Orçamento Participativo

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ORÇAMENTO PARTICIPATIVO PRESSUPOSTOS ÉTICO-CRÍTICOS DA PARTICIPAÇÃO POPULAR PARA ALÉM DA DIALÉTICA .


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Orçamento Participativo UNIVERSIDADE CATÓLICA DE PELOTAS UCPEL Chanceler D. Jayme Henrique Chemello Reitor Alencar Mello Proença Vice-Reitor Cláudio Manoel da Cunha Duarte Pró-Reitor de Graduação Gilberto de Lima Garcias Pró-Reitor de Pós-Graduação, Pesquisa e Extensão William Peres Pró-Reitor Administrativo Carlos Ricardo Gass Sinnott EDUCAT - EDITORA DA UCPel Editor Wallney Joelmir Hammes CONSELHO EDITORIAL Wallney Joelmir Hammes- Presidente Lino de Jesus Soares Luciano Vitória Barboza Luiz Roberto Bitar Real Osmar Miguel Schaefer Vilson José Leffa

EDUCAT Editora da Universidade Católica de Pelotas - UCPEL Rua Félix da Cunha, 412 Fone (0xx53)284.8297 - FAX (0xx53) 225.3105 - Pelotas - RS - Brasil


Jandir João Zanotelli

Jandir João Zanotelli

ORÇAMENTO PARTICIPATIVO PRESSUPOSTOS ÉTICO-CRÍTICOS DA PARTICIPAÇÃO POPULAR PARA ALÉM DA DIALÉTICA .

EDUCAT Pelotas – 2003

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© 2003

Jandir João Zanotelli

Direitos desta edição reservados à Editora da Universidade Católica de Pelotas Rua Félix da Cunha, 412 Fone (0xx53)284.0000 - Fax (0xx53)225.3105 Pelotas - RS - Brasil E-mail:educat@phoenix.ucpel.tche.br

PROJETO EDITORIAL EDUCAT EDITORAÇÃO ELETRÔNICA Ana Gertrudes G. Cardoso CAPA Luis Fernando Giusti

ISBN 85-7590-004-8 Z33o

Zanotelli, Jandir João, Orçamento participativo – pressuposto ético-críticos da participação popular para além da dialética/ Jandir João Zanotelli. – Pelotas: Educat, 2003. 298 p. 1. Política – filosofia. 2. Orçamento participativo - Pelotas I. Título

CDD 172.1 Ficha catalográfica elaborada pela bibliotecária Cristiane de Freitas Chim CRB 10/1233


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APRESENTAÇÃO A obra – Orçamento participativo. Pressupostos Éticocríticos da Participação Popular para Além da Dialética, de Jandir Zanotelli, pode ser denominada como uma obra de maturidade do autor sobre a participação como uma dimensão ética essencial da vida política. Jandir discute, a partir da experiência do Orçamento Participativo em Pelotas, uma concepção política alicerçada em valores éticos, onde a participação efetiva dos sujeitos (cidadãos) é solo, lugar e destino da atividade política. Os quatro capítulos do livro são resultado de profícua pesquisa sobre a dialética e a fundamentação da dialética (os três primeiros capítulos) e a análise sobre a participação e o orçamento participativo (“o 4° capítulo”). Pode o leitor perguntar: Mas o que tem a ver orçamento participativo com ética, teorias sobre a ética, dialética, enfim, com filosofia? Sem responder à pergunta nesta apresentação, remeto ao desafio que Zanotelli lança neste livro, de modo original, perspicaz, com um texto, ao mesmo tempo, profundo e agradável. A participação política é vista por nosso autor como o centro da vida política. Não se trata de uma participação do “Faz de Conta”, de uma teoria de participação representativa, disfarçada num aparelho de Estado distante, frio e burocratizante. A participação, ao contrário, é uma exigência “da consciência ética e crítica de populações que se querem livres e que experimentaram na pele amargas ditaduras centralizadoras e totalitárias...” É nesta perspectiva que o autor confere à dialética um lugar de destaque especial. Não significa ela tão somente a existência de contradições, de interesses divergentes, de perspectivas éticas diferentes. Pode-se ser tentado e pretender que a dialética aponte, em seu movimento, para além de si mesma. Por isso Jandir, não sem ousadia, talvez seja tão insinuante em propor a superação da dialética, quando, de maneira clara, trata de seus perigos e desafios. A superação da dialética enseja a síntese. Esta síntese não é a aglomeração pura e simples das contradições, num estado de repouso. Parece que a idéia de síntese seria a efetiva participa-


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ção dos sujeitos na vida da sociedade. Invoco uma imagem de Merleau-Ponty: o único repouso da síntese, que é participação, seria seu permanente movimento.

Osmar Schaefer


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SUMÁRIO1 INTRODUÇÃO / 9 I- OBSERVAÇÕES GERAIS / 13 1.1 A síntese é um fato que nos deixa estupefactos. Condição, possibilidade e exuberância da dialética 1.2 Mas o que é dialética? / 115 II. A DIALÉTICA NA HISTÓRIA DO FILOSOFAR / 29 II.1 Na Antiguidade / 29 II.2 Na Idade Média e Renascimento / 59 II.3 Na Idade Moderna e Contemporânea / 66

III. A

SUPERAÇÃO DA DIALÉTICA, A CAMINHO DA ANALÉTICA/99 III.1 A analética: momento e condição da dialética / 119 III.2 A estrutura lógica da dialética / 132 III.3 A estrutura teórica da analética / 155 III.4 Encaminhando conclusões / 158 1) A possibilidade da síntese / 158 2) Perigos para a dialética / 163 IV-EM DIREÇÃO AO ORÇAMENTO PARTICIPATIVO / 181 4.1 O Contexto / 181 4.2 A Experiência do OP em Pelotas / 184 4.3 O Orçamento Participativo em Porto Alegre e 1

Este texto é o resultado da Pesquisa: A Analética como Superação das Antinomias dialéticas e servindo de base para o estudo do Orçamento Participativo. O trabalho, refundido e reelaborado pelo autor, teve a participação dos acadêmi cos bolsistas: Gerson Schulz, Eliézer dos Santos Oliveira e Fernando Vitória. Esta pesquisa está vinculada ao Instituto Superior de Filosofia e ao Mestrado em Desenvolvimento Social da UCPel.


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Rio Grande do Sul / 204 4.3.1. Histórico / 204 4.3.2. Estrutura / 207 4.3.3. Etapas / 209 4.3.4. Desafios / 211 4.4. O OP novamente em Pelotas – 2001 / 218 CONCLUSÃO / 220 BIBLIOGRAFIA / 226 ANEXOS / 231


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INTRODUÇÃO De que se trata? Trata-se da explicitação teórico-prática da possibilidade de participação, especialmente, tendo em vista a participação 2 democrática e popular no programa político de Orçamento Participativo (OP) posto em prática no município de Pelotas em 19841985, confrontado com o de 2001, e na cidade de Porto Alegre, bem como no governo do Estado do RS. O OP pressupõe epistemológica, ontológica, ética, política e estrategicamente a possibilidade teórico-prática de realizar a síntese de posições dialéticas opostas. Partricipar é elaborar sínteses, é sintetizar. O diálogo é, por exemplo, uma síntese. De onde nasce, em que se funda, o que constitui o diálogo? Em perguntas e respostas? Alguém responde porque foi perguntado, ou pergunta porque pretende uma resposta? Os pólos opóstos de perguntas e respostas dão conta do que seja o diálogo? Como veremos, nem as perguntas, nem as respostas, nem a soma de ambas constituem o diálogo. A dialética das oposições não será suficiente. O diálogo, como síntese, exige a analética como fundamentação. Uma posição tética ou antitética não é suficiente para dar conta da síntese. A síntese dá conta das posições opostas enquanto opostas mas não se reduz a elas. E a síntese vale para a 2

O Dicionário de Verbos e Regimes de Francisco Fernandes (Porto Alegre: Ed. Globo, 8ª ed. 1942), no verbete “participar” mostra os muitos significados deste verbo em português. Vão desde: fazer saber, anunciar, comunicar, informar; até: Ter ou tomar parte, associar-se pelo pensamento ou sentimento (e por que não pela ação?) e comunicar-se. Obviamente a estes significados poderíamos agregar os de partilhar enquanto compartir, compartilhar, ser participante. Como se pode ver, o termo participação, participativo é ambígüo, polissêmico e como tal poderá ser aplicado ao OP nos muitos trejeitos que a linguagem enseja. Tomaremos o significado de ser participante e compartilhar.


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compreensão da realidade, para o consenso dialógico, para o projeto político, para a convivência concreta, para o Orçamento Participativo. Tudo é síntese. Se não pudermos compreender as condições de possibilidade da síntese de cada coisa não entenderemos esta realidade. A vida é síntese. O pensamento é síntese. A ação é síntese. Se a vida é dialética, a alma da dialética é a síntese. Como compreender a possibilidade real da síntese? A síntese implica a possibilidade e a necessiadade teórico-prática da superação dialética das negações, das oposições ou contradições. Isto é, implica a possibilidade concreta de pensar e agir para além da oposição dialética, no próprio exercício da oposição. A dialética não se reduz a uma das oposições ou à soma das oposições. Mas implica a identificação e a superação das oposições. Assim, antes de mais nada, é preciso perguntar pela possibilidade da própria dialética. Temos como hipótese que a possibilidade da dialética está na Analética (ou Transdialética). A condição de possibilidade do OP está, assim: -

Teóricamente: na transdialética ou analética

-

Éticamente: na ética da libertação

- Pragmaticamente: na democracia de participação direta como sentido e controle da democracia representativa. Teoricamente supõe o entendimento rigoroso do que seja dialética e de seus pre-supostos: a analética. Eticamente supõe a superação subsuntiva da corporeidade, da ética do utilitarismo, da ética do comunitarismo, das éticas do discurso e da comunicação, da éticas formais, exigindo a fundação da ética no horizonte da alteridade.


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Pragmaticamente supõe a compreensão analética e ética do exercício da democracia cidadã, para além das “contradições” dialéticas. Este trabalho terá três partes: 1. Levantamento bibliográfico do tema “dialética” com suas antinomias e as tentativas de compreensão de sua superação ao longo da história da Filosofia em busca da fundamentação teórica da possibilidade da síntese.

2 Incursões indicativas epistemológicas, antropológicas, metafísicas e em Filosofia da religião e ação social desde esta fundamentação teórica. 3.Compreensão da possibilidade da Participação Social, especificamente no Processo de Orçamento Participativo neste panorama teórico.


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I- CONSIDERAÇÕES GERAIS

1.1 A síntese é um fato que nos deixa estupefactos. Condição, Possibilidade e exuberância da dialética A síntese3 é um fato. A participação é um fato e um processo de síntese. Na verdade tudo é e se compreende como síntese. A realidade e a vida se nos apresenta como permanente e progressiva síntese de pólos opostos. Assim a estrutura atômica e infra-atômica, a estrutura molecular, celular. A vida vegetativa, enquanto assimilação de alimento, é síntese de corpo orgânico e alimento. A compreensão de que toda a realidade é novidade constituída por pólos opostos que se atraem, enquanto permanecem opostos, é uma surpresa permanente que nunca conseguimos elidir. O encontro dos opostos é síntese, mas esta não resulta de um ou de ambos os opostos. A síntese é o que dá a pensar.

Síntese é um termo grego (συνθησιζ) que significa composição, junção, união, unificação, integração. Síntese é tanto o processo de compor como o resultado. O resultado da integração de coisas ou idéias simples é mais complexo que sua soma: o todo é maior que as partes. Produz uma coisa nova partindo de algo já constituído (também síntese de elementos diversos). A passagem do simples ao complexo pode ser do universal para o particular, como do particular para o universal ex.: o silogismo. Como compreender o processo sintetizador e seu resultado, a síntese em si mesma, eis a questão. Na Idade Moderna, o método compositivo foi objeto do Discurso do Método de Descartes que contrapôs a síntese (remontar do mais simples ao mais complexo) à análise (dividir uma dificuldade em partes). Kant destaca a função da síntese na junção de sujeito e predicado. Fichte destaca o caráter produtivo e criador da síntese operando por posição, oposição e sua superação. Hegel designa o processo como dialética: tese, antítese e síntese, operando em seu poder criador por afirmação, negação e negação da negação onde os elementos sintetizados aparecem como conservados e superados. Esta compreensão será fundamental para o pensamento filosófico posterior. 3


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A vida é síntese. O conhecimento, a compreensão é síntese. A ação é síntese. E se o agir supõe a compreensão, ambos pressupõem a possibilidade da síntese e a possibilidade de compreensão da síntese. Negar a possibilidade da síntese, por um entendimento (apenas unívoco4 ou equívoco5) não sintético, é afirmar performativamente o que se nega. Essa negação, porém, esse desentendimento da possibilidade da síntese distorce, desorienta, perturba e desencaminha o agir em todas as suas dimensões. Viver é estar na síntese, e, ao mesmo tempo, é fazer síntese, é ser síntese. Ser é viver na síntese. Conhecer, sentir, imaginar, idear, pensar, raciocinar é fazer síntese. O pensamento, a sensação, a decisão nascem da síntese e, ao mesmo tempo, a constituem. Falar e discursar, ouvir e entender é fazer síntese. Querer, gostar, escolher, preferir, decidir, interferir, agir é fazer síntese. Cultura, economia, sociedade, política, ética, moral, estética, arte, religião é síntese. História é síntese. Portanto, a realidade, o ser, a natureza, a história, o espírito, a lógica é síntese. Se, porém, tudo é síntese, isto não significa que ela seja o mais corriqueiro e banal do pensar, do querer e do agir. Porque ela é o mais vital e essencial, é também o mais perigoso para o homem. Pode pôr tudo a perder. Abrir e estruturar o pensamento e a ação para que ela possa acontecer é o mais promissor para o humano do homem. E como compreender a síntese e a possibilidade da síntese? A síntese, que se impõe como um fato, é pensável? Será ela possível ou absurda e, por isso, impossível? Será ela um dado 4

A realidade se explica por sua identificação a um dos pólos da oposição: o hu mano é o masculino. 5 A realidade se explica pela negação do polo oposto: o masculino é o não-femi nino, o morto é o não-vivo... e vice-versa.


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a priori, pré-conceitual, um abissal absoluto, dado por si mesmo, impensável e que, sem como sabermos porquê, fundamenta tudo o mais? Realidade e pensamento ou apenas um modo de pensar? Será ela o resultado, a consequência de um processo de negação e oposições, ou será ela o próprio processo? Se a síntese não fosse prévia à oposição, esta oposição alguma vez se faria? Se a síntese não fosse superação das oposições, estas teriam alguma vez identidade de oposição? Quem faz as oposições serem opostas? Quem as junta e, por isso, as faz opostas? Será a síntese, então, a auto-determinação do ser, do pensamento, da vida, como “auto-poiese” que se põe, se contra-põe e se supera a si mesma, para, em sua autonomia, poder ser si mesma? Lógica e ontológica ao mesmo tempo? Ou será a síntese apenas a ilusão de quem não suporta a luta e oposição dos contrários? Na verdade a síntese é dialética, mas a teoria dialética não é suficiente para compreender a síntese. É preciso expor a possibilidade teórica da dialética para que a síntese se faça compreensível em sua possibilidade. E a analética, veremos, é a possibilidade da dialética e da síntese. 1.2 Mas o que é dialética? “De maneira genérica pode dizer-se que, por dialética, se entende uma ‘lógica das oposições’, a arte do diálogo e da discussão”6. Por que não, o caminho para o consenso? Para a verdade? Para a vida? O discurso, tentando unificar, num todo lógico, os níveis formais encontra oposições que resultam da finitude do sujeito 6

ZILLES, Véritas, 160, pg. 699.


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ou da multiplicidade e contingência do objeto 7. Ao intentar a unidade no centro das oposições o discurso se torna dialético. Dialética vem de διαλεγω (dialego) que significa pôr de lado, escolher, joeirar, conversar. ∆ιαλεγοµαι (dialégomai) significa falar, discorrer. A técnica dialética τεχνη διαλεκτικη(tecné dialectiqué) é a arte de discutir. E dialético é tudo o que se refere à discussão. Todo aquele que fala pretende (pela sinceridade, pela coerência e verdade) que o objeto apresentado possa encontrar sentido de consenso no interlocutor. E se ele não aparecer assim, poderá ser sustentado com argumentos aos quais o interlocutor poderá opor seus contra-argumentos. Nem os argumentos nem sua oposição pretendem valor absoluto e dogmático. Assim, segundo o pensamento de Habermas, em sua «Pragmática Universal», a ação comunicativa que pretende um « por-se de acordo sobre algo» que se apresente, supõe que o objeto apresentado sintetize os argumentos para o consenso. Ele é o consenso da discussão. A superação prévia e posterior do debate e das oposições. Como, porém, o objeto enquanto consensuado se faça síntese da interlocução e como os argumentos possam se encontrar para o consenso, é o que é dado a pensar. Sabemos que a identidade e a negação nascem, se medem, e acontecem na síntese. Assim a tese só é tese na síntese. A antí-tese só é, e ganha sentido de antítese, na síntese. A análise, como exame do desdobramento dos opostos, e enquanto opostos, tem na síntese seu horizonte, sua raiz e seu telos (seu fim, sua meta). Mas, de onde vem a síntese? Se tudo é síntese, desde a menor partícula, o menor quantum, a menor energia material, até a forma de vida mais plena, da planta, do animal, do homem e do Absoluto, no entanto, é trabalhoso o caminho que nos leva a compreender a síntese e sua possibilidade.

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No entanto, o absoluto também é dialético. A unidade não é suficiente como princípio: Cf. Platão, o Uno-Díade, Plotino, Hegel...


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A sín-tese (em grego: “sin” conjunção, confluência, acordo, concordância de teses, de posições, de afirmações) não nasce nem da tese, nem da oposição de teses. Ela, sim, é a possibilidade da afirmação e da negação. Ela é a identidade de tese e antítese. Ela identifica a tese como tese frente à antítese enquanto antítese, mas não é nem uma, nem outra, nem a soma de ambas. Pois se fosse apenas soma, ela seria apenas a negação de uma e da outra e não sua identidade e relação. A síntese não permite a confusão de tese com antítese, nem a fusão de ambas em que ambas desapareçam. Ela as identifica e contrapõe. A síntese é prévia, concomitante e posterior ao processo de ser e compreender. Ela pervade, sustenta e fundamenta a análise, a separação, o confronto das teses. Assim ela é esperança, desejo, necessidade de encontro, a mãe e o sentido de todas as coisas como dizia Heráclito8. A mãe da natureza, dos homens, da história e dos deuses. Talvez porque a síntese seja o supremamente imanente a tudo, e também o mais transcendente a tudo e a cada realidade, e é tão “natural”, tão óbvio que seja assim, e que anime a todas as coisas, que nos enganamos sobre sua abissal força de transcendência. E erguemos monumentais armaduras para conter o espanto que provém da síntese, para conter a surpresa, o apelo do ser e do outro. Para que nada nos seja estranho, para que estejamos seguros e eternamente garantidos em nosso “status quo”, em nossa obviedade que a “tradição” garante, assegurâmo-nos contra o apelo analético, (da síntese) como já denunciava Heráclito (falando do pouco caso que se dava aos apelos do Logos que tudo une e separa, que é guerra, harmonia e paz) 9. Assim, muitas vezes pretendemos petrificar o movimento, o dinamismo da síntese, numa tese, num fundamento 8

Diels-Kranz, 22 B 53. “A guerra é mãe de todas as coisas e de todas rainha” , in Damião Berge, O Logos Heraclítico, pg. 261. 9 Fragmento 8 e 51.


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fixo, parado, dogmático, sem perceber que o absoluto, a razão de ser, da tese está em sua superação, em sua transcendência. Porque tudo o que é, é ao mesmo tempo uma síntese e uma tese nova para uma nova síntese. E o Absoluto, sem se confundir com uma ou com todas as sínteses, é sua força, sua possibilidade, sua exigência, sua liberdade e fundamento, como se verá. A síntese não é justaposição de oposições, anulação de oposição, fuga da oposição. É a possibilidade da oposição enquanto oposição. Ela recolhe, guarda os opostos em sua identidade de opostos desde e a partir de sua superação: aufhebung (Hegel). A possibilidade da oposição é anterior e posterior e imanente à oposição, não lhe é exterior. A síntese guarda, cuida, identifica a oposição referindo-a à sua negação, mas que, ao mesmo tempo anula a negação enquanto a recolhe na negação da negação. A síntese, portanto, não é apenas resultado da posição e sua negação. É ela que possibilita a posição e a negação como ultrapassagem que recolhe a ambas e as eleva, mantendo-as em sua identidade e negatividade. Assim, um ente só é si próprio, idêntico a si mesmo, se oposto a todos os outros entes (que são sua negação). Um cavalo é cavalo porque não é árvore, homem, automóvel... A árvore é árvore enquanto não é cavalo... Mas o que determina a árvore e o cavalo não é um ou outro, nem ambos juntos como soma (não somam porque são oposição), mas são referidos, vinculados, ligados um ao outro enquanto opostos, pela síntese (vida, ser) que os antecede, penetra e ultrapassa. Assim, a vida não é o cavalo, nem a árvore, nem a soma de todos os entes vivos: a vida identifica a cada vivente enquanto idêntico a si e diverso de todos os outros, a vida os vincula e diferencia, a vida os ultrapassa e garante. A vida é síntese. Como a vida, tudo é síntese. Essa síntese, que ultrapassa e guarda os opostos não é meio-termo entre um e outro, a “mediania” como sugeriria Aristóteles, a fuga dos excessos “nem tanto ao mar, nem tanto à terra”, como ensinam os que querem garantir o status quo. A síntese é “progresso”, ultrapassagem, superação, ressurreição, cria-


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ção, novidade, revolução. É tensão que não se reduz à acomodação. Ela é memória, presnça e esperança. Ela é a medida e a me diania. Não está “entre” mas é o “entre” de todas as coisas. A menor partícula material é síntese, a menor molécula viva é síntese, a vida e o universo são síntese, eu sou síntese em múltiplas dimensões (física, biológica, psicológia, social, espiritual), a história é síntese, ”Deus” é síntese Não basta dizer que a síntese é a possibilidade da oposição dialética e que a dialética tem a síntese como pressuposição: é preciso mostrar a racionalidade, a inteligibilidade dessa pressuposição, dessa síntese. Não basta dizer que a síntese é analogia e que a analogia não é univocidade (igualdade) nem equivocidade (diversidade), mas outra coisa. É preciso que se pense e que se diga como é essa “outra coisa” e como ela é possível não apenas no pensamento mas na realidade da ética, da política, da economia, da ação. Assim, por exemplo, o conhecimento não é apenas aderência, fusão ou justaposição de órgãos sensoriais e realidade física (sensível); e nem os órgãos sensoriais conhecem o sensível porque órgãos sensoriais e realidade sejam iguais como queria Empédocles;10 tampouco a idéia é apenas o universal do conceito ou o particular da sensação, ou sua soma: mas é algo novo (o particular universalizado e o universal particularizado). O raciocínio não é apenas a justaposição de termos ou proposições: a inferência é síntese, a conclusão não é apenas resultado das premissas. Assim a ética, a política, a educação não são apenas o conflito de liberdades e sua justaposição (minha liberdade vai até onde começa a liberdade do outro, diz o liberalismo da Modernidade), nem é a anulação de uma liberdade pela outra, mas é sua síntese que dá identidade a cada liberdade, negando-a e guardando-a, antes, nela e acima dela (minha liberdade inicia com o 10

Fragmento 109: “Pois com terra vemos terra, com água vemos água, com éter o éter divino, e com fogo o fogo aniquilante, com Amor o Amor, com Contenda a dolorosa Contenda”. Reale Giovanni. Hist.Fil. ANTIGA, I: 138.


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respeito e a construção de tua liberdade. É em tua liberdade que minha liberdade ganha força, enquanto convocação de minha e de tua liberdade para a liberdade de escutar o grito daquele que não tem liberdade). A minha liberdade, porém, como determinação (minha) de construir e respeitar a tua liberdade não é fundamento ético suficiente. É preciso que tua liberdade a ser respeitada não seja apenas a de um outro-eu, o espelho da minha própria liberdade dentro de uma corporação ou máfia de interesses. Para que tua liberdade seja, e só o será se for outra de mim, é preciso que a minha e a tua encontrem o critério da exterioridade, da alteridade, e isto concreta e objetivamente: a vítima da máfia (ou do “sem querer” ) de nossas liberdades. Veremos como o clamor da vítima dá identidade e superação à nossa liberdade. A novidade, a alteridade do outro, como condição da dialética não é apenas diferença, multiplicidade do mesmo, refração (Bakthin), anulação dos opostos ou a sobreposição de um deles sobre o outro: é transcendência e experiência da transcendência. É novidade que surpreende, que rebenta meu sistema de cálculo e controle, e se impõe como o que dá a pensar e a fazer. Tarefa do pensador não é somente viver na síntese e fazendo síntese, mas vivê-la e fazê-la criticamente, socorrendo-a com razões e argumentos para que ela não se perca nos descaminhos da mesmidade e da mera oposição. Para que ela não se perca na razão empírica ou ontológica, como diria Carlos Cirne Lima (1967). Por isso é preciso ver como ocorre a síntese na Lógica, na Ontologia e Metafísica, na Filosofia da Natureza, na Filosofia do Espírito, em todas e em cada uma de suas dimensões. Na Lógica : o pensamento como acolhimento do Ser que se dá; na Linguagem: o diálogo; na ética como justiça, como respeito e amor; na vida: a ressurreição; na política: a participação de todos e a prioridade do mais fraco; na educação: a aprendizagem... Para que não sejamos tolos ao excluir o que não cabe em nossa prélimitada e pré-conceituosa concepção de mundo: como um pé (da realidade) quando não coubesse em nosso limitado sapato, o cor-


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tássemos até que ali caiba, e então declaremos que nosso sapato é o suficiente para dar conta da realidade, como fazem os positivismos. Quando Aristóteles diz que a explicação de algo se obtém pela definição, e que a definição consiste na junção de um gênero próximo e uma diferença específica, a partir de uma disjunção completa, mostra que a síntese (definição) não é o gênero ou a diferença específica, nem a soma dos dois, mas sua síntese. Assim podemos dizer que a oposição de gênero e espécie, de universal e singular, só acontece na síntese da coisa (a substância como unidade de essência e existência, como síntese de matéria e forma, “ousia”) e do pensamento (conceito como unidade de sensorialidade imagética e universalidade) e da linguagem (como síntese de sujeito e predicado...) ou na ética (como síntese de dever e querer) ou na política (como síntese de Sociedade-Estado e cidadão) ou na história (como síntese de memória, tradição e utopia, futuro) ou na vida (como síntese cada vez mais alta de alimentação, sensação, idéia, juízo, raciocínio, diálogo...) ou de “Deus” (como a suprema síntese, como auto-determinação). A síntese como negação da negação, é a afirmação e identidade de cada pólo da negatividade, e sua relatividade enquanto processo de superação antecipativa (como síncrese, intuição, adivinhação, hipótese) ou como resultante e resultado (síntese superadora da análise). A síntese, como posicionamento ético, não é a mesmidade de um dos lados da oposição: o autoritarismo prepotente de quem tem o poder e a palavra; a síntese não é a mera negação da mesmice: somos anti-burgueses, por isso somos bons; somos contra, entendendo oposição como crítica e não alienação; a síntese também não é o indefinido, o indeterminado, o nem-nem, o nem isto e nem aquilo, ou é isto mais aquilo, a agregação de opiniões sem ver-lhes um fundamento que torne possível um consenso; mas é a identidade da identidade e da oposição dos contrários. Nem apenas razão empírica de igualdade, nem razão ontológica da oposição, mas razão transcendental, no dizer de Cirne


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Lima11, como teremos ocasião de verificar. A possibilidade-identidade de cada oposto não está em si mesmo, nem em seu contrário, nem em sua união, mas em sua prévia união ultrapassadora ética, lógica e ontologicamente. Assim é possível pensar a harmonia dos contrários (da guerra em Heráclito), do Ser (que se diz de múltiplos modos em Aristóteles), do Bem (que vincula o Ser e o não-Ser em Platão), da coincidentia oppositorum (da Idade Média), da História (como síntese superadora da luta de classes, em Marx), em uma Docta Ignorantia, um perguntar radical e um ouvir a alteridade do outro. As condições de possibilidade da síntese exigem compreender: a negação (a divisão, a disjunção completa, a oposição, a diversidade, a alteridade); a negação como afirmação do outro, mas não sua absorção pelo outro e nem a absorção do outro (na contradição que não permite um terceiro caminho). A superação dos pólos opostos, antes, durante e depois da oposição é mediação. A dialética não consiste, afinal, na oposição, na negação, na luta, mas na sempre nova possibilidade de sua superação: por isso na possibilidade da oposição. Seu âmbito é analético. A vida é um continuum diferenciado e diferenciante. O universo é vivo (?). A manutenção, a reprodução e o desenvolvimento da vida, não só alcança patamares cada vez mais altos quantitativamente, mas se faz qualitativamente diverso: o vegetativo, o sensorial, o consciente, o lingüístico e social, o ético. O “progresso” e o desenvolvimento não é apenas a reprodução do mesmo, nem simplesmente a negação das condições anteriores, mas a ascensão para o mais originário (aufheben). A dialética (considerada apenas como a oposição de pólos contrários) não é suficiente para si mesma: é-lhe necessária a analética.como sua condição de possibilidade , como sua razão sintetizadora. 12 11

Cf. O Realismo Dialético, a Analogia como Dialética do Realismo. Porto Alegre: Globo, 1967. 12

(Cf. em Hegel Verstehen como faculdade objetivadora (entendimento em Kant), capacidade de opor os contrários, e Vernunft como faculdade sintetizadora (razão, capacidade do transcendental).


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A analética não acontece apenas na natureza das coisas, nem é, apenas, racionalidade, destino e Necessidade. Surge e se mantém, também, como decisão, como escolha, como criação e novidade, como ação e realização ética. A condição de possibilidade da dialética, enquanto analética, repitamos, não acontece apenas como posição da subjetividade: nem no cógito de Descartes, nem no eu penso de Kant, nem no Eu absoluto de Fichte, nem no Sistema Absoluto de Hegel, nem na totalidade da História do Socialismo-comunismo. Acontece, isto sim, como experiência radical de alteridade, como confiança na novidade criadora do outro. A analética não acontece apenas na vontade de Poder do Super-homem de Nietzsche, nem na fenomenologia de Husserl, nem na comunidade de comunicação de Habermas, nem na comunidade ideal de Apel, nem no comunitarismo de Rawls, mas na experiência de respeito à reprodução e desenvolvimento da vida humana (Dussel: 2000) pragmática e concretamente, como teremos ocasião de ver. Se a realidade, enfim, em sua identidade e oposição, aparece como dialética, esta exige uma fundamentação analética do pensamento dialético, do fazer e agir dialéticos, nascidos de uma postura ética e política analéticas. A ética, enquanto respeito à alteridade, far-se-á, assim, filosofia primeira, fundante de todo pensar e agir dialéticos. Supera-se assim o idealismo para quem o pensamento, a ideologia, determina a realidade. Supera-se o materialismo dialético e histórico para quem o pensamento é determinado pela realidade. Supera-se o pragmatismo bem ao gosto dos que estão no poder e defendem o status quo, para quem a realidade, a vida, a ética, a política não são compreensíveis, cognoscíveis pelo pensar e, em consequência, só caberia adotar a defesa dos interesses, dos mais fortes interesses, e do interesse dos mais fortes. Assim a ação política ficaria imune de toda crítica porque a crítica (dis-


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curso racional) não a atingiria e porque toda a racionalidade seria apenas uma racionalização13. A ética, o posicionamento ético, refunda e reconduz todo o pensamento à sua origem. A ética, porém, não é apenas uma teoria do agir humano. Não é apenas uma caminho. É o próprio caminhar. A analética não acontece somente ao final do processo e do sistema como resultado de apropriação do absoluto para si mesmo (Hegel), nem somente a priori como condição prévia de possibilidade da dialética: acontece a cada passo, a cada síntese, a cada momento da participação. Uma participação negada, transforma todo o processo em negação. A não ser que ele se recupere como perdão e como reconciliação. O pensamento, se não for impedido, estancado, fixado pela negação ontológica, reside na ultrapassagem, é o espaço do acontecimento da transcendência, epifania da síntese. Assim, existir é sintetizar, juntar, lógos, compreensão. E todo comportamento situa-se na compreensão do Ser que é a unidade da diferença. O amor será, então, síntese de afeto e exigência, de ternura e vigor, ou de “hay que ser duro sin perder la ternura” 14. Assim se você quer saber quem você é, olhe-se, não no espelho liso da água de Narciso, nem no inverso de você mesmo (elaborando um outro-eu para você mesmo e que, enquanto contraposto é igual a você) mas naquilo que você odeia, que é sua negação e você verá que você está para além de você mesmo, como dever de ultrapassar-se, como exigido éticamente. Assim a identidade ética de nosso pensar e agir está na alteridade, como negação da negação, como dever-ser que nasce do rosto do excluído. Defender-se, agarrar-se à própria posição, assegurar-se da propriedade é medo, insegurança, desespero e clamor para a possibilidade de uma entrega.

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A racionalização pode ser vista como mecanismo de defesa guiado e ditado pelo inconsciente. 14 Che Guevara


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Assim, também, poderíamos dizer que a dialética não é suficiente para explicar a linguagem. Entre o silêncio e a fala está a canção, a música, o hino, diriam os Guaranis15, em sua literatura sagrada. Assim, entre a memória e a utopia está a esperança. A esperança é síntese de memória e utopia. Por isso ela é a essência do presente. E isso não apenas como identidade pessoal, mas também como identidade grupal, de comunidade, de história. Matar, massacrar um povo é, antes de mais nada, matar-lhe a memória e a utopia, a pretexto de que deve viver a vida presente, com os pés no chão. O homem, na verdade é ântropos: aquele que pisa o barro olhando para as estrelas. Elaborando dialogicamente as sínteses, mantemos a oposição de fatos e valores em busca de uma norma que os mantenha jungidos como decisão, como participação solidária 16. O diálogo não é o que resta depois da discussão ou do debate, o consenso resultante, mas o que incita, concita a pôr em comum o que é ciosamente meu, expor-me ao debate, à negação do outro, para que ele recupere comigo sua própria dimensão de compreensão e de afeto. E eu encontrarei na pergunta e na resposta que me oferecem a identidade de meu próprio falar. Mas, repitamos, o diálogo não é feito de perguntas e respostas; o diálogo está antes, acima e depois das perguntas e respostas; cada uma delas só encontra sentido no diálogo e não vice-versa. Assim, depois que tivermos elucidado as condições de possibilidade da síntese por um pensamento não apenas dialético mas ana-lético, deveremos trazer à luz as condições de possibilidade da participação intrínseca no programa político-social “Orçamento Participativo” onde a sabedoria prática (e não apenas teórica) de uma ética política mostrará os caminhos da síntese. Assim, no Orçamento Participativo, poderão evidenciar-se os gargalos e contradições de uma dialética que permane15

Cf. Ayvu Rapta. A Política é síntese de fatos, valores e normas. O direito é sempre elaboração de sínteses: a sentença judicial é síntese: fato - norma - decisão 16


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ce apenas em si mesma. E isto na democracia direta ou representativa; na condução das reuniões, não permitindo a todos falarem ou a só falarem o que previamente se quer que o povo fale; no assalto às presidências e aos comandos; no desprezo ao lumpen proletariat; no não cumprimento da palavra empenhada; no monopólio do poder e em seu disfarce como jogo demagógico para conseguir e divulgar um consenso que não é real; na ideologização da participação ou na sua partidarização; no estabelecimento dogmático do decidido sem considerar as contingências históricas e sempre mutáveis ou na permanência do decidido segundo os interesses, os caprichos e arbitrariedades de quem comanda; no interesse em confiar o comando a quem não tem discernimento, para melhor manipulação; na venalidade e interesses apenas corporativos; na não institucionalização do processo ou na estagnação do processo em alguma instituição; na redução da participação a um ato (e não essencial) de participação (como apenas votar, comparecer a uma assembléia, votar só o orçamento ou numa parcela do orçamento e não em todas suas condições políticas, culturais e sociais); supor decidido o que não foi decidido sob o pretexto de que é demorado, difícil, inútil perda de tempo, falta de dinheiro etc... Gargalos esses de contradição dialética que necessitam de um patamar de superação que não se reduz à própria dialética. Contradições essas e muitas outras que se apresentam ao longo de todo o processo, desde a ideação, o planejamento, a divisão de planos, tarefas, geografia, passando pela seleção, pelo convite ou convocação de quem deva participar, pela organização e condução das reuniões, pelo modo como se concede a palavra e se obtém os consensos, pelo modo como se agrupam os consensos e se firmam as decisões, pelo modo como se leva a efeito o que foi decidido, pelo modo como se avalia o processo e se permite o controle. A participação não é uma confusa omelete de opiniões resvalando para a escuridão do indeterminado e vazio, “onde todas as vacas são pretas” e onde vale o que cada um quiser, isto é, onde vale a doxa de quem tem mais poder, direto, indireto ou disfarçado.


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Ao refletir sobre as condições de possibilidade do OP assaltam-nos inumeráveis questões como: Em que sentido a dialética e a transdialética (analética) permitem compreender esse processo? Quais são os pólos contrários no Orçamento Participativo? Em que consiste a oposição? Como se manifesta e se estrutura a oposição? A oposição é de contraditoriedade ou de contrariedade? Em que consiste a síntese ou em que consistiu em cada momento? Quais as condições de possibilidade sociais, culturais, éticas e políticas? Orçamento Participativo: uma síntese impossível? Assim como a ética e a liberdade? E a História? E a condição humana? É possível, pelo consenso obtido, pela definição votada, superar e até eliminar a dialética? É possível parar, estancar o diálogo numa definição, numa proposta, numa constituição, num dogma, num consenso tido como definitivo e absoluto? Quem poderia estancar e refrear o tremendo poder da negatividade que nos leva à ultrapassagem permanente, cotidiana e contínua?


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II. A DIALÉTICA NA HISTÓRIA DO FILOSOFAR 2.1 Na Antiguidade A possibilidade de encontro dos opostos e daquilo que constitui sua oposição, a possibilidade de compreensão do diverso, e da união da diversidade numa unidade que, ao mesmo tempo, guarde a identidade do diverso e supere a negação que os vincula, foi, certamente, a preocupação do homem ao longo dos milênios. A atuação do homem no mundo como homo-faber já pressupõe pragmaticamente a possibilidade da superação dos opostos: necessidades do homem x alimento, x abrigo etc. Como o homem teria tematizado o assunto, não o sabemos senão pelo testemunho de suas obras: instrumentos de trabalho, de defesa, arte e, ultimamente (desde um pouco mais de 4.000 anos antes de Cristo) desde documentos escritos, no bojo das tradições orais e das totalidades de mundo que são as culturas que chegaram até nós. Todas as culturas, em todos os tempos, expressam a necessidade do pensamento encontrar a possibilidade da diversidade e da união dos entes diversos entre si. Algumas acentuando mais um dos pólos da oposição do que outro, outras insistindo na inconciliabilidade dos pólos entre si. Sempre, porém, à procura de seu ponto de encontro. Como compreender que os entes sejam diversos e que estejam numa unidade? Negando a diversidade, afirmando sua unidade ou vice-versa? Manter ambas: unidade e diversidade? Como? Se olharmos as civilizações como elaboração de sínteses, descobriremos criações geniais do homem, ao mesmo tempo que suas limitações, sua relatividade em sua necessidade de ultrapassagem.


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As civilizações pré-semitas trabalhavam a questão como a necessidade de superação da forma e da figura, para poder compreender. A desfiguração da figura e a deformação da forma para poder significar é um modo de tratamento dos opostos e de sua síntese, que não pode ser desprezado. Deus, diriam os astecas, é uma serpente emplumada: céu e terra ao mesmo tempo, masculino e feminino, vida e morte, a junção dos opostos. A pirâmide é, entre os pré-semitas, a síntese simbólica cosmológica, política, religiosa. Para o egípcio, no alto da montanha está o sol (Osiris), na base da montanha a serpente (Orus), no coração da montanha o homem: a pirâmide como síntese dos três. A dialética do bem e do mal é superada pelo amor. Assim, o poder do amor (Isis), para ressuscitar Osiris, que é despedaçado por Orus. Assim o amor de Isis é capaz de dar identidade e superar a oposição entre o poder construtivo de Osiris e o poder destrutivo de Orus. Assim é a história. Assim a poesia (“flor e canto” como diziam os Astecas) é a possibilidade de acesso à verdade. Poesia é síntese que faz de cada palavra uma metáfora, (polissemia, de múltiplas faces) faz a palavra ultrapassar-se a si própria permanecendo palavra efêmera, fugaz, evanescente. A realidade não é apenas evanescência, nem é forma fixa, eterna, imutável: é mais do que ambas juntas, é poesia. Os povos indo-europeus (dos reinos arianos da Índia, dos Medos e Persas, dos gregos e helênicos) insistirão na exigência de um princípio uno e único desde o qual tudo se desdobra (explica) gerando e garantindo a multiplicidade e a diversidade dos entes. Os entes provêem do uno (como desdobramento, emanação, geração, causalidade...) e ao uno retornam (como nirvana, totalidade, absoluto, por ascensão negadora da diversidade). A diversidade não está no uno, só no múltiplo: e o múltiplo é, na verdade, a mesmidade do uno expandida e dispersa. A diversidade é mera aparência, finitude, limitação, determinação, temporalidade. A realidade de cada coisa está no uno, eterno, imutável, igual.


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Para os indo-europeus, um só princípio explica o conhecimento, um só princípio explica a ação, a história. Há uma só História, uma só Humanidade, uma só Verdade, uma só Política, um só caminho. A diversidade é apenas desgarramento, desvio, falsificação, contradição que deve, pode, e será superada na unidade do mesmo 17. A unidade será o critério da ontologia, da lógica, da antropologia, da linguagem e da política. Os gregos, como a civilização clássica dos indo-europeus, fundando a identidade do homem sobre a propriedade (absoluta, total e exclusiva: da terra, dos produtos da terra, dos trabalhadores da terra, de si próprio e de deus) dizem que o cidadão é o basileus (senhor). Na dialética de um senhor autárquico (que se governa a si próprio) frente a outro senhor é preciso uma mediação, para que os senhores não se destruam numa guerra total. Inventam então a democracia como o meio de conciliar os conflitos entre os cidadãos.18 Inventam, assim, (em confronto com os reis e administradores com poder discricionário dos outros povos pré-semitas e semitas), um espaço público (ágora) com instituições aprovadas pelo voto: a democracia. No espaço público da pólis democrática está a culminância da ética individual e grupal (familiar...) porque o bem da pólis é maior que o bem destes, como diz Aristóteles.19 A conciliação entre o poder despótico do pai de família (despotes) e o poder despótico dos outros pais de família acontece na democracia que acaba não apenas sendo um meio mas o próprio fim da vida do homem. Esse modelo de “democracia” do consenso dos poucos dominantes e hegemônicos, que são iguais porque são livres, servirá de modelo para a Europa e para o Ocidente. Os semitas, por sua vez, insistirão com a síntese radical da experiência da alteridade. Do outro como alteridade. De Deus 17

Neste sentido há uma incrível coincidência de todo o pensamento indo-europeu: do budismo à Filosofia Grega. 18 São cidadãos, cerca de 5% da população, se tomarmos o exemplo de Atenas, os que são proprietários das terras e dos escravos, que vivem do ócio e discutem publicamente na Ágora as leis e os cargos com isonomia. 19 Cf. Ética a Nicômaco. Livro I Cap. 2.


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como a suprema alteridade. Retornaremos a ele quando refletirmos a possibilidade de superação da dialética. 20 Os pré-socráticos (de 600 a 400 aC) A diversidade de todas as coisas, a oposição de cada realidade se encontra harmonizada, ligada, juntada pela fysis. A fysis (natureza) faz nascer, surgir a diversidade de todos os entes e os mantém unidos como raíz21. Por isto êstes filósofos também são conhecidos por "físicos", "naturalistas" ou "cosmológicos", uma vez que tudo situam na fysis, que é ordem (cósmos). Eles perguntavam sobre a força criadora da Fysis, sobre a harmonia do Cosmos, sobre o movimento (kinesis)... e tudo isto desembocava na busca de um princípio (arché), ou seja, na busca daquilo que é capaz de explicar o universo, o mundo, a natureza, a diversidade na unidade. Como todos os homens, em todos os tempos, procuram a possibilidade de compreensão, de inteligibilidade de toda a realidade: o princípio que dê conta de tudo o que é, diverso, múltiplo e uno. Será a água? O indefinido ápeiron? O ar? O número? Detenhâmo-nos um pouco sobre aqueles pré-socráticos que mais contribuíram para pensar a dialética. Heráclito de Éfeso (+ ou – 544-484 aC)22: A guerra é a mãe de todas as coisas e de todas é rainha. B 53 Hegel (1770-1831), o grande filósofo da dialética, dirá que nenhuma frase de Heráclito deveria ficar fora de seu sistema. Para Heráclito, a força da oposição penetra, pervade e constitui todas as coisas. Tudo é enquanto se opõe aos outros en20

Cf. nosso trabalho América Latina – Raízes sócio-político-culturais. Cf. Heidegger: Introdução à Metafísica. 22 Os fragmentos a seguir são extraídos de Damião Berge, O Logos Heraclítico. Rio de Janeiro: Instituto Nacional do Livro. 1969 21


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tes. A negação identifica cada pólo frente ao outro. A negação, porém, não apenas separa, distingue. A força da negação também harmoniza e une os opostos. Mas, poderíamos perguntar, de onde vem a força da negação? Ela não vem de um dos opostos, nem de ambos juntos...Virá do pensamento ou virá da realidade? E se ela estiver ínsita tanto no pensamento como na realidade, como se ligam as duas dimensões? Não são os pólos que constituem a oposição, mas a oposição que constitui os pólos opostos, enquanto opostos. Por isso a oposição os harmoniza, mantendo-os opostos. A oposição, a guerra, que é mãe e rainha de tudo, não é um dos opostos, nem a junção dos opostos como soma, ela é a identidade deles e sua superação harmoniosa. A mesma força de oposição e negação é a força motora de todo devir: Tudo flui nada permanece (Panta rei kai ouden menei) (Frag. 12, 91, 49.) De quem desce ao mesmo rio vêm ao encontro águas sempre novas. Frag.12. Não se pode descer duas vezes ao mesmo rio e não se pode tocar duas vezes a mesma substância mortal no mesmo estado, mas por causa da impetuosidade e da velocidade da mudança, dispersa-se e recolhe-se, vem e vai. Frag.91. Descemos e não descemos ao mesmo rio, nós mesmos somos e não somos. Frag.49a.

O movimento, o devir, não é apenas o deslocamento do mesmo, de um dos pólos da oposição ou de ambos, ou de sua mistura, mas é a identidade de tudo. No movimento que é guerra e harmonização superadora, tudo encontra seu lugar e sua relação. Nada é fixo, perene, imutável. Tudo é processualidade e devir. O que é oposição se concilia e, das coisas diferentes, nasce a harmonia mais bela, e tudo se gera por via de contraste. Frag. 8


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A compreensão da harmonia dos opostos, porém, não é para todos os homens. Não é para o povo simples que vive perdido na opiniática do cotidiano e que não consegue ver como tudo é harmonia: Estes (os ignorantes) não compreendem que o que é diferente concorda com ele mesmo: harmonia de contrários, como a harmonia do arco e da lira. Frag. 51. Só os homens de vasta compreensão (35), que não apenas imaginam mas compreendem (17) que sabem ouvir e falar (19) e que sabem esperar (18) que não apreciam apenas os cantores populares e suas modinhas (29), que não agem como quem dorme (73) reconhecem o que é mais digno de fé (28) e a harmonia da discordância e da concordância (51) a harmonia invisível que é superior à visível (54)

A harmonia que junta e concilia os opostos é sempre tensa, sempre a caminho, pro-vocando, in-vocando e vocando (chamando) cada coisa pelo seu próprio nome. Antecipação, impulso e memória. A harmonia é a própria guerra. (Os opostos coincidem no limite): o caminho para cima e o caminho para baixo são um único e mesmo caminho. B 60. Comum no círculo é o princípio e o fim. B 103. É uma e a mesma coisa: o vivo e o morto, o acordado e o adormecido, o jovem e o idoso; pois, pela conversão, isso é aquilo, e aquilo, convertendo-se por sua vez, é isso. Frag. 88.A discórdia se põe de acordo consigo mesma. É mútua adaptação como a do arco e da lira...dissipa-se e reúne-se de novo; aproxima-se e se aparta (91) A moléstia torna apreciável e boa a saúde; a fome, a saciedade; a fadiga o repouso. Frag. 111.

A dialética dos opostos, a oposição, não se compreende na relação dos opostos entre si. A guerra que harmoniza e unifica só pode ser compreendida de um patamar mais alto: o lógos. O lógos não é propriedade e instrumento do homem, mas o homem pertence ao lógos (Lógos ántropon éxon) A vinculação dos opostos é superior, transcendente aos opostos:


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De todas as coisas o um e do um todas as coisas. B 10. Não a mim, mas ao Logos ouvindo, é sábio admitir que todas as coisas são uma unidade. B 50.

O Logos fundamenta a unidade da linguagem, a unidade do pensamento e a unidade do ser. O Lógos que tudo junta e reúne será Deus? O Deus é dia-noite, é inverno-verão, é guerra-paz, saciedade-fome. Frag 67. O uno, o único sábio, não quer e quer também ser chamado de Zeus. Frag. 32. Só existe uma sabedoria: reconhecer a inteligência (gnomen) que governa todas as coisas através de todas as coisas. Frag. 41.

Aquilo que harmoniza os opostos não aparece como se fosse um dos opostos, como se fosse um ente. O fundamento do diálogo, diríamos, não está na pergunta ou na resposta. Aparece como aquilo que junta e dá sentido sem reduzir-se a um dos sentidos, a um dos contendores A physis tende a ocultar-se. Frag. 123( o Ser ama esconder-se, diria Heidegger) E “a harmonia invisível é superior à visível” frag. 54. O senhor de quem é o oráculo de Delfos, não diz nem oculta nada, mas indica. Frag. 93

O pensamento e a linguagem não representam, não dizem, não traduzem a realidade tal qual é, nem falseiam, escondem, traem a realidade; apenas a indicam, simbolizam. Entre a ocultação e a desocultação está a indicação, dirão Platão e Aristóteles. A linguagem e o pensamento são síntese e caminho para a síntese. O homem como contradição entre imortalidade e mortalidade é apenas o drama da impossibilidade de sua conciliação? Imortais mortais, mortais imortais, vivendo a morte daqueles, morrendo a vida daqueles. Frag. 62

Em conclusão: No princípio fundamental estão presentes os opostos em harmonia. Ouvir o logos como princípio unificador é perceber como é possível a síntese, a união de todos os opostos. Esta, porém, não é tarefa para todos. É tarefa para o filó-


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sofo, e não apenas para o homem do senso comum.. 23 “Homens que amam a sabedoria (os filósofos) precisam ter muitos conhecimentos” frag.35. O divino (daimon) é o espaço (o ethos) do homem (frag. 119). Quanto ao povo, conforme o parágrafo 17, ele diz que “ a grande multidão não entende estas coisas, apesar de sempre encontrar-se com elas; percebendo-as, não as compreende (em verdade) mas imagina-as”. E no fragm. 34: “Apesar de terem ouvido (o logos), não têm compreensão: parecem-se com surdos. O provérbio o atesta: presentes (estão) ausentes”.

Heráclito, no parágrafo 13, assim compara a relação entre a população e o logos: "Porcos [povo] em lama [doxa] se comprazem, mais do que em água limpa [logos]."24 E, no frag. 13 a: ”Não deve o homem de bem andar imundo ou esquálido nem aprazer-se na lama”. O logos não está, pois, na doxa, na opiniática tagarela da vida cotidiana, que é apenas “jogo infantil” frag.70. Heráclito reflete bem a mentalidade das civilizações indo-européias, negando o corpo, a sensibilidade, a imaginação e elogiando o entendimento como privilégio de poucos, da vanguarda cultural e política. O vulgo, atolado na sensibilidade e imaginação, não alcança (em seu pensar, viver, sentir e agir) o princípio que tudo fundamenta e unifica. Por isso o povo deve ser guiado... Assim também é na vida da pólis. A "lei (é) também se persuadir (consentir) à vontade de um só"25(parag. 33.). É sábio possuir um " conhecimento que tudo dirige através de tudo"26(parag.41). Embora diga 23

Isto tanto é verdade que Heráclito ficou conhecido como "o obscuro", já que escrevia suas obras em forma obscura para que o povo não o entendesse e o vulgarizasse, mas apenas escrevia para aqueles que realmente poderiam entendê-lo. 24 Ibdem. p.86 25 Ibdem. p.88 26 Ibdem. p.89.


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que “o povo deve lutar pela lei como pelo muro (que defende a cidade)” frag.44.

Deste modo, tanto no saber como na ação política, não acontece a participação de todos, uma vez que o povo é privado deste saber unificador. Assim sendo, tal como o logos rege a processualidade, assim também o homem detentor do logos é aquele que deve reger a pólis, submetendo todos à sua vontade. Ele sabe fazer as verdadeiras leis, eleva e dignifica a todos enquanto é mi nistro do logos. Heráclito, na tradição Ocidental, coloca o logos como princípio. Reforça tanto esta idéia que o próprio deus, ganha as mesmas características do logos, e confunde-se com ele, uma vez que é a harmonia dos contrários e a unidade dos opostos, conforme o fragmento 67: "o deus é dia-noite, inverno-verão, guerra-paz, saciedade-fome. Varia como o fogo27, o qual ateado a especiacias ( a incensos), é denominado conforme o perfume destas."28

A compreensão de que o universo é dialético, a vida é dialética e que a síntese unificadora dos opostos é um caminho tenso, permanente e necessário, de que nada é repouso estático e fixo é intuição genial de Heráclito. “O fogo vive a morte da terra, e o ar vive a morte do fogo; a água a morte do ar; a terra, a morte da água” (frag. 76) assim como o homem vive a morte da vida (psíxai) e a vida vive de nossa morte (frag. 77) e “do destino, eu afirmo, homem algum escapou” ( frag.105). A vinculação de todas as coisas entre si, a unidade de tudo, é, como veremos um problema central da dialética: a síntese dos opostos não pode anular cada oposto em sua diversidade. 27

"Para Heráclito o fogo é o elemento fundamental da physis, "Por fogo se trocam todas (as coisas) e fogo por todas..."(conf. frag. 90). Ou ainda: "Direções do fogo: primeiro mar, e do mar metade terra, metade incandescência...Terra dilui-se em mar e se mede no mesmo logos, tal qual era antes de se tornar terra."(conf. frag. 31). Desta maneira, Logos, deus e fogo, são um só e a mesma coisa, ou seja, são o principio do movimento e da identidade da diversidade har monia dos contrários, a unidade dos opostos. 28 Fragmento 67, in O Logos Heraclítico de Damião Berge, pg. 265.


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A tensão da diversidade não é anulada na síntese, sob pena de não haver diversidade, ou de ela ser apenas aparente, ilusão e só imperar a mesmidade do mesmo, “o eterno retorno do mesmo”. Zenão de Eléia (início séc. VI aC). Zenão de Eléia é o fundador da dialética lógica e acadêmica, segundo Aristóteles. A dialética é o método da descoberta do logos. Expõe ao ridículo e ao absurdo o pensamento que pretende negar que “o ser é e não pode não ser” e que “são o mesmo o pensar e o ser” e que “o caminho da verdade é o ser” defendido por seu mestre Parmênides. Demonstrando ridícula e absurda a tese dos que defendem o movimento e a multiplicidade, acaba demonstrando a validade da unidade, da imobilidade, do ser como fundamento da verdade. A dialética consiste em negar o movimento como negação do ser. Demonstra uma tese mostrando a impossibilidade da tese contrária. Seus argumentos, em síntese, assim podem ser enunciados: Se entre dois pontos cabem infinitas linhas (metades, espaços), qualquer móvel para deslocar-se de um ponto a outro (e isto é o movimento) deveria ultrapassar infinitas linhas, metades... Ora, é impossível, num tempo finito, um móvel finito, ultrapassar o infinito. Logo, o movimento é ilusório, engano dos sentidos. Não existe. Vejamos como Filopono testemunha o primeiro argumento, expressando-o assim: "se existe a multiplicidade, pelo fato de ser constituída de uma multiplicidade de unidades, é necessário que existam aquelas múltiplas unidades da qual, justamente, a multiplicidade é constituída. Se, pois, demonstramos ser impossível existir múltiplas unidades, é evidente que resultará impossível a existência da multiplicidade, porque a multiplicidade é composta de unidades. Se for impossível que exista a multiplicidade e se, de outro lado, é necessário que exista ou o uno ou a multiplicidade, porque não é possível que exista a multiplicida-


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de, não resta senão admitir que só existe a unidade (a unidade absoluta do ser)."29 Com efeito, se os seres fossem múltiplos deveriam ser "pequenos a ponto de não haver absolutamente grandeza [e também infinitamente] grandes a ponto de serem infinitos" 30. Ora, e para os múltiplos serem uno, não deveriam possuir nenhuma grandeza, pois se a tivessem seriam divisíveis e por isto não seriam mais uno. Mas se fosse uno assim, seria pequeno ao infinito a ponto de não ter grandeza, não seria nada, e acrescentando ou tirando algo dele, não o faria crescer ou diminuir. Como o uno não tem grandeza não é divisível, ao contrário do múltiplo seria divisível em infinitas partes, e o que possui infinitas partes teria que ser infinito em grandeza, o que é contraditório. No terceiro argumento Zenão quer negar o espaço. E assim Simplício o expõe: "Se existe o espaço, deve encontrar-se nalguma coisa; ora, o que existe nalguma coisa existe num espaço; por conseqüência, o espaço deverá encontrar-se num espaço, e assim ao infinito. Portanto não existe o espaço." 31 Ora, ao negar o espaço Zenão nega a própria multiplicidade, pois este é condição de possibilidade desta. O debate entre Heráclito e Parmênides se dava com base na oposição da realidade, e por isto suas teorias são baseadas no real. Ao passo que Zenão realiza a oposição das teses, onde usando a lógica perfeita pelos contrários, demonstra o absurdo das teses oponentes. Ora, se é absurdo, incompreensível, então é impossível, logo não existe, não é na realidade. Deste modo, através da refutação, Zenão consegue, a partir da oposição das teses, ir até a realidade. Tal método será empregado mais tarde por Melisso (e outros eleatas), sofistas, Sócrates, megáricos, bem como, para o nascimento da lógica, a demonstração por absurdo tem suas raízes em Zenão.

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Apud. REALE, Giovanni. História da Filosofia Antiga. p.121-122. Ibdem. p.122 31 Ibdem. p.123 30


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Zenão demonstra ainda a falácia da doxa, que fica nas aparências fenomênicas do múltiplo e do movimento, e não vê a sua contraditoriedade interna. Com isto provoca um forte questionamento ao senso comum que toma o dado como verdadeiro, aceitando as afirmações sem ter a capacidade de fazer a refutação. Entretanto, ao negar o movimento, parece que quer que tudo permaneça estático; ao negar a multiplicidade parece legitimar o poder (político) de um só sobre todos. Porém, não é o que demonstra a sua história de vida já que conspirou contra a tirania e o tirano Nearco, e por isto foi preso, torturado e morto, por não ter revelado o nome dos cúmplices. Como é possível a alguém negar o movimento e fazer uma conspiração contra o poder tirânico? Aristóteles pretende resolver a questão com a teoria do ato e potência. Com efeito, entre dois pontos em ato, não há infnitos pontos ou linhas em ato. Se são possíveis infinitas linhas ou metades, nem por isso elas existem de fato, em ato. Há sim linhas finitas. E assim, o movimento é possível e real. Restou, no entanto, desde Zenão, um método de pensar, um modo de argumentar e falar pelo absurdo, pela contradição, pela negação da outra parte (a demonstração dialética). A demonstração dialética, amparada apenas na possibilidade e no absurdo (impossibilidade), não é método suficiente para compreender os fatos. Os fatos se impõem à compreensão, apesar de todo jogo “dialético”. Impossível se torna a participação se permanecermos apenas na absoluta identidade do Ser (Parmênides), ou apenas na demonstração das contradições ou contrariedade dos fatos que exigem uma superação. A distinção de ato e potência, em Aristóteles, tentará mostrar a relação entre real e possível. Isto será o suficiente?


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Os sofistas (fim do séc. V e séc IV ac). O surgimento dos sofistas se dá primeiramente por causa do esgotamento da filosofia da physis, que pensou o cosmos e esqueceu de pensar o lugar do homem frente ao cosmos. Desta maneira o homem, como parte do cósmos, era um elemento entre tantos outros, e não era sujeito. Por outro lado, a diversidade dos povos que o comércio contactava sugere que suas organizações sejam constructos do homem. Por isso sua multiplicidade e relatividade. A queda da aristocracia (404 aC), a ascensão dos “demos” (pequenos grupos políticos em que se dividiam os cidadãos de Atenas), e o choque cultural, político, social que se deu com a chegada de estrangeiros que vinham a Atenas por causa do comércio, que havia sido expandido, abrem espaço aos sofistas. E, concretamente, as leis e decisões tomadas no espaço político da “ágora”(a praça pública, o lugar das decisões) nascem do convencimento, do consenso obtido pela capacidade persuasiva de quem fala e defende a proposta. Assim, os sofistas questionam os valores, costumes, usos e leis que a aristocracia garantia como se fossem imutáveis, e que se mostram agora como meras convenções. Os sofistas conquistaram muitos jovens descontentes com as normas, os padrões tradicionais e os rumos da política, para serem seus alunos e para adquirirem a capacidade persuasiva necessária aos embates da praça. A filosofia deixou de ser uma prerrogativa dos que viviam no ócio32, para ser, também, a ciência daqueles que tinham condições de pagar um professor. A dialética como arte de argumentar, de sempre encontrar um argumento contrário a tudo aquilo que é proposto, de des-dizer o que é dito pelo outro, de contra-dizer, de persuadir, marcará a filosofia em Atenas. Na história da filosofia, os sofistas foram vistos, por muitos, de maneira pejorativa, como tendo um saber apenas aparente, 32

Cf. A propriedade, a escravidão e o ócio como condição de ser homem e pensar libertando a alma do corpo: Dussel Antropologia Helênica, ou Zanotelli, Jandir América Latina – Raízes Sócio Político Culturais.


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não efetivo. Relativistas ou nihilistas. Para eles, tudo dependia da capacidade de argumentação, já que fundamentavam e legitimavam o que quisessem. Foram ainda considerados convencedores do povo, manipuladores dos demos, contra a aristocracia. Muito embora todas estas críticas fossem válidas, contemporaneamente poucos foram os que perceberam a novidade que eles trouxeram, o diferente, que abalou toda a estrutura estável da sociedade grega. A pólis grega com foros de eternidade e definitiva passa a ser relativa, limitada e efêmera como qualquer outra organização social e política. Foi uma filosofia revolucionária que rompeu com os velhos costumes inquestionáveis e ajudaram a fortalecer os “demos” colocando-os contra a aristocracia que os dominava. É uma revolução que eles operam, apesar de aristocracia. Os sofistas entendiam a dialética como a arte da refutação da opinião alheia e a capacidade de persuadir o outro a aceitar a opinião contrária. Analisaremos o pensamento de dois sofistas: Górgias como o mestre da refutação e Protágoras como o mestre da persuasão. Górgias (nascido por volta de 480 aC.) Górgias, de Leontino, na Sicília, é o mais radical dos sofistas. Ele não, apenas, relativiza a verdade, mas afirma a sua inexistência. e seu ponto de partida é este próprio nihilismo, levantando três teses: não existe o ser, isto é, nada existe; mesmo que existisse não seria compreensível; mesmo que fosse compreensível não seria comunicável nem explicável aos outros. A primeira tese é a de que nada existe. Aqui ele contrapõe os argumentos daqueles que afirmam que o ser é uno, com os argumentos dos que afirmam que o ser é múltiplo, e vice-versa. E faz a mesma coisa em relação a ingenitude e geração do ser. Assim, segundo Aristóteles, Górgias conclui "que se existe algu-


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ma coisa, esta não é nem uno, nem múltiplo, nem ingênito, nem gerado: nada existirá; de fato, se algo existisse, corresponderia a uma destas alternativas."33 Na sua segunda tese afirma que mesmo que o ser existisse, permaneceria incognoscível, pois ser e pensar não são o mesmo, como pensara Parmênides, uma vez que se pode pensar coisas que não existem (o não-ser), o que já foi provado na primeira tese. Na terceira e última tese afirma que mesmo que fosse pensável, o ser permaneceria inexprimível, uma vez que é impossível exprimir o que se vê. Pois "a vista não conhece os sons, e o ouvido não ouve as cores... as coisas não são palavras e ninguém consegue pensar uma coisa idêntica à que pensa outro." 34 Há pois um absoluto divórcio entre palavra, pensamento e ser. O pensamento não é portador do ser e a palavra não revela o pensamento. Com isto não existe mais verdade e a palavra ganha destaque apenas como poder de persuasão. E a persuasão nada tem a ver com a verdade.Por isso, ele assim fala no parágrafo 8 da sua obra Elogio de Helena: "A palavra é um poderoso tirano, capaz de realizar as obras mais divinas, apesar de ser o mais pequeno e invisível dos corpos." 35 Assim a palavra torna-se onipotente pelo seu poder de persuasão que decide sobre os rumos da pólis.E a política fica assim desvinculada da verdade e da ética. A dialética, apenas tergiversação de palavras, não funda a palavra sobre a verdade nem a verdade sobre o ser. A arte da palavra, na retórica e especialmente na tragédia, só tem valor estético, catártico, de ilusão, de distração e engano poético e nisso a palavra tem poder taumatúrgico. Ainda hoje, muitos políticos pensam que a palavra serve apenas para persuadir os outros a favorecer interesses desvincula33

Ibdem. p.212 Ibdem. p.214 35 Apud. CORDÓN, Juan M. História da Filosofia. p. 32 34


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dos da verdade e da justiça. Ora, como veremos, a possibilidade da síntese e do consenso está na verdade e na justiça: na ética. Protágoras ( nascido por volta de 491 aC.) Protágoras, de Abdera, não nega a verdade, assim como fizera Górgias, mas a relativiza. Ele parte do princípio de que "o homem é medida de todas as coisas, das que são pelo que são, e das que não são pelo que não são."36 Assim, tudo é verdadeiro para cada homem, na medida em que cada homem dá as normas para si mesmo frente aos diversos fatos e coisas da vida. Na medida em que a verdade é relativa a cada homem, não cabe estar dialogando sobre a verdade, mas apenas exercitar a "razão fraca" a fim de torná-la "mais forte", para conseguir persuadir os demais sobre a verdade de quem fala. 37 Deste modo "em torno a cada coisa existem dois raciocínios que se contrapõem entre si"38. Esta controvérsia faz surgir um debate de razões e contra-razões, prós e contras que precisam ser resolvidos. Entretanto não se tem nenhum valor por base, já que o próprio homem é medida de seu agir. Assim, a dialética sofista poderá, o que é mais provável, não desembocar na verdade, na virtude, no bem, mas naquilo que for mais útil, mais conveniente, mais proveitoso, mais oportuno e que garanta mais privilégios pessoais a cada um. E era exatamente para isto que Protágoras ensinava: "O meu ensinamento concerne à astúcia, seja nos assuntos privados... seja nos assuntos públicos, isto é, o modo de se tornar sumamente hábil no governo da coisa pública, nos atos e nas palavras."39 36

In. REALE, Giovanni. História da Filosofia Antiga. p. 200 A verdade,diríamos, se confunde com propaganda. 38 Ibdem. p. 201 39 Ibdem. p. 204 37


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Assim, percebe-se que os sofistas fizeram uma dialética pragmática, e que, embora questionando os valores fixos da época, caíram num relativismo, onde cada um tem sua verdade; ou então afirmaram a inexistência desta, e que por isto reduziram a dialética a um jogo de refutação e/ou persuasão, sem qualquer fundamentação ética. A dialética não é um caminho para a verdade, mas a arte de disputar, trazendo sempre contra-razões para qualquer afirmação. Defenderá não o que é verdadeiro mas o que é mais útil e conveniente. O ético se reduz ao oportuno e conveniente sem verdade nem validade. Assim o que se diz não expressa o que se pensa e o que se pensa não manifesta o que é. Resta o poder taumatúrgico da palavra que persuade o interlocutor de que se esteja pensando algo e que esse pensamento traduza a realidade. A dialética, a arte do diálogo, é apenas a arte de disputar e persuadir. O pensamento sofista está bem próximo aos ideólogos dos “criadores de opinião” dos meios de comunicação de massa de nossos dias, muitas vezes adotado pelos políticos que buscam aprovação de suas opiniões e projetos independentemente do valor social (de verdade, de validade e de justiça) que possam ter. Sócrates (470-399 aC) Sócrates não escreveu nenhuma obra. Por isto fica difícil chegar-se a um conhecimento preciso 40 daquilo que ele pensou. É mais fácil conhecer o pensamento dos pré-socráticos, que deixaram alguns fragmentos, do que do próprio Sócrates. As fontes que nos referem Sócrates, por vezes, distorcem o seu pensamento, a ponto de se contradizerem entre si. As principais fontes são: Aristófanes, Platão, Xenofonte e Aristóteles. Ater-nos-emos, po40

Lembremos, porém, o que Platão nos diz em sua Carta VII, bem como no Féden: o principal, o mais importante nunca se escreve nem se diz em público. O principal só se fala no diálogo de quem já tem entre si cumplicidades, compromissos, lealdades radicais.


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rém, aquilo que estes apresentam de comum e que contemporaneamente é aceito como pensamento socrático. Sócrates fez da dialética o método de parir a verdade com os processos da ironia e da maiêutica. Através da ironia (oposição de contra-razões que leva o opositor a reconhecer sua ignorância, isto é, a negação de suas afirmações – a verdade só compete aos deuses – aos homens, apenas, “o amor à sabedoria”: a Filosofia); e da maiêutica que, passo a passo leva à definição universal, faz da dialética o caminho para a verdade possível aos homens. A posição e a negação da posição levam pedagogicamente à superação das oposições, à verdade que reside no essencial e universal, superando o acidental e particular. E, passo a passo, vejamos como Sócrates procede. O primeiro passo da dialética socrática é a afirmação do não-saber. Sócrates sempre se coloca como ignorante frente ao assunto em debate e com perguntas e respostas, faz com que o interlocutor exponha o seu pensamento sobre o assunto. Logo depois, Sócrates, apontando as contradições e falhas naquilo que foi exposto ironiza e refuta, até que o interlocutor assuma sua ignorância, uma vez que confundira o acidental e o essencial em sua definição. Desfeito o êrro, se o interlocutor aceitar, vem o momento da maiêutica, onde Sócrates o conduz até a definição universal, o lugar da verdade. De alma purificada, estava pronto para alcançar ou parir a verdade. Com isto, Sócrates confirma o primeiro passo de sua dialética, pois na verdade ele é um ignorante que não ensina nada, mas apenas ajuda o interlocutor a parir a verdade de que está grávido. E como toda grávida precisa de uma parteira, Sócrates apresenta-se como parteiro espiritual da verdade. Eis o que Sócrates fala sobre isto, segundo a obra Teeteto de Platão: "(...) pois eu tenho em comum com as parteiras o fato de ser estéril... de sapiência; e a reprovação que muitos já me fizeram, que eu sempre interrogo os outros, mas não manifesto nunca sobre qualquer questão o meu pensamento, ignorante que sou, é uma repro-


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vação verdadeira. E a razão é que o Deus obrigou-me a ser obstreta, mas proibiu-me de gerar. Eu sou, portanto, ignorante, e de mim não saiu nenhuma sapiente descoberta que tenha sido produzida pela minha alma..."41 Há, na maiêutica socrática, um pressuposto fundamental: o diálogo não é realizado pelo mero prazer da disputa, mas para que, seguindo um imperativo interior (do Daimon), se consiga chegar à verdade, e esta garanta a vida da pólis. A dialética tem, como caminho para a verdade, um fundamento ético, político e religioso. A possibilidade de alcançar o universal, momento no qual as divergências acabam (as divergências sempre ocorrem quando os fatos concretos, enquanto particulares, se opõem entre si), está dentro, ínsita em cada homem. Deve-se, porém questionar, se o exercício obstétrico do maieuta não gera a verdade no parturiente, como o diz Sócrates. Com efeito, apesar de todos os protestos que Platão põe na boca de Sócrates de que ele é estéril e que só ajuda ao interlocutor a dar à luz a verdade de que está grávido, no entanto os filhos que nascem têm muitas semelhanças com o obstetra. Semelhanças demais na Filosofia Ocidental. A alteridade entre a verdade que nasce e o parturiente não tem muito lugar no Ocidente Indo-europeu. O ser, o princípio, a verdade acaba sempre sendo a mesma no rosto de todos os filhos. E o diálogo, ao invés de conduzir a criar ou a ouvir algo novo, inusitado, surpreendente e que ultrapasse o já planejado, parece que tende a uma comunicação instrumental ou estratégica, como o diz Habermas, em que o outro é vencido pela argumentação e descobre que o que pensava já não vale, não tem sentido e que deve renunciar em favor do universal que está no argumento do outro que o interroga. A tensão entre os opostos faz com que um dos opostos determine o outro, sem possibilidade de uma síntese inovadora, ultrapassadora. Esse diálogo acaba confirmando e legitimando a verdade de quem interroga.

41

Ibdem. p. 314


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Mesmo assim, a dialética socrática foi apontada como um caminho para a verdade possível aos homens. Verdade esta que não vem de fora, como novidade ou criatividade, mas já se encontra dentro de sua psyché. Esta, por sua vez, precisa ser purificada, a fim de que possa parir a verdade. E a dialética é o diálogo (com a afirmação, com a negação e contradição e com as sínteses) que leva ao logos onde reside a possibilidade do homem (e de seu ethos) e da pólis (com sua justiça). Este caminho provocador, incitador, desmascarador e pedagógico, é crítico. Os detentores do poder sentir-se-ão abalados e condenarão Sócrates como ateu e como pervertedor da juventude. Platão (427-347 aC) É impossível tratar da dialética platônica desvinculandoa de sua gnosiologia. Para Platão existem dois mundos, o sensível ou corpóreo (que é cópia) e o inteligível ou mundo das idéias (onde existe a essência perfeita da realidade, a matriz) 42 Os homens comuns ficam no primeiro mundo, no mundo corpóreo. Quanto ao plano do conhecer, ficam apenas na doxa (opinião), que se divide em eikasia (imaginação) e pistis (crença). Quanto ao plano do ser vivem entre as imagens e os objetos sensíveis. Os matemáticos mantêm-se no nível intermediário, ou seja entre a doxa e a episteme (ciência). Seu conhecimento é denominado dianoia (conhecimento mediano) e no plano do ser vivem entre os objetos matemáticos. E por fim, somente o filósofo é capaz de ascender até a verdadeira episteme, alcançando a noesis (intelecção), bem como 42

O homem é composto de duas partes: uma alma e um corpo. A alma é divina, eterna, imortal e veio do céu, por uma culpa original e se aprisionou no corpo que é mau, obscuro. O homem enquanto alma luta para se libertar do corpo e voltar a ver as essências universais das coisas que um dia já contemplou nos céus. Conhecer é recordar as idéias eternas, as essências puras e desprender-se dos sentidos, que aprisionam a verdade.


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é capaz de contemplar as Idéias até chegar à Idéia suprema (supremo Principio, a essência, o Bem, o Uno), no mundo inteligível. Por esta razão a dialética é a disciplina que permite alcançar a suprema verdade, e confunde-se com o próprio filosofar. Haverá porém dois tipos de dialética. A primeira é a ascendente, onde o filósofo se esforça para livrar-se dos sentidos, do sensível e das sombras da realidade, e sobe, degrau em degrau, passando por outras ciências, "indo de idéia em idéia até alcançar a Idéia suprema, com um procedimento sinótico (que, passo a passo, abraça a multiplicidade na unidade)." 43 A segunda é a dialética descendente, que segue o caminho oposto, uma vez que parte da Idéia suprema e que efetua um procedimento por divisão, chamado de diairético. Assim, distinguem-se idéias particulares contidas nas idéias gerais e se chega às idéias que não incluem idéias posteriores. Assim, Platão estabelece o lugar que cada "Idéia ocupa na estrutura hierárquica do mundo ideal e, com isso, faz compreender a trama complexa das relações numéricas que unem as partes ao todo." 44 Porém, os movimentos sinótico e diairético, não estão desvinculados um do outro. Entrecruzam-se no processo, a ponto de serem somente compreensíveis nesta conexão. Estes dois procedimentos dialéticos são os que passo a passo levam a reunir a multiplicidade na unidade, até alcançar a unidade suprema, bem como levam à compreensão de como a unidade se desdobra na multiplicidade. Ou seja, a dialética é capaz de tornar os muitos em um e o um em muitos. Em sua obra A República, Platão pensa um governante que tenha o conhecimento dialético, e seja capaz de criar um Estado perfeito, ideal, já que este saberá escolher o que é bom para a vida da pólis. É o governante filósofo que se preocupa sobretudo com a educação da pólis, direcionando o cidadão para cumprir a constituição e para lutar em defesa da pólis como uma cidade perfeita. 43 44

REALE, Giovanni. História da Filosofia Antiga. p. 165 Ibdem. idem.


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Platão chega a definir em que idade os guardiões do Estado deveriam aprender a dialética. A idade ideal seria dos vinte aos trinta anos, parando cinco anos para realizar exercícios físicos, e voltando depois a estudá-la novamente. A fixação de uma idade é importante para que a dialética não caia no uso vulgar, como brincadeira ou mero jogo, mas que seja de máximo proveito para a vida, já que este é um conhecimento supremo que faz a pessoa conhecer a verdadeira essência das coisas. Sendo assim a dialética é a alma da filosofia. A dialética platônica é positiva. Afirma a Idéia suprema (universal), como condição para a “ascensão”45 de conteúdo em conteúdo. A força unificadora ascendente, porém, não permite a negação, o diferente, o particular e torna-se assim uma dialética totalizante. O universal engolfa e inclui o particular como parte de si mesmo. O particular que é negação do universal (cumpre apenas uma função mimética e mnemônica) deve ser negado pela ascese da segunda navegação (um esforço quase muscular contra o vento), deixando para trás e fora o sensível, o corporal, o passional, para alcançar o universal em si mesmo e para si mesmo. Educar significa “libertar” o homem da prisão do corpo e da sensibilidade, libertar o homem das paixões e do trabalho para que alcance, por si mesmo, pela ginástica, pela música, pela matemática, a suprema sabedoria que consiste em contemplar a verdade universal da alma divina. Neste sentido a dialética platônia é negativa. E a ética é apenas negação. Negação do corpo, negação da sensibilidade, da paixão, da imaginação, do concreto e vital. Para Platão, portanto, a dialética é a disciplina suprema na conquista da verdade. Confunde-se com o próprio filosofar. Essa arte de pensar retamente e que dá sentido e fundamento à retórica, vence os antagonistas sofistas pela distinção e divisão 45

A própria garantia da ascensão, é o descenso. Porque ao serem, as coisas sensíveis, cópias das Idéias é que se tem garantia de que elas podem fazer o ho mem lembrar da essência perfeita, que contemplou quando ainda estava no Mundo das Idéias. Assim sendo, o fundamento da ascese do mundo empírico ao mundo ideal, está fixo no absoluto, no Uno, na Idéia; e o ascendente é antes de tudo descendente, do uno sobre o múltiplo.


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lógica dos conceitos, evidenciando, na multiplicidade do ser, sua ‘unidade natural’. “Dividir por gêneros e não tomar por outra uma forma que é a mesma, nem pela mesma uma forma que é diferente” é a ciência da dialética.46 Passa-se dos gêneros inferiores até os supremos gêneros e dalí para a Unidade e a Díade. Distinguir “uma forma única , multiplicada em todos os sentidos por uma pluralidade de formas, distintas umas das outras; uma pluralidade de formas, entre si diferentes, que uma única forma externamente envolve; uma forma única, distribuída por uma pluralidade de conjuntos, sem quebra da sua unidade; enfim, de numerosas formas, inteiramente separadas” 47

Ascendemos assim na escala dos gêneros até o ser e o não-ser que integra todo o existente numa verdade final que só a dialética garante. A realidade, enquanto devir aspira tendencialmente a ser (por koinonia ou atração amorosa). Como na música os graves e agudos se integram na harmonia, assim o dialético liga os contrários e as dissonantes formas na dialética harmonizadora.48 Assim a dialética é a alma da Filosofia, a “ciência mais alta” libertando-nos da sofística e da herística que opera na ambigüidade dos vícios de linguagem. 49 Assim, tudo o que é, só aparece em seu ser e identidade, se se negar a si mesmo (negação do particular, sombra de ser) para afirmar-se em sua universalidade (como idéia, até a suprema idéia). A essência universal é, ao mesmo tempo, a negação da realidade enquanto sombra, mera aparência, caricatura e a afirmação superadora da negação e da sombra.

46

Fedro, 266, b, c.

47 48

Sofista, 253 d. Sofista, 253.

49

Eutidemo, 271 c – 272 b.


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E o filósofo, contemplador das idéias universais e eternas é aquele que conduzirá, mesmo contra a vontade, a população perdida na sombra da doxa, da opiniática do cotidiano sensorial e corporal, para a luz solar da verdade universal. 50 Aristóteles (384-322 aC) Aristóteles foi aluno na academia de Platão, e num primeiro período sua filosofia foi fortemente influenciada pelo mestre, e por isto era admirador da dialética como a disciplina suprema. Mais tarde Aristóteles realiza uma reviravolta no que diz respeito à dialética pois, ela "deixa de ser, para ele, a ciência suprema, para se ver reduzida a técnica logística, destinada a ressaltar contradições contrárias, mediante o emprego correto do mecanismo silogístico."51 Assim, a filosofia e dialética não mais se confundem, uma vez que não basta ser dialético, para ser filósofo. O sofista é dialético e não é filósofo. Aristóteles aprendeu dos sofistas a arte de refutação do que é falso ou da tese contrária. De Sócrates tomou o método da interrogação. O mais marcante em sua dialética, porém, é seu caráter do descobrimento. Em Aristóteles a partir do "(...)fato dado a priori, da cotidianidade, a dialética vai "em direção" ao que está oculto. Des-cobrir o oculto constituirá um movimento, um discurso através de um caminho." 52 A dialética é, pois, a arte da interrogação, a arte da refutação e acima de tudo a arte do descobrimento. A função da dialética “está em desbravar o campo imenso da probabilidade, para o filósofo conseguir chegar à verdade objetiva das essências”53. 50

Cf. O mito da caverna, no VII livro da República. PIRES, Francisco V. In. Logos, Enciclopédia Luso-Brasileira de Filosofia. p. 1394. 52 DUSSEL, Enrique. Método para uma filosofia da libertação. p. 24 53 Logos, pg. 1394 51


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O ser se diz de múltiplas formas 54. O ser só se diz de modos diversos. A afirmação é sempre particular. A predicação mesmo quando universal (indefinida) é particular. E a negação, a exclusão, porque universal, é sempre a negação de uma afirmação e não a negação do ser. Por isso, entre o Ser e o Não-Ser, há a afirmação do ser, dos modos de ser. A verificação da verdade na proposição se faz pelas regras da correta ilação: lógica. Mas a ilação, como o juízo, é síntese: estado de alma. E o juízo e a ilação são verdadeiros quando houver concordância, adequação entre pensamento e realidade, e quando houver correção na ilação entre premissas verdadeiras. Uma conclusão é verdadeira quando as premissas forem verdadeiras e concatenadas, ilativamente, de forma correta. Não basta, portanto, a correção lógica de um silogismo para que ele seja verdadeiro. A correção lógica é pressuposto necessário mas não suficiente para a verdade. E a verdade implica na adequação do pensamento à realidade. A dialética parte do provável, daquilo que é admitido por todos (premissas): “uma proposição dialética destina-se a indagar o que todos os homens aceitam, a maioria deles ou os filósofos, admitindo que não irão contra a opinião geral”55. “Um problema dialético torna-se tema de pesquisa...” 56. A indução, “passagem do individual ao universal” 57 e o raciocínio, julgam a partir de opiniões geralmente aceitas 58, “as premissas admitidas mais em geral” 59. O raciocínio evidencia, torna patente o que é sub-entendido na premissa admitida geralmente como verdadeira. Contra a falácia dos sofistas, Aristóteles mostra que a verdade das premissas admitidas se demonstra por caminhos seguros e claros do silogismo verdadeiro.

54

METAFÍSICA, Livro IV, 2. Tópicos, 104 a. 56 Tópicos,104 b 57 Tópicos, 105 a 58 Tópicos, 100 a 59 Tópicos, 183 b 55


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As regras lógicas do silogismo verdadeiro estão na segunda parte do Órganon, como Argumentos Sofísticos. Um raciocínio correto tem força apodítica (apó: desde si; deisis: mostrar). Firma-se sobre suas próprias forças. A Lógica como articulação do já sabido empiricamente, faz da correção do pensamento e das formas do pensamento um critério de verdade. Neste sentido a articulação das formas do pensamento supõe a correlação do pensamento com a realidade. Por isso, S=P não é sinônimo de S é P, onde a quantidade e qualidade dos termos e das proposições exigem vinculação com a realidade como critério de verdade. Por isso a predicação, a atribuição, o juízo, enquanto síntese não têm como determinação o universal ou o particular de um termo, nem a inclusão é determinada pela exclusão. A inclusão é sempre particular e a exclusão sempre universal. Mas o ato de incluir ou excluir não é nem universal nem particular. É sim sua síntese e identidade enquanto oposição de contrariedade. A linguagem, dentre seus múltiplos modos (invocar, ordenar, suplicar...dizer) relaciona-se com a realidade enquanto verdade ou falsidade na proposição ou sentença. Nela, diz-se algo de algo, num estado de alma que é o juizo: julgamento da existência do que é significado. A referência à realidade não é imediata, colada, por igualdade: há uma distância (desigualdade) entre realidade e linguagem, mas também aproximação e igualdade. Assim a linguagem liga-se à realidade mediante o juízo (estado de alma). A linguagem é símbolo da realidade e não seu signo. Assim também a linguagem escrita é símbolo da linguagem falada. O Juízo é síntese. A essência da linguagem, acrescentemos, enquanto símbolo, é analética, para além de ser igual à natureza ou desigual, apenas convenção, sem referência à realidade. A essência (ousia) é a unidade objetiva que fundamenta a unidade de significação das palavras: a unidade de significação não é mera convenção. É possível, então, a convergência, o consenso sobre o significado de alguma coisa. A permanência da essência é pressuposta como fundamento da unidade de sentido: é


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porque as coisas têm uma essência que as palavras tem um sentido que permite a comunicação. A unidade que legitima a comunicação é ontológica. Ontologia é o estudo das condições de possibilidade da comunicação humana. Mas a tematização do ser como o a priori da comunicação humana não é realizável sem a linguagem. A coisa é sempre lingüisticamente mediada. A linguagem, então, não só designa o já conhecido mas é necessária à sua constituição de conhecido. Há uma unidade pré-reflexiva entre coisa, conceito e palavra. Os conceitos não são essências independentes mas funções presentificadoras dos diferentes aspectos do real. 60 Aristóteles no seu livro, quase esquecido pela história da filosofia, intitulado Os Tópicos, organiza aquilo que os sofistas usavam mas não sistematizavam, nem organizavam logicamente. Sobre Os Tópicos Aristóteles diz: "o tema deste tratado é o de encontrar um método (méthodon) que nos permita argumentar acerca de todo problema proposto, partindo do compreendido cotidianamente (ex endóxon)."61 Portanto, ao contrário de Platão, Aristóteles parte do provável, da opinião geral, do senso comum, isto é do cotidiano existencialmente compreendido. Seu método dialético é de indução, já que faz a passagem do individual (concreto, singular) ao universal (conceito, idéia). Deste modo a dialética não é pós-ciência, mas ante-ciência, uma vez que não necessita partir de princípios indemonstráveis, evidentes, apodíticos, mas apenas do factum, que é o mundo concreto onde o homem vive. Ela mostra os princípios (não os demonstra) a partir dos quais a ciência, a episteme, se estrutura e se faz. “Para que haja ciência (ciência é o apodítico) deve-se partir do princípio verdadeiro; pelo contrário, para praticar a dialética, é suficiente partir daquilo que cotidianamente o “homem da rua” compreende: este é o fato primeiríssimo, ou o apriori”62 60

Cf. Manfredo Araújo Oliveira. Reviravolta Lingüístico-Pragmática...pg. 29 e ss. 61 Apud.Dussel, 1974, Ibidem. 62 Dussel, pg. 21.


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O saber supremo não é, como em Platão, o apodítico, o científico, o universal lógico dos notáveis e ilustres, mas o compreendido existencialmente “o endoxa, as opiniões sustentadas por todos os homens, pela maioria ou pelos sábios, e, entre estes últimos, sejam eles todos, a maioria ou os mais notáveis e ilustres”63 Assim sendo, Aristóteles interpreta o “nada sabia” de Sócrates, como um não-saber cientifico, mas um saber dialético, que ele usava para criticar o adversário e defender suas teses com base no saber cotidiano. Os sofistas também partiam do cotidiano, apenas, porém, como arte de refutação: para confundir o adversário, não se perguntando se aquele saber cotidiano era ou não verdadeiro, pois o que lhes interessava, em última instantância, era vencer o adversário. Ao contrário, para Aristóteles, o dialeta investiga quê saberes cotidianos são verdadeiros, já que é amante do saber e comprometido pela busca da verdade, descobrindo o oculto, desvelando o ser e questionando tudo aquilo que se tem como verdade fixa, pronta e acabada. Desde a tesis, o dado na cotidianidade, o saber crítico dialético, ante o paradoxal da existência, procura o que é su-posto, o implícito no saber cotidiano e nos axiomas científicos. A dialética aristotélica não é nem (indutiva) ascendente nem descendente (dedutiva), mas penetrante. Por isto chama-se dialética negativa, pois nega a absolutização do ente visto na sua cotidianidade. Assim sendo a dialética é a própria ontologia fundamental, capaz de fundamentar a ciência e superar a própria filosofia. Assim fala Aristóteles no livro Os Tópicos: "É efetivamente impossível argumentar acerca deles [princípios] fundando-se nos princípios próprios da ciência em questão, porque os princípios são os elementos originários de tudo o mais. É somente por mediação (dià) do que é compreendido cotidianamente, e que concerne a cada ciência, que é possível explicar necessariamente os princípios delas. Este é o papel próprio e específico da dialética: em razão de sua natureza crítico-prerrogativa 63

Tópicos I, 4; 101, b 11-13


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(exetastiké) abre-se o caminho (hodón) aos princípios de todo método."64

E a partir destes princípios, definidos pela dialética, a ciência irá trabalhar. A dialética, porém, repetimos, não parte de princípios, já que está no momento pré-científico e pré-filosófico, mas do próprio factum, do qual deverá descartar o falso (não-ser) e descobrir o ser, que, enquanto princípio, fundará a filosofia e a ciência. Assim, o fundamento da dialética é o ser. Ser este, que não pode ser demonstrado nem compreendido de forma fechada, mas apenas mostrado através da compreensão existencial, por negação do não ser. Deste modo "a dialética aristotélica parte da facticidade e se abre ao ser, alvo ao qual se lança o movimento dialético e fundamento de todo saber apo-dítico, de-monstrativo, epistêmico, científico."65 Aristóteles presta uma grande colaboração para a dialética. Ele reafirma a idéia de refutação, interrogação e criticidade da dialética. Também demonstra o seu papel fundamental nas questões ontológicas, além de superar seu mestre, Platão, ao levar em conta a cotidianidade, ponto de partida e de chegada de todo o conhecimento. O cotidiano, porém, não é o cotidiano de todos. É o da pólis. Apenas o cotidiano definido por aqueles que dão o sentido de todas as coisas: os proprietários, os senhores (jamais o escravo, o trabalhador, o estrangeiro) que dominam e têm a hegemonia dos valores e do pensamento. Como todo o pensamento grego, situa-se na perspectiva levantada por Parmênides que faz o pensar (logos grego) e o ser coincidirem. Deste modo "o ser é (grego), o não-ser não é (o bárbaro, o conquistado, o que está além do horizonte ontológico da pólis). Neste caso se diviniza a physis, que é o horizonte grego de com-preensão do mundo. Em última analise é uma ontologia conquistadora, dominadora, imperial, portanto guerreira." 66 A dialética acaba sendo uma dialética da exclusão. O ponto de partida 64

Ibdem. p. 32-33 DUSSEL, Enrique. Método para uma filosofia da libertação. p. 35 66 Ibdem. idem 65


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“a cotidianidade” e o ponto de chegada “os primeiros princípios” que lhe dão fundamento, conexão racional e lógica, deveriam também levar em conta os excluídos do sistema que se auto-justifica. Isto, porém, está longe do núcleo ético-mítico indo-europeu.

Para os estóicos Zenão e Crísipo, a dialética (processo de pequenas perguntas e respostas) já não se refere à verdade (ao desvelamento e encontro da mente com o real) mas à linguagem que transmite a verdade. O significado da linguagem varia segundo as circunstâncias de tempo, lugar e cultura de quem fala e de quem ouve. Por isso a dialética será uma herística: “a arte de fabricar sofismas”. Com análises refinadas da linguagem (corrente e ou possível) a dialética se faz, não o método para a verdade, mas a “técnica obrigatória e única do discurso lógico de todas as ciências”67.

2.2 A dialética na Idade Média e Renascimento Com Cícero, com a patrística e a escolástica, a dialética é a lógica menor: a propedêutica geral para todas as ciências, ou disciplina normativa da discussão científica. Método, apenas. No Renascimento com Valla, Vives e Petrus Ramus: a dialética será a arte da discussão científica. Pedro Hispano, nas Summulae logicales : Dialética é “a arte das artes e a ciência das ciências, porque tem o caminho para alcançar os princípios de todos os métodos”.

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Logos, 1396


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Com Nicolau de Cusa o Absoluto concebido como coincidência dos opositos, a dialética é pensada ao modo matemático. Esta dialética formalista é reduzida por Kant (Crítica da Razão Pura, II, 2 ª parte iii) a uma lógica geral ou uma lógica da aparência, como veremos. Nicolau de Cusa68 A Docta Ignorantia é saber que não se sabe; que o sabido indica, refere; simboliza a sabedoria mas não é a sabedoria. A Docta Ignorantia é um método para aceder à verdade tanto das coisas deste mundo como das coisas supramundanas. Nosso saber conceitual é sempre mais ou menos superficial e sofre de uma falta radical de exatidão... O método de que dispomos...é meramente aproximativo...e a realidade última permanece inacessível aos nossos conceitos “Todo progresso no conhecimento da verdade se efetua a partir do certo para o incerto, do conhecido para o desconhecido, mediante ´conclusões proporcionais´. O conhecimento certo serve de base proporcional para aquilo que ignoramos”... Se a comparação for fácil e clara em razão da afinidade entre o certo e o desconhecido, a potência judicativa leva prontamente à conclusão; se, ao contrário, 68

Nicolau Krebs nasceu em 1401 em Cusa, de família modesta. Foi educado junto dos Irmãos da vida comum em Deventer, onde sofreu a influência do mis ticismo alemão; em seguida estudou na Universidade de Heidelberg, foco de nominalismo, e na de Pádua, onde aprendeu a matemática, o direito, a astronomia. Ordenado padre, teve parte notável no concílio de Basiléia (1432); foi, a seguir, legado pontifício, cardeal, bispo. Viveu seus últimos anos na Itália, onde faleceu em 1464. A obras fundamentais de Nicolau de Cusa são três: De docta ignorantia, De coniecturis, Apologia doctae ignorantiae. As fontes prediletas e principais são o misticismo alemão (Mestre Eckart), o platonismo e o neoplatonismo cristão ( Sto. Agostinho, Pseudo Dionísio, São Boaventura), e os autores de tendência neoplatônica, em geral.


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houver um grande número de elementos intermédios, a conclusão analógica torna-se mais difícil. E visto não ser finito o número dos elos intermediários entre um dado finito e o infinito, este nos queda essencialmente desconhecido”69

O fim de nosso saber, perseguido por proporções e analogias matemáticas é um não-saber consciente de que o objeto proporcionalmente conhecido se perde no abismo do infinito. O próprio dado matemático elevado ao infinito se torna incompreensível. Deus, como grandeza absoluta é unidade na qual os opostos do infinitamente grande e do infinitamente pequeno coincidem (coincidentia oppositorum). Nele a unidade, a igualdade e a vinculação coincidem: tri-unidade.Nele toda a realidade existe em ato, excluida toda possibilidade. Assim como no infinito todas as figuras geométricas coincidem (a linha, o círculo e o triângulo), assim de Deus tudo se pode dizer e nada se pode dizer, ficando sempre incompreensível. Oposta à unidade primeira (de simplicidade, unicidade) há a unidade na multiplicidade (o universo) Este universo (ou totalidade) deriva de modo inteiramente incompreensível da unidade absoluta, que tudo encerra em si e que apenas “desdobra” o que nela se contém de maneira absolutamente simples... O universo, unidade derivada (simbolizada pelo número 10), ...dentro de limites específicos e de maneira concreta...é um efeito do Absoluto...e pode ser redescoberto como imagem do Máximo. Com efeito, neste mundo tudo está em todos (“quolibet in quolibet”), pois Deus é tudo em todas as coisas e todas as coisas estão nele...o mundo deve traduzir uma estrutura trinitária, e constituir, ele mesmo, uma trindade que se manifesta na potencialidade da matéria, na atualização da matéria pela forma e na força unificadora do movimento natural...Neste mundo assim unido, onde nenhuma coisa pode existir sem a outra, as coisas são diversas...nenhuma delas é perfeitamente igual à outra...nem pode haver um 69

De Docta Ignorantia I, 1; p. 5, 14 ss. Apud Ph. Boehner e E. Gilson Hist. Da Fil. Criistã, pg. 560.


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ponto fixo e imóvel no centro do mundo...nem a terra que é um astro, nem qualquer outro astro...embora Deus tivesse criado o mundo de acordo com as leis da aritmética, da geometria, da música e da astronomia. 70 A unidade (unicidade) do máximo não é a unidade numérica. Na série numérica não há um máximo absoluto. “A unidade que coincide com o máximo não pode pertencer à categoria do número...Todo número comporta um mais ou um menos e nenhum número pode ser mínimo ou máximo. A unidade não é pois um número, senão que, enquanto mínimo, é o princípio (começo, origem) de todo o universo, e enquanto máximo, é o fim último de todo número. Deus é, pois a unidade absoluta à qual nada se opõe, a maximidade absoluta...um ser real que se encontra na origem de todos os outros seres...e não como a unidade numérica (unitas) que é um ente de razão, fabricado por nossa racionalidade comparativa, que nos torna possível a série, a ordem cósmica, o tempo, o espaço e o número71

O máximo absoluto coincide com o mínimo, pois não pode ser mais nem menos do que é, enquanto o máximo e o mínimo não coincidem (permanecendo opostos) nas coisas finitas cujo ser é sempre suscetível de um mais e um menos. O máximo absoluto (e não relativo como nas coisas finitas e categoriais) é superior a toda oposição, contendo os opostos, não em sua oposição mas em sua conincidência. Nele a afirmação e a negação coincidem. Esta coincidência é superior ao entendimento humano, é nosso saber ignorante, nossa sábia ignorância. O abismo infinito entre o máximo absoluto e o ser das coisas confinadas nos limites do específico e categorial é franqueado e reunido em si por Cristo que é, por si mesmo, o máximo absoluto e o concreto. Por ele o homem finito chega ao absoluto da divindade. A aproximação a Cristo, na escuridão misteriosa e mística, é gradual, sempre inacabada, inatingível em sua 70 71

Idem, Ibidem pg. 561. Idem, Ibidem, pg. 563.


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plenitude pelo homem individual, mas possível nos muitos que são a Igreja, o corpo de Cristo. 72 Deus é a complicatio e a explicatio das coisas. Ele é a razão exemplar (a idéia), que encerra e une (não em sua oposição e diversidade mas em sua simplicidade e identidade) todas as coisas. As coisas refletem a unidade, como no centro de uma esfera infinita convergem a longitude, a latitude e a profundidade. E assim como na unidade, todos os números se encerram, assim todas as coisas se encerram na unidade absoluta, e assim como a unidade numérica se desdobra nos números, assim a unidade absoluta se desdobra (explica) nas coisas. Assim como no ponto está a unidade da quantidade, a linha é seu primeiro desdobramento, assim como o repouso é a unidade do movimento, assim tudo o que existe de multiplicidade, de movimento, de temporalidade, de diversidade, de desigualdade e distinção nas coisas não é senão o desdobramento de sua perfeição em Deus, isto é, a existência contingente das perfeições infinitas de Deus na criatura. “Deus é, portanto, co-implicação (complicatio) de todas as coisas, pelo fato de que todas estão nele; e é de todas a explicação (desdobramento ou explicatio) porque ele está em todas as coisas. O máximo tem estrutura trinitária ou triunitária. Pois a unidade implica eternidade (acima do tempo que implica mutabilidade e diversidade (alteritas), sempre subordinados à unidade. A unidade implica em igualdade que é anterior e fundamento da desigualdade e alteridade. A unidade, enquanto união (connexio) ou é a própria unidade ou é causada por ela, sendo que a dualidade (binarius), a divisão é consequência da unidade. “A unidade é anterior à dualidade; logo, também a união é anterior à dualidade, e isto em virtude da eternidade que...é anterior à alteridade; logo, também a união é eterna”73. E só a eternidade, a igualdade e a união pertencem à unidade. O resto é determinação ulterior e multiplicidade. 72 73

Idem, Ibidem, pg. 561-562. Idem, Ibidem, pg 564.


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As imagens matemáticas sobre o máximo, unidade e trindade, são deficientes, apenas simbólicas, e, embora trabalhem com proporções (nosso saber mais seguro), permanecem distantes, dessemelhantes da imagem (Logos) original, enquanto a imagem de Deus é igual ao exemplar absoluto. A tentativa de usar essas figuras finitas em proporções infinitas (não só em pensamento mas em realidade), eliminando os conteúdos representativos para apreender o Absoluto em sua infinidade e simplicidade, é nossa douta ignorância, sendo que a verdade absoluta é incompreensível. Não há proporção entre o infinito e o finito...e o entendimento finito não pode atingir a verdade precisa das coisas mediante a semelhança...E como não há mais ou menos verdade,... mas a verdade é a medida de si mesma, assim como o círculo é a medida de suas partes,...o entendimento está para a verdade como o polígono está para o círculo, quanto maior for o número de ângulos inscritos no polígono, tanto mais semelhante ele será ao círculo; nunca porém, chegará a ser igual a ele...nosso intelecto é possibilidade (e não coincidência com a verdade) e quanto mais nos instruirmos nessa lição de ignorância, tanto mais nos aproximaremos da própria verdade 74 Para Nicolau há, pois, uma diferença entre o não-saber de Sócrates e o de seus adversários. A relação entre eles é a mesma que existe entre alguém que conhece o sol por seus próprios olhos e visão, e o cego que não o conhece de experiência própria. Portanto, o indivíduo inconsciente de sua ignorância limita-se a repisar fórmulas (sem nada de novo) e adere cegamente à sua escola, mantendo-se inserido na velha tradição sem questioná-la, cegamente atrelado a ela. Assim, acontece com o teólogo que fala como seus colegas teólogos costumam falar, empregando as mesmas fórmulas das tradições, e julgando-se um teólogo também, quando na verdade desconhece completamente o sentido das fórmulas que emprega. Por isso para ele um homem, que reconhece sua ignorância e insuficiência diante da realidade última, sabe, pelo menos, que deve silenciar.

74

De Docta Ignorantia, Lib. I, cap. 3. Ibidem pg. 568-569.


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Assim o fim último do saber, ao qual se chega pelas analogias matemáticas e pela proporção, é, forçosamente, um nãosaber. E o dado seguro e preciso da matemática, levado ad infinitum torna-se inseguro e incompreensível. Nicolau de Cusa admite, acima dos sentidos, dois graus do saber humano; a ratio e o intellectus. A ratio ou intelecto discursivo  é a faculdade que abstrai das noções particulares os conceitos universais, e forma, em seguida, os juízos e os raciocínios. O seu objeto próprio é o conhecimento da multiplicidade e do finito. No entanto, também a coisas finitas são imperfeitamente representadas pela ratio, cujo conhecimento se realiza mediante conceitos universais, ao passo que a realidade é constituída por seres individuais. Deus, uno e infinito, não pode certamente ser conhecido pela ratio, cujo objeto é o multíplice e o finito. O conhecimento parte do dado, do conhecido, do assegurado para o desconhecido, para o inseguro. O infinito, o Absoluto é o inseguro, é o escuro e por quem nossas comparações, nossa estimativa de proporcionalidade apelam e clamam, sem apreendê-lo. Conhecer é aventurar-se na confiança insegura do acreditar. Sair da segurança do já conhecido, do espaço tradicional, assegurado e garantido pelas instituições, do ethos do certo e verdadeiro, para lançar-se em direção à noite escura cuja demasiada claridade nos cega, como nos diria S. João da Cruz, é filosofia, é teologia, é mística, é experiência humana radical. Acima da ratio está o intellectus, atividade supra-racional iluminada pela fé ou pela mística, cujo objeto próprio é o Uno e o infinito, Deus. A docta ignorantia consiste precisamente na consciência dos limites e da relatividade da ratio, cujas deficiências são supridas pelo intellectus. A filosofia não se separa da teologia, nem o pensamento da mística. Resta lembrar, porém, que, também para Aristóteles, os primeiros princípios (o da identidade, o da contradição a ser evitada, o da razão suficiente...) do conhecimento não são dados pela razão discursiva e silogística (que articula logicamente o já conhecido na episteme) e sim pelo nous (a inteligência) que lê as coisas por dentro em sua essência.


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É preciso perguntar se a coincidência dos opostos na unidade, que é co-implicação e desdobramento de tudo, é a síntese dialética, o pressuposto da oposição dialética. E se a união (a connexio) que vincula os opostos da alteridade, que é anterior e posterior à diversidade, recolhe e dá identidade aos opostos enquanto opostos ou simplesmente os anula reduzindo-os à unidade. Em que medida o máximo salva o múltiplo ou se o múltiplo é apenas sombra (Platão) da realidade ideal? E a conexão não será apenas o nivelamento do diverso e, enquanto tal anulação da diversidade e da alteridade? Uma espécie de nirvana em que há o si mesmo de toda a realidade, enquanto esta se despoja de toda determinação e se anula no abismo do nada. Por outro lado, será possível que os diversos se conectem, se unam, permanecendo idênticos enquanto diversos, se a união acontecer apenas no plano fático e mundano? E o mundo, quer entendido como cósmos, quer entendido como totalidade de significação, como comunidade de comunicação, como bloco histórico será unidade suficiente para unir e dar sentido à diversidade e alteridade? E a transcendência unificadora do Absoluto deixaria de ser necessária para dar sentido à síntese (da realidade, do conhecimento, da ação, da história) e à participação? Como nunca, o pensamento de Nicolau de Cusa é instigante para quem pretende pensar a dialética com seus limites e possibilidades. 2.3 A dialética na Id. Moderna e Contemporânea René Descartes (1596-1650) Do bojo do Estado de Cristandade surgiu a Europa. O Estado de Cristandade nasceu da fusão da Civilização grecoromana com o Cristianismo. Desde 313 dC até o ano 800, o Es-


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tado de Cristandade já estava consolidado. Dali até 1648, a religião cristã enquanto ideologia do Estado de Cristandade, dirigirá, orientará, normatizará a economia, a política, a cultura. A igreja, identificada como hierarquia (e não como comunidade laical profética dos primeiros tempos) unge o poder político ou o substitui nas funções civis, judiciárias e policiais, mantendo e controlando a ordem pública. Aos poucos, porém, com o comércio internacional (especialmente desde 1150), a fortificação das burgos, o surgimento de uma burguesia laica associada a uma nobreza decadente, ao redor de um rei e abençoada pelo ideal triunfalista de um clero (em meio as guerras santas das cruzadas (desde 1096) contra os árabes que dominavam a África, a Ásia Menor, a Espanha desde meados do século VII e início do século VIII), - a Europa se constituirá como um conjunto de Impérios Mercantis Salvacionistas, especialmente desde a invasão de Constantinopola pelos turcos (1453). Com a revolução da Imprensa de tipos móveis editando a Bíblia, Platão e Aristóteles, juntamente com as Cartas de Marco Polo, nesta mesma data, (Guttenberg); com as invenções da caravela, do canhão, da bússula e das escolas navais; com o horizonte normativo do Direito Romano; com a desmitização do universo operada pela visão semita-cristã do mundo; com o cerco a que estava submetida pelos árabes, a Europa (primeiro Portugal e Espanha desde o século XV) qual jovem guerreira, deixa para as calendas romanas o remorso do crime e do pecado de usura, e abençoando o acúmulo capitalista como virtude, lançar-se-á sobre a África, sobre a América, sobre a Ásia, europeizando o mundo e deixando os árabes e turcos fechados dentro de seus próprios limites. Essa Europa conquistadora, avassaladora, com seus canhões, cavalos e navios, com uma religião transformada em ideologia do Estado Nacional nascente, elaborará para si mesma um pensamento que seja espelho de seu próprio rosto: penso, logo sou. Este pensamento não teria acontecido se a Europa não tivesse podido dizer antes: conquisto, logo sou. A partir de agora o


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modo de ser europeu será o critério do pensar e do agir que a Europa levará a todo o mundo como sendo o único, absoluto e verdadeiro. A pretexto de civilizar, de cristianizar e de salvar, ela europeizará o mundo, inicialmente sob a forma de imposição (a ferro e fogo), depois sob a forma de mimetismo dos povos dominados que se apressam em inserir-se no modelo europeu como forma de civilização e desenvolvimento, deixando para trás suas culturas como barbarismo, primitivismo, ingenuidade atrasada. Assim, na Idade Moderna, a Europa consolidará a Civilização Ocidental como a única e verdadeira história da Humanidade. História que, segundo seu maior filósofo (Hegel), inicia no Oriente para culminar no império econômico capitalista inglês, no Direito e nas instituições políticas da Revolução Francesa e na Filosofia Alemã do século XIX. A dialética não deixará de ser expressão do pensamento europeu desde a Modernidade e mais ainda na Contemporaneidade que, para a Europa inicia com a Revolução Francesa (1789), com seu ponto forte em Hegel Na modernidade, a dialética, passando pelo nominalismo, por Descartes e pelo interiorismo agostiniano, já não partirá da facticidade da compreensão existencial com sua corporeidade, sensibilidade e história para depois ir em direção ao fundamento, ao suposto, ao que está oculto e atrás do fenômeno, ao ser; mas iniciará com a negação da facticidade sensível, para ir para dentro, para a imanência da consciência pensada como um cogito, uma subjetividade de um sujeito auto-posto. Será uma dialética in-volutiva, dirá Dussel75 Descartes, ao contrário de Aristóteles (que partia da compreensão cotidiana que incluia o verdadeiro e o falso, demonstrando o verdadeiro com argumentos que rechaçavam o falso como impossível), rechaça a totalidade da compreensão cotidiana (como absolutamente falsa) pelo simples fato de que ela inclui a possibilidade do falso. Pretende partir do inteiramente indubitável e certo (da certeza absoluta), sobre o qual não paire o menor 75

Método: pg. 33.


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indício de dúvida. E duvidando de tudo (da facticidade, da cotidianidade, do bom senso, da opinião, da endoxa de Aristóteles, do aparente) para além da probabilidade de verdade sugerida pelo bom senso, chega ao indubitável, na imanência da alma que é inteiramente distinta do corpo e do mundo reduzido à espacialidade, ao cogito, ergo sum. A alma, como substância primeira, sem corpo, sem mundo, sem facticidade será o tema de si mesma. Eu penso (ou eu sou eu): será o ponto de partida ontológico de toda a filosofia da Modernidade: de Descartes, Kant, Fichte, Hegel... Uma vez chegado ao cogito (ponto de partida e de chegada de tudo), como ponto de partida absoluto e indubitável, assegurado contra o desprezível e enganador mundo cotidiano, da doxa popular, o pensamento inicia o desdobramento, a in-volução, a de-monstração (o cogito não se demonstra porque é origem e princípio, mas se mostra) da existência de Deus, contida na imanência do cógito. A partir do cogito-Deus (como substâncias originárias), Descartes pensa as coisas sensíveis ou imagináveis, como idéias, uma vez que a facticidade será irrecuperável na interioridade do cógito: “Estaria disposto a continuar e a mostrar aqui toda a cadeia de verdades que deduzi destas primeiras” 76 A idéia de Deus será a chave de todo o edifício, assim como em Kant a idéia chave será a de liberdade, no mesmo caminho. O pensamento da modernidade européia permanecerá sempre dentro da imanência da subjetividade. A dialética já não será um caminho para fundar o pensar e viver cotidianos, mas será apenas o método para a sua negação. Com isso a modernidade européia, fechada em seu projeto imperial, mercantil, salvacionista, estabelecerá, a partir de si, o critério “indubitável”, absoluto da civilização e da evangelização dos povos! E o conquiro (conquisto) será expresso e legitimado no cogito, ergo sum (penso, logo existo). Quem porá em dúvida esse saber absoluto, essa certeza absoluta, essa civilização absoluta?

76

Discours V, 153.


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O projeto da burguesia mercantil, depois manufatureira e industrial, da Europa moderna incentivará o nascimento de um método científico que pretende assegurar e garantir o conhecimento contra toda a dúvida (através da matemática e da constatação), contra toda ingerência do imaginário teológico e do argumento de autoridade do medioevo, a fim de dominar e conquistar o universo visto como uma reserva de domínio e de utilização para o homem (leia-se capitalista europeu). O método científico com a pretensão da objetividade, ajudou a descolar a vida cotidiana do pensamento, da ciência e da técnica e nos fez crer que a vida, o significado, a realidade é aquilo que a ciência determina como tal. E, por fim, que não há outro conhecimento e outra realidade que não o visado e delimitado pela ciência. O sucesso e a efetividade da ciência e de suas consequências tecnológicas pareceram o argumento absoluto de sua validação. A obra de Descartes procura dar fundamentação ao triunfante conhecimento científico77. 77

Reproduzimos aqui as regras fundamentais de O Método:

1° - “Não se deve acatar nunca como verdadeiro aquilo que não se reconhece como tal pela evidência, ou seja, evitar acuradamente a precipitação e a prevenção, assim como nunca se deve abranger entre os juízos aquilo que não se apresente tão clara e distintamente à inteligência a ponto de excluir qualquer possibilidade de dúvida”. Mais do que uma regra, trata-se de um princípio normativo fundamental, exatamente porque tudo deve convergir para a clareza e a distinção, nas quais, precisamente se forma a evidência. Falar de idéias claras e distintas e falar de idéias evidentes é a mesma coisa. 2° - “Deve-se dividir cada problema que se estuda em tantas partes menores quantas for possível e necessário para melhor resolvê-lo.” Aqui está a defesa do método analítico, único que pode levar à evidência, porque, desarticulando o complexo no simples, permite, à luz do intelecto dissipar as ambigüidades. Esse é um momento preparatório essencial, pois já que a evidência é necessária para a certeza e a intuição é necessária a simplicidade, que se alcança através da decomposição do conjunto “em partes elementares até o limite do possível”. Na obra “Regulae”, Descartes afirma: “nós só chamamos de simples as coisas cujo conhecimento seja tão claro e distinto que a mente não possa dividi-las em número menor, cujo conhecimento seja ainda mais distinto”. Chega-se às grandes conquistas etapa após etapa, parte após parte. Esse é o caminho que permite escapar às presunçosas generalizações. E como toda dificuldade o é porque o verdadeiro está misturado com o falso, o procedimento analítico deveria permitir


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Veja-se, com efeito, as revolucionárias descobertas astronômicas, físicas, biológicas e matemáticas. Muda a imagem de mundo medieval, por conta da “revolução” científica com Copérnico78, Tycho Brahe79, Johanes Kepler80, Galileu Galilei81 e Isaac Newton82 e muitos outros. O mundo cotidiano do povo trabalhador (servo da gleba ou operário das manufaturas ou da indústria) deve ser negado,

libertar o primeiro das escórias do segundo. 3°- “A terceira regra é a de conduzir com ordem os pensamentos, começando pelos objetos mais simples e mais fáceis de conhecer, para elevar-se pou co a pouco, como por degraus, até o conhecimento dos mais complexos, supondo uma ordem também entre aqueles nos quais uns não precedem naturalmente aos outros”. Esta regra se justifica porque não basta decompor em elementos mais simples e desarticulados. É preciso realizar o nexo de coesão que deles faça um todo complexo e real. Por isso à análise deve-se seguir a síntese. Assim, é necessário recompor os elementos em que foi decomposta uma realidade complexa. Trata-se de uma síntese que deve partir de elementos absolutos ou não dependentes de outros e direcionar-se para os elementos relativos ou de pendentes, dando lugar assim a um encadeamento que ilumina os nexos do conjunto. Trata-se de recompor a ordem ou criar uma cadeia de raciocínios que se desenvolvam do simples ao composto, o que não pode deixar de ter uma correspondência na realidade. Quando essa ordem não existe, é preciso supô-la como a hipótese mais conveniente para interpretar e expressar a realidade efetiva. Se a evidência é necessária para se ter a intuição, o processo do simples ao complexo é necessário para o ato dedutivo. 4°- “A última regra é a de fazer sempre enumerações tão completas e revisões tão gerais a ponto de se ficar seguro de não se ter omitido nada.” Portanto, enumeração e revisão: a primeira verifica se a análise é completa; a segunda verifica se a síntese é correta. É assim que encontra-se enunciada nas “Regulae” essa cautela, necessária contra qualquer superficialidade. Assim, para Descartes é preciso percorrer com um movimento contínuo e ininterrupto do pensamento todas as coisas que se referem ao nosso fim e abarcá-las em uma numeração su ficiente e ordenada. “Trata-se de regras simples, que destacam a necessidade de se ter plena consciência dos momentos em que se articula qualquer pesquisa rigorosa. Elas constituem o modelo do saber, precisamente porque a clareza e a distinção ga rantem contra possíveis equívocos ou apressadas generalizações. Com tal objetivo, ante fenômenos confusos, é preciso chegar aos elementos simples, que não sejam mais decomponíveis, para que possam ser totalmente invadidos pela luz da razão. Em suma, para proceder com correção, é preciso repetir, a propósito


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desprezado, para garantir o saber conquistador que se faz ciência, técnica, instrumento da produção e da acumulação capitalista. O saber popular, que inclui a solidariedade dos pobres, esperará muito tempo para vir à luz como tema e método do saber ser humano. Como veremos, este é ainda hoje, um gargalo de muitos processos que se denominam de “participação popular”.

de qualquer pesquisa, aquele movimento de simplificação e rigorosa concatenação constituído pelas operações típicas do procedimento geométrico.” (REALE, Giovanni. ANTISERIE, Dario. História da Filosofia: do humanismo a Kant. P.363-364). 78

(1473-1543), Natural de Torun, Pomerânia na época em que pertencia à Polônia. Foi o elaborador do “paradigma” da teoria heliocêntrica. “A teoria heliocêntrica de Copérnico vai muito além de uma reforma técnica da astronomia. Deslocando a Terra do centro do universo, Copérnico mudou também o lugar do homem no cosmos. A revolução astronômica implicou também uma revolução filosófica: ‘ Homens que acreditavam que sua morada terrestre fosse apenas um planeta, girando cegamente em torno de uma dentre as bilhões de estrelas, começavam a avaliar a sua posição no esquema cósmico de modo bem diferente dos seus antecessores, que viam a Terra como o único centro focal da criação divina’. Ao deslocar a Terra do centro do universo, Copérnico também retirou o homem do centro do universo. Em seu livro A Revolução Copernicana, escrito por Th. S. Kuhn, citado por Reale, transcreve: “a sua doutrina planetária e a concepção a ela ligada, de um universo centrado no sol, foram instrumentos de passagem da sociedade medieval para a moderna sociedade ocidental, enquanto atingiam (...) a relação do homem com Deus. Desenvolvida com uma revisão estritamente técnica, de alto nível matemático, da astronomia clássica, a teoria copernicana tornou-se um centro focal das terríveis controvérsias no campo religioso, filosófico e das doutrinas sociais que, nos dois séculos posteriores à descoberta da América, fixaram a orientação do pensamento europeu.” (Reale, p. 212-213). 79

(1546-1601). Natural da Dinamarca. Foi a segunda autoridade em astronomia na segunda metade do século XVI porque aperfeiçoou vários aparelhos astronômicos e, observando as órbitas dos cometas que eram ovais, verificou que Copérnico havia se enganado ao pensar que todos os corpos celestes possuíam órbitas perfeitamente circulares. Entretanto foi também um dos maiores anticopernicanos que existiu devido ao fato de não aceitar que a Terra sobre seu próprio eixo. Brahe fundou o conceito moderno que tem-se de órbita. 80


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Emmanuel Kant (1725-1804) Como Leibniz, Kant faz da dialética o momento definitivo de seu pensar. Assim a dialética transcendental é a culminação da Crítica da Razão Pura, o centro de seu pensar. Kant toma a dialética em dois sentidos: primeiro o sentido negativo, pelo qual a razão emprega a dialética para mostrar-se a si mesma seus limites; em segundo lugar a dialética aparece como crítica simplesmente. O fundamento último do moviemento dialético é, como em Descartes, o eu penso em geral (Ich denke überhaupt). E a dialética se confunde com a sofística: “o assunto capital e mais importante da filosofia é, pois, acabar de uma vez para sempre com sua (da razão) perniciosa influência suprimindo a fonte dos

(1571-1630). Natural de Stuttgart, Alemanha. Levou adiante as teorias de sua época, foi discípulo de Brahe e confirmou definitivamente que as órbitas dos planetas eram elípticas e não circulares como se pensava além de ter descoberto importantes leis de ótica. 81 (1564-1642). Natural de Pisa, Itália. Galileu é o astrônomo por excelência da modernidade. Foi contemporâneo de Johanes Kepler com quem trocou diversas correspondências científicas. Foi ele quem aperfeiçoou a luneta e introduziu-a no mundo das ciências empírico-formais. Foi o fundador do método científico moderno que introduz a hipótese e a comprovação da experiência prática como meio para chegar à verdade. Sendo assim um exímio defensor da autonomia da ciência em relação à instituição religiosa (Igreja Católica) de sua época. O que lhe rendeu dois processos político-criminais pela Inquisição, o primeiro em 1615, denunciado pelo também italiano e padre dominicano Nicolau Lorini de herético por defender o copernicanismo (isto é, que a Terra gira em torno do sol), processo do pelo qual Galileu teve de aquiescer, prometendo não divulgar por quaisquer meios tais idéias sob pena de prisão. O segundo foi em 1633 onde definitivamente teve de abjurar de joelhos ser falsa a teoria de Copérnico. 82 (1642-1727). Isaac Newton é natural de Woolsthorp, nas proximidades da antiga aldeia de Colsterworth em Lincolnshire, Inglaterra. É o fundador da ciência moderna e da física clássica. Com ele definitivamente se desmantela a duvida a respeito das órbitas dos planetas, estabelece-se melhores distinções sobre o porque das mares, teoriza-se brilhantemente a respeito da lei geral da gravitação universal e da queda dos corpos e a respeito de matemática, principalmente com relação ao cálculo infinitesimal.


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erros”,83 isto é, mostrando a impossibilidade do uso positivo da razão. A dialética como arte da demonstração, mostra à razão, por conclusões contraditórias e por paralogismos, o impossível uso da razão. A dialética transcendental tem sua positividade nesta negatividade84: descobrir a ilusão dos juízos transcendentais da razão e impedir que nos enganem. Os sentidos não nos enganam (porque nada julgam), nem o entendimento constituindo os objetos como conceitos, quem nos engana é a razão quando nos diz conhecer a realidade das idéias que unem os conceitos, para além dos conceitos. A dialética, por antinomias, contradições e paralogismos, mostra-lhe as arbitrariedades da pretensão. O movimento dialético seguirá o seguro caminho da ciência a partir do curso da experiência (como o fizeram a lógica, a matemática, e a física) . Partindo de princípios inevitáveis na experiência, o movimento eleva-se às mais profundas questões, sempre incompleto em sua obra 85. É preciso que a metafísica reencontre também o caminho seguro da ciência, deixando de ser apenas sofística. Se, no entanto, a razão pura, em sua dialética transcendental, não alcança a realidade em si, para além da objetividade conceitual, a razão prática o fará no exercício da ação moral. Na verdade, é só no domínio da moral que a razão poderá, legitimamente, manifestar-se em toda sua pujança. A razão teórica tem necessidade da experiência para não se perder no vácuo da metafísica. A razão prática, isto é, ética, deve ao contrário, ultrapassar, para ser ela própria, tudo que seja sensível ou empírico. Toda ação que toma seus móveis (motivos) da sensibilidade, dos desejos empíricos, é estranha à moral, mesmo que essa ação seja materialmente boa. Por exemplo: “se me empenho por alguém por cálculo interessado ou mesmo por afeição, minha conduta não é moral. Com efeito, amanhã, meus cálculos e meus 83

Crítica da Razão Pura, B XXXI. Dussel, 1874: 38. 85 Ibidem, pg. 40. 84


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sentimentos espontâneos poderiam levar-me a atos contrários. A vontade que tem por fim o prazer, a felicidade, fica submetida às flutuações de minha natureza”86. Nesse ponto, Kant se opõe não só ao naturalismo dos filósofos iluministas, mas, também, à ontologia otimista de Tomás de Aquino, para quem a felicidade é o fim legítimo de todas as nossas ações. Em Kant, há o que Hegel mais tarde denominará uma visão moral do mundo que afasta a ética dos equívocos da natureza. O imperativo moral não é um imperativo hipotético que submeteria o bem ao desejo (cumpre teu dever se nele satisfazes teu interesse, ou então, se teus sentimentos espontâneos a ele te conduzem), mas é imperativo categórico: “Cumpre teu dever incondicionalmente”87. Em que consiste esse dever? Uma vez que as leis e que a Razão se impõem, (não podem, em nenhum caso, receber um conteúdo da experiência e que devem exprimir a autonomia da razão prática), as regras morais só podem consistir na própria forma da lei. “Age sempre de tal maneira que a máxima de tua ação possa ser erigida em regra universal” (primeira regra).88 O respeito pela razão estende-se ao sujeito racional: “Age sempre de maneira a tratares a humanidade em ti e nos outros sempre ao mesmo tempo como um fim e jamais como um simples meio” (segunda regra)89. Desse modo, o princípio do dever, para ser absolutamente rigoroso, não pode implicar “heteronomia” alguma, como cita Kant. Para se unirem numa justa reciprocidade de direitos e obrigações, os homens só têm que obedecer às exigências de sua própria razão: “Age como se fosses ao mesmo tempo legislador e súdito na república das vontades”. (terceira regra)90.

86

Reale. História da Filosofia do Humanismo a Kant: 895. Ibidem. 88 Apud idem ibidem. 89 Ibidem. 90 Ibidem. 87


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O único sentimento que tem por si mesmo um valor moral, nessa ética racionalista, é o sentimento do respeito, pois não é anterior à lei, mas é a própria lei moral que o produz em mim; ele me engrandece, ele me realiza como ser racional que obedece à lei moral91. Pelo fato de ser puramente formal, essa moral não me propõe, efetivamente, um ato concreto a realizar. Ela simplesmente autoriza ou proíbe este ou aquele ato que tenho vontade de praticar. Por exemplo, vejo de imediato que não tenho o direito de mentir, mesmo que eu me diga: e se todos mentissem? A mentira de todos para com todos é contraditória, portanto, proibida. A moral formal, por conseguinte, apresenta-se como essencialmente negativa. A moral de Kant, ao privilegiar a razão humana, exprime sua desconfiança em relação à natureza humana, aos instintos, às tendências de tudo o que é empírico, passivo, passional, que é patológico. Tal é o rigor kantiano. A razão fala desde a forma severa do dever, porque é preciso impor silêncio à natureza carnal, porque é preciso, ao preço de grande esforço, submeter a vontade humana à lei do dever. Por conseguinte, o domínio da moral não é o da natureza (submissão animal aos instintos) nem o da santidade (em que a natureza, transfigurada pela graça, sentiria uma atração instintiva e irresistível pelos valores morais). O mérito moral é medido precisamente pelo esforço que o homem faz para submeter sua natureza às exigências do dever. A moral de Kant é o que se chama de uma moral independente. Ela não possui outro fundamento além da consciência humana, que é essencialmente razão. Mesmo que o universo não tenha o menor sentido, mesmo que a alma seja mortal, o discípulo de Kant se sabe obrigado a respeitar as máximas da razão. Todavia, Kant vai reerguer a metafísica - essa metafísica cuja fundamentação era impossível, segundo a Crítica da Razão Pura, (1° parte de sua obra). A originalidade de Kant está no fato de que, ao invés de buscar os fundamentos de sua moral na meta91

Ibidem.


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física, ele vai estabelecer os fundamentos de uma metafísica na moral, a título de “postulados da razão prática”. Por exemplo: “o dever me prescreve a realização de certa perfeição moral que não consigo atingir na vida presente (posto que não chego a purificar totalmente a determinação do querer dos móveis sensíveis)”. Logo, ela exige, como pressuposto, um além. Por outro lado, Kant constata que a virtude e a felicidade quase não estão juntas neste mundo, em que, de um modo geral, os maus são muito prósperos. Ele então postula que um Deus justiceiro, por intermédio de um sistema de recompensas e punições, restabelecerá no além a harmonia entre virtude e felicidade. Finalmente, partindo da consciência da obrigação moral, Kant vai postular a liberdade humana. Com efeito, a obrigação moral exclui a necessidade dos atos humanos. “A obrigação não teria o menor sentido se minha conduta fosse automaticamente determinada por minhas tendências ou pelas influências que sofri”92. Ser moralmente obrigado é ter o poder de responder sim ou não à regra moral, é ter a liberdade de escolher entre o bem e o mal. “Tu deves, diz Kant, então podes”93. A dialética transcendental Kant se atém ao aspecto negativo da dialética. Como se trata de um têrmo do qual, a filosofia moderna e contemporânea farão um verdadeiro abuso, é necessário precisar e explicitar algumas coisas a seu respeito “Por mais variado que tenha sido o significado em que os antigos usaram essa denominação como uma ciência ou arte, pode-se no entanto deduzir com certeza, pelo uso que de fato dela fizeram, que, para eles, a dialética nada mais era do que a lógica da aparência. Trata-se de uma arte sofisticada que dá à própria ignorância, ou melhor, às próprias ilusões voluntárias, as tintas da verdade,...ensinamento este que se opõe à dignidade da filosofia... mais 92 93

Ibidem. Ibidem.


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justo seria chamar de dialética à lógica, isto é uma crítica da aparência dialética”.94

Entretanto quando fala de dialética transcendental, Kant usa o termo no sentido próprio, embora mantendo a conotação negativa, ligado à sua revolução copernicana. O homem possui formas e conceitos do intelecto que precedem a experiência, mas que, no entanto, valem somente se considerados como condições do real e do possível mas que, por si sós, permanecem vazios. Portanto nós não podemos ir além da experiência possível. Quando a razão tenta fazer isso, cai inexoravelmente em uma série de erros e em uma série de ilusões que não são casuais, mas necessários. Esses êrros em que a razão cai quando vai além da experiência não são ilusões voluntárias, mas sim ilusões involuntárias, portanto, ilusões estruturais. A dialética que funciona como crítica a essas ilusões: "chama-se dialética transcendental não como uma arte de suscitar dogmaticamente tal aparência, mas como crítica do intelecto e da razão em relação ao seu uso e perfil e,... serve para desvelar a aparência falaz em suas infundadas presunções."95 Existe portanto uma dialética natural que está indissoluvelmente ligada à razão humana. O pensamento humano, do ponto de vista do que nos é possível sentir, limita-se ao horizonte da experiência. Entretanto, a tendência do pensamento a ir além da experiência, é natural, quase irrefreável, visto que corresponde a uma precisa necessidade do Espírito e a uma exigência que faz parte da própria natureza do homem enquanto homem. Tão logo, porém, se aventura fora dos horizontes da experiência possível, o espírito humano cai fatalmente no enredo. Essas ilusões em que cai o espírito humano quando vai além da experiência tem uma lógica precisa (é aquele tipo de erro que não pode não ser cometido). 94 95

Crítica da Razão Pura, B 86, A 61 Ibidem.


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A última parte da Crítica da Razão Pura estuda exatamente quais e quantos são, quais as razões pelas quais são cometidos, a fim de disciplinar a razão em seus excessos. O círculo da dialética (na razão pura) inicia na intuição, avança aos conceitos para terminar nos princípios; ao passo que na razão prática, começa com a possibilidade dos princípios práticos a priori, para avançar aos conceitos dos objetos, e concluir nas relações da razão pura com a sensibilidade: o sentimento mo ral. Em Kant, a dialética, como demonstração dos enganos da razão, que pretende conhecer as idéias ou conceitos, não apenas como formas e sim como conteúdos, inicia do factum da aparência sensível em sua pluralidade sensorial que é unificada (como fenômeno) pelos momentos da sensibilidade: as intuições de espaço e tempo. A pluralidade fenomênica é unificada, como objeto, pelas formas puras do entendimento: os conceitos. “Pelo que, aos objetos, somente conhecemos a priori nas coisas o que nelas temos posto”96. A consciência produz o objeto, a objetividade do objeto. A pluralidade conceitual é impossível de unificar pelas idéias na razão pura especulativa. A idéia não é idéia da coisa em si; a coisa em si não é sabida pela razão (teórica), mas é crida, essa fé racional que deriva da vontade (razão prática) e que tem supremacia sobre o saber. A razão prática, pela idéia de lei moral, implicando a liberdade, pretende recuperar o caminho do empírico e fenomênico na ação. A crítica do juízo pretende recuperar certa teleologia natural, tentando desenclausurar o homem da subjetividade imanente do eu penso ou do Ich denke. Cumprir o dever, por ele mesmo, sem motivos e sem paixão e, portanto, sem com-paixão, é abismalmente distante dos 96

Crítica da Razão Pura, B XVIII, apud Dussel, 1974: 42.


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valores inculcados pelo mercado na Civilização Ocidental, todo marcado pelo prazer e pelos interesses. A honestidade, porém, como pré-condição da ação humana, não se sustenta sem a emoção, sem a corporalidade. A alteridade como critério aponta para o telos que imanta o agir humano: o rosto da vítima que clama por justiça. J.G. Fichte (1762-1814) Genial inovador do método dialético da idade moderna. Parte, já não da facticidade empírica como Kant que concluíra pela impossibilidade de um sistema da razão pura97, mas parte da pura subjetividade, da interioridade do sujeito, do eu absoluto, sujeito infinito, incondicionado, da imanência absoluta do eu penso, para chegar ao “sistema do idealismo transcendental, fazendo da dialética a “doutrina da ciência”. Parte da Crítica da Razão Pura como propedêutica. Diz que o eu puro, suposto por Kant, é o condicionante de toda outra consciência. Recolherá de Jacob Böhme (lido também por Schelling e Hegel) os dois fundamentos da Doutrina da Ciência: a idéia de uma vontade-tendência que não pode tomar consciência de si sem resistência de uma oposição ou choque que lhe detenha o movimento; e a idéia da potência criadora da imaginação que dá nascimento ao mundo sensível. Ao contrário de Kant e Hegel, o entendimento (Verstand, do verbo verstehen), na tradição alemã, é interpretado como intellectus, penetração intuitiva do espírito nas coisas que conhece; e a razão (Vernunft, do verbo vernehmen) será uma faculdade inferior que só conceitualiza o exterior das coisas.98 Todos os elementos da visão de mundo devem ser 97

Em Kant, o sistema metafísico (da coisa em si, do numênico) é impossível porque a razão não tem objetos nem conceitos e o fundamento, a coisa em si é atingível pela fé racional (vernünftige Glaube), como vimos. 98 A Vernunft de Böhme é a Verstand de Kant e Hegel; a Verstand de Böhme inexistente em Kant é a intellektuelle Anschauung de Fichte e Schelling e a Vernunft de Hegel. Dussel, 1974: 44.


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buscados no interior da alma, no livro do Arcanum que devemos aprender a ler. Fichte dirá: é necessário “prestar atenção a ti mesmo, distanciar o olhar de tudo o que nos rodeia e voltá-la para o teu interior: tal é a primeira exigência da filosofia para com seu discípulo. Não se trata de nada do que seja exterior; é somente questão de ti mesmo”99

De Spinoza (1632-1677) receberá a idéia de que a substância é aquilo que é em si e se concebe por si, cujo conceito não necessita de outro para formar-se. Necessariamente infinita, nenhuma substância se concebe sem Deus, fundamento da unidade de consciência. Fichte dirá que a substância suprema e única que fundamenta e dá unidade à consciência é o eu de cada um. Passará da substancialidade para a subjetividade. 100 A razão não será a faculdade sem objetos (de Kant) mas a faculdade do supremo conhecer, do conhecimento da coisa em si e do númenon.E como estão constituídas as coisas em si? São tais como devemos fazê-las... “jamais saimos de nós mesmos e, por consequência, jamais poderemos falar de um objeto sem sujeito”101 A coisa em si agora é sabida e não apenas crida, numa relação imanente. Todo sistema será imanente. Já não se poderá falar de transcendência. 102 Será a priori , síntese a priori a partir da qual tudo poderá ser deduzido, demonstrado como termos anti-téticos ou opostos, já contidos na síntese suprema 103 A plenitude sintética a priori, funda-se na tese absoluta que a antecede, “o princípio primeiro absoluto, inteiramente inconcionado de todo o saber humano...que não pode ser demonstrado ou definido”104 é o eu absoluto, começo de todo o movimento dialético. O movimento inicia na infinitude indeterminada 99

Doutrina da Ciência, § 1; I, 422. “Com Fichte o eu é o de cada homem; com Schelling é já um eu absoluto; em Hegel é o próprio Deus antes da criação. Isto é: tudo é uno”. Dussel, 1974: 45. 101 Doutrina da Ciência, § 6; I, 286. 102 Dussel, 1974: 46. 103 Doutrina da Ciência, § 3; I, 114. 104 Ibidem, §1;I, 91. 100


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e indeterminável e vai ao finito por mediação da faculdade de determinação, construindo todo o sistema do espírito humano, descendo do universal para o particular, demonstrando que uma diversidade é dada a uma experiência possível 105. O processo é uma ex-volutio: do cógito ao empírico pela práxis. Assim, uma proposição aceita por todos, só poderá ser admitida, se lhe admitirmos o fundamento enquanto ato que o eu se dá a si mesmo e por si mesmo. 106 Assim, o objeto é dado ao eu por ele mesmo. “Eu sou eu. O eu é absolutamente posto por si mesmo”107 O eu não procede de uma síntese, mas de uma tese absoluta. A intuição intelectual (intellektuelle Anschauung) que minha consciência tem de si mesma, enquanto ato, constitui o eu indeterminado e infinito. Este é o começo do processo de conhecimento e não o ser ou o factum empírico. Do contrário nunca chegaria ao infinito supra-sensível. Se partisse da ação, situar-se-ia no âmbito em que esses dois mundos (sensível e supra-sensível) se encontram, abraçando-os com uma só visada. Contra Aristóteles, Fichte não partirá da experiência ou compreensão cotidiana, que é limite, impedimento, liberdade suprimida. A dedução dialética dos opostos parte do princípio incondicionado por sua forma e seu conteúdo, sem outro fundamento que ele mesmo; e vai deduzindo o não-eu, para conciliá-los na síntese. Sendo a consciência una, nesta consciência o eu absoluto é posto como indivisível (unteilbar); o eu, pelo contrário, ao qual se opõe o não-eu, é posto como divisível (teilbar). Segue-se que o eu divisível, na medida em que se lhe oponha um não-eu, é ele próprio oposto ao eu absoluto. E assim os opostos são reconciliados (vereinigt), sem que seja negada a unidade da consciência108. O não-eu fragmenta (determina) a infinitude do eu simplesmente posto e sem conteúdo como negação porque “omnis 105

Fundamentos de uma Doutrina da Ciência, I, 333. Doutrina da Ciência, §1 ; I, 92. 107 Ibidem, §1; I, 96. 108 Ibidem,§ 3,2; I, 110. 106


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determinatio est negatio”. Assim como na árvore de Porfírio a determinação específica (racionalidade e irracionalidade como opostas) nega a unidade sintética que a precede (animal enquanto gênero) e se reconcilia na mesma unidade sintética, assim nessa dialética lógica, a síntese de um processo superior é, por sua vez, tese de um processo inferior. Então, toda síntese é tese. Menos a primeira tese, a tese absoluta, que é somente tese e não síntese 109. Da tese absoluta desce-se... Assim o eu e o não-eu são identificados e opostos pelo conceito de limitação recíproca, assim são também os dois algo no eu, enquanto substância divisível.... o criticismo é por consequência imanente 110. Aqui o princípío de identidade absorve analiticamente tudo dentro de si: não há novidade real fora dele, tudo se resolve com o desenvolvimento do já dado. Estamos muito longe da “alteridade” trabalhada por Levinas. Os princípios de oposição e de razão suficiente fundam-se no de identidade. “A filosofia parte do eu como intuição, que constitui o conceito fundamental; mas culmina na idéia de eu; esta idéia não pode ser estabelecida senão na parte prática, como fim supremo do esforço da razão”... a idéia é algo que deve ser produzido por nós, sem poder sê-lo... submissão da unidade de todo o não-eu sob as leis práticas do eu... isto não como objeto de um conceito e sim como objeto de uma idéia, que é algo que deve ser produzido por nós”111 E na preciosa síntese de Dussel: Se resumíssemos em poucas palavras a doutrina dialética em Fichte indicaríamos os seguintes aspectos: Em primeiro lugar o movimento dialético é de-dutivo ou de-volutivo e se cumpre dentro da imanência da subjetividade absoluta. O caminho inicia no eu incondicionado (tese absoluta), passando à antítese primeira: o eu dividido que se antepõe ao não-eu, para alcançar a síntese suprema e também primeira: o eu dividido e o não-eu que se opõem ambos 109

Para Fichte a tese absoluta é o eu. Para Schelling é o absoluto plenamente acabado. Para Hegel é o absoluto como ponto de partida de um processo, de um devir lógico, natural e histórico. 110 Doutrina da Ciência, § I, 119. 111 Ibidem, § 1; I, 101.


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ao absoluto. Em segundo lugar, e com isto começa uma nova parte da Doutrina da Ciência, cuja formulação geral é: o eu se põe a si mesmo como determinado pelo não-eu em cuja análise consiste a teoria do conhecimento. Em terceiro lugar, e é a última parte da obra comentada, o nível prático; o eu põe o não-eu como determinado pelo eu. Esta última questão é tratada extensamente no Sistema da Doutrina dos Costumes (1798)...112

F. H. Schelling (1775-1854) O processo dialético não é só do conhecimento, mas abrange a totalidade do que é. Na dialética da natureza, a autoconsciência percorre uma história de épocas, momentos invariáveis e constantes, numa gradação “que pode ser indicada e percorrida pela simples matéria (Stoff) até a organização – pela qual a natureza produtiva se volve sobre si (zurückkehrt) sem consciência – por meio da razão e do arbítrio, até a suprema unificação (conciliação = Vereinigung) da liberdade e da necessidade na arte, pela qual se encerra e realiza a natureza com-consciência produtiva” 113. O universo é o absoluto, com eternidade, autoconsciência e circularidade. A organização dinâmica do universo é de-rivada (deduzida = abgeleitet)... supõe uma evolução desde um produto originário, uma desintegração infinita (Zerfallen) deste produto em sempre novos produtos... construída em a natureza por uma dualidade originária, disjunção essa surgida de uma identidade originária, impensável se o infinito (indefinido) não fosse uma involução absoluta, um infinito dinâmico 114

112

Dussel, 1974: 53. Sistema do Idealismo Transcendental, III, 634. 114 Erster Entwurf eines Systems der Naturphilosophie, für Vorlesungen III, V: 261 113


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A diferenciação é negação finitizante, por determinação ou alteridade. Como já dizia Plotino : Quando a alma se introduz na planta, é uma parte dela que permanece na planta... quando se introduziu num ser irracional, é o predomínio de seu poder sensitivo que o conduziu até ele. E, enfim, quando penetrou num homem, sua atividade se circunscreve ao logos (potência secundária como a Verstand de Kant) ou à inteligência (noun, como a Vernunft de Hegel) que procede da inteligência (Geist de Hegel) porque a alma dispõe de uma inteligência que lhe é própria e que tem por si mesma vontade de intuir (noein) e de mover-se... As almas esqueceram de Deus seu pai? Para elas o princípio do mal é sua audácia, a geração, a diferenciação primeira115.

Deus, o absoluto, como auto-consciência é um querer-se e um produzir-se a si mesmo e tudo o que ele produz retorna necessariamente para ele, plenamente saciado pela visão de si mesmo. Nisto ele é posto por si, diante de si e para si mesmo: consciência. Tudo já está posto ao início: a evolução dialética procede do absoluto e a ele retorna (não será um resultado como em Hegel, que, na verdade é idêntico ao inicial). Em Schelling o próprio não-eu (oposto ao eu em Fichte) é engolfado pelo eu: o eu conhece o eu e, como tal, é pura consciência. Assim, da coisa sabida na idéia (Descartes) passa-se para a coisa crida (Kant), daí para seu desaparecimento num não-eu puramente antitético interior ao eu (Fichte), até sua aniquilação, mesmo como não-eu, na pura imanência do eu absoluto, que se conhece a si mesmo por auto-consciência. A Involução é completa116.

A existência do mundo exterior é mero pré-conceito, aparência. O eu absoluto é princípio de toda ciência, princípio absoluto de todo saber (não do ser) e, antes de mais nada um saber de nós mesmos, a auto-consciência. O eu se conhece a si 115 116

Eneadas V, 1, 10... Dussel, 1974, 56.


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mesmo como objeto. Coincide absolutamente consigo mesmo. Já não há não-eu. Conhecendo-se o eu se constitui a si mesmo. Esta identidade imediata entre o sujeito e o objeto somente existe quando o re-presentado é ao mesmo tempo aquele que re-presenta, o intuído é o que intui... como autoconsciência... Na auto-consciência, sujeito e objeto do pensar são um só... A auto-consciência é um ato... fora do qual é nada... 117 Há em Schelling uma anterioridade dialética do saber sobre o ser. Não há identidade de ser e pensar como em Hegel. Esta identidade reduziria o saber a uma simples cópia de um ser originário e a liberdade seria mera ilusão, movimento visível de um princípio invisível que não se sabe qual é. Aqui há a primazia do ego cogito como homo faber. “O eu é puro ato, um puro obrar (fazer, agir)”118 A auto-consciência do eu produz o objeto, cria desde si o que seu entusiasmo inventa, como o artista. E se o artista for um eu absoluto, nele coincidem liberdade e necessidade. A intuição intelectual é uma auto-produção. Neste “produzir... o eu é eterna e absolutamente objetivo para o próprio eu” 119, auto-produção cognoscitiva de si mesmo: o pensar que, no ato de pensar-se a si mesmo, se produz como pensar. 120 É uma produção estética: espelho e reflexo do eu dividido. A história humana, como história da cultura, é o modo como o absoluto se reabsorve em si mesmo objetivando o inconsciente ainda não conhecido como obra que lança diante de si. História progressiva da auto-consciência (com épocas, momentos e sucessão) que faz dos dados da experiência apenas um documento ou monumento de si mesma, é a história total (natural e humana), incluindo Deus.

117

StI, Einleitung, III, 344 apud Dussel, 1974,57. Ibidem, 368. “Das Ich ist reiner Akt, reines Thun”. 119 Ibidem 534. 120 Dussel, 1974, 59. 118


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Assim, o primeiro momento é o da auto-consciência, por cujo ato tudo é posto para o eu121; o segundo momento, fundado, tem como primeira época a da sensação originária até a intuição produtiva122; a da segunda época que vai da intuição produtiva até a reflexão123; e a da terceira época que vai da reflexão até o ato absoluto do querer124. A auto-determinação da inteligência se chama querer... ato de liberdade125. O método dialético, em Schelling, eliminou a coisa em si, o não-eu, a experiência fática e cotidiana do mundo, postulando um início do pensar, como a imanência absoluta da consciência auto-cognoscente, totalidade totalizada, à qual retornará por in-volução. “Com liberdade, no sentido de puro ato produtivo, o eu arranca desde si mesmo num processo dialético cujas etapas são chamadas de “históricas”. A filosofia da natureza, por um lado, e a estética, por outro” 126, é a absolutização da imanência, tão cara a Hegel. Hegel irá ao topo da involução desencadeada desde Descartes pelo eu penso. Virá depois o descer, a decadência. O eu penso europeu, fundado no eu conquisto, transformou-se em eu absoluto que se auto-produz, produzindo o mundo ocidental como imanente a si mesmo em todas as suas etapas. A história do eu penso é, então, a própria história da humanidade, história única que culmina no tripé do Império econômico do capitalismo industrial (inglês antes de mais nada), da Revolução Francesa e da Filosofia Alemã. Não há lugar para outra história, outro povo, o outro simplesmente. Tudo tem identidade na medida em que, projetado e produzido pela Europa, ante a Europa e para a Europa, se negar a si mesmo, se superar a si mesmo (de sua inconsciência, finitude, concreção bárbara) em direção à consciência européia do eu pen121

Ibidem, 295 Ibidem, 399. 123 Ibidem, 454. 124 Ibidem, 505. 125 Ibidem, 553. 126 Dussel, 1974, 61. 122


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so. Não há transcendência em relação à Europa. A Europa é a transcendência imanente a si própria, o Absoluto que se autofaz , fazendo tudo para si mesmo. A europeização do mundo é a história. As consequências para pensar a realidade social e a dinâmica social, política e cultural, desde este ponto de vista, são intrigantes. G.F. Hegel (1770-1831) Para Hegel, a dialética é, antes de mais nada uma propedêutica, uma introdução ao filosofar. O ponto de partida é a consciência dividida. O factum cotidiano que, para ser compreendido (elevado ao infinito) precisa ser negado em sua concretude. Assim o fixo, o concreto, o cotidiano, o ser (ente) é negação da essência e do absoluto. É preciso que seja negado em sua negação para que alcance sua positividade de infinito. A negação da negação é superação e retorno ao Absoluto. A dialética, assim, é uma introdução à Filosofia, enquanto sistema. O jovem Hegel, estudante de teologia 127, tenta superar a dicotomia kantiana de legal e moral com a visão laicizada do amor cristão, como acabamento e pléroma da lei que, para Kant era patológico. “Neste acabamento da lei e tudo o que dela depende: o dever, a intenção moral e o resto, deixam de ser um universal oposto à lei; o acordo é a vida e, enquanto relação dos diferentes: amor” 128. O amor, vida, ser, é a conciliação que supera a oposição do universal, inclinação/lei, sujeito/objeto, negando a divisão e alcançando a unidade, pois “de um lado encontra-se a santidade do amor, o acabamento (pléroma) da lei que vai contra a ruptura da unidade; somente esta santidade permite, (quando um dos numerosos aspectos do homem quiser elevar-se à dignidade do todo ou contra o todo), mantê-lo em seu nível, e o único 127 128

Cf.O Espírito do Cristianismo Idem, apud Dussel, 1974, pg. 67.


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sentimento do todo é o amor porque pode impedir a dispersão da essência; e, por outro lado, o amor suprime (aufhebt) a possibilidade da separação, tanto quanto o amor vive”129. O amor é o motor do movimento dialético. O amor nos abre ao Reino de Deus, comunidade viva que é vida e retorno à vida. A conciliação dialética, para o jovem Hegel, será sempre uma conversão existencial e moral pela qual o homem se torna autônomo, senhor de si, como em Abraão. Em Hegel, “a dialética é teológica, mas a teologia é totalmente secularizada, racionalizada, despositivada: o cristianismo foi descristianizado, porque desjudaizado”130 “O homem pôe a vida infinita como espírito do todo, fora de si, porque ele mesmo está limitado, e se põe ao mesmo tempo fora do limitado, e se ergue até o vivo, une-se de modo mais íntimo com o infinito e vivente, está então adorando a Deus”131

Suprimindo as opiniões finitas, o limitado, o dividido, o morto, a pluralidade, o homem acede ao reino da conciliação, o infinito. Por auto-aniquilação da pluralidade (fixada pela reflexão) o homem alcança a vida, o infinito, Deus. A filosofia é, assim, superação do nível das oposições fixadas pela reflexão como se infinitas fossem, para alcançar a verdadeira infinitude fora do âmbito da reflexão, a totalidade que permanece, porém, sem exterioridade. A dialética é, assim, um movimento propedêutico e in-volutivo do pensamento. Se o entendimento pensa os entes enquanto pluralidade de um mundo de opostos e contrários, cristalizando as oposições como absolutas, a razão “tem como único interesse suprimir as oposições cristalizadas.. não se opondo às oposições pois esta cisão e contraposição do todo é um fator da vida... e a totalidade suprema na ordem da vida não é possível senão como restabelecimento que parte da divisão suprema” 132, mas encontrando a 129

Ibidem, 67. Dussel, 1974, 70. 131 Systemfragment von 1800, apud Dussel 1974, 70. 132 Dussel, 1974, 73. 130


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unidade prévia, desabsolutizando e aniquilando a pretensão do entendimento, na conciliação, na superação, na compreensão absoluta. A cisão dos contrários e opostos “é o momento dialético propriamente dito, cujo instrumento é a reflexão. A supressão ou superação das oposições é o momento especulativo, a Aufhebung... na direção da identidade. A identidade, porém, condicionada pela aniquilação dos opostos é apenas relativa, histórica. O absoluto mesmo é a identidade da identidade e do não-idêntico: nele acontecem o ser uno e o opor-se.

Como em Aristóteles, Hegel parte do factum do conhecimento cotidiano na direção da ciência e da verdade. Propõe-se descrever “o caminho da consciência natural que luta por alcançar o verdadeiro saber ou o caminho da alma, percorrendo a série de suas figuras como tantas etapas do trânsito que sua natureza lhe traça, depurando-se assim, até elevar-se ao espírito, e chegando, através da experiência completa de si mesma, ao conhecimento do que é em si mesma” 133. A Fenomenologia do Espírito é, assim, o caminho que vai do conhecimento empírico, natural, cotidiano (passando pelas etapas do político, do artístico, do religioso ao filosófico) até o saber absoluto. Filosofar é pôr em crise as opiniões, os preconceitos que derivam da autoridade dos outros, a cotidianidade, porque esta nega o sentido. Esta morte ou negação da consciência natural é libertação, é um negar a negação. A dialética é, assim, a aniquilação das determinações fixas ou cristalizadas na cotidianidade, para alcançar a liberdade da auto-determinação onde a consciência é para si mesma seu conceito, sua própria medida, e prova de si mesma, como sintetiza Heidegger 134 133

Fenomenologia do Espírito, 67. “O movimento dialético que a consciência leva a cabo em si mesma, tanto em seu saber como em seu objeto, enquanto brota diante dela o novo objeto verdadeiro, é propriamente o que se chama experiência”. Ibidem 73. 134 Apud Dussel, 1974, 78-79. “Enquanto movimento da própria consciência, de início não coincidente consigo mesma, a dialética é a introdução à filosofia, a passagem da não-verdade para a verdade do saber absoluto, a morte à cotidianidade e a vida do absoluto estudado na Fenomenologia do espírito. O ponto de partida, a consciência como não-verdade é a “consciência natural”. A dialética é


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Ante o objeto limitado a consciência empreende o movimento de ir além do limitado, sem transcender à consciência. A consciência como horizonte absoluto, faz brotar o objeto novo, aniquilando o objeto superado. “Este novo objeto contém a anulação do primeiro”135. “Esta anulação ou aniquilação (negatio) do objeto (determinatio) que não sacia a ânsia de totalidade para si da consciência como manifestação do absoluto, é o próprio da dialética. A dialética é um movimento negante das determinações finitizantes do absoluto; ao aniquilar as limitações, des-limita-se abrindo o objeto a novos objetos... a dialética é o próprio motor do processo e a causa de novos objetos, é uma experiência espiritual, uma experiência por excelência...A experiência é o movimento dialético e este é o ser do ente, uma vez que o ente é o objeto enquanto sabido”136

A consciência cumpre o movimento sem auto-consciência, por necessidade. “Esta necessidade faz com que o caminho para a ciência já seja, ele mesmo, ciência e, por isso, seja quanto a seu conteúdo, a ciência da experiência da consciência... E a total coincidência da razão consigo mesma como espírito absoluto seria a totalidade do reino da verdade do espírito” 137 Impulsionando-se a si mesma para sua existência verdadeira, a consciência chegará a um ponto em que se despojará de sua aparência de levar em si algo extranho que é somente para ela e é como um outro, e alcançará, por conseguinte, o ponto em que a manifestação se faz igual à essência, no qual, por conseguinte, sua exposição coincide precisamente com este ponto da autêntica ciência do espírito e, por último, ao captar por si mesma essa sua es-

a) negatividade ou supressão do mundo imediato da sensibilidade e do entendimento, b) positividade ou experiência, como saber de um novo objeto que a dialética deixa manifestar” Dussel, 1974, 113. 135 Fenomenologia do Espírito, 73 136 Dussel, 1974, 81. 137 Fenomenologia do Espírito, 74.


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sência, a consciência indicará a natureza do próprio saber absoluto138

“[...] De fato o mesmo é o pensar e o ser” 139, dizia Parmênides. “O Absoluto é o universal e uma Idéia que, como autojudicativa, se particulariza num sistema de idéias determinadas 140... O auto-juizo da Idéia... determina a ambos (Espírito e Natureza) como suas manifestações... A Idéia eterna, existente em si mesma e para si mesma, se afirma eterna, se produz e se goza como Espírito Absoluto”141. Portanto, “todo inteligível é real e todo real é inteligível (racional)”. Identidade da consciência consigo mesma, supressão da não-consciência, totalidade totalizada, que já não é um amor à sabedoria e sim um saber real, o próprio saber (sabedoria). O movimento dialético não é, então, apenas um método lógico, para a ciência, mas o real processo da consciência, do espírito como humanidade e história, como absoluto: Deus como sujeito. A dialética não é apenas uma introdução in-volutiva à filosofia como imanência, ela é também o movimento circular do absoluto. Partindo, agora, não mais da consciência natural, mas do fundamento, do absoluto, o sistema começa no absoluto como o totalmente carente de determinação, como o indeterminado, negatividade total. Nele, e dele produz-se uma cisão, ou explicatio, manifestando-se já não como “o” ser mas como “um” ser, o Dasein. “Ex-pedido (ou expelido) do absoluto enquanto total negatividade originária, o Dasein é arrastado, por um movimento que, irrefreavelmente, o leva circularmente num 138

Ibidem, 75. Parmênides, frag. 3 apud Giovanni Reale I: 108. 140 Eciclop. § 213 141 Enciclop. § 577. 139


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processo de retorno (Rückgang) por um anelo invencível de alcançar a imediatez, o estar “consigo mesmo”.142

Purificando-se das determinações finitizantes, o Dasein busca a unidade agora como resultado. O espírito culmina como “espírito absoluto” na tarefa filosófica: intuição espiritual eterna do absoluto consigo mesmo 143. O sujeito, em sua marcha progressiva para diante, e enquanto é esta marcha, faz surgir sua subjetividade: produz a subjetividade. E o método é o movimento mais íntimo da subjetividade, a alma do ser, o processo da produção pelo qual é efetuado o tecido da realidade do absoluto em seu todo144 O absoluto é o ponto de partida e de chegada. O ser, sabido pelo saber absoluto, “é o conceito somente em si (an sich); suas determinações (Bestimmungen) são os entes...”145 Entre o ser em si e os entes (Dasein) há a diferença ontológica. Desde o ser, os entes di-ferem, são pro-duzidos, con-duzidos ante , ante o outro. Di-ferenciação e alteridade são dois momentos do processo dialético. A alteridade é um processo natural; ainda não é a alienação de que fala Marx. Esta determinação progressiva do conceito que se desdobra, situando-se fora de si, é um ato do absoluto que (inicialmente somente em si e ainda não para si) “como momento de seu ser, se desdobra, se di-ferencia, se plurifica em sua interna exterioridade. O todo, o absoluto, ou o conceito como idéia, produz em si mesmo como que um espaço vazio e, dentro dessa íntima exterioridade, desdobra-se a si mesmo, abismando-se em si mesmo” 146. É uma dialética in-volutiva em que a evolução natural e biológica da natureza, a história do homem, não são senão o desdobramento interno da totalidade que, sempre total, se totaliza. 142

Dussel, 1974, 87. Fenomenologia do Espírito, III, 2. 144 Heidegger, apud Dussel, 1974, 92. 145 Apud Dussel, 1974, 92. 146 Dussel, 1974, 93. 143


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O ser, enquanto conceito, se explica (de explicatio, explikation em alemão), tornando-se a totalidade do ser e suprimindo (aufgehoben) a imediatez do ser. “Ao ex-pressar-se, ao sair de si mesmo, produz-se uma cisão (Entzweiung) originária, pela qual se engendra ou emerge por emanação, a totalidade dos entes, o cosmos, ao mesmo tempo em que se nega e aniquila a absoluta pertinência do ser a si próprio, em si e para si”147. Hegel, com essa concepção da Explicatio , insere-se na tradição milenar do helenismo metafísico de corte indo-europeu, sob cuja inspiração surgirão o gnosticismo, o neo-platonismo cristão, continuado na Idade Média pelos cátaros e albigenses, por Nicolau de Cusa e Giordano Bruno, pela mística árabe e pela kabala judaica, e na tradição rematada por Böhme, Fichte, Schelling. Os entes não são criados do nada, não têm estatuto e identidade própria, nem se permite a historicidade como confronto de liberdades. A totalidade, a mesmidade, desde antes, durante e ao final, tudo engolfa e determina a partir de si. Em derradeiro, o outro será instituído, constituído, produzido pelo mesmo como um outro-eu, de quem ele (o mesmo) necessita para ser si mesmo. Nada há no outro que não tenha emanado do mesmo. O outro nasce (do mesmo), anda e retorna para o mesmo. A identidade do outro é negar-se, abismando-se no Absoluto. E o ser (em si) só será para si ao final do processo, no momento final do re-encontro, quando recuperar a imediatez consigo mesmo. Por isso, pode Hegel, citando a obra fundamental do indo-europeísmo ariano, o Bhagabad-Gita, dizer com Krishna: “Eu sou o sopro que habita no corpo vivente dos viventes; sou o começo, o meio dos viventes e seu fim”. 148

147

Dussel, 1974, 94. Esta cisão pela qual os entes emanam, contrapõe-se ao conceito semita de criação. Seguindo a tradição indo-européia do ser eterno interpretado como o visto e do ser certo como subjetividade (da modernidade), Hegel abandona a perspectiva cristã do ser criado como liberdade. Para isso cf. as excelentes indicações de Dussel, 1974, pgs 94-98. 148 Apud Dussel, 1974, 100.


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O absoluto é concebido como Espírito 149 que, perpétua e progressivamente, se auto-determina, sem perder a unidade na multiplicidade, porque resolve em si todas as oposições, permanece idêntico a si mesmo como realidade total, implicando o devir para tomar consciência de si, sendo que, na evolução contínua, o Absoluto é “essencialmente um resultado”150. É um movimento de conceitos... movimento das essências puras que constitui a natureza da cognoscibilidade 151, sendo que o conceito (tese) se transforma no seu oposto (antítese), mas as oposições se resolvem por sua vez num plano mais elevado, que é a sua síntese. (Na senda de Heráclito e Fichte) 152. O absoluto em Hegel, conforme conclui Franz Grégoire: é idéia absoluta, espírito primeiro, centro real e tendencial sem consciência própria”153 que se auto-expressa por meio, por mediação da multidão de espíritos humanos na história (a evolução cósmica e biológica é sua preparação). “A consciência do espírito finito é o ser concreto, o material da realização do conceito de Deus”154. O cósmos e a história são momentos necessários do absoluto, mediação imprescindível de sua efetuação 155. O ser como substância é traduzido como subjetividade e o absoluto seria “ uma subjetividade única e a idéia absoluta com suas categorias seria um princípio real único do universo, constituindo o univer149

“Ao não distinguir claramente entre povos indo-europeus e semitas, pode-se chegar à seguinte confusão: por um lado, atribuir aos cristãos o descobrimento de que Deus é espírito, sendo que o que os gregos pensaram como nous e noein é o que Hegel entende como espírito; por outro lado, crer que o conceito de “sujeito” tal como o entendeu a modernidade pudesse ter sido compreendido assim pela antiguidade ou pelos povos “orientais” e que não seja uma redução do pensar moderno europeu; e, por fim, que o conceito cristão de criação, em nada conta para Hegel” Dussel, 1974, 101. Assim a história da humanidade iniciaria no Oriente para culminar na Alemanha do Kaiser e de seu intérprete, Hegel. 150 Fenom. § 21. 151 Fenom. § 21. 152 Hegel não emprega os termos tese, antítese e síntese, mas os de afirmação, negação e negação da negação. 153 Apud Dussel, 1974, 101. 154 Filosofia da Religião, apud Dussel, 1974, 101. 155 Ibidem, 102.


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so por um ato do pensar... o verdadeiro é o todo... como resultado final do sujeito enquanto sujeito, em sua necessária liberdade 156 Hegel identifica lógica e ontologia transferindo a dialética do raciocínio ao ser. A negação, vislumbrada por Heráclito, Platão, Plotino, Abelardo, Kant e Fichte transforma-se na dinâmica interna do ser. Integrando o uno e o múltiplo pela negatividade do aufheben (simultaneamente suprimir e conservar) “o negativo é também juntamente positivo. Isto significa que o que se contradiz não é reduzido a zero, a nada abstrato, mas convertese essencialmente na negação de seu conteúdo particular, o que quer dizer que semelhante negação não é uma negação qualquer, mas a negação daquela coisa determinada que se dissolve” (Lógica). A negação, enquanto põe fim, faz acabar, também leva ao acabamento, à superação, à consumação mediatizada pela negação da posição, negação que é superada também como negação da negação. Então o ser se desnuda “imediatamente afirmativo e idêntico a si mesmo”. “O que é racional é real, e o que é real é racional”. Todo pensar é um idealizar, um ideificar que parte do individual e ingênuo e ultrapassa as aparências (ciências empíricas) e atinge a totalidade que relaciona e articula harmoniosamente o uno e o múltiplo do ser. Idealizar é aufheben: negar a concretude, a posição, a finitude, é captar a essência, a realidade mais real da realidade. Admitida a identidade do efetivo (real) e do racional, na concepção hegeliana, a dialética é o movimento pelo qual tal identidade caminha do imediato vazio do ser abstrato para a plenitude mediatizada e concreta da idéia absoluta. Esta passagem do entendimento abstrato para o concreto especulativo realiza-se através da negação do imediato (ser), da essência (Wesen) como reflexão do ser e sua negação, da noção (Begriff) ou conceito especulativo que, como resultado, nega, supera e conserva (aufheben) a oposição do ser e da essência. Assim a dialética hegeliana introduz o movimento e a história no interior do absoluto, media156

Franz Grégoire, apud Dussel, 1974, 102.


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tizando o infinito pelo finito. E nessa mediação dividem-se os herdeiros 157 Em Hegel, portanto a dialética tem dois pontos de partida: ela é uma introdução à filosofia enquanto parte do factum do conhecimento cotidiano até alcançar o absoluto; e ela é o próprio sistema enquanto parte do absoluto e o acompanha em seus desdobramentos até chegar à coincidência do absoluto consigo mesmo. Com efeito: Enquanto movimento do próprio sistema, do ser ou da realidade, cujo resumo está integralmente esboçado na Fenomenologia das Ciências Filosóficas, a dialética é o movimento que se origina no absoluto enquanto indeterminado, como pura negatividade ontológica, enquanto o ser como conceito em si, do qual inicia pela Diremtion ou explicatio da subjetitividade absoluta, cisão que desemboca no finito, no Da-sein e que se transforma no motor do retorno (in-volução ascendente da Rückgang) até a identidade do absoluto como idéia158.

Assim, a dialética pode ser vista como negação ou afirmação: a) A dialética é negação das determinações abstratas, opostas e finitizantes; b) é, positiivamente, superação que ultra-passa as oposições e que, pela supressão, se eleva ao saber unificado do conciliante: saber absoluto como ciência, momento especulativo, o para-si do conceito como vida e subjetividade absoluta plenamente cumprida. A dialética é o movimento real, já que o ser é a coisa ou o objeto enquanto conhecido, e o objeto como conceito plenamente recuperado é o real, e o pensar absoluto é o real e o ser. A dialética é o movimento que arrasta a finitude e a suprime; ao mesmo tempo é a atualidade vital e livre da identidade eterna da idéia que assume unitivamente os contrários em si mesma para si. 157 158

(Zilles, Véritas, n. 160 pg. 699-700) Ibidem.


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A dialética é o movimento imanente do absoluto como subjetividade absoluta, que, no espírito finito no qual se manifesta como consciência, o espírito absoluto, parte do factum da experiência cotidiana e, in-volutivamente, alcança o ser como ponto de partida do sistema. O saber como filosofia descobre, por seu lado, o movimento imanente de Deus mesmo que se desdobra no cosmos e na história da humanidade como momento necessário de sua essência.159 Concordamos com Dussel quando pergunta se não será esta subjetividade absoluta, totalmente imanente, senão a absolutização acabada do “eu penso” de Kant, do “ego cogito” de Descartes elevada à infinitude atual que tudo engloba na absoluta imanência, sem exterioridade? O mais grave não é a identificação da subjetividade com o horizonte ontológico em si mesmo. O mais grave é que tal ontologia diviniza a subjetividade européia conquistadora que vem dominando o mundo desde sua expansão imperial do século XV. “O ser é, e o não-ser não é”. O ser é a razão européia, o não-ser são os outros humanos. A América Latina e toda a “periferia”, fica assim definida como o futuro, como o não-ser, como o irracional, como o bárbaro, o inexistente. A ontologia da identidade da razão e da divindade com o ser acaba por fundar as guerras imperiais de uma Europa dominadora sobre todos os outros povos constituídos como colônias, neo-colônias, “dependentes” em todos os níveis de seu ser 160. A ingênua ontologia hegeliana termina por ser a sábia fundamentação do genocídio dos índios, dos africanos e asiáticos. A subjetividade do ego cogito se transforma assim na “vontade de poder”, em tudo quanto essa subjetividade divinizada pretenda, em nome de sua incondicionada razão.161

159

Dussel, 1974: 114. Inclua-se nisso a guerra perpetrada contra os povos do Oriente Médio, com motivos mentirosos e imorais, para encobrir o esbulhoda riqueza do petróleo neste início do 3º milênio... 161 Ibidem. 160


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Na verdade, a Aufhebung, alma da dialética, necessita ser melhor compreendida para que possamos dar conta do conhecimento, da ética, da política, para que possamos dar espaço à experiência fundamental da alteridade que, enquanto clamor e rosto das vítimas do sistema, põe em tratamento crítico o proprio sistema. E o Orçamento Participativo, se engolfado nas autodeterminações da subjetividade absoluta, não permitirá a participação e a democracia, para ser apenas a auto-produção do sistema por si mesmo e para si mesmo. É preciso, pois, superar a dialética. III. A SUPERAÇÃO DA DIALÉTICA A CAMINHO DA ANALÉTICA De novo F. G. Schelling (1775-1854) Se a modernidade tem em Descartes um começo radical, em Kant sua primeira e acabada formulação, terá em Hegel seu acabamento como sistema totalizante. Nele “o nascimento da filosofia tem como ponto de partida a experiência...(e) consiste em elevar-se sobre a consciência natural, sensível e raciocinante, até aquilo que ela é em si mesma, sem mescla”162. A filosofia é uma in-volução ao interior da própria consciência e, ontologicamente, é na mais íntima interioridade da subjetividade absoluta onde começa o movimento do sistema, pelo qual o espírito se liberta em etapas: desde o mundo dado e pressuposto, desde o engendrar o mundo como posto pelo espírito, até a libertação do espírito, do mundo e no mundo. O espírito finito, como manifestação limitada do espírito absoluto, apresenta-se como aquele que, desde si (er-zeugen) engendra o mundo e o põe desde si 163. Na consciência, na interioridade da subjetividade, o pensar é o ser, a objetividade do objeto é

162 163

Apud Dussel, 1974: 115. Apud Dussel, 1974: 116.


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posto como determinação finita pela subjetividade absoluta, incondicionado do próprio ser164 Schelling, porém, que influenciara Hegel quanto à identidade de ser e pensar, inicia, logo após a morte deste, o desmon te da ontologia como subjetividade absoluta. Mostra que Hegel reduziu a realidade, a positividade do ser à possibilidade, à racionalidade enquanto logicidade, cujo sistema é construído como sistema e resultado coincidente do pensamento consigo próprio. Mostra como ele reduziu o conteúdo ao método e à necessidade do método. É preciso, porém, conhecer o ser em ato, não apenas em potência, em essência. A existência não é um momento apenas da essência, sua explicatio, mas se impõe desde si, de fora, à consciência. Insistindo sobre a história dos povos a partir de seus mitos e desde a revelação, Schelling mostra que acima da coincidência do ser como idéia absoluta e pensar, está o Senhor do ser. E o Senhor do ser só pode ser pensado como pessoa. E que a fé, enquanto conhecimento, é um acolher a realidade que vem desde o Senhor do ser. A razão não é o conhecimento supremo, um conhecimento do absoluto e sobre o absoluto. A fé é um conhecimento maior. Nosso conhecimento é sempre impefeito, um conhecer pelo futuro, um adivinhar. Só a liberdade eterna, como sujeito absoluto se conhece a si mesma e aos outros. Nosso conhecimento é apenas um saber de e não um saber-se. “O homem, finitude cognitiva, somente tem “o saber”, mas não o saber-se da liberdade eterna consigo mesma” 165 Schelling inaugura, mas não como o interpreta Lukács, um irracionalismo, isto é, uma superação do racionalismo da subjetividade moderna. Critica Descartes para quem todo outro ser, que não idêntico ao pensar, é somente reconhecido no pensar como ser objetual enquanto sabido, desvalorizando a existência

164 165

Ibidem. Ibidem 119.


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real e, especificamente, a do mundo corporal 166. E se Descartes identificou ser e razão, Spinoza confunde o ser infinito com seu conceito e este com a substância única, necessária, sem liberdade. Pelo contrário, “a causa originária é livre...em relação a si mesma e, por isso, também é libertador de todos os outros” entes167. Hegel, ao identificar ser, razão e Deus chega a um “resultado lógico”: “Deus não é outra coisa senão o movimento do conceito” trinitário: Deus, o Pai, antes da criação, é o puro conceito lógico, que se identifica com a pura categoria de ser. Esse Deus deve manifestar-se, porque sua essência inclui esse processo necessário; esta revelação ou alienação (Offenbarung oder Entäusserung) de si mesmo no mundo é Deus, o Filho. Deus, porém, deve negar (aufheben) ou retroceder sobre si essa alienação: é negação de seu puro ser lógico; negação que se cumpre por meio da humanidade na arte, na religião e acabadamente na filosofia; este espírito humano é igualmente o Espírito Santo, pelo qual Deus consegue pela primeira vez consciência de si mesmo...Em grande medida essa visão chegou a ser monstruosa. 168

Essa visão do ser identificada com o conceito, puramente negativa e tautológica de Hegel, deve ser superada por um positividade, por um apriorismo do empírico onde o prius se prova pelo posterius. Assim, Deus criador pode ser mostrado por sua revelação, como objeto real supra-sensível, como mistério. A experiência não se reduz ao sensível, nem à mera subjetividade da consciência. Pelas religiões reais, mitológicas ou reveladas, o homem pode experienciar o divino. A filosofia pode mostrar as condições de possibilidade da revelação da liberdade que transcende a razão. Será a posteriori, para além da ciência da razão ou da ontologia. A fé é caminho para o homem abrir-se à liberdade infinita do outro. Escapismo teologizante em apoio ao status quo, como acusará a esquerda hegeliana? Real superação da sacralização da 166

Apud Dussel, 1974: 120. Werke V,306, apud Dussel, 1974: 120. 168 Para uma História da Filosofia Moderna, 196, apud Dussel, 1974: 121. 167


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totalidade européia, incluindo a da burocracia neo-imperial russa? Em todo caso Schelling “mostra que, para além do ser ontológico, acontece a exterioridade real que se experimenta por sua manifestação mitológica ou, propriamente, como revelação positiva”169. Inicia a superação dos dogmatismos da racionalidade fechada que fundava uma ontologia da sabedoria como contemplação teórica, para buscar uma verdade para a ação.

L. Feuerbach (1804-1872). A exterioridade antropológica. A exterioridade não é apenas teológica (como em Schelling), e nem é teológica, mas é antropológica e sensível (contra Descartes e Hegel). A filosofia não emerge apenas das filosofias anteriores, da história da filosofia e seus problemas, mas emerge do não filosófico, das exigências reais da humanidade, das necessidades reais dos homens, não para negar a cotidianidade sensível mas para internar-se nela. Deve passar do reino das almas separadas, da beatitude do pensar divino sem necessidades, para o reino das almas encarnadas, para a miséria humana. É preciso transformar a teologia em antropologia. A identidade do ser e do pensar acaba divinizando o cogito. Tanto o teísmo que representa Deus como um ser pessoal existindo fora da razão, como o ateísmo que diviniza a matéria, devem ser superados praticamente pela ação. Será um um ateísmo prático. Não basta ter a realidade na cabeça (para mim), é preciso tê-la na mão (para o outro). “Provar que algo é, significa que não é apenas pensado”170. O pensar só atinge a estrutura inteligível mas não constata a existência que é objeto da intuição sensível. O real, em sua 169 170

Dussel, 1974: 127. Fundamentos para uma Filosofia do Futuro, § 25 apud Dussel, 1974: 134.


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realidade é objeto dos sentidos: verdade, realidade e sensibilidade são o mesmo. É pelos sentidos que nos abrimos ao âmbito do outro, para a exterioridade do real. A realidade sensível privilegiada, objeto dos sentidos é o próprio homem: só o humano é o verdadeiro e o real.171 E o humano não é apenas especulação, mas sensibilidade, afetividade, amor, corporalidade “com cabeça e coração”172. Não o homem para si mesmo em sua solidão, finitude e limitação, mas para o outro porque “a comunidade é liberdade e infinitude”173 E “a verdadeira dialética não é um monólogo do pensador solitário consigo mesmo, mas um diálogo entre eu e tu”174. Sou um homem com homem (Mensch mit Mensch)175. O lugar da verdade é o rosto do outro homem, que tem sangue e fome, para além do sistema onde o ser é o pensar. Ponto de partida e de chegada da dialética. Resta ainda perguntar se essa comunidade de homens, tem, ela própria, exterioridade, ou se permanece ainda na comunidade da ontologia da modernidade176. Karl Marx (1818-1883) Desde o início de sua atividade filosófica, Marx insere-se na maior disputa espiritual de seu tempo, determinada pela vultosa figura de Hegel, cujo pensamento ele chama de "a filosofia atual do mundo". Inicialmente, Marx dedica-se a Hegel com paixão para, depois, distanciar-se dele com tanto ou maior aspereza. Sua crítica inicia-se pela concepção da história de Hegel. Para Hegel, a história não é uma mera seqüência casual de acon171

Ibidem, § 50.

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Ibidem, § 57. Mais tarde S. Freud levantará a idéia de que a sensibilidade (a libido) será a origem e o sentido da vida. A religião como construção da civilização para garantir (assegurar) o homem contra a implacabilidade da natureza (especialmente da morte) e contra a impossibilidade da convivência. Um absurdum que requer ser crido contra a razão. Uma benéfica ilusão da humanidade? 173 Ibidem, § 60. 174 Ibidem, § 62. 175 Ibidem, § 61. 176 A exemplo do “comunitarismo” de hoje?


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tecimentos, mas um suceder racional que se desenvolve segundo um princípio imanente, ou seja, uma dialética interna. O decisivo nisso é que o verdadeiro sujeito da história não são os homens. Na história antes dominaria um espírito que tudo abrange, que ele designa como "espírito do mundo" ou "espírito absoluto" ou mesmo" Deus". Esse, o Deus que vem-a-ser, realiza no curso da história sua autoconsciência. Ele chega, por meio dos diferentes momentos do processo histórico, a si mesmo. Hegel era da opinião de que em seu tempo e em seu próprio sistema o espírito absoluto teria, após todos seus descaminhos através da história, finalmente alcançado seu objetivo: a perfeita auto-consciência. "O espírito universal chegou ora até aqui. A última filosofia é o resultado de todas as anteriores; nada está perdido, todos os princípios foram preservados. Esta idéia concreta é o resultado dos esforços do espírito por quase 2500 anos, seu fervoroso trabalho, de reconhecer-se." 177 Portanto, após o surgimento da filosofia hegeliana, não poderia haver mais nada realmente inconcebível. Tudo é racional. Esse é o sentido da conhecida frase do Prefácio à Filosofia do Direito: "O que é racional é real; e o que é real é racional." 178 Razão e realidade chegaram portanto, segundo Hegel, finalmente à adequação uma com a outra; elas foram verdadeiramente conciliadas. O espírito absoluto compreendeu a si mesmo como a realidade total e a realidade total como sua própria manifestação. Aqui entra o protesto de Marx. Aquele pensamento de Hegel, de que a realidade toda tinha de ser entendida a partir de um espírito absoluto, consiste para ele em um injustificado "misticismo". Pois assim se filosofa a partir de um ponto acima da realidade factual, não a partir dessa mesma realidade. Em oposição a isso a decidida exigência de Marx – de colocar a filosofia (ora de cabeça para baixo), de volta sobre os pés – é que a visão da realidade deveria ser invertida. A realidade deste mundo não deve ser explicada com base em uma realidade divina. Contrariamen177

O 18 Brumário de Napoleão Bonaparte, in: Durant, Will, História da Filosofia – A Vida e as Idéias dos Grandes Filósofos. São Paulo: Editora Nacional, 1 ª edição, 1926, pg 326. 178 Filosofia do Direito, pg. 35.


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te, o ponto de partida do pensamento deve ser a realidade concreta. Quando Hegel afirma que a realidade estaria conciliada com a razão, ele não poderia, segundo Marx, ter em vista a realidade concreta. Em Hegel, tudo se passa no âmbito do mero pensamento. Mesmo a realidade sobre a qual ele fala, é a mera realidade pensada. Para Marx, porém, a realidade factual mostra-se contraditória, inconcebível e portanto não conciliada com a razão. Todo o empenho filosófico de Hegel fracassa porque ele não é capaz de incluir essa realidade efetiva em seu pensar, por mais abrangente que esse seja. "O mundo, porém, é um mundo dilacerado, que se opõe a uma filosofia fechada em sua própria totalidade." 179 A realidade concreta é a realidade do homem. "As pressuposições com as quais iniciamos são os indivíduos reais." 180 A filosofia como Marx a postula – em contraposição a Hegel e em concordância com Feuerbach – é uma filosofia da existência humana. "A raiz do homem é o próprio homem."181 Marx denomina sua filosofia por isso mesmo de "humanismo real". O real primeiro e originário para o homem é o próprio homem. É dele, portanto, que o novo pensar também tem de partir. Mas o que é o homem? O significativo aqui é que Marx não considera o homem, como o faz Hegel, essencialmente a partir de sua faculdade de conhecer. Nem a partir da sensibilidade como o faz Feuerbach. Ao contrário, trata-se decisivamente da práxis humana, da ação concreta. "É na práxis que o homem comprova a verdade, isto é, a realidade, o poder e a mundanidade de seu pensamento... Parte-se do homem real que age." 182 É da essência da práxis humana, que ela se realize na relação do homem com o outro homem. Marx ressalta com toda clareza: o homem vive desde sempre em uma sociedade que o supera. "O indivíduo é o ser social...O homem, isto é o mundo do 179

Durant, pg. 323. Durant, pg. 326. 181 Ibidem, pg. 328. 182 II Tese Contra Feuerbach, in Os Pensadores, pg. 52. 180


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homem: Estado, sociedade."183 Essa natureza social constitui para Marx o ponto de partida para toda reflexão subseqüente. Assim deve-se entender a muito discutida frase: "Não é a consciência do homem que determina seu ser, mas é seu ser social que determina sua consciência."184 O conhecimento da realidade é “determinado” pela realidade e não vice-versa como queria Hegel. A nenhum dos filósofos pós-hegelianos “ocorreu sequer perguntar pelo entroncamento (vinculação) da filosofia alemã com a realidade da Alemanha, pela vinculação de sua crítica com o próprio mundo material que a rodeia”185 O conhecimento é condicionado pelas condições reais de vida. Não é o mesmo viver e trabalhar no campo e viver e trabalhar na cidade, como patrão, arrendatário ou peão, como detentor do capital, empresário ou obreiro, como conquistador ou conquistado, como homem ou mulher. E a produção de idéias e representações da consciência aparecem, em princípio, entrelaçadas com a atividade material, e com o comércio material dos homens, como linguagem da vida real... Não é a consciência que determina a vida, mas a vida que determina a consciência 186. O mundo cotidiano, com suas estruturas concretas condiciona o pensar teórico. A filosofia cumpre seu papel quando traz à luz o cotidiano vigente, mas deforma-se quando se aprisiona à compreensão do grupo, classe ou povo onde nasce. Transforma-se em ideologia187. O real está fora da mente e esta reproduz a realidade, re-presenta sem identificar-se com ela e sem ser dela um a priori. A realidade, a materialidade condiciona o pensamento. A materialidade consiste na possibilidade de ser trabalhada, a ma183

Durant, pg. 328. Ideologia Alemã, pg. 35. 185 Feuerbach II, apud Dussel, 1974: 142. 186 Ideologia Alemã, 22. 187 Ideologia como falsa consciência, como deformação, como defesa dos interesses e privilégios de grupo e de classe e não como expressão da verdade real das relações sociais que ocorrem. 184


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nuseabilidade, a “pragmidade”, a utilidade da realidade: a economicidade da realidade, podendo ser transformada em arma, alimento, casa, vestuário...e não apenas enquanto objeto de conhecimento. A realidade se apresenta em forma de categorias para o espírito pragmático: economia, política, arte, religião. O fundamento último da realidade é o trabalho. Ele é (como diria Adam Smith) a origem de todo o econômico, o horizonte ontológico de compreensão da ciência econômica. A categoria mais simples, o fundamento de todo o que é produzido. O trabalho é categoria e realidade configurante da realidade. Dele deriva a totalidade concreta e histórica. O fundamento, o ser, é o trabalhar (a laboriosidade). Dessa unidade simples, por diferenciação, por divisão do trabalho, acontece a história como a dialética da luta de classes entre o senhor e o alienado de seu trabalho. O trabalho, como categoria primitiva e indeterminada que identifica o homem com a natureza enquanto nela ele produz e reproduz sua vida, configura depois: o proprietário do trabalho dos outros e o alienado da determinação de seu trabalho, através do mecanismo da mais valia e do plus-trabalho. É no trabalho e pelo trabalho que os homens se relacionam socialmente. São relações econômicas. A auto-alienação do homem tem sua raiz na alienação do trabalhador do produto de seu trabalho: este produto não pertence ao trabalhador para seu usufruto, mas ao empregador que acumula a mais valia do trabalho alheio. O produto do trabalho torna-se uma "mercadoria", isto é, uma coisa estranha ou alheia ao trabalhador, que o coloca em posição de dependência, porque ele precisa comprá-la para poder subsistir. "O objeto que o trabalho produz, seu produto, apresenta-se a ele como uma essência estranha, como um poder independente do produtor."188 Da mesma forma também o trabalho se torna "trabalho alienado": não como exigência de sua autoconservação; o trabalho torna-se, em sentido próprio, "trabalho 188

Manuscritos III, in Os Pensadores, pg. 5.


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forçado". Esse desenvolvimento atinge sua culminância no capitalismo da sociedade burguesa, no qual o capital assume a função de um poder separado dos homens. A sociedade burguesa é a culminância da dialética de trabalho alheio acumulado (capital) e de trabalho heterodeterminado e alienado. Para Marx, a totalidade é a sociedade burguesa “a mais completa e desenvolvida organização histórica da produção... que permite compreender a organização e as relações de produção de todas as formas de sociedades passadas, sobre cujas ruínas e elementos ela foi edificada e cujos vestígios, embora não superados, continúa arrastando, ao mesmo tempo em que meros indícios prévios desenvolveram nela sua plena significação”189.

Como se vê, a totalidade burguesa tende a ser o horizonte único de interpretação da história. Marx pretendeu uma dialética rigorosa não apenas do pensamento, mas da práxis, apta a anular todas as alienações ideológicas (um materialismo histórico) que invertesse a dialética hegeliana (um pensar de cabeça para baixo), e que não fosse apenas um pensamento que pensa misticamente a realidade e que não permite transformá-la. Não é por meio da consciência comum que o homem se constitui como sociedade, mas por meio do trabalho comum. É pelo trabalho que o homem produz e reproduz a existência humana. Pois o homem é originariamente um ser econômico. As relações econômicas e particularmente as forças produtivas a elas subjacentes são a base (ou a "infra-estrutura") de sua existência.190 189

Ideologia Alemã, 253. A ideologia, a consciência que o homem tem de si e, porque alienado em seu trabalho, é consciência alienada, falsificada das relações de poder que o homem tem na sociedade, ela, ao mesmo tempo encobre e traduz as relações existentes; diz e esconde as relações para que elas possam se reproduzir enquanto relações de alienação. No entanto, a ideologia é o senso comum de uma sociedade em 190


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Apenas na medida em que essas relações econômicas se modificam, também se modificam os modos da consciência, que representam a "superestrutura ideológica". Desta superestrutura fazem parte o Estado, as leis, as idéias, a moral, a arte, a religião... Na base econômica reencontram-se também aquelas leis do desenvolvimento histórico, como as que Hegel atribuiu ao espírito. As relações econômicas desdobram-se de modo dialético, como oposição de interesses econômicos, mais precisamente, no conflito de classes. Por isso, para Marx, a história é principalmente a história das lutas de classe. 191 Para Hegel, o real é o pensar e o pensado; para Schelling, indo além da ontologia da identidade do ser e do pensar, o real é o revelado; para Feuerbach o real se abre para o âmbito da sensibilidade, da afetividade, da relação eu-tu, homem-homem; para Marx o real é o produzido, o trabalhado, e a relação eu-tu é a relação de senhor (possuidor do capital) e explorado (vendedor expoliado do trabalho) num determinado modo de produção 192. A realidade é o produto do trabalho, o horizonte de interpretação é a laboriosidade. A realidade não é objeto de contemplação (em qualquer sentido: idéia absoluta, o deus que se revela, o rosto sensível do outro) mas de transformação e produção. “Os Filósofos limitaram-se a interpretar (interpretiert) o mundo de distintos modos; trata-se de transformá-lo (verändern)”193. A realidade é a dos objetos de cultura, ou econômicos. O trabalho confere aos objetos da natureza, um valor ( coágulo cristalizado do trabalho abstrato). A alienação do produto do trabalho conduz a uma "alienação do homem" em todas as suas dimensões. Isso não vale determinado modo de produção e, como tal, reúne, integra, e dá sentido as rela ções sociais, sem ultrapassar o momento. A consciência, porém, perfura a ideologia em busca de sua ultrapassagem onde o homem não apareça apenas como “alienus” e sim como “alterus”, no dizer de P. Ricoeur. O homem como outri dade. 191 Manifesto do Partido Comunista, início. 192 Isto clama por sua superação na direção da co-laboração, da solidariedade. 193 Manuscritos III, § 11, apud Dussel, 1974: 140.


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apenas para a "luta de inimigos: entre capitalista e trabalhador". O controle das relações interpessoais nas mãos de poucos, levam a um crescente desemprego e empobrecimento das massas. Com isso, porém, o capital torna-se seu próprio coveiro. Pois a essa concentração de capital devem seguir-se, - com necessidade histórica, cientificamente reconhecida e dialética –, a subversão e a revolução. A missão dessa revolução é "transformar o homem em homem", para que o homem seja o ser supremo para o homem. Trata-se de derrubar todas as relações em que o homem é um ser degradado, escravizado, abandonado e desprezado. Importa realizar o verdadeiro reino da liberdade, desenfronhar o homem em toda a riqueza de sua essência e, com isso, superar definitivamente a alienação. Marx considera tudo isso tarefa do movimento comunista. É chegado o tempo do comunismo como superação positiva da propriedade privada. A propriedade privada é auto-alienação do homem e por isso é apropriação real da essência humana por meio de e para o homem; por isso, o comunismo será o regresso – perfeito, consciente e dentro da riqueza total do desenvolvimento até aqui –, do homem para si mesmo enquanto homem social, ou seja, humano. Esse comunismo é a verdadeira dissolução do antagonismo entre o homem e a natureza e entre o homem e o homem. A verdadeira solução do conflito entre liberdade e necessidade. Ele é o enigma decifrado da história, a verdadeira realização da essência do homem. Com o comunismo, "encerra-se a pré-história da sociedade humana" e inicia-se a sociedade "realmente humana". Como essa sociedade comunista deva ser, porém, Marx não nos dá informação bastante. Engels, companheiro de Marx procura simplificar a dialética (a ciência das conexões) em três leis fundamentais: a passagem da quantidade à qualidade e v.v.; a interpenetração dos contrários; e a negação da negação. E o materialismo dialético determinará o materialismo histórico. Assim, o biológico é determinado pelo físico, o psicológico pelo biológico e o histórico pelo econômico. Esse materialismo histórico, essa dialética da


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natureza não permite que se compreenda, porém, como a matéria se realize enquanto sujeito, dirá Marcuse. 194 A utopia, porém, que permite ver e analisar as contradições do real histórico, como adivinhação e como síntese final, não é produzida pela contradição. Não resulta de um ou da soma dos opostos, como veremos. A genial e contundente crítica que Marx empreendeu ao capitalismo da sociedade burguesa, às causas da alienação do homem como exploração econômica, à necessidade de um pensar práxico contra o misticismo ideológico de Hegel, não o tirou, contudo, do contexto da Modernidade européia. Neste contexto, onde a única história da humanidade culmina na contemporaneidade da sociedade burguesa, que em suas contradições será destruída e superada sem sair de si mesma e, engolfando todos os povos em si mesma, será o sistema fechado e acabado onde não há alteridade. Para os outros povos só há um caminho: inserir-se na história européia. A crítica é sagaz e radical, a utopia insuficiente, porque a Europa é insuficiente até para si mesma. O mesmo se diga de Sören Kierkegaard (1813-1855) que em sua teoria dos três estádios (estético, ético, religioso) mostra o hilário-trágico da pretensão do sistema fechado de Hegel. “Não queremos ser injustos e chamar a esta perspectiva objetiva de divinização de si mesmo ateu e panteísta, mas, antes olhálo como uma incursão ao cômico”195. O pensamento da especulação da modernidade européia “pareceria ter realizado um passe de mágica e ido além do cristianismo, quando na verdade voltou ao paganismo” 196... absolutizando as comunidades históricas cristãs transformadas em cristandades, mostrando que “a filosofia grega, pelo menos possuia a

194

Ser homem não é apenas pensar ou fazer como o querem Hegel e Marx, mas implica e é um agir que implica em si mesmo o pensar e o fazer. Assim a dialé tica não é apenas uma ideologia ou uma técnica e sim uma ética. 195 Pós-scriptum às migalhas filosóficas, 82, apud Dussel, 1974: 149. 196 Ibidem, 243.


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seguinte vantagem: nunca foi cômica” 197. E tinha um sentido de modéstia. A modernidade, deformada pelo mau hábito de tudo querer contemplar e não agir, interpretando a si mesma como figura histórica universal, reduzindo tudo à identidade de ser e pensar, vive apenas no estágio estético. Quando o supera, vive o estágio ético, interpretando a existência como conformidade a uma norma moral universal objetiva. O telos ontológico do universal é seu horizonte. Passa, então do pathos poético ao pathos trágico onde o homem deve escolher seu dever sem liberdade, por necessidade. A tarefa da ética consiste em que o indivíduo se despoje de seu caráter individual para alçar-se à generalidade. Se ele reivindicar sua individualidade frente ao geral, peca, e somente pode reconciliar-se com o geral reconhecendo-o198. É semelhante à sensibilidade em Feuerbach, à economia política de Marx. Âmbito da imediatez, da não contradição, da felicidade. É preciso superar o pathos trágico (que combate para assegurar-se no geral e universal) para ganhar-se como Dasein, (ser-aí) existência simplesmente “do pobre homem individual existente”199. E não como existência pensada, mas como experiência existencial da individualidade do Outro, Deus. Uma relação absoluta com o absoluto, acima de toda mediação (que sempre acontece em virtude do geral), acima do especulativo, o paradoxo (contra toda opinião) da fé. Paixão infinita “o objeto da fé é, então, a realidade de Deus como existência, como indivíduo” 200 e não como idéia, princípio ou norma. É somente enquanto desespera das seguranças enganosas da totalidade objetual especulativa que o homem pode abrirse à escolha do bem ou do mal, entre passividade e ação, entre verdade e mentira. E quando o homem, ultrapassando a totalidade, viver o paradoxo da fé, ele peca ou entra em crise (angústia). 197

Ibidem, 237. Temor e tremor. 60. 199 Pós-scriptum, 125. 200 Ibidem. 198


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Olhado desde a totalidade especulativa ou ética, Abraão é um assassino201 e não o pai dos que têm fé, como queria Hegel. Kierkegaard abre a totalidade européia ao Outro. Esse outro não é o homem, nem a comunidade dos homens, mas Deus. Acima da realidade ontológica coloca a meta-física da existência individual. Escapismo apenas? Ou denúncia daqueles que, por segurança e tranqüilidade, preferem a totalidade da idéia ou do social? Desde Hegel, o movimento dialético que parte sempre do factum, do cotidiano (desde Aristóteles) busca outra direção que não a in-volução para a consciência ou subjetividade. A dialética ensaia passos para a transcendência do ser que se im-põe e que não se reduz a ser fundamento posto pelo sujeito. Não mais a tradição dialética in-volutiva do Cogito ergo sum (Descartes), do Ich denke (Kant), do Absoluto como Subjekt (Fichte ou Hegel)ou como Arbeit (trabalho: Marx), como Vontade de Poder (Nietzsche) ou Vontade de viver (Schopenhauer), ou como subjetividade pura fenomenológica (Husserl), mas a da experiência do ser que se desvela, da transcendência, da coisa real ou do outro. As coisas reais guardam sempre uma exterioridade in-compreensível para o homem, irredutíveis ao pensar e ao querer. A irredutibilidade do ser ao pensar, poderia ser acompanhada depois especialmente através dos mestres da suspeita entre os quais, além de Marx, poderíamos incluir também: Husserl, Heidegger, Sartre , Zubiri e Lévinas. 202 Indicativamente, lembremos apenas de Levinas. E. Levinas (1906) Se as coisas naturais (res naturalis) são sempre exteriores ao homem, muito mais o histórico e humano (res eventualis) é exterior ao homem. 201 202

Lembremos que Abraão pretendia sacrificar seu próprio filho a Deus. Cf. a boa síntese de E. Dussel, 1974 ps-155-170.


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Em sua obra fundamental Totalité et infini203 opõe, desde logo, a Ontologia de Hegel e Heidegger, à metafísica inspirada no criacionismo semita. Na ontologia que é uma totalidade totalizada, o absoluto, o mundo, engloba o outro como parte de si mesma. Não assim, no criacionismo semita. Muito embora o “existencial” ser-com, de Heidegger204, seja concomitante a ser-no-mundo, a compreensão do outro já é dada na compreensão do mundo e do ser. Não há transcendência ao horizonte do mundo na tradição filosófica ocidental do ser como “o visto”, e a compreensão como desvelamento: segue primando o sentido grego de ser – o ser como o visto (idéia vem do verbo idein: ver); o visto é o compreendido (noein) e o definido (lógos), o permanente ou eterno (aídion) e divino. Hegel imanentiza na subjetividade esse sentido de ser; o próprio Heidegger o reduz à compreensão da totalidade, ao mundo 205. Mas se “a relação com o outro não se produz fora do mundo, põe em questão o mundo possuído”206. E “o ético, para além da visão e da certeza, designa a estrutura da exterioridade. A moral não é um ramo (aspecto, capítulo) da filosofia, é a filosofia primeira” 207 Em Hegel, “o mesmo se identifica pela simples oposição ao outro, constituindo já como parte, uma totalidade englobante do mesmo e do outro”208. Pelo contrário, porém, o outro é absolutamente outro. Ele não faz parte, como um número de uma totalidade, de mim. A coletividade em que digo tu ou nós não é um plural de eu. Eu, tu não são indivíduos de um conceito comum. Nem a posse, nem a unidade numeral , nem a unidade do conceito me remetem ao outro. A ausência de pátria comum faz do outro: o estrangeiro; o estrangeiro que desordena (desarruma, per203

Totalité et infini. Essai sur léxtériorité, La Haye 1968. Seguimos a tradução Totalidad e infinito – Ensayo sobre la exterioridad. Salamanca: Sigueme – 1977. 204 Cf. Ser e Tempo... 205 Dussel, 1974: 171. 206 Totalidad: 191. 207 Ibidem: 281. 208 Ibidem: 62


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turba) o estar comodamente em nossa casa (chez soi, ou Beisichsein). Mas o estrangeiro quer dizer também o livre. Não tenho poder sobre ele209.

O outro metafísico é outro como alteridade que não é apenas formal, feita de reverso e de resistência ao mesmo, mas é anterior ao mesmo. E a relação do mesmo e do outro é a linguagem. A linguagem leva a cabo, efetivamente, uma relação de tal sorte que os termos não são limítrofes nessa relação, que o Outro, apesar da relação com o Mesmo, permanece transcendente ao Mesmo... Nela o mesmo como um “eu” sai de si 210 A linguagem, a palavra, o discurso surge do outro, desde sua exterioridade jamais englobada numa totalidade por mim, e ex-pressa, desde o além de seu rosto, seu próprio ser que já não pode ser “visto” mas ouvido211 O que ouço é exterior a meu mundo, a meu horizonte, irrompe em meu mundo exigindo justiça. O horizonte, sempre visual desde Husserl, relaciona os entes ao ser. O ser domina os entes. Alguém (numa relação ética), enquanto ente, pode ser captado, dominado, vinculado, explicado desde o ser. A justiça, na ontologia de Heidegger, fica subordinada à liberdade: “liberdade (como) um manter-se contra o Outro apesar da relação com o Outro, assegurar a autarquia do eu” 212 “A liberdade se oporia à justiça que comporta obrigações com respeito a um ente que se nega a (dar-se) entregar-se” 213. Mas a relação do homem com o outro homem é uma relação face-a-face (cara a cara) e esta, vai muito além da visão, pois que “a verdadeira essência do homem se apresenta no rosto, no qual ele é infinitamente outro” 214 A palavra se nega à visão, porque aquele que fala não manifesta desde si senão imagens, mas está pessoalmente 209

Ibidem, 63. Ibidem, 63. 211 Dussel, 1974: 172 212 Totalidad, 70. 213 Totalidad, 69 214 Ibidem, 288. 210


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presente em sua palavra, absolutamente exterior a toda imagem que ele manifesta. Na linguagem a exterioridade se exerce, se desdobra, se efetua... O desdobramento da exterioridade, inadequada à visão que ainda a mede, constitui precisamente a dimensão própria de sua altura ou a divindade da exterioridade. A divindade guarda distância215

A relação do ver e do visto é uma relação neutra, impessoal, de domínio (englobando o visto em meu mundo), de violênica, enquanto uma relação de justiça “consiste em tornar novamente possível a ex-pressão, na qual, sem reciprocidade, a pessoa se apresenta como única”216 O outro que se levanta por trás do horizonte de meu mundo, como livre e exigindo justiça, instaura uma história imprevisível. Sua exterioridade é insuperável, infranqueável. O outro como mistério é o para onde, o mais além de meu mundo que o movimento dialético não pretenderá, nem conseguirá compreender como totalidade totalizada, jamais alcançada. Processo infindável de um movimento histórico que se abre para ouvir a palavra do outro desde a exterioridade insondável. “ A exterioridade do discurso não se converte em interioridade... em intimidade. Ele será sempre de fora. A relação entre os seres separados jamais se totaliza, relação sem relação, que ninguém pode englobar nem tematizar”217 A exterioridade do outro irrompe como algo realmente novo, na mesmidade do mundo ou da totalidade. Não é como na reminiscência de Platão ou no sistema absoluto de Hegel onde tudo já está dado, previsível, mesmo quando derive, provenha, emane da unidade e retorne à unidade. A perspectiva criacionista judeu-cristã, desde a criação ex nihilo, mostra os entes como emancipados, verdadeiramente outros, e, embora parentes entre si, mostram sua heterogeneidade radical, sua recíproca exterioridade a partir do nada. 215

Ibidem, 300-301. Como pessoa, diria C. Fabro. “Para o grego o ser é o “visto”, para o ju deu-cristão é “ser-pessoa”, para o moderno “subjetividade”. Dussel, 1974: 173. 217 Ibidem, 300. 216


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“No cara a cara o eu não tem posição privilegiada de sujeito nem a de uma coisa privilegiada pela posição que ocupa no sistema... O eu não forma jamais uma totalidade... Mas um princípio perfura toda essa vertigen (da anárquica transcendência) e todo esse tremor, quando um rosto se apresenta e reclama justiça”218

Em Lévinas, a dialética como movimento na direção do outro, não apenas parte da ética. É a própria ética da qual todo pensamento e toda a ação inicia e na qual culmina como um telos de desejo e de justiça. Nunca, um pensamento se fez tão necessário e urgente, para pensar o mundo globalizado e sua ética do egoísmo e da não compaixão. E o Orçamento Participativo, veremos, encontra aqui sua possibilidade meta-física e ética. EM SÍNTESE - O método dialético da ontologia da identidade (de ser e pensar, do conceito em si e para si) pensa e inclui o outro sem transcendência ao sistema.

- Para além do ontológico há um momento antropológico de revelação do outro, inclusive como condição de interpretação da revelação teológica: com uma dialética pedagógica da libertação, uma ética antropológica e uma meta-física histórica; - Schelling: para além da ontologia da identidade ou do pensar essencial (de Hegel e Heidegger), há a positividade do impensável. A representação só pensa a possibilidade (a impossibilidade da contradição: filosofia negativa) e não dá a existência ao objeto pensado. A existência é um prius ao pensar; -

Feuerbach: Se o ser é o pensar, o pensar absoluto é idéia, e esta é deus. Então, para recuperar a existência, é preciso negar 218

Ibidem, 297-298.


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esse deus, humanizar deus, resolver a teologia em antropologia. O ateísmo do deus da totalidade hegeliana é condição de possibilidade da afirmação do Deus criador. Negar o homem como razão é passar da possibilidade à existência, redescobrindo o homem como sensível, corporal, carne, negado desde Descartes. Verdade, realidade e sensibilidade são idênticos. O supremamente real para o homem é o outro homem: comunidade eu-tu. O tu sensível é exterioridade da razão, existência real;

- Marx: Além da razão e da sensibilidade, o real é o produzido, como ação, como práxis humana. A antropologia de Feuerbach se transforma em antropologia cultural. A totalidade não é a humanidade sensível mas a cultura universal (leia-se européia); -

Kierkegaard: a identidade de ser e pensar hegeliana, é um sistema fechado em que o homem como parte de um todo fica perdido, na ilusão estética. A conversão ética para o dever-ser, deixa o homem ainda enclausurado no drama exigente da subjetividade: cumprir o dever pelo dever, por honra de si próprio. A fé existencial permite aceder à alteridade, à exterioridade do outro que é Deus, não como pensado e possibilidade, mas como absurdo e incompreensível. A fé supera a totalidade pelo absurdo e paradoxal da religião, acedendo a um Deus concreto, pessoal, individual. - Schelling mostra que, assim concebida, a fé é revelação daquilo que não se pode saber sem revelação. É uma fonte de conhecimento de Deus a que só se chega a posteriori. A fé é o saber melhor fundado: impossível superar seu fundamento. Como em Jaspers: o logos da razão intuitiva ou ex-pressiva é totalitário; o lógos (palavra) revelada, dá lugar à possibilidade do outro na fé. Um outro apenas teológico, não antropológico.

-

Levinas: O rosto do outro, no cara a cara, é sensível (como em Feuerbach), mas sua visibilidade (ainda inteligível) não esgota o outro e nem sequer o indica no que tem de próprio. Este rosto interpela, pro-vocando à justiça (nisto assume Marx enquanto antropologia cultural do trabalho justo). Esta visão atéia da totalidade do mesmo e do visto ex-põe-se ao outro pelo


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désir (desejo como fé), ao homem que se revela pela palavra, com subjetividade e não como manifestação de um ente em meu mundo (com este salto antropológico, Lévinas ultrapassa Feuerbach, Schelling, Kierdegaard e Jaspers). O outro, um homem, é a epifania do outro divino, Deus criador. O outro, homem, (a teologia está condicionada pelo ateísmo prévio da totalidade) fala desde si, sua palavra é um dizer-se. O outro, para além do pensar, da compreensão, da luz, do lógos, para além do fundamento, da identidade é um an-arxos219.

-

O outro, porém, absolutamente outro, é ainda um conceito equívoco e europeu: ele não é o negro, o índio, o asiático, nem o povo pobre oprimido pelas oligarquias na América Latina, da África ou da Ásia. Para pensá-lo, essa dialética é insuficiente. 3.1 A analética: momento e condição da dialética A dialética, enquanto caminho que a totalidade realiza em si mesma, desde os entes para o fundamento e desde o fundamento para os entes, é, apenas, a má dialética, a da totalidade européia dominadora e conquistadora, monógo do eu consigo mesmo. É preciso encontrar a boa dialética, como dizia Feuerbach, que parte do diálogo, da liberdade do outro, uma ana-dialética, ou analética. A analética parte não só do rosto sensível, carnal do outro, do outro antropológico, do outro que realiza um trabalho criador (que engloba o trabalho necessário à produção e reprodução da vida de que fala Marx). A analética é, assim, um processo econômico (põe a natureza a serviço do outro), uma erótica e uma política.220 O outro, que nunca é um só, é também sempre um vós (o espanhol diz: vosotros). No face a face (cara a cara), cada outro é igualmente a epifania de uma família, de uma clas219

Literalmente: in-governável (in-controlável), para além do poder de minhas mãos. Cf. Dussel, 1974: 175-181. 220 Cf. Dussel, 1974: 182 e ss. Seguiremos sua argumentação, passo a passo.


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se, de um povo, de uma época da humanidade, da própria humanidade inteira, e, ainda mais, do outro absoluto 221. O rosto do outro é um aná-logos; ele é a primeira e suprema “palavra”, é o dizer em pessoa, é o gesto significante essencial, é, em ato, o conteúdo de toda significação possível... o rosto do pobre índio dominado, do mestiço oprimido do povo latino americano é o “tema” da filosofia latino-americana... a primeira realmente pós-moderna e superadora da Europa que nem Schelling, nem Feuerbach, nem Marx, nem Levinas puderam transcender. 222

É uma filosofia atéia do deus burguês e que encontra num Deus criador a fonte da própria libertação. O método que parte da cotidianidade ôntica e vai dialeticamente ao fundamento ontológico, retorna depois (segundo momento) de-monstrando apoditicamente (científicamente) os entes a partir do fundamento. Entre os entes há um que é irredutível à de-dução, à de-monstração: o rosto do outro que, em sua visibilidade, permanece trans-ontológico, meta-físico, ético. A passagem da totalidade ontológica ao outro como outro é o momento ana-lético: discurso negativo enquanto pensa a impossibilidade de pensar positivamente o outro desde a totalidade; discurso positivo da totalidade quando pensa a possiblidade de interpretar a revelação do outro desde o outro. Essa revelação do outro, é já um quarto momento (do método), porque a negatividade primeira do outro questionou o nível ontológico que agora é criado a partir de um novo âmbito. O discurso se faz ético e o nível fundamental ontológico aparece como não originário, como aberto a partir do ético, que se revela depois (ordo cognoscendi a posteriori) como o que era antes (o prius da ordo realitatis). Em quinto lugar, o próprio nível ôntico das possibilidades fica julgado e relançado desde um fundamento eticamente estabelecido, e estas possibilidades como práxis analética perfuram a ordem ontológica e são propostas como “serviço” na justiça.223 221

Ibidem. Ibidem: 182-183. 223 Ibidem: 183. 222


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A dialética se faz analética quando deixa de ser apenas teórica como o discurso das ciências ou da ontologia para ser um pensamento intrinsecamente ético. Aceitar o outro como outro e como critério interpretativo do saber, já é uma postura ética, uma escolha, um compromisso moral e que exige negar-se a si próprio como totalidade “afirmar-se como finito, como ateu do fundamento enquanto identidade”224. O filósofo, tal como o profeta Isaías, é um homem eticamente justo, um discípulo : “Manhã após manhã, o Senhor me desperta o ouvido, para que eu escute, como discípulo” 225. Permitir, deixar que o outro seja outro, silenciar a palavra dominadora, pôr-se no deserto, de ouvido atento, para que o pobre nos provoque em seu clamor por justiça, é a atitude originária e fundante do filosofar, da dialética e de todo o conhecer. O método inclui uma opção prática: servir à libertação do oprimido, à inclusão dos excluídos. O saber não é um contemplar, um ver, um texto escrito, mas um ouvir que só acontece na e como ação libertadora. Um saber inter-pretar para poder servir. É uma conversão do saber da totalidade para o saber meta-físico da antropologia, um ex-pôrse, não apenas ao pensar aristocrático, mas à voz dos muitos (póloi), do popular, dos que estão fora do sistema. Saber ouvir o que é estranho e novo, a palavra que vem de fora , da exterioridade do sistema de dominação: ana-logia (para além do lógos já pronunciado e estabelecido). Mas como compreender o ana-lógico desta palavra? Como interpretá-lo? E como fazer da filosofia um pensar analético? A palavra lógos foi interpretada pela filosofia clássica, desde Heráclito a Heidegger, como co-ligir (coletar), reunir, expressar, definir. Mas lógos é, também, a tradução do “têrmo hebraico dabar que significa dizer, falar, dialogar, revelar e, ao

224 225

Ibidem: 183. Is, 50, 4.


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mesmo tempo, coisa, algo, ente. Lógos é unívoco; dabar é análogo”226 A analogia da palavra é a analogia do homem como revelação, do homem como fonte da palavra. Na liberdade do homem está o originário da palavra reveladora e não apenas ex-pressora. “Analogia verbi (da palavra) ou analogia fidei (da fé) +não deve ser confundida com a analogia nominis (do nome), uma vez que esta última é a palavra-expressiva, enquanto a primeira é a palavra que revela ante a totalidade que escuta com con-fiança (com fé antropológica), na ob-ediência (ob-audiência) discipular”. 227

A analogia do ser e do ente (diferença ontológica) não é a analogia do próprio ser. Se o ser for analógico, os dois analogados de sua analogia, já não serão di-ferentes (como os entes em relação ao ser) mas dis-tintos: distinção meta-física. A di-ferença ontológica, ou a analogia do ser e do ente já foi posta por Aristóteles, além de Platão continuado por Plotino. Falando da analogia ontologicamente, em seu sentido lógico, para além do sentido ôntico (da analogia na biologia e cosmologia) Aristóteles afirma: (os têrmos) podem ser comparados por sua quantidade ou por sua semelhança (katà homoíos)... uma vez que, destas coisas não se predica (légetai) o semelhante identicamente (taûta). (Estes têrmos) são homônimos (homonymon)”.228

Homônimos são dois entes ou noções que têm um têrmo comum para designar suas semelhanças. São semelhantes: nem iguais, nem diferentes. Têm entre si um momento de diversidade. E da analogia ontológica lembremos: 226

Dussel, 1974: 185. Trata-se da analogia da palavra (analogia verbi) e não apenas da analogia do nome (analogia nominis) que é a analogia do ente (analogia entis). 227 Ibidem, 185. 228 I Tópicos 15; 107 b 13-16, apud Dussel, 1974: 186. Synónimon é o unívoco, Parónimos é o que denominamos de equívoco em Lógica.


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O ser se diz (predica) de muitas maneiras (Tò dè òn légetai pollaxôs). (E essas predicações referem-se) a uma só base (èn) e a uma mesma fysin... (Isto é) o ser se predica de muitas maneiras mas todas (as maneiras) respectivamente a uma origem (pròs mían arxén).229

Isto significa que o ser não se predica como um gênero. Os gêneros, onticamente, diferenciam-se em espécies graças às diferenças específicas. As espécies coincidem na identidade do gênero. O ser, porém, está além (áno) de todo gênero e não é meramente um gênero de gêneros. Encontra-se num nível ontológico e não ôntico como os entes. 230 Os gêneros e espécies são interpretáveis, conceituáveis pelo lógos. Aqui lógos é uma função secundária da inteligência fundada no noeîn (Aristóteles), na Vernunft (Hegel), na ´com-preensão do ser´ (Heidegger); o lógos é aqui o entendimento (Kant e Hegel) ou a interpretação existencial (Heidegger). Acima deste lógos encontra-se o “ser” que, metaforicamente, pode ser chamado de “horizonte” do mundo, “luz” do ente ou, estritamente, a totalidade de sentido. Para os gregos era a fysis, nomeada explicitamente por Aristóteles, que pode manifestar-se como matéria ou forma, como potência ou ato, como “ousia” ou acidente, como verdade ou falsidade: a última referência. Mas, em última instância, o conteúdo da palavra “ser”, o “ser enquanto ser”, é idêntico a si mesmo, é uno e “o mesmo”. Se é verdade que pode ser predicado de muitas maneiras em relação ao ente ( e nisto o ser é ana-lógico no nível ôntico), contudo, é idêntico a si mesmo. O ser que se predica analogicamente do ente, é ele mesmo tò autó, das Selbe, “o mesmo”, como “o visto” (fisicamente pelos gregos, subjetivamente pelos modernos). O ser se ex-pressa, então, de muitas maneiras (com di-ferença ontológica: tanto do ser em relação aos entes quanto entre as predicações fundamentais entre si – matéria e forma... mas esta ex-pressão não ultrapassa a totalidade ontológica que é idêntica, uní229

Ibidem, 33-b 6. A base para Kant e Hegel será a subjetividade moderna, para Heidegger a ontologia. 230 Dussel, 1974: 186.


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voca, una, neutra e, tragicamente, “assim como é”... Só há analogia do ser em relação ao ente... A dialética ontológica é possível porque o ente é análogo, porque dele se predica o ser analogamente; isto é, o ser está sempre além, e o movimento é possível como atualidade da potência. Ao final, porém, o ser é uno e o movimento ontológico fundamental é “a eterna repetição do mesmo”. A mera analogia do ente termina por ser a negação da historicidade.231

O próprio ser, porém, é análogo. Não apenas o ser em relação ao ente. E a analogia do ser em si mesmo nos conduz a uma problemática abismalmente diversa. 232 O ser não é analógico, apenas como fundamento da totalidade, é analógico também em relação a si mesmo. O ser enquanto fundamento não é o único modo de predicar o ser. O ser como mais-alto (áno) ou por sobre (aná) a totalidade, o outro livre como negatividade primeira, é ana-lógico em relação ao ser do noeîn, da razão hegeliana ou da com-preensão heideggeriana. A totalidade não esgota os modos de dizer ou de exercer o ser. O ser como fysis ou como subjetividade, como totalidade, é um modo de dizer o ser; o ser idêntico e único funda a analogia do ente. Diversamente, o ser como liberdade abismal do outro, a alteridade, é uma modalidade de dizer o ser verdadeiramente ana-lógica e dis-tinta, separada, que funda a analogia da palavra (como primeiro modo que nos é dado da analogia da coisa real: a analogia fidei é a propedêutica da analogia rei...)... O ser da analogia do ente, graças à di-ferença ontológica funda a ex-pressão (lógos apofantikós) da totalidade. O ser analógico do outro como alteridade meta-física, graças à dis-tinção, origina a revelação do outro como procriação na totalidade. O logos, como palavra ex-pressora é fundamentalmente (com referência ao horizonte do mundo) unívoca: diz o único ser. A dabar (“palavra” em hebraico), como voz reveladora do outro é originariamente aná-loga. Aqui a ana-logia quer indicar uma palavra 231 232

Ibidem: 187. Ibidem.


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que é uma revelação, um dizer cuja presença patenteia a ausência (que, no entanto, atrai e pro-voca) do “significado”: o outro mesmo como livre e como pro-jeto ontológico alterativo; agora ainda incom-preensível, trans-ontológico.233

A palavra do outro só se compreende e se capta, confusa e analogicamente, por semelhança.234 Permanece sempre, pelo abissal de sua origem, como in-compreensível e não-interpretada. Quando uma jovem ouve de um jovem: “eu te amo”; ou quando o filho ouve da mãe: “filho obedéce-me”; ou um patrão ouve de seu empregado: “tenho direito a melhor salário”, estas palavras originantes e originárias (de primigênia experiência humana) instalam a alteridade, a dis-tinção meta-física, da misteriosa analogia fidei ou verbi. Impossível captá-las senão na vivência da alteridade. E ao vir à luz no parto (aparição) a criança é acolhida pelo outro como outro enquanto falante: filhinho meu, diz a mãe; é um menino, diz o médico; será a nossa felicidade, diz a comunidade. “O recém parido, o a-parecido no mundo dos outros (embora ele mesmo sem mundo ainda), começa a formar seu mundo na confiança filial, na ob-ediência discipular ao outro: o mais alto, e por isso o mestre do mundo”. 235 Esta palavra (da mãe, do noivo, do médico, da comunidade) não é um signo nem o conceito da ciência, nem o simbolismo como domínio operatório matemático, nem a palavra do neopositivismo de Wittgenstein, nem a linguagem performativa de Austin, nem a linguagem autoimplicativa (sel-involvement) de Evans, nem o discurso 233

Dussel, 1974: 188-189. Adiante trataremos propriamente da possibilidade lógica da analogia (entis) seguindo os passos de Carlos Cirne Lima. Veremos a insuficiência da analogia de proporcionalidade (modelo matemático) ou da analogia de atribuição (modelo gramatical-linguístico) e como a razão transcendental perfura a razão empíri ca e ontológica para mostrar a possibilidade de semelhança entre os têrmos análogos que mantém a univocidade e equivocidade na fundamentação e sua distinção. Resta, contudo, sempre a analogia verbi e a analogia fidei como fundamento e razão de ser da analogia entis. 235 Dussel, 1974: 189. 234


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ético de Ladrière (quando diz que o “homem é responsável de si mesmo como ser egológico, e responsável ante si mesmo” ). Derrida aproxima-se, porém, tampouco dá conta da questão, quando quer indicar uma diversidade entre a différence e a différance236

O “eu te amo” do noivo à noiva, é uma palavra, uma frase (com sujeito e predicado), mas, antes de tudo, é uma proposição, uma proposta: não uma proposta de algo, mas o noivo se propõe a si mesmo. A frase é um agir que gera obrigações, exigências, imperativos. Tem pretensão de ser verdadeira. Mas “a veracidade do dito, fica assegurada e confiada ao próprio dizer do outro que diz. Ela exige ser tida como verdadeira, a ser crida...” porque referência radical ao mais alto que o dito, liga àquele que revela ao mesmo tempo que o oculta em sua mesmidade trans-ontológica (pois pode mentir) 237. A palavra reveladora do outro não se interpreta como referência ao mundo. Ela irrompe desde o além do mundo, e só a compreendemos inadequadamente. “A partir da experiência passada do que o outro me diz em seu dizer, formo uma idéia aproximada e sempre imprecisa, inverificada daquilo que revela... tendo fé, con-fiança no outro: ´porque ele o diz´... o amor-de-justiça, transontológico, permite aceitar como verdadeira a palavra inverificada”.238 Ser capaz de consentir na palavra do outro, de crer nela, e lançar-se nesta palavra é o supremo ato de racionalidade, racionalidade histórica, ato criador do novo por excelência. A palavra tida como verdadeira, com o assentimento do entendimento numa confusa compreensão ôntica inadequada a partir da “semelhança” do que já aconteceu na totalidade como declaração, como proposição, como pro-vocação do outro... permite, pela práxis libertadora analética, pelo trabalho serviçal (habodáh), avançar a um projeto fundamental ontológico novo, futuro, que o outro revela em sua palavra e que ainda é incom236

Ibidem : 189-190, citando Ladrière: L´articulation du sens. Dussel, 1974: 190. 238 Ibidem, 191. 237


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preensível, porque ainda não se viveu a experiência de estar neste novo mundo (totalidade nova, nova pátria, ordem legal futura)... A revelação do outro abre o projeto ontológico passado, da velha pátria, da dominação e alienação do outro, ao projeto libertador... ao qual nos convida e pro-voca a palavra reveladora. Somente con-fiados no outro, apoiados firmemente sobre sua palavra, a totalidade pode ser posta em movimento; caminhando na libertação do outro alcança-se a própria libertação... no compromisso real e ético, erótico, pedagógico e político... que se faz communitas bonitatis... se alcança a possibilidade de uma adequada interpretação.”239 A filosofia como interpretação da palavra do outro que se ouve, desde um compromisso ético existencial, como discípulo, permite aceder à interpretação, à conceitualização, à verificação de sua revelação. A partir da revelação pode-se compreender a palavra de ontem, a palavra do passado em sua relatividade. Mas a filosofia não é apenas reminiscência, recordação. Ela é fundamentalmente o “ouvir a voz histórica do pobre, do povo. É um compromisso com essa palavra; um desbloqueio ou aniquilação da sociedade antiga enquanto única e eterna; é um arriscar-se em começar a dizer o novo e, assim, antecipação da época clássica... época de colher os resultados, nunca finais, sempre relativos da história da libertação humana”. 240 Assim, a filosofia como verificação analética (e não apenas dialética) da palavra do outro, não é apenas uma teoria “compreensão reflexa do ser e interpretação pensada do ente” na qual a palavra do outro se reduz ao já dito e interpretado equivocamente desde a totalidade vigente, identificando o dito como o mesmo, negando o dis-tinto da palavra análoga do outro. “Tomar a palavra do outro como unívoca em relação à palavra daquele que interpreta é a maldade ética do sofista...” 241

239

Ibidem, 192. Ibidem, 193. 241 Ibidem, 193. 240


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maldade que ele nega para poder matar e excluir o outro como bárbaro. Considerar a palavra do outro como “semelhante” às de meu mundo conservando a “dis-tinção meta-física” que se apoia no outro como outro, é respeitar a analogia da revelação; é comprometer-se com humildade e mansidão à aprendizagem pedagógica do caminho que a palavra do outro (como mestre) vai traçando a cada dia. Assim o autêntico filósofo, “homem do povo com seu povo”, pobre junto ao pobre, outro que a totalidade e primeiro profeta do futuro, futuro que o outro é hoje, na intempérie, encaminha um novo projeto ontológico que lhe dê a chave de uma nova interpretação... A filosofia, então, originariamente ana-lética, caminha dia-leticamente, conduzida pela palavra do outro... o começo é a con-fiança, fé no magistério e na verdade do outro... confiança na mulher, na criança, no trabalhador, no subdesenvolvido, numa palavra: no pobre. O aluno tem o magistério, a pro-vocação ana-lógica; ele tem o tema a ser pensado: sua palavra deve ser crida ou não haverá filosofia senão apenas sofística dominadora. 242

A filosofia será antes de tudo uma pedagogia, um método de saber crer na palavra do outro e interpretá-la. Discípulo do discípulo, liberto da totalidade ontológica e a serviço dessa libertação, o filósofo (o político, o educador) será um pedagogo da libertação, porque deixou de ser escravo da totalidade, deixou de ser sofista. Já não será um distanciado da caverna onde vivem os mortais243, para contemplar a luz, mas aquele que no amor de justiça escuta o outro como mistério e como mestre. “O supremo não é a contemplação mas a relação cara a cara daqueles que se amam...”244 Por isso a filosofia, desde a América Latina, África ou Ásia, será uma filosofia discípula da voz dos pobres, dos excluí242

Ibidem, 193-194. Alegoria de Platão, cf. República VII... 244 Ibidem, 194. 243


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dos, das vítimas, a partir da alteridade fecunda do clamor por justiça, uma filosofia da libertação. Uma filosofia que está além “da totalidade européia, moderna e dominadora; é uma filosofia do futuro, mundial, pós-moderna e de libertação. É a quarta idade da filosofia e a primeira idade antropo-lógica: deixamos para trás a fisio-logia grega, a teo-logia medieval, a logo-logia moderna, assumindo-as porém, numa realidade que as explica a todas”. 245 O pensamento analético, desde a alteridade da relação cara a cara, transforma-se em fundamento crítico da totalidade vigente e dialeticamente operante (da economia, da política, da cultura, da religião...), abrindo a totalidade à novidade histórica e sempre nova da palavra do outro. Tanto mais outro quanto mais excluído e fora do sistema. É de fora do sistema que seu grito, seu apelo, seu clamor por justiça, negam a validade, a legitimidade, a verdade da totalidade sistematizada e fixada como se fôra definititva e divina. Atéia das totalidades que, enquanto absolutizadas, produzem as vítimas, a filosofia enquanto pedagogia de libertação, enquanto escutar ob-audiente da voz das vítimas, se faz fundamento analético do pensar e do agir, da construção de um novum histórico. Enquanto ética, filosofia primeira a partir da qual o fazer, o agir e o pensar podem ser interpretados, a analética pode e deve ser a pedagogia de toda a ação política: inclusive do Orçamento Participativo. A analética é, assim, práxis de libertação. Não é apenas um agir pragmático, intuitivo e sem razões. Nem é apenas um sistema lógico de razões fundadas em si mesmas, na evidência lógica da subjetividade. Nem é o positivismo de neutras constatações fáticas, que por si sós “materialisticamente” indicariam os caminhos “históricos” determinados pelo destino implacável da “ordem e do progresso”. Mas é práxis que une não apenas pensar-agir, nem deduz o agir do pensar, mas, desde a postura ética de amor ob-audiente da voz das vítimas, age, pensa e faz um mundo novo onde a voz dos excluídos possa ser a diretriz segura da priorização de todo pensar e agir. 245

Ibidem, 197.


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O pensar nasce de uma decisão ética: a favor ou contra alguém. Um convite ou uma repulsa ao outro. Pensar é sempre justificar, um aceder ou um fugir ao convite ao Encontro. A neutralidade do pensamento é sempre uma tomada de posição. Ser isento é decidir-se. E toda decisão é a favor ou contra o mais fraco, o excluído, o necessitado que, silenciosamente ou bradando, clama por justiça: ajuda-me! Impossível não ouvir. Não há tampão de ouvidos que afaste o rosto, o olhar, a pele, a voz, o cheiro, do outro... Não há mecanismo de fuga que não seja doentio: quer por mêdo (mecanismo de defesa, de proteção, de segurança ante o desespero do convite abissal do outro) ou por violência (mecanismo de morte, thânatos, que é medo desesperado de não poder amar e ser amado). Amar é perigoso, é morar no perigo, é arriscar-se, sem nenhuma segurança (do sistema lógico, tecnológico, estratégico, ou psicológico). Ser é ser generoso: em entregar-se e receber o outro. O pensar é originariamente prático (ou práxico). Só depois é teórico, para dar conta do prático. Para ampliar o prático. Para evitar que a vida se contradiga em seus caminhos e se torne uma impossibilidade. O teórico é sempre ideológico, no sentido amplo do termo. A ética é a filosofia primeira. Mesmo quando Aristóteles diga que o pensar ontológico (e não metafísico) seja o supremo (e divino) pensar. É sempre um pensar-se a si mesmo, a elite, o senhor como divino, como critério, por isso é sempre um pensar ético (anti-ético, no caso). Um pensar que busca justificativa para a exclusão, para legitimar a ação prática do proprietário. Ou vice-versa. Um pensamento realmente humano é sempre práxis: ação e reflexão, ética em todas as suas conseqüências. A lógica é tão somente e venturosamente, uma astúcia da vida. Não se limita a ser uma astúcia da subjetividade. E o critério ético do discurso, enquanto argumentação de validade e verdade, buscada sinceramente, é a simetria dos argumentantes que só pode existir quando o microfone é oferecido ao


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tartamudo, ao rouco, ao sem voz, para que fale (e sua fala será um grito de dor, de suas feridas, de suas angústias, de suas desesperanças) e o consenso transformado em hegemonia pelo poder, se faça silêncio audiente e respeitoso. A palavra do outro e sua revelação poderá ser determinada, compreendida, explicada previamente por algum sistema? Mesmo quando adivinhada, esperada, aguardada, coerente, lógica, dentro de um sistema de signos, de texto, de mundo... por que ela é insuperavelmente inesperada, nova, surpreendente? E por que sua interpretação posterior, a posteriori, é apenas aproximativa e nunca se esgota numa interpretação? Não é apenas porque somos limitados e a alteridade é infinita e infinição e, então, do infinito captamos apenas uma parcela, um pedaço, mas porque a experiência da alteridade é criação nova, transbordante, insaciável, desejo intensamente absoluto do outro? No fundo de teus olhos, não há apenas os tempos e espaços dos infindáveis universos e galáxias da fysis, do cosmos, do mundo que são e que estão, mas também os sonhos, os futuros, os passados de todos os convites. Não há métrica que meça tua palavra, não há ritmo que contenha tua canção. E no entanto, tua palavra e tua canção só acontecem como métrica e cadência, como ritmo e como ginga. Se, porém, a analética, enquanto atitude ética, é a filosofia primeira, esta não deixa de ter (por derivação da ética) a estrutura “lógica” da analogia verbi, e da analogia entis. Se o raciocínio e o discurso corretos não são critério de verdade, no entanto, a verdade não acontece sem a correção lógica do pensar, do dizer e do agir. A analética impõe, como condição de possibilidade, a correção lógica, a possibilidade da analogia. E para que se possa compreender como a analética é condição de possibilidade da dialética, faz-se necessário analisar a estrutura teórica da dialética, recolhendo o que historicamente foi dito. A estrutura teórica da analética resultará como necessária conseqüência.


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Ficam sempre as perguntas: a analética será apenas um pressuposto da dialética? Um a priori? Um resultado, uma elaboração sintética? Necessariedade que o pensamento impõe a si mesmo para pensar e agir? A realidade, o pensar e o agir dialéticos exigem a analética? Veremos que a estrutura lógica da dialética, implica como pressuposto, como mediação e como telos uma superação: um momento analético. 3.2 A estrutura lógica da dialética Poderíamos iniciar dizendo, como toda a Filosofia no Ocidente, que a realidade que se me dá como finita, reclama, exige um princípio que, para poder ser princípio necessariamente é diverso e igual ao principiado: auto-determinação, e não apenas determinado (por determinantes que lhe fossem alheias, extrínsecas). O princípio só pode determinar o principiado como principiado se, e na medida em que ele for auto-determinação (inclui as determinantes em si sendo ele a identidade do determinável e do determinante). O pensamento que pensa a si mesmo, que pensa a natureza, e que pensa a história, que pensa o fundamento, tem estrutura e funcionamento dialéticos. Inclusive a dialética, só pode ser pensada dialeticamente. Não se pode pensar e agir estando acima do pensar e do agir. O pensamento, a natureza e a história são dialéticos. Com Hegel, com a história da Filosofia Ocidental, desde Heráclitol, poderíamos repetir: “A guerra (a oposição dialética) é a mãe de todas as coisas e de todas é a rainha” (Frag.53). Ela é oposição e conciliação de tudo. A verdade não está na proposição composta de sujeito, predicado e cópula ( conforme querem os analistas). A verdade


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de uma proposição (ela sempre tem verdade e erro) está no confronto com outras proposições (dizem os dialéticos). “As idéias se atraem mutuamente, elas entram em conflito e se repelem, elas se conciliam e se reunificam... mas quase nunca se desdobram explicitamente em sujeito e predicado”. 246 Na Lógica, a dialética (como também a analítica) trabalha com 3 princípios que ordenam todo o pensamento: O princípio da identidade; o princípio da diferença; e o princípio da coerência ou da contradição a ser evitada. Estes princípios do pensar e do falar aplicam-se também à natureza e regem nela toda a evolução. “Os primeiros princípios do pensar são também princípios do ser; a Lógica transformase, assim, numa Filosofia da Natureza. (...) o mesmo modelo se aplica também à Filosofia do Espírito, isto é, à Ética, à Teoria do Estado e à Filosofia da História. Com isso, a partir da dialética, ficam esboçadas, sob a forma de um projeto, as três partes de um Sistema de Filosofia”.247 A identidade pode ser simples (não pode ser ulteriormente explicada); iterativa (repete-se a mesma identidade: A, A, A); ou identidade reflexa (ao primeiro se contrapõe um outro: A=A – os dois são distintos como sujeito e predicado – é a lógica da tautologia). O princípio da diferença pode desdobrar-se em contradição ou contrariedade. Ao sujeito A acrescenta-se algo diferente, oposto a A: Não-A. Pelo princípio da coerência ou da contradição a ser evitada, é preciso distinguir a oposição de contradição da de contrariedade. Dois termos são contraditórios quando a negação é total e absoluta: O que existe e é possível está contido ou em A ou em Não-A, não em ambos. A oposição entre duas proposições con246

Cirne Lima: Véritas, 160, pg. 701

247

Ibidem: Ibidem 702.


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traditórias implica em que uma sempre é verdadeira e a outra sempre é falsa. A afirmação e a negação é feita sobre a totalidade do conteúdo de A e Não-A. Nada de real e possível é excluído da afirmação e da negação entre ambas. (Ex.: Todo homem é mortal x Alguns homens não são mortais: se uma é verdadeira a outra é falsa e v.v.) A diferença entre contrários não é uma negação universal, mas uma negação determinada. Assim a soma de conceitos ou proposições contrárias não é a totalidade das coisas mas um conjunto de coisas determinado, limitado. Neste caso é possível um terceiro conceito (um tertium quid): quando a A oponho (excluo) um B nem por isso excluo também um C. Assim de um conceito (proposição) contrário não posso deduzir um contrário como excluído, falso. De um conceito ou proposição positivo ou verdadeiro não se infere um contrário falso ou verdadeiro. “O conceito contrário não pode ser deduzido da identidade (simples, iterativa ou reflexiva) , isto é, ele não pode ser construído pela simples negação de um conceito inicial positivo” 248. O contrário que se opõe ao primeiro é, em si mesmo, originário, imediato, primordial, acontecimento contingente, não derivado do conceito anterior. (Ex.: Todo homem é honesto x Nenhum homem é honesto. Ambas podem ser falsas, nunca ambas verdadeiras). O diferente contrário “de repente está aí, presente, na fala ou no pensamento, sem que ele possa ser explicado ex ante. Antes da emergência do diferente há, em princípio – por Lógica -, só o idêntico, sua iteração, e sua reflexão sobre si mesmo, não há porém a diferença”249. O contingente acontece, ocorre, é fruto do acaso250. “Contingência e acaso constituem aqui – naquilo que é diferente por oposição contrária – uma ruptura com a identidade e significam tanto um enriquecimento como também um perigo para o discurso... 248

Cirne Lima, ibidem, 703 Ibidem, 703 250 Não é previamente pensado como logicamente contido no conceito anterior. No humano, o contingente, a novidade é o essencial...Não é apenas um acidente... 249


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“A possibilidade de combinação (conciliação) de A com B é determinada através do Princípio da Coerência, que também é chamado de Princípio da Contradição a ser evitada”. 251 O acaso acima falado deve ser entendido como “novidade” em relação à identidade de A que, neste caso não pode ser tomado como absoluto e total. Na oposição de contrários, a contingência não está apenas em B mas também em A. O Princípio da coerência ou da contradição a ser evitada diz que as contradições não devem existir no pensamento e no discurso, sob pena de negar a racionalidade. A contradição, embora, às vezes exista de fato no pensamento e no discurso, é indevida, imprópria. Existe numa racionalidade que não chegou à constituição de si própria.252 Aristóteles diz que “é impossível predicar e não predicar o mesmo predicado do mesmo sujeito sob o mesmo aspecto e ao mesmo tempo” 253. A racionalidade do discurso impõe que se evite as contradições, ficando sempre com a proposição coerente e jogando fora a contraditória. E isto é um primeiro princípio do pensar e do dizer, que não depende de outro princípio, nem se demonstra.254 Quando, porém, uma proposição se apresenta sob a forma de contradição (e isto implica em que isso não é impossível e que se mostre como existente de fato na linguagem e nas ciências) é preciso aplicar dois sub-princípios da Contradição a ser evi-

251

Ibidem. O pensamento impõe por si próprio e para si próprio uma lei de pensar: a coerência. Mas ele o faz como se tomasse a lei, não de si mesmo, e sim da realidade que se impõe ao pensamento como devendo ser pensada segundo as normas do pensamento. Neste sentido o pensamento é a epifania do ser, segundo a iden tidade do ser. 253 Livro Gama. “É impossível (adynaton) que um e o mesmo (predicado) convenha (hypárkhein) e não convenha a um e ao mesmo (sujeito)sob o mesmo aspecto (katá) e ao mesmo tempo; a isso sejam acrescentadas as determinações ulteriores contra as objeções lógicas. 1005 b 19 ss. Apud Cirne Lima. Sobre a Contradição: 26. É impossível significa aqui: o ato mesmo de dizer “x” se nega a si mesmo, pois o próprio ato de dizer “x” exclui a possibilidade, elimina, im possibilita “x”... O ato de dizer não pode ter como conteúdo o desdizer. 254 Aristóteles, Livro Gama 1006 a 10-28. 252


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tada: a anulação de um dos dois pólos opostos (por primeiro) e, a elaboração das devidas distinções (em segundo lugar). Se dito e contradito se opuserem contraditóriamente, um pólo sempre eliminará o outro. Porque duas proposições contraditórias não podem ser simultaneamente verdadeiras nem simultaneamente falsas. Se uma é verdadeira, sua oposta contraditória é falsa e v.v. Uma proposição sempre implode a outra. Mantida a verdadeira a outra é jogada fora do discurso como falsa. Uma anula a outra. Se dito e contradito, porém, se opuserem contrariamente (e não contraditoriamente), há dois caminhos distintos a serem tomados: a) Se tivermos certeza de que uma proposição é verdadeira, a proposição que se lhe oponha contrariamente será sempre e necessariamente falsa. Neste caso o primeiro pólo anula completamente o outro; b) se tivermos certeza, porém, que uma das proposições seja falsa, não podemos inferir disso que sua contrária seja verdadeira. Porque: duas proposições contrárias não podem ser simultaneamente verdadeiras, mas podem ser simultaneamente falsas. Mas ambas podem ser falsas em matéria contingente (não necessária) dizia a tradição. 255 E se ambas forem falsas? Jogar ambas fora do discurso porque falsas? Parar de pensar e calar?256 É preciso então distinguir, no sujeito, aspectos diversos: elaborar distinções. É preciso reduplicar o sujeito com uma proposição explicativa ou reduplicativa. Assim, o mesmo predicado é atribuído ao sujeito sob aspectos diversos, superando a contradição, vedada ao pensamento e à linguagem. Assim a tese: estas mesas não podem não existir; e a sua antítese: estas mesas podem não existir... e que se opõem e anulam, sendo ambas falsas supe255

Cf. Gonzales pg. 114. Se duas proposições forem sub-contrárias (duas particulares de qualidade diferente): não podem ser ambas falsas. Da falsidade de uma infere-se a verdade da subcontrária. Como ambas podem ser verdadeiras, da verdade de uma não se pode inferir a falsidade da outra. De duas proposições subalternas: Da verdade da universal se infere a verdade da subalterna, mas não vice-versa. Da falsidade da subalterna infere-se a falsidade da universal, mas não vice-versa.Cf. Gonzales, 124. 256


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ram-se pelo engendramento de dois novos aspectos. Assim, o sujeito (mesa) reduplicado, supera a negação como se vê: Estas mesas (enquanto de fato existem) não podem não existir; Estas mesas (enquanto são contingentes) podem não existir. O sujeito originário (mesas) foi mantido, mas duplicado em dois novos aspectos de tal forma que os pólos contrários são conciliados em nível superior. O mesmo sujeito concilia a duplicidade de predicados. A estas mesas que existem de modo contingente cabe tanto a necessidade como a contingência sob aspectos diversos. Essa elaboração discursiva, essa engendração da superação liga analítica e dialética. O sujeito como síntese é a identidade de cada um dos aspectos reduplicados dos predicados e de sua diferença. Neste caso o sujeito é um conceito análogo. A analítica, distingue os aspectos e fica com dois sujeitos unívocos e opostos (equivocidade). A dialética enfatiza a unidade do sujeito lógico na dualidade dos pólos contrários. A analítica negligencia a unidade, a dialética negligencia a pluralidade. O sujeito lógico que se determina ulteriormente por engendração de novos aspectos é a ponte que deve ser posta entre analítica e dialética. Platão e Hegel mostram que, no jogo dos contrários a tese e a antítese são proposições falsas. Só a síntese é verdadeira. Pressuposto que tese e antítese sejam falsas, desde logo se infere que sua oposição não é de contraditoriedade e sim de contrariedade porque duas contraditórias nunca podem ser ambas falsas. Proposições contrárias não podem ser simultaneamente verdadeiras, mas ambas podem ser falsas (em matéria contingente). Aqui nasce o campo da dialética como jogo de contrários e jamais de contraditórios. E, se contrárias, ambas devem ser universais, porque contrárias são duas proposições universais (A e E) com o mesmo sujeito e predicado e que diferem em qualidade (uma afirma e a outra nega). Portanto, na dialética, o sujeito da proposição tética e antitética só pode ser universal. 257 257

E o individual? E o pessoal? São tratados como se fossem universais? Contém em si mesmo a lógica dos universais?


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O sujeito como universal é “todas as coisas” tratadas indeterminadamente. Hegel chama-o de absoluto, verdade, essência, categorias que são aplicadas a Deus antes da criação do mundo. Reconstruir dialeticamente esta totalidade seria tarefa da filosofia. O predicado lógico da primeira tese, escolhido hermeneuticamente e não a priori ou dedutivamente, e que possa convir ao sujeito indeterminado e universal (todas as coisas) deve ser tão universal que abranja a totalidade do sujeito e tão simples que possa ser predicado de todas as coisas. Esse conceito é o conceito de “ser”. Todas as coisas são. São ser. Essa escolha é uma tarefa hermenêutica. Na lógica dialética, ensina a tradição, a tese “todas as coisas são ser” é uma proposição falsa, assim como sua antítese. Só a síntese é verdadeira. O método dialético não tem como demonstrar que ela seja falsa ou verdadeira 258. Sabe apenas que ela é tese oposta a uma antítese numa relação triádica. Para saber da verdade ou falsidade da tese é preciso recorrer ao método analítico. É performativamente contraditório pretender determinar o sujeito indeterminado “todas as coisas” com um predicado também indeterminado “são ser”259, determinando-o como indeterminado260. Evidente a falsidade. Falsa e negada a tese, surge a antítese. A antítese, também falsa, surge como contrária à tese: “Todas as coisas não são ser” ou “nada é ser”. Conhecida a proposição universal afirmativa é possível construir logicamente a priori a proposição negativa (contrária) correspondente.

258

Se o método dialético não tem como demonstrar que a tese é verdadeira ou falsa, e a pressupõe como falsa, sabendo apenas que também sua antítese é falsa e que só é verdadeira a síntese, então a dialética supõe e se fundamenta noutro saber. A dialética não é, então, o saber supremo. Chamaremos a isto de analética? Ou, quem sabe, trans-dialética? 259 “Ser” não poderia ser determinado? Auto-determinado? Seria porque toda a determinação, afirmação, predicação é sempre particular? É impossível uma predicação universal? A não ser sob a forma negativa? 260 Observemos que o predicado de toda proposição afirmativa é sempre particular e nunca universal.


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Assim Platão e Hegel constróem antíteses com um conceito novo261 e pressuposto. Nelas, sujeito e predicado não estão desdobrados logicamente, como em Aristóteles. Sem a diferenciação de sujeito lógico e predicado lógico não se pode construir aprioristicamente proposições contrárias. Quando, pois, os dialéticos falam de pólo contrário – e não contraditório – usam, na antítese, conceito completamente diferente do que na tese. Assim não há a contradição na qual é negada a totalidade das coisas existentes e possíveis. Opostos contraditórios, somados, totalizam o universo, opostos contrários não. Negada uma parcela das coisas, é possível uma terceira via, datur tertium. Como os dialéticos não distinguem sintaticamente em suas proposições a oposição contraditória e contrária, necessitam marcar os pólos contrários com conceitos diversos. Os analíticos distinguem a contraditoriedade e contrariedade na própria fórmula sintática. Analiticamente, a antítese pode ser construída a priori, dialeticamente, não. À tese: “todas as coisas são ser”, o analítico opõe a antítese: “Todas as coisas não são ser” (ou “amor” e “não-amor”). E o dialético opõe: “Todas as coisas são nada”( ou “anti-amor”). Deve-se pois, cuidar hermeneuticamente da interpretação da antítese. A falsidade da antítese deve ser demonstrada cada vez analiticamente. Neste caso “todas as coisas são nada” é performativamente falsa, insustentável, contra-senso, irracionalidade. Manter a tese e a antítese como falsas 262 é permanecer na falsidade e perder a racionalidade. Isto não deve ser. Por isso, expelidos da posição tética e antitética precisamos 263 encontrar um espaço onde se possa morar racionalmente. Assim chegamos à síntese

261

Como pode ser novo e pressuposto? Se é pressuposto não poderia ser novo...A novidade aqui não seria apenas uma reposição do mesmo, construída a partir do mesmo? 262 A não ser que a negação seja parcial e não absoluta (como na contradição) 263 Em que consiste a necessidade de morar na racionalidade? Em que consiste a exigência de coerência? Seria apenas um aspecto de lógica combinatória? Seria um apelo ditado pelo coração que busca o encontro? Uma exigência ética que brota da experiência da Transcendência como Mistério de Presença?


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dialética na qual os pólos, antes opostos de forma excludente se conciliam, sem contradição: coincidentia oppositorum. A síntese Sínteses devem existir, pois é impossível 264 morar na oposição. Morar na contradição é auto-destruição. “A razão deve ser265 e é por isso que devemos procurar uma síntese sempre que formos expelidos de posições téticas e antitéticas”. Viver é elaborar sínteses. Às vezes as encontramos prontas, pré-jacentes na linguagem ou na história. Filosofar é, então, reconstruir a conciliação dos pólos, examinar sua coerência interna e a coerência com o sistema global. Quando não existe, deve-se criar a síntese, inventivamente, superando e guardando a contrariedade entre os pólos.266 Prévia ou engendrada, a síntese é a condição de possibilidade da identidade dos opostos como opostos em sua contrariedade. Na síntese mora o homem e a racionalidade. Nela mora o conhecimento, a lógica, a ética, a história, a participação. A síntese não é nem um dos opostos, nem o outro, nem a soma de ambos, mas sua superação. Superação, cuja possibilidade não está na oposição, mas lhe é prévia, transcendente e posterior. Condição, causa e conseqüência.

264

A demonstração dessa impossibilidade, não é apenas lógica e, então, ontológica e existencial. É, não apenas, um absurdo lógico, mas um absurdo significativo e lingüístico também. É um des-dizer o que se diz no próprio ato de dizer. Cf.Cirne Lima, Sobre a Contradição pg. 28 comentando o “impossível” desde Aristóteles: “ao dizer em voz alta que não estou falando, o ato de falar desmente, contradiz, destrói o conteúdo falado... O ato de dizer não pode ter como conteúdo o desdizer. Isso é o impossível”. 265 O dever-ser não pode ser apenas kantiano, um imperativo categórico univer sal e neutro, sem rosto pessoal e existencial. O dever-ser não é moral: é ético, isto é, resposta pessoal a um apelo da transcendência que se faz epifania no rosto do outro reclamando justiça. 266 A história em suas instituições: econômicas, políticas, sociais, culturais, religiosas...é a invenção de sínteses e a retomada das sínteses já feitas em seus fun damentos de coerência.


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Assim: Autoridade x súditos = participação. Homem x mulher =matrimônio. Pais x filhos = família. Som x sentido = palavra. Professor x alunos = escola. A figura x a negação da figura (desfiguração e deformação) = o símbolo (o monstro, a esfinge, a pirâmide). Conhecer, pensar, agir é fazer sínteses. Em que consiste engendrar sínteses ou refazer a racionalidade das sínteses encontradas? A essência da dialética é o engendrar e refazer sínteses. Para o grego, porém, nem toda síntese é dialética. “Só o filósofo é dialético, é o único que sabe lidar com as idéias” 267, diria Platão. Na síntese, dirá Hegel, das Widerspruch wurde aufgehoben ( a contra-dição foi guardada como superada: a-sumida, subsumida; revogada e guardada; desabrochada e superada). “Aufheben (superar e guardar268) significa aqui, tanto superar, dissolver, desfazer, como também guardar, conservar, manter, cuidar. A contradição existente entre tese e antítese é dissolvida; é bom que seja assim, pois contradições, em princípio, não devem existir. A contradição só é boa se e enquanto ela é superada (como aufgehoben)”269. A superação se faz pela distinção de aspectos, não porém no âmbito do sujeito lógico (universalíssimo), e sim no âmbito dos predicados. Na proposição: Todas as coisas são ser, e Todas as coisas são nada, ser e nada como predicados são superados e guardados no conceito de “devir”. No devir o ser fica nada e o nada fica ser. A proposição sintética diz: Todas as coisas são devir. As duas proposições falsas são superadas agora por uma proposição verdadeira270. Assim como a uma tese podem ser opostas diversas antíteses, assim também diante de cada antítese podem ser engendra267

Paviani, Veritas, n. 160 pg. 730. Aufheben: guardar de, resguardar, resgatar, man-ter, de-ter, ter-ex, guardar o que foi superado enquanto superado e guardado. 269 Paviani, Ibidem, 711 270 Verdadeira apenas dialeticamente? Ou analíticamente? Verdadeira porque possível. 268


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das ou encontradas diversas sínteses. “Como se deve, por princípio evitar contradições, a escolha da síntese é uma ação ética. Deve-se na vida prática, escolher aquela síntese na qual a contradição está melhor superada e guardada”. 271. Como as antíteses não são dadas a priori e de forma necessária e sim evenientes ou construídas a posteriori e de forma contingente, é inviável pensar (a priori) numa listagem completa de antíteses e consequentemente de sínteses possíveis. “É por isso que o sistema de Filosofia dialética não é um sistema dedutivo e sim um sistema aberto, tão somente um projeto de sistema. Filosofia continua sendo apenas amor à sabedoria, sem jamais transformar-se num sistema completo e acabado do saber”272. A síntese, transforma-se sempre em nova tese. A síntese é uma proposição verdadeira. Verdade relativa, provisória, não é a verdade simplesmente, porque esta é o todo. É verdade que todas as coisas são devir, mas a verdade das coisas é mais rica e complexa do que apenas “devir”. “Até o pensamento e a fala que expressa isso já é muito mais do que aquilo que está sendo expresso pelo predicado. O ato de pensar e falar determina aí, nesta predicação, o sujeito lógico de uma maneira insuficientemente determinada; isso é uma contradição performativa, a qual se repete em todas as sínteses, exceto na última, e é isso que impulsiona sempre de novo a marcha da dialética” 273 “Esta última síntese tem que existir 274. Pois o movimento da dialética existe de fato – estamos nele – o movimento de fato existente pressupõe e é sempre movimento possível; o movimento que é possível pressupõe sempre que o último fim dele também seja possível. Pois o movimento para o impossível é um movimento para o nada, e um movimento para o nada é o nada do movimento, um tal movimento não se movimentaria. Ele se mo271

Paviani, Ibidem, 712. É compromisso ético de um homem diante da palavra de outro homem, sob pena de anular a palavra do outro e de si mesmo. 272 Idem, Ibidem, 712 273 Ibidem, 712. 274 Observemos que a última síntese, pelo fato de ser última, não pode deixar de ser síntese e não apenas uma univocidade, como atrás foi demonstrado ao falarmos da palavra reveladora do outro.


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vimenta. Logo, conclui-se que a última síntese do movimento tem que ser possível; isto é, a dialética não pode ser uma dialética apenas negativa. A idéia absoluta que pode ser é também algo que deve ser. Não se pense entretanto, que este fim último do movimento dialético seja externo ao processo dialético, isto é, que seja um ser tão somente transcendente. Pelo contrário, como o fim último desde sempre está sendo antecipado no movimento, como o ideal de estar livre de contradições está sendo sempre antecipado na realidade do discurso, como a transcendência sempre é um movimento imanente pressuposto em cada etapa do processo dialético, a última síntese desde sempre existe e está dada de maneira circular. O fim aí vira um novo começo. Isto já deveria ser evidente, pois síntese é , por princípio, sempre de novo uma nova tese. Este é mais um motivo por que o sistema da Filosofia só pode ser articulado como um projeto de sistema sempre aberto. A Filosofia continua sendo apenas amor à sabedoria, fragmentária e incompleta”.275 Será, porém, sempre amor à Sabedoria que, desde antes, agora e para sempre impulsiona à ultrapassagem. É ele que faz ver o limite, a finitude da tese e da antítese, muito embora ele nos apareça sempre no jogo da contrariedade. A síntese só pode ser incompleta embora utopicamente busque a completude porque as afirmações, as inclusões, as determinações, as participações, enquanto predicado de uma proposição afirmativa são sempre particulares. A exclusão, a negação, enquanto predicado de proposição negativa é sempre universal. Não existe, porém uma negação que não pressuponha uma afirmação. Negar é sempre negar algo de algo. E negá-lo absolutamente. Universalmente. Afirmar é sempre afirmar algo finita e relativamente. A negação é sempre universal. A afirmação é sempre particular. Assim toda negação é sempre a negação absoluta de uma afirmação relativa; portanto uma negação relativa. Para que uma negação absoluta fosse possível seria necessário 275

Ibidem. 712-713


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que tanto o sujeito como o predicado fossem universais, totais, absolutos. Ora a negação total negativa (nenhum ente é ser ou todos os entes não são ser) só é possível como indeterminada. Fazendo-se determinada (este, este e este....todos os entes...não são ser) ela se nega a si mesma porque pressupõe uma prioridade dupla ( algo se determina pela negação do outro que, antes, precisa existir enquanto negação do primeiro) de afirmação e de negação. Ora, a afirmação ou negação indeterminada é indeterminação: e a indeterminação nada determina. Para afirmar ou negar só resta o caminho de uma determinação relativa no horizonte utópico da totalidade que se antecipa e realiza como escondimento, como finitização, como relativização, como convite à superação. Fazedores de sínteses que somos, não as fabricamos. Desde sempre já estamos no movimento da síntese. A força que engendra sínteses, dando identidade aos pólos como opostos, e que se manifesta nas oposições postas, não nasce das oposições. Estas só aparecem como oposições que devem ser compreendidas, na síntese. Esta força de transcendência imanente em a natureza, na vida (alimento, sensação), no pensar (ideação, realização cultural), no agir ( economia, ética, política, religião, sociedade), na história (que se consuma em cada gesto como antecipação, celebração e memória) e que está além da dialética apenas negativa como “processo de oposição de contrários” é ana-dialética, analética que funda a oposição e a superação das oposições. Santo Agostinho tem razão: o desuper não está apenas fora e acima da realidade; ele é intius e forius e desuperius (“o mais íntimo”, o mais exterior, o mais acima e superior). Deus não está aqui ou ali, no mundo, no universo, no pensamento, na história: o mundo e o pensamento, e a história estão no colo de Deus. Ele é o lugar de cada e de todas as coisas. Ele é a síntese que dá identidade a cada ente, a cada homem, a cada acontecimento como único e irrepetível, unificado em sua superação. Tudo o que é, idêntico a si e diverso de tudo o mais e de cada outro ente, encontra sua síntese identificadora (da identidade, da diversidade e da comunhão com tudo) no Ser. Esta noção de ser é dialética em sua analeticidade.


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A dialética é, ao mesmo tempo dialética da natureza e do espírito. As mesmas leis, a mesma gramática que regem o pensar e o falar também regem o mundo existente, o ser, a natureza. Não como diz o nominalismo para quem as leis do falar e pensar valem apenas para o falar e pensar. O realismo afirma que algumas leis do falar e do pensar são também válidas para o ser. O idealismo diz que as mesmas leis do falar e do pensar são válidas para o ser e que, a priori, o mesmo princípio “logos” ou “idéia” perpassa o ser, o pensar e o falar diversos. E também a posteriori os princípios com que trabalham as Ciências Naturais e os da Lógica dialética têm correspondência, são convergentes. Assim, - à identidade simples da lógica corresponde o indivíduo; - À identidade iterativa corresponde a iteração, replicação ou reprodução na natureza; - À identidade reflexa corresponde a espécie. - À diferença contraditória nada corresponde (não existente);

- À diferença de contrários corresponde a emergência do novo, mutação pelo acaso276. - À coerência de anulação de um dos pólos corresponde a morte e seleção natural;

- À coerência de elaboração das devidas distinções corresponde a adaptação; -

À História da dialética corresponde a história da evolução. 277

276

E por que não, por um querer explícito, inovador, criador? Sem motivo, neste caso: por acaso, o que significa gratuitamente, por pura graça, dom, por puro desejo e querer, sem outro motivo que o próprio querer. 277

Ibidem 714. Reiteramos que estamos tratando da analogia entis, para evitar cair nas armadilhas de naturalizar o humano e o social.


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Seguindo os passos de Cirne Lima e pensando o sistema tal como Hegel o pensou, a dialética é, também, dialética do espírito. Acompanhemo-lo em síntese livre. O que é espírito? Espírito é o estar junto-de-si-mesmo (Bei sich sein) do lógico que saiu de si e se alienou de si mesmo, tornando-se assim natureza, para depois, voltar a si mesmo, diria Hegel. Esse voltar-a-si-mesmo chamamos, primeiro, de consciência – estar-junto-de-si-mesmo – e, numa forma ulterior de desenvolvimento, de espírito... Um projeto de Filosofia do espírito deveria, então, traçar o esboço de uma Ética, de uma Antropologia, de uma Teoria do Conhecimento, de uma Filosofia do Direito e de uma Filosofia da História.278. Na dialética do espírito está a estética, a arte, a filosofia e a ética. O princípio da Coerência ou da Contradição a ser evitada é um dever ser lógico que pervade também a natureza 279 como força evolutiva e seleção natural. Quem pretender negar esse princípio “ou sai do discurso ou está a repor exatamente aquilo que pretende negar”.280 “É um dever-ser, um operador modal deôntico – e não a necessidade lógica, o operador modal tradicional – que está no começo de toda a Lógica. Na natureza este dever-ser está alienado, ele está fora de si mesmo, mas exerce uma função decisiva como seleção natural... Agora, na ética, trata-se apenas de explicitar a faceta especificamente humana deste dever-ser. Pois, no espírito, como na Lógica, mas em oposição à natureza, o dever-ser está plenamente consciente de si mesmo. Ética não é nada mais, mas também nada menos, que esse estar-junto-de-si-mesmo do dever-ser” 281 O primeiro princípio da Ética e que responde à questão: qual o critério que distingue o bem do mal? Seria o imperativo 278

Ibidem, 721 Cf. O sistema cognitivo e afetivo-avaliativo cerebral humano, como pressuposto biológico do agir ético, in Enrique Dussel: Ética da Libertação, pg. 95 e ss. 280 Cirne Lima: 721 279

281

Ibidem: 721.


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categórico (de Kant)? Seria a capacidade que uma regra tem de ser universalizada (Apel, Habermas)? Bom é, portanto, aquilo que pode ser unversalizado; a universalização se faz na roda concreta do discurso, na qual o discurso fático, embora ele mesmo seja contingente e real, antecipa a situação ideal do discurso? Negar a situação ideal do discurso ( e sempre ínsita no discurso real), é pressupor o que se nega (contradição performativa). Mas a universalização não é apenas uma agir subjetivo ou inter-subjetivo. “Tanto o Princípio da Contradição a ser evitada (na Lógica), como o Princípio da Coerência ou da Seleção natural (na natureza), como também o imperativo categórico (na Ética) são apenas formas específicas de um mesmo e universalíssimo Princípio do Dever-ser. Para ampliar a Ética por demais subjetiva ou inter-subjetiva da tradição de Kant e transformá-la numa Ética realmente universal, ou seja, ecológica, seria necessário mostrar que os conceitos de dever-ser e de homem precisam e podem ser correspondentemente ampliados. O homem, ou seja o eu, não deve ser concebido de forma tão estreita, tão subjetiva, ou, falando duro, de forma tão mesquinha como usualmente se faz na Filosofia Contemporânea. Assim fazemos a passagem da Ética para uma Antropologia e uma Teoria do Conhecimento” 282. A dialética do espírito é também teoria do conhecimento e antropologia. O eu individual contraposto ao eu individual do outro eu, encontra-se como eu particular do grupo, família, sociedade, estado. O eu particular, que é concreto, em contraposição ao individual que é abstrato, contrapõe-se aos outros eus particulares e é superado, suprassumido (aufgehoben), sem se perder, mas ganhando identidade, pelo eu universal (que é ecologia, mundo, universo). Assim como o conceito em Hegel que é desde sempre e simultaneamente individual, particular e universal, assim o eu não se resume na individualidade ou no conjunto de individualidades como se, isoladas fossem concretas e, somente elas, reais. 282

Ibidem: 722


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Ou como se o eu transcendental (Kant...) fosse apenas uma metáfora que não sabemos se existe ou não no mundo da realidade, “mas tão somente uma rede de condições necessárias de possibilidade de que certos juízos sintéticos a priori, que todos os homens de fato têm como certos, sejam realmente verdadeiros”, sendo apenas um “valer”, permanecendo o mundo da realidade como desconhecido...283 Assim sendo: “de um lado estão as coisas; elas são individuais, são extensas, são espaço-temporais, são contingentes. De outro lado está o conhecimento; as idéias ou conceitos, no conhecimento, não são individuais, mas sim universais, não são extensos, e sim inextensos, não são espaciais nem temporais, e estão numa rede de conexões necessárias, uns para com os outros. O mundo das coisas e o mundo das idéias estão, desde Platão, em contraposição, um contra o outro, e as tentativas de superar o abismo existente entre ambos ficaram até agora – isso precisamos conceder sinceramente, diria também Cirne Lima, – sem resultado satisfatório. Também a construção de um eu transcendental apresenta, como sabemos, certos traços de uma esquizofrenia filosófica... É preciso, para chegarmos a um resultado que seja razoável, analisar e entender idéias e conceitos no quadro mais amplo da questão sobre o conhecimento em geral. O conhecimento é antes de mais nada uma forma específica do agir em conjunto de homens...” 284. Uma ação conjunta (como de homens que carregam um tronco muito pesado) necessita um sinal para pôr-se em conjunto, para juntar-se, um ritmo para que o coração, a mente e os músculos pulsem uníssonos, simultâneos em conjunto. O ato de juntar-se, o sinal para tanto, a simultaneidade é concreta e real. O sinal está no todo e só se entende no todo. Retirado (abstraído) o sinal do agir conjunto e desvinculado daquele agir, torna-se incompreensível.

283 284

Ibidem, 723. Ibiderm, 723


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“E assim se originam os sinais, que não são aquilo que eles significam; eles significam muito mais do que eles realmente são. Abstração é, portanto aquela transformação que a pars in toto sofre quando, tirada da situação original, fica uma pars pro toto, uma parte que remete para um todo que não está mais presente . Este agir em conjunto eu chamo de universal concreto; o som que é abstraído do contexto concreto e que agora funciona como sinal eu chamo de universal abstrato. O universal abstrato só tem sentido, e só pode ser entendido, se e enquanto o ouvinte – e/ou o participante dos atos de fala – possui ou adquire a capacidade de remeter o sinal (isto é, o universal abstrato) à situação original (isto é, ao universal concreto). A pars pro toto só é compreensível se e quando a tornamos presente como pars in toto. O conhecimento como agir conjunto, é experiência, efetuação, localização na síntese. E só dali resulta a experiência do universal abstrato. O universal abstrato é, tanto do ponto de vista lógico, como também do espistemológico e ontológico, tão somente um elemento que entra na constituição do universal concreto e para ele remete. Se o universal abstrato é afastado para longe demais do universal concreto, ou se é desconectado totalmente deste, então nada mais se entende, então o sinal não significa mais nada. Pois conhecer o sentido de uma língua, isto é, conhecer o sentido de sinais, é apenas a relembrança do universal concreto no qual os sinais eram originariamente pars in toto e do qual foram então abstraídos para funcionar como uma língua (pars pro toto)” 285 O eu é , mais do que um simples indivíduo, um grupo. Eu é também um nós. Neste “nós” o eu individual está contido; mais, ele está suprassumido (aufgehoben) no sentido de Hegel. Pois no nós se fundem, em uma unidade, tanto o eu individual como também o outro eu também individual – o tu – de maneira que a individualidade singular do eu é dissolvida 286, sem que com isso o eu se perca. “Esta conciliação dos eus individuais, inicial285 286

Ibidem, 724. E, enquanto tal, é constituída.


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mente contrapostos, chamo agora de “eu particular”. O eu particular aparece como universal concreto sempre que homens caçam, pescam, trabalham, etc., em conjunto. Uma forma mais específica ainda do eu particular aparece quando homens falam uns com os outros, isto é, quando desenvolvem uma língua. Pois é através da língua, que é ela mesma uma forma específica do eu particular, que os homens conseguem superar os limites da particularidade, e é nela que o eu se torna também meio ambiente, para, em última instância, ampliar-se como universo. Isso, agora, chamo de eu universal”287. O eu individual, portanto, faz-se particular (nós) e depois universal (mundo), como a dialética do conceito em Hegel. Assim as ações éticas são boas quando não contradigam o eu individual, particular e universal. A teoria aqui exposta e defendida não é, pois, apenas uma doutrina da sobrevivência do indivíduo singular, mas uma teoria da coerência a ser vivida não somente com os outros homens, mas também com a natureza (isto é, ecologia). Importante aí é, não o eu enquanto mero indivíduo, mas o eu individual enquanto está afinado com o eu particular (família, sociedade, Estado) e com o eu universal (mundo, universo). O importante não é a mera sobrevivência do indivíduo, mas o concerto com o processo global do mundo. Não se trata, pois, de um darwinismo social sem dó nem piedade, mas de uma ética humanista como a conhecemos da tradição”.288 A dialética do espírito é, por fim Filosofia do direito e Filosofia da História. Seguindo o pensamento de Hegel, Cirne Lima diz que “Eu sou nós. Primeiro sou família, depois, sociedade, finalmente 287

Ibidem, 725.

288

Ibidem, 725. Léon Bloy preferiria o conceito semita cristão de comunhão dos santos. Teilhard de Chardin, falaria em Construir a Terra. A Teologia do Amor cristão falaria em Trindade. Levinas introduziria seu conceito de alteridade.


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sou também Estado; Na família sou um nós, um eu particular, que está em parte na natureza, em parte no espírito. A sociedade é já uma forma mais desenvolvida do eu particular, na qual os homens constróem uma vida em comum com maior grau de liberdade e na qual o espírito se encontra consigo mesmo como cultura. No Estado, ou na federação de Estados (esta falta em Hegel, mas já está presente em Kant), o eu particular chega a sua culminação, ao engendrar a lei e a justiça. O Estado é bom, se e enquanto sua constituição é boa; esta é boa, se e enquanto ela é aprovada pelo julgamento da História. Isso remete à Filosofia da História”. 289 A suposição de que a sociedade seja constituída de famílias e de que o Estado seja constituído pela sociedade através da lei e da justiça, de uma constituição boa tem por base o racionalismo: tudo o que é racional é real. 290 E tanto a família, como a sociedade e a história estão dentro do mesmo sistema: o espírito se reconhece a si mesmo, se auto-justifica, é critério de si mesmo. Nada de estranho, de novo, de transcendente ao espírito e para o espírito acontece. Ele tudo põe e tudo julga. O Direito como auto-poiese, reflete, traduz, espelha o espírito que se fez Família, Sociedade e Estado. Por isso o Estado é o próprio espírito, sua lei é critério transcendente à sociedade e à família, e tudo o que é estatal é legítimo, racional, humano, de acordo com o espírito. A sociedade e a família em todas as suas atividades valem enquanto subsumidas no Estado291. História é o relato dos fatos da evolução. História é também, num segundo sentido, mais importante que o primeiro: “a consciência que o eu sempre já possui, de que o eu individual é sempre um eu universal e que ele precisa agir, pensar e avaliar como tal”. É, assim, uma avaliação ética do que ocorreu, como igualmente um projeto ético para o futuro 289

Cirne Lima, ibidem, 725-6. Ao eu individual, particular ou universal não advém a transcendência como critério de julgamento da história? Os valores e a transcendência se dissolvem no voluntarismo individual ou grupal? 291 Bem se podem vislumbrar as conseqüências de um idealismo assim. 290


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História não é, pois, uma evolução linear das coisas, uma evolução que, sem contingência e acaso, não oferece alternativas, e, por isso, não permite verdadeira liberdade de escolha. Nem está previamente determinada por uma predeterminação da providência divina, nem por algum ardil da razão.292 Mas o tempo ainda corre e a história não chegou a seu fim. Os juízos de valor, que pertencem constitutivamente à História, precisam ser confirmados ou corrigidos 293 por cada homem singular. É por isso que a História tem que ser repensada e reescrita por cada eu individual. O autor do roteiro da História não é, pois, uma razão abstrata, também não uma lógica abstrata, mas aquele logos que discutimos na primeira parte deste projeto de sistema, que primeiro se alienou como natureza, e que, agora, como espírito, se desenvolve em nós e por nós mesmos 294. Somos co-autores verdadeiros e legítimos, embora modestos, do grande roteiro da História Universal 295. O eu singular, que eu sou, só é um eu enquanto ele é também um eu particular e um eu universal. O eu individual age de maneira ética quando ele, de acordo com o imperativo categórico, decide e age não apenas como um eu só individual, mas também como o eu particular e o eu universal que ele realmente também é. O eu é sempre, tanto do ponto de vista lógico, como também ontológico, e, por isso, também do ponto de vista da Ética e da Filosofia da História, a conciliação dialética entre o singular, o particular e o universal. Assim o imperativo categórico de Kant, que é um princípio só do sujeito, transforma-se num princípio lógico e também ontológico de dever-ser que tudo abrange e tudo determina. 296 292

Ibidem, 726. Será apenas confirmar, corrigir? Não será antes um converter-se a, um ouvir o apelo, um dispor-se? Um abrir-se à novidade do Espírito que renova a face da terra? 294 Esse panteísmo não nega a possibilidade de contribuição de cada homem à história? E a alteridade e a finitude? A dignidade do homem está no adequar-se ao universal, à única história que “inicia no oriente e culmina na Europa”? 295 Essa co-autoria, como parceria, igualdade, não dá sentido à diversidade, nem à unicidade do humano e do divino. Tudo é reduzido à igualdade unívoca. A diversidade, a pluralidade, a contingência é mera aparência processual. 296 Ibidem, 726 293


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E assim, Cirne Lima termina: Os ecologistas de hoje, e não Kant, têm razão neste ponto. Esta estrutura dinâmica do eu, que tem tanto um elemento individual como um elemento social e cósmico, é, como se sabe, uma característica da Filosofia de Hegel. Hegel é herdeiro da tradição dos filósofos neoplatônicos e de Meister Eckard; no fundo, trata-se aí do velho projeto de Filosofia do Hen kai Pan, que apresento aqui, numa forma bem mais moderada, como projeto de sistema aberto. Em oposição a Hegel e aos mestres-pensadores da antigüidade, eu ponho a contingência dentro da própria estrutura do projeto de sistema297; isso aprendi de Nietzsche e de Heidegger. Com isso a Filosofia não se coloca jamais como uma ciência pronta e acabada; ela não abandona seu velho nome e continua sendo somente um projeto sempre inacabado e incompleto, sempre só “amor à sabedoria”. 298

Por maior esforço que Cirne Lima faça, é difícil ver como a contingência, a novidade , a criatividade possam estar no sistema, apenas porque derivam do acaso. A novidade como dom da alteridade livre funda a História e a Ética, o direito e a lógica e não v.v. Se o eu individual determina o eu particular e universal, não há como falar de outro e de contingência. Se a alteridade e a transcendência estão imanentes ao sistema posto pela subjetividade, o outro, como claramente o diz a Civilização Ocidental, em todas as instituições (econômicas, políticas, sociais, culturais...) será um outro eu, constituído pelo eu, para que o eu possa ser si mesmo. A liberdade será apenas uma escolha que uma consciên-

297

Se dentro do sistema, não há alteridade, tudo é posto pelo mesmo, para si mesmo, mesmo que oposto a si mesmo. O tu é um outro eu (e não um outro de mim), o nós, frente a outro nós, determina-o como incluso, o mesmo se diga da sociedade e do estado. 298 Ibidem, 727. Esta sabedoria, porém, não pode ser determinada como o Ocidente determinou desde si e para si, previamente o que é sabedoria, como pura racionalidade e subjetividade. Para que a Filosofia possa ser amor à Sabedoria, deve iniciar com a des-truição da história do Ocidente que tornou impossível o advento do Sagrado e do Espírito, do outro.


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cia autárquica e autônoma operará desde si mesma, para si mesma e em si mesma. A autarquia, a autonomia da filosofia grega como expressão do homem proprietário (da terra, dos frutos da terra, dos que trabalham a terra, de si próprio e de deus), em forma de subjetividade absoluta, justifica a morte do outro enquanto outro. Este helenocentrismo, transformado em eurocentrismo, torna teoricamente impossível pensar a participação política, a elaboração de um consenso real, o respeito ético, a esperança, a generosidade (que inclui o dom, o louvor, o perdão) do agir humano. Resta a prepotência dos dominadores e de sua ideologia hegemônica, a acomodação das vítimas que não só ficam na exclusão, como também justificam e legitimam a exclusão vitimária como conseqüência de sua incapacidade de participação, de imitação, de inserção na totalidade criada pelo eu individual, reitor do mundo globalizado. A alteridade livre que funda a história, a ética, a ontologia e o direito, faz da contingência, da pobreza, do menor, o critério absoluto de julgamento da história. Neste sentido, a contingência, a finitude, não são apenas uma negação da transcendência mas seu rosto concreto e sua epifania. Esta analogia entis e sua possibilidade lógica necessita de superação na analética enquanto possibilidade de pensar e praticar o respeito à palavra do outro. E a Filosofia não será apenas um “amor à sabedoria” como conceito abstrato, mas solidariedade, um amor serviçal e fraterno, que exige coerência lógica como fidelidade ao clamor, ao convite e à palavra do outro. 3.3 A estrutura teórica da analética A analética, enquanto pressuposto da dialética, tem como horizonte teórico a experiência da alteridade.


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A analogia enquanto possibilidade de superação do unívoco e do equívoco e sua oposição, necessita da alteridade da síntese que, com Cirne Lima denominamos de razão transcendental, e, com Dussel denominamos razão metafísica, enquanto auto-determinação dialógica do ser. Neste caso o ser não é apenas fundamento, mas alteridade. A analética reconhece e dá identidade à dialética e seus movimentos, tanto em suas posições tética e antitética, quanto em sua posição de síncrese (utópica, adivinhativa, antecipativa, hipotética) e de síntese como resultado ultrapassador. A analética não pretende apenas constatar que a realidade, a vida, o conhecimento, a ação e a história, contêm a oposição dos contrários e a negação da negação (como aufhebung que nega e conserva o negado elevando-o, subsumindo-o num patamar mais elevado), mas pretende, com a alteridade mostrar a possibilidade fática, teórica e existencial da vida humana como síntese. A analética, enquanto filosofia da alteridade, se faz filosofia primeira, ética. No cara a cara, experiência que se vive originariamente quando escutamos o clamor das vítimas, está o critério ético de toda luta e de todo o consenso. A ética não deriva do conhecimento teórico, mas vice-versa, o conhecimento, a argumentação, a validade derivam da ética. A ética é a filosofia primeira. E não apenas filosofia aplicada, “prática”. A identidade não se adquire olhando no espelho a própria imagem, nem a imagem contrária que nos nega e anula, mas adquire-se no diálogo e na construção de caminhos comuns que nos faz, na fadiga do trabalho, repartir o mesmo pão, fazendo-nos assim “companheiros”. Com quem e com quê nos defrontaremos para adquirir nossa identidade? Na alienação de nossa comunidade, de nossa pátria, vivendo mimeticamente a história, a civilização, a cultura dos outros para que aprendamos a perceber que não somos ainda, que nunca fomos, e que somos menos? A construção participativa de nossa identidade pode ser instrumentalizada pelo OP.


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Na analética alteridade que se faz síntese e comunidade está a possibilidade da participação. E nesta está a possibilidade efetiva do Orçamento Participativo enquanto exercício popular e democrático da política. O OP não pode ser compreendido como um movimento incluso na mesmidade do sistema, seja ele de direita ou de esquerda. Nunca, sob pena de se negar a si mesmo, poderá ser determinado pela univocidade do Estado, do Poder, ou da autoridade, daqueles que dominam ou detêm a hegemonia da argumentação e do microfone. Enquanto apenas razão e estratégica de poder, o OP poderá ser a negação ética da participação e da cidadania. O OP, por outro lado, não poderá também ser determinado pela negação antitética do poder, da autoridade, da instituição. A participação não é apenas anarquia, sem regra, nem norma, nem instituição, como se fosse imune à ideologia 299. Nem é, por outro lado, a soma de ambos: posição e contra-posição. Ele encontra critério e fundamento epistemológico, ético e político, na alteridade do mais fraco e do mais pobre enquanto fora do sistema, enquanto excluído, põe em cheque o sistema, clamando por justiça e instaurando, assim, a ruptura e abertura do sistema para o além de si, e propiciando a seus agentes a conversão ao serviço do mais pobre. Nisso, o OP abrange e subsume a ética utilitarista, comunitarista, formalista exigindo um critério material, com valores e fins deônticos, com verdade e validade discursiva e libertadora. Numa concepção unitária do humano (para além do dualismo antropológico e ético, esquizofrênico, que os indo-europeus e o Estado de Cristandade nos legaram) que supõe a integração do desejo, da vontade e do conhecimento (coração e razão), a concepção analética de alteridade supõe a conjugação de ética e conhecimento. Mais, supõe a subordinação do conhecimento à 299

Perigo este denunciado por P. Ricoeur, quando mostra a tentação de reduzir a ideologia às determinações das classes sociais, como justificação dos privilégios das classes dirigentes, ou encontrar para além da ideologia um lugar seguro imune: a ciência, a filosofia...


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paixão, ao desejo, ao ético. Não é a razão que determina a vida e sim a vida quem determina a razão como uma de suas astúcias. A analética, não é, pois, apenas a solução das aporias lógicas da dialética, enquanto conhecimento, mas é o pressuposto de possibilidade do viver humano, do agir humano, do compreender e do conviver. A ética é a Filosofia Primeira, dirá Levinas. A possibilidade do outro, dentro de uma comunidade de comunicação, do não previsto na comunidade, embora as decisões da comunidade incidam sobre ele, do excluído tanto na comunidade como da comunidade, de sua voz e de seu voto para reinterpretar a comunidade como para abrí-la para fora dela, é a condição de participação real e por isso do próprio Orçamento Participativo. ENCAMINHANDO CONCLUSÕES 1. A possibilidade da síntese O real mais imediato para o homem é o outro homem. A relação originária do homem é com o outro: o útero, o peito, a voz, o afago materno. Desde essa relação, e nela, acontece o conhecimento do mundo e de si mesmo. Neste experimentar-se face a face, cara a cara, como ser-com o outro está toda a possibilidade de síntese e de ser. Tudo será mediação do ser-com, inclusive a consciência autônoma de si mesmo. Toda relação será sempre marcada sensorialmente, afetivamente, racional e produtivamente pela presença do outro que nos acolheu, nos enviou e convidou: uma experiência ética. O apelo do outro nos constituiu e implantou definitivamente na existência. O saber nasceu como sabor do outro e o conhecimento como ato de sexualidade (conjunção carnal) que plantou em nós a esperança da felicidade orgástica do amor. O real não é apenas o real em sua imediatidade. Negar o real em sua imediatidade, é exigir que ele se mostre mais do que ele mesmo. Tudo o que é real não é apenas ente. Não haveria di-


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ferença entre o que é e o ente. O ente é finito, delimitado, por todas as outras realidades. A delimitação se faz pela contraposição de um ente às outras essências. Negar uma essência que, para ser negada necessita antes ser delimitada pelas outras essências é exigência de dupla prioridade, é não delimitar, nem negar. É preciso guardar a identidade dos opostos, sem diluí-los na pretensa síntese. Para que haja síntese é preciso antes de mais nada ouvir e guardar o que o outro disse em sua concretude. Para ouvir o que ele quis dizer, é preciso entender o que ele disse. No que ele disse, contraposto ao que os outros dizem e ao que eu quero dizer, é possível chegar à síntese do que devamos dizer. A partir do que eu devo dizer e do que tu deves dizer, é possível entender o que digo e tu disseste. É preciso reter a identidade dos opostos enquanto opostos: acolher os opostos, ouvir, discernir seu sentido, sua mensagem, como não oriunda apenas da negação do outro. Assim a justiça na política não nasce da situação ou da oposição, nem do consenso de ambas, se não tiverem o critério superador de ambas em sua relação: a alteridade. Relembremos que a síntese não resulta da soma dos opostos, nem da imposição de um dos opostos: nasce da exigência imanente da transcendência. Ela ultrapassa e guarda nosso dizer, no dever-ser utópico da verdade e da justiça. Assim, para exemplificar, ensinar e aprender é fazer sínteses e refundar sínteses já feitas topicamente. A síntese exige que tenhamos uma opinião, que a neguemos na condição de absoluta, e a proponhamos para o confronto com o apelo do outro, com as outras opiniões; que não fiquemos no mero confronto eleitoreiro do coletivo, forçando o diálogo para que nossa opinião seja a vitoriosa, hegemônica, sinônimo de consenso; mas que nos façamos dispostos e disponíveis ao apelo que nos supera e, assim, nos guarda. Ninguém é dono, proprietário, intérprete autorizado da transcendência. Ela nos faz, se dóceis a seu apelo, pastores, zeladores, servidores de sua epifania e presença. Quem se libera à


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verdade do ser, testemunha ao outro viandante errante o apelo que se faz ouvir. Enquanto testemunha obediente ao caminho, ensina ao outro a possibilidade de identidade que se revela no caminho da simplicidade de ser com o outro. Monoteísta, profeta do Outro, sem dobrar o joelho diante de nada, diante de ninguém, nem diante de si mesmo, desde a síntese que a alteridade sugere e implica, o homem adquire sua identidade, face à face com o outro homem, construindo a história em suas múltiplas dimensões: econômicas, políticas, sociais, culturais. Pode-se incluir aí o OP. A síntese suprema nasce do silêncio audiente da transcendência que se revela no rosto do pobre que clama por justiça. Aí está o critério de identificação e de superação dos opostos. A realidade, a história, a sociedade são dinâmicas, mudam, transformam-se, necessariamente. É uma necessidade ética, moral, dizem os excluídos, os oprimidos. Uma necessidade econômica, política, social. Uma necessidade ontológica e meta-física. A síntese não está já feita desde sempre. A estabilidade, a ordem, a “paz” são a realidade “necessária” do cosmos, dos entes, da história, da ética e da religião dizem os dominantes cujo interesse é continuar com o domínio e a hegemonia, fazendo crer que seus interesses, traduzidos em conhecimento, sejam a verdade. Verdade amparada na situação de fato, na epistemologia e hermenêutica dos fatos eficazes, na política, na religião, na tradição como “mestra do futuro” e que ensina por repetição. A síntese já foi feita e acabada. Cabe-nos, apenas, guardá-la. É preciso um meio-termo entre estabilidade e mudança, uma mudança com ordem, mantendo os valores “tradicionais” num ecletismo que não vá nem tanto ao mar nem tanto à terra, dizem os que se beneficiam com o poder sem estar no poder Nada de revolução. É preciso uma evolução cautelosa, lenta e gradual, alterando um pouco as funções, mas mantendo o todo estrutural e funcional.


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Na história do Ocidente, a filosofia identificou-se com a ontologia, anulando a dialética, mesmo quando se denominou a si própria de dialética. Fez-se um sistema fechado, com princípios absolutos postos como fixos e como garantia da ordem. Correspondeu à necessidade dos dominadores. A dinâmica dialética já não seria necessária uma vez que a síntese já estava pronta desde sempre. Por isso, no Estado de Cristandade e na Europa Moderna, a alteridade do pensamento semita foi transformada em ideologia, má consciência: teoria formal que não pode interferir na vida prática, não pode sujar as mãos. A vida prática seria dirigida pragmaticamente, sem teoria, para que os interesses da classe dirigente pudessem vigorar como fundamento. Igualdade, liberdade, fraternidade, sim, conquanto não se apliquem à realidade econômica, política e social e não valham de fato para todos. Só valem para os mesmos, que preenchem as condições prévias desses conceitos: a burguesia. Apenas um princípio formal como ilusão de boa consciência e para que não surja o poder da negatividade da alteridade, que é a possibilidade da dialética e da síntese. Um dos critérios para não deixar aflorar a negatividade é dizer que hoje temos “mais” liberdade, igualdade, fraternidade do que antes e que devemos nos contentar, nos alegrar com isso. Assim volta a vigorar o poder “ordenador” da ontologia, enquanto ideologia. A metafísica, porém, como filosofia da alteridade, não é isso. Deve recuperar seu poder de negatividade. A lógica econômica, política, social e cultural do mercado que se fez capitalismo e globalização, porém, não admite outro critério que não o da propriedade, base de toda filosofia grega e ocidental. Por conseqüência, o mercado liberado por si e para si mesmo praticará sua única lei: a da competência e da exclusão. Para poder funcionar o mercado não admite a inclusão. Aqui a dialética, apenas negativa é mera oposição, justificação da exclusão. Imposição de um dos opostos, impossibilidade da síntese. As relações de mercado não são relações dialéticas (positivas), porque a dialética implica a possibilidade da conciliação,


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da superação dos pólos num patamar anterior e superior à oposição. E a exclusão, como toda a predicação negativa, é sempre absoluta. A oposição dialética é, porém, sempre relativa e afirmativa. É uma relação de contrariedade e não de contraditoriedade, como nos ensina a lógica. Na relação de contrariedade, ambas as proposições são universais, mas o que é afirmado é particular, porque o predicado de toda a proposição afirmativa é sempre particular, ao passo que a exclusão tem sentido universal e absoluto. A afirmação particular não resulta de nenhuma das duas proposições, porque, se ambas podem ser falsas, é certo que nunca as duas podem ser verdadeiras. Se uma for verdadeira, a outra será necessariamente falsa. Da falsidade de uma, porém, nada se conclui. Toda predicação, toda proposta, toda alternativa que se “atribua” a uma situação, a um problema ou programa, será sempre particular, finita, limitada, nunca absolutizável. A absolutização de uma proposta, alternativa ou instituição, (que intencional ou não intencionalmente sempre gera vítimas) por melhor que ela seja, e máxime quando ela tenha representado uma solução de um problema anterior, uma traição à história que é dialética e analética. Será uma idolatria, a divinização de um boneco de barro como se ele fosse Deus, como diziam os semitas. O absoluto que se manifesta como transcendente e imanente à história é, ao mesmo tempo, a) um “dever-ser”, b) uma imposição “apodítica” do método lógico, c) um “imperativo categórico” de justiça nas relações sociais, d)um princípio “monoteísta” da alteridade que tudo relativiza. Pervadindo todos os meandros da vida e da história, o absoluto se impõe como o dever-ser que empuxa toda a mudança, desde um início radical (criacionismo) até um julgamento final (escatológico). Como finalidade (causa final) é a causa de todas as causas, a medida de todos os meios, o motivo de todo o agir. Como último a ser atingido, o fim está intencionalmente antes de todo o agir: como modelo, como exemplo, como chama-


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mento, como julgamento; e ele se faz epifania no rosto do excluído clamando por justiça. A transcendência se traduz e se revela no rosto e no apelo das vítimas: ajuda-me, socorre-me! O clamor por justiça da vítima é o critério analético de toda a dialética. A epifania do absoluto que julga a história. Ele se mostra como critério originário do homem: no trabalho vivo, como trabalho justo. Essa alteridade é novidade que rebenta os quadros da previsibilidade da totalidade, dirá Dussel.300 É impossível uma dialética sem o absoluto ao mesmo tempo imanente e transcendente, a priori e a posteriori, como presença que interroga e dá a possibilidade da resposta. Elaborar sínteses é o processo histórico. O absoluto não é a natureza (física). Ela não é o modelo da dialética com as quantidades mensuráveis e sua passagem para a qualidade. Nem a infra-estrutura econômica determina a história. A história é o espaço da liberdade que, nos condicionamentos materiais, tece e urde novos caminhos. A totalidade que permite o sentido das partes, não pode ser idealista nem fatalista: é o surgimento permanente do novo. A dialética é a elaboração de sínteses instáveis, precárias, sempre superáveis como aufheben. Sempre, de novo, sempre teses apenas. Fazedores de sínteses, olhamos todas as coisas, pensamos e agimos a partir das sínteses que os outros já fizeram ou nós mesmos fizemos. A síntese é prévia, é meio e é o fim. Síncrese suposta e adivinhada como utopia e hipótese, desenrola-se como análise e posição dos opostos contrários, para concluir-se e acabar-se na superação que recolhe os opostos enquanto opostos 300

Cf. Marx vinculado a Hegel, a liberdade...Engels: o materialismo dialético e histórico; Lenin,...a elaboração precária de modelos; Stalin: o modelo único; toda discordância é traição. Gramsci, Lucaks, Benjamin: o não determinismo...a imprevisibilidade de modelos socialistas.


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e os consuma na transcendência. Todo agir é síntese. Todo o existir é síntese. Todo o fundar é sintetizar. O princípio é síntese. As mediações são sínteses. As mediações são postas como necessárias pela síntese que as transcende. Assim até a última e decisiva síntese, sem a qual nenhuma síntese é possível. 2.Perigos para a dialética São perigos para a dialética: a) permanecer na síncrese intuitiva como se ela fosse a síntese sem mediações (assim como ela foi dada pela tradição, como padrão de conduta); b) permanecer no jogo das oposições como se ele por si só produzisse a síntese (como se a história fosse o resultado da luta de classes), como se a luta não fosse mediação apenas; c) imaginar-se na síntese final sem a peregrinação necessária pela precariedade de cada síntese que, ao acontecer, exige ser superada. Assim o empirismo (pelo qual o princípio é igual ao principiado), o ontologismo cienticista e positivista (pelo qual o princípio é o diverso, oposto enquanto oposto, do principiado), que faz da pura negação o fundamento, e o absolutismo racionalista que se põe no lugar de Deus, conhecendo a síntese final desde sempre e menosprezando os passos mediadores de cada síntese. Nesta, os dados concretos são subsumidos, engulidos, engolfados, destruídos na idéia ou espírito absoluto, a pretexto de serem elevados, sublimados, aufgehoben. A analética nada mais é do que o cuidado para que a dialética possa ser realmente dialética e não se perca na síncrese, na análise ou na totalidade sem mediação. Por isso insiste na alteridade como eixo decisivo de interpretação da dialética, do ser, do pensar e do agir. O pensamento necessita ser analeticamente dialético. A técnica necessita ser analeticamente dialética. A ética necessita ser analeticamente dialética. Assim também a política, a educação, a sexualidade, o trabalho e a economia, a cultura e a religião. Cada um e todos esses aspectos devem resolver os dilemas do empirismo, do ontologismo e do absolutismo. A síncrese


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é insuficiente. A análise por si só é impotente. A afirmação dogmática absoluta é inútil. Não é porque somos peregrinos do absoluto no tempo que deixamos de ser peregrinos301. Neste sentido o absoluto é prévio, imanente e transcendente ao processo. É a priori, é in praesentia e a posteriori do ser, do conhecer, do fazer, do agir, do crer. Ele é sempre o sonho presente que não aconteceu ainda, mas que é necessário. Ele é um dever-ser. Assim, repitamos, o conhecimento (como a origem da palavra diz: cópula sexual, casamento) é um casamento de realidade e subjetividade. Nele a realidade, idêntica a si mesma e oposta à subjetividade, e a subjetividade idêntica a si mesma e oposta à realidade são negadas, identificadas e superadas. Assim a linguagem, assim tudo. A palavra é síntese de som e sentido. A frase é síntese de sujeito e predicado. O raciocínio é síntese de premissas e forma ilativa. A sociedade é síntese de grupos. Os grupos são síntese de indivíduos como pessoas. O Estado é síntese de sociedade e dever-ser. O direito enquanto norma é síntese de fato e valor. A participação é síntese entre o que eu quero e o que eu devo ante o querer dos outros. O mais elevado grau de participação é a doação, a generosidade em que eu quero a tua felicidade e faço desse agir a minha felicidade. A história é síntese de fato (de fado, destino, imposição) e liberdade. O trabalho é o modelo de elaboração de síntese mais visível. O mal é a determinação da síntese a partir de um dos pólos como se ele fosse princípio. O bem é a identidade dos pólos e sua superação na transcendência. Nenhuma síntese, porém, é absoluta, acabada, última, definitiva. Cada síntese é sempre apenas uma tese ou antítese em busca de um novo passo. O absoluto relativiza cada síntese, temporalizando-a, corroendo-a, negando-a na pretensão de ser definitiva e absoluta e empuxando-a para diante, para cima, analeti301

Ernildo Stein, Ideologia e História.


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camente. Obriga-a a pôr-se a caminho. E no caminhar, cada síntese é apenas uma tese ou uma antítese suplicando por sua ultrapassagem como sua própria identidade frente ao outro pólo e pela força propulsora do absoluto que a invade, antes, agora e depois. Assim a totalidade como exigência e como horizonte que sempre mais se afasta quanto mais caminharmos, é, no entanto, a medida de cada um dos nossos passos, o lugar próprio de cada coisa, a exigência ínsita de cada fazer e de cada agir. “O ser se manifesta como escondido”, diria Heidegger e, no entanto, ilumina todos os entes. O Absoluto é, em si mesmo, a igual desigualdade que tudo faz igual a si na diversidade que identifica e aproxima. Ele é a identidade da identidade e da oposição. Por isso o homem é peregrino do Absoluto: em fazendo sínteses da diversidade que deve ser compreendida. A pessoa, porém, não é apenas entendimento e compreensão. É também, paixão, querer, admirar e liberar-se à liberdade do outro. Enquanto entendimento, a síntese nasce da necessidade de coerência e da insuficiência dos pólos opostos como opostos. A necessidade de coerência como dever-ser, é princípio do pensar. É fundamento, pré-suposição, horizonte, necessidade. A contingência é constituída contingente pela necessidade e não viceversa. Se a realidade é contingente e não pode ser pensada senão pela necessidade, pela universalidade e fundamento, é porque a contingência é constituída na auto-determinação do princípio em si mesmo. Assim os primeiros princípios (identidade, razão suficiente, coerência) são o suporte, a hipótese primeira de todo pensar. Assim, o método científico parte sempre da hipótese e não da observação dos fatos, porque a observação só é possível a partir de um ângulo, de um ponto de vista, de uma hipótese. E, se os fatos se deixam observar a partir da hipótese, confirmam ou corrigem a hipótese, isto é corrigem a postura, o grau do ângulo de sua observação. O sonho, a hipótese, a utopia é sempre anterior, início da ciência e da experimentação. É também seu julga-


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mento. O círculo: hipótese-experimentação-hipótese, como aprofundamento do saber é a hermenêutica analética que, em si, engloba a analítica e a dialética. Os diversos passos desse círculo só podem ser compreendidos a partir dele: assim a definição da hipótese, a matematização dos resultados, etc. O Estado de Cristandade anulou a transcendência a partir do pólo dialético do Absoluto como contraposto ao contingente: Deus é o Absoluto e como tal é a autoridade, o proprietário, a causa de tudo; o mundo, o homem é contingência, efeito, dependência. Assim também o papa como representante de Deus e o rei como delegado do papa seriam o pólo absoluto, a autoridade, a causa, o bem, a justiça, a verdade. Aqui não há lugar para a alteridade e muito menos para o pólo extremo da alteridade: o pobre, o leigo, o índio, o negro, o infiel...Ora, o absolutamente outro, mostra-se como outro no clamor da vítima, do pobre, do índio... Da mesma forma a Modernidade européia, liberal, capitalista, iluminista, racionalista, positivista, excluiu o outro e fez da subjetividade o absoluto. O pensar, porém, em seus princípios e desdobramentos nasce da postura ética do cara-a-cara com a vítima cujo clamor nos dá a pensar. A unidade dos opostos na dialética é suposta e deve ser reposta conceitualmente como conciliação 302. A racionalidade precisa ser a conciliação de desejo e indignação 303 Para Platão, o desejo é irracional e prepotente. A ira, a indignação deveriam servir à racionalidade. A racionalidade, porém, é ao mesmo tempo a identidade do desejo (do bem e do belo) e da impetuosidade de quem a busca. A racionalidade identifica, nega e guarda o desejo. A racionalidade não é apenas a lógica de si e para si mesma. Uma racionalidade absoluta, autárquica, que é para si própria medida e critério é sempre irracional. Este racionalismo, na verdade, é 302 303

CIRNE LIMA, A Lógica do Absoluto, Síntese Nova Fase 1993: 451. :Cf. livro IV da República de Platão.


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sempre uma crença ou uma crendice no poder mágico do método (enquanto caminho absoluto) para chegar ao fundamento último e absoluto de tudo304. A racionalidade é síntese de desejo e indignação em sua identidade e possibilidade concreta. É sintese de fé (confiança) e coerência. O desejo e a indignação que se conciliam na racionalidade são, porém, o desejo do outro, a alteridade. O conhecimento resulta de uma relação inter-pessoal. As relações de amor, de ódio, de aceitação ou exclusão, desde o útero materno, desde o sugar o seio da mãe, desde o carinho, o afago, a relação ob-audiente com o pai, com a mãe, desde o companheirismo com o irmão, a irmã...marcam a estrutura, o sentido e a profundidade do conhecimento. O conhecimento racional, lógico, sistemático é, na verdade, uma justificativa, uma argumentação da relação pessoal vivida e expressa linguisticamente. Não é o conhecimento que determina a relação pessoal, a relação ética. Mas é a relação interpessoal que determina a estrutura do conhecimento. E as relações inter-pessoais, face a face, acontecem materialmente como afago, como proteção, como economia (na relação de trabalho), como política e como criação e organização social e cultural. É sábio o provérbio popular que diz “para quem ama tudo é belo”, “para quem odeia tudo é feio”. 305 A radical relação pessoal é a relação de alteridade e não apenas a relação de um sujeito como o “outro eu”. A radical relação inter-pessoal é daquele que, estando no sistema, se abre, escuta o clamor da vítima excluída pelo sistema. Uma relação ética. Sem ética e valores, sem desejo, portanto, não há racionalidade. A racionalidade é apenas uma das astúcias da vida, uma armadura, uma estrutura que permite espaço e vez à vida, começando pela priorização do mais fraco. Mas, de que racionalidade se fala? Qual a racionalidade que permite a priorização do mais fraco? A racionalidade como força, como arma para con-vencer o inimigo? Ou será antes a lógica da alteridade, como doação, como serviço, como compreen304

Cf. Zanotelli, Jandir. Ontologia do Diálogo. Pelotas, Educat, 1996. Freud insiste no carater de “racionalização” do nosso conhecimento; Marx, no caráter ideológico de nossa cultura... 305


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são, como amor? A experiência da alteridade radical, da gratuidade não seria a experiência, a memória, a esperança do Absoluto? E, no entanto, não podemos confundir experiência do Absoluto com o próprio Absoluto: Sacramento e não apenas símbolo,306 dizem os cristãos. A ética enquanto fundamento da dialética é práxis e não teoria apenas, nem sua aplicação. É opção, decisão, compromisso, muito mais que cumplicidade para com o excluído do sistema. Sem a priorização do mais fraco e do excluído não é possível a ética. E como justificar esta ética? Pelo interesse da maioria? A maioria, porém, terá interesse em acabar com a exclusão? Pelo interesse do mais forte que até faz concessões (“caridade”) para poder mandar e oprimir? O interesse do excluído choca, fere, atrapalha, nega o interesse do mais forte e do “bloco histórico” que domina e tem hegemonia... Será a ética a lógica da necessidade da sobrevivência individual ou da espécie? O grito dos excluídos cada vez mais numerosos põe em perigo o sistema e então é necessário fazer-lhe concessões? Mas os excluídos são cada vez menos perigosos...Eles não têm poder, não têm armas, nem auto-organização... Será a lógica do interesse? Do interesse da própria felicidade? Do interesse da salvação eterna? Do interesse do amor de Deus? Assim, amaremos o próximo como a nós mesmos porque Deus mandou? A relação com os outros seria, então, apenas instrumento, para que agrademos a Deus e nos salvemos? 306

Os mitos dos povos indígenas da AL só se compreendem quando ritualizados. O rito faz parte do conteúdo do mito e seus símbolos (a música, a dança, o gesto). Assim os mitos e ritos não são apenas a representaçào da realidade, mas é um participar, um incluir-se na mesma realidade fundante e originária. Pela palavra ritualizada o homem atua o universo, a vida: existe. O mesmo pode ser dito da comemoração litúrgica do cristianismo pela qual se lembra, se espera e se realiza o que se lembra e espera. Apenas um aspeto mágico, contraposto ao real e objetivo? É possível entender a linguagem sem o ilocucionário, e perlocucionário?


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Será a lógica da obediência a um imperativo categórico: o dever como honra, dignidade, como norma em si e por si mesma? Uma auto-determinação da subjetividade? A decorrência de um sentimento de culpa? De respeito às exigências da tradição e do tabu? Essas são questões que só encontram conciliação na ética da alteridade como fundamento do pensar. Na ética da alteridade que é capaz de acolher o clamor por justiça das vítimas, a transcendência, não impõe o respeito ético, mas o propõe e se propõe como caminho, verdade e vida... A moral é norma estabelecida e exigível e está nos limites da experiência histórica e institucionalizada. A moral, porém, não é a ética, ela se mede pela ética e esta pela transcendência. Assim a ética funda toda compreensão e todo agir humanos. A síntese ética do encontro do homem com o outro homem, na justiça, dá sentido ao falar, ao fazer, ao pensar. Assim o diálogo é a síntese ética da linguagem. Ele é anterior, presente e posterior a toda a pergunta e resposta. O diálogo não resulta das frases, assim como o sujeito e o predicado não geram a frase, mas é esta que os constitui e identifica como opostos entre si. Ela os opõe, nega-os, supera-os e os mantém em sua identidade. O diálogo é anterior à fala e à significação, ele funda a fala e a significação e suas normas e sistemas. Assim também a comunhão é anterior à interface, à comunicação, ao estar para o outro, à democracia. Quem não está vinculado, ligado, com o outro, não criará a vinculação por meio de teses e antíteses. Porque o homem é radicalmente vinculado, ele expressa, expõe, mostra e cria laços de comunhão. O “Espírito”307 estrutura a comunidade, a partilha, o dialogar...e nessas estruturas e instituições, nessa temporalidade es307

Tomamos aqui a noção de Espírito que o cristianismo tem como aquele que constitui a “comunhão dos santos”. Modo parabólico de falar que o pensador não pode desprezar.


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pacial, que se faz virtude, moral, direito, norma, língua...o “Espírito” se encarna e habita entre nós...Assim, para ver o “Espírito”, é preciso ver não apenas o sistema e suas normas, mas as fendas, as brechas, a negação do sistema no rosto do excluído do sistema: no rosto do pobre. Nenhuma estrutura ou sistema é capaz de comportar o “Espírito”. A estrutura revela, indica, desvela e mostra o “Espírito” enquanto se supera e se faz obediência ao abismalmente outro. A pura e simples afirmação do sistema como absoluto é negação absoluta do Absoluto e do sistema: tudo se anula. Não há resgate, recuperação, superação, ressurreição da carne... É preciso vigiar, vigilar, cuidar da manifestação do Espírito, que é manifestação também do homem e da terra, e da vida... não só estar atento, mas ser cuidadoso... 308, “sorgen”309. No visível há a epifania do invisível. Na forma, engravidando toda a estrutura, e doformando sua silhueta, está a vida. É preciso cuidar da forma para acolher a vida. A vida dá à forma sua devida forma e formato.310 Assim a analética da alteridade permite compreender o pensar, o agir, o fazer; pensar o pessoal e o comunitário, pensar o interesse e o ético311. 308

Cf. Boff, Leonardo. O cuidado. Cf. Heidegger: Ser e Tempo. 310 Para aceder à verdade “ é preciso deformar a forma e desfigurar a figura...flor e canto são o único caminho dado ao homem na terra para chegar à verdade” diziam os tlamatinimes Astecas. 309

311

Assim, o orçamento participativo: supõe a dialética de autoridade (Estado) e cidadão. Supõe que a participação mantenha e dê identidade à autoridade do Es tado (e às Instituições da Sociedade Civil) e às necessidades e direitos dos cidadãos, enquanto opostos. Sem que um ou outro determine o contrário: Não é o Estado ou a Sociedade que determina a cidadania, nem a cidadania que determina o Estado ou Sociedade. É a participação (ou exercício real da democracia) que determina um e o outro enquanto opostos, idênticos a si mesmos e vinculados na oposição. A renúncia ao poder totalitário e auto-determinante do estatismo é condição de possibilidade da participação, assim como a confirmação daquela autoridade pela participação cidadã. A ética da participação é transcendência analéti ca em relação ao Estado e aos cidadãos. É nele que os direitos e deveres se constituem e realizam.


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- Criar, inventar, estabelecer, dentre as alternativas possíveis, as melhores (mais eficazes, mais válidas) mediações para produzir, reproduzir e desenvolver a vida humana (auto-responsável) em comunidade é o princípio material-universal (estabelecido pela razão prática) de todo o agir ético. - O princípio proposto numa determinada comunidade humana é validado intersubjetivamente pela argumentação ética (com outras comunidades). Esta argumentação exige: a busca sincera da verdade (numa ação comunicativa e não apenas estratégica de dominação); a correção na argumentação; a simetria dos interlocutores (que significa não apenas ter em mente uma comunidade ideal de interlocução, mas por-se a caminho na realização de uma igualdade inclusiva a começar pelos mais excluídos)... Se alguém, algum grupo, algum povo não puder ser incluído, realmente e não apenas idealmente, na comunidade argumentativa, isto demonstraria por si só que o princípio, não podendo vir a público, devendo ficar escondido, “protegido”, não é bom, é mau, é perverso, anti-ético, desumano. Assim, a transparência, a publicidade, é condição de sua validade, em todo o processo. - Assim ao princípio material são agregados os princípios formal-procedimentais (coerência não apenas com o universal e sim com o vital), o de factibilidade (é preciso que algum modo se mostre sua viabilidade, muito embora peregrina, histórica, precária) e o princípio crítico de libertação que faz da libertação das vítimas do processo a prioridade e o telos da ética. Assim, não podem os cidadãos, para participar, estar pré-determinados pelas instâncias previamente estabelecidas de participação (Sociedades, Igrejas, clubes, bairros de residência, poderes como câmara de vereadores, entidades...). A desconstrução das sínteses de participação prévias (embora permaneçam como lugar, condição, memória de outras participações), é condição de possibilidade de participação. Para que o movimento dialético possa acontecer é preciso ver que as sínteses, uma vez feitas, necessitam de ultrapassagem, convertem-se em teses. E a síntese posterior não deixa as anteriores petrificadas como dogmas absolutos. As formas de absolutismo sobre sínteses já constituídas podem negar o processo de participação, se, por dentro das próprias sínteses não se reviver a dialética permanente de participação: a superação analética.


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- O conhecer, o fazer, o agir humanos partem, pressupõem e manifestam uma atitude ética de reconhecimento ou não da outridade do outro enquanto gesto de solidariedade ou dominação. Não há atitude neutra. A ética não resulta do conhecimento e de sua lógica mas, pelo contrário, o conhecimento resulta da ética e de sua lógica. A criticidade resulta e corporifica, materializa, a atitude ética de co-laboração, de solidariedade. Vice-versa não vale: não é suficiente uma atitude crítica lógica e metafisicamente para gerar solidariedade. A solidariedade acontece nas relações sociais econômicas, políticas, culturais e religiosas. Mas não nasce apenas delas. - A ética não resulta, também, apenas de uma determinação da subjetividade de cada um, nem da autoridade histórica das tradições implantadas pela socialização do grupo social a que se pertence. A ética não se resume à moral (um conjunto de normas e valores propostos e impostos a uma comunidade como comportamento que se espera, que é oportuno e que é necessário observar). Ela implica em envolvimento da liberdade em aceitar como válidas ou como não válidas as normas morais e em lutar para que o comportamento espelhe sua validação ou sua revogação para que a outridade do outro seja acolhida e respeitada. E se é verdade que a solidariedade exige organização, normas, ritos para vigorar (Durkheim), também é verdade que o rito, a norma, muitas vezes disfarça, dissimula, esconde relações sociais de opressão, de anti-solidariedade. E a solidariedade “orgânica” (e não apenas “mecânica”) exige não apenas a criatividade de novos padrões e ritos, mas o acolhimento à outridade do outro homem que, em si mesma, é novidade e criatividade abissal. - A ética não nasce apenas do consenso de um grupo de debate ou de convívio, nem do consenso de uma comunidade ideal de argumentação (as máfias também tem um coeso consenso). É verdade que um dos sinais indicativos de que uma atitude não é ética consiste em não admitir que ela seja submetida a uma comunidade de argumentação. Mas este pólo dialético não valida por si só o pólo oposto: é ético porque submetido à argumentação, de um, de alguns ou de toda uma comunidade. A ética transcende, fundamenta e dá sentido à comunidade e sua argumenta-


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ção e não vice-versa. É porque a ética transcende a comunidade que ela deva ser validada pela comunidade e não vice-versa. A ética dá sentido à comunidade e ao debate e consenso da comunidade. Por isso o OP não será uma atitude ética apenas porque resulta do consenso de seus participantes. - O trabalho é a atitude ética fundante: o trabalho vivo e não apenas a força de trabalho subsumida no processo de produção da propriedade cumulativa e exclusiva do capital. Ele é o critério. Aos homens submersos no sistema feudal de privilégios, de estamentos discriminados em quase castas (onde uns viviam para trabalhar, outros para mandar e outros para rezar), no Estado de Cristandade que tudo sacralizava em nome de Deus, a Modernidade Européia prometeu a todos os homens um reino de Igualdade, Liberdade e Fraternidade, organizado num Estado de Direito Democrático. Essas promessas incumpridas seguem ainda como o horizonte utópico para todos os homens. Neste horizonte, para pensar a participação popular e especialmente o OP destacaremos os princípios políticos da Modernidade como os do Estado de Direito, a Democracria Representativa, os Direitos Humanos e especialmente: Igualdade, Liberdade e Fraternidade e da soberania popular. - Todos os homens são iguais em dignidade, livres, capazes de perfectibilidade expressa em utopias e esperanças, sujeitos da história em interdependência com cada um e com todos os outros homens, radicalmente solidários, elaboradores de mundos de significância: outro de cada um. - Os homens são radicalmente fraternos porque têm uma origem comum, formando uma só família (muito embora a diversidade de etnias, sexualidade, cores...) e uma só raça, e têm um “telos”, uma perfeição, uma escatologia comum: todos são chamados à perfeição, à felicidade que poderia ser expressa pelo mito semita: o homem (homem e mulher) nasceu para transformar o mundo num pomar com todos os frutos possíveis, completamente irrigado, experimentando na nudez da verdade (e da intimidade sem máscara) a presença de Deus (que planta o critério da organização do pomar, empuxando o homem para mais além


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de seu próprio arbítrio) e que passeia com o homem à brisa da tarde. - A igualdade, a liberdade, a fraternidade não são apenas uma ilusão impossível para justificar a “livre” concorrência do mercado, mas uma utopia que precisa acontecer para que a sociedade tenha sentido. O princípio político da soberania popular impôs-se, na Modernidade, como exigência fundamental, para ultrapassar as tiranias e despotismos religiosos e políticos estruturados no Estado de Cristandade. A voz de Deus está na voz do povo e não apenas na voz do rei ou da hierarquia eclesiástica, dizia a burguesia que buscava a hegemonia política. E desde então, o conceito mais conflitivo e ambíguo foi o de “povo”, “popular”. A burguesia é o povo e sua representação? Em que medida uma nação se constitui como soberana ante as outras nações e frente ao Estado que ela organiza como sua norma, seu poder e seu espaço de liberdade, igualdade e fraternidade?

- O povo é soberano (ele detém o poder máximo de governo e organização). Dele derivam as leis e a força para fazê-las cumprir. Da soberania popular nascem as utopias, exigências, princípios: igualdade, liberdade, fraternidade. - Em que se funda a soberania popular? A) Na natureza humana (liberdade) e das coisas? B) No Estado-Nação? C) No fato da luta de classes e na lógica fatal da história? D) Na imprescindível condição da existência: para não morrer? E) Na exigência ética do viver e conviver? -

Para que a soberania popular não se faça anarquia suicida é preciso que ela seja controlada, tutorada, tutelada pelas lideranças (econômicas, políticas, sociais, culturais)? A burguesia é a classe social portadora das promessas e garantidora dos ideais de liberdade, igualdade e fraternidade? O Estado de Direito é a condição? A Democracia representativa é a condição? Ou a Democracia representativa seria apenas um meio, talvez uma condição,


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para operar a Democracia que é sempre direta, em seu nascedouro, em sua finalidade, e em seu exercício?

- A Democracia direta deveria ser a utopia, o ético, a expressão da soberania popular e o restante (Democracia Representativa, Estado de Direito, a Legalidade....) seria apenas e tão somente condição para o exercício da Democracia que só é Democracia se for direta? - Neste sentido, o OP, (na impraticabilidade e mesmo impossibilidade de uma Democracia direta em sociedades amplas e complexas) seria um instrumento para articular a Democracia representativa com a direta? - E o OP, enquanto exercício de Democracia Direta, enquanto manifestação da soberania popular, encontraria na ética da participação o seu fundamento. - A Ética da participação encontra na necessidade da inclusão dos excluídos, na priorização do mais pobre, no clamor dos oprimidos pelo sistema excludente sua razão de ser. - A ética da participação implica pois os ideais do liberalismo (liberdade, igualdade, fraternidade) e os ideais do socialismo (solidariedade e planejamento), tudo superado pela ética da inclusão e da alteridade. Nossa hipótese e pressuposição para compreender o Orçamento Participativo é: o OP é um processo de Democracia Participativa que nasce de uma decisão política caracterizada por uma escolha ética que integra os seguintes elementos:

a)

do clamor das vítimas produzidas pelo sistema de produção e reprodução capitalista (ou não) globalizado surge, e se impõe para todos a exigência: “as vítimas devem poder viver”, as vítimas do sistema devem ser incluídas na partilha dos bens produzidos pelo sistema; b) o OP ensaia uma resposta e alternativa: “as vítimas não só devem poder viver” mas “as vítimas podem viver” e, então,


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“todos podemos viver” (produzir, reproduzir e desenvolver a vida humana auto-responsável em comunidade). O princípio fundamental da ética (teórico e prático) material e universal superando as éticas formais ou as materiais delimitadas num só contexto (como o do consumo no mercado), parece ser: o dever de produzir, reproduzir e desenvolver a vida humana em comunidade, institucionalmente. Encontrar necessárias mediações econômicas-políticas-sociais-culturais que permitam a produção, reprodução e desenvolvimento da vida humana em comunidade: eis o compromisso ético. Aí o OP tem sua validação e seu horizonte. Como as ações e instituições com pretensão de bondade não são boas em sentido absoluto, gerando vítimas, é preciso instaurar permanentemente uma ética da libertação que: a) negativamente afirme que as vítimas devem poder viver; b) discursivamente elas devem poder participar da argumentação da maneira, do processo, dos caminhos de sua libertação; c) e, em tudo, buscando as transformações sócio-político-culturais com pretensão de justiça. Este processo ético-político de participação popular não é um conceito ou um processo apenas dialético, um jogo de oposições de interesses, um jogo de suplantação dos interesses de uns pelos interesses dos outros, mas é um jogo analético em que o interesse de todos conflui no interesse dos mais fracos e excluídos como condição e como legitimidade da luta pelos interesses de todos. No interesse da inclusão dos excluídos, assumida pela comunidade dos excluídos, apoiada na solidariedade ética daqueles que com ela se compromete, está o sentido até revolucionário do Orçamento Participativo. Na medida em que fugir deste compromisso e deste caminho, o OP passa a ser uma simulação, um disfarce e uma traição à causa popular e, consequentemente, à causa de cada homem e de todos os homens.


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Como o próprio nome indica, o Orçamento Participativo é o exercício da concepção analética de participação. E esta supõe, no mínimo:

-

A construção de condições de igualdade, liberdade e fraternidade como compromisso ético permanente, sempre renovado.

-

A participação não é uma concessão, um favor, magnanimidade de quem tem o poder, ao pobre, ao excluído, como exercício de virtude de quem concede, como prática da “caridade cristã” visando à salvação do generoso. Torna-se impossível a participação se aquele que detém o poder por representação, não devolver o poder concedido a quem o concedeu. Se, como via Rousseau, a Assembléia do Povo não retomar permanentemente sua soberania indelegável, exercida momentaneamente por seus servidores encarregados das funções do Estado.

- “Todo poder emana do povo e ele o exerce por meio de representantes eleitos ou diretamente” diz a Constituição Brasileira. A concepção de propriedade aplicada ao poder e, pior ainda, à representação do poder (o representante é o dono do poder e ele o exerce como bem entender) torna impossível a participação. Não só impossível a participação do povo (usurpado que foi) mas também do detentor do poder. -

Para que haja participação real (e não trejeito, ritual apenas da participação) é preciso que o detentor do poder devolva o poder, renuncie ao poder sempre que estiver frente àqueles que lhe deram a representação e o poder. É preciso retornar sempre à idéia de soberania popular da Assembléia, como dizia Rousseau.312

- Isto implica que o representante do povo deverá ouvir o povo em tudo o que o povo tem para dizer. E o que o povo dis312

Se isto não é possível numa sociedade complexa, se o factível, no momento é ligar (associar) à Democracia representativa elementos de Democracia direta (como dizem os teóricos do OP em Porto Alegre) pelo menos deve-se estabelecer o critério que: a participação direta é o critério ético-político da Democracia.


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ser é o que vale. E o que o povo quis dizer deve ser interpretado segundo o que o povo precisa (suas maiores necessidades) e não segundo a facilidade, a disponibilidade ou factibilidade de quem manda. E não se pode fazer de conta que se ouça, fazer de conta que se ouviu, ou, pior ainda, que já se sabe o que o povo quer dizer, ou que o povo não sabe o que quer nem como dizer o que quer. E não se pode pôr na boca do povo o que se quer que ele diga, como assentimento, consenso com as linhas programáticas de “meu” partido ou “minha” ideologia, mesmo que elas se digam e propalem como sendo populares.

-

Deve-se ultrapassar o cinismo: de escutar para não ouvir, de falar para não dizer, de encenar a participação para não haja participação.

- É o povo que deve dizer o critério, refletida, dialogada, debatidamente. E então o povo é sempre sábio quando falar a partir de si próprio e não for subsumido no projeto hegemônico da elite que manda: primeiro atenda-se aos que menos tem, para depois atender aos outros. Primeiro o que é útil a todos, para depois atender o que é útil a um grupo, setor ou indivíduo. O mais fraco, o excluído, passa a ser critério ético e político da determinação das prioridades de ação. E este critério ético-político é o que permite (analeticamente) fixar e superar a oposição dialética de excluídos e incluídos, de representantes e representados, de sociedade e Estado. - E não se diga que é suposição ingênua de pensar que os pobres e excluídos sejam solidários. Na verdade, só não crê nisso aquele que projeta sobre os pobres e excluídos, o critério que ele mesmo tem de egoísmo absoluto ditado pela propriedade do supérfluo como demonstração de poder. Na verdade, é a atitude de desespero de quem se sabe justamente isolado sem poder ser com-o-outro.313 313

E se a população participante “quebrar a cabeça” em decisões menos sábias e das quais venha a se arrepender, isto não será mais desastroso do que as decisões de burocratas da elite que quase sempre erram e sempre erram em detrimento dos mais fracos.


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A participação implica em processo, em institucionalização e em sua constante superação. É preciso rito, organização, como meio, como caminho ditado pela participação e seus critérios. A burocracia, o ritual, não geram nem mantêm a participação, mas são como seu corpo, indispensável e insuficiente, sempre de novo refeito saudavelmente. No contexto de iniciativas que procuram resgatar as raízes da Democracia onde todo cidadão tem direito a votar e ser votado, onde cada um vale um voto de igual peso, onde o voto deve expressar a opinião livre de cada um, onde vigora o princípio da maioria numérica nas deliberações, onde se reconhece o direito das minorias, onde a liberdade de opinião e de imprensa, a liberdade de reunião e associação sejam garantidas, alternativas são implementadas no mundo de hoje como o plebiscito, o referendo, a iniciativa popular que aparecem em nossa Constituição. O Orçamento Participativo emerge como uma alternativa significativa de participação política onde os cidadãos “estão envolvidos no processo político, mobilizados para participar e detêm os recursos necessários à participação (inclusive o acesso à informação)” como diz Nuno P. Monteiro 314. Os participantes motivados e com garantias exercem o direito com regras e meios, dentro de uma ética fundamental de comunicação. Votam, influenciam, cooperam, contatam, decidem como diz Ricardo Magnus Rangel315 314

MONTEIRO, Nuno P. Cadernos Socialistas. Democracia Eletrônica. Lisboa: Gradativa Publicações, 1999. Pg. 13. 315 RANGEL, Ricardo Magnus. Participação: Tributo à Soberania Popular. Porto Alegre: Assembléia Legislativa, 2001. Pg. 18-25. São sugestivos os títulos dos capítulos: Premissa: Transformação ditada pelo povo; A chave da questão: soberania popular; Um conceito de democracia; Condicionantes da participação (Motivação, Garantias-regras-e-meios, sociedade desigual, direitos humanos); As normas da participação (voto para escolha em democracia direta. Campanha para influenciar, atividade cooperativa como cooperar e contato particular ); uma democracia substancial; conclusão e experiências marcantes na história recente da participação em que refere: Recife (1955), Lages (1977) Pelotas (1983), Coredes (1990), os comitês de bacia (1992), a consulta popular (1998),


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Utilizando o critério de alteridade analética como condição das relações dialéticas de conhecimento, de relação e inter-relação (econômica, política, social, cultural) poderemos ver criticamente o programa Orçamento Participativo em todas as suas etapas: a) no planejamento e preparação, b) na execução (convites, reuniões, decisões), c) na aplicação do decidido, d) na avaliação e acompanhamento.

o OP estadual (1999) e plebiscitos e referendos (2000).


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IV. EM DIREÇÃO AO ORÇAMENTO PARTICIPATIVO 4.1 O Contexto As experiências de participação popular que se encaminham a compor, decidir, controlar o Orçamento e que antecedem o OP em análise, acontecem no final da década de 1970 e início da de 1980, num contexto que poderia ser assim indicado: É época de crise dos paradigmas: econômicos (do capitalismo industrial para o financeiro); com a polarização Norte x Sul; com o esgotamento da polarização ideológico-política mantida pela guerra fria; com o esgotamento do modelo do Estado do Bem Estar Social e a redifinição das relações de trabalho e das funções do Estado (o Estado Mínimo, o estrangulamento do sistema previdenciário e das políticas sociais de compensação); com a desregulação do mercado e da economia; com o esgotamento dos socialismos de economia planificada e a estatolatria; com a instabilidade do controle mundial dirigido pelos EUA frente as crises políticas pelas quais passam a Ásia, a África e América Latina (controle compartilhado pela Trilateral, grupo dos 7); com o ressurgimento e união dos povos árabes e islâmicos ao redor do petróleo (dese 1964); esgotado o modelo truculento das ditaduras promovidas pelos EUA para controle econômico-político-social e cultural da América Latina e do Terceiro Mundo como um todo Ressurge, então, em toda parte o tema da participação popular: o povo é o autor de sua libertação. Neste sentido é bom lembrar fatos e movimentos como: As experiências de revolução popular: Revolução Russa – Revolução Chinesa – Revolução Cubana sem falar da África... Depois das experiências populistas e dos fascismos. Depois das tentativas frustradas de revoluções proletárias e das contra-revoluções: as ditaduras da América Latina e Brasileira. Depois das experiências de conscientização e educação popular. Na senda das concluões do Concílio Vaticano II e da Conferência Episcopal de Medellin (o pecado da AL se chama miséria – e a opção


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preferencial pelos pobres: o pobre como epifania do Absoluto). Depois do clamor dos estudantes de 1968 (pedir o impossível). . Depois da centralização do Estado, do autoritarismo e das de-formações políticas operadas pela ditadura destruindo o federalismo e anulando o município e atrelando o país a uma espantosa dívida pública e externa. Impunha-se o resgate do sentido comunitário, da organização de moradores, de cooperativas reforçando o caráter local com seus problemas e reivindicações; impunha-se resgatar a participação popular na administração pública. Na esteira da lenta e gradual abertura política do Presidente militar Ernesto Geisel (1976...) e do “farei deste país uma democracia, mesmo que seja a porrete”, frase atribuída ao Presidente militar João Batista Figueiredo, com as leis de anistia (mais para perdoar os algozes que as vítimas), com o retorno de intelectuais e políticos do exílio, com o movimento que incendiava as ruas reclamando eleições “diretas já” para presidente da República, a abertura política se impunha. Teotônio Vilela, doente em fase terminal, percorria o Brasil pregando o pagamento das dívidas sociais 316 que o Estado e a Nação brasileira deviam aos cidadãos, desde o emprego, a garantia de alimento, a moradia, a educação, saúde, segurança, etc.e isto se impunha como um grito profético de uma ética política necessária. As alternativas de educação popular (Paulo Freire, MEB...) da década de 1960, dos movimentos e organizações po316

Salientava-se, então, que a enorme carga tributária não correspondia aos benefícios que o Estado deveria prestar. O Estado estava em dívida especialmente para com os mais pobres que suportavam o maior peso da carga tributária. Não se previa ainda a violência tributária que a sociedade brasileira suportaria dali por diante no contexto do neo-liberalismo global. O Instituto Brasileiro de Planejamento Tributário mostra como de, 1986 a 1999 a carga tributária brasileira cresceu 295%. Em 1986 equivalia a 75,64 bilhões de reais ou 22,39% do Produto Interno Bruto; em 1998 subiu para 269,94 bilhões de reais ou 29,90% do PIB; em 1999 foi para 299,26 bilhões de reais ou 32,99% do PIB, chegando em 2002 a 37% do PIB. Cf. ZERO HORA, de 3/4/2000 pg. 27.


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pulares, bem como das comunidades eclesiais de base, passada a tempestade da ditadura de 64317, ressuscitavam das cinzas e se ensaiavam experiências de participação popular na administração municipal como as de Pelópidas da Silveira (1955 em Recife), a de Dirceu Carneiro (Lages, 1977), a do “Todo poder emana do povo” (Pelotas, 1983318), a dos Coredes (Conselhos Regionais de Desenvolvimento no RS, desde 1994), a dos Comitês de Bacia (Desenvolvimento sustentável nas bacias hidrográficas do RS), a Consulta Popular (Regulamentada em 1998 RS) e, por fim o Orçamento Participativo (em Porto Alegre, depois em Santa Maria, Caxias do Sul e no Estado do RS).319 Hoje, sem sombra de dúvidas, pode-se afirmar que a idéia do Orçamento Participativo foi gestada, ensaiada, praticada, pioneiramente, em Pelotas, na adminsitração municipal de Bernardo de Souza (1983-1987). Foi desta experiência, amplamente divulgada nos meios de comunicação e debatida por seus autores com professores, políticos e agentes sociais de Porto Alegre, Cachoeirinha, Montevidéu... que nascerá, em Porto Alegre, o

317

Bernardo de Souza, Todo Poder Emana do Povo – Quando Tudo Começou, pg.s 14 e 15 mostra como a ditadura coibia a participação, desde o Ato Institici onal n° 2 quando os partidos são extintos e só admitidos dois partidos ARENA e MDB, aprovando uma nova Constituição em 1967, sem a presença de muitos deputados já “cassados” em seus direitos políticos; com uma emenda acabam com a eleição para Presidente da República, para o Governo dos Estados, Prefeituras das Capitais e Portos Marítimos, de Fronteira, de Estâncias Hidrominerais; eliminaram-se as garantias políticas sob o jugo da lei de segurança nacional etc. etc. prorrogavam-se os mandatos sob pretexto de conveniência... admitiam-se as sub-legendas de um mesmo partido... De tal forma quea Eleição de 1982 escolheram prefeitos, vice-prefeitos, vereadores, senadores, deputados estaduais e federais e governadores. Depois de muita sede por Democracia vinha, enfim, uma enxurrada quase indigesta de escolhas. 318 A experiência de participação popular no programa Todo Poder Emana do Povo levado a cabo em Pelotas (1983-1987), servirá de contra-ponto para nossa análise do Orçamento Participativo. 319 Boaventura de Sousa Santos, na obra que organiza Democratizar a democracia – os caminhos da democracia participativa. (Rio de Janeiro: Saraiva, 2002) recolhe experiências de participação em 6 países: África do Sul, Brasil, Colômbia, Índia, Moçambique e Portugal, e faz uma análise do OP em Porto Alegre, com observações incisivas e relevantes para o nosso trabalho.


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OP e dali alcançará o Estado, outros municípios e outras paragens320. Por isso é importante deter-se sobre essa experiência inovadora. 4.2 A experiência de OP em Pelotas Como procurador-geral do município e depois à frente da COSAC (Coordenadoria de Serviços e Ação Comunitários), Bernardo de Souza, na adminisltração de Irajá Rodrigues (até 1983) propõe a descentralização administrativa (com coordenadorias regionais: uma em cada grande bairro) e a participação popular nestes trabalhos. Fruto desta interação com a população e com um grupo de intelectuais que, em Pelotas, ensaiavam ações populares em múltiplos sentidos (criação de comunidades de base, organização dos movimentos populares, associações de moradores, criação de um curso de Pedagogia para formar alfabetizadores e educadores na linha de Paulo Freire na UFPel, o primeiro de todo o Brasil, etc) Bernardo é incentivado a pensar numa administração municipal com a participação real do povo. Candidata-se a prefeito pelo PMDB e elabora, com a participação de um grande grupo, sua plataforma de governo expressa no “jornal de campanha” A HORA É AGORA. Distribuído de porta em porta, trazia o compromisso “da participação da comunidade...no processo de tomada de decisões... especialmente na discussão e deliberação sobre o orçamento municipal” 321 prome320

Em abril de 1999 o governo federal propõe projeto de lei que obriga a União, Estados e Municípios adotarem formas de consulta popular na elaboração de seus orçamentos, dentro da Lei de Responsabilidade Fiscal. ZERO HORA de 11 de abril de 1999, pg. 23. Enquanto isso a Assembléia Legislativa do RS propunha a realização de referendos e plebiscitos para as políticas mais importantos do estado. 321 Cf. Bernardo SOUZA, 2002: 21.No folheto do programa de governo dizia-se: “A elaboração de nosso programa, no decorrer de oito meses de trabalho


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tendo fazer um governo popular pautado na “eficiência, probidade, descentralização e participação popular”(B.Souza, 2002:18). Os fundamentos da parlticipação popular eram “uma sincera e efetiva confiança na soberania popular... com irretocável probidade e com a efetiva possibilidade de a população aprovar e rejeitar as propostas governamentais (propostas que a administração tem a obrigação de apresentar com a correspondente programação de uso de recursos humanos e financeiros, também referentes à manutenção)”322 e dentro dos parâmetros permitidos pela lei. Ao assumir a Prefeitura em 31 de janeiro de 1983 323, Bernardo encontrou a situação seguinte: - uma gravíssima crise financeira: os servidores, com 7 meses de salários atrasados entram em greve.

-

Os salários consumiam 120% de toda a receita (uma Prefeitura auto-fágica: sem possibilidade de investimento, de manutenção ou de serviços de espécie alguma)

-

O pagamento da dívida anteriormente contratada consumia 40% da arrecadação, sendo que os bancos, com procuração irrevogável, retinham esses valores antes que o Estado ou a União os repassassem à Prefeitura exaustivo, é resul.tado de discussão com lideranças comunitárias, políticas e técnicos de pensamento progressista. Este programa que estamos apresentando não é definitivo, nem está completo. Continua em processo de discussão e aperfeiçoamento, para o que convocamos toda a comunidade, principalmente através das entidades representativas de seus diversos setores. Este programa representa o início de uma nova forma de governar, em que o povo é chamado a participar, não só do governo, mas da elaboração do próprio programa de ação governamental. Vamos continuar discutindo. Vamos governar juntos”. 322 B. SOUZA, 2002: 20. 323 Para um mandato de 6 anos. Bernardo deixou a prefeitura para assumir a Secretaria de Educação do Estado do RS em 15/03/1985. O vice-prefeito, assumiu então a prefeitura sem o compromisso com a participação popular e o processo se interrompeu. Confira também a entrevista da professora Cloé Wetzel Vieira (em anexo) onde se ressalta o sentido do programa Todo Poder e a causa de seu declínio.


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- Dos possíveis tributos recolhidos pela Prefeitura, 1/3 dos imóveis eram isentos de IPTU (os mais pobres) ou com 50% do valor se fosse imóvel único e residencial do proprietário. Muito embora a nova administração pusesse em prática todos os estímulos de participação popular e fosse denominada de Governo da Participação, isto não bastava. Dentre os estímulos destacamos:

- Eleição para a escolha de cargos administrativos, como os administradores distritais ou sub-prefeitos (8 distritos), vedada a discriminação político-partidária, com voto de todos incluindo analfabetos e maiores de 16 anos 324. Todas as condições da eleição eram deliberadas pelas assembléias comunitárias do distrito que se transformaram em Conselhos Comunitários Distritais com reunião mensal, e dos quais podiam participar todas as entidades associativas do Distrito. - Eleição (por lista tríplice em 1983 e direta a partir de 1985) para diretor nas 148 escolas municipais (escolas de 1º e 2º grau)

- A criação (pioneira) do Conselho Municipal de Educação com a participação de professores, de representação das escolas públicas, particulares, universidades e de círculos de pais e mestres... para deliberar sobre as políticas de Educação. - A criação do Conselho Municipal de Trânsito, com a participação de todas as associações comunitárias, grêmios estu324

“A criação das administrações distritais (com sub-Prefeitos eleitos por voto da população) os conselhos comunitários, a eleição dos diretores de escola – tudo me parecia muito próximo do que eu havia visto na Nicarágua e tudo acontecia sem que jamais eu lhe tivesse comentado ou reportado o assunto... O pon to culminante desse processo de radicalização democrática veio, no entanto, com a criação do orçamento participativo.... Mas o que torna o projeto de Ber nardo diferenciado de todas as experiências posteriores, principalmente no Rio Grande do Sul, foi a neutralidade partidária, o desassombro e a neutralidade, a disposição deliberada e trabalhada de não “controlar” ou influenciar as decisões das comunidades, a intenção articulada de evitar a manipulação da vontade po pular” José Fogaça in B.SOUZA, 2002: 11


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dantis, diretórios acadêmicos, agremiações profissionais, movimentos populares de Igrejas e um representante das empresas permissionárias de transporte coletivo que, avaliadas as reais despesas, não só não elevou o valor das tarifas, mas adequou-as à capacidade salarial dos usuários. Os proprietários forçaram uma greve. A Prefeitura praticou intervenção... “A partir daí, as empresas permissionárias nunca mais desafiaram a autoridade e a política tarifária da prefeitura” 325e se conseguiu implantar uma política de tarifas públicas326. Muito embora todo incentivo à participação, a situação financeira da prefeitura permanecia caótica e impraticável. Muito embora “o espírito democrático do pequeno grupo inicial, reunido em torno de nossa candidatura que o levava a buscar cami nhos para ações e práticas participativas além dos marcos tradicionais da democracia representativa” era preciso que a participação fosse eficaz em deliberar sobre uma creche, uma escola, um posto de saúde...e que não se perdesse no vazio do “mas não há recursos”. A participação, a Democracia corria o risco de aparecer como inócua, ilusória, incapaz de resolver os reais problemas da população. Pois, se havia a ordem de que “todos os secretários, no desenvolvimento de seus trabalhos específicos, tinham de discutir com a população e com as entidades as atividades que viriam a ser desenvolvidas”327, discutir e debater com a população para, ao final, dizer que não havia recursos, era o suicídio político. Ademais, tínhamos ainda quente e dolorido o ensinamento da ditadura, na senda do Positivismo: o poder só é eficaz quando centralizado; reunião, assembléia, participação é perda de tempo e de dinheiro. Era preciso mostrar que o poder é mais eficaz quando descentralizado e participado. E que o povo é mais lúcido que muito ditador. 325

B.SOUZA, 2002: 23 e ss. “Conseguimos fazer com que o controle do transporte coletivo fosse público e, com isso, descobrimos que as alegações dadas pelas empresas pra pedir aumento de tarifa não eram verdadeiras, pois elas tinham condições de trabalhar com valores menores” Alceu Salamoni, in B. SOUZA, 2002: 40. 327 Alceu Salamoni, in B. SOUZA, 2002: 41 326


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O interlocutor do administrador público não poderiam ser apenas os funcionários municipais, que estavam em greve por justa reivindicação salarial. Ademais, era impossível atender sequer o pagamento de salários correntes (que absorviam 120% da arrecadação), e muito menos pagar 7 meses de salários atrasados. O interlocutor da Prefeitura era a população do município que pagava e custeava toda a máquina administrativa e dela nada recebia e de quem os funcionários (incluindo o Prefeito) deveriam ser considerados empregados e servidores.328 Mas como chegar à interlocução? Muitos eram os representantes do povo: vereadores, Prefeito, presidentes de associações e de comunidades, de partidos... Todos dizendo-se representantes legítimos, legais, exclusivos, trazendo reivindicações e falando em nome do povo329. E o povo? Depois de ter votado, permanecia calado, insatisfeito com a nulidade de serviços prestados pela Prefeitura. Ora, o maior instrumento político da administração municipal deveria ser o orçamento. Mas, para que ele pudesse ser um instrumento real da política, deveria “deixar de ser uma peça de ficção”.(B. Souza, 2002:19) Era necessário, então, que o povo deliberasse sobre o orçamento, em sua elaboração, em todas as rubricas de receita e 328

Era preciso, antes de mais nada, impor um pouco de racionalidade administrativa no caos. Assim foi extinta a Secretaria de Planejamento e criado o Conselho Municipal de Planejamento (com o prefeito, vice, secretários, dirigentes das empresas estatais) e um Departamento para elaborar tecnicamente o Plane jamento. Foram demitidos 1.500 dos 5.000 servidores (não necessários aos serviços do município) a começar pelos cargos em comissão e de salários mais altos... para que a folha coubesse minimamente no orçado de arrecadação. O professor Alceu Salamoni, chefe de Gabinete de Bernardo, assim se expressa: “No primeiro ano não conseguimos colocar em prática a proposta de orçamento participativo. Tivemos de adiar para o segundo ano. Foi um ano financeiramente difícil: passamos pagando dívidas, acertando e enxugando a máquina administrativa. Foi um ano em que tivemos de demitir 1,5 mil funcionários “de uma hora para outra”, mas, em função da campanha eleitoral, isto foi razoavelmente absorvido pela comunidade. Mas foi difícil” in B. SOUZA, 2002:38-39. 329 O conflito inicial entre o programa Todo o Poder e os movimentos populares organizados é salientado por Coswig em seu depoimento que vai anexo.


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despesa,330 em suas priorizações para que fossem adequados o querer e o poder em relação às necessidades da população e que essas deliberações fossem acatadas e respeitadas. Sim, ouviríamos o povo. Mas a quem, como, onde e sobre o quê? Num pacto ético-político do grupo reunido por Bernardo, ficou o compromisso: não toleraríamos realizar apenas uma farsa, uma simulação de participação, para fugir aos problemas da Prefeitura e “engambelar” a população e os funcionários em greve. Deveria ser “sem manipulação nem tentativa de aproveitamento político, ideológico ou partidário”. 331 O processo era para valer. Foi então332 que nasceu o Todo poder emana do povo, ou, simplesmente o Todo poder, como o povo o chamava. E antes de mais nada era preciso elaborar uma metodologia que permitisse a real participação do povo333. A metodologia elaborada pelo grupo de colaboradores na administração municipal envolvendo o prefeito, todos os secretários e alguns assessores e coordenada pelo chefe de gabinete, deveria abranger 4 passos 334: o de avaliação crítica da ação do Go330

“Não ficávamos reduzidos a discutir o orçamento de investimentos. Discutíamos tudo, até política de pessoal, a política de tarifas públicas, os critérios de reajuste da tarifa de água...todo o orçamento. Chegou-se a discutir, inclusive, a diminuição das verbas do gabinete do prefeito” Alceu Salamoni, in B.SOUZA, 2002: 44. 331 B. SOUZA, 2002: 26. 332 No segundo ano da administração de Bernardo. 333 Conferir com os depoimentos em anexo. 334 Na reunião em que o grande grupo definiu que o orçamento seria realmente participativo, com a convocação de todas as entidades empresariais, de profissi onais liberais, de empregados, associações de bairro, condomínios habitacionais, clubes de serviço, igrejas, entidades culturais, esportivas, estudantis, meios de comunicação social, a AMP, pais de alunos, conselhos comunitários... diziase que a primeira assembléia deveria ter um caráter catártico permitindo que viessem à tona queixas, reclamações e denúncias sobre a atuação da Prefeitura, definindo numa segunda reunião as espectativas sobre as políticas municipais, numa terceira as reivindicações concretas mediante informações sobre a estrutura do Orçamento, para, numa quarta juntar Orçamento e reivindicações com priorizações detalhadas. Definia-se como o funcionalismo estaria incorporado ao


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verno, o da manifestação das expectativas, o da apresentação de reivindicações e eleição de representantes, o da assembléia geral (assembleião) dos representantes. 335

a) ouvir a população sobre a situação e atuação da Prefeitura, seus serviços, o desempenho das secretarias e seus funcionários, a arrecadação, as despesas, reivindicações que foram ou não atendidas (Nesta etapa o Prefeito, secretários e assessores não poderiam revidar, mesmo que o aludido fosse falso e até provocativo... Cada um deveria anotar tudo, com os menores detalhes).336 “A Administração deveria ouvir...sem retrucar com discursos politiqueiros, justificadores da falta de soluções, tendentes à manipulação de cabos eleitorais” 337 b) Na reunião seguinte, cada secretário deveria retornar com os atendimentos referentes à sua pasta e que se fizeram exequíveis sem recursos orçamentários e quais não, mostrando toda a estrutura e funcionamento de seus setores. O Departamento de Planejamento Governamental, subordinado ao chefe de gabinete do Prefeito, apresentava, a estrutura, as rubricas e os valores do orçamento vigente e alguma perspectiva para o orçamento futuro ficando as coisas assim como estavam ou não. processo estimulando a que o povo decidisse e nunca decidindo em lugar dele. Como recrutar colaboradores externos, o processo e o cronograma etc... Segunda semana de abril de 1984. 335 Cf. Maria Clara SCHRAMM MICHELS PINHO, Manoel Jesus Soares da Silva e Marco Antônio da Silva Viana. Monografia de Especialização em Educação Todo o Poder Emana do Povo, Pelotas: 1985, UFPEL, texto mimeografado. 336 No segundo ano, esta primeira assembléia converteu-se em prestação de contas do orçamento anteriormente fixado e relatos sobre a atuação da Prefeitura com avaliação pela população. 337 Maria Clara SCHRAMM PINHO... et alii: 1985: 10. Muitas vezes a análise crítica sobre a prefeitura já vinha com reivindicações. “Se as reivindicações podiam ser atendidas pela simples dinamização dos serviços ou pela correção de disfunções existentes, a Prefeitura cuidava de remeter o caso ao setor competen te, para resposta no mais breve tempo possível. Se o atendimento às reivindicações demandasse recursos de orçamento, passavam para a segunda reunião. Isso daria tempo para que a população as organizasse hierarquicamente, priorizando aquelas que, no entender da comunidade, fossem mais relevantes”


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Diante disso a população poderia levantar as demandas e propostas que entendesse como mais urgentes, necessárias, significativas, tanto quanto ao orçamento (receitas, despesas), como as referentes às suas necessidades locais. Depois de tudo esclarecido, organizadas as propostas e reivindicações em ordem prioritária (sem excluir nenhuma) eram eleitos 338 os representantes (3 de cada zona urbana e 4 de cada zona rural) para, no “assembleião” dos representantes defender as reivindicações e naquela ordem, negociar e compatibilizar com as necessidades dos outros e montar o orçamento. 339

c) O “assembleião”, no amplo espaço do Colégio Municipal Pelotense, reunindo os representantes eleitos, além dos secretários e assessores, era coordenado pelo Prefeito para compor a proposta orçamentária do município, com apresentação da estimativa das receitas, a discussão sôbre os índices de aumento nos tributos de competência do município, a definição geral da política de dispêndios em seus diversos setores, a eleição de prioridades, face à impossibilidade de atender a todas as reivindicações340. A assembléia geral (assembleião) dividia-se em 3 partes e durava um dia inteiro. Na primeira parte eram apresentadas as estimativas de receita: a) as oriundas de transferências da União (como FPM Fundo de Participação dos Municípios) e do Estado (parcela do ICM Imposto de Circulação de Mercadorias) e sobre as quais os munícipes não tinham a possibilidade de deliberar; b) as receitas proprias como IPTU (Imposto Predial e Territorial Urbano) e ISSQN (Imposto sobre Serviço de Qualquer Natureza) cujos índices o “assembleião” poderia deliberar.... Longas, detalhadas e 338

Em eleição direta e secreta, vedada a eleição de funcionários da prefeitura. Esta Segunda assembléia, nos anos seguintes tornou-se cada vez mais densa em participação, na análise dos problemas e perspectivas da administração e na proposição de reivindicações, bem como na escolha de representantes que pudessem defender as prioridades apontadas. 340 Maria Clara SCHRAMM PINHO et alii, 1985: 13. 339


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repetidas explicações para que todos pudessem compreender, o alcance, os limites, as consequências das decisões... 341 Numa segunda parte os representantes deliberavam sobre as despesas explanadas em todos os pormenores: a) sobre o índice de aumento a ser dado aos servidores; b) sobre as despesas correntes de custeio e manutenção com as estimativas calculadas para as necessidades básicas da manutenção dos serviços públicos, máquinas, equipamentos e prédios... c) despesas com pagamento de dívidas; d) despesas com ampliações, investimentos (máquinas, viaturas, ensaibramento de ruas, pavimentação, extensão da rede de água, esgotos etc). e) O cálculo de cada demanda, de conjuntos comuns de demandas, das prioridades e da totalidade das demandas das assembléias ou agrupamento de zonas. Para cada hipótese havia o correspondente cálculo e sua incidência sobre a totalidade do orçamento. Na terceira parte os representantes defendiam e adequavam as reivindicações das respectivas assembléias com a realidade orçamentária. As necessidades eram muito maiores do que as possibilidades das receitas (mesmo com as majorações decididas por eles). Era preciso priorizar e negociar dentro dos critérios, unanimemente aprovados e que orientavam todo o programa Todo o poder : a) nenhuma assembléia poderia suplantar a eleição do prefeito; b) nenhuma decisão poderia contrariar o princípio da participação popular; c) ninguém poderia ter “o mais”, enquanto todos não tivessem “o menos”. Na necessidade de escolher entre calçamento de uma rua já ensaibrada e outra ainda não ensaibrada, a prioridade seria da última. Entre esgoto e água potável: primeiro que todos tivessem água potável... Primeiro cuidar das ruas por onde passam os ônibus (usadas por todos ou pela maioria) e depois das ruas residenciais... A prioridade ao mais excluído, ao mais fraco, fez-se, assim, o grande trunfo de todas as negociações. Um cronograma provável de atendimento das de341

A população, aos poucos, passou a decifrar o significado de cada rubrica, a questionar seus valores, a negociar e decidir o orçamento segundo os critérios ético-políticos pressupostos (transparência, probidade, atendimento primeiro aos que tinham menos e depois aos que tinham mais, a máquina administrativa está a serviço da população e não vice-versa...)


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mandas, sendo que algumas eram remetidas para inclusão em orçamentos posteriores. A demora e as dificuldades da negociação no “assembleião” sugeriram, como se frisou, que, antes dele se fizesse uma reunião de representantes com interesses comuns por áreas: rural, entre alguns bairros da mesma zona urbana, o centro... 342 para facilitar os entendimentos. Armada, assim, a proposta orçamentária e, tecnicamente elaborada pelos órgãos competentes da Prefeitura, era divulgada pela imprensa e acompanhada em sua votação na câmara de vereadores. A prestação de contas de sua execução acontecia ao iniciar as assembléias para compor o orçamento do ano seguinte, 343 e, continuamente, através da imprensa 344. Para operacionalizar o processo de participação dos minícipes (um pouco mais de 300.000 habitantes), o município foi dividido em 25 zonas urbanas com assembléia em cada uma delas345, 8 zonas rurais correspondentes aos 8 distritos e 7 reuniões 342

“Entretanto, a cada ano subsequente, os entendimentos foram progressivamente facilitados... Assim, representantes de uma “vila” eram informados sobre quais demandas dependiam do atendimento, anterior, de outra “vila” vizinha; e representantes da zona rural eram informados de que a conservação de estradas dependia da compra de equipamentos.” B. SOUZA, 2002:32. 343 A cada ano ficava mais evidente a necessidade de reuniões específicas dos representantes para prestação de contas da execução do orçamento. Muitos solicitavam uma reunião mensal. Esta prestação de contas e avaliação não chegaram a ser concretizadas pelo fato de Bernardo ter deixado a Prefeitura e assumi do a Secretaria de Educação do Governo Simon. O processo ficou assim um pouco truncado. 344 No início da administração Bernardo, a imprensa manifestou resistência, até hostilidade em publicar notícias da prefeitura, especialmente aquelas referentes à participação popular. Aos poucos ela se rendeu aos fatos. Ao final de 3 anos, descobrindo a seriedade e o caráter inusitado dos programas de participação, deu espaço e até elogios. 345 Os locais usados foram os mais amplos e escolhidos pela população: escolas, igrejas, salões comunitários, clubes... Para facilitar a participação dos que trabalhavam, as reuniões não eram realizadas durante o dia e sim à noite, e aos sábados (tarde e noite) e domingos de manhã. O caráter voluntário do trabalho para a grande maioria dos coordenadores, servidores municipais, em ampliação da


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no centro da cidade aglutinando: entidades esportivas, culturais, filantrópicas, recreacionais, associações profissionais, clubes de serviço e sindicatos. No segundo ano de funcionamento foi necessário ampliar o número de regiões e locais de reunião para 53346, tendo em vista o grande número de pessoas que acorriam. A área rural tinha assembléia em cada um dos 8 distritos, sendo que esta era preparada por localidades junto às escolas municipais. Assim, no primeiro ano foram realizadas 65 assembléias (duas em cada local urbano e uma em cada distrito e temática no centro), além da Assembléia geral final de montagem do orçamento. No segundo ano eram mais de uma centena de grandes assembléias, que faziam o município fervilhar em participação. Três questões ocupavam os organizadores para cada uma das assembléias: o convite, a organização da participação na reunião e a extração das conclusões: a) O convite Depois de ampla, contínua e provocativa divulgação das datas, locais, horários, pela imprensa falada, escrita e televisiva, por cartazes afixados nas “vendas”,escolas, igrejas, sedes de clubes e associações, bem como através de todas as escolas, avisos nos cultos das igrejas 347... depois disso, na semana anterior à asjornada até quase meia-noite, sem deixar de atender as funções e serviços da máquina administrativa e sem reclamar horas extra, manifestava-se na alegria, no entusiasmo na tarefa de fazer acontecer um processo leal e real de participação popular. Nascia entre todos um conhecimento e relacionamento mais do que o funcional e burocrático, e gerava esperança e sentido do viver. Aí a ética como respeito à liberdade dos outros, como construção das liberdades, muito além da dialética da oposição de interesses, se fazia efetividade política: analéti ca. 346 Em 1985 foram 53 localidades de reunião: 6 no Bairro Areal, 11 no B. Fragata, 7 no Porto, 15 nasTrês Vendas, 2 nos Balneários, 4 no Centro, 8 na Colônia, além de 4 gerais nos bairros, uma geral na Colônia, Uma geral sobre o SANEP e o Assembleião. 347 “Previamente, uma equipe de mobilização – mais de 30 pessoas – percorreu bairros e vilas, fazendo contato com as entidades existentes, como igrejas, clubes esportivos, associações comunitárias e centros de umbanda, divulgando as reuniões de casa em casa, bem como nos pontos mais comuns de congregação


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sembléia, “bombardeava-se” a população de porta em porta com carros de som e convites pessoais, de tal forma que ninguém pudesse supor que não foi convidado, especialmente convidado, insistentemente convidado para debater as prioridades das reivindicações e compor o orçamento municipal. Sentir-se convidado, incluído, sujeito do processo e não apenas objeto, instrumento é essencial à participação. A equipe de coordenação tinha como de fundamental importância fazer com que todos fossem efetiva e afetivamente convidados. O fato de o Todo o poder ter uma caráter apartidário, como de resto o tinham todas as eleições como as para diretor de escola, sub-prefeito e administrador etc...como também o fato de as primeiras reuniões evidenciarem que a palavra era efetivamente da assembléia, repeitada, acolhida, e levada a efeito, foi dando credibilidade ao processo que se fez movimento. 348 b) as reuniões, as demandas e os representantes As assembléias zonais reuniam um grande número de pessoas: entre 100 e 500 participantes. Como operacionalizar a participação? Em primeiro lugar insistia-se muito na necessidade da presença do prefeito e de todos os secretários (ou pelo menos de sua maioria) pelo menos na abertura e encaminhamento da assembléia explicitando a estrutura e o sentido do programa, o significado da participação popular, a exigência da não manipulação político-partidária, os princípios ético-políticos pressupostos e das pessoas.....Na zona rural, a rede escolar do município e os Conselhos Co munitários Distritais, que têm seus membros escolhidos pelas diversas associações existentes em cada distrito, foram mobilizados em torno da idéia, servindo como agentes que convidavam a população a participar das reuniões” M.C.SCHRAMM PINHO et alii, 1985: 11. 348 Se alguém não fosse à reunião (isto ocorreu especialmente no primeiro ano) porque a julgava politiqueira, partidária, inútil, inconseqüente, dizendo que não sabia, que não se lembrou, que não foi convidado, isto deixou de acontecer no segundo ano quando viu e ouviu como a palavra de cada um foi respeitada e efetivada no processo.


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no compromisso de respeitar as reivindicações. Se, em alguma ocasião o prefeito ou algum secretário necessitassem retirar-se, os outros participavam de toda a reunião, animavam a participação sem conduzir a conclusões pré-determinadas e, mais do que tudo, ouvindo. Para que todos pudessem efetivamente falar, os participantes eram divididos em grupos de não mais de 10 pessoas, escolhendo livremente cada grupo o seu coordenador, um relator ou secretário349 e cuidando que eles fossem fiéis em anotar e expor o que o grupo deliberou. A dinâmica de grupo era treinada e retomada sempre pelos agentes da prefeitura, especialmente em cuidar que todos tivessem acesso à palavra e que esta não fosse monopolizada pelos mais falantes (menos inibidos) ou mais “interessados” em impor idéias ou reivindicações350. Debatidos criticamente os assuntos e deliberadas as reivindicações segundo o tradicional método do ver-julgar-agir, e no tempo julgado suficiente pelos grupos (em princípio eram fixados de 30 a 45 minutos), o secretário do grupo lia as conclusões para a assembléia e estas eram anotadas e organizadas em grandes cartazes, de tal forma que todos pudessem conferir se eram de fato aquelas as conclusões e demandas de seu respectivo grupo (o mais objetivamente possível: tantas salas de aula, esta quadra a ser asfaltada...) e se as palavras escritas traduziam ou não o pensamento do grupo. Ouvido e anotado o relato de cada grupo, a assembléia decidia por voto a ordem de prioridade das reivindicações, de todas elas351. 349

Na área rural, especialmente, os (as) professores (as), eram requisitados ciosamente em cada grupo para que redigissem as demandas debatidas no grupo ou fossem o próprio relator. Como nunca, o sentido de participação social dos professores ficava evidente. A coordenação do programa insistia que os professores ajudassem mas não substituissem os participantes. 350 Especial cuidado se tinha com aqueles, que, treinados em assembléias de sindicatos, corporações, partidos..., sabiam ocupar todo o tempo falando sem entregar a palavra aos outros e assim fazer valer apenas sua opinião. 351 “... feita a discussão e levantamento das demandas, sua apresentação por todos os grupos, anotação pública das demandas e sua ordenação em votações su-


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Eram depois eleitos os representantes da assembléia (3 em cada zona urbana, 3 em cada segmento associativo do centro e 4 em cada zona rural) que se comprometessem a defender o que havia sido deliberado e na ordem de prioridade estabelecida, podendo negociar as demandas com os outros representantes no “assembleião” final e montar o orçamento, sempre segundo os critérios ético-políticos do programa Todo o poder. De posse das demandas, a equipe técnica da prefeitura “fazia os necessários projetos e cálculos para aferição dos custos de cada demanda, inclusive os custos permanentes a serem incorporados aos orçamentos anuais, como despesa com pessoal” 352, informações essas que eram levadas ao “assembleião” dos representantes.353 Assim, desde o convite, a organização da participação na assembléia, a extração dos consensos por debate e votação, a organização técnica de custos e viabilidades, a negociação e a decisão da proposta orçamentária, o respeito às decisões populares, o programa Todo poder se mostrava um inusitado, pioneiro e, para muitos incrédulos castigados pelo centralismo burocrático e totalitário da história política brasileira, até ousado, revolucionário e “arriscado”. Ao invés de se ver enfraquecido e debilitado, o poder administrativo e legislativo municipal, exercido de forma direta pelo povo, se fez mais forte, mais respeitado, mais do que nunca necessário às demandas e organização popular. Não apenas uma democracia formal, abstrata, indireta, por representação, com o povo presente no estreitíssimo espaço do voto a cada 4 ou 6 anos, mas a sustentação crítica e permanente da democracia por reprecessivas ( a primeira, a mais importante, a segunda, a terceira, e assim por diante) e, após, a eleição de representantes (3 na cidade e 4 na “colônia”)... B. SOUZA, 2002: 30. 352 B. SOUZA, 2002: 30. 353 A partir do segundo ano a equipe técnica da prefeitura passou a oferecer cál culos de demandas conjuntas de vilas vizinhas, da área rural..., bem como cálculos de investimentos necessários para todo o município (como a compra de uma usina de asfalto...) para facilitar as negociações e decisões na grande assembléia final.


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sentação através do calor, do carinho, do debate sério, da publicidade total e transparente dos dados e de um princípio ético capital: a justiça social inicia quando o mais fraco é priorizado como sujeito da história. É interessante como, com probidade, transparência e participação popular354 a Prefeitura de Pelotas, atendidas as necessidades de manutenção da máquina e dos serviços, pagos os salários em dia e elevados os mesmos a patamares mais dignos, conseguiu, no 3º ano de Todo o poder, aplicar 25% das receitas para atendimento das demandas e investimentos. O poder municipal, pela efetiva participação popular, se fez eficaz. Expressava a força da sociedade em resolver os problemas, a começar pela inclusão dos mais excluídos. A proposta-compromisso da candidatura Bernardo em realizar uma administração popular, ao invés de aprisionar o administrador nas decisões, às vezes aparentemente pequenas e difíceis, da comunidade, liberava-o para o real exercício político da representação dos interesses de toda a população. Liberava-o dos guetos e apartheids com que as elites, os grupos privilegiados e dominantes355 costumam aprisionar os “representantes” do povo. A participação real, aberta, transparente, ética, desarma as tramas excusas, ardilosas, e muitas vezes sofisticadas, dos que se julgam “donos” do poder. Esta participação, porém, não pode ser esporádica, acidental, ocasional, deve ser estrutural e sistemática, como controle e implementação da democracia representativa. E, posto o processo em andamento, angariada a credibilidade pública, qualquer retrocesso, qualquer traição e desrespeito às deliberações populares ético-politicamente bem fundadas, causa prejuízos políticos e sociais inimagináveis. Um povo que se dispôs a acreditar, a participar, a decidir, a ajudar e que se vê enganado, iludido, traído, tende a negar-se a toda e qualquer parti354

Em artigo Política e Ética, em ZERO HORA, 28/10/2000 pg. 19, Bernardo Souza insiste em que “Democracia, participação, moralidade e publicidade são irmãs xifópagas” 355 Incluindo os corporativismos, também dos servidores públicos.


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cipação, a tratar todos os políticos como charlatães, manipuladores, desacreditados.356 Foi por zelar pela fidelidade a esses compromissos, por não aceitar a manipulação de algumas demandas, pelo descrédito dado por alguns membros da equipe coordenadora à palavra dos representantes zonais, que este autor se demitiu da administração e do programa Todo o poder denunciando a decaída na tentação autoritária, exigindo respeito à palavra que fora confiada à população.357 Em matéria de confiança na participação popular não há meio termo. Não há meia confiança. Nem meia desconfiança. É por isso que o tema: participação popular e especificamente Orçamento Participativo, é perigoso. Não é perigoso apenas porque nela se pôe em risco um projeto, um programa, uma idéia, mas porque por em risco a humanidade do homem em sua possibilidade política. Quem não quiser levar até o fim as conseqüências da participação popular, melhor seria que não a estimulasse, que não iniciasse o processo. É etico-politicamente valioso demais o assunto e o fato da participação, para dixá-lo perder-se nos desvãos da banalização de uma “democracia de fachada”. Aqui se põe em jogo toda a ética (porque a ética é sempre política) e todo o humano. É por isso que insistimos tanto na possibilidade da superação dialética dos opostos pela analética. A participação como síntese dos opostos, não é sua soma nem a determinação de apenas um dos opostos. Assim, a participação é maior que um programa, do que uma decisão ética do prefeito, governador; é maior do que uma ou milhares de reuniões, nem é a soma da vontade do povo com a vontade do governante. Ela dá sentido à decisão do governante e à proposta ou resposta do povo. Ela acontece no diálogo, na reunião, na negociação, no debate, na votação, mas não consiste nisso. Ela é a síntese, a possibilidade que antecede, que 356 357

Cf. depoimentos em anexo, especialmente de Coswig e Cloé. Vide depoimentos em anexo, especialmente o de Coswig.


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acontece e que sucede à decisão do governante e do governado. Ela dá identidade e sentido a ambas porque se radica no respeito à outridade ética do excluído, do mais fraco. A avaliação parcial obtida de entrevistas com os participantes, em 1985, especialmente no que concerne ao caráter educativo de Todo o poder, assim pode ser evidenciada:

-

O valor pedagógico do programa “Todo poder emana do povo” é evidente e cristalino358

- O planejamento, nos países capitalistas, sempre foi centralizado e autoritário, servindo aos interesses de quem planejava, e não dos que deveriam ser beneficiados com o plano... O planejamento participativo, no entanto, é uma escola de aprendizado democrático: o povo aprende a decidir, decidindo, aprende a participar, participando... O povo é rico em idéias, rico em criatividade, que só não afloram ainda frente às administrações que não permitiram que isso acontecesse... O Todo poder permite a continuidade nos planos administrativos, uma vez que quem planeja é o povo, não a pessoa-administrador, que muda e é sucedida por outra; pode modificar resultados das campanhas eleitorais – o povo aprende a votar em quem enseja participação real, aprende a diferenciar políticos e políticos; apresenta uma questão ética real: o planejamento centralizado e autoritário é anti-ético, vai contra os desejos e aspirações do povo, é desumano e desumanizante. O planejamento participativo atende às aspirações reais do povo... O risco aque está exposto: a manipulação, a participação formal, aparente, mascarada, evitando a participação substancial, efetiva e decisória 359 - Bernardo de Souza destacava, em 1985, que o programa Todo o poder : fazia “aflorar e aprofundar a consciência política (os participantes sabem melhor o que querem, comparam fatos e dados, definem melhor suas prioridades); permite o cresci358

M.C. SCHRAMM PINHO et alii: 14 Depoimento de Seno Cornely, vice-presidente do Instituto Brasileiro de Planejamento Municipal, in M.C. SCHRAMM PINHO et alii: 14-15 359


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mento do sentimento de solidariedade comunitária (acontecem reuniões preparatórias para as assembléias, as pessoas conhecemse, ficam amigas, debatem seus problemas, entendem-se melhor, notadamente na área rural); aguça o senso crítico (a educação político-eleitoral acontece no desenrolar do Todo o poder. Essa educação começa pela participação, pura e simples, deriva-se para a exigência de participação e chega à diferenciação pelo povo, dos tipos de políticos e das formas de governo... O programa Todo o poder exacerba essa capacidade); o povo aprende que participar é um direito e não um favor ou graça, que, se “a prefeitura é de vocês... o dinheiro é de vocês... as prioridades devem ser definidas por vocês” e se aceitar esse processo de participação é mais difícil, trabalhoso, é também mais gratificante porque é a maneira certa de governar; e serve de exemplo a outras administrações (vários municípios), como à prefeitura de Montevidéu que nos pediu todo o material e nos está acompanhando.” 360

-

José Luiz Marasco Cavalheiro Leite, coordenador do programa, dizia que o programa politizava as comunidades a partir de suas lideranças, rompia a desconfiança natural em relação aos políticos, depois de tantos anos em que a população só serviu para fins eleitoreiros e sempre foi usada como massa de manobra; que a busca de participação é tanta, que chega ao atropelo; que propicia aos participantes a visão geral da cidade e do município em todos os seus problemas e não aprisiona as pessoas aos problemas exclusivos de seus bairro ou zona; que permite romper com o tráfico de influências em relação aos intermediadores dos bairros e vilas e o poder municipal, eles podem participar diretamente, sem intermediários; e permite conhecer quem paga, quanto paga, onde se gasta e para quê, enquanto se monta o orçamento municipal361

-

Jandir João Zanotelli, então secretário de Educação e, com participação ativa tanto na elaboração quanto no desenvolvimento do programa, dizia, em 1985, em relação ao Todo o poder: é um programa pedagógico de mão dupla “o povo aprende e 360 361

Ibidem pg. 15 e 16. Ibidem, 1985: 16-17.


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aprende a Administração”... “O programa mostrou à Prefeitura uma fórmula concreta de proporcionar participação – já que no Brasil, hoje, ainda faltam experiência de mecanismos de participação. Também a Prefeitura aprendeu fazendo... O prefeito experimentou uma fórmula de marcar presença efetiva junto à população. Aprendeu também, que, somente, devolvendo o poder ao povo, a Administração e o administrador adquirem poder e legitimam o poder que lhes foi conferido... O programa mostra que o povo sabe discernir... E a Administração está aprendendo que, neste tipo de processo, não há retorno, não se pode voltar atrás, até mesmo porque a vontade popular impede... Que a política verdadeira não vive de aplausos, mas da comunicação real com as pessoas... que o serviço público é, realmente, um serviço... e que o processo exige a firmeza de uma metodologia específica... E que, se o processo é para valer, os funcionários da Administração podem ser altamente motivados para o trabalho, pois sentem, junto ao povo, quais são suas reais necessidades e como se lhe deve prestar os serviços”362. Por outro lado, observava Jandir, “o povo descobre que é possível participar e, que, participando é possível fazer valer a sua voz, exercer com eficácia seu direito... “Essa percepção de sua própria capacidade de falar é muito importante para o povo, faz crescer sua consciência política. De repente, essas pessoas que, por dezenas de anos, foram consideradas incapazes, foram caladas, não foram ouvidas, percebem que podem até mesmo exigir serem ouvidas e que isso nada mais é do que um direito seu. Que ninguém está lhe fazendo um favor ao deixar que falem. Que elas estão opinando sobre o que lhes compete, e sobre o que é fundamental: suas próprias vidas. E cresce seu discernimento pois, as discussões travadas entre pessoas de um mesmo bairro, depois entre os vários bairros, entre comunidade urbana e rural, lhes dão uma visão nova dos problemas de cada um, leva ao discernimento de que todos têm problemas, que são problemas sérios e que devem ser resolvidos segundo uma ordem de prioridade... que, se todos são iguais, é preciso 362

Ibidem, 1985: 17-18


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criar a capacidade de privilegiar os mais pobres: primeiro o saibro, depois o asfalto. O coletivo é tornado mais importante: o atendimento individualista desaparece, até pelo fato de que as verbas são poucas e muitos os problemas a serem sanados... Aprende que a Prefeitura é sustentada pelo povo e que pode e deve, portanto, ser conduzida por ele... e que há diferenças grandes político-administrativas, entre governo e governo, entre partidos e partidos políticos... Todo o poder mostrou também à população que a escola é espaço privilegiado para a discussão de seus problemas, de todos os probleams... Ensina também a relativizar a importância de representação e liderança das associações de bairro, dos cabos eleitorais, dos intermediários e dos partidos políticos. Mostra o valor e mostra o limite” 363. - A população aprende a pensar por si mesma. O programa tira o mistério da burocracia. Habitua a comunidade a exigir participação e cria comprometimento pessoal, na medida em que cada um torna-se responsável pelas prioridades apontadas e pela fiscalização a ser feita sobre os recursos aplicados. Permite a transformação social, a partir do engajamento crítico da população.364 Se é verdade que a experiência de participação popular na elaboração do orçamento foi pioneira e inovadora, se é verdade que ela foi tornada pública pela imprensa e pelos debates no RS, pode-se dizer que ela foi resgatada e aprofundada no ORÇAMENTO PARTICIPATIVO de Porto Alegre, do RS e depois em outros lugares. 4.3 O orçamento participativo em Porto Alegre e RS 4.3.1. Histórico

363 364

Ibidem, 1985: 18. Ibidem, 1985: 20.


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O OP em Porto Alegre estrutura-se como resultado da proposta de campanha à Prefeitura Municipal do PT em 1989. Mas nem a proposta de campanha, nem a efetivação do projeto nasceu do ar, espontaneamente, por criação originária da subjetividade iluminada de uma pessoa ou de um pequeno grupo. Intriga e aborrece ver a arrogância com que, em geral, os agentes coordenadores do OP em Porto Alegre se atribuem a origem e o pioneirismo do OP365. Leonardo Avritzer diz textualmente: A idéia de orçamento participativo surgiu pela primeira vez na cidade de Porto Alegre, uma cidade de 1,3 milhão de habitantes e capital do estado do Rio Grande do Sul. A proposta de orçamento participativo surge como resposta a uma proposta de conselhos populares 366 feita pelo prefeito de Porto Alegre pelo PDT, Alceu Collares, às associações de moradores da cidade no início de sua gestão, em março de 1986. Collares, o primeiro prefeito eleito democraticamente depois do período autoritário, propôs às associações comunitárias uma forma de participação popular na sua administração (Baierle, 1998). Em uma reunião , em março de 1986, a União das Associações dos Moradores de Porto Alegre (Uampa) respondeu à proposta de Collares nos seguintes termos: “o mais importante na prefeitura é a arrecadação e a definição de para onde vai o dinheiro público. É a partir daí que vamos ter ou não verbas para o atendimento das reivindicações das vilas e bairros populares. Por isso, queremos intervir diretamente na definição do orçamento municipal e queremos controlar a sua aplicação (Uampa, 1986)... queremos decidir sobre as prioridades de investimento em cada vila, bairro e na cidade em geral”

365

Tal como foi apresentado em Oficina do Forum Social Mundial, em janeiro de 2001. Cf. DIÁRIO DA MANHÃ, 29/01/2001 pg. 2. 366 “Segundo Tarso Genro, quando o PT ganhou pela primeira vez a prefeitura de Porto Alegre, no final de 1988, foram identificadas cerca de mil organizações comunitárias na cidade” Boaventura de Souza Santos. Democratizar a Democracia, pg.464.


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Este parece ser o primeiro documento disponível que utiliza o termo orçamento participativo e antecipa elementos da sua prática.367

Avritzer não reconhece que a própria Uampa colheu a idéia de participação na elaboração e aplicação do orçamento municipal em Pelotas, com a Associação de Bairros de lá, a qual participava com a Uampa da organização dos movimentos populares do RS. Deve-se reconhecer que a Uampa, em Porto Alegre, diferia das Associações dos moradores de bairro de Pelotas no fato de que em Pelotas elas não ficaram com a representação exclusiva de seus moradores junto ao Todo o Poder. A luta pela exclusividade de representação popular e a desnecessidade de participação direta (bastava a diretoria da Associação ou da Uampa), bem como a maneira estratégica de tomada das diretorias das Associações de Moradores por um pequeno grupo, era a diferença. Quando o PT pôs em prática o orçamento participativo em Porto Alegre, a partir de 1989, a idéia já estava disseminada por muitos lugares: Pelotas, Montevidéu, Cachoeirinha, Porto Alegre...RS. E, mesmo quando aqueles teóricos referem os movimentos populares anteriores ao OP apressam-se em dizer que não eram legítimos, que eram populistas, que eram apenas reivindicatórios de direitos ou contestatórios da ditadura, que não tinham organicidade... Reconhece-se, no entanto que Embora Porto Alegre apresentasse uma longa e sólida história de luta, "que vinha desde os anos 50 com a criação de Associações de Moradores, processo este que teve por base os governos trabalhistas, sobretudo na gestão de Leonel Brizola" (Baierle,1998), também aqui acontece a reativação da participação popular. Em 1983 foi fundada a UAMPA (União Municipal de Associações de Moradores), que passa a exercer um papel de destaque na interlo367

In SANTOS, Boaventura de Souza. Democratizar a Democracia, 573-574.


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cução com o governo municipal. Já em 1985, quando foi eleito o primeiro governo municipal pelo voto direto, onde foi vencedor o candidato Alceu Collares, do Partido Democrático Trabalhista (PDT), a UAMPA reivindicava uma maior participação na definição de políticas públicas, sendo que um dos resultados destas reivindicações foi a criação dos Conselhos Municipais, depois consagrados na Lei Orgânica do Município.

Reconhece-se, também que A tradição de associativismo que existia em Porto Alegre manteve um processo de organização forte e de autonomia dos movimentos populares, mesmo no período da Ditadura Militar quando exerceu um papel importante de oposição. O público participativo composto pelas Associações de Moradores, Grupos Culturais, Conselhos Populares, etc. passou a ter nos espaços do Orçamento Participativo um fórum de articulação e reivindicação que possibilitava a interlocução com o novo governo. A organização popular existente em Porto Alegre tem sido extremamente importante na construção e fortalecimento do Orçamento Participativo.

Na verdade, o OP em Porto Alegre e RS, é o desaguadouro de múltiplos movimentos sociais, de experiências anteriores de participação política e, especificamente, da experiência de Orçamento Participativo levada a efeito em Pelotas (19831987) sob o nome de Todo o poder emana do povo. É mérito da administração petista de Porto Alegre e RS ter aprofundado e estruturado organicamente o processo, encadeando suas etapas de elaboração, aprovação e acompanhamento, a partir de uma firme decisão política de realizar uma administração popular. O meritório trabalho ali realizado, não está, porém, isento de falhas contra as quais se levantam severas críticas e que convidam à superação. 368 4.3.2. Estrutura 368

Na elaboração da Constituição de 1988 muitas experiências e reclamções de lideranças em projetos de participação popular vieram à tona e se fizeram presentes nas linhas e entrelinhas daquele documento.


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Tomemos a palavra de Boaventura de Souza Santos quando descreve o OP de Porto Alegre. Diz ele que o OP em Porto Alegre se institucionaliza, a partir de 3 princípios, em 3 tipos de instituições: organismos administrativos encarregados de gerir o orçamento com os cidadãos 369; organizações comunitárias autônomas ante o governo municipal, compostas de organizações de base regional370; instituições que estabelecem a mediação entre os dois primeiros tipos371. Os três princípios que embasam o OP são os seguintes:

a)

todos os cidadãos têm direito de participar, sendo que as organizações comunitárias não detêm, a este respeito, pelo menos formalmente, status ou prerrogativas especiais;

b)

a participação é dirigida por uma combinação de regras de democracia direta e de democracia represntativa, e realiza-se através de instituições de funcionamento regular cujo regimento interno é determinado pelos participantes;

c)

os recursos de investimento são distribuídos de acordo com um método objetivo baseado em uma combinação 369

Estas são: O GAPLAN (Gabinete de Planejamento), CRC (Coordenação das Relações com as Comunidades), ASSEPLAS (Forum das Assessorias de Planejamento), FASCOM (Fórum das Assessorias Comunitárias, CROPs (Coordenadores Regionais de Orçamento Participativo) e CTs (Coordenadores Temáticos) estes dois últimos ligando o governo municipal com os agentes comunitários e suas associações. Têm igualmente um papel central na coordenação das assembléias e das reuniões do COP (Conselho do OP). O Gaplan, que partilha com a CRC as funções de coordenação, está encarregado de traduzir as exigências dos cidadãos em ações municipais, técnica e economicamente viáveis, submetendo essas exigências a critérios gerais e técnicos. Ibidem 469. 370 Assumem diversos tipos de organização e de participação, de acordo com as tradições locais das regiões: conselhos populares, uniões de vilas, articulações regionais... Ibidem 469. 371 São instituições de participação comunitária com funcionamento regular: COP (Conselho do Plano de Governo e Orçamento, também conhecido como Conselho do Orçamento Participativo), Assembléias Plenárias Regionais, Fórum Regional do Orçamento, Assembléias Plenárias Temáticas e o Fórum Temático do Orçamento.


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de “critéiros gerais” – critérios substantivos, estabelecidos pelas instituições participativas com vista a definir prioridades – e de “critérios técnicos” – critérios de viabilidade técnica ou econômica, definidos pelo Executivo, e normas jurídicas federais, estaduais ou da própria cidade, cuja implementação cabe ao Executivo372.

Na evolução da organização o OP em Porto Alegre, assim resultou, ultimamente: O OP está articulado em torno das assembléias plenárias regionais e temáticas, dos fóruns de delegados e do Conselho do OP. Há dois ciclos (chamando-se “rodadas”) de assembléias plenárias em cada uma das dezesseis regiões e em cada uma das seis áreas témáticas. Entre as duas rodadas são realizadas reuniões preparatórias nas microrregiões e das áreas temáticas. As assembléias e as reuniões têm uma tripla finalidade: definir e escalornar as exigências e as prioridades regionais ou temáticas; eleger os delegados para os fóruns de delegados e os conselheiros do COP; avaliar o desempenho do Executivo. Os delegados funcionam como intermediários entre o COP e os cidadãos, individualmente ou como participantes das organizações comunitárias e temáticas. Também supervisionam a implementação do orçamento. Os conselheiros definem os critérios gerais que presidem ao escalonamento das exigências e à distribuipão dos fundos e votam a proposta do plano de investimento apresentada pelo Executivo.373

4.3.3. Etapas Tendo em vista que, pela lei, a Câmara de Vereadores deve receber do Executivo a proposta orçamentária para o ano seguinte até o final do mês de setembro, a elaboração participativa do orçamento segue, anualmente, as seguintes etapas:

a)

As comunidades, grupos da comunidade, organizações populares no bairro, realizam reuniões preparatórias 372

Ibidem, 467. Boaventura SOUZA SANTOS (Org.)2002: pg 471.

373


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para a assembléia de seu bairro ou região antes do mês de março;

b)

Nos mêses de março e abril acontecem as assembléias gerais populares em cada região para a Prefeitura apresente o plano de investimento do ano anterior e a população avalie o que foi realizado no ano anterior e o que está planejado para investimento no ano corrente. Nesta mesma assembléia elegem-se os delegados da região, que poderão ser completados na reunião seguinte, segundo o critério do número de participantes374;

c)

No mês de maio, acontece outra reunião intermediária da região em que podem ser eleitos mais delegados se o número de participantes for maior do que na assembléia geral anterior e onde se escalonam as demandas trazidas pelos grupos, associações e organizações da região; hierarquizam-se também as prioridades setoriais para as Assembléias Temáticas que envolvem os delegados de várias regiões ou da cidade inteira, temas esses que (em 2001) são: saneamento básico, política habitacional, pavimentação, trasporte e circulação, educação, assistência social, saúde, áreas de lazer, esporte e lazer, iluminação pública, desenvolvimento econômico, cultura, saneamento ambiental. Esses temas podem ser subdivididos em sub-temas se a expansão das demandas o exigirem; 375 374

No início era um delegado para cada 5 participantes presentes. Depois, observou-se como critério: até 100 participantes, é um delegado para cada 10 presentes; de 101 até 250, um delegado para cada 20 presentes; de 251 até 400, um delegado para cada 30 presentes etc. Ultimamente ficou um critério fixo: um delegado para cada 10 participantes. Geralmente esses delegados são indicados pelas associações ou organizações do bairro ou região. 375 “Às prioridades escolhidas são atribuídas notas de acordo com a sua posição no escalonamento: à primeira prioridade corresponde a nota 4, à quarta prioridade a nota 1. Do mesmo modo hierarquizam-se igualmente as obras específicas propostas pelos cidadãos em cada tema ou setor (no caso de pavimentação: primeira prioridade , rua A; segunda prioridade, rua B etc.). As prioridades setoriais e a hierarquia das obras em cada setor são remetidas ao Executivo. Com base nestas prioridades e hierarquias, e somanedo as notas das diferentes prioridades em todas as regiões, o Executivo estabelece as três primeiras prioridades do orçamento em preparação. Por exemplo, para o orçamento de 1997, as três prioridades foram: habitação (44 pontos), pavimentação (42 pontos), saneamen-


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d) Às assembléias regionais e às temáticas (com os delegados), segue-se, em junho e julho a segunda rodada de assembléias regionais e temáticas, em que o Executivo apresenta diretrizes gerais, legais e políticas, para a elaboração do orçamento, com previsão de receitas e despesas e do quanto resta para investimentos. Sobre estes últimos incidem as decisões do OP. Na mesma reunião apresentam-se as demandas hierarquizadas das assembléias intermediárias regionais ou temáticas e escolhem-se os conselheiros que comporão o COP (dois conselheiros efetivos e dois suplentes ou substitutos, por região ou tema), por votação direta e secreta, por chapa, podendo os eleitos serem substituídos pela região ou reunião temática por maioria absoluta. Ainda nesta assembléia compõem-se os Fóruns de Delegados: um para cada região e cada tema, com funções consultivas, de controle das obras e de mobilização popular; reúnem-se uma vez por mês. O COP é o órgão central do OP. Ele estabelece os critérios de distribuição dos recursos por região e por tema, supervisiona e faz propostas sobre receitas e despesas do município especialmente no que tange a investimentos, sobre o plano plurianual, sobre a proposta de diretrizes orçamentárias, sobre a política tributária, sobre a execução anual do orçamento, opinar sobre o método, indicar 8 conselheiros (4 titulares e 4 suplentes) para compor a Coordenação do COP e 6 para a Comissão Tripartite (que, junto com o Executivo sugere as políticas para cada tema e politicas gerais) etc.

e) O COP, em agosto, em uma ou duas reuniões por semana, faz a preparação detalhada do orçamento, compondo a matriz orçamentária que, organizada pelo executivo é enviada à Câmara de Vereadores. f) De setembro a dezembro o COP prepara o plano de investimentos;

to básico (30 pontos). Para o orçamento de 2001, as três prioridades foram: pa vimentação (34 pontos), habitação (32 pontos) e saneamento básico (27 pontos)”. Boaventura SOUZA SANTOS, 2002: 476.


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g) Em dezembro e janeiro: revisão do Regimento Interno e dos critérios gerais e técnicos aplicados na elaboração da matriz anterior. Os critérios técnicos gerais são: carência de serviço ou infra-estrutura na região, segundo os dados fornecdiso pelo Executivo e a avaliação feita em conjnto com os delegados das comunidades; população total da região; prioridade temática da região face às escolhidas pela cidade como um todo. Aos poucos o OP juntou critérios de carência com o de participação nas assembléias para priorizar demandas, tudo calculado numericamente.

Em 12 anos de vigência, o OP em Porto Alegre cresceu em estrutura, organização e comparecimento participativo da população. Pode-se dizer que evoluiu na aprendizagem de democracia participativa, que tenta uma democracia redistributiva, que gera autonomia popular e co-gestão administrativa, que vem transformando a tecnoburocracia em tecnodemocracia, que aprimorou a qualidade da participação, conforme avalia Boaventura SOUZA SANTOS (2002). 4.3.4.Desafios

a) Conflito de legitimidade de representação: Se é verdade que o Executivo foi eleito por todos os munícipes e, portanto, é seu representante legítimo, a participação popular pretende submeter o Executivo às deliberações da população 376. Este 376

O OP, crescendo, substituirá o parlamento, atacava um vereador de Porto Alegre no debate do Canal 36, no dia 20/6/2001. Raul Pont presidente estadual (RS) do PT respondia dizendo que era isso mesmo Que era contra o presidencialismo e a favor da Democracia direta. Cf. também ZERO HORA, de 22/08/1999 pg. 14 onde Isac Ainhorn (PDT) Lauro Hagemann (PPS) e Hélio Corbelini (PSB) dispostos a “colocar os saudáveis limites da lei para acabar com a farra do OP. Os três partidos que integram o governo Olívio, identificam no OP mais um aparelho partidáriodo que um instrumento de governo”. E no dia 3/4/2000 em ZERO HORA pg. 2 Sérgio Oliveira diz que “o OP é o álibi perfeito: o PT jamais será culpado pela não realização de obras. É o OP, isto é, a população, que decide. Menos de 2% da população?”


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conflito entre democracia representativa e democracia direta 377, é resolvido, em parte pela estrutura do OP onde o Prefeito e sua equipe técnico-política não abdicam de seus poderes na organização, na direção, no estabelecimento de prioridades e a população também tem influência permanente, especialmente no que tange ao plano de investimentos locais. A Prefeitura tem muito mais força quando são determinadas as políticas gerais, mesmo as de investimentos. O conflito maior acontece entre a Câmara de Vereadores, eleita como representação da população e que tem como função específica aprovar o orçamento anual elaborado pelo Executivo e fiscalizar sua aplicação e execução. O OP preparado com tamanha mobilização popular força a aprovação pela Câmara cujos vereadores não conseguem atender seus redutos eleitorais 378, nem permite que se oponham sob pena de suicídio eleitoral. “O OP chega à Câmara engessado”, queixam-se os vereadores. E o Executivo não envolve a Câmara na elaboração do orçamento, reservando-lhe apenas o papel de referendar o que já foi aprovado. Em Pelotas, este conflito foi resolvido com a participação atuante dos vereadores junto às comunidades a que mais se vinculavam, e mesmo a todo o processo de OP.

b)

Por outro lado diz-se que “O PT cooptou e desmoralizou o movimento popular. O OP é uma invenção diabólica 377

“Supõe-se que a Democracia representativa seja má em si mesma... Que cada deva representar-se a si mesmo... Que ser cidadão é (individual e individualisticamente) dizer e exigir o que lhe interessa? Como no exemplo utópico de Rous seau”... Nem 3% da população participa do OP e estes decidem em nome de todos, rebatia o interlocutor. Por outro lado o Editorial de CORREIO DO POVO de 16/8/1999, pg. 4 insiste que na Democracia Representativa é o partido a caixa de ressonância dos anseios da população e o partido elege seus deputados e vereadores. Não caberia, pois, o OP. 378

Neste sentido o OP “tende a ser desestabilizador, quer em termos políticos, quer em termos ideológicos e culturais... rompendo com o velho sistema clientelista-patrimonialista” B.SOUZA SANTOS: 2002, pg 546. Paulo do Couto e Silva em CORREIO DO POVO, de 22/8/1999 publica um A Pedido, pedindo IMPEACHMENT CONTRA OLÍVIO por causa da ilegalidade do OP.


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do PT para se perpetuar no poder” 379. Na verdade, o desafio de fortalecer o poder da organização e dos movimentos populares pode ser resolvido em função de manipulação em favor de pequenos grupos ideológico-político-partidários (que, na década de 1980, assaltavam as associações com eleições-relâmpago e estatutos adredemente pré-elaborados e depois se faziam de representantes exclusivos da população), ou se resolve como estímulo, incremento à real participação de todos, especialmente dos excluídos. Neste caso, mais desafiante ainda é não deixar o processo refém dos interesses particulares de uma pessoa, um pequeno grupo ou de uma comunidade contra a outra comunidade e usar da luta para manter o controle de todos. 380 c) A rotina institucionalizada do OP pode gerar a estagnação da participação. Sem um esforço ético-político de permante subversão, de radicalização da participação sempre renovada, os excluídos tenderão a esvair-se por entre os dedos da malha do OP, ficando um pequeno grupo com a representação da população nas mãos. E esta tentação é permanente, especialmente quando os ventos ufanistas do sucesso, bafejarem a nuca de quem está no poder. A vendagem publicitária da idéia e do processo do OP como pioneirismo e modelo político 381 e seu reconhecimento pela imprensa nacional e internacional, com forte apoio das ONGs, pode potencializar ainda mais esta tentação.

d) A multiplicação de instâncias participativas, que proliferaram em todo o Brasil e mais ainda nos lugares onde se incentivou o OP pode gerar conflitos de competências. É o caso 379

Um vereador de Porto Alegre. In Boaventura de SOUZA SANTOS: 2002, pg 543. “OP esvaziou os organismos de representação popular: CPERS, Moradores de Bairro, as comunidades de base, os COREDEs: deixou POA comportadinha, facilitou a agenda do Prefeito em receber reivindicações populares”. “No OP está a liturgia burocrática do PT”. 380

Estaria suposto que o interesse particular seja o único motor da história, o fundamento ético e político do participar? 381

A insistência publicitária de que o RS é “o Estado da Participação popular” foi a tônica dos 4 anos do governo Olívio Dutra.


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dos conselhos municipais (Porto Alegre tem 35 conselhos setoriais) como os da Educação, da Saúde, dos Direitos da Criança e do Adolescente, de Assistência Social, de Cultura etc... que tratam dos mesmos assuntos que as Assembléias Temáticas do OP382. Porto Alegre “resolveu” o conflito dando prioridade e centralidade ao OP e ao Conselho do OP (COP). O OP é “o carrochefe” do sistema participativo383. A mesma solução pretendeu dar o governador Olívio Dutra quando, a partir de 1998, quis implantar o OP para o Estado do RS384. Os Conselhos Regionais de Desenvolvimento (COREDEs), criados na administração anterior e que buscavam representar a articulação política das diversas regiões e seus municípios, foram deixados de lado ou apenas aceitas as suas sugestões na composição do orçamento estadual, como se fossem provindas de grupos ou organizações sem significação maior, 385 muito em382

Vereadores há que dizem que o OP se tornou no único canal de participação em Porto Alegre. E nele participam nem 3% da população. Em resposta diz a prefeitura: OP pelo menos permite que cerca de 20 mil pessoas em POA e não 30 pessoas (secretários e o prefeito) decidam pela montagem, execução e controle do Orçamento. Pelo menos aí o cidadão é cidadão o ano inteiro e não apenas no momento de votar. Aí a participação é universal (quer de indivíduos organizados ou não) e as organizações podem fazer o apelo popular a seus representados, porque elas têm inserção popular... 383

A oposição, nos debates de TV diz que o OP, em POA, iniciou em 1988 com Olívio para descarregar na decisão popular o que ele prometera e não podia cumprir: a encampação dos serviços de transporte coletivo... sem dinheiro, o jeito era negociar, não só com os proprietários, para isso inseriu a participação popular. 384

O OP do Estado do RS está com número de participantes cada vez maior: 120 150 280 mil pessoas no Estado em 1999, 2000, 2001, respectivamente.... 385

O governador eleito em 27/10/2002, Germano Rigotto, criticando esta situação, pretende retornar a valorizar mais os COREDEs em sua administração. Isto pode ser visto em Zero Hora pg. 10 de 09/12/2002 que noticia a confecção de documento pelos conselheiros do OP do RS a ser entregue a Rigotto requerendo que seja respeitado no Orçamento o que foi decidido pelo OP em 2002 para 2003. As críticas pesaram, certamente, na vitória da oposição ao PT. Observe-se que desde o início de 1999 a resistência dos Coredes contra o OP se baseava, por exemplo, no fato de os coordenadores regionais do OP (com status de quase secretários: pg. 14) serem nomeados diretamente pelo governador dentre os partidários do PT, Promitente Comprador do B e PSB: ZERO HORA, 28/02/1999 pg.


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bora o acordo proposto pelo governador segundo o qual 2 representantes de cada um dos Coredes (contra 15 ou até 35 do OP da região) participariam da assembléia final para definir o orçamento.386 Nos jornais de 19 de agosto de 2000 o governo destacava que o OP do RS chegava à fase final depois de ter realizado 670 assembléias, com a participação de 280 mil pessoas, sendo que as respostas às demandas de educação, obras e serviços, (ou de estradas, ensino e saúde como rezumia o governo) dependiam da arrecadação possível com o crescimento de 9% do ICMS ou com a mudança da matriz tributária. 387 Para o OP estadual de 2002 preparando o Orçamento para 2003, a regionalização permaneceu a mesma (22) e o processo foi dividido em 5 etapas: Plenárias Regionais de Diretrizes, Assembléias Regionais Temáticas de Desenvolvimento, Assembléias Públicas Municipais, Plenárias dos Fóruns Regionais de Delegados e Conselho Estadual do Orçamento Participativo. O manual entregue a lideranças e a partidos especifica e detalha a elaboração da peça orçamentária estadual. Excelente material impresso. Resta sempre a questão de que o “principal é a participação”.

e) Outro, e talvez o maior desafio, é a qualidade da participação e a acessibilidade ao processo. “É hoje sabido que os setores populares mais carentes e menos organizados têm maiores dificuldades em participar...” Sem apoio externo nem terão acesso ao processo.388 A dificuldade não está apenas no choque de linguagens (técnica e popular) como, e principalmente, no acesso à informação. Mais ainda quando a prefeitura ou o partido é a única fonte de informação. Acresce-se a isto a dificuldade das 8. À pg. 14 do mesmo jornal e dia, o governo reconhece que garantir a participa ção é o maior desafio. 386 Cf. CORREIO DO POVO, 28/4/1999 pg. 5. 387 Cf. também ZERO HORA, de 21 de agosto 2000, pg. 6. 388 Boaventura SOUZA SANTOS: 2002, pg. 550. Percebe-se em muitos a vigência do antigo preconceito de viés marxista sobre os pobres, como lumpen proletariado, em quem não se pode confiar porque sempre traem o processo.


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pessoas mais pobres em participar de muitas reuniões, com custos de passagens de ônibus e sem remuneração e, muitas vezes colidindo as reuniões com seus horários de trabalho. E se a participação se limitar aos que podem, merecerá ainda o nome de participação? Por outro lado o contrato de inclusão também exclui? “Não será sem resistência que os incluídos acatarão a degradação da sua inclusão como condição da inclusão dos excluídos” 389 f) A manipulação390 é desafio e tentação permanente: manipulação no acesso ao processo e às informações 391, na convocação, no acesso à palavra nas reuniões, na extração de consensos, na suposição que foi deliberado aquilo que nunca foi debatido no OP392, na divulgação dos resultados, na aprovação de prioridades desnecessárias como os gastos com manutenção (de equipamentos e serviços básicos) exigindo que a população deci389

Boaventura SOUZA SANTOS, 2002: 553. É aqui onde a analética se mos tra como condição da participação. Se a cultura política da participação e da so lidariedade necessita de um forte projeto pedagógico e encontra resistências, trivializando e minimizando a não participação dos mais pobres culpando-os de sua própria exclusão, a decisão ética de priorizar os mais carentes e excluídos não pode resultar de um consenso obtido dialeticamente, apenas. 390

Da oposição: O OP é típico da Democracia Social e não algo revolucionário, como se propapla... um órgão de controle sobre o povo e suas aspirações... Um mecanismo de cooptação. 391

“Não é bom que eles falem...reivindicarão... e não temos dinheiro”, dizia o coordenador do OP em Pelotas no ano de 2001. Por isso a listagem de reivindica ções possíveis já ia pronta para a assembléia: os participantes escolheriam 3 dentre elas. 392

Como, por exemplo, a matriz tributária e, especificamente o IPTU, os critérios de tributação, os serviços públicos... “Há manipulação no OP de Porto Alegre” atacava Rigotto no debate TV 24/10 com Tarso Genro do PT. “Em cada reunião a prefeitura leva 30 ou 40 pessoas preparadas com as conclusões préfixadas e para fazer concluir o que a prefeitura quer que se conclua...” “Os mesmos participam nas muitas reuniões - sempre os mesmos na mesa, sempre as mesmas lideranças no plenário” Grande número das pessoas presentes são arregimentadas adredemente: crianças (de 300 participantes numa assembléia, mais de 150 eram crianças de uma escola...). O mesmo processo aconteceu em Caxias do Sul em relação ao OP estadual: esvaziou-se o plenário com discursos cansativos durante toda a parte da manhã. Os participantes dos municípios vizinhos tomaram ônibus para retorno logo no início da tarde. Em seguida, 10 ônibus buscaram população disponível nos bairros para votar as prioridades do OP estadual.


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da entre duas obviedades: segurança ou pavimentação... Diz-se que não é o orçamento que é posto em questão, e sim apenas “migalhas” do orçamento que se referem a parcela dos investimentos (de 5 a 8% ). Diz-se também que não se cumpre o foi decidido.393

f)

Para se defender da “lógica individualista, mercadológica e gerencial” do senso comum neoliberal o OP deve se repolitizar, pelo menos, em 3 dimensões: (1) a necessidade de politizar as experiências de gestão comunitária direta que contam com repasses de recursos (financieiros ou materiais) municipais; (2) a necessidade de articular o orçamento público e planejamento da cidade, abrindo espaço tanto para uma discussão mais aprofundada das finanças municipais como das políticas públicas; e (3) a necessidade de abrir espaço para a discussão sobre as perspectivas políticas da experiência do OP, tanto através da crítica ao “ufanismo localista” (radicalização democrática numa só cidade)394, quanto da crítica ao modo de recrutamento dos quadros entre lideranças comunitárias e à crescente 393

Em ZERO HORA de 8/12/2002, a oposição ao governo Olívio Dutra denuncia que as obras do OP ficaram no papel. Que é falsa a propaganda do governo afirmando que aplicou um bilhão de reais em obras e serviços determinados pelo OP. Que só empregaram 199 milhões e não um bilhão, exemplificando com obras que não sairam do papel. Pg. 21. Por isso o OP tem seus dias conta dos afirma o jornal pg.14. Já em ZERO HORA de 24 de agosto de 2000 Rudimar Oliveira e Sérgio Gobetti afirmam que, dos 123 milhões que o governo do Estado pretende arrecadar a mais em ICMS em 2001, mais de 75% serão destinados a estradas, ensino e saúde para o OP (pg.6) 394

Critica-se dos radicais do PT em Porto Alegre o atribuirem-se a si o começo , o meio e o fim da história da participação popular desconhecendo a significati va história da organização comunitária do RS, especialmente marcada pela imi gração. Dos mais radicais petistas se diz que supõem seja a auto-organização burocrática do partido igual a organização popular: a mais legítima, porque vanguarda...nós somos o Espírito (eu penso de Descartes, Kant, Fichte, Hegel...) A história é o desenrolar de-dutivo do Eu transcendental ou do Absoluto.... A história passa por nós... Vanguardas intelectuais, e estratégicos dos movimentos populares. Nisto tudo aparece uma confusão conceitual, longamente cultivada: a da identificar espaço público com estatal. Só é público o que for estatal e o que não for estatal não é público, e justamente no RS que tem vasta experiência comunitária.


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massificação da experiência (hiato entre corpo de lideranças especializado e participantes de base)395 4.4 O OP novamente em Pelotas – 2001 Vitorioso o PT nas eleições municipais, em Pelotas (2000), assim como em Caxias do Sul e Santa Maria, tratou de implantar imediatamente o OP inspirado no modelo de Porto Alegre, cumprindo assim uma promessa da campanha eleitoral. Copiando a estrutura, a organização, o funcionamento de Porto Alegre, o OP em Pelotas também desconhece antecedentes e diversidade da realidade geo-político-social do município em relação à capital do RS. A montagem e preparação de agentes realizou-se como um treinamento para executar e adaptar o OP de Porto Alegre: o mesmo critério de divisão regional, as mesmas etapas, os mesmos processos de convocação, eleição de delegados e conselheiros, de seleção de prioridades a partir de listas temáticas, os mesmos métodos para extrair consensos e conclusões, os mesmos estatutos, e tudo para decidir sobre parcela mínima do orçamento, depois de extraídas as despesas com pessoal, com infra-estrutura e prioridades do município, como se pode ver da entrevista de seu coordenador, no anexo I. O município foi dividido em 10 regiões. A convocação ou convite fez-se através de jornal ou/e de carros de som sendo que a maioria da população não se sentiu convidada nem partícipe396, apesar do empenho de algumas comunidades religiosas. Os militantes do PT garantiram a presença de grupos por eles convidados e organizados, mostrando na eleição dos delegados e conselheiros uma ampla maioria de filiados ao partido. 395

Baierle, 2001:2 in Boaventura SOUZA SANTOS, 2002: 556. O DIÁRIO POPULAR, de 5 de abril de 2001 trazia como convite, num cantinho da pg. 2, o aviso da Associação Comunitária do Laranjal que a “reunião sobre o Orçamento Participativo acontecerá às 14 horas no Laranjal Praia Clube e podem participar todos os moradores da praia.” 396


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O estabelecimento e a priorização das demandas foram feitas de acordo com as necessidades ditadas pelos participantes e nelas foram incluídas despesas de manutenção das funções primárias do município. O orçamento como um todo nunca foi posto em questão, nem em suas receitas, nem em suas despesas 397. E as grandes decisões de investimento não passaram pelo OP: água, esgoto, saneamento básico, planejamento urbano, desenvolvimento econômico e social, estrutura e organização do atendimento à saúde (preventiva, de família, de postos, hospitais e medicamentos), criação e manutenção da guarda municipal, da polícia de trânsito (os azuizinhos: copiados até no uniforme dos de Porto Alegre).Assim a aquisição de equipamentos e maquinárias caros, como automóveis, tratores, patrolas etc. não passaram pelo OP 398. O mesmo pode-se dizer quanto à arrecadação, valores, alíquotas e processo como a alteração do IPTU, taxa de iluminação pública e de recolhimento do lixo etc. Por outro lado a Câmara de Vereadores sentiu-se alijada do processo de montagem do orçamento, especialmente no que tange aos investimentos e propôs um Calendário de Acompanhamento do OP. Aprovou-o e o projeto de lei foi vetado pelo prefeito que, vencido, recorreu ao judiciário. O conflito é evidente: uns acusando os outros de práticas clientelistas e tentativa de ma nutenção dos “currais” eleitorais, ou de manobras técnico-burocráticas para “engambelar” a população, manutenção de rituais de democracia para encobrir práticas autoritárias e centralizadoras. A mesma reclamação é atribuída à eleição e composição dos vários conselhos como os dos Direitos da Criança e do Ado397

Confira a visão crítica da professora Cloé Wetzel Vieira, delegada do OP atual e que participou ativamente no programa Todo Poder onde ressalta o sentido “pedagógico” de um processo de participação popular.(Em anexo sua entrevista). 398 À pg. 10 do DIÁRIO POPULAR de 06/01/2003 o redator anuncia que “Estão destinados R$ 2,5 milhões para obras demandadas pelo Orçamento Participativo de 2003. É o mesmo valor de 2002. Os pedidos maiores são para pavimentação de ruas e avenidas. Informação é do coordenador do Gabinete de Re lações Comunitárias, Adair Fagundes”. Não se explica como e porquê desse valor.


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lescente, o da Mulher... Na verdade, pode-se atribuir a pouca participação a dois motivos: a decepção e pouca história de participação e à esperteza e agilidade do PT em ocupar os espaços de organização e representação popular, como também à falta de experiência e de quadros para isso. CONCLUSÃO No contexto da globalização e suas injunções econômicas, políticas, sociais e culturais, no contexto da derrocada dos modelos socialismo/capitalismo, no contexto da liquefação dos Estados Nacionais e de sua soberania em determinar políticas públicas e mediar a possibilidade das liberdades, da cidadania e da simples sobrevivência, pois é da profundeza do abismo que o povo antevê, sonha, projeta chances de libertação. O povo, não como objeto, mas como sujeito de sua própria libertação. A democracia aparece como a mediação necessária. A democracia, não apenas representativa técnico/burocrática, mas a democracia temperada, controlada, direta. Não se exclui a democracia indireta, representativa, mas se insiste em espaços sempre mais amplos e consistentes para a democracia direta, participativa. Neste processo de “democratização da democracia” 399, surge o Orçamento Participativo como uma promissora experiência de participação popular. Reclamada pela consciência ética e crítica de populações que se querem livres e que experimentaram na pele amargas ditaduras centralizadoras e totalitárias, a descentralização do poder e, nisto, a participação na elaboração do orçamento municipal inicia na década de 1980 em Pelotas. Daí expande-se, aprofunda-se, e se firma em Porto Alegre. Depois em inúmeros municípios do Brasil, do RS e se fez notícia anunciada pelo mundo inteiro. Fez-se fato notório no Forum Social Mundial de Porto Alegre (2001-2002)400. Objeto de estudo de cientistas 399

Cf. a obra organizada por Boaventura de Souza Santos: 2002.


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sociais, políticos e eticólogos do mundo inteiro, ele é hoje um sinal em evidência. Cada vez mais transparece a necessidade de seus pressupostos éticos, mais do que os metodológicos, estratégicos ou burocráticos401. Ele é um fato político que se mede por seu alto teor ético. Sem seus pressupostos éticos ele se faz uma caricatura, uma simulação, uma impostura política. E a ética necessária para dar conta do OP enquanto processo democrático de participação popular não se cifra apenas pela dialética da oposição de interesses, mas exige uma postura analética de compreensão e ação. Assim, não basta, para dar conta do OP, uma ética meramente formal como a proposta por Kant (com o universalismo de seu imperativo categórico), ou a de John Rawls (com seu formalismo neocontratualista), ou ainda a de K.O.Apel e J. Habermas (com sua ética do discurso e da comunicação). Nem é suficiente a ética como verdade prática e material do utilitarismo (de Adam Snith, John Locke, David Hume, Jeremy Bentham ou de Mandeville). Nem basta o comunitarismo (de MacIntyre, Ch. Taylor ou Michael Walzer). Recolhendo as contribuições de Aristóteles (com o princípio da eudaimonia política402), de Tomás de Aquino 400

No Forum Social Mundial de 2002 foi montado um ORÇAMENTO PARTICIPATIVO com Gastos de Guerra, numa Assembléia Pública Mundial, debatendo a estupidez dos gastos e juntando os clamores pela Paz. 401

A política, já não será vista apenas como a técnica das relações de força? (Machiavel); nem a ética como instância de foro íntimo e privado, mas como espaço de vida pública, de vida inter-subjetiva. E o Estado deixará de ser apenas a articulação das relações sociais privadas: garantindo a liberdade de contratar e de empreender, garantindo as relações de competição e de mercado. Nem será apenas o comitê dos capitalistas que têm o domínio e a hegemonia social. Como mecanismo, apenas, para publicar uma intenção de participação, e fazer crer às vítimas que elas fazem parte de “nossa bondosa preocupação”, é uma monstruosidade ética que só se mantém apoiada na eficácia de domínio dos meios de comunicação.

402

2.

A essência da ética está na política... cf. Ética a Nicômaco: Livro I, Capítulo


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(com a ética da beatitudo comunitária do bem comum), a ética como ethos cultural histórico (de Hegel), a ética do valor absoluto da pessoa (em M. Scheler), a ética intersubjetiva das culturas (de P. Ricoeur), a ética enquanto com-preensão do ser (de Heidegger), a ética “neurobiológica” de Zubiri, a ética do trabalho (Marx), o princípio da factibilidade ética (de F. Hinkelammert) chegaremos ao princípio ético fundamental como “a reprodução e desenvolvimento auto-responsável da vida humana em comunidade”. Chegaremos finalmente na validação anti-hegemônica da comunidade das vítimas que, enquanto sujeito e não enquanto objeto de libertação, faz da ética o princípio de todo o pensar e agir políticos, inclusive do Orçamento Participativo. É aqui que as comunidades intersubjetivas das vítimas (excluídas do sistema), estabelecendo o critério político de prioridade absoluta do mais pobre, se fazem sujeito ativo de sua participação, de sua cidadania, de sua libertação enquanto respeito e serviço à construção das liberdades de todos, a começar com os mais fracos. Ora, esse critério ético que possibilita toda síntese de pensar e agir só se o compreende analeticamente, como foi exposto anteriormente. Articulando as mediações indispensáveis, necessárias e insuficientes403 para um processo democrático e participativo que se funde solidamente sobre uma ética da vida, da inclusão e da libertação, o OP se transforma num ícone, num símbolo privilegiado de novas esperanças, de novos paradigmas de organização do Estado, de organização popular e de exercício da cidadania. Cada vez mais os riscos, os desafios, os gargalos de manipulação, de covardias de simulação, aparecem como o anti-ético, o anti-político, clamando por superação404. 403

A democracia só existe quando a necessidade do mais pobre e excluído se transformar consensualmente em prioridade das ações públicas. Só então a igualdade se fará o baluarte da democracia: a liberdade será caminho de fraternidade. 404

E são tantas as armadilhas e desafios: o deslumbramento pelo poder, o inusi tado de fazer da política um serviço ao povo sendo o governante um empregado, um subordinado à vontade do povo e não vice-versa; a manutenção da população


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Como critério ético do agir político é significativo recolher o que respondeu o presidente recém eleito do Brasil Luiz Inácio Lula da Silva, quando perguntado pelas exigências que o mercado impõe para administrar o país: Jornalista da Globo ao Presidente eleito Lula, no dia da eleição (27/10/02):

-

o que o sr. vai fazer até a posse, diante dos desafios que assolam o país, porque o mercado não espera, ele se alimenta, se posiciona todos os dias...

-

O mercado também precisa compreender que todos os brasileiros precisam se alimentar 3 vezes por dia... Porque ninguém aguenta ver uma criança desnutrida, um homem e uma mulher com fome... O mercado também precisa ter coração. Em seu primeiro pronunciamento oficial como presidente eleito405 reafirma: “Meu primeiro ano de mandato terá o selo do cambate à fome. Um apelo à solidariedade para com os brasileiros que não têm o que comer. Para tanto, anuncio a criação de uma Secretaria de Emergência Social, com verbas e poderes para iniciar, já em janeiro, o combate ao flagelo da fome. Estou seguro de que esse dócil, subordinada, sem acesso à informação e ao processo; fazer com que o povo fale pouco porque ele é inculto, rebelde, até mal-educado, sem o rigor do racioncínio e elevação das palavras; controlar o microfone, a organização e atuação dos grupos, das escolhas, das eleições; não expor o orçamento em sua totalidade para evitar demasiadas demandas; extrair apressadamente concluões que os participantes não decidiram; não atender os critérios básicos da administração pública como os da publicidade, da legalidade, da frugalidade, da eticidade... 405

O tema pervade todos os pronunciamentos que o Presidente Lula vem fazendo no mês de janeiro de 2003 incluindo o do Fórum Social Mundial (Porto Alegre 24/01/2003) e do Encontro Econômico Mundial de Davos (26/01/2003) requerendo uma outra ordem econômica mundial, um fundo mundial contra a fome (com apoio público de Clinton), uma frente mundial pela liberdade e não apenas pela liberdade de mercado, “porque a fome tem urgência” e a paz mundial fruto de mais justiça e diálogo o exigem, tudo dentro de uma ética da democracia e da participação. Cf. CORREIO DO POVO, de 27 de janeiro de 2003, pg. 3.


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é, hoje, o clamor mais forte do conjunto da sociedade. Se ao final do meu mandato, cada brasileiro puder se alimentar três vezes ao dia, terei realizado a missão de minha vida.”... Gerar empregos será minha obsessão... A repercussão mundial foi imediata. Diante desse novo modo de pensar, de dizer e de fazer política, a autoridade ética impõe respeito. E o FMI, o BIRD, a Comunidade Européia, a Presidência dos Estados Unidos foram unânimes em apoiar. Se por conveniência, cinismo, ou interesse próprio, não importa. O que interessa é que, dentro dos fatalismos de uma “globalização” ineludível, inquestionável, irreversível como factum, um outro fato se levanta: o brado daqueles que precisam de 3 refeições por dia, para viver. E quem negaria a Lula autoridade para priorizar assim as políticas? E este horizonte da prioridade absoluta de matar a fome, de cuidar do mais fraco, como vimos, é o horizonte ético, analético para todo o agir político, também para o OP. Para concluir, podemos dizer que a aplicação da analética à descrição e compreensão do orçamento participativo como um fenômeno social e político implica: a) a política como a arte do bem comum; b) o bem comum determinado a partir da priorização do interesse do mais fraco; c) a determinação da prioridade do mais fraco como reconhecimento comunitário; d) a subordinação do governante ao absoluto ético dessa priorização; e) a síntese absoluta é, não apenas a elaboração e o respeito ao orçamento participativo com os princípios de moralidade, transparência, publicidade, parcimônia e eficiência-efetividade, mas também como vigor da eticidade da alteridade. Não bastam aqui as éticas da subjetividade ou as do consenso, apenas. O ético transcende o consenso e a subjetividade. Esse transcender é um acontecimento. É também epifania do Transcendente. A dialética da compreensão e do agir humanos supõe a alteridade como critério analético. A alteridade não é apenas uma questão teórica, nem consequência da aplicação de uma teoria. A ética do cara a cara com as vítimas do sistema, é o fundamento da teoria e da política. O compromisso de acolher e dar lugar ao


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clamor das vítimas, dá sentido ao fazer político e pedagógico. Neste sentido o OP adquire identidade e significação enquanto compromisso coletivo, comunitário, de atender prioritariamente à situação vitimária dos excluídos, com os poucos recursos de que uma comunidade dispõe. Não é, porém, apenas um ceder, um tolerar que as prioridades sejam assim estabelecidas, mas um aprender a solidariedade que nos identifica e dá sentido à vida. O Orçamento Participativo é experiência de participação democrática fundada na alteridade analética.

BIBLIOGRAFIA

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ANEXOS Entrevista Com o Coordenador do OP em Pelotas Data: 29/08/2001 Entrevistado: Adair Fagundes Soares Coordenador de Relações Comunitárias e do OP Entrevistador: Gerson Schulz 1- O que é o Orçamento Participativo? O Orçamento Participativo é uma forma direta de participação política popular onde a população decide onde serão aplicadas as verbas (o orçamento) do qual a prefeitura dispõe. 406 2- Como é feita a convocação para as reuniões do OP? As convocações para as reuniões do OP são feitas através da imprensa (rádio, televisão, jornal) e através do caminhão de som do qual a prefeitura dispõe. Este caminhão passa sempre os bairros uma semana antes das reuniões convocando o povo para as assembléias que se realizam geralmente em escolas públicas, auditórios ou clubes e associações de moradores de bairros. 407 3- Quais as etapas do OP? O Orçamento Participativo consiste em três reuniões preparatórias onde na primeira acontece uma explanação geral sobre o projeto do OP, logo em seguida se marca a outra para a escolha 406

Como se vê, são os investimentos que, em tese seriam decididos no OP. Não é o orçamento. 407 As escolas particulares, entidades múltiplas de organização popular nem sempre são atingidas.


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dos delegados regionais e numa terceira ocorre a escolha dos conselheiros.408 4- Como se dá a escolha destes delegados? Esta função é remunerada? Não. A função de delegado do OP não é remunerada. A escolha dos delegados se dá da seguinte forma: ocorre a assembléia, a população toma então o conhecimento do projeto e logo em seguida qualquer pessoa ali presente pode se candidatar ao cargo. Ao final dentre todos os inscritos no processo, saem no máximo dez delegados eleitos por voto direto. Isto é, são eleitos os dez delegados mais votados. 5- O que ocorre quando há mais de dez candidatos a delegado? Os delegados serão sempre eleitos de acordo com a vontade popular, são no máximo dez e eleitos pelo voto direto através de cédulas de papel, se ocorre de mais de dez inscritos, serão eleitos aqueles que alcançarem maior votação. 409 6- Qual a função dos delegados? A função de delegado do OP consiste em acompanhar as obras escolhidas pela população quando da sua execução, fiscalizar e auxiliar nas cobranças do que foi acertado entre a prefeitura e a comunidade. 7- Qual a função dos conselheiros? Este cargo é remunerado? A função de conselheiro não é remunerada e consiste em acompanhar todo o processo do OP e discutir juntamente com os técnicos da prefeitura a montagem do orçamento da prefeitura e 408

Na verdade, como em Porto Alegre, os delegados já são escolhidos na pri meira reunião, podendo ser acrescidos outros em reunião posterior. 409 Por que 10 e não 5? O critério de 10 delegados para todas as regiões pode não atender a representação regional.


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quanto será distribuído para cada região ou micro região da cidade de Pelotas. 8- Como se dá a eleição destes conselheiros? Há uma hierarquia de poderes dentro do OP? A escolha dos conselheiros do OP é realizada por regiões, não há hierarquia de poderes, qualquer pessoa mesmo sendo delegado do OP poderá se candidatar ao cargo. São eleitos quatro conselheiros por região da cidade, dois titulares e dois suplentes. Os mais votados serão os eleitos. 9- Mas já houve a tentativa e discussões a respeito da eleição dos conselheiros ser apenas votadas pela reunião entre os delegados ou não? Sim. Já houve manifestações neste sentido por parte de certos grupos de delegados de comissões de bairros que queriam realizar entre eles a escolha dos conselheiros, mas a prefeitura esclareceu que o processo é democrático e esta escolha tem que ser da assembléia porque em ultima instância é sempre o povo que decide quem vai fazer o quê. 10- O senhor mencionou que os técnicos atuam juntamente com a população. Qual é exatamente a função do técnico dentro do processo? O técnico da prefeitura está presente para auxiliar a população na hora de escolher o que será feito no bairro, dar opiniões, sugestões e avaliar a possibilidade de se realizar ou não determinado projeto que irá para a votação da assembléia. Também sua função mais específica é a de elaborar juntamente com os delegados o orçamento para ser executado e distribuído para cada região. 11- Qual é o critério de escolha para decidir qual a quantia de dinheiro que será destinada para cada região?


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O critério de escolha é fundamentalmente o número populacional e a carência (infra-estrutura), isto é, as necessidades que cada região ou micro região apresenta tirada a prioridade do município. 12- O que é a prioridade do município? A prioridade do município é a quantia de verbas destinada à educação, saúde e obras de infra-estrutura em geral. 13- Isto significa que nem todo o orçamento do qual dispõe a prefeitura é destinada ao OP? Nem todo o orçamento da prefeitura é destinado ao OP porque a prefeitura tem prioridades que são a educação, a saúde e as obras de infra-estrutura. O que sobra daí, incluindo verbas dos reajustes em impostos e tudo o mais que a prefeitura conseguir é destinado ao OP. 14- Qual o orçamento que a prefeitura destina hoje para o OP? Este pergunta não dá pra responder com precisão porque tudo o que se tem é uma estimativa. Estima-se para 2002 em torno de R$ 7.300.000 (sete milhões e trezentos mil reais) para serem arrecadados. Estes serão divididos entre educação, saúde e obras o restante vai para o OP. 410 15- Em quantas regiões se divide hoje a cidade de Pelotas? Em dez regiões, incluindo zona urbana e rural. 16- Atualmente se tem uma estimativa do número de participantes no OP? 410

Críticas na imprensa dão conta de que o dinheiro destinado às reivindicações do OP em 2002 não ultrapassam 1,2 milhões.


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Sim, temos em torno de 7.800 pessoas participando. Realmente o OP levantou a cidade e a população. Pelotas era uma cidade na qual ninguém mais acreditava, mas a população respondeu muito bem à proposta do OP.411 17- Em sentido geral: Como é o processo de escolha das prioridades do OP? O porquê das listas de prioridades? O processo de escolha das obras do OP sai da população. Em cada reunião de bairro são tiradas três prioridades que serão levadas pelos delegados até a prefeitura para a discussão da viabilização ou não destas obras. Entretanto, na assembléia surgem muitas propostas que são discutidas, mas ao final de cada reunião saem três. As listas de prioridades foram elaboradas por alguns delegados (como no bairro Simões Lopes), mas elas não têm qualquer valor para a prefeitura porque a decisão sobre o que será feito é votada em assembléia e não previamente escolhida 412. A escolha das obras do OP é sempre votada pelo povo; o povo tem o poder de escolher o que será feito com o dinheiro. Depois que saem as três prioridades mais votadas elas vão para a discussão dos delegados juntamente com os técnicos e conselheiros que ajudam a montar o orçamento, daí as propostas vão para as respectivas secretarias que analisam a possibilidade de se realizar a obra ou não de acordo com o custo. Se sair muito caro, tem que ficar para o próximo ano. Nessas reuniões é claro que sempre há um choque de interesses (um diz: ‘e como fica o meu posto?’, outro diz: ‘e a minha escola?’). É aí que se monta e distribui o orçamento junta411

Nada se liga a antecedentes. O OP aparece como o início radical de toda a participação. E o número de participantes é menor, segundo observações diretas e relatos de imprensa. 412 Na verdade, como no OP de Porto Alegre, os participantes recebem uma listagem de temas para organizar e facilitar as reivindicações tais como: Agricultura, Transportes, Energia, Cultura, Educação, Assistência Social e Promoção da Cidadania, Segurança, Geração de Trabalho e Renda, Saneamento, Saúde, Habitação, com vários sub-ítens pormenorizados. Cf. folheto distribuído nas Assembléias...


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mente com os conselheiros de todas as regiões. Logo em seguida temos os fóruns de discussão onde cada conselheiro e delegado volta para a comunidade para anunciar o quanto do orçamento geral coube a cada região, então a população, de posse desta informação, faz nova votação para decidir onde será aplicada aquela verba que lhes coube dentro de suas prioridades e a prefeitura executa sob a fiscalização dos delegados que controlam, por exemplo, a espessura da capa asfáltica que está sendo posta numa rua, averiguam se ela está de acordo com o que foi prometido, averiguam a quilometragem de canos de esgoto que está sendo posta, etc.413 18- A sua análise geral sobre OP? O OP é um processo democrático, transparente, e que presa sem dúvida a honestidade. Agora acabou aquela história da prefeitura executar obras achando que estava fazendo a coisa certa. Não é possível que a prefeitura decida o que determinado bairro está precisando. Agora é o próprio bairro que decide. Acabou aquela história do prefeito construir um ginásio de esportes em lugares que estejam precisando de saneamento básico, ou uma rua pavimentada. É o povo que decide. O OP é um projeto que visa a transparência.

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Como se pode ver, a infra-estrutura (água, esgoto, pavimentação, saúde, educação....) podem estar na prioridade geral da prefeitura ou na priorização feita pelo OP. Neste jogo duplo a população poderá ou não ser atendida de acordo com o arbítrio do poder executivo.


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Entrevista com: Flávio Coswig Cargo que ocupa ou ocupou: Eu sempre fui vereador e atualmente sou chefe de gabinete do vice-prefeito, Mário Filho. Data: 02/12/2002 Entrevistador: Gerson Schulz

1- Você participou do programa “Todo o poder”? Em que período? Onde e como participou? O projeto todo o poder, eu me lembro, que ele foi um projeto desenvolvido na gestão do prefeito Bernardo de Souza em 1983, quando ele assumiu a prefeitura da cidade. Eu me lembro que logo no início da sua implantação, ele foi um projeto esboçado a partir de um núcleo mais político do seu governo, eu me lembro também que na época esse núcleo político era integrado basicamente a partir da secretaria de educação e da secretaria de governo, ou melhor, do gabinete do prefeito e do próprio prefeito. Foi um projeto que teve uma marca muito forte no governo Bernardo de Souza. Na época eu era vereador, vereador que tinha uma atuação na câmara e toda a afinidade com o governo Bernardo de Souza porque nós integrávamos com ele uma aliança. Na época ainda não havia essa congregação de partidos e a esquerda atuava toda, com a exceção do PT, praticamente toda dentro do PMDB. A princípio havia o PCB, eu era vinculado ao PCB, outros grupos de esquerda atuavam dentro do PMDB. Na eleição do Bernardo nós tínhamos ainda as sublegendas: concorriam o Bernardo e o Cléver ao governo e o Bernardo passou a ser um candidato da esquerda. O pessoal da esquerda apoiava o Bernardo. Após a eleição essa esquerda passou a integrar parte do governo mas que atuava muito. Eu me lembro que o projeto “Todo o poder emana do povo” foi um projeto esboçado numa visão de esquerda que era uma forma do governo se comunicar com a população. Acho im-


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portante frisar o período em que isso se dá e pelas circunstâncias em que isso se deu. O prefeito Bernardo era uma pessoa politicamente muito pragmática, além de comprometido com uma resposta que teria que dar durante o seu governo com essa questão da participação popular que na época era o início de uma forma diferenciada de administrar do governo, especialmente as prefeituras. Porque nós nos lembrávamos ainda das primeiras experiências de participação popular nos governos municipais que tinha sido a experiência de Lajes, Sc, onde o prefeito tinha divulgado amplamente esta forma de governar. Então, no governo, Bernardo como a questão da participação popular era uma grande promessa eleitoral, era significativa e era também, significava também, muito para construir uma proposta política, então o prefeito Bernardo de Souza, de forma muito pragmática, utilizou essa proposta para se projetar politicamente. Este é um aspecto que tem que ser colocado, o outro é de que a prefeitura na época vinha num processo de disputa que se deu na eleição, ainda pela sublegenda no PMDB. O Bernardo, de forma muito inteligente, e precisando desgastar o seu concorrente na política local que era o ex-prefeito Irajá Andara Rodrigues aproveitou esta idéia para isso. A idéia do projeto “Todo o poder emana do povo” significava também durante a sua montagem (o que que eu chamo durante a sua montagem, a territorialização, a definição das áreas, dos bairros e da zona da colônia ao expor como o governo funcionaria, como o governo atenderia as demandas, como seria a relação do governo com a população, o prefeito Bernardo aproveitou o primeiro período como uma forte denúncia do seu concorrente político anterior. Praticamente o prefeito Bernardo, com o “Todo o poder emana do povo”, com esse projeto, ao expor para a comunidade a situação financeira da prefeitura (que na época levou a seis meses de atraso no pagamento do funcionalismo) o “Todo o poder emana do povo” significava, no primeiro momento, a grande forma do Bernardo trucidar seu adversário político no PMDB. Tanto é que o prefeito Irajá nunca mais conseguiu se refazer em algumas áreas da cidade, principalmente em algumas áreas populares, de tão forte que foi


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essa denúncia na montagem então do projeto “Todo o poder emana do povo”. Este é um aspecto. No entanto, outro aspecto positivo a ser levantado é a forma séria e conseqüente como o projeto “Todo o poder emana do povo” foi elaborado pelas pessoas que acreditaram inicialmente nele, e pelas pessoas que levaram esse projeto adiante. Eu quero ressaltar a figura (que eu me lembro) que teve uma atuação muito conseqüente na montagem inicial. Figuras que não tinham nada a ver com o pragmatismo, com as intenções com que o Bernardo, depois, conduziu politicamente o projeto, que foram as pessoas ligadas à educação. O professor (e secretário da educação do município) Jandir Zanotelli, a professora Circe Cunha com sua equipe, o professor Alceu Salomoni que era chefe de gabinete na época, o professor Luís Marasco que era secretário de governo e representantes das forças de esquerda que estavam no governo e montaram o projeto “Todo o poder emana do povo” com muita seriedade, com muita responsabilidade. Foi por isso que ele foi dotado de uma metodologia bastante respeitável e responsável, ele teve seus méritos, ele talvez, foi o projeto de participação popular que mais marcou a população de Pelotas. Eu sei que algumas reuniões de bairro, especialmente na zona rural, a população acreditou muito nesse projeto. O governo soube divulgar muito bem o projeto e o projeto deixou sua marca profunda na cidade. Na época as divergências que se tinha, e que aí eram resultado do governo anterior ao do Bernardo, do governo Irajá Andara Rodrigues, naquele período tinha acontecido em Pelotas um movimento muito forte, o processo de redemocratização que o país estava encaminhando: aqui na cidade teve uma marca muito forte que foi a formação e a consolidação, e a criação de inúmeras associações de moradores de bairro, o movimento popular na época era extremamente forte. O movimento sindical, o movimento das associações de bairro que formavam a UPACAB que era uma associação das associações de bairro, e as lideranças de esquerda atuavam todas dentro dessas entidades. O movimento dos conselhos era muito forte, nós tínhamos o conselho municipal de governo que na época abrigava mais de trinta localidades como um movimento orgânico extremamente fortalecido. E aí o


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governo teve as primeiras divergências com o movimento organizado, isto é, houve divergências entre a prefeitura e os movimentos organizados por causa do projeto “Todo o poder emana do povo”. As entidades combatiam, de certa forma, o projeto “Todo o poder emana do povo” porque o projeto da prefeitura não considerava o projeto popular orgânico já estabelecido, ele praticamente criou um novo mecanismo de consulta popular que anteriormente era o papel das entidades que encaminhavam a solicitação junto ao poder instituído. Esta foi uma divergência que teve um debate muito profundo que, eu me lembro, porque eu era uma das pessoas que atuava no movimento popular, a nossa política era de que o projeto da prefeitura que se tratava de um projeto personalista do prefeito; portanto, era um projeto que não fortalecia o movimento popular independente, orgânico e independente, nosso compromisso era construir um movimento popular unificado das associações de bairro e do movimento sindical, mas de não atrelamento ao poder público. Portanto, de natureza independente, para não ser cooptado pelo poder público, enquanto o projeto “Todo o poder” era um projeto da prefeitura, era um projeto que cooptava as lidas populares na medida que era uma defesa da visão da política da prefeitura. Com isso eu quero dizer que o prefeito Bernardo, de forma inteligente, conseguiu construir um movimento de apoio à sua administração ao lado, não orgânico como o movimento popular que tinha sido sua proposta enquanto candidato. Ele alijou o movimento popular organizado, não contribuiu, pelo contrário, dessa forma o projeto “Todo o poder emana do povo” foi um forte golpe no movimento popular organizado que, na época, era embrionário, estava na sua fase inicial de democratização. Ele foi um duro golpe no movimento popular. O movimento popular nunca mais se reergueu, se recompôs, porque várias lideranças dos movimentos populares (chamados delegados de base) delegados regionais do “Todo o poder emana do povo” que encaminhavam daí suas reivindicações em conjunto com a comunidade, agora o faziam em paralelo com os movimentos populares organizados. Isso foi o que prejudicou sensivelmente a organização do movimento popular autônomo e independente.


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2- Em sua opinião: quais os pontos que destacaria no âmbito ético e político a respeito da participação popular? Se tiver conhecimento ou participou do atual OP, faça uma pequena relação entre as duas experiências. Bom, por isso que eu digo assim, as experiências têm características um pouco diferenciadas pela época em que cada uma atuou. O projeto “Todo o poder emana do povo” foi um projeto político da prefeitura numa época em que o nível e o grau de participação da população era muito menor do que hoje. O grau de participação política era muito menor. As pessoas participavam na época casualmente, ou muito pouco, dentro dos partidos de esquerda que atuavam clandestinamente e muito poucos atuavam no diretório do PMDB porque não existia este movimento partidário forte que existe hoje com a atuação dos partidos políticos de esquerda, o PT na época era muito embrionário, estava recém surgindo. Então são estas características que tem que ser focalizadas diferentemente. O movimento da sociedade civil era bem menor, não havia uma participação da sociedade civil como há hoje atuante, hoje o nível de participação é bem maior. Também os meios de comunicação não estavam tão abertos como atualmente. O grau de democracia que havia na época era menor do que hoje. Só para se ter uma idéia, no mesmo período em que surgiu a eleição do Bernardo para prefeito, eu tinha acabado de ser preso por tentar legalizar o partido comunista brasileiro. Então, são fatos diferentes. No entanto, os dois têm o objetivo de estabelecer uma relação democrática com a sociedade civil, com a população dos bairros e da zona rural como um mecanismo de canalizar as reivindicações da população junto ao poder público. Eu considero que há uma diferença, apesar do projeto do Orçamento Participativo ter uma forte marca do governo da Frente Popular ou do PT, enquanto forma de governar a partir das experiências de Porto-Alegre. E constato, no entanto, que o projeto “Todo o poder emana do povo” era, aliás, foi o projeto político dorsal do prefeito Bernardo e de alguns de seus secretários de maior expressão. Então isso fez com que ele fosse o centro de toda articulação políti-


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ca e toda a movimentação política do governo Bernardo de Souza. Ele criou a sua marca política pessoal com o projeto para ele se relacionar com a comunidade e também para justificar a impossibilidade de fazer da administração pública, de atender as reivindicações. Então ele dizia:“óh, a demanda da população em determinado bairro era de quinze, vinte itens”, ele definia, conseguia, porque era centralizador, na assembléia com os moradores, ele e seus secretários mais diretos, conseguiam, de repente, convencer a população que embora as demandas eram de quinze, vinte itens, como o poder público não tinha condições de atender às quinze ou vinte reivindicações, tinha então que se diminuir essas reivindicações. Então, geralmente a população das quinze ou vinte reivindicações reduzia, centrava em duas ou três, e, das duas ou três, o prefeito conseguia convencer (destas duas ou três) qual era a mais importante e com muita habilidade, em muitas oportunidades ele conseguia convencer a população, ou pelo menos apaziguar a assembléia no sentido das duas ou três salutares. Assim ele atenderia aquela que demandasse menor quantidade de recursos e aí então o prefeito, conseguindo estabelecer com eles que a prefeitura poderia fazer só um bueiro, todos saíam da reunião satisfeitos porque seria atendida a reivindicação da comunidade. Então, aparentemente, aquela comunidade estava apaziguada pela certeza de que pelo menos uma de suas reivindicações seria atendida. Já o Orçamento participativo ele, eu entendo, que é um instrumento de consulta popular de estabelecer uma relação com a comunidade, mas ele não é tão fortemente abraçado pelo prefeito e seu secretariado, eu percebo que o OP é conduzido mais como um departamento da prefeitura, como um setor da prefeitura que estabelece suas relações com a comunidade com o público em reuniões para tirar delegados responsáveis por áreas, regiões da cidade e da colônia. Ele não tem, porém, essa forte incidência do prefeito com seu secretariado no sentido de que ele conduzisse uma política mais pessoal com a prefeitura, daí talvez ele tenha algumas dificuldades a mais para ser instrumento de maior eficiência porque há ainda uma visão extremamente personalista ou presidencialista do nosso governo e uma concepção da popu-


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lação que ela gosta, acho que ela ainda sente a necessidade de ter um diálogo direto com o chefe do governo. Então, embora o atual prefeito tenha ido a algumas assembléias marcar sua presença, apesar disso, se percebe que o projeto em si não é tão vinculado ao prefeito e isso, eu acho, que trás dificuldades para os dois lados, para a administração que não vê no Orçamento participativo um canal tão forte para poder dar continuidade e para a própria comunidade, que não sente a presença tão forte do prefeito e dos seus secretários para ele poder estabelecer a sua reivindicação ali naquele momento, enquanto no “Todo o poder emana do povo” não. Ali era o centro do poder, mas não da decisão, mas o centro do poder estava visualizado na pessoa do prefeito, ali a população via o poder, a presença do poder, mas esse poder também era muito esperto, porque ele tinha lá suas artimanhas de conduzir e isso o prefeito Bernardo de Souza sabia fazer com maestria. 3- No caso do programa “Todo o poder emana do povo” qual era o método ou havia algum pressuposto ético nesse “convencimento” que o prefeito realizava nas assembléias em relação à população? Veja bem, ele tinha a participação, pelo menos nos primeiros anos ele tinha uma participação apaixonada e realmente de muita responsabilidade das pessoas que estavam no entorno do prefeito, eu queria dizer assim – as secretarias chaves – da educação, da saúde, o próprio gabinete. Eram pessoas que tinham uma postura extremamente simples, comprometidas com o projeto de toda proposta do governo Bernardo de Souza, mas com o projeto da sua secretaria, eram pessoas com uma postura ética respeitável, eram pessoas voltadas para uma montagem política, para um compromisso político extremamente importante na época de querer estabelecer realmente uma coisa séria na cidade que tivesse uma continuidade, que fosse um marco histórico, uma forma de abrir espaço para que democraticamente a população pudesse assumir essa parcela de poder através do projeto “Todo o poder emana do povo”. Então ele foi concebido por essas pessoas com essa vontade política. Hoje, depois de tanto tempo a gente


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poderia fazer uma avaliação de que, se na época não foi ingenuidade, eu acho que foi circunstancial, foi uma paulada que essas pessoas receberam ao ver que o fim e o propósito que estava na cabeça do condutor deste projeto que era o prefeito Bernardo servia para outros propósitos. Não se pode dizer que foi ingenuidade, na verdade foi uma traição que essas pessoas receberam que foi lamentável porque foi um embrião, foi o início da retomada do processo democrático em nosso país. Bom número de lideranças que hoje atuam nos movimentos políticos de nossa cidade aprenderam naquela época e acreditaram que naquela época era possível se estabelecer realmente um governo democrático na cidade. Muitos de nós, acho, que demos nossos melhores dias, nossas melhores forças para nos empenhar com aquele compromisso, claro que com pontos divergentes que tínhamos mas eram divergências menores, o projeto era bem maior, era bem mais pensado. Foi um duro golpe depois que se percebeu que os objetivos que se tinha não eram compartilhados pelo titular do projeto, foi apenas mais uma forma personalista de construir sua liderança política na cidade. E como eu dizia: serviu muito bem, primeiro, para destruir a sua liderança, o seu adversário dentro do partido, mas também para ele se constituir como secretário estadual da educação do governo Pedro Simon. Depois ele foi eleito deputado estadual. Na época tudo foi habilmente trabalhado. E deu no que deu. Depois todo esse grupo político que tinha sido partícipe desse projeto acabou todo se afastando do prefeito, cada um retornando para seu canto onde atuava, onde militava de certa forma, bastante frustrado porque o projeto que tinha tido todo um cunho coletivo acabou ficando com o traço personalista do prefeito e essas lideranças acabaram voltando cada um para seu canto frustrado onde continuaram fazendo outros projetos. 4- Como era a metodologia usada nas reuniões? Como o povo participava? Bem, eu me lembro que isso foi uma coisa duramente conquistada. Era uma política popular. Nós tínhamos a força de vários movimentos, eu me lembro, atuavam os sindicatos, o mo-


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vimento de organização popular, as organizações de bairros, os núcleos de posseiros e eu, particularmente, tinha uma participação muito forte organização dos primeiros grupos pela luta, pela posse da terra. As comunidades de base da Igreja Católica, que na época surgiram como um início das pastorais populares. Era um movimento embrionário, todos estavam participando; então se tratou de forma muita ética a montagem da metodologia. Se queria efetivamente que a participação popular fosse uma vontade do governo e uma vontade autêntica da população, não se queria estabelecer nenhuma forma de manipulação, não se queria nenhuma forma paternalista, não se queria construir nenhuma forma burocrática. E então se organizava as assembléias por bairros, não só por bairros mas por áreas de tal forma que pudesse haver uma participação equânime da população da cidade. Eu não me lembro desses dados, mas se tinha fórmulas de participação proporcional no sentido de que o peso das populações periféricas fosse maior do que na área central. Enfim, que a população do bairro pudesse ter participação forte nos conselhos, eu não lembro dos detalhes mas lembro que se tinha toda uma postura ética comprometida no sentido de que as assembléias fossem a expressão o quanto maior possível da população daquela localidade embora, às vezes a participação não fosse tão consagradora, mas sim, ti nham as assembléias grande representação, a população participava bastante. Havia todo um cuidado ético na montagem desse projeto. 5- Quais eram os passos seguidos pelos organizadores do “todo o poder” desde as sugestões de obras ou mudanças em salários, criação ou extinção de cargos nas assembléias em que o povo deliberava e a concretização destas sugestões efetivamente? Bem, isso também precisava ser conduzido em partes. A prefeitura estava numa crise muito grande, os salários dos funcionários atrasados seis meses, então nos primeiros tempos não se tinha muito recurso para obras. Ele serviu basicamente no início, nem tanto para suprir as demandas, mas para ser um grande mo-


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vimento embrionário da população se apoderar da situação, do conhecimento. Estes primeiros tempos foram muito interessantes porque a população começou a entender o que que é um orçamento, o que eram as secretarias, onde a prefeitura gastava seus recursos, quais são os impostos que fazem parte do bolo orçamentário municipal, como é gasto o dinheiro público. Então ele funcionou como um processo educativo. Mas a população se satisfazia, a gente percebia a satisfação que a população manifestava em pelo menos se apoderar da natureza, em conhecer. Foi uma metodologia educadora extremamente importante. 6- Como eram tomadas as decisões finais no “Todo o poder” e quem as tomava? Quem conduzia esse programa tinha o cuidado de provocar na base, nas assembléias de base, no sentido de que a população levantasse todos os seus problemas, tanto é que as assembléias eram divididas em grupos de trabalho de tal forma que efetivamente a base participasse, trazia para fora toda a sua reivindicação, todas as suas angústias. Posteriormente, claro, as decisões eram tomadas então nas chamadas assembléias gerais onde se fazia esse famoso processo de afunilamento das reivindicações. Surgiam muitas e depois caiam apenas para algumas. Claro que o secretariado tinha um... o governo tinha, o prefeito tinha uma autoridade muito centralizadora, ele conseguia conduzir as suas ações de governo, de forma muito centralizada, mas assim, veja: pelo menos nas questões de educação, saúde, o governo conseguiu responder à população, pelo menos aquelas questões mais agudamente colocadas pela comunidade. Se não havia resposta, pelo menos havia um retorno, uma explicação plausível, mas a população era bem informada, havia sim uma troca de informações bem encaminhada. 7- De forma sucinta qual era o papel dos técnicos, dos secretários e do prefeito dentro das reuniões do programa? Olha, como eu dizia, tudo era uma fase de aprendizagem, tudo era uma forma de troca de informações. As opiniões dos


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técnicos eram expostas nas assembléias. Eu lembro que se discutia na época o uso do asfalto ou o não uso do asfalto. O uso do saibro, do custo do saibro, do custo do asfalto, tanto é que as pessoas reivindicavam o uso do saibro como forma de resolver o problema de saneamento de alguns bairros. As questões ligadas ao transporte coletivo eu lembro que eram muito fortes, o preço da tarifa. Também os técnicos faziam. Pela primeira vez se apresentou à comunidade uma exposição da composição de uma tarifa, por exemplo, como é calculada a tarifa, isso era feito nas assembléias na presença dos técnicos da secretaria dos transportes explicando detalhadamente a composição de uma tarifa. Isso era tudo muito bonito nos primeiros tempos, mas repentinamente os técnicos eram questionados nas assembléias e havia toda uma disposição para responder às perguntas. 9- Como o povo era convidado a participar? A prefeitura tinha um sistema de comunicação, pela imprensa, jornais. As associações, as lideranças populares dos bairros multiplicavam, toda a esquerda dentro do PMDB que atuava tinha uma forte contribuição no sentido de atuar de ajudar na divulgação, era bem democrática a participação. 10- O povo realmente participava das reuniões? O povo participava, participava porque era um projeto em que muita gente acreditava. 11- Qual era a função dos representantes e como eles eram eleitos? Eu não lembro direito, mas eram escolhidos nas assembléias dentro de um processo bem democrático. 13- Quanto ou que parcela do orçamento da prefeitura era posta em discussão para a população decidir onde seria aplicado?


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Era muito pouco. O percentual que sobra para investimento é muito pequeno. Como a crise era muito profunda, pelo menos havia uma discussão em geral. Havia uma informação do governo: tantos por cento são para pagamento de funcionários, tantos por cento para a câmara, tantos por cento são para a compra de material. Eu sei que era muito questionado isto pela população. Tanto é que no “Todo o poder emana do povo” havia um conflito com o sindicato dos servidores, com a câmara, o pessoal questionava o pagamento de pessoal, o povo questionava a verba para a câmara de vereadores e a sua utilidade. Então o que sobrava daí, que era muito pouco, ia para votação. 14- Partindo do exemplo citado por Bernardo de Souza em sua obra: “Todo o poder emana do povo” onde ele afirma que: “a população mantinha uma ética em suas escolhas, isto é, não haveria esgoto em uma vila enquanto houvesse outra sem água tratada”. Você confirma isso? Eu hoje não tenho esses dados. Eu acho que se isso foi estabelecido, não era uma questão que os delegados estavam apropriados dessa afirmativa. 16- Em sua opinião a população de Pelotas, de um modo geral, gostou da proposta do “Todo o poder”? Por quê? A população de Pelotas adorou e aplaudiu a proposta do “Todo o poder emana do povo” porque era e é, continua sendo a vontade da população participar das decisões e por parte do governo é uma vontade eleita pelo cidadão. Todo mundo quer ter a oportunidade de participar. O que não pode se confundir é o “slogan” que se propõe com o desejo da população de buscar seu direito à cidadania. Infelizmente, lamentavelmente, na condução desses processos de participação popular, eles geralmente são mais instrumentos de manipulação do poder do que objetivamente uma conquista da cidadania, por isso uma das questões que sempre surgia era essa: “não se poderia ter alijado do processo as entidades, o movimento popular autônomo, organizado, independente”. É preciso nesses processos de participação popular pre-


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servar o direito da autonomia da população. Até hoje tanto no “Todo o poder emana do povo” quanto no “OP”, a gente sente a falta destes movimentos organizados, independentes. Essas entidades acabam sendo “encostadas”. 18- Em sua opinião, por que o programa “Todo o poder emana do povo” declinou? Quando declinou? O projeto declinou quando ficou mais visível que um projeto construído coletivamente foi abandonado para a utilização personalista do prefeito. Por ele ter afastado secretários importantes que tinham ajudado a construir o projeto. Aí o projeto começou a entrar em crise e se perder. Então não podemos confundir duas coisas: o projeto “Todo o poder emana do povo” foi um projeto enquanto processo, enquanto construído coletivamente, com amplas lideranças que tinha que foram co-responsáveis na construção da participação, é uma coisa. E o projeto “Todo o poder emana do povo”, hoje propalado por experiências tidas pelo prefeito que se apossou desse processo como uma proposta pessoal, é outra coisa. O projeto inicial, construído coletivamente foi um projeto autêntico, revolucionário e ele pode ser retomado a qualquer momento para que se possa construir coletivamente um poder popular, se fosse retomado estariam todos dispostos a participar. Agora o projeto “Todo o poder emana do povo” da cabeça do prefeito, que depois sob o manto da traição de todo esse compromisso resolveu adotá-lo como projeto personalista, como marca de sua personalidade, é outra coisa que provou, que prova até hoje, que não leva a nada. 20- Com relação à participação popular: você acha que houve vantagem para o governo da época em abrir este âmbito de discussões e participação ou seria mais eficiente permanecer dentro do mesmo esquema de administração convencional? Se houve vantagens ou prejuízos cite-os e aproveite para fazer suas considerações finais.


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Olha, para todas as pessoas que acreditaram na necessidade da população ter direitos de participação na discussão, na tomada de decisões na administração pública, ele foi um projeto amplamente vantajoso. Foi uma conquista que na época nós obtivemos. Foi um compromisso que nós tínhamos estabelecido. Para a população foi importante. Agora ele também teve a vantagem pessoal. Lamentavelmente a liderança soube capitanear aí para a sua horta particular e está colhendo frutos desse projeto até hoje. Eu gostaria de salientar que foi importante. Ninguém pode se apoderar de um processo de construção coletiva, ninguém tem esse direito, e no entanto, o Bernardo (como tinha sido construção coletiva) a pergunta é muito simples: quem é que se mantém hoje de alguma forma relacionada, numa relação democrática, são as pessoas que foram afastadas deste projeto ou a pessoa que se apoderou do projeto? Basta consultar na cidade para ver. Todas as pessoas que militavam na época, ou em partidos de esquerda ou em organizações populares de alguma forma se reencontram hoje. Ou elas estão no PC, ou no movimento social ou não estão em partido nenhum mas elas estão envolvidas em algum projeto coletivo e estão de novo prontas a atuarem coletivamente. A única pessoa que não está coletivamente junto a todos estes movimentos é o Bernardo. Então quem se afastou do projeto “Todo o poder emana do povo” não foram as lideranças, quem se afastou foi o ex-prefeito. Desgraçadamente o Bernardo que tanto propala o projeto “Todo o poder emana do povo” ele é o único que não está coletivamente na luta. Ele se afastou enquanto os outros continuam envolvidos no processo. 21. Por que o vice-prefeito da época não levou adiante o projeto? Porque ele era uma liderança do PMDB que não tinha essa clareza e não via uma utilidade nesse projeto. Ele não tinha nenhuma trajetória popular. Por isso é importante frisar que nós estávamos no início da construção popular. Nós estávamos muito antes da Assembléia Nacional Constituinte de 1988, este projeto foi em 1983. Em 1988 que desabrochou na Assembléia nacional


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Constituinte todo um conjunto de reivindicações como a descentralização do governo, o direito à expressão através dos conselhos populares, todas essas reivindicações foram escritas na Constituinte cinco anos depois desta experiência e isso era muito embrionário. Assim o lamentável de toda essa interrupção, do episódio da não continuidade, como o vice-prefeito não continuou o processo, antes do vice-prefeito não continuar, já havia tido um rompimento por parte do Bernardo ainda quando ele chegou ao último ano do seu governo e transformou o projeto “Todo o poder emana do povo” em “Todo o poder emana do prefeito” porque as lideranças já tinham se afastado dele. 22. Foi isso que acarretou a demissão do secretariado em outubro de 1985? É, a demissão do secretariado deu-se porque o projeto estava ficando cada vez mais frágil e a condução do projeto político era tão tradicional quanto dos outros políticos, todos que tinham passado por aqui. E o nosso compromisso (eu digo nosso, embora sendo vereador, me incluía, era solidário ao grupo do secretariado que foi se afastando). Assim é muito triste recordar hoje o grau de traição que a população sofreu. É triste constatar ainda hoje que o Bernardo é uma pessoa que continua propalando que o projeto foi seu, uma pessoa que se apropriou do processo construído coletivamente e que ele hoje é excluído desse processo coletivo.


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Entrevistada: Cloé Wetzel Vieira Professora aposentada da SME (Secretaria Municipal de Educação de Pelotas), participou do projeto “Todo o Poder Emana do Povo” em 1983, 1984 e 1985 como auxiliar, e do programa “Orçamento Participativo” como delegada em 2002. Data: 18/12/2002 Entrevistador: Gerson Schulz 1- Você participou do programa “Todo o poder”? Em que período? Aonde e como participou? No “Todo o Poder” eu não tive nenhum cargo, eu era da SME (Secretaria Municipal de Educação). A gente “capinava” junto. A gente ajudava nas reuniões, assim eu não tinha nenhum cargo específico no programa. Já no “OP” eu era delegada mas parei, nem cheguei ao fim da gestão. Quanto ao projeto do “Todo o Poder” eu participei em 1983, 1984 e 1985. Eu acompanhava nesse sentido de estar junto, eu não era alguém que organizava, apenas acompanhava. 2- Em sua opinião: quais os pontos que destacaria no âmbito ético e político a respeito da participação popular? Se tiver conhecimento ou participou do atual OP, faça uma pequena relação entre as duas experiências. Eu acho que o programa “Todo o poder” foi mais pedagógico. Porque no momento que o poder público vai à vila, vai às camadas populares ele tem obrigação, não só de usufruir, mas também de instrumentalizar esta população. Eu acho que o “Todo o Poder” foi um pouquinho melhor do que o OP na medida em que, eu creio, que é da competência do município, do Estado e federal fazer com que a população vá, participe, se organize. Então nesse sentido foi muito melhor. Assim, eu acho importante que a população participe porque é a apropriação do poder público. Esse projeto foi instalado no primeiro ano do governo Bernardo de Souza e nele a população tinha a possibilidade de se


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reunir, de debater, de se organizar para discutir propostas e elaborar outras, de falar, de reclamar. A população sabe onde quer chegar quando lhe dão essa chance. Eu acho que quando esse poder é dado à população, ela sabe escolher muito bem. Agora no OP não é dada essa oportunidade. Por exemplo, agora, numa assembléia, falam somente cinco pessoas e acabou. Mas a população não significa apenas este número de pessoas, é preciso deixar que o pessoal se expresse, então eu dizia assim, parece que o poder público através do OP dá a chance das pessoas participarem, incentiva, pede, reclama, mas as pessoas não participam e também não ficam indiferentes. Quero dizer, o poder público dá essa chance mas “até ali” porque não é de forma organizada, não há debates nem discussões. Então na hora das reuniões a população não participa. No “Todo o Poder”, no primeiro ano, foi dada essa chance. Até o fim, até o grande “assembleião” o povo foi incentivado a participar, a se dividir em grupos, a debater seus problemas, a discutir soluções. Isso porque tanto no “Todo o Poder” como no “OP” o objetivo é aplicar a solidariedade. 3- Qual era a metodologia usada na organização das reuniões? Como o povo participava tanto no programa “Todo o poder” quanto agora no OP? No “Todo o poder” havia um secretário geral que falava, que abria a reunião e havia painéis que explicavam o que era o projeto e havia outros de serviços e obras. Ali então se formavam pequenos grupos onde se colocava na discussão que tinha e todos se expressavam. Ali todos podiam colocar suas questões, falar à vontade, essa discussão durava em torno de uma hora, havia um debate entre eles. Depois ia tudo para o grande grupo. Em geral o prefeito já estava e ele falava a respeito daquilo que se tinha falado. Então, aos poucos, ia se colocando o que tinha sido debatido a respeito de serviços e obras, depois se fazia uma votação para se decidir o que era mais importante. Eles, a população, decidia, discutia, a assembléia reunida decidia o que era mais importante: valetas a céu aberto, falta de água encanada, ruas mal cuidadas,


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eram exemplos do que a população reclamava. Em geral a assembléia chegava a um consenso e aí o prefeito falava. Eu também quero dizer que no primeiro ano do projeto, em 1983, o Bernardo se portou com muita distinção, porque era um “horror” o que diziam para ele de reclamações como se ele fosse o culpado pela situação de caos que a prefeitura estava enfrentando. Naquele ano não havia nem giz nas escolas, nem vassouras. Era um horror! Outro fator importante para se ressaltar é que eles, a assembléia, elegia ali na hora, dentro do processo, um delegado. Esse delegado só não podia ser funcionário da prefeitura, era a única exigência. Podia ser analfabeto, podia ser do povo, podia ser preto, podia ser branco, só não podia ser funcionário da prefeitura. Então se tomava nota, endereços e tudo o mais. Então, essa era a metodologia. O que eu achava importante ali é que a população decidia e era livre para falar, apesar de ser sempre um secretário ou um diretor, enfim, alguém que coordenava. No “OP” fala o coordenador, os delegados que são eleitos dentre as pessoas que logo à entrada, se quiserem, podem se inscrever ou não para disputar o cargo de delegado, aí então dentre todos os inscritos há uma votação e são eleitos somente cinco destes inscritos. Fala o prefeito e em geral o secretário das finanças que sempre tem muitas explicações para dar. Então se faz imediatamente a votação para delegado. Depois, na assembléia, as pessoas decidem o que querem. Para mim, a escolha do delegado parece que se dá por padrões do tipo: “eu quero o homem, quero a mulher, eu quero o bonito, ou eu quero o feio”. Então as coisas ficam assim... sabes... no “Todo o Poder” havia uma assembléia, as pessoas se encontravam para decidir, debater e, por fim, chegavam a um consenso. As pessoas já sabiam mais ou menos quem era a sua liderança. 4. E no OP? Agora no “OP”, não. As coisas me parecem que já vêm um pouco prontas. As pessoas não debatem as prioridades da cidade. Cada bairro pede alguma coisa. Por exemplo: cita-se na grande reunião que o Obelisco pediu isso, o Vasco Pires pediu aquilo. Cada um escolhe o que quer, não existe uma discussão


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para a escolha das prioridades. Então nesta metodologia, aqueles que conseguem, no seu bairro, se organizar melhor, já chegam na assembléia sabendo no que vão votar, no que vão pedir. Essas pessoas chegam pensando em uma coisa única para pedir, mas os outros não. E é claro que em todos os lugares falta água, falta isso ou aquilo e é assim que se dá no “Orçamento Participativo”. Para tu teres uma idéia, no “Orçamento Participativo” do ano passado (2001) escolheram a construção de uma calçada ali ao lado do colégio Pelotense, do outro lado da avenida Bento Gonçalves onde não mora ninguém, onde há apenas o muro do colégio. Esta calçada foi orçada no valor de dois mil reais. Eu briguei porque acho que esse valor poderia ter sido usado para limpar valetas, sei lá! Então esse exemplo eu acho excelente porque se você for a qualquer vila, verá que há necessidades muito maiores do que construir uma calçada onde não mora ninguém, sendo que as pessoas que moram neste mesmo lugar que eu citei, no outro lado da rua, não tem calçada na frente de suas casas. 5- Quais eram os passos seguidos pelos organizadores do “Todo o Poder” desde as sugestões de obras ou mudanças em salários, criação ou extinção de cargos nas assembléias em que o povo deliberava e a concretização destas sugestões efetivamente? Faça uma relação com o OP. Olha, no primeiro ano parece que aconteceu aquilo que a população escolheu. Porque a população chegava neste “assembleião” e saía satisfeita dali. Na zona rural a educação foi bastante privilegiada. Lá o pessoal provou por “a + b” que era preciso maquinário, que era dali que saía a produção, então essa conquista aconteceu. Para as escolas conseguiu-se muitas coisas. Até aí tudo foi cumprido. Já no segundo ano eu não sei porque aí eu já tinha saído. Houve, ao final do segundo ano, um “assembleião”, a participação estava muito baixa, o Bernardo falou num dia oito horas inteiras, pedia para que o povo participasse mas aí o pessoal não acreditou, Aí eu não sei o que aconteceu. Nós pedíamos para o povo se organizar, nós queríamos que o povo se expressasse, mas aí passou... eu não sei o que fizeram, e aí no outro ano já não houve mais assembléias.


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Este ano (2002) eu como delegada, ao analisar o que foi cumprido ou não, também não tenho idéia de dizer o que aconteceu. Muitas pessoas estão se queixando do que não aconteceu. Por quê? Porque muitas pessoas pediram ensaibramento aqui no Obelisco e ele não saiu. Aqui na continuação da rua 1, por exemplo, no Obelisco, o pessoal que se apossou da terra pediu o prolongamento desta rua e ele não saiu. Eu acho que a fiscalização das obras, tanto num programa como no outro falhou. A fiscalização no OP é assim: eles põem o pessoal no ônibus e levam para fiscalizar, mas eu quando era delegada, não consegui fiscalizar nada porque não tinha chance. Era muita reunião com as pessoas da prefeitura que coordenavam o “OP”, se você dizia sim, era sim; se dizia não, então “vamos brigar”. Tanto é que eu tive que sair quieta, eu briguei com o pessoal, com os organizadores, eu acho que o Adair (Adair Fagundes Soares, chefe da coordenação do projeto Orçamento Participativo em Pelotas) é autoritário, ele não escuta ninguém. Há pessoas muito boas que se retiraram muito antes de mim. Aonde tu não tens chance de modificar nada, aonde as coisas são feitas de forma que o delegado pouco possa fazer, bom... no “OP” existe uma estrutura, parece que o mais importante é a estrutura e não o convite. Tanto é que para manter esta estrutura existe um pessoal que trabalha ali recebendo salário. Quem entra fica sendo desta estrutura, ou é chefe, ou relator do conselho político ou... por exemplo, só o delegado pode votar, mas o suplente não. Mas o suplente tem que ir a todas as reuniões. E o suplente fica ali feito um “boca mole”. Ele pode brigar mas não pode votar. O sindicato ligado à prefeitura tem que ter representante mas não vota. A UPACAB tem representante mas não vota. Entende? Eu não tenho influência nenhuma. O suplente também não, ele só “funciona” se o delegado sair. Assim parece que a estrutura é mais importante que o produto. Por exemplo, aqui no “OP” do Obelisco a reunião para a escolha das demandas foi uma reunião tumultuada onde eles já disseram que seria isso, isso e isso... não houve escolha. Eles chegaram e disseram que havia “X” de orçamento que cabia ao Obelisco, e tinha pouca gente; assim, deste orçamento, os que estavam escolheram a instalação de canos de esgoto, mas esse or-


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çamento que eles disseram que cabia a nós dava para fazer vinte ou trinta metros de cano e os outros que pediram água. Então eu acho que essa discussão não se espraiou. Ela não se aprofundou. Por isso eu acho que no projeto “Todo o Poder” havia uma discussão de prioridades, pelo menos até o segundo ano. Isso, eu acho, que é porque os governos gostam muito de colocar, de instalar, coisas que apareçam, então se os canos de água ficassem sobre o solo e todos vissem, certamente eles colocariam mais canos de água encanada para as pessoas. E por outro lado, eu acho que a população não está assim tão idiota que não possa discernir o que foi ou não foi feito. Aqui no Obelisco nós tínhamos pedido o ensaibramento desta rua (rua 1) e mais água porque nós temos uma dificuldade enorme com a falta de água, só que a instalação de água depende do orçamento do Sanep (Serviço Autônomo de Saneamento de Pelotas) e nós discutimos isso, só que não houve efeito. E esta escolha foi feita de uma forma pronta. O processo foi assim: eles disseram “quem quiser falar sobre água é sala ‘tal’, quem quiser falar sobre saibro é ‘tal’ sala, sobre calçamento é esta outra e assim por diante”. Cada assunto tinha uma sala. Ao final, passou um membro do “OP”, que é remunerado para esta função, em cada sala para saber o que se tinha decidido ali e depois anotar no painel na assembléia grande. Depois todos voltaram para a assembléia e, pela maior pontuação, isto é, de acordo com o número de pessoas da sala onde foi tratado o assunto “X” este foi o que ganhou. Assim foi determinado diretamente: o Areal pediu isso e mais isso, o Vasco Pires aquele outro e o Obelisco aquilo... E isso foi com o Areal inteiro. Eu acho que isso está errado. O Obelisco é o Obelisco, as pessoas que moram aqui é que têm que decidir o que querem. O Vasco Pires é outra comunidade, eles têm que ter uma assembléia só para eles. Eu nem tenho idéia de como eles dividiram o orçamento pelas zonas da cidade nem quanto coube a cada uma. A discussão entre as pessoas é muito pobre porque nós temos poucos minutos. A função de delegado aí serve apenas para discutir junto, mas não mais que isso. De certa forma, ele serve apenas para legitimar o que os coordenadores do programa quiseram dar para a população.


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Para mim a metodologia está muito mal organizada porque não proporciona uma discussão. A comunidade tem que discutir, têm que entender o que é uma prefeitura, é hora de saber o que é a Câmara de Vereadores porque aí a gente não vota errado. 6. No “Todo o Poder”, segundo um outro entrevistado, a Câmara de Vereadores sentiu como um empecilho o projeto porque não foi convidada? E agora no “OP” como se dá essa relação? Perfeito, foi isso mesmo. É verdade, tanto é que o vereador Gilberto Cunha quis fazer algo parecido com o “OP”. A Câmara sentiu-se alijada, ficou com medo de perder a sua parte. Mas eu acho que isso faz bem à população. Eu acho que aqui há uma escolha. Achar que a população está muito bem sem mudar nada... não, quanto mais a população se politiza, discute, é me lhor para mim porque verão que eu sou honesto, é melhor para mim porque eles vão escolher a minha proposta porque eu sou “bom”, – pensam os vereadores. Então a Câmara sente-se muito ameaçada, terrivelmente ameaçada. Desta forma a população sabe o que é bom e o que não é bom. Este sentimento de ameaça aconteceu igualmente no “Todo o Poder” como agora no “Orçamento Participativo”. Então politizar... não é só a população que deve ser politizada, tem mais gente para ser politizada. 7. Como eram divididas as áreas da cidade no “Todo o Poder” e agora no “OP”? As áreas da cidade eram divididas no “Todo o Poder” em pequenas reuniões nas comunidades. Depois se fazia uma grande reunião na área, por exemplo: Areal, daí aumentava-se a discussão. Já no “OP” as áreas são mais amplas, então acontece que há uma grande reunião para abranger, às vezes, um bairro que é formado por várias comunidades. No bairro Fragata, por exemplo, eu não concordo que haja apenas uma reunião, deveria haver várias reuniões. No “Todo o Poder” a cidade era dividida em mais áreas. No Areal, por exemplo, não pode ter um delegado só, é um


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bairro cuja população é maior do que a do Fragata. Deveria haver mais delegados, deveria se ampliar isto. 8- De forma sucinta qual era o papel dos técnicos, dos secretários e do prefeito dentro das reuniões do programa “Todo o Poder” e agora nas reuniões do OP? Principalmente a função de orientar as reuniões. As pessoas iam perguntando e os secretários e técnicos iam respondendo. Havia perguntas específicas que o secretário tinha que responder e os técnicos também. O prefeito tinha a obrigação de escutar, a prefeitura estava endividada, não havia dinheiro mesmo, esse era o papel dele. Ele tinha a obrigação de escutar os anseios da população e esta nunca teve medo dele. No primeiro ano da implantação do projeto do “Todo o Poder” foi assim. Já no segundo ano saiu (como resultado final) aquilo que ele queria, saiu “tudo de qualquer jeito”, já não houve mais esta escuta. No OP, o prefeito participa das reuniões e algum secretário lá que outro e também os técnicos. Há o Adair Fagundes Soares que coordena as reuniões e a sua equipe. 9- No “Todo o Poder” como eram as relações entre o prefeito, os técnicos, os secretários e o povo? Bom, às vezes eu acho que havia conflitos entre os técnicos, os secretários e o prefeito. Agora com a população eu só lembro de duas ocasiões que foram conflituosas: uma foi no bairro Arco-Íris que fomos eu e o Marasco que coordenamos. Nesta ocasião foi o Anselmo Rodrigues (o ex-prefeito de Pelotas que na época era morador daquele bairro) que brigou e brigou muito com o projeto. A outra foi no Monte Bonito que na época era um reduto do PT onde uma professora, por sinal, excelente profissional, disse “horrores” para o Bernardo. 10- Nas duas experiências como o povo foi convidado a participar?


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Bom, no “Todo o Poder” o pessoal se entusiasmou. Na secretaria de educação não ficava ninguém. Nós pegávamos o carro e colocávamos ali as funcionárias da secretaria e elas saiam batendo de porta em porta para convidar a população para participar nas reuniões do projeto. Hoje no OP não é como antes, no “Todo o Poder” o convite era mais veemente. No OP é distribuído um folhetim nas associações de bairro e a gente distribui. Só que como a maior parte das pessoas trabalha, não são todas que podem comparecer às reuniões. Hoje são aproveitadas quaisquer oportunidades para se divulgar o OP. Se você tiver acesso aos números das reuniões do OP verá que são inferiores às reuniões do “Todo o Poder” porque era divulgado em todos os lugares, nas escolas... O povo podia debater e “batia pé”. Uma reunião onde houvesse trinta participantes era considerada pequena na época do “Todo o Poder”. 11- O povo participava das reuniões do “Todo o Poder”? Todos podiam expressar suas opiniões? Como é no OP? No “Todo o Poder”, sim. Todos podiam falar. Já no OP, esta é uma das minhas críticas, não. Por que se tu não fala, como é que tu te faz parte do processo? 12- No “Todo o Poder” como era a escolha dos representantes do povo e como se dava a escolha deles dentro do processo? E no OP? No “Todo o Poder” a comunidade indicava. Os grupos se organizavam e escolhiam seus representantes. Ele era indicado pela comunidade da qual participava. Se houvesse mais de um representante todos os nomes iam para votação no grande grupo. A população votava ou indicava pessoas do seu convívio, pessoas que ela conhecia, e sempre dava certo. A comunidade era responsável. Por outro lado, no OP, é a pessoa que se candidata, por exemplo, eu me candidatei. Eu vi que havia pessoas lá de todos os tipos, pessoas que eu julguei que não tinham condições de ajudar a melhorar em nada as condições do bairro e eu me candida-


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tei ao cargo de “delegado do OP”. “Eu não quis deixar tão solta a coisa aí!” 13- Que parcela do orçamento da prefeitura era discutida nas assembléias do “Todo o Poder”? E no OP? Bom, era o que sobrava das despesas de manutenção, pagamento de funcionários, o que sobrava daí era posto em discussão. Agora no OP o pessoal fica até bravo porque nunca é dito exatamente quanto é o valor da porcentagem posta em discussão. Isto porque é muito difícil determinar qual é o valor que contém determinada porcentagem do orçamento, isto é, por exemplo: se o orçamento for de um milhão de reais, e se diz que 2% é o que será aplicado para obras... aí é que está o problema porque, justamente, não é dado o valor em dinheiro que representam esses 2%. A população fica na dúvida do que significa 2% em reais. Será um real desses um milhões? Serão duzentos mil reais? Ninguém sabe. Outro fator que eu critico é que não é valorizada é a questão da solidariedade. A cidade não é a “zona” Obelisco, a cidade é a cidade por inteiro. É a vila Governaço, é a vila Dunas, é isso. Então você tem que ser capaz de ver quem é que necessita mais dos recursos. Por exemplo, lugares onde há valetas a céu aberto correndo esgoto, essas coisas não são discutidas nas reuniões do OP. Um bairro não fica sabendo dos problemas do outro bairro como no “Todo o Poder” onde havia discussões, onde a população expunha para todo mundo da cidade a sua situação. No OP não há essa discussão, esse “estar a par” da situação do outro. Não há um embate, uma discussão para que todos dentro de um processo democrático escolham as prioridades para a cidade. A impressão que eu tenho é a de que é um assistencialismo este OP. É como se a prefeitura dissesse: “eu vou dar um pouquinho para ti, um pouquinho para aquele outro e um pouco para aquele lá”. É uma distribuição de verbas e nada mais. 14- Partindo do exemplo citado por Bernardo de Souza em sua obra: “Todo o poder emana do povo” onde ele afirma que: “a população mantinha uma ética em suas escolhas, isto


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é, não haveria esgoto em uma vila enquanto houvesse outra sem água tratada”. Você confirma isso? Havia, mas isso não era imposição do prefeito. Isso era resolvido no embate, na conversa dentro do processo do “Todo o Poder”. No projeto “Todo o Poder” não havia competição entre os bairros. A prefeitura não chegava e dizia: “eu vou dar mais verba para esse ou aquele bairro”. Havia a prática da solidariedade entre as comunidades por causa das discussões levantadas nas reuniões a assim dava-se a prática da solidariedade. Isto não existe no programa do Orçamento Participativo. 15- Qual o pressuposto ético nas propostas do “Todo o Poder” e do “Orçamento Participativo”? No “Todo o Poder” não houve pressuposto ético. Na verdade houve uma necessidade. Toda uma equipe pensou o projeto mas o prefeito deixou acontecer porque ele precisava. O governo do Bernardo de Souza estava abaixo da crítica, estava muito ruim. Não houve pressuposto ético na medida em que foi para “salvar a minha pele”. Já no Orçamento Participativo o pressuposto ético é o grande motivo do PT (Partido dos Trabalhadores). Ou seja, este projeto é “uma coisa muito querida” pelo PT porque é muito divulgado por eles, só que eu acho que na hora de fazer, as coisas não saem como no discurso. Infelizmente eu tenho que dizer, e isso que eu sou filiada ao PT. Eu acho que o Orçamento Participativo é falho na medida em que não se debate ali nas reuniões a vida e as dificuldades da população, eu acho que aí se perde mui to uma grande oportunidade de se aprender, todos nós perdemos. Eu acho que isso era para marcar a vida das comunidades. Era para ser um marco na vida das pessoas. No Orçamento Participativo quem grita mais é quem consegue as coisas. As pessoas se isolam em grupos para pedir as coisas para a prefeitura, o que gera um clientelismo. Uma bruta competição entre a população. Não há a conquista de um espaço para se discutir as propostas, as reuniões são marcadas por disputas individualistas.


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17- O ex-prefeito Bernardo de Souza afirma em seu livro que geralmente as reuniões do projeto “Todo o Poder” eram sempre realizadas à noite para que todos os trabalhadores pudessem participar, isto é afirmativo? E no OP, esta idéia persiste? Não. Havia muitas reuniões à noite também. Havia também nos sábados pela manhã e nos domingos para se deliberar. No OP não há essa escolha. Este ano o OP chegou ao absurdo, o que foi a gota d’água para mim, de marcar uma assembléia regional no mesmo dia em que havia uma assembléia estadual. Se ninguém achar isso um absurdo, então eu “estou louca”! Então eu reclamei disso perguntando: “- mas como?” Aí a resposta dos coordenadores foi: “- ah, mas quem quer pedir para o município, sabe. Então vai à reunião do Orçamento municipal e quem quer alguma coisa do Estado vai à reunião do Orçamento Estadual”. Um erro porque “furam” as duas reuniões. Parece brincadeira de mal gosto! Não? 18- Em sua opinião, de um modo geral, a população de Pelotas gostou da proposta do “Todo o Poder” e está gostando da proposta do OP? Eu acho que gostou, mas não chegou a pegar gosto pelo curto espaço de tempo que durou. Quanto ao OP, eu acho que porque seja uma coisa tão nova e o pessoal tão massacrado em geral, eles continuam não tendo sucesso, nem um, nem outro. Quanto ao OP, no primeiro ano foram nove mil pessoas que participaram, este ano foram sete mil, eu achei que foram menos; mas dizem que foram sete mil participantes, em todo o caso diminuiu bastante. Bom... 19- Cite alguns fatores de sucesso do programa “Todo o Poder Emana do Povo”, se houve sucesso em sua opinião? Olha, eu posso dizer que o primeiro “Todo o Poder” foi um sucesso. Eu acho que o pessoal que trabalhava com a população quando se engajou e a população começou a se encorpar, to-


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mar corpo em tudo e “pegar junto”, aí foi sucesso. Mas por outro lado, ela não teve nem chance de pegar gosto pela proposta porque durou pouco tempo. Aí, eu acho que foi o embate. Eu acho que muitas pessoas que participavam deram-se conta lá adiante do que estava acontecendo. Alguns perceberam depois que no fim as propostas já não partiam mais da população e sim eram impostas pelo prefeito Bernardo de Souza. 20- Em sua opinião, por que o programa “Todo o poder emana do povo” declinou? Quando declinou? Bom, eu acho que declinou quando no final o pessoal percebeu que as discussões já não levavam a lugar nenhum. Discutia-se, discutia-se e não se chegava a lugar nenhum. Eu acho que o prefeito já tinha conseguido o que ele queria, ou seja, implantar a sua gestão graças ao primeiro “Todo o Poder”. Já no segundo havia algumas revistas como a “Veja” e a “Isto É” fazendo reportagem, sobre ele. Mas assim ele botou fora o que tinha na mão. Então acabou ali. Ele ainda ficou no outro ano, mas não fez mais nada. Todo o projeto foi utilizado para ganho pessoal dele. Eu atribuo isso um sucesso... dele. Foi um sucesso para ele. Foi um sucesso para o ganho pessoal do Bernardo de Souza. E o pior de tudo, que eu acho, é a população ter sido traída. Por exemplo: hoje, tente organizar alguém. As pessoas desconfiam. Aquela experiência foi perdida. No final, o Bernardo fez tudo o que ele queria. A população não teve chance de escolher coisa alguma. 21 -Por que o vice-prefeito da época não levou adiante o projeto? Bom, ainda o próprio Bernardo que ficou mais um ano após a experiência começar a declinar, ele já não levou adiante. E o próprio José Maria não entendia as reuniões, ele participava delas muito pouco. Ele, eu acho, que achava aquilo uma bobagem. Ele partia do princípio de que ele sabia o que a população precisava. “– Deixem que o papai aqui faz o que vocês precisam”. Era o que ele pensava.


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22- Com relação à participação popular, você acha que houve vantagem para o governo da época abrir este âmbito de discussões e participação ou teria sido melhor permanecer dentro do mesmo esquema de administração pública convencional? Se houve vantagens administrativas ou prejuízos, citeos. Olha, houve somente vantagens para ele. Só vantagens. A feição do Bernardo estava lá embaixo. Eram críticas sobre críticas. O pessoal começou a “pegar” ele. Havia “um miserê” tão grande que o pessoal pegou ele. Era um caos. O povo também se organizava. Então houve vantagens que depois ele matou. Eu acho que era um caminho bom. Agora, vantagens administrativas houve. Disso eu não tenho dúvidas. Ele tirou todas as vantagens que podia. E com relação à Frente Popular, ao Partido dos Trabalhadores e o Orçamento Participativo? Eu acho que não está sendo aproveitado. Eu acho que todo mundo está sendo tapeado. 23- Suas considerações finais: Olha, eu acho que o prefeito tem administrado com satisfação, com solidez; agora, eu acho que o governo tem que fazer isso com ética. Na medida que se faz de conta que se administra, não tem validade. Eu acho que foi isso que aconteceu com o Bernardo. Ele deixou a coisa desabar. Ele se cercou de uma “camarilha” para governar. Eu acho que hoje no PT tem “gente muito boa”, mas falta tomar um rumo para que haja verdadeira participação popular e para que esse programa não se torne um engodo para a população. Este pessoal que organiza o OP tem que pensar para que eles querem esse programa, tem que pensar outra metodologia. Se começar a organização, se começar a solidariedade, então o povo vai participar mais. Eu acho que é preciso se estabelecer outro objetivo para o programa do “Orçamento Participativo”.


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Por outro lado, as pessoas não participam na sua localidade, isto é devido à falta de vínculo com o seu bairro. Eu acho que deve haver uma maior participação das pessoas, um compromisso sério das pessoas com sua comunidade. Eu digo isso porque é muito comum se ver nas reuniões do “OP” muitas pessoas que saem da sua comunidade para votar em outras comunidades onde nem sequer elas moram. Há pessoas que saem de casa aqui no Obelisco e votam no Fragata, no Arco-Íris e assim por diante. Então eu acho que a comunidade tem que se organizar, deve haver uma liderança que diga: “olha, aqui o voto é só da comunidade”. Aliás, eu acho que muitas vezes nem mesmo a própria comunidade sabe disso. Não há qualquer fiscalização por parte da prefeitura também neste intuito. Então falta uma organização. No “Todo o Poder” as pessoas sabiam quem era da comunidade, do bairro. Havia uma organização muito melhor. Sabia-se quem era “gente nossa”.


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Entrevista com o professor Manuel Serafim Madeira Filho, participante das assembléias do programa “Todo o poder emana do povo”. Data: 11 de dezembro de 2002. Entrevistador: Gerson Schulz 1- O senhor participou do programa “Todo o poder emana do povo”? Em que período? Aonde e como participou? Eu participei do programa “Todo o Poder” na administração do Bernardo de Souza que foi prefeito de Pelotas, através da associação dos moradores do Laranjal, e eu participei em todas as assembléias que houve. 2- Em sua opinião: quais os pontos que destacaria no âmbito da ética e da política a respeito da participação popular? Se tiver conhecimento ou participou do atual OP, faça uma pequena relação entre as duas experiências. Bom, a experiência do “Todo o Poder” eu achei muito interessante porque a participação é simples, todos os dispositivos são simplificados, não tem muita burocracia, simplesmente a equipe vinha completa, o secretariado, o prefeito, abria-se a assembléia, as pessoas apresentavam as propostas, suas reivindicações, após as inscrições destas propostas elas eram defendidas pelos seus autores e elas eram votadas, três ou quatro propostas dentre todas as apresentadas, então as escolhidas seriam realizadas naquele bairro. Então, assim já saia do bairro, após o encerramento da assembléia, a certeza do que seria feito no bairro. Assim eu acho que era muito simples, direto e objetivo. Quanto ao “Orçamento Participativo” eu não tenho maiores conhecimentos justamente porque quando eu comecei a participar eu achei muito burocratizado, as instancias das decisões iam sendo transferidas até uma última assembléia para que a gente conseguisse determinadas coisas. Então eu achei aquilo meio dispersivo e decidi não continuar acompanhando. Eu acho que o que interessa é a gente decidir na comunidade, o que interessa à


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comunidade. Eu acho que se decidido na própria comunidade eu tenho certeza de que aquilo ali que foi escolhido será realizado ali. 3- No “Todo o Poder” qual era a metodologia utilizada na organização das reuniões, como o povo participava? O povo participava livremente, cada pessoa era representante de si mesma. Ninguém ficava ali representando “a ou b”, a própria associação dos moradores se fazia presente mas não falava em nome dos moradores, ela apresentava propostas que a diretoria tirou como importantes através de conversas com os moradores, mas cada morador também podia apresentar a proposta que achava mais interessante. 4- Quais eram os passos seguidos pelos organizadores do “Todo o poder” desde as sugestões de obras ou mudanças em salários, criação ou extinção de cargos nas assembléias e a concretização destas sugestões? As assembléias comunitárias, elas se precediam de uma publicidade em torno da data, local e hora em que seria realizada. Havia a passagem de um carro com um auto-falante anunciando a reunião. Também era divulgada alguma coisa na fila do ônibus do Laranjal. Nas rádios e a televisão. Quanto à organização das assembléias, elas geralmente eram aos sábados à tarde ou num domingo pela manhã. Então os moradores compareciam à assembléia, sempre uma boa parte, e aí se davam as discussões. Eu me lembro que o prefeito fazia um relato da administração, os secretários falavam, então depois disso começava a participação propriamente dita das pessoas na assembléia. Então, numa primeira etapa, se apresentavam diversas sugestões de obras para o bairro, assim aquelas sugestões eram escritas pelas pessoas em um pedaço de papel, depois eram colhidas e levadas para a mesa. Depois os autores assinavam num livro para registrar as autorias das propostas. Num segundo momento cada pessoa autora de proposta a defendia. Às vezes eram várias propostas com o mesmo cunho,


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então apenas uma pessoa defendia a sua idéia porque não havia cabimento um monte de gente defendendo a mesma coisa. Por exemplo, quanto à questão de colocação de água, se houvesse mais de um autor desta mesma proposta, apenas uma ou duas pessoas defendiam-na. Assim as propostas iam sendo votadas e por essa votação, pelo “score”, elas chegavam a um número de quatro ou cinco que ficariam para a discussão final. Ou seja, das várias propostas, eram selecionadas aquelas que tinham condições de ser realizadas por causa das limitações orçamentárias. Como exemplo eu te digo o da água. O secretário de obras falava para a população como estavam as finanças da secretaria, ele falava se era possível fazer ou não as obras solicitadas. Assim os secretários argumentavam em geral se havia ou não possibilidades financeiras de realizar o que a população pedia. Eu não lembro, também, de ouvir alguém pedir absurdos em termos de obras, era sim avaliado o que se podia fazer primeiro. Geralmente essas últimas propostas eram sempre as grandes obras do bairro, elas eram os grandes investimentos que a prefeitura iria fazer ali e isso não significa que a prefeitura, por causa desses grandes investimentos, deixasse de fazer as rotinas de limpeza e conservação. Também nas assembléias não só se pedia obras. O povo reclamava... reclamava do prefeito, reclamava do horário dos ônibus, reclamava que o ônibus estava muito cheio, reclamava da coleta de lixo que deveria passar mais seguidamente. Reclamava dessas coisas pequenas do dia-a-dia do bairro. Essas reclamações eram colhidas pelos secretários ali mesmo na assembléia para que fossem resolvidas no outro dia. Assim as assembléias do “Todo o Poder” não eram somente para pedir coisas, era para o povo desabafar. Então esse era o grande momento da assembléia, o desabafo das pessoas. 5- Com relação a cargos públicos, não havia deliberação? Eu não lembro.


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6- Como eram divididas as áreas da cidade na organização do “Todo o poder emana do povo”? Eu não tenho certeza disso aí. Mas tenho a impressão de que era por bairros. Eu trabalhei no Areal, também na vila Santa Terezinha, lá eu compareci. Teve aqui no Laranjal. Eu acho que era por bairros. 7- Como eram tomadas as decisões finais no “Todo o poder”? Quem as tomava? As decisões das obras quem tomava era a assembléia. Depois que se chegava à decisão final, depois que se concluía que não havia nenhum impedimento legal para aquela reivindicação, que os recursos estavam assegurados, a decisão era da assembléia. Assim, era tudo votado em assembléia, o prefeito sancionava caso não houvesse impedimentos legais. Os únicos impedimentos que podiam existir eram de ordem legal e financeiro. Eu não lembro de, no Laranjal, ter acontecido algum impedimento de ordem financeira quanto a uma obra escolhida. 8- Qual era o papel dos técnicos, dos secretários e do prefeito dentro das reuniões do “Todo o poder”? Bom, o papel dos técnicos que eu vejo, ou que eu via na época, era justamente o de esclarecer ao público dúvidas técnicas de alguma solicitação. Por exemplo, a construção de uma usina de tratamento de esgoto no Laranjal, isto seria o ideal, mas a prefeitura naquele momento não dispunha de um estudo de engenharia sobre isso, esta obra requeria um grande estudo de engenharia que seria muito caro. Talvez até a prefeitura não dispusesse de uma fonte de recursos para fazer isso. Então as coisas eram divididas pelos bairros, um bairro também não poderia tomar um orçamento muito grande para não prejudicar outro bairro. De um todo, onde se tira muito, falta para os outros. Então os secretários debatiam justamente estes dados. Eu também não lembro de alguém querer por “goela abaixo” da população alguma obra que ela não tivesse escolhido.


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Eu acho que o grande trunfo do governo não era trazer coisas pré-elaboradas para a população votar, mas sim trazer dentro de uma roupagem chamada “Todo o Poder” para aquela coisa que foi aprovada pela população. Então esta proposta ficava dentro de uma roupagem bonita, o que dava certo “status” para o governo, um governo que aceita a participação popular. Isso dava uma roupagem nova à “opaca” decisão popular dentro da assembléia. Tudo era, depois, reproduzido na mídia como hoje é o “OP”. Então, neste aspecto, era assim... às vezes se pensava que o pessoal ficaria um pouco inibido com os secretários mas não, o povo sentia-se à vontade. 9- Então se pode afirmar que havia uma pré-disposição das autoridades (secretários e prefeito) para escutar os anseios do povo? Eu acho que no formato que se deu ao “Todo o Poder”... olha, uma coisa tem que ser diferenciada, o “OP” é orçamento participativo, é um percentual do orçamento da prefeitura que é posto em discussão, já o “Todo o Poder” não era assim. Por exemplo, quando o prefeito interviu nas empresas de ônibus ele chamou os membros das associações de bairros (a UPACAB e outras) que na época funcionavam bastante bem, (hoje não sei se funcionam, acho que se funcionam é precariamente), mas então, quando o prefeito decidiu intervir nas empresas de ônibus esta já era uma decisão que extrapolava o simples orçamento, nesta decisão é que funcionou o “Todo o Poder do Povo”, foi este tipo de decisão que caracterizou o “Todo o Poder”. Ali se pode dizer que algo funcionou, que algum poder foi dado ao povo. Da assembléia saíram algumas pessoas que foram lá intervir nas empresas de ônibus durante uma greve intensa que houve em Pelotas, uma greve de uma semana onde as empresas queriam reajuste de tarifas e a prefeitura disse que não. Então foi preciso intervir nas empresas e botar os carros para rodar. Por este fato, a gente observa a diferença que há entre o “Todo o Poder” e o “Orçamento Participativo”. Outra diferença é que o prefeito vinha na casa das pessoas, ele escutava as pessoas, ouvia muito as pessoas, na rua ele


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conversava com a população. Se alguém precisasse falar com o prefeito era só marcar hora na prefeitura que ele recebia. Eu digo isso porque eu mesmo, muitas vezes, como cidadão, sem ser político, sem representar nada, marquei audiência com o prefeito para tratar a respeito da construção da escola aqui no Laranjal. Uma vez eu falei com ele na saída de uma assembléia do “Todo o Poder” para lhe dizer que eu queria um terreno para construir a escola de ensino médio, hoje a escola de ensino médio Edmar Fetter aqui no Laranjal, e ele me disse: “olha, você vai à prefeitura e marca um horário e nós vamos conversar sobre isso”. Ele mesmo me disse que se o meu problema era a falta do terreno, eu sairia de lá da prefeitura sem nenhum problema. Então eu marquei e fui atendido. Eu me lembro que fiquei das onze horas da manhã às treze da tarde lá na prefeitura de Pelotas conversando com ele. Então eu acho que isso é participação do povo, são coisas concretas. Eu quis, fui lá e fiz, se outros não fizeram essa participação foi porque não quiseram. Eu participei deste projeto. 10- Como eram as relações entre o prefeito, os secretários, técnicos e o povo nas reuniões para deliberar as decisões? Eu acho que havia muita discussão entre a população, não era algo muito organizado, era algo que tu levava um papelzinho escrito com a tua reivindicação e de repente descobria-se que quase todos os papeizinhos continham o mesmo pedido porque lá a gente escrevia no papel aquilo o que queria para entregar à mesa, certo? Cada um partia da sua individualidade para à coletividade. Então até chegar da individualidade à coletividade havia uma grande discussão. Mas por outro lado, eu ressalto que não havia anarquia, era só no âmbito do debate. Não havia agressão, mas eram debates acalorados, cada qual defendia arduamente a sua proposta. Por outro lado, a relação do secretariado com o prefeito, eu não sei se após a assembléia era feito outro debate entre eles. Eu também não lembro de ver um “pacote pronto”: “isto aqui deve ser aprovado”. Isso não havia. Também não havia ali nas assembléias “robozinhos, bonecrinhos” (sic) para fazer propostas que agradassem ao prefeito, se havia, eu nunca percebi.


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Esta foi a melhor experiência de toda a minha vida, em termos de participação popular: o “Todo o Poder Emana do Povo”. É certo, senão foi melhor, foi por falta de tempo e de experiência até do próprio prefeito, porque eu acho que o Bernardo não tinha idéia da coisa que ele inventou. A coisa era muito boa. Eu acho que quando o prefeito criou o projeto, ele não tinha idéia do que poderia ter feito com isso. Talvez hoje o Bernardo se dê conta da grandeza daquela experiência. Esta experiência, ademais, foi iniciada numa época em que o povo não se intrometia na política, secretário era secretário, prefeito era prefeito e o povo era o povo. Todos ali eram inexperientes, estavam começando. Hoje, eu acho, que as pessoas estão mais maduras até em função deste aprendizado que houve na época do Bernardo. 11- Como o povo era convidado a participar? Como eu falei anteriormente, o povo era convidado a partir dos carros de som, das associações comunitárias, era bastante divulgado, bastava ser cidadão para participar. Às vezes até mesmo as pessoas que entregavam a conta de água entregavam junto um papelzinho convidando para participar. Essa entrega era feita com bastante antecedência, inclusive. E também eram convidadas todas as pessoas, sem distinção. 10- O povo realmente participava das reuniões efetivamente, isto é, todas as pessoas tinham voz e vez para expressar sua opinião? Olha, eu participei de todas as assembléias. Eu creio que na experiência “Todo o Poder”, em nível de Laranjal, foi quando houve mais pessoas participando em assuntos comunitários aqui no Laranjal. O Laranjal Praia Clube estava lotado, depois disso aí eu nunca mais vi, em termos de participação popular, coisa igual. Cada pessoa era um voto, as pessoas iam de livre e espontânea vontade. Por outro lado, nem os secretários nem o prefeito votavam, eles apenas conduziam a assembléia.


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13- Qual era a função dos representantes e como eram eleitos? Olha, eu acho que não havia representantes. Eu não lembro disso. Quando a equipe do prefeito saía daqui, eles já saíam sabendo o que havia sido decidido para o Laranjal. Não havia representantes, quem iria cobrar as obras era a associação dos moradores do Laranjal (a AMOLA) ou cada cidadão, eventualmente. Eu não lembro de ter representantes. Se havia eu não lembro414. 14- Quanto ou que parcela do orçamento da prefeitura era posta em discussão para a população decidir onde seria aplicado? Eu tenho a impressão, embora não tenha certeza, que era toda a parcela de investimento. Por exemplo: se cabia “X” de investimento para o Laranjal, era todo ele. Se outro bairro possuía “Y” para investimento, eles decidiriam “Y”. Não era todo o orçamento do município, mas todo o orçamento de investimentos, isto sim. Tiradas as parcelas de limpeza, capinas, coleta de lixo, pagamentos da folha dos funcionários, isto era resguardado. O que sobrava daí era aplicado 415. Por exemplo o que se pediu para o Laranjal? Pediu-se água tratada, mas não se pediu que viesse água da cidade, depois como o governo conseguiu financiamento, ele pôs água tratada que provinha da cidade, mais especificamente que vinha da caixa d’água da vila Bom Jesus. Ou seja, a população apenas pediu água tratada, mas de onde viria esta água era problema técnico. Quanto custaria a obra era problema dos técnicos resolver. Custeá-la, ou qual o melhor modo de torná-la mais barata era problema da prefeitura. Também, embora com pouca certeza, eu acho que cada bairro, pela sua importância, 414

O entrevistado participou do Todo o Poder no último ano, 1986 quando o programa tomou outro rumo. 415 Como se pode ver, a discussão sobre a totalidade do orçamento, como acontecia nas duas primeiras edições do programa, já era simplificada, restando o que seria investido para debate dos participantes e já com um percentual hipotético para cada bairro.


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pela sua infra-estrutura, pelo número de moradores, tinha dedicado um percentual diferenciado por estes padrões. No caso do Laranjal, este sempre foi muito privilegiado porque era um lugar de lazer para a cidade, isto também era levado em conta. 15- Havia algum pressuposto ético na proposta do “Todo o poder”? E nas escolhas feitas pela população, partindo da citação do ex-prefeito Bernardo de Souza na sua obra “Todo o Poder Emana do Povo” lançado pela Universidade Católica de Pelotas onde ele afirma que:“enquanto não houvesse água encanada numa comunidade, outra onde já a tivesse e solicitasse esgoto não o teria enquanto todos não tivessem água”. O senhor confirma isso? Olha, desta afirmativa eu não lembro. Quanto aos pressupostos éticos, eu também não lembro. Não há nada que eu gostaria de destacar. 16- Em sua opinião a população de Pelotas, de um modo geral, gostou da proposta do “Todo o poder”? Por quê? É difícil responder se a população gostou. Eu acho que a população não estava bem preparada na época para saber do que ela estava participando. Creio também que a divulgação não foi muito grande, eu inclusive falei em sala de aula uma vez, e muitos alunos disseram nunca ter ouvido falar. Creio que houve uma falha de comunicação. Mas até hoje algumas pessoas que participaram comigo relembram da participação. 17- Se em sua opinião houve sucesso do “Todo o poder”, cite alguns fatores deste sucesso? Olha, na situação do Laranjal, o fato do asfaltamento da avenida Adolfo Fetter. Foi uma obra que melhorou em muito na questão do tempo, o conforto para os moradores chegarem até a praia. A água tratada foi outro sucesso, para mim. Para você ter uma idéia na época, a água do Laranjal era muito ruim. Antes da água tratada chegar aqui, se você colocasse uma camisa branca


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com alvejante numa bacia para desencardir, no outro dia ela estava amarela. Uma pessoa menos avisada que fazia isso, tinha que por a camisa e a água fora. A água também era saloba, ela vinha do poço artesiano. Outra coisa importante foi o posto de saúde, aquele ali da praça, que aliás, foi inaugurado depois que o Bernardo saiu da prefeitura. Mas quanto ao posto de saúde, eu não sei dizer se foi uma proposta da assembléia ou se foi uma proposta colateral, porque às vezes surgiam idéias entre conversas colaterais que eram “levadas no bolso” e depois eram realizadas entre as solicitações de obras. Outra obra importante foi a iluminação da estrada do Laranjal, a iluminação das ruas do bairro. Outra coisa interessante é que numa das assembléias havia saído eu e o Abílio como solicitantes do terreno para a construção de uma escola, da escola estadual do Laranjal, inclusive já tínhamos a autorização do governo do Estado do Rio Grande do Sul e só nos faltava o terreno. Como eu já falei, o prefeito Bernardo nos disse que se esse era o problema que bastava marcarmos uma audiência e estaria tudo resolvido. Hoje está aí a escola construída, ela tem capacidade para atender todos os estudantes do Laranjal, ela fez com que ficassem aqui no bairro, impediu que gastassem dinheiro com passagens até o centro, isto eu acho que foi muito importante. Depois o Bernardo saiu da prefeitura, foi assumir a secretaria de educação do Estado e eu telefonei para ele e ele mesmo me disse que naquela próxima semana estaria mandando construir a escola do Laranjal. Então eu acho que a escola foi justamente fruto da participação popular, foi graças à comunidade que fez peso, que a escola saiu do papel. 18- Em sua opinião, por que o programa “Todo o Poder Emana do Povo” declinou? Olha, eu não sei dizer porque o programa declinou. Eu acredito que passado o governo do Bernardo, o vice-prefeito (José Maria) não quis dar continuidade a este tipo de trabalho participativo. Eu acho que nem o vice-prefeito, nem os secretári-


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os que ficaram quiseram levar adiante esta idéia. Com certeza foi de cunho político. 19- Com relação à participação popular, você acha que houve alguma vantagem para o governo da época abrir este âmbito de discussões e participação ou teria sido mais eficiente permanecer dentro do mesmo esquema de administração pública convencional? Se houve vantagens ou prejuízos cite-os e aproveite para fazer suas considerações finais. Eu acho que houve vantagem para ambos os lados. Tanto para o governo como para a população. No caso do governo, um governo que ouve a população, é um governo que sabe a realidade. Então ele lê a realidade pela voz da população, ele não lê a realidade pelo que escrevem para ele, mas a partir da voz da população. Ele é um governo que trabalha com fatos e valores reais. E a população ganha com isso porque se sente co-responsável pela administração, porque tu bem sabes que a gente criou o Estado para administrar a sociedade. As coisas da sociedade. E, na minha opinião, o Estado se divorciou da sociedade. Ele só se junta com a sociedade quando há eleição. A sociedade só se junta com ele no momento do voto, depois há um divórcio. Aí o Estado passa a mandar na sociedade e não é mais a sociedade que controla o Estado. E no momento em que o executivo municipal que é a diretoria dessa pequena porção da sociedade aceita conversar com o povo, isso é importante para os dois lados mesmo que nisso aí haja muitas coisas “buriladas”, coisas que às vezes possam parecer com segundas intenções por parte do próprio poder público. Mas eu senti que as partes gostaram, todos nas assembléias saíam contentes, se batiam as palmas tradicionais. Realmente as pessoas haviam participado e decidido alguma coisa. Já na próxima assembléia, no ano posterior, as coisas que haviam sido escolhidas já estavam construídas, não ficava nada pendente. A moral era essa. Ninguém ficava dando explicações disso ou daquilo, se fazia as obras prometidas efetivamente.


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Por outro lado, eu acho que os dois programas tiveram e têm pequenos problemas. Eu acho também que se hoje se quisesse aplicar o “Todo o Poder Emana do Povo”, que é muito diferente do “OP”, não poderia ser do modo como foi anteriormente. Hoje a mídia, a televisão, ela trouxe uma nova visão da participação das pessoas. Hoje há meios de comunicação como a internet, é outra forma de participar. Eu acho que há muitos modos, hoje, para termos uma média da opinião da população sobre determinados assuntos. Eu cito também as pesquisas de opinião pública, se sabe hoje que uma pesquisa tem uma metodologia bastante boa para determinar a realidade e os anseios da população. Eu acho que para se trazer de volta uma participação efetiva, as assembléias são muito pequenas, elas são pequenas para decidir sobre um universo muito grande. Essa é crítica que eu faço. Eu acho também que é difícil para as pessoas sair de casa para participar porque a sua própria cultura, a sua educação não foi essa. A cultura das pessoas foi sempre aquela de se submeter às decisões das cúpulas, então elas acabam pensando que é bobagem participar e tal... Portanto, eu creio que hoje teria de se reinventar o modo de participação, nenhum dos dois hoje “subiria da tumba”. Eu acho que hoje teria que se adequar a participação à modernidade, a algo que desse mais participação a um maior número de pessoas. Apesar dos salões lotados nas assembléias em que eu participei, ainda eram poucas as pessoas em relação à população de um bairro. Eu acho que não se pode dizer que um salão cheio tenha o direito de decidir pela comunidade toda. Por isso eu acho que a coisa é opaca, mascarada. Eu acho que as assembléias representam somente aquelas pessoas que saíram de casa, àquelas pessoas que se dispuseram a ir, representa aquelas pessoas que já têm um treinamento, que receberam uma educação para isso. Eu creio que a grande maioria foi apenas convidada, mas não houve qualquer preparo para elas se posicionarem, não houve qualquer treinamento para esse processo. Por isso eu acho que o grande equívoco está aí, as pessoas pensam que é o povo que está decidindo mas não é. É apenas


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um grupo de pessoas que decide. Por isso eu reitero que deve ser inventado outro modo de participação. Por exemplo, hoje na mídia há aquela brincadeira da Casa dos artistas (programa do tipo ‘Reality Show’ do ano 2001 na televisão brasileira), ali o povo participa. Você até pode me dizer: “não, ali tem a internet que é apenas para uma elite”. Mas ali o povo votou, a gente tem que participar. E outra, a elite não vai para as assembléias de salão, de salas com o povão. Eu acho que a elite não vai ao “OP” e a elite tem que participar porque democracia supõe todos os seguimentos participando, a elite também tem o direito de ter dentro do orçamento coisas que contemplem os seus desejos, porque a elite paga imposto justamente para usufruir também de seus direitos. Ora, por que se distribuí mais para os pobres? Justamente para compensar esta diferença, mas eu acho que deve se descobrir uma forma do povo como um todo participar. Eu acho que as escolas seriam um bom veículo de participação. Por exemplo, se criassem questionários de fácil preenchimento para que através deles se soubesse os desejos dos pais de alunos assim como se criaram as provas de vestibular. As escolas são o aparelho que tem melhor estrutura social no país. Ela, hoje, tem em seus quadros um grande número de universitários através do pedagogo, do psicólogo, do professor. Isto seria um ato educativo. Já passou o tempo do professor escrever no quadro e os alunos copiarem. É preciso fazer as pessoas se tornarem cidadãos. O aluno poderia ser aí dentro deste processo de educação um agente entre as pessoas e o governo. 20- Quanto à “elite econômica” que o senhor citou, é possível afirmar que eles se excluíram do processo dentro do “Todo o Poder Emana do Povo”? Eu acho que sim. Aqui em Pelotas o que existe são classes dirigentes. Tem associação de tudo! Aqui é possível que um sujeito saia hoje da presidência de uma associação comercial e amanhã já esteja na presidência de um clube. Por isso eu acho que essas associações vêem com certa desconfiança este tipo de participação. Eu creio que esse pessoal pense que eles é que po-


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dem fazer e desfazer com a cidade, o que não deixa de ser verdade! Eu acho que o que os pobres constroem com as mãos, e eles desmancham com os pés. Eles têm a convicção disto. Se eles não desmancham no papel, eles, de uma forma ou de outra, entravam as obras. Por essa atitude eu acho que eles têm que participar do processo. Mas, por outro lado, eu quero dizer o seguinte: a participação popular sempre foi um pouco fraudulenta, eu acho que as pessoas não acreditam muito nestas propostas porque elas vêem como é grande a corrupção nas câmaras legislativas, no Congresso Nacional... as coisas são corruptas, elas sempre foram assim. Eu acho, por isso, que é necessário que esse pessoal, políticos e grandes empresários, participem. É por este motivo que eu te digo que deve se desenvolver uma nova maneira de participação popular, deve haver um modo de fazer o CDL, o Centro das Indústrias participar também. Assim eu volto a reiterar a minha sugestão, enquanto o CDL e outras entidades podem acessar mecanismos legais para enviar suas propostas à prefeitura, eu acho que os mais pobres, o povão, poderia mandar as suas através das escolas públicas ou particulares. Nesta minha sugestão se teria quase cem por cento das pessoas representadas. É certo que se nós formos esperar pelos vereadores para que nos representem lá na Câmara, eles irão sempre representar aqueles setores que financiaram as suas campanhas. O “OP” também é falho neste aspecto, eu participei ali no ginásio do Colégio Municipal Pelotense e pelo número de pessoas que havia ali é absurdo afirmar que aquelas pessoas, embora estivesse lotado, representassem a população de Pelotas. E por último, eu quero dizer que na época do “Todo o Poder” a câmara de vereadores também ficou de fora do processo de participação popular. A Câmara da época não estava lá. Ninguém foi convidado dentre os vereadores e isso foi um erro. 416 416

Os vereadores eram insistentemente convidados. Não obstante, os poucos dados de que dispõe o professor sobre todo o processo, mostra bem a maneira como a população pensava sobre a participação popular e seus desafios para a Democracia.


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Entrevista: Nome: Gomercindo Ghiggi Profissão e cargo que ocupou no programa “Todo o Poder Emana do Povo”: Professor da faculdade de Educação de Pelotas e vice-diretor desta. Ocupou cargo de chefe na Assessoria Técnica na prefeitura de Pelotas dentro do projeto “Todo o Poder”. É doutor em Educação. Entrevistador: Gerson Schulz 1- O senhor participou do programa “Todo o poder emana do povo”? Em que período? Aonde e como participou? Eu participei do programa desde a origem. Acho que o gérmen disso, a semente, a gestação do projeto está ali em 1983. Eu fazendo parte de uma equipe que tinha à frente, como figuras mentoras, como lideranças, a professora Circe Cunha e o professor Jandir Zanotelli. Então éramos ali uma equipe oriunda de diversos segmentos da sociedade, mas que entendíamos ali, eram pessoas envolvidas e comprometidas com educação popular, com movimentos sociais, com a construção de uma sociedade nova, mais justa, mais solidária e assim por diante. Estes grupos eram então compostos pelo pessoal da Igreja, e pelo pessoal da Faculdade de Educação da Universidade Federal de Pelotas. Eu, à época, não pertencia à Universidade Federal, pertencia à Universidade Católica de Pelotas. Portanto, também participaram pessoas ligadas a UCPEL e UFPEL. Então, de alguma forma esse grupo, tendo à frente as pessoas que eu já nomeei, foi acolhido pela administração Bernardo de Souza, de alguma forma já em 1982, por ocasião da campanha eleitoral,. Mas a partir de 1983, organizando-se na Secretaria de Educação, que esse grupo assim esteve desde a origem dentro do programa “Todo o Poder Emana do Povo” e eu estava como um membro da equipe. Assim eu participei de uma equipe que foi construindo a perspectiva política, e ética e etc, do programa. Segundo: foi também delineando a metodologia e terceiro: participou, e agora sim, de uma forma mais densa, mais inten-


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sa da realização do programa. Eu falo particularmente da articulação dos movimentos sociais para que chamassem a população para participar das assembléias. Falo da própria coordenação das assembléias, que estavam com freqüência nas mãos da coordenadoria da Secretaria de Educação e falo da grande discussão que se dava, agora em nível interno na prefeitura, no que diz respeito à importância do programa que, para nós da Secretaria de Educação, era a vinculação entre a proposta do “Todo o Poder” que nós levamos a efeito a partir de 1983 e o projeto que elaborávamos para a SME. 2- Em sua opinião: quais os pontos que destacaria no âmbito da ética e da política a respeito da participação popular? Se tiver conhecimento ou participou do atual OP, faça uma pequena relação entre as duas experiências. (observar que este período todo está formatado em fonte dez no original = ERRO) O “Todo o Poder Emana do Povo” de alguma forma, nasceu de um programa de governo. O Bernardo em 1982 estava lá como candidato. Ele se candidatou em 1982, como candidato, contou com alguns membros da equipe da SME na própria campanha e vários de nós estivemos na própria campanha,. Independentemente de partido, naquele momento, queríamos uma grande coalizão, queríamos um grupo comprometido com a administração popular. Então o Bernardo queria uma participação popular, instigado por esse grupo de pessoas que com ele fizeram a campanha política para elegê-lo. Depois disto, as dificuldades primeiras da prefeitura no que diz respeito ao orçamento, à administração e infra-estrutura em geral, pôs a prefeitura num caos administrativo, isto nos primeiros seis ou mais meses de governo que eu não lembro. E foi justamente neste momento de dificuldade que foi retomado aquilo o que estava proposto no programa de campanha do Bernardo, ou seja, a idéia de que era necessário fazer um programa de participação popular na administração. E nós da SME, como a professora Circe e o professor Jandir à frente, tínhamos, em particular, um projeto político- pedagógico... E tínhamos para nós este projeto como uma forma de


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resistência, mas também aquela eterna e fundamental vontade de estar mudando a sociedade. É e, sem dúvida, a base ética, sem colocar qualquer dimensão ontológica apriorística, mas se colocava-se quase como um dever de fazer acontecer em Pelotas também uma mudança onde todas as pessoas, independente de sua origem, cor ou raça, pudessem participar dos destinos do seu “local”, pelo menos. Então, era fundamental naquele momento que se pudesse instalar o projeto que almejávamos e aqui entra a questão política: nós tínhamos uma eterna resistência para exercer o poder. Vencemos esta resistência. Ela vinha desde os nossos movimentos de base, das comunidades de base. Era como se nós tivéssemos uma aversão ao poder. Para nós era como se exercer o poder manchasse a vida da gente. Mas ali naquela ocasião nós decidimos que era central e que havia espaço, ou seja, nós tínhamos que fazer isto a tal ponto que muitos de nós militávamos em outros partidos, partidos de esquerda, eu sou um caso porque era filiado ao PT. Então muitos de nós nos filiamos ao PMDB para que pudéssemos viabilizar este projeto através da SMEC. 3- No “Todo o Poder” qual era a metodologia utilizada na organização das reuniões, como o povo participava? O Bernardo, no primeiro ano, deu suporte para a equipe da SME que estava à frente do projeto. Assim foi possível viabilizar o projeto tal qual nós o queríamos. Metodologicamente, nós trazíamos para este espaço de tornar público, para institucionalizar os nossos anseios de participação das pessoas, de participação na tomada de decisões, nós trazíamos a nossa experiência das comunidades de base, desse mundo que chamamos genericamente de “mundo popular”. Era fundamentalmente a metodologia do ver, julgar e agir. Estava internalizada em nós. Nós já vínhamos com essa concepção muito mais do que a técnica, mas com essa concepção de sociedade, de homem e de mulher, com essa concepção de participação em sociedade, influenciamos muito fortemente o processo.


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Basicamente, nós tínhamos uma concepção de qual projeto poderia ser institucionalizado. Em segundo lugar nós mobilizávamos as pessoas, e a Secretaria de Educação foi extremamente importante neste momento porque ela era, com certeza, a secretaria com o maior peso político e estratégico para mobilizar as pessoas, a população. E as pessoas iam às assembléias. Primeiramente, na assembléia, faziam a crítica à administração (e o professor Jandir tem dito isso, e ele disse em artigo publicado na revista Educação e Realidade lá de 1987. Nós tínhamos um pacto interno) e a administração tinha que agüentar a crítica da sociedade, das pessoas em torno do quê? Do modo como se organizava a relação das pessoas com o poder político municipal. Assim, neste primeiro momento a estratégia era agüentar a crítica mesmo, era explorar, era problematizar, era propiciar uma condição favorável em cada assembléia para que as pessoas se dissessem, falassem seus problemas, suas críticas. Já num segundo momento a proposta era tentar captar quais desejos deveriam ter financiamento, aporte institucional e financeiro por parte do poder público municipal para que se pudesse com isto dar conta das necessidades básicas daquela comunidade. Bem, daí os processos se seguiram de forma cada vez mais complexa em sua institucionalização, aquilo que hoje em dia é bastante conhecido, como a escolha de seus representantes, e os representantes de uma comunidade que vão decidir por votação final a peça orçamentária para aplicar os projetos. Resumindo: no que diz respeito à comparação do “Todo o Poder Emana do Povo” e do “Orçamento Participativo” eu não tenho muitos elementos em relação ao que atualmente é feito. Eu tenho lembrado apenas de um dado: de que o “Todo o Poder” não é mérito da pessoa ou do prefeito Bernardo de Souza. Se ele tiver cuidado, lembrará que ele foi figura importante nisto na medida em que ele propiciou uma condição administrativa e política para que o projeto se desenvolvesse. Mas ele tinha por trás uma equipe grande, e que foi mentora e executora. Por isso mesmo o programa tinha legitimidade e não pouca. Me parece que, salvo melhor juízo, no primeiro livro “Todo o Poder Emana


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do Povo” Bernardo, praticamente, desconhece isso ou não lembra. É algo parecido. Mas eu volto a dizer e aqui recuperando a fala sobre a comparação entre os dois programas, que eu entendo que no “Todo o Poder” havia uma radicalidade que eu espero que esteja sendo mantida agora. Então, aquilo que, não poucas vezes, tem sido dito sobre “Orçamento Participativo” como sendo uma novidade, sim, pode até ser. Mas lá no “Todo o Poder Emana do Povo” havia essa proposta, radicalmente feita. A construção era extremamente aprofundada, a participação das pessoas era em quantidade e qualidade absolutamente profunda. Assim eu digo que, talvez, sem o reconhecimento devido, o “OP”, hoje, deve muito ao projeto do “Todo o Poder”. 4- Quais eram os passos seguidos pelos organizadores do “Todo o poder” desde as sugestões de obras ou mudanças em salários, criação ou extinção de cargos nas assembléias e a concretização destas sugestões? Não sei se a minha memória ajudará tanto. Mas um pouco são aqueles passos que eu já anunciei. Nós tínhamos um grupo de governo, não só da secretaria de educação que, onde quer que participássemos, fazia um controle efetivo sobre o que era proposto, votado e executado. Permanentemente havia um contato com a população no sentido de estar devolvendo às pessoas, às comunidades, quais as realizações eram feitas, se havia ou não impedimento legal, e porque outras não eram realizadas. Se havia ou não problemas burocráticos de ordem institucional. Isto porque algumas obras solicitadas encontravam logo adiante empecilhos burocráticos, por exemplo: não havia terreno, ou o terreno onde a obra deveria ser executada não era da prefeitura ou alguém embargou a obra, ou algo parecido. Quer dizer, que, naquele momento, e eu falo particularmente de 1984, não havia ainda o desvirtuamento que ocorreu em 1985, por parte da administração central da prefeitura. Esta foi contra a dinâmica que nós lá da SME instalávamos. Houve, efetivamente, na primeira fase uma relação permanente com a sociedade.


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As etapas eram exatamente estas: decidia-se implementar o orçamento; relacionava-se permanentemente com a sociedade, para dizer o que foi feito, o que não foi feito, quanto custou..., isto é, havia uma transparência bastante grande em 1984. A transparência, aliás, era um dos itens que nós prezávamos muito. Prezávamos que as pessoas soubessem, que as pessoas, os grupos organizados, a sociedade, soubesse de tudo quanto acontecesse a partir da participação delas, não permitindo que a participação popular fosse apenas um mero ato formal. Não era apenas espaço onde as pessoas dissessem tudo o que tinham vontade de dizer, não! Isto era decisão, isto era exercício efetivo do poder junto com a administração municipal. 5. Quer dizer então que a partir de 1985, na sua opinião, houve um desvirtuamento por parte do poder central na pessoa do prefeito? É. Com certeza nós tivemos problemas. Eu diria, resumindo, que a SME foi banida do grupo administrativo, banida através da exoneração do secretário e por correspondência, muitas pessoas se demitiram. Eu fui uma delas. Mas mantivemos a radicalidade do projeto. É isso das pessoas estarem participando..., e a voz que a gente estava colocando na administração pública municipal, era efetiva. Mas, à medida em que a prefeitura foi melhorando a sua vida, a sua saúde financeira, a sua saúde administrativa, e isto muito tem a ver com este projeto..., então me parece que algumas vontades pessoais, que alguns desejos, que alguns grupos de pessoas passaram a se sobrepor ou a ter um lugar destacado, maior em relação ao da sociedade participante, como eu já havia dito. Eu não sei se chamaria a isso de vaidades, ou chamaria de dificuldade que nós temos politicamente de administrar uma prefeitura quando o poder está nas mãos das pessoas, da sociedade organizada, isto é, quando o poder escapa das mãos dos políticos ou de alguns políticos. Parece que por aqui nós temos algumas hipóteses que poderiam ser investigadas, eu diria provisoriamente que é isto sim, um pouco: as pessoas não admitem que o poder escorra pelas


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mãos. Elas, embora eu não esteja generalizando, mas com certeza, tiveram dificuldades para lidar com o exercício “popular” do poder. Eu falo do prefeito e do grupo de secretários, eu falo do centro nervoso do poder que teve dificuldades em administrar a idéia e a prática da participação da população, da sociedade organizada. O fato de ela estar decidindo, estar exercendo o poder com o prefeito, o fato de que ele teria que dividir o exercício do poder com a sociedade organizada, isso foi doloroso. E nós417 fomos execrados, embora possamos admitir alguns problemas nossos também, internos, alguns equívocos nossos, mas nós fomos execrados justo porque aqui queríamos, sobremaneira, a radicalidade do projeto. A radicalidade era igual em certos pontos, a: a população organizada exerce o poder. 6- Como eram divididas as áreas da cidade na organização do “Todo o poder emana do povo”? É..., nisto também a memória não ajudará muito..., mas a organização dava-se por regiões geograficamente reunidas. Obviamente que a localização das escolas também ajudou bastante neste mapeamento, embora muitas vezes realizássemos as reuniões em salões de igrejas, em associações comunitárias de bairros e etc.. Mas ainda eu diria que, afora o elemento geográfico regional que se toma para dividir a cidade, e na época havia as administrações regionais, também influenciava a localização das escolas. A escola nos bairros e na zona rural era um fator de espaço politicamente importante para pensar a regionalização das reuniões. As escolas eram centros importantes para articular o processo. 6- Como eram tomadas as decisões finais no “Todo o poder”? Quem as tomava? Havia algum conselho deliberativo? Se bem lembro, havia o conselho de representantes que hoje existe, se não me engano, no “Orçamento Participativo”. 417

Refere-se ao grupo da Secretaria da Educação que animava e incentivava o processo e da qual o professor Gomercindo fazia parte, inclusive coordenando o processo.


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Mas, primeiro, é importante esclarecer: nós não reduzíamos a uma assembléia a participação das comunidades. Havia um primeiro momento em que se coletava, embora este termo possa não expressar bem o que quero te dizer, mas se coletava as reivindicações da sociedade, ou de determinada comunidade. Havia um segundo momento em que a equipe técnica da prefeitura organizava as demandas face à perspectiva de orçamento, do tamanho do orçamento, e colocava também o sentido da viabilidade técnica das obras pleiteadas ou dos investimentos pleiteados. Retornava-se então à sociedade para que ela priorizasse as obras. Veja que aqui está uma decisão, uma relação de poder muito fortemente instituída. Ali as pessoas diziam o que era prioritário para aquela comunidade. Já nas assembléias seguintes as equipes técnicas organizavam este grupo todo de reivindicações e possibilidades. Nas assembléias finais é que definitivamente havia uma disputa pelos projetos. Definia-se, então, o que era que prioritariamente a prefeitura deveria fazer, não apenas olhando as reivindicações locais, mas olhando as reivindicações do município. As indicações eram disputadas brilhantemente. E isto no bom sentido da disputa. As pessoas se organizavam, pressionavam, se articulavam com seus representantes. Foi ali que um pequeno fator, qualquer coisa de nebulosa ocorreu a partir de 1985. Isto é, quando a feitura deste processo passou a ter a interferência de pessoas outras, isto é, além de ter um técnico que ajuda a organizar as reivindicações das pessoas, que ajuda a adequar estas reivindicações ao orçamento, no meio disso qualquer coisa passou a ter, a partir de 1985, em especial, interferência nas decisões, na construção das prioridades, na reserva de um tamanho maior de recursos para o gabinete do prefeito e assim por diante. Esses elementos aparecem na assembléia final de 1985, justamente por aí poderíamos pensar esta questão da crise e do declínio. 8 - Qual era o papel dos técnicos, dos secretários e do prefeito dentro das reuniões do “Todo o poder”?


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Admitindo que nunca há neutralidade nestas participações com relação aos técnicos, mas admitindo que havia um pacto interno entre as pessoas que estavam à frente do “Todo o Poder”, de que nós nos reservaríamos, todos nós, a tarefa de coordenar os trabalhos, de montar essa peça com aquilo que as pessoas dissessem, então: com certeza que houve influencia, a partir de 1985, cada vez mais aguda do prefeito Bernardo..., mas esse é justamente o desvio. Admito que as pessoas não são neutras nessa participação. Mas, induzir as assembléias a acatar determinados encaminhamentos em função de interesses centralizados no centro nervoso do poder municipal não se pode tolerar. Mesmo admitindo a boa argumentação do prefeito da época, o Bernardo... eu diria também que além da argumentação persuasiva, havia todo um trabalho técnico que sustentava esta boa argumentação. Foi um trabalho que eu não me dou o direito de chamar de manipulação; mas um trabalho que era em função de montar os resultados das assembléias em função dos interesses do poder central. Eu já não saberia dizer se por má fé ou qualquer coisa parecida... mas de alguma forma há ali uma participação importante de um grupo de técnicos capitaneados pelo prefeito e pelos secretários, obviamente, que vão estar à frente das decisões. Eu diria mais: foi dessa forma, montando estrategicamente um quadro de distribuição de recursos, como se isto era originariamente demandas da comunidade, mas que na verdade não eram, na verdade atendiam alguns interesses políticos bem localizados, interesses políticos bem claros que mais tarde acabaram se verificando, como no caso de eleição de pessoas ligadas à administração e etc.. 9- Como eram as relações entre o prefeito, os secretários, técnicos e o povo nas reuniões para deliberar as decisões? Em 1984 havia uma sintonia enorme entre o secretariado e o prefeito, naturalmente havia pequenos conflitos, mas, de tão pequenos não apareciam. Esta harmonia era entre as equipes que coletavam lá as informações junto às comunidades. O conflito


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maior aparece justo quando a equipe da SMEC, à frente o professor Jandir, em 1985 reivindica a continuidade do espaço de participação efetiva da sociedade organizada. Houve um atrito oriundo deste procedimento, desta postura: a SMEC atritou com o poder central da prefeitura. Assim, nós da SMEC, ficamos muito mais numa posição de defesa de que o processo de participação efetiva das pessoas ocorresse: quando elas falam e decidem, a decisão tem valor. Preferimos esta postura: ficar ao lado da sociedade organizada, ao invés da postura da prefeitura. Naturalmente a ruptura se deu ali., não me lembro bem, em outubro de 1985. 10- Como o povo era convidado a participar? De diversas formas. Utilizávamos todos os meios: grupos organizados, igrejas, associações, pastorais, tudo o que tu possas imaginar ali que haja de efetivamente organizado nas sociedades, grupos de empresários, seja lá o que for. E também os convites pessoais. As escolas também eram um espaço muito importante para chamar a sociedade a participar; os meios de comunicação... Havia um programa intensivo de divulgação das assembléias. 11- O povo realmente participava das reuniões efetivamente, isto é, todas as pessoas tinham voz e vez para expressar sua opinião? Olha, por experiência própria, esse era o grande projeto. Que estivessem lá as comunidades organizadíssimas, que todos se fizessem presentes, que todos reivindicassem, falassem e assim por diante. Obviamente que uma assembléia dessa natureza é complexa, imagina numa tarde inteira uma assembléia numa sala lotada lá no bairro Pestano 600, 700 ou 800 pessoas... nós à frente coordenando esses “assembleiões” obviamente que aqui, como nós sabemos, há uns que falam e outros que se calam, discutem, aprovam, desaprovam. As pessoas tinham participações inteiras na ocasião das votações, havia um momento em que, elencadas as propostas, eram eleitas as prioridades para as comunidades... Aqui havia, não sei se manipulação..., mas havia uma tentativa


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de agrupar forças a favor de um determinado projeto. E isso era intenso por ocasião das próprias assembléias, tanto das primeiras quanto das segundas. Ali se definia, definitivamente as prioridades. 12- Qual era a função dos representantes e como eram eleitos? Havia algum cargo acima deles, eles como tais, debatiam diretamente com o prefeito e os secretários? Bom, os representantes eram eleitos pelas próprias comunidades, eles se candidatavam, havia um pouco de disputa. Quanto ao número de representantes eu não lembro, creio que era por região, acho que eram dois por região. Não lembro também como chamávamos, se era região ou zona. Mas o que importa é isso: as pessoas votavam e aqui, embora não pouco, havia um atrito com o poder legislativo, este se sentia excluído do processo, mas fez muito bem para eles este projeto porque muitos vereadores tiveram que mudar não o discurso, mas a prática naquele momento. Mas a crítica houve e era muito forte por parte dos vereadores que diziam que eles eram a casa do povo e a casa do povo estava sendo esquecida e eles eram os representantes eleitos para votar o orçamento e não aqueles representantes que nasciam do povo, das comunidades e etc.. A relação com os técnicos, o processo do “Todo o Poder” durou um tempo muito curto..., demais! Assim não podemos avaliá-lo de uma forma mais ampla. Mas, num primeiro momento ela era... de uma forma absolutamente primária, preliminar, se dava a eleição dos representantes e esses representantes eram chamados para que então, no Conselho de Representantes, se pudesse definir... então no “assembleião” final, esse onde o povo participa, havia essa idéia da fundamentação... eu não recordo, mas havia a participação dos técnicos, sim, na definição das prioridades. Aquela construção mais técnica do orçamento era de responsabilidade dos técnicos, ali o povo não participava. 13- Quanto ou que parcela do orçamento da prefeitura era posta em discussão para a população decidir onde seria aplicado?


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Eu tenho uma vaga idéia de que era 20% da receita. Isto é, a idéia era essa: havia despesas com pessoal, com luz, com telefone, não adiantava votar se iríamos gastar ou não. Então, para além destas despesas, sobrava um determinado dinheiro que era para investimentos, para aplicar em projetos que eram postos tradicionalmente pelo prefeito e ali a gente tentou, justo com esse programa, bueno (sic): dizer, justo, “sobra pouco dinheiro, mas sobra algum dinheiro e como é que vamos gastar?” Então as pessoas participavam, se organizavam para definir como gastar esse dinheiro. 14- O ex-prefeito Bernardo de Souza em sua obra: “Todo o Poder Emana do Povo” lançado pela Educat em Pelotas, afirma que até mesmo o número de cafezinhos que os funcionários da prefeitura podiam consumir durante o expediente e também a quantidade de café a ser comprada para essa finalidade, além do valor dos salários destes funcionários, eram questões postas em discussão nas assembléias do “Todo o Poder”, o que o senhor tem a dizer a este respeito? Olha, eu preciso averiguar melhor isto. Eu tenho pra mim que não havia este “jogo” tão amplo e detalhado assim, não. As pessoas se organizavam pra disputar determinado volume de recursos extras, para além das despesas que já estavam definidas. De forma nenhuma as pessoas, penso eu, decidiam pela quantidade de café que a prefeitura podia comprar. Estas despesas eram consideradas, bueno, (sic) fixas. Obviamente tem que ter o cafezinho para receber o prefeito, o vizinho, sei lá, isso não era decidido. Da mesma forma, pagar salário ou não, isto não. Isso não era decidido em assembléia. A radicalidade é essa, eu afirmo que há dois aspectos a ser levantados, embora com certo temor de engano, mas igualmente afirmo: dos recursos separa-se tudo aquilo que é fixo, que já se sabe que vai se gastar, e do que sobra, veja lá, do que sobra ainda, uma fatia ficava no gabinete, era para que houvesse uma liberdade do prefeito e me parece até justa, uma liberdade do prefeito para uma emergência, para que pudes-


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se gastar para além daquela peça orçamentária e assim por diante. Salvo que eu me engane profundamente aqui, não era tanto assim, não. 15- Havia algum pressuposto ético na proposta do “Todo o poder”? E nas escolhas feitas pela população, partindo da citação do ex-prefeito Bernardo de Souza na sua obra “Todo o Poder Emana do Povo” lançado pela Universidade Católica de Pelotas onde ele afirma que:“enquanto não houvesse água encanada numa comunidade, outra onde já a tivesse e solicitasse esgoto não o teria enquanto todos não tivessem água”. O senhor confirma isso? É. Eu acho que havia isso sim. Lá no conjunto, como eu dizia antes. A comunidade apresentava as suas reivindicações, priorizava as suas necessidades e depois cada comunidade com suas prioridades, era confrontada com as necessidades de outras comunidades, então, de alguma forma isso, com certeza, era avaliado no conjunto de Pelotas. Então eu creio que sim, embora não recorde em minha memória. Mas creio que havia algum elemento. Se isso é suficiente para dizer da base ética, a escolha de representantes, se é suficiente para avaliar isto, não sei... mas não poucas vezes as pessoas se organizavam em torno de lideranças, e isso nos incomodava bastante, porque eram lideranças eternamente “mandantes” lá em suas comunidades. Assim, muitas vezes, as comunidades acabavam elegendo pessoas que já tinham seu reinado garantido nestas comunidades e que, não pouco, manipulavam muitas coisas por lá. Então, nisto também a gente tentava pressionar e tentava avançar na quantidade de representantes. Para isso aqui entra a idéia das escolas. As escolas eram importantes no sentido de estar descobrindo novas lideranças...novas pessoas que pudessem estar falando, representando as pessoas... Articulando, confrontando com o poder instituído. 16- Em sua opinião a população de Pelotas, de um modo geral, gostou da proposta do “Todo o poder”? Por quê?


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Eu acho que no início houve resistências... a dificuldade das pessoas assumirem como cultura esta participação. Portanto, esta resistência produzida, manipulada, com um feitio de quem se sentia excluído deste processo (e aqui cito os vereadores), não todos mas alguns vereadores. Num segundo momento me parece que a sociedade pelotense começou a gostar disso, a participar disso efetivamente. A prova está ali na feitura do orçamento de 1984 e 1985, embora tenham ocorrido problemas, o processo em 1985 se deu. Então eu diria que sim. Que a sociedade se descobriu ali. Muita coisa andou no que diz respeito a novas lideranças, ao questionamento radical, ao exercício do poder, justo por causa do “Todo o Poder”. 17 Em sua opinião, por que o programa “Todo o Poder Emana do Povo” declinou? Pois é. Aquilo que eu já disse mais atrás responde à pergunta. Eu penso que a partir de 1985 o programa sofreu abalos. Eu acho que a última tentativa foi em 1986, né? (sic) Eu acho que é isto... Há uma tese de doutorado do Jussemar da Ufrgs que hoje trabalha na Furg, que vai defender justo esta questão: “quando é que se desestabilizam as experiências ditas democráticas nos anos 80?” Ele enfoca, particularmente, as experiências de municípios. Elas se desestabilizam justo quando a radicalidade se torna exigência. Porque aquelas experiências foram construídas por grupos sociais dos mais diversos: os movimentos sociais, as Comunidades de Base da Igreja, todos eles comprometidos com a mudança da sociedade. Por outro lado, quando a gente leva em frente, não só essa metodologia de estar dividindo o poder com a sociedade organizada e, em segundo lugar, quando a população trabalha radicalmente: as propostas, quando os desejos das comunidades organizadas partem para o exercício político da administração municipal..., me parece que então há o rompimento. E é aquilo que eu já dizia, algumas vaidades, alguns desejos que não estavam afinados com os desejos da comunidade


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organizada, estes desejos acabaram pondo em conflito um programa como este. É essa a leitura, a dificuldade que nós temos de institucionalizar o popular. A participação popular desestabiliza o poder. Retira das mãos de algumas pessoas o poder. Pessoas essas que, incumbidas pela dita “democracia representativa”, pelas eleições, se dão o direito de exercer o poder, eu diria, não poucas vezes, despoticamente. Neste caso do “Todo o Poder” permaneceu sempre um “manto” de participação. Ao final, mostrou-se um manto que diz: “as pessoas decidem, as pessoas participam”. Mas, por trás, havia outras forças que interferiam na decisão final ou... isto é, na feitura da peça orçamentária: o único objeto material, materializável que nós tínhamos no programa. O outro objeto de intenções nossas era esse, o de estar movimentando as pessoas, politizando, creio que estar fazendo um pouco aquilo que a Modernidade queria: fazer o povo se erguer, ousar saber, ousar participar, ousar votar, ousar que o poder público se torne... bueno (sic)...estou exagerando em relação à Modernidade? Mas era um pouco este exercício: da radicalidade de um direito que, embora a Modernidade não tenha conseguido realizar por inteiro, ou realizar pouco, mas que iria se desenhar. Nós somos pessoas e como tal, quando pensamos no quotidiano de uma cidade, esse quotidiano não pode ser decidido nem por uma pessoa ou um grupo pequeno de pessoas. A ruptura, eu acho, se deu justo neste momento em que nós tivemos dificuldades, ou melhor ainda, esse grupo mais central na prefeitura, teve mais dificuldades de levar para a administração a radicalidade da administração popular. 18- O que o senhor tem a dizer sobre a demissão do secretariado durante o “Todo o Poder”? Esta foi a ruptura ou essa ruptura se deu antes deste fato? A relação que a SMEC tinha na prefeitura, e que era muito importante, se estremece quando se manteve a radicalidade da participação das pessoas. Nós não queríamos ir para os “assembleiões” apenas para escutar as pessoas e para acalmar as críticas. Para mim, não era isso. Não, nós queríamos que as críticas e as


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propostas das comunidades organizadas fossem efetuadas. Acho que isso a administração da época fez: ela tomou o espaço da participação popular como um espaço para o esvaziamento da própria crítica. A demissão do secretário foi a “gota d’água” da resistência que nós da SME fazíamos. Veja que não houve uma demissão em massa em outras secretarias em outubro de 1985. Houve uma assembléia final no Colégio Pelotense, nela o prefeito Bernardo demitiu o secretário de educação que era o professor Jandir Zanotelli e isto por quê? Porque o secretário não fez o “jogo” que fizeram os demais secretários, ou seja, no sentido de apoiar determinado formato do orçamento para o exercício de 1986. Nós acreditávamos que neste orçamento não estavam contempladas as falas das assembléias, a voz da sociedade organizada, ela não estava presente ali naquele orçamento. Então, o prefeito demitiu o secretário de educação do município e junto se demitiram trinta ou quarenta pessoas. O grupo inteiro da SMEC se demitiu. Criou-se uma lacuna enorme, ali na secretaria, porque havia um processo de muita construção, de muita feitura democrática, eu diria radicalmente democrática, e eu diria dolorosa porque isso... porque a democracia é trabalhosa. Então havia a construção de um projeto pedagógico para a rede municipal de Pelotas que era de mudança..., que não era brincadeira. 19- Com relação à participação popular, você acha que houve alguma vantagem para o governo da época abrir este âmbito de discussões e participação ou teria sido mais eficiente permanecer dentro do mesmo esquema de administração pública convencional? Se houve vantagens ou prejuízos cite-os e aproveite para fazer suas considerações finais. As vantagens são pragmaticamente visíveis: era um momento de crise da prefeitura onde se chamou a sociedade a participar, e nesta participação o prefeito dividiu com a sociedade a responsabilidade pela administração. A prefeitura estava jogada num caos, havia enormes dificuldades. Com o programa fizeram-


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se explicações exaustivas sobre o porquê a prefeitura não estava realizando determinadas obras. A prefeitura que o Bernardo recebeu estava quebrada em todos os sentidos: pessoal, maquinário, estrutura, os prédios estavam caindo. De alguma forma, num exercício de austeridade administrativa muito forte, o prefeito põe isto em ordem..., mas chamando a sociedade. Então este foi o primeiro benefício que o prefeito, particularmente, tem, com a participação da sociedade. O segundo benefício que não é inteiramente reconhecido por todos é o fato de nós estarmos, através da feitura de uma peça orçamentária, mobilizando gente. Fazendo gente participar... entendendo estes meandros do exercício do poder. Formando novas lideranças, conscientizando gente, colocando a questão dos direitos como o centro da vida das pessoas. Queríamos que as pessoas passassem a ter uma cultura de participação. Queríamos que fosse “automático” este fato de as pessoas reivindicarem seus direitos. Não apenas uma reivindicação isolada, mas organizadamente..., isso com certeza formava. Esse era um processo denso que saía da escola, saía ali do âmbito das instituições formativas e ia para a sociedade inteira. Então eu acho que, quando alguém é eleito, não é como se recebesse uma “carta aberta”, uma “carta em branco” da sociedade.Mas para muitos é. É doloroso isso. Nosso objetivo não era apenas esse, “o poder”, era pôr também “gente em pé”, fazer as pessoas participarem. Porque até então elas não participavam. Havia, pois, outro objetivo além de exercer o “poder” como tal..., sei lá se isso vinha da nossa história de participação nos movimentos sociais, na Igreja e etc.. Nós colocávamos a participação como imperativo. Queríamos que o povo olhasse, olho no olho de quem administra, de quem tem o poder, de quem tem o dinheiro. Era a tentativa de, por ali, enfrentar o desafio da organização do povo. Esse processo, porém, dói... porque retira das mãos de algumas pessoas que tem projetos mais individuais o exercício do “poder”absoluto. Nesta dôr acontece a ruptura. Assim, para finalizar, o projeto foi para mim um processo de aprendizagem. Não só pelo fato de estar falando com o povo, de organizadamente falar com o povo, mas foi uma apren-


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dizagem do exercício político: esse tempo foi quando a gente tentou estabilizar as reivindicações do povo, estabilizá-las de forma organizada através de políticas públicas no município e etc.. E eu me pergunto: “será que a gente consegue alguma coisa?” Como na definição de Ernst Bloch sobre utopia: “a gente avança um passo e parece que recua dois”. Naquele momento parece que a gente se sentiu um pouco assim. Algo que, como nos dizia a professora Circe Cunha: “nos cortam versos”. Nos cortam as pernas, cortam os versos que fizemos. De alguma forma aquele grupo que saiu dali da prefeitura desistiu. Articulou-se num centro de educação popular que teve pouca duração, enfim, teve uma vida curta. Então os objetivos continuaram, se não me engano, tivemos aqui na região sul, um grande desenvolvimento dos movimentos sociais em 1986 e 1987. Assim não foi mais na prefeitura que houve a continuidade deste processo, mas nas escolas ligadas aos movimentos sociais e ao pessoal que saiu das assembléias populares do projeto “Todo o Poder”.


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A presente edição foi composta pela Editora EDUCAT/UCPEL, em caracteres Times New Roman, corpo 11/12 e impressa no sistema de Tecnologia Digital DocuTech Xerox do Brasil, papel sulfite 75g (miolo) e cartão supremo 250g (capa) pela Gráfica Sem Rival Ltda/Pelotas-RS, em agosto de 2003.


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