João Bocó

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AVENTURAS DE JOÃO BOCÓ


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Cópias Santa Cruz Ltda R Félix da Cunha, 412 – Campus I UCPel Pelotas, RS – CEP 96010-000 Fone: (53) 3222 5760 E-mail: copiassantacruz@pop.com.br

P I A S

S A N TA

C R U Z

Impresso no Brasil Edição: 2008 ISBN: Tiragem: 300 exemplares A revisão textual e de conteúdo é de inteira responsabilidade do(s) autor(es) ou do(s) organizador(es). EDITORAÇÃO ELETRÔNICA Ana Gertrudes G. Cardoso CAPA Luis Fernando M. Giusti

Dados de catalogação na fonte: ( Marlene Cravo Castillo – CRB-10/744

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Z33a Zanotelli, Jandir João Aventuras de João Bocó / Jandir joão Zanotelli. - Pelotas: Cópias Santa Cruz Ltda, 2008. 61p. : il.

1. Literatura infanto-juvenil 2. Literatura (Arte) 3. Literatura infantil I. Título

CDD 808.68


I Domingo de manhã. Dia de reunião de todos na casa do vô. - Estão batendo no portão! - É o bando das netas, diz a vó. Ana, Laura e Luiza entram, monitoradas por Camila, como um furacão. - Um beijo, vô. Um beijo, vó. E correm pela casa. Depois voltam e se aninham nos braços da poltrona. - Vô conta uma história!? - Conto. - Ana, vou contar uma história que teu pai Vinícius, teu tio Daniel , tuas tias Lica e Luciana e eu contávamos. Todos juntos. Cada um contava um pedaço. Cada dia um pouco: as aventuras de João Bocó. 3


Elas se ajeitam, a cabeça entre as mãos e esperam, atentas. - Era uma vez um menino que se chamava João. Tinha dez anos. A irmã dele era a Laurita. O pai, Pedro, trabalhava na roça. Plantava milho, feijão, batata e trigo para fazer pão. A mãe Joana cuidava da horta perto da casa onde cresciam beterrabas, cenouras, couves, alfaces, rabanetes e temperinhos gostosos. Fazia queijos com o leite da vaca “Boneca”. Ao redor da casa havia pés de laranja, de bergamotas, de figos, pitangas e tantas frutas... Os chuchus se dependuravam na latada das uvas e se misturavam com maracujás. - Como ali no páteo? Interrompeu Laura. - Isto mesmo. Os passarinhos em bandos vinham comer as frutas. As galinhas passeavam pelo pátio com uma procissão de pintinhos atrás e fazendo cocóo, cocóo.... O galo de gravata e topete vermelho, abria as asas valente e gritava mais alto: cocoricóóóó... Um outro galo, lá longe na casa de dona Lúcia respondia: cocoricóóóó... Os cachorrinhos brincavam com os gatos fazendo de conta que estavam brigando. De vez em quando nháuuuu...e cau, cau,cau... Depois dormiam todos juntos abraçados. Joãozinho e sua irmã ajudavam a dar comida para as galinhas, para os porquinhos, para os gatos e cachorros. Eles gostavam de ajudar. De manhã cedo, um beijo na mãe e no pai que recomendava: “não se atrasem. Obedeçam à professora”. Mochilinha nas costas, iam para a escola. 4


A professora Antônia esperava todas as crianças na porta da escola. Cada um em sua mesinha fazia as lições. O recreio era uma festa. Cada um com seu lanche. Trocavam pedaços de seus lanchinhos, jogavam e corriam. Um dia, ao voltarem da escola João e Laurita encontraram a mãe sentada na escada da casa, chorando. - Mas o que foi mamãe? O que foi? - Correram os irmãos. - Um bandido! Um bandido veio aqui e roubou todo o nosso dinheiro. - Mas quem é esse bandido? Perguntou João assustado e brabo. - É o Bastião que mora longe, perto do rio. - Ele te machucou, mãezinha? - Não. Só ameaçou. Tive que entregar nosso dinheiro... ele sabia que o pai não estava em casa. - Não chora, mãe, dizia João. A gente cria mais umas galinhas, uns porquinhos e consegue outro dinheiro. A tristeza deles era grande. Também na escola. Na hora do recreio poucas crianças vinham conversar com João depois que ele ficou pobre. Mas Licele que era amiga de Laurita sempre ficava perto e dizia que não era para ficar triste e até repartia merenda com ele. Mas o Nico e o Joca, só para judiar, apelidaram o Joãzinho de João Bocó. João ficava chateado... Licele diza: - Não liga pra eles, tu és mais inteligente...

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Em casa, de tarde, sentado no assoalho, João fazia seus temas: copiar palavras, fazer números, tudo limpinho no caderno... A mãe pergunta: - Joãozinho e Laurita, querem uma fatia de pão com marmelada? - Quero, respondeu João... e continuava a fazer os exercícios... - Eu quero só metade, disse Laurita, no canto da mesa. Dona Joana cortou uma fatia do pão gostoso que ela fez no forno de barro.Cobriu-a com uma camada boa de marmelada avermelhada feita por ela e ofereceu: - Comam logo, senão as moscas vem. João mordeu uma bocada grande, mastigou devagarinho saboreando aquela delícia. Pôs a fatia em cima do banquinho enquanto continuava a escrever sua lição. Foi então que lhe aconteceu uma desgraça... Quando se voltou para pegar novamente seu pão.... um enxame de moscas estava pousado em cima da marmelada... -Que nojo! Disse Laurita. - Ele olhou para aqueles bichos danados, ficou com raiva e deu um tapa com toda a força em cima deles. Matou quase todas... jogou o pão pela janela e foi lavar a mão.

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II Enquanto secava as mãos, pensou, pensou... em sua façanha e na mortandade que fizera. Teve uma idéia: Escreveu numa tabuinha: “João Bocó, mata mil de uma vez só”. Dependurou a tabuinha no pescoço com um barbante e saiu pela estrada... As crianças que ele encontrava arredondavam o olho de espanto quando liam: “João Bocó, mata mil de uma vez só” escondiam-se de medo. Aqueles colegas da escola também... - Que é isto? João virou bandido? Joãozinho ria por dentro. 7


Ao chegar perto do arroio onde dona Antonieta lavava roupa cantando... lá, rá, lá,lá, lá....Esta olhou. Parou de lavar. Olhou bem: “João Bocó, mata mil de uma vez só”. Saiu em disparada, perdendo as roupas da cesta. Rasgou o vestido na cerca de arame farpado e nem reconheceu o Joãozinho que gritava: - Não se assuste dona Antonieta, sou eu, sou eu... o João. Mas ela não parou de tanto susto. Foi dizer aos filhos dela que não saíssem de casa: tinha um bandido que parecia uma criança e que matava todo mundo. João foi andando e pensando: uéh, eles pensam que eu sou valente de verdade, que mato gente... eles nem sabem que o que eu matei foram as moscas... Mas gostou da idéia e foi andando... “Às vezes a gente se assusta da imaginação”. Quando já estava escurecendo, um friozinho saía do mato... Perto da estrada não havia casas. Só lá longe... no meio do campo uma casa coberta de palha e uma fumacinha saindo pela chaminé. João foi chegando, chegando, escutando... não se ouvia barulho de ninguém. Nem havia um cachorrinho para latir. Na ponta do pé, subiu os dois degraus da escada e bateu de leve na porta: tóc,tóc, tóc... A porta se abriu de repente e um homenzarrão bigodudo e de olho mau falou alto: - O que você quer aqui, seu piá? Joãozinho tremeu por dentro e por fora e disse, gaguejando: 8


-Eu estou longe de casa, já está ficando escuro. Eu queria dormir aqui esta noite se o senhor deixasse. O grandalhão olhou o Joãozinho de alto a baixo, leu devagar aquela tabuinha: “João Bocó, mata mil de uma vez só”, deu uma risadinha no canto da boca e respondeu: - Pode, pode dormir aqui sim... Mas pensava lá no fundo dos olhos: quero ver esse valentão matador de mil de uma vez só... hoje de noite vou acabar com ele. João entrou. Perto do fogão a lenha dona Bolota mexia nas panelas pretas. João sentiu fome. Mas não disse nada. Sentou num banquinho perto da mesa. Dona Bolota perguntou: - Ôh Bastião, este menino não é filho de um tal de Pedro, aquele do dinheiro? Joãozinho tremeu. Lembrou que deveria ser aquele o bandido que tinha roubado o dinheiro de seus pais. Mas o medo não deixava ele abrir a boca... - Quer um prato de sopa de feijão? Perguntou dona Bolota. - Não, obrigado – respondeu João engolindo a fome de tanto medo... - Então você quer dormir? Dorme nesse quartinho, aí. Com medo e com fome Joãozinho esgueirou-se até a cama no quartinho que dona Bolota lhe indicava e tapou-se todinho...Não esqueceu de fazer as orações que a mãe recomendava: um Pai Nosso, uma Ave Maria e um Santo Anjo do Senhor... Começou a trovejar e relampejar. 9


No clarão dos relâmpagos Joãozinho olhou assustado para o teto e viu algo estranho.Olhou de novo e viu: em cima de uma tábua que se apoiava sobre as paredes do quartinho sem forro, havia uma enorme pedra pronta para cair. Cairia bem em cima dele. “Deveria ser uma armadilha”, pensou. Esperou outro relâmpago para ver de novo e conferir. O estrondo do trovão fez a pedra balançar. Joãozinho gelou. Levantou, devagarinho, e encostou-se, de pé, na parede perto da porta. Se a pedra caísse não bateria nele. Aninha arregalava os olhos, experimentando na pele o medo de Joãozinho. As outras primas também. - E daí vô? - Do quarto do Bastião vinha o barulho do ronco do bandidão... De repente... o ronco parou... Joãozinho ouviu o ringir da cama e os passos lentos do Bastião na direção de seu quarto. O bandido vinha no escuro, com uma vara comprida na mão. Abriu a porta devagar para não acordar Joãozinho. E, com a vara, empurrou a enorme pedra de cima da tabua. A pedra caiu bem no meio da cama. Quebrou cama, quebrou assoalho, sbadalhaaau.... O bandidão, escutou, deu uma risadinha com o canto da boca: “quero ver amanhã de manhã o que sobrou do valente”. E voltou para a sua cama. Joãozinho, quieto, de pé, esperou ouvir novamente o ronco: “ele já está dormindo”. 10


Saiu, pé ante pé, na pontinha dos dedos, abriu a porta que dava para a estrada e sentou-se num degrau. O temporal tinha passado e o vento recolhia as nuvens com seus trovões e relâmpagos lá pros fundos do mato. Um ventinho fresco veio penteando os cabelos das árvores depois do banho da noite e trouxe a luz suave do amanhecer. Joãozinho ouviu a barulho do Bastião que levantava, caminhava para o quarto da pedra e dizia: - Uéh! Mas o João Bocó não está aqui. Será que a pedra o enterrou debaixo da casa? Olhou, olhou. Nem sinal de sangue... Veio para a cozinha, abriu a porta da rua e...espantado, viu o Joãozinho sentado, sossegado. Bem educado, Joãozinho falou: - Bom dia, seu Bastião! - Booom dia, respondeu Bastião mal-humorado, mas tu estás aqui? - Estou, disse Joãozinho, por que, não deveria estar? - É que eu esqueci da ratoeira que eu armei em cima da cama, para matar os ratos que andam no quarto, dizia o Bastião coçando a cabeça. - Aquela pedra em cima da tábua era para caçar ratos? - Era. Ela caiu em cima de ti. Pensei que ela tivesse te machucado. - Ah! Disse Joãozinho... Bem que eu senti a mordida de um mosquito, bem aqui na testa, mas nem doeu... E ria, por dentro do susto do valentão. - Como?,... um mosquito? E depois pensou com seus botões: mas será que este fedelho é valente mesmo? 11


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III Bastião olhou o Joãozinho de cima a baixo e não se deu por vencido: - Você é valente mesmo? Pois vou te desafiar: quero ver quem tem mais força! - Eu aceito o desafio, seja qual for - disse Joãozinho, tremendo de medo -...pode escolher. - Pois vamos ver quem atira este panelão mais longe! E passou a mão num panelão enorme, de três pés, que ele usava para fritar a carne de três grandes porcos de uma só vez. Levantou-o com a mão direita e foi até perto do rio que passava lá em baixo. - Eu começo, disse ele. Fez o panelão rodear, uma, duas vezes sobre a cabeça... e atirou-o lá longe, dentro da água como se fosse uma maçã... Ptaummmmmm... Depois mergulhou e trouxe o panelão cheio de água, com uma só mão. Colocou-o na frente de João Bocó e disse: - Agora é sua vez! 13


Joãozinho, que não tinha força nem para levantar aquela panela, arregaçou as mangas da camisa. Esfregou as mãos para dar mais força... olhou para o outro lado do rio, posicionou a mão na boca como um funil para o grito ir mais longe e berrou: - Alôoooo... Alôooooo.... Alôoooo...... - Mas, por que você está gritando? Perguntou o bandidão.... - É que eu quero avisar as pessoas que moram naquelas casinhas brancas lá no outro lado do rio. Quero que saiam de lá. Não gostaria de machucar ninguém, se a panela caísse em cima de alguma casa... Pode ser que passe por cima.... Nunca se sabe.... É melhor prevenir que lamentar depois... - O quê? Você acha que vai atirar esta panela até lá? No outro lado do rio? - Acho não,... tenho certeza, retrucou Joãozinho. O valentão, espantado e aflito, falou apressado: - Pára, pára... Embora eu não acredite que você tenha tanta força... No entanto, minha mãezinha mora lá... Não posso arriscar que machuque a velhinha por causa de uma aposta... Vamos fazer de contas que você ganhou... Ganhou esta...

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IV Mas eu quero um novo desafio... - O senhor é que sabe! Qual é o novo desafio? - Vamos ver quem é capaz de furar as árvores com o dedo polegar. - Fazer um buraco nas árvores com o dedo? Aceito, disse Joãozinho. Amanhã, bem cedo iremos para aquele mato e mostrarei como se faz. - Amanhã é você quem começa, disse o bandidão. - Pode deixar comigo! De noite, lua cheia, todos dormiam sossegados... 15


João Bocó levantou sem fazer ruído, pé ante pé, apanhou a furadeira manual de madeira e foi até o mato. Fez um furo numa, duas, três, cinco árvores, encheu os buracos com manteiga e pôs uma folha seca em cada furo, disfarçando. E voltou para a cama. Nem dormiu, imaginando o dia seguinte. Bem cedo, Bastião acordou, tossiu, fez barulho e foi dizendo: - Acorda guri valente, que eu quero ver quem vencerá hoje! João Bocó saltou da cama, esfregou os olhos, passou um pouco de água fresca na cara e nem aceitou tomar um copo de leite: - Eu já tenho força suficiente para ganhar o desafio! E lá se foram os dois para o mato: - É a sua vez de começar, disse o valentão. - Deixa comigo e olha bem como se faz. Endireitou o dedo polegar. Esfregou-o com a outra mão para esquentar e, frufteee...enfiou-o num dos buracos, no outro, no outro e foi dizendo: - Pois,... eu faço até sair manteiga das árvores, gabava-se Joãozinho. Bastião olhava, olhava sem entender como um pirralho daqueles era capaz de fazer isso. Tentou fazer o mesmo numa árvore e não conseguiu, tentou de novo e com mais força e gritou de dor quando o dedo quase quebrou. Por fim, de boca aberta reconheceu: - Está bem, você ganhou de novo. Mas não vou aceitar perder sempre.

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V Olhou para aquele menino franzino, metido a valente, comparou com seu enorme tamanho, com seus braços fortes e propôs: - Agora sim, eu quero ver. O desafio será: quem de nós é capaz de abrir uma árvore com um soco. - Pode ser, disse João Bocó, mas o senhor começa. Bastião postou-se diante de uma árvore que se abria em forquilha, cuspiu para o lado, e, num grito para dar mais força, desferiu um murro com a mão fechada como Joãozinho nunca tinha visto... 17


A forquilha se abriu e a mão do valentão entrou árvore abaixo e... ficou presa... Não adiantou ele querer abrir um pouco mais a fenda para poder retirar a mão presa. - Me ajude seu moleque, dizia ele para o menino. Mas Joãozinho, zombeteiro, retrucava: - Uéh! Cada um tem que fazer a sua parte... - Então, pelo menos, vai lá em casa e traz umas cunhas de ferro para pôr na brecha e abrir esta árvore... João Bocó, com uma idéia marota na cabeça, foi correndo para a casa do Bastião. Chegando perto foi gritando para dona Bolota: - Dona Bolota, Dona Bolota, seu marido pediu que a senhora me desse todo o dinheiro que vocês têm em casa. - Mas, para quê? Disse ela com o olho desconfiado... - Nem sei!... disse Joãozinho... Só sei que é para me dar tudo e bem rápido. Dona Bolota desconfiou. Não quis arriscar sem antes perguntar ao marido. Foi até a janelinha e gritou para Bastião: - Oh Bastião, é pra dar tudo? E ele gemendo lá no mato respondeu: - Tudo, e depressa! Dona Bolota foi ligeiro para o quarto, levantou o colchão e retirou uma sacola grande cheia de dinheiro – justamente aquilo que tinham 18


roubado dos pais de Joãozinho – e entregou-a ao guri que saiu correndo estrada afora. Como João Bocó demorasse a voltar, Bastião que urrava de dor, começou a gritar: - Socorro! Socorro!... Dona Bolota saiu rasgando a saia nos espinhos e foi ver o que o marido tinha para fazer tanto espalhafato. Quando chegou perto, Bastião foi perguntando: - E aquele menino safado, onde está? - Uéh! Eu dei todo o dinheiro pra ele e ele se foi pela estrada. - Mas por que deste o dinheiro? - Eu te perguntei se era para dar tudo e tu disseste que sim e depressa. - Era para dar a ele todas as cunhas e não todo o dinheiro... Então corre a buscar as cunhas para me livrar daqui... E lá se foi Dona Bolota quase rolando ladeira abaixo. Voltou suando e esbaforida... Pôs duas cunhas na fresta, bateu-as com uma pedra, as cunhas entraram na fresta e a ár vore se abriu. A mão de Bastião saiu ensangüentada... - Que horrível! Disse a mulher... deixa que eu cuido... - Não é preciso nada! Disse o valentão. Rasga a minha camisa e enrola o trapo na minha mão, isto basta. Dito e feito. E lá saiu ele correndo atrás do João Bocó...

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VI Joãozinho já estava cansado de tanto correr. Suas pernas doíam. E ele se lembrava que não tinha tomado café. Nem um copo de leite. Precisava despistar o bandidão que, a esta altura já deveria estar vindo atrás dele. Pensou fugir por um campo... mas, à beira da estrada estava um senhor carneando uma ovelha, à sombra de uma grande figueira. João Bocó cismou: - O senhor não me vende a buchada que tirou da ovelha? - A buchada? Pra quê? E você tem dinheiro? - Tenho, disse João Bocó, retirando uma nota da sacola. Serve? - Serve, disse o senhor. O menino carregou nas costas o saco com aquelas tripas... Mais adiante, quando ninguém via, Joãozinho pôs as tripas para dentro de sua camisa, abotoou bem e saiu andando. 21


Ao chegar no riacho onde uma lavadeira cantava e lavava a roupa, chamou: - Senhora! Dona Filomena levantou os olhos e leu: “João Bocó, mata mil de uma vez só” e quis fugir. Mas João Bocó se apressou: - Não, não precisa fugir, eu não faço nada. É uma brincadeira. Só queria que a senhora me fizesse um favor: Se vier um homem grandão, de cabelo e bigode grande, e perguntar se não viu um menino chamado João Bocó, diga pra ele que o menino fez isto: - e com a faca que trazia na mão João Bocó cortou a camisa deixando as tripas caírem no chão. Dona Filomena deu um grito. E Joãozinho acrescentou: - Vou deixar minhas tripas aqui, para ficar mais leve e poder correr mais...

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VII Um tempo depois apareceu Bastião, suado e de respiração aos solavancos. Foi perguntando: - Por favor, por favor... A senhora... não viu um menino magrinho, dessa altura, passar por aqui? - João Bocó? Vi, sim senhor! E lhe deixou um recado: Cortou a barriga com uma faca, deixou as tripas aí no chão, para ficar mais leve e poder correr mais. - O quê? Essas tripas são dele? E ele não morreu?... Tirou as tripas pra correr mais? Pensou um pouco e depois disse: Vou fazer o mesmo. Ele não me escapa. 23


E puxando de seu facão, abriu a barriga e deu um grito de dor, caindo dentro da água. Dona Filomena correu para ajudá-lo. - O que é que o senhor fez? O senhor está louco. O senhor não é um menino mágico para poder fugir de barriga cortada e sem as tripas. E enquanto Bastião ficou sentado encostado na barranca, segurando as tripas com as mãos para não saírem da barriga, dona Filomena foi, às pressas chamar alguém para ajudar. Levaram Bastião para o hospital. O médico costurou-lhe a barriga. Três dias depois já estava bom. Mas, enquanto isso, Joãozinho já ia longe. Bastião foi até a polícia e denunciou que Joãozinho de tal, tinha roubado o dinheiro,... sem dizer onde tinha conseguido aquela sacola de notas... O delegado prontificou-se para acompanhar Bastião e prender aquele guri ladrão.

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VIII

Num bolicho à beira da estrada, Joãozinho comprou um pão e um pedaço de salame e um canivete. Ia comendo enquanto pensava: como conseguirei fugir daquele bandidão e levar de volta o dinheiro para meu pai? Enquanto ele tropeçava em seus pensamentos, viu ao longe um senhor que vinha montando um lindo cavalo branco. Parecia o Pedro Malazarte das histórias que o pai contava. Quando chegou perto, Joãozinho saudou bem alto: bom dia senhor, eu me chamo João. - E eu me chamo Pedro, mas não sou Malazarte. 25


- O senhor não quer me vender o seu cavalo? - Vender? Pois olha! Até posso vender, mas só vendo a dinheiro vivo. Nada de cheque ou promessa. - Eu tenho dinheiro, quanto o senhor quer? - Eu só vendo o meu cavalo por trezentos reais. - Tá aqui o dinheiro, o cavalo é meu. E João Bocó, montado em seu cavalo branco, saiu levantando poeira entre árvores e colinas em direção à campanha. Quando a tardinha chegou e o sol se escondeu atrás do morro, João Bocó ouviu o silvo da sirene do carro da polícia que vinha ao longe, já perto do arroio. Entendeu tudo. Pegou uma estradinha lateral que dava para uma casa branca lá no fundo da fazenda. Quando chegou já era noite. Na porteira, três cachorros enormes vieram receber a visita. Joãozinho bateu palmas e esperou. Pelas frestas da janela uma luzinha tremeluzia lá dentro. A porta se abriu. Uma voz grossa e forte falou: - Quem está aí? - Sou eu, respondeu Joãozinho, com a voz misturada de medo e expectativa. - Apeia e entra, convidou o homem de lá. Parecia uma pessoa bondosa e simpática como aqueles senhores da campanha de Bagé e de Piratini que Joãozinho conhecia. João Bocó amarrou o cavalo no palanque da porteira e foi chegando, sem jeito... 26


- Com licença... - Ueh! Mas é um guri... veio sozinho? Que faz por aqui numa hora dessas? - Pois é... E João Bocó explicou ligeirinho o que se passava, como o bandidão estava atrás dele, por causa do dinheiro. E que a polícia vinha com ele. E que ele queria dormir aí, escondido, aquela noite se o dono permitisse. - Mas tu não és o filho do Pedro e da Joanita que moram pra lá da vila? - Sou, sim senhor. - Então está bem. Amarra o teu cavalo na figueira atrás da casa. Janta com a gente e depois vai dormir lá no paiol, na parte de cima. Tem palha boa. Porque se a polícia chegar ela vai examinar a casa e não vai imaginar que tu estejas lá. Depois da sopa quente e do mogango com leite, Joãozinho subiu a escada estreita do sobrado do paiol e deitou-se na palha de feno e milho. O pensamento dele voava lá pra casa do pai e da mãe. Que estariam fazendo? Estariam à procura dele? Como voltar sem topar com o bandidão e a polícia?

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IX Nem tinha adormecido, depois da oração do Santo Anjo... quando ouviu o carro da polícia chegando na porteira. Os cachorros faziam um vozerio infernal...As luzes em cima do jeep piscavam... - Ôh de casa! Gritava o Bastião. Seu Anarolino abriu um pouco a janela e respondeu: - Quem vem lá? Uma ambulância? - Somos da polícia e estamos procurando um menino de uns dez anos que anda fugindo porque roubou o dinheiro do seu Bastião. - Um menino? Um guri? Deve ter ido mais adiante. Se quiserem examinar minha casa podem entrar... - Então dá licença que nós queremos ver... nunca se sabe... - Vocês acham que eu protejo bandidos? Não costumo fazer isso. Não sou como esses políticos que andam protegendo ladrões e mal-feitores, disse Anarolino tendando mostrar que estava brabo. 29


Os dois soldados entraram, examinaram tudo com uma lanterna... olharam em baixo das camas, atrás do fogão, dentro dos armários e guardaroupas e vieram dizer ao delegado: - Aqui ele não está. - Não está? Bem, se ele não está aqui vamos procurá-lo noutro lugar. Já iam saindo, quando um soldado lembrou: - E se ele estiver escondido aí no paiol? ............................................................... - Bem, disse Jandir, até aqui eu contei a historinha. Agora é com vocês também... quem continua? Vinícius, Daniel, Luciana e Lica escutavam atentos. - A polícia resolveu revistar o paiol, disse Jandir e, então, o que aconteceu, Vinícius ? disse, passando-lhe a palavra. - Então seu Anarolino assobiou fingindo que estava chamando os cachorros, mas era pra avisar João Bocó, como tinham combinado. E os cachorros vieram acoando ameaçadores, enquanto João Bocó se enfiou por baixo da palha e ficou bem quieto. A polícia entrou, foi subindo a escada do paiol, olhou para o monte de palha, examinou os cantos e os balaios vazios. E um deles disse: 30


- E se ele se escondeu em baixo da palha?! Mas aqui tem este garfo de amontoar feno. Vou cravá-lo na palha para ver se existe alguém por baixo. E quando levantou aquele enorme tridente.... - E então, Daniel, disse Vinícius passando-lhe a peteca... - Então?, - disse Daniel de olhar aflito mas com um relâmpago lá no fundo...- então, seu Anarolino deu um grito xingando o cachorro que entrava no paiol. Com o grito e o cachorro até o soldado se assustou e atirou o garfo pra longe dizendo: - Éh, não deve haver ninguém por aqui. - Mas,... quando todos iam descendo a escada, acrescentou Daniel, João Bocó teve uma vontade louca de tossir, segurou o que pode para não fazer barulho, mas não adiantou: tossiu e peidou ao mesmo tempo... E então, Luciana, finalizou Daniel? - O soldado que descia por último, disse Luciana, parou, escutou, sentiu o mau cheiro, fez cara feia, enquanto seu Anarolino gritou: - Sai daí seu cachorro peidorento! Esses cães andam impossíveis nos últimos dias. Nem sei que carniça andaram comendo. - E todos foram embora enquanto seu Anarolino dizia: - Vocês não querem um copo de refresco? - Pois eu até aceito, disse o delegado. Me dá quase vontade de dormir por aqui. Tenho cisma de que aquele guri ou está ou vai chegar por aqui. - Como quiserem, disse Anarolino, não tenho camas, mas no paiol podem ficar. 31


- Um soldado já ia tirando uma garrafa térmica e a cuia do chimarrão do jeep, quando o delegado, olhando nos olhos de Anarolino agradeceu: - Obrigado patrão, mas nós vamos esperar lá na encruzilhada, a dois quilômetros daqui.

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X Quando o jeep sumiu lá na curva do mato, dona Antonieta que estava rezando baixinho perto do altar de Nossa Senhora e Santo Antônio, apareceu suspirando fundo: - Que bom que foram embora. João Bocó saiu devagarinho da toca das palhas, sacudiu a poeira, deu uma fungada de nariz e desceu a escadinha, na ponta dos pés. Viu seu Anarolino no terreiro e chamou sussurrando: - Seu Anarolino, seu Anarolino... muito obrigado, agora eu vou pegar meu cavalo e sumir antes que a polícia volte. - Não queres esperar que amanheça?

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- Não, não, vou agora... até tem um bom pedaço de lua... meu cavalo enxerga bem...obrigado! Peço-lhe um grande favor: entregar este pacote de dinheiro para o meu pai e dizer à minha mãe que eu estou bem e que volto logo que o bandidão e a polícia deixarem de me perseguir. - Deixa estar que eu vou hoje mesmo falar com teus pais... Mas leva um pão que dona Antonieta fez, um salame e um pedaço de queijo pra ir disfarçando a fome... João Bocó despediu-se agradecido pela janta e pelo fiambre e se foi a trotezito campo afora, em direção de uma montanha que se avistava ao longe. Ia assobiando baixinho a cação do boi barroso, com saudade da maninha Laurita e da coleguinha Licele. O medo fazia a noite parecer mais fria um pouco. Quando amanheceu, a polícia, com binóculos, avistou o cavalo branco de João Bocó lá no alto da colina e, ligando a sirene, puseram-se em perseguição. Levavam espingardas, e até um canhão. João Bocó aflito não sabia para onde ir. E a polícia já vinha perto. E então, Lica?, disse Luciana... Lica retorceu-se na cadeira sem saber o que dizer. - Então ele galopou morro acima, pulando pedras e mais pedras, lá onde os policiais não poderiam chegar de jeep. E daí, pai?

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Jandir olhou bem para os quatro filhos e para Ruth que fazia tricô perto da janela, encheu os pulmões de ar, tentando cavar lá do fundo alguma saída, e continuou: - Quando João Bocó parou lá no alto, viu que os soldados, lá de baixo, faziam mira nele com o canhão. E antes que ele pudesse fugir...bahm.... uma bala de canhão acertou no meio do cavalo branco, quase na perna do guri. Ele não teve dúvidas... mandou-se para o outro lado do morro até um riacho... O cavalo queria beber. Estava com muita sede... E bebia, e bebia, e não parava de beber... estava quase secando a água do arroio. Foi quando João Bocó olhou para trás... Então ele viu uma grande desgraça: o canhonaço tinha cortado o cavalo ao meio... ele estava andando só com as patas da frente... a parte de trás tinha ficado lá no alto do morro. Por isso a água entrava pela boca e saía pelo buraco. E então, Vinícius? - Então, disse Vinícius suspirando, João Bocó voltou galopando até o alto e lá achou a outra metade do cavalo. Encostou os dois pedaços e eles se colaram... e o cavalo ficou bom de novo. - E ele não morreu? Perguntou, aflita, Luciana. - Que nada, Luciana, o cavalo dele era muito forte – disse Vinícius. E daí, Daniel?

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- Daí que, ele não viu que no meio dos pedaços ficou um pezinho de figueira, dessas que dão sombra. O arvorezinha cresceu, cresceu e agora João Bocó andava a cavalo na sombra da figueira...E daí, pai? - Mas agora é a vez da Luciana ou da Lica... - Continua tu, pai, continua tu, disse Luciana... - Pois vejam... Estava João Bocó lá longe, no alto da coxilha deixando seu cavalo pastar a grama verde e alta, enquanto ele e o cavalo ficavam à sombra da figueira... Um dos soldados dirigiu o binóculo naquela direção e viu o cavalo branco em baixo da figueira... - Lá está ele, vejam lá está ele...no outro lado do arroio, no lombo daquela coxilha,... deve ter amarrado o cavalo na figueira... deve estar por lá... - Mas como atravessaremos o arroio? - perguntou o delegado - se não há estrada nem ponte? E, então, Vinícius? - Mas lá embaixo, onde termina o morro deve haver um lugar para passar, disse o Bastião. E lá se foram, de jeep puxando o reboque com o canhão... E numa trilha onde as vacas passavam eles imaginaram que poderiam passar também... Entraram na água e o jeep começou a afundar... A areia movediça ia engulindo o reboque com as armas... Todos saltaram e desengataram o reboque que sumiu no lodaçal. O jeep ficou empinado na barranca... 36


Empurrando, empurrando e se lambuzando no barro, conseguiram finalmente tirá-lo de lá... Mas quando o delegado foi subir novamente no jeep resvalou e caiu sentado numa enorme bosta de vaca... -Mas que merda, gritou ele. -É merda mesmo disse um soldado...É melhor lavar as calças no arroio... E os contadores da história comemoraram com uma gargalhada. É contigo, Daniel: - Enquanto eles demoravam lá no arroio, e agora já não tinham mais canhões, João Bocó foi andando ligeirinho pelo campo... desceu uma colina, subiu uma coxilha, atravessou outro córrego, escondeu o cavalo perto de um mato, porque não podia entrar no mato com aquela árvore nas costas do cavalo. Depois que se limparam como puderam, os soldados conseguiram chegar no lugar onde tinham avistado João Bocó. - Mas onde está ele? Disse o delegado. Ele não estava debaixo da árvore? Mas onde está a árvore? A árvore e o cavalo sumiram? Como é possível? - Vai ver que aquele guri é mágico! Disse um soldado. - Mágico? Perguntou Bastião um pouco assustado...Então é metido a lobisomem? Será que é uma alma penada? Mas alma penada não come, nem leva embora o meu dinheiro como ele levou! - O pior é que está ficando escuro, não temos estrada para voltar e não trouxemos comida, e eu já estou com fome disse o outro soldado... 37


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XI Luciana continuou: - Enquanto isso João Bocó saboreava uma boa fatia de pão com salame, presente do amigo Anarolino. E sentia saudades da mana, do pai, da mãe, do cachorrinho Bidu da bicharada toda que fazia um barulho bonito ao amanhecer. - Dormiu no chão, num colchão de folhas secas e do pelego. De vez em quando uma coruja chiiiiava pertinho e o dorminhoco respondia com seu côoooc...côooc. “Eles são meus amigos”, pensava, tremendo de medo. Rezou baixinho. Jandir narrou: - De madrugada, esfriou um pouco e a lua já magrinha apareceu por detrás do morro no meio de algumas nuvens brancas como ovelhas pastando no céu. João Bocó ouviu passos quebrando folhas e galhos secos

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no mato e que vinham em sua direção. Escutou... escutou... Passos de gente? Passos de bicho? Olhou para seu cavalo. Este estava de cabeça erguida, orelhas de pé, em prontidão... O ventinho frio parecia mais frio... Que será?, Luciana!?.... - O barulho? O barulho também parou... tudo estava parado, quando uma coruja fez chiiiiuuu bem em cima de sua cabeça. João Bocó tremeu. Depois suspirou fundo porque era só uma coruja... E aqueles passos, vinham vindo, vinham vindo... E daí mana?! - Mas os passos eram muitos e muito fortes... Não podiam ser de gente... Até que se ouviu bem pertinho um muuéée de um terneiro... Que susto! Logo apareceu uma vaca com seu terneirinho que tinham ficado no mato sem ir para perto das casas naquela noite. E então, pai?! - João Bocó se alegrou. Chamou a vaca baixinho: uou....uou... tom... tom... tom. A vaca veio mais perto. Era mansinha. João alisou o focinho dela, acariciou-lhe o pescoço e, quando ela ficou quieta, passou a mão pelo ubre que estava cheio de leite e aproveitou para encher duas vezes a canequinha branca de louça que ele carregava consigo. Tomou leite quente, recém saído da vaca, limpou a boca com a mão e deixou em paz a vaca e seu filhote. Seu coração certamente falava: - Deus é bom. A natureza é boa.

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A vaca é bondosa: vive pra dar leite aos outros. Será por isso que naquela terra distante, a Índia, a vaca é símbolo de Deus, como disse a professora? Deveria ser símbolo da mãe, também. E teve saudade dos olhos, das mãos, dos carinhos e do pão da mãe. E então Daniel?

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XII - Eu fico pensando se o João Bocó, com seu cavalo e sua árvore entrassem na historinha dos bichos cantores. - Que bichos cantores são esses?, perguntou Luciana. - Aquela do galo, do cachorro, do burro que andavam pela estrada... Como era mesmo, pai? - Aquela do burrinho que trabalhou a vida toda e agora que estava velho foi expulso do campo para a estrada e caminhava triste. Um galo que também cantava triste sozinho em cima de um moirão de cerca olhou para o burro e o burro olhou para ele e se convidaram: - vamos curtir juntos nossa tristeza? Mais adiante encontraram um gato que miava abandonado e um cachorrinho sarnoso que se coçava em sua magreza. Resolveram fazer uma sociedade: a sociedade dos fracos e excluídos e foram andando pela estrada... - É aquela que a gente canta “juntos somos fortes”? insistiu Luciana. - Pois é, interrompeu Daniel, e se fosse com João Bocó, como seria, Vinícius? 43


- João Bocó convidaria o galo para que subisse na árvore, o gato também, e o bentevi, o sabiá, o tico-tico, enquanto o cachorrinho andava também na sombra da ár vore. E iam cantando estrada afora: cócóricó...miau... bem-te-viii... fi-fó-fi-fóoo...au-au... iknhóoo.... piupiuuuu... e João Bocó ia assobiando... - E ao chegar o fim da tarde, viram uma casinha abandonada à beira da estrada... João Bocó bateu palmas... Ninguém atendia. Resolveram ficar. Num fogão velho, de tijolo e chapa de ferro, João Bocó fez um foguinho. Deu um pouco de milho que ainda existia num canto para o galo e para o cavalo. Repartiu o que ainda restava do pão e do salame com o cachorrinho, com o gato e ele e assim adormeceram perto do fogão. Os outros passarinhos foram buscar alpiste na redondeza, antes do anoitecer. Mas aquela casa era casa de bandidos. Eles tinham saído para roubar e, de madrugada estavam voltando. Eram três. E daí Lica? - Eles traziam, em sacolas, um bom pedaço de carne para fazer bifes, pão, vinho e pipoca... E então, Luciana? - Estava escuro e não tinha luz naquela casinha... estranharam que tivesse crescido uma árvore tão grande na frente da casa. – deve ser um 44


milagre! Diziam. E foram entrando sem ver nada. O fogão ainda estava quente: - Uéh, ainda tem fogo disse um... embaixo do fogão tem uma brasa, comentou o outro e foi encostando o cigarro no olho do gato que parecia uma brasa embaixo do fogão. Quando ele chegou perto o gato, com as duas patas, deu-lhe um arranhão e um miaauuu...fu...fu...fuu... que o bandido saiu correndo e gritando, ai, ai, ai, tem um lobisomem aqui.... Os outros dois deixaram tudo em cima da mesa e fugiram também. E daí Daniel? - Quando chegaram perto da escada o cachorro aproveitou para dar uma mordida em cada um, o galo, do alto do galho da árvore deu uma bicada, e o cavalo deu um pontapé na bunda deles, que até hoje ainda correm apavorados, contando a todo mundo que aquela casa era assombrada, cheia de almas penadas e lobisomens. E daí, pai?

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XIII

- De manhãzinha levantaram sossegados, tomaram um bom café: os bifes para João Bocó, para o cachorro e para o gato, a pipoca para o galo, para o cavalo e os passarinhos e saíram cantando pela estrada. Quando chegaram numa cidadezinha, uma irmã-freira, saía da padaria com uma sacola de pão e a tristeza dela mudou quando ouviu a cantoria dos bichos e o assobio de João Bocó, e perguntou: - Vocês não querem ajudar minhas crianças do orfanato? São 30 crianças que eu cuido e não tenho dinheiro para tudo. Se vocês fizessem uma festa de cantos, as crianças se alegrariam e as pessoas que quisessem entrar pagariam um pouco e minhas crianças poderiam se alimentar melhor. Que acham? Cada um disse o sim, do seu jeito, e foi aquela cantoria que todo mundo saiu na janela para ver o que acontecia. A irmã Luci foi convidando a todos para a festa daquela noite. 47


O show foi lindo. As crianças do orfanato estavam de roupinha limpa e olhos acesos. Eles cantaram. Não cabia mais ninguém. Foi um sucesso. João Bocó agradeceu e pediu que cada um ajudasse as criancinhas. E foram embora prometendo voltar num sábado à noite.

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XIV Foi aí que a polícia soube que João Bocó estava na cidadezinha de Riacho Limpo. E se mandou atrás dele. E como continua, Vinícius? - Mas seu Pedro, pai de João Bocó, quando recebeu o dinheiro que o amigo Anarolino trouxe dando notícias do filho que fugia da polícia e do Bastião, foi até o Juiz: - Senhor Juiz, venho lhe contar uma história... sabe do Bastião, aquele bandidão que mora lá perto do rio? Pois é, ele roubou o pouco de dinheiro que nós tínhamos guardado... Meu filho João descobriu, foi até a casa dele, pegou o dinheiro e me mandou através de um amigo o seu Anarolino, que 49


é homem honesto e de bem. Pois agora, o Bastião com o delegado e polícia estão querendo prender meu filho ao invés de prender o ladrão. - Mas o senhor tem certeza que é assim mesmo? - Senhor Juiz, o senhor já me viu mentindo alguma vez? Tenho certeza e gostaria que o senhor mandasse parar a perseguição e protegesse meu filho. - Como é o nome de seu filho? - João. É João. Na escola apelidaram ele de João Bocó. Mas de bocó ele não tem nada. É muito esperto e correto. - Vou ver o que eu posso fazer, disse o doutor Juiz. No dia seguinte o juiz mandou uma ordem ao delegado para que ele parasse de perseguir João Bocó. Que se o delegado ou o seu Bastião quisessem fizessem um pedido ao juiz e trouxessem as provas que seriam examinadas antes de prender quem poderia ser inocente. Mas, nem com essa ordem do juiz, o delegado parou. É que o Bastião prometeu dar uma parte do dinheiro ao delegado se eles prendessem o guri. Nem sabiam que João Bocó já tinha mandado o dinheiro para os pais.

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XV Luciana, pensou, pensou e continuou: - João Bocó saiu da cidade ligeirinho e foi com sua bicharada para a beira de um riacho de água bem limpa, peixinhos dourados que vinham pedir migalhas de pão. Fez um fogo perto de duas pedras, assou um pedaço de carne que compraram com algumas gorjetas que receberam na festa. Todos comeram a sua refeição e depois dormiram sossegados iluminados pelas estrelinhas lá no céu. João não esqueceu de rezar. Quis convidar os bixos, mas depois pensou: eles não aprenderam. Eu rezo por eles. 51


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XVI

Era madrugada. O sol não tinha aparecido. Duas vacas vieram cheirar o que havia de novo. João Bocó tirou uns copos de leite: o gato, o cachorro e João beberam. O galo e o cavalo comeram milho. Mas, um peão que andava recolhendo as vacas lá na beira do mato encontrou o delegado e disse que, na beirinha do banhado uma árvore andava junto com um cavalo branco, mas não viu nenhuma pessoa por perto. João Bocó estava feliz em cima da árvore. Quando o peão foi embora, João Bocó avisou a todos: - Vamos embora que a polícia vem aí. Daniel? 53


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XVII - Precisavam atravessar o riacho. A escuridão e a neblina não deixavam ver bem. João Bocó foi examinar como passar. Havia um tronco grosso e seco atravessado. João pisou em cima dele e o tronco começou a andar. Era um jacaré. Um enorme jacaré. E então, Vinícius? - O jacaré sacudiu o rabo, corcoveou, derrubou o João na água e abriu a boca com seus dentões na direção do guri. E então, Daniel? Daniel pensou, pensou e lascou: - João Bocó juntou um espeto de pau que, por acaso, vinha boiando e colocou-o de pé na boca do Jacaré. O jacaré fechou a boca furando a parte de cima e a parte de baixo. A boca ficou colada. Ainda sobrou um pedaço de espeto por cima do jacaré. João Bocó montou a cavalo no jacaré e saiu a passear com o bicho de boca fechada. A bicharada fez festa. E então, mana? 55


- O jacaré ficou mansinho. Eles tiraram o espeto e disseram para ele nunca mais atacar crianças. O jacaré concordou. E até ficou quieto para que todos, menos o cavalo, passassem o arroio por cima dele. Continua, Lu! - Eles foram subindo o morro do outro lado, sem fazer barulho. E a polícia vinha atrás.

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XVIII

E como continua, Vinícius?

- Para despistar, João resolveu com a sua bicharada que era preciso mudar de plano. - Que vocês acham? Perguntou. Se nós serrássemos a árvore de cima do cavalo. O cavalo ficaria aliviado e poderíamos andar mais ligeiro. - Depois eu crescerei de novo, disse a árvore conformada. - E a gente vai a pé? Perguntaram tristes o galo e o gato. - Lógico, disse o cachorro. Todos faremos exercício. Faz bem para a saúde e a polícia não saberá onde estaremos. 57


A figueira caiu no chão como se tivesse sido plantada aí. E já foi criando raízes na terra úmida. E eles foram subindo, subindo, até encontrar uma caverna. Entraram. Na porta João Bocó colocou uns galhos verdes para esconder a entrada. Bastião, o delegado e os soldados também subiram. Iam a pé, fazendo barulho: - Ele deve estar por aqui.... não, por ali... Mas esta figueira não era a figueira que andava? Examinaram os galhos, e não viram ninguém... Escutaram: só o silêncio... E...foram seguindo... E aí, pai? O galo ficou contente. Quis cantar. Mas o cachorro pôs a pata na frente da boca e fez... - Pssiiiu. Escureceu. A lua saltou, um fiapinho de tão magricela, por trás do outro morro que ficava longe. Em voz baixa, João Bocó consultava a bicharada sobre o que fariam no dia seguinte: - E se nós fôssemos falar com o juiz. Ele entenderia e nos ajudaria, disse João Bocó. O gato e o galo olharam-se desconfiados. - E se ele nos botar a todos na cadeia? Afinal o delegado deve ter dito a ele que João roubou o dinheiro de Bastião e que nós somos culpados porque estamos juntos. 58


- E então, Luciana? - Então João pensou: Mas o juiz vai ter que nos ouvir. Precisa fazer justiça. Mas precisamos provar que aquele dinheiro era de meu pai. Que o ladrão é o Bastião e não nós. Mas que prova levaremos ao juiz? O cavalo que comia um resto de pasto em silêncio sacudiu a cabeça e disse: - Eu vou contar que vi quando o bandidão veio para a casa dele com a sacola cheia de dinheiro e comentou para a mulher Bolota: - guarda este dinheiro que eu roubei do Pedro, agora somos quase ricos... Eu estava pastando pertinho da casa deles. Eu vi e ouvi. - Mas o juiz não acredita em bicho, disse o cachorro. Ele não entende nossa fala. - Ah, mas João entende o que dizemos, ele vai traduzindo pro juiz e então o juiz compreenderá tudo. - É isto mesmo, sussurraram todos... Quando iremos? - Amanhã, bem cedo, disse João. Dormiram. João sonhou com o anjo da guarda. “Não tenha medo João. Deus sabe tudo. Ele mandou que eu cuidasse de ti. Olha ao teu lado, encontrarás uma pedra preta, lisa que cabe na palma da mão. É um transmissor de pensamento. Quando quiseres mandar um pensamento para tua mãe, teu pai, tua irmã ou para Licele, basta que olhes bem para a pedra e penses neles. Eles receberão teu pensamento...” João acordou, viu a pedra. Segurou-a com as duas mãos e pensou, pensou firme e com saudade... a pedra começou a brilhar como se tivesse 59


fogo dentro dela... e ele se sentiu feliz por ter mandado um carinho para casa. E então, Daniel? - Depois pensou: será que não posso mandar um pensamento para o Juiz? A bicharada toda concordou. E o juiz ficou sabendo que João era inocente. E aí, Vinícius? - Quando desciam a montanha e viram o delegado, os soldados e Bastião, João tirou a pedra do bolso e enviou-lhes um pensamento de verdade. Eles ficaram confusos e deixaram o grupo de João passar. Que aconteceu depois, Luciana? - Na escola, no dia seguinte, João Bocó contou sua aventura. E quando alguém duvidava, João se concentrava na pedra e todos concordavam. Na casa de João e Laurita, os bichos faziam festa e cantavam: “todos juntos somos fortes...” ............................................................... E, então, você leitor, como acha que essa história poderia continuar?.... 60


IMPRESSテグ Cテウpias Santa Cruz/UCPEL

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