anos. Seria necessária outra revolução (1923) para mudá-la, depois de 32 anos de vigência. A revolução de 1923, acirra a luta das mesmas elites com um componente novo: o da moralidade política exigida pelas classes médias e, especialmente dos tenentes do exército que não aceitam acordos “políticos”, a corrupção de seus chefes militares. Termina a revolução com o acordo de Pedras Altas pelo qual Borges se compromete a não mais concorrer a eleições para a presidência do RS. Seu candidato “neutro”será Getúlio Vargas. O partido da oposição liderado por Assis Brasil, em protesto, não ofereceu candidato. No mesmo caminho seguirão os tenentes e o tenentismo depois de 1924, com a Coluna Prestes nascida em Santo Angelo e que pregava a moralização da política. O centralismo, quase ditadura positivista-castilhista-borgista no RS imperou desde a proclamação da República (1889) até o término do quinto mandato de Borges (1928), restando para a oposição um único meio de disputar o poder: as armas. E, como vimos, de um modo 361

“Hay dos maneras de degollar un cristiano, a la brasilera (dois talhinhos secionando as carótidas) o a la criolla (de orelha a orelha), dizia Alfredo Jacques, in REVERBEL, 1985: 52.

230


O Rio Grande do Sul no Estado de Cristandade Colonial

muito pouco convencional de fazer guerra e revolução. Getúlio Dorneles Vargas, pecuarista de S. Borja e habilidoso advogado, indicado por Borges como candidato “neutro” à sucessão ao governo do Estado, depois de ter brilhantemente desempenhado a função de ministro da Fazenda de Washington Luis (de 1926-1928) resolvendo graves problemas da produção e comercialização do café, mostra ainda mais sua capacidade conciliadora, ao convidar a oposição rio-grandense para entendimentos no palácio Piratini. Para atender às reivindicações das oposições cria o Banco do RS com linhas de crédito para a pecuária e agricultura. Desenvolve intensamente a malha rodoviária e a criação de escolas contratando grande número de professores, como era programático para um bom positivista. 3.5.5 O RS na Revolução de 1930 A política do Café com Leite pela qual S. Paulo (café) e Minas Gerais (pecuária e leite), em 1906, em Taubaté, haviam acordado que a presidência da República seria alternadamente de S. Paulo e Minas (tendo em vista que contavam com a maior bancada na câmara dos deputados), subestimando as necessidades de industrialização, a urbanização, a organização dos trabalhadores em sindicatos e partidos (Comunista em 1922), 362 a ampliação dos setores secundários e terciários, o avanço da tecnologia, especialmente nos meios de comunicação (telégrafo, rádio, ferrovias e rodovias...), a incorporação dos imigrantes na economia nacional, esta política dividia-se para a sucessão do paulista Washington Luis. Era a vez de Minas. O candidato seria Antonio Carlos de Andrada. Washington propõe como candidato o paulista Júlio Prestes. O Partido Republicano Mineiro se divide e apoia Prestes. Antonio Carlos, apela então para a 3ª maior bancada que era a do RS. Propõe uma aliança liberal que lança como candidato à Presidência do Brasil, Getúlio Vargas e como vice, João Pessoa, da Paraíba. Assim, teoricamente, RS, Minas, e o Nordeste ganhariam as eleições. Washington e seu partido, dificultam o lançamento da candidatura de Getúlio, e usam da máquina administrativa para garantir os currais eleitorais, pois o voto era a descoberto e as mulheres não votavam. De nada adiantaram as caravanas da Aliança garantindo que 362

S. Paulo teve 259 greves de trabalhadores, inspirada em parte pelos ideários trazidos pelos imigrantes, entre 1912-1922. 231


Rio Grande do Sul Arquétipos Culturais e Desenvolvimento Social

se houvesse fraude haveria revolução. A fradude correu solta. Getúlio conseguiu 850.000 votos contra 1.050.000 de Prestes. Era evidente que a fraude definira a eleição. Washington inicia a “degola” perseguindo os Estados que apoiaram Getúlio e demitindo funcionários que tinham ou poderiam ter apoiado a Aliança. Os cafeicultores em crise e com a safra toda de 1928 estocada,363 procuram Prestes que se nega ajudá-los. Getúlio entra na parada e promete comprar toda a safra, bem como a comercialização da produção posterior, muito embora a crise da bolsa de Nova York que tornava proibitiva a venda do café aos Estados Unidos, nosso maior comprador.A morte de João Pessoa provocada por partidários de Prestes foi o estopim. Getúlio declara a revolução para tomar o poder que legitimamente lhe fora usurpado. Com a habilidade magistral de conciliar grupos, interesses e idéias que marcará toda a vida pública de Getúlio, ele convida e propõe: - Aos cafeicultores, uma política para o café; - Aos produtores do açúcar, aos pecuaristas e agricultores, uma política específica; - Aos militares que lutam pela moralização pública (cfr. o tenentismo e a coluna Prestes), a participação na administração pública; - Aos trabalhadores, o atendimento de suas reivindicações de direitos reclamados pelos sindicatos e partidos; - Aos industriais sem apoio e sem políticas protecionistas, uma política de desenvolvimento calcada na industrialização. Unificado o RS, contando com uma disciplinada brigada militar e a tradição militar dos exércitos situados no RS (cujo soldo foi prioridade política desde 1910 para Borges de Medeiros), Getúlio conclama à Revolução que se espalha como um rastilho de pólvora. Em 30.10.1930 a Guarda Civil, a Brigada Militar e populares tomaram 363

A safra de 1927-28 “chegou a 26,1 milhões de sacas, para um consumo mundial total de 23,5 milhões, tendo sido quase duas vezes superior à média dos três últimos anos” Fausto, B. Acrise...423. Com um empréstimo de 10 milhões de libras esterlinas, tomado junto a banqueiros ingleses, o Instituto criou seus estoques que pareciam garantidos pela safra relativamente pequena (pouco mais de dez milhões de sacas) de 1928-29. A safra de 1929, no momento da crise da bolsa de N.Y, parecia muito grande (será de 28.941.000 sacas), fazendo com que os preços tendessem a cair violentamente ( cairá de 4,71 libras em 1929 para 2,69 em 1930). Que fazer com o excedente? Deixar o preço baixar e garantir mais exportações? E as dívidas e prejuízos dos cafeicultores? Os cafeicultores estavam no desamparo...

232


O Rio Grande do Sul no Estado de Cristandade Colonial

de assalto o quartel general, o arsenal, o quartel da Praça do Portão e a guarnição do morro do Menino Deus. Enquanto o Nordeste (Juarez Távora na Paraíba), S. Paulo (Siqueira Campos) e Minas se movimentam, o RS lota trens de soldados e cavalos para enfrentar Washington cujas tropas estavam concentradas em Itararé. Getúlio entrega o comando militar ao coronel Pedro de Góis Monteiro (transformado em general, desrespeitando, assim, a disciplina militar e sua hierarquia) após Luiz Carlos Prestes ter-se negado a comandar “uma revolução da Oligarquia” pelo Manifesto de Maio. Após algumas escaramuças, por mediação do cardeal Leme, Washington entrega o poder a uma junta militar. Góis Monteiro e os outros chefes revolucionários (Miguel Costa, Flores da Cunha, João Alberto, Batista Luzardo) não acreditam na simples deposição de Washington; querem o poder para Getúlio. Avançam até o Rio de Janeiro, amarram seus cavalos na porta do Catete e entregam o poder discricionário a Getúlio. O governo provisório dissolveu o Senado, a Câmara dos Deputados, as Assemblétias estaduais e as Câmaras municipais, demitiu funcionários e nomeou interventores para os Estados. Getúlio, como hábil estadista e, seguindo o ideário positivista conseguirá: - Atender ao movimento tenentista dando os governos do Nordeste a eles e instituindo Juarez Távora como um “vice-rei” do Nordeste. A inexperiência administrativa fá-los-á fracassar, com exceção de Magalhães na Bahia. - Resolver a questão do café com o Instituto Brasileiro do Café que comprará o estoque de 16 milhões de sacas para serem incineradas como combustível de locomotivas e estabelecendo o cafezinho como bebida oficial das repartições públicas em substituição ao chá inglês. Ficou assim garantido o preço e o lucro dos cafeicultores. - Resolver a questão açucareira com o Instituto Brasileiro do Álcool e do Açúcar, obrigando a inserção de 20% de álcool na gasolina; - Organizar um projeto de modernização econômica do Brasil através de um projeto de industrialização, criando a infraestrutura necessária: siderurgia (Volta Redonda), energia elétrica (Paulo - Afonso, Três Cachoeiras...), estradas e meios de comunicação e, especialmente garantindo financiamento através da poupança do dinheiro da agricultura e pecuária. Seguirá depois de 1950 a nacionalização do Petróleo, a Fábrica Nacional 233


Rio Grande do Sul Arquétipos Culturais e Desenvolvimento Social

de Motores, o controle da remessa de lucros... Entregará a direção do projeto nacional desenvolvimentista industrial à Federação de Indústrias de S. Paulo. - Em educação e cultura: criará o Ministério da Educação, as Universidades, o ensino Técnico Industrial, Agrícola e Comercial. - Para os trabalhadores: criará a legislação trabalhista codificada em 1943 na CLT, com um salário mínimo, 8 horas de trabalho diário máximo, licença de saúde e de gestante, férias remuneradas, descanso semanal, aposentadoria, justiça específica do trabalho, sindicatos (atrelados ao ministério do Trabalho)... - Por amizade e, em reconhecimento pela interferência do Cardeal Leme na entrega do poder a Getúlio em 1930, haverá um clima amplo de colaboração com a Igreja, após 40 anos de separação legal e absoluta proveniente da Constituição positivista de 1891. A igreja intentará refazer o Estado de Cristandade com articulações e demonstrações cada vez mais massivas de poder: o Cristo do Corcovado, os Congressos Eucarísticos, a Liga Eleitoral Católica... A modernização do Brasil de agrária para industrial, o regime centralizador autoritário propugnado pelo positivismo, o cooperativismo econômico e político tão próprio do fascismo, a integração das camadas sociais até então excluídas de qualquer projeto de nacionalidade brasileira serão, em grande parte obra de Getúlio e uma “contribuição” do RS. Os interventores serão nomeados até 1945, apesar da Constituição de 1934, e dentro do golpe de 1937. O RS terá como interventores: De 1930 a 1937: Gen. José Antonio Flores da Cunha. Recuperou as finanças combalidas do RS (o tesouro raspado e 50 mil contos de réis de bonus emitidos para financiar a revolução) encampando o Banco Pelotense364 em falência. Criou 364

O Banco Pelotense com 96 agências no Estado, no Brasil e nos principais centros internacionais, era de propriedade dos charqueadores e comerciantes pelotenses. Reunia a poupança da grande maioria dos imigrantes da Serra e faliu, segundo se diz, por uma vingança pessoal de Getúlio por dois motivos: pelo não apoio dos pelotenses à revolução e por ter-se o Banco negado a financiar o cunhado de Getúlio em S. Borja. Levantado o boato de que o Banco estava em dificuldades, houve a

234


O Rio Grande do Sul no Estado de Cristandade Colonial

rodovias ao redor da Grande Porto Alegre, a Secretaria de Educação365 e da Agricultura, construiu o Instituto de Educação que até hoje leva seu nome. Criou o PRL (Partido Republicano Liberal) como coalizão e, com ele obteve vitória na eleição para o período 1934-39. Divergindo de Getúlio que, ao preparar o golpe de 37, nomeia Daltro Filho como comandante da 3ª Região Militar, abandonado por 9 deputados do PRL, Flores da Cunha renuncia ao cargo e se refugia em Montevidéu. Getúlio nomeia o gen. Manoel de Cerqueira Daltro Filho como interventor e, em 10.11.37 dá o golpe de estado, revogando a Constituição de 34, dissolvendo o Congresso e os partidos políticos. “O RS passou a ser um estado policialesco, transgredindo os direitos dos cidadãos, que até para viajar para outras cidades necessitavam de salvo conduto ou de cartão da polícia”366 Daltro Filho morre em 1938. O cel. Osvando Cordeiro de Faria o substitui no autoritarismo. O DAER inicia construção de grandes rodovias, diminua a mortalidade infantil, melhora o salário do magistério. Em 1942 Ten. Cel. Ernesto Dorneles é nomeado: Plano de eletrificação estadual. Góis monteiro acompanhará Getúlio até 1945 como ministro da Guerra e deporá Getúlio em 29.10.45, entregando o poder a José Linhares que promoverá a eleição de Dutra e a constituinte. Walter Jobim, eleito em 47, promove a eletrificação, constroi as estradas Porto Alegre-Bagé, Santa Maria-Uruguaiana, Guaíba-Camaquã, Osório-Mampituba. Ernesto Dorneles empossado em 31.1.1951, prossegue os planos de Jobim. corrida ao Banco que, sem recursos de liquidez pediu socorro ao banco central, e este negou o socorro. Falido, os bens superaram em muito os débitos. Mas até hoje o Banco Pelotense não se reergueu. Está aqui um dos fatores determinantes da ruína de Pelotas e do estancamento do progresso da Região Sul do RS. 365

366

Em 1931 Getúlio, ao mesmo tempo que reconhece o direito de voto das mulheres, cria o Ministério da Educação que abrirá espaço ao surgimento das Universidades (a primeira em 1934: USP). FLORES, 19 86: 104. 235


Rio Grande do Sul Arquétipos Culturais e Desenvolvimento Social

Ildo Meneghetti, empossado em 1955, depois dos grandes tumultos que se seguiram à morte de Getúlio, continua a eletrificação, constrói escolas e a travessia do Guaíba. Em 1959 toma posse, pela coligação PTB-PRP-PSP, Leonel de Moura Brisola que, na linha do fortalecimento do nacionalismo, encampa as inoperantes e espoliadoras companhias de eletricidade e telefonia, constrói mais de 3.000 escolas (mais que duplicando o número anterior) multiplicando o número de professores e elevando seus salários, inicia a construção da Estrada da Produção ligando Porto Alegre ao Alto Uruguai pelo vale do Taquari. Após efêmero e teatral governo de Jânio Quadros que se elegeu com um programa de moralização pública simbolizada numa vassourinha, João Belchior Marques Goulart que representava como vice-presidente as classes trabalhadoras e as esquerdas, se vê impedido de assumir a presidência, estando em viagem oficial pela China. “Odílio Denys, ministro da guerra, Silvio Heck, ministro da marinha e Grum Moss, ministro da aeronáutica, formaram a junta militar que pressionou o Congresso para que declarasse João Goulart impedido de assumir a presidência”.367 Brizola, cunhado de João Goulart, articula o Movimento da Legalidade, mobilizando profundamente a opinião pública por rádio, e organizando a resistência, com o apoio do Comandante Geral do 3º Exército, Gen. Machado Lopes, e com a relutância dos demais comandos militares do Brasil em desencadear uma sangrenta guerra civil, o Congresso negocia, através de Tancredo Neves a transição para o Parlamentarismo em que o próprio Tancredo seria Primeiro Ministro, o que é aceito por Goulart, sob a condição de que fosse submetido a um plebiscito. O plebiscito de 1963 revogou o Parlamentarismo, retomando Goulart os plenos poderes. Brizola incentiva o movimento de reforma agrária, desapropriando terras e realizando protótipos de reforma como as do Banhado do Colégio de Camaquã, as da Fazenda Anoni, Santa Rita e outras, organizando os grupos dos 11 (de militantes agricultores em favor da Reforma Agrária, de cunho socializante), instalando a Aços Finos Piratini e lutou por infra-estrutura industrial. 367

FLORES, 1986: 106.

236


O Rio Grande do Sul no Estado de Cristandade Colonial

Ildo Meneghetti, reeleito em 1962, enfrenta movimentos sociais cada vez mais amplos. Esses movimentos e as manifestações da esquerda culminando no comício da Avenida Brasil do Rio de Janeiro (13.3.64), em que Jango assina as Reformas de Base (Agrária, Bancária e de Remessa de Lucros, e Universitária) aumento do custo de vida, corrupção desenfreada, revolta dos sargentos, revolta dos marinheiros, o desrespeito aos valores da Família, Deus e Propriedade serão os argumentos que os “militares jacobinos” usarão para o golpe militar de 31.3.1964. Meneghetti, refugia-se em Passo Fundo, associado aos militartes golpistas. Brizola, agora deputado federal pelo Rio de Janeiro, organiza a resistência em Porto Alegre. Diante da iminência de uma guerra civil sem perspectivas, Jango, foge para o Uruguai. Brizola seguirá o mesmo caminho, disfarçado. E ficará no exílio até 1978. Indicado pelos ditadores o Cel. Walter Perachi de Barcelos será “eleito” (pelo voto dos deputados e apenas pelos da Arena) em 1967. O mesmo caminho seguirá Euclides Triches em 1971, Sinval Guazzelli em 1975, e José Augusto Amaral de Souza (7983). Com dinheiro e sem liberdade, foram construídas algumas obras de infra-estrutura: usinas de Passo Real e Passo Fundo, Auto-estrada Porto Alegre-Osório, ampliação do III Polo Petroquímico, iniciada a construção do súper-porto de Rio Grande, inaugurada a usina termeletrica em Candiota. Por outro lado é implantada à força a reforma do ensino universitário e de Primeiro e Segundo Graus,368 com a diretriz nefasta de Segurança Nacional, Comunidade e Desenvolvimento, tudo entendido segundo a perspectiva da USAID. Com a ditadura, tanto em nível nacional como de RS, desmantelou-se a organização estudantil, operária, camponesa e implantou-se censura, a tortura, a delação, a morte, a prepotência. Ao mesmo tempo, o desenvolvimento nacional entregue às leis de livre mercado e de 368

Ante a lei n. 5692 de 1971, o RS implantou sua reforma educacional, “retreinando” professores, proibindo o debate, inculcando as disciplinas “formadoras”de moral e cívica no ensino de primeiro e segundo graus e a de Estudo de Problemas Brasileiros no 3º grau. A filosofia desapareceu da escola como posicionamento crítico, e ficou apenas como seu rosto Analítico (inofensivo e pragmático) nas universidades. Os professores que, em Pelotas(1973-1974), tentaram debater os critérios e currículos que estavam sendo impostos à educação, foram todos “fichados” politicamente e marcados como subversivos. 237


Rio Grande do Sul Arquétipos Culturais e Desenvolvimento Social

subserviência do Estado ao capital, transformou uma dívida externa de 1,2 bilhões de dólares de 1963 para mais de 20 bilhões em 1971 e para mais de 500 bilhões de hoje. Por outro lado a concentração de renda foi acirrada e com ela a emigração do homem do campo, a urbanização sem plano nem rumo, e por fim o desemprego atual. Hoje o Brasil ostenta o primeiro lugar mundial de concentração de renda, o 9º lugar em renda, o 5º lugar em violência e o 4º lugar em desemprego no mundo. O mentor da Ideolgia da Segurança Nacional é o riograndino Golbery do Couto e Silva. Os presidentes do período mais duro da repressão serão gaúchos também: Médici, Costa e Silva. Castelo Branco e Figueiredo embora os dois últimos não tivessem nascido aqui, aqui aprenderam suas idéias e formação militar. Foi, também com o gaúcho Geisel que recomeçou o abrandamento da ditadura. Depois de 1983 virão Jair Soares, Pedro Símon (posse em 1987), Alceu Colares ( posse em1991), Antonio Britto (posse em 1.1.95) e Olívio Dutra (posse em 1.1.99), herdando as cicatrizes da ditadura: um sistema federativo que privilegia as oligarquias e os currais eleitorais do Nordeste, que retira do RS suas conquistas comunitárias e libertárias, que diminui a importância econômica, política, social e cultural do RS em favor do desculturamento nacional e a imposição de padrões culturais alienígenas, que acirrou a divisão ideológica e favoreceu os messianismos religiosos pentecostais e que fez do RS um corredor comercial do centro do Brasil para com o Mercosul. Depois da queda do muro de Berlim (1989) e da falência dos socialismos concretos, a perspectiva cultural para o RS está posta em debate. Mais do que nunca é um momento de crise e este, como todo o caos, é início de novos horizontes. 3.5.6 O RS na última década de 1900 A última década do RS é marcada por profundas mudanças em sua fisionomia e identidade. Com a entrada do Brasil no Mercosul, o Estado gaúcho viu entrar em crise sua produção histórica agro-pastoril e agro-industrial. Influenciou muito nesta perda a mudança de peso nos fatores da produção e a política do Governo Central de incentivos fiscais à exportação de produtos agrícolas, sem compensar os estados produtores pela diminuição na arrecadação tributária. 238


O Rio Grande do Sul no Estado de Cristandade Colonial

Assim o RS deveu arcar com investimentos cada vez mais vultosos na infra-estrutura industrial, com os parcos recursos que sobravam. Cresceu mais de 5 vezes a dívida do Estado assim como o percentual de seu orçamento destinado ao pagamento dela. A região sul perdeu as indústrias mais fortes de transformação de produtos agrícolas como é o caso de Pelotas. O desemprego e o sub-emprego cresceram espantosamente (19% da força ativa). A falta de renovação tecnológica do equipamento industrial e o não investimento em setores de maior valor agregado, apesar da mão de obra abundante e altamente qualificada, tornou a indústria obsoleta e sem rentabilidade. Restou o latifúndio de produção extensiva e a lavoura do arroz. A fruticultura, pelos jogos de interesse da grande indústria, perdeu espaço. A indústria metal-mecânica da Serra e da Grande Porto Alegre cresceu. A indústria coureiro-calçadista regrediu ou migrou para os Estados Nordestinos onde a mão de obra é bem mais barata e propicia maiores lucros. Por outro lado, a integração do RS no sistema de abastecimento de gás natural proveniente da Argentina, a conclusão da usina termelétrica de Candiota, a construção de hidrelétricas como a de Itá, na divisa com SC, oferece novas perspectivas. Nelas se integram a decisão da Petrobrás de investir na Bacia de Pelotas que oferece chances de excelente campo petrolífero. Ressalte-se que Santa Vitória e S. José do Norte interligaram-se à rede de energia provinda de Candiota. A infra-estrutura viária, abandonada quase uma década, voltou afinal a ter investimentos e melhorias. Ressalte-se a duplicação da BR 101 e parte da 116, o projeto da Rodovia do Mercosul que ligará o Brasil a Buenos Aires pela ponte de Colônia. A perspectiva de conclusão da Estrada do Inferno (S. José do Norte-Osório) e o investimentos nas estradas estaduais do interior do RS, bem como o reequipamento e modernização dos portos e aeroportos são sinais promissores para o desenvolvimento econômico. É contudo discutível politicamente o fato de toda essa infraestrutura, assim como a telefonia e os meios de comunicação, serem entregues a grupos estrangeiros que nisso só visam lucro. Os pedágios, os preços da telefonia e energia tendem a subir exorbitantemente sem que o Estado neo-liberal possa controlá-los. Em contrapartida ao neo-liberalismo da economia globalizada, estrutura-se no RS uma reação política e social cada vez mais forte. O 239


Rio Grande do Sul Arquétipos Culturais e Desenvolvimento Social

exemplo disso são os movimentos sociais que recrudescem como é o caso do MST (Movimento dos Sem Terra) e a ascensão destacada dos partidos socialistas como o PT. Este governa Porto Alegre há mais de uma década e tende a vencer as eleições de 2000 para mais 4 anos de mandato. A força deste partido não aparece somente nas maiores cidades como Caxias do Sul, Bagé, Canoas, Pelotas, Gravataí, Esteio, Santa Maria, como também em muitos municípios de menor expressão populacional, sem contar que desde 1998 detém o governo do Estado na pessoa de Olívio Dutra. Com seu programa de intensificação da participação popular como se verifica no Orçamento Participativo (que iniciou em Pelotas em 1984 quando éramos Secretário de Educação do governo Bernardo Souza), e os Conselhos Regionais de Desenvolvimento o PT imprime uma nova identidade política ao Estado. Evidencia-se outrossim pelo esforço de ética na política resgatando raízes históricas do RS decantadas pelo folklore e evidente também nas organizações comunitárias de todo tipo. O enfrentamento entre neo-liberalismo e participação popular se mostra claro no tratamento das políticas públicas de saúde, educação, segurança, reforma agrária... A produção cultural explodindo em miríades de Encontros, Califórnias e outros nomes mais sugestivos, com a proliferação de Academias Literárias, Museus, Orquestras, Grupos Teatrais... traz à tona não somente a memória, mas também e cada vez mais a utopia de uma sociedade mais igualitária e participativa. O ensino submetido à avaliação, busca renovar-se em todos os níveis. Por fim, cabe destacar o crescimento de movimentos religiosos pentecostais e carismáticos acenando com perspectivas intimistas e sem vinculação com os compromissos de justiça econômica e social, ao mesmo tempo que oferecem soluções simplificadas e até supersticiosas dos problemas gerados pela estrutura e funcionamento da sociedade. É forte, neste sentido, a tendência a um retorno ao Estado de Cristandade, quando sua superação parecia uma conquista religiosa e humana já em andamento. É alvissareiro perceber, por outro lado, que a formação teológica de lideranças leigas e religiosas fortalece e dá coerência às pastorais sociais.

240


O Rio Grande do Sul no Estado de Cristandade Colonial

3.5.7 Os dois RGS Ao longo da história de pouco mais de 300 anos de presença do europeu, o RS constituiu-se em duas metades com características marcadamente diversas. Podem, assim, alguns falarem de duas metades do RS: a Metade Sul e a Metade Norte, tendo como linha divisória, de Guaíba a S. Borja, o rio Jacuí. O que caracteriza a região sul ou da Campanha composta pela depressão central, pelos campos meridionais (a ela podem ser associados também os campos de cima da Serra), pode ser sumariado da seguinte maneira: 1. É a região que, primeiro foi povoada pelos ibéricos e que, por primeiro foi apropriada por particulares, em forma de latifúndios de produção extensiva369 de pecuária; 2. A região traz a marca indelével da escravidão bem como do peão de estância; o trabalho traz um significado bem diverso do que o vivido na região norte; 3. Com o domínio econômico e a hegemonia política do Rio Grande do Sul, a metade sul, até 1930, produzia lideranças políticas, e trazia em sua bagagem histórica as guerras de conquista do território e de fixação das fronteiras, a Revolução Farroupilha, o folklore do tradicionalismo e o gentílico ( “gaúcho”) que inspiram e identificam o Estado do RS e ostentava a maior pujança econômica simbolizada pelo Banco Pelotense.370 Mergulhada hoje numa profunda estagnação ou retrocesso econômico, a metade sul mostra a derrocada do modelo colonial que fez do Brasil um conjunto de latifúndios, monocultores, escravagistas, em função da exportação. 369

As terras doadas a militares e povoadores mamelucos, em forma de sesmaria cuja extensão é de 13.000 hectares (podendo uma pessoa ou uma família possuir várias sesmarias), exigiam a ocupação e a defesa.

370

Fundado em 1906, propriedade da elite pelotense, o banco era o 3º em valor de depósitos do Brasil, com 96 agências espalhadas pelas principais praças do mundo, viu-se em enorme crise de liquidez diante da crise mundial de 1929 e da Revolução de 1930, enfrentando enorme campanha de descrédito (ao jeito de Castilhos e de Getúlio Vargas, que, aliás, terá em Pelotas opositores que apoiam os paulistas no movimento de 1932) e tendo que entregar ativo e passivo ao Banco do Estado (criado em 1929) que se obrigava a pagar os créditos aos depositantes num prazo de 40 anos, ficando os bens dos principais sócios indisponíveis e nada recebendo em troca de suas ações, embora o patrimônio do banco superasse em muito suas obrigações. Isto descapitalizou a região, especialmente Pelotas. 241


Rio Grande do Sul Arquétipos Culturais e Desenvolvimento Social

4. A concentração crescente de renda, da qual o Brasil é campeão mundial, encontra na Metade Sul do RS o ponto culminante do Estado. Com efeito, se o Brasil tem concentrada, nos 10% mais ricos, mais de metade da renda e o Estado de S. Paulo concentra mais de 42% da renda nacional, na Metade Sul do RS, os 10% mais ricos concentram mais de 75% da renda regional. A região Norte, de propriedade predomiantemente familiar, não tem essa aberração. Se a renda per capita do Estado sextuplicou entre 1939 e 1980, a uma média de 4,45% anual, se Pelotas e Bagé tinham em 1939 renda per capita superior à média estadual, no entanto, no período, Pelotas cresceu 2,32%, Bagé cresceu 3,46%, a mesma média que Passo Fundo, um dos lugares em que menos cresceu a região norte. Caxias do Sul que, em 1939, tinha menos de metade da média da renda estadual, em 1980 ostentava a mais elevada do Estado prevendo-se para 2.022 uma renda média 4 vezes superior a de Santa Maria e Uruguaiana e 13 vezes superior a Bagé.371 5. Tão evidente é a degradação da situação social da metade sul, como se fora um novo Nordeste brasileiro, que entre as promessas não cumpridas pelo presidente Fernando Henrique Cardoso (em campanha eleitoral), cuja dissertação de mestrado versa sobre a Escravidão no Brasil Meridional, estava a priorização para investimentos econômicos e sociais para a região sul do RS, tanto quanto para o Nordeste do Brasil. 6. No século XX, a força política da Metade Sul, esvaiu-se. “Tenho escrito que a decadência da Metade Sul se originou na derrota sofrida na Guerra Civil de 1893-1895. Àquela época, a Metade Sul detinha a hegemonia política e econômica. O projeto castilhista372 tinha como claro objetivo a destruição daquela hegemonia. A Metade Sul pegou em armas numa desesperada e fracassada tentativa de evitar isso. Seguiu-se a punição castilhista, feroz como era de seu feitio. Por quatro décadas, a Metade Sul virtualmente não teve representação política no Estado (o castilhismo negava representação às minorias). 371

Cf. Economia Gaúcha e os anos 80. Porto Alegre: Fundação de Economia e Estatística, 1ºvol., 1990. Cf. Banco de dados da zona sul-RS. ITEPA, Boletim informativo (10 volumes). Pelotas: Educat, 1989-1999.

372

Cf. Rodríguez, Ricardo Vélez. Castilhismo: uma filosofia da República. Porto Alegre: Escola Superior de Teologia S.L.Brindes e UCS, 1980. Cf. também Tambara, Elomar. Positivismo e Educação: A educação no RS sob o castilhismo. Pelotas: Edufpel, 1995.

242


O Rio Grande do Sul no Estado de Cristandade Colonial

Análise dos orçamentos estaduais revela como, ao longo do período, diminuíram persistentemente os investimentos do governo estadual na Metade Sul, em benefício da Metade Norte. Ainda hoje, a Metade Sul sente-se discriminada e injustiçada ao ver seus recursos aplicados no desenvolvimento da Metade Norte. Embora constitua mais de metade do território do Estado, abrigue 30% da população e produza 25% das receitas públicas, recebe na forma de investimentos apenas 9% destas últimas.”373

A representação política da Metade Sul continua expressando seu declínio econômico e social. Dos 31 deputados federais do RS, apenas 6 são da Metade Sul. Na legislatura anterior era menor ainda. Dos 55 deputados que compõem a Assembléia Legislativa do RS, apenas 9 pertencem à Metade Sul. Nenhum nome da Metade Sul compõe o primeiro escalão do atual governo do RS. Ao declínio econômico, político e social soma-se ainda o empobrecimento demográfico devido à baixa natalidade, menor expectativa de vida e constantes migrações de seus braços mais produtivos.374 Diante de um sentimento de impotência política que se generaliza, algumas lideranças propõem o desmembramento da Metade Sul num novo Estado da Federação Brasileira. 375 A derrocada econômica, social e até cultural é atribuída ao abandono político a que foi relegada a região. Sem vincular a estagnação à estrutura de latifúndio improdutivo ou escassamente produtivo, à falta de modernização que não permite uma industrialização competitiva,376 sem atentar seriamente que a brutal concentração de renda da região tende a fazer com que a 373

Freitas, Décio. As metades desiguais. Zero Hora, em 20/02/2000, pg. 13. Para o orçamento de 2001 estão previstos para a Metade Sul 6% dos investimentos estaduais.

374

Muito poucos dos alunos formados na Escola Técnica Federal encontram emprego e trabalho na Metade Sul. O mesmo pode ser dito dos cursos de Agronomia, Veterinária, Engenharia elétrica e eletrônica...

375

Um dos principais líderes do movimento é o ex-deputado federal e ex-prefeito de Pelotas, Irajá Andara Rodrigues. Espera que o projeto de plebiscito seja aprovado no Congresso nos próximos meses e seu pensamento pode ser lido em Diário da Manhã, Pelotas, 16.04.2000, Segundo Caderno, pg. 4 e 5.

376

Pesou fortemente para a não-modernização da Metade Sul, o estabelecimento feito pela Constituição de 1934 e 1937 de 100 e 150 km de faixa de fronteira (mais de metade da área da Metade Sul) como área de segurança nacional, praticamente proibindo indústrias e investimentos de vulto e expulsando da região os capitais extrangeiros que foram fortalecer a Metade Norte. 243


Rio Grande do Sul Arquétipos Culturais e Desenvolvimento Social

“redistribuição dos recursos públicos será inevitavelmente apropriada pelas mesmas minorias privilegiadas”, sem atentar suficientemente que essa região tende a não valorizar o trabalho (é escravocrata desde a origem) e a comunidade, permanecendo com seus dramáticos problemas sociais, apontam a separação como panacéia de todos os males, dizem seus críticos. Mostram os políticos, com razão, que seu orçamento, sua representação política e a necessidade de concentrarse sobre os problemas específicos da região, trarão novo alento e nova esperança. Os políticos da Metade Norte, percebendo os prejuízos que esta região terá com a divisão, tendem a opor-se ao projeto de decreto legislativo que autoriza o plebiscito decisório. 7. A hegemonia política de região sul, com sua estrutura e mentalidade militar de estancieiros e charqueadores punha a máquina do Estado em função das elites e de seus interesses. A grande influência da maçonaria, do positivismo iluminista, da religião subordinada ao Estado e ao Político como se fosse um departamento daquele; a laicização e privatização da religião com oratórios e santos da família; a pouca ou quase nenhuma oração em família; a manutenção de rituais exteriores de “respeito” à religião, como tirar o chapéu e persignar-se diante de uma cruz, de uma igreja ou cemitério; as raras reuniões religiosas a não ser como ritual social de homenagem aos familiares defuntos, isto tudo distinguiu a cultura e a religião da Metade Sul em relação à região de imigração do Norte do Estado. Mais do que nunca, na Metade Sul, a religião cimentava ideologicamente o status quo. O modo de produção, a tecnologia, o desforço, a propriedade familiar; a comunidade, a autoridade absoluta do padre, do bispo, e de suas orientações; a educação na família, na catequese familiar e na capela, na alfabetização (1945: 70% das crianças maiores de 7 anos eram alfabetizadas); a cultura centrada na religião, no padre e seu controle, na igreja como único espaço social e integrador, na família que rezava unida e controlava a todos a partir da oração e da moralidade rígida, tudo isto marcou a cultura dos imigrantes da Metade Norte. Aí funcionavam como mecanismos de controle: o catecismo, a liturgia, a confissão, os sermões, a imprensa católica, e a proibição-demonização das outras religiões; a negação da racionalidade independente, da insubordinação aos pais e aos padres, da liberdade sexual, do aborto e do amor livre, a vituperação de “imoralidade” dos lazeres (sexo, revistas, danças, bailes, carnaval), da insubordinação contra a ordem estabelecida e divina, contra a “civilização ocidental e cristã’, contra os dogmas e orientações da Igreja; a demonização das idéias e partidos 244


O Rio Grande do Sul no Estado de Cristandade Colonial

socialistas e comunistas. Controle exterior e interior: econômico, político, social e cultural. Controle que chama a si a polícia para ajudar e louva os mantenedores da ordem do “catolicíssimo Brasil”. Mentalidade que explica, em boa parte a afinidade com o castilhismo político e que fará com que, para lutar contra o latifúndio charqueador “retrógrado” Castilhos, Borges de Medeiros e Getúlio cooptarão e beneficiarão a Metade Norte do Estado: as idéias de ordem e progresso, de moralização pública através da educação científica, o Estado como tutor da sociedade, a “pureza de intenções” como a ética do político, o conservadorismo, o autoritarismo, o centralismo, o republicanismo etc.377 Por isso, passa a ser um dever religioso respeitar e apoiar a autoridade, em busca da ordem social. 4. Arquétipos culturais identitários do RS Percorridos, assim, mesmo que sucintamente, os caminhos da história do RS no contexto do Estado de Cristandade, é hora de concluir apontando alguns arquétipos culturais que balizam o pensar, o agir e o fazer na terra gaúcha hoje. Temos sempre como pré-suposto o que Merleau-Ponty diz da percepção,378 mostrando que o olho não vê apenas aquilo que “foca” mas que o foco do olhar é marcado e determinado pelo campo, pelo contexto, pela penumbra que não é tematizada pelo olhar como foco. Assim o arquétipo não pode ser apanhado como um objeto material mensurável e detectado objetivamente. Ele, como o mundo379 (e não apenas o meio ambiente), como a história, como a tradição, não é objetivável como conteúdo apenas de uma análise científica. Permanece sempre como o horizonte de interpretação e de ação. Sempre presente em cada significado, em cada comportamento, mas sempre adiante de cada gesto e de cada evento. Ele não é apenas 377

Rodríguez, Ricardo Vélez. Castilhismo, uma filosofia da República. 1980.

378

Cf. O olho e o espírito, bem como Fenomenologia da Percepcão.

379

Mundo não é apenas a natureza, o ambiente físico, ou biológico. Os animais têm meio-ambiente, só o homem tem mundo. Os franceses denominam-no “milieu”. Mundo é tomado aqui no sentido que lhe deu a Fenomenologia desde Husserl, Heidegger, Gadamer (Cf. Verdade e Método: 644) como o conjunto de todas as significações, mergulhado nas quais o homem toma posto, toma consciência. Ser homem é assim, ser-no-mundo. Destacamos que o mundo não implica apenas em finitude, temporalidade, história, mas também espaço para a liberdade e para a utopia. 245


Rio Grande do Sul Arquétipos Culturais e Desenvolvimento Social

memória que compõe o significado dos fatos, mas também antecipação, construção, utopia que ultrapassa os fatos. Mostra-se nos fatos mas não se reduz a eles, como explicitamos na introdução. Homem nenhum, porém, é seus arquétipos, nem um ou o conjunto deles. O homem tem mundo e tem palavra, mas não é o mundo nem a palavra. O mundo e a palavra implicam em ultrapassagem, em abertura. O homem é humano. Fazedor de sínteses que, concretamente ultrapassam sempre a oposição e a contradição. Assim o gaúcho, que recebe influência tão profunda do Estado de Cristandade, da Europa, dos índios...não é apenas o conjunto dessas influências mas o elaborador permanente de sínteses ultrapassadoras, a partir e de dentro dessas influências. Para que essas sínteses sejam possíveis, é preciso que, “inspirados” em nossos arquétipos com-preendamos nossa vida cotidiana como participação e desafio histórico.380 De qualquer forma a tematização dos arquétipos culturais formadores do RS é também uma proposta de visão, um anunciar constatando e prenunciando. O arquétipo é vivido antes e além de ser objetivado como tema do conhecimento. É nele que conhecemos e tomamos consciência de nós, do mundo e do próprio arquétipo. Todo projeto humano, incluindo o projeto de desenvolvimento social de um povo, lança raízes e se nutre da tradição, da memória, do mundo que, ao mesmo tempo, é a trama e a rede das relações econômicas, políticas, sociais, culturais, com suas possibilidades, limitações e esperanças. Acenaremos para alguns dos arquétipos da organização econômica, da organização social, política e cultural do RS 4.1 Arquétipos da organização econômica Nas formas de produção desenvolvidas no RS, (abrangendo o tratamento que o homem dá à natureza, a tecnologia, a força de trabalho, o nível de produtividade alcançado, o processo de elaboração, de apropriação, de distribuição e de consumo do produto, a partilha da renda), em tudo atuam os arquétipos recebidos e trabalhados nos séculos de história gaúcha. Saltam aos olhos, desde logo, os significados da propriedade e do latifúndio; a estância e a pecuária; o trabalho escravo, semi-servil, o trabalho do peão, do agregado, do posteiro...do charqueador 380

Cf. Boff, L. A Águia e a Galinha, pg. 112

246


O Rio Grande do Sul no Estado de Cristandade Colonial

contraposto ao trabalho enquanto constituidor da identidade e da riqueza; a inserção no mercado de produção, de comércio e de consumo; a tecnologia, sua inovação e sua recepção. Os patamares de equiíbrio entre eficiência econômica, liberdade política e equidade social. 4.1.1 A propriedade e o latifúndio O RS foi constituído, em meio às guerras de fixação de fronteiras dos Impérios Ibéricos localizados no interior do Estado de Cristandade, especialmente através das Concordatas do Padroado, (sobre terras povoadas pelos índios e estruturadas em estâncias de sobrevivência das Reduções), em latifúndios de pecuária extensiva, escravagista, e de exportação. A apropriação da terra (usurpação...) e do gado se fez em nome do rei e em nome de Deus e da religião, através de poderes concedidos ao rei por concordatas, com seu representante o papa. A propriedade se fez desde o início, sagrada. A sacralização da propriedade em forma de latifúndio é vivida como um dos arquétipos definitórios da história e da utopia do RS. A institucionalização desse modelo arquetípico de latifúndio, monocultor, escravagista (ou semi-servil) e exportador, se fez na organização e funcionamento da estância e da charqueada. Estas são a síntese arquetípica da organização econômica, política, social e cultural do RS. A esse modelo se contrapõe, depois, o da colônia de imigrantes, especialmente a partir da intensificação da imigração: 1824, 1850, 1875... Na região de colonização predomina a pequena propriedade de economia familiar, com policultura de subsistência e pequeno excedente para o mercado interno, centrada no trabalho livre dos numerosos membros da família, na comunidade e na religião de Cristandade. Hoje, esse modelo tomou novas dimensões. Antes de mais nada, porém, está o arquétipo da propriedade da terra. A terra que estava ocupada, que não foi comprada, que não foi cedida para uso e satisfação das necessidades de quem chegou, a terra foi invadida e depois defendida como direito absoluto, imperial e divino. As terras do Rio Grande do Sul sempre pertenceram aos índios que, não tinham o conceito de propriedade da terra. Usavam-na comunitariamente, como posse coletiva, dádiva de Deus, espaço de liberdade. Espanha e Portugal como Estados Modernos, moldados 247


Rio Grande do Sul Arquétipos Culturais e Desenvolvimento Social

segundo os interesses da Burguesia, vinculam a terra à propriedade segundo a concepção indo-européia: jus utendi et abutendi. O homem é, porque é proprietário. A propriedade deriva da natureza do homem ou dos desígnios de Deus criador. Deus, o grande proprietário (o grande senhor) do universo, entrega o poder de propriedade a seu representante na terra: o papa. Este, em questões civis e temporais, delega-o ao Rei. A terra, portanto, pertence a quem o papa ou seu delegado, o Rei entregar. A propriedade de todas as terras do Brasil e das Américas foram entregues pelo papa Alexandre VI à Espanha e Portugal segundo a divisão estabelecida pelo tratado de Tordesilhas.381 Não importava quem estivesse nas terras, quem as possuísse desde tempos imemoriais. A propriedade seria atribuída a quem o Rei de Portugal e de Espanha, respectivamente, designassem para proprietário. A que título? Por descobrimento ou achamento? Terras que, sabidamente eram povoadas? O Estado de Cristandade que reunia o poder religioso-eclesiástico e o civil numa só mão, como se vê na instituição do Padroado que vigorou até a independência nacional para a América Latina e até a República para o Brasil, distribuía a propriedade da terra a quem quisesse. É interessante observar que, dos títulos jurídicos que hoje permitem a aquisição e ou a transmissão de propriedade, nenhum deles foi observado com relação à invasão da América. Não houve compra e venda, não houve doação, não houve posse mansa e pacífica que permitisse a aquisição da propriedade pela posse. Houve sim, o roubo, o esbulho, a usurpação impiedosa e prepotente, e tudo sob o manto da fé e do Estado de Cristandade. No imaginário da apropriação das terras do Rio Grande do Sul, justifica-se a posse e a propriedade como dilatação das fronteiras, engrandecimento da pátria, como conquista legítima de guerra contra os espanhóis. O que impressiona, enquanto arquétipo fundador da apropriação da terra no Rio Grande do Sul é que a terra dos índios382 e 381

Por este tratado de 1494 as terras descobertas aquem de uma linha imaginária que passaria a 370 léguas a oeste das ilhas de Cabo Verde pertenceriam a Portugal, as a oeste desta linha pertenceriam à Espanha. Esta linha imaginária, como se sabe passaria por Belém do Pará e Laguna em Santa Catarina. As terras do Rio Grande do Sul, portanto, pertenceriam à Espanha.

382

Quando da demarcação das terras dos índios entre Portugal e Espanha, consequente ao tratado de Madri (1750) Sepé Tiaraju, à frente dos índios bradava: “esta terra tem dono”. Esmagaram-no os exércitos de Portugal e Espanha unidos em favor dos “legítimos” direitos dos Impérios.

248


O Rio Grande do Sul no Estado de Cristandade Colonial

que os Jesuítas tentaram organizar em forma de Reduções-Missões para os próprios índios, seja tão ferozmente atacada como se os índios estivessem usurpando direitos de Portugal e da Espanha. E na luta encarniçada por terras, propriedades, riquezas, era urgente para Portugal “povoar” as terras de Rio Grande, distribuir sesmarias e títulos de propriedade a quem fosse fiel e subserviente à causa portuguesa e a quisesse defender. Assim se implantava o império mercantil salvacionista português dentro de um projeto que moldará o Brasil desde 1500: um conjunto de latifúndios, monocultores, exportadores e escravagistas. O conceito de propriedade, derivado do Estado de Cristandade, não é apenas um conceito econômico. É um conceito transcendental que funda e legitima a ordem econômica, social, política, cultural e religiosa no Brasil e no Rio Grande do Sul. À propriedade estão ligados conceitos de “sagrada”, “patriótica”, “natural”, “inviolável”, “fundamental”, fundamento da ética e justificativa da exclusão e do massacre. A defesa da propriedade confere dignidade a seu proprietário, fá-lo herói de fronteira. A propriedade limita e delimita toda a vida social e política e não é limitada por nada. O proprietário tem direitos, não tem deveres. A propriedade funda o direito político de votar e ser votado. Só votavam e eram votados os homens de “bem” cuja renda era superior a determinado montante. O voto era censitário. É interessante ver como Dante de Laytano inicia sua obra sobre a Origem da Propriedade Privada no Rio Grande do Sul, dizendo que ela “obedece estritamente às normas sociológicas que emanam das condições jurídicas expressas nas Ordenações do Reino de Portugal. E três foram essas coletâneas estatais de leis e regulamentos consolidados num sistema de uniformidade do Direito Civil, Comercial e Penal: Ordenações Afonsinas, Ordenações Manuelinas e Ordenações Filipinas( ...) onde reside o espírito do nascimento da sesmaria, como etapa inicial da ocupação territorial”383 . Mostra depois que no RS, “a evolução da propriedade rural, até que ela atingisse o status econômico da sesmaria ou da estância, passou por um período inicial que se denominou invernada e curral, tapera, sítio ou rincão cujas definições, embora não muito precisas, principalmente estas últimas, revelam a origem dos negócios de pecuária no Rio Grande do Sul”.384 383

LAYTANO, 1983, 13.

384

LAYTANO, 1983, 13. 249


Rio Grande do Sul Arquétipos Culturais e Desenvolvimento Social

O fundamento da propriedade é, para Laytano, sociológicojurídico. Simplesmente um fato social que se justifica porque é fato. O Positivismo, a pretexto de cientificidade, ajudou a considerar a conquista da América e do RS como um fato inquestionável. Um fato ineludível da civilização e do progresso. Um fato que se deve ao espírito altivo, guerreiro, vital da Europa e, antes de mais nada, de Portugal. O que interessa é o fato e não o seu sentido. Muito menos seu sentido ético. A ética resultaria do fato posto. Mas na contradição dos fatos está o grito do injustiçado e a necessidade de sua superação. A lógica da propriedade que gerou o mercado global e mundial dos dias atuais, aqui também mostrou sua eficiência. O Brasil, considerado como a oitava economia do mundo, contém em si mesmo o paroxismo da contradição do mercado: o Brasil é o campeão mundial de concentração de renda, com salários exorbitantes por um lado e humilhantes por outro. Assim, enquanto na Alemanha o maior salário não ultrapassa 6 vezes o menor salário, e na Itália, França, Estados Unidos não ultrapassa a 10 vezes, no Brasil, o mesmo Congresso que estabelece vergonhosa e humilhantemente um salário mínimo de 136 ou de 151 reais, também estabelece um teto de salários de 11.790 reais, podendo mesmo chegar a quase trinta mil reais com incorporação de privilégios. Isto significa que, legalmente, no Brasil os maiores salários dos funcionários públicos podem ser quase 200 vezes o menor salário. O mesmo acontece, e superlativamente, com os salários da empresa privada. Com 12 milhões de desempregados e 20 milhões vivendo na miséria, na maior exclusão da história, o Brasil tem uma pobreza crescente e um crescimento quase nulo por causa da pobreza. O Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (PNUD) “ ao avaliar 23 programas sobre a miséria, o relatório Pobreza 2000 destaca que, no Brasil, a ineficiência das políticas sociais dos governos e a má distribuição de renda levaram a um crescimento mínimo do país desde a década de 70. Considerando-se a população, o estudo informa que a pobreza no Brasil permanece quase do mesmo tamanho registrado há 20 anos. Quase 15% dos brasileiros estão abaixo da linha de pobreza, tendo de viver com menos de R$ 1,75 (um dólar) por dia.”385 Se é verdade que o RS tem um melhor nível de vida do que a média brasileira e se a distribuição de renda aqui é melhor, no entanto, na região sul do RS e exemplificativamene em Pelotas, 10% da população detém 87% 385

Correio do Povo, 5 de abril de 2000, pg. 12.

250


O Rio Grande do Sul no Estado de Cristandade Colonial

da renda, quando no Brasil os 10% mais ricos detém um pouco mais de 51% da renda. Como nunca a lógica da propriedade aqui marca e cicatriza. 4.1.2 O trabalho como uma contradição Para os índios, especialmente para os guaranis, o trabalho é a festa comunitária da produção. Sinal de honra que organiza os dias e as virtudes, e o casamento, a família e a sociedade. O trabalho visa a satisfazer as necessidades do grupo. Para os escravos, ex-escravos, ex-índio, ex-missioneiro, o trabalho é estigma de identidade negativa. Trabalhar é ser escravo para alguém. E ser escravo é não ser. Um escravo, ao ser liberto, (porque aqui a libertação não foi conquista, mas doação, bondade, concessão,) o ex-escravo não pode, não deve trabalhar a não ser por fidelidade a quem o libertou e criou. Viver é não-trabalhar. E quando se trabalha deve-se então seguir, o menos que se possa, as normas, a estrutura, as regras do trabalho. A racionalidade sempre lhe foi arma e opressão. A possibilidade de fugir da opressão é fugir do trabalho e de todas as suas normas. Assim, planejar, seguir um roteiro, poupar, aplicar, mesmo porque lhe foi proibido (pela negação da escolarização, pela negação de que tivesse um pedaço de terra, pela negação de que lhe sobrasse algum excedente...), não faz parte da vida do ex-escravo. E não só porque nossa cultura é latina e nossa religião o catolicismo, como pretenderam algumas conclusões apressadas. Nossa história consolidou assim nosso fazer e nosso pensar. O que faz um ex-escravo? Sabe, por um longa história, que ele não sabe nada, que ele não entende os por quês da vida e do trabalho, sabe que o patrão sabe ( e tanto sabe que o patrão está com o sucesso econômico, político, está com o poder....). Sabe que deve seguir, obedecer, ser dócil ao patrão, e depois? Bem, depois é festejar, é dançar, seguir rituais que, ao mesmo tempo, sejam os permitidos pela lei dos patrões e o reconduzam às raízes africanas ou indígenas esquecidas, no porão do inconsciente coletivo. É preciso distrair-se. E a distração não é sinônimo de descanso, de lazer, de festa. Especialmente da festa como celebração da vida que, com o fruto do trabalho consumido, se refaz e se mantém. Quando o fruto do trabalho é extorquido do trabalhador, de qualquer forma que o seja, não há festa, não há paz, há somente distração para que os limites da ordem social não se rompam. 251


Rio Grande do Sul Arquétipos Culturais e Desenvolvimento Social

A paz, no entanto, como a ética e a religião, é fruto da justiça.386 Por todos os motivos que chegam ao ex-índio, ao negro, ao peão, trabalhar é ignomínia, modo e símbolo da opressão. Uma opressão tão atávica que dela ele não consegue vislumbrar saída. A história de uma pátria livre em que teriam vivido seus ancestrais, não lhe é acessível. Perdeu-se, ficou na lenda. A história de uma pátria construída pelas mãos de escravos fugitivos, os quilombos, só lhe revela que tudo foi aniquilado. Impossível uma pátria livre, impossível até mesmo um quilombo. A construção, pelo trabalho, de uma pátria parece definitiva e definitoriamente negada. O que resta? Negar o próprio trabalho. O trabalho em seu sentido mais pleno. Só resta tolerar o trabalho como instrumento de inserção no mercado consumidor. E fugir dele tão logo se possa. Essa influência sobre o trabalho que se fez protótipo para todo o RS, teve, no entanto mais força identitária na metade sul. Aqui, a visão de trabalho trazida pelos imigrantes açorianos, que trabalhavam em suas terras, organizados em famílias e comunidades será modificada quando os açorianos deixam a agricultura para dedicar-se à pecuária como foi explicitado na formação histórica do RS. Para a metade norte do RS, de formação étnica predominantemente de imigrantes alemães e italianos,387 o trabalho tem outra conotação. Provindos de uma Europa recém saída do regime feudal, onde o trabalho rural ( o trabalho urbano e industrial era um transtorno recente) se situava no sopé das ordens hierárquicas da vida humana (os oratores, os bellatores e os laborantes), e o trabalho manual como indigno e vil (diante do trabalho intelectual, mais digno), e todo o trabalho visto como labor, pena, castigo decorrente do pecado, condição da qual não se podia fugir. Trabalho, que, no entanto é a condição de salvação. A crítica severa que a moral e a religião (Estado de Cristandade) faziam aos que, desde o início da Idade Moderna, fugiam do campo e da condição de servos da gleba, rompendo o pacto de dependência com os senhores, para procurar nas burgos um ofício, ainda pesa sobre os imigrantes. Apesar de os ofícios conquistarem reconhecimento social e político na estrutura social da Idade Moderna industrial, o trabalho, 386 387

Era o lema do papa Pio XII: “opus justitiae pax” Consideramos globalmente os imigrantes que povoaram a metade norte do RS, desde os alemães (que iniciam chegar em 1824), os italianos, poloneses, e outros grupos de menor expressão numérica.

252


O Rio Grande do Sul no Estado de Cristandade Colonial

sob a liderança dos burgueses ricos (fundamentalmente comerciantes), era valorizado pela invenção, pela criatividade, e, depois, pela produtividade, e não pelo esforço, pelo empenho ou pelo produto obtido. Assim, os trabalhadores que, enquanto povo são, segundo Voltaire “o populacho que só tem seus braços para viver” e que não necessitam ser instruídos como o bom burguês,388 devem ser constrangidos a trabalhar. O trabalho livre, independente da gleba ou da corporação de ofícios, é para o imigrante um ideal a ser perseguido. O trabalho familiar, numa fração de terras suficiente para a família, sem patrões, sem horário e sem dependência e controle de corporações, fará com que o colono, em jornadas de trabalho maiores do que as executadas na Europa, terá orgulho de se dizer trabalhador e mostrar à comunidade que merece a valoração ética de homem bom, de homem de confiança, porque trabalhador. E não lhe bastava esfalfar-se em exercícios musculares de trabalho, era preciso também que mostrasse a habilidade e a eficácia de seu trabalho. Assim, à noção de trabalho como pena, castigo e sofrimento “deste vale de lágrimas”, e ao ideal de trabalho livre e eticamente significativo, o imigrante agrega também a noção de trabalho como chance de se fazer um pequeno burguês, a chance de capitalizar, a chance de enriquecer. Trabalhador e proprietário de sua terra ou de sua pequena indústria, o imigrante vê reforçada essa concepção de trabalho pelo sucesso que vai obtendo. Em primeiro lugar o sucesso na alimentação,389 depois o sucesso no comércio do excedente, na poupança crescente, na aquisição de novas terras e na implantação de sempre maiores e melhores indústrias. Hoje é visível o orgulho com que os descendentes de imigrantes alemães e italianos ostentam suas indústrias, suas vitórias políticas e sua quase nova língua teuto-brasileira ou ítalo-brasileira. 388

VOLTAIRE. Carta de 1º de abril de 1766. In CASTEL, Robert. As Metamorfoses da Questão Social: 173.

389

Lembro de meu avô, João Zanotelli, contando que, tendo chegado ao Brasil na noite de natal de 1875 em Conde d’Eu, e tendo adquirido mais duas colônias (cerca de 50 hectares) em Jacarezinho, Encantado, vangloriava-se, em carta dirigida aos parentes que ficaram em Cembra, Trento, (Itália) do fato de ter carneado 20 porcos e 3 novilhas para fazer salames, num só dia. Vangloriava-se também pelo fato de que cabeças, patas, miúdos dos animais eram dadas a quem quisesse (geralmente caboclos ou índios) levar. Sabia ele que os parentes na Itália faziam festa quando, ao final do ano, conseguiam abater um porco e imbutí-lo como pudessem. 253


Rio Grande do Sul Arquétipos Culturais e Desenvolvimento Social

A defesa comunitária de seus interesses, a organização de suas escolas, de sua vida religiosa, de suas empresas será ainda mais confirmada pela representação política crescente e manifesta pelo nome de governadores, presidentes, deputados,390 etc. obviamente na esteira ideológica de um pequeno burguês, avesso que é a revoluções que ponham em perigo a propriedade e as conquistas de seu trabalho.391 Hoje, o trabalho, no RS, apresenta faces de contradição que clamam por superação. Por um lado os filhos de imigrantes, depois de constrangidos a abandonar as terras cada vez mais fracionadas e distribuídas à numerosa prole, e buscar terras de Santa Catarina, Paraná, Mato Grosso, Oeste, Norte e Nordeste do Brasil, também engrossaram as filas de necessitados de empregos nas cidades. O desemprego hoje, segundo estatísticas oficiais e que tendem a mascarar o problema minimizando-o, é o mais elevado de todos os tempos. A região metropolitana de Porto Alegre tem hoje mais de 19% de população ativa desempregada. E, dentro da lógica de mercado global vigente, o desemprego tende a crescer. Dos que perdem o emprego apenas 10% têm chance de recuperar outro. A maioria dos desempregados, lançase no mercado informal e, em pouco tempo, pelo fato de ter cansado de procurar emprego e desistir da busca, é considerada não mais deempregada pela pesquisa. Por outro lado, apesar do desmantelamento dos sindicatos e representação dos trabalhadores em suas reivindicações ser um fato global e crescente, o RS originou um movimento que leva em seu bojo um pouco de todos os arquétipos do Estado. O Movimento dos Sem Terra (MST), lutando por reforma agrária e por lugares de trabalho, nasceu da luta de descendentes de imigrantes afastados das terras, que eles pensavam suas, e que, na verdade, pertenciam aos índios. Acampados à beira da estrada (Encruzilhada Natalino), amparados pela pastoral da Igreja e por lideranças que lutavam por direitos humanos contra a repressão policialesca da ditadura, eles queriam terra para trabalhar e produzir. Politizado cada vez mais, o MST, transformou-se em movimento bem organizado e que surpreendeu cada vez mais pela 390

Hoje, fevereiro de 2000, mais de metade da Assembléia Legislativa do RS, composta de 55 deputados, é de descendentes de imigrantes italianos. E dos últimos governadores seus sobrenomes são: Meneghetti, Peracchi, Brizola, Triches, Guazelli.

391

Observe-se, porém, que os partidos de esquerda, incluindo o PT tem expressivos nomes oriundos da imigração.

254


O Rio Grande do Sul no Estado de Cristandade Colonial

agilidade de seus movimentos de invasão, pelo conhecimento da situação jurídica de terras, pela ampliação cada vez maior de suas reivindicações (escola, mercado, assistência técnica, trasnportes e infraestrutura, saúde, auto-formação e participação política...) e pela audácia de suas estratégias. Transformado em movimento nacional, exige definições de políticas de reforma agrária, cada vez mais radicais. O governo do Estado do RS, 392 secundou em financiamento, desapropriações e ajudas os núcleos do movimento. O Governo federal apressa-se em realizar assentamentos, em criar um Banco da Terra, para amenizar e neutralizar as reivindicações. Cada vez mais, também no RS, o trabalho é buscado como um direito de todos, uma exigência social e uma obrigação política, um fator de dignidade ética e identidade social e moral, muito embora, o desemprego seja alardeado como problema da globalização dita irreversível. Na globalização, o trabalho assalariado, a sociedade salarial como a denomina R. Castel,393 ao mesmo tempo em que fez do trabalho a primeira e definitória característica da identidade pessoal, retira para uma grande maioria crescente, a possibilidade do trabalho.394 Esses inúteis para o mercado e para o trabalho exigem cada vez mais, e cada vez em meio a indicadores de uma crescente instabilidade, uma redefinição do Estado e das proteções mínimas que permitam a coesão, a filiação, a nomia social. A visão crítica do trabalho e de sua história passa a ser, segundo entendemos, um espaço também de revisão da identidade sócio-cultural do gaúcho. Para tanto, é a hora de rever os arquétipos que marcaram a história. E as noções mais significativas do trabalho elaboradas pela história dos homens, e não só pelo Ocidente europeu, são postas à baila: as noções dos pre-semitas, dos semitas, dos indo-europeus, do Estado de Cristandade, do capitalismo liberal, dos socialismos e da questão social em suas mefamorfoses. Do Estado de Cristandade, em sua raiz pré-semita negada, está o trabalho como inclusão cósmica e comunitária do homem. Está o 392

393 394

Especialmente os governos vinculados ao Partido dos Trabalhadores, como Olívio Dutra (1999-2002). Cf. R. Castel. As Metamorfoses da Questão Social. Cf. tb. Martin, H.P. e Schumann H. A Armadilha da Globalização; Forrester V. O horror econômico; Tofler, A Powerschift: As Mudanças do Poder; Kurz. Os últimos combates e O colapso da modernização, na bibliografia. 255


Rio Grande do Sul Arquétipos Culturais e Desenvolvimento Social

labor da produção e a festa do consumo. Está o trabalho como saciedade das principais necessidades do homem que vive em comunidade, possuindo a terra em rodízio, cuidando das águas comuns para irrigação, dos silos que guardam o excedente momentâneo para atender períodos de caristia, está miticamente, como pensavam nossos guaranis, o “plantar milho” com suas cinco dimensões: cuidar da terra, dos pássaros (vida), do outro índio, da generosidade e do louvor a Tupã, bem como da provisão para a própria necessidade. Está o trabalho como identidade (a indolência e ócio como perversão), coerção moral que, no entanto, não admite a escravidão. Do Estado de Cristandade, em sua raiz indo-européia, está a escravidão derivada da propriedade absoluta da terra, de seus frutos, de seus trabalhadores, da tecnologia, exercida através da apropriação do produto (visto sempre como excedente para o comércio exportador) e transformado em mercadoria no mercado colonial, internacional ou global. Ao trabalho são coagidos os que não são proprietários. A coação se faz em nome da “natureza humana” (uns têm, por destino, a natureza ociosa de mandar e governar, outros a de obedecer e trabalhar). O trabalho como domínio e utilização dos recursos do universo, não leva à saciedade das necessidades do homem, mas ao acúmulo concentrador da propriedade como capital. Do Estado de Cristandade, em sua raiz semita, está o trabalho como expressão do pecado, como redenção do pecado, como exercício de ascese moral, mas também o trabalho como participação na obra da Criação do mundo, o trabalho como colaboração, como solidariedade radical em vista de atender ao mais necessitado: ao que tem fome, ao que não tem teto, ao que é imagem e semelhança de Deus, irmão e condição de minha identidade e salvação. O trabalho que parte e termina no descanso semanal. Trabalho que não justifica a apropriação dos bens da terra e da produção, bens que foram dados para todos e sobre o que recai uma permanente hipoteca social. Não podem ser vistos como se fossem propriedade de alguns. Trabalho que culmina na “partilha do pão” como sacramento de encontro do homem com o outro homem e com Deus. Do Estado de Cristandade como fusão das culturas semita e indo-européias, negando as pré-semitas, está o trabalho como dever humano, moral e religioso dos que não têm acesso à propriedade. E a propriedade é definidora do poder e do valor. Os que, por graça de Deus (através da religião ou da política como prolongamento e delegação da religião) receberam a propriedade da terra, podem (e até 256


O Rio Grande do Sul no Estado de Cristandade Colonial

devem como missão e exercício civilizatório e evangelizador) exigir, dos que não têm direito à propriedade, o trabalho à exaustão. Os trabalhadores, especialmente os agricultores, os mineiros, os trabalhadores manuais enfim, o que podem esperar? No máximo esperam que os senhores sejam “bondosos”, não sejam cruéis e que os integrem em relações de dependência próximas como “filhos de criação”, “afilhados”, “protegidos”. Mais ou menos como se premiavam os “bons” escravos, permitindo que ficassem nos serviços da casa grande, sem ir ao eito do trabalho desumano. O trabalho do peão de estância, para o RS, é prototípico dessa concepção. Aí o valor do trabalho se mede pela rudeza da tarefa, pelo desforço e perigo envolvidos, pela coragem e bravura necessárias, pela destreza e pela sorte, e por não ser assalariado nem reclamar remuneração. Como se fosse um serviço gratúito, livre por obrigação. Sem envolver deveres por parte do proprietário, esse trabalhador estará inserido, incluído precariamente na estância.395 A propriedade e a autoridade permanecem intocáveis e sagradas determinando o sentido e a função do trabalho. Desvinculado de qualquer filiação e proteção (para todos os riscos da vida: saúde, velhice, infância, orfandade...) o peão é “livre” (na simulação de uma subjetividade livre e descompromissada) para trabalhar onde quiser e quando quiser, por um prato de comida e por uma beira de galpão. Mais do que nunca, aqui, o trabalho manifesta as contradições ínsitas no Estado de Cristandade. Sem nos determos em analisar o modo de produção da campanha gaúcha e depois alterado pela imigração, poderíamos dizer que os instrumentos, a tecnologia, a geografia pampeana do trabalho também deixaram sua marca no arquétipo do trabalho no RS. O pampa de horizontes vastos e verde azulados, o cavalo quase identificado fisicamente com a pessoa, com o gesto, a velocidade, a visão do peão, os arreios, o laço e sovéu, a boleadeira, a carona, o pelego, a chincha, a doma e a corrida em cancha reta, o artesanato para curtir, sovar, trançar os tentos, é óbvio, são importantes na identificação do trabalho na estância. 395

Como observava Saint-Hilaire na região das missões e do Oeste do RS: “Os estancieiros dessa região, não tendo escravos, aproveitam a imigração dos índios para conseguir alguns que possam servir de peões...Os guaranis são, é voz geral, muito indicados para esse serviço. Montam bem, tem prazer nisso, e muito sabem amansar cavalos. Sua docilidade é outra qualidade que os faz procurados para empregados das estâncias...”pg.109. 257


Rio Grande do Sul Arquétipos Culturais e Desenvolvimento Social

Bem assim as fainas do trabalho como bombear os campos, parar rodeio, marcar o gado, a castração, o abate e a carneação, a tropeada, a charqueada e todas as tarefas que lhe são inerentes, tudo isso e em tudo isso está o arquétipo do trabalho como acima esboçamos. Não é, porém, o instrumento, a geografia e o modo que determinam o significado do trabalho em si. Aí o trabalho se materializa em seu significado. O significado, porém, não é dado pelo modo material de sua realização. Assim, cada instrumento não tem aqui o mesmo significado que em outros lugares. O cavalo, o laço, a faca não tem aqui o significado que tem na Inglaterra, na Turquia ou no Nordeste Brasileiro, muito embora muitas aproximações sejam possíveis. Assim também a geografia física, humana, política não só influencia o trabalho mas é também influenciada pelo trabalho. Assim o frio e o calor, o vento minuano e o açude, o azul do céu e suas noites estreladas, o nascer e o pôr do sol esparramando mil cores num horizonte infinito, o ritmo do tempo, o quero-quero que avisa da aproximação de estranhos, o cantar de todos os pássaros, a previsão da chuva pelos sintomas do vento e das núvens, tudo é marcado pelo significado do trabalho e ratifica sua significação. O mesmo se diga do vizinho situado a léguas de distância, do corredor, do bolicho, da vila e da fronteira. Assim o rito expressa, atualiza e reforça o mito. Não é, porém, o rito que cria o mito. Assim o alimento, o vestuário, a habitação, os meios de comunicação manifestam, revelam e consolidam a divisão social resultante da maneira como os grupos ou classes se situam em relação ao trabalho. E, se é verdade que o vestuário, a alimentação, as lidas aproximam patrão e peão, no entanto em tudo e em cada coisa ambos se distinguem e separam, segundo o sentido de vida que cada qual expressa no trabalho e seus frutos. Da cultura culinária é indispensável destacar o chimarrão, o churrasco e o charque, depois complementados pela riqueza culinária dos açorianos e sua comida de panela, com seus pães, queijos e doces, a polenta, os condimentos, o vinho, as saladas, as frutas dos imigrantes italianos, os chucrutes e as cucas dos imigrantes alemães. Nos churrascos atuais e nos cafés coloniais tudo isto, como por encanto, se faz presente ao paladar guloso de meninos, jovens e adultos. O churrasco é o mais tradicional hábito alimentar gaúcho, originário da principal atividade produtiva que era a criação do gado. Desde a introdução do gado no RS, os próprios índios conveteram-se 258


O Rio Grande do Sul no Estado de Cristandade Colonial

em carnívoros. A carne passou como dissemos acima, a constituir metade ou mais da ração alimentar das Reduções. Os estancieiros que vieram depois continuaram o mesmo costume. A criação da ovelha facilitou o hábito carnívoro do gaúcho. Com efeito, ao invés de abater uma rês vacum cujo volume de carne era demasiado para o consumo imediato, e na ausência de técnicas para a conservação da carne senão a saladeril, era mais conveniente abater uma ovelha, comendo sempre carne fresca, e utilizando o pelego como equipamento de montaria, além da utilização da lã para tecelagem dos tecidos rústicos para o vestuário. O churrasco, dispensando panelas, pratos e talheres, consiste em assar ao calor da labareda ou das brasas de um fogo de lenha, as partes do gado impróprias para o charque e a panela: as costelas. Espetada em varas finas e fortes de madeira, extraídas na hora, do primeiro bosquete, e que vão cravadas no solo tão próximo do fogo quanto se queira (recomendando-se pouca pressa e assando primeiro o lado do osso para depois virar o espeto), e usando-se sal grosso ou a própria cinza para salgar, obtém-se um saboroso churrasco. O espeto perto do fogo, cada qual se aproxima e, com a faca que sempre tem à cintura, corta a lasca que lhe aprouver, segurando-a com a mão. É tradicional o dito “costela, unha com ela”. Estes costumes foram consolidados pelos tropeiros e carreteiros que, ao longo da viagem, tinham no churrasco o alimento forte, fácil e saboroso. De alimento de peão passou a especiaria. Hoje selecionam-se outras partes de carne para assar, além da costela. Mas no inconsciente coletivo da culinária gaúcha está inscrito: churrasco é de costela. O churrasco, disseminou-se pelas cidades gaúchas e foi incorporado às festas familiares e comunitárias dos imigrantes do RS, expandiu-se para outros estados, e outros países. O imigrante italiano incorporou ao churrasco toda a sua culinária transformando-o num festival de carnes, saladas, vinhos, comidas de panela e doces tanto portugueses como alemães. Reconhecidamente o churrasco, embora cada vez menos acessível à população mais pobre, é hoje um arquétipo alimentar consagrado da região. Neste sentido também, os escravos, obrigados a se alimentar de partes consideradas inferiores do gado, aprenderam a produzir deliciosos alimentos das vísceras dos animais abatidos. O apreciado “mocotó” é substacioso alimento que aproveita vísceras, ossos, patas bovinas com feijão branco, lingüiça (de carne bovina e suína ) e o 259


Rio Grande do Sul Arquétipos Culturais e Desenvolvimento Social

toucinho de porco, com os temperos à disposição, é uma contribuição do negro à cultura alimentar do RS. Aos poucos, apercebendo-se da preciosidade desses alimentos nos dias de inverno, o estancieiro os incorporou à sua mesa. E, o uso das graxas de gado bovino impregnavam o rancho gaúcho de odores que Saint Hilaire se habituou a sentir com suas andanças pelo RS no inicio do século XIX. Os hábitos do chimarrão,396 da caça, da boleadera e do pala, a doma e o uso do cavalo é originário dos índios pampeanos. É indissociável à imagem do gaúcho, a cuia, a bomba, a chaleira e o bule ao fogo. Juntamente com o pala, o chapéu, o chiripá, a bota e a espora, o chimarrão é o maior símbolo da fraternidade original e do disfarce ideológico na relação do estancieiro com os peães. Partilhar da roda do chimarrão não significa mais partilhar a posse coletiva da terra, da caça, da colheita, como o era para os índios. Os pares, partilham e bebem no chimarrão as agruras da própria condição de explorados. Bem, para os proprietários, é mais uma coisa apropriada e incorporada! Em todo caso, aponta para uma fraternidade que se faz necessária. A caça do tatu, da capivara, da lontra, da paca, do pombo do campo e dos patos selvagens, juntamente com a pesca da traíra , do lambari, do jundiá, da piava, do surubi, do cará, do pintado e do dourado estão vinculados aos hábitos alimentares gaúchos e ao imaginário das crianças, dos literados, cantores e poetas. A cultura gaúcha é indissociável de outro elemento arquetípico: o cavalo. Um gaúcho a pé é um gaúcho desprezível. O cavalo usado como meio de transporte e de trabalho está nas campereadas do peão e do patrão, está nos caminhos das tropas, da venda e da igreja e do bolicho, está nas tropeadas, está nas praças de 396

O gaúcho sente o chimarrão próximo à poesia de Glaucus Saraiva, impressa nas garrafas térmicas para servir a água quente: Amargo doce que sorvo/ Num beijo em lábios de prata!/ Tens o perfume da mata/ molhada pelo sereno/ e a cuia, seio moreno/ que passa de mão em mão/ traduz no meu chimarrão/ em sua simplicidade,/ a velha hospitalidade/ da gente do meu rincão. Trazes à minha lembrança,/ nesse teu sabor selvagem/ a mística beberragem/ do feiticeiro charrua/ o perfil da lança nua/ encravada na coxilha/ apontando, firme, a trilha/ por onde rolou a história, empoeirada de glória/ da tradição farroupilha. Em teus últimos arrancos/ no ronco do teu findar,/ ouço um potro corcovear/ na imensidão do pampa!/ E em minha mente se estampa/ reboando dos confins/ a voz febril de clarins/ repinicando: avançar!...Então me fico a pensar,/ apertando o lábio assim,/ que o amargo está no fim,/ que a seiva forte que eu sinto,/ é o sangue de 35/ que volta verde em mim!.

260


O Rio Grande do Sul no Estado de Cristandade Colonial

carros, de faetons, de bondes, de carroças, está no imaginário dos literatos. “Churrasco, bom chimarrão, /Fandango, trago e mulher/ É disto que o velho gosta/É isso que o velho quer”, numa síntese burlesca e popular. Na saudade ficam os tempos da liberdade dos charruas, minuanos e guaranis, bem como os tempos das Missões e Reduções que estruturaram a criação do gado em estâncias, com os rodeios, as tropeadas, as invernadas, os abatedouros das comunidades, e a erva mate e as lavouras, e o artesanato tudo pensado numa quase “República comunista cristã dos guaranis.”397 O arquétipo do trabalho do campo e da charqueada topará, depois, com o do trabalho dos imigrantes, com outras características, dentro de um mesmo Estado de Cristandade. A absorção do trabalhador, inscrito num regime coeso e controlado do Estado de Cristandade, no RS, nem lhe permite a consciência da exploração do trabalho a que está exposto e atrelado. A exploração é vista como exceção, acidente, fruto da maldade de um ou outro patrão e não da estrutura econômico-político-social-cultural. Como no mito do Negrinho do Pastoreio, tanto a exploração desumana quanto sua justificação mística ratificam e reforçam o sistema de A luta pela necessidade de um equilíbrio entre eficiência econômica, liberdade política e equidade social, virá muito mais tarde, bem depois da Revolução Francesa e da Independência Política, no bojo da imigração de homens e idéias da Europa bem como no coração das lutas populares. 4.2 Arquétipos da organização social Na organização social, que resulta da organização econômica e a condiciona, emerge a família, a vizinhança, a vila, e outras instituições que dão concretude às relações e às representações culturais. 4.2.1

A família e sexualidade

Os arquétipos que simbolizam hoje a estrutura e a organização familiar no RS colhem contribuições de muitos quadrantes da história. São poucos os dados que dispomos sobre a organização familiar e a participação da mulher na vida social do RS, mesmo porque, nossa 397

Cf. Lugon. A República comunista cristã dos guaranis. 261


Rio Grande do Sul Arquétipos Culturais e Desenvolvimento Social

história, predominantemente militar focalizando guerras, revoluções e degolas, e narrada por homens, traz apenas marginalmente a presença da mulher. O mesmo se diga da sexualidade e da estrutura interna da família. Esses arquétipos guardam, mesmo que sob a forma de negação, a inspiração de família e sexualidade dos indígenas que povoaram o RS. Há neles cicatrizes pré-semitas onde a sexulidade não se definia pelo machismo e onde os tabus e a demonização do sexo não operavam tanta repressão. Recolhemos, por isso, alguns traços da vida familiar e sexual398 dos povos indígenas, para depois acompanhar a formação da família e da vida sexual ao longo da história da colonização no Estado de Cristandade, a formação insólita da família no RS dos primeiros tempos, dos tempos da imigração, para finalizar em alguns traços atuais dessas relações sociais. a) A família e a sexualidade desde a ótica dos índios Muito embora a grande diversidade cultural reinante entre os povos indígenas que povoavam a América, há entre eles muito mais semelhanças do que suas diferenças em relação aos povos europeus na época do “descobrimento”. Por isso, diante da escassa informação de que dispomos, aproximamos as semelhanças que, certamente, existiram. Entre os índios das altas culturas maio-astecas e incas bem como entre nossos guaranis (pré-semitas) a sexualidade é vista como fonte de fecundidade, procriação e alegria: “Para que no andemos gimiendo siempre, Para que no estemos saturados de tristeza El Señor Nuestro nos dio a los hombres La risa, el sueño, los alimentos, Nuestra fuerza y nuestra robustez, Y finalmente el acto sexual, Por el cual se hace siembra de gentes. Todo esto Alegra la vida en la tierra,

398

Por sexualidade entendemos aqui as relações e o modo próprio de expressão da masculinidade e feminilidade.

262


O Rio Grande do Sul no Estado de Cristandade Colonial

Para que no se ande siempre gimiendo.”399 Para os guaranis, o homem criado por desígnio e pela fôrça geradora da sabedoria divina, que lhe inspira sabedoria, linguagem, amor e cânticos, deve zelar por numerosos filhos, numa convivência harmoniosa com sua mulher: tolerando suas murmurações, lembrandoa de não observar os defeitos dos outros. “No riñas a tu mujer por simples murmuraciones...En esta forma aconseja a tu esposa em cuanto esté embarzada: no te burles de tus semejantes; mirales com sencillez; recíbeles com hospitalidad, a fin de que nazca un hijo hermoso.”400 .

Ao filho que casa se lhe aconselha: “Tú, mi hijo, querrás casarte com una que tiene madre, que tiene padre. Su madre, su padre no querrán dar sua hija a un sujeto excesivamente pobre. Por consiguiente, debes esforzarte por despertarte temprano, por ser activo en la ejecución de tu trabajo. Unicamente así, cuando te cases, construirás pronto una casa, harás pronto una plantación... Debes acordarte de Nuestros Primeros Padres; unicamente en esta manera prosperarás...”401

Como já acenamos, os guaranis admitiam a poligamia como expressão social de prestígio para seus caciques e de acolhimento aos visitantes ilustres. Não concebiam que um visitante dormisse sem ser acompanhado de uma mulher. 399

A Sabedoria Nahuatl – Miguel León-Portilla in Guadarrama, pg. 31: Para que não andemos sempre gemendo/ Para que não estejamos sempre saturados de tristeza/ Nosso Senhor nos deu a nós homens/ o riso, o sonho e os alimentos/ Nossa força e nossa robustez/, e finalmente o ato sexual/ pelo qual fazemos semeaduras de gentes. / Tudo isto/ alegra a vida na terra, / para que não andemos sempre gemendo.

400

CADOGAN, León. Ayvu Rapyta: Textos Míticos de los Mbyá-Guaraní del Guairá. Asunción: CEADUC-CEPAG, 1997 pg. 203. Não brigues com tua mulher por simples murmurações... Assim aconselharás tua esposa enquanto estiver grávida: não zombes de teus semelhantes; olha-os com simplicidade; recebe-os com hospitalidade, a fim de que nasça um filho formoso.

401

Ibidem: 201. 263


Rio Grande do Sul Arquétipos Culturais e Desenvolvimento Social

Para os guaranis, na concepção originária do universo não é o pai que se auto-cria. O feminino é o originário, a origem. É o feminino que diferencia de si o princípio masculino. O masculino é criação cultural. A mulher sempre já é: alimento, proteção, amor, afeto. O homem deve construir-se, deve nascer uma segunda vez: pela iniciação. Deve conquistar a autonomia, a auto-suficiência pela lei e pelo trabalho. O homem não se basta sem os outros. A mulher, como o cósmico é o princípio da vida e o princípio da morte: trevas das quais nasce o dia e para as quais o dia vai. Por isso o feminino é perigoso, o imprevisível, matriz fecundante.402 Os guaranis, portanto, tinham uma concepção feminina de Deus e da Sabedoria criadora que engendra a partir de si o princípio masculino, a linguagem e o canto. Mito que em nada é inferior ao mito criador dos hebreus. O princípio primordial é feminino, e marca femininamente o universo e a vida histórica. Entre os outros índios do Brasil a monogamia era a regra, havendo excepcionalmente a poligamia com alguma justificativa como a narrada pelo antropólogo Curt Nimuendajú: “Os Tukuna admitem a poligamia: Vi um que tinha três e diversos com duas mulheres. A grande superioridade numérica do sexo feminino nesta tribu favorece este costume”403 “Os Parintintin parecem viver em monogamia. Jamais um deles me apresentou mais de uma mulher como sendo sua esposa...A posição social da mulher pareceu-me boa. Elas tinham certa independência...Não assisti a um ultraje feito à mulher pelo marido...Pelo conceito nosso, o comportamento dos homens é, em geral, sofrivelmente decente, se bem que havia alguns que gostavam de gestos e ditos obcenos. Das mulheres e moças jamais observei coisa semelhante. Elas se comportavam com tanta decência que a sua nudez nem sequer dava na vista...”404 402

CADOGAN, León. Ayvu Rapyta: Textos Míticos de los Mbyá-Guaraní del Guairá. Assunción: CEADUC-CEPAG, 1997. Cf. O Capítulo I e sua interpretação: das trevas primigênias tudo surgiu.....e a excelente interpretação de Uruguay Cortazzo. “Tu, meu filho, quererás casar com uma mulher que tenha mãe, que tenha pai. Sua mãe, seu pai não quererão dar sua filha a um homem excesivamente pobre. Por conseguinte, deves esforçar-te por despertar cedo e ser ativo na execução de teu trabalho. Somente assim, quando casares, logo construirás uma casa, logo farás uma plantação...Deves lembrar-te de Nossos Primeiros Pais; unicamente assim, prosperarás...”

403

NIMUENDAJÚ, Curt. Textos indigenistas. S. Paulo: Loyola, 1982 pg. 195.

404

Ibidem: 73 a 75.

264


O Rio Grande do Sul no Estado de Cristandade Colonial

É interessante observar que, entre os índios que povoavam o Brasil, como nas grandes mitologias da humanidade, a criação do mundo, da vida, do homem, está ligada ao feminino: “No princípio o mundo não existia. As trevas cobriam tudo. Enquanto não havia nada apareceu a mulher por si mesma.”405 “O Criador, cujo coração é o Sol, tataravô deste Sol que vemos, soprou seu cachimbo sagrado e da fumaça desse cachimbo se fez a Mãe Terra.”406 Entre os tupis “as malocas teriam uma largura constante variando seu comprimento de acordo com o número de moradores. Nela viviam, segundo as estimativas mais baixas, de cinqüenta a duzentos indivíduos, agrupados nas subdivisões internas, reservados aos lares políginos, de vinte a quarenta em cada maloca, conforme também as estimativas mais baixas... A vida desenrolava-se no seu interior no sentido mais pleno possível. As mulheres cozinhavam na maloca; as refeições eram tomadas nos lanços pertencentes a cada lar polígino; o mesmo ocorria com outras atividades relacionadas com as conversações dos parentes, com o intercurso sexual, com a recepção dos hóspedes etc. Nada podia ser segredo para ninguém e todos compartilhavam das experiências cotidianas de cada um.” 407

O meio normal para a solução de conflitos e tensões na comunidade indígena tupi “consistia na formação contínua de novas malocas, a qual promovia uma espécie de redistribuição da população produtiva. Essa é a alternativa que se apresenta nos casos em que algum principal, contando com número suficiente de mulheres, em seu lar polígino ( filhas, sobrinhas ou agregados), cedia-as em casamento a jovens que se dispunham a aceitar sua autoridade. Com o tempo surgia assim uma nova maloca, freqüentemente integrada no mesmo grupo local.”408

405

JECUPÉ, Kaka Werá. A Terra dos Mil Povos: história indígena do Brasil contada por um índio. Petrópolis: Editora Fundação Petrópolis, 1998 pg. 63.

406

Ibidem: 65.

407

HOLANDA, I, pg. 74.

408

HOLANDA, I, pg. 75. 265


Rio Grande do Sul Arquétipos Culturais e Desenvolvimento Social

Por outro lado, a idade e o sexo eram critério de divisão do trabalho: “A divisão do trabalho nos grupos locais, obedecia a prescrições baseadas no sexo e na idade. As mulheres ocupavam-se com os trabalhos agrícolas (desde o plantio e a semeadura até a conservação e a colheita) e com as atividades de coleta (de frutas silvestres, mariscos etc.), colaboravam nas pescarias, indo buscar os peixes frechados pelos homens, transportavam produtos das caçadas, aprisionavam as formigas voadoras, fabricavam as farinhas, preparavam as raízes e o milho para a produção do cauim, incumbindo-se da salivação do milho, fabricavam o azeite de coco, fiavam o algodão e teciam as redes, trançavam os cestos e cuidavam da cerâmica ( tanto da fatura de panelas, alguidares, potes para cauim etc. quanto de sua ornamentação e cocção), cuidavam dos animais domésticos, realizavam todos os serviços domésticos relacionados com a manutenção da casa ou com a alimentação, e dedicavam-se a outras tarefas, como a depilação e tatuagem dos homens pertencentes a seu lar, o catamento do piolho deles ou das mulheres do grupo doméstico, a preparação do corpo das vítimas humanas para a cerimônia de execução e para o repasto coletivo etc.”

Ao homem cabia: derrubar a mata e preparar a terra, caçar ,pescar, fabricar canoas, arcos, flechas, tacapes, adornos, erguer as malocas, cortar a lenha, tatuar a mulher como expressão de carinho e ajudá-la no parto, proteger e cuidar dos velhos, mulheres e crianças, fazer a guerra, praticar as atividades xamânticas... “A mulher suportava uma carga extremamente pesada no sistema de ocupação. Mas prevalecia a interdependência de trabalhos e serviços de modo que eles se completavam e amparavam mutuamente.”409 Os tupis “não atribuíam nada da geração à mãe, antes consideravam que somente o pai é o autor, e que essa substância sendo sua, ele a deve alimentar, sem respeitar uns mais do que os outros” por isso o pai guarda o “couvade”410 e integra a criança na comunidade. 409 410

HOLANDA, I, pg. 75-76. Quando a mulher dava à luz, o homem não comia carne durante 15 dias, ficando de resguardo na rede. A mulher tinha o filho sozinha, banhava o recém-nascido e depois entregava-o ao marido que esperava na rede. Se pegasse a criança, estaria reconhecendo-a como filho. A mulher ia logo trabalhar na roça a fim de enganar os maus espíritos que poderiam se apossar da criança...Moacir Flores: pg. 10.

266


O Rio Grande do Sul no Estado de Cristandade Colonial

Dirige a educação dos filhos incitando-os a imitar os mais velhos, a receber “lacrimosamente” os parentes que chegam de longe.411 O pai não era apenas o que gera o filho e sim aquele que acolhe, que cuida, que protege. “Os pais estimam mais fazerem bem aos filhos que a si próprios”... “os filhos são obedientíssimos a seus pais e mães, e todos muito amáveis e aprazíveis”. E os irmãos têm “muito particular amor pelas irmãs, como elas também toda sujeição e amor aos irmãos com toda a honestidade.”412 Dos índios que habitavam o espaço do RS, não se pode dizer que eram machistas, muito embora a observação sardônica de SaintHilaire sobre os minuanos que recebiam a cuia e o cachimbo na boca apoiado pelas mãos das mulheres. Na experiência missioneira do RS, a mulher indígena aparece na família monogâmica, incentivada pelos jesuítas, cuidando das crianças, da alimentação e da casa, bem como fiando e tecendo ponchos e outras peças de vestuário, com lã ou algodão, e como ótima enfermeira nos cuidados para com os doentes. Ajudava também na lavoura, perto das reduções. A mulher acompanha o marido que se desloca para as estâncias. E o índio quase nunca aparece sem estar acompanhado de sua mulher, comforme nos atesta Saint-Hilaire. Na decadência do sistema missioneiro, expulsos os jesuítas, entregues as missões a uma administração civil incompetente e gananciosa, guerreados os índios e exterminados em toda a parte, tanto quando se aliam a Portugal como quando se fazem espanhóis, como joguetes dos interesses daqueles dois Impérios, dispersos e à margem de qualquer um dos dois domínios, a mulher indígena, não sofre apenas a degradação de todo o seu povo, mas localiza-se no mais baixo grau dessa degradação. Em sua viagem pelo RS (1820-21), no retorno de Montevideu para Quaraí e daí para as Missões, Saint-Hilaire descreve a decadência dos índios das Missões jesuíticas de forma candente:

411

412

Tivemos, em 1978, ocasião de assistir a uma recepção lacrimosa que os índios xavantes, na aldeia de S. Mateus, proporcionaram a um missionário que estava longe deles por vários anos. O vozerio choroso e lacrimoso, ao invés de sinal de luto e dor como aparece entre nós, é sinal de alegria pelo retorno de quem se ama e se sente saudade. O sacerdote, quieto, cabeça inclinada era abraçado e tocado por todos que se convocavam mutuamente pelo choro, para a acolhida. HOLANDA, I, pg. 79. 267


Rio Grande do Sul Arquétipos Culturais e Desenvolvimento Social

“Além do acampamento (em Salto), muitas casinhas habitadas por índios de todas as regiões, os quais, na maioria, vieram de Entre-Rios para se refugiar aqui...Estes homens vivem na ociosidade, enquanto suas mulheres e filhas prostituem-se com os soldados. Estas mulheres transmitem doenças venéreas, das quais eles não curam, pela falta de remédios. Além disso, sabese que tais doenças comunicadas ao branco pela índia, são muito mais perigosas do que o contágio com uma negra ou branca.”413

Sobre as características e habilidades artesanais das mulheres guaicurus, diz Saint-Hilaire: “Esta manhã (em Salto) o coronel mandou-me chamar para ver algumas índias guaicurus, que recentemente atravessaram o Uruguai para escapar da fome. A nação dessas índias havia tomado o partido de Artigas, apoiando-o por muito tempo...Os guaicurus são cristãos, ou melhor, batizados, e ao que parece não menos civilizados que os guaranis. As mulheres, pés descalços e cabeça descoberta, usam um grande chale sobre os ombros, camisa de algodão, em lugar de saia, um pedaço de lã listrado de azul, branco e vermelho que dá volta e meia em redor do corpo e é preso na cintura. São as próprias mulheres guaicurus que fazem esses tecidos, que os tingem com as folhas e as raízes que conhecem. Não percebi na fisionomia das que estavam na casa do coronel nenhum traço, que as distinguisse particularmente das outras nações indianas. A cabeça redonda, os cabelos negros e muito lisos, o nariz pouco espesso, a tez de um amarelo claro, o rosto bem chato. Um recém nascido, carregado por uma dessas mulheres, tinha quase a mesma cor escura de sua mãe.”414

Ainda em Salto, Saint-Hilaire vê, às margens do Uruguai aldeias de índios guaranis fugidos de Entre-Rios, morando em choupanas miseráveis e entre elas um galpão “onde se penduram nacos de carne”. Em volta das cabanas construídas à semelhança de barracas de acampamento militar, com folhas e aste de uma “gramínia dura e muito lisa” encontrou pés de milho, abóboras e melancias, plantados em buracos em meio à grama. Homens e mulheres, todos os que 413

414

S-H, pg. 211. Impressiona o etnocentrismo europeu de Saint-Hilaire. As doenças sexuais tão perigosas que as índias transmitem ao branco não seriam acaso as mesmas doenças que os brancos introduziram entre os índios e que os dizimou assim como a varíola? S-H, pg 213.

268


O Rio Grande do Sul no Estado de Cristandade Colonial

encontrei, estavam sentados no chão; os homens nada faziam, mas as mulheres se ocupavam nas costuras. Algumas até bem vestidas para a gente do campo. Muitos homens vestiam apenas um calção de fazenda e grande parte das mulheres, uma saia e blusa de algodão. As aldeias donde esses índios são originários tinham sido fundadas pelos jesuítas. Os homens são portanto batizados, muitos mestiços, falam o guarani, mas todos sabem o espanhol. Cada vilarejo foi constituído para subtrairse às humilhações a que estavam submetidos e, sobretudo, à fome que, para um índio, constitui o maior dos flagelos...A esposa do índio Manduré é quase branca, prestou-nos melhor (que o marido) as honras da casa. Esta senhora e a irmã se ocupavam na costura. Reparei que eram bastante habilidosas...Observei com certa admiração a fabricação de ponches. Vestígio, sem dúvida, da indústria que os jesuítas procuraram confiar às índias, pois de Montevidéu até aqui não encontrei nenhum desses trabalhos entre os espanhóis.415 Entre os índios minuanos “os homens não fazem absolutamente nada, senão correr pelos campos, bolear os cervos, os avestruzes e os cavalos... As mulheres se encarregam de tudo o mais. Lembro-me que o general Saldanha me contou haver presenciado um cacique obrigando a mulher a segurar a pequena cuia de mate que tomava” e no caminho, às margens do Arroio Tapevi, Saint-Hilaire observa, como depois inúmeras vezes: “meu cabo português havia recrutado uma índia em Salto e, sem nenhum constrangimento, vinha com ela na carroça...”416 Poder-se-ia dizer que difere muito a situação e a função da mulher entre as tribos indígenas que habitavam o Rio Grande do Sul com a situação posterior às Reduções e Missões. Agora a degradação é flagrante como os viajantes do início do século XIX atestam. Antes, como entre os povos pré-semitas a mulher ocupava um lugar especial na comunidade. À semelhança da terra mãe, ela é a rearticuladora da vida. É do seio da terra fertilizada e fecunda que brota a vida da natureza. É do seio materno que brota a nova vida, o novo ser. Ela foi fecundada, como a terra, por deus através do homem. A sexualidade tinha um caráter natural e sagrado por ser a mediação da procriação da vida. Não há noções morais e preconceitos culturais que reprimam a sexualidade masculina e feminina. A poligamia, quando existe, ou tem uma função social de préstimo ou agrado ao visitante

415

S-H, 216-217.

416

S-H, 219. 269


Rio Grande do Sul Arquétipos Culturais e Desenvolvimento Social

ou faz parte da concepção de que o valor fundamental da mulher está na sua capacidade de gerar a vida no universo. O maior castigo para a mulher e para a tribo era a impossibilidade de engravidar e gerar. A poligamia, embora generalizada entre os caciques, era mais uma questão de prestígio, influência e autoridade e menos uma questão de uso do sexo.417 Ao acolher um visitante o cacique oferecia-lhe uma mulher para acompanhá-lo. Os caciques, assim fazendo, ampliavam os laços de parentesco e afeição entre os familiares das esposas. “O homem tomava quantas mulheres podia sustentar, porém, a mais antiga tinha certos direitos e predominava sobre as outras. O divórcio era freqüente, sendo o motivo principal a esterilidade; o adultério por parte da mulher sujeitava-a ao divórcio, e um ato de cobardia por ele praticado dava à mulher o direito de repudiar o homem.”418

Entre nossos caingangues, como observa Sant’Ana, o homem não batia em mulher. “Agredir a companheira, a mulher amada, parece ser uma conquista dos ‘civilizados’...”419 Como observava Saint-Hilaire, depois da expulsão dos jesuítas, a mulher guarani “ficou sendo pasto sexual predileto do homem branco...Aliás, era comum encontrar fazendeiros gaúchos que tinham em suas estâncias uma amante índia”420 Cada uma das índias: caingangue, guarani e mbaia ou charrua, contribuíu de forma diferente para o arquétipo feminino do RS. De todas elas a simplicidade, em todas elas a ausência de tabus e demonização da sexualidade.

417

BRUXEL, 1978, pg. 17.

418

SIMÕES LOPES NETO, 1955, pg. 42.

419

SANT’ANA, 1984: 15.

420

SANT’ANA 1984: 15. “Quem projeta esta situação muito bem é Érico Veríssimo, quando cria a personagem Ismália Caré, de uma família de sangue indígena, gente da terra, clientela de coronéis, no caso o coronel Licurgo Cambará. Ismália Caré foi realmente o grande ventre, a grande matriz da demografia gaúcha, mais característica dessa cepa indo-luso-brasileira. Foi ventre generoso, sofrido, calado e humilde, fecundado pelo esperma dos dominadores. Que pariu ano atrás de ano, geração atrás de geração, século atrás de século, essa legião de gaúchos anônimos que sempre esteve nas fileiras de todos os caudilhos, caudatários dos movimentos que ilustram a nossa história” Pág. 15

270


O Rio Grande do Sul no Estado de Cristandade Colonial

O arquétipo de família dos índios que habitavam o RS era vinculado ao sistema econômico, político social pré-semita: a posse coletiva da terra, da produção e dos produtos. As vinculações de parentesco acontecem no interior da comunidade formando a família extensa como descrevemos ao abordar a cultura indígena. A família do índio, nas Reduções e missões jesuíticas, foi inscrita no modelo de Cristandade europeu. Família nuclerar, monogâmica, com insistente educação da sexualidade e sensualidade canalizada para a procriação, família que se constituía de pai, mãe e filhos, em residência específica. A poligamia de prestígio não será admitida. O combate e controle da sensualidade “natural” dos índios conduzia a muitas formas de sublimação: muito esporte, dança, canto, ritos, oração, confissão, liturgias, teatros e criatividade. Muito embora o esforço reconhecidamente exemplar daqueles evangelizadores e civilizadores, é imperioso reconhecer que o modelo de família e sexualidade do Estado de Cristandade, com o celibato sacerdotal como protótipo, marcou como perigosa, tentadora, quase pecaminosa a sexualidade, e isto trouxe consequências para a família gaúcha. Ao serem arrazadas e extintas as missões dos sete povos, os índios que sobreviveram ao genocídio e à devastação, ficaram marginalizados da sociedade. À margem e na periferia das instituições, o índio passou a ser, como os “gaúchos gaudérios” , também marginalizado. Aos poucos, sem o referencial das missões, com sua comunidade e catequese, o ex-missioneiro contribuirá para forjar a cultura “gaúcha” da periferia, engendrada desde a a periferia, em bolichos, corredores, beira de galpão, taperas e fundos das fazendas ou perambulando pelas vilas, bem como em funções subalternas do exército de fronteira. Suas terras não serão reconhecidas nem demarcadas senão na última metade do século XX. Ao iniciar o século XXI, nas últimas franjas da periferia do RS, para uma população de 10.709 indivíduos que mantêm suas etnias indígenas há uma área de menos de 75.000 hectares, declarada ou demarcada.421 Por breve período, terá ainda a “liberdade” do pampa, a aventura de abater uma cabeça de gado-chimarrão para alimentar-se. Uma vida nômade, ou semi-nômade, sem amparo ou proteção de instituições ou propriedade, não permite a solidificação da família. Com sua própria família desconstituída, embora sempre acompanhado 421

Tau Golin: 26-27. 271


Rio Grande do Sul Arquétipos Culturais e Desenvolvimento Social

da mulher, como obervava Saint-Hilaire, o ex-missioneiro, vaga pelos campos, agora gananciosamente apropriados por mamelucos e militares, sem poder plantar raízes. Solto, sozinho, solteiro. O amor e a sexualidade já não podem amadurecer como compromisso e fidelidade. Relações eventuais muitas vezes resultavam em gravidez da “china” que ficava, também desamparada, na saudade. E o conflito moral, o conflito afetivo, o conflito de seus valores ancestrais de guarani, de missioneiro, ante a prepotência genocida dos impérios ibéricos, vai, aos poucos, transformando-se em resignação, em estoicismo sado-masoquista de “aguentar no osso do peito o destino, a sina que lhe cabe”. Defender-se-á como pode, com sua faca, seu cavalo, seu silêncio, sua desconfiança, seu mutismo, sua agilidade na briga, sua fuga da polícia, seu perambular de estância em estância, e sua imensa saudade. Saudade de quê? Uma triteza imensa de ter perdido um mundo e não conseguir juntar-lhe os pedaços para compor um novo horizonte de esperança. A partir de 1801, sem demarcação das suas terras, o índio exmissioneiro, como o primitivo “gaúcho gaudério” passa, também, a ser considerado como vagabundo e ladrão. Suas terras e seu gado foram apropriados pelos invasores, e, então, não há mais espaço para o modo de vida anterior. À semelhança do “gaúcho gaudério”, o índio ex-missioneiro deverá ser integrado à estância como peão eventual, peão permanente, agregado, posteiro e como guerreiro na defesa do patrão. Raramente será permitida na estância a presença de peão com família, a não ser na condição de agregado. É quase uma exigência que seja solteiro. Desta forma, a família do peão de estância se faz quase impossível. A estrutura não a permite, como não será permitida para o negro escravo e ex-escravo. Este vazio, esta falta de condições, essa aventura da sexualidade vivida como roubo e eventualidade, marcará também o arquétipo cultural da família no RS, especialmente das classes subalternas. b) Chinocas Ao iniciar o povoamento do RS na década de 1720, com as esposas de militares e colonizadores como Jerônimo Dornelas vêm a esposa e filhas que casarão com os maiores estancieiros do RS. Virão também mulheres “mozuelas”(“massuelas”) provindas do Rio de Janeiro e que alguns pretendem fossem mulheres de vida fácil ou de prostíbulo para servir os soldados e casarem com eles. A liberdade, a 272


O Rio Grande do Sul no Estado de Cristandade Colonial

altivez e o desembaraço com que se distingue a mulher gaúcha, na visão dos viajantes estrangeiros na década de 1820, pode ter raiz também nesse fato. Por outro lado, as mulheres índias e negras não terão status de esposa do colonizador branco no Brasil, senão depois de meados do ciclo da mineração (1750). Antes disso elas eram tratadas como amantes, sem que as relações sexuais com elas acarretassem problemas para a instituição matrimonial dos brancos. E a mulher que não fosse branca, de origem européia, sempre tinha sobre si a pecha de mulher fácil, prostituta. O certo é que, os soldados em Rio Grande, reclamarão para si mulheres que vinham do Rio de Janeiro e que não tivessem compromissos matrimoniais. Longe do centro de poder composto pela administração civilmilitar da Colônia aliado à autoridade hierárquica da Igreja no Estado de Cristandade, o RS, depois da derrocada do sistema missioneiro fezse terra de frouxa promiscuidade sexual. O próprio administrador geral das missões (poder civil que toma o lugar dos jesuítas) “cuja família ficara em Rio Pardo, mantinha relações com a china Maria Salomé, ‘moça bastante formosa e filha de uma das antigas famílias nobres daquele povo’. Para serví-la e cercála de todo o conforto, determinara o comandante que os índios levassem à casa de Salomé tudo quanto havia de melhor para ela, trabalhando sem remuneração de espécie alguma. Nas festas religiosas e outras solenidades, ‘fazia a china sentar em uma grande cadeira de espaldar, reservada às autoridades e pessoas gradas, que mandara colocar debaixo do arco central do templo’. A partir desse exemplo do prórpio administrador geral das Missões, não houve quem impedisse a livre aproximação entre soldados e mulheres índias. O difícil mesmo é que se encontrasse um homem, em suas andanças de fronteira, sem levar uma china à garupa do cavalo”.422

Na faceirice brejeira da decantada chinoca do RS permanecem, no horizonte ao longe, a presença também das moçoilas e chinocas do início da organização administrativa portuguesa. c) A família e a sexualidade na ótica do negro O negro é escravo nas estâncias, nas charqueadas e centros urbanos do RS. Muito embora a escravidão é formalmente extinta no 422

Barbosa Lessa. Rio Grande do Sul, Prazer...: 111. 273


Rio Grande do Sul Arquétipos Culturais e Desenvolvimento Social

RS alguns anos antes da lei áurea de 1888, contudo o regime servil e semi-servil de fato, avança em amplos espaços do século XX. Considerado mercadoria, o negro é comprado e vendido a qualquer momento. A família de escravos quando existente, está permanentemente ameaçada de desestruturação pelos negócios, e utilização que deles faz seu senhor. Via de regra, porém, não há e não se estimula a formação de famílias de escravos. Se a reprodução e renovação do plantel de escravos é estimulada pelas aventuras sexuais dos brancos ou pelo reprodutor negro selecionado para isso, no entanto, habitualmente é realizada pela compra e venda no tráfico interno ou externo. Na escravidão não há que se falar em família. Os costumes familiares, os arquétipos culturais da terra originária africana, não podiam vigorar aqui, a não ser camufladamente. E a negra, embora usada e abusada na condição de concubina, não conseguia o status de esposa do homem branco. Os negros libertos, pela contingência de marginalização em que viviam, tinham supremas dificuldades de constituir família. E já não tinham os laços culturais que possibilitavam a coesão familiar e que seus ancestrais viviam na África.423 A família do branco com seus padrões culturais, embora lhe seja um sonho inculcado, representa para o ex-escravo um símbolo e sinal de sua histórica marginalização. A instabilidade é absoluta. Os vínculos são de fato mas não jurídicos nem religiosos. Estes ficam como exceção e utopia, uma vez que o próprio custo da realização da cerimônia do casamento lhes é proibitivo. Gera-se e consolida-se um arquétipo de família que pode ser assim expresso: “o que vale não é o papel, é o afeto e até que esse dure”. Ao incorporar a mentalidade escravista, o negro incorpora também o núcleo ético-mítico do colonialismo escravista e dependente. Ao término do regime formal da escravatura, o ex-escravo e seus descendentes foram jogados à mais ampla e profunda discriminação econômica, política, social, ideológica e racial,424 cujas conseqüências 423

Sob o regime de opressão escravista, distante do continente de origem, os arquétipos tribais originários são guardados através de memória oral, de rituais religiosos que sofrem um sincretismo com os elementos, imagens, entidades e divindades do catolicismo da cristandade colonial. Após algumas gerações a memória se descaracteriza.

424

Os últimos tempos amenizaram um pouco o quase apartheid social que se expressava e ainda se expressa em Igrejas de brancos ou de pretos, clubes de brancos ou de pretos....

274


O Rio Grande do Sul no Estado de Cristandade Colonial

são sentidas até hoje. O mapa demográfico de Pelotas e outras cidades da campanha, zona de maior concentração escravista do RS no século passado, é testemunha viva da discriminação e marginalização sofrida até hoje. O contraste é de tal visibilidade que a ampla maioria de negros miscigenado habita em bairros populosos miseráveis, periféricos e sem infra estrutura digna. O numero de habitantes de cor negra que habitam a zona central da cidade de Pelotas possivelmente não ultrapassa algumas centenas. Observa-se que a condição social não é apenas condição de cor da pele. Até pouco tempo eram raros os casamentos entre brancos e negros no RS e quando aconteciam, realizavam-se entre negros com melhor situação sócio-econômica com pessoa branca de situação econômica inferior. O liberalismo e neo-liberalismo, acentuam o caráter de contrato de todas as relações, incluse as de casamento, dando respaldo à instabilidade familiar dos marginalizados: o contrato não necessita ser escrito e se desfaz do mesmo modo em que se faz. O negro liberto, descendente de escravos, têm, no fato da exclusão e marginalização operada no RS, semelhança muito grande com a situação do índio ex-missioneiro, e incorporado ao sistema agropecuário, charqueador, do Estado. Ele também, como o índio ou o peão é encontrado como andarilho de estância em estância, sem patrão e sem mulher, ou como soldado das revoluções das elites ou das guerras de fronteira, ou em tarefas subalternas nas cidades. À semelhança do índio, o negro é integrado como negação na estância, onde passa a atuar como peão, agregado ou posteiro. Nas zonas urbanas, após a Abolição se emprega em serviço manuais pesados, insalubres, à semelhança dos tempos escravistas. E com isso, e nisso haverá a marca da vida sexual e familiar das classes populares, especialmente nas regiões onde a escravatura foi mais forte. d) A família e a sexualidade na perspectiva do gaúcho originário O termo “gaúcho” primitivamente designava o forasteiro, aventureiro, homens deportados, fugitivos da tutela portuguesa ou espanhola e que vagavam pelo pampa buscando o gado “chimarrão” que havia se perdido e debandara pela pradaria, multiplicado geométricamente, para extrair-lhe o couro e o sebo para o contrabando e a carne para churrasquear. Este gaúcho gaudério, caçador do gado, 275


Rio Grande do Sul Arquétipos Culturais e Desenvolvimento Social

changador, é excluído do sistema de estâncias quando as terras e o gado forem apropriados pelos mamelucos e lagunenses até 1801. Serão então considerados, vagabundos, perigosos, ladrões, contrabandistas e criminosos que deveriam ser combatidos a todo transe. Sem gado, sem terra, sem espaço para viver na liberdade, cabe-lhe somente ser integrado à estância, nas funções marginais e/ou viver como fugitivo e andarilho. Forjando uma cultura da marginalidade, em torno de bolichos, galpões, carreiras de cancha reta, bailes de ramada, sempre pronto para zarpar no lombo de seu cavalo, e realizando as fainas campeiras, de estância em estância, este peão assemelhado na sorte ao ex-missioneiro e ao negro liberto, também influenciará na formação arquetípica da família gaúcha. O gaúcho gaudério não constituía família. Não tinha uma estrutura de propriedade e de trabalho que lhe possibilitasse a base. Seus encontros sexuais são casuais, com uma negra ou com uma índia, uma mestiça pobre, também chamada de “china”. Desses encontros, muitas vezes, resultava a gravidez. A mãe assumia-a sozinha. Assim, reforça-se o arquétipo da família gaúcha no sentido da liberdade do homem e no atrelamento da mulher a uma condição de mãe e guarda da prole. Acentua-se a noção de que a sexualidade é proibida, que só pode ser roubada, e que, para enfrentá-la, como não sobra caminho algum pela legalidade dos proprietários do Estado de Cristandade, só resta ao peão sorver-lhe as migalhas através de uma sociedade de fato, de um encontro casual ou da galhofa zombeteira de sua “liberdade.”425 europeu

e) A família e a sexualidade desde a ótica do colonizador

A família do colonizador é constituída pelo homem branco, dono de engenho (e aqui: dono de estância), sua mulher legal e os respectivos filhos. O casamento religioso, que incluía em si mesmo toda a estrutura legal, uma vez que a religião e a política eram unidas no Estado de Cristantade, instituía a família baseada na propriedade. 425

São inúmeras as cançonetas do folklore gaúcho que decantam o descompromisso familiar: “Eu sou tropeiro e adoro esta vida/ A gente vai para onde quiser/ Não tenho amor e esperança nenhuma/ E nunca me prendo por uma mulher”. Ou ainda: “Montado a cavalo, cortando estradão/ Assim é a vida que leva o peão/ Não tenho morada, não tenho rincão/ E não tenho dona do meu coração”

276


O Rio Grande do Sul no Estado de Cristandade Colonial

A desigualdade econômica, política, social entre marido e mulher eram gritantes. Órfãs de Portugal para a Bahia, meninas índias das missões destruídas para Gravataí e Porto Alegre, chinas ou “moçoilas” do Rio de Janeiro para os soldados e oficiais em Rio Grande, a mulher geralmente tinha condição inferior à do marido. A imigração açoriana e posterior, bem como a própria estrutura do latifúndio estancieiro mudará profundamente este desnível. A família, legal e religiosamente constituída procurava garantir as instituições sociais do Estado de Cristandade, todas calcadas na defesea e preservação da propriedade. Assim garantia o Código Filipino. Assim garantirá o Código Civil após 1916. O entrelaçamento das famílias através dos casamentos procurava garantir a estabilidade e a dilatação da propriedade. A função da virgindade da mulher para o casamento garantia a indubitabilidade e a certeza da sucessão legítima da propriedade. Reclusa e recatada no interior da casa-grande do engenho de açúcar, para as “trocas” econômicas e sociais da família, a virgem educava-se para a “fidelidade” a seu senhor proprietário. Muito embora, a reclusão não se verificasse sempre no RS das estâncias e vilas,426 contudo os valores de subordinação, virgindade, fidelidade, vinculação à propriedade e às demais instituições, permanece viva. Mário Osório Magalhães observa a respeito das mulheres de Pelotas:

Mesmo decantadas e cortejadas, as mulheres pelotenses passavam quase todas as suas horas no enclausuramento dos sobrados, a fazer rendas e doces, a estudar piano e dança, a tomar lições particulares. Uma quadrinha, retirada do cancioneiro gaúcho, comprova o fenômeno da reclusão feminina: Na cidade de Pelotas as moças vivem fechadas; de dia, fazem biscoito, de noite, sonham caladas.427

O amor, a confiança, a sensualidade, a sexualidade são, no 426

Os quartos, porém, das meninas-moças, na casa grande da estância, também ficavam no interior da casa, sem janelas para o exterior e com a entrada passando pelo quarto dos pais, para vigiarem e controlarem todos os movimentos.

427

É uma referência à mulher da classe dominante. Mário Osório Magalhães. História e tradições da cidade de Pelotas. 1981 pg. 34. 277


Rio Grande do Sul Arquétipos Culturais e Desenvolvimento Social

interior do Estado de Cristandade, integradas e controladas na família. Só têm sentido e legitimidade na função reprodutora da família e esta está determinada pela propriedade. O machismo, sustentado, garantido e inculcado a todos, por homens e mulheres, e sacralizado pela religião tem o mesmo endereço. A sexualidade espontânea, a sensualidade que o branco vivia com as negras escravas e índias, com as filhas dos agregados, filhas de criação e as filhas dos pobres, era ilegal e pecaminosa, é bom lembrar que a legalidade e a moralidade dos atos eram estabelecidas porquem detinha o poder ecnômico político e social. Nessa ótica, o arquétipo da família colonial portuguesa repercutirá na família dos gaúchos, principalmente na região das estâncias e charqueadas. Será sempre um componente do arquétipo familiar do RS. f) Mulheres açorianas As imigrantes açorianas trouxeram para o RS costumes de simplicidade, familismo, fidelidade, religiosidade. A mulher açoriana traz consigo a institucionalização familiar e matrimonial e, com isto, se pretendeu dar estabilidade às outras instituições na conquista do território. Profundamente marcadas pela indissociável vinculação entre fé e vida, numa religiosidade dirigida pelo clero, nas freguesias e paróquias dos Açores, as mulheres açorianas deram nova fisionomia ao RS. A vida comunitária das freguesias renovavam e confirmavam os valores e costumes trazidos, tanto mais quanto a distância e o isolamento exigiam coesão do grupo e sua identidade. Os açorianos vieram, ao contrário dos “colonizadores” de 1532, com a família completa: pai, mãe, filhos. Vieram para constituir comunidades de famílias e de fato nas 9 ilhas do arquipélado açoriano inscreveram-se em 1747, para emigrar ao Brasil Meridional 7.817 pessoas, das quais (entre 1748-1756) ao redor de 6.000 fixaram-se em Santa Catarina e cerca de 1.500 (compondo 400 famílias) foram reembarcados de Santa Catarina ao RS. A história da família e da mulher no RS deve muito à contribuição açoriana. As mulheres açorianas, “que começaram a chegar aqui a partir de dezembro de 1752, eram em tudo o contrário das que chegaram em 1737” (as mozuelas ou chinocas), acima referidas.428 428

Segundo Guilhermino César, in Sant’Ana (1984) “... trabalhadores, prolíficos, amorosos do lar, os ilhéus representaram um fator de equilíbrio naquela sociedade

278


O Rio Grande do Sul no Estado de Cristandade Colonial

José Cezimbra Jacques, em sua obra Assuntos do Rio Grande do Sul , assim refere a mulher do RS: “...Nos primeiros tempos as nossas patrícias eram por demais retraídas. Porém, o contato e o cruzamento constante com outros habitantes do Prata, especialmente no período da Revolução de 1835, tornou-as proximamente com o mesmo desembaraço social da mulher platina. É esse mesmo cruzamento de açorianos, paulistas, espanhóis, indígenas e esse contato dos dois povos, sul-riograndense e platino, deram à mulher sulriograndense a beleza e a graça da andaluza, a inteligência da francesa e um coração que encerram os grandes sentimentos de humanidade, a par da doçura e da digna submissão ao homem”.429

No povoamento do RS o relacionamento sexual será marcado por essas múltiplas vertentes: com a negra, e com a índia as relações do homem branco português será de libertinagem, de sub-legalidade (uma vez que a lei não coibia essas práticas e até permitia, tendo em vista que as negras poderiam parir novos escravos e era considerada uma diversão dos rapazes em suas práticas de “correr negras”). Por outro lado as índias tinham uma liberalidade muito grande em relação à prática sexual como o atestou Saint-Hilaire. Enquanto das chinocas ou “mozuelas”430 que também fizeram de guerreiros e campeadores que o século XVIII projetou no extremo-sul. Foi a açorita que deu colorido específico ao municipalismo rio-grandense, à vida do burgo, às festas religiosas, à arquitetura bem portuguesa de nossas primeiras construções urbanas” ... As que chegaram por último eram mulheres rudes, vigorosas, ilhoas, gente do mar. Essa mulher era muito pudica, muito fechada em si mesma, vivia enrolada em seus mantos, já que trouxera muitos vestidos e baús. Dessas mulheres ficou a religiosidade, a festa do divino, o sobrado, ficaram as irmandades, sobretudo a irmandade de S. Miguel e Almas, que é tipicamente açoriana, e ficaram as superstições que tanto enriqueceram e contribuíram para o folclore do Rio Grande do Sul... mas essas mulheres curiosamente, não eram pessoas destituídas de humor. Eram muito alegres e dançadeiras. As danças açorianas ficaram famosas como a Chimarrita, a Tirana, o pezinho, a Cana Verde, o Caranguejo e tantas outras, que são consideradas hoje, tipicamente gaúchas” SANT’ANA, 1984: 20. 429 430

In. Sant’Ana, 1984: 22. Não é preciso destacar o ressaibo machista do texto. Para atender às necessidades sexuais dos soldados do Regimento de Dragões que defendiam o forte Jesus-Maria-José de Rio Grande vieram “mulheres brancas da Bahia, Rio de Janeiro e S. Paulo. Eram as ‘damas da vida airada’ como se dizia na época, ou de ‘mau proceder’ , e , segundo Guilhermino Cesar em História do Rio Grande do Sul: “...arbitrariamente presas nas ruas cariocas. Eram mozuelas que, no 279


Rio Grande do Sul Arquétipos Culturais e Desenvolvimento Social

parte da primeira leva de mulheres para o RS, temos, entre os protótipos para a sexualidade do RS primitivo, uma fluidez, uma liberdade, uma indisciplina que não é controlada pela instituição matrimonial tradicional, nas mulheres açorianas temos a contrafação do recato e do controle. A característica de “china” e depois “chinoca”, idealizada depois como faceirice, meiguice brejeira, inocente mas provocativa sensualidade da mulher gaúcha, traz assim em sua raiz, ao mesmo tempo o machismo escravizador e a liberdade do amor. “Das mulheres do RS observa ‘todas as mulheres que tenho visto de Rio Grande a esta parte são bonitas, têm olhos e cabelos negros, cútis branca e têm sobre as francesas a vantagem de serem mais coradas’. Descreve ainda a existência de inúmeras mulheres comandando estâncias, trabalhando, provendo sozinhas a sobrevivência, em vista da constante ausência dos maridos. O viajante conta que, enquanto nas regiões do interior do Brasil não encontrou mulheres nas ruas, na cidade do Porto Alegre elas eram bastante freqüentes.”431 Diz ainda Saint-Hilaire, em sua observação de viés europeu: Em todas as partes do Brasil que tenho percorrido até aqui, não há escolas nem pensionatos para as moças, criadas no meio dos escravos; desde a mais tenra idade, têm elas, diante de si o exemplo de todos os vícios, adquirindo, via de regra, o hábito do orgulho e da baixeza. Uma infinidade delas não sabe ler nem escrever: aprendem algumas costuras, recitar orações que elas próprias não entendem, e é tudo; por isso as brasileiras, em geral, ignoram os encantos da sociedade e prazeres da boa conversação. Entretanto, nesta região, em que as mulheres se dizer chistoso do Brigadeiro Silva Paes, vão aí buscar estado e aqui o tinham de desenvoltas... outras remessas foram feitas de mulheres para esposas dos moradores (sem que o Governador ocultasse ao Conselho Ultramarino tais providências, dizendo: ) “...as mais fortes razões que muitos podem ter para que não desertem, são mulheres com quem possam se casar”. Consideradas no Rio ‘prejudiciais’, ‘podem ser úteis’ à nova conquista, com a circunstância de que ‘destas não faltarão nunca para poder mandar sempre que haja embarcações’...Quando mais tarde, estes dragões foram transferidos para Rio Pardo, casaram-se, a maioria deles, pelo menos, com essas mulheres. Mulheres sem futuro, sem destino, talvez até contrariadas, pois eram consideradas marginais. Mas essas mulheres resistentes, acostumadas ao sofrimento, tinham condições morais, físicas e psicológicas para resistir às dificuldades do Rio Grande do Sul. Quase todas elas casaram, se afamiliaram e se tornaram aqui troncos sólidos das grandes e tradicionais famílias gaúchas” SANT’ANA 1984: 19. 431

História das Mulheres no Brasil, pg. 278

280


O Rio Grande do Sul no Estado de Cristandade Colonial

ocultam menos que as das capitanias do interior, têm elas, é preciso convir, melhores noções de vida; são bem desembaraçadas, conversam um pouco mais, porém ainda estão a uma infinita distância das mulheres européias432

Na região da fronteira com o Uruguai e Argentina, as mulheres costumavam até depois da década de 1950, andar armadas de revólver e faca, parar rodeiro, receber qualquer pessoa que chegasse à estância, afrontar inimigos (homens ou mulheres) e administrar a estância com autonomia na ausência (temporal ou permanente ) do marido, como acontecia enquanto duravam as guerras e revoluções. Na ausência temporária ou definitiva do marido, era a mulher quem administrava e governava a estância. Ganhava, assim, um espaço social que, nos períodos de paz, tendia a restringir-se e diminuir. Jamais retornaria ao status quo ante. As conquistas históricas não se anulam. g) A família e a sexualidade na ótica da Cristandade Colonial A conquista dos espaços sociais e a elaboração da identidade da mulher gaúcha acontecia dentro dos arquétipos do Estado de Cristandade que modelavam o Ocidente e o Brasil Colonial. No Estado de Cristandade colonial que integrava europeus, índios e negros, a compreensão da sexualidade era mediada pela compreensão da sexualidade da hierarquia clerical: o celibato. A sexualidade é uma diminuição, uma fraqueza, uma tentação e uma ameaça que provém do corpo contra a alma. Quase um mal necessário para a procriação humana. Por ela os homens perdem a virtude e o poder. O ideal sexual é o celibato e o celibato vivido pelo clero e pelos religiosos. O conselho evangélico de castidade é traduzido como celibato e abstenção. Quando um homem ou uma mulher não consegue (porque é fraco) ser célibe, então o mal menor é que apague o fogo de sua paixão no casamento monogâmico e indissolúvel, sob as normas e controle do Estado e da Igreja. A atração sexual que a mulher exerce sobre o homem é vista como demoníaca. Provém de um pacto que ela fez com o demônio. Tudo o que foge ao controle é demoníaco. O prazer sexual deve ser escondido, disfarçado, e até mentido porque é algo perigoso, 432

SAINT-HILAIRE: 66. 281


Rio Grande do Sul Arquétipos Culturais e Desenvolvimento Social

pecaminoso e baixo. Só o sofrimento salva. Nega-se o prazer para assim controlar o poder. “É mèglio potere che fuotere”, dirão os zombeteiros liberais trentinos, a respeito da ânsia de poder do clero celibatário, no último quartel do século XIX. A totalidade do prazer (libido) e suas múltiplas dimensões são assim tratadas, no contexto do Estado de Cristandade. Se um povo feliz é um povo revolucionário e incontido e incontrolável, para manter o poder é preciso conter o prazer e sacralizar o sofrimento. Conter todos os prazeres, mormente os sexuais. Este padrão de comportamento, porém, nunca será explícito, sob pena de não surtir o efeito desejado. Ele vem sempre subliminarmente trabalhado no contexto dos outros padrões de conduta. Aparecerá como resultado de uma boa educação. Aparecerá como busca da paz social, do respeito às pessoas, da virtude, do recato, da força de caráter e docilidade do coração, etc. O sexo será assim enquadrado pelos controles do Direito, nas determinações da propriedade e de seu exercício. Não apenas o casamento monogâmico e oficial para que a propriedade seja mantida nas mãos do “legítimo” descendente e assim se mantenha como latifúndio, mas também como direito ao prazer do homem macho sobre a mulher (objeto de cama e mesa e moeda de transação nos contratos de propriedade da terra). A demonstração do poder se faz também pelo sexo: todo o homem bem sucedido econômicamente mostra seu poder e prestígio através uma “filial” amante (teúda e manteúda, como dizia o Direito brasileiro de então) ao mesmo tempo em que garante a fidelidade da esposa pelo recato e religiosidade, assim como, e fundamentalmente a virgindade da filha. Quem não tem propriedade não tem casamento, não tem mulher, não tem família. Para estes a vida sexual e a família, constituída apenas de fato, é sempre um roubo: roubar a chinoca, roubar uma aventura nos bailes de ramada, roubar um prazer e “sadomasoquistamente”, vangloriar-se do roubo e de uma noite de amor. Assim, como em toda a América Latina, os lares constituídos de fato e não de direito cresceram a ponto de representar metade dos lares. Assim, no Brasil,433 como em toda a América Latina, o Estado de Cristandade que se impôs gerou um padrão de comportamento sexual que a DESAL assim resumia em 1966: “o conquistador era monógamo na Igreja e polígamo em casa.” 434 433 434

Cf. MURARO, Rose Marie. ... DESAL, América Latina y Desarollo Social, Herder, Santiago, 1966 pg. 128. Vol II.

282


O Rio Grande do Sul no Estado de Cristandade Colonial

A história da mulher e da família no Brasil atesta, desde o início da colonização, a exclusão da mulher na elaboração, na administração e no usufruto do projeto colonial. No projeto de colonização proposto e levado em frente, Martim Afonso de Souza, ao implantá-lo em 1532, não traz, na expedição, mulher alguma. O Brasil seria colonizado apenas por homens que, amasiando-se com negras e índias, e sem dar-lhes status de esposa, geram o caos e a libertinagem sexual deplorada pelos jesuítas que acompanham o primeiro governador geral que chega à Bahia em 1549. O superior jesuíta, Manuel da Nóbrega 15 dias depois de sua chegada, escreve ao rei de Portugal que reúna três navios de mulheres “casadoiras” e as envie ao Brasil para “acabar com aquela vergonheira”. Um navio, trazendo as órfãs e dasamparadas, chega então ao Brasil, para servir de esposas legais aos senhores de engenho. Pode-se imaginar a autoridade dessas mulheres diante de um senhor de engenho todo poderoso, que é governador, juiz, legislador sobre todas as pessoas subordinadas ao engenho. A mulher, recolhida no interior da casa grande, nem recebe os visitantes, jamais opina sobre uma transação ou negócio e nunca se opõe às decisões do marido. A filha permaneceria enclausurada, no quarto sem janela no interior da casa grande, e sua brancura era seu atestado de nobreza. O homem branco continua a fazer da negra e da índia sua concubina, sem mais. A negra só conquistará um status de esposa no ciclo do ouro (Século XVIII) e diamantes das Minas Gerais. Chica da Silva serve de arquétipo. Por outro lado, o RS, cujo território só será integrado ao Brasil no século XVIII, receberá a influência dessa história da mulher e da família, agregando-se a ela a experiência missioneira, a das chinocas, a das mulheres açorianas e imigrantes européias (alemãs, italianas...) no século XIX e no contexto específico da história do RS. É longa a luta da emancipação feminina também no RS. E são evidentes as discriminações com que a lei brasileira as trata ainda hoje. E essa luta, derrubando a delimitação do privado e do público, do lar e da sociedade, da família e do Estado, do pudor e do prazer está hoje, pondo em crise todo esse modelo sacralizado pelo Estado de Cristandade. O Estado de Cristandade gerou, na Europa moderna de economia de mercado de rentabilidade compulsiva, uma colonização não só externa sobre os homens americanos, africanos, asiáticos (nãobrancos), mas também uma colonização interna do homem branco sobre 283


Rio Grande do Sul Arquétipos Culturais e Desenvolvimento Social

si mesmo: sobre o próprio colonizador; sobre o camponês europeu; sobre a mulher do colonizador.A economia de mercado de rentabilidade forçada fez surgir “a triste figura de uma natureza mascarada, movida por uma ambição cega às emoções; a imagem do sempre contido e concentrado guardião de uma soma de dinheiro, que tem por objetivo multiplicar a si mesmo, subjugado por seu próprio cálculo abstrato. O vencedor e conquistador teve também, ele mesmo, desvirtuada e destruída sua capacidade sensível de fruição....Quanto mais avançava na colonização do mundo exterior, tanto mais o homem branco precisava ajustar a si mesmo, e quanto mais assim se ajustava, mais precisava colonizar o mundo. Os senhores do auto domínio, que tinham vertido sangue no novo mundo, lançavam agora seu olhar abstrato e utilitário para o continente europeu. A colonização externa das culturas não européias se reverteu diretamente em colonização interna do próprio mundo (europeu). Na medida mesma em que promovia a capitalização da produção e a industrialização, o colonialismo também destruía o modo de produção agrário da antiga Europa e impelia a parcela empobrecida da população para as fábricas, então com jornadas de trabalho de 14 horas e bárbaro trabalho infantil. A minoria dos homens brancos, que havia se convertido em órgão de execução política e econômica do princípio de rentabilidade, transformou a própria massa de homens brancos em uma nova espécie de nativos sem nome, novas mônadas de força de trabalho abstrata.”435

O mesmo Estado de Cristandade que fazia renascer na Europa Moderna o princípio da propriedade ( do indo-europeu) e constituía uma sociedade com um sistema de produção baseado na rentabilidade abstrata e no fetichismo da mercadoria, cujo rito e exigência não permitia a existência integral do homem sensorial, passional, de desejos e utopias, também negava a sexualidade. Esta sociedade de mercado, colonizadora, precisava colonizar a mulher. “...a colonização interna teve de ser levada a seu ponto mais extremo: a degradação da mulher branca e de sua corporeidade. Porque havia degradado a si mesmo enquanto máquina social insensível, o homem branco colonizou a mulher como um animal hipersensível. Ela deveria responder por tudo que ele não podia 435

KURZ, Robert. Os últimos combates. Pg. 46-47.

284


O Rio Grande do Sul no Estado de Cristandade Colonial

mais sentir ou desfrutar: pelos sentimentos e pela dedicação afetiva, pela estética cotidiana e pela mobilização da sensualidade, enclausurada na prisão de segurança máxima da célula familiar, modernizada em sua privacidade abstrata. Com isso, foram atribuídas à mulher as mesmas características reservadas aos selvagens, às pessoas de diferente cor de pele, à criança e aos culturalmente subordinados: a imprevisibilidade e o capricho, a ausência de concentração de auto-domínio, o cultivo da voluptuosidade e a posse de uma sexualidade desenfreada deveriam ser os elementos constitutivos de seu ser...Por um lado o homem branco cobiçava as qualidades sensíveis da mulher ajustada a tais padrões sociais, pensando mantê-la junto a si como “ente natural domesticado”. Por outro lado, no entanto, ele também temia essas qualidades, que já haviam se tornado algo estranho a si mesmo, as quais precisava repelir sempre, até mesmo com violência excessiva, com um poder que punha em cheque sua couraça de abstração. Esse processo de colonização interna da mulher se estendeu da queima das bruxas, que não por acaso coincidiu com o início da história colonial, até o século XX, em matéria de atrocidade não ficou nada atrás da guerra colonial externa.”436

O mercado, montado sobre o princípio do lucro e do capital e que se fará mundial é a negação dialética do proprietário em si mesmo. “...A possibilidade de uma utilização abstrata dos seres humanos e da natureza, conforme a lei da rentabilidade, tinha como condição básica a colonização interna da mulher. Sua domesticada e colonizada responsabilidade compulsória pelo sensível era o pressuposto para que o homem branco pudesse dominar a si mesmo, e, com isso, o mundo à sua volta.”437

Assim, se a emancipação da mulher se fizer em termos de equiparação com o masculino, nessa lei de rentabilidade abstrata, ela deixa de ser colonizada e responsabilizada pela afetividade e passa a se identificar com o homem que perdera a identidade como homem sensível. É uma dupla perda de identidade. É curioso observar que o fetichismo da mercadoria da sociedade moderna utiliza, para teoria, o pensamento grego especialmente platônico para quem o homem fatidicamente dividido em um corpo (material, mau, prisão, sepultura) e uma alma (divina, 436

KURZ, 1997, pg. 47.

437

KURZ, 1997, pg. 50. 285


Rio Grande do Sul Arquétipos Culturais e Desenvolvimento Social

espiritual, boa) faz da virtude (isto é da negação do corpo e da corporeidade) sua salvação. Na ascensão da alma do nível concupiscível ao irascível e ao racional, o homem proprietário e machista deve renegar, martirizar, superar a sensibilidade, a sensualidade especialmente (representada na mulher e no trabalhador), o medo e a dor, o prazer e a poesia para refugiar-se no reino dos deuses que é a contemplação das idéias universais só acessíveis aos fílósofos (os guardiães da cidade).438 Abster-se de todo o prazer, do desejo, do medo, sofrer e negar-se é o caminho para apropriar-se de si mesmo, para ser proprietário do mundo, da pólis, da família e de Deus. Por outro lado essa propriedade salvará o homem da insegurança e da precariedade dos prazeres corporais, tornando-o um deus auto-suficiente e gozando da vida dos deuses na imortalidade. O amor, as relações humanas, as paixões, a corporeidade e a sexualidade são assim desprezadas e, no máximo, consideradas um meio para o homem ser si mesmo e proprietário. A rentabilidade abstrata da sociedade de mercado é a tradução moderna e “cristianizada” (isto é: como ideologia do Estado de Cristandade) da propriedade absoluta e irrestrita que caracteriza o homem ocioso e machista da cultura indo-européia. Ora, a América Latina foi colonizada por essa Europa e por essa visão de feminilidade. O RS não fugiu à regra. Na elaboração da identidade do feminino rio-grandense juntam-se múltiplas influências: desde o equilíbrio e reciprocidade de funções sexuais e sociais das indígenas, desde a “rainha do lar” do período colonial, assexuada (sem iniciativa sexual), passiva, sem voz e sem vez, senão como esposa oficial e formal do senhor de engenho e fazendeiro, e mãe dos filhos “legítimos”, para assegurar as relações de 438

Como se sabe, o pensamento grego de Platão atribuía ao homem três níveis da alma. Na base o nível concupiscível (da sensibilidade corporal, da paixão, da emotividade); em nível acima está o irascível (o da força, da ira, do empreendimento e iniciativa) e acima de todos o nível racional. Nas mulheres e trabalhadores, mormente nos escravos prevalece o nível concupiscível porque só se preocupam com o corporal, sensorial, passional...Nos soldados e funcionários predomina a alma irascível pois lidam com as decisões e a guerra; nos condutores, intelectuais e filósofos, nos “bem educados” que aprenderam a dominar o corpo e as paixões predomina a alma racional. A virtude será diversa para cada nível de pessoa: assim se para os que são dominados pela alma concupiscível a virtude é a temperança, para os da alma irascível será a coragem, meio termo entre covardia e temeridade, e finalmente para a alma racional a virtude será a sabedoria. Cf. Fedon, República e Leis.

286


O Rio Grande do Sul no Estado de Cristandade Colonial

propriedade,... até a mulata faceira e sensual, até a determinação quase matriarcal da imigrante alemã, até a “mamma” italiana, a pertinaz e religiosa companheira açoriana, até as chinas e chinocas dos primeiros tempos e das guerras e da derrocada das Missões, tudo marca essa identidade. A sexualidade gaúcha é, sem dúvida, marcada pelo machismo e que, diante da “mulher de faca na bota” se extravasa como transgressão e ou transferência. Assim o homem que se enternece até as lágrimas com o bezerrinho ou carneirinho, com as crianças e com a mulher na medida em que ela aparece como criança indefesa, será o homem de uma dureza sado-masoquista consigo e com os outros até as raias da morte. A sexualidade do gaúcho, sempre transgressão como afirmação, sempre negação da mulher enquanto outro, ao mesmo tempo que a consagra como “prenda”, prêmio, mostra a vida do gaúcho como conflito entre lei e transgressão, entre lei e crime. O crime, a transgressão, ao mesmo tempo que funda a cultura gauchesca e sua técnica, ao mesmo tempo funda a repressão, a penalização, a militarização, a exclusão como forma de inclusão.439 Assim como sua vida, também sua sexualidade anda sempre na exclusão, no proibido, no ilegal, no não-cotidiano. O viver proibidadamente dá ao gaúcho a experiência mítica do caos anterior à ordem estabelecida e fundante dessa ordem, e por outro lado a experiência da impossibilidade de ser, a experiência da negação. Assim como a festa e a beleza, a sexualidade é sempre um excesso, um transbordar da vida para além dos limites fixados e normatizados, é sempre uma transgressão. Muito mais se os limites forem os clericalmente estabelecidos pelo Estado de Cristandade. A identidade da mulher gaúcha também não se resume, obviamente, aos traços definidos no filme “Anahy de las Misiones”. Nem o RS ou a Revolução Farroupilha se restringem àquela caricatura. No grotesco daquela imagem, porém, evidenciam-se muitos traços da sexualidade do gaúcho que, em seus hábitos e falas, não é dono da terra, nem é índio, nem lhe interessam as lutas fratricidas que acompanha. Se a sexualidade reduzida ao instintivo animal, para além de qualquer regra ou limite, sem o horizonte de uma sociedade possível, chorando apenas a dor de ter e perder os filhos, Anahi mostra também a liberdade a galhardia e coragem, o comando e o tino da mulher gaúcha. 439

Ver Anexo - El Paisano Ensimesmado o La tenebrosa sexualidad del gaucho. 287


Rio Grande do Sul Arquétipos Culturais e Desenvolvimento Social

Na verdade, negada e prenda, estabelece a lei que os outros aplicam e se afirma negada porque não tem a propriedade da terra que só pertence aos homens. Por isso não se “aquerenceia”, seguindo sempre os homens que lutam, recolhendo seus despojos e sendo-lhes “serventia” para uso sexual. Este ângulo da sexualidade feminina é o do missioneiro excluído, da chinoca em seu não-espaço. É de se perguntar, por outro lado se o peão de estância, o charqueador, e o homem gaúcho em geral, pelo fato de lidar permanentemente com o abate de animais nos quais muitas vezes ele condensava seu objeto afetivo, não retirava dele a ponte de relacionamento afetuoso com os outros homens, consigo mesmo e com a mulher especialmente, mesmo que isso fosse feito como derivativo e transferência afetiva. Não é o fato de lidar com as intempéries, com o exercício muscular de força e coragem que “embrutece” o homem. A própria natureza oferece inúmeras situações de ternura, de beleza, de enlevo e que o homem simples, e muitas vezes iletrado, sabe apreciar até melhor que muitos intelectuais. Mas, trabalhar para destruir seu objeto afetivo, viver a “sina” de levar o gado para o matadouro, o sangramento do boi que berra lancinante como o descrevem as canções permanentemente assobiadas e cantadas, sem dúvida, embota e entorpece a sensibilidade e sua expressão. Assim, o gaúcho, além da brutalidade da escravatura em vigor, além das permanentes violências praticadas contra os índios e que marcam a memória, além das fratricidas lutas por “fronteiras” ideologicamente delineadas dentro das justificativas dos Impérios mercantis salvacionistas, além das lutas internas, por vezes macabras e sem sentido, como as Revoluções de 1893 e 1923 marcadas por degolas e chacinas, além da rudeza da lida com o gado e especialmente pela carneação, além disso tudo encontra a ideologia da guerra, na lógica da propriedade, sacralizada pelo Estado de Cristandade. A sexualidade, como relacionamento humano, trará a cicatriz de tudo isso. h) Anita Garibaldi (Ana Maria de Jesus Ribeiro) A catarinense Anita, mulher e companheira do italiano Giuseppe Garibaldi, nosso herói farroupilha, também marcou o arquétipo feminino do RS. Filha de Bento Ribeiro da Silva e Maria Antonia de Jesus Antunes, nascida em Morrinhos, perto de Laguna em 1821, de família 288


O Rio Grande do Sul no Estado de Cristandade Colonial

numerosa (10 irmãos) e pobre (agricultores). Órfã de pai, casa, por insistência da mãe,(porque à mulher rebelde só estavam reservados o casamento ou o convento) com o sapateiro Manuel Duarte de Aguiar aos 14 anos. “O curto matrimônio, sem afinidade e sem filhos, revelouse um fracasso seguido de separação. Aos 18 anos conheceu a José Garibaldi que viera com as tropas farroupilhas de Davi Canabarro e Joaquim Teixeira Nunes tomar a Laguna em julho de 1839, fundando a República Juliana dos Cem dias.”440 De caráter independente e resoluto, corajosa e exímia cavaleira desde criança, vive com Garibaldi “um dos mais belos romances de amor e dedicação incondicionais.”441 Desde outubro de 1839 ela segue Garibaldi, em suas lutas de corso contra a marinha imperial, transportando destemidamente munições para a batalha naval de Laguna, na retirada para o sul batalhando em União da Vitória, Curitibanos. Prisioneira em Curitibanos, foge espetacularmente a cavalo pela mata, atravessa a nado o rio Canoas, reencontrando Garibaldi 8 dias depois. Em 16 de setembro de 1840 nasceu-lhe o filho Menotti em Mostardas. “Doze dias depois do parto, é obrigada a fugir dramaticamente a cavalo, seminua e com o recém nascido ao colo, de um ataque noturno de Pedro de Abreu, durante a ausência de Garibaldi.” 442 Acompanha Garibaldi na retirada “mortífera”do Rio das Antas. Sua coragem salva o filho à última hora. Dispensado Garibaldi da Revolução Farroupilha em 1841, acompanha Garibaldi a Montevideu onde casa com ele em 26/3/1842 na Igreja S. Francisco de Assis. Ao lado de Garibaldi nas lutas contra Rosas, com o exército dos “camicie rosse” , a célebre Legião Italiana,443 440

RAU, W. L. Anita Garibaldi a Heroína dos dois mundos. Resumo biográfico. Coletânea Particular, 1989.

441

Ibidem.

442

Ibidem.

443

Para defender Montevideu contra Buenos Aires em 1843 Garibaldi organiza a Legião de Italianos, enquanto os franceses organizavam a sua etc. “Então, visto que em Montevideu achava-se radicado um grande número de italianos – uns em razão de negócios mercantis, outros porque lá estavam exilados - , dirigi uma proclamação aos meus compatriotas, convocando-os a pegar em armas, a construir uma legião e a combater até a morte por aqueles que lhes haviam oferecido hospitalidade...A Legião italiana não era remunerada: recebia tão somente rações de pão, de vinho, de sal, de óleo etc. Sem embargo, após a guerra, seus sobreviventes, suas viúvas e seus órfãos teriam direito a terras e gado. A Legião foi inicialmente composta por algo entre 400 e 500 homens. Depois este número elevou-se a 800, uma vez que recrutávamos os italianos à proporção em que os navios europeus desembarcavam 289


Rio Grande do Sul Arquétipos Culturais e Desenvolvimento Social

Anita tem mais três filhos: Rosita (que falece aos 30 meses), Teresita e Riccioti. Em fins de 1847 segue com os três filhos para Gênova e Nice sendo seguida pelo marido poucos meses depois. Aperfeiçoa-se intelectualmente, e lado a lado com Garibaldi começa a ser conhecida internacionalmente na luta pela unificação italiana. Depois da heróica resistência de Roma contra os franceses e da retirada de Garibaldi para o norte, grávida do quinto filho, recusando ficar em San Marino para restabelecer-se de uma enfermidade, morre nos braços do marido que ziguezagueava pelos pântanos ao norte de Ravena, às 19 horas do dia 4 de agosto de 1849 “longe dos filhos, num quartinho do segundo pavimento da casa dos irmãos Ravaglia em Mandriole, próximo a Santo Alberto.”444 No ideário de mulher rio-grandense Anita não pode ser esquecida. Juntando determinação, energia e coragem pessoal, sobrepujando os preconceitos tradicionais que a família e a sociedade impingiam sobre a mulher, apaixonada pela pessoa e pelos ideais de Garibaldi, faz-se, não apenas rebelde e contestadora, mas a animadora dos soldados, a auxiliar dos que lutam, a enfermeira de muitos, a protetora dos filhos, a companheira que se ilustra para compreender os ideiais da Revolução Francesa, a companheira definitiva de Garibaldi até a morte. Se os ideais franceses eram apenas burgueses, iluministas, liberais, republicanos ou não, o certo é que ela lutou por suas paixões. “Anita Garibaldi foi incomparável no amor, na guerra e no sofrimento... essa catarinense de nascimento e gaúcha de coração”445 “com um filho num braço e no outro um fuzil” como diz a canção. i) A mulher na imigração alemã e italiana As mulheres imigrantes do século XIX e XX trarão outros padrões sociais e culturais para a identidade da mulher gaúcha. A mulher imigrante alemã é a comandante absoluta da casa. O marido não faz negócio sem ouvir a mulher. Não acontece assim entre os imigrantes pomeranos. Entre eles “ao homem cabe o papel de chefe tanto os proscritos quanto aqueles determinados a fazer fortuna e cuja esperança se desfazia nas dificuldades de empreendimento. Esta foi a princípio, dividida em três bartalhões: um comandado por Danuzio; outro, por Ramella; e um terceiro comandado por Mancini” DUMAS, A. Memórias de Garibaldi, pg. 151. 444

Ibidem.

445

BASSAN, João Pedro. Poema, s/d.

290


O Rio Grande do Sul no Estado de Cristandade Colonial

de família, ele trabalha a terra, e não se envolve com os afazeres domésticos, sendo que é dele a responsabilidade de comercializar os produtos. As mulheres assumem as tarefas da casa, a educação dos filhos e ajudam nas lavouras...e, embora trabalhe nas lavouras, e em propriedades que trabalham com gado leiteiro seja ela a principal responsável por esta atividade, não participa das decisões.”446 Contudo, afora o formalismo dos poderes jurídicos, o marido consulta a mulher antes de qualquer decisão. Do contrário sanções sutis infernizarão sua vida. A mulher determina o colorido dos vestidos, o asseio da casa, o alimento. Trabalha lado a lado com o homem. Tem a tarefa da educação dos filhos, complementada pelo vigário ou pastor aos domingos. As escolas comunitárias escolhem o professor, pagam-no, demitem-no quando não corresponde aos anseios da comunidade. A mulher imigrante italiana é companheira fiel, fidelíssima ao homem por motivos religiosos antes de mais nada. Entregar-se sexualmente ao marido para satisfazê-lo é um dever moral e religioso. É ela quem organiza as tarefas da casa: alimento, vestuário, asseio, saúde, educação primeira dos filhos, catecismo, encaminhamento religioso (especialmente para observância dos preceitos da Igreja...ir à missa, confessar, comungar...). Tem confiança absoluta no sacerdote e faz do sacerdote um ideal para cada um de seus filhos, assim como o ideal de ser freira para as filhas. Ao mesmo tempo trata as questões sexuais como brincadeira e como se fosse algo exterior a si mesma e somente fisicamente realizável. Não é uma questão existencial e pouco tem a ver com o querer bem e com o amor. O prazer é negado como tentação e perigo para a salvação religiosa. O ideal do sacerdote celibatário permanece no horizonte como ideal familiar. Por outro lado dar à comunidade e à família o maior número de filhos era o ideal e o dever. Para maiores estudos remetemos à bibliografia específica. j) A mulher no sistema liberal, positivista O Positivismo que tanto influenciou o RS econômica, política e culturalmente, especialmente no final do século XIX e início do XX, trará sua compreensão de sexualidade, família e feminilidade também. 446

SIMCH, Terezinha de Lemos. A Unidade Familiar de Produção: uma visão antropológica. In ZANOTELLI e GORSKI. Antropologia – Integração – Ensaios. Pelotas, Edufpel, 1998, pg.191-194. 291


Rio Grande do Sul Arquétipos Culturais e Desenvolvimento Social

Augusto Comte elaborou sua visão de mulher pela experiência existencial própria. A mulher na ideologia positivista será marcada pelo sentimento (sentimentalismo, diríamos), pela maternidade e pelo altruísmo. Na religião da humanidade positivista, o sacerdote será o banqueiro e, na liturgia do exercício caritativo do altruísmo, a mulher será a sacristã. Enquanto o homem se dedica à ciência (de matriz matemática) a mulher cuidará dos desvalidos. Enquanto o homem for prefeito ou governador, presidente, a mulher será a primeira dama que tomará a seu cargo a estimulação da “caridade”, com sopas, agasalhos e campanhas beneficientes. O matrimônio monogâmico e indissolúvel pregado pelos positivistas procura salvar a dignidade e a moralidade da mulher como rainha do lar. Por outro lado o fato de o positivismo pregar a substituição da Igreja pela Escola na formação do cidadão, dará à mulher um amplo espaço de atuação social na educação e na saúde, especialmente. Aos poucos, os homens serão substituídos pelas mulheres nessas funções e os valores da educação serão definidos pelo maneirismo educado e sentimental próprio da mulher positivista e por outro lado pela eficiência das ciências e tecnologias derivadas da matemática com a divisão curricular proposta por A. Comte: Matemática, Física, Química, Biologia, Sociologia e Psicologia. Assim também o positivismo não liberou a mulher. A mulher “como objeto de cama e mesa”, como objeto de prazer e instrumento de desejo, idéia profundamente machista, determinará a história do feminino nos dois últimos séculos e marcará também o RS. O concurso de beleza, como justificativa de produção de cosméticos e vestuário, banalizou de tal forma a sexualidade, sob pretexto de “naturalizar” conceitos e relações, que tornou imprevisível a identidade e a diferenciação sexual. Descompromissado de relações de fidelidade fica o indivíduo à mercê do mercado e dos fabricadores de desejos cuja satisfação é prometida pelo mercado. Se o Estado de Cristandade controlava e coibia o prazer (e demonizava a mulher como símbolo do pecado e do pacto com o demônio) e com isso sacralizava e potencializava o poder e a hegemonia dos governantes, a burguesia da Idade Moderna e Contemporânea, sacralizando o prazer e o desejo, cuja satisfação só o mercado pode oferecer, subordina e controla através do mercado, os indivíduos da sociedade que “precisam” consumir. O controle do acesso ao mercado e a exclusão do mercado são o fundamento de todo o poder político, econômico e cultural. A 292


O Rio Grande do Sul no Estado de Cristandade Colonial

sexualidade e a questão feminina tornaram-se assim uma questão política e de poder. A afetividade, por isso mesmo, como nunca, aliouse à política e ao poder. Aí está a raiz da dificuldade de se entender a gratuidade das relações humanas, afetivas e sexuais, quando o capitalismo fez do mercado a mediação necessária de todo o comportamento. Por aí, pode-se ver a continuidade da contradição dialética do dualismo antropológico e ético gestado no Estado de Cristandade, levado ao paroxismo. O machismo, contraposto a si mesmo pelo feminismo, não se supera apenas pela dialética. A sexualidade exige a superação e a integração do masculino e do feminino diversos e idênticos, integrados num plano superior. O amor, a sexualidade não se explicam, nem tomam sentido, apenas pelo masculino ou pelo feminino ou por um consórcio de ambos: o sentido está antes e depois, abaixo e acima de ambos, transcende-os e os integra. Por outro lado, nos círculos maçônicos, a mulher também não tem lugar. Os templos maçônicos, os ritos, os segredos e funcionamento são atividades exclusivamente masculinas, assim como a ciência e os negócios, bem como a política. A mulher gaúcha, porém, no cruzamento de múltiplas influências, gestou para si própria um espaço de autonomia e independência relevante na história do Brasil. Podemos dizer que a mulher estancieira, que administra sozinha a fazenda, comprando, vendendo, recebendo visitas, ordenando o trabalho dos serviçais e ela própria realizando tarefas tidas como masculinas ( parar rodeio, marcar, tosar, carnear, enfrentar inimigos de arma na mão, especialmente em tempos de guerra e de ausência prolongado do marido) além de responder pelas tarefas de alimentação, higiene, saúde, tecelagem e vestuário, tudo isto dá à mulher um lugar econômico e consequentemente político e social que perdurará na arqueologia do comportamento social do RS. A mulher imigrante, especialmente pelas dificuldades inerentes à própria imigração (necessidade de integração no pequeno e fraco grupo etno-cultural, necessidade de enfrentar as ingentes dificuldades econômicas e de saúde..., necessidade de marcar a identidade cultural familiar ante as forças centrífugas e estranhas dos novos ambientes), ocupa um lugar destacado e até proeminente na estrutura familiar e, a partir dali, na estrutura e nas relações sociais. Como dissemos acima, é significativo destacar o papel da mulher pomerana na decisão informal dos negócios mais importantes da família. O marido, único responsável 293


Rio Grande do Sul Arquétipos Culturais e Desenvolvimento Social

e capaz juridicamente para realizar transações comerciais, nada faz sem consultar e ouvir, a sós, o parecer decisivo da mulher. O mesmo pode ser dito, relativamente, à situação da mulher imigrante alemã, judia, francesa, em geral, e, em menor dimensão da mulher italiana, polonesa, japonesa. A mulher negra, em meio à mais cruel escravidão que, disfarçadamente ainda perdura, soube arrancar um espaço que marcou o RS. Assim, a exímia cozinheira, doceira, lavadeira e engomadeira, mucama e babá, ama de leite, a segunda mãe a quem afetivamente o filho tanto se vincula, a cabrocha que torce a cabeça de tanto homem, a explosividade sensual e sexual decantada e sonhada no cancioneiro gaúcho: “se negaciaram por meses, por uma noite de amor”, enfim, a negra tão branca e a branca tão negra que é a mulata, morena que é protótipo de beleza da mulher brasileira e gaúcha,447 tudo isso deram, por ínvios caminhos e tortuosas veredas, um mínimo de espaço real à mulher negra no RS. l) Algumas observações finais Quando se observa, hoje, na Universidade, o predomínio crescente e, em algumas áreas, absoluto das mulheres que se preparam como profissionais qualificados para os melhores postos de trabalho na economia de mercado e nas funções estatais como ensino, saúde, e cada vez mais na justiça, na segurança, na administração, sem falar nos grandes postos de comunicação e produção intelectual, pode-se dizer que os espaços exclusivamente masculinos no RS estão no fim. Basta ver a plêiade feminina de políticos, vereadores, prefeitos, secretários de Estado, governadores, ministros, deputados, senadores, juízes, desembargadores. Sem contar a conquista de um espaço de 20% de candidaturas nos diferentes partidos.448 447

É significativo que o concurso para escolher a Garota Verão do RS, ocorrido no dia 11 de março de 20000 teve o seguinte resultado: Garota Verão (Ingrid Alfaya: de torres) loira, 16 anos, 1,73cm de altura e recebeu a faixa da Miss RS 2000 Maria Fernanda Schiavo; as duas princesas foram a mulata Sheron Menezes e a descendente de imigrantes italianos Rafaela Griza. Beleza múltipla como a miscigenação que se realiza no RS. Cf. Zero Hora do dia 13/3/200, Segundo Caderno.

448

O Diário Popular, no dia 13/3/200, em primeira página Noticia “Ryder Cup, de Porto Alegre, vence o Princesa do Sul com a condução de Janaína Baptista”... “Janaína conduz de forma espetacular no GP Princesa do Sul e se torna a primeira mulher a vencer um GP em Pelotas”, na tradição de Anita Garibaldi. Enquanto isso no jornal Correio do Povo de 13/3/2000, pg.3 está noticiado: “PT decide punição

294


O Rio Grande do Sul no Estado de Cristandade Colonial

O jornal Zero Hora, em 25/6/2000 noticia maior participação da mulher na política no RS. São 120 mulheres concorrendo para as eleições municipais deste ano. Yeda Crusius concorre para prefeito de Porto Alegre pelo PSDB; Yara Wortmann é vice pelo PMDB; Sônia Santos é vice pelo PTB; Helena Biasotto é candidata a vice pelo PHS. As mulheres tem 121 mil votos a mais que os homens no RS. Em Caxias do Sul, enquanto Marisa Formolo Dalla Vecchia assume a prefeitura porque era vice de Pepe, Justina Onzi será candidata a viceprefeito para estas eleições. Leila Fetter (PPB) é candidata a prefeito em Pelotas. O segundo nome mais destacado pela atuação parlamentar em Brasília aparece pelo RS, o da senadora Emília Fernandes (PDT).449 Muito embora a legislação brasileira, até 1964, tratasse a mulher como semi-incapaz, mesmo depois de casada, muito embora a mulher no Brasil só teve direito de votar a partir de 1934,450 no entanto a autonomia da mulher gaúcha é obra de sua exclusiva conquista histórica. As circunstâncias exigiram sua definição. Se, na presença do marido, e nas circunstâncias da Cristandade Colonial, a mulher gaúcha recobrava, a atitude submissa da mulher brasileira do Estado de Cristandade, porque o marido era o chefe e o defensor do lar e o articulador de todos os negócios, no entanto, as lutas históricas criaram um perfil próprio para a sua identidade no RS. A mulher gaúcha, aos poucos, forçou o espaço de sua participação e o RS recebeu dela importante e decisiva colaboração, especialmente no campo social, educacional e intelectual. 451 de Luciana” Genro por ter votado a favor do magistério estadual que reivindica melhores salários, e contra a orientação do partido. Sabe-se que as mulheres deputadas estaduais do RS resolveram realizar um pacto em favor de projetos que interessem a maioria da população do RS, para além das conotações partidárias. Hoje o RS tem mulheres nos mais altos postos políticos: Entre elas a Senadora, professora estadual Emília Fernandes, a deputada federal Yeda Crusius... 449

Zero Hora, Porto Alegre, 25/6/2000 pg. 10 e 12.

450

A lei 9100/95 estabelece a cota de 20% de candidatas do sexo feminino para eleições proporcionais em cada partido para as eleições de 1996, 25% para as de 1998 e 30% para as do ano 2000. Embora sejam 52% da população brasileira, as mulheres representavam 1% do Parlamento na década de 1930 e 11% em 1999.

451

Segundo a Fundação de Economia e Estatística do RS e a Fundação Gaúcha do Trabalho e Ação Social do RS, as mulheres ocupam hoje, cerca de 30% dos postos de trabalho no RS, enquanto no mundo o percentual é de 35%, recebem ao redor de 30% menos de salário pelos mesmas tarefas atribuídas ao homem e a elas, enquanto 295


Rio Grande do Sul Arquétipos Culturais e Desenvolvimento Social

Se, por um lado, isto mostra a distância ainda existente para uma igualdade de reconhecimento de valor dos papéis sociais desempenhados, como pode ser exemplificado no exercício ainda profundamente machista das funções religiosas, por outro lado a velocidade das conquistas femininas abrem o imaginário para sonhos nunca dantes suspeitados. no mundo a mulher recebe hoje o equivalente a 65% do salário de um homem, sendo que em 1989, este percentual era de 54%. A conquista de espaço pelas mulheres no Brasil evidencia-se também pela melhoria de remuneração nos escalões mais altos: de 1985 a 1995 dobrou a quantidade de mulheres que ganham entre 2 e 3 salários mínimos. O grupo feminino com ganhos entre 5 e 10 salários mínimos aumentou em 100% nesse período, enquanto o contingente masculino cresceu 40%. Conquistado o direito à escola em 1827, o direito ao voto em 1934 por obra do gaúcho Getúlio Vargas, a maioridade civil em 1964, a mulher gaúcha, como a brasileira disputa postos de trabalho até pouco ocupados exclusivamente por homens: forças armadas, magistratura em todos os níveis, magistério em todos os graus, administração de empresas, taxistas, condutoras de caminhões, de aviões, e na política (20% das candidaturas são reservadas às mulheres) desde vereança municipal até ministras e dirigentes nacionais. Embora as estatísticas indiquem certo retorno da mulher ao lar, isto se deve especialmente pelo fato de no RS o desemprego afetar mais as mulheres que os homens: nos últimos 10 anos o desempregro cresceu 466,68% entre as mulheres no RS, enquanto entre os homens foi de 179,30%. 30% dos lares no RS são hoje chefiados por mulheres. E para o dia da mulher 8 de março estão previstas manifestações femininas em todas as grandes capitais do mundo: Em Paris, Marchas pela Paz e contra a pobreza, Conferências sobre a violência sexual...Passeatas em Genebra e Montreal e Bancok e Tchecoslováquia, lançamento da marcha mundial da mulher contra a pobreza e contra a violência. Bem parece que a escola feminista aprendeu com as líderes latino-americanas que, desde Cancun, lutavam pelo feminino como defesa da paz, da vida, contra a violência e a miséria. Em Montevidéu, hoje, “a mulher latino-americana exigirá um maior espaço na vida pública ainda que ‘para isso tenha que vencer grandes obstáculos, como desemprego, o machismo, a pobreza e a violência”. No Chile este movimento se intitula: Saudamos um novo milênio de igualdades de oportunidades. Em Buenos Aires o movimento: Mulher e cidadania. Cf. Correio do Povo, de 8/3/2000, pg. 6 e 12. A presença da mulher na Universidade é paradigmática da conquista de espaços: O jornal Zero Hora de 8/3/2000 pgs. 8 e 9 fascículo Vestibular mostra que na principal universidade do RS, a URGS cuja reitoria é ocupada por uma mulher, dos 19.765 alunos matriculados no primeiro semestre de 2000, 8.450 são mulheres (42,75% em graduação). As mulheres não são maioria apenas nos cursos de Letras (73,17%) e Pedagogia (93,39%) Tecnollogia de Alimentos (69,23%),Nutrição (96,67%) mas conquistam largos espaços em cursos que, no passado eram quase privativos dos homens: Medicina (40,07%), Medicina Veterinária (58,14%), Odontologia (50,40%), Química (53,56%), Farmácia (63,49%), Engenharia de Alimentos (73,29%), Engenharia Civil (19,32%), Engenharia Química (35,74%), Psicologia (73,86%). 296


O Rio Grande do Sul no Estado de Cristandade Colonial

O fato de a educação ser predominantemente e quase exclusivamente uma tarefa feminina, retirou, na história do RS, a função e o papel masculino da educação. Onde o menino aprende o papel masculino a ser desempenhado na sociedade e na família? Da mulher? A figura educadora do pai e do homem masculino é mediatizada pela postura e pela visão da mulher. O que não impede, até alimenta, uma formação marcadamente machista do menino. Os critérios, porém, de definição do masculino não serão mediatizados pela escola. Não é na escola onde se aprende a ser masculino. A moral, a ética da escola serão vividas como femininas e sem o poder identificador do menino. A vida cotidiana, o senso comum e empírico, sem a mediação crítica das ciências e da filosofia, ensinarão o papel e a função sociais do menino gaúcho. Assim, as boas maneiras, a sensibilidade, o amor, a justiça, a lealdade são, para o menino valores “chucros”, de rua ou não significam nada, senão maneirismo feminino. Pelo menos esta pode ser uma boa hipótese para avaliar o sentido cultural do machismo e o papel da mulher no RS. Assim, o “embrutecimento” do gaúcho, detectado por Saint-Hilaire, não vem apenas da lides campeiras, de matar, carnear, sangrar o gado e da guerra na defesa da fronteira e da propriedade, mas passa também pela dialética da educação onde o padre e a mulher exercem papel determinante. A honra, a justiça se fazem com as próprias mãos. Homem não leva desaforo p’ra casa. Homem que é homem não chora, chia como coruja. Interessante tema de pesquisa seria o incentivo que o pai faz ao filho para que tenha relações sexuais com prostitutas quando vai à cidade, além de incentivá-lo a ter relações com as negras, bem como a tolerância com a prática do bestialismo. Ao homem nubente se exige que tenha experiência sexual e à mulher que seja virgem ao casar, como contradição do Estado de Cristandade. Sexualidade Machista, a do gaúcho? Para muitos, o gaúcho é tido como machista. O conceito que dele se faz, Brasil a fora, é o de um homem profundamente honesto, franco, mas rústico, rude, altivo, “grosso”, sem lapidação e sensibilidade cultural burguesa; andarilho e sem querência; encantado por sua prenda que ele furtivamente emprenha num baile de ramada, e vai embora, porque o “homem não se prende a nenhuma mulher”. De poucas palavras, desconfiado, brigador, esquivo e pouco amigo da polícia... Entrecruzado com outras etnias, o gaúcho hoje é visto também como hospitaleiro.

297


Rio Grande do Sul Arquétipos Culturais e Desenvolvimento Social

Não basta, porém, que anotemos esses preconceitos sobre o gaúcho. É preciso vê-los mais de perto. É preciso elevar o conhecimento ingênuo do senso comum à racionalidade crítica e histórica. Aqui fica apenas o repto para posteriores dilucidações. 4.2.2 O galpão, a vizinhança, o bolicho e a vila a) O galpão O galpão não é apenas uma construção rústica para acomodar peões e equipamentos junto à casa grande de uma estância. É também o lugar do maior intercâmbio e conviência, gerando o que se denominou “cultura galponeira”. O RS, ao contrário das outras Capitanias do centro norte, não tinha, ao longo das estradas as casas de comércio e hospedagem que, “a troco de alguns cruzados, recebiam o viajante e seus animais por todo o tempo que estivesse disposto a ressarcir”. Aqui Nas dialtadas campinas e silenciosos caminhos do Continente não se cobrava o pouso de ninguém, mas as regras eram muito bem determinadas. Andarengo sem ocupação, forasteiro sem identidade, índio ou chiru, desertor ou tropeiro, cada qual podia se aproximar do galpão, acercar-se do fogo de chão, tomar seus mates, e ali ficar pousando, ao lado dos peões da estância, por um tempo que geralmente não poderia ultrapassar três dias – de acordo com a tradição dos “tambos” incásicos e missionistas. Além de morada dos peões (necessariamente solteiros), depósito de implementos e algo assim com um clube masculino para as horas de descanso, o galpão também possuía essa estranha característica de albergue dos viajantes humildes. A família do estancieiro, as moças da casa grande, jamais desciam ao nível de um galpão. Por outro lado, a moradia do estancieiro se tornava praticamente inacessível a estranhos. Daí o paradoxo de uma super-hospitalidade de galpão – simbolizada pela cuia de chimarrão logo alcançada ao recém-chegado – ao lado de um círculo patriarcal extremamente fechado para quem não fosse parente, compadre ou amigo íntimo. Para se chegar ao terreiro do senhor proprietário – e embora sua aproximação fosse desde logo anunciada pelos estridentes quero-queros (pernaltas dos banhados) e pelos cães da casa -, devia o estranho, mesmo de alto gabarito militar ou civil, cumprir alguns requisitos essenciais: gritar “oh, de casa!” ou qualquer coisa desse naipe, mas não se atrever a dar um passo a mais sem a expressa e formal autorização do dono da casa. Quem vive na solidão das 298


O Rio Grande do Sul no Estado de Cristandade Colonial

lonjuras, e ao alcance do inimigo, precisa se precaver...452

E do aconhego silencioso do fogo de chão, cujas brasas aquecem as cambonas (pequenas latas como as de um litro de óleo vegetal com um cabo de arame trançado), de água para o chimarrão, germina a imaginação e nascem os causos e as trovas. Além do galpão, o lugar do peão solteiro, além da casa grande da estância, ao longo da imensidão das terras divididas em invernadas havia o rancho do posteiro, agregado (quase sempre casado ou ajuntado a uma mulher) que vigiava os limites da propriedade. O galpão, porém, era o grande lugar da vida campeira. b) A vizinhança O gaúcho vive no mar imenso verde azul do pampa que “é completamente plano e sem atrativos quanto à paisagem, que parece um mar de terra”,453 “que aterroriza e comove pela idéia sensível do infinito. Um infinito que não se move, onde sempre a mesma luz, sempre a mesma terra, e o mesmo círculo infinito que abarca a visão”.454 Dele, Jules Supervielle dizia, em 1899, “por causa justamente de um excesso de andar a cavalo e de liberdade, e desse horizonte imutável, a despeito de nossos galopes desesperados, o pampa assumia para mim o aspecto de uma prisão, a maior que as outras”.455 A ele se refere Jorge Luís Borges dizendo que “em qualquer lugar da terra a planície é uma e a mesma”. E João Simões Lopes Neto: “é pesada a tristeza dos campos quando o coração pena!...” E ainda Gaston Bachelard: “a planície é com frequência considerada como um mundo simplificado”. 456 Nesta imensidão, ondulada apenas por suaves coxílhas, com alguns banhados e capões, e que abrange quase toda a metade sul do RS (sem contar com o Uruguai e Argentina) até encostar na parte acidentada e montanhosa que a separa da metade norte, neste infinito verde, vizinhar tem um significado especial. A vizinhança, isto é, a sede de outra estância, a léguas de 452

Barbosa Lessa, Rio Grande do Sul Prazer...:111-112.

453

Samuel Haigh, 1818, in Golin: 6.

454

Paolo Montegazza, 1855, in Golin: 7

455

in Golin: 8.

456

In Golin: 9-11. 299


Rio Grande do Sul Arquétipos Culturais e Desenvolvimento Social

distância, só se alcança a cavalo. Caminhar a pé é estar perdido ou ser fugitivo. Se considerarmos que as estâncias individuais de sesmaria tinham cerca de 13.000 hectares e que, normalmente, elas se juntavam somando várias glebas, teremos a idéia de que o vizinho fica “logo ali” como diz o gaúcho levantando o lábio inferior. São raras as possibilidades e necessidades de contato com o vizinho. Cada fazenda se pensa como um reino à parte. Como tudo, a relação com a vizinhança também é marcada pelo sentido de propriedade. A identificação do proprietário com a sua estância, vista como exclusiva, fá-lo pautar suas relações na defesa, no controle absoluto da mesma. Ninguém ultrapassa as porteiras do seu limite sem a permissão do dono. Ele controla a entrada, o movimento e saída dos seus domínios. No convívio com seus vizinhos, o critério das relações é a defesa da propriedade.457 Respeitada a propriedade e seus ritos, a hospitalidade é a regra. Os vizinhos, especialmente quando aparentados entre si pelos casamentos que aglutinavam glebas, visitavam-se nos fins de semana ou em ocasiões de maior significado familiar como nascimentos, falecimentos, casamentos, batizados. E então, o chimarrão, a canha, o churrasco e algumas guloseimas regavam o relacionamento. Rodeios, tosquia, e festas reúnem a todos ora numa, ora noutra estância, até que surjam as pequenas vilas e entre elas os bolichos. c) O bolicho Com o povoamento da Campanha, além dos vendedores ambulantes e mascates, em lombo de cavalo ou em carretas, fornecendo ferramentas, bebidas, armas e peças de vestuário, surgiram ao longo dos corredores principais e nas encruzilhadas pequenas vendas em ranchos barreados, assoalho de chão batido e cobertos de palha de 457

458

Saint-Hilaire, em sua viagem de 1820, relata o acolhimento que teve em inúmeros lugares e fazendas que percorreu (cf. pg. 109), ao mesmo tempo em que mostra que o Padre Alexandre recusou dar-lhe hospitalidade, com dureza e orgulho, porque os rituais de respeito à propriedade não foram corretamente exercidos. (pg. 119). “Cumpre notar: os dois únicos homens que me recusaram hospitalidade durante minhas longas viagens, foram – um materialista e um padre, mas com a diferença que eu fui bem recebido pelo materialista quando ele soube quem eu era, enquanto o padre a nada se dobrou” (119). O caráter sacral da propriedade é paradigmático. Bolicho de “boliche” espanhol, também chamado de “pulperia”.

300


O Rio Grande do Sul no Estado de Cristandade Colonial

santa fé, denominadas de bolichos458 e que negociavam secos e molhados. No verso de Apparício da Silva Rillo e citado por Tau Golin: “Parede de pau a pique/ Sete braças de comprido./ Chão de barro bem batido/ Cobertura de capim./ Garrafas nas prateleiras/ Se entreveram com chaleiras/ Peças de chita e de brim.”459 Na síntese de Golin: “Na arquitetura crioula dos bolichos, cantada pelo poeta, fazia parte do mobiliário ‘um balcão picado de faca/ com algum furo de bala,/ posto ao comprido da sala/ assim meio atravessado’. Além do comércio, transformaram-se em clubes da Campanha, frequentados tanto pelos moradores da região como pelos viajantes e gaúchos andarilhos. Às vezes, neles passavam as tardes; e, no final de semana, os dias. No entanto, os camponeses pobres formavam a principal clientela.”460 Silva Rillo completa: “A tábua de teu balcão/ É a mesa de comunhão/ Da gauchada gaudéria;/ É o rude confessionário/ onde o guasca solitário/ chora as máguas da miséria...”. Continua Golin: “No seu espaço, o bolicheiro passou a explorar diversos jogos, especialmente os de carta, como o truco”...explorava também os jogos “de osso, a carreira de cavalos e a rinha de galo. Essa jogatina, em muitos casos transformava-se em peleias, brigas de adagas, arma que os homens do campo sempre traziam à cintura e no seu uso eram destros...”461 Bochinchos, jogos, negócios, o bolicho era também lugar de festas e de lazer. “Sempre que violeiros e gaiteiros surgiam, formavam-se espontaneamente as tertúlias. Por longas horas, prosseguiam em cantorias, com músicas populares e versos improvisados. Os “pajadores” contavam histórias do pampa, ou desafiavam outros cantores para ver quem era o mais capaz na rima”462 Barbosa Lessa refere o significado do bolicho das encruzilhadas ou dos povoados para onde, aqueles moradores 459

Golin, T. O povo do Pampa: 78.

460

Golin: 78-79.

461

462

Golin: 79-80. Cf. tb.Martin Fierro, no canto VIII diz: “Outra vez, em um bolicho/ Tomava uns tragos, à tarde;/ Um taura fazendo alarde/ De quebra e de valentão,/ Foi-se chegando, e meteu/ o pingo sob a ramada; / sem que lhe dissesse nada,/ me quedei junto ao balcão./// Era um guapo ali do pago,/ A quem ninguém repreendia,/ pois que de enredos vivia/ com o senhor comandante;/ e como era protegido,/ andava sempre entonado/ e a qualquer um desgraçado/ logo levava por diante”. Golin: 80. 301


Rio Grande do Sul Arquétipos Culturais e Desenvolvimento Social

primitivos do RS, se dirigiam “às vezes cavalgando muitas léguas, para adquirirem erva-mate, fumo, sal, açúcar, rapadura, um pedaço de tecido, quem sabe lá um espelho ou uma panela”, a intervalo de meses, aludindo ao inglês John Luccock que, em documento do início do século XIX dizia: Vou aludir aos forasteiros que aparecem para fazer compras, vindos do interior longínquo. São as mais das vezes homens baixos e robustos cuja mestiçagem com sangue índio se denuncia na barba rala, nos cabelos finos e nos olhos vivos. Embora sejam numerosos, especialmente os de mais modesta condição, pouco se ligam com os habitantes locais e se retiram ao cair da tarde para os seus acampamentos na planície, a quatro ou cinco milhas de distância. Vêm quase sempre em pequenos grupos, apeiam à porta da venda, sem dar palavra ou atenção a ninguém, e atiram as rédeas para o pescoço do cavalo. Entrando na venda, põemse a passear os olhos pelas mercadorias, até que algum deles, topando com um artigo de que precisa, aponta para ele, troca umas poucas frases, indaga o preço e paga imediatamente. Tornando à inspeção interrompida, olha, aponta outro artigo, adquire e paga. Assim procedem todos até gastarem o último dinheiro, se encontram na venda tudo o de que precisam. Parece não terem a menor idéia de diferença de qualidade, de variação de preço, nenhuma compreensão do que seja abatimento. Os artigos que essa gente adquire são muitos mas em pequena porção. E tenho ficado maravilhado com o cuidado com que eles – sendo quase sempre analfabetos e não sabendo aritmética – fixam na lembrança o preço de cada um. Procurando socorrer a lembrança, enfileiram os artigos na ordem em que os vão adquirindo. Passeiam por eles os dedos repetidamente como se estivessem a conferí-los por alguma lista trazida de memória, e vão recontando, em separado, o preço de cada qual. Quando a lembrança lhes falta, ficam impossibilitados de prosseguir nas compras. Se dois grupos chegam juntos a uma venda, raramente põem-se em contato, e o sentimento que os assalta parece ser o receio de que ambos precisem dos mesmos artigos e o suprimento não chegue para todos. Para miudezas têm sacos de algodão que, quando cheios, amarram-se às selas; as chitas, levam-nas em geral envoltas em seus corpos; as lãs são dobradas em forma quadrangular e postas nos cavalos debaixo dos arreios. Em razão disso, muitas vezes todos os esforços e despesas feitos pelos fabricantes para o realce de sua mercadoria são inutilizados no lombo suarento de um cavalo.463 463

In Rio Grande do Sul, Prazer em conhecê-lo: 112-113.

302


O Rio Grande do Sul no Estado de Cristandade Colonial

O bolicho de campanha permanece no horizonte da cultura gaúcha como laboratório de intercâmbios, forja de arquétipos de relacionamento e de identidade. d) A vila Afora os fortes e acampamentos militares, e antes deles as Reduções jesuíticas com os povoados e as capelas nas estâncias464 de gado, as vilas foram surgindo como exigência dos imigrantes açorianos ou por interesse das estâncias depois da ruína das Missões. Assim, um fazendeiro doava parte de terras para ser loteada e ser sede de uma vila. O padre e a Igreja sustentavam sua existência com a venda dos lotes. Assim o povoamento valorizava as terras das estâncias e assegurava proximidade naquelas solidões. Era também o lugar de articulação dos interesses comuns dos fazendeiros, da administração e da defesa. Modelada no horizonte das “leyes de las Índias” com a Igreja, o quartel, a administração e o casario mais importante rodeando a praça, a vila era o lugar dos bolichos e vendas de secos e molhados, o lugar dos negócios, dos batisados, o lugar das festas, o lugar para recepcionar autoridades, o lugar da convivência mínima, da escola e das notícias. Não poderia haver melhor símbolo do Estado de Cristandade do que a praça principal de nossas vilas coloniais e, por consequência, do RS. Nelas o bolicho está incluído em seu significado social periférico. 4.2.3 Classes sociais e suas relações As classes sociais no RS, até o início do processo de industrialização, se reduzem praticamente a duas. De um lado, a elite formada pelos proprietários dos latifúndios, charqueadores e comerciantes. 465 E, de outro lado, as categorias que viviam na 464

“Em cada estância havia um grande arranchamento, de quinze e mais casebres, para alojamento do pessoal de trabalho, tirado dos próprios índios que vinham, revezadamente, fazer um certo tempo de destacamento; outrossim cada estância tinha a sua capela, de material, e, no altar, a imagem do padroeiro respectivo; junto à capela o cemitério” Simões Lopes Neto, Terra Gaúcha: 117-118.

465

Sobre a cidade de Rio Grande, Saint-Hilaire, observa em 1820 “Entre os homens do Rio Grande, todos negociantes, talvez a mesma indiferença e os mesmos modos 303


Rio Grande do Sul Arquétipos Culturais e Desenvolvimento Social

escravidão ou semi-servidão: os escravos, os peães, agregados, posteiros, filhos de criação, etc. Com a imigração surge uma categoria distinta das demais, apresentando uma pequena propriedade de cultivo familiar auto-sustentável, com pequenos excedentes que eram comercializados. Os operários surgirão mais tarde com o aparecimento da manufatura e com a expansão da indústria. A exploração das terras para agricultura irrigada vai dar origem ao trabalhador sazonal, oriundo das regiões de predomínio de latifúndios. Usando o critério da propriedade e de posição no universo da produção, podemos distinguir as seguintes classes: a) Classe dominante (o estancieiro, o charqueador, o comerciante e o industrial) A classe dominante, proprietária, abrange o estancieiro, o charqueador, o comerciante e mais tarde o industrial, cada qual exercendo sua atividade específica na produção. O estancieiro é, em primeiro lugar, o proprietário do latifúndio com uma ou mais estâncias. É produtor pecuarista, com uma pequena produção agrícola de subsistência, realizada pelos escravos ou por filhos de criação, agregados e por peães eventuais. Com o surgimento do cultivo do arroz, no Rio Grande Meridional surge o estancieiro grangeiro, em terras apropriadas para a irrigação. Em complementação a este fenômeno temos o surgimento do trabalhador sazonal, o “gaúcho de pés descalços”, geralmente oriundo dos descendentes de escravos da região. O charqueador é o proprietário das charqueadas. Foi marcante a presença deste membro da elite gaúcha pelas características de homem culto, político e dado ao consumo de produtos de estilo tipicamente europeu. Contudo é muitas vezes o próprietário de estâncias com numerosos escravos, criando gado para o beneficiamento da carne, do couro e dos sebos nos abatedouros. O charqueador também desdenhosos dos habitantes do Rio de Janeiro. São, em parte, europeus, nascidos em um meio inferior e que não receberam educação alguma. Começam como caixeiros de lojas e terminam fazendo negócios por conta própria. Como os lucros do comércio são consideráveis neste país, não tardam a fazer fortuna que jamais conseguiriam em sua pátria. Seu orgulho cresce à medida em que vão enriquecendo e chegam, então, ao cúmulo de comprar à Secretaria do Estado a comenda da Ordem de Cristo, hoje, considerada como símbolo da riqueza e fruto da corrupção. Fora do Rio de Janeiro, não vi, em parte alguma, um número tão grande de homens condecorados; isso nada mais é do que uma das provas da riqueza do lugar” pg. 66. 304


O Rio Grande do Sul no Estado de Cristandade Colonial

comercializa os produtos de suas manufaturas saladeiris. O comerciante, nem sempre grande comerciante, faz parte dos profissionas associados ás elites. Pelotas, que, pouco antes da Revolução Farroupilha tinha cerca de 3.000 habitantes, tinha cerca de 300 comerciantes e uma dezena de charqueadas. O comércio não atendia apenas às necessidades do pequeno mercado interno e pequenas vilas e fazendeiros, mas, e especialmente, o mercado brasileiro e internacional. As Minas Gerais, São Paulo, Rio de Janeiro, Bahia, Londres, Paris, Caribe e EU para a exportação e importação. A industrialização trará novos e modernos integrantes das elites gaúchas. Os profissionais liberais emergentes deste fenômeno irão compor uma nascente classe média, integrada na formação, expansão e consolidação do capitalismo como modo de produção. O industrial, componente mais jovem da classe dominante, surgirá com a industrialização no RS, esboçada no final do século XIX e consolidada no século XX. O industrial é, muitas vezes e cada vez mais, um originário de descendentes de imigrantes que, com os excedentes da produção colonial acumularam valores de poupança para empreendimentos de modernização fabril e /ou trouxeram tecnologia moderna da Europa de origem. Na extremidade oposta, na posição de dependentes da estância, das charqueadas, das lavouras, do comércio, encontramos as profissões que caracterizam e situam os trabalhadores como classe subalterna e explorada como as que seguem: b) O trabalhador campeiro (o domador, o alambrador, o peão, o capataz, o arrendatário, o agregado, o posteiro, o caseiro, o safrista, o tosquiador, o assalariado) Nace el gaucho y se hace viejo, Sin que mejore su suerte... Trabaja el gaucho y no arriba... (Martin Fierro)

Num RS pecuarista, as atividades desenvolvidas pelos trabalhadores subalternos, não exigiam qualificação de escolarização porque eram atividades que se aprendiam no cotidiano e na experiência. Eram porém trabalhos que exigiam qualificação e especialização em combinar força e habilidade. A maioria dos profissionais do campo apresentava um ar de 305


Rio Grande do Sul Arquétipos Culturais e Desenvolvimento Social

orgulho ao comentar suas atividades, e suas proezas eram exageradas nas rodas de chimarrão. Os cuidados com o gado exigiam a rotina de percorrer o campo para conduzir o gado, para curar, dar assistência às vacas que pariam, curar bicheiras. Em dias especiais havia rodeios para a marcação, castração... A tosquia veio depois. Essas atividades exigiam a concentração dos trabalhadores da estância e das vizinhanças, caracterizando um dos fatos sociais típicos da vida campeira, acompanhados de churrasco, canha, chimarrão, bravatas, vozerio e gargalhadas. O descanso à sombra do arvoredo, da figueira ou do galpão. Às vezes o mesmo trabalhador reunia várias habilidades dessas fainas de homem do campo. A tarefa de domador, a mais perigosa e, por isso, a mais decantada, não cabia tão somente ao homem. Era bem mais raro, mas havia mulheres que domavam. Essa atividade realizada ao longo de semanas, apresentava características de perícia, força e até brutalidade na prática da submissão do cavalo. Era uma guerra de vencer ou ser vencido. Assim como entre os homens, uns mandam e os outros obedecem por bem ou por mal, e a educação, a evangelização, a civilização se fizeram, via de regra, pela força, pela violência, pelo poder, assim o cavalo deve ser submetido a porrete e espora. “A gente vinha domando cavalo. A gente trazia às veis, oito, dez cavalo chucro. Cada vez que nós viajava um poco com aqueles cavalo de pontero, na frente, acorreiado, o nego botava o laço num cavalo daqueles, botava as garra e o bicho saía berrando e lá adiante daqui a poco já o bicho já tava [...] domado. Ah, era assim, domado. O indivíduo pega um mango, pega a dá na queixada, dali a gente vai puxando ele, fazendo ele virá, ele cabrestiá, aquela cosa. O mesmo trabalho ensina a gente a já botá o laço que é pra ele tirá as cosca, já domá ele já de espora. Naquele tempo a gente usava cada espora de papagaio bem grande que era pá podê cortá o vício. [...] Eu domava até burro. Até burro domava. É bicho bem... desgraçado é o burro. Às veis cravava a cabeça no chão, ficava berrando com a cabeça no chão e não caminhava. E corcoveando e o pau comendo. [...] às veis pra desempacá tinha que botá o cachorro [...] que pegava o beiço dele, pegava a puxá ele, aí ele pegava a caminhá.”466

466

Dalla Vecchia, Agostinho. Vozes do Silêncio: 67.

306


O Rio Grande do Sul no Estado de Cristandade Colonial

O cavalo se tornou parte da identidade do gaúcho, na visão idealizada de Cezimbra Jacques: O gaúcho é ótimo cavaleiro: identificado aparentemente com o cavalo, nasce, vive e morre com ele; nunca o gaúcho recusou a montar qualquer cavalo, e nunca se importou com seus vícios ou suas qualidades. Nas planícies imensas em que vagueia, quando o seu cavalo está estafado, ele o larga onde se acha e transporta seu grosseiro arnês para o primeiro que se apresenta e que seu laço lhe submete; sobre o cavalo, o gaúcho adota todas as posições e toma indiferentemente a que sua comodidade ou interesse de momento lhe sugerem; estando de vigia, deitase às vezes sobre o flanco do cavalo que se acha encoberto do inimigo, de modo que, nessas campinas povoadas de animais selvagens, a vista não pode discernir, à curta distância, se o cavalo está pastando solto ou se o homem o acompanha; por isso é que na guerra contra Artigas, todos os oficiais traziam geralmente, a tiracolo, óculos de alcance. O gaúcho faz as mesmas evoluções no combate e procura sempre opor o cavalo à bala esperada; pouco lhe importa perdê-lo pois tem sempre outros cavalos prontos para o suprir; em tudo o gaúcho brinca com o cavalo e parece desafiá-lo...467 Um gaúcho nunca apeiase do cavalo para apanhar suas armas ou qualquer objeto que deixou cair; por um movimento rápido, ele se debruça no cavalo até a mão chegar ao chão, sem por isso retardar o andar do cavalo, seja qual for a velocidade de seu passo. Em suma, o gaúcho a cavalo é homem superior, e essa superioridade ele sabe avaliar; porém sua força é emprestada e procede toda do quadrúpede a que vai associado. O gaúcho a pé é homem comum: em todas as categorias, a superioridade que se lhe reconhece é relativa...468

O arrendatário era o trabalhador que arrendava uma área de terra para a criação de gado ou para o cultivo agrícola. “Arrendava uma fazendinha. Trezentas e tantas hectaries. E criava ovelha. Tinha rebanho de quase quinhentas ovelha. Cabrito... Aí eu vindi tudo quando eu saí de lá, aquilo não valia nada, aquele tempo... Cavalhada!”.469 Menos frequente este tipo de atividade, caracterizava um dos grupos que compunham os trabalhadores dependentes da estância. O posteiro exerce uma atividade que não é tão conhecida 467

Jacques, Cezimbra. Costumes do RS, pg. 57.

468

Ibidem, pg. 58.

469

Dalla Vecchia, A. 112 307


Rio Grande do Sul Arquétipos Culturais e Desenvolvimento Social

quanto as outras. O posteiro habita uma pequena casa, em determinado ponto dos campos da fazenda, geralmente nos limites da estância, com a finalidade de cuidar do rebanho. É uma espécie de vigilante que envolve tarefas próprias. “Ele cuidava os cavalo dos homens, cuidava o gado e tudo dos homens. [...] É... chamava ‘postero’. [...] Postero é aquele que toma conta duma estância [...] O nome era postero, ele tomava conta do gado, mandava os otros fazê a comida, [...] tinha casa dele”470 Outro protótipo de gaúcho é o do alambrador. A atividade de alambrador surgiu no final do século passado, quando passaram a ser usadas cercas de arame para dividir e sub-dividir os campos, a exemplo do que ocorrera na Europa pós-feudal. Do espanhol a palavra significa fabricante de fio de arame para cercas. Neste caso, refere-se ao construtor de cercas de arame, o aramador. Até então, quando houvessem, eram utilizados valos profundos para separar o gado. O seu traçado percorria as colinas e baixadas nas linhas de divisa. Em menores extensões eram usadas as cercas de pedra. O caseiro é um personagem que surge a partir do momento em que, por conveniência, costume ou necessidade, o fazendeiro passa a morar na cidade ou na vila mais próxima. No final do século XIX, já havia esse costume. Sabe-se que muitos charqueadores eram também grandes fazendeiros e sua permanência era maior na cidade onde estava a charqueada. No século XX, generalizou-se esse hábito. “[...] os casero era os que cuidavam da fazenda. Os fazendero tinham os casero. O casero era um... o pião que cuidava a fazenda. [...] Isto agora, muitos anos depois [...] muitos anos da escravatura.”471 O capataz é uma das figuras mais marcantes do trabalhador dependente. A participação no poder o coloca numa posição de mando sobre outros trabalhadores da estância. O capataz é, muitas vezes, o administrador de uma fazenda ou uma estância. Essa tarefa supõe a possibilidade do afastamento quase permanente do estancieiro. O capataz chefia o grupo de peões que trabalha na estância e é o responsável pelo andamento das atividades da fazenda. Peão é o termo mais conhecido na identificação do trabalhador subalterno no RS. O dicionário Aurélio apresenta o peão como o serviçal de estância, conchavado, índio. A palavra é usada, também, em outros Estados brasileiros. Aplicado primeiramente ao 470

Ibidem:372

471

Ibidem: 306

308


O Rio Grande do Sul no Estado de Cristandade Colonial

campeiro, o termo pode ser aplicado ao tropeiro, ao domador, ao alambrrador. Originariamente se referia ao trabalhador das estâncias de gado. O termo foi e é utilizado em forma mais generalizada para designar o trabalhor da agricultura, o empreiteiro de safras e de pequenos serviços temporários. O tropeiro é a figura mais reconhecida na memória dos gaúchos. Desde o tempo das Reduções jesuíticas. Neste tempo, o tropeiro, durante dois ou mais meses, conduzia o gado das estâncias do Sul para as invernadas das Missões para, ali ser abatido. Pelotas e a região traçaram sua história, no século XIX e no início do século XX, articulada fundamentalmente pela indústria da carne. O tropeiro conduzia as tropas de gado dos campos do Sul e Oeste para a famosa Tablada472 e para as mangueiras das charqueadas. Sua memória foi guardada pela população da cidade de Pelotas. Tão próximo de tanta riqueza e sempre pobre, o tropeiro, após a Abolição, era geralmente negro, de costumes gauchescos e homem de confiança dos fazendeiros, que lhe atribuíam a tarefa de conduzir a preciosa produção. Ser tropeiro era mais do que ser peão. Era ter a confiança que não podia ser desmentida. Profissão nunca tive. Mas de tropa assim, ir de tropa e coisa. [Conduzia o gado para] vários lugar. Aqui perto, arredores. Perto, à vila, essas zonas aí, Pedras Altas. [Para as charqueadas de Pelotas] muitas vezes, no tempo do Pedro Osório, do Emílio Nunes. Isso eu fui muitas vezes. [Conduzia o gado até] a Tablada. [...] conforme o tempo corresse. Às vezes levava muitos dias. Chovia e tal. Em cinco, seis dias tava lá. De Piratini, nos levava oito dia [...] oito dia chegando aqui na agrico [Agrícola] ou nove dia, conforme, se houvesse muito, era no, dez dia nós tava entregando a tropa.473

Juntamente com o tropeiro, o agregado fez parte, mais tarde, da organização dos trabalhos dos campos. Com uma habitação própria, na estância, produzia pequenas roças. A produção era repartida com o proprietário estancieiro. “A gente tirava um bocado pra gente e demais era pro patrão”. Segundo Honorina Soares, a relação do agregado com o patrão não era assalariada. A exploração de seu trabalho tornava-se 472

473

Ainda hoje um bairro populoso de Pelotas. Os nomes de “Corredor das Tropas” , “ Passo das Tropas” e o da própria cidade “Pelotas” não deixam esquecer. Ibidem:. 67. 309


Rio Grande do Sul Arquétipos Culturais e Desenvolvimento Social

evidente à medida que o patrão se apropriava da maior parte da produção. “A gente era agregado. [Tinha que repartir] daquele o patrão tirava um bocado, não é. A gente tirava um bocado pra gente e demais era pro patrão. [...]”474 O trabalhador sazonal, especialmente o safrista do arroz, surgiu com o começo da modernização do campo no RS. O aproveitamento de terras propícias para a irrigação, permitiu o surgimento da lavoura de arroz irrigado.475 No princípio do século XX, a lavoura do arroz no Rio Grande do Sul desenvolveu-se atingindo grandes áreas da Zona Sul do Estado.476 Foi para essas áreas da faixa litorânea que se dirigiram os descendentes de escravos da região: Chuí, Santa Vitória do Palmar, Arroio Grande, Pelotas, São Lourenço, Camaquã. Oscar, ao emancipar-se de sua vida de ‘filho-de-criação’, dirigiu-se para São Lourenço para trabalhar nas granjas de arroz.477 Muitas vezes os negros deslocavam-se a léguas de distância, em grupos, para trabalhar nas safras. No século XX, este trabalhador ajudou a compor o arquétipo do trabalhador gaúcho subalterno. No conjunto, estes trabalhadores formam as características arquetípicas do trabalhador das classes pobres da Campanha. c) O colono imigrante Podemos dizer que uma classe intermediária entre a elite rica e os trabalhadores escravos ou pobres do RS são os colonos imigrantes. Oriundos de países europeus, principalmente da Alemanha e da Itália, por uma política de povoamento das terras de fronteira do Brasil, especialmente as do RS, e em função da política de “branqueamento da raça”, os imigrantes vinham com o endereço das colônias demarcadas aos fundos das terras planas das fazendas de gado, ou para terras devolutas de montanha e matarias, onde se tornaram pequenos proprietários, exercendo atividades agrícolas de subsistência. Situados especialmente na Metade Norte do RS, com mão de obra 474

Ibidem: 147.

475

A produção do arroz “sequeiro”, cultivado em terras altas sem irrigação quase não é conhecida no RS.

476

Hoje a Região Sul do RS ostenta o título de ter o campeão mundial de produção individual de arroz.

477

Um dos entrevistados, Ibidem.

310


O Rio Grande do Sul no Estado de Cristandade Colonial

familiar, com numerosos filhos, os colonos geralmente progrediram, pagaram suas terras e adquiriram novas colônias. A numerosa prole, pulverizará a propriedade familiar, e levará a buscar novas colônias e novas fronteiras. Assim foi povoada a região de maior densidade demográfica do Estado, hoje.478 O colono, representado em monumento aparece sempre com os instrumentos de desbravador. O arquétipo do imigrante, colono, comerciante ou industrial, é componente da cultura gaúcha e determinante nos últimos 150 anos. Por meio deles, o espírito do capitalismo, queMax Weber dizia derivar da ética protestante, inserese contraditoriamente no RS patrimonialista, que idealiza o ócio como identidade do humano. Assim a propriedade vincula-se ideologicamente ao trabalho. E esta perspectiva tomará conta da metade norte do RS, invadindo, aos poucos a metade sul. d) O filho de criação A figura do filho de criação no RS aparece na ambiguidade que se segue à abolição da escravatura. Um menino ou menina cujos pais extremamente pobres não conseguissem criá-lo ou educá-lo, era entregue a uma família, geralmente estancieira ou de algumas posses e, normalmente conhecida dos pais, para ser criada como se filho fosse. Na verdade não seria adotado como filho, nem seria contratado como empregado, como peão, como agregado. Era, para os pequenos trabalhos e obrigações como se fosse empregado, vivendo da gratidão de ter sido acolhido.479 O filho de criação é exemplo prototípico das relações de classes no RS. Ele é o elemento constitutivo de uma forma semi-servil de produção que leva seu nome. A estrutura e a dinâmica da forma de produção semi-servil, cuja mão de obra foram os chamados filhos de criação, vigorou nas décadas posteriores à Abolição, na Região Meridional do RS e desapareceu, principalmente, com a relativa e crescente implantação do modo de produção capitalista na cidade e no campo do RS.. 478

Para melhor entendimento remetemos ao capítulo específico neste trabalho, bem como a ZANOTELLI, Jandir. A Saga de um Imigrante Trentino.

479

Para uma visão mais detalhada veja-se DALLA VECCHIA, A. As noites e os dias: elementos para uma economia política da forma de produção semi-servil, filhos de criação. PUCRS, 1997. (Tese de Doutorado). 311


Rio Grande do Sul Arquétipos Culturais e Desenvolvimento Social

Vive uma relação de semi-servidão numa situação de dependência, particularmente nas relações de trabalho. Esta forma de produção semi-servil, inserida numa economia doméstica, utilizava os filhos de criação como mão de obra. Era uma situação de exploração que relativamente se aproximava das condições da servidão. O filho de criação, quase sempre explorado e mantido em relação de dependência e submissão, era submetido politicamente, excluído culturalmente, marginalizado familiarmente e limitado recreativa e religiosamente. Ideologicamente a situação de dependência era mantida por uma ambigüidade que permitia explorar, exigir, excluir e encobrir a real situação. As relações de dependência e subordinação permitiam a exploração de seu trabalho em serviços e em produção de bens de consumo familiar, por prolongadas horas de trabalho, em serviços domésticos e aos arredores da casa, tanto na cidade como no campo. A semi-servidão, na República Velha, se rearticula em nível institucional, envolvendo relações políticas, educativas, familiares, recreativas e religiosas. Assim, o filho de criação não decide nada dentro da economia familiar. Sua função é obedecer e cumprir ordens. Qualquer atitude de rebeldia ou outra reação está muito bem controlada pelas atitudes de autoridade, autoritarismo e por outras formas de coação. Coerentemente ao processo de exploração semi-servil, o filho de criação é marginalizado da mesa, da casa, do vestuário. O lugar do filho de criação, em geral, situa-o fora dos benefícios da produção, sem salário, remunerado somente com os elementos essenciais para sua sobrevivência e trabalho. É marginalizado na hora da partilha e da distribuição da herança. A característica essencial do conjunto das ideologias da semiservidão foi a criação e a consolidação de uma ambigüidade nos sentimentos dos filhos de criação e também nos pais de criação e na sociedade. Na prática esta ambigüidade surgia no tratamento dos pais com os filhos de criação. Para trabalhar e cumprir obrigações o filho de criação carregava as exigências de um filho qualquer; quando se tratava de participar dos bens produzidos e beneficiar-se deles era marginalizado, quando chegava a hora da partilha dos bens num inventário os filhos de criação eram esquecidos. Nos dias de visita, o filho de criação podia participar servindo e não compartilhado da amizade e da descontração. A sensação e a revolta por estar sendo explorado era contrabalançada pelo sentimento de gratidão por ter sido criado. 312


O Rio Grande do Sul no Estado de Cristandade Colonial

A relação de filho de criação com os pais de criação, inscreve o trabalho como relação familiar de dependência. e) O compadrio O compadrio, embora sua origem se perca nos tempos iniciais do Estado de Cristandade, transformou-se na América Latina em forma profunda de vinculação social. Dar a alguém um filho como afilhado, era e ainda é, criar um laço, muitas vezes, mais forte que o laço de parentesco. O afilhado respeitava seriamente a autoridade moral do padrinho. Ao encontrá-lo pedia-lhe a bênção. O padrinho, ao dizer ao afilhado “que Deus te abençoe”, situava a relação entre ambos no cerne do Estado de Cristandade. E os compadres aprofundavam suas amizades e tendiam a nunca brigar entre si. Usado pelos sacerdotes evangelizadores da América como instrumento para criar proteções aos índios e aos pobres e para fortalecer as coesões sociais necessárias, o compadrio está muito presente na história do RS. No compadrio, a economia, a política, a religião, a família, a educação tomam dimensões que, por vezes dissimulam dependências, pertencimentos, comprometimentos também. As idéias republicanas no RS, originárias da Revolução Francesa, refletindo-se na Revolução Farroupilha e mais tarde inspiradas pelo positivismo sempre vêm marcadas por relações pessoais de compadrio. O coronelismo é uma de suas manifestações. Ao que parece, o compadrio tem, antes de mais nada, uma função política de vinculação e de submissão aos coronéis, e destes ao poder dos governantes. Durante o período da Primeira República, a hierarquização política no Estado, em todas as suas esferas, era dinamizada por relações coronelistas, caracterizada pelo domínio e dependências de pessoas entre si. Como se todos os assuntos, dos econômicos aos políticos, sociais e culturais, fossem assuntos internos de relações familiares. A ideologia vigente, que envolvia relações de dependência pessoal, submissão e comprometimentos, era assim, fortalecida pelo compadrio. Assim o jeitinho brasileiro, o tapinha nas costas para indicar familiaridade e intimidade, a cortesia e reverências nas comunicações faz-se o modo de relacionamento político. O caudilhismo ou o coronelismo na sua versão republicana, perpassa a vida familiar. A vigência desse fenômeno, típico de regiões rurais ou pequenas comunidades, é uma forma de política tradicional 313


Rio Grande do Sul Arquétipos Culturais e Desenvolvimento Social

ocasionada pela falta de articulação política das classes subalternas.480 No início, o coronelimo reproduzia as diferenças sociais de renda, propriedade e prestígio, e se caracterizava pelo mandonismo, o filhotismo, o falseamento de votos, a desorganização dos serviços públicos locais, o exercício despótico de liderança.481 Por outro lado, o coronel utilizava a estratégia do compadrio, suavizando hierarquias e distâncias econômicas e sociais em relação a seus dependentes. Esta sensação de proximidade leva o afilhado a comprometer-se e a respeitar o padrinho. Um dos elos associados à formação do regime de semiservidão foi a instituição do compadrio que vigorava entre os senhores durante a escravidão e vinculava os mesmos com pequenos produtores e trabalhadores dependentes do regime agropecuarista. Compadre, termo decorrente do batizado no qual o padrinho assume a função de segundo pai, com-padre. É o pai espiritual. Trata-se de uma instituição medieval onde o padrinho assume o papel de pai cultural, pai político e quse sempre de protetor econômico. Essas relações de fundo religioso estenderam-se aos ex-escravos e seus descendentes. Ideologicamente e moralmente os padrinhos e madrinhas tinham a obrigação de criar o negrinho ou a negrinha desamparados econômica e familiarmente. Nesta base ideológica extraía-se a autoridade para exigir um trabalho permanente, submisso. Uma espécie de obrigação moral aceita pelo filho-de-criação era jogada como fator de coação para o trabalho, para a submissão e configurava o pai de criação como um coronel caseiro ao qual se submetiam a mulher e os outros habitantes da estância. Assim, pelo mecanismo do compadrio, enquanto outro homem assume também a função de quase pai, um homem se torna ‘padrinho’ de seus ‘afilhados’. Na forma de produção semi-servil o trabalhador direto é considerado como se fosse filho. A família se metamorfoseia pelo fato de introduzir filhos de criação no seu seio. Novas regras se instauram e as antigas persistem no sentido de perpetuar a dominação da classe dominante dentro da sociedade familiar. As relações afetivas ficam em níveis superficiais porque nunca comprometem os relacionados nem se exige mudança ou transformação das diferenças e das situações de injustiça em que permanecem os filhos, e depois, ex-filhos de criação. 480

ULRICH, 1994:14-15.

481

Ibidem: 11

314


O Rio Grande do Sul no Estado de Cristandade Colonial

Assim o compadrio e as consequentes relações de padrinho e afilhado, ajudam a compor o arquétipo de relações sociais do RS, balizadas pelos padrões culturais do Estado de Cristandade. 4.3 Arquétipos da organização política A guerra, a faca, a degola. “Os fazedores de pátrias”. O militarismo, o coronelismo, o caudilhismo. Centralização e participação democrática. A República Positivista como símbolo. A comunidade: a linha, a capela, a escola, o cemitério. Quando um guri (piá, menino) ou uma guria, no RS, se pergunta pelo significado de política, de Estado, de Brasil, de RS, de município, de governador, de prefeito ou chefe de polícia; quando se pergunta pelo significado das normas jurídicas em sua feitura, em sua aplicação e em sua justiça, encontra, no horizonte histórico do pensar e do agir, arquétipos dentre os quais destacamos: a) A fronteira, os fortes, os militares Sabe, antes de mais nada, que o RS nasceu como uma questão, um litígio de fronteiras entre as pretensões de portugueses e espanhóis. Que ambos, baseados no fundamento contraditório do Estado de Cristandade de que a terra e todos os seus bens pertencem a Deus, porque os criou, pertencem ao papa porque é representante de Deus na terra, pertencem ao rei porque é delegado do papa, e pertencem aos apaniguados e servidores do rei porque ele assim o decidiu, ambos lutam entre si e contra os missioneiros indígenas cujo chefe Sepé Tiaraju morreu, na dizimação genocida de seu povo e que nós denominamos de “Guerra Guaranítica”, bradando: “esta terra tem dono”. Ele sabe que há uma clamorosa e ainda não purgada injustiça na raiz do RS. Assim como os uruguaios sabem que seu país está fundado sobre o branqueamento da raça e o aniquilamento dos charruas cujo epílogo se deve a Frutuoso Rivera, nas cabeceiras do Rio Negro, em 1831. Quando os Estados, Português e Espanhol, lutaram militarmente pela expansão e e defesa das fronteiras sul do Brasil (especialmente desde 1680 até 1777), o “ intelectual orgânico” do RS será o chefe militar. O caudilho-coronel será um arquétipo do poder do RS. Será ele quem definirá a posse e a propriedade dos latifúndios, a ereção de igrejas, as escolas iniciais de alfabetização e catequese 315


Rio Grande do Sul Arquétipos Culturais e Desenvolvimento Social

(especialmente depois da expulsão dos jesuítas em 1759). A expulsão dos jesuítas será um desastre para a incipiente educação em todo o Brasil. No vazio de métodos, professores, manuais, que ficou, só em 1820 iniciam formalmente as aulas régias no RS: Porto Alegre, Rio Grande, Rio Pardo, Santo Antonio da Patrulha, Pelotas e Piratini,482 com o método Lancaster de alfabetização. Na organização do Brasil independente, Império e República, a cultura e a escolarização no Brasil e RS sofrerão múltiplas influências dos “ Novatores” racionalistas, liberais, positivistas que, buscam na Escola a substituição da Igreja para a formação de “ cidadãos” de livre pensamento, com a hegemonia da burguesia européia. A influência jesuítica (seus antigos manuais foram copiados, os professores sem formação acabavam repetindo rigidamente os livros, sem inovar) farse-á sentir, especialmente com o restabelecimento da ordem jesuítica, em 1811,e seu retorno ao Brasil em 1830, a pedido do Duque de Caxias.483 Será evidente ainda até a proclamação da República implantada sob o signo do positivismo. Os interesses expansionistas do Império português e brasileiro realizados através de militares e suas fortificações, em pontos estratégicos de defesa e ataque, ou através de “entradas e bandeiras” preadoras de índios, devastadoras e genocidas, a distribuição de terras para fazendeiros armados, semi-militarizados e autocráticos marcará profundamente a cultura do RS. A estrutura institucional (Província, intendências, distritos, delegacias, vilas, cidades, câmaras), as posturas municipais, bem como a organização familiar, a estância, a vida social e cotidiana será perpassada pela autocracia militar, pelo caudilhismo, pelo coronelismo e suas conseqüências. A perspectiva militarista fezse evidente na adaga e no revólver sempre à mão, e visíveis (demonstrativos) na cintura, nas proezas contadas e recontadas de brigas vencidas à adaga, nos enfrentamentos com a polícia, nos duelos por honra. O resultado aparece na seriedade e quase dureza do rosto castigado pelo sol e pelas intempéries,no vestuário e no chapeu quebrado na testa, no palavreado rude e “ bagual”, na liberdade vista como arbitrariedade e fuga às instituições e leis: afinal, quem manda está acima das leis.

482

ULRICH, 1994: 108.

483

ULRICH, 1994: 109.

316


O Rio Grande do Sul no Estado de Cristandade Colonial

Somos da fronteira, ou melhor, somos a fronteira do Brasil e sua sentinela. Fronteiriço, o gaúcho sabe da relatividade da linha divisória movediça, bem como das enormes consequências de ser fronteira. Sabe que a fronteira, além de ser uma divisa geográfica, ou uma delimitação política, é um fator decisivo determinante da identidade pessoal, social e cultural de um povo.484 Os do outro lado são permanentemente nossos “hermanos” e nossos inimigos. A convivência é também sempre contrabando e estranhamento. Proximidade e rivalidade. E quase tudo a mando de políticas centrais, que, no contexto dos impérios do Estado de Cristandade visam ao domínio global. Como nenhum outro Estado brasileiro, isto nos marca e identifica. Por isso tanto se diz que o gaúcho é um forjador de pátrias: o Uruguai, a Argentina e o Brasil sul foram forjados pelo gaúcho. De um lado e do outro da fronteira somos gaúchos, ao mesmo tempo que, com armas defendemos a propriedade do lado de cá. Sabe, ao mesmo tempo que, se cada estancieiro é um líder político e um chefe militar, na hora da luta, lá vão os peães, os negros e os ex-missioneiros a morrer pela pátria gaúcha.485 Sabe que o RS nasceu a partir de fortificações militares e se estruturou a partir delas e para elas. Assim Colônia do Sacramento, Rio Grande, Rio Pardo, Bagé, etc. Assim a primeira presença e definidora será militar. O militarismo marcará a história do RS. Militares serão não apenas as tropas regulares castrenses, militares serão os povoadores primeiros e que associarão o trabalho de estancieiros aos de militares ou para-militares permanentemente. Sempre armados (embora precariamente) de revólver e faca como se estivessem de sentinela, prontos para repelir ataques ou atacar, às ordens do primeiro caudilho. Do caudilhismo gaúcho assim fala Zum Felde: A gauchada deposita nele sua confiança política, trata-se de uma delegação de soberania feita de modo tácito; sabem que 484

Cf. Romero, Sonnia. Lugares de Producción de sentido en la frontera RiveraLivramento. Porto Alegre: UFRGS, 1992, Cf. Zanotelli, Jandir e Romero Sonnia. Antropologia, Pelotas: Edufpel, 1998; CfJosé del Vasco Blanco. Identidad, Etnia, Nación. In Cuadernos de la casa chata. CIESAS, Montevideo, n. 174 ; Canclini, Nestor Garcia. De las identidades en una época postnacionalista. Reflexión. Montevideo: Cuadernos de Marcha, 1995.

485

É esclarecedor ver a participação das elites e da peonada nas Revoluções Farroupilha, na de 1893 e na de 1923. 317


Rio Grande do Sul Arquétipos Culturais e Desenvolvimento Social

onde estiver o caudilho, aí estará sua causa. Se ele se levanta em armas, todos o seguem; muitos não sabem porque entraram na luta, mas estão com seu caudilho, e, portanto, estão onde devem estar. Cada rincão tem seu caudilhete, cada região ou conjunto de rincões, seu comandante, que comanda os caudilhetes, e o país, ou conjunto de regiões, o seu caudilho nacional, que comanda os outros caudilhos menores. Esse caudilho nacional é o verdadeiro chefe do país, nele residem a autoridade e a força (...) O gaúcho não se submete ao doutor, de cuja prosa bacharelesca desconfia, e o doutor não entende o gaúcho, que lhe parece um simplório desprezível. O caudilho nacional é o caudilho-doutor, o fazendeiro-general, o boiadeiropolítico, o diplomata-domador, um híbrido harmonioso, espécie de centauro que une a inteligência humana e a força primitiva. Este é o segredo do caudilho. O que o diferencia da cidade é o fato de ter um prestígio proveniente das campanhas militares que estes não têm; o que o distingue dos caudilhos locais é que se eleva ao plano da política nacional, a que estes não têm acesso.”486

Esse militarismo ou para-militarismo, esse trejeito militar de um não soldado, ou o trejeito estancieiro de um militar, manteve sempre o gaúcho de arma na mão.487 Sabe que o arquétipo de militar penetrou o pensamento e a organização econômica, política e social, marcando tudo com a hierarquia e a disciplina. Sabe também que a vila, seus cargos, suas funções e suas regras são determinados pela elite estancieira-militar que recebeu os campos como propriedade. Sabe que o RS como o Estado dos quartéis, o Estado dos generais, dos presidentes e dos positivistas tem, na centralização política da República, da ordem e do progresso o seu paradigma. b) A guerra, a faca, a degola: as elites e suas revoluções No horizonte interpretativo do menino gaúcho, que busca um espelho para se ver identificado, encontra também lutas sanguinolentas promovidas pelas elites contra o centralismo do poder político do 486

In RUAS, Tabajara e BONES, Elmar. A Cabeça de Gumercindo Saraiva: 16-17.

487

A referência histórica ao militarismo “civil” do gaúcho vai desde a viagem em 1820, de Saint-Hilaire, os textos sobre o povoamento, os relatos de lutas e conquista, a fundação e formação das cidades (acampamento), a história das famílias como as de Maria Alayde Ulrich...

318


O Rio Grande do Sul no Estado de Cristandade Colonial

Império e contra a ditadura científica positivista do castilhismo. Guerras com degolas bárbaras e vingativas envolvendo a população pobre como se esta tivesse algum interesse a defender. Tudo em nome da liberdade e da bandeira rio-grandense. Lá está a Revolução Farroupilha, a federalista de 1893, a anti-castilhista borgista de 1923. Lá está também a Guerra contra o Paraguai em nome da pátria ultrajada, escondendo no bojo os interesses escusos do imperialismo inglês e que, no absurdo da luta genocida, enlouqueceu muitos gaúchos. Lá está também, e algo mais próximo, a revolução de 1930, empalmada por Getúlio Vargas e que rompeu de vez com a política centralista do Café com Leite da República Velha. A partir dela resultou para o Brasil um novo plano de desenvolvimento: industrial, nacionalista, com a inserção dos operários e das camadas populares nos direitos e proteções trabalhistas. Essa modernização do Brasil permanece sempre como realização da qual os gaúchos tiveram parte. Dentro do modelo positivista embora, os gaúchos deram seu aporte ao progresso do Brasil. c) Coronelismo e caudilhismo No contexto da determinação e defesa das fronteiras, do militarismo de guerras e revoluções quase sem tréguas, a criança gaúcha que busca fixar uma identidade, encontra inclusive, a partir da idealização liberal do termo gáucho como patronímico do riograndense, também os arquétipos de coronelismo e caudilhismo políticos. Recebe como patrimônio cultural o espírito de iniciativa, a liderança, o não levar desaforo p’ra casa, a exigência de querer decidir as políticas nacionais em pé de igualdade com outros estados. Este é um ideal proclamado e repassado pelas elites e com consequências na economia (charque, lã, trigo, soja, arroz, frutas...) e nas guerras, bem como na liderança de alguns políticos como Pinheiro Machado, Getúlio Vargas, João Goulart, Leonel Brisola e de vários presidentes do período da ditadura militar. O RS será indelevelmente marcado pela hierarquia, pela disciplina, pela ordem estabelecida como questão militar em todas as esferas de sua estrutura: econômica, política, social e religiosa. Assim o caudilhismo e o coronelismo estâo no horizonte hermenêutico de nossa identidade. Honrava e ainda honra o RS, a seriedade e honestidade ( do ideário ético do positivismo castilhista), bem como a capacidade 319


Rio Grande do Sul Arquétipos Culturais e Desenvolvimento Social

cultural-pragmática da maioria absoluta de seus representantes na esfera do governo federal.488 d) A República Positivista como símbolo O modelo positivista de governo incentivado e adotado pela maçonaria, marcará politicamente o RS com a linha implantada por Júlio de Castilhos e continuada por Borges de Medeiros e Getúlio Vargas e que permanece longo tempo como substrato da administração do RS. Resultou para o RS um ideal mais republicano do que democrata ou a idéia de que basta ser republicano para ser democrata.489 A centralização quase ditatorial do poder executivo, em detrimento da representação popular e do poder legislativo, sob pretexto de maior eficiência e agilidade administrativas, a atenção prioritária dada à educação e ao pensamento científico, o anticlericalismo,490 a 488

Décio FREITAS, em Zero Hora de 3/4/2000 pg. 21, analisando a patologia da política paulista, Estado que enriqueceu com a migração nordestina e que excluiu os nordestinos, mostra que “São Paulo, essa cidade mais rica da América Latina, esse caos social e político...paraíso para aventureiros e mafiosos... São Paulo sempre foi a matriz e o sustentáculo do mais encanzinado direitirsmo brasileiro. Baluarte da monarquia escravista, criou a República Oligárquica quando isso lhe conveio. O projeto antioligárquico e modernizador da Revolução de 30 teve em São Paulo seu principal foco de resistência. A pretexto de promover a convocação de uma Constituinte – quando de fato já fora convocada – tentou, em 1932 restaurar a república oligárquica. São Paulo foi o nascedouro e o bastião do regime autoritário de 1964. Desarticulada e desmoralizada após 1930, a tradicional elite política paulista foi substituída pelo populismo de direita: Ademar de Barros, Jânio Quadros, Paulo Maluf, para só citar os principais... Durante seis décadas, após 1930, nenhum político paulista cumpriu integralmente um mandato de presidente da República. Na redemocratização pós-1964, os candidatos de São Paulo saíram vitoriosos graças a uma aliança com o abominável coronelato nordestino. Tal casamento entre modernidade e arcaísmo pariu um notório aleijão político. No fundo, sabêmo-lo, aliança contra o RS, que oferece o mau exemplo de ser, se não economicamente, pelo menos socialmente o Estado mais moderno do Brasil. Além de possuir a política mais limpa num país hoje em estado de verdadeiro pânico moral”.

489

Há neste sentido quase unanimidade entre os historiadores do RS: Flores, Oliven, Pesavento, Décio Freitas, Barbosa Lessa, Elomar Tambara...

Reiteramos que o laicismo liberal burguês que reorganizou a Europa Moderna, nasceu de dentro do Estado de Cristandade. O laicismo anticlerical é a versão do Estado de Cristandade com suas contradições expedida pelos leigos que, no Estado de Cristandade eram excluídos ou estavam nas franjas periféricas do sistema. É a negação que, como diria Hegel, necessita ser superada pela negação da negação. O clericalismo e o anti-clericalismo são duas faces da mesma moeda. Neles não está a síntese.

490

320


O Rio Grande do Sul no Estado de Cristandade Colonial

identificação do progresso491 com a industrialização e da evolução política com a República caracterizam esse arquétipo político do RS. e) Imigração: comunidade, linha, capela, escola Por outro lado as crianças, os jovens e adultos do RS também encontram como componentes de seu arquétipo político, o pensamento, as instituições, o modo de ser, trazidos e vividos pelos imigrantes do século XIX e XX. A experiência comunitária, por necessidade de sobrevivência cultural e social, dispensando, por vezes, o papel e a atuação do Estado, foi aporte importante para moldar os arquétipos políticos do RS. Sem esperar pela boa vontade política492 (nem sempre visível e até hostil) e pela ineficiência letárgica da burocracia do Estado, os imigrantes organizaram e administraram o poder estruturando suas capelas com suas diretorias, suas escolas com seus professores escolhidos e pagos por eles, suas solidariedades vicinais e vinculações com representantes junto à administração do Estado, suas cooperativas, sua sólida estruturação familiar, tendo em tudo o sacerdote como sua maior representação política e seu “intelectual orgânico”, na expressão gramsciana. A iniciativa própria, a quase auto-suficiência atribuída ao gaúcho deriva, em grande parte, dessa experiência. Hoje, o Movimento dos Sem Terra (MST), que nasceu e se fortaleceu entre os netos de imigrantes constitui, sem dúvida, um dos maiores, senão o maior movimento de pressão política que o Rio Grande 491

A pretensão de identificar a história com uma racionalidade científica do progresso, da ordem, do sistema não deixa aparecer a liberdade, a novidade, a alteridade, a surpresa de cada e de todos os gestos históricos. O materialismo histórico, enquanto positivismo, não é teoria suficiente para pensar a história. Octávio Paz reconhecia, falecido nessa semana, em Sartre apenas o talento ficcionista, mas negava seu valor como filósofo: “Quase todos seus ensaios políticos, suas peças de teatro e suas obras de ficção giram em torno a uma idéia que foi o grande engano de nosso século: a instauração de uma suposta lógica da História como uma instância moral superior independente da vontada e das intenções do homem” Zero Hora, pg. 5 de 25/4/98.

492

Se é verdade que a política de imigração do Estado do RS e do Brasil, no século XIX, foi favorável à instalação e ao sucesso dos imigrantes em suas colônias, no entanto, as comunidades de imigrantes não foram desde sempre inseridas na economia, na política e na cultura do RS. As muitas desconfianças e até perseguições às culturas italianas e alemães especialmente, por um lado dificultaram sua integração, e por outro forçaram sua auto-suficiência comunitária. Hoje, a contribuição econômica, política, cultural dessas etnias é, cada vez mais, evidente. A contribuição vai desde a culinária até as idéias filosóficas e políticas. 321


Rio Grande do Sul Arquétipos Culturais e Desenvolvimento Social

do Sul conhece (e que se fez movimento nacional). E não apenas enquanto exige políticas agrícola e agrária (incluindo ampla reforma agrária) com terras para trabalhar e produzir, como também exigindo uma reformulação das várias políticas do Estado. O fator crítico da exigência parece estar além do Estado de Cristandade, cuja crise foi evidenciada pelo Concílio Vaticano II (1962-1965). 4.4 Arquétipos da organização cultural específica A língua, a escolarização, a arte, a ciência, a filosofia, a religião. Em sentido amplo, a palavra cultura significa cultivo, cultivar e cultuar. Nesse sentido todo comportamento é cultura. O comportamento do homem em relação à natureza, o comportamento do homem em relação aos outros homens, o comportamento em relaçào a si mesmo, o comportamento em relação à história e à transcendência. Assim, o conhecimento, a tecnologia, a arte, a religião, a moral. A cultura se mostra a partir de padrões de comportamento e não apenas a partir de ideossincrasias individuais. Assim o pensar, o fazer, o agir se exteriorizam, materializam, realizam em padrões culturais. A cultura se organiza e se estrutura a partir de uma experiência originária e primeira de ser. O núcleo ético-mítico de valores e significações primordiais de um povo vincula, articula e torna específica uma cultura. Ao inserir os fatos e ações na direção do núcleo ético-mítico da sua cultura, o homem faz a história. Na cultura vive-se e revive-se uma relação considerada válida e ou necessária. A experiência originária do gaúcho bebe e se embebe da geografia espácio-temporal do pampa: um homem que se coloca diante da vastidão interminável do pampa cujos horizontes oferecem um suave ondulado de colinas e planuras que o aprisionam na solidão da liberdade ou na liberdade solitária do ensimesmamento. A imensidão verde azulada de horizontes infindos fala, ao mesmo tempo, de liberdade e de distância, de solidão e de saudade. Associado a esta experiência está o fustigante e frio vento minuano que traz consigo os rigores do polo sul nas épocas de inverno, e se anuncia ameno nas frentes frias que espantam o calor escaldante e abafado do verão. Sem o minuano certamente não haveria fogo de chão, batata assada na brasa, o chimarrão na roda de galpão e os longos causos que ajudam a entreter as horas vagas. A lua, atravessando e branqueando os pampas, inspira o gaiteiro e o violeiro a cantar seus amores e saudades. 322


O Rio Grande do Sul no Estado de Cristandade Colonial

Dentre as vivências telúricas que povoam o imaginário do guri de estância estão o banho de sanga, a caça do tatu e a aventura de melar “lichiguana”, a sombra do umbu próximo à casa, o galpão com seus causos e segredos, a mangueira de pedra, a invernada, a figueira, taperas com restos de senzala, a casa da estância, o rancho, o araçá, a pitanga e o canto do quero-quero, o chiar da coruja, o grito dos tachãs, as saracuras, o berro das vacas e bezerros, o latir e o enrodilhar-se dos cuscos, o relincho do cavalo e as rãs, e os grilos e os pirilampos e o céu azul com multidões e multidões de estrelas, e a distãncia, e o verde, e o pampa. E a liberdade do pampa é ao mesmo tempo distanciamento do poder, um lugar de autonomia e soberania.493 O imigrante que ingressou no RS especialmente no fim do século XIX, ao mesmo tempo que tem, na constituição de sua identidade, um forte vínculo com as terras de matas e montanhas, com a pequena propriedade, com a roça, vai integrando aos poucos os hábitos da cultura gaúcha vigente e anterior. A adoção do folklore do gaúcho da campanha faz com que Caxias do Sul, repetimos, tenha hoje o maior número de CTGs do Estado. E as tradições gaúchas cultuadas nos CTGs são as da vida, história e folklore dos pampas da Metade Sul do Estado. Hoje o tradicionalismo gaúcho é o maior movimento culturalfolklórico da terra. Abrange mais de 8 milhões de participantes efetivos, no Brasil e exterior. Migrando para todos os Estados do Brasil, o gaúcho leva consigo seu tradicionalismo e seu CTG. Impressiona, assim, ver no Nordeste, no Norte, no Oeste, no Centro do Brasil a quantidade de Centros de Tradição Gaúcha. Este movimento iniciou em abril 1948 com Glaucus Saraira, Barbosa Lessa, Paixão Cortes, Ciro Dutra Ferreira, Flávio Ramos, Flávio Damm, Mário Vieira, Cândido da Silva Neto, Laerte Vieira Simch e Valdomiro Souza, em Porto Alegre com o CTG 35, na esteira de Cezimbra Jacques de 1898 e no pioneirismo de La Criolla de Elias Regules de Montevidéu de 1894.494 A interpretação cultural que o gaúcho fez de si mesmo, e de sua história e de suas contradições, pode ser visibilizada nos contos e lendas que povoam a imaginação coletiva. A forma mítica de expressão vigorou em todos os povos. As lendas, os mitos, as fábulas, conseguem articular, de forma figurativa e habilidosa a experiência originária de um povo. A forma narrativa e 493

Cf. Érico Veríssimo: O Tempo e o Vento.

494

ACRI, Edson. O Gaúcho: usos e costumes: 141 323


Rio Grande do Sul Arquétipos Culturais e Desenvolvimento Social

fabuladora facilita sua transmissão de geração em geração, constituindo-se em decisivo elemento de educação e identidade. Assim, as lendas e causos recolhidos por Simões Lopes Neto, como os do Negrinho do Pastoreio, da Salamanca do Jarau, da Mboitatá revelam a identidade, na contradição. Dentre as lendas gaúchas mais conhecidas está a do “Negrinho do Pastoreio.”495 “O Negrinho do Pastoreio”, é por demais conhecida pelas crianças, jovens e adultos do RS. Ela penetra no inconsciente coletivo como lenda, como mito, como paradigma de compreensão e de posicionamento social, político e cultural. Ao ouvir, olhos tristes e condoídos, a bela estória do Negrinho obediente e maltratado pelo patrão ou pelo filho do patrão, obrigado a procurar os cavalos que se perderam na noite escura e perigosa da vida, e depois consumido pelas formigas e “ressuscitado” para o céu pela Virgem Maria, a madrinha de todos os desvalidos, e transformado agora em protetor de todos os “negrinhos do pastoreio”, as crianças do RS recebem um arquétipo de vida e interpretação de toda a realidade social. Ao mesmo tempo que denuncia a experiência escravista vivida nas charqueadas e no universo da fazenda, a estorinha parece sacralizar o modo de produção da escravatura. A culpa, o êrro, o perverso não está no sistema escravocrata, mas na maldade do senhor em fazer o menino desprotegido sofrer. Cobra-se dele o “não ter tido compaixão” ao mesmo tempo em que resolve o drama oferecendo o 495

João Simões LOPES NETO. Lendas do Sul: 67-75. Em síntese, a lenda conta que um estancieiro rico e sovina, a personificação do proprietário absoluto, e que tinha um filho malvado que judiava de um Negrinho “sem nome e sem padrinho”, ao perder uma carreira conduzida pelo negrinho, deu uma desalmada surra de relho e mandou o menino ficar ao relento cuidando de 30 cavalos por 30 dias. Não aguentando acordado, os cavalos se dispersaram, recebendo o negrinho, por delação do filho do patrão, mais uma surra, e uma terceira surra, dando-o por morto e jogandoo num formigueiro para que fosse devorado pelas formigas. Nossa Senhora, sua madrinha, libertou-o das formigas, levou-o para o céu e fez com que a tropilha dispersa fosse encontrada. O patrão viu o negrinho vivo sobre o formigueiro, pele lisa e feliz. “ E o negrinho, sarado e risonho, pulando de em pêlo e sem rédeas, no baio, chupou o beiço e tocou a tropilha a galope...E assim o Negrinho pela última vez achou o pastoreio. E não chorou, e nem se riu...pareceia um milagre novo...Daí por diante, quando qualquer cristão perdia uma coisa, ou que fosse, pela noite velha o Negrinho campeava e achava, mas só entregava a quem acendesse uma vela, cuja luz ele levava para pagar a do altar de sua Madrinha, a Virgem, Nossa Senhora, que o remiu e salvou e deu-lhe uma tropilha, que ele conduz e pastoreia, sem ninguém ver...Quem perder suas prendas no campo...se ele não achar...ninguém mais”.

324


O Rio Grande do Sul no Estado de Cristandade Colonial

céu justificador na vida do além. Os “malvados” senhores de escravos terão a consciência tomada de formigas implacáveis a torturar as lembranças. A lenda ordena e parece aplacar as consciências ao dar ao “negrinho” morto um lugar imaginário no pampa. A justificativa da propriedade e da exploração econômica se faz por dois fatores: o destino (que situa cada um no seu devido lugar) e pela sorte (nas carreiras ou no achamento das coisas perdidas). Assim, a razão da dominação e da exploração, da escravidão e da riqueza se mostra ideologica e simuladamente como graça de Deus e da natureza. O negrinho é o arquétipo da escravidão, ainda vivo nos dominadores e dominados; é expressão do sentimento ambíguo de domínio e condolência com o dominado. O “negrinho”, vivo hoje nas periferias, é o grande desafio, de adormecida alteridade, é exigência ético-política de mudança das estruturas arcaicas e injustas da sociedade e da cultura do RS e das dissimulações ideológicas operadas na história. Por outro lado, a lenda da Mboitatá,496 mostra a desgraça que se abateu sobre os índios, especialmente guaranis, pela entrada do homem branco, transparente, que lhes comia os olhos, deixando-os na escuridão da miséria. Ao mesmo tempo que fala da resistência impossível, da impotência dos índios, busca no grito do quero-quero, um alimento para a esperança quando o sol renascerá, a cobra morrerá e haverá algum truque mágico para esconjurar o mal. Tudo é obra do destino e a saída é a magia. Com isso, o mal, a opressão, a destruição, encontram uma razão que dissimula a realidade e a ordem social. Por que não teria vigorado para sempre o tempo feliz primitivo (inclusive o tempo feliz da Terra sem Males ou também das Missões)? Por que a desgraça se abateu sobre eles? Atarantados, abichornados, espantados, os índios contemplam a história esperando um novo sol. E confiam no amanhã porque o alimento da serpente não tem substância. A 496

Cf. João Simões LOPES NETO. Lendas do Sul: 17-23. A lenda narra simbolicamente uma época de escuridão, de destruição, de miséria, de dilúvio, quando uma serperte enorme (Mboiguaçu) devorava os olhos dos animais mortos e que guardavam ainda uma faísca de luz (anterior à escuridão). Comendo somente os olhos fez luminosa, de uma luz azul e fria, desejando comer inclusive os olhos dos homens que, chorando pingavam pequenas gotas de luz. Só o quero-quero alimentava a esperança dos homens por um novo dia. A Mboiguaçu que comia apenas luz (e não alimento substancioso) desmanchou-se e morreu. O sol renasceu. A serpente reaparece rolando como bola de fogo pelos campos. É o símbolo do azar de quem se deve afastar o gado. É preciso um truque para que ela se desmanche na macega enquanto busca comer as faíscas da argola do laço. 325


Rio Grande do Sul Arquétipos Culturais e Desenvolvimento Social

exploração, a ganância, a propriedade não alimentam a vida.497 Assim, a lenda é, ao mesmo tempo, a memória do passado e a projeção do futuro. E, como no mito do Gênesis, Deus garante ao homem que, um dia, a serpente (que sempre busca o calcanhar do homem) seria esmagada, também na Mboitatá haverá um novo sol, uma nova luz, um novo tempo. Essa utopia que perfura os tempos de contradição, é cantada hoje na poesia e no cancioneiro gaúcho.498 Ressalve-se que a demonização da serpente está no âmago do Estado de Cristandade. A Salamanca do Jarau,499 talvez a mais bela lenda do RS, traz em si mesma a contradição existencial entre ser pobre e buscar a fortuna. Buscar a fortuna é uma tentação do diabo, Anhangá-pitã, que transformou o condão mágico da fortuna na cabeça de fogo da teiniaguá, cujo corpo é da mulher encantadora moura (que ninguém pode pegar). Aí aparece a contradição entre riqueza (obra do demônio e de seus seguidores) e a pobreza chorona, religiosa, triste da Cristandade. E faz a apologia da vida simples e pobre, na esteira da cruz bendita e das bênçãos e rezas do Estado de Cristandade. A mulher aparece como a negação da água benta, do sal piedoso, dos óleos bentos, do cuidado dos altares, dos círios, dos incensos cheirosos, das palavras do missal, do repicar dos sinos: do ideal de vida que era ser sacristão. Símbolo do 497

Impressiona a atualidade desta lenda, se aplicada à celebração do “Brasil 500 anos”. Enquanto os índios patachós que pretendiam entregar ao presidente de Portugal uma carta de protesto pela invasão e por 500 anos de opressão, de esbulho e exploração, são escurraçados pela polícia, presos e machucados, o mesmo ocorrendo com os negros; enquanto o presidente da FUNAI, Carlos Frederico Marés de Souza Filho, é também ferido e se demite em portesto; enquanto isso, o presidente da República referiu-se a eles como baderneiros... Enquanto a imprensa internacional chamou de fiasco a festa dos 500 anos, os críticos mostravam que o fiasco não foi a festa e sim a história do Brasil, com suas gritantes diferenças sociais, com a escravidão, o latifúndio, a exportação e o pagamento das dívidas externas geradas pelas próprias trocas internacionais tidas como metas prioritárias, e tudo sob o manto da ordem do Estado de Cristandade.

498

“Não podemos se entregá pros home/ De jeito nenhum amigo e companheiro...”

499

Cf. João Simões LOPES NETO. Lendas do Sul: 25-65. Nela, um posteiro pobre, de nome Blau, sismando as causas de sua pobreza, enquanto procura o boi barroso (boi encantado que nunca se encontra), é tentado a conquistar a fortuna nos corredores da magia (como a praticada pelos renegados mouros que, fugindo da Espanha aqui se plantaram fingindo-se de cristãos) e, passando pelas 7 provas capitais, consegue a moeda mágica que se multiplica, uma a uma, e lhe permite comprar o que quiser. Enriquecendo, traz a desconfiança e o afastamento de todos, até que, não mais suportando a situação, retorna à pacata vida de pobre onde possa “ comer em paz o seu currasco...; e em paz o seu chimarrão, em paz a sua sesta, em paz a sua vida!...”

326


O Rio Grande do Sul no Estado de Cristandade Colonial

pecado e da tentação, a mulher era aliada do demônio. Quando Blau renuncia a tudo, o ideal de riqueza, o prazer da mulher, e volta e persignar-se e a colocar sua vida e seu cavalo ao amparo da cruz (e das determinações do Estado de Cristandade) recupera a chance de sua identidade. Identidade de pobre, de peão, de posteiro que, de seu só tem “um cavalo gordo, o facão afiado e as estradas reais...sempre campeando um boi barroso”. A identidade do gaúcho como peão pobre e feliz é, até hoje, arquétipo da imaginação gaúcha, ao mesmo tempo que a narração ideológica e dissimuladora da situação social, econômica e política. Lateja e pulsa, nessa lenda da Salamaca do Jarau, a memória da luta da independência e libertação da Espanha e Portugal em relação aos mouros, visibilizados como falange do demônio e contra os quais toda guerra era “santa”. Sente-se nela, também o hálito dos tempos das sociedades corporativas do final da Idade Média e do ideal da República Comunista Cristã dos Guaranis, para quem o lucro era visto como “usura” e, por isso como crime e pecado. Por outro lado, sopra no ar o ideal mercantilista do lucro e do capitalismo como espírito da ética protestante. Os valores do Estado de Cristandade devem vigorar. Fatores culturais significativos da identidade gaúcha, também serão a língua, a escola, a arte e o lazer, a ciência, a filosofia, a ética e a religião todos eles enraizados, de algum modo, no Estado de Cristandade. Acenaremos indicativamente. A língua Trançada em tantas origens (indígenas, espanholas, lusas, negras, e com o sotaque de quase segundas línguas oriundas da história dos imigrantes: o portunhol, o ítalo-brasileiro, o teuto brasileiro...) e em tantas tarefas e refregas, a língua portuguesa do RS tem estilo, sotaque, verve e literatura regional. Regional, porém, que não se contrapõe ao universal, mas que o nutre e lhe dá dimensões existenciais concretas. A linguagem popular captada por escritores da altura de Simões Lopes Neto, Érico Veríssimo e tantos e tantos escritores e compositores regionalistas, mostra muito bem o modo de ser próprio do gaúcho, a influência do espanhol, do índio e do negro em nosso linguajar. Estuário de tantas experiências, de tantas memórias, de tantas utopias, a lingua portuguesa fez-se aqui manancial simbólico que sintetiza os arquétipos culturais com fisionomia e cantar próprios. A linguagem, como dizia Humboldt, é sempre uma forma de 327


Rio Grande do Sul Arquétipos Culturais e Desenvolvimento Social

acepção de mundo, nela o mundo das significações se expressa e se faz, dirá Gadamer.500 Por isso a linguagem gauchesca, ao mesmo tempo que é o estuário da tradição acolhida e reinterpretada por aquele que a fala, é também a manifestação da liberdade que, ultrapassa o que é entregue pela tradição, na busca de um futuro que a perfura e a mantém tensa entre a esperança e o passado. Assim, nos arquétipos que condensam a tradição e a linguagem, está o hálito das gerações passadas e o vagido das esperanças que nascem. Não cabe aqui mostrar como, nem quanto, mas apenas acenar à singularidade cultural da linguagem do gaúcho. A escola O RS ostenta, com orgulho, índices de alfabetização e escolaridade, os mais altos do Brasil. Os políticos governantes fazem questão de associar às suas respectivas administrações o fato de o RS ter o melhor índice de qualidade de vida, com uma taxa de longevidade superior aos outros Estados, com baixa mortalidade infantil, com uma distribuição mais equitativa da renda, com a força de suas comunidades etc... E os políticos de outros Estados insistem em não canalizar recursos públicos para o RS tendo em vista sua qualidade de vida. Na verdade, nem tudo são flores nesta região sul do Brasil. Não é a mesma a realidade da Metade Sul e da Metade Norte do Estado, como já assinalamos. O mesmo pode ser dito da escolarização. Dois fatores principais são responsáveis pelo incentivo à educação no RS: as comunidades de imigrantes e a política positivista de Júlio de Castilhos. Situados na periferia das grandes fazendas, nos lugares montanhosos impróprios para a pecuária, longe dos núcleos urbanos principais, os imigrantes (alemães primeiro, italianos depois...) organizaram suas próprias escolas, ao lado da capela (ou no mesmo espaço dela), do cemitério e do salão de reuniões da comunidade. Escolhiam, pagavam, dispensavam e controlavam seus professores que, na maioria das vezes era um dos colonos que sabia ler e escrever. A raiz comunitária das escolas em região de colonização alemã e italiana do RS, contrasta com a escola estatal dos núcleos urbanos organizados por mamelucos, portugueses e imigrantes açorianos. Ajudadas pelas ordens religiosas que seguiram a onda imigratória, as comunidades 500

Hans Georg GADAMER, Verdade e Método, pg. 638 e 640 ss.

328


O Rio Grande do Sul no Estado de Cristandade Colonial

viram crescer suas escolas e suas universidades comunitárias sem auxílio do Estado e com quase nenhuma interferência deste. Por ocasião da II Guerra Mundial e logo após, as escolas comunitárias de ensino primário, são absorvidas pelo Município e pelo Estado e, depois de um período de relativa bonança, experimentam um sensível declínio na quantidade e na qualidade. Os vínculos e compromissos das comunidades com suas escolas diluem-se e minguam. Por outro lado a ideologia positivista de Júlio de Castilhos fazia da educação o baluarte da formação do cidadão, contrapondo-se ao modelo do Antigo Regime onde a Igreja educava através da catequese e da escola. Separado o Estado da Igreja pela proclamação da República e pela Constituição do Estado do RS orientada por Castilhos, o Estado apressa-se a incrementar escolas, a formar professores para tanto. O laicismo, positivista e anticlerical do novo grupo politicamente hegemônico identifica a escola comunitária como “privada”, porque confessional, e a escola “estatal” como “pública”. Até hoje os grupos de esquerda encontram o ranço histórico e contraditório desse arquétipo de compreensão da educação. Diante de um Estado Nacional regido e apropriado por uma pequena elite, diante de um Estado “privado”, como entender que a educação estatal seja pública? As escolas e universidades comunitárias reivindicam, dentro do Estado e em nível nacional, o tratamento como escolas públicas comunitárias.501 No vácuo dessas reivindicações alguns interesses particulares alistam-se como sendo comunitários. Nessa ambigüidade, a escola do RS, reúne-se e se divide. As escolas comunitárias, ao mesmo tempo que exigem um tratamento justo e equânime do Estado, exigem também o direito de participação na organização e orientação da educação. Os adeptos da escola estatal insistem que apenas esta é capaz de formar cidadãos com igualdade de oportunidades. A rivalidade pode ter sido um dos fatores de aperfeiçoamento da escola no RS. Grande conquista da sociedade representou a vinculação orçamentária estabelecida pela Constituição de que 18%, na esfera federal, e 25%, nas esferas estaduais e municipais, da receita resultante de impostos deveriam ser aplicados em educação. Sendo que o ensino infantil e fundamental são atribuição do município, o ensino médio é 501

Criaram-se assim entidades que agregam escolas comunitárias do RS como a AESUFOPE (Associação de Escolas Superiores que Formam Profissionais na Educação) que, depois englobou também as Escolas e Universidades Estatais do RS; o COMUNG (Consórcio de Univeridades Comunitárias do RS) e em nível nacional, por ocasião da elaboração da Constituição de 1988, a ABRUC (Associação Brasileira de Univeridades Comunitárias) 329


Rio Grande do Sul Arquétipos Culturais e Desenvolvimento Social

atribuição do Estado e a União responde pelo ensino técnico e universitário.502 Muito embora as estatísticas oficiais revelem que 97% das crianças em idade escolar estejam ou estiveram na escola, nos 26 Estados e 5.500 municípios do Brasil, “aproximadamente 2/3 da população com 15 anos ou mais, não possui a educação obrigatória (ensino fundamental). Deste universo, 1/3 foi considerado analfabeto funcional por não ter concluído mais que 3 anos de estudo. De toda a população, apenas cerca de 50% das crianças, pela pesquisa, frequentavam uma pré-escola e a perspectiva era de que somente 10% das crianças que haviam se matriculado no ensino fundamental conseguiriram finalizar o ensino médio.”503 Hoje, em meados do ano 2000, o PSB aliado ao PT, no governo do Estado ensaia a implantação de uma Universidade Estadual, reunindo os alunos que compõem as universidades comunitárias do RS. O viés estatizante do projeto encontrará certamente oposição na tradição comunitária do Estado. Arte e Lazer A arte, como expressão simbólica de uma cultura, mostra no RS a diversidade cultural de sua história. Desde a casa de estilo açoriano, ou de estilo vêneto ou trentino dos imigrantes italianos, de estilo pomerano, até a arte neo-clássica de casarões como os do centro da cidade de Pelotas, a pintura de Gottuzo ou Locatelli, a escultura de Caringi, a poesia de M. Quintana, o romance de Érico Veríssimo, de Pozenato, Simões Lopes Neto, a ciência de Landel de Moura, e uma plêiade de filósofos como Fiori, Bornheim, Stein, Cirne Lima, tudo está no horizonte interpretativo do imaginário pelo qual o gaúcho se pensou e se pensa a si mesmo. Não cabe aqui o espaço adequado para a análise da arte. Remetemos à bibliografia específica. Por outro lado, o lazer como nenhum outro espaço, manifesta a identidade cultural de um povo. Assim, os jogos, as músicas, as 502

503

Os recursos aplicados pela União, em educação, vêm decrescendo nos últimos 4 anos. Assim, de um total de 9.106.584.166 Reais aplicados em 1995, apenas 8.217.958.944 foram aplicados em 1998. O mais gritante é o orçamento do Ensino Superior: 5.531.197.214 em 1995, para 4.344.184.604 em 1998. No Ensino Médio a União gastou 677.840.127 em 1995 e 483.027.733 em 1998. Cf. O Impacto do FMI na Educação Brasileira. Campanha Nacional Pelo Direito à Educação. S. Paulo: 1999 pg. 12. Ibidem, pg. 12.

330


O Rio Grande do Sul no Estado de Cristandade Colonial

danças, as festas marcam fisionomicamente o gaúcho. E o folklore e o lazer enraízam seu singnificado no Estado de Cristandade Colonial. Apenas para exemplificar citaremos os mais destacados modos de lazer. Geralmente jogar as cartas e fumar o cigarro são os gostos dominates do gaúcho; para jogar, no primeiro lugar onde se senta, mesmo no meio do campo, o gaúcho extende no chão o seu chiripá, o qual serve para receber as cartas, enquanto que a faca resta fincada em terra, no lado direito de cada um dos concorrentes ou debaixo da coxa direita, para estarem prontos a qualquer acontecimento ou dúvida que possa ocorrer.”504

A carreira de cancha reta “foi o esporte e o jogo de preferência do homem do campo. Fazia parte tanto de negócios que envolviam grande soma de dinheiro, como das brincadeiras telúricas”. Duas raias (trilhas) retas e parelhas,505 à beira de um arroio, em campo aberto, e perto de árvores para sombra, com uma divisória de tábuas ou troncos para separar os cavalos no partidor, com ramadas para os bolichos com alimentos e bebidas, uma vala com braseiro assando o churrasco no espeto de vara verde, os ginetes se provocando sobre as qualidades de seu cavalo crioulo com muito sangue árabe, a peonada, os estancieiros com suas famílias, o alarido das apostas, uma velha gaita 504

Jacques, Cezimbra. Costumes do RS, pg. 56. “Entregues ao jogo com furor, esse vício, que parecem praticar como um meio de encherem o vácuo de seus dias, é a fonte dos roubos e às vezes das mortes que cometem. Joga o gaúcho tudo o que possui, dinheiro, cavalo, armas, vestidos, e sai às vezes do jogo inteiramente ou quase nu; nessa posição é que o gaúcho se torna temível, pois que, perdendo tudo o que tem, não perde o desejo de dasafiar outra vez a fortuna, nem a esperança de achá-la menos cruel; e por mais temível que ele se torne nesse estado, não de desesperação, mas de profunda mágoa, os movimentos interiores do gaúcho escapam aos olhos do observador; nunca se altera nele aquela superfície de impassibilidade que faz a parte mais saliente de seu caráter; ele diverte-se, sofre, mata e morre com o mesmo sangue frio” pg. 56.

505

Quando a corrida envolvia mais de dois cavalos (uma parelha) denominava-se “penca”. Cf. a linda descrição de Tau GOLIN, O povo do pampa pg. 82-88. “São as carreiras uma espécie de Jockey-club a campo aberto, sem nenhum aparato, nem regulamento, limitando-se à eleição de um lugar plano onde se assinala uma extensa faixa perfeitamente uniforme e nivelada e que chamam raia, e ao longo da qual correm os cavalos. Ao lado desta se reúnem, formando longas e compactas alas, jogadores, vivamente empenhados nos resultados das corridas, apostando uns no cavalo tal, v.g. o zaino, o sebruno e outros no cavalo tal, v.g. o tordilho, o tubiano, oferecendo vantagens de toda espécie, dando luz e cola e luz ou paleta, etc..” Jaques, Cezimbra. Costumes do RS, pg. 70. 331


Rio Grande do Sul Arquétipos Culturais e Desenvolvimento Social

e um violão ritmando a alegria dos moços e prendas, as notícias que se trocam, os namoros que se ensaiam, o aparato dos cavalos cobertos de capas coloridas, ou disfaçados de pangarés, enfim a festa que enche o Domingo desde as primeiras horas da manhã e que só terminará à beira da noite.506 E lá vinham os “compositores” dos “parelheiros” que desfilavam exibindo seus cavalos preparados com alfafa e milho, com banhos e treinos diários especialmente para as arrancadas e para a reta final, enquanto o proprietário do cavalo, “acreditando na imbatividade de seu cavalo, fazio-o desfilar, gritando: sem reserva” A aposta era contra qualquer animal e cobrindo qualquer aposta. Muitas vezes apostava-se até a fazenda ou a mulher. Os “juizes” de partida e de chegada controlavam atentamente as regras do jogo. As vantagens do ganhador referiam a parte do corpo do cavalo que passou primeiro a baliza de chegada. Assim se dizia: ganhou de fiador (de cabeça), de paleta, de meio corpo, de virilha, de orelha, de luz (quando era de um corpo inteiro). As apostas eram depositadas em mãos de pessoas respeitáveis ou sobre um poncho estendido no chão. O vencedor levantava tudo. Antes e depois das corridas principais e que poderiam ser muitas durante o dia, tenham elas sido “atadas” com antecedência ou não, a gurizada, a peonada divertiam o público e se alegravam com carreiras de petiços, animais lerdos, burros empacadores e manhosos. As carreiras de cancha reta perduram ainda no interior do RS e nas pequenas cidades. Nas grandes cidades, o costume europeu de raias em círculo, hoje predomina. O jogo do osso, por outro lado, é tão antigo como o RS e a atividade pastoril. Numa cancha de chão parelho e macio, com uma braça de largura e três de comprimento, dividida ao meio por uma piola ou risco no chão, postados à cabeça de cada lado da cancha, os jogadores com a taba507 na mão projetam-na na cancha, para além da piola, depois 506

À carreira principal que deu lugar à festa “ seguem-se outras ali forjadas, continuando assim até muitos dias, o que ocasiona formarem os estrangeiros que vivem na Província, comércios provisórios e bancas de diversos jogos nesses lugares, os quais jogos originam muitas vezes, desordens no povo de certa classe” Jaques Cezimbra. Costumes do RS, pg. 71.

507

Taba é o osso do garrão da rês vacum cortado em ângulo reto, formando um dado com uma parte chata e menor e outra parte arredondada e maior. É também chamada de tava.

332


O Rio Grande do Sul no Estado de Cristandade Colonial

de depositar as apostas nas mãos do coifeiro que é também juiz. No jogo, vale culo (azar) ou suerte. Quem faz culo perde tudo, quem faz suerte ganha tudo. Culo é quando a taba cai com o lado arredondado para baixo. Suerte quando cai com o lado chato para baixo. Quando a taba cai de lado, reinicia-se o jogo, pois ninguém ganhou. Este jogo simples fez muito peão perder a guaiaca e a cabeça. Outro jogo comum nos primeiros tempos do RS era o tejo. “O tejo é jogado com moedas de cobre que atiram sobre as costas de uma faca, para esse fim, fincada no solo dentro de um pequeno quadro; se se acerta o cobre na faca e dentro do quadro, faz-se um ponto; mas do contrário perde o que atira, e passa a atirar o adversário.”508 O jogo de cartas mais praticado no pampa do RS foi, seguramente o de truco. Com um baralho de quarenta cartas, os parceiros (2 ou 4 pessoas), dadas três cartas para cada um, e fosse qual fosse seu valor, com “flor” (três do mesmo naipe) ou não, o principal consistia em provocar astutamente o adversário com o “envido”, “aceito”, “truco” , “retruco”, e, na sagacidade de mentir, de enganar, fazer com que o adversário creia na superioridade das cartas quando não existe ou desista quando tem cartas melhores que o outro. Ao serem mostradas as cartas, vinha então a gargalhada, a provocação e a zombaria simbólica daquele que se deixou engambelar. Verdadeira escola da ironia, da capacidade de fazer o outro crer no real e irreal, de zombar da vida e do destino, o truco era e é uma das brincadeiras mais divertidas dos homens da campanha.509 Muitas vezes o repto, o desafio, o riso e a chacota derivavam para ofensas e, então para brigas. As rinhas de galo, foi outro jogo muito difundido no RS. O rinhadeiro apinhado de homens e rapazes, vestidos a caráter (bombacha, bota, espora, adaga na bainha, revólver a vista, poncho e chapéu quebrado na testa, lenço no pescoço) em meio a núvens de fumaça de cigarros palheiros, os galos lutando até a morte, não admitindo a “covardia” de fugir, o sangue, a luta, o cansaço e a morte, a eliminação do rival sem chance e sem perdão... eis a versão bárbara da própria vida que o gaúcho leva, no parentesco das também bárbaras touradas espanholas. A poesia gauchesca identifica a vida trágica do peão cujo “destino” é sobreviver e lutar, com o jogo seriamente estúpido da rinha de galos. E para dizer de alguém que é valente, forte, elegante e 508 509

Jacques, Cezimbra. Costumes do RS, pg. 56. Confira a inigualável página sobre o truco de Jorge Luis Borges. 333


Rio Grande do Sul Arquétipos Culturais e Desenvolvimento Social

corajoso, chama-se-o de “galo”. A campanha acirrada dos protetores dos animais, ainda não conseguiu eliminar a rinha de galos do RS. Não é preciso lembrar o significado dos bailes e fandangos como manifestação cultural do RS. A delicadeza, a faceirice da sedução feminina e a energia máscula, ao mesmo tempo senhoril e cavalheiresca masculina nas danças que ainda hoje pervivem no folclore gaúcho dão bem a idéia dos bailes de galpão, de ramada e das casas grandes dos tempos antigos. Ética e Religião Como dissemos, a ética e a religião no RS, estão enquadradas no espírito, na forma e no rito do Estado de Cristandade com suas raízes e contradições. Assim coexistem aqui desde a generosidade liberada e a compaixão mais extremada juntamente com o individualismo competitivo e explorador mais crasso. O espírito comunitário e solidário com o despotismo subjetivista e autocrata. A pobreza e a frugalidade franciscana com a ostentação suntuosa de poder e riqueza e o desperdício daquilo que faz falta a muitos. A retidão e a hostidade polítca com a esperteza velhaca e sórdida de conchavos e falcatruas. O respeito cavalheiresco pela dama e pela criança e o desbragado machismo e autoritarismo. O amor ao trabalho e o ócio parasita. Contrastes esses que se apresentam como identidade de duas metades do Estado contrapostas, de duas pessoas confrontadas e da mesma pessoa diante de si mesma. Essa experiência ética contraditória, no entanto, torna possível a exigência de sua superação crítica. Por um lado o estoicismo ( quase masoquismo feito de rudez e insensibilidade) expresso no dito: cada qual deve aguentar no “osso do peito” o destino (e a desdita) que lhe cabe;510 ou o do menino de 14 anos, diante do carrasco degolador Adão Lattore que, vendo-o criança, na mangueira da Lagoa da Música, queria poupá-lo: “corta, nego maleva, que gaúcho não se achica”; ou ainda o dito machista: “Homem que é homem não chora, chia como coruja”. Por outro, a ternura até às lágrimas pelo sofrimento de uma criança ou de um animal ferido, o carinho com que afaga o cavalo, a sensibilidade pela beleza das cores, dos sons, dos cheiros da natureza. Está pressuposto que o modo de produção indígena existente 510

Cf. os relatos de Saint-Hilaire, em sua viagem pelo RS em 1820, ou a poesia de Aparício da Silva Rillo, os romances de Erico Veríssimo. As danças dos CTG. Os feitos da Revolução Farroupilha e das Revoluções 1893 e 1923.

334


O Rio Grande do Sul no Estado de Cristandade Colonial

no RS era de seminomadismo, de caça e pesca, com escassa agricultura realizada através do desmatamento e coivara, especialmente à beira dos rios (mandioca e milho) como influência da cultura tupi-guarani, revela, como pano de fundo de uma cultura que devia abranger todo o Cone-Sul, a visão de mundo que os índios tinham antes da invasão européia. Invadida a América Latina, sob o signo do Padroado, no Estado de Cristandade, há na periferia do sistema (subúrbios das cidades e nos enucleamentos dos índios dispersos (missões e reduções) realizados por clero religioso e não pelo clero secular (em tudo ligado ao Estado) uma evangelização “popular” até contra o Estado de Cristandade. Nas reduções (como é o caso das do RS), evidenciam-se duas finalidades: por um lado elas garantem, para a Coroa, a expansão do domínio além fronteiras, sem a necessidade de um aparato militar ou burocrático do Estado, e por outro lado garante-se para os índios e para as reduções maior liberdade de organização e evangelização. Acontece aqui, juntamente com a inculturação e expansão da civilização européia, um mínimo de respeito pelas tradições e valores culturais indígenas. Não serão admitidos, em todas as funções e papéis, os “ intelectuais orgânicos” dos índios enquanto balizadores de vida e cultura (seus pagés, seus xamãs, seus bruxos e sacerdotes...) mas, ao mesmo tempo procurar-se-á guardar padrões culturais de trabalho e organização comunitária, em parte sua língua, a liberdade e integridade física (contra a escravidão e servidão). As reduções apontam para o RS a possibilidade de uma organização autônoma do indígena integrado livremente na civilização e evangelização européias. Essa experiência de aculturação e evangelização, embora dentro do Estado de Cristandade, não está, porém, subordinada ao Estado. Pretende recuperar a possibilidade crítica e profética dos primeiros tempos do cristianismo, sempre dependente, porém, da Igreja como representação da sociedade total. Libertar-se do Rei e obedecer ao Papa, é ainda fazer depender a evangelização das instituições religiosas e culturais criadas a partir de 313 dC quando nasceu o Estado de Cristandade O ideário ou, pelo menos o ideal das missões jesuíticas, nunca desaparecerá do horizonte cultural do RS, como semente socialista e libertária. Dentro de um Estado de Cristandade , pelas distâncias, falta de clero, vinculação da Igreja ao arbítrio do Estado e do Coronel, a própria religião se torna cimento e fundamento de arbítrio, de luta e de 335


Rio Grande do Sul Arquétipos Culturais e Desenvolvimento Social

legitimação ideológica. “Com ou sem consciência , a Igreja se articula, em suas estruturas hierárquicas hegemônicas, com o poder conquistador”.511 Como nos relata Saint-Hilaire, a Igreja na Capitania do RS, era absolutamente submissa aos senhores do Estado. Recebendo “festivamente” e com todas as bajulações possíveis, os chefes militares: “Cantavam o Te Deum, acompanhado por música, tendo sido oferecido aos principais expectadores, mormente aos oficiais, velas acesas. Após a cerimônia, um pregador subiu ao púlpito e fez o elogio do Conde [...]. Repetiu uma centena de vezes que o vencedor de Taquarembó era senhor de todas as virtudes. Disse mesmo ser ele um original sem cópia; que o povo estava contente e satisfeito e mil outras adulações, igualmente grosseiras e mal expressadas.512 Outro pressuposto desse trabalho é o de que a Cultura não apenas expressa o modo de produção e suas relações e instituições enquanto os reproduz, mas como arquétipo, tem influência, nas instituições, nas relações e na produção. A cultura do RS não é apenas reflexo da estrutura econômica, política e social em sua história e vicissitudes, mas é também exigência, apelo, utopia de ultrapassagem, de superação das contradições, em busca de uma síntese. Assim, se, atualmente, os Centros de Tradição aglutinam pessoas que fazem de conta de viver uma cultura, ideologicamente ligada a determinados fatos do passado e tornada grandiosa; se essa cultura negada, submetida e neutralizada, torna-se estéril para indicar um futuro, mantendo o futuro aprisionado à imobilidade da estrutura latifundiária, no entanto, do interior da vida expressa nesses inúmeros encontros de música tradicionalista está brotando a exigência crítca de um novo horizonte. Afora a música e poesia de nenhum valor cultural e adredemente vinculada a interesses de grupos, surge sempre vigorosa arte que procura resgatar raízes para libertar a cultura, a imaginação simbólica grávida de futuro.

511

DUSSELL, 500 anos: 10.

512

SAINT-HILAIRE: 51 DALLA VECCHIA 1993:47

336


O Rio Grande do Sul no Estado de Cristandade Colonial

CONCLUSÃO Partimos da hipótese e suposição de que o desenvolvimento social, econômico e político do Rio Grande do Sul está mediado por uma estrutura simbólica e lingüística cujas raízes vêm do Estado de Cristandade. A institucionalização desses símbolos em arquétipos culturais enquadra nosso agir histórico e gera nossa identidade gaúcha. Esses arquétipos, como um inconsciente coletivo, que, ao mesmo tempo é memória (da vida real vivida como economia, política, relação social e cultura), é rito e utopia. Reúnem em si mesmos as cicatrizes do passado e as sementes do futuro. Identificam e exigem superação. Não são apenas padrões culturais que, como caramujos, carregamos às costas. São dialeticamente contraditórios, quase sempre sob a forma de simulação, e, como tais exigem uma superação analética. Localizamos, mesmo que de passagem, o nascimento, a estrutura, o desenvolvimento e expansão do Estado de Cristandade a partir da fusão do Cristianismo dos primeiros séculos com o Império Romano e suas instituições econômicas, políticas, sociais e culturais. Referimos a formação da Europa Moderna com seus impérios mercantis salvacionistas e seu projeto de expansão (sob o pretexto de evangelização-civilização) da África, Ásia e América como nascidos do Estado de Cristandade. Vimos como o projeto português de transformar o Brasil e, consequentemente o RS, em latifúndios, monocultores, exportadores e escravagistas, marca indelevelmente nossa realidade econômica, política, social e cultural até os dias de hoje. Acompanhamos a história do RS, passo a passo, tentando identificar os arquétipos culturais em seu desenvolvimento e manifestação. Em tudo pudemos perceber como os arquétipos culturais do RS, nasceram, foram implantados, implementados no horizonte do Estado de Cristandade, que é sinônimo de Civilização Ocidental, e Cultura Européia, rearticulados em novos matizes em nossas vivências de gaúchos. Na esteira do Estado de Cristandade, nossa cultura, se fez negação das culturas indígenas e africanas, ambas subsumidas no 337


Rio Grande do Sul Arquétipos Culturais e Desenvolvimento Social

projeto colonizador, na condição de negadas. Por outro lado a contradição entre os núcleos ético-míticos semita e indo-europeu aqui encontrou o espaço mais adequado para a sua manifestação. A Europa não teria sido a Europa sem ter encontrado a América para a concretização de seu projeto histórico.513 Ao mesmo tempo temos a sacralização da propriedade absoluta e total do proprietário (da terra, dos trabalhadores, dos produtos, de si mesmo e de Deus) vivendo contraditoriamente com o monoteísmo profético, libertário, e alterativo. Aqui foi o lugar da escravidão mais crassa e lugar da liberdade e da imaginação. Lugar do machismo mais tosco e da ternura sensual explosiva.514 O Rio Grande do Sul, também se fez lugar da contradição à procura de uma superação sintética. Síntese que não tolera mais a totalidade do mesmo515 ou sua negação como se ambas (totalidade e negação) fossem fautoras da igualdade necessária e como propulsoras da história. O índio, o negro, o escravo, o peão, o desempregado, o excluído e que permanecem integrados ao sistema econômico, político, cultural e religioso, como negados (sem igualdade e sem direitos), clamam por uma superação. Sem ela a identidade do RS e do gaúcho permanece apenas uma “simulação”, uma farsa, ou como diz o poema “una mala palabra”. Dizer que a estrutura econômica, política, social e cultural, aqui implantada pelo projeto português, seja definitiva, perene, 513

Ou, como Hegel a denominou “o país do futuro...para todos os que deixam o arsenal de armas históricas da velha Europa...à beira do Mediterrâneo – começo e fim da história universal, seu nascente e seu poente” Filosofia da História, in MENEZES, Djacir, Textos Dialéticos, pg.68-69.

514

A sensualidade “ingênua” como diziam os viajantes, dos índios e negros, e que hoje escandaliza e encanta o mundo inteiro na “festa” do Carnaval, foi menos expressa aqui do que na Bahia e no Rio de Janeiro, também por causa da influência da imigração européia do século XIX, onde o controle, o recato, o pudor, ao modo do Estado de Cristandade, foi mais acentuado.

515

A totalidade (o sistema cultural europeu, fechado em si mesmo e que não aceitava questionamento e relativização, porque era visto como heresia, submetida às formas mais cruéis de controle) estabelecia a mesmidade como única realidade possível e aceitável. Assim, para ela, não era permitido ser índio (com sua cultura, sua religião, sua economia) nem ser negro, a não ser na condição de europeu. Ora índio e negro, na condição do projeto europeu, era servo, escravo, encomendado, miteiro, peão, isto é, para ser era preciso que fosse sua negação. Devia deixar de ser índio e negro para poder ser. Assim, o peão de estância do RS está integrado ao sistema econômico, político, cultural, como e enquanto negado.

338


O Rio Grande do Sul noConclusão Estado de Cristandade Colonial

intocável e que as relações sociais daí resultantes foram definidas pelo destino, pela divindade ou por seu representante - a autoridade – e que as mudanças possíveis são apenas periféricas, acidentais e que nascemos para ser assim, é um atentado contra a humanidade, contra a racionalidade e contra o chamamento histórico que, desde dentro dos próprios arquétipos, exige ultrapassagem. Ora, a síntese só acontecerá como decisão. Decisão que exige regramento, institucionalização, efetividade histórica, sob pena de ficar apenas uma lamúria ou veleidade. Para que seja possível decidir é preciso perceber as alternativas em que fomos colocados historicamente e as sendas viáveis para o futuro. É preciso acompanhar a etiologia da formação de nossos arquétipos de comportamento. É por demais evidente esse estofo cultural gerador de nossos arquétipos. Em todos os valores prototípicos que bordejamos, à espera de investigações mais exaustivas e profundas, está o Estado de Cristandade, por cujos nefastos efeitos o papa pede reiteradamente perdão. É preciso que o ato de contrição do Estado de Cristandade encontre um projeto que, não apenas purgue a culpa psicológica ou moral, mas resgate, reponha o que foi roubado e destruído. Que não apenas tranquilize consciências pesadas pelos pecados herdados, mas que se faça efetiva reparação, efetivo projeto histórico. Do contrário, perdão seria mero ato de cortesia, para não se arrepender. Em toda parte o Estado de Cristandade necessita de uma contrição real.516 Nosso arquétipo de propriedade e seu correlato – a escravidão formal ou de fato, a semi-servidão – contém em si a contraditória impossibilidade de ser. Os polos opostos senhor e escravo não conseguem co-existir, a não ser forçada, ideológica e disfarçadamente. O arquétipo do trabalho vivo (e não apenas a força de trabalho) negando o ócio, indica a síntese possível e real. É anti-ético, imoral, desumano e burro pretender que o trabalho como realização do homem seja posto a serviço de um ocioso.517 É pelo trabalho, e no trabalho (que não se 516

Não se questiona a intenção, a boa vontade e até a santidade de muitos homens que se envolveram com a colonização, pensando estar prestando um serviço a Deus e à humanidade. Questiona-se isto sim, o resultado e a herança que, idolatrando o instituído, pretende transformar um projeto histórico, limitado e até desumano como sinônimo de civilização e de cristianismo, destruindo o caráter histórico das culturas humanas.

517

Oh pampa de tez verde, infinita claridade 339


Rio Grande do Sul Arquétipos Culturais e Desenvolvimento Social

reduz à execução de tarefas manuais, mas que as implica também) que abrange o projetar, o executar, a elaboração do produto necessário à vida, o usufruir, consumir e o repartir, que o homem se encontra com o outro homem (sem que ele seja igual a si, outro eu apenas), através da natureza, na justiça, na verdade e na solidariedade (que são outros tantos nomes da Transcendência). Não basta colocar limites à propriedade, mantendo-a como sagrada e absoluta. Os limites sempre serão formas de exclusão dos mais fracos, cercas que não permitem o acesso. Ou, ainda, a forma pela qual os proprietários organizam sua defesa na perspectiva bem indo-européia de que “amar é odiar juntos o mesmo inimigo”. Os inimigos, como é evidente, serão os não-proprietários. Não basta também dizer que “sobre toda a propriedade recai uma hipoteca social”, ou que a propriedade deva ser coletiva, o que já é algum passo. É preciso aprender com o modo como os pré-semitas utilizavam a terra – a posse em rodízio – , é preciso redescobrir a força de verdadeiras e reais comunidades humanas com solidária participação, e então a propriedade será superada, ultrapassada, negada para patamares mais dignos. Há muitas experiências comunitárias, integradoras, que já apontam para o horizonte dessa possível síntese. Assim o arquétipo familiar e da sexualidade. Negando o machismo paroxístico518 que verteu da cultura indo-européia, através do Estado de Cristandade, recolhe a memória de tantas lutas e conquistas no terreno de um relacionamento igualitário, livre, e não apenas feminista. Aponta, assim, para a possibilidade de identidade cada vez mais profunda de uma masculinidade adulta e uma feminilidade madura, numa síntese de entre-ajuda, confirmação mútua, na beleza da sedução e faceirice, da força e retidão éticas que dão nos ombros do destino. Coloco toda a verdade onde aprendo e ensino que ninguém é propriedade e só se caminha no vento o homem e seu cavalo, o sonho nos caminhos. Na busca do do que é divino se divide até o pensamento. 518

MIRANDA, Luiz de. Livro do Pampa, IV, pg. 11.

O machismo, como foi dito, manifesta-se de múltiplos modos: na rigidez dos gestos de dança, nos lugares sociais do homem e da mulher, na pornografia, nas funções sociais econômicas, políticas, religiosas....

340


O Rio Grande do Sul noConclusão Estado de Cristandade Colonial

segurança e amparo, que permitem a criatividade e inovação e acolhem, alimentam e enviam os filhos para a vida e para a construção de uma sociedade com sempre mais justiça e fraternidade. A necessidade de superação da violência e da miséria como programa que as mulheres levantam para a feminilide do ano 2000, bem indica o rumo da síntese. Ao mesmo tempo que falam do prazer, da festa, da alegria da vida, da sensibilidade, do corporal, e denunciam o que impede a vida, o que trai a vida e a sexualidade em toda a sua dimensão, elas, guardando suas missões históricas de mães, amantes e cidadãs, exigem que as pátrias sejam úteros como elas.519 Os arquétipos políticos apelam para uma síntese que permita uma participação de todos os cidadãos na construção, na administração de um Estado que atenda a todos, porque tem garantido o critério dessa possibilidade: a priorização dos mais pobres, dos mais fracos, dos que não encontram nenhum motivo para estar excluídos.520 Os múltiplos caminhos que levam a isso, exigem sempre a mediação da palavra e da ação participativa. O Rio Grande do Sul corre o risco de esquecer suas suadas participações, suas raízes comunitárias, para enrijecer-se em posturas autoritárias e centralizadoras, posturas que, também, fazem parte de seu arquétipo cultural. Assim também os arquétipos de educação, de recreação e lazer, de arte, ciência e de religião mostram as contradições dialéticas e pedem superação. Uma educação que, fugindo à dicotomia público x privado, reafirme na organização comunitária, sua força e possibilidade. Um lazer que, nas coisas simples do campo e na integração ecológica, mostre as raízes telúricas da síntese. Um lazer que é a festa de quem se sabe fraterno, num mundo mais verdadeiro e justo. E que é festa de cada vitória da vida. Os arquétipos de ciência e arte que guardam a memória dos mitos, das obras, dos caminhos e monumentos desde os mais antigos rastros indígenas, até as expressões mais vigorosas de nossa identidade atual: no canto, na arquitetura, no folklore, na literatura, nas artes plásticas. Os arquétipos religiosos que, contraditoriamente, contêm superstições, submissões, conivências e temores que escravizam, ao 519

O útero é o lugar do acolhimento da vida, o lugar em que o feto se alimenta até alcançar a estatura de homem e então, vigorosamente, é enviado à luz e à vida. A pátria deveria ser assim diziam as mulheres latino-americanas no encontro de Cancun.

520

Nenhum motivo que “los condene a andar sin manta”. 341


Rio Grande do Sul Arquétipos Culturais e Desenvolvimento Social

mesmo tempo contêm cicatrizes de lutas libertárias em nome da dignidade dos índios, das comunidades e do monoteísmo profético que salva, pedem uma síntese para além do Estado de Cristandade. Um novo milênio poderá nascer do apodrecimento de tantas árvores que povoaram o horizonte do RS, para ser adubado numa nova perspectiva histórica. O RS do pampa de horizontes infindos verdeazulados, de serranias vencidas pelo labor de imigrantes, de memórias tão díspares também é espaço e lugar para a síntese.

342


O Rio Grande do Sul no Estado de Cristandade Colonial

ANEXO El Paisano Ensimesmado o La tenebrosa sexualidad del gaucho “El crímen funda simultaneamente la cultura y la técnica y las formas de censura, represión, penalización y militarización com el intento de obtener la concordancia...La gauchesca, más allá de su folklorización, es la mostrage de la conflictiva relación entre la Ley y la Transgresión... La lengua (de los gauchos) es puro combate y si esse combate es desafio, pelea, reto, provocación y duelo entre los sujetos gauchos...com la chusma...La estancia es siempre ilimitada, inaugura el confín y no el limite... el valor de la tierra se percibe en usufructo... Las relaciones sexuales no reguladas por las leyes del contrato permiten la aparición de uniones aberrantes, confirmatorios de la aberración sexual pero que tienden a desorganizar e incluso a violar las leyes de la consanguinidad... com un predomínio de las uniones incestuosas y por ende una destituición de las leyes de la herencia... El combate a muerte entre las leyes del instinto y las leyes de la herencia pasa por el bién territorial y por la propriedad del nombre: una legaliza la outra... El imperio salvaje del deseo... La retorica de la gauchesca es basicamente masculina, su extranheza extrema es la mujer, que solo aparece como prenda, es decir como uso prendário, como mujer que está sola y espera, como prostituta, las quitanderas, o como gaucha...La nostalgia del gaucho frente a las grandes pampas es de hecho defensa contra la colectivización urbana, pero al mismo tiempo es una pertubación, un sistema de desorden que regresa hacia la animalidad perdida...(Amorin traz do gaúcho uma ambiguidade: homoheterossexual, endogamia-exogamia; Martin Fierro traz o épico... ) Hay algo de basilisco y de sátiro en aquella carita afilada y bondadosa...De donde venían esta fiebre de pelear y de matar... Vértigo de sangre que él mismo no acertaba a explicarse... La lógica gauchesca es un intermedio entre la lógica del traidor y la lógica del pícaro, encabalgada entre el saber de la proximidad (el puñal escondido), un saber de la persistencia (tarde o temprano caerá al corral...) y un saber da la falsía (el entrevero o en la oscuridad todos los gatos son pardos), intermediada por el saber del pícaro (un saber distraído organizado por una política de la distracción propia de los camorreros, los rateros y los carteristas), combinada con un saber de 343


Rio Grande do Sul Arquétipos Culturais e Desenvolvimento Social

la ocación, tramada con alevosía, astúcia y disimulo; saber del cachafaz rico en argucias, opuesto al desafío que es siempre cara a cara, própio de la traición. La traición es un delito cívico, ciudadano, legaliza al outro y legitima el lazo social, mientras que la lógica pacaresca es taimada, opera con astucia... Después del primer crimen el gaucho está destinado narrativamente a cometer una serie, por definición infinita, de nuevos y sucessivos crímines... Hay textos de la gauchesca que se originan en una sexualidad invertida y otros en una sexualidad extendida... inversión absoluta...transgresión monstruosa...El hombre puede admitir (sexualmente) todos los otros de uno pero nunca reconocerá identificará - al otro absoluto, que es la Otra... Pero el régimen patriarcal de la estancia con un predominio simbólico de la ley materna genera perturbaciones en las relaciones imaginarias de los personajes y en los comportamientos “reales” de su accionar: la ley la hace la madre, pero la ejecuta el padre... hay una lucha sorda entre la ley masculina y la ley femenina... El crimen de la gauchesca es siempre producto de un dasafío, de un entrevero, de una amenaza de golpe, una defensa frente al ataque al valor gaucho; pero en el folletín gauchesco comienza a diferenciarse el valor de la sangre que corre. El fetichismo funerario es una forma de la gauchesca fúnebre que se opone abiertamente a la gauchesca bufa, como se oponen la necrofilia y la homosexualidad, como se oponen los vivos a los muertos... La sexualidad gauchesca es desreglada, desdobla el régimen dual de las pulsiones y de las marcas de género, se muestra, en sua integralidad que es una integración, como una farsesca campesina muy cerca de las lindes eglógicas del barroco popular. El dinero está ausente en la gauchesca pero no la propiedad, es la mayor garantia de la civilización, pero la propiedad siempre aparecerá como una donación de los otros-dueños, tanto en Amorin como en Gutiérrez. La aparición manifiesta del sexo (sobresalientemente invocado en las incisiones de Blas Castaña) y como levantamiento de la censura que pesaba sobre el gaucho y la gauchesca, por momentos sicalíptica, pornográfica en la contra-parodia sexual (el pico-pene, el porno-pájaro), produce un corrimiento en el desplazamiento de la sexualidad hacia lo Mismo: el otro-homosexual, el otro-pederasta pero nunca radicalmente otro Otro: la Mujer. La gaucha aparecerá no como Invocante sino como 344


Anexo de Cristandade Colonial O Rio Grande do Sul no Estado

Invocada y toda figura de la invocación es una figura ascendente presidida por los Dioses, la Vírgenes o Santos Auxiliares (el Diablo sólo aparece como intromisión, como insulto o como invectiva o como pacto) tanto como apelación o domínio. La mujer aparecerá como concesión o prenda, como garantía de la sexualidad del gaucho y nunca como Otra distinta, nunca sujeto autónomo: entre la gaucha (peyorativo absoluto) y la Nata Gaucha (Azucena Maizani) el nombre de la Gaucha opera como una extensión de la propiedad del nombre gaucho. La Tipaza, otro de los personajes invocados en Odíseo confinado es la Giganta de Fellini, la femeneidad excesiva, in extremis, una sobresaturación de lo femenino, lo femenino redundante máscara de la mujer: maquillaje absoluto acaba en una devaluación de la mostración. La mujer muestra, el hombre demuestra y cuando muestra se feminiza. Si la literatura gauchesca es la narración de la Argentina como ficción histórica, esa ficción es un entrelazado que va desde Hidalgo a Eduardo Gutiérrez, del Chano a Hormiga Negra, de Ramón Contreras a los paisanos de Amorim, del gauderio de Concolorcorvo al gaucherío de Lamborghini, de las fiestas mayas al 17 de octubre, de la Ranchería o el viejo Colón a “las paras en la fuente”, de la degollación a la vistiada , de la aparición de las efigies sacrosantas o endemoniadas a los desaparecidos de la verdadera historia, de la banda cisplatina al bandidaje camorrero porteño, de la lírica a la narración, de la “biblia” al pliego libertario o a la folletinería anarquista, de territorio confederado a nación mitrista, de sucios y malolientes jíbaros del desierto a los cabecitas negras, de estancia a estación, de miseria rancheril a miserables excluidos, de pobres pero limpios a pobres pero harapientos, de los paisanos sodomitas de La Carreta al bufonesco puterío de La China , de lo gauchipolítico a lo gauchipoético y de allí al gauchisexismo. La constituición de un género es también la constitución de una sexualidad. Entre géneros andamos”. ROSA, Nicolás, folhetim.s/d.

345


Rio Grande do Sul ArquĂŠtipos Culturais e Desenvolvimento Social

346


História do Ocidente como História do Estado de Cristandade

I – História do Ocidente como História do Estado de Cristandade 1. O Ocidente na interpretação hegeliana da História “A História como o caminhar na direção da consciência da liberdade e que se corporifica no Estado...A história universal vai do leste para oeste, porque a Europa é absolutamente o fim da história, a Ásia o começo...aqui se levanta o sol exterior, físico, e a oeste se deita; ao contrário lá se levanta o sol interior da consciência de si, que difunde seu clarão superior” No oriente está “a infância da história”.14

Acostumaram-nos a olhar a História a partir dos critérios estabelecidos pelas civilizações indo-européias (especialmente Grécia e Roma) que, pelo Renascimento “civilizaram” a Europa, que, por sua vez, “civilizou” , isto é, europeizou o mundo. Com Hegel, o maior filósofo alemão do século XIX (17701831), aprendemos a olhar a Europa e, especificamente o Império Inglês, a cultura jurídico-política francesa e a filosofia alemã, como centro e culminância da História. A História seria uma só: a História da Humanidade. E esta seguiria, linear e absolutamente, a senda da racionalidade e do progresso que vai da primitividade oriental ao apogeu da “atualidade” ocidental, cujo centro é a Europa. Desta forma, a história da humanidade, a história do universo, a história universal, desde o fim da pré-história, seria assim dividida15 : a) a História Antiga: a começar pela Antiguidade Oriental com as primitivas e incipientes culturas do Egito, da China, da India, dos Medos e Persas, da Mesopotâmia, culmina na Antiguidade Clássica de Grécia e Roma. Essas geraram as grandes e imortais culturas da 14

Hegel, Fil. Da História, in MENEZES, Djacir Textos Dialéticos, 1969 pg. 69-70.

15

Para verificar isso basta manusear um pouco nossos manuais escolares como os de Edward McNall Burns, B. Sarthou... e inclusive os escritos por brasileiros. 25


Rio Grande do Sul Arquétipos Culturais e Desenvolvimento Social

Filosofia, da Administração Política e do Direito. A História Antiga iria desde 4.000 aC. até o fim do Império Romano, em 476 dC.; b) Depois viria a Idade Média (476-1453 dC.), a idade das trevas, do obscurantismo em que a Civilização soçobra no barbarismo e na irracionalidade; c) A Idade Moderna (1453-1789) iniciaria com o Renascimento das culturas greco-romanas (esquecidas na Idade Média). Marcaria também o advento da Europa, da Civilização, das Luzes, da Razão, do Progresso: a certidão de nascimento que cada nação européia faz questão de exibir de si mesma. A visão eurocêntrica situa o homem como sujeito prometeico e quase demiúrgico que, com sua subjetividade criadora do sentido da vida e da história, manipula o universo através da técnica oriunda da leitura matemático-pragmática, como reserva infinita de produção de bens a serem avaliados no mercado de livre-concorrência. A história como progresso ilimitado e indefinido, indeterminado, caminharia para uma sempre-maior liberdade (leia-se concretamente: de mercado). A Idade Moderna também envolveria a façanha européia de sair da periferia do mundo árabe, para criar sua própria periferia colonizando a América, a África, a Ásia e assim europeizando o mundo; d) A História Universal chegaria, assim, à maturidade, com seu ápice na Revolução Francesa (1789), quando iniciaria a Idade Contemporânea. A contemporaneidade da História de todos os homens (e não apenas da história européia, e dos povos europeus) seria o Império Inglês, a Filosofia Alemã e o Direito Francês. É nisso que cada país deveria medir sua contemporaneidade histórica, para saber até que ponto está na Civilização ou na Barbárie. Estar na contemporaneidade é adotar a modernidade européia (e pósmodernidade): do progresso, da racionalidade instrumental, da democracia representativa e do mercado capitalista, e, consequentemente, do nihilismo trágico dos valores. O indo-europeu, pois, seria o portador da civilização e do progresso. A História seria uma só. Iria do Oriente para o Ocidente e a Europa Central seria a atualidade da História, o contemporâneo do progresso. A história dos outros povos, a periferia da História, teria sentido somente enquanto referência ao centro da História que é a Europa. A América, a África e a Ásia só teriam sentido na atualidade contemporânea da Europa. Incluídos na Europa, na qualidade de excluídos. Na qualidade de “desfiliados” e, então, adotados.16 16

Tomamos o sentido de “desfiliação” por analogia ao que diz Robert Castel em suas

26


História do Ocidente como História do Estado de Cristandade

Assim, nós latino-americanos, aprendemos, desde a mais tenra idade, como pessoa e como país, que a essência de nossa identidade e de nosso ser (econômico-político-cultural-social) era a Europa. Lemos a interpretação da nossa história através de livros e autores europeus e seus fiéis discípulos latino-americanos e, quanto mais líamos, tanto menos latino-americanos ficávamos. Mais alienados e perdidos. Ao contrário, o pequeno inglês que lê sua história através de seu historiador Toymbee, quanto mais lê tanto mais identificado com sua terra, com suas torres, seu passado e seus projetos fica. E os acontecimentos que vão de 1500 até hoje mostram muito bem a que ponto chegou essa interpretação etnocêntrica e genocida da História. Resta perguntar se as ditas “celebrações dos 500 anos” não seriam a ratificação sacrificialista operada pela Europa e a aceitação idolátrica de seus parâmetros pelo “escravo” que introjeta em si mesmo um altar para seu “senhor” e o constitui, como diz Hegel, verdadeiramente como escravo.

2. Um contexto para situar o Brasil e a América Latina As civilizações indo-européias ( e entre elas, especificamente a Greco-romana), porém, não nasceram de si mesmas e não são as mais antigas civilizações que a humanidade construiu. Outras as antecederam e não tinham núcleo ético-mítico igual ao dos indoeuropeus, nem lhes era inferior, como quis dizer e fazer entender a prepotência da Europa invasora. Tentaremos, na senda do que nos indica E. Dussel,17 mostrar como a história do Ocidente é, no dizer de Roger Garaudy, apenas um acidente na história. E que ela não é contexto suficiente para permitir compreender a América Latina, o Brasil e o Rio Grande do Sul. Ao entender o Ocidente em sua relatividade histórica, abriremos espaço para outras contribuições que evidenciam outras raízes de nossa identidade. Metamoforses da Questão Social, quando se refere à exclusão e desfiliação operadas pelo salário no mundo industrial. 17

Cf. Método para uma Filosofia da Libertação, especialmente os parágrafos 31 a 33 das Conclusões Gerais quando fala da pré e proto história da América Latina. Pg.221247 e a bibliografia sugerida. 27


Rio Grande do Sul Arquétipos Culturais e Desenvolvimento Social

Destacaremos, para isso, os três maiores e mais significativos núcleos ético-míticos das civilizações “antigas”, observando, mesmo que indicativamente, as civilizações Pré-semitas, as Indo-européias e as Semitas, tentando acompanhar a influência que nos deixaram, quer individualmente quer em suas exclusões e inclusões operadas na História. Se não aceitarmos passivamente a leitura e interpretação da história a partir do unidimensional critério do progresso estabelecido pela Modernidade Européia, resta-nos o espanto da pergunta: Se os homens existem a tanto tempo na terra, por que não apreciar, com cuidado, a criação cultural expressa nas primeiras civilizações? Por que interpretar as primigênias civilizações como “primitivas”, “iniciais”, “atrasadas” em função de uma civilização posterior, recente e que se impôs pela espada e pela lógica? Uma civilização que hoje mostra sua impossibilidade de ser? O homem vive na terra há mais de 3.500.000 anos. Nômade, coletor, pescador, caçador até, no mínimo 18.000 aC. A revolucionária descoberta da pecuária e depois (12.000 aC.) da agricultura, do uso da cerâmica (6.000 aC.) e dos metais e, entre eles, ao final, o do ferro, introduziu novas condições de vida e organização econômica, política, social, cultural. Com o advento da escrita, costuma-se dizer que inicia a História. Obviamente a História como historiografia. “A história das civilizações como macro-sistemas instrumentais ou das culturas como horizontes ontológicos de compreensão, poderia dividir-se em três momentos progressivos: o da organização das seis primeiras totalidades civilizadas; o da irrupção da exterioridade nômade e invasora dos indo-europeus; e, em terceiro lugar, a lenta expansão da exterioridade semita que irá fazendo-se sujeito da história mundial”.18

2.1 Pré-semitas As primeiras seis grandes civilizações que a humanidade construiu são chamadas de pré-semitas. São elas: a dos Sumérios (desde 18

28

DUSSEL. Método...: 222.


História do Ocidente como História do Estado de Cristandade

4.000 aC.), a dos Egípcios (3.200 aC.) ao longo do rio Nilo, a do rio Indo (2.500 aC.)e a do rio Amarelo (1.700 aC.) na Ásia, a dos Maias e Astecas (300 dC) na América Central, e a dos Incas (300 dC) na América do Sul. São como as seis colunas mestras da História da Humanidade. Nelas afloram as mais ancestrais e valiosas conquistas que os homens, ao longo de milhões de anos conseguiram elaborar. E esta “História da Humanidade” interpenetrando influências, utopias e memórias, caminha do Ocidente para o Oriente e não do Oriente para o Ocidente como queria Hegel. Elas serão invadidas e transformadas (econômicapolítica, social e culturalmente) pelos semitas e indo-europeus. Isto acontecerá com a Civilização Egípcia com a invasão dos Hicsos cerca de 1750 aC; com a Civilização Suméria a partir da invasão de Hititas e Semitas cerca de 2.500 aC. Com a Civilização do Rio Indo cerca de 1750 aC. Com a Civilização Shang do Rio Amarelo com a invasão dos indo-europeus em 1122 aC. Com as Civilizações Maio-asteca e Inca desde a invasão européia de 1519 e 1531 dC., respectivamente. As civilizações pré-semitas, com espantosa semelhança entre si, mostram arquétipos culturais, dentre os quais, destacaremos: A posse comunitária e rotativa, e não a propriedade privada da terra; são civilizações urbanas de agricultura de regadio; têm um espaço social evidente para a mulher e não o machismo; supremacia absoluta do comum, do comunitário sobre o individual; o homem integrado ao divino, ao cosmos e à vida e não o individualismo da subjetividade “livre” e a historicidade; o mito com a desfiguração da figura e a deformação da forma para poder significar e não o formal; a integração ecológica e cósmica do homem e não o domínio sobre o universo; a veracidade e a não opressão dos fracos como critério de justiça. Devese notar que essa perspectiva cultural dos pré-semitas era também seguida por inúmeros povos indígenas plantadores e semi-nômades como os que habitavam o pampa sulino e o atual RS.19 2.2 Indo-europeus Provenientes da estepe euro-asiática que vai da Holanda até a 19

Para maior explicitação ver DUSSEL, Método.... Remetemos também para nosso trabalho América Latina: Raízes Sócio-político-culturais. Pelotas, Educat, 1999, 2ª ed. 29


Rio Grande do Sul Arquétipos Culturais e Desenvolvimento Social

Mongólia, os indo-europeus irrompem sobre os povos pré-semitas por volta de 2.500 aC. Luluvitas e Hititas na Anatólia, reinos arianos da Índia, o Império Chinês, Medos e Persas, Império Helênico, Império Romano, os indo-europeus manifestam outra experiência da história e do cosmos cujos arquétipos podemos assim sumariar: pastores de gado, a cavalo e utilizando pioneiramente o ferro, estes povos machistas (não há lugar para a mulher) experimentam a natureza como objeto de domínio, o homem como o proprietário, o dominus, o dono da terra, do gado, dos outros, de si mesmo e de Deus; Deus, como o dia, é meio de dominação; com um monismo ontológico que tudo explica a partir de um princípio lógico, o conhecimento se faz ciência e técnica para o domínio; O homem é animal racional, auto-suficiente, capaz de chegar ao fundamento de tudo através unicamente de sua racionalidade e seu método; essa racionalidade masculina e dualista divide o homem em corpo x alma, em razão x sentimento e desejo, em material x espiritual, em divino x terrestre; o dualismo é também ético e moral separando o público do privado, a religião da vida, a política da economia; o homem enquanto dono e proprietário vive do e no ócio, sustentado pelo escravo; apartando os “cidadãos” livres e ociosos dos trabalhadores, mulheres e escravos, criam um ideal de “democracia” dos iguais para os iguais e para defender-se dos desiguais; a história e a natureza governadas pelo destino que reconduz eternamente ao mesmo começo não permite a liberdade, senão como transgressão e conseqüentemente como castigo; não permite a gratuidade, o perdão, o louvor e o amor; o homem é um indivíduo (uma coisa) e não uma pessoa; a matemática é a matriz de todo o conhecimento: da arte como harmonia, proporção e equilíbrio; da verdade como correção lógica. Em síntese: ser é poder, poder é ter, ter é conhecer, conhecer é lógica, matemática que se faz técnica para o domínio da natureza, dos outros homens, de Deus e de si mesmo; assim se obtém o controle e a segurança, isto é a eudaimonia, a felicidade; a propriedade é o fundamento inclusive de todo o direito.

2.3 Semitas Oriundos do deserto da Arábia, os povos semitas organizarão 30


História do Ocidente como História do Estado de Cristandade

as civilizações do Acádicos (2.500 aC.), dos fenícios, dos babilônicos, dos arameus, dos assírios, dos árabes, dos hebreus dentro do qual nasce o cristianismo. A experiência do semita como beduíno nômade e condutor de caravanas no sol causticante, nos ventos de areia, contrapondo-se à experiência dos indo-europeus, será marcada pelos seguintes arquétipos: a posição originária do homem é o face-à-face, fronte a fronte com o outro homem vivido como “outro” e como liberdade; essa outridade intocável só se alcança pela palavra que se escuta e se acolhe na crença e não no argumento lógico; a outridade se manifesta como mistério do excluído, desarmado, exigindo justiça; a essência da palavra é o escutar; o sagrado aparece como outridade e a natureza como linguagem do sagrado e divino; Deus e o homem são interlocutores: Deus é o totalmente outro do homem que também, à imagem e semelhança de Deus, é outro: ser homem é falar, encontrase com o outro, através do mundo, na nudez do diálogo; Deus, Javé, é um só e nada do que existe é divino senão Ele: o homem não se subordina a nada, nem à natureza, nem a outro homem, nem a si mesmo. Por isso é livre - monoteísmo e liberdade exigem-se mutuamente. O homem é essencialmente profeta no sentido de que não se aprisiona ao status quo de uma cultura como se ela fosse o derradeiro, o absoluto, o definitivo, mas a liberdade perfura toda a realidade e, ligando-se aos desígnios de Deus, ultrapassa o futuro e constrói a história; o homem é uno em seu ser e em seu agir (ético): nem o espírito é divino nem o corpo é demoníaco; o espiritual e o material se implicam; a historicidade com um começo absoluto (Deus criou todas as coisas) e um término, uma escatologia definida (Deus julgará todos os homens) se mede com o critério de prioridade ao menor, ao fraco, ao marginalizado, ao excluído; os bens do universo são de uso de todos os homens, sobre todos os bens recai uma hipoteca social.20 Os arquétipos fundamentais do cristianismo semita são pois os da alteridade: da anima na personalidade do homem e do animus na personalidade da mulher. “Os arquétipos da alteridade propiciam a diferenciação e o encontro igualitário do Eu com o Outro dentro do todo, respeitando suas diferenças. Estes são os arquétipos do amor conjugal, da democracia e da ciência, pois neles a relação Eu-Outro necessita de liberdade de expressão e de igualdade de direitos dentro 20

Para melhor compreensão dos núcleos ético-míticos desses povos pré-semitas, indoeuropeus e semitas remetemos a ZANOTELLI, América Latina, raízes sócio-poíticoculturais. Pelotas, Educat, 1999, 2ª ed. 31


Rio Grande do Sul Arquétipos Culturais e Desenvolvimento Social

da qual se vivenciam as diferenças”.21 “O padrão de alteridade é central do mito cristão no qual é expresso por uma mensagem de amor”.22 E no cristianismo originário a mulher tinha um lugar destacado no padrão de alteridade.23 Para se falar da Trindade de Deus, por exemplo, pensáva-se que a 2ª pessoa, o Espírito Santo, fosse feminino. Estes três grupos de civilizações que combatem entre si, especialmente os indo-europeus e semitas, acabam fundindo-se numa civilização que leva o nome de Cristandade.

3. O Estado de Cristandade: como fusão das culturas semitas e indo-européias e exclusão dos pré-semitas A Europa e sua história nascem da fusão das culturas indoeuropéias de Grécia e Roma com a Semita representada pelo Cristianismo, constituindo o Estado de Cristandade. A Europa nasce e se constitui na Idade Moderna e a Idade Moderna é a versão laicizada do Estado de Cristandade. 21

BYINGTON, 1997: 24.

22

“Pelo fato de ser arquetípico, esse padrão (de alteridade) existe nas culturas expresso de forma variável e mais ou menos intensa, dependendo da época histórica que atravessam”...dominou a pregação de Cristo...e ao lado do misticismo messiânico, a corrente mística da Cabala “cultivavam o feminino místico, interagindo igualitariamente com o masculino e, eram, assim, regidas pelo padrão de alteridade”BYINGTON, 1997: 25.

23

“Os Evangelhos de Tomé, de Felipe e de Maria, desenterrados junto com outros escritos gnósticos, no Egito, em 1945 e que ficaram conhecidos como Biblioteca de Nag Hamadi, atribuem papel muito relevante às mulheres na mensagem de Cristo, especialmente Maria Madalena... que seria uma apóstola iniciada por Jesus, sendo mesmo sua preferida. Pedro, respondeu [a Maria]...Ele realmente falou particularmente assim a uma mulher e não abertamente a nós? Ele preferiu ela a nós?... Maria chorou e disse a Pedro: Pedro, meu irmão, o que pensas? Acreditas, por acaso que inventei essas histórias em meu coração e minto sobre o Salvador? – Levi respondeu a Pedro – Pedro, você sempre foi impetuoso. Agora vejo você atacando a mulher como a um adversário. Mas se o Salvador a valorizou, quem é você para rejeitá-la? Certamente, o Salvador a conhece muito bem. Por isso é que Ele a amou mais do que a nós”... Esses escritos descrevem, também, uma série de rituais dionisíacos, ligados à mulher, à natureza, e ao corpo, inclusive à dança, que seriam praticados pelos apóstolos. BYINGHTON, 1997: 23.

32


História do Ocidente como História do Estado de Cristandade

A civilização indo-européia e a semita confrontar-se-ão permanentemente na História do Ocidente como uma contradição que não admite coexistência. No entanto elas se fundiram numa só e contraditória realidade que se denominou o Estado de Cristandade. O Cristianismo (semita) e o Império Romano (indo-europeu) juntar-seão e, a partir de 313 dC. e constituirão a Civilização Ocidental, também denominada de cristã e que, no fundo, é apenas o Estado de Cristandade. Constituída principalmente a partir do “Edito” de Milão (março de 313), pelo qual o Imperador Constantino (e Licínio) declara a liberdade para toda religião no Império Romano e consequentemente declara livre o Cristianismo, ao mesmo tempo em que se declara protetor do Cristinanismo (leia-se patrono e controlador), e com a declaração de Teodósio de que o Cristianismo seria a religião oficial do Império (387) e religião única do Império (391), a Cristandade estabelecerá o domínio da religião sobre o sócio-econômico-políticocultural do Império Romano e depois Ocidental até 1648, quando, pelo tratado de Westfália, a política determinará a religião como sua ideologia.24 O feudalismo medieval cimentará institucionalmente essa Cristandade especialmente com a ruralização da sociedade, a pulverização do Estado, a privatização da defesa, a hierarquização da Igreja e a divisão estamental da sociedade quase que em castas, a integração dos bárbaros, a contração da cultura para dentro dos mosteiros. O direito romano codificado e adaptado à Cristandade, ao lado do direito canônico, a dogmatização e sistematização da teologia cristã em categorias gregas, o controle da ortodoxia e a perseguição a toda discordância e heresia inclusive pela Inquisição, a adoção da estrutura econômica, política e social do Império como estrutura da Igreja, darão nascimento ao Estado de Cristandade que dominará o horizonte cultural do Ocidente, no mínimo até o Concílio Vaticano II (1962-1965). O Renascimento, a Idade Moderna Européia, as descobertas, o capitalismo mercantil, manufatureiro e industrial, a cultura burguesa, a Filosofia e a Arte, a subjetividade, a Revolução Francesa e os socialismos, o Imperialismo e as crises econômicas, sociais e bélicas do século XX, deitarão raízes no Estado de Cristandade e em suas contradições.25 24

Cf. ZANOTELLI, América Latina – Raízes sócio político culturais – Pelotas, Educat, 1999, 2ª ed: 73 e ss.

25

Cf. ibidem. 33


Rio Grande do Sul Arquétipos Culturais e Desenvolvimento Social

4. Arquétipos do Estado de Cristandade Dos arquétipos culturais que marcam identitariamente o Ocidente como provenientes do Estado de Cristandade destacaremos: a sacralização da propriedade incluindo a questão do trabalho, a sacralização do poder, do machismo, a laicização, a simulação e o mercado. O arquétipo definidor das culturas indo-européias (o da propriedade) e o arquétipo fundamental das culturas semitas (o da alteridade e liberdade), fundidos no Estado de Cristandade como sacralização, transformar-se-ão nos arquétipos de identidade da Idade Moderna. A Idade Moderna será a laicização do Estado de Cristandade e de seus arquétipos. A constituição dos Estados Nacionais como Impérios Mercantis Salvacionistas (Portugal e Espanha à frente), pelo “Renascimento” dos arquétipos da cultura greco-romana, sobrepujando, em força e determinação, aos arquétipos da liberdade (cristã), será a expressão renovada do mesmo Estado de Cristandade, já não mais guiado pela teologia, pela hierarquia eclesiástica e pelos reis e imperadores obedientes e ungidos pela religião, mas pela burguesia e seu arquétipo definidor: o mercado. No mercado e pelo mercado tudo se faz mercadoria cujo objetivo é a acumulação (capital) transformada abstratamente em dinheiro. Assim, essa Europa moderna, Estado de Cristandade laicizado, atira-se sobre a América, a África e a Ásia, europeizando o mundo e levando a todos seus arquétipos de compreensão e organização do mundo. Como evidencia o pensamento posterior, em Hegel a Modernidade mostra sua face radical: a de ser a sacralização do pensamento da subjetividade, como pensamento objetivo e ontologia, a sacralização da democracia representativa conforme a Revolução Francesa e a de ser a sacralização do mercado, então configurado pela manufatura-industrialização do Império Inglês. Assim a subjetividade do “eu penso, logo sou” decorrente do “eu conquisto, logo sou”, do idealismo, do positivismo, se faz “auto-determinação”, como dizia Kant, sem vincular, como o mostrou o Socialismo Utópico e depois Marx, que essa auto-determinação da Europa se fazia em cima de hetero-dependência do resto do mundo em relação à Europa. Essa sacralização da modernidade resulta em idolatria da subjetividade, do 34


História do Ocidente como História do Estado de Cristandade

mercado e da burocracia, e, por isso mesmo, resulta em simulação ideológica (como má e falsa consciência) da liberdade real, da alteridade pessoal, e da “colaboração” econômica. E tudo isso como expressão da contradição ínsita no Estado de Cristandade que unia o impossível: propriedade e liberdade. Essa impossibilidade acontecerá como simulação, em nome do progresso irreversível e impessoal. Às relações pessoais de vinculação e proteção próximas da servidão medieval, seguir-se-ão as relações técnicas e impessoais do mercado e da democracia representativa da modernidade e da contemporaneidade. Por outro lado, a constituição da questão social (a necessidade de inclusão dos excluídos e de garantir minimamente a solidariedade social) desde a questão dos “vagabundos” e mendigos ao final da Idade Média Européia, a questão dos miseráveis “proletários”, até a dos assalariados protegidos do Estado Social e de sua desconstituição formando os “inúteis do mundo” no final do século XX, os “extranumerários” atuais, em tudo permanece a questão da possibilidade real da solidariedade ou de seu mero disfarce: ambos os aspectos contidos no Estado de Cristandade.26 Destacaremos aqui os arquétipos que derivam do Estado de Cristandade, atendo-nos apenas aos mais relevantes e que digam mais respeito à América Latina e consequentemente ao Rio Grande do Sul.

4.1 Trabalho, Propriedade, Mercado O trabalho A América herdará da Europa, pelo menos, 5 dimensões do significado de trabalho: 1. O trabalho como pena, castigo, redenção da culpa originária; 2. O trabalho como auxílio moral, enquanto o trabalhador, em trabalhando, supera os vícios ( a ociosidade e os males dela decorrentes); 3. O trabalho como obrigação que deve ser exigida coercitivamente (porque religiosa e moralmente fundamental) e para evitar que os homens sejam vagabundos ou indigentes (só aceitos quando territorializados e sem trabalho por causa maior); 4. O trabalho livre, subordinado (não à regulamentação corporativa dos ofícios ou à 26

Cf. Robert Castel. As metamorfoses da questão social. Petrópolis: Vozes, 1998. 35


Rio Grande do Sul Arquétipos Culturais e Desenvolvimento Social

regulamentação policial) apenas à livre concorrência e ao contrato. 5. O trabalho como fonte da propriedade (Locke), como fonte da riqueza (A Smith), como meio para a produção industrial que era meio para o lucro comercial, que era meio para o poder, no Mercantilismo, nas Manufaturas, na Industrialização. Esta última dimensão chega tardiamente à América. Mais tardia ainda, chega à América a visão do trabalho como fundamento de toda a produção e como medida de todo o valor (econômico, moral, religioso, político) bem assim como a identidade do homem enquanto homem (Marx). Esta chega ao Brasil no século XX e se põe como questionamento bem depois de 1950.27 Essas dimensões do trabalho foram elaboradas na intestinidade do Estado de Cristandade e esparramadas pelo mundo na expansão do projeto europeu moderno. O trabalho, na sociedade moderna, deixa de ser a “solicitude concentrada” do homem sobre o universo articulando o sentido “nos intervalos da ocupação”28 para se transformar apenas na azáfama ruidosa, entediante a alienadora em busca da mera sobrevivência biológica e de alguns farrapos sociais e culturais. E, mesmo assim, o trabalho já nem guardará a relação do homem com a natureza, a fim de extrair dela um produto para satisfazer necessidades existenciais (alimento, vestuário...). O trabalho, como mera força de trabalho, nem é propriedade do trabalhador. É apenas um meio, uma força de produção nas mãos do proprietário, do capital. O proprietário, por isso mesmo, para ser homem, é ocioso, vivendo da exploração do trabalho dos outros. O proprietário vive do “ otium” e não se envolve com trabalhos “ servis” nem com “ nec-otium” como diriam os gregos. Os “ cidadãos” atenienses, que nos legaram a propriedade como fundamento cultural de toda a significação, faziam questão de demonstrar que viviam do ócio e que não se envolviam com as atividades sub-humanas dos negócios. Assim usavam testas de ferro 27

A ascensão repentina, espetacular, do trabalho, passando do último lugar, da situação mais desprezada, ao lugar de honra e tornando-se a mais considerada das atividades humanas começou quando Locke descobriu no trabalho a fonte de toda a propriedade; prosseguiu quando Adam Smith afirmou que o trabalho é a fonte de toda riqueza; atingiu seu ponto culminante no “sistema de trabalho” de Marx, em que o trabalho se tornou a fonte de toda produtividade e a expressão da própria humanidade do homem” H. Arendt. A Condição do Homem moderno p. 114-115 citado por Castel, R. As Metamorfoeses da Questão Social pg. 230.

28

HEIDEGGER, Martin. O caminho do campo. S. Paulo, Duas Cidades, 1969: 68.

36


História do Ocidente como História do Estado de Cristandade

para agenciar seus negócios e negociatas comerciais.29 A sociedade moderna burguesa, ao mesmo tempo que valora o trabalho com sentido “cristão”, desfigura o sentido do trabalho enquanto ideologicamente construtor da riqueza, do sucesso e da “salvação”, mas cujos frutos são acumulados por aqueles que planejam, com competência e esperteza, a multiplicação do dinheiro e que para ganhar dinheiro não tem tempo para trabalhar. No Estado de Cristandade o trabalho aparece, assim, como consequência do pecado e como caminho para a redenção, tudo determinado pela Igreja (hierarquia) e inscrito na divisão estamental das ocupações que decorrem da vocação que Deus deu a cada homem: “uns foram criados para rezar, outros para governar e outros para trabalhar”. Para que a sociedade pudesse harmonizar a vida social, a complementaridade das funções era essencial. A inscrição do trabalho e dos trabalhadores na estrutura social fazia-se por coação e por dever “religioso”. Nesse contexto o trabalho manual aparecia como a revelação da mais ínfima situação social. Como o trabalho agrícola (dos servos da gleba) estava perfeitamente inscrito no sistema econômico e social, o trabalho manual artesanal não agrícola aparecia como mais degradante ainda. O trabalho manual é considerado indigno, é o sinal do mais baixo degrau social. O trabalho intelectual, um pouco mais digno. Mas o trabalho intelectual não tem valor prático, pragmático para o militar, bem como para toda a sociedade feudal. O trabalho militar ( como em Platão) “com gosto de sangue”, de coragem e de mortificação, embora não alcance a sabedoria intelectual (do filósofo), não é tão indigno como o trabalho manual (servil, corporal, material....). O trabalho do soldado inclui poder, mando, honra, pátria. Quando o trabalho artesanal, inscrito na organização e na proteção da corporação dos ofícios, ao surgirem as burgos que desconstituirão a Idade Média, se fizer respeitado e quando o mercantilismo transformar a manufatura que nasce e se desprende dos ofícios, em fonte da riqueza no mercado, o trabalho agrícola será suplantado e o trabalhador transformar-se-á em operário, proletário, assalariado sempre. O deslocamento da gleba para a burgo dará um novo status ao trabalhador “livre” que será inscrito nos quadros da economia liberal pelo “contrato” e pelas proteções sociais que depois conquistará. 29

GARAUDY, Roger. O Ocidente é um Acidente. 37


Rio Grande do Sul Arquétipos Culturais e Desenvolvimento Social

O trabalho, mesmo quando alardeado como fonte da riqueza, permanecerá sempre no Ocidente como história e estigma daqueles que não tiveram (por graça do rei ou do papa) acesso à propriedade. E se é verdade que o protestantismo trouxe a ética do trabalho e da frugalidade, fundamento ético-ideológico do capitalismo segundo M. Weber, hoje transformada em ética do consumo, é também verdade que “quem trabalha não tem tempo para ganhar dinheiro”. A indignidade do trabalho parece autorizar, para o grupo dirigente e dominante, a exploração deslavada ou disfarçada da produtividade sempre maior do trabalho. Em nome da “inventividade”, do “risco”, da superioridade do intelecto sobre o braço vale a subordinação, a exploração, a inscrição do trabalho na realização dos interesses da classe dirigente. A Idade Moderna, portanto, reduziu o trabalho a força produtiva do capital e como tal, transformou-o, vertiginosamente, em supérfluo. Como o homem se reduz à força de trabalho, tanto o trabalho como o emprego (o trabalho como força), no mercado feito global exclui-se o homem e o trabalho como supérfluo, estorvo, prejudicial.30 O arquétipo do trabalho no Rio Grande do Sul será tributário, sem dúvida da experiência européia (no Estado de Cristandade), tanto no sentido de estigma e destino de pecadores, quanto de fator identitário de classes subalternas. No entanto, a experiência do trabalho comunitário nas Reduções deu ao ex-missioneiro, agora peão de estância, outro sentido que não o da mera subordinação e exploração e que colore o fundo saudoso do folklore gaúcho. Com isso o trabalho, livre e precariamente contratado, de campeiro (lida com o gado, abate, charqueada, couro...) passa a superar, em dignidade, o trabalho simplesmente manual. A habilidade e a destreza, e a liberdade (andarilho, sem casa e sem patrão) parecem dar à rudeza do trabalho campeiro uma dignidade que o afasta do trabalho necessário, controlado, imposto coercitivamente como é o trabalho escravo, ou o trabalho na dependência das relações feudais e proletárias européias. Os imigrantes (açorianos, alemães, italianos...) acrescentarão ao trabalho do peão, a liberdade de iniciativa, o trabalho livre e fator de identidade humana, como fonte única da riqueza e da propriedade. 30

Cf. FORRESTIER, Viviane. O Horror Econômico. São Paulo: UNESP, 1997. Cf. também H.P. MARTIN e H SCHUMANN. A Armadilha da Globalização: 7 e ss. E a constituição da sociedade “ 20 por 80” , prevendo-se que 4/5 dos trabalhadore serão supérfluos no século XXI.

38


História do Ocidente como História do Estado de Cristandade

Tudo inserido no Estado de Cristandade para a qual o trabalho é castigo, penoso e redentor da culpa, obrigatório, necessário: valor máximo para quem é pobre, não tem o dom da riqueza que vem do rei ou de Deus através do papa (ofícios, feudalidades, prebendas, cargos), e não está inserido no circuito da riqueza. O trabalho como obrigação, para o imigrante, passa a ser tão necessário que exclui o lazer (lazer consiste antes de mais nada, em louvar os feitos do trabalho e as dificuldades do trabalho, quanto mais duro, hostil, penoso, melhor). A festa, o carnaval, o baile, a música são associados à vagabundagem e à indigência, ambas severamente reguladas (pelos critérios de carência e territorialidade), controladas e fustigadas. A recreação permitida é aquela que resulta em produção: caçar, pescar; ou quando inseridos no ritual da religião que lhe dá o horizonte e o controle. Os jogos, os bailes serão sempre olhados como desvio e descaminho. Por outro lado, como não poderia deixar de ser numa cultura de escravidão, para os descendentes de escravos no RS, o trabalho sempre permanecerá como a “marca registrada” de uma situação social desumana e que também afeta a cor da pele, e os costumes que vive. Para quê trabalhar? Para dizer que não se é humano, digno, livre? Trabalhar e ser escravo são situações umbicalmente vinculadas. Um homem livre não trabalha. Aliás, foi o que fizeram e disseram os proprietários até bem pouco tempo. Na qualificação judicial a parte senhoril fazia questão de se dizer “proprietário” enquanto a outra parte levava a pecha de “trabalhador” de tal ou qual ofício.31 Não trabalhar é, para o ex-escravo e seus descendentes sinal de liberdade, mesmo com todas as consequências da exclusão do mercado econômico, político, social e cultural. O carnaval passa a simbolizar a folia da liberdade e do não trabalho. Por isso também que, para os cultivadores do trabalho como os imigrantes, o carnaval passa a ser vituperado como perda de tempo, devassidão, vagabundagem. As formas de semi-servidão que o trabalho de descendentes de escravos toma, especialmente na Região Sul do RS, está presente também nos “filhos de criação” e nas franjas mais marginais das ocupações de trabalho.32 31

Dados colhidos em processos judiciais no foro de Pelotas, especialmente antes de 1930.

32

Cf. DALLA VECCHIA, Agostinho. As Noites e os Dias: Elementos para uma economia política da forma de produção semi-servil filhos de criação. Tese de doutorado, no prelo. 39


Rio Grande do Sul Arquétipos Culturais e Desenvolvimento Social

A propriedade Ser homem é ser proprietário dizia a cultura indo-européia greco-romana. A propriedade definirá a organização e o funcionamento da sociedade medieval e da Europa moderna imperial conquistadora. A sacralização da propriedade institucionalizada no Estado de Cristandade originará, na Europa Moderna: 1. um novo fazer (a produção capitalista do mercado em função de si mesmo e de sua reprodução cumulativa); 2.um novo poder (a democracia liberal autofundamentada no poder popular e hegemoneizada pela direção burguesa e laica); 3. um novo saber (a ciência moderna matemático-experimental que multiplicará a eficiência econômica, e a filosofia da subjetividade); 4. uma nova ética e religião do âmbito privado e do privilégio da predestinação.33 A lógica da propriedade instalará, no início da Idade Moderna, o lucro e a mercadoria como o critério da economia capitalista e burguesa, deixando para o esquecimento a questão cristã da usura vista como pecado e traição ao homem. Como se pode ver, a ética cristã da solidariedade fraterna, contradiz o critério indo-europeu e moderno de propriedade. Sua convivência ambígua constitui o Estado de Cristandade.34 Mesmo quando Marx distingue a propriedade privada dos bens de uso da dos bens de produção, pregando a abolição da propriedade privada dos meios de produção, mesmo aí vigora ainda o critério de propriedade como definidor da economia, da política, da dignidade do homem...35 33

“A mais sagrada e a mais inviolável de todas as propriedades é a de sua própria atividade (ao trabalhador), porque está na força e na habilidade de suas mãos; e impedí-lo de empregar esta força e esta habilidade da maneira que julgar mais conveniente, enquanto não prejudicar a ninguém, é uma violação manifesta dessa propriedade primitiva. É uma usurpação gritante em relação à liberdade legítima, tanto do operário quanto dos que estariam dispostos a dar-lhe trabalho” Adam Smith, in Castel, R. Metamorfoses da Questão Social, pg. 232.

34

“A posse e não a propriedade é a forma originária pela qual o homem organiza suas relações com o mundo e com os outros homens. Por ela o homem busca satisfazer suas necessidades. Necessidade não só de alimento, abrigo, segurança, mas também de energia vital que dê sentido à vida e ao viver. A posse se liga diretamente à necessidade e ao uso. A propriedade se vincula não à necessidade e ao uso, mas ao excedente pelo excedente e, nos tempos modernos ela está completamente desvinculada da necessidade e do uso” ZANOTELLI, J. América Latina, pg. 28

35

É bom observar que Marx critica radicalmente todo o valor e a valoração e não

40


História do Ocidente como História do Estado de Cristandade

Na perspectiva cristã e semita todos os bens foram entregues por Deus aos homens que, como depositários fiéis, deverão torná-los produtivos em favor de todos. Apropriar-se dos bens que, por destinação originária, são de todos é pior que ser ladrão. Na consciência dos povos e especialmente na legislação penal o crime de apropriação de um bem depositado em confiança é mais severamente punido que o de furto. É uma traição dupla: rouba os bens dos outros e trai a confiança. Ser depositário infiel é o mais degradante para a vida humana. E quando se diz que “sobre toda a propriedade recai uma hipoteca social” (João Paulo II), na verdade, está se dizendo que a propriedade e a apropriação devem ser apenas uma forma de uso (até exclusivo) dos bens para satisfazer as necessidades dos homens. A propriedade, que em si mesma é absoluta e exclusiva, é negada. A propriedade absoluta que ultrapassa as necessidades é, como dizia Agostinho de Tagaste, um “roubo”. Será ainda a mesma lógica da propriedade que justificará o projeto europeu de conquista da América, da África e da Ásia enquanto empreendimento imperial, salvacionista, escravagista e colonizador. A cruz e a espada unir-se-ão como símbolos e instrumentos da propriedade e apropriação. Da propriedade econômica e sua exploração decorrem o domínio político, e a alienação cultural. A escravidão, em suas múltiplas formas, fará do trabalhador um objeto apropriável pelo dono e senhor. O universo como objeto de apropriação será o modelo para a Idade Moderna. A subjetividade moderna enquanto poder de autodeterminação levada até a deificação também nasce desse arquétipo constitutivo do Estado de Cristandade. Igualmente as relações sociais e a organização da sociedade, a dimensão sexual do homem será marcada pelo arquétipo da propriedade. A propriedade, vista como co-natural ao homem, justificada e sacralizada pelo poder religioso do Estado de Cristandade, será mediada pelo sistema mercantil (que depois se fará manufatureiro, industrial...). No mercado, a propriedade, deixando aos poucos de atender às necessidades imediatas do homem, e superando o feudo e a corporação, se faz abstrata em forma de mercadoria. Já não se pergunta se um bem produzido tem seu valor determinado pela necessidade de sustentar uma família ou não. O que importa, na definição do valor é a apenas o fetiche da mercadoria dos bens de produção. Sua interpretação posterior, porém, se ateve apenas à crítica marxista da propriedade dos bens de produção e da necessária ditadura do proletariado como tese de partido em busca do socialismo. 41


Rio Grande do Sul Arquétipos Culturais e Desenvolvimento Social

produtividade (seu poder de reprodução) da mercadoria em si mesma. Vale, pela lei da oferta e da procura. E a Europa, adolescente e guerreira em sua identidade moderna, atirando-se sobre a América, a África e a Ásia, em toda a parte buscará mercadorias para vendê-las com máximo lucro, porque escassas. Quando os lucros, pelo simples comércio, diminuírem, a Europa se fará, ela própria, produtora daqueles bens e engolfará o mundo conquistado no sistema colonial de produção de bens lucrativos. Assim, a América e, nela, o Brasil serão estruturados como latifúndios, escravagistas, monocultores para a exportação de produtos exóticos e para fundar a ostentação: ouro, prata, açúcar, café...Para obtê-los todos os meios serão justificados: invasão, genocídio, escravatura, e tudo sob o manto da civilização e da “evangelização”. Ser homem é ser proprietário, disseram os indo-europeus e o repetirá o Estado de Cristandade e a Europa Moderna. Ser é ser proprietário. E a propriedade só o é quando absoluta e exclusiva. A propriedade, diziam os romanos é o jus utendi et abutendi (o direito de usar e abusar). Assim, se o homem é proprietário, tem “o direito” de fazer o que quiser com o que é seu. Enquanto absoluta, a propriedade não pode ter limites de espécie alguma. Nem físicos, nem éticos, nem políticos, nem históricos. Assim o homem só será proprietário se a apropriação exclusiva e absoluta se exercer sobre: a terra e seus produtos; os trabalhadores (escravatura) e sobre a família; sobre deus e a transcendência; sobre si próprio (a liberdade como autodeterminação). Assim o homem pretenderá fazer da terra e de todos os seus frutos a expressão de sua propriedade, a reserva de domínio técnico sempre e indefinidamente maior, determinação exclusiva de sua subjetividade individual. Se proprietário, o homem deve, então, dominar os deuses: a religião será um conjunto de truques mágicos para subjugar os deuses e as forças divinas para seus interesses. A esperteza, os ritos, os sacrifícios e as promessas são formas de negociar e conquistar o beneplácito, a concordância dos deuses e, assim, garantir o poder total. A alma do negócio sempre suporá o segredo enquanto possibilidade de enganar e ludibriar o outro. Sempre haverá um perdedor. E os lucros sempre serão atribuídos à inteligência, à superioridade natural, ou ao destino e aos favores dos deuses. A suposição hipócrita de que, no mercado livre moderno, os parceiros sejam leais e solidários, que todos conhecem as regras do jogo e devem 42


História do Ocidente como História do Estado de Cristandade

comportar-se dentro delas, para disfarçar e simular a eticidade de “igualdade, liberdade e fraternidade” é absolutamente contraditória com a real ética “o segredo é a alma do negócio”. Ganha quem tem as informações antes do outro. Perde quem imagina que o outro tenha as informações já ultrapassadas. Se o mercado fosse transparente para todos os parceiros, o lucro seria impossível. Hoje, no tempo da comunicação instantânea, o segredo supõe truques e espertezas muito mais refinadas. Mas o princípio continua o mesmo. Poderíamos perguntar se há diferença entre o lucro obtido pelo engano do outro, pela ignorância do outro, pelo disfarce do segredo, e o roubo, e a extorsão, quer isso seja realizado individual ou coletivamente, com mediação ou não do Estado? Admitida a propriedade como critério absoluto do social e do humano, a ética e a justiça serão, respeitadas as desigualdades, atribuir a cada um o que lhe é próprio. A uns o ócio e o lucro e a contemplação do Bem e do Belo, o mando e a decisão, a outros o trabalho, a resignação e a obediência. Outros ainda, serão encarregados de, com coragem e determinação, manter a ordem assim estabelecida. A minha liberdade termina onde começa a do outro? Então minha liberdade é ilusória, não existe. É apenas a “ sensação de liberdade” de quem ainda não conhece suas limitações. A liberdade é uma ilusão que nos atrai, assim como nos atrai tudo o que é impossível. A própria liberdade apregoada pela Revolução Francesa como bandeira, será reduzida à igualdade perante a lei e à liberdade de empreender e contratar que é exclusividade do burguês, para manter a exploração, a dependência e a escravidão de quem trabalha. Por que não o princípio semita de: a minha liberdade inicia onde começa a construção de tua liberdade? Se proprietário, o homem é aquele que vence (com a espada, com o cavalo e a guerra) os outros, ou os con-vence através da “ espada” afiada e retilínea da lógica que se baseia em um só princípio: a causa primeira, o princípio arcaico (de arxé) de todos os princípios. A apropriação da realidade se faz teoricamente através do conhecimento formal [realidade-sensação-idéia-(ou forma)-juízo-raciocínio-discursoteoria] ou da práxis [o fazer técnico - agir ético e político - episteme e filosofia]. O monismo ontológico e seu contraponto ( o dualismo antropológico e ético) derivam da auto-posição do homem como proprietário. Os outros, as razões dos outros não são necessárias para o conhecimento da verdade. As razões dos outros devem ser combatidas e tal qual o próprio outro, devem ser exterminadas. Isto se faz através de um processo lógico de demonstração. 43


Rio Grande do Sul Arquétipos Culturais e Desenvolvimento Social

O método racional que permite ao homem, apenas e somente com sua racionalidade, chegar ao fundamento de toda a verdade, exclui os outros. O debate, a discussão, o diálogo são apenas jogos de refutação e de subjugação do outro à minha razão. Ouvir o outro, ouvir suas razões, acolher sua verdade é sinal de fraqueza, de impotência, de passividade. Assim ouvir, acolher, escutar, aprender etc. serão atributos dos mais fracos, dos quase-inumanos: trabalhadores e mulheres. No Estado de Cristandade este lugar da fraqueza e exclusão será o dos “leigos“ diante da Hierarquia. A natureza, para o homem proprietário, é o objeto da arbitrariedade. Dela e com ela o homem faz o que quer. A natureza, porém, não admite a arbitrariedade querida pelo proprietário: então ela se “ revolta” e destrói o projeto proprietário do homem. A poluição, a desertificação, a inabitabilidade da terra mostram cada vez mais a inadequação da terra ao arbítrio proprietário do homem. Copérnico já havia advertido: “natura nisi non parendo vincitur” a natureza só se vence obedecendo-a. Tudo no homem se torna contraditório. O outro homem, a mulher, Deus, a natureza e ele próprio não cabem e não obedecem à arbitrariedade do proprietário. Os pré-semitas e semitas, porém, não pensavam assim. Mas, para o Estado de Cristandade, Deus é o maior proprietário, o dono do mundo, o dominus, o senhor, o Basileus, segundo os arquétipos indo-europeus. Por isso Ele é todo-poderoso, onipotente. Porque Ele é o criador de tudo, tudo lhe pertence: o universo, os homens, o corpo e a alma. Ademais, Deus é ainda mais proprietário do homem porque, além de criar o homem do nada, também derramou o sangue de seu Filho Jesus Cristo para redimir e salvar o homem. A relação de criatura e criador é vista em termos de pertença e de propriedade. Ser criatura é depender “como coisa e propriedade vossa”, como diz a oração36 . 36

Confrontando com a revolucionária idéia de um Deus criador de todas as coisas, trazida pelos semitas como o mostra Claude Tresmontant e que mostra o mundo como Dom e novidade real, os indo-europeus visualizam o mundo como propriedade imutável e o homem como objeto da propriedade de Deus. O casamento da idéia de um Deus absoluto (Princípio Primeiro, Causa, explicação e fundamento racional) como exercício da vontade de poder sobre o universo por parte do homem, com a de um Javé Criador, locutor do universo, como comunicação e diálogo não foi suficientemente entendido no Ocidente. A isto agregamos ainda o fato de o Estado de Cristandade ter determinado como definitivo e encerrado o debate em forma de dogma. Ora a Criação de Deus como Liberdade e a apreensão do criado como experiência de liberdade não cabem nos estreitos limites de nossas determinações.

44


História do Ocidente como História do Estado de Cristandade

Se Deus é o proprietário de tudo e todo o poder lhe pertence, o papa, último grau da Hierarquia Eclesiástica, como Vigário de Cristo e representante de Deus na terra é quem administra todos os bens em nome de Deus. Dele é todo o poder e a propriedade, e ele concede poder e propriedade a quem julgar oportuno. Se o papa não conseguir exercer todo o poder pessoalmente, por limitação física, ele delegará o exercício ao rei para que, em seu nome, o exerça. Quem não obedecer ao papa e a seu delegado, enquanto delegado, desobedece a Deus, ferindo a relação de propriedade. É um usurpador, um ladrão dos bens e dos poderes de Deus. Como tal é criminoso e pecador. Este princípio da propriedade, vista na dimensão e com o conteúdo do direito romano como o “jus utendi et abutendi” ( o direito de usar e abusar), é contraditório com o critério cristão da pobreza (S. Francisco de Assis), do serviço, da partilha, da liberdade e da sobriedade como acentua o Concílio Vaticano II. A propriedade, repetimos, sacralizada pelo Estado de Cristandade, constituirá, na sociedade moderna, o valor definidor da economia, da política, da educação, da religião. Os outros ( a família, mulher e filhos, os trabalhadores) serão instrumentos de efetivação, de realização, de expansão de sua propriedade. O homem (macho) é proprietário da mulher e dos filhos. Poderá fazer deles o que quiser: matar, vender, usar. Assim o machismo será decorrência da propriedade e o “complexo de Édipo” da cultura ocidental também. O proprietário, porém, não poderá trabalhar, sob pena de perder a condição social, ideológica e cultural, de proprietário. Em seu arbítrio e soberania não poderá sair de seu “otium” para viver do “nec-otium” provendo os meios para sobreviver. Ele vive e determina os fins. Ele é o próprio fim, o telos de tudo. Ele é também necessariamente proprietário de deus. Como Prometeu, conhece os segredos todos do universo e dos deuses. Ele é lúcido, iluminado, e por isso é capaz de compreender tudo a partir de Por isso se pode pensar a relação com Javé como se fosse relação com Deus; nossa relação com Deus como de pertença e dependência apenas; e a espiritualidade como submissão a um comando, obediência tartamuda. Ninguém nega que dependamos de Deus e que a ele devamos obediência estrita. Mas reduzir a relação a essa dependência a exemplo do que o Estado de Cristandade preconizava para a relação leigo-hierarquia, patrão-empregado, chefe político-súdito, sem a grandeza da relação amorosa e livre, é negar a originalidade do cristianismo onde Deus se faz servidor até a morte e faz das crianças e pobres sua epifania e revelação. Mt. 22, 1-14; e Mt. 25, 31-46. 45


Rio Grande do Sul Arquétipos Culturais e Desenvolvimento Social

um só princípio que tudo ordena e controla. A Filosofia Ocidental, enquanto constituição onto-teológica de um primeiro princípio que garanta o arcabouço de todo o saber, na segurança lógica de quem o faz, pode ser lida, então, como a apropriação do Absoluto pelo homem. O proprietário, através da força lógica de seu pensar, (pensa que) domina tudo, inclusive deus. Sua “relação” com os deuses ou com deus é a manifestação de concorrência, da necessidade de vencer o transcendente e pô-lo a seu serviço. Vence-se o transcendente ou com a lógica ou com o comércio de promessas e sacrifícios. O proprietário é sempre um “pagador de promessas”. Na relação do proprietário com Deus não há, nem pode haver, o louvor, o perdão, a gratidão e o dom. Seu sacerdote será apenas um adivinho e um exorcizador de males e agouros. A novidade e a surpresa de um Deus que se revela e da resposta de um homem livre, não cabem aqui. Antes de mais nada, porém, o proprietário precisa ser dono de si mesmo. Dono de seu corpo e de sua alma, dono de seus atos, de sua memória e de seus desejos. Só assim o proprietário se julga autodeterminado, livre, homem. Diante da impossibilidade de ser proprietário da terra e de seus frutos (ela se rebela e o mata), da mulher e da família, dos trabalhadores, de deus e de si próprio (o corpo não lhe obedece, os desejos ultrapassam-no, a memória o trai e conduz), o “proprietário” experimenta a vida como fracasso, tragédia, absurdo, “nojo”. E Deus não se deixa tocar e controlar. O homem proprietário é, assim, um projeto impossível. O homem é um desejo inútil.37 O fracasso, a impossibilidade, a inutilidade, o destino, serão então a racionalização,38 a simulação da propriedade. O modelo da modernidade européia levará ao auge essa ideologia e simulação. Ao contrário da posse, que é o direito de usar de uma coisa segundo sua finalidade e destinação e segundo as necessidades de quem usa,39 a propriedade trará como consequências: a) Ser homem é ser absolutamente solitário (condenado, por si próprio à sua própria liberdade:solidão), como dirá J.P.Sartre. É impossível a companhia e a solidariedade; apenas a dissimulação de auto-suficiência, de ser “vencedor” e que, por exigir vencidos (não há 37

Cf. a obra literária e filosófica de J. P. Sartre.

38

No sentido que lhe dá a Psicanálise.

39

Como o indicavam as primeiras multimilenárias culturas pré-semitas...das quais participava a visão de nossos índios que povoavam o RS, especialmente os guaranis.

46


História do Ocidente como História do Estado de Cristandade

vencedores sem vencidos) se crispa em inveja e ódio de contendores. É impossível ser co-proprietário. O proprietário só se une a outro proprietário como tática para vencer um inimigo comum que lhes é superior. Assim teria razão ainda Sartre quando diz que: amar é odiar juntos o mesmo inimigo. Uma vez vencido o inimigo comum, os proprietários converter-se-ão em digladiantes entre si, até que um só seja o proprietário. A concentração de renda, em níveis cada vez mais universais e mundiais segue esta exigência originária do Ocidente. A globalização é a conclusão de um processo que, estruturalmente, tinha esse endereço, desde a sua gestação e nascimento. b)Os “outros”, para além dos limites da propriedade, são estranhos, desconhecidos, são sempre invasores da propriedade e do ser; ladrões, concorrentes, usurpadores do ter e do ser, que não permitem ao homem proprietário ser “si mesmo”. Roubar ou impedir a propriedade é, para o proprietário, roubar-lhe o ser, porque sua identidade é a propriedade. Impossível a solidariedade e o amor, a lealdade e o perdão, o louvor e a festa.. c)O homem para ser livre, deve também e fundamentalmente ser proprietário de si mesmo, dono de seus atos,40 sem limites: o homem quer e necessita ser Deus, com todas as características de Deus (todopoderoso, onisciente, autosuficiente...) e como o homem não consegue ser Deus, então ele é um fracasso. O homem é então um projeto impossível. A esperança e a utopia serão então mera ilusão, disfarce, traição à objetividade e seriedade do homem real. A vida é um absurdo: um projeto para o nada, um ser para a morte, como dirão alguns intérpretes de Heidegger.41 Os outros, que o impedem de ser, porque também são livres e querem ser deuses, são a minha impossibilidade: os outros são o inferno (Sartre). A propriedade será constituída na Sociedade Moderna como fundamento metafísico, antropológico, ético e religioso do ser e do agir, do pensar e do valorar, do produzir, do comerciar, do consumir e de todas as instituições. Será o fundamento das relações sociais, políticas, culturais. Será o próprio fundamento da liberdade. A liberdade (como os outros valores correlatos do cristianismo: comunidade, 40

A Modernidade Européia ensinou-nos a ver o homem como subjetividade absoluta, constituidora de sentido e valor, o homem como “ sujeito da história” , como artífice de sua própria salvação. E isto tudo pode ter dois sentidos opostos: o homem como proprietário de si e de tudo ou a não sujeição do homem ao arbítrio e prepotência de um proprietário.

41

Cf. Ser e Tempo e as explicações filosóficas sobre “ser para a morte”. 47


Rio Grande do Sul Arquétipos Culturais e Desenvolvimento Social

alteridade, pessoa, participação, amor, justiça, solidariedade, fé, esperança, caridade...) será apenas a justificação aceitável da propriedade, dissimulação de suas características desumanas e suicidas. A propriedade ( em sua máxima expressão de riqueza, bem estar, felicidade) e sua lógica da acumulação será o fundamento e a manifestação da salvação (Calvino). Em nome da propriedade devem curvar-se a autoridade da Igreja e do Império, a ética e o Estado, transformado agora em democracia liberal e república positivista. A propriedade e a apropriação do mundo serviu também para contexto, texto, pretexto e condição para que a Sociedade Moderna gerasse sua identidade na Filosofia da subjetividade, do racionalismo, do iluminismo, do idealismo, do romantismo e do nihilismo. O socialismo, enquanto prega a propriedade coletiva dos bens de produção, sem discutir a propriedade em si mesma, sem discutir o valor e a valoração em si mesmos como Marx42 ensaiou, sem discutir a propriedade privada dos bens, inclusive os de uso e de consumo, sem questionar a própria propriedade como fundamento de toda a negação do homem, parece ter resvalado no mesmo caminho. Neste sentido o socialismo também é um projeto da cultura ocidental, dentro do Estado de Cristandade e experimenta as mesmas contradições. Aqui também o homem continua a ser visto como onipotente, super-homem, individual ou coletivamente, sem limite ético ou moral, proprietário, na verdade, sem “alteridade”. E sem a alteridade que reconhece a prioridade radical do excluído do sistema do mercado, simplesmente porque ele é trabalho vivo que ultrapassa toda a força de trabalho, o socialismo e a utopia do comunismo se perdeu, por vezes, nos enredos da propriedade. E a dialética da luta de classes perde-se, então, na simples e redutora contradição. O conflito se perde no conflito. É impossível, assim, superar o conflito. E qualquer outro agregado à dialética do conflito que pretenda superá-lo (como o comunismo final enquanto utopia e dever-ser e que também é retirado do Estado de Cristandade 42

Está certo Marx quando atribui à propriedade privada dos meios de produção a causa dos grandes males que assolam a sociedade e especialmente aos trabalhadores e que é preciso abolir a propriedade privada (Manifesto:89). Tem razão quando diz que “o trabalho é a fonte de toda a riqueza e de toda a cultura” (Crítica ao Programa de Gotha) Daí, porém, não se pode inferir que os males são apenas os derivados da propriedade privada dos meios de produção, mas que a propriedade em si mesma, enquanto jus utendi et abutendi é, na verdade, a grande causa dos traumas que o homem vive.

48


História do Ocidente como História do Estado de Cristandade

em sua raiz semita) será afogada na contradição da guerra e do conflito insolúvel e no sacrificialismo. Pretender que a dialética leve à superação da dialética, sem partir explicitamente da possibilidade de sua superação, a analética relação de alteridade, é cair no vazio da impossibilidade teórica e real. E essa impossibilidade deriva da propriedade e da apropriação. A apropriação do universo realizada sob o prisma da objetivação proposta pela ciência moderna, será aceita também pelos marxistas como critério de compreensão de toda a realidade, inclusive da história e seu processo, da ética e do conhecimento. Assim, diante da tarefa que a humanidade tem de superar sua pré-história natural onde predominam os interesses particulares (de grupo ou de classe) que “obstaculizam a transparência e o auto-controle efetivo da atividade humana e impossibilitam que os homens em ação solidária, assumam a responsabilidade da história...história feita pelos homens associados, a práxis solidariamente responsável e planificada deve substituir a liberdade ilusória das ações, contraditórias entre si, dos indivíduos e dos grupos”.43 Se o homem se define essencialmente como proprietário e apropriador, tudo e todos os outros (família, mulher, trabalhadores, sociedade, direito, justiça, moral e sentido ) são apropriáveis, utensílios, meios de expandir o domínio e a propriedade. A propriedade se justifica por si mesma e em si mesma enquanto se multiplica como capital. A apropriação é exclusiva e absoluta. Inclusive a apropriação que o homem faz de si mesmo para si mesmo: a subjetividade como constituidora do sentido e do mundo, tendo como único critério a si mesma, incluindo Deus enquanto constituído pela consciência como sentido imanente que ela dá a si mesma, e tendo como única transcendência o horizonte que ela estabeleceu de si, em si e para si mesma. O outro homem, como dirá Hegel, a outra consciência, é um outro eu, constituído pelo eu, como contraposto a si mesmo para poder exercer a egoidade constituidora. Não há , então, transcendência ao homem e à consciência. A própria transcendência é imanência. Esse sentido sacral e absoluto da propriedade fará parte da história do Rio Grande do Sul.

43

APEL, La Trasformación de la Filosofia, pg. 346. 49


Rio Grande do Sul Arquétipos Culturais e Desenvolvimento Social

O mercado como auto-reprodução da propriedade O homem que, segundo o Estado de Cristandade moldado ao estilo indo-europeu, é dono e proprietário da terra, dos bens de uso e de troca, dos outros e de si mesmo, o homem que é, portanto, sujeito da história, é “livre”. Será bom e ético tudo o que satisfizer essa sua liberdade no sentido negativo de não ser impedido de buscar o que quer e de não ser forçado a fazer o que não quer. A liberdade fundamental, dirá a Idade Moderna liberal, será a liberdade econômica, de empreender e contratar. O estuário dessas liberdades chamar-se-á “mercado” . No mercado onde tudo adquire valor e preço, a terra, os bens, as pessoas, o trabalho, o lazer, e até a salvação, tudo será mercadoria. O ser constitutivo da mercadoria é o valor de mercado e que gerará o capital. O mercado tudo regula e harmoniza. Assim como Deus, onipresente, onisciente e onipotente, o mercado premia os bons e competentes e castiga, exclui, extermina os incompetentes. Os economica, social, política e culturalmente excluídos, são excluídos por sua própria e exclusiva incompetência. Os competentes e vencedores são eticamente bons porque vencedores, pré-destinados por Deus para a salvação como diria Calvino. Os excluídos demonstram, em sua incompetência, que são maus e não receberam a bênção, como diria M. Weber sobre o calvinismo. Pretender, distorcer o mercado, buscando inutilmente conhecer suas leis e, pior ainda, intervindo em seu funcionamento para satisfazer as necessidades dos excluídos (através de políticas sociais) é um pecado e um crime contra Deus, contra o homem e contra a história. A compaixão pelos fracos e excluídos não é virtude, é pecado, fraqueza. Se os pobres e desempregados são excluídos do mercado pelo “ divino” mercado não cabe aos vencedores atrasar a história retirando do mercado recursos para atender políticas sociais de socorro aos necessitados. O egoísmo e a competência, a esperteza e a ganância são a virtude. Assim o liberalismo e o mercado são arquétipos de interpretação que nascem do Estado de Cristandade na dialética da oposição entre propriedade e liberdade, entre propriedade e alteridade. Mas que é o mercado? Em primeiro lugar, e sem considerar a história das sociedades antigas, o mercado era o lugar onde os comerciantes vendiam suas mercadorias trazidas do oriente e introduzidas na Europa feudal pelos 50


História do Ocidente como História do Estado de Cristandade

caminhos que, precariamente, interligavam os vários feudos e povoados. A encruzilhada desses caminhos será o lugar da constituição das feiras que, aos poucos, e com o fruto do lucro comercial, transformar-se-ão em burgos e pequenos centros comerciais. Depois, o mercado será, não só o lugar do comércio mas o modo de ser próprio de uma economia mercantil. Mercantilista, manufatureiro, industrial e pós-industrial, o mercado será o arquétipo definidor da economia, da política, da cultura e até da religião européia. O mercado assumirá cada vez mais as características do “deus” do Estado de Cristandade (e que não é o Deus de Jesus Cristo e dos cristãos): êle é a mão invisível e onipresente que regula todas as relações econômicas e sociais e por isso políticas e culturais, como a Previdência divina, na versão de Adam Smith. Ele é o juiz onisciente, todopoderoso, e inefável (inacessível à razão e ao coração) da história que premia os competidores competentes com o sucesso, com a riqueza e o poder, e castiga os incompetentes com a exclusão, a desfiliação e a eliminação. O mercado ( da livre concorrência dos proprietários) seria a própria lei da natureza em atuação. O próprio deus insondável que leva a história para frente, para o “progresso” sem fim.44 É o mercado que constitui e determina o Estado ( não como a representação de todos) como guardião do mercado frente àqueles que pretendem interferir no mercado. Ninguém conhece o mercado e ninguém conhece melhor a economia e a felicidade de todos do que o mercado. Pretender conhecer e interferir no mercado para dele extrair recursos econômico-financeiros para manter incluídos no mercado aqueles que o mercado excluiu, por culpa exclusiva dos excluídos incompetentes, é deturpar a natureza das coisas, a natureza da economia e da história. É um desserviço a Deus que criou os homens livres para competir. A compaixão é, então, não uma virtude, mas um pecado. A virtude determinada pelo mercado é o egoísmo. Se cada um for competentemente egoísta para cuidar de seus negócios, tudo irá bem e o mercado abençoará aos ganhadores. Premiá-los-á com o paraíso do consumo privilegiado. O destino dos perdedores é a exclusão, o inferno do não-consumo, da miséria e da fome. Assim, os pobres, os 44

Cf. FRIEDMANN, M. Capitalismo e Liberdade, 2ª ed. São Paulo: Nova Cultural, 1985; & Rose Liberdade de Escolher: o novo liberalismo econômico, 2ª ed, S. Paulo: Record, sd. HAYEK, Friedrich A. “A Pretensão do Conbhecimento”. Humanidades, vol II, n. 5, out-dez/83, Brasília, UNB. FUKUYAMA, F. O Fim da História e o Último Homem. Rio de Janeiro: Rocco, 1992. – Confiança: as virtudes sociais e a criação da prosperidade. Rio de Janeiro: Rocco, 1996. 51


Rio Grande do Sul Arquétipos Culturais e Desenvolvimento Social

desempregados, os órfãos, as viúvas, os estrangeiros serão objeto (quando o forem) da “caridade” piegas daqueles que ficaram no obscurantismo da religião medieval, ou daqueles que nisso buscam aquietar sua consciência culpada pelo roubo direto que praticaram. Não cabe este sentimento “inferior” aos vencedores do mercado. No mercado a liberdade será reduzida à liberdade de contratar e empreender, sem outra lei que a da oferta e da procura, buscando o maior lucro com o mínimo de custos. A propriedade definirá, assim, a liberdade. Os arquétipos da “liberdade, fraternidade e igualdade” como bandeiras da burguesia que assume o poder político na Revolução Francesa, serão, na verdade, a fixação da simulação como fator de identidade da Civilização Ocidental. Assim, a política, a economia, a ciência moderna, a filosofia, cultura , a literatura e a arte, a religião serão diversificadas formas de simulação da sociedade moderna. Simulação da propriedade e do homem como proprietário. Se a propriedade fosse exposta em sua crueza e crueldade lógicas, seria rechaçada pela maioria perdedora, pelos fracos como se referia Nietzsche. A economia já não será um modo de produção de bens para a satisfação das necessidades humanas e sua teorização, mas será a constituição da “abstração” da necessidade transfigurada como desejo e valorada pelo mercado. O valor de um bem, no mercado, não corresponde à capacidade de saciar necessidades, mas apenas e exclusivamente à capacidade de saciar desejos criados e incentivados pelos próprios “sacerdotes” do mercado. A lógica do mercado busca transformar os desejos em necessidades. O que vale não é a necessidade mas o desejo, porque este estabelece o valor dos objetos de desejo no mercado. O valor abstrato se fará dinheiro e este vale por si mesmo e para sua acumulação. O mercado será assim o “deus” (ídolo) ao qual tudo deve ser sacrificado: a liberdade, a honra, a pátria, a família, as culturas americanas, africanas, asiáticas e os próprios trabalhadores que sustentam o mercado com suas lágrimas e com seu sangue. Assim, a economia, o mercado e o dinheiro são o “locus” sagrado da simulação. E, como rebote necessário, o serviço ao mercado e a suas leis determinará aos servidores que, em nome da salvação (eterna, da família, da pátria...) não usufruam dos bens e riquezas do mercado, mas que se privem, que poupem, centavo por centavo, para acumular, para enriquecer. E o ideal do homem que se “faz” a si mesmo acumulando e multiplicando centavos (o self made man) estimulará o 52


História do Ocidente como História do Estado de Cristandade

consumo dos outros, para ampliar o mercado, para aumentar a riqueza dos competidores no mercado. A glória dos competidores é o acúmulo, o crescimento, mesmo que isto, “fatidicamente”, não beneficie a ninguém.45 Sempre fica o suposto e pré-suposto de que o crescimento econômico aumenta o bem estar de todos. Isto o próprio mercado providenciaria. Não seria preciso, pelo contrário, decidir politicamente repartir a riqueza e os frutos do trabalho. Aliás o trabalho, pensa-se, é apenas um instrumento do mercado. A produção, a circulação e o consumo medem-se pelo e para o mercado. A solidariedade seria um fato resultante do mercado e não uma decisão.46 A globalização e a mundialização do mercado, como expressão progressiva da lógica interna da propriedade,47 que tende a ser absoluta, fez do Ocidente (e que na História é um acidente) o modo de ser de todos os continentes e de todos os países da terra. O Brasil, inserido há 500 anos neste processo, mostra-se hoje, sôfrego em inserir sua economia, sua cultura na globalização. Na última década, e especialmente a partir de 1994, com o plano Real a concentração econômica é espantosa. No período 1994-1999, fizeram-se no Brasil 1.747 fusões, incorporações e aquisições de empresas. A participação do RS foi de 4% e a de São Paulo 38%. Enquanto isso, os economistas apontam entre os riscos da globalização “a exacerbação do nacionalismo na Europa, as valorizações artificiais nas Bolsas de Valores (quebra de empresas e famílias) e a vinculação do crescimento da economia do planeta ao desempenho dos EUA”,48 a quebra dos capitais locais e o consequente desemprego. Por outro lado, para sustentar um Estado teleguiado pela economia globalizada, e que deve arcar com os custos da economia especialmente na forma de dívidas públicas interna e externa, os 45

. Isto, pelo menos, nos séculos XVIII e XIX. Hoje o consumismo leva de roldão a própria inspiração religiosa calvinista, como o mostrava Max Weber

46

Cf. R. Castel. As metamorfoses da Questão Social, especialmente o capítulo VIII.

47

Já diziam Marx e Engels, no Manifesto do Partido Comunista (pg. 77) “A grande indústria criou o mercado mundial, preparado pela descoberta da América. O mercado mundial acelerou prodigiosamente o desenvolvimento do comércio, da navegação e dos meios de comunicação por terra. Este desenvolvimento, por sua vez, refletiu na extensão da indústria e, na medida em que a indústria, o comércio, a navegação e as estradas de ferro se desenvolviam, crescia também a burguesia, multiplicando seus capitais e deixando em segundo plano as classes legadas pela Idade Média”.

48

KPMG Fusões e Aquisições, Correio do Povo de 3/4/2000, pg. 16. 53


Rio Grande do Sul Arquétipos Culturais e Desenvolvimento Social

cidadãos devem pagar cada vez mais impostos. Enquanto o IBGE mostra que o PIB brasileiro cresceu 0,82% em 1999, a arrecadação

tributária cresceu 11,23%. Nos últimos 13 anos a carga tributária brasileira cresceu 295,63%. Sendo que a carga tributária representou 29,9% do PIB em 1998 e 32,99% em 1999. O Brasil ocupa o 2º lugar em carga tributária entre os 11 países comparáveis pelo Instituto Brasileiro de Planejamento Tributário, ficando atrás da Alemanha (41,3%) e bem à frente do Chile (19,9% do PIB), da Argentina (18,3%) e do Peru (14,3%). Isto demonstra que o Brasil e consequentemente o RS está, não apenas inserido, mas amordaçado na lógica da globalização do mercado. Sem falar no fato de que a carga tributária recai em mais de 2/3 sobre a renda mais baixa (de até 3 salários mínimos) enquanto a grande riqueza, a grande propriedade, os bancos... em muito pouco contribuem. Acresentes-se a isso que, este Estado, sustentado pelos mais pobres, não devolve aos pobres o que deles arrecada. Os benefícios sociais resultam em privilegiamento dos mais ricos e na manutenção de um sistema concentrador de renda espantoso. Assim se mundializa e se implementa em cada país, em cada região do mundo, o ideal proprietário do indo-europeu, sacralizado no interior do Estado de Cristandade e se faz tema, problema e drama da humanidade. Sirva de exemplo a reunião, a portas fechadas, realizada em fins de setembro de 1995, no Fairmont Hotel, São Francisco, Califórnia, realizada pela elite política e econômica do mundo ( os maiores empresários com Mikhail Gorbachev, George Bush, George Shulz, Margareth Thatcher: 500 representantes ao todo) para debater as perspectivas do mundo para o século XXI. Conclusão: “ Vinte por cento da população, em condições de trabalhar no século XXI bastariam para manter o ritmo da economia mundial...Um quinto de todos os candidatos a emprego daria conta de produzir todas as mercadorias e prestar todos os serviços qualificados que a sociedade mundial poderá demandar. Assim, aqueles 20% participariam ativamente da vida, do lazer e do consumo – seja qual for o país. Outros 1% ou 2%, admitem os debatedores, poderão ser acrescentados por parte daqueles que herdam alguma fortuna...E o resto? Cerca de 80% das pessoas aptas a trabalhar ficarão sem emprego?...Prosaicamente, os 54


História do Ocidente como História do Estado de Cristandade

dirigentes discutem as dosagens capazes de manter os supérfluos 4/5 da população entretidos, à custa do esforço do 1/5 privilegiado.Está fora de cogitação o engajamento social das empresas privadas, já assoberbadas pela concorrência global. Outras organizações que cuidem dos desempregados. Os debatedores esperam forte colaboração de fundações beneficientes, dos voluntários de serviços sociais, das comunidades de bairros e agremiações esportivas de toda a espécie, bem como das eventuais alianças entre esses grupos. ‘Tais atividades até poderiam ser valorizadas com modestos pagamentos, garantindo assim, a auto estima de milhões de cidadãos’.”49

É a previsão da sociedade “20 por 80” onde 20 % vivem de privilégios e os restantes deverão se contentar com pouco mais do que pão e circo.50 Nas águas do mercado nadará a história do RS, hoje, em meio à correnteza da globalização.

49

H.P. MARTIN e H. SCHUMANN. A Armadilha da Globalização, 1998: 12.

50

O relatório do Banco Mundial relativo ao ano 2000 refere que um sexto da população da terra, notadamente os habitantes da América do Norte, da Europa e Japão, detém quase 80% da renda do planeta, o que representa em média US$ 70 diários por indivíduo. Enquanto isso, 57% da população mundial das 63 nações mais pobres tem apenas 6% da renda, representando menos de 2 dólares por dia. E se a extrema pobreza caiu de 28% para 24% entre 1997 e 1998, um bilhão e duzentos milhões de homens continua sobrevivendo com menos de 1 dólar por dia. E que na América Latina, mais de 90 milhões de crianças e adolescentes vivem nesta pobreza. Diz ainda que os 800 bilhões de dólares consumidos anualmente na corrida armamentista , esperava-se que tivessem sido distribuídos para ajudas solidárias; ao invés disso, a indústria da morte continua fomentando guerras de inspiração étnica, nacionalista e religiosa... Mesmo as iniciativas de perdoar cerca de um bilhão de dólares da dívida de 37 países mais pobres continua emperrada pela burocracia internacional. E as disparidades crescem ainda mais, sendo o Brasil um modelo dessa perversidade na partilha da renda. Os negros e os camponeses são os que mais sofrem. E o Nordeste brasileiro com 30% da população brasileira, tem 62% dos pobres do Brasil. Zero Hora, 15/04/2000 pg. 20. 55


Rio Grande do Sul Arquétipos Culturais e Desenvolvimento Social

4.2 A organização social Para o Estado de Cristandade e, consequentemente para a sociedade moderna, reafirmamos, a natureza diferenciada dos homens determina o status social, a posição política, a função religiosa e os bens econômicos. Assim como há três classes (ou castas) de homens criados por Deus, com capacidades, propriedades, faculdades, potenciais diversos (Deus fez uns para trabalhar, outros para rezar e outros para governar) assim haverá três estamentos sociais com vocações diversas. Será “injusto” atribuir a um estamento o que é “próprio” de outro estamento. E é Deus quem estabelece a vocação de cada um segundo a natureza que lhe é própria. Ao rei compete o poder como propriedade, como direito que Deus lhe concedeu e foi reconhecido e chancelado pelo papa. Aos servos, trabalhadores e mulheres, como na visão platônica (do homem dividido em três almas) cabe o trabalho, visto como sacrifício, castigo, penitência para purgar os pecados e assim salvar a alma. Aos que nasceram para rezar, que receberam as chaves do Reino dos Céus, compete o poder de ligar e desligar, de interpretar a mensagem cristã autenticamente, de administrar e gerir os recursos da salvação com exclusividade. A Igreja é, então a proprietária ou depositária do saber, e da salvação. Como sociedade perfeita, infalível e eterna, ela tem o poder de incluir e excluir os homens do objetivo maior da vida que é a salvação. A excomunhão enquanto banimento da Igreja, e da salvação, será a grande arma de controle da ortodoxia e da obediência. A hierarquização das funções sociais em estamentos estanques, a hiper-hierarquização das funções na Igreja que coincidia com o Estado e a Sociedade, a exclusão e marginalização dos “leigos”, a privatização das funções do Estado pulverizado em miríades de feudos quase soberanos, com atribuição de todos os poderes ao homem e redução da mulher ao âmbito de lides domésticas, a organização do direito de primogenitura como mecanismo de transmissão da propriedade, o controle e a proibição de relacionamento amistoso entre os sexos, tudo isto marcará a organização social forjada na Idade Média e legada à Modernidade. Esses padrões culturais serão levados ao mundo todo pela conquista e evangelização dos povos operadas pela Europa da Cristandade. O RS será marcado por elas. 56


História do Ocidente como História do Estado de Cristandade

4.3 A sacralização do poder O poder é divino. Ser é poder. Participar do poder é participar da divindade. O poder tudo justifica. Quem tem o poder tem a graça. O Estado de Cristandade, desde Constantino (313 dC), erigiu o poder e a ordem, a centralização e o consenso para a segurança e a estabilidade do Império, como prioridade e meta. O Estado de Cristandade será um Estado absoluto que exigirá uma obediência e um “ consenso” absolutos, que fetichizará as instituições, as normas, os ritos religiosos ou não. 51 Da norma evangélica de “quem quer ser o maior seja o servidor dos outros” das primeiras comunidades cristãs; do serviço fraterno e, por isso, ‘escandaloso’ do amor ao próximo e aos excluídos, passa-se para a tentação indo-européia do poder como sinônimo de ser. O Deus Javé, que se manifestou definitivamente em Jesus, cujo modelo de vida era o amor incondicional e o perdão, passa a ser interpretado como o Deus todo-poderoso, criador do céu e da terra (e por isso como sendo dono, proprietário e senhor do céu e da terra). O Deus amor, o Deus que se entrega como Dom e Graça, como generosidade absoluta passa a ser sinônimo de um proprietário rico que distribui privilégios segundo o arbítrio absoluto do seu querer. Tudo é de Deus. Dele é todo o poder. Na terra, o delegado, o vigário de Deus é o papa. A ele foram dadas as chaves do Reino dos céus e todo o poder sobre a terra: o poder espiritual (diretamente) e o poder temporal (indiretamente, uma vez que este influi naquele). O poder religioso é traduzido em categorias gregas indo-européias, como o governo absoluto, ao qual se deve irrestrita e cega obediência; poder de vida e de morte e que é exercido na arbitrariedade do detentor do cargo. Poder de interpretar, de ensinar, de organizar a sociedade, de controlar, de excomungar e de condenar à morte ou de perdoar. Enfim, o poder do amor, do perdão, da 51

A unidade complexa de fé e religião dos primeiros séculos do cristianismo separarse-á na dicotomia de religião com seu “credo, moral teologia, santos e santas, hierarquia, templos, festas, ritos e celebrações” cada vez mais vinculada à estrutura político-administrativa do Império Romano por um lado; e por outro a fé como “encontro vivo com Deus. Aqui não valem normas. Emudecem as palavras. Cessam as imagens. Empalidecem as celebrações, em face da grandeza transbordante de Deus...” cada vez mais restrita a experiências místicas de santos e de hereges. Cf. BOFF, 1998: 88. E assim, como esta síntese de fé e religião se fez Estado de Cristandade a partir de 313, assim também permanecerão separados em oposições contraditórias céu e terra, corpo e alma, moral e ética. 57


Rio Grande do Sul Arquétipos Culturais e Desenvolvimento Social

fraternidade, da misericórdia passa a ser interpretado em termos de propriedade, em termos de poder político. No Estado de Cristandade confundem-se o poder político e o religioso. Muito embora se diga que a Sociedade tem duas cabeças (uma espiritual e outra temporal), no entanto, só uma delas vigora: ora a religião determina a política (o mais vigente até 1648), ora a política determina a religião (depois de 1648). Desnecessário dizer que, tanto o ponto de vista religioso como o político estão imbricados, condicionados pelos interesses econômicos e se expressam culturalmente. Assim o Estado de Cristandade estruturar-se-á com um conjunto de instituições (econômicas, políticas, sociais, culturais), de normas e leis: desde as que reconhecem a liberdade do cristianismo (313), as que estabelecem um só credo (325 e 381), as que tornam o cristianismo religião oficial do Império Romano (380 e 387), as que estabelecem o cristianismo como a única religião admitida no Império (391), as que consolidam as leis romanas num conjunto legal e canônico (531)...A divisão política do Império (em Províncias, Dioceses, Prefeituras, municípios) será a do Estado de Cristandade com os bispos (nas dioceses) e o papa (no centro do Império) exercendo também funções administrativas e jurisdicionais e o Imperador convocando concílios, tornando equivalentes os títulos e as precedências do papa52 e do imperador, do governador e do bispo...A cobrança de impostos e privilégios, na decadência do Império, especialmente a partir da metade do século IV, será feita também pelos bispos e párocos quando nas funções de Governador ou Prefeito. Aos poucos, com o recolhimento de doações, e até de doações fictícias como é o caso da de Constantino (que teria doado todo o Império ao papa53 ), o Estado de Cristandade formará um imenso 52

Em visita ao Egito, o papa João Paulo II, em 25 de fevereiro de 2000, anunciou que, em carta intitulada Memória e Reconciliação: A Igreja e os pecados do passado, a ser publicada neste ano no dia 2 de março, pedirá perdão à humanidade especialmente da “utilização da violência a serviço da verdade”, pela “intolerância e a violência contra os dissidentes, pelas guerras de religião, pelos abusos durante as cruzadas, pelos métodos empregados durante a Inquisição” pedirá perdão aos índios e africanos reduzidos à escravidão... por ter feito pouco em favor dos judeus exterminados... propõe ainda a reformulação do papel de Sumo Pontífice e do Vaticano acenando com um retorno às modalidades anteriores ao ano 1.000 quando, ao bispo de Roma, era reconhecida a ascendência moral e não jurídica sobre os outros patriarcados, entregando para os Concílios as grandes definições doutrinárias...prega ainda a reunificação dos credos cristãos e o fim das guerras de religião. Jornal Zero Hora, 8/3/2000, pg. 26.

58


História do Ocidente como História do Estado de Cristandade

patrimônio de bens imóveis e móveis que chegará a 1/3 das terras da Alemanha na época da Reforma (1529), ou 1/3 das terras da França na época da Revolução de 1789. Para controlar as propriedades dos Estados Pontifícios, para controlar políticamente os reis e imperadores, para extrair os altos impostos com que são taxados os reinos da Europa e manter assim a burocracia do Estado de Cristandade, não se medirá as conseqüências como as de esgotar os melhores esforços na demonstração do poder do Estado. O Estado de Cristandade levará assim à eclosão dialética suas contradições internas (indo-europeu x semita), à espera de sua superação. Durante o feudalismo, que marcará toda a Idade Média (e, em muitas regiões da Europa só será abolido na Primavera dos Povos de 1848), a maioria absoluta da população é serva da gleba. Não prisioneiro de um senhor, mas prisioneiro da terra, o homem trabalhador será explorado em seu trabalho, primeiro pelo senhor feudal que, muitas vezes era clérigo, e depois pela burguesia na revolução manufatureira e industrial. A queixa daquele bispo francês que, às vésperas da Revolução Francesa, apelava ao rei pela situação miserável dos camponeses que, em 19 tipos diferentes de impostos, pagava 85% de sua produção ao Estado e morria de miséria e fome, é suficiente para evidenciar que o Estado de Cristandade, como todo Estado Liberal posterior, era excludente e explorador. Definitivamente o Estado de Cristandade não é sinônimo de Cristianismo. Como experiência histórica “ cristã” é, ao mesmo tempo, a sua contradição. Nela, os senhores transmutar-se-ão de senhores romanos em senhores feudais e, depois, em senhores burgueses, concentrando o poder e a riqueza no próprio fato da exclusão da grande massa dos trabalhadores. Os protestos, as rebeldias, as denúncias e resistências de muitos homens lúcidos ou simplesmente humanos como os “ Francisco de Assis” , os “ Bartolomeu de las Casas” na invasão e conquista da América Indígena, os projetos “ socialistas” de emancipação indígena como os das Reduções que influenciarão definitivamente os “ socialismos utópicos” e “ científicos” do século XIX europeu, os “ quilombos” de tantos Zumbi, são exemplos de exigência de superação das contradições dialéticas do Estado de Cristandade. Os cerimoniais de suserania e vassalagem do feudalismo 53

Cf. ZAFRA, Antonio Castro. Los Círculos del Poder: Apparat vaticano. Madrid: Editorial Popular, 1987: 125. 59


Rio Grande do Sul Arquétipos Culturais e Desenvolvimento Social

buscavam alicerçar em Deus o poder político, através da religião, com juramentos sobre os livros sagrados, com unções e outorga de poder e exigência de fidelidade absoluta ao suserano. O sistema judiciário que incluía a superstição das “ provas de Deus” ou ordálias e que admitia qualquer prova, incluindo a delação, o segredo, o “ rumor público” sinônimo de fofoca, as confissões extraídas sob violentas torturas, como era o caso do Tribunal da Inquisição, era , antes de mais nada, o exercício da mais desbragada prepotência e arbitrariedade para o controle rígido de uma sociedade que experimentava as contradições do Estado de Cristandade. O poder econômico-político e a violência a serviço da “verdade” e da “evangelização” é a contradicão ínsita na experiência do Estado de Cristandade. Assim também como o mostra L. Boff,54 o arquétipo herói/ heroína do homem cristão que, no amor incondicional aos mais pobres encontrava a superação de si mesmo enquanto pecador (desamparado e limitado); enquanto peregrino e caminhante em direção ao Reino que aqui começa; enquanto lutador e artífice de sua superação; enquanto mártir que se entrega pela vida e pela Ressurreição; enquanto sábio que reúne realidade e desejo na celebração da memória que é Esperança e Escatologia; enquanto mago que, no arquétipo supremo de Jesus Cristo, o Deus-homem, reúne a imagem quebrada do universo numa só síntese; esse arquétipo findará por ser identificado com o do guerreiro que mata e vence, com o do poderoso, com o do proprietário que tudo conquista ou que sofre e morre masoquistamente porque lutou mesmo que contra a vida. Por mais significativo que seja o fato de o Estado de Cristandade ter amenizado as guerras de destruição mútua e de ter instituído o “cavaleiro” protetor de viúvas e desamparados, isto acabou sacralizando a guerra e o heroísmo guerreiro que bendizia a Deus por ter permitido o massacre de tantos índios inimigos como dizia Hernán Cortez. O Estado de Cristandade sacralizou o poder e a violência desde Constantino.55 54

A Águia e a Galinha.

55

“Historicamente não é correto computar a violência da Conquista ao caráter nacional de espanhóis e portugueses. Na avaliação da conquista espiritual das Américas, não está em jogo a crueldade de uma ou outra nação européia, mas sobretudo, a ambivalência do próprio Cristianismo. A integridade do Evangelho não garante a integridade da ação histórica dos evangelizadores. Embora a destruição de vidas e a colonização de povos não encontre argumentos no Evangelho, de fato encontrou colaboradores entre os evangelizadores. Em nome do Evangelho, cristãos destruíram sinagogas de judeus, santuários de mouros e templos de pagãos, queimaram “bruxas”

60


História do Ocidente como História do Estado de Cristandade

Dentro do Estado de Cristandade, porém, há também, como dissemos, permanentemente, outra linha de pensamento e ação que contradiz a sacralização do poder e da violência. São por demais significativos, como dissemos, os exemplos de Francisco de Assis e sua amiga Clara, de Bartolomeu de las Casas e um bom grupo de bispos missionários das Américas. O peso, porém, inflexiona a balança para o lado da sacralização do poder e da violência. As relações sociais e políticas de escravidão como nunca a História da Humanidade conheceu, serão simuladas em forma de “democracia”. A democracia moderna (“todos são iguais perante a lei”) fruto das vicissitudes da “fortuna” e da habilidade dos homens com “virtù” como diz Machiavel, na verdade é o lugar de poucos, dos que têm o domínio econômico do mercado e, através dele, implantam e hereges. Desde sua oficialização constantina, no século IV, o Cristianismo compaginava o anátema do outro com as bem-aventuranças do mesmo. Basta ler o que os santos padres escreveram sobre judeus e pagãos. Desde as Retratationes de Agostinho, teólogos e missionários, como José de Anchieta, justificam as atitudes repressivas contra os outros com o compelle intrare (Lc 14,23). No ano 388, Ambrósio (339-397), bispo de Milão, defende os incendiários da sinagoga de Kallinikón, no rio Eufrates, e qualifica a sinagoga de “um lugar da incredulidade, a pátria da ausência de Deus, o esconderijo da loucura, condenado pelo próprio Deus”. No ano 385, na decapitação de Prisciliano, em Trier - apesar dos protestos de Martinho de Tours - , pela primeira vez, a espada do Imperador parece ter servido aos interesses da Igreja. Meio século mais tarde, o papa Leão Magno se declara satisfeito sobre a intervenção do Estado no caso dos priscilianistas. A severidade secular foi, segundo Leão I, de grande utilidade à clemência eclesiástica. São Bernardo de Clairvaux (falecido em 1153), em seu tratado sobre As glórias da nova milícia, manda os soldados de Cristo combater “sem temor algum de pecar, por colocar-se em perigo de morte e por matar o inimigo. Para eles, morrer ou matar por Cristo não implica criminalidade alguma e traz uma grande glória”. Com a fundação de ordens militares assistimos a uma verdadeira militarização ideológica da questão missionária. Mais tarde, Tomás de Aquino (1225-1274), pondera que o castigo corporal dos heréticos pode, se levar à sua conversão, representar um benefício: “sunt etiam corporaliter compellendi”. Na bula Romanus Pontifex, de 1454 - 40 anos antes da conquista das Américas, portanto – o papa Nicolau V concede ao infante D. Henrique “faculdade plena e livre para invadir, conquistar, combater, vencer e submeter” sarracenos, pagãos, ou quaisquer inimigos de Cristo, e – como um tipo de incentivos fiscais - o direito de conduzi-los à servidão perpétua, de confiscar seus bens e ocupar suas terras. O Pe. Congar mostrou como na História da Igreja o texto da Vocação de Jeremias (1,10: “eu te constituo, neste dia, sobre as nações e sobre os reinos, para arrancar e para destruir, para exterminar e para demolir, para construir e para plantar”) legitimou até há pouco tempo práticas coercitivas contra o outro. SUESS: 10-11. 61


Rio Grande do Sul Arquétipos Culturais e Desenvolvimento Social

as leis de inclusão e exclusão social. O direito é dos proprietários. A eles cabe, por “justiça” a satisfação de todos os seus desejos, como “mérito” próprio, como expressão de sua competência e de sua natureza superior. Aos não-proprietários cabe o sacrifício e a resignação, a poupança e a frugalidade porque assim um dia serão também proprietários. A justiça é a manutenção da ordem e do equilíbrio, superando os conflitos e isto mais pelo consenso gerado ideologicamente do que pela força. É fundamental dissimular o uso da força e sempre usá-la com eficácia quando for necessário segundo explicitou Machiavel. Deste modo a democracia moderna sagrada e intocável, portadora das luzes e do progresso é também o gesto organizado da simulação da liberdade e da alteridade. E a liberdade? Ela passa de liberalidade, de entrega e liberação ao outro, a mero livre-arbítrio, auto-posicionamento frente aos outros, um estar junto a si ( Bei-sich-sein) e contra os outros, no conflito de propriedades. De liberdade como experiência de alteridade, de sacralidade do outro, de intocabilidade e respeito à interioridade do outro, de transcendência real, ela passa à obediência à norma e à ordem, à verdade estabelecida pela propriedade. Liberdade sim, mas dentro da norma, dentro do controle, dentro dos limites e da “responsabilidade” impostos pela propriedade. Assim se poderá dizer que “meus direitos vão até onde começam os direitos do outro”, minha liberdade vai até onde começa a liberdade do outro, como se a propriedade admitisse limitações. A liberdade como fonte egoísta de conflito e oposição, se faz dialética da guerra, justificativa de toda a dominação. A liberdade regulada, a liberdade “responsável” será exigida pelos proprietários da ordem e do progresso. A liberdade será então exclusivamente a liberdade de ter, de comerciar, de empreender e contratar. A liberdade que o empresário burguês quer, para contratar livremente com o operário proletário a força de trabalho pelo preço que ele impuser e que será “livremente” aceito pelo trabalhador sem os “privilégios” medievais de proteção da corporação. Foram abolidos todos os privilégios medievais na histérica e histórica noite de 26 de agosto de 1789, incluído no rol dos privilégios o único “privilégio” que os desgraçados trabalhadores ainda mantinham: o da proteção da respectiva corporação. Conflito de duas vontades, infinitamente desiguais de patrão e proletário. O jogo das desigualdades e do sacrificialismo do mais 62


História do Ocidente como História do Estado de Cristandade

fraco passa a ser visto como o próprio jogo da liberdade. Assim, para os detentores do capital, liberdade é o paraíso protegido por suas leis e acordos, por suas armas, por seus meios de comunicação e por seus conhecimentos. Para os despossuídos do capital, liberdade é apenas o exercício fictício de vontade de aceitar as condições de trabalhar para apenas sobreviver e se reproduzir como força de trabalho. Aos poucos, o exercício da liberdade como simulação da liberdade fará pensar que a liberdade é ilusória, que ninguém é livre, mesmo os senhores “devotados” à expansão e ao progresso de seus negócios não são livres como querem, que a liberdade é apenas uma vivência psicológica. Ser livre é, então, apenas, pensar que se é livre. A liberdade não tem consistência ontológica, real. É apenas um estado de espírito. A liberdade será, então e também, a justificativa para a nãosolidariedade e para eliminar, na arena dos jogos de liberdade que é o livre mercado, os perdedores. “Aos ganhadores tudo” dirá hoje a afirmação proverbial americana. E o valor e o conceito de liberdade, então, servirão como refúgio contra todo questionamento pela morte dos outros. A liberdade é fatídica, incompreensível, obra de Deus e da “fortuna”. Aprisionado em si mesmo, o proprietário já não poderá liberarse à vida, a seu próprio desejo, ao amor e ao encontro com o outro, à verdade, à justiça, a si mesmo. O poder sacralizado, como finalidade da política e da vida do homem, estará presente em todas as etapas da história do RS.

4.4 O conhecimento: razão instrumental e simulação Na lógica da propriedade, a apropriação mais valiosa é a que melhor possa reproduzir a propriedade e se reproduzir. A propriedade como valor, resultante da produtividade que se expressa em mais valia, é acúmulo geométrico do poder de produção ou de sua própria reprodução.56 Assim se, na Idade Antiga européia, os bens mais valiosos 56

É por demais revelador o que Marco Raúl Mejia, em O Pêndulo das Ideologias (1994) referia: “ Nosso planeta tem 5 bilhões e 329 milhões de habitantes. Destes, 3 bilhões e 200 milhões vivem na pobreza; 1 bilhão vive com menos de um dólar por dia e 2 bilhões sustenam-se com 1 a 2 dólares diários. Um bilhão e 200 milhões 63


Rio Grande do Sul Arquétipos Culturais e Desenvolvimento Social

eram o gado e não a terra, os bens móveis sobre os imóveis, com o mercantilismo o ouro e a prata e as especiarias, com a industrialização a máquina, a matéria prima, e a força de trabalho, hoje o bem mais valioso é o conhecimento. A propriedade sobre esses bens é decisiva. E assim, a lógica da apropriação chega hoje ao absurdo da apropriação do homem sobre as relações mais íntimas e vitais como o amor, a estética corporal, a criatividade que deve ser explorada, à saciedade, para que a acumulação siga seu ritmo frenético e ascendente. O homem moderno, incluindo o dever-ser no ser histórico, que se deixa apreender e analisar cientificamente; pre-supondo que toda a história, passado, presente e futuro, possa ser objeto científico, “crê poder converter (a história) em objeto de uma análise científica, objetiva e materialistamente, incluindo o futuro que dever ser criado, antes de mais nada, “criticamente” e mediante a “práxis revolucionária”...Ao integrar, deste modo, a “práxis subjetiva” dos revolucionários, criticamente comprometida, no conceito dialético da realidade (da história) cognoscível objetivamente, parece que, para o marxismo seja desnecessária uma fundamentação ética da práxis subjetiva...”57 A realidade como processo histórico necessário e determinado dialeticamente não deixa, então, espaço para a subjetividade, - conceito em que se converteu o de “alteridade” semita no Estado de Cristandade. As ciências modernas, de matriz matemática, cujo modelo é a Física, trarão em si a precisão e a certeza, oriunda da observação dos de habitantes contam 75% da renda do mundo. Esses 20% mais ricos da população consomem 80% dos recursos do planeta, produzem 75% das emissões que poluem o ambiente mundial e, ao mesmo tempo consomem 75% do total de energia que se produz no planeta. Morrem , diariamente, 27.000 crianças de doenças causadas pela fome: desnutrição, diarréias, pneumonias. No caso específico da AméricaLatina, a última década foi denominada pelo Banco Mundial de década perdida. O aprofundamento da crise fez com que a dívida externa passasse de 140 bilhões de dólares para 430 bilhões. Nossas exportações aumentaram fisicamente 62% mas a renda caiu 17%, fazendo que o PIB dos nossos países caísse, entre 1981 a 1990, cerca de 10,1%. Ao mesmo tempo dava-se a transferência de recursos de capital dos nossos países, visando os altos interesses norteamericanos, num volume que ultrapassava 200 bilhões de dólares. Em 1980, o continente tinha 160 milhões de habitantes em condição de pobreza. Em 1990, esse contingente subia para 185 milhões, segundo cálculos da CEPAL, no ano 2.000 teremos 202 milhões. A renda per capita reduziu aos níveis de meados dos anos 70” . Esta é a lógica da propriedade que se expressa no mercado cada vez mais globalizado e concentrador de riquezas. Para 2000 cf nota pag. 55. 57

APEL, La Trasformación de la Filosofia, pg. 346-7.

64


História do Ocidente como História do Estado de Cristandade

fatos, da verificação e da matematização e oferecerão a técnica para a conquista do universo (desmitificado pelo pensamento cristão). Apropriar-se do universo e das leis que regem a natureza como um demiurgo todo poderoso será o mito e a simulação do homem moderno. Em nome deste fetiche, destrói-se as fontes da sobrevivência humana. E a ciência absolutizada em si num positivismo que hoje beira às raias do risível, impediu ao homem a compreensão mais ampla de sua vida e de sua história.58 A história reduzida à história européia e esta ao mercado é a maior simulação da história e do humano que se conhece. Hoje, na era do computador e da internet, simula-se, mais do que nunca, saber e aprender, comunicar-se e falar, no mutismo quase autista de um teclado e uma tela. O “virtual” é, não apenas um processo de criação e liberdade, mas dentro dos parâmetros da modernidade, um simular e uma fuga da realidade, especialmente do outro homem. A arte, a literatura, a filosofia do “cogito ergo sum” do homem que pensa constituir a realidade e o sentido, a partir de seu próprio pensamento, do homem que se sabe dominador dos outros povos e culturas, o homem da subjetividade e que descrê da possibilidade de acesso à realidade porque essa realidade se lhe mostra irredutível ao pensamento e ao desejo, o homem elabora o pensamento como pensamento da simulação. E a dúvida fecunda sobre os limites e possibilidades do conhecimento, na modernidade, no racionalismo absoluto ou no irracionalismo pós-moderno se faz modo de simulação. Para que o real não se imponha ao conhecimento, para que as exclusões operadas pelo mercado não sejam audíveis, para que o clamor por justiça não inquiete a sensibilidade do mercado e de seus sacerdotes, estabelece-se a simulação e o nihilismo como filosofia. E a crença no poder do mercado foi crescendo a tal ponto que hoje se transformou em religião, em teologia. É preciso ter fé que o livre mercado resolverá todos os problemas e superará todas as crises. O fundamento para tal crença? É um imperativo categórico da razão prática, poderíamos dizer, arremedando Kant. Não precisa de fundamento teórico, da razão pura. O mundo é dos homens práticos, dos “executivos” que até sabem dar bons conselhos de sucesso empresarial. O pragmatismo e o positivismo é uma fé que se impõe 58

Cf. a sugestiva obra de CAPRA, Fritjof. O Ponto de Mutação: a ciência, a sociedade e a cultura emergente. 65


Rio Grande do Sul Arquétipos Culturais e Desenvolvimento Social

com seus dogmas e suas “santas inquisições”, impedindo o repensar crítico a não ser sobre assuntos inocentes, periféricos, de erudição e de estética. E a educação elabora a simulação como criticismo, como iluminação, como elaboração do homem cidadão. Para isto seria salutar recordar o projeto de lei que Condorcet apresentou ao parlamento francês em 15 de maio de 1789, propondo uma educação universal, pública, gratúita e para ambos os sexos de todos os franceses. Era uma proposta burguesa enquanto os burgueses estavam fora do poder. Veio a Revolução em 14 de julho do mesmo ano. Veio a Constituinte e a Constituição de 1791. O poder está nas mãos da maioria burguesa. O mesmo Condorcet apresenta um plano de educação que será “universal na medida do possível”, gratuita apenas para os alunos da pátria (geniais e pobres), pública, obviamente porque a educação deveria substituir a igreja na formação do cidadão... É a simulação...Hoje no sistema “europeu” globalizado a escola se depara com a incapacidade da solidariedade, com a insensibilidade total dos alunos que, incentivados pela mídia do mercado aos quais a família e os grupos sociais fazem coro, defendem os privilégios da casta dirigente como se fossem seus próprios privilégios, a qualquer custo. Buscam segurança e são prisioneiros de sua própria segurança. E, como nunca, o mercado sabe fabricar objetos de segurança para saciar esse desejo transformado em necessidade. A junção impossível e dialética desses dois arquétipos (propriedade e liberdade) produzirá na Idade Moderna a cultura da simulação ideológica. Assim poderá ser lida a Filosofia, a Ciência e a Política da Modernidade. Com efeito, a Filosofia definirá o homem como subjetividade constitutiva da realidade e do sentido do mundo. Já não haverá espaço para o acolhimento da novidade do mundo e de outro homem: a relação será definida pelo poder demiúrgico do “eu conquisto” , do “eu penso”, do “eu decido” do “eu gozo”. A liberdade, assim reduzida ao poder de autodeterminação,59 não tem porque impor a si própria limitações e deveres. E quando ela traduz apenas o status

59

Na visão semita a autodeterminação da liberdade é consequência da vinculação amorosa e de alteridade e não constitutiva daquela relação. Porque amo, sou livre e não vice-versa. Na Modernidade, a liberdade como propriedade que o homem tem sobre si mesmo, independente do outro homem e do amor ao outro homem, pode ser a negação do outro e o suicídio autista do homem que se encontra com sua própria impossibilidade.

66


História do Ocidente como História do Estado de Cristandade

do proprietário burguês, ela se disfarça de lei natural, de imperativo e destino, de divindade. A liberdade, bem como o direito, a democracia e a cultura permanecem atados e determinados pela propriedade e pelo mercado. A Filosofia Moderna, em seu apogeu no século passado e, especialmente no pensamento de seu mais evidente pensador (Hegel) será a expressão da sacralização da propriedade e de suas simulações: o mercado, a democracia representativa, e a religião do Estado de Cristandade.

4.5 A religião sacrificialista – a ética da exclusão A religião também se faz simulação. Ao invés da revelação e liturgia do sagrado que se manifesta em cada rosto de homem exigindo a construção de um mundo fraterno de “filhos do mesmo Pai”, ao invés da profecia que anuncia a liberdade, a historicidade, o amor e a esperança, denunciando a idolatria que exige sangue e sacrifícios, a religião moderna acabou sendo a confirmação ideológica do mercado e de sua estrutura política: o Estado. Para isso a religião se fez religião da insensibilidade. A religião se tornou individual. Assunto privado à consciência do competidor que, à noite ou no templo se encontra sozinho com seu deus. Propositadamente escrito em minúsculo esse deus nada mais é do que a expressão justificadora da perversidade do homem de mercado. A religião já não pode influir nem determinar o público, isto é, o mercado e o Estado. O mito do progresso e da racionalidade do mercado são sacralizados com tabus, ritos e catedrais onde os desejos gerados e implantados pelo mercado são transformados em necessidades. O desejo ilimitado esconde e simula a necessidade anulando reivindicações de participação como “salário justo”, distribuição da renda. Os objetos de desejo, porque limitados, não são para todos, apenas para os “capazes”, os competentes. Insatisfeitos, os excluídos e incompetentes, no desespero, buscam a satisfação em todo e qualquer substituto do objeto do desejo: a droga, a violência, a alienação. A religião se aproxima daquilo que os questionadores do modelo denominaram de “ópio do povo”. Inclusive porque este tipo 67


Rio Grande do Sul Arquétipos Culturais e Desenvolvimento Social

de religião não admite nem permite uma religiosidade real de vinculação com o outro homem e com o Outro que garanta a liberdade e a vida. A salvação do homem é simulada para um além, negando a corporeidade, a paixão, o histórico e concreto. Assim essa religião sacrificialista que fala aos frustrados em seus desejos, como se a frustração fosse “culpa” sua, dizendo-lhes que a culpa exige expiação e esta exige o sacrifício de “um grande número” para que amanhã todos possam viver o paraíso da satisfação de todos os desejos. Assim o sacrifício ‘vale a pena’ para salvar a esperança do progresso e da racionalidade do mercado. A morte do mais fraco e a sobrevivência do mais forte (darwinismo social), é a lei do mercado, da vida e do universo. A desigualdade é ‘benéfica’ porque incentiva a competição que é a mola mestra do progresso. O assistencialismo enfraquece as pessoas e a dinâmica da “história”. O pecado é cair na tentação da compaixão. A religião se fez simulação de defesa da verdade, enquanto era mera exigência de consenso dogmático e obediência absoluta. A confusão de Cristianismo com Estado de Cristandade e com Impérios Mercantis Salvacionistas, operou como fator decisivo de simulação. Nele a invasão, a conquista, a colonização, o roubo e a escravização se transformaram em obra de caridade, obra civilizatória e de evangelização. A sociedade moderna, capitalista, de mercado é a tradução laicizada daquele Estado de Cristandade. Felizmente, nem sempre e nem todos os homens se submeteram a esses parâmetros. Sempre há Franciscos de Assis, Teresas d’Avila, Bartolomeus de las Casas e muitos grupos que lutam no interior do Estado de Cristandade. A América Latina invadida pela Europa e organizada por ela como Estado Colonial de Cristandade, terá como arquétipo identificador, desde então, a propriedade vinculada à simulação de liberdade. O Rio Grande do Sul encontrará no Estado de Cristandade Colonial, com o pacto do Padroado cimentando tudo, o espelho identificatório de sua constituição e um dos eixos de sua cultura. A anulação e esmagamento da posse dos bens indígenas e dos próprios indígenas, as lutas encarniçadas pela demarcação dos limites dos Impérios, o esbulho particular realizado como ocupação, a distribuição das terras como favores aos amigos do rei, a sacralização da propriedade da estância como fator de dignidade, vinculada à valentia e travestida de nacionalismo patriótico, tudo isso vincula a história do RS à propriedade traduzida pelo Estado de Cristandade e 68


História do Ocidente como História do Estado de Cristandade

com o linguajar da Idade Moderna. Por outro lado, a imigração que recobriu o Rio Grande do Sul, desde a vinda dos açorianos e, especialmente com a grande imigração européia (alemães, italianos...) no século passado, reforçou ainda mais o arquétipo de propriedade como eixo cultural. Expulsos da Europa que se industrializava sob a ideologia liberal, porque não eram proprietários ou tinham uma propriedade absolutamente irrisória para as necessidades de sobrevivência da família, explorados no trabalho pelo latifúndio e pelos industriais, vieram os imigrantes buscar aqui a chance de ser proprietário (“paron”). A utopia da propriedade acompanhou a compra de sua parcela colonial familiar, a organização em comunidades étnicas para defendê-la, a entreajuda como forma de fortalecer o grupo ante os perigos e debilidades sociais e políticas, mais do que por solidariedade amorosa e fraterna. A ampliação gradativa dessa propriedade como fruto do trabalho e dos negócios foi permanente ideal que acompanhou esses imigrantes. Juntando o arquétipo de propriedade existente no RS quando de sua chegada, com a sacralização da propriedade do Estado de Cristandade europeu que era sua raiz, com a consolidação do ideal de propriedade e de proprietário, os imigrantes contribuíram para a determinação desse arquétipo da cultura gaúcha.

4.6 Dualismo antropológico e ético – machismo Um arquétipo que o Estado de Cristandade nos legou foi certamente o machismo. No Estado de Cristandade somam-se o machismo indo-europeu com o paternalismo patriarcal semita. Na perspectiva semita o patriarcalismo se opunha à visão profética de alteridade e liberdade. Agora, no Estado de Cristandade, a profecia sucumbe em proveito do patriarcalismo e do machismo marcados pela ordem, pelo controle, pela lógica, pela negação da sensibilidade, do desejo, do afeto, da ternura, da paixão, do prazer. Só ao homem cabe o governo, o conhecimento verdadeiro, a direção e o gozo. Só ao homem cabe a propriedade. Dele os filhos herdarão o nome, os bens e o status, o poder e o horizonte cultural. O homem, definido como racionalidade, é tentado pelo mal, 69


Rio Grande do Sul Arquétipos Culturais e Desenvolvimento Social

identificado como o prazer, o gozo, o que é sensível e gratificante. É trazido ao mundo pela mulher que, quanto mais bela, sensual e sexual, tanto mais desvirtua o homem. A mulher é mais frágil, influenciável, suscetível a encantamentos, inconstante, mentirosa, sentimental, traiçoeira do que o homem. Ela é tortuosa porque nasceu de uma costela torta de Adão, a costela do peito. Pode ser bruxa, quando faz pacto explícito ou implícito com o diabo, para tentar e causar a desgraça do homem.60 A sedução é diabólica.61 O homem perfeito define-se pela capacidade de resistir a toda e qualquer sedução e isto ele o consegue através da penitência, da oração, de fórmulas mágicas de ritos e liturgias. Exclusivamente masculina era a função de sacerdote que, atingiria sua perfeição porque este não se unia a uma mulher e vencia toda a tentação de sedução. O casamento dos bispos e sacerdotes era desaconselhado no início do Estado de Cristandade. Proibido depois, e declarado nulo ao início do 2º milênio. O padre que se unisse a uma mulher seria então destituído de suas atribuições eclesiásticas, excomungado e muitas vezes condenado por bruxaria porque a mulher que o seduziu certamente teria feito pacto com o demônio e o padre teria compactuado com a bruxaria. A bruxaria, atribuída quase que exclusivamente às mulheres, e com acentuados aspectos sexuais, era pecado e crime julgado pior que o de satanás e dos anjos maus que comandam o inferno. A pena para tal crime e pecado só poderia ser uma: a morte.62 60

KRAMER, H. e SPRANGER, J. O martelo das feiticeiras. Pgs. 197 e ss.

61

Tertuliano, o grande apologista do Cristianismo (nasceu em 150 dC.) depois montanista, de um rigorismo moral que marcou a Cristandade, bem como sua teologia e as noções de mérito e não só de graça, dizia: “Mulher, deverias ir vestida de luto e andrajos, apresentando-te como uma penitente afogada em lágrimas, redimindo assim a falta de ter posto a perder o gênero humano. Tu és a porta do inferno, foste tu quem rompeu o selo da árvore proibida, a primeira que violou a lei divina, quem corrompeu aquele a quem o diabo não se atrevia a atacar frontalmente; foste tu a causa da morte de Jesus Cristo...” quase repetindo o texto maniqueísta do código de Manú: “A mulher não vê se o homem é jovem, nem se é formoso, nem se é malfeito: é homem e basta; porque o mar jamais está farto de rios, nem o fogo da lenha, nem a morte de seres vivos, nem a mulher de homens...Deus fez a mulher naturalmente perversa, enamorada de seu leito, presa à sua cadeira, a seus adornos e desordenada em suas paixões...”.

62

Ibidem.

70


História do Ocidente como História do Estado de Cristandade

O controle da sexualidade como maneira de controlar a propriedade e o poder fará do pecado sexual discriminado nas filigranas de infinitas formas, o maior pecado do homem: o pecado da carne. Maior que o pecado da injustiça, da opressão, do assassinato, da calúnia e do perjúrio. E os ressaibos dessa visão ainda sombreiam regiões onde o Estado de Cristandade vigora. Essa aberração, porém, não é cristã. É sim, a marca registrada do Estado de Cristandade. O controle da sexualidade até os pormenores mais íntimos da imaginação, das fantasias, dos sonhos, dos desejos e intenções e conduzido através da orientação espiritual e depois da confissão auricular freqüente, deu ao clero o poder mais elevado da sociedade. Assim como se mantinha o controle sobre qualquer ação social, política ou cultural que destoasse do instituído, qualquer gesto, qualquer palavra, qualquer intenção era vigiado para que permanecesse no contexto do Estado de Cristandade, assim também e principalmente acontecia com a sexualidade. E o poder seduz mais que a sexualidade. Os burgueses italianos burlescamente dirão depois: è meglio communare che fuotere ( o poder seduz mais que o sexo). Masculino será Deus, que é Pai, Filho e Espírito Santo. Nem se pensa na possibilidade de Deus ser pensado masculino-feminino enquanto imagem e modelo social de refletir.63 Em contrapartida e para justificar o machismo o Estado de Cristandade alimentará até o paroxismo a devoção à Virgem Maria, Mãe de Jesus, Imaculada, Pura, para além de toda e qualquer tentação, imagem tão perfeita que se torna inacessível à mulher real e comum, imagem quase impossível de mulher.64 Não será a de uma mulher exemplo para todas, uma mulher que luta para guardar o convite e a Esperança que Deus deposita nela. Com isso a mulher real e comum pode ser execrada e culpabilizada como tentadora e “perversora” do homem e da humanidade. As outras mulheres, pelo processo de negação, serão vistas como desclassificadas, diminuídas, anuladas, sub-humanas. Ao invés 63

É interessante observar que em aramaico o Espírito de Deus, o Espírito Santo é feminino. Quando o cristianismo foi vertido para as categorias da Filosofia Grega, Espírito Santo (pneumatos agios) é masculinizado. E o papa João Paulo I (que sucedeu a Paulo VI e não pontificou mais do que um mês) disse claramente que “Deus é mãe”.

64

BYINGTON, Carlos Amadeu B. Prefácio de O Martelo das Feiticeiras, pg. 19e ss. 71


Rio Grande do Sul Arquétipos Culturais e Desenvolvimento Social

de Maria ser para elas incentivo a alcançarem a própria estatura e dignidade, será sua impossibilidade. E tudo o que é feminino não será de Maria. E tudo o que é de Maria não será da mulher. Maria será a mulher enquanto negada, ultrapassada, superada, além do feminino, racionalizada, controlada dentro dos parâmetros “adequados” ao Estado de Cristandade. A intuição, o carinho, o afeto, a ternura, o encanto, a beleza, em Maria nada teriam do terrestre e “rasteiro” amor dos homens, nada teria da “baixa” paixão e sedução. Todo convite ao afeto e à sedução é entendido como convite ao pecado, ao mau caminho, à perdição. A sedução e o afeto já não traduzem a vocação radical do homem a encontrar-se com o outro na nudez do amor que é o próprio rosto de Deus, mas é a expressão do demoníaco, porque perigoso e incontrolável. Desde o “paraíso” a mulher se deixou seduzir pela serpente e, seduzindo o homem, trouxe para a humanidade a morte do corpo e da alma. O homem masculino fica assim inocentado em relação ao pecado “original” mas culpado por ter ouvido a mulher. As conseqüências do “pecado original” como a dor, os sofrimentos em ganhar o pão com o suor do rosto, as dores do parto, os espinhos e abrolhos que a natureza produz, o assassinato de irmão contra irmão, o desentendimento de um mundo construído como “torre de Babel”, enfim, a morte, a culpa, a expulsão do paraíso, a inimizade com Deus e com a serpente que eternamente procura o calcanhar da descendência do homem, tudo derivaria do feminino da mulher. Como se “antes do pecado” não houvesse trabalho, suor, parto e morte! ... A mudança de sentido dessas realidades e de toda a história, como traição e perversão do homem é assacada à mulher. É bom salientar que esta interpretação do texto bíblico é própria e específica do Estado de Cristandade e não do Cristianismo, nem do pensamento hebraico. A interpretação ideológica da sexualidade vista desta forma é um dos mecanismos mais profundos de controle do poder elaborados pelos indo-europeus e depois associados ao cristianismo pelo Estado de Cristandade. E como sexualidade é relacionamento, o modo como os homens interpretam a sexualidade é o modo como interpretam todo o relacionamento humano. Assim o Estado de Cristandade fundará um relacionamento machista excludente e que se refletirá em todas as relações humanas: da economia à religião. O controle da sexualidade é sempre controle das relações permitidas e proibidas em todas as dimensões. Será a expressão e a realização da exclusão e do poder. 72


História do Ocidente como História do Estado de Cristandade

Isto não é cristão nem semita. Como rebote, de efeito bumerangue, a masculinidade será deformada para dois extremos: a pura força física inclusive genital ou a emasculação de eunuco simbólico ou físico. É de se perguntar se o machismo indo-europeu não gera necessariamente o homossexualismo (de ambos os sexos) como derivativo. Lembremos que, até filosoficamente, Platão justifica o homossexualismo.65 Este machismo perdurará ao longo de todo o Estado de Cristandade. Quando o Concílio Vaticano II reconduziu a teologia às raízes do cristianismo, pôs em cheque também o machismo. O Estado de Cristandade, porém, ainda não morreu. Nem resolve pensar que o machismo seja próprio dos povos latinos, de clima quente e mediterrâneo, como se o clima impedisse às mulheres sua feminilidade. A cultura e os valores não são determinados apenas pelos condicionamentos geográficos. A Idade Moderna, embora se rebelasse contra as regras impostas pelo Estado de Cristandade, não conseguiu superar esse machismo, aprofundando-o, até, quando pensou a mulher como “objeto de cama e mesa”. Como objeto determinável pela liberdade do proprietário. Tanto se o proprietário for seu marido ou concubino quanto se a própria mulher for proprietária de si mesma. Neste sentido alguns “feminismos” do século XX podem até reforçar o machismo como protótipo de sexualidade. Como um machismo às avessas. Pois, se é importante que a mulher e sua sexualidade não seja determinada de fora pelo proprietário machista, também importa que não seja outra modalidade do mesmo machismo, machismo esse erigido como o critério de vida. Assim, não importa apenas que as mulheres possam, com toda a justiça, exercer todas as funções econômicas, políticas, sociais, culturais e religiosas. Importa mais do que nunca que elas as exerçam femininamente. Ínsito em todas as funções públicas no Ocidente está o machismo. O exercício dessas funções, assim como estão, termina sendo um exercício machista de uma função machista. É difícil mudar esse arquétipo tão entranhado em toda a estrutura da sociedade ocidental. Muitas mulheres, ao exercerem as funções de poder sem a devida crítica, reforçam o que elas pretendem condenar e superar. Neste sentido dever-se-ia examinar à exaustão, a burocracia dos serviços públicos para perceber alternativas à estupidez machista de exercê65

Cf. PLATÃO. O Banquete. Obras Completas, Madrid, Aguilar, pg. 555 e ss. 73


Rio Grande do Sul Arquétipos Culturais e Desenvolvimento Social

la.66 O racionalismo iluminista, positivista e até legalista do “Estado de Direito”, não permitirá o afloramento da feminilidade senão como “sacristã” da religião da “humanidade” baseada no sentimentalismo e pregada por A. Comte. As mulheres virgens consagradas a Deus serão vistas como valioso exemplo de quem não cede às tentações da carne, como “santificadas” pela penitência vista como sofrimento. O modelo perfeito de mulher será a virgem que não teve a “necessidade” de ceder às tentações da carne. A virgindade vista apenas como fenômeno físico e não como projeto humano, como intencionalidade de quem se dedica exclusivamente ao amor superando as exclusões e os ódios, fez inclusive da virgindade de Maria um fenômeno epidérmico e acidental e da dedicação religiosa apenas uma negação. E com ela vinha a negação da afetividade de quem fosse “irmão” , “irmã” , “frère”, freira, e da própria fraternidade cristã que se garantia como fraternidade não porque fosse afetiva e efetiva, real, de carne e osso, e sim porque era “ascética”, sem sentimento e carícia, porque obedecia à norma da proibição do incesto, longe do “mundo” e do poder do demônio. O amor matrimonial, cujo sentido seria exclusivamente a procriação, era, então considerado como inferior ao estado de virgindade. Nenhum poder têm essas mulheres dedicadas a Deus, para definir o que quer que seja na Igreja do Estado de Cristandade. O poder era definido exclusivamente pelo masculino e ao modo masculino. As próprias congregações religiosas tinham, para representá-las junto às instituições eclesiásticas e religiosas, um procurador masculino. O poder de perdoar, de celebrar, de presidir, de governar, de falar, de ensinar, de interpretar, não é da mulher. Será do homem. Não era assim no início do cristianismo. O papel bíblico das mulheres é quase silenciado nos textos oficiais. A cultura do Estado de Cristandade é também a cultura do complexo de Édipo. Como não há lugar para o reconhecimento de alteridade de homem e mulher (só o homem existe), a mulher, negada, liga-se ao filho como chance de reconhecimento, exclusivamente sua. Este, para poder ligar-se à mãe, precisa eliminar, desvencilhar-se do pai...Por isso também a idealização da mãe como símbolo da abnegação, 66

É estúpido o exercício da burocracia que esconde o privilégio, a manipulação, o falseamento da liberdade e da participação, a pretexto de que são normas e de que as normas devem ser seguidas à risca. O poder compreensivo da mulher adequaria com afetividade a pouca efetividade da burocracia para atender reais necessidades dos homens, mulheres e crianças.

74


História do Ocidente como História do Estado de Cristandade

da renúncia. O complexo de Édipo (matar o pai para casar com a própria mãe, como o interpretará Freud) ou o de Eletra (matar a mãe para casar com o próprio pai) não seriam apenas produto dessa cultura Ocidental baseada na propriedade? A pesquisa em povos “primitivos” que não tiveram contato maior com o Ocidente parece revelar que eles não tem esse complexo, como o demonstram Margareth Mead e outros.67 A América e, nela o Brasil e o RS, terão, no bojo do Estado Colonial de Cristandade, esse arquétipo de masculinidade e feminilidade como definidor da identidade do que é ser homem e mulher. A influência indígena, africana e, criticamente, semita serão um contraponto também. A “naturalidade”, inocência e quase ingenuidade da cultura indígena sobre a sexualidade (embora extremamente regulada) apontando para o significado reprodutivo e sagrado do gesto sexual; a sensualidade quente do africano e da africana despertando e chamando para a festa da vida e ao dom sagrado da fecundidade; o companheirismo radical (“osso dos meus ossos e carne da minha carne”) da visão semita em direção à Salvação prometida a todos os homens em sua descendência; esses elementos todos farão parte do horizonte da sexualidade do gaúcho, às vezes como a utopia negada, a necessidade que não consegue ser.

4.7 A solidão da auto-suficiência A liberdade como arquétipo semita e cristão, enquanto dom, liberação, entrega à alteridade sagrada do outro, que não cabe no controle e manipulação de nossa mão, e que só se alcança pela confiança e pelo ouvir dialogal, essa liberdade unida à propriedade transformarse-á em subjetividade. Eu sou um eu que se basta a si mesmo, que coincide consigo próprio e por isso é espírito, que constitui o sentido de tudo e constitui os outros como um outro eu diante de si e para si mesmo. O eu é livre porque se desliga, se desconecta do universo, dos outros, como auto-suficiência de sentido e de ser. 67

Cf. MALINOWSKI, Bronislaw. A Vida Sexual dos Selvagens. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1982. 75


Rio Grande do Sul Arquétipos Culturais e Desenvolvimento Social

Se o Estado de Cristandade, por um lado sacralizou a dependência sob a forma de obediência, por outro lado gerou, em reação a “autonomia” do homem moderno como solitária auto-suficiência. Para o semita, o homem educado dizia referência: à capacidade de ser livre e lutar pelas liberdades dos outros; à capacidade profética de transformação da sociedade na direção do reconhecimento da alteridade de cada homem, a começar pelo mais excluído do sistema; à capacidade de ouvir a palavra do outro e através dela ouvir a palavra de Javé; à sabedoria de viver o universo na relação inter-pessoal e transcendente da solidariedade e que o cristianismo chamava de fraternidade; à capacidade de viver a unidade e síntese do homem (uma espiritualidade carnal, uma corporeidade espiritual, uma intimidade que se faz tarefa social e vice-versa, uma sexualidade que, em se fazendo uma só carne, manifesta e realiza a presença sacramental de Javé; a um conhecimento que é sonho e constatação, memória e utopia, sensibilidade rigorosa e um rigor de imaginação e ordenamento racional que se faz ternura, desejo e dever, arte e técnica e poesia e liturgia). Para o pré-semita o homem educado é o que sabe participar da comunidade e interpretar seus valores, na unidade mítica do humano e divino e cósmico;68 para o indo-europeu, o homem educado é o que é capaz de dominar, capacidade que se faz racionalidade e método em vista da técnica para a apropriação e manuseio do universo proibido pelo tabu e pelos deuses e subordinado ao destino fatal: por isso o homem como projeto impossível é sábio e educado quando “aceita” as fatalidades do destino vividas como tragédia; 69 para a Europa o homem educado será o conquistador e dominador, o esperto e sagaz, o invencível nas armas e/ou no argumento, na sedução e no prestígio, o auto-suficiente, o livre-pensador, o iluminista, o romântico, o racionalista, o positivista e, finalmente, o liberal. Homem educado (masculino, proprietário, escravagista, ocioso, imperial, armado de lógica e espada e cavalo) é o que sabe viver o sentido “trágico da vida” e não apenas como o disse Unamuno. A impossibilidade de ser para o homem é, no entanto, a impossibilidade de todos serem, reservando a possibilidade para alguns. A utopia, a Um asteca educado era aquele que possuía “um coração firme como a pedra e um rosto compreensivo”, e um inca recomendava sempre: “Não deves roubar, não deves mentir, não deves ser preguiçoso” PRIEN, H.J. La História del Cristianismo en America Latina, pg. 50.

68

69

KITTO, H.D.F. A Tragédia Grega, pg. 217 e ss.

76


História do Ocidente como História do Estado de Cristandade

possibilidade, o sonho, o desejo, a sensibilidade, a sexualidade, o amor, a justiça e a Esperança serão vividos como ilusão com que se ilude o escravo e dominado para que tenha alento em servir. Um escravo, uma mulher, um trabalhador educado, dirá Platão, é aquele que exercita a temperança, a moderação, a paciência, a docilidade e a gratidão por poder viver. Um soldado, um administrador, um político educado é aquele que dá a vida pela “cidade”, que tem coragem, que se faz herói, que garante a ordem e a subordinação dos trabalhadores e que dá a cada um segundo o que lhe pertence por natureza, é o estrategista no sentido militar e político do termo.70 Por fim, o sábio, o filósofo, o homem no sentido estrito e último ( praticamente sempre masculino) é aquele que aprendeu a superar e a desligar-se da sensibilidade corporal, que aprendeu a “contemplar as idéias universais” e divinas; que aprendeu a negar o corpo (sema: prisão) e tudo o que lhe é próprio: sensibilidade, imaginação, desejo, paixão, afeto, memória. É aquele que se dedica à Verdade e ao Belo, vividos no ócio e na contemplação, muito além da “caverna” onde os simples mortais lutam para “adivinhar” as necessidades e contingências da vida das “sombras”. Sábio é aquele que domina o corpo e as paixões e se evade para a contemplação dos princípios divinos, extraindo dali os deveres éticos, políticos e sociais para os outros, afim de realizar a harmonia social da “democracia” dos “cidadãos”. Por sua vez o homem educado para o Estado de Cristandade será a síntese impossível e contraditória do homem educado das civilizações anteriores. O Estado de Cristandade, dividindo os homens em três estamentos com base em características ‘naturais’ criadas por Deus (Deus destinou uns homens para trabalhar, outros para rezar e outros para governar), tal e qual propusera Platão com a tríplice divisão da alma humana, oferecerá um tríplice modelo de homem educado. O trabalhador será bem educado quando aprender a cumprir suas obrigações de sustentar os nobres e o clero. Para isso será obediente, submisso, agradecido, sabendo a ordem social como sacralizada. Não é preciso que saiba ler ou escrever, ou, no máximo, 70

Não cabe aqui discutir se a Pólis (a sociedade políticamente organizada), como dizia Aristóteles, era ou não anterior ao indivíduo; se era ou não resultado da criação das decisões dos cidadãos livres ou se era resultado das leis da natureza. Nela não cabem os excluídos, senão como e na forma de excluídos. Nela não cabem os outros. A própria liberdade “cidadã” é inquestionavelmente privilégio de uma “boa natureza”. 77


Rio Grande do Sul Arquétipos Culturais e Desenvolvimento Social

saiba ler o catecismo. Um nobre bem educado deverá incorporar os rituais e maneirismos todos das relações do poder. Deverá ser hábil nas relações cortesãs. Deverá ser cooperador da religião e exigente controlador dos trabalhadores. No superlativo da educação será, por fim, um “cavalheiro” dentro dos rígidos limites e determinações que a Igreja outorgou. Assim protegerá órfãos e viúvas, e até os fracos. Ao menos isso era formalmente, seu dever. E o clero? Bem, o clero tem a cada tempo modelos cada vez mais sofisticados de “homem educado”. A habilidade política e diplomática, as técnicas de manejo do poder, serão sempre aliadas à representação de Cristo na terra, ao poder de atar e desatar, ao cuidado do rebanho contra os lobos sempre vorazes, fará parte da educação do alto clero. O estudo das “artes liberais” seguidas da Filosofia e Teologia virão, depois de bem virado o primeiro milênio, a compor a educação do clero. Por outro lado, o baixo clero quase não tinha formação intelectual e, por vezes moral, até a reforma do Concílio de Trento (1542-1565). A oração, a mística, a piedade, a pobreza, a retidão da consciência de muitos clérigos, exemplificativamente S. Francisco de Assis e sua ordem, serão a contraposição a este estado de coisas. Os homens são considerados dualistamente, divididos em corpo (mau, material, fonte de pecado e desgraça para o homem, prisão da alma como dizia Platão) e alma (divina, eterna, espiritual, racional e com livre arbítrio). Por isso cada homem vive a dissociação entre o bem e o mal. Luta para vencer “esse vale de lágrimas” e salvar a alma para o céu. Sua educação final, portanto, deve levá-lo a livrar-sedo corpo e à salvação eterna. A educação necessária à salvação consiste em aceitar a revelação de Deus tal e qual é interpretada pela hierarquia da Igreja; acolher as determinações que, em nome de Deus, a hierarquia lhe faz; obedecer e escutar no maior silêncio possível, decorar as grandes verdades da ortodoxia expressas por dogmas em Concílios ou pela doutrina de teólogos reconhecidos como tais pela hierarquia; e exercitar-se na ascese e nos rituais litúrgicos conforme o determinado. Mal educado, deseducado era o rebelde, o herege, o discordante, o pretensioso desafiador de Deus que buscasse realizar coisas e trabalhar forças para além do estatuído como natural, aquele que fizesse pacto explícito ou implícito com o diabo para ter sucesso e bem estar. O herege, o apóstata, o blasfemo, o irreverente, e até o irônico e mordaz, o crítico põem em risco sua salvação eterna, faltando-lhes 78


História do Ocidente como História do Estado de Cristandade

completamente a educação. Assim o servo da gleba, o trabalhador, a mulher, assim como,depois, o escravo, será educado quando: for submisso, dócil, obediente, paciente em aceitar todas as “contrariedades” e sofrimentos da vida como enviados por Deus para purificar a alma e elevá-la aos céus. Assim a educação, para ele, consistirá em aprender os “mandamentos de Deus e da Igreja”, em obedecer à hierarquia em todos os detalhes e sem discutir, com docilidade de coração e com arrependimento permanente pelos “inúmeros” pecados, e fazendo penitência e jejuns, abstinências de carne, frequência aos sacramentos, especialmente confissão (um dos maiores mecanismos de orientação bem como de controle das consciências) com absoluta e transparente sinceridade. Dentre os pecados, os sensuais e sexuais eram dos mais graves a exigir maior penitência, ascese, e auto-punição. Nesse sentido é paradigmática a análise que Humberto Ecco faz em O Nome da Rosa da condenação e aversão ao prazer e ao “ riso” que os mosteiros deveriam cultivar e cujo controle era feito pela Inquisição. A dialética da contraditoriedade entre felicidade e dever, entre a séria severidade e a alegria da criatividade e da descoberta estão patentes. O sentimento de culpa era o mecanismo mais eficaz de controle social e que século a século foi se introjetando no mais profundo da consciência individual e coletiva e, especialmente, desses trabalhadores. O apelo à imaginação ( o lugar onde o demônio mais atua e mais suscetível à sua influência), ao prazer, ao desconhecido é exorcizado como demoníaco, como bruxaria, como idolatria e como heresia merecendo, mesmo que arrependido, a pena de morte pela fogueira para o suspeito. A demonização de tudo o que fosse desconhecido, de tudo o que não estivesse previsto nos controles e cânones do Estado de Cristandade, encherá de demônios, de fantasmas, de almas penadas, de azares e “sortes”, de superstições a vida cotidiana e também a oficial e formal em detrimento da racionalidade e da fé crítica e profética dos primeiros tempos cristãos. O conhecimento dos rituais próprios e eficazes para afastar os fantasmas, para exorcizar os demônios, aliado à necessidade de um bode expiatório para uma sociedade em decadência gerou a perseguição às mulheres acusadas e por isso mesmo quase sempre culpadas de bruxaria e de associação com o demônio. O exorcismo era reservado a alguns homens da cúpula da hierarquia eclesiástica (porque tinham as “chaves” do Reino dos Céus) ou a alguns homens reconhecidamente santos e com poderes para expulsar os demônios. Nunca se reconheceu 79


Rio Grande do Sul Arquétipos Culturais e Desenvolvimento Social

às mulheres esse poder. E quase nunca aos leigos. A psicose paranóide cultural, expressa nos processos da Inquisição, bem revelam os descaminhos do ethos cristão originário, perdido no Estado de Cristandade. Um paralelo com o nazismo pode revelar sua profundidade patológica.71 As escolas que iniciam junto às catedrais e paróquias visavam à aprendizagem do ler e escrever e especialmente para facilitar a catequese e a evangelização no estilo do Estado de Cristandade. Organizadas formalmente através do “Trivium” e do “Quadrivium” e depois retomados pela “Ratio Studiorum” dos jesuítas, serão os manuais mais influentes para a América Latina até a Independência. Acentuase nessa educação formal e destinada a uma pequena elite, a memória, as artimanhas para decorar e repetir textos e poemas, a tradição considerada como a grande mestra da verdade, desdenhando e até condenando a criatividade, a crítica, o utópico e profético. A História enquanto narração do passado passa a ter decisiva influência. Ressuscita-se assim, o Direito Romano, a Filosofia Grega, os textos religiosos, os clássicos da literatura greco-romana e, com isso, surge o Renascimento. Nele, porém, o espírito criador, porá em crise as estruturas do tradicional. Não sairá, porém, do Estado de Cristandade. Será outra face do mesmo Estado de Cristandade em suas contradições. Agora, o científico experimental prodominará sobre o especulativo racional, o político ( e depois o econômico ) predominará sobre o religioso, o laical sobre e até contra o clerical, mas dentro do mesmo 71

“Afora a duração de uma ser medida em algumas décadas e da outra em muitos séculos, esta comparação necessita delimitar uma grande diferença, que a patologia do caráter coletivo que acompanhou a Inquisição. Os nazistas assassinavam suas vítimas porque se julgavam puros e elas impuras. Ao aniquilá-las, sua psicose expressava a projeção de sua Sombra (seus complexos inconscientes), mas não incluía, num mesmo grau de comprometimento, a patologia coletiva do caráter. Assim, não necessitavam distorcer o humanismo ocidental para justificar seus crimes. Ao endeusar sua megalomania paranóide, repudiaram toda a fundamentação humanista da cultura ocidental. Daí sua identificação ideológica maciça com a psicose anti-cristã e anti-semita de Nietzsche. A Inquisição também se julgava megalomaniacamente purificadora e projetava de forma paranóide sua própria Sombra (os complexos culturais inconscientes) nos hereges que torturava e matava. No entanto, não só não repudiava o humanismo cristão, como se fundamentava teologicamente nele para perpetrar seus crimes. Ao torturar e matar, os inquisidores diziam lutar contra o demônio para salvar a alma de volta para Cristo. Tudo isso faziam como especialistas no estudo dos Evangelhos e no seu conteúdo humanista” BYINGTON, 1997, pg. 21-22.

80


História do Ocidente como História do Estado de Cristandade

Estado de Cristandade. Conclui-se que a Idade Média e a Idade Moderna embora não sejam idênticas entre si, são, no entanto abrangidas sempre pelo Estado de Cristandade. Seu fundo é comum. O Estado de Cristandade, também não é sinônimo de Cristianismo, embora o Ocidente possa se identificar com o Estado de Cristandade. A cultura da “subjetividade”, a educação da auto-suficiência se consolida com a Filosofia de Descartes, Kant, Hegel, depois da conquista da América, da África e da Ásia, com a fenomenologia, o formalismo lógico e o existencialismo. Nasceu também influenciada pelo profundo exercício de introspecção e exame de consciência, bem como da orientação espiritual, da meditação e da confissão auricular como prática cristã, ao longo da Idade Média, em busca do sentido da vida. A cultura da subjetividade será a marca definidora do Ocidente Moderno e Contemporâneo. O homem individual é interpretado como “sujeito da história”, como dono de seus atos, como liberdade e critério de valores, como aquele que se apropria do mundo, do poder, de si mesmo e da ética. Quer ser deus e como não o consegue, é então o Nada, a impossibilidade de ser, o ser-para-a-morte, a tragédia em si mesma. “Os outros...são o inferno”. O teocentrismo medieval é substituído pelo “antropocentrismo” sempre dentro do Estado de Cristandade. Será sempre uma subjetividade racional-operatória-instrumental, dissociada das reais relações humanas inter-corporais e integradas com afeto, sentimento, desejo, fé, e racionalidade. Dissociação entre o que o homem pensa, e o que ele deseja e faz.. Desse processo dualista e desagregador resulta para a educação, tanto cotidiana como formal, um programa de negação e destruição da dimensão afetiva e do desejo, ao mesmo tempo que desencadeia reacionalmente uma perspectiva opressiva e ditatorial do “meu desejo” acima de tudo, porque legal; do absolutismo maquiavélico fundado em razões de ordem pragmática, como fundamento da guerra de todos contra todos, porque preconceituosamente se diz que “o homem é lobo do e para os outros homens”. Nossas escolas, hoje mais do que nunca, vivem essas contradições desagregadoras. Se as necessidades do homem ( a começar pelas econômicas da alimentação e sobrevivência) são saciadas pelo fruto da natureza ou pelo trabalho do homem que gera um produto, se a consumição do produto mantém a vida, gera a vida, é vida, é festa e prazer, a negação do prazer sempre estará aliada ao roubo do produto do trabalho humano. 81


Rio Grande do Sul Arquétipos Culturais e Desenvolvimento Social

O roubo, que pode se fazer institucionalmente, como Marx referiu para o sistema capitalista, sob qualquer forma, exigirá a ideologia da “ascese”, da penitência, da temperança como diziam Platão e Aristóteles, por parte dos roubados, dos que não podem e não devem ter prazer, senão o necessário para garantir o mercado e o sistema. Como se vê a regulação do prazer e sua marginalização para os redutos mais nocivos, surge de dentro do Estado de Cristandade. Os mesmos que negam o prazer aos outros, tripudiam depois sobre os castigados absolutizando o prazer, como fazem os meios de comunicação quando idolatram o consumismo. No Estado de Cristandade a educação seria apropriada a cada estamento social: aos clérigos uma educação cada vez mais severa e ascética com a renúncia a todo prazer, especialmente sexual, que culminará com a proibição do casamento para os padres e com a criação de um educandário específico ( o seminário) imaginado e levado como sugestão ao Concílio de Trento (1543-1565) pelo bispo espanhol S. Belarmino. Aí os clérigos teriam uma boa formação intelectual, uma formação de hábitos quase militares a exemplo dos jesuítas (fundados em 1541), e uma formação moral e ética que culminaria nos votos de castidade, pobreza e obediência como condição para ascender na carreira clerical. O modelo de educação clerical era também repassado aos outros estamentos sociais: aos nobres e aos trabalhadores. Para todos, a ascese, a mortificação, a obediência era fundamental. Os que, por natureza, são destinados por Deus a administrar o mundo e a Igreja deveriam passar por um processo educativo e ascético mais radical. Os processos de racionalização psicológica faziam, porém, com que a grande carga das proibições e sofrimentos recaísse sobre os servos da gleba e sobre as mulheres. Justifica-se teológica e filosoficamente até os desvios de conduta e muitos crimes cometidos contra os fracos como testemunha o manual da Inquisição Malleus Maleficarum (O martelo das feiticeiras) de Kramer e Spranger escrito em 1484. O controle social se faz com armas poderosíssimas: o dogma, a Inquisição, a Excomunhão, a perda dos bens, a tortura e a morte. A educação prepara o clima para a proibição dos desvios. Para o baixo clero, para a maioria dos nobres, e ainda mais para os servos da gleba e para os trabalhadores em geral, bem como para as mulheres a alfabetização formal não tinha tanto significado. Atentemos para o fato de que é a partir da Idade Moderna européia e especialmente a partir da industrialização que se forma a cultura do 82


História do Ocidente como História do Estado de Cristandade

documento, onde a palavra oral (e portanto o decorar e a tradição) perdem em importância para a escrita, a leitura. Mesmo assim, o domínio da leitura e escrita era, na Idade Média sinal de prestígio e status. Os copistas bíblicos eram os técnicos mais bem pagos e considerados. Para os estamentos mais baixos o que interessava era saber o catecismo, as orações e situar-se nos ritos e cerimônias sociais e litúrgicas. Quando o feudalismo iniciou a ser superado pelo comércio internacional e pelo surgimento das nacionalidades, os mosteiros e especialmente as universidades (a primeira, Bolonha criada em 1088, sendo que até o “ descobrimento” da América a Europa já tinha mais de 60 universidades) desempenharão o mais relevante papel no “Renascimento” da Filosofia, das ciências, da arte, do direito e do “ Estado de direito” gestando a sociedade burguesa e liberal. Ali, primeiro virá a “ escolástica“ e depois a vigilância contra a liberdade de pensamento e das ciências. As ciências modernas e o pensamento crítico nascerão fora das instituições eclesiásticas e contra elas. As academias de ciências, as sociedades secretas serão o seu lugar. No entanto, a universidade será o lugar da maior expressão dialética das contradições do Estado de Cristandade. A revolta ou revolução protestante, a revolta ou revolução das ciências, da arte, da moral, da economia, do direito terão sempre raízes nas universidades também. Elas serão sim o lugar de maior controle ideológico como também um “ locus libertatis” privilegiado. A “ Universitas” de todas as disciplinas e professores, como lugar aberto ao debate de todos os assuntos que interessassem à sociedade, não visava à formação de técnicos. Os técnicos e profissionais eram formados em sua corporação específica de trabalho. Assim o espaço mais importante da Universidade que era o grande anfiteatro e não as “ salas de aula” como imaginará depois (1808) Napoleão. A Universidade, assim como a sociedade política, continuará sob a tutela da hierarquia eclesiástica (através do chanceler) marcadamente até a revolução protestante ou até a Revolução Francesa. Note-se que a ciência moderna, laical e a caminho do positivismo, assim como a filosofia empirista, racionalista, iluminista...nascerão fora da Universidade, nas “ Academias de ciências” formadas por leigos e liberais em reuniões quase secretas. Era a elaboração de um saber “ proibido” ao menos para os controladores do Estado de Cristandade, mas ainda e sempre dentro do Estado de Cristandade. Pode-se dizer ainda que o Estado de Cristandade cria, na Idade 83


Rio Grande do Sul Arquétipos Culturais e Desenvolvimento Social

Média, o sistema escolar e na Idade Moderna uma ciência da Educação, a Pedagogia, como o conjunto de processos para iluminar ilustrar racionalmente o homem, desvinculando-o do obscurantismo, da crendice e da superstição. Os processos pedagógicos, na verdade, visam a libertar os homens do jugo do poder dos reis e da Igreja, tornando-os cidadãos. A educação, então, substitui a religião. Historicamente, porém, opera-se aqui a substituição do poder da religião sobre a política, pelo poder da política sobre a religião. E tudo dentro do mesmo Estado de Cristandade. De todos os lados, a dialética da auto-suficiência, da desconfiança contra a prepotência e contra os controles do Estado de Cristandade, dos caminhos clandestinos e à margem do controle para constituir um saber que independa da interpretação oficial do Estado de Cristandade, e que culminará no positivismo, no liberalismo e nos movimentos secretos de carbonários e maçons influenciará profundamente a cultura do RS, como de toda a América Latina. O homem educado e a educação do homem estará marcada por essa dialética. O gaúcho solitário, proprietário, auto-suficiente, não nasce apenas do contexto geográfico com a imensidão das distâncias e dificuldades de comunicação. Nasce das contradições do Estado de Cristandade e de suas consequências na Idade Moderna.

4.8 A laicização no Estado de Cristandade No Estado de Cristandade, ser leigo é ser marginalizado. O centro do sistema é ocupado pela Igreja enquanto hierarquia e pelo poder civil enquanto delegação da hierarquia eclesiástica. O leigo, como “vocacionado” para o trabalho está na periferia. O Estado de Cristandade, desde sua constituição, por sua própria lógica, operou a marginalização do leigo. Poder-se-ia dizer que o leigo tem, para o cristianismo inicial, um significado semelhante àquele que o “ cidadão” tem na sociedade burguesa moderna. Leigo era o batizado, aquele que assumia a perspectiva e a pessoa de Cristo e construía, na comunidade, o Reino de Deus, o “Laos” , de onde deriva laico e laical (leigo). Com o processo de identificação da Igreja com a hierarquia clerical, o leigo deixa de ser o partícipe construtor da comunidade eclesial para ser, cada vez 84


História do Ocidente como História do Estado de Cristandade

mais, o ignorante em teologia, aquele que deve ouvir, aprender, escutar, obedecer; o que deve ser tutelado, orientado, dirigido e vigiado, controlado para que permaneça dentro dos parâmetros legais, morais, doutrinários e dogmáticos estabelecidos pelo Estado de Cristandade. Os leigos serão o objeto da evangelização, da catequese e do exercício do magistério hierárquico. Este detém a interpretação legítima da mensagem cristã e a administração exclusiva dos meios de salvação: os sacramentos. A comunidade cristã, de sujeito da liturgia, passa a ser “representada” , substituída pelo sacerdote que antes tinha a função de presidí-la. O próprio sacramento do matrimônio cujos autores e atores são exclusivamente os nubentes passou a ser “ administrado” pelo padre e assim foi entendido pela população “ laica” do Estado de Cristandade. Qual o espaço social do leigo? Esse processo de marginalização fará do leigo um “ infantil” , um “ analfabeto” , um alienado, tutorado nos mínimos detalhes da existência. Por outro lado, a marginalização, - quando surgirem condições históricas de reação, como acontecerá com o Renascimento, o Mercantilismo e a Idade Moderna -, provocará a rebeldia do leigo, a oposição, a revolução contra o poder da Igreja Hierárquica e contra seus delegados e associados, os reis. Sem poder político (toda a estrutura política era ocupada pelos nobres), sem hegemonia do poder religioso e cultural, os leigos burgueses, detendo em suas mãos cada vez mais o poder econômico-financeiro tanto mercantil como industrial, procurarão o domínio político e a hegemonia cultural organizando-se secretamente para fugir à censura e ao controle do Estado de Cristandade. Surgirão, assim grupos clandestinos como a maçonaria,72 os carbonários, as “ sociedades científicas” que articularão um contra72

O papa João XXIII, eleito em 1958 e que convocou o Concílio Vaticano II (19621965), para “aggiornare”a Igreja, revendo sua atuação histórica e resgatando as raízes primitivas, elaborou um documento denomiando de Santa Autocrítica, no qual pedia perdão pelos erros cometidos especialemente contra os judeus e contra os maçons. O documento deveria ser lido em todas as Igrejas antes de sua morte em 1963. A Cúria Romana deteve o documento que apenas foi publicado na Gazeta Italiana em outubro de 1966. A parte referente à Maçonaria foi lida no senado brasileiro em 1971. Cf. Zero Hora, 19/3/2000, pg. 3. O Papa João Paulo II, em reconhecendo os pecados da Igreja e pedindo perdão, mostra também o significado da necessidade de reformular o Estado de Cristandade. Cf. Zero Hora, 13.3.2000, pg.28. 85


Rio Grande do Sul Arquétipos Culturais e Desenvolvimento Social

poder através da Educação, do pensamento livre, da ciência. Assim, a economia de mercado (mercantilista, manufatureira, industrial e pósindustrial), a política(que culminará na democracia representativa e republicana da Revolução Francesa), a cultura (com as ciências naturais como modelo, a Filosofia moderna, a tecnologia e a arte), a ética e o direito construir-se-ão fora e quase sempre contra a Igreja do Estado de Cristandade. Construída pelo leigo e anticlericalmente. O burguês cuja hegemonia marcará a Modernidade, é alheio aos critérios do cristianismo, embora use a ética semita como ideologia. Fora do controle da Igreja e dos reis, os leigos, sob a hegemonia da burguesia, buscarão um lugar de “ igualdade, liberdade e fraternidade”, lugar, porém, que será apenas “teórico”, uma vez que, na prática, para a grande maioria dos leigos trabalhadores, os “abomináveis privilégios medievais” serão abolidos e, agora, apropriados pela burguesia. O trabalhador camponês francês que, na época da Revolução Francesa somava 22 milhões sobre uma população total de 24, será agora duplamente excluído: do projeto da burguesia e da proteção das corporações bem como da tutela da Igreja. O “leigo”, assim como era excluído da Igreja e marginalizado, será agora excluído da Cidadania. A longa história da tentativa de inclusão dos excluídos, desde o vagabundo e indigente do final da Idade Média, “os miseráveis” proletários do início da industrialização, a classe operária do final do século XIX e metade do século XX, os assalariados protegidos pelo Estado Social desde a grande depressão dos anos 30, até os “inúteis da terra”, descartáveis, supranumerários que se avolumam desde a década de 1980 bem pode ser relacionada ao mesmo processo de exclusãolaicização do próprio Estado de Cristandade. O Concílio Vaticano II (1962-65), ao mesmo tempo em que declara e propõe o fim do Estado de Cristandade para a ressurreição do cristianismo e da Igreja cristã, sinalizará um novo espaço para o leigo e consequentemente para o cidadão. Somando-se às múltiplas lutas pelo resgate da condição humana de igualdade e liberdade, reencontrará o significado primigênio de leigo para a Igreja. O mesmo Estado de Cristandade que condicionou e potencializou a marginalização do leigo e do cidadão volta às origens e declara leigos a todos os batizados, mesmo que assumam serviços hierárquicos específicos na comunidade da Igreja. Assim a condição de leigo não fica restrita à de ser oposição e negação em relação à hierarquia clerical, nem esta em ser a negação do leigo como tese e antítese dialéticas. 86


História do Ocidente como História do Estado de Cristandade

Leigo é a síntese que integra ambos em sua diversidade enquanto ambos são “concidadãos” do mesmo reino: laos. A síntese (leigo), porém, que inclui e supera a oposição dialética (leigo x hierarquia) não tem o mesmo significado que a antítese “leigo” quando em contraposição a “clérigo”. A relação dialética hierarquia x leigo, marcou todas as instituições no Estado de Cristandade: a economia, a política, a religião e a cultura. Assim, para exemplificar, a escola e o processo escolar com o professor que ensina, interpreta e controla e com o aluno que aprende, memoriza, aceita, incorpora e repete. Lembremos que o “magistério” era prerrogativa da cúpula da hierarquia ecelsiástica no Estado de Cristandade. Sua função era delegada, controlada e regulamentada quando concedida à hierarquia inferior. A hermenêutica dos valores e padrões culturais vigentes é também balizada dentro de regras rígidas. A alfabetização e a escolarização com a conseqüente titulação, não permite e até proíbe a interpretação crítica da sociedade e seus padrões. Os muitos esforços e experiências de educação libertadora, porém, não alcançam significado se permanecerem dentro dos parâmetros dialéticos do Estado de Cristandade. Se o horizonte interpretativo não superar o Estado de Cristandade, a crítica e a libertação ficarão no vazio do “ faz de conta” , como foi a “ igualdade de todos perante a lei”, gerada pela Revolução Francesa. Aí a igualdade e a liberdade são paradigmas formais de interpretação e comportamento, contanto que não afetem, que não interfiram na vida econômica, na vida social, nas necessidades reais dos homens. Neste sentido o liberalismo é o produto mais expressivo do Estado de Cristandade, ao mesmo tempo que, uma negação do cristianismo. É sua simulação, a ideologia que encobre e mascara a realidade. Não se altera a situação de oposição dialética leigo x hierarquia pelo fato de, na Modernidade, o polo hegemônico tornar-se o “leigo” enquanto negador da hierarquia, enquanto anticlericalismo, enquanto instituidor do positivismo e do laicismo burguês.73 Se o Estado de Cristandade marginaliza o leigo, muito mais o fará o Estado Colonial de Cristandade potencializado pela concordata do Padroado74 em toda a América Latina e Brasil. 73

A visão de mundo que a modernidade elaborará será um âmbito próprio e laico “que o liberalismo moderno tinha arrebatado da autoridade da igreja e do estado” Apel, La Trasformación de la Filosofia, pg. 350.

74

Na direção da perspectiva iniciada por Constantino em 313, em que, após dar 87


Rio Grande do Sul Arquétipos Culturais e Desenvolvimento Social

Mas o RS será ainda mais evidenciado na marginalização do leigo. Com a estrutura eclesial, clerical e dependente da estrutura política, com a instituição eclesiástica esfiapada e mínima para evitar custos para a Administração Pública ( o Brasil tem 11 dioceses até o final do Império), nem era possível oferecer aos cristãos batizados formação mínima que evitasse sua total marginalização. E a marginalização será dupla: religiosa e eclesial por um lado, política e social por outro. O RS dependerá da Diocese do Rio de Janeiro até 1848 quando é criada a Diocese do RS com sede em Porto Alegre. Só depois da proclamação da República, em 1911, são criadas mais três dioceses no RS: Pelotas, Santa Maria e Uruguaiana. Sem formação, quase sempre analfabeto, sem a presença do clero e do bispo, o leigo, no RS, vive à margem. É bom notar que a presença dos leigos por todo o Brasil se fará sentir nas Ordens Terceiras, nas Confrarias, na pregação dos Beatos, em atividades quase independentes do clero. Enquanto isso no RS isso pouco se verificou, não só porque foi a última região a ser incorporada ao território brasileiro (definitivamente só em 1801), mas também porque o latifúndio, a monocultura do gado, a pouca densidade de povoamento, não ensejavam a reunião comunitária, a capela e a vila que os açorianos farão surgir, depois de sua chegada. Com a independência na América Latina e com a República no Brasil, o positivismo e a maçonaria revelarão a reação laica e até anticlerical dos marginalizados do Estado de Cristandade. Isto será evidente no RS com a Constituição positivista de 1891 e com a reforma educacional castilhista.

liberdade ao cristianismo, outorga privilégios imperiais ao clero como isenção do serviço militar, o privilégio de foro, a dispensa do pagamento de impostos, e se faz ele próprio protetor do cristianismo, fazendo-se “bispo do exterior” sem ser batizado, e transformando-se a Igreja, com Teodósio (387), num departamento do Estado, o Padroado “será a forma através da qual o governo de Portugal, exercerá sua função de “proteção” sobre a Igreja Católica, religião oficial e única permitida na nação” HOORNAERT (org.) História G. Igreja no Brasil,: 161. Pelo Padroado, o rei de Portugal como grão-mestre das Ordens de Cristo, de São Tiago e São Bento detem o governo civil e religioso nas colônias de Portugal. Cobra o dízimo, administra os bens eclesiásticos, indica os bispos, erige dioceses, seminários, paróquias, paga a remuneração ao clero e controla toda a atividade da Igreja. 88


Bibliografia

BIBLIOGRAFIA ACRI, Édison. O Gaúcho: usos e costumes. Porto Alegre: Grafo Sul, 1991. ADAMS, W. P. Los Estados Unidos de América. 5ed., México, Siglo XXI, 1982. Africa y Ásia en la visión distorsionada de la cultura occidental. México: Nueva Imagen, 1979. ALBISETTI, Cesar e VENTURELLI, Angelo. Enciclopédia Bororo, II Vol. Campo Grande: Dom Bosco, 1962. ALIMANDA, Hector. A Revolução Mexicana. São Paulo: Moderna, 1986. ALIMEN, M. H. e STEVE, M. J. Pré-história. 14ed., México, Siglo XXI, 1980. ALMEIDA, Davi. História do Município de Piratini. São Lourenço: EDDA, 1969. ALMEIDA et alii. Colcha de Retalhos: Estudos sobre a família no Brasil. São Paulo: Brasiliense, 1982. ALVES, Branca Moreira. Ideologia e Feminismo: A luta da mulher pelo voto no Brasil. Petrópolis: Vozes, 1980. AMADO, Janaína. Conflito Social no Brasil - A revolta dos “mucker”. São Paulo: Símbolo 1978. AMARAL, Anselmo F. As origens do gaúcho na temájtica de Martin Fierro. Porto Alegre: Martins Livreiro, 1988. ANAIS IV SIMPÓSIO NACIONAL DE ESTUDOS MISSIONEIROS. A população Missioneira – fatores adversos e favoráveis às Reduções.Santa Rosa: D. Bosco, 1981. ANTONACCI, M. A. RS: as oposições e a Revolução de 1923. Porto Alegre: Mercado Aberto, 1981. APEL, Karl Otto. La Trasformación de la Filosofia. Madrid: Taurus, 1985 Tomo I e II. AQUIVO – OSCAR - JESUS. Históra das Sociedades Americanas. Rio de Janeiro: Eu e você, 1981. 347


Rio Grande do Sul Arquétipos Culturais e Desenvolvimento Social

ARAUJO, José Francelino. A Escola do Recife no Rio Grande do Sul. Porto Alegre: Sagra, 1996. ARAÚJO, Rosa M. B. O Batismo do Trabalho - A experiência de Lindolfo Collor. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1981. ARGUEDAS, José M. Formación de uma cultura nacional indo americana. 2ª ed. Buenos Aires, Siglo XXI, 1977. ARIPE, P. Paulo. O Rio Grande do Sul e a Cruz . Canoas: Lassale, 1965. ARISMENDI, Rodney. Estudios. Montevidéu, 1983. ARSENE, Isabelle. Viagem ao Rio Grande do Sul. Porto Alegre: Martins Edit., 1983. ASS. PROFESSORES DE HISTÓRIA DO RS. História. Porto Alegre: Sulina, 1985. ASSIS BRASIL. Um castelo no pampa: A Perda da Memória. Porto Alegre: Mercado Aberto, 1993 ______. Um Castelo no Pampa: Perversas Famílias. 3ed., Porto Alegre: Mercado Aberto, 1993. ASSUMPÇÃO NASCIMENTO, Heloisa. Nossa cidade era assim. Pelotas: Mundial, 1989. AUSTIN, Alfredo Lopes. Hombre-Diós - Religión y Política en el mundo nahuatl. Mexico: Unam, 1973. ______. La educación de los antigos nahuas 1. México: Ed. El Caballito, 1985. AVÉ-LALLEMAND, Robert. Viagem pela Província do RS (1858). São Paulo: Edusp, 1980 BAKOS, Margaret Morchiori. Rio Grande do Sul: Escravismo e Abolição. Porto Alegre: Mercado Aberto, 1982. BARBOSA, Fidelis Dalcin. História do Rio Grande do Sul. Porto Alegre: S. Lourenço de Brindes, 1983. BARBOZA, Eni (coordenador) O Processo Legislativo e a Escravidão Negra na Província de São Pedro do Rio Grande do Sul. Fontes. Porto Alegre: Corag, 1987. 348


Bibliografia

BARRETO, Álvaro. Propostas e Contradições dos Círculos Operários. Pelotas: Edufpel, 1995. BARRETO, D. Francisco de Campos. Primeiro lustro da Diocese de Pelotas 1911-1916. Pelotas: Meira e Cia, sd. BATTISTEL, Arlindo e COSTA, Rovílio. Assim vivem os Italianos: vida, história, cantos, comidas e estórias. Porto Alegre: ESTEDUCS, 1982. BELLOTTO e CORREA. A América Latina de Colonização Espanhola. São Paulo: Edusp, 1979. BENTO, Claudio M. O negro e descendentes na sociedade do RS 1635 - 1975. Porto Alegre: IEL, 1976. BEOZZO, José Oscar. História da Igreja no Brasil. I - II - III, Petrópolis: Vozes, 1980. BERTUSSI, Paulo Iroquez e outros. A Arquitetura no RS. 2ed., Porto Alegre: Mercado Aberto, 1987. BETTO, Frei. Nicarágua Livre: o primeiro passo. Rio: Civilização Brasileira, 1980. BEYHANT, Gustavo e Hélène. América Latina de la independencia a la segunda guerra mundial. Mexico: Siglo XXI, 1965. BINA, Braz de. Folclórica. Goiânia, nº 7, ano 8. Goiânia: Univ. Católica, 1979. BLANCO, José del Basco. Identidad, Etnia, Nación. In Cuadernos de la casa chata. CIESAS, Montevideo, n. 174 ; BOFF, Leonardo. A Águia e a Galinha: uma metáfora da condição humana. 27ª Ed. Petrópolis: Vozes, 1998. _____. Et alii. Masculino e Feminino. In Revista de Cultura Vozes. Petrópolis:Vozes, n.9 1974 BOEIRA, N. e outros. RS: Cultura e ideologia. Porto Alegre: Mercado Aberto, 1980. BONI, Luís, A. de e COSTA, Rovílio. Os Italianos do Rio Grande do Sul. 3ªed. Porto Alegre: EST-Correio Rio-Grandense-EDUCS, 1984. BONINO, M.. Conciencia Latino Americana. Montevidéu: 1997. 349


Rio Grande do Sul Arquétipos Culturais e Desenvolvimento Social

BORGES, Jorge Luis. Obras Completas. Buenos Aires: Emecé Editores, 1990. BRUXEL, Arnaldo. Os trinta povos guaranis. Porto Alegre: Brindes, 1978. BUARQUE DE HOLANDA, Sérgio (Direção). História Geral da Civilização Brasileira. 10 vols. São Paulo: DIFEL, 1981. _____. Raízes do Brasil, 12ª ed. Rio de Janeiro: José Olímpio ed. 1978. BURX, Armindo. Franceses no Rio Grande do Sul. Porto Alegre: Metrópole, 1976. BYINGTON, Carlos Amadeu B. prefácio de O Martelo das Feiticeiras, 12ª edição, Rio de Janeiro: Rosa dos Tempos, 1997. CADOGAN, León. Ayvu Rapyta: Textos Míticos de los Mbyá-Guaraní del Guairá. Asunción: CEADUC-CEPAG, 1997. CAGGIANI, Ivo. Flores da Cunha. Porto Alegre: Instituto Estadual do Livro, 1997. ______. Igreja Episcopal do Brasil 1910 –1980. Santana do Livramento: 1988. ______. João Francisco. A hiena do Cati. Porto Alegre: Martins Livreiro, 1988. ______. O Poder Legislativo em Santana do Livramento. Santana do Livramento: 1988. ______. Segundo Regimento da Brigada Militar. Santana do Livramento: 1997. ______.Carlos Cavaco. Porto Alegre: Martins Livreiro, 1986. ______. David Canabarro. Porto Alegre: Martins Livreiro, 1992. CALDAS, Pedro Henrique. Zeca Neto e a conquista de Pelotas. Pelotas: Semeador, 1993. ______. Pedro Osório, sim senhor – retrato de um município. Pelotas: Satia, 1990. CALDEIRA, Jorge. Mauá - Empresário do Império. São Paulo: Cia. da Letra, 1995.

350


Bibliografia

CALLUF, Pe. Emir. O Pecado Mortal dos Bispos. Curitiba: Grafipar, sd. CAÑAS, Jaime. Qué hicienon dos agentes secretos en el rio de la plata. Buenos Aires: Plus Ultra, 1970. CANCLINI, Nestor Garcia. De las identidades en una época postnacionalista. Reflexión. Montevideo: Cuadernos de Marcha, 1995. CAPRA, Fritjof. O ponto de Mutação: A sociedade, a ciência e a cultura emergente. São Paulo: Cultrix, 1982. CARDOSO, Ciro F. e BRIGNOLI, Hector Perez. História econômica da América Latina. Rio de Janeiro: Graal, 1983. CARDOSO, Fernando H. Capitalismo e Escravidão no Brasil Meridional: O negro na sociedade escravocrata do Rio Grande do Sul. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1977. CARDOSO, Fernando Henrique e FALETTO, Enso. Dependência e Desenvolvimento na Améria Latina. 5ed., Rio de Janeiro: Zahar, 1970. CARONE, Edgard. A República Nova (1930 - 1937). 3ed., São Paulo: Difel, 1982. ______. A República Liberal II 1945 - 1964. São Paulo: Difel, 1985. ______. Revolução no Brasil Contemporâneo 1922 - 1938. 4ed., São Paulo: Ática, 1989. CASSOL, E. Histórico de Erechim. Erechim: P. Berthier, 1979. CASTEL, Robert. As metamofoses da questão social: uma crônica dos salários. Petrópolis: Vozes, 1998. CATÁLOGO - PELOTAS - 1945. CENTRO DE ESTUDOS MARXISTAS - LUZ E SOMBRA. Ensaios de Interpretação marxista. Porto Alegre: Edurgs, 1997. CESAR, Guilhermino. O Conde de Piratini e a Estância da Música. Porto Alegre: Instituto Estadual do Livro, 1978. _____. História do Rio Grande do Sul: Período Colonial. São Paulo: Editora do Brasil AS, 1980. 351


Rio Grande do Sul Arquétipos Culturais e Desenvolvimento Social

CHEUICHE, Alcy. Sepé Tiaraju. Porto Alegre: Sulina, 1978. CHIAVENATTO, Júlio José. Ströessner: retrato de uma ditadura. 2ed., São Paulo: Brasiliense, 1980. ______. O negro no Brasil, da senzala à guerra do Paraguai. São Paulo: Brasiliense, s/d. _____. Bolívia - Com a pólvora na boca. São Paulo: Brasiliense, 1981 _____. Guerra do Chaco – leia-se petróleo. São Paulo: Brasiliense, 1980. CNBB - A realidade. dos jovens no Rio Grande do Sul. Porto Alegre, 1975. _____.- Igreja e Educação. 3ed., São Paulo: Paulinas, 1977. CONTAG. As lutas camponesas no Brasil. Rio: Marco Zero, 1980. CORREA, Silvio Marcos de Souza. Sexualidade e Poder na Belle Epoque de Porto Alegre. Santa Cruz do Sul: UNISC, 1994. CORTEZ, Hernan. A Conquista do México. Porto Alegre: LPM , 1996. ______. A Conquista do México. Porto Alegre: LPM, 1986. ______. O Fim de Montezuma - Relatos da Conquista do México. Porto Alegre: LPM, 1996. COSTA, Jairo Scholl. São Lourenço do Sul - 1884 - 1984: 100 anos. São Lourenço: SME, 1984. COSTA, Rogério Hoesbaert da. RS: Latifúndio e Identidade Regional. Porto Alegre: Mercado Aberto, 1988. COSTA, Rovílio e NARCON, Itálico. Imigração Italiana no RGSFontes Históricas. Porto Alegre: EST-EDUCS, 1988. COTLER, Júlio. La Mecánica de Dominación Interna y de Cámbio Social en el Peru. in:Revista do Centro Latino Americana de Pesquisas em Ciências Sociais.Lima, Ano V, nº1, 1968. COUTY, Louis A. A Escravidão no Brasil. Rio: Fundação Casa Rui Barbosa, 1988. DACANAL, J. H. e GONZAGA, Sérgio. Rio Grande do Sul: Economia Política. Porto Alegre: Mercado Aberto,1979. 352


Bibliografia

_____. Rio Grande do Sul: imigração e Colonização Porto Alegre: Mercado Aberto, 1980. DALLA VECCHIA, Agostinho M. Vozes do Silêncio. 2vol., Pelotas: Edufpel, 1994 ______. Os Filhos da Escravidão. Pelotas: Edufpel, 1994. ______. As Noites e os Dias: Elementos para uma Economia Política da Forma de Produção Semi-Servil Filhos de Criação. Porto Alegre: PRCRS (Tese de doutorado) DESAL, América Latina y Desarollo Social, I e II. Santiago: Herder, 1966 DILL, Aidé Campello. O Ensino no RS. In: “RS: aspectos da cultura”, Porto Alegre: Martins Livreiro., 1994. DONGHI, Halperin. História da América Latina. Rio: Paz e Terra, 1974. DORNELES, Sejanes. Gumersindo Saraiva. O Guerrilheiro Pampeano.2ed., Caxias: Educs, 1988. DOURADO, Angelo. Voluntários do Martírio – Narrativa da Revolução de 1893 - 1896. (Fac-Símile - Porto Alegre: Martins Livreiro, 4ed., 1992.) DOWBOR, Ladislau. A Formação do Terceiro Mundo. São Paulo: Brasiliense, 1981. DUMAS, Alexandre. Memórias de Garibaldi. Porto Alegre: L&PM, 1998. DUSSEL, E. e outros. Das reduções Latino-Americanas às lutas indígenas atuais. São Paulo: Paulinas, 1982. DUSSEL, E. História da Igreja Latino - Americana 1930 - 1985. São Paulo: Paulinas, 1989. _____. Método para uma Filosofia da Libertação. São Paulo: Loyola, 1986. _____. Desintegración de la Cristandad Colonial y Liberación. Salamanca: Sigueme, 1978. _____. Para uma Ética da Libertação Latino-Americana. 5 vols. São Paulo: Loyola, 1977. 353


Rio Grande do Sul Arquétipos Culturais e Desenvolvimento Social

_____. América Latina y Conciencia Cristiana. Quito: Dom Bosco, sd. _____. El Humanismo Semita. Buenos Aires: Eldeba, 1969. _____. El Humanismo Helênico. Buenos Aires: Eudeba, 1968. Estudos Ibero-Americanos - ANAIS I SIMPÓSIO GAÚCHO SOBRE A ESCRAVIDÃO NEGRA Porto Alegre: Edipucrs, 1990. FAGUNDES, Antonio Augusto. Indumentária Gaúcha. 5ed., Porto Alegre: Martins Livreiro, 1992. FAUSTO, Boris. A Revolução de 1930 - Historiografia e História. 8ed., São Paulo: Brasiliense, 1982. FAVRE, Henri. A Civilização Inca. Rio: Zahar, 1987. FBEE - Mapa Etno-histórico de Curt Nimiendaju. Rio de Janeiro: IBGE, 1981. _____. Deuses, rituais e instituições do marxismo. Religião e Sociedade. FELIX, Loiva Otero. Coronelismo - Borgismo e Cooptação Política. Porto Alegre: Mercado Aberto, 1987. FERES, João Bosco. Propriedade da Terra: opressão e miséria. O meio rural na história Social do Brasil. Amsterdam: CEDLA, 1990. FERRAZ, João Machado. Os primeiros Gaúchos da América Portuguesa. Caxias: UCS, 1980. FERRI, Gino. Encantado: sua História e sua Gente. Encantado: Ed.BG, 1985. FIGUEIREDO, Osório Santana. A Cruel Batalha de Caiboaté. In Zero Hora. Porto Alegre: 6 de fevereiro de 1999. FIORI, Ernani Maria. Textos Escolhidos I (Metafísica e História) II (Educação e Política). Porto Alegre: L&PM, 1991. FLORES, Hilda A. H. Revolução Federalista. Porto Alegre: Martins Livreiro., 1993. ______. Sociedade, Preconceitos e Conquista. Porto Alegre: Nova Dimensão, 1989. 354


Bibliografia

______.Rio Grande do Sul: Aspectos da Revolução de 1893. Porto Alegre: Martins Livreiro., 1993. ______. Canção dos Imigrantes. Porto Alegre: EST-EDUCS, 1983. FLORES, Moacir. Revolução Farroupilha. Porto Alegre: Martins Livreiro., 1985. ______. Colonialismo e Missões Jesuíticas. Porto Alegre; EST, 1983. ______. História do Rio Grande do Sul. Porto Alegre: Martins Livreiro, 1986. ______. Modelo Político dos Farrapos. Porto Alegre: Mercado Aberto, 1977. FONSECA, C. Dutra. RS: Conflitos Políticos na Velha República. Porto Alegre: Mercado Aberto, 1983. FONSECA, Pedro C. Dutra. RS: Economia e Conflitos Políticos na República Velha. Porto Alegre: Mercado Aberto, 1983. FONTOURA, Antonio Vicente da. Diário 1844-45. Porto Alegre: Sulina, 1984. FONTOURA, Edgar Braga da. Sinopse da História do Rio Grande: 1737/1822. Rio Grande: Furg, 1985. FORRESTER, Viviane. O Horror Econômico. 4ª Reimp. São Paulo: Funesp, 1997. FORJAZ, Maria Cecília Spina. Tenentismo e Política. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1977. FORTES, Almir Borges Pontes. Compêndio de História do Rio Grande do Sul. 5ed., Porto Alegre: Sulina, 1960. FRANCO Jr., Hilário. A Idade Média, o nascimento do Ocidente. São Paulo: Brasiliense, 1986. FREIRE, Paulo. Pedagogia da Indignação: Cartas Pedagógicas e Outros Escritos. São Paulo: UNESP, 2000. FREITAS, Décio. ______ e outros. A Revolução Farroupilha: História e Interpretação. Porto ______. Escravidão de Indios e negros no Brasil. Porto Alegre:EST, 1980. 355


Rio Grande do Sul Arquétipos Culturais e Desenvolvimento Social

______. Socialismo Missioneiro. Porto Alegre: Movimento, 1982. _____. Escravos e Senhores de escravos. Caxias: Educs, 1977 _____.As metades desiguais. Zero Hora, em 20/02/2000, pg. 13 FREITAS, Heber e outros. Cronica Contemporanea de América Latina. América Latina y los imperialismos en la primera mitad de siglo XIX. Montevidéu: Ed.Banda Oriental, 1986. FRIEDMANN, M. Capitalismo e Liberdade, 2ª ed. São Paulo: Nova Cultural, 1985. _____. & Rose. Liberdade de Escolher: O novo Liberalismo Econômico. 2ª ed. São Paulo, Record, sd. FRONKENBERG, João V. História do Brasil por perguntas e respostas. Porto Alegre: Selback, VI ed., 1916. FUKUYAMA,F. O fim da história e o último homem. Rio de Janeiro: Rocco, 1992. _____. Confiança: Virtudes Sociais e a Criação da Prosperidade. Rio de Janeiro: Rocco, 1996. FURTADO, Celso. A Economia Latino-Americana. São Paulo: Nacional, 1978. _____. A nova independência - Dívida Externa e Monetarismo. Rio: Paz e Terra, 1982. GADAMER, Hans Georg. Verdade e Método – Traços Fundamentais de uma hermenêutica filosófica. Petrópolis: Vozes, 1998. GADELHA, Regina. As missões jesuíticas do Itatim, séc. XVI - XVII. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1980. GALEANO, Eduardo. A canção de nossa gente. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1978. ______. As caras e as máscaras. Porto Alegre: LPM, 1997. ______. Os nascimentos. Porto Alegre: LPM, 1996. ______. Dias e noites de amor e de guerra. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1978. GARAUDY, Roger. O Ocidente é um Acidente. Rio de Janeiro: Salamandra, 1978. 356


Bibliografia

GARCIA, Leônidas F. Estudos da História - Sociedades Antigas e Medievais. Goiania: UCG, 1988. GARDELIN, Mário e STAWINSKI, A.V. Capuchinhos, italianos e franceses no Brasil. GERTZ, Reni. O Fascismo no Sul do Brasil. Porto Alegre: Mercado Aberto, 1987. GEUDROP, Paul. A Civilização Maia. Rio: Zahar, 1987. GIACCARIA, B. e HEIDE, A. Gli Xavante. São Paulo: D. Bosco, 1972. GIORDANI, Mário Curtis. História da África anterior aos descobrimentos. Petrópolis: Vozes, 1985. GIRON, Loraine Slomp. Caxias do Sul: Evolução Histórica. Caxias: UCS, 1977. GOLIN, Tau. O Povo do Pampa: uma história de 12 mil anos do Rio Grande do Sul para adolescentes e outras idades. Porto Alegre: Sulina/EDIUPF, 1999. GONZAGA, Fischer Bissón. Nós os Gaúchos. Porto Alegre: Edifurgs, 1994. GONZALES, Lília e HOSENBALG. Carlos. Lugar de Negro. Rio de Janeiro: Marco Zero, 1982. GORSKI, Sonia Romero e outros. Sociedad, Cultura y Salud. Montevidéu: Universidad de la República, 1997. GOVERNO DO RS. FEE. A Economia Gaúcha e os anos 80. Porto Alegre: FEE, 1990. GOVERNO DO RS. Sesquicentenário da Revolução Farroupilha. Porto Alegre: 1985. GROSSELLI, Renzo. Vencer ou Morrer: Camponeses trentinos nas florestas brasileiras. Flonianópolis: Editora da UFSC, 1987. _____.Da schiavi bianchi a colloni: un progetto per le fazendas. Trento: EFFE e ERRE, 1991. GUADARRAMA, Pablo et alii. La Filosofia en America Latina: História de las Ideas. Bogotá: El Buho, 1993. 357


Rio Grande do Sul Arquétipos Culturais e Desenvolvimento Social

GUAZZELI, Cesar Barcellos. História Contemporânea da América Latina 1960 - 1990. Porto Alegre: Urgs, 1993. GUIARIGLIA, G. Gli Xavanti, in fase acculturativa. Milano: Univ. Cattolica, 1973. GUIMARÃES, Josué. Camilo Mortágua.S. Paulo: Círculo do Livro, 1980 GUTFREIND, Ieda. A Historiografia Rio-Grandense. Porto Alegre: Edurgs, 1992. GUTIERREZ, Ester J. B. Negros: Charqueadas e Olarias - um estudo sobre o espaço pelotense. Pelotas: Edufpel, 1993. HAYEK, Friedrich A. “A Pretensão do Conbhecimento”. Humanidades, vol II, n. 5, out-dez/83, Brasília, UNB. HEGEL, G.W.F. Ciencia de la Logica. Buenos Aires: Hachette, 1968. _____. Fenomenologia do Espírito I e II. 2ª ed. Petrópolis: Vozes, 1993. _____. Enciclopédia das Ciências Filosóficas em Compêndio. Vol I A Ciência da Lógica. São Paulo: Loyola, 1995. HERNANDEZ, José. El Gaucho Martin Fierro. Buenos Aires: Ciordia, 1968. HOFFMANN, G. e outros. Rio Grande do Sul: Aspectos da Geografia.3ed., Porto Alegre: Martins Livreiro, 1994. HOORNAERT, Ed. (Coord.) História Geral da Igreja na América Latina. Tomo I e II. Petrópolis, Vozes, 1977. ______. História da Igreja na América Latina e no Caribe – 19451995. Petrópolis: Vozes, 1995 (CEHILA). HUILCA. Creio em Deus e também no sol. INFANTE, Fernando Diaz. La educación de los Aztecas. 2ed., México: Panamá, 1993. INTENDÊNCIA DE PELOTAS. Posturas Policiais – S. Francisco de Paula, 1832 (?) INTENDÊNCIA MUNICIPAL DE PELOTAS. Almanach de Pelotas de 1913 - 1935. Pelotas. 358


Bibliografia

ISABELLE, Arsène. Viagem ao Rio Grande do Sul. Porto Alegre: Martins Livreiro, 1983. ITEPA. Programa Banco de Dados - Pelotas: Educat, 1991. JANTZEN, Sílvio Arnaldo Dick. A Ilustre Pelotense. Tradição e Modernismo em Conflito. Porto Alegre: 1991. JECUPÉ, Kaka Werá. A terra dos mil povos: História indígena do Brasil contada por um índio. São Paulo: Peirópolis, 1998. JUNQUEIRA, Carmem e CARVALHO, Edgard. Antropologia e Indigenismo na América Latina. São Paulo: Cortez, 1981. JUVENAL, Amaro. Antonio Chimango - Sátira Política. 24ed., Porto Alegre: Martins Livreiro.,1986. KERN, Arno A. Missões: Uma Utopia Política. Porto Alegre: Mercado Aberto, 1982. KITTO, H.D.F. A Tragédia Grega. Coimbra: Armênio Amado, 1972. KONETZKE, RICHARD. América Latina - La época colonial. 11ª ed. Mexico: Siglo XXI, 1981. KREUTZ, Lúcio. Magistério e Migração Alemã. A formação do professor católico teuto-brasileiro no RS. In: Educação e Realidade, N. 12, 1987, Porto Alegre: Urgs, 1987. ______. Percurso e dinâmica de uma Proposta Pedagógica. De Saxe Gotha ao RGS In: Pesquisa Histórica - Retrato de Educação no Brasil, Rio: UERJ, sd. KURZ, Robert. Os últimos combates. Petrópolis, Vozes, 1997, 3ª ed. _____. O Colapso da Modernização. São Paulo: Paz e Terra, 1996. LACOSTE, Yves. Os países subdesenvolvidos. São Paulo: DIFEL, 1981. LADRIÈRE,Jean. A Articulação do Sentido. São Paulo: EPU EDUSP, 1977. LAGEMANN, Eugênio. O Banco Pelotense e o Sistema Financeiro Regional. Porto Alegre: Mercado Aberto, 1985. LANDO, Adair M. e BARROS,E.C. Capitalismo e Colonização – Os alemães no RGS in RS: imigração colonização. Porto Alegre: Mercado Aberto, 1980. 359


Rio Grande do Sul Arquétipos Culturais e Desenvolvimento Social

LAS CASAS, Bartolomeu. Brevíssima relação de destruição das Índias – O paraíso destruído - A sangrenta conquista da América Espanhola. 2ed., Porto Alegre: LPM, 1984. LAYTANO, Dante de. Origem da Propriedade Privada no Rio Grande do Sul.Porto Alegre: Martins Livreiro, 1983. _____. História da República Rio-Grandense. Porto Alegre: SulinaARI, 1983. LAZZARI, Beatriz Maria. Ideologia e Imigração. Porto Alegre: ESTUCS, 1980. LEÓN, Zênia de. Casarões contam sua história. Pelotas: Hoffstäter, 1993. _____.Memórias da Escravidão Canoas: Lassale, 1991. LESSA, Barbosa. Rio Grande do Sul, prazer em conhecê-lo. Porto Alegre; Globo, 1984. ______. O Continente do Rio Grande. Porto Alegre: Globo, 1984. LIMA, Afonso Guerreiro. Noções de Geografia. Porto Alegre: Globo, 1939. I e II Parte. LISBOA, T. de A. Entre os Indios Münkü - A resistência de um povo. São Paulo: Loyola, 1979. LOPES, Luiz Roberto. História do Brasil Contemporâneo. Porto Alegre: Mercado Aberto, 1980 _____. História da América Latina. Porto Alegre: Mercado Aberto,1986. _____. História do Século XX. 2ed., Porto Alegre: Mercado Aberto, 1985. LOPES NETO, João Simões. Contos Gauchescos.Porto Alegre: Artes e Ofícios, 1998. _____. Casos do Romualdo. Porto Alegre: Globo, 1993. _____.Terra Gaúcha. Porto Alegre: Sulina, 1955. _____.Lendas do Sul. Porto Alegre: Martins Livreiro., 1991. LOURO, Guacira Lopes. História, Educação e Sociedade no RS. In: “Cadernos de Educação”, Porto Alegre: Educação e Realidade edições, 1986. 360


Bibliografia

LUGON, C. A República “Comunista” Cristã dos Guaranis - 1610 1768. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1977. MADEIRA, Felicia Reicher e MELLO, Guiomar Namo de. Educação na América Latina. Modelos teóricos e a realidade social. São Paulo: Cortez, 1985. MAESTRI FILHO, Mário José. Históra da África Negra Pré-Colonial. Porto Alegre: Mercado Aberto, 1988. _____. A Charqueada e a gênese do escravismo gaúcho. Porto Alegre: Educs-EST, 1984. _____. Depoimentos de Escravos brasileiros. São Paulo: Icone, 1988. _____. O Escravo no RS. Porto Alegre. _____ Três Palavras Vazias. In Zero Hora. Porto Alegre:20/09/1999, pg. 15. MAGALHÃES, Mário Osório. História e Tradições da cidade de Pelotas. Porto Alegre: Brindes, 1981. MAIA, João. História do Rio Grande do Sul. Porto Alegre: Selbach. s/d. MAIA, João.(membro do conselho escolar e inspetor da 7ª Região) História do Rio Grande do Sul: para o ensino cívico. 4ed., Porto Alegre: R.J. Machado, Tipografia de Cesar Reinhardt - 1904. MALINOWSKI, Bronislaw. A vida sexual dos selvagens. Rio: Francisco Alves, 1982. MAQUIAVEL, Nicolau. O Príncipe e Escritos Políticos. São Paulo: Abril Cultural, 1973. Coleção Os Pensadores, IX. MARANHÃO, R. e MENDES, Jr. A. Brasil. História, Texto e Consulta. 4 vol. São Paulo: Brasiliense, 1979. MARKUN, Paulo. Anita Garibaldi. São Paulo: Ed. SENAC, 1999. MARQUES, Alvarino da Fontoura. Evolução das Charqueadas RioGrandenses. Porto Alegre: Martins Livreiro., 1990. _____. Episódios do Ciclo do Charque. Porto Alegre: Edigal,

1987.

MARQUES, Lilian Argentina B. e outros. RGS: aspectos do Folclore. Porto Alegre: Mercado Aberto, 1992. 361


Rio Grande do Sul Arquétipos Culturais e Desenvolvimento Social

MARTIN, H-P e SCHUMANN, H. A Armadilha da Globalização: O Assalto à Democracia e ao Bem Estar Social. São Paulo: Globo, 1998. MARTINS, Edilson. Nossos índios, nossos mortos. Rio de Janeiro: Codeni. 1978. MARTINS, José de Souza. A militarização Da Questão Agrária no Brasil. Petrópolis: Vozes, 1984. MARX, K e ENGELS, F. Manifesto do Partido Comunista. São Paulo: Global, 1987. MATTOS, Tomás de. Bernabé, Bernabé! Montevideo: Ed.Banda Oriental, 1997. MATTOSO, Kátia. Ser Escravo no Brasil. São Paulo: Brasiliense, 1982. MC LUHAN, T.C. Pés nus sobre a terra sagrada. Porto Alegre: LPM, 1986. MEDEIROS, Manuel da Costa. História do Herval - descrição física e histórica. Caxias: UCS, 1980. MELATTI, Júlio Cezar. Indios do Brasil. 3ed., São Paulo: Hucitec, 1980. MÉLIGA, Laerte Dorneles e JANSON, Maria do Carmo. Encruzilhada Natalino. Porto Alegre: EST, 1982. MELLO, Leda Collor. Retrato de Lindolfo Collor. Rio de Janeiro: Sergas, 1988. MELLO, Marco Antonio Lírio de. Memória e negritude:Cultura, identidade e cidadania da imprensa negra em Pelotas. Pelotas: Fapers, 1992. _____. Reviras, Batuques e Carnanais. A cultura de Resistência dos Escravos em Pelotas. Pelotas: Edufpel, 1994. MELLO, Tancredo F. O Município de Santa Vitória do Palmar. 2ed., Porto Alegre; Martins Livreiro, 1992. MEZZA, Otilia. Vida de un niño mexicano en la gran Tenochtitlan. México: Panorama, 1993.

362


Bibliografia

MIRANDA, Luiz de. Livro do Pampa. 2ªed. Porto Alegre: Sulina, 1997. MONFRED, A. Z. Do Feudalismo ao Capitalismo. 3ed., São Paulo: Global, 1987. MONTANELLI, Indro. L’Italia dei Giolitti. Milano: Rizzoli, 1975. MONTEOLIVA, José Maria. O Dilema da Sexualidade. São Paulo: Loyola, 1990. MORAES, Eduardo José de. (chefe de comissão) Estudos definitivos da Linha de Canguçu Variantes da Estrada de Ferro do Rio Grande a Alegrete. Rio de Janeiro: Tip. Nacional, 1876. MOREIRA, Angelo Pires. A outra face de J. Simões Lopes Neto. Porto Alegre: Martins Livreiro 1983. _____. Documentos de Escravos de Pelotas. Pelotas, impressos. _____. Pelotas na tarca do Tempo (Rev. Farroupilha). III vol. 1835. Pelotas: Mundial, 1990. MOREIRA, Igor e COSTA, Rogério da. Espaço e Sociedade no RGS. Porto Alegre: Mercado Aberto, 1993. _____. Espaço e sociedade no RS. Porto Alegre: Mercado Aberto, 1986. MOTTA, José do Patrocínio. República Fratricida. Revoluções RioGrandenses 1835 - 1932. Porto Alegre: Martins Livreiro., 1989. MOVIMENTO SEM TERRA. Construindo o Caminho. Folheto, RS: 1986. MÜLLER, Telmo Lauro. Colônia Alemã: Histórias e Memórias. 2ed., Porto Alegre: Brindes,1981. MUÑOZ, R. Nova Consciência de Igreja na América Latina. Petrópolis: Vozes, 1989. MURARO, Rose-Marie. A Mulher no Terceiro Milênio. 4ªed. Rio de Janeiro, Record: Rosa dos Tempos, 1995. _____. Sexualidade da Mulher Brasileira: corpo e classe social no Brasil. Petrópolis: Vozes, 1983. NASCENO, Jofre. Imagem Reflexa. Goiânia: UCG, 1989.

363


Rio Grande do Sul Arquétipos Culturais e Desenvolvimento Social

NASCIMENTO, Heloisa Assumpção. Arcas de Lembrança. Subsídio para uma breve história de Irmandade do Santíssimo Sacramento e S. Francisco de Paula da cidade de Pelotas (1812 - 1912). Porto Alegre: Martins Livreiro., 1982. NEUMANN, Eduardo. O Trabalho Guarani - Missioneiro no Rio da Prata Colonial – 1640-1750. Porto Alegre: Martins Livreiro, 1996. NIMIENDAJU. Religião e Sociedade. São Paulo: Cortez. 1981. ______. Textos indigenistas. São Paulo: Loyola, 1982. OLIVEIRA, Ariovaldo U. de. A Geografia das lutas no campo. São Paulo: Contexto, 1988. OLIVEIRA, Franklin. Revolução e Contra-Revolução no Brasil. 3ed., Rio de Janeiro: Civilização Brasileira,1962. OLIVEIRA, Pedro A. Ribeiro de. Religião e Dominação de Classe. Petrópolis: Vozes, 1985. OLIVREIRA, A. e outros. Conhecendo o índio. Goiânia: Abreu, 1987. OTÃO, Ir. Primeiro Seminário de Estudos Gaúchos. Porto Alegre: PUC: 1958. PALACIOS, Alfredo. Masas y Elites en Iberoamerica. Buenos Aires: Columba, 1960. PEREIRA, André e WAGNER, Carlos Alberto. Monges Barbudos O Massacre do Fundão. Porto Alegre: Mercado Aberto, 1981. PEREIRA, Nunes. Moronguetá - Um decameron indígena. 2vol., Rio: Civilização Brasileira,1967. PESAVENTO, Sandra J. A Burguesia Gaúcha 1889-1930. Porto Alegre: Mercado Aberto, 1988. ______. A Economia e o Poder nos anos 30. Porto Alegre: Mercado Aberto, 1980. ______. O imigrante na política do Rio Grandense in: Imigração e Colonização, 2ed., Porto Alegre: Mercado Aberto, 1992. ______. Pecuária e Indústria. Forma de Organização do Capitalismo na Sociedade gaúcha do século XIX. Porto Alegre: Movimento, 1986. 364


Bibliografia

______. Pecuária e Indústria. Porto Alegre: Movimento, 1986. ______. República Velha Gaúcha: Charqueadas, Frigoríficos, Criadores. Porto Alegre: Movimento, 1980 ______. História do Rio Grande do Sul. Porto Alegre: Mercado Aberto, 1980 PICCOLO, Elga. A Resistência Escrava no Rio Grande do Sul.In: Cadernos de Estudo, Porto Alegre: Ufrgs, 1992. PIMENTEL, Fortunato. Aspectos Gerais de Pelotas. Porto Alegre: Tip. Gundlech, 1940. PINSKY, J. Modo de Produção na Antigüidade. S. Paulo: Global, 1982. _____. Feudalismo no Brasil in Modo de Produção Feudal. São Paulo: Global, 1984. ______. Escravidão no Brasil. 2ed., São Paulo: Global, 1982. PLATON. Obras Completas. Madrid: Aguilar, 1972. POMER, León. América, História, delírios e outras magias. São Paulo: Brasiliense, 1980. ______. Paraguai – Nossa Guerra contra esse soldado. Ed. Latino Americana. S. Paulo: Brasiliense, 1980. ______. Os Conflitos da Bacia do Prata. São Paulo: Brasiliense, 1979. PORTILLA, Miguel León. La Filosofia Nahuatl. Mexico: UNAM, 1979. PORTLEY, Rodolfo. El Laberinto de Salsipuedes. Montevidéo: La Republica, 1997. PRADO, Maria Lígia. A Formação das nações Latino Americanas. Campinas: Unicamp, 1986. PREFEITURA MUNICIPAL DE PELOTAS. Guia de Pelotas – 1973. PREISWERK, R. e PERROT, Dominique. Etnocentrismo e história América Indígena, PRIEN, Hans-Jürgen. La História del Cristianismo en America Latina. São Leopoldo: Ed. Sinodal, 1985. 365


Rio Grande do Sul Arquétipos Culturais e Desenvolvimento Social

PRODERF - Lazer Mirim - Rincão do Quilombo. Pelotas, 1982. PROENÇA, A. e BIOCCA. S. A Integração rumo ao século XXI. Pelotas: Educat, 1996. QUEVEDO, Júlio e TAMANQUEVIS, José C. Rio Grande do Sul: Aspectos da História. 2ed., Revisada. Porto Alegre: Martins Livreiro., 1990. REVERBEL, Carlos. Maragatos e Pica-Paus: Guerra civil e degola no Rio Grande. Porto Alegre: L&PM, 1985. RIBEIRO, Berta. Diário do Xingu. Rio de Janeiro: Paz e Terra. 1979. RIBEIRO, Darcy. As Américas e a Civilização. Petrópolis: Vozes, 1977. ______. Indigenato e Campesinato. Revista da Cultura. Petrópolis: Vozes, 1976. ______. O dilema da América Latina. Petrópolis: Vozes, 1978. ______. Uirá sai à procura de Deus. 2ed., Rio de Janeiro: Paz e Terra.1976. ______. Aos Trancos e Barrancos - Como o Brasil deu no que deu. Rio de Janeiro: Guanabara,1985. ______. O Processo Civilizatório. 4ed., Petrópolis: Vozes, 1978. RICHARD, Pablo e outros. Virada do século na América Latina. São Paulo: Paulinas, 1984. ______. Morte das Cristandades e Nascimento da Igreja. São Paulo: Paulinas, 1982. RICOEUR, Paul e outros. As culturas e o Tempo. Petrópolis: Vozes, 1975. ______.História e Verdade. Rio de Janeiro: Forense, 1968. ______. Interpretação e Ideologias. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1977. RABUSKE, Arthur. Pe. Antonio Sepp. O gênio das Reduções Guaranis. 2ed. São Leopoldo: Unisinos, 1979. ______. Ano dos Mártires das Missões. Porto Alegre: Pe. Reus, 1978.

366


Bibliografia

RAU, W. L. Anita Garibaldi a Heroína dos dois mundos. Resumo biográfico. Coletânea Particular, 1989. ROCHA, Manoel Ribeiro. Etiope Resgatado – Empenhado, sustentado,corrigido, instruído e libertado - Discurso sobre a libertação dos escravos no Brasil de 1758. Petrópolis: Vozes, 1992. ROCHE, Jean. A colonização Alemã e o Rio Grande do Sul. Porto Alegre: Globo, I e II, 1969. RODEGHERO, Carla Simone. O diabo é vermelho: imaginário anticomunista e a Igreja Católica no RS, 1945-1964. Passo Fundo: UPF, 1998. RODRIGUES, Camino. Origem Histórica e Repercussões do Fechamento do Banco Pelotense na Economia no Município de Pelotas.Pelotas: TEC: UCPel, 1995. RODRIGUEZ, Ricardo V. Castilhismo - uma Filosofia da República. Porto Alegre: Brindes,1980. ROMANO, Roberto. Brasil: Igreja contra o Estado. São Paulo: Kairós, 1979. ROMERO, José Luis. Breve história de la Argentina. Buenos Aires: Fund. de Cult. Econ., 1996. ROMERO, Luis Alberto. Breve história Contemporânea de la Argentina. Buenos Aires: Fund. Cult. Econ., 1994. ROMERO, Sonnia. Lugares de Producción de sentido en la frontera Rivera-Livramento. Porto Alegre: UFRGS, 1992 _____. (Org.) Antropologia. Pelotas: Edufpel, 1998. ROSA, Mário. Geografia de Pelotas. Pelotas: Edufpel, 1985. ROSALDO, Michele Z. e LAMPHERE, Louise (Coord). A Mulher a Cultura e a Sociedade. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1979. ROSENFIELD, Denise. A questão da Democracia. São Paulo: Brasiliense, 1984. RUAS, T. e COLIN,F. A Guerra dos Farrapos. Porto Alegre: LPM. Sd.

367


Rio Grande do Sul Arquétipos Culturais e Desenvolvimento Social

RUAS, T. e BONES, E. A cabeça de Gumercindo Saraiva. Rio de Janeiro: Record, 1997. RUBERT, Arlindo. História da Igreja no Rio Grande do Sul. Vol I. Porto Alegre: Edipucs, 1994. _____. História da Igreja no Rio Grande do Sul Vol II. Porto Alegre: Edipucs, 1998. RÜDIGER, Sebalt. Colonização e propriedade de terras no RS - Século XVIII. In: Caderno SALIS, Eurico. O solo e o homem no RS. Porto Alegre: Globo, 1959. SANTA ANA, Júlio de. A Igreja e o desafio dos Pobres. Petrópolis: Vozes, 1980. SANT’ANA, Elma. O folclore da mulher gaúcha. Porto Alegre: Tchê, 1984. SANTELLE, Jacques. A Civilização Asteca. Rio: Zahar, 1987. SAINT-HILAIRE, August de. Viagem ao Rio Grande do Sul. 2ª ed. Porto Alegre: Martins Livreiro, 1997. SÃO LEOPOLDO, José Felicionao Fernandes Pinheiro, Visconde de. Anais da Província de São Pedro. Porto Alegre: Mercado Aberto, 1982. SAVIANI, Dermeval e outros. Desenvolvimento e Educação na América Latina. São Paulo: Cortez, 1985. SCARINCI, Carlos. A Gravura no RS - 1900 - 1980. Porto Alegre: Mercado Aberto, 1982. SCHADEN, Egon. A Religião Guarani e o Cristianismo. In A População Missioneira, IV Simpósio Nacional de Estudos Missioneiros, Santa Rosa, Fafil D. Bosco, 1981. SCHILLING, Voltaire. EUA X América Latina: etapas da Dominação. Porto Alegre: Mercado Aberto, 1984. SCHLEE, Aldyr Garcia. Direito de Autodeterminação dos Povos. Pelotas: Ponto de Vista, 1965. _____. Et alii. Nós, os Gaúchos 2. Porto Alegre: Ediurgs, 1994.

368


Bibliografia

SCHNEIDER, Regina Portella. A Introdução Pública no RS 1770 1889. Porto Alegre: Vozes, 1993. SCHNEIDER, Regina Portella. A Instrução pública no Rio Grande do Sul - 1770 - 1889 SCHOOYANS, Michel. Déstin du Brésil. Bélgica: Duculot, 1973. SEATHL, Cacique. Resposta ao governo EUA, 1885. SEEGER, Anthony. Os índios e nós - Estudos sobre tribais brasileiras. Rio de Janeiro: Campus, 1980.

sociedade

SÉJOUR, Laurette. América Latina - Antiguas Culturas PréColombianas. México: Siglo XXI, 1994 SILVA, Jacira Reis da. Resistência Negra e Educação: Limites e Possibilidades no contexto de uma experiência escolar. Porto Alegre: Urgs (mestrado, inédito), 1992. SILVA, Joaquim. História do Brasil para o 4º ano ginasial de acordo com o programa do Colégio Pedro II. 3ed., São Paulo: Cia. Ed. Nacional, 1941. _____. História do Brasil para a 1a. série ginasial. 79ed., São Paulo: Cia. Ed. Nacional, 1958. SILVA, Petronilha B. G. Histórias de operários negros. Porto Alegre: Est., 1987. SILVEIRA, Hemetério. As missões orientais e seus antigos domínios. Porto Alegre: Echenique, 1910 SILVEIRA, José Luiz. O Rio Grande pelo Brasil - 1897 - 1932. Santa Maria: Machris, 1989. _______. Revelações Históricas da Maçonaria. Santa Maria: Palotti, 1985. _______. Notícia Histórica 1737 - 1998. Porto Alegre: Edigal, 1987. SIMCH, Terezinha de Lemos. A Unidade Familiar de Produção: uma visão antropológica. In ZANOTELLI e GORSKI. Antropologia – Integração – Ensaios. Pelotas: Edufpel, 1998 SIMON, Mário. Os Sete Povos das Missões - Trágica Experiência. Santo Angelo: Santo Antonio, 1984. 369


Rio Grande do Sul Arquétipos Culturais e Desenvolvimento Social

SKIDMORE, Th. e SMITH, P. História Contemporánea de América Latina. America Latina en el sigilo XX. Barcelona: Critica, 1996. SKIDMORE, Thomas. Brasil: de Castelo a Tancredo. 2ed., Rio: Paz e Terra, 1988. SODRÉ, Nelson Werneck. A Ideologia do Colonialismo - seus Reflexos no Pensamento Brasileiro. 3ed., Petrópolis: Vozes, 1984. SOUZA, Herbert e outros. América Latina: Novas Estratégias de Dominação. Petrópolis: Vozes, 1982. SUESS, Paulo. (Coord)) Petrópolis, Vozes, 1992 A Conquista Espiritual da América Espanhola (200 documentos – Século XVI TAMBARA, Elomar. Positivismo e Educação - Educação no RS sob o castilhismo. Pelotas: Edufpel, 1995. TEIXEIRA, Júlia Schütz. Impressões de Viagem na Província do Rio Grande do Sul (de Maximiliano Brochoren) 1875 - 1877. Porto Alegre: Martins Livreiro., 1989. THOMÉ, Iolanda Bettencourt. A Mulher no Mundo de Hoje. Petrópolis: Vozes, 1967. TOFFLER, Alvin. Powershift: As Mudanças do Poder. 4ªed. São Paulo: Record, 1995. TRAVERSONI, Alfredo. História del Uruguay. Montevidéu: Kapelusz, 1958. TRIUMPHO, Vera. Rio Grande do Sul: Aspectos da Negritude. Porto Alegre: Martins Livreiro, 1991. TUPINAMBÁ, T. História da Pobreza do Homem. Rio de Janeiro: Achiané, 1983. URCAMP - Fontes para a história da Revolução de 1893. Bagé: Urcamp, 1983. VALYNZHENICH, A. O liberalismo americano: mitos e realidade. São Paulo: Stampa, 1977. VASCONCELOS, Ophélia Barboza. Diário de Classe. Escola B. Pesqueiro, Passo das Pedras, Pelotas, 1922. VELHO, Otávio Guilherme. Capitalismo Autoritário e Campesinato. São Paulo: Difel, 1979. 370


Bibliografia

VERÍSSIMO, Érico. O Arquipélago I-II-III. Porto Alegre: Globo, 1979. ______. O Retrato. Porto Alegre: Globo, 1973. ______. O Continente.Porto Alegre: Globo, 1976. ______. Caminhos Cruzados. 30ed., Porto Alegre: Globo, 1995. VIANNA, Helio. Dentro e Fora do Brasil: Viagens. Rio de Janeiro: Americana, 1955. VIDART, Daniel. El Mundo de los Charrúas. Montevideo: Ed.Banda Oriental, 1998. VIEIRA, José Cipriano Nunes. O fundador do Herval. Bagé: Edifunba, 1988. VIEIRA, Cila Milano e outros. Levantamento Bibliográfico Parcial de Obra Rara. Biblioteca Rio-Grandense, Rio Grande: Furg, 1987. VIEIRA, Evaldo. Estudo e Miséria Social do Brasil de Getúlio a Geisel. São Paulo: Cortez,1983. VISCONDE DE S. LEOPOLDO. Anais da Província de S. Pedro. Porto Alegre: Mercado Aberto, 1982. VIZENTINI, Paulo Gilberto Fagundes. Da Guerra Fria à crise – 1945 a 1992. 2ª ed. Porto Alegre: Urgs, 1992 ______. O RGS e a Política Nacional - As oposições civis na crise dos anos 20 e na Revolução de 30. 2ed., Porto Alegre: Martins Livreiro., 1985. WAGNER, Carlos. O Brasil de Bombacha. Porto Alegre: Zero Hora, 1995. WASSERMANN, Cláudio. História Contemporânea da América Latina 1900 - 1930. Porto Alegre: Urgs, 1992. WEBER, Max. A Ética Protestante e o Espírito do Capitalismo. São Paulo: Pioneira, 1983. WEIMER, Günter. A Arquitetura. Porto Alegre: Ediurgs, 1992. WEIMER, Samuel. Minha Razão de Viver - Memórias de um repórter.9ªed. São Paulo: Record, 1987. WIEDERSPAHN, Henrique. O Convênio de Ponche Verde. Porto Alegre: Brindes, 1980. 371


Rio Grande do Sul Arquétipos Culturais e Desenvolvimento Social

YOUNG, Jordan e outros. Os militares e a Revolução de 30. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1979. ZAFRA, Antonio Castro. Los Círculos del Poder: Apparat vaticano. Madrid: Editorial Popular, 1987. ZANOTELLI. Jandir. A saga de um imigrante trentino. Pelotas: Edufpel, 1997. ______. América Latina: Raízes sócio-político-culturais. 2ª Ed. Pelotas: Educat, 1999. ______. (Org.) Antropologia, Pelotas: Edufpel, 1998;

372


Bibliografia

373


Rio Grande do Sul Arquテゥtipos Culturais e Desenvolvimento Social

IMPRESSテグ UCPel - Tecnologia Digital DocuTech Xerox do Brasil Outubro de 2000 374


A América na Civilização Ocidental do Estado de Cristandade

II - A América na Civilização Ocidental do Estado de Cristandade 1. O projeto da Europa conquistadora A Europa, no Estado de Cristandade, com o comércio internacional, com o Renascimento científico e cultural, com as revolucionárias descobertas (como a pólvora, a imprensa, a bússula e a vela triangular das caravelas), constituir-se-á, definitivamente a partir de 1453, Atlântico adentro, em Impérios Mercantis Salvacionistas. Primeiro Portugal (a partir de 1383 e até 1580), depois a Espanha (com predomínio até 1648), depois França e Inglaterra unida à Holanda até depois de 1850. A reunificação do Estado Nacional que se pulverizara no feudalismo medieval, com o ressurgimento da economia monetária e mercantil; com os exércitos e o dinheiro oferecido pela burguesia de cujo comércio a coroa extraía 20%; com a agregação da nobreza esfarrapada e empobrecida ao redor do rei em busca de títulos e glórias; com a bênção da Igreja “ Cristandade” , o projeto dessa Europa era: expandir a Fé e o Império por parte da Igreja e do Rei, alcançar novos títulos e privilégios para a nobreza e garantir o comércio internacional para os burgueses. Essa composição de interesses e de forças, dá ao projeto expansionista e “civilizatório” europeu um caráter de juventude, de “heroísmo” e aventura que culmina nas conquistas e guerras “santas” em nome da civilização e do cristianismo. A euforia, o entusiasmo, a prepotência, a agressividade do lutar e vencer, do “ navegar é preciso, viver não é preciso”, da “conversão” dos gentios, tudo apoiado no sucesso (mal calculado) dos lucros do comércio e de terras conquistadas, disso tudo resulta o fundamento real da Filosofia Moderna: “penso, logo sou” enquanto conseqüência de “conquisto, logo sou” . O EU, o grande EU conquistador da Europa, o Eu do rei e imperador que “acha por bem” estabelecer a lei e a norma que seu arbítrio determinar, será o centro e o critério para se pensar o mundo, a história, a economia e a religião. 89


Rio Grande do Sul Arquétipos Culturais e Desenvolvimento Social

A euforia do homem adâmico renascentista: dominador da natureza, através do conhecimento da observação e experimentação sensorial e da matemática enquanto matriz (Galilei, Copérnico, Newton, Fr.Bacon), conhecimento que se faz técnica (que alavanca e multiplica a capacidade de ver, de interferir, de manipular), pensará o homem como subjetividade, como centro, como critério e umbigo da verdade, da ética e da história. O racionalismo, o iluminismo, o empirismo, o idealismo , o romantismo e o positivismo serão tantas outras faces da mesma subjetividade. Já não mais as superstições e as crenças, já não mais a especulação silogística, mas a experimentação e a mensuração, longe do critério de autoridade e da tutela da Igreja. A política, enquanto administração e organização da sociedade, o Estado burocrático e técnico, seguirá uma “ética” semelhante: com Machiavel para quem os fins justificam todos os meios; com Hobbes para quem “o homem é lobo para o outro homem”, e com a crítica de Marx para quem a história é movida pela luta de interesses de classe. O absolutismo político ( L’État c’est moi” de Luiz XIV), o arbítrio de um rei, de um grupo ou uma classe, a vontade de poder até culminar nas patologias do Super-homem de Nietzsche, ou da super-raça responsável pela civilização de De Gobineau, Chamberlain ou Gumplowicz e que se mostraram nos holocaustos da estupidez nas guerras mundiais, mostram bem o significado da subjetividade moderna fundada em si mesma, do homem enquanto proprietário. O pragmático do conquistar engole o ético do face-à-face, engole o significado da vida. O poder econômico e seus correlatos, o poder político e cultural, enfunam as velas da imaginação e da volúpia européia. O poder acima de tudo. Para que? Qual o sentido do poder? Obviamente já não será o divino ou eclesiático, mas será a laica expressão da propriedade, do domínio econômico, do homem enquanto dono e proprietário de si mesmo, dos outros, do mundo e de Deus. A Democracia burguesa e liberal, que é expressão da liberdade de alguns, é veiculada como a expressão da liberdade de todos, da igualdade e da fraternidade. A liberdade como livre concorrência, como liberdade de empreender e contratar será o fundamento liberal do mercado todo poderoso, onde a virtude será o egoísmo da competência e competição levado ao paroxismo. A exclusão e a marginalização conseqüentes serão o mal necessário do qual ninguém é responsável e para o qual não cabe comiseração. O mercado onipotente e onisciente, insondável em seus “mistérios” como “mão invisível” da Providência, tudo ordena e julga 90


A América na Civilização Ocidental do Estado de Cristandade

premiando os mais aptos e excluindo os “incompetentes”. Não cabe interferir no mercado, mesmo porque é impossível: ele não se deixa conhecer e desvendar. Interferir nele, para extrair dele recursos destinados a políticas sociais a fim de amenizar a situação dos excluídos é temeridade e insensatez. Ele se vingará. E diante do ídolo do mercado serão sacrificadas as vítimas, pois todo o ídolo exige sangue e vítimas. Como a “moira” grega, o destino fatal ineludível, diante do qual de nada adianta querer fugir (como se vê no mito paradigmático da Grécia: o mito de Édipo o rei), o mercado impõe com fatalidade o destino dos povos. A eugenia (a purificação das raças e povos) que o próprio mercado pratica na História onde a fome, a guerra e as endemias eliminam os mais fracos, nada mais seria do que o curso natural das leis da natureza criada por Deus. A sobrevivência do mais forte e mais apto é uma lei natural e uma lei da história, dirá o darwinismo social.75 A extração da mais valia, como dirá Marx, que, até então, se fazia predominantemente sobre o trabalho dos servos da gleba, far-seá, agora de modo acelerado e cumulativo, sobre o trabalho dos operários na manufatura e depois na indústria. O comércio internacional, juntará a poupança dos povos, para dentro das metrópoles européias e fundará o modo de produção capitalista.

2. A expansão do Estado de Cristandade e a conquista da América É nesse contexto e dentro desse projeto que nasce a América Latina: um continente-colônia, de Cristandade, de latifúndios, de monocultura (extrativa, agrária ou agro-pecuária), escravagista, e de exportação. Um Estado de Cristandade Colonial que, enquanto servidor e dependente, copia para si próprio, os fundamentos e valores de “civilização” da madrasta metrópole européia. Mais do que nunca antes, aqui será imposta a fusão e confusão de Estado-SociedadeReligião, soldando as instituições econômicas, políticas, sociais e culturais. O homem das Américas, assim como o da África e Ásia, estará proibido de ser. Não se pode ser índio ou negro a não ser enquanto negação, enquanto coisa, objeto, escravo, encomendado, miteiro do senhor europeu, da metrópole européia. É proibido produzir para 75

Cf. Malthus e Spencer. 91


Rio Grande do Sul Arquétipos Culturais e Desenvolvimento Social

consumir: a produção de açúcar é toda para a exportação. A produção de milho, mandioca e outros insumos para a alimentação dos escravos só lhes é permitida aos domingos. É proibido o acesso à cultura, a não ser a dos serviços primários e à da catequese que ensina a mansidão e a obediência. A cultura tecnológica, jurídica, teológica, política é reservada aos filhos dos senhores. Nenhuma universidade: para evitar a independência. Isto especialmente no Brasil. Enquanto a América Latina já tem milhares de doutores formados em Universidades que iniciam em 1538, o Brasil só terá sua primeira universidade em 1934. Proibida será a fábrica, a ourivesaria, o jornal, o livro, a ciência, a técnica, isto é, proibida será a independência, a identidade, a autonomia. Proibida será a arquitetura, a urbanização, a dignidade e a liberdade. Proibida será a oração, a oração que se faz na liberdade, na profecia, na exigência de justiça e de paz. Serão obrigatórios os ritos, os mitos, os ditos e os prescritos (que geram proscritos) elaborados no caldo secular do Estado de Cristandade. A conquista, a invasão da América, com o saque, o estupro, o genocídio, a eliminação, a subjugação e escravização dos povos foi vista e vivida pelos europeus como uma guerra santa, como um serviço prestado a Deus e à pátria personificada no rei. Impressiona ver como os bárbaros invasores referem, em suas cartas, o morticínio e a rapina: “Foram servidos Deus e V. Majestade, em termos conquistado....” Tudo em nome de Deus e do rei. Tudo em nome do Estado de Cristandade e da propriedade sagrada: “Posto que o Capitão-mór dessa Vossa frota, assim como os outros capitães escrevam a Vossa Alteza a notícia do achamento dessa Vossa terra nova que agora nesta navegação se achou”...76como diria Pero Vaz de Caminha, na primeira carta ao rei de Portugal sobre o Brasil. Para evidenciar o significado de sacralização da guerra, nada melhor que o “Requerimiento” de 1514, lido pelo frei dominicano Vicente Valverde a Atahualpa, imperador dos incas que, desarmado com sua escolta, no dia 16 de novembro de 1532, aceitou convite de Francisco Pizarro, o conquistador espanhol, para um entendimento em Cajamarca: “Da parte do rei Fernando e da raínha Joana,...dominadores 76

Carta de Pero Vaz de Caminha, in Revista FESPI, Edição Especial, UESC, Florianópolis: 1997, pg. 6

92


A América na Civilização Ocidental do Estado de Cristandade

das gentes bárbaras, nós, seus servidores, vos notificamos e fazemos saber...que Deus, Nosso Senhor, vivo e eterno, criou o céu e a terra e um homem e uma mulher, de quem vós e nós, bem como todos os homens foram e são descendentes e procriados...De todas essas gentes, Deus encarregou a um homem que foi S. Pedro, para que fosse senhor e superior de todos os homens do mundo, a quem todos obedecessem e fosse cabeça de toda a linhagem humana, onde quer que os homens estivessem e vivessem, sob qualquer lei, seita e crença, e deulhe o mundo por reino e jurisdição... A este chamaram de papa... e depois dele outros foram eleitos ao Pontificado e assim continuaram até agora... Um dos pontífices ... como senhor do mundo, doou estas ilhas e terra firme do mar Oceano aos acima referidos rei e raínha e a seus sucessores nestes reinos, nossos senhores com tudo o que nelas existe... Por isso...rogamo-vos que entendais bem isto... e reconheçais a Igreja como senhora e superiora do Universo mundo, e o Sumo Pontífice denominado papa, e, em seu nome, o rei e a raínha Da. Joana, nossos senhores, em seu lugar como superiores e senhores dessas ilhas e terra firme, em virtude de tal doação, e consintais e permitais que estes padres religiosos vos prediquem e declarem sua mensagem. Se assim fizerdes,...deixaremos vossas mulheres, vossos filhos e vossas fazendas livres, sem escravidão... e se não o fizerdes,... certifico-vos que, com a ajuda de Deus, nós investiremos poderosamente contra vós e vos faremos guerra...”.77

O inescrupuloso conquistador, ex-criador de porcos da Extremadura, e governador F. Pizarro, que mandou decapitar seu companheiro de conquista Vasco Nuñez de Balboa, e que mentiu a Atahualpa que o deixaria livre se lhe desse o ouro suficiente para encher uma sala, que assassinara covardemente dois mil índios indefesos e desarmados aos gritos de “Santiago y a ellos”, e que assassinara Atahualpa sob a bênção e pressão do Padre Valverde, quando exortado por um sacerdote que providenciasse a evangelização dos índios, finalidade para a qual viera à América, respondeu: “Não é para isso que eu vim; eu vim para tirar-lhes seu ouro” e quando em 1541 caiu atravessado pela espada, desenhou no solo, com seu sangue, uma cruz, beijou-a e morreu.78 O padre Agostiniano Celso Garcia, testemunha ocular dos acontecimentos de Cajamarca, mostra os cuidados de incluir no contexto religioso a guerra, a tortura e a conquista: 77

PRIEN: 64

78

PRIEN: 64 e 65. 93


Rio Grande do Sul Arquétipos Culturais e Desenvolvimento Social

“Depois de adotar estas precauções, celebrou-se uma missa. Invocou-se o Deus das batalhas para que extendesse sua mão protetora sobre os soldados, que iam dispostos a lutar pelo engrandecimento do reino da Cristandade. Todos cantaram em uníssono, entusiasmados Exsurge, Domine, et judica causam tuam... Pareceu assim, que Atahualpa não desejava outra coisa senão ir ao fim que lhe fora estabelecido. Atrevo-me a afirmar que nisto estava a mão imediata da Divina Providência” e depois de falar que 12 mil índios foram executados a faca, anota que Frei Vicente Valverde “tratou de consolar Atahualpa e de fazêlo compreender que os que resistem aos combatentes de Cristo estão destinados à ruína” ... e depois os cristãos transformaram “Cajamarca num lugar de residência dos cristãos. Levantou-se ali um templo, no qual eram celebradas duas missas por dia. Pizarro não deixou de assistir a nenhuma” Estes mesmos cristãos não tinham o menor pejo em torturar seus inimigos, e assim trataram da escolta do Inca Huascar, até a morte, como também aos acompanhantes de Atahualpa que trouxeram o ouro, para que revelassem onde tinham enterrado os restos do tesouro de Pachakamac e “depois de lhes ter queimado a sola dos pés com ferro encandecente, estes revelaram o esconderijo. Eles não possuíam a perseverança dos cristãos”.79

Os métodos do terrorismo, de aniquilação dos símbolos da cultura indígena, de suas bibliotecas e obras de arte, de seus templos, escolas e sacerdotes,80 acompanhados de batizados em massa como Cortez costumava fazer no méxico e, especialmente das donzelas indígenas que seriam usadas como concubinas pelos espanhóis, inclusive a índia Marina, a concubina de Cortez e sua intérprete, métodos que visavam impor à força a cultura do Estado de Cristandade, não deixavam alternativa aos índios: morrer ou submeter-se. A conquista do Brasil, embora se a diga pacífica e sem violência,81 foi contudo na mesma esteira que a da América Espanhola, 79

PRIEN: 65. José de Acosta, bispo de Lima, lamentará depois o pecado e as atrocidades dos conquistadores. Cf. PRIEN: 65.

80

PRIEN: 66.

81

Embora o historiador inglês Angus Maddison diga que o Brasil teve sorte de ter sido colonizado por portugueses e que “ os portugueses se interessavam mais pelo lucro do que pela concessção de terra e eram menos cristãos militares que os espanhóis”, no entanto isto não é bem verdade nem para o Brasil e muito menos para o RS. Tem mais razão o escritor Eduardo Bueno (autor de Terra Brasilis) quando afirma que “toda colonização é perversa” Cf. Correio do Povo, 5/4/200 pg. 11.

94


A América na Civilização Ocidental do Estado de Cristandade

com as Entradas e Bandeiras, preando índios para a escravidão e destruindo suas formas de organização antes e depois de reduzidos pelos missionários religiosos. A imposição da cultura européia fez-se sob o signo de civilizar e evangelizar; evangelizar que, em tudo e sempre, era apenas civilizar, impondo o Estado de Cristandade como serviço civilizatório e evangelizador. “A sangue e fogo, com cães de carnificina e canhões, mediante rapto e violação, aniquilaram-se milhares de índios; outros milhões deles, todavia, pereceram nos primeiros decênios da colonização. ‘O que os soldados que aí estiveram, contaram ao objetivo Francisco de Vitória foi...tão horrível, que...foi proibida sua divulgação”.82

Por outro lado, dentro do projeto mercantilista, a conquista e a colonização foram, em geral, empreendimentos particulares, visando lucros comerciais, sob a proteção do Império e com a bênção do clero. A conquista militar da América Espanhola, realizada por empresas particulares através das capitulaciones,83 destruiu as culturas indígenas através da dominação da elite das altas culturas e da expulsão genocida das baixas culturas organizando seus espaços em plantations e haciendas. Os índios pouco reagiram, inclusive por idéias religiosas (aguardavam o retorno do Deus fundador). E os europeus organizaram uma colonização de exploração e não de povoamento, através da mineração e da extração de produtos exóticos com instituições como a mita, o repartiminento e a encomienda de índios, e a hacienda. No contexto do sistema mercantilista para o que confluíam interesses da Coroa, da nobreza, dos burgueses e do clero, mantem-se 82

PRIEN: 68.

83

“As capitulações, foram contratos em que a Coroa, por si ou por uma autoridade com poderes para representá-la, concedia permissão para explorar, conquistar e povoar terras. As capitulações constituíam fórmula jurídica consagrada desde o direito medieval ibérico e fixavam direitos e deveres recíprocos. Estabeleciam, em geral, que a Coroa: Não faria nenhum gasto material, tudo correndo por conta do particular que deveria, por sua conta e risco, recrutar os componentes da expedição, cuidar de seu transporte, providenciar para que todos possuíssem armas e alimentos etc...concedia o direito de repartir terras e índios...vitaliciamente...poderes militares e a jurisdição civil e criminal...prover ofícios públicos (enquanto adelantado)...evangelizar os índios; condicionando os privilégios ao sucesso do empreendimento e garantindo para a coroa 1/5 da pilhagem e o direito do subsolo.” AQUINO. JESUS. OSCAR, pg. 55-56. 95


Rio Grande do Sul Arquétipos Culturais e Desenvolvimento Social

o sistema de monopólio (de exploração, de comercialização) controlado por alfândegas com portos únicos na metrópole e na colônia, com frotas anuais, com taxações de 20% sobre todos os produtos. A estrutura política resultante com os “adelantados”, com os “juízes de residência” e “de visita”, com os “vice-reinos”, “audiências”, “cabildos” ou “ajuntamientos”, era o aparato burocrático-político ao qual se associava a Igreja com as reduções e missões religiosas e com a organização diocesana, provincial e de seminários, mosteiros, colégios e universidades, dentro das concordatas de Padroado, próprios do Estado de Cristandade para a tarefa de “evangelização”, “civilização”, dominação. Buscando o Oriente, a Europa encontrou a América como obstáculo e transformou-a em sua principal conquista. A partir dos focos irradiadores: Sto Domingo (e Cuba), Panamá, México e Lima, a Espanha constituíu o Império no qual o sol jamais se punha, no dizer de Felipe II. A conquista da América foi completa: econômica, política, cultural e espiritual. Neste sentido é relevante considerar como a estrutura religiosa do Estado de Cristandade justificou a conquista e a colonização, sem deixar de anotar o esforço de um punhado exemplar de evangelizadores que lutaram pela defesa dos índios.84 84

A defesa do índio como força de libertação na cristandade colonial. Enquanto situada no setor explorado ou marginalizado da formação social latino-americana qual a relação possível dos setores da Igreja com este setor e vice-versa? Neste setor (D) situa-se nitidamente a “defesa do índio” por uma geração dos bispos do séc. XVI: Bartolomeu de Las Casas, bispo de Chiapas (1544-1547), Antonio de Valdivieso, bispo da Nicarágua (1544-1550), João del Valle, bispo de Popayan (1548-1560), Diego Medellin, bispo de Santiago do Chile (1574-1593), Antonio San Miguel, bispo de La |Imperial (1569-11590) e a valente contestação das Ordens missionárias, como os dominicanos e franciscanos do séc. XVI. Nesta perspectiva libertadora situam-se os dois concílios provinciais latino-americanos: o terceiro Concílio de Lima (1582-83) e o Terceiro Concílio do México (1585). A defesa do índio é a defesa do “pobre”, a denúncia do sistema de exploração colonial e a colocação em questão, inclusive do ponto de vista teológico, da obra missionária. No Chile denunciava-se as injustiças e crueldades cometidas contra os índios; fazse uma resistência ativa contra a política dos governantes; pressiona-se para criação de “Audiências”, como instâncias jurídicas de defesa do índio; denuncia-se as torturas e os assassínios contra os índios presos de guerra etc. O Jesuíta Luis Valdivia escrevia ao rei que dos dois milhões de índios existentes no momento da conquista não restava senão trinta mil (1610). Ele próprio chega a afirma que a resistência armada do povo araucano estava em conformidade com a justiça. Diego de Medellin denuncia o trabalho forçado dos índios nas minas durante oito meses, ao qual se deve acrescentar dois meses para a ida e a volta, mesmo que não lhes sobre tempo para

96


A América na Civilização Ocidental do Estado de Cristandade

Dentre os documentos que evidenciam o Estado de Cristandade estruturado através da instituição do Padroado, confiando a Igreja à proteção e supervisão dos reis, enquanto lhes delega a propriedade das terras descobertas em nome de Deus, Criador e proprietário de todas as coisas, exemplificativamente podem ser destacados: a) A Carta Romanus Pontifex, de Nicolau V, em 8.1.1454 “concede aos reis de Portugal as terras desde os cabos Bojador e Num até a Índia”; b) A bula papal Inter Caetera, de Calixto III, de 13.3.1456 confirma a Romanus Pontifex e encarrega a Ordem de Cristo com a jurisdição ordinária (própria dos bispos) e a conquista espiritual das terras a serem descobertas fora da Cristandade”; c) A bula Ortodoxe Fidei de Sixto IV, em 10.8.1482 concede a Bula da Cruzada (equiparando a conquista do território espanhol aos árabes à cruzada à Terra Santa em indulgências e privilégios) aos Reis Católicos para a reconquista de Granada. Esta cai em poder dos espanhóis em 2.1.1492. O mesmo exército, com Colombo, em 2 de outubro do mesmo ano conquistará a América.85 d) A bula Eximiae Devotionis, de Alexandre VI (espanhol), em 3.5.1493 atribui, “por pura liberalidade” aos reis espanhóis os mesmos privilégios antes concedidos aos reis de Portugal sobre as terras descobertas e conquistadas86 e) A bula Inter Caetera do mesmo Alexandre VI, em 4.5.1493, concede aos reis da Espanha as ilhas e terras descobertas ou a descobrir, a ocidente de uma linha de polo a polo que passava a 100 léguas a oeste das Ilhas de Cabo Verde e Açores, para a “exaltação e dilatação da fé católica... para sujeitar a vós, por favor da Divina Clemência, as cultivar suas terras. E, como se fora pouco, os espanhóis roubam-lhes as colheitas (RICHARD, 1982:38-39). 85

“Na Crônica Mozárabe de 754 a “infeliz Espanha” aparece despovoada pela espada, a fome e o cativeiro. Suas cidades bonitas são entregues às chamas e aterrorizadas pedem paz. O invasor não cumpre a palavra. Seus habitantes morrem crucificados, degolados, ou fogem às matas. Suas desgraças só são comparáveis com Tróia, Babilônia, Jerusalém ou Roma... Com a conquista da América, a partir de 2 de outubro de 1492, um território muitas vezes maior que o da Espanha é despovoada e seus habitantes morrem crucificados, degolados ou fogem às matas” SUESS, pg. 246. Expulsos os árabes, “a partir de 31 de março de 1492, os Reis Católicos decretaram a expulsão ou conversão obrigatória dos judeus” Ibidem: 246. Portugal fará o mesmo em 1517.

86

SUESS: 246-7. 97


Rio Grande do Sul Arquétipos Culturais e Desenvolvimento Social

terras firmes e ilhas sobreditas, e reduzir à fé católica os moradores e habitantes delas”.87 O conflito que ocasionará com Portugal obrigará ao tratado de Tordesilhas em 1494 pelo qual ficavam à Coroa Portuguesa as terras aquém de um meridiano traçado de polo a polo e passando 370 léguas a oeste das ilhas de Cabo Verde, e à Coroa Espanhola as que ficassem além do meridiano.88 f) A bula também entitulada Eximiae Devotionis, de Alexandre VI, em 16.11.1501, concede aos reis da Espanha os dízimos (imposto eclesiástico de 10%) sobre as terras descobertas, com a obrigação de dispor os meios suficientes para a fundação das igrejas, o mesmo que tinha sido concedido a Portugal.89 g) A Universalis Ecclesiae de Julio II, em 28.7.1508 concede explicitamente aos reis da Espanha o direito do Padroado sobre a Igreja nas terras americanas conquistadas, anulando a bula Illius Fulciti de 1504 que não previa aos reis espanhóis o direito de apresentação da lista tríplice de nomes para a escolha dos bispos.90 h) A pedido de Carlos V, o breve Exponi Nobis (Omnimoda), de Adriano VI, em 10.5.1522 concede às ordens mendicantes da Nova Espanha amplos poderes no foro interno e externo (na ausência de um bispo): origem de inúmeros conflitos entre as ordens religiosas e a organização diocesana na Am. Latina.91 i)O breve Pastorale Officium de Paulo III, em 29.5.1537 reconhece a liberdade dos índios que devem ser convertidos com pregações e exemplos, e excomunga seus escravizadores: reforçando a Real Provisão de Madrid de 2.8.1530, arrancada da Corte por Bartolomeu de las Casas e Bernardino de Minaya.92 Igualmente a bula Sublimis Deus de Paulo III, em 2.6.1537 declara os índios livres e 87

SUESS:248-9

88

É significativa a manifestação do Rei Francisco I da França ao ser noticiado daquele tratado: “Gostaria que espanhóis e portugueses me mostrassem onde está o testamento de Adão, que dividiu o mundo entre Esapanha e Portugal”. OSCAR.JESUS.AQUINO: 49.

89

SUESS: 252-253

90

SUESS: 254-256.

91

SUESS: 256-258.

92

SUESS: 268-9

98


A América na Civilização Ocidental do Estado de Cristandade

capazes para a fé cristã, proíbe sua redução à escravidão e insiste em sua conversão através da palavra de Deus e do bom exemplo.93 J)O breve Non Indecens Videtur, de Paulo III, em 19.6.1538, revoga, a pedido de Carlos V, os breves anteriores, “redigidos na base de informações incorretas” permitindo, portanto a escravização dos índios. Com isso, Carlos V dá por revogados todos os breves e bulas anteriores sobre as Índias e estabelece que nenhum breve ou bula papal terão vigência em seu Império sem o consentimento (“Placet”) por escrito do Imperador. Paulo III visou com isso o apoio de Carlos V para seu neto Otávio Farnese no combate contra os turcos e luteranos.94 k) Meses antes de morrer, Bartolomeu de las Casas, em 1566, contra o que determinava o regime do Padroado (que impedia os bispos de se dirigirem ao papa diretamente sem o prévio consentimento do rei), dirige ao papa Pio V uma petição para que o papa determinasse que os índios fossem reconhecidos como capazes no campo político e religioso e para que os bispos fossem obrigados a defender a causa indígena. Na verdade Las Casas liderou um movimento para que a Coroa decretasse as Leyes Nuevas de 1542 reconhecendo o direito dos índios, leis essas que foram revogadas, especialmente com o advento de Felipe II, em 1556. Muitos foram os bispos e religiosos que defenderam intrepidamente os índios da sanha ensandecida dos conquistadores. A conquista da América, utilizando como focos de irradiação Santo Domingo desde 1496, Cuba desde 1511, Panamá desde 1509, México desde a invasão de 1519, Cuzco desde 1531 e Santiago do Chile desde 1541, invade, arrasa, genocidamente todas as culturas ameríndias. Até 1550, pode-se dizer que a conquista fora completa. “A espada, a cruz e a fome iam dizimando a família selvagem”(Pablo Neruda).95 A partir de 1550 inicia propriamente a organização do sistema colonial na América Latina.

93

SUESS: 273.

94

SUESS: 276-7.

95

“É admissível que a população estruturada nos Impérios Teocráticos de Regadio das Américas alcançasse um montante de 70 a 88 milhões de habitantes antes da conquista. Um século e meio depois, aquelas populações haviam sido reduzidas a cerca de 3,5 milhões, tal o impacto da depopulação a que foram submetidas” RIBEIRO, Darcy. As Américas e a Civilização: 109. 99


Rio Grande do Sul Arquétipos Culturais e Desenvolvimento Social

3. A organização e crise do Estado Colonial de Cristandade O Estado de Cristandade, de Cristianismo oficial e único do período medieval e renascentista, transforma-se em Catolicismo na primeira modernidade e como reação à Reforma Protestante. Como Catolicismo (Universal), faz-se mundial, gerando na América Latina um “catolicismo oficial periférico da primeira Modernidade”... e assim: “O protestantismo não é causa, mas efeito da Modernidade;[...]o Catolicismo é posterior e não anterior ao Protestantismo; [...] o Catolicismo latino-americano não é expansão do catolicismo espanhol, mas vai nascendo junto com ele e é hegemônico em todo um âmbito cultural antes mesmo da própria Espanha; [...] a religião oficial convive com a religião dos dominados e excluídos”.96

O centro formador do Catolicismo será Portugal e especialmente Espanha que, com a América Latina enquanto periferia, gerará o sistema “Império-mundo” desde Carlos V e mais ainda com Felipe II.97 A América Latina será incluída no Catolicismo nascente (porque antes não havia catolicismo) como sua periferia e seu mundo. Antes disso o Cristianismo não era nem ecumênico e nem mundial. Agora, a começar com a conquista do primeiro Império (o dos Astecas por Cortez em 1519), fora da Europa, o catolicismo (da contra-reforma protestante, da Península Ibérica e depois da parte sul da Europa) farse-á mundial buscando compensar a perda da Europa central e do Norte (que se fez protestante) com os povos da América, da África e da 96

DUSSEL, E. Sistema Mundo, Dominação e exclusão – Apontamentos sobre a história do fenômeno religioso no processo de globalização da América Latina in HOORNAERT, E. História da Igreja na América Latina e no Caribe (1945-1995) pg. 58

97

Ao assumir o Império Espanhol em 1556, quando da morte de seu pai Carlos I, Felipe II, que reinará até 1598, tibetizará o reino de tal modo que, para defender a unidade de seu império, a pureza da fé católica contra os hereges (protestantes), com proibição de espanhois estudarem em universidades estrangeiras, com a implantação da Inquisição e seus autos de fé e com a edição do Index Librorum Prohibitorum (1559). A América Latina fechar-se-á, portanto dentro da tibetização espanhola defendendo a pureza do catolicismo inaugurado pela contra-reforma do Concílio de Trento (1542-1565). O Renascimento cultural italiano e da Europa Central não atingirá a Espanha e Portugal apesar de Cervantes, Velazquez... GUADARRAMA: 82.

100


A América na Civilização Ocidental do Estado de Cristandade

Ásia.

O Catolicismo na América Latina será, desde suas origens, uma religião oficial, com estruturas de Dioceses que abrangem todo o território, com suas subdivisões de paróquias, doutrinas, encomiendas, missões e reduções... “O ‘sistema-mundo’ se instala rapidamente: encomiendas, mitas, minas, fazendas, escravos, caminhos, fortes, igrejas, reduções, doutrinas, paróquias, cidades, dioceses, portos, rotas marítimas...o primeiro mercantilismo mundial que, pela Espanha, une a Europa com o Caribe, pelo Panamá com o Peru até o Chile, e por Acapulco no México com as Filipinas, na Ásia. E por Portugal, une a Europa com o Brasil, a costa ocidental e oriental da África, Goa, Colombo, Indo-China e Macau, na China, e até o Japão (onde já chegou Francisco Xavier). ‘Sistema Mundo’, destruição de oposições militares, conquista de povos e nações, dominação de culturas, processo de ‘endoutrinamento’ dentro do ‘catolicismo’ oficial nascente...e exclusão dos que não se rendem (como os Mapuches no sul do Chile) ou os insignificantes mercantilmente valorizados (como muitos maias, amazônidas, ou muitos outros). O fenômeno religioso oficial fica então definido pela negação radical (a tábula rasa) das antigas religiões que são demoníacas ou satânicas, principalmente em suas estruturas mais conscientes (seus templos, lugares de culto públicos e privados, calendários, escolas de sábios, teologias explícitas, interpretação da vida cotidiana, ritos, danças, organização agrícola sagrada etc), e pela implantação violenta do ‘catolicismo’ (nova vivência religiosa que será mais estruturada e mais anti-protestante à medida que transcorre o século XVI, que é justamente o tempo de implantação da Igreja Católica com suas estruturas institucionais). O processo triunfal dura de 1492 a 1620 aproximadamente. Nesta última data começa o declínio da exploração das minas de prata. Fundam-se as últimas dioceses ao sul (Buenos Aires) e ao norte (Durango) de toda a época colonial. Em 1623 organiza-se, como contrapeso do padroado, a Propaganda em Roma. Acontece, além disso, um pouco antes da emancipação de Flandres, quando, a partir de 1630 inicia a hegemonia de Amsterdã sobre Sevilha”.98

Coincidindo com a dominação imperial, o catolicismo oficial será preponderante nas cidades. No interior, e quanto mais distante do controle institucional, o catolicismo acontecerá como um sincretismo 98

DUSSEL, in HOORNAERT pg 61-62. 101


Rio Grande do Sul Arquétipos Culturais e Desenvolvimento Social

com antigos cultos e religiosidade dos ameríndios e negros. Assim o catolicismo ‘popular’, tanto mais autônomo da hierarquia católica quanto mais próximo do período de emancipação política da América Latina, passará a sofrer decisiva influência dos países protestantes no final do século XIX e mais ainda no século XX. Enquanto isso, o processo de globalização do ‘sistema-mundo’ destruirá a organização familiar e comunitária mestiça, índia e do negro. Coincidindo com a revolução industrial, a hegemonia do protestantismo periférico econômica e politicamente, far-se-á sentir, sempre ligado às Igrejas mães do Norte. Quando a globalização se fez mundial, a religião dos excluídos da globalização retoma as rédeas do controle pelos próprios excluídos, no paradoxo dos pentecostalismos e de todo tipo de seitas. O Estado de Cristandade Colonial, foi fortemente armado sob a prepotência de Felipe II e a abdicação da supremacia da Religião sobre a Política por parte do papa. Tudo costurado em concordatas de Padroado.99 A Igreja na Colônia, vista como integrada e dependente do Estado, como “aparelho ideológico” do Estado100 que se fundia com a 99

O Padroado Régio, uma das realidades mais importantes a ser considerada na análise do Estado de Cristandade Colonial, colocava praticamente nas mãos da Coroa a responsabilidade de evangelização na América. Eram os reis católicos que enviavam os missionários e tinham o direito de receber os dízimos, para financiar a evangelização e o culto. Criavam novas Fundações eclesiásticas. Toda a correspondência do Papa com a Igreja latino-americana devia passar pela Coroa espanhola. Nas colônias portuguesas o rei exercia o privilégio do Padroado através de todas as ordinárias do poder colonial: o Conselho Supremo das Índias, as “Audiências Reais”, os vice-reis, os presidentes e os governadores. Não se tratava apenas de uma legislação escrita mas o poder colonial chegou a controlar de maneira abusiva, a vida interna da Igreja Hierárquica e das ordens religiosas. “Tanto a legislação, como o uso e o abuso do Padroado tiveram como conseqüência a integração da evangelização, da construção da Igreja e de suas obras educativas e sociais na empresa de exploração capitalista-colonial da América Latina” (RICHARD, 1982:39).

100

Segundo Pablo RICHARDd há uma integração global da cristandade colonial (1492-1808) na formação social capitalista. A cristandade colonial é parte integrante do conjunto da formação social latino-americana periférica e dependente. (A Igreja estava em todos os setores: no setor das relações capitalistas de produção; das relações feudais e pré-capitalistas de produção( onde se situa integralmente a cristandade colonial e a Igreja); nos setores dominantes ligados a um desenvolvimento capitalista autônomo ou nacional da economia e da sociedade latino-americana; nos setores explorados e marginalizados pela formação social latino-americana. Ela está dividida

102


A América na Civilização Ocidental do Estado de Cristandade

religião no Estado de Cristandade, gerou dois tipos de catolicismos: um próprio da elite espanhola e crioula para quem a religião é a justificação da arbitrariedade do Estado e de seus funcionários. Para estes, o clero não passava de funcionário público, com a função de exortar, incitar, conclamar o povo à obediência ao rei, como dever cristão. Catolicismo (o protestantismo era inimigo do Rei e dos Impérios português e espanhol, especialmente dos jesuítas, os soldados da contrareforma) e patriotismo eram sinônimos. O juramento de fidelidade dos bispos ao rei aumentava ainda mais essa relação. Por outro lado há o catolicismo popular, barroco (expressando a vida, as cores, a festa, a sensibilidade, sem a ordem retilínea da racionalidade grega e neo-classica; santos em profusão com o tempo e o espaço reais bem assinalados), de procissões, devoções, santos, ordens terceiras, confrarias, das virgens (Guadalupe, Lujan, Aparecida...) catolicismo esse liderado pelo baixo-clero aliado aos escravos e exescravos, e aos crioulos e mestiços pobres bem como aos índios. Este catolicismo popular conseguirá cada vez mais autonomia ante o controle da hierarquia como referimos acima. As contradições entre uma Igreja subordinada ao Estado e justificação ideológica de sua ação por um lado e por outro de uma Igreja que luta pela libertação dos índios e dos pobres manifestam-se permanentemente durante todo o período colonial.101 O Estado de por todas as contradições.) (RICHARD, 1982:38). “Sua integração é econômica, política, ideológica e teológica (propriedades da Igreja, dízimos, integração do clero ao governo colonial, legitimando a colonização e, sobretudo, o Padroado Régio)” (RICHARD, 1982:38). Tanto no nível econômico, político, ideológico ou religioso a totalidade da formação social latino-americana tem um caráter capitalista, exteriormente dependente e interiormente “de classes” e, como conseqüência desse fato, ela tem um caráter conservador, retrógrado, antinacional e gerador de injustiça e subdesenvolvimento. 101

O conflito entre Padroado e certos setores da Igreja, que sempre existiu, intensificouse no séc. XVII e mais no séc. XVIII pela crescente integração da formação social latino-americana no capitalismo mercantil europeu. Com a decadência da Espanha, a partir de 1700, e o início da dinastia dos Bourbons, com o Tratado de Utrech (1713) pelo qual a Espanha e Portugal perderam o domínio dos mares, a Inglaterra começa a dominar mais diretamente na América Latina, conquistando novos mercados, a monopolizar o comércio dos escravos e das mercadorias e o contrabando efetivo. Com as reformas dos Bourbons no final do século XVIII a integração e a dependência da América Latina em relação à metrópole se reforçaram, tornando o confronto interno das classes mais agudo enquanto se aprofunda o subdesenvolvimento econômico, político, ideológico da formação social latino103


Rio Grande do Sul Arquétipos Culturais e Desenvolvimento Social

Cristandade, no bojo da formação capitalista mercantil, manufatureira, industrial que era o projeto europeu, soldava religião, economia, política e cultura na América Latina, a serviço da metrópole (Espanha, Portugal e depois Holanda e Inglaterra) estruturando a América Latina como dependente (e depois da independência política como neo-dependente) e ao mesmo tempo dividida internamente em classes, castas de opressores e oprimidos. As lutas contra esse estado de coisas acompanha toda a história da América. Desde a resistência dos astecas (de 1519-1521) até as lutas de independência e pela libertação.102 americana. Neste contesto , a contradição entre Igreja e Padroado adquire uma dimensão social e política libertadora. Os principais opositores do Padroado, foram os jesuítas. A fundação, em Roma, em 1623, da Propaganda Fidei contribuiu também para acentuar positivamente essa contradição (RICHARD, 1982:41). No contexto da contradição entre Igreja e cristandade colonial (Ig. - formação social capitalista latino-americana), as “reduções” e “doutrinas” do séc. XVII e XVIII, no Paraguai, Brasil, Peru, Bolívia, Equador, México, até São Francisco e Alta Califórnia, tiveram um sentido libertador. Com os Franciscanos, dominicanos e principalmente jesuítas, a defesa do índio concretizou-se de maneira eficaz. Em 1750 os jesuítas tinham em suas organizações mais de 80.000 índios guaranis, que assim organizados podiam resistir à exploração colonial. A “Redução” se distinguia e se opunha nitidamente à “Encomienda” e outras formas de exploração colonial. Nas reduções, além de ensinar doutrina eram criada estruturas de organização econômica e política que incluía, com freqüência, até mesmo a organização militar (RICHARD, 1982:41-2). 102

A contradição principal entre essas correntes de libertação e o sistema do dominação colonial está igualmente presente no interior da Igreja latino-americana, desde sua origem, dando-lhe especificidade própria o original, distinguindo-a das outras Igrejas européias. (RICHARD, 1982:43). Dentre as lutas de libertação podemos destacar: Lutas de libertação do período colonial: Insurreições indígenas, posteriores à conquista da América: Araucanos do Chile, os calchaquis da Argentina, os Charruas do Uruguai e os Caraíbas da região antilhana. A partir de 1700 as insurreições são mais freqüentes e mais importantes: 1.Em 1723 há uma violenta rebelião de araucanos no Chile (vencidos somente de 1880-1883. 2. Entre 1735 e 1750, João Santos Atahualpa dirigirá e inspirará diversas insurreições de índios na Bolívia e no Peru. 3. As revoluções do índios que trabalhavam nas minas tem um caráter tipicamente social e anticolonial. Elas eclodem em quase todos os lugares onde se extraíam minérios para a exportação. 4. Em 1752 surge uma guerra de quatro anos dos índios guaranis contra as autoridades espanholas e portuguesas. Esses índios estavam organizados nas reduções dos missionários jesuítas. Ganharam a guerra e é o único caso de uma revolução indígena vitoriosa.

104


A América na Civilização Ocidental do Estado de Cristandade

Na Independência, o alto clero, a exemplo das “juntas” de resistência espanholas (contra a invasão e dominação napoleônica que havia aprisionado, em Paris, o rei Fernando VII e sua família bem como o papa, em 1808), era regalista contra Napoleão, pregando a auto-determinação dos povos e o direito de resistência. Quando, porém, esses princípios foram reclamados pelos crioulos para serem aplicados 5. No séc. XVIII há muitas insurreições das quais participam índios e negros, mulatos e mestiços, o que revela o caráter social e não puramente étnico desses conflitos. São conflitos que surgem geralmente na estrutura econômica e política do sistema de exploração colonial e ao mesmo tempo contra a sua estrutura. 6. Em 1780 estoura a mais importante guerra de libertação de toda a América, dirigida por José Gabriel Condorcanqui, cacique de Tangasuca, chamado Tupac Amaru. O sentido dessa guerra é posto em evidência nas palavras de Tupac Amaru, na véspera de sua morte diante do enviado do Vice-rei: “Os únicos conspiradores são vós e eu. Vos, como opressor do povo, e eu, por ter tentado tirá-lo desta tirania”. A revolução de Tupac Amaru permanece como símbolo de todos os movimentos de libertação na Am. Lat. até nossos dias. O bispo de Cuzco condenou a guerra de Tupac Amaru e pessoalmente comandou a defesa militar da cidade, chegando inclusive a organizar militarmente os seminaristas de sua diocese. Insurreições dos negros e multados 7. As revoluções dos negros tem uma dimensão social e política mais desenvolvida. São centenas de revoluções dos cimarrones (negros fugitivos) no período colonial. O grau de organização dos revolucionários negros assegurava uma resistência relativamente vitoriosa ao sistema de exploração colonial. O caso mais conhecido é o da organização da “República dos Palmares”, uma espécie de Estado livre constituído pela federação de aldeias(quilombos) dos escravos, que permaneceram imbatíveis de 1630 a 1695. O quilombo como método de organização revolucionária é uma conquista de nossa tradição libertária latino-americana. 8. As insurreições de negros no Brasil serão ininterruptas até 1888. As idéias revolucionárias, republicanas e inspiradoras da independência, foram cultivadas na América Latina, sobretudo pelos negros e mulatos no Brasil, no Uruguai, Venezuela e nas Caraíbas especialmente. A conjuração dos mulatos dirigida pelo Alferes Tiradentes tem um caráter paradigmático: em 1789 ela tentou impedir o envio de ouro para Portugal. O movimento se estendeu a todo o Estado de Minas Gerais. Em 21 de abril de 1792 ele é executado. A conjuração inspirou-se nas idéias das “Luzes”. 9. A conjuração dos alfaiates na Bahia, em 1798, teve o mesmo caráter. Este movimento popular, constituído sobretudo por mulatos, proclamou a República da Bahia. Segundo historiadores foi o movimento social mais claramente político da época colonial. Insurreição dos crioulos brancos. 10. São as revoluções de libertação contra o sistema colonial. As duas mais conhecidas são a de Assunção (Paraguai) e a de Socorro (Nova Granada). Em 1721 eclodiu a revolução dos comuneros, de Assunção, dirigida pelo magistrado José Antequera contra o Vice-rei. A rebelião foi sufocada mas recomeça em 1730, sob a direção de Fernando Mompo, igualmente com um caráter democráticorevolucionário. 105


Rio Grande do Sul Arquétipos Culturais e Desenvolvimento Social

também na América Latina (e agora contra as metrópoles), falou mais alto o juramento de fidelidade que haviam prestado ao rei. O baixo-clero que pregou, em catequeses e sermões, conclamações para a auto-determinação da América Latina (Independência), que servia às revoluções de independência como oradores, como soldados, como engenheiros (fundindo até os sinos das igrejas para fazer canhões), chocou-se com a elite espanhola e crioula aliada ao alto clero e então foi perseguido. A maçonaria que, movimento de clandestinidade iluminista, racionalista e positivista, era sua aliada, agora se torna anticlerical por um lado (inclusive contra o baixo clero), e anti-popular por outro: a luta da independência para mudar a estrutura escravagista não teve sucesso como o baixo clero queria e os excluídos aspiravam. O catolicismo popular será sincrético, leigo, barroco, de ordens terceiras e confrarias e, na família, será sustentado pela mulher. Por isso o homem, desprezando o culto, a liturgia, as procissões e os sacramentos, no entanto permitia à mulher frequentá-los. O homem, em Pelotas, (1975) conduzia sua mulher até a porta da Igreja; esperava fumando pelo término da liturgia... A religião olhada pelo positivismo (enquanto sentimentalismo e altruísmo primitivo e próprio ao temperamento das mulheres, sem muita racionalidade) aproximou-se do catolicismo barroco e de muitos símbolos e rituais indígenas e africanos. Dentro do Padroado, no Estado de Cristandade espanhol ou português, o rei detinha a autoridade absoluta sobre a política e sobre a religião. Um embaixador do rei em Roma e um núncio apostólico do papa junto ao rei deveriam fazer a interface e manter a comunicação entre o papa e o rei. Na verdade, este caminho quase sempre tinha uma só mão: do rei para o papa. Abaixo do rei estava o Conselho das Índias que superintendia todos os negócios econômicos, políticos, jurídicos e eclesiásticos com a América. 11. Mais importante foi a revolução dos comuneros de Socorro, em Nova Granada, em 1781 (contemporânea à revolta de Tupac Amaru. Os comuneros chegaram a organizar um exército para marchar sobre Bogotá. O movimento se estendeu a diversas cidades da Colômbia, Venezuela, e Equador. Participaram também índios e mulatos, dando-lhe um caráter nitidamente social e político. “O arcebispo Antônio Caballero y Cóngora desmpenho um papel lamentável, pois desmobilizou o exército dos comuneros com promessas que ele próprio, em seguida, não reconheceu. A repressão do Vice-rei foi sangrenta. No entanto, a luta continuou sob a direção de um antigo seminarista mulato, José Antônio Galan, que, por sua vez, foi executado em Janeiro de 1782” (RICHARD, 1982:43-46). 106


A América na Civilização Ocidental do Estado de Cristandade

Enquanto isso, na colônia, o governo civil se hierarquizava desde o vice-rei, as audiências, os governadores e os ‘cabildos’; o governo eclesiástico estruturava-se, por um lado, com o episcopado (e junto a ele a Inquisição), sendo-lhe subordinado o clero secular à testa de paróquias e um ‘cabildo’ eclesiástico junto à diocese; sendo as paróquias divididas em paróquias de espanhóis e paróquias de índios (também chamadas de doutrinas) e, por outro lado, as ordens religiosas com seus conventos, colégios, missões, reduções e doutrinas ao mesmo tempo ligadas ao episcopado e ao papa (como eram os jesuítas). Pouquíssimas dioceses103 para organizar a vida religiosa em tão imensas distâncias, e com bispos frequentemente vacantes ou ausentes, com a intromissão da política em questões religiosas (que iam desde a nomeação do bispo até a remuneração e a criação de paróquias, seminários, conventos, e o clero e a exigência de juramento de fidelidade), ante a ganância desenfreada de ‘conquistadores’ a cata de ouro, poder e aventura com todos os meios e métodos imagináveis, e tudo em nome do rei e do catolicismo, formou-se aqui uma experiência religiosa única, um misto de sincretismo religioso, de autonomia laica com seus beatos e ordens terceiras, com procissões, devoções, santos e imagens em profusão, com atos penitenciais traduzidos em sofrimentos e chagas, sem a perspectiva libertadora da Ressurreição, com um formalismo ritual que, muitas vezes, encobria o vazio teológico. É nesse contexto que o culto aos mortos (missas de sétimo dia, de trigésimo dia...) é acompanhado com superstições de ‘almas penadas’, de lobisomens, de visões trágicas e demoníacas que bem refletem a perda de horizonte (cultural) e a tragédia de não encontrar um futuro claro e justo. No Estado de Cristandade Colonial estão todas as instituições sociais, sintetizadas no Estado e na Igreja Católica. Nele insere-se a família, a educação, a economia, a arte, a política, a filosofia, a teologia, a recreação, o direito e a jurisdição. A educação, como no projeto para o Brasil trazido em 1549 pelo P. Nóbrega, destinava-se ao segmento dominante, branco, europeu com os colégios e o ensino de Latim, Direito, Literatura e Humanismo 103

Em 1620 a América Latina contava com 27 dioceses e o Brasil com uma só diocese com sede em Salvador da Bahia. No advento da República o Brasil contava com 11 dioceses. O dízimo que era arrecadado para sustentar a religião era poupado nas poucas instituições eclesiásticas mantidas. 107


Rio Grande do Sul Arquétipos Culturais e Desenvolvimento Social

na perspectiva do Trivium e Quadrivium da Idade Média. Depois, organizada também pela Ratio Studiorum dos jesuítas, destinada à população indígena, mulata e pobre, uma educação precária ensinava a ler, escrever e contar como propedêutica ao estudo do catecismo, bem como os ofícios de artesanato como os de alpercateiros, marcineiros, ferreiros etc. Diferentemente do Brasil, a América Espanhola, disporá, desde o início da colonização, de Colégios em todas as maiores cidades, e Universidades. A primeira universidade será a de S. Domingo (1538). Virão, em seguida a de Lima e México (1551). Assim, quando a família real vier ao Brasil (1808) e permitir a abertura do primeiro curso superior (Medicina 1809, Direito 1827) a América Espanhola (com mais de meia centena de Universidades) já terá formado milhares de doutores em suas universidades. A primeira universidade brasileira surgirá apenas em 1934 (a do Brasil no Rio de Janeiro e a de S. Paulo), tendo surgido, no papel, em 1922 apenas para condecorar o rei da Bélgica que, visitando o Brasil para a comemoração do centenário da Independência, seria agraciado com o título de Doctor Honoris Causa por alguma universidade, como sugeria aquele protocolo. A Universidade na América Latina seguirá os padrões da de Salamanca (a mais destacada na Espanha conquistadora) e, não apenas repetirá as lições da Escolástica européia mas inovará, criará textos de Filosofia e especialmente de Lógica que serão seguidos pelas universidades européias. Nelas defrontam-se, até 1620, dois pensamentos antitéticos: um defendendo o direito europeu e espanhol de conquista e escravização, sob o prisma de civilização (pensamento liderado por Francisco de Vitória e mais ainda Ginés de Sepúlveda), e outro que defendia a autonomia e auto-determinação dos índios, com o direito de propriedade e liberdade (liderado por Bartolomeu de las Casas). Desde o início, o tema da Filosofia era, na América Latina, a questão do homem, da liberdade e da justiça.104 A partir de 1620, estruturada que estava a administração colonial, o pensamento nas universidades voltar-se-á para a sistematização escolástica, concentrando-se na Lógica, na Ontologia e Cosmologia, no Direito, na Teologia e na Moral. Será um período de quase hibernação do pensamento, enroscado em suas armadilhas lógicas e de justificação do status quo. Com a crise do sistema mercantilista e a hegemonia de Holanda 104

Cf. GUADARRAMA, et alii pg. 66 e ss.

108


A América na Civilização Ocidental do Estado de Cristandade

e Inglaterra, a América Latina, como de resto o mundo inteiro, transformar-se-á em mercado inglês. Os ideais burgueses da Revolução Francesa, precedidos pelo Iluminismo, pelos Filósofos e pensadores Novatores 105 influenciarão a Educação e a Universidade latinoamericana. O modelo da física (como ciência experimental e matemática), o subjetivismo, o racionalismo culminarão aqui com um positivismo específico e mimético.106 Assim, o pensamento positivista refletirá a crise de independência e organização das novas nacionalidades. Os ideais positivistas serão o de progresso (visto como resultado de técnicas industriais descobertas pelas ciências experimentais) o de ordem, o de purificação e branqueamento da raça (e para isso incentiva-se a imigração de povos europeus que já estavam industrializados e modernizados); buscar-se-á a “benéfica” influência inglesa e norte-americana com o espírito protestante (que incentiva o trabalho, a poupança, a industrialização, isto é o liberalismo). Liberalismo, industrialização e república é o novo ideal. Esse ideal não implica em participação e democracia, mesmo porque os escravos continuarão a ser escravos, os excluídos continuarão a ser excluídos. A independência será, em toda a América Latina a troca de governantes (de ultramarinos em crioulos da classe dominante: caudilhos, autoritários, militaristas e orgulhosos, felizes e confessos dependentes da burguesia do Norte). A metrópole será sempre horizonte e meta a ser imitada. O complexo de inferioridade na raça, na cultura, na economia, marcará a submissão, a subserviência de nossas elites. A 105

Entre os novatores na AL podemos citar Gabino Barreda, José Maria Samper, Justo Arosemena, Javier Prado, Juan Bautista Alberdi, Salvador Camacho Roldán, Rafaél Nuñes, J.L.M. Mora, Gabino Barreda, Porfírio Parra, e Domingos Faustino Sarmiento, Alcides Arguedas, Francisco Garcia Calderón, José Ingenieros, Carlos Octavio Bunge, além de Lastarria, Luiz Pereira Barreto, Jorge Lagarrigue, José Pedro Varela que trataram a história como fenêmeno oriundo de causas observáveis e na direção da “ordem e do progresso” tão próprios do positivismo europeu.GUADARRAMA: 141-176.

106

Assim, as causas do atraso histórico da América Latina, foram vistas como a raça mestiça e indolente, a religião católica, o barbarismo etc... e os caminhos indicados para o progresso eram a imitação dos povos europeus e norte-americanos, na purificação da raça (através da imigração), no abandono do catolicismo e na busca de um saber científico que levasse à técnica. Com esse pensamento mimetista, a América Latina voltou suas esperanças para a cópia, a imitação do Norte e para a negação, para o desprezo da própria raça, da própria cultura. A América Latina buscou inserir-se no sistema industrial que se fazia mundial, na forma de subserviente, imitador, alienado de si. 109


Rio Grande do Sul Arquétipos Culturais e Desenvolvimento Social

identidade da América Latina implica em seus arquétipos o mimetismo e a negação de si próprio. Assim, depois da tematização da justiça ou injustiça da conquista da América levantada no primeiro século após a invasão, a Filosofia far-se-á escolástica até a crise da independência. Na independência e na organização dos Estados Nacionais latinoamericanos predominará o pensamento inovador das ciências experimentais modernas com o iluminismo e o positivismo. Após a independência, haverá um pensamento fortemente reativo contra o positivismo (J.E. Rodó, José Vasconcelos, Alejandro Korn, Carlos Vaz Ferreira, Alejandro Deustua, Henrique Molina, Antonio Caso e Carlos Arturo Torres) e colhendo influências do racionalismo e existencialismo europeus, bem como da neo-escolástica que se afirma a partir de 1891. O Rio Grande do Sul será o espaço de maior influência do positivismo na política e na educação com J. de Castilhos bem como o Uruguai com Varella. O pensamento de auto-determinação, de libertação e democracia real serão lutas para o século XX e para depois do século XX. A América Latina que, incorporada à modernidade européia, se fez Estado Colonial de Cristandade, que estruturou em si os mecanismos institucionais da exploração em favor da Metrópole ibérica, entra em crise quando o Mercantilismo (liderado por Portugal até 1580, e pela Espanha até 1648) se transforma em Manufatura e Industrialização (liderada pela Holanda e após pela Inglaterra desde 1648 até, no mínimo 1873). O centro metropolitano da economia será a Inglaterra e, em meados do século XIX, terá como concorrentes a França (que se industrializa a partir de 1800), os Estados Unidos (a partir de 1846) o norte da Itália (a partir de 1850), a Alemanha (a partir de 1850 e especialmente após sua unificação 1871), o Canadá e o Japão ao final do século.107 Os interesses da nova metrópole inglesa favorecerão e sustentarão a independência das colônias portuguesas e espanholas em busca de um monopólio de mercado mundial. Em suas lutas contra a França de Napoleão, a Inglaterra deslocará para o Brasil a coroa portuguesa, incitará e financiará a guerra genocida contra o Paraguai (o único país da América Latina que lhe poderia fazer concorrência industrial), auxiliará as independências da América espanhola (desde 107

Cf. Dowbor, Ladislau. A Formação do Terceiro Mundo.

110


A América na Civilização Ocidental do Estado de Cristandade

Bolívar...) e concretizará a independência brasileira mediante o pagamento da dívida de Portugal repassada para o Brasil, dívida esta que foi assumida com um empréstimo de cerca de três milhões de libras esterlinas em dezembro de 1825. Por outro lado, a tentativa frustrada de Portugal e Espanha de modernizarem sua economia com o aprofundamento do sistema colonial, apenas favorece o domínio inglês sobre essas colônias. Com efeito, a centralização econômico-político-cultural do império na metrópole, ao mesmo tempo em que Portugal se faz colônia econômica inglesa (através dos tratados de 1654 e especialmente com o de Methuen de 1703), proibirá a industrialização na colônia, expulsará os jesuítas (1759), destruindo com isso o único sistema educacional vigente, incentivará a “preação” genocida dos índios, abrirá os portos “às nações amigas” (diga-se Inglaterra), enquanto a colônia será estruturada para a comercialização com a metrópole inglesa: estradas de ferro, eliminação do trabalho escravo, introdução do pensamento iluminista e positivista liberal e republicano. Os negociadores desse novo pacto de modernização e aprofundamento colonial serão os crioulos da América Latina que buscam substituir a autoridade metropolitana ibérica em proveito próprio. Assim surgirão novos Estados mas não novas nações. Os escravos continuarão escravos, os latifundiários continuarão mais latifundiários ainda. E agora, sob a égide da modernização e do progresso. E todos os caudilhos apressar-se-ão para que o sistema do Padroado de que gozava a metrópole ibérica fosse continuado, agora, sob o controle das elites (liberais, positivistas e maçônicas) dos novos Estados. Por mais que o Intituto da Propaganda Fidei tentasse eliminar o padroado centralizando o controle eclesial em Roma, os conflitos surgirão entre a fidelidade devida ao rei (ou elite substituta) ou ao papa, e o Estado de Cristandade continuará sob outras vestimentas. Assim a crise da independência na América Latina trará como consequências: a mudança política sem a mudança social; a troca de metrópole de ibérica para inglesa; a laicização do Estado de Cristandade Colonial; a hegemonia do pensamento liberal e positivista, pelo menos de fachada,108 o “branqueamento da raça” através do incentivo à 108

A democracia liberal, a industrialização como sinônimo de progresso, os estudos científicos para alavancar a tecnologia, a liberdade e a fraternidade aliada à igualdade, tudo isso será apenas argumento de discurso político, e disfarce de encobrimento da desigualdade real. 111


Rio Grande do Sul Arquétipos Culturais e Desenvolvimento Social

imigração e o mimetismo socio-econômico-político-cultural. A independência formal deslocou a América Latina para a órbita de influência inglesa, primeiro, e norte-americana, depois, e desde 1846 a América foi definida e defendida como mercado para “os americanos” do norte.109 As revoluções populistas pelas quais passou no século XX, a crispação das contradições sociais após a primeira guerra mundial e especialmente a partir do final da segunda, a pertença ao bloco capitalista e chefiado pelos EU na guerra fria e na distribuição das tarefas econômicas, políticas e sociais operadas pela Trilateral (grupo dos 7 países mais industrializados a partir de 1965) a permanente, progressiva e abismal dependência que torna impossível o desenvolvimento autônomo, e a globalização que mundializou nossa dependência e aniquilou a soberania nacional com um neo-liberalismo criado apenas para o Terceiro Mundo, tudo isso agudiza e sublinha a modernização oriunda do Estado de Cristandade no qual estamos imersos. Cada vez mais se evidencia a sacralização da economia de mercado (da auto-suficiente propriedade que se justifica a si mesma e se reproduz a si mesma), a sacralização do controle e da ordem numa política que simula a participação enquanto reforça as formas totalitárias de mando e de exclusão, e que sacraliza o saber “científico” como a única via de acesso à realidade e por isso a mercadoria mais cara e concentrada nas mãos dos donos do capital financeiro mundial, mostrando ao vivo e à pele as infernais contradições do projeto de homem e de mundo proposto pela cultura ocidental que pretende se fazer não só mundial mas também definitivo, como o fim da história. Assim, os arquétipos do Estado de Cristandade não só se fazem presentes e constituidores da América Latina, como aqui se agudizam e revelam. Ao final desse trabalho serão retomados.

109

“A América para os americanos” dizia Monroe.

112


Turn static files into dynamic content formats.

Create a flipbook
Issuu converts static files into: digital portfolios, online yearbooks, online catalogs, digital photo albums and more. Sign up and create your flipbook.