Universidade dos Açores Departamento de Línguas e Literaturas Modernas Cultura Inglesa
Animal Farm: Política, ideologia e pessimismo
Luís F. C. Arruda Martins PósPós-graduação em Tradução Ponta Delgada 2004/2005
Índice o. Introdução ……………………………………………………………………………………………………………………………..
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1. Alguns antecedentes biográficos e políticos do autor ……………………………………….
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2. A Revolução Russa ……………………………………………………………………………………………………………..
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3. A obra e a União Soviética [da Revolução de 1917 até Estaline (1943)] …….
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4. Análise: temas e ideologia
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5. Considerações finais ………………………………………………………………………………………………………….
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6. Referências bibliográficas ……………………………………………………………………………………………….
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Animal Farm: Farm: Política, ideologia e pessimismo 0. Introdução Animal Farm aborda duas facetas do mundo contemporâneo: a revolução e o totalitarismo. A fábula de George Orwell reflecte acerca da revolução enquanto fenómeno político. A revolução nasce sempre de uma vontade inabalável de mudança por parte de uma sociedade. Esse desejo parte invariavelmente da insatisfação perante um determinado estado de coisas. Assim, Animal Farm permite-nos compreender o ciclo de uma revolução: as suas motivações, os seus objectivos, … e a sua corrupção. Com a questão revolucionária, Orwell trata ainda o fenómeno do Estado totalitário, abordando a sua lógica de funcionamento, formas de manutenção e legitimação. As suas experiências na Guerra Civil Espanhola (1936-1939) e o facto de ter testemunhado a verdadeira face do comunismo levaram-no a escrever, ainda durante a guerra, um volume de ensaios entitulado Homage to Catalonia (1938) e mais tarde Animal Farm (1945). Com este último, Orwell pretendeu não só criar uma alegoria didáctica em torno da revolução bolchevique, mas também desvendar a todos como Estaline conquistou o poder e se tornou um ditador totalitário. Daí que sejamos confrontados com o processo de deturpação egoísta dos ideais revolucionários, como justiça, fraternidade e igualdade, que estiveram na génese do movimento revolucionário. Nesta obra assistimos à forma como a ideologia actua como tradução da realidade pela legitimação da desigualdade, da exploração e das diferenças sociais. Orwell apresenta uma imagem negra do século XX, um tempo que ele considerava marcado pelo fim da liberdade do indivíduo.
1. Alguns antecedentes biográficos e políticos do autor Em Dezembro de 1936, seis meses depois do seu casamento com Eileen O’Shaughnessy e cinco meses após o início da Guerra Civil Espanhola, George Orwell vai para Espanha. A sua intenção era relatar os acontecimentos e ajudar a recém-eleita República a defender-se dos exércitos do General Francisco Franco, entretanto apoiado pelos regimes da Alemanha e Itália. Pouco depois de chegar a Barcelona, integrou como voluntário as milícias do pequeno POUM Partido Operário de Unificação Marxista (Partido Obrero de Unificación Marxista) e algumas 2
semanas depois transferiu-se para uma brigada do Partido Trabalhista Independente (o inglês Independent Labour Party, uma dissidência do British Labour Party) que combatia em Aragão integrado no POUM. Na Europa, o fascismo estava em ascensão: Mussolini havia tomado o poder em Itália, Hitler fora eleito na Alemanha. Porém, em Espanha havia nascido fazia pouco tempo uma República democrática. Um governo socialista fora eleito e prometia reforma agrária, reforma eleitoral, e separação entre Estado e Igreja. Liderados por Francisco Franco, um grupo de generais de extrema-direita revoltam-se e levantam os seus exércitos contra a República. Para se defender do exército leal aos generais, o governo é forçado a armar operários fabris. Tem início uma longa, sangrenta e traumática guerra civil, ensaio experimental de tudo daquilo que viria a ser a Segunda Guerra Mundial. A Guerra Civil Espanhola foi importante para Orwell por três razões. A primeira foi o espírito de camaradagem e respeito que observou ao chegar à Catalunha para se juntar às brigadas do POUM. Havia entre todos um sentimento de igualdade, de camaradagem. Orwell acreditava estar a testemunhar o sucesso do modelo socialista. A segunda razão foi o que aconteceu aos seus companheiros de armas. Eles foram perseguidos e mortos não pelas forças leais a Franco, mas sim pelos seus camaradas comunistas do mesmo governo republicano. Os comunistas não concordavam com alguns dos pontos de vista do grupo a que Orwell pertencia, acusando-os de serem trotskistas e contra-revolucionários. O POUM acabou por ser ilegalizado e desmantelado. Em Junho de 1937, Orwell e a sua esposa, que entretanto havia ido para a Catalunha, conseguem fugir apesar de estarem sob um mandato de captura acusados de trotskismo. Por último, Orwell iria ficar marcado para o resto da vida com o que sucedeu ao chegar a Inglaterra ao perceber que ninguém tinha interesse em saber o que se havia passado em Espanha. Os próprios socialistas não queriam ouvir ou minoravam os seus relatos da guerra e das perseguições sofridas por toda a Esquerda que não fosse comunista. Para os socialistas ingleses simplesmente não era a melhor hora para perturbar o comunismo ascendente entre o governo republicano em Espanha. Homage to Catalonia, uma obra não-ficcional, descreve o tempo que Orwell passou na frente de combate e a sua desilusão para com a revolução que ele julgara ser capaz de libertar Espanha. Esta ideia de traição aos objectivos da revolução é um tema recorrente em Animal Farm. Orwell tinha visto os ideais socialistas em acção, e tinha-os visto a serem esmagados, não pelos seus inimigos naturais da Direita, mas sim pelos seus “camaradas” comunistas. Orwell saiu de Espanha com uma opinião muito má do Partido Comunista, acusado à época de ter contribuído para a vitória falangista sobre a esquerda Espanhola, ao levar a cabo a eliminação de grupos anarquistas e trotskistas que se opunham à sua preponderância no governo socialista. 3
Vira também a incapacidade por parte da sociedade, da imprensa e da Esquerda, mesmo da Esquerda não-comunista, em acreditar que tal fosse possível. Ele tinha tudo isto guardado na sua memória quando começou a escrever Animal Farm em Novembro de 1943. Mais uma vez, tal como acontecera com Homage to Catalonia, não parecia ser o momento certo para publicar um livro que expusesse a realidade da política soviética, (T. S. Eliot, na época ligado à Faber & Faber foi um dos editores que recusou o livro). A prudência política das editoras baseava-se no facto de a União Soviética ser aliada do Reino Unido contra a Alemanha nazi. Porém, para compreender o que é tratado em Animal Farm há que perceber o que aconteceu na Rússia, e o que significou na altura.
2. A Revolução Russa A revolução bolchevique de Outubro de 1917 foi uma revolução realizada em nome da classe operária (o proletariado) e contra os proprietários capitalistas (a burguesia). Os ideais da revolução baseavam-se no pensamento económico e político de Karl Marx (1818-1883) que advogava a colectivização dos meios de produção e a substituição da ditadura da burguesia pela ditadura do proletariado. Marx sonhava com uma sociedade sem classes, onde todos fossem iguais, e onde o rendimento de cada um seria o do seu trabalho. Só o proletariado, numa frente universal, poderia assegurar a formação da nova sociedade. Karl Marx acreditava que a história mundial era a história da luta de classes entre oprimidos e opressores. A Revolução de Outubro de 1917 surge na sequência de diversos acontecimentos. Em Fevereiro de 1917, depois de uma vaga de greves, um grupo de militares, apoiado no povo, ocupou o poder. Em sequência disto, o czar abdica (Março de 1917). Formou-se um governo provisório de coligação das várias tendências políticas: liberais (Millioukov) e socialistas (Kerenski). Vladimir Illich Lenine (1870-1924), influenciado pela ideologia marxista, considerava o Partido Comunista o verdadeiro estandarte da classe trabalhadora. Este, enquanto se encontrava na Finlândia, preparou, através de Leon Trotsky (1879-1940), uma nova revolução – a de Outubro, que possibilitou a primeira experiência de uma sociedade socialista. Seguiram-se quatro anos de guerra civil (1917-1921), durante os quais o Exército Vermelho, organizado e comandado por Trotsky, combateu e derrotou o Exército Branco contrário à nova ordem e apoiante do regime czarista. Quando Lenine morre em 1924, surge um vazio no poder, que resulta numa luta entre Estaline (1879-1953) e Trotsky pela liderança do Partido Comunista e, consequentemente, do país. Em 1925, Estaline consegue afastar Trotsky da luta pelo poder, e em 1927 afasta-o do Comité
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Executivo do Comintern, sendo expulso do partido. Estaline denuncia continuamente Trotsky como um traidor à revolução. Mais tarde, este vem a ser exilado, primeiro internamente e depois fora do país, acabando por ser morto no México em 1940 por um agente estalinista1. Lançando mão de uma série de purgas, Estaline conseguiu quebrar toda a oposição ao seu poder pessoal, ao mesmo tempo que concentrava cada vez mais poder em si. Os seus antigos companheiros foram na sua maioria executados. Na verdade, a década de 1930 ficou marcada por prisões, deportações e execuções em larga escala, muitas vezes de modo aleatório, que tinham como propósito eliminar toda e qualquer possibilidade de oposição. Foi o início da era do gulag2. Ao nível económico, a revolução trouxe mudanças profundas. Depois do comunismo de guerra, orientado por Lenine e traduzido na ocupação de indústrias, na distribuição de terras pelos camponeses e na abolição de propriedade privada, o Estado soviético colocou em prática a Nova Política Económica (economia de cunho liberal). Em 1927, Estaline, sucessor de Lenine, inicia um governo autoritário e promove a reestruturação global da economia soviética pela mobilização das forças produtivas. A banca, o comércio, as terras, as minas, os caminhos-deferro, as fábricas, passaram a ser propriedade do Estado. A política económica foi alterada em 1927 e estabeleceram-se planos quinquenais (1928-1932; 1933-1937) para revitalização da indústria e da agricultura. A exploração individual da terra foi substituída pela acção do Estado que formou grandes propriedades (sovkhozes 3 ) e pelo trabalho em comum nos kolkhozes 4 . A economia, de acordo com o primeiro plano quinquenal (1928-1932), foi totalmente concentrada e passou a estar submetida à direcção única do Estado, através de uma comissão denominada Gosplan. No entanto, entre as décadas de 1930 e 1940, fora da União Soviética tinha-se ainda uma visão muito idealizada do regime soviético. Em 1943, Orwell sentia que em Inglaterra, devido à sua admiração pelo esforço de guerra soviético, as pessoas não prestavam atenção a certas características do regime comunista na União Soviética, bem como a relatos e informações que chegavam. Sentia também que os comunistas ingleses usavam a sua posição como representantes oficiosos do regime soviético para evitar que a verdade fosse exposta, tal como tinham feito em relação à Guerra Civil Espanhola. A Esquerda não comunista, sobretudo, tinha dificuldade em conceber que a revolução socialista soviética – modelo de libertação da classe operária – se 1
Este agente era Ramon Mercader, o mesmo que durante a Guerra Civil Espanhola iniciou George Orwell nas técnicas de vigilância, e a quem deu um curso intensivo de castelhano. Foi também quem forneceu as instruções para a sua primeira missão. 2 Sistema penal composto por uma rede de campos de concentração para trabalhos forçados. 3 Propriedade agrícola soviética do Estado, cujos trabalhadores recebiam salários. 4 Tipo de propriedade rural colectiva em que os camponeses formavam uma cooperativa e davam uma parte fixa da sua produção ao Estado.
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tivesse transformado num regime totalitário. Assim, um dos objectivos de Animal Farm é desmascarar a realidade soviética e o desvirtuamento de uma revolução que se transforma num regime totalitário.
3. A obra e a União Soviética Soviética [da [da Revolução de 1917 até Estaline (1943)] (1943)] Ao escrever Animal Farm, George Orwell tinha entre os seus objectivos reproduzir a realidade soviética desde a revolução bolchevique de Outubro de 1917 até ao governo de Estaline no momento em que iniciou o livro, em Novembro de 1943. O autor pretendia demonstrar que o resultado da revolução tinha sido uma sociedade totalitária, cruel e injusta, que afinal não era tão diferente da realidade anterior à revolução, ao mesmo tempo que apresentava as estratégias utilizadas para a manutenção do poder e as formas de manipulação e subjugação das massas proletárias. Para atingir os seus propósitos, Orwell teve necessidade de criar um mundo que fosse um paralelo em termos de acontecimentos, ideais, personagens e, inclusive, símbolos face à revolução bolchevique. Trata-se de uma obra mais preocupada com psicologia política do que com personagens individuais. Trata-se de uma fábula, não de um romance. Assim, Napoleon, Snowball, Old Major, Mr. Jones e outros representam personagens da revolução bolchevique, o Animalismo representa o Comunismo, e Manor Farm representa a União Soviética. Vejamos então a relação entre alguns elementos essenciais da fábula e a realidade histórica. Mr. Jones representa o último czar russo, isto é, Nicolau II (1868-1918). No princípio do século XX, a Rússia continuava a ser um país arcaico, com o seu povo vivendo em condições miseráveis. O povo russo passava por grande privações. A fome e a miséria eram endémicas. A guerra veio agravar a situação social e precipitou uma profunda crise. As derrotas sofridas pelo exército na Grande Guerra aumentaram o descontentamento. A Rússia vivia num clima de agitação pré-revolucionária. As condições de vida dos animais de Jones funcionam como paralelo do que sucedia com o povo russo, explorado e esfomeado. Nicolau II morre pouco depois de abandonar o poder (na verdade, ele é assassinado por soldados do Exército Vermelho), tal como Jones também morre após abandonar as suas esperanças de reclamar a quinta. Jones representa todo o governo que, por sua própria responsabilidade, entra em declínio. Jones surge como um agricultor bêbado e incompetente, que não sabe cuidar da quinta e dos animais. Logo no início da obra esquece-se de fechar por completo os galinheiros, mas não se esquece, antes de cair no sono, de beber um copo de cerveja. A revolta dos animais é despoletada quando Jones se esquece de os alimentar, o que demonstrou mais uma vez a sua falta de respeito pelos animais.
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O porco Old Major é um misto de Marx e Lenine. Old Major é um porco sensato, cujo discurso empolgante contribui para dar início à rebelião, que na verdade tem o arranque apenas após a sua morte. O seu papel equipara-se mais ao de Marx, cujas ideias impulsionaram a revolução bolchevique. Da mesma forma que Old Major defendia o Animalismo, ideologia segundo a qual todos os animais eram iguais devendo revoltar-se pela liberdade contra o opressor humano, Karl Marx fazia a apologia da doutrina comunista da revolta do proletariado contra a burguesia usurpadora do seu trabalho. Lenine foi o responsável pela transformação da Rússia em URSS, da mesma forma que Old Major foi responsável pela transformação de Manor Farm em Animal Farm. Old Major, tal como Lenine, morreu antes de ver o desenlace da revolução. Napoleon desempenha o papel de Estaline e, tal como ele, apenas tem como propósito preservar e aumentar o seu poder. Em vez de debater e discutir ideias com Snowball, Napoleon lança sobre ele os seus cães. Napoleon expulsa Snowball da quinta e daí em diante faz crescer o seu poder a partir de uma política baseada no terror. Para Napoleon o que interessa é o poder, independentemente da forma como se obtém, e não as ideias. As confissões forçadas e execuções de animais reflectem as diversas purgas e julgamentos públicos que Estaline levou a cabo para aniquilar qualquer possível tentativa de sublevação contra o seu poder. Os planos quinquenais de Estaline surgem na fábula através do plano de Napoleon para a construção do moinho de vento, projecto este que inicialmente havia sido proposto por Snowball. A exumação do crânio de Old Major para que os animais lhe prestassem homenagem todas as manhãs tem paralelo na história soviética: Estaline determina que seja especialmente construído um mausoléu onde o corpo embalsamado de Lenine pudesse ser visto por todos. O seu nome também é sugestivo, lembremo-nos de Napoleão Bonaparte que usurpou a Revolução Francesa e a transformou num império pessoal. A personalidade e acções de Napoleon sugerem não só a postura hegemónica de Estaline, mas também a de outros ditadores. Da mesma forma que Estaline utilizou o KGB (a polícia secreta criada por Estaline) para esmagar qualquer forma de oposição, também Napoleon utiliza os cães criados por ele para expulsar Snowball de Animal Farm e silenciar qualquer oposição. Os cães representam os meios que um Estado totalitário utiliza para aterrorizar o seu próprio povo. Em termos humanos Squealer representa a máquina propagandística que veicula as mentiras do sistema de poder implantado, onde a mentira, de tantas vezes repetida, acaba por ser considerada como a única verdade. A propaganda funciona como subversão da verdade dos factos. Squealer surge como um excelente orador, capaz de mudar facilmente de opinião e ao mesmo tempo influenciar os outros animais. Mesmo quando os bens são escassos consegue provar que a produção aumentou, e sempre que os porcos açambarcam poder e riqueza consegue convencer que tal é importante 7
para o bem-estar de todos. Estaline utilizou a propaganda, tal como Napoleon, para legitimar o seu poder junto do povo soviético e promover o culto da sua personalidade. A personagem de Snowball representa Trotsky. Snowball é a personagem que vai mais ao encontro do sonho de Old Major, dedicando-se a melhorar as condições de vida dos animais. Promoveu a alfabetização dos animais para que pudessem ler os Sete Mandamentos do Animalismo que pintou na parede do celeiro. Reduziu os Mandamentos a apenas um preceito – “Four legs good, two legs bad” (Capítulo III) – para que até o menos inteligente dos animais pudesse compreender a nova ideologia seguida na quinta. Snowball, tal como Trotsky, considerava que os fins da revolução só seriam alcançados com uma revolta em larga escala, isto é, que alcançasse todos. Snowball revela-se um estratega brilhante ao dirigir com sucesso o exército dos animais na Batalha de Cowshed, da mesma forma que Trotsky liderou com sucesso o Exército Vermelho durante a guerra civil que se seguiu à revolução bolchevique. O projecto de Snowball para a construção do moinho de vento vai igualmente ao encontro das ideias trotskistas da aplicação da doutrina marxista, uma vez que a sua construção iria melhorar a qualidade de vida, facilitando e acelerando o trabalho, o que resultaria em mais tempo livre. A ideia de construir o moinho de vento vem a ser aplicada por Napoleon, tal com os planos quinquenais pensados por Trotsky são colocados em prática por Estaline. A expulsão de Snowball, à semelhança do que sucedeu com Trotsky, sugere que a força, e não um programa exequível, governa a quinta. Mr. Frederick representa Adolf Hitler (1889-1945). Frederick, o astuto proprietário de uma quinta vizinha chamada Pinchfield, revela-se um homem de negócios implacável. Apesar das ofertas de ajuda que faz a Jones devido à revolta na quinta, no seu íntimo, Frederick espera vir a tirar partido da situação criada. Assim, a história recorda-nos o Pacto Germano-Soviético de nãoagressão assinado em 1939 entre os governos de Estaline e Hitler, que mais não foi do que um estratagema por parte de Hitler para poder invadir a Polónia sem interferência da União Soviética, e mais tarde, em 1941, invadir a União Soviética. Frederick utiliza um estratagema semelhante ao comprar a Napoleon um carregamento de madeira que é pago com notas falsas, o que revela a sua verdadeira personalidade. Mais tarde, tenta tomar Animal Farm à força, tal como Hitler ao invadir a União Soviética, o que evidencia tratar-se do tipo de homem de que os animais se tinham tentado libertar. A Batalha do Moinho de Vento, da qual Frederick sai derrotado, é uma referência à invasão da União Soviética, mais precisamente à derrota decisiva que os alemães sofreram na Batalha de Estalinegrado em 1943. Animal Farm possui, para além do crânio de Old Major, paralelo com outros símbolos soviéticos. A bandeira da URSS era composta por uma foice e um martelo, símbolos da revolta do proletariado, ao passo que a bandeira de Animal Farm tinha um corno e um casco (que mais 8
tarde vêm a ser retirados da bandeira). Após a Batalha do Moinho de Vento, Napoleon institui a Ordem da Bandeira Verde que entrega a si próprio, da mesma forma que Estaline criou a Ordem de Lenine em 1930, outorgando-a ao jornal Pravda (“A Verdade”) do qual tinha sido director, nomeado por Lenine. No final da fábula temos o jogo de cartas que representa a Conferência de Teerão realizada na capital do Irão (entre 28 de Novembro de 1943 e 1 de Dezembro de 1943). Nessa conferência, que contou com a participação de Winston Churchill, Franklin Roosevelt e Joseph Estaline, discutiu-se, para além de questões directamente relacionadas com a guerra, a criação de um organismo de cariz mundial que garantisse a paz após o final da guerra (a futura Organização das Nações Unidas). Antevendo a chamada Guerra Fria a partir de finais da década de 1940, Orwell deixa perceber o que pensa desta “reunião pela paz” quando, após se terem lisonjeado mutuamente, Napoleon e Pilkington se tentam enganar um ao outro durante o jogo de cartas. Nenhum deles confia no outro, e a verdade é que a sua natureza também não torna tal confiança possível: são movidos apenas pelo interesse egoísta. Esta cena final em que os dois discutem por causa dos ases de espadas que cada um deles tinha jogado representa todo o livro. Depois de anos de opressão e luta, os porcos tinham-se transformado no oposto daquilo por que os animais haviam lutado, tinham-se tornado iguais a Mr. Jones.
4. Análise: temas e ideologia ideologia Enquanto escritor, o desejo de Orwell era tornar a escrita de teor político numa forma de arte. Ele pretendia atacar a Direita, mas sem deixar de estar atento e criticar a Esquerda. As suas ideias políticas dependeram sempre das suas experiências pessoais e da história contemporânea. As experiências pessoais com o imperialismo britânico, o totalitarismo soviético (um outro imperialismo, também) e o socialismo britânico foram decisivas. Nas palavras de Orwell, “Every line of serious work that I have written since 1936 has been written, directly or indirectly against totalitarianism and for democratic Socialism, as I understand it.” (“Why I Write”, 1946) Animal Farm foi escrito para lembrar ao público a verdade dos factos da Revolução de 1917 e o método de conquista do poder utilizado por Estaline, o qual acabaria por torná-lo um ditador totalitário. Tem-se a sensação que Orwell pretendia manter o socialismo a salvo do comunismo. O ponto de partida de Animal Farm é a traição da revolução russa e a forma como os valores originais podem ser corrompidos pela falsidade, egoísmo e ganância.
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Para atingir os objectivos da obra, Orwell utiliza a sátira, isto é, indignado com determinados factos, instituições, ideias e indivíduos, procura ridicularizá-los de modo a provocar uma alteração de opinião. Assim, os diferentes alvos da estratégia satírica constituem os grandes temas desta obra. Ao recontar a história da revolução soviética através de uma fábula, Animal Farm constitui uma alegoria da subida de Estaline ao poder. Na fábula, a expulsão do elemento opressor humano (Mr. Jones) por uma coligação democrática de animais dá rapidamente lugar à afirmação dos porcos no poder. Os porcos estabelecem-se como a classe dominante da mesma forma que a nomenclatura soviética o fez. A luta entre Trotsky e Estaline pela supremacia surge no antagonismo existente entre Snowball e Napoleon. Tanto no mundo ficcional como no mundo real há a expulsão de um elemento (Snowball e Trotsky) por parte de outro que ambiciona o poder (Napoleon e Estaline). As purgas e julgamentos sumários com que Estaline eliminava os seus opositores para reforçar o seu poder têm paralelo quando, após a queda do moinho de vento, Napoleon executa os animais em que não confiava. O abandono dos princípios que estiveram na origem da revolução soviética e o governo despótico de Estaline são representados pela adopção de comportamentos, características e, inclusive, aparência, humanas. Os momentos em que Orwell aborda a corrupção do Animalismo são uma prova pungente da sátira. Apesar de o autor seguir um ideário socialista, considerava que a URSS representava a perversão desses valores. Animal Farm é uma condenação do totalitarismo em todas as suas formas, e ao mesmo tempo denuncia a hipocrisia daqueles que, devendo o seu poder inicial a valores como igualdade e liberdade, exercem formas despóticas de governo. A gradual perversão dos Sete Mandamentos ilustra esta falsidade, assim como as justificações de Squealer para as acções e decisões dos porcos. Desta forma, Animal Farm aplica a sátira aos políticos, denunciando a propensão para a manipulação, a manigância, a retórica distorcida e cupidez. Quando Napoleon passeia pela quinta andando sobre duas patas e de chapéu, ao mesmo tempo que troca lisonjeios com Mr. Pilkington, demonstra desrespeito pelos restantes animais em favor dos seus desejos de poder. Desta forma, o tema predominante na fábula é a propensão por parte daqueles que defendem os mais importantes valores de uma sociedade para se tornarem hostis às pessoas cujas vidas reindivicam querer melhorar. Contudo, Orwell não nos diz que Napoleon é o único culpado da destruição do sonho de Old Major. Uma das características mais notórias de Animal Farm é o esboço não só das figuras de poder, mas também do próprio povo alvo de opressão. A história não nos é narrada a partir do ponto de vista de uma dada personagem; a narração parte, isso sim, da perspectiva dos animais como um todo. Pela sua inocência, fidelidade e capacidade de trabalho, estes 10
animais dão a Orwell a oportunidade de provar como a ascensão de governos autoritários advém não só das estratégias e ambições dos opressores, mas também da ingenuidade dos oprimidos que não dispõem da consciência crítica que lhes permita reconhecer ambições vis. A materialista Mollie é como as pessoas que pensam apenas em si e nas suas necessidades, não tendo qualquer forma de consciência política. Este tipo de personagem não constitui um obstáculo para o ambicioso Napoleon. Boxer simboliza o tipo de cidadão que não questiona o poder instituído. A sua crença no líder leva-o a repetir para ele próprio “Napoleon is always right” (Capítulo VI), o que o impede de reflectir acerca da sua própria situação. Animal Farm prova como a incapacidade ou a falta de vontade em questionar a autoridade condena a classe trabalhadora a sofrer por completo a tirania da classe dominante. A falsidade e a traição são temas recorrentemente tratados, utilizando a sátira. Por outras palavras, critica-se a forma leviana como as pessoas assumem compromissos para depois não os cumprirem. Os porcos acabam por trair os valores subjacentes à revolução. Este é um tema consistentemente abordado através do recurso às personagens humanas. Quando depois da revolta dos animais, Pilkington e Frederick falam com Jones no Red Lion (um bar em Willingdon) é sempre na esperança de colherem alguma informação para seu proveito. O negócio da madeira entre Napoleon e Frederick, e que este paga com notas falsas, é um outro exemplo de traição a uma forma de acordo. A última cena da obra, já anteriormente abordada, demonstra como Pilkington e Napoleon, apesar de parecerem estar em sintonia, no fundo o que desejam é enganar-se um ao outro, como fica claro ao jogarem a mesma carta. O jogo de cartas é apenas uma metáfora da ganância e do desejo de destruição mútua, porque, em última análise, num jogo há sempre vencedores e vencidos. A religião é outro tema que é atacado através da sátira, partindo da perspectiva marxista da religião enquanto “ópio do povo”. Inicialmente as histórias que Moses, o corvo, conta acerca de Sugarcandy Mountain deixam muitos animais irritados, porque ele só sabia contar histórias e não ajudava no trabalho: “The animals hated Moses because he told tales and did no work” (Capítulo II). Por esta altura, os animais têm ainda esperanças num futuro melhor, daí que não dêem importância a relatos duvidosos acerca de um qualquer paraíso. No entanto, à medida que as suas condições de vida vão piorando, os animais começam a acreditar no que Moses lhes diz. “Their lives now, they reasoned, were hungry and laborious; was it not right and just that a better world should exist somewhere else? A thing that was difficult to determine was the attitude of the pigs towards Moses. They all declared contemptuously that his stories about Sugarcandy Mountain were lies, and yet they allowed him to remain on the farm, not working, with an allowance of a gill of beer a day.” (Capítulo IX) Orwell claramente ridiculariza o sonho de um lugar melhor que não existe. Os porcos permitem que Moses permaneça na quinta, e 11
encorajam até a sua presença recompensando-o com cerveja, porque sabem que as suas histórias sobre Sugarcandy Mountain mantêm a mente dos animais ocupada. Deste modo, a religião é vista em Animal Farm como uma forma de alienação da classe operária que tem como resultado uma visão distorcida dos objectivos e da vida de cada um. Um tema fundamental em Animal Farm é também a utilização da linguagem como forma de controlo e condicionamento. Aos poucos, os porcos vão distorcendo o discurso da revolução com o intuito de justificar a sua conduta e, ao mesmo tempo, controlar os restantes animais. Controlando a ideologia revolucionária, conseguirião mais facilmente legitimar a sua posição no poder: “They explained that by their studies of the past three months the pigs had succeeded in reducing the principles of Animalism to Seven Commandments. These Seven Commandments would now be inscribed on the wall; they would form an unalterable law by which all the animals on Animal Farm must live for ever after.” (Capítulo II) Em resultado disso, os restantes animais não se conseguiam opor aos porcos sem também se oporem aos ideais da Revolução. No final da fábula, o princípio fundamental da quinta é apenas “all animals are equal, but some animals are more equal than others”, o que demonstra a lógica de poder e a forma de actuação dos porcos, chegando a deturpar o conceito de igualdade. Orwell compreendia a amplitude política do controlo da língua e da linguagem como arma para a sujeição do pensamento [conceito que veio a ampliar em Nineteen Eigthy-Four (1949)].
5. Considerações finais Talvez Animal Farm seja, em última instância, um comentário à natureza humana. Por vezes, alguns indivíduos desenvolvem as suas ideias de tal forma que acabam por se tornar visionários e líderes carismáticos como Old Major, ou, pelo contrário, degeneram em déspotas totalitários como Napoleon. Animal Farm passa de um estado de possível utopia para uma forma exacerbada de distopia. A metáfora de Sugarcandy Mountain surge com maior intensidade e aceitação quando o sentimento de insatisfação e o sonho da utopia se instalam de novo entre os animais. Ao nascer num ambiente de igualdade entre todos, a utopia apresenta uma oportunidade para que cada uma das personagens venha a demonstrar o seu verdadeiro carácter, ou falta dele. Este processo cria seguidores e líderes, e o líder ou líderes tornam-se corruptos devido ao poder e ambição, o que conduz ao desrespeito e desprezo pelas classes mais baixas. Os trabalhadores sentem-se defraudados e compreendem a exploração que a classe dominante fez da revolução. O déspota e o seu regime totalitário são depostos, e todos são novamente iguais. Em conclusão, devemos questionar-nos se o ser humano, com todas as suas qualidades e defeitos, está
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realmente preparado para viver numa utopia. Será que o êxito da utopia é uma possibilidade real, ou estão todas as utopias condenadas ao fracasso?
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