DE VENTO EM POESIA
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MARCELINA
ILUSTRAÇÕES THYARA
Título original De Vento em Poesia Textos Marcelina Ilustrações Thyara Projeto gráfico Jão - Artista Visual | Designer Gráfico Ano 2020
LUGAR ARTEVISTAS De Vento em Poesia, da ArteVista Marcelina é nossa primeira publicação literária e é para nós uma grata alegria poder compartilhar esta realização, tornando tangível essa poesia que lateja e deságua, essa poesia necessária. Esta publicação chega quando nós celebramos oito anos da revista eletrônica Lugar ArteVistas - Arte Onde Estiver, e chega para que seja presente para você que nos lê e que certamente vai se identificar com os poemas tão femininos dessa autora que apesar de ser sua primeira publicação escreve desde sempre e se doa ao seu leitor, em palavras, emoções e sentimentos, tão seus, tão nossos. Com ilustração da sensível Thyara e projeto gráfico de Jão, este livro é um deleite e um mergulho às águas salgadas e doces de ser-se. Boa leitura. Roberta Bonfim Lugar ArteVistas
EM LUGAR DE PREFÁCIO, CARTA À MINHA IRMÃ domingo, 31 de maio de 2020 Acordei com você me olhando, Marcelina, com suas poemas que me falam de rios e gozos e sangues e choros – tanta água! e diários, infância e paisagens e mais poemas, tanta coisa, tanta poesia. Minha filha me pega com você me olhando e me pergunta por que uma pessoa se põe a ler numa hora dessas? e eu digo porque alguém escreveu e ela me devolve por que alguém escreve numa hora dessas? porque escrever, minha filha, nos ajuda a sobreviver. Respondo, mas garro a pensar muito sobre isso, uma mulher escrevendo em 2020 quando tantas não puderam em séculos, é uma vingança! uma mulher escrevendo sobre seu corpo, seus desejos, sua raiva, sobre o que quiser. Que bom, mulher. Escreva como uma mulher. Numa dessas poemas você se pergunta numa pergunta retórica de poesia, o que fazer com as lágrimas, já respondendo ao escrever este livro: regar o próprio jardim. E lamber o jardim como quem lambe as poemas tão lindas, tão lindas, repetidamente lindas, você me faz repetir num corpo de poema.
Fiquei pensando em quantas vezes você pode ter sido chamado de vaca, pensando muito em tua vaca coração, uma vaquinha não é mesmo um bicho que vai pro abate, que muge, dá leite, aguenta um macho, uma inseminação, ela até chora regando um jardim, e uma vaquinha não é mesmo um bicho sagrado feito um coração? Tenho ganas de te segurar o coração ensanguentado. Te leio e lembro ainda as minhas “bonecas da minha infância/ onde me deixei ficar/partir/ bonecas de milho afogadas/ adeus”, e então encontro uma outra parte de teus ventos, porque sim, escreve sobre o que quiser, e há tanto sobre o que escrever, que um livro é pouco e o dobra em dois, nos oferece uma paisagem de sertões e maresias pra pular, porque a poeta é variegada e é mais que mulher: encarna a própria ventania e as águas das orixás que reverencia. Que bonito te ler, Marcelina. Ficar nas tuas águas como o tempo-tanto. Talvez porisso minha leitura tenha essa l e n t i d ã o. Aproveitar e agradecer ainda mais o tempo-tanto. Finda esta carta, só a poema não quer findar. nina rizzi
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AGRADECIMENTOS De Vento em Poesia foi tecido por mãos afetuosas de queridas/ os amigas/os meus. Só assim seria possível a realização desta obra-sonho. Agradecimentos sem fim à coletiva de poetas e escritoras Xanas recitam Xanas, do Cariri cearense, onde começaram os meus voos. Ao amigo, poeta e inspiração criativa, Nirton Venâncio, o primeiro a receber o material bruto, e que com seu olhar cuidadoso e sensível me ajudou a lapidá-lo. À Thyara, artista visual, pelas ilustrações tão lindas que dançam com os poemas. Jão, artista visual, “sister monster” e amigo, que cuidou sensivelmente do projeto visual da obra. À nina rizzi, escritora, poeta, pesquisadora, pela generosidade em ter me honrado com uma carta-prefácio.
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À Roberta Bonfim e à Revista Lugar ArteVistas, por acreditar e investir na materialização do “De Vento em Poesia”. Saulo Lemos, amigo recente, apaixonado por Literatura, pela última leitura do livro antes da publicação. Junior Barreira, amigo querido, por ler-me tão bem. Hilário Fonseca, amigo e um grande incentivador de minha escrita. Especialmente, ao meu avô materno, pai de criação, um homem sem instrução alguma, mas que nutria grande afeição pela palavra e me ensinou a gostar dela desde muito cedo. À Tia Consuelo, minha primeira professora, que cedo me apontou o caminho da arte. Finalmente, aos ventos de Oyá, que me movem. Epahey!
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Às mulheres de minha família.
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ÍNDICE
Lugar Artevistas.................................................................................................... 05 Em lugar de prefácio, carta à minha irmã......................................... 06 Agradecimentos................................................................................................... 09 Parte I............................................................................................................................ 16 Parte II.......................................................................................................................... 66
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Parte I
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EU, A CRIANÇA PARA SEMPRE IMPURA Mulher sem pecado! Concebida pelo divino sem mácula. Virgem flor inaugurada na dor. Primavera tão cedo desflorada. Quem apresentara-lhe a maldade? Quem derramara-lhe o mel? O que de ti roubaram é o sangue doce que percorre minhas veias e alimenta minhas linhas. Eu, a que escrevo com as mãos sujas desse mesmo sangue. Eu, a criança para sempre impura.
Impura!
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PALAVRA-POESIA Não me calo, apesar dos calos! Palavra tem força feminina Tem desejo e é impulsiva insistente reluzente resistente Falo! Não o falo hegemônico. O falo da ação de quem tem voz e não se cala. Somos a voz de quem o mundo tanto se queixa.
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LEVIDADE Ele disse que eu sou leve! Leve, eu?! Quase gargalhei! Eu é que me levo Eu é que sei.
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OXUNS E YEMANJÁS Toda mulher é uma nascente que flui no rio que jorra. Toda mulher é Oxum mãe-doce das águas correntes que correm de encontro ao mar.
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FÉRTIL IDADE Meu líquido escorre viscoso e sem cor orvalha a flor. Inodoro desejo desejo unicamente desejo em me deixar ir pelas pernas e n t r e a b e r t a s minha vida minha doce vida vejo-a escorrendo como mel pelas coxas. Estou em período fértil.
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TUA MÃO Tua mão me ama? É justa e não perversa demais para que eu a ame também? É leve ou pesada demais para que eu a carregue em minha vagina? É trágica ou sorri? Com que desejo percorre a tua mão os caminhos por onde flui o meu rio? Quando me dizes vejo o teu prazer, ignoras a minha dor.
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NATIVIDADE Que vergonha da cegonha que não me trouxe menino me trouxe foi passarinho Que voa com as asas nos pés.
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RAINBOW “Meninas vestem rosa. Meninos vestem azul”. Eu visto o arco-íris inteiro com um colar de luz e um brinco solar.
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VENTANIA Palavras náufragas. As perdi numa noite de mar agitado em que tudo em mim tempestaniava. O porto, a âncora, o cais O vento com brutal força tudo destruiu ficaram as ruínas. Uma mulher, que horas antes consultara as runas, conseguira se salvar. A pedra que pesava sobre a vida o mar levou. É preciso louvar as tempestades.
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GOZO Sons eróticos deixavam os corpos
e ganhavam amplitude no espaço:
respiração
sussurros
gemidos...
E o som dos sexos docemente cadenciado com movimentos clitorianos alternados: ora suaves ora intensos compondo uma dança orgástica até alcançar o
clímax.
Dois corpos flutuantes náufragos do desejo ilhados na ilha perdida do prazer onde ninguém jamais haverá de encontrá-los.
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NEM SONHO Segunda manhã de agosto de 2019 Acordei sob uma forte chuva após uma noite de sonhos excitantes. Na varanda d’uma casa de barro à beira-mar um poeta entre goles de cerveja me fala de como têm sido os seus dias ali naquele lugar de natureza tranquila. Interfiro com ar de quem conhece o passado e falo sobre a casa, que é tão comum a mim a ponto de eu pensar que vivi nela toda a minha vida. Pelo chão, jacarés pequenininhos rastejavam e me faziam ter cuidado. Também pelo chão, vinis submersos em água salgada que eu recolho e examino um a um. Nosso poeta gosta de antiguidades, assim como eu.
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Tudo ali tinha a cor amarelada que tem o passado, embora fosse tudo bastante vivo e presente. Em um outro momento do sonho eu estava num outro cômodo da casa sentada numa cadeira de madeira sendo acariciada e excitada por um homem. Comíamos juntos o fruto proibido do prazer, e era delicioso. Agora penso no sonho e vejo como uma fumaça que me impede de ver tudo outra vez. A chuva me tirou da realidade do sonho e me pôs em outra: estou só e nua na minha cama às 5h45min e não há ontem de que eu me lembre nem sonho, nem casa de barro, nem jacarés pequenininhos, nem vinis nem varanda, nem homem, nem poeta.
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COREOGRAFIA Acorda, minh’alma! Alimenta-te do nascer do sol. Senta aqui comigo e ouve o cantar dos pássaros. Vês como é belo?! Assim como a tua beleza. Vamos dançar! Que dançar torna as almas felizes. Vieste aqui para dançar. Apenas para dançar o movimento que avança sobre o tempo no espaço, que é todo teu.
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PRONOME PESSOAL Não há ninguém a quem eu pertença! E se Frida fora inteira de Diego Rivera e a espada casara-se com São Jorge a ninguém direi eu a ti pertenço senão à lua, às marés, aos ventos e às madrugadas. A ninguém direi tu és o sol sobre o meu rosto nas manhãs ou a lua que cobre a minha cabeça ao anoitecer. Não és sequer água para a minha sede pois a minha sede é insaciável. E tu me vens com tuas gotas d’água.
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DESPERTAR O amanhecer queima os meus olhos mas eu escrevo com os raios de sol. O dia está alegre “alegre de meninas” e elas vêm em ondas solares acender a Terra, que ainda desperta. E elas cantam e voam e voam e cantam... Sobre a humanidade.
(“alegre de meninas”, trecho de um poema de Geraldo Urano, do livro “O ferrolho do abismo: Poesias completas de Geraldo Urano”, 2015)
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ANGELICAL Sou alguém que vale a pena conhecer. Vivo à beira do abismo mas eu sei voar. E sei te levar comigo. Mas tu, beibe não gostas de voar e nem quer saber quem eu sou. Tens medo do paraquedas não abrir, beibe? Eu tenho asas. Ou tens medo de mim, beibe?
Eu sou tão angelical.
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CORPOS ESPACIAIS Uma viagem espacial sem sair do lugar. Nossos dedos orbitando o espaço tal qual anéis de Saturno, partículas do sistema solar a girar e girar e girar ...
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ACALANTO (Poema de ninar) Vem, meu sonho, deita aqui comigo! Encosta a tua cabeça em mim e vai com a tua mão sem incertezas. Toca com a ponta dos dedos a minha flor descansa de ser quem és, que sonhar é permitido.
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MÚLTIPLO DE MIM Ter tudo e o mais que faltar, usar a imaginação. Quando quero começo pelos olhos, depois vem tudo. Se imagino uma fruta, começo pela cor, depois vem o cheiro. Se imagino um poema, penso nas suas vértebras. Deito-me com homens e mulheres que tenho vontade até ver os cabelos escorrendo sobre a face molhados de suor. Já viajei para inúmeros países e me apaixonei por todas as culturas que conheci. Imagino eu mesma ser outras e às vezes ser nada de ser nada é o que eu gosto mais sem forma e sem termo. Porque quem é nada está ao mesmo tempo em tudo.
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POR UM FIO Hoje eu estou num daqueles dias... para fazer um pacto com o diabo. Não é que as coisas estejam ruins elas estão como sempre estiveram eu é que estou mais cansada que o habitual sentindo a vida irremediável. Viver me tem cansado em demasia. Estou insuportavelmente cansada da vida. Aos quase 31, eu não penso senão em morrer todos os dias mas ainda não sei como porque eu tenho um medo terrível da dor. Talvez eu esteja por um fio! Mas até quando? Sinto minhas forças se esvaírem enquanto eu sorrio e gozo, fingindo muito bem estar bem. Eu sou uma fingidora, afinal.
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CONFISSÃO Arrastada pelo redemoinho dos meus desejos o meu corpo arde abrasado pelo apetite da carne. Minha carne pulsa entre os dedos que acariciam o meu clitóris. Gozo, sem que possa beber-me o mel e ouvir as melodias eróticas do meu corpo: gemidos, sussurros e uma respiração ofegante. Imagino-te aqui, passeando com os teus dedos pelos meus caminhos e lambendo os meus grandes lábios. E de novo gozo, até esvaírem-me as forças... e de novo ressuscito... o corpo, a roupa e o tempo que jaziam no chão.
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DESNORTE Distante de mim
para ouvir os impulsos
do meu coração. O sangue vermelho escuro dos arranhões de minhas tentativas escorreu sobre o corpo em desatenção. Coração não é uma bússola que se deve seguir.
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CARTA AO MEU FILHO Filho, a gente nasce porque é da natureza nascer. Nasce por egoísmo dos pais que nem ao menos perguntam: Ei, você quer vir? Se alguém desse importância pro que eu digo eu teria dito: Não! Quero ficar aqui, nessa posição fetal, confortável de dormir. Não nascemos, somos arrancados de dentro, à força. Não procriamos por amor, mas porque somos egoístas porque nem ao menos perguntamos: Ei, você quer mesmo vir? Aqui não é tão legal, e eu não serei tão legal com você porque eu preciso cuidar de mim e você será sozinho, assim como eu sou. Fingimos aqui um “estamos todos juntos” mas na realidade estamos sós e aqui não é um lugar fácil haverá dias em que você sentirá frio fome dor cansaço dor
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estará perdido febre loucura exaustão Não entrarei nos pormenores, mas terá que suportar muita coisa. Talvez você fique confuso até, mas tem umas coisas que aliviam toda essa tensão de existir, que talvez você curta: o mar, os rios, as cachoeiras, as folhas, as estações, o sol, a lua, as estrelas as flores, os pássaros, os animais etc. Você pode ter ficado curioso em querer saber o que são essas coisas, mas se você vier, vai ficar triste também com isso porque nós estamos destruindo o lugar que habitamos: o planeta Terra. Louco isso, né? Autodestruição! Então, porque eu o amo, queria dizer-lhe: Não venha! Não quero você aqui! Mas se for do seu agrado vir mesmo depois de tudo que lhe apresentei que você seja forte corajoso valente que resista
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que levante que lute que ame que observe o crescimento das folhas o canto dos pássaros que vá para o rio para o mar pra cachoeira que seja fluido feito água firme feito a rocha que plante e cultive a terra que se dedique à poesia e seja ela própria. Saiba que você estará só mas que tem toda essa energia que o acolhe e tem ainda o meu amor. Pense bem se você quer mesmo vir. Com amor sua mãe.
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RUMO A mulher que chora em vão são suas lágrimas. Que se há de fazer com essas lágrimas? Guardá-las num lenço branco de papel? Ou regar o próprio jardim?
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ELA Domingo, 22 de setembro de 2019 Acordei com Ana Cristina César me olhando com os seus óculos escuros.
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OLHO ADENTRO Eu tento tanto ser uma pessoa “leve” tranquila, equilibrada que medita e tem uma mente quieta e nem por isso deixa de ser criativa. Mas, se me ofereço ao chão e fecho os olhos numa tentativa de meditação começo a pensar no não pensamento. Daí a pouco, entro num pensamento de olhos em que muitos olhos me olham, mas não são reais. Fujo da frieza dos olhares, abro os meus olhos levanto e começo a pensar em escrever. Apanho o caderno e a caneta, então escrevo. Eu sinto uma infeliz vontade de escrever o dia inteiro. É verdade! Se alguém entrasse pela janela do quarto, se assustaria. Há uma mulher nua, deitada no centro da sala com a coluna vertebral para cima. Receio que ela não saiba por que faz o que faz. Por que é assim tão livre? Ela escreve! Escrever é sensual? Não. É loucura! “Escrever pode tornar uma pessoa louca” (Eu jurei que nunca citaria Clarice Lispector). Como confiar em alguém que lê Clarice e mente para si mesma? 45
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DEUS ESTÁ DORMINDO Eu não tenho voz! Eu não tenho cor! Eu não tenho sexo! Eu sou uma mulher! Deus está dormindo e não pode me ouvir mas enviou um anjo seu para me falar: “Quem você pensa que é para que Deus lhe escute? Toma tento, menina! Como ousa importunar o sono profundo do criador? Deus está dormindo e eu a aconselho a ir embora”.
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TODAS AS PESSOAS QUE NÃO SENTEM SÃO FELIZES Há pessoas que são práticas e por isso são felizes porque não sentem. Já outras são sensíveis e por isso são artistas. Eu não sou prática, nem sou sensível. Não sou uma mulher de ação como o mundo exige, estrategista, que planeja otimista o futuro e que sabe transpô-lo para uma planilha do Excel, que elabora projetos e tem a sua caixa de e-mail constantemente lotada, e senta em banquetes noturnos com empresários, governistas, e industriais e decide o futuro de milhões de pessoas. Sou nada! Mas antes ser nada Do que ser apenas uma mulher prática Que age com facilidade sobre as personalidades alheias E que não sente, e por isso é feliz. 47
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YOLANDA Do ir e vir na Rua Principal, um homem de olhos e cabelos claros aparentemente 58 anos, pele de um branco branco
qual as dunas de Jeri,
à beira do caminho me chama:
Yolanda! Posso te chamar Yolanda? Você tem cara de Yolanda. Imediatamente me lembrei da Yolanda de Pablo Milanez,
tão lindamente cantada por Chico Buarque,
e gostei de ser chamada assim.
Yolanda é um nome forte. A partir daí, o homem cujo nome é desconhecido para mim, passou a me chamar Yolanda todos os dias, sempre acompanhado de um doce elogio. Yolanda, eternamente Yolanda.
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A PALAVRA HOJE ME SORRIU Obscuros dias em que eu busco a palavra, mas não a encontro. E insisto em compor um poema um poema cor de sangue. Angustio-me! Choro! Indago-a! A palavra é a minha forma de estar no mundo é a minha expressão, não tê-la é quase morrer. Eu morri por uns dias, mas hoje a palavra se abriu pra mim, eu a vi sorrir, convidou-me para dançar. Como é bom ser um corpo disponível! Tomei consciência de uma coisa: na ausência da palavra, há um corpo que se movimenta e fala. Eu hoje dancei o meu nome. E eu sei que quando eu não puder falar, terei um corpo L I V R E para dançar. 49
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ELE 25 de setembro de 2019 Acordei pensando no mustache do Leminski. Depois, no primeiro verso de um poema: “Eu carrego a ausência nas mãos”.
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QUADRO 28 de setembro de 2019 . Acordei muito bem. Pensei numa tela! Os carros passam tão rápido na minha rua que eu não os vejo, só o vulto. Pinceladas grossas de tinta branca esfumaçada.
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PREAMAR Esses ossos... Penso como sou perfeita e finalizo, minha boca de lua cheia quer orbitar no teu espaço ... sideral.
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SÓLIDO Esses homens de terno e gravata que tentam interferir no meu caminho. Quem eles pensam que são? Uma pedra?
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ÚMIDO AMOR Zero hora de uma noite quente. Umedeço com as palavras ditas ao telefone (elas percorrem a geografia do meu corpo e escorrem como um rio na minha floresta tropical). Uma frente fria atravessou o Atlântico e pôs molhado o chão de madeira do meu quarto.
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DESEJO Uma mulher mutável... Agora desejo os seios da sereia ardendo em minha boca.
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SOLSTÍCIO DE ALGUM VERÃO Chove excessivamente desde a madrugada e eu estou triste. Porque a chuva apagou as linhas do meu caderno, e borrou minhas palavras. Porque estou só, e tua ausência é presença na cama molhada de respingos, que não são teu gozo. Porque a chuva não me trouxe nada além de tristeza, sequer uma flor, que viesse com o vento. Agora corre um vento frio, e arranca os lençóis da cama. Já chorei, mas não para de chover! Se fosse outro dia, quem sabe eu estaria bem. Mas o mundo desaguar numa manhã de domingo, é demais pra mim, eu não aguento. Por que não chove assim numa terça-feira, que é um dia sem emoção?! Chove excessivamente, agora mais ainda, e eu continuo triste.
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PUERIL Num desses dias ao amanhecer corri os olhos no tempo de minha infância e chorei com saudades de minhas bonecas, do leite da vaca Coração e das brincadeiras infantis no sertão. Amores sempre fugazes. Amizades que se esvaíram no vento. Outras que se encantaram no firmamento. Meu pai, minha mãe. Minhas bonecas. A vaca Coração. Tanta coisa que o Tempo levou em troca da novidade. Mas que novidade, afinal? Se embora todo amanhecer seja novo, é ao mesmo tempo sempre igual. Eu trocaria a novidade pelo tempo de minha alegria, em que tudo em mim era esperança, e eu sonhava em crescer. Hoje eu me pergunto: Afinal Para quê?
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POEMA CURTO A dor de não sentir o poema.
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IANSÃ Quem tem Oyá como mãe nenhum mal pode temer pois a fúria de Iansã faz o mundo estremecer.
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QUERIDO DIÁRIO 26 de outubro de 2019 Dou goles numa cerveja rosada, 4,4% vol. Preferi não sair e ficar em casa com os livros de poesia. Flerto com um poeta e outro, mas é Ana Cristina César que me acaricia. A embriaguez me lembra a casa do Sol, quando eu ébria de vinho lia os diários do Fred e me apaixonava por ele, que tão cedo partira. Fred escrevera em seu diário: “Será a embriaguez uma coisa boa?” Meus amores sempre foram impossíveis. Apaixono-me com facilidade por pessoas que já morreram ou que não existem.
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TEMPESTADE Posso eu queixar-me do vento?! Se os ventos de agora são sempre os melhores, apesar dos tempos. Como os ventos de outrora eram os melhores à época em que corriam pelo ondular dos meus cabelos. Como posso eu queixar-me do vento?! Se é o vento que me alimenta às tempestades. Nota: Quando preciso ser prática, acabo por escrever um poema, não é intencional, eu sofro disso. Eu sento com um propósito, aí se passa um vento, eu falho no propósito, subitamente me distraio. É que eu nasci com excesso de vento, excesso de coisas. Não cabe dentro. Espirro, cago, cuspo, respiro, jogo o ar pra dentro, encho o peito, jogo tudo pra fora. E repito isso, excessivas vezes.
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VISITA Vento do mar abro a porta, deixo-o entrar. Ele me encontra no quarto com os pés pra fora da cama. Põe-se a me massagear. O vento sabe tanto de mim, sabe sim... eu é que não sei nada do vento, não sei nada do mar. são só segredos essas ventanias marítimas, de marinheiros e iemanjás.
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CAIS Partiu o Cais do meu coração. Ai, que meu peito dói, no mar agitado da desilusão. Nunca mais falará Drummond ao nosso amor, minha bruta flor. Levaste de mim a poesia, e o mar a ti levou. Vejo os navios partirem. Eles vão E eu não vou. Vejo o Atlântico e a linha do horizonte a me fitar. Tu e ele, tão
distantes.
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ÚLTIMO DESEJO O meu último desejo em vida seria chupar uma manga. Eu lamentaria muito não saber que gosto tem o amor. Dizem que amor verdadeiro só o de mãe mas eu não quero ser mãe porque mãe é mais egoísmo que amor. Os homens, não fossem tão racionais pensariam no gozo como matéria divina, nós mulheres, entendemos o jorrar como algo de natureza celestial. O sangue, o gozo... uma dádiva das deusas.
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Parte II
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LIMÃO Limão, quem te pôs o azedo na vida? Além de azedo, tens espinhos. Ao menos tens o verde e o parentesco com a laranja lima. Mas fazes bem em não ser doce. Fazes bem em ser o que a vida te fez. Limão, sou tua amiga! Farei uma limonada sem açúcar e brindarei à tua vida azeda ao teu perfume cítrico aos teus espinhos e ao óleo de tua casca. Percebes?! És macio por fora. Conserva a tua essência.
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NÓS Nós, um laço bem dado de fita azul celeste.
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PERFUME DE NÓS DOIS Éramos tão naturais: eu cheirando à fruta vermelha tu cheirando à flor de lírio.
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DESATINO O amor brinca comigo, pisa em c i m a, feito eu fosse o papel e ele a tinta É ele quem dá o t o m, e eu é que perco o tino.
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SER TÃO O rio seco corta a estrada,
à margem, raposas e guaxinins,
carnaúbas, palhas secas. No meu peito o mesmo rio corta
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e sangra.
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SER TÃO II Acerca do sertão, a cerc a, a seca, o gado .A ram a, o rio, o pasto. Chove, mas é verão.
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EUFEMIA A rama cresce
e o sertanejo reza. A reza cresce
e a rama
O sertanejo reza enquanto cresce a rama a reza o sertanejo.
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enverdece.
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FAÇA UM PEDIDO Olhei as estrelas tanto que virei estrela cadente. De súbito
me desapareci.
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NOTURNO A boca da noite me engolindo lindo, l i n d o ,
lindo.
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MATINAL Uma gota de poesia o orvalho da manhã repousando sobre o verde.
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UMA As três Marias
percebam, andam sempre juntas.
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TECIDO É absurda toda a realidade que me olha nuvens suspensas sobre a minha cabeça uma aranha tecendo a sua teia num pé de manjericão.
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METADES À sombra de uma mangueira o balanço de uma cadeira o sol sobre a minha cabeça. O dia cortado ao meio é meio-dia.
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RÉSTIA Mensagem sublime há sempre haverá um fio de luz a entrar por uma telha que bra da .
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SOBRE UMA LUA QUE ME DEIXOU A VER ESTRELAS Casei-me com a lua na lua de mel ela desapareceu. Dormi com as estrelas, acordei com o sol.
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S I L Ê N C I O
Ocupa uma página inteira.
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BROTAR Doses diárias de poesia Leminski Pessoa Orvalho da manhã semente germinando passarinho cantando sem contraindicações.
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RETINA Um olhar atento registra mais que uma canon.
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USUFRUTO Poema é coisa simples é coisa feita de brisa quando muito, de ventania quando não há nada
recorre-se ao amor.
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AVANT-GARDE Meu anjo de vanguarda que me guie e proteja desses tempos maus desses homens maus desses anos vis.
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MOLDURA Da janela eu vejo o futuro entre nuvens e mar a linha tênue do horizonte me fita.
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JANUS Janeiro é a janela aberta por onde o ano novo pula de mãos dadas com a esperança.
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HORIZONTE Esperança palavra cumprida e comprimida no sorriso de uma criança.
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HEPTÁGONO Sete caroços de romã sete ondas sete dias sete vezes sete. Roupa nova, branca, amarela, verde. Que adianta? Nada muda, se você não muda a água da planta.
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DEZEMBROS Finda o ano finda o livro. Só o poema que não quer findar.
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CAFÉ REQUENTADO Café requentado tem um cheiro romântico. Eu o bebo sentindo o passado, lembrando que outrora ele fora novo, o gosto não é mais o mesmo, mas a essência, é de café, e a essência é tudo.
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VENTANA Flor branca na janela atrai passarinhos que cantam pensando nela.
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CONJUGAR Seja lá
onde flores que o vento
te leve e te traga quando
flores água para molhar o meu
jardim.
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ADVÉRBIO Tudo que eu sei é pouco demais poema sem rima romance sem clima mas menos é sempre mais.
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AGRAVO Viver não tem cura é poema leminskiano.
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DESCANSO O tempo voa nas asas de um passarinho quando demora a passar é que está dormindo no ninho. 98
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FÔLEGO Poesia não é inspiração é respiração.
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DOMICÍLIO Um corpo habita as minhas palavras.
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PREVENÇÃO Escrevo para não sofrer um
engasgo fulminante.
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CAMALEÃO A primavera do outono são as folhas
mudando de cor.
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MAÇÃ Eles preferem a dentadura enquanto eu prefiro ter dentes fortes e saborear o fruto proibido.
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POENTE Entardecer é quando as
cores do dia mudam de lugar.
E isso vale pra tudo.
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ESPELHO Dentro de você você quem é?
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AMANTES Com Fernando Pessoa eu me deito Com Leminski eu me levanto.
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ACOLHIDA O
acaso
eu não
contrario.
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ENCHENTE No verão chovem chuvas de encher janeiros e rios.
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PEDIDO Infinito oceano seja lá do que for
leva embora
a minha saudade
traz de volta o meu amor.
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COLHEITA Tudo pode acontecer contrário ao que você espera.
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Espera
a hera crescer.
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CALENDÁRIO O Tempo perguntou ao Vento Como tem passado?
Tenho passado avoado.
E tu, Tempo, como tem passado?
Tenho passado apressado
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ESTAMPA Sonhei com uma flor no
céu eu tirava a flor
do céu e com um lápis de cor
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pintava a flor num papel.
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PAZ-CIÊNCIA A calma na espera existe? Mas se a calma não é calma, Paz-Ciência. Mãe-Paciência, dai-me a ciência da paz. Eu não sei a alquimia do tempo. Como transformá-lo em outra coisa que não seja esperar? Que misticismo transforma espera em esperança? Há por aí um alquimista, a quem eu possa chamar? Este poeminha é para acalmar o tempo. Chama-se Paz-Ciência. Uma linha escrita e bem lida e já teremos salvo um dia inteiro. Gratidão à mulher e artista Maria Norma Colares que me presenteou com os versos que faltavam ao meu “poeminha”.
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RECEITUÁRIO Chá de erva-doce, se faltar açúcar na vida. Chá de boldo, se o problema é má digestão... Camomila reduz a ansiedade. Alecrim mantém o tesão. E na minha solidão, aprendo com as ervas, que viver não tem mesmo cura.
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SEXTA-FEIRA DE OXALÁ Sexta-feira, por que não és sempre santa? Se te vestissem com vestes brancas?! E oxalá as minhas roupas claras não estivessem manchadas pelo tempo que ficaram guardadas. Oxalá a linha do linho fosse a lira e a cesta da feira, cheia e o cesto de roupas sujas, vazio. Oxalá estivessem limpas as roupas brancas da sexta, as roupas brancas do cesto, e eu reluzindo no branco lindo do teu amor, com a alma tremeluzente, qual luz de terreiro em noite de festa.
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COMPLETUDE Melhor é não ser nada e estar dentro de tudo.
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IMPRECISO Quanto tempo mais haveremos de pedalar na bicicleta do tempo sem saber onde chegar?
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SOPRO Na folha seca de um caderno o outono que o vento veio e
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levou.
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CANTO Estrela do mar era do céu e encantou-se ouvindo a sereia cantar.
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DESCOMPLETUDE A arrogância do poeta em ser poeta. O segredo do poeta é não ser. O que ambiciona, limita o caminho. Perde de ser infinito e perde de ser todas as coisas do mundo. O que não é, é como a luz dourada do sol, pela manhã, difusa na imensidão do céu, eterna, porque é sempre a mesma e é sempre outra, renasce a cada manhã. Sem forma e sem termo. Melhor é não ser nada, e estar dentro de tudo.
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ÁGUAS O correr do Tempo é como cachoeira: as águas caem livremente e
se vão
por rios,
em movimento constante até encontrar o mar. A eterna dança que ninguém acompanha.
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DIGRESSÃO O homem nasce perfeito e diminui de ser perfeito
quando cresce
e volta a ser perfeito quando a criança que fora
retorna
para lhe conduzir à experiência
derradeira
da vida, a temível
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morte.
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POETA PLANETA Se eu gostasse de coca-cola como Urano gostava e de meninas como Urano gostava se eu fosse ao invés de mim outro - Urano viveria em craterdã e numa nave espacial sobrevoaria o horto toda manhã faria da reza poesia em romaria ao santo poeta Urano.
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SOLITUDE A paz sonora da chuva e da madrugada. A esta hora a flor do caos ainda dorme. Só eu e o farol do Mucuripe solitários com os olhos acesos vemos do alto a paz acontecer.
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ENLEVO Tudo que existe, existe para a contemplação. Para que, afinal, uma lua prateada suspensa no azul do céu, sem que possamos alcançá-la? Ou o gorjear dos pássaros ao alvorecer? Ou o próprio alvorecer? Para que existem as estrelas? Para que um vento leve e frio acariciando o meu corpo a esta hora da manhã? Tudo isso me parece um sonho. E eu sonho de olhos abertos. Eu mesma não existo senão para a minha própria contemplação: a contemplação do humano, que sente, pensa, ouve, vê, anda e pode até dançar. Eu adoro apalpar os meus ossos e sentir-me sublime. Estou hoje numa espécie de êxtase orgástico pela vida. Estou a contemplar a vida, a existência e tudo o que nela há. Não estou alegre, nem triste, nem poeta, apenas, e isso me basta neste instante, contemplativa.
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A BELEZA DE NÃO CONHECER QUALQUER COISA Há beleza em tudo o que eu não conheço. A beleza de não conhecer o amor,
mas só sabê-lo pela interpretação dos outros.
A beleza de não conhecer qualquer coisa,
ou só vê-la uma única vez e dela nunca se esquecer.
A beleza de não conhecer a essência da flor,
mas só senti-la.
A beleza da distância entre as estrelas do céu e
as estrelas do mar.
A beleza do infinito azul a me soprar nos
O mar fala de ti.
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ouvidos o teu nome.
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PONTO DE FUGA Não vejo o que os outros veem, estou sempre olhando para um ponto que não é nem passado, nem futuro nem presente. Estou sempre olhando fixamente para o nada e o nada é como uma imensa parede branca. O passado me lembra tudo o que eu não fui. O futuro, por sua vez, é uma grandessíssima ilusão. Gostaria de saber quem inventou a ideia de futuro. Certamente alguém pensando em se dar bem com os outros. O presente já é o passado, pois que o instante é fulgás e dele não obtenho nada, só a poeira. A poeira dos instantes sobe, cobre a imensa parede branca. Já o nada também não consigo ver, tudo agora que existe, e eu olho fixamente para este ponto, é a poeira dos instantes, tão fulgás, quanto uma vela de aniversário.
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NÁUFRAGO Comparo a saudade e o não te ter aqui junto a mim à dor d’um homem do mar que tem o seu corpo lançado pela água contra o casco incrustado de ostras de um navio cargueiro, durante uma tempestade.
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FARDO Organizar pensamentos. Desenhá-los num papel para depois amassá-lo e
descartá-lo. Cada um sabe o peso da caneta que carrega.
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MARCELINA 1988, Tururu, Ceará, CE. É bacharela em Administração de Empresas pela Fanor Faculdades Nordeste (2014).
Estudante de Licenciatura em Teatro no IFCE - Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia do Ceará.
Atriz, performer, poeta e produtora cultural.
CONTATOS Instagram: @marmaracacio E-mail: marcelinaacacio@gmail.com
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