Bilinguismo: [...] o caso do tradutor

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Universidade dos Açores Departamento de Línguas e Literaturas Modernas Linguística Contrastiva

Bilinguismo: Características, benefícios e o caso do tradutor

Luís F. C. Arruda Martins PósPós-graduação em Tradução Ponta Delgada 2004/2005 2004/2005


Índice o. Introdução ……………………………………………………………………………………………………………………………..

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1. Tentativa de definição de bilinguismo ………………………………………….…………………………..

2

1.1. O bilinguismo enquanto objecto de estudo ……………….…………………………....….

2

1.2. Definições ……………………………………………………………………………….………………………………..….

3

1.3. Elementos para a descrição do bilinguismo ……………….…………………………..….

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2. Tipos e graus de bilinguismo ………..………………..…………………………..…….………………………….

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2.1. Competências linguísticas …………………………………………..….………………………………..….

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2.2. Tipos de bilinguismo ………………………………………….…………….………………………………..….

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3. Alguns benefícios do bilinguismo ………….…………………………………………….……………………..

15

3.1. A nocividade do bilinguismo ……………………………………..….………………………………..….

15

3.2. Consequências na organização da estrutura cortical ……………....….…….….

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3.3. Benefícios do bilinguismo ……………………………………….….…………………………………..….

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5. O tradutor como bilingue ou a competência bilingue do tradutor ……....……

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6. Considerações finais ………………………………………….………………………………………........................... 20 7. Referências bibliográficas ……………………………………………..……………………………………………….

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Bilinguismo: Características, benefícios e o caso do tradutor 0. Introdução Propomo-nos abordar algumas questões em torno do bilinguismo, pelo que iniciamos o nosso percurso procurando conhecer a forma como o tema tem sido tratado por diversos estudiosos, desde os seus esforços para o definir até aos elementos essenciais que permitem a descrição de um fenómeno bilingue específico. Depois de incidir a nossa atenção sobre os graus do bilinguismo através de uma tipologia de acordo com as competências linguísticas dos falantes, abordaremos as diversas vantagens do bilinguismo, sem esquecer os argumentos daqueles que se insurgiram ou insurgem contra o bilinguismo e os seus resultados ao nível da organização da massa cortical. A última parte desta reflexão aborda o caso do tradutor enquanto bilingue introduzindo este elemento no panorama da competência tradutória.

1. Tentativa de definição de bilinguismo Antes de tentar definir o termo bilinguismo avancemos desde já com algumas premissas que geram unanimidade entre os investigadores deste fenómeno linguístico: a) o bilinguismo e plurilinguismo constituem a regra, e não a excepção, a nível mundial; b) o bilinguismo não tem qualquer efeito negativo sobre a inteligência, cognição e desenvolvimento global do indivíduo; c) não faz qualquer sentido falar de bilinguismo apenas enquanto fenómeno de elites intelectuais; d) a aprendizagem de uma segunda ou terceira língua realiza-se com facilidade, desde que haja empenho; e) o termo bilinguismo encontra-se democratizado, sendo considerado de diferentes formas. Vejamos agora alguns modelos e pontos de vista em torno do bilinguismo.

1.1. O bilinguismo enquanto objecto de estudo Etimologicamente, bilinguismo deriva do adjectivo bilingue, que por sua vez tem as suas origens no temo latino bilinguis, isto é, “em duas línguas” (FRANCO, HOUAISS & VILLAR, 2001). Foi durante o século XX que este termo tomou a acepção com que é hoje usualmente 2


empregue, isto é, a capacidade de utilizar duas línguas. Como tal, o bilinguismo só por si não constitui uma disciplina de estudo, trata-se, isso sim, de um campo de pesquisa que é partilhado por diferentes ciências e disciplinas, como, por exemplo, a Linguística, a História, a Psicologia, a Sociologia, entre outras. O bilinguismo pode ser estudado numa perspectiva quer sincrónica, quer diacrónica. O estudo diacrónico do bilinguismo é realizado através da recolha e análise de dados relativos à evolução de um dado fenómeno ao longo do tempo, podendo recorrer, por exemplo, ao estudo dos topónimos, dos patronímicos, dos movimentos migratórios dos povos e da evolução das fronteiras linguísticas. O estudo sincrónico do bilinguismo tem como objectivo fornecer uma descrição objectiva e sistemática de uma dada situação num dado momento. Neste tipo de estudo poder-se-ão fazer trabalhos com a finalidade de conhecer os mecanismos de aquisição e alternância entre as línguas por parte dos indivíduos bilingues, observar as representações sociais e atitudes dos falantes de uma dada comunidade face às línguas e sua coexistência, e fazer análises descritivas dos códigos linguísticos utilizados por sociedade. Uma outra área de trabalho coloca-se ao nível do estudo das relações entre a estrutura do cérebro humano e a capacidade linguística, daí que da colaboração entre diferentes disciplinas tenham surgido, por exemplo, a neurolinguística1 e a psicolinguística2.

1.2. Definições O termo bilingue é utilizado nos mais diversos contextos, pelo que o seu significado deve ser apreendido a partir do contexto em que é utilizado. Referimo-nos, por exemplo, a falantes bilingues, a dicionários bilingues, a edições bilingues, a escolas bilingues, a Estados bilingues. O próprio termo sofreu também uma evolução semântica, tendo sido utilizado mais do que nos nossos dias para se referir a alguém mentiroso, fingidor ou ambíguo. O fenómeno do bilinguismo foi também vítima de uma série de ideias estereotipadas sobre o mesmo, tendo sido defendido, embora sem quaisquer provas científicas, que podia ser responsável por psicoses cujos sintomas apontavam a existência de uma dissociação entre acção e pensamento, como a dislexia, disfemia3, esquizofrenia e outros desvios da personalidade. Uma ideia que parece estar socialmente implantada é que bilingue é aquele que fala com igual fluência duas línguas. 1

Esta disciplina tem como objecto de estudo as relações entre a estrutura do cérebro humano e a capacidade linguística, com atenção especial à aquisição da linguagem e aos distúrbios da linguagem. 2 Esta disciplina investiga as ligações existentes entre as questões fundamentais para o conhecimento e uso de uma língua, como por exemplo a do processamento linguístico e a do processo de aquisição da linguagem, e os processos psicológicos conexos. 3 Gaguez.

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Na citação que apresentamos abaixo os investigadores Baker e Prys Jones expressam algumas das questões levantadas pelo bilinguismo e para as quais diferentes estudiosos apresentaram, e continuam a apresentar, as suas propostas. “Is bilingualism measured by how fluent people are in two languages? Do bilinguals have to be as competent in each of their two languages as monolingual speakers? If someone is considerably less fluent in one language than the other, should that person be classed as bilingual? Are bilinguals only those persons who have more or less equal competence in both languages? Is ability in the two languages the only criterion for assessing bilingualism, or should the use of two languages also be considered? For instance, a person who speaks a second language fluently but rarely uses it may be classed as bilingual. What about the person who does not speak a second language fluently but makes regular use of it? What about a person who can understand a second language perfectly but cannot speak it? What about a person who can speak a second language but is not literate in it? Is bilingual a label people give themselves? Is bilingualism a state that changes or varies over time and according to circumstances? Can a person be more or less bilingual?” (BAKER & PRYS JONES, 1998: 2)

Para os estudiosos desta questão que tentam avançar uma definição de bilinguismo não surpreende a diversidade de propostas, sendo que cada uma delas parece adequar-se a um determinado caso e não à generalidade do tema em estudo. Deste modo, Einar Haugen tenta definir bilinguismo de forma sintética como sendo a capacidade para produzir ”[…] complete meaningful utterances in the other language.” (HAUGEN, 1953: 7). Em 1961, Richard Diebold definia bilinguismo como “[…] the ability to understand two or more languages.” (DIEBOLD, 1961: 103) Uriel Weinreich considera bilingues os indivíduos que possuem pelo menos uma das quatro competências (falar, ouvir, ler escrever) numa outra língua que não a sua língua materna, e é neste quadro que avança a seguinte definição no seu livro Languages in Contact, “The practice of alternately using two languages will be called here bilingualism, and the persons involved bilinguals.” (WEINREICH, 1953: 5)

Uma outra tentativa de definição havia sido avançada anteriormente por Bloomfield. Ao referir que a aprendizagem de uma língua estrangeira por parte de imigrantes pode resultar na alternância de códigos, Bloomfield presta especial atenção aos falantes que adquirem um tal grau de mestria na nova língua que não se conseguem distinguir dos falantes nativos.

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“In the cases where this perfect foreign language learning is not accompanied by loss of the native language, it results in bilingualism - native like control of two languages. After early childhood few people have enough muscular and nervous freedom or enough opportunity and leisure to reach perfection in a foreign language; yet bilingualism of this kind is commoner than one might suppose, both in cases like those of our immigrants and as a result of foreign travel, foreign study or similar association. Of course, one cannot define a degree of perfection at which a good foreign speaker becomes a bilingual: the distinction is relative.” (BLOOMFIELD, 1933: 55-56)

Se por um lado este autor tinha uma ideia clara acerca do bilinguismo, por outro a sua argumentação subsequente está marcada por alguma contradição, porque se não se pode definir um estado de perfeição para o bilinguismo, não se pode de igual modo definir o modelo perfeito para a aprendizagem de uma dada língua estrangeira. William Mackey sustenta uma definição que combina a utilização alternada de duas línguas proposta por Weinreich e o grau de mestria de Bloomfield: “It seems obvious that if we are to study the phenomenon of bilinguals we are forced to consider it as something entirely relative. We must moreover include the use of not only two languages but of any number of languages. We shall therefore consider bilingualism as the alternate use of two or more languages by the same individual.” (MACKEY, 1970: 555)

Os psicolinguistas canadianos Josiane Hamers e Michel Blanc definiram bilinguismo como “[…] the psychological state of an individual who has access to more than one linguistic code as means of social communication; the degree of access will vary along a number of dimensions which are psychological, cognitive, psycholinguistic, sociolinguistic, sociocultural and linguistic.” (HAMERS & BLANC, 2000: 8) John Macnamara (1967) defende que o bilinguismo de um indivíduo depende do grau de mestria em pelo menos uma das quatro competências: falar, ouvir, ler e escrever. For [Macnamara] a bilingual is a person who possesses at least one language skill even to a minimal degree in a second language, for example, a native speaker of Swahili who speaks English but who never learnt to read and write it. (in GROSJEAN, 1982: 232)

Das sete definições apresentadas até ao momento nenhuma se refere exactamente ao grau de conhecimento necessário em cada uma das línguas, à necessidade e nível de aptidão em

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cada uma das quatro competências nas duas línguas, ou ainda à necessidade de utilizar as duas línguas em situações semelhantes. No entanto, tais dados poder-se-iam revelar importantes para definir o carácter bilingue dos falantes. A dificuldade em definir bilinguismo de forma precisa advém de diferentes factores que tornam problemática qualquer tentativa de generalização. Trata-se de um fenómeno de difícil apreensão. O próprio carácter do objecto de estudo – a linguagem humana – e o facto de não estar imediatamente disponível colocam dificuldades quer a nível de sustentação teórica, quer a nível da metodologia utilizada no trabalho científico. Estas dificuldades decorrem da acção combinada de factores de ordem psicológica, social e contextual que condicionam o próprio comportamento linguístico do indivíduo. Deste modo, e tal como já apontámos anteriormente, a investigação em torno do bilinguismo desenrola-se de forma interdisciplinar com investigadores de diferentes áreas como a sociologia, a linguística, as ciências da educação, a psicologia e a neurologia. Cada uma destas disciplinas aborda o fenómeno recorrendo a diferentes instrumentos, metodologias e critérios. Na perspectiva de Hugo Beardsmore, o bilinguismo constitui um conceito em aberto, semanticamente vasto e inconcluso (BEARDSMORE, 1982: 2). Em última análise, poder-se-á dizer que todas as tentativas de definição são sempre relativas, isto é, reflectem sempre uma dada visão acerca do bilinguismo em geral, e dos fenómenos concretos em particular que estiveram na base dessa definição. A definição mais simplista será a mais abrangente dado que o bilingue é sempre um falante dotado de competências em dois sistemas justapostos. A multiplicidade de definições não constitui obrigatoriamente um problema, uma vez que isso mesmo demonstra o carácter multifacetado do bilinguismo.

1.3. Elementos para para a descrição do bilinguismo Ao tentar descrever um determinado fenómeno bilingue torna-se evidente a necessidade de partir de um conjunto de elementos descritivos que facilitem um quadro de referência. Verifica-se a existência de diferentes factores, alguns mais óbvios que outros, sobre os quais o estudo do bilinguismo pode incidir. Deste modo, iremos abordar alguns factores, tais como a idade, a ordem de aquisição das línguas, competência e contexto. Tal como sugerido pelas expressões bilinguismo precoce e bilinguismo tardio, a idade do falante por altura da aprendizagem é um factor importante. O bilinguismo infantil apresentase como uma forma de bilinguismo precoce, considerando que o seu início ocorre por volta dos três anos de idade, e no caso do bilinguismo adulto a partir da puberdade (McLAUGHLIN, 1984:

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78). Tove Skutnabb-Kangas distingue quatro tipos de bilingues: os bilingues de elite, os filhos de famílias provenientes de maiorias linguísticas, os filhos de famílias bilingues, e os filhos de famílias provenientes de minorias linguísticas (SKUTNABB-KANGAS, 1984: 79-81). Esta autora foca muita da sua atenção na questão da origem e da filiação dos falantes, o que vai ao encontro do elemento idade. No entanto, este factor revela-se mais pertinente em estudos descritivos do que numa definição de bilinguismo. A ordem e resultados da aquisição das línguas está patente em expressões como bilinguismo incipiente (DIEBOLD, 1961), bilinguismo ascendente e bilinguismo regressivo (BEARDSMORE, 1982). Enquanto que bilinguismo ascendente significa um aumento do domínio por parte do falante nas duas línguas, bilinguismo regressivo implica uma redução nesse controlo. Lambert (1974; 1977) distingue entre bilinguismo aditivo e bilinguismo subtractivo. O caso do bilinguismo aditivo implica que as duas línguas tenham um estatuto social semelhante e que o falante não perca a língua inicial (L1) e a cultura a ela associada, ao passo que no caso do bilinguismo subtractivo o indivíduo sofre a perda sucessiva de competências na L1. É este o caso, por exemplo, de muitos emigrantes portugueses que passam por um processo de perda de competências na sua língua materna (L1) enquanto que ao mesmo tempo se tornam cada vez mais aptos na língua do país de acolhimento (L2). No que diz respeito ao contexto, contexto este factor é verificável em denominações como bilinguismo natural ou bilinguismo primário que se referem ao caso da criança que aprende duas línguas através da convivência com os falantes da sua sociedade. Um outro contexto pode ser aquele em que duas línguas são apresentadas à criança pelos pais (cada um deles utiliza uma língua diferente); este modelo revela um contexto misto e intencional, podendo ser apelidado de bilinguismo doméstico. Trata-se do modelo Grammont. Ronjat, um linguista francês, era casado com uma alemã. Quando o seu filho, Louis, nasceu, em 1908, o linguista Grammont propôs-lhe que educasse o seu filho de forma bilingue. “Une personne, une langue” (uma pessoa, uma língua) era o princípio básico deste modelo. O objectivo era que a criança crescesse a falar e a compreender as duas línguas (SAUNDERS, 1984: 43-44). No caso do bilinguismo cultural, os indivíduos optam pela aprendizagem de uma L2 como garantia para o acesso a bens culturais, artísticos, educativos ou científicos que de outra forma lhe estariam vedados; esta forma é muito semelhante ao bilinguismo de elites, no entanto não está conotado com o pretensiosismo social deste último. Um outro contexto pode ser aquele em que o indivíduo se torna bilingue através do ensino formal e estruturado de uma segunda língua, podendo assim distinguir-se entre bilinguismo natural e bilinguismo formal ou escolar. O bilinguismo formal possui uma característica determinante que consiste no facto da língua em aprendizagem não ser

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recorrentemente utilizada fora do contexto de sala-de-aula, pelo que dentro dos respectivos níveis de ensino poderão ocorrer diferentes níveis de competência. O nível de competência necessária por parte de um falante para poder ser considerado bilingue é um dos pontos que mais discussão suscita entre os estudiosos deste fenómeno. As definições de bilinguismo baseadas no grau de competência linguística consideram muitas vezes como bilingue aquele falante que domina totalmente e sem interferência duas línguas diferentes. As expressões utilizadas variam entre bilinguismo verdadeiro, bilinguismo perfeito e ambilinguismo. Esta visão perfeccionista do bilinguismo é na realidade muito rara, pois significa que os falantes sejam capazes de utilizar qualquer uma das línguas em qualquer situação, isto é, o uso das línguas não está condicionado a determinadas situações. Um autor com uma visão diametralmente oposta é o já citado Einar Haugen que encara o bilinguismo como capacidade para produzir ”[…] complete meaningful utterances in the other language.” (HAUGEN, 1953: 7). Outros autores têm uma visão ainda mais abrangente, ou menos exigente, e propõem que se considere o domínio ainda que fraco de uma das quatro competências (ler, escrever, falar e ouvir) como uma forma de bilinguismo. No que diz respeito à competência, fala-se ainda de bilinguismo dominante e de bilinguismo equilibrado. Alguns investigadores falam de língua primeira e de língua segunda, invocando uma diferença de competência entre as duas línguas e não uma sequência cronológica na sua aquisição/aprendizagem. Tal como o ideal do ambilinguismo, também o bilinguismo equilibrado, também referido como equilinguismo, refere-se a falantes que possuem o mesmo grau de mestria nas duas línguas, mas sem ter como referência padrões de competência unilingue. Na realidade tratar-se-á de mais um estado idealizado, dado que um falante terá sempre mais próxima uma das línguas, sendo essa a dominante e instrumento de utilização mais diversificada (SAUNDERS, 1988: 9).

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Passamos então a apresentar uma tipologia de bilinguismos, de acordo com Hamers & Blanc (2000: 26) [tradução nossa]:

DIMENSÕES DE ANALISE NALISE 1. bilinguismo composto

unidade L1 e equivalente L2 = unidade conceptual

2. bilinguismo coordenado

unidade L1 = unidade conceptual I equivalente L2 = unidade conceptual II

A

De acordo com a relação entre língua e pensamento

B

1. bilinguismo equilibrado De acordo com a competência atingida 2. bilinguismo dominante nas duas línguas

1. bilinguismo precoce

C

D

E

De acordo com a idade de aquisição das duas línguas

De acordo com a valorização sócioeconómica das duas línguas

De acordo com a pertença e a identidade cultural

EXPLICAÇÕES

competência L1 > competência L2 competência L1 > competência L2 (com variação no grau de competência) L2 adquirida durante a infância e antes dos 10 /11 anos

- simultâneo

LA e LB = língua materna

- consecutivo

L1 = língua materna L2 adquirida entre os 4/5 e 10/11 anos

2. bilinguismo de adolescente

L2 adquirida entre os 10/11 e 16/17 anos

3. bilinguismo de adulto

L2 adquirida depois dos 16/17 anos

1. bilinguismo aditivo

L1 e L2 valorizadas socialmente, papel complementar → desenvolvimento harmonioso do bilinguismo

2. bilinguismo subtractivo

L2 valorizada mas dependente da L1, papel competitivo → L2 adquirida mas dependente da aquisição em L1

1. bilinguismo bicultural

dupla pertença cultural e identidade bicultural

2. bilinguismo monocultural em L1 reconhecimento e identidade cultural apenas na L1 3. bilinguismo aculturado à L2

reconhecimento cultural na L2 identidade cultural alinhada sobre a L2

4. bilinguismo aculturado anómico hesitação acerca do pertença cultural/ identidade cultural mal definida

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2. Tipos e graus graus de bilinguismo 2.1. Competências linguísticas O grau de bilinguismo de um falante bilingue é determinado pela sua eficácia nas quatro competências (ouvir, falar, ler e escrever). As capacidades e o grau de destreza em cada uma destas competências são variáveis. Por exemplo, muitas vezes os filhos de famílias emigradas possuem competências bem desenvolvidas na língua do país de acolhimento ou de nascimento, ao passo que a capacidade para escrever ou ler na língua dos seus pais pode ser limitada ou inexistente. Noutros casos podem ter recebido uma educação mais completa ao nível das tradições orais e escritas das duas línguas, pelo que se poderão encontrar no estádio conceptualizado do bilinguismo equilibrado. No caso, por exemplo, de crianças recém-chegadas a um país ou região com língua diferente da sua, a língua a que têm um coeficiente de competência mais baixo é aquela a que estão agora expostos; trata-se da língua dominante na comunidade e na escola, o meio de socialização. Nesta última circunstância acabam muitas vezes por se sentirem num espaço-entre, num limbo, oscilando entre a sua casa onde a L1 prevalece e a escola onde vivem imersas numa L2 da qual pouco compreendem. Deste modo, a dimensão linguística do bilinguismo está patente nas quatro competências. A compreensão oral (ou escrita) constitui a competência mínima que o falante bilingue terá nas duas línguas. Um bilingue passivo é aquele que apenas possui uma competência de compreensão na L2, enquanto que na sua L1 funciona de forma fluida e eficaz nas quatro competências. A expressão oral é a capacidade que normalmente se espera que o falante possua em casos de bilinguismo equilibrado e de bilinguismo dominante, e assim como no caso do equilinguismo. A compreensão escrita é uma competência decisiva, dado que significa uma maior proximidade e conhecimento da L2. A produção escrita é a competência que se espera da parte de um bilingue equilibrado e de um equilingue. Esta tentativa de classificar o bilinguismo, ou melhor, os bilinguismos, não se pode dar por completa e pode ser demasiado estrita na sua abstracção, dado que, por exemplo, não toma em consideração aqueles que evidenciam um domínio considerável ao nível da compreensão e produção escrita, mas que revelam limitações na compreensão e produção oral na L2. Do que foi dito anteriormente conclui-se que as competências se dividem por dois domínios: o domínio da compreensão e o domínio da produção. A compreensão escrita e a compreensão oral, que resultam da recepção e descodificação de mensagens, opõem-se à expressão escrita e à expressão oral, que estão na origem da produção de mensagens. Se por

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um lado a compreensão está centrada no receptor, por outro a produção está centrada no emissor (SHANNON, 1971). Estas competências podem esquematizar-se da seguinte forma:

COMPREENSÃO

PRODUÇÃO

ORAL

1

2

ESCRITA

3

4

Tabela 1: Tabela de competências competências linguísticas

Os campos foram classificados e numerados tendo em conta a sequência cronológica de aquisição e o grau de complexidade, verificando-se que até atingir o seu grau mais elaborado o bilinguismo passa pela aquisição sequencial de competências, “ouvir, falar, ler, escrever”. O campo 1 (compreensão oral) corresponde à competência que se encontra com maior frequência, dado que no processo de aprendizagem de uma língua é a que ocorre primeiro. O campo 4 (produção escrita) é o mais exigente na aprendizagem de uma língua, dado que exige o domínio de uma série de elementos, como a estrutura gramatical, a grafia (por vezes diferentes alfabetos ou outros sistemas de representação gráfica), a ortografia; talvez por tudo isto seja a competência normalmente mais avaliada na educação escolar. A partir deste ponto de vista o bilinguismo pode ser definido como a sobreposição de dois quadros de competências.

2.2. Tipos de bilinguismo Em teoria existem quinze possibilidades combinatórias entre as quatro competências numa língua, tal como se ilustra no quadro abaixo.

1

OUVIR FALAR LER ESCREVER

2

3

4

5

6

7

8

9

10

11

12

13

14

15

X X X X X X X X X X X X X X X X X X X X X X X X X X X X

X X X X

Tabela 2: Tabela combinatória de competências

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Combinar estas competências entre duas línguas significa, mais uma vez teoricamente, elevar ao quadrado o número de combinações, obtendo um total de 225 formas de bilinguismo. No entanto este número pode ser consideravelmente reduzido se forem descartadas as situações impossíveis; referimo-nos a situações como, por exemplo, ser capaz de escrever numa língua sem ser capaz de a ler ou ser capaz de a falar sem a compreender. Assim sendo, não haverá mais do que oito possibilidades combinatórias realistas por língua (ver as colunas marcadas a vermelho na Tabela 2), o que reduz as formas de bilinguismo para um total de 64 combinações plausíveis (STOLL, 1997: s/n). Dada a dimensão e âmbito deste trabalho, e na impossibilidade de abordar todos os tipos de bilinguismo, optámos por ir ao encontro de algumas das definições avançadas anteriormente em 1.2. e 1.3. ou por representar situações mais frequentes. Os diferentes cenários podem ser apresentados através de duas tabelas justapostas, sendo que a da esquerda refere-se às competências em L1 e a da direita às competências em L2 (o sinal “++” ou “– –” indica a posse ou ausência da respectiva competência). a)

L1

L2

COMPREENSÃO

PRODUÇÃO

+ +

+ +

ORAL ESCRITA

ORAL ESCRITA

COMPREENSÃO

PRODUÇÃO

+ +

+ +

Neste caso o indivíduo possui um domínio sobre todas as competências nas duas línguas, pelo que leva a cabo uma performance na L2 ao nível daquela realizada por um falante que tenha essa língua como L1. Trata-se de uma representação do bilinguismo perfeito de Bloomfield (vide 1.2.). b)

L1 ORAL ESCRITA

L2

COMPREENSÃO

PRODUÇÃO

+ +

+ +

ORAL ESCRITA

COMPREENSÃO

PRODUÇÃO

+ +

– –

Esta tabela configura um dos cenários deixados em aberto pela definição de bilinguismo proposta por Weinreich (vide 1.2.). Já a definição oferecida por Haugen (vide 1.2.) não contempla este cenário como fazendo parte da esfera do bilinguismo, dado que o indivíduo

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não dispõe da capacidade de produção de enunciados orais ou escritos em L2. Possíveis exemplos deste cenário são os casos de estudantes em programas de mobilidade ou intercâmbios internacionais que beneficiaram e continuam a beneficiar da aprendizagem inicial da língua do país de acolhimento, e que possuem deste modo um conhecimento muito restrito da L2. c)

L1 ORAL ESCRITA

L2

COMPREENSÃO

PRODUÇÃO

+ +

+ +

COMPREENSÃO

PRODUÇÃO

– +

– –

ORAL ESCRITA

Esta tabela descreve uma circunstância de bilinguismo cultural (vide 1.3.) em que o indivíduo possui todas as competências totalmente desenvolvidas na sua L1, mas detém apenas a competência de compreensão escrita na L2. Tal como no cenário apresentado em b), Haugen não considera este estado como configurando um exemplo de bilinguismo. d)

L1 ORAL ESCRITA

L2

COMPREENSÃO

PRODUÇÃO

+ –

+ –

COMPREENSÃO

PRODUÇÃO

+ –

+ –

ORAL ESCRITA

A tabela acima descreve tanto a situação da criança bilingue em idade pré-escolar a quem os pais podem estar a providenciar uma educação bilingue (bilinguismo doméstico: vide 1.3.), como a circunstância da criança que adquire duas línguas através do relacionamento com os falantes da sua sociedade (bilinguismo natural ou primário: vide 1.3.). Trata-se de um estado marcado pela efemeridade no caso de se verificar durante a infância. Uma interpretação genérica da definição de bilinguismo de Bloomfield levar-nos-ia a classificar este cenário como um bilinguismo infantil total. Pode ainda referir-se ao caso de um falante não alfabetizado nas duas línguas ou a um estado de entrada numa L2, podendo nesta circunstância verificar-se o domínio das quatro competências na metade da tabela referente à L1.

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e)

L1 ORAL ESCRITA

L2

COMPREENSÃO

PRODUÇÃO

+ –

+ –

ORAL ESCRITA

COMPREENSÃO

PRODUÇÃO PRODUÇÃO

+ +

+ +

Esta combinação de competências configura situações de bilinguismo dominante (vide 1.3.) em que os falantes não tiveram oportunidade de desenvolver as suas competências de leitura e de escrita na sua L1. É este o caso, por exemplo, da criança que vai viver para outro país sem nunca desenvolver competências na sua língua materna. f)

L1 ORAL ESCRITA

L2

COMPREENSÃO

PRODUÇÃO

+ (+)

(+) –

ORAL ESCRITA

COMPREENSÃO

PRODUÇÃO

+ +

+ +

O cenário apresentado na tabela acima descreve o bilinguismo subtractivo (vide 1.3.) e implica a perda sucessiva de competências na L1, ao passo que os falantes se tornam cada vez mais competentes na L2. Pode ser este o caso dos emigrantes que para além da aquisição da língua em situações informais e de trabalho também experimentam uma aprendizagem da L2 em contexto escolar. g)

L1 ORAL ESCRITA

L2

COMPREENSÃO

PRODUÇÃO

+ +

+ +

ORAL ESCRITA

COMPREENSÃO

PRODUÇÃO

(+) +

– +

A tabela acima refere-se a um caso de bilinguismo formal ou escolar (vide 1.3.), em que após alguns anos de estudo de uma L2 o aluno já é capaz de ler e produzir enunciados escritos, não sendo no entanto cabalmente competente na comunicação oral.

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h)

L1 ORAL ESCRITA

L2

COMPREENSÃO

PRODUÇÃO

+ +

+ +

ORAL ESCRITA

COMPREENSÃO

PRODUÇÃO

+ +

+ –

O cenário apresentado na tabela acima representa o falante que domina todas as competências nas duas línguas à excepção da produção escrita na L2. Um exemplo deste cenário é o caso do emigrante escolarizado na sua L1 que continua a utilizar a sua língua quer em situações informais (em casa, convívio com compatriotas, …), quer em situações formais (contactos com consulados, …), e trabalha no dia-a-dia sem nunca ter adquirido a competência de produção escrita na língua do país de acolhimento. As tabelas de competências apresentadas acima não procuram esgotar as hipóteses possíveis: tal como havíamos referido anteriormente tentamos ir ao encontro de algumas das definições previamente abordadas ou dos cenários mais recorrentes.

3. Alguns benefícios do bilinguismo 3.1. A nocividade do bilinguismo Tal como já havíamos referido anteriormente (vide 1.2.) o bilinguismo foi visto durante muito tempo como algo nocivo. Dentre os muitos que consideraram o bilinguismo um fenómeno pernicioso iremos destacar o psiquiatra francês Edouard Pichon. Este médico era especialista no tratamento de crianças com perturbações devidas segundo ele ao bilinguismo. "Le bilinguisme est une infériorité intellectuelle; cette conclusion pessimiste est celle de tous les auteurs qui ont, sur du matériel concret, étudié la question: Epstein en France, Monsieur Braunhavsen et Monsieur Decroly en Belgique, Monsieur Meyerhoffer et Monsieur Mockli en Suisse, Monsieur Jespersen en Angleterre et en Scandinavie, Mademoiselle Saes au Pays de Galles, Monsieur Smith aux Etats-Unis, Monsieur Galli en Catalogne, Monsieur Couka en Tchécoslovaquie, Monsieur Henns et Monsieur Yoshioka par la comparaison respective des Allemands et des Japonais vivant dans leur pays et de ceux résidant à l'étranger[…]. Cette nocivité du bilinguisme est explicable; car, d’une part, l’effort demandé pour l’acquisition de la seconde langue semble

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diminuer la quantité disponible d’énergie intellectuelle pour l’acquisition d'autres connaissances; d’autre part et surtout, l’enfant se trouve ballotté entre des systèmes de pensée différents l’un de l’autre, et il les adultère tous les deux en les privant de leur originalité et en se privant par là même des ressources accumulées depuis des siècles par ses prédécesseurs dans chaque idiome. Comme le dit fort bien Monsieur Laurie, sa croissance intellectuelle n’est pas doublée, mais diminuée de moitié; son unité d’esprit et de caractère a beaucoup de peine à s’affirmer." (PICHON, 1965 : 101-103).

As observações levadas a cabo junto dos seus pacientes levaram-no a descrever aquilo a que deu o nome de síndroma do sujeito bilingue. Esta patologia era marcada por diversos sintomas: perturbações da lateralização cerebral e motriz, uma estruturação imperfeita do espaço e do tempo, propensão para a lentidão de raciocínio e de reacção, atrasos na aquisição e deficiências nas duas línguas, e sobretudo a incoerência da personalidade podiam fazer prever a esquizofrenia. Pichon não colocou a hipótese de haver outras causas de perturbação como por exemplo, carências afectivas, familiares ou sociais, ou a conjugação de diferentes factores. Até inícios da década de sessenta do século XX, os estudos levados a cabo apontavam para os riscos do bilinguismo. As limitações encontravam-se na própria metodologia utilizada, dado que os estudos eram feitos a partir de testes verbais monolingues para medir o nível mental de crianças bilingues. Só a partir de 1960 é que se utilizam testes não-verbais para medir o quociente de inteligência. Até à década de sessenta a qualidade e os resultados da investigação sobre bilinguismo reflectia o fraco investimento na área das ciências sociais e humanas. Os estudos levados a cabo antes dos anos sessenta negligenciaram igualmente o facto de que um bilingue pode exibir um ritmo de aquisição mais baixo em determinadas fases no seu desenvolvimento das duas línguas comparativamente a falantes monolingues dessas línguas. No entanto, na evolução dos falantes bilingues não se verificam apenas abrandamentos; observam-se também aceleramentos resultantes da interacção entre as duas línguas. Como tal, a avaliação deve decorrer no final do processo de aprendizagem. No processo de avaliação há ainda que ter em conta a existência de desenvolvimentos específicos ao nível neurológico.

3.2. Consequências na organização da estrutura cortical A aquisição linguística provoca alterações na estrutura do cérebro. Um princípio globalmente aceite é que uma aquisição problemática das primeiras estruturas da L1 durante o período crítico da infância constitui um problema grave. A aquisição de uma L2 realiza-se de forma diferente quer se faça dentro ou fora do período crítico dos primeiros 4-5 anos de vida, o 16


que resulta numa estrutura cortical distinta consoante o momento em que se inicie e concretize a aprendizagem da L2, conforme foi demonstrado pelas imagens obtidas pelo recurso à ressonância magnética funcional (KIM et al., 1997: 171-174).

Imagem 1: Início da aquisição antes dos 44-5 anos

Imagem 2: Início Início da aprendizagem após os 44-5 anos

Nos indivíduos que se tornaram bilingues antes dos quatro anos de idade (i.e. bilingues precoces) (vide Imagem 1) verifica-se que a área de Broca, que controla a gramática e a fonologia, apresenta uma área comum entre as duas línguas. No caso dos falantes que aprendem uma L2 depois daquela idade (i.e. bilingues/aprendentes tardios) (vide Imagem 2), os elementos de cada língua não apresentam qualquer sobreposição, sendo inscritos em zonas contíguas dentro da área de Broca. A fisiologia da área de Broca tal como surge nos bilingues precoces constitui uma utilização mais racional da matéria cortical, dado que conjuga factores comuns e permite uma alternância mais rápida entre as línguas. Estes dados permitem fixar o limite de idade entre o bilinguismo precoce e o bilinguismo tardio, ao mesmo tempo que nos apresentam indicadores de que as capacidades aquisitivas regridem com a idade. Uma questão levantada por estas imagens é se uma língua aprendida mais tardiamente se encontra mais truncada e incompleta do que uma língua aprendida durante a infância. No que respeita à área de Wernicke, que gere os domínios lexical e semântico, o estudo anteriormente referido não encontrou qualquer diferença entre os bilingues precoces e os bilingues/aprendentes tardios.

3.3. 3.3. Benefícios do bilinguismo A partir das observações anteriores sobre as capacidades de aquisição linguística podemos depreender que o monolinguismo não aproveita devidamente todas as potencialidades

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do sistema neurológico. Lambert et al. (1993: 3-22) analisa os benefícios derivados da aquisição precoce de uma segunda língua. Contrariamente ao que se defendia, a aquisição precoce de uma L2 contribui para um melhor desempenho na L1. Se por um lado o desempenho das crianças bilingues na sua L1 é inicialmente inferior ao das crianças monolingues nessa língua, por outro, por volta dos 10 anos de idade verifica-se uma recuperação que se reflecte num progresso evidente cerca dos 12 anos de idade. O fenómeno do superior desempenho na L1 decorre da comparação voluntária e involuntária entre as duas línguas e do estímulo às estruturas intelectuais do indivíduo. Apesar de no final da aprendizagem da L2 não se poder equiparar a proficiência dos indivíduos bilingues à dos monolingues nessa língua, os primeiros não estão longe desse nível de competência. As pequenas discrepâncias tenderão a desvanecer-se caso se verifique uma utilização constante e persistente da L2, sobretudo se o falante se integrar numa comunidade que tenha essa língua como dominante. Os bilingues têm maior facilidade na aprendizagem posterior de uma ou mais línguas do que os monolingues. Dado o seu bilinguismo, os bilingues possuem de antemão uma variedade de componentes linguísticos que podem colocar ao serviço e transferir para a nova língua. A postura do falante bilingue perante uma nova língua é também uma vantagem: trata-se de um indivíduo com menores resistências à nova língua, uma vez a diferença linguística é vivida pelo próprio. As crianças bilingues alcançam resultados claramente melhores que as monolingues nos testes verbais e não verbais para a medição do quociente de inteligência 4 . Reconhece-se igualmente um padrão nos resultados dos testes que sugere que o bilinguismo contribui para uma estrutura intelectual mais diversificada, maior flexibilidade cognitiva, e maior capacidade de abstracção e de resolução de problemas (LAMBERT, 1977: 16). Um aspecto que tem sido realçado é o grau de desenvolvimento intelectual proporcionado pelo bilinguismo e os efeitos notáveis que advêm na aprendizagem da matemática. No final da escolaridade os bilingues apresentam resultados claramente superiores aos dos indivíduos monolingues. A relação entre a matemática e a aprendizagem de uma L2 também tem sido vista do ponto de vista da criança que possui fraca competência na L2 mas que tem bons antecedentes de matemática, estando assim em vantagem face a um falante monolingue dessa língua no que diz respeito à aprendizagem quer da L2 quer da matemática ensinada através da L2 (KRASHEN, 1992: 355).

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Este tipo de testes gozam de grande popularidade e aceitação no meio escolar e académico do Canadá, a realidade a que sobretudo se refere o artigo de Lambert et al. (1993).

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Do ponto de vista cultural o bilinguismo constitui claramente um benefício, dado que esse estatuto oferece ao falante uma perspectiva a interior da cultura do outro a partir do seu biculturalismo. O bilingue é um indivíduo socialmente mais aberto não só às culturas veiculadas pelas línguas que domina, mas como também a outras diferenças culturais, dado que as ferramentas linguísticas que detém constituem um meio de comunicação e de acesso ao outro e à sua cultura.

4. O tradutor tradutor como bilingue ou a competência bilingue do tradutor Nesta parte do nosso trabalho vamos abordar a competência bilingue do tradutor, uma das competências que constituem a competência tradutória, mais vasta. A competência tradutória constitui o conjunto de conhecimentos necessários para traduzir; consiste na capacidade para levar a cabo o processo de transferência da compreensão do texto de partida para a reexpressão do texto de chegada, tomando em conta o propósito da tradução e as características do leitor do texto de chegada. A competência tradutória é concebida como uma rede de competências interligadas e interdependentes, organizadas de forma hierárquica. As subcompetências da competência tradutória são: sub-competência linguística em duas línguas (bilingue); sub-competência extralínguística; sub-competência instrumental/profissional; subcompetência psico-fisiológica; sub-competência de transferência; e sub-competência estratégica (PACTE, 2003: 82-83). A sub-competência linguística define-se como sendo o sistema de conhecimentos subjacentes necessários para a comunicação nas duas línguas. A sub-competência extralinguística define-se como sendo o conhecimento explícito ou implícito sobre o mundo e sobre áreas específicas do saber; a biculturalidade; a cultura geral de cariz enciclopédico. A sub-competência instrumental/profissional é definida como sendo o conjunto de saberes e capacidades relacionadas com a tradução profissional (e.g. fontes documentais e bases de dados disponíveis, conhecimento do mercado de trabalho e da profissão, etc.). No quadro do conjunto de competências que compõem a competência tradutória, o tradutor deve possuir a denominada competência bilingue, um tipo de conhecimentos que se situa ao nível das estratégias, do saber fazer nas duas línguas, e onde a maioria dos processos verificados são automáticos. O estatuto bilingue do tradutor está assente na sua capacidade comunicativa nas duas línguas, isto é, na capacidade de compreensão na língua de partida e produção na língua de chegada (PACTE, 2001: 41), partindo de conhecimentos pragmáticos, sóciolinguísticos, textuais, lexicais e gramaticais em cada língua. O conhecimento pragmático consiste

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no conhecimento das convenções pragmáticas que tornam possível criar actos de fala que sejam aceites num dado contexto, adequando, por exemplo, a utilização das funções da linguagem ao contexto. O conhecimento sócio-linguístico consiste no conhecimento das convenções sóciolinguísticas necessárias para adequar os actos de fala ao contexto, o que inclui o conhecimento dos registos da língua e de dialectos (variações geográficas, sociais e temporais). O conhecimento textual consiste no domínio dos diferentes géneros de textos e suas convenções (estrutura, características e marcas linguísticas, …) e conhecimento da textura textual (mecanismos de coerência e coesão). Os conhecimentos lexicais e gramaticais assentam no domínio do vocabulário, semântica, morfologia, sintaxe e fonologia/grafologia (PACTE, 2003: 92; PACTE, 2005: 611). Não se pode deixar de relevar que o tradutor possui a capacidade de transitar de uma língua para outra, sendo capaz de separar as duas línguas em contacto através do controlo de eventuais interferências entre os códigos linguísticos. A competência bilingue constitui o factor determinante para, por exemplo, se processar o reconhecimento e descodificação de uma expressão idiomática, ou de uma metáfora, para a qual só posteriormente se poderá procurar uma equivalência (DAGUT, 1976: 24).

5. Considerações finais Depois de abordadas tantas facetas do bilinguismo seria redundante referir a sua complexidade. Seja qual for o cenário deparamo-nos com um denominador comum: duas línguas em contacto. Qualquer que seja o ponto de vista de onde se perspective o bilinguismo (sóciolinguística, linguística, neuro-linguística, didáctica, tradução,…) – a utilização de duas línguas –, dever-se-á ter presente que se trata de um fenómeno plural. Independentemente das diversas perspectivas que se abordem o bilinguismo continua a ser um conceito relativo e aberto a uma diversidade de definições, fugindo assim a uma definição e caracterização absolutas. No que diz respeito a estudos envolvendo bilinguismo, literatura comparada e tradução, julgamos que temas como o bilinguismo de autor e a auto-tradução, caso extremo da dialéctica entre autor e tradutor, oferecem um terreno fértil para futuras investigações, nomeadamente a tentativa de compreender os mecanismos através dos quais o bilinguismo influi na linguagem do texto.

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