Marrocos
Xcape2010
O ptámos por não fazer um r elato cronológico da viagem.
N ão v ai encontrar uma sequência diária de acontecimentos, mas sim uma acumular das sensações e experiências por intensidade ou por tema. O ra abordamos como é andar de moto no meio das cidades e aldeias marroquinas, como saltamos para um episódio especial. P elo caminho descrev emos as estadias, ou falamos da praça mágica que é Jemma el-F na. D amos um cheirinho do fora-de-estrada e do regatear um par de chinelos ou um bule de chá.
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P artilhamos como se serve um chá de menta ou como se prepara um lenço Tuareg.
Fr onteir a visível
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As primeiras impressões são normalmente marcantes
C ubo de açúcar em chá de menta M ergulhe na M edina de GPS em punho
P artilhamos M arrocos em cima de uma moto.
Eu sou o caminho
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O que tem esta v iagem de diferente das demais?
06
Como é andar fora de estrada em M arrocos
E como é rolar nas cidades, aldeias e estradas?
C onfor tos
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S egredos de um país muçulmano
De dentes arr eganhados
C ontadora de histórias
Rolar em M arrocos
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O que esconde uma cortina?
E spaço para descansar em algumas das estadias
Ao longo da estrada até Imilchil
72
E ncha o peito de ar no pulmão de Marrakesh
D
esta vez é a sério! Vamos para África pela mão da M otoXplorer s. C usta a acreditar , olhando par a trás, como adiámos tanto uma viagem por Marrocos. N as últimas viagens, apenas para chegar ao nosso destino, esperavam-nos 3000 kms, feitos à pressa e por estradas monótonas.
E streámo-nos a viajar em carav ana num grupo com uma dinâmica excepcional. C orremos o risco de achar que serão todas assim. Será? Os parabéns à M otoXplorers e abraços e beijos para os nossos amigos, recém feitos. N élia e Zé, 2010
Azul fr esco Torneira de água fr ia no hamman
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Tâmara em ostr a árida Os oásis são locais especiais
Por entre os dedos dos pés S inta a delicadeza na areia do deserto
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3
Marrocos,
zellij vivo
“
Marrocos é um zellij vivo, mosaico de múltiplas cores e ambientes.
Pormenor do quarto no Riad em Fés
N
a base relaciona-se com o azulejo, de essência s sim ples e liga das à te rra. E m ambos o efeito é hipnotizante.
pontinha de inv eja da sua indisfarçável riqueza. E screve-se da direita para a esquerda e, nesta fantasia imaginada, tudo funciona ao contrário.
E m cada cor, outro idioma. D o N orte ao S ahara , a sonoridade de M arrocos grita bem alto os pov os e culturas que se enamoraram do M aghreb. O espanhol e francês falados, menos exóticos, ev ocam-me desilusão pelo P ortuguês que se desconhece. Mas o árabe, mesmo falado, desenha na areia imagens de sonhos. Quando adentro num país que me é estrangeiro procuro conhecer os rudimentos da língua. Mas M arrocos é uma Bélgica em Á frica: Tarifit no Rif, Tashelhit no centro, Tamazight no Atlas ou Tuareg no S ahara, no desfile de dialectos que pareço condenado a ver de fora. N os minúsculos cinco dias que me ofereceram, ensaio: “ La bes”, “S hukra n be zzef” , “ S alaam alay kum” , arranhando cumprimentos elementares, agradecimentos e v otos do melhor com quem me cruza r. N o caminho, espe ro não insu ltar ninguém nas minhas boas intenções. N éscio, olho para a caligrafia na escrita esbelta, emblema de exotismo exuberante, com uma
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o que Esconde
uma Cortina
Praรงa em Chefchaouen
“
A praça esvazia-se e, onde há minutos fervilhava vida num duelo de aromas e cores, apontam-nos uma porta.
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À esquerda: Medina de Fés; À direita: restaurante no souq nocturno de Beni-Mellal
De fora, não se adivinha o que a pesada cortina esconde.
S
ob uma galeria da praça em BeniM ellal, uma porta parece esconder
um lado ora de outro, servidos sobre uma folha de jornal. A o longo de cinco fileiras de
algo que a destaca das demais agora
mesas corridas paralelas ao balcão, cobertas
fechadas. Junto a esta numa cadeira u-m porteiro corpulento, vestido de fato e
com toalhas de plástico floridas, atrás do qual uma telev isão tenta competir com o ruído das
grav ata escuros, levanta a cabeça do telemóvel para nos encorajar a entrar.
vozes elevadas. O espampanante espectáculo musical de Bollyw ood entretém caso falhem as
Em Marrocos, país muçulmano, não é permitido beber álcool em sítios públicos, sendo tolerado em locais apropriados.
conversas sobre temas univ ersais à volta de D e fora não se adiv inha o que a pesada cortina coçada rosa v elho esconde, nas suas meias portas entreabertas. O nariz estraga a surpresa, com o denso cheiro a fumo e cerveja que nos recebe, enquanto uma centena de pares de olhos e outros tantos bigodes marroquinos convergem em nós. A o início o ambiente é
dezenas de garrafas vazias de cerv eja marroquina, S tork e S peciale, engarrafadas em Casablanca. N a parede em frente à entrada sobre a ombreira da porta, uma fotografia do Rei M ohammed VI dá o mote, figurando a tomar uma bebida, seguramente chá de men-
Khobz bil Bayd Mslooq wa Zeet al-Zaytoon: pão com ovo cozido e azeite ( JKL)
ta.
intimidador mas rapidamente nos envolvemos na companhia e não tarda a que nos sejam oferecidos amendoins torrados com sal, ora de
P or entre as cadeiras e os nossos companheiros de bebida, circula um vendedor de bay d
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Souq em Marrakesh
Khobz: Pão marroquino, o nosso companheiro de viagem mais presente
Dirham: Moeda local com valor facial aproximado de 1/11 de euro
M slooq, carregados num tabuleiro coberto por
goríficas v erticais nem estão ligadas, tamanha
um pano que protege o khobz. P or um punhado de dirhams, abre um quarto de pão onde
a rotação.
coloca o ov o descascado no momento e regado com azeite de uma garrafa de litro opaco, escondida num saco de pano que deixa no chão, aliv iando o ombro cansado de um dia de trabalho. As bebidas são serv idas com um ritmo impressionante para a relativa pouca gente que a sala apinhada parece acomodar. As arcas fri-
Ao percorrermos a sala encontramos expressões que encontraríamos num qualquer bar O cidental: o malte torna uns mais ruidosos enquanto outros, sonâmbulos, lhes parece passar ao lado a animação da discussão dos temas da v ida. M as afinal então o que torna este P aís muçulmano de berbers orgulhosos assim tão diferente?
À esquerda: Souq em Marrakesh; à direita: marroquino em Al Garage, perto de Ait Wahkou
“
Olhamos em volta e, em cada rosto, Marrocos podia ser Portugal.
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“
Ainda com o sabor fresco da lama do recente curso de fora-de-estrada, aceitamos o desafio de visitar Marrocos.
N
os recentes anos passados as férias hav iam sido degustadas em viagens de moto, sozinhos, e ao longo de estradas alcatroadas. Optávamos então por cadenciar os troços de estradas com caminhadas, sujeitos apenas ao nosso ritmo e andamento. O desafio que agora aceitamos é condicionado pelas opções de um grupo e de um trajecto que ao líder compete seguir. N ão fora faltarem apenas duas semanas para a viagem e não nos aguentaríamos, habituados a planear as coisas, estudar os mapas e guias antecipadamente, estabelecer alguns contactos. Damos por nós a rodar os polegares, ou cutucando o v idro do relógio para acordar o ponteiro adormecido.
Acesso por caminho de terra batida aos lagos de Imilchil (foto: MotoXplorers)
eu sou ocaminho
Pilares do Islamismo:
Shahada : a afirmação da
As Zawija são locais de adoração de marabouts sunitas ( sayyed, em árabe).
Sayyed: muçulmanos que se destacaram pela sua devoção. O reconhecimento destes colide com o Corão, o qual desaprova a
palavra de Deus confiada a Maomé;
D
os cinco pilares do Islamismo fundamental, haj é na essência uma viagem, um percurso a realizar enquanto culminar de uma vida de devoção dos muçulmanos. Viajar torna-se assim realizar e atribuir um significado mais profundo. A s crenças berbers antigas palpitam no M aghreb e é de um equilíbrio, pouco ortodoxo aos olhos do Islão, que brotam zaw ijas, v iagens de adoração. E nquanto parto para esta nov a zawija em terra de v iajantes desejo que, ao olhar para trás, a minha haj seja feita de v iagens.
Salat: a oração cinco vezes ao dia;
Zakat: a obrigação moral de dar a quem precisa;
Sawm: o jejum diurno praticado durante o Ramadão;
Haj: a peregrinação a Meca.
adoração de ídolos.
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baraka ”X” The
Baraka : estado de graça que envolve as zawijas, locais de adoração de sayyed (ver acima).
marks The spot
Ao nosso líder de viagem chamaremos E. A sua calça de ganga e polar reforça a postura descontraída face a tudo. Tem o carisma dos líderes e um sentido de humor a condizer, e um indisfarçável horror à autoridade.
D e E. arriscamo-nos a conhecer-lhe bem as costas, seguindo-o durante 9 dias por M arrocos, confiantes que sabe o caminho. P ara quem confia nas primeiras impressões, E . assusta. A sua v isão para a v ida é de uma descontracção que desconcerta e pode ser confundida com falta de empenho, dedicação ou mesmo responsabilidade. É preciso prestar-lhe atenção para perceber o contrário. N esta v iagem a M arrocos, peregrina, v iajaremos com o nosso say yed, detentor de baraka de inúmeras v indas ao Norte de África. Com ele, viaja um grupo de sete devotos que, em preces priv adas, roga para que não dê barraca.
Perto de Adrouine, Mèknes (foto: MotoXplorers)
“
Uma semana antes da partida, ensaiamos a coreografia.
P
ela nesga da porta entreaberta da loja da M otoXplorers, um sobrolho lev antado espreita.
A BM W 1150GS , amarela, de faróis assimétricos e bico de pato protuberante fará as honras de nos lev ar na v iagem. E nquanto aguardamos o resto de grupo, ensaio a posição de condução e os receios da altura ao solo excessiva desaparecem. E sta seria a primeira vez que conduzo uma maxi-trail e que melhor sítio para fazer do que por África? The “X” marks the spot.
Para quem percebe pouco de motos mas vai ao cinema ou vê televisão, a BMW 1150GS assemelhase à escolhida (1150GSa) por Ewan e Charlie na mediática viagem à volta do Mundo, Long Way Round.
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fronteira
visĂvel Ferry Algeciras—Septa
“
A noite cai sobre umas centenas de carros, motas, furgonetas e caravanas acotoveladas na entrada para Marrocos MarrocosXcape’2010
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Souq em Marrakesh
U
ma frota de o ito po rtu gueses e um nav egado r galeg o desem barca em África. Nem há seis séculos, ao longo da costa atlântica, semeávamos fortalezas no caminho das rotas desejadas a S ul. H oje, seis corcéi s com o fe rro das melho res casas da Bavária, investem por terra.
Para atravessar a fronte ira de Septa, entrand o em Marrocos, é necessár io mun ir-se de Passaporte, Dec laraç ão de importaçã o temporár ia da viatura e doc umento d a Imigração. Se estiverem par a aí virados, po de ser prec isa a Carta Verde d o segur o da viatura.
À volta, levantam-se paredes móveis com quase dois pisos de altura. F urgonetas carregadas até ao co cu ru to e re ch eada s de co lchõe s, móv eis e roupa entre o s quais se adiv inham pares de olhos, de gente soterrada pela carga. Ao ar carregado de gases dos motores diesel antigos acresce a tensão do momento, debaixo de um chinfrim de buzinas e protestos. À volta de cada ca rro o s “faci litado res lo cais” es gri mem argumentos, tentando seduzir os v iajant es p a ra acei ta rem aj uda no p ro ce ss o d e preenchimento dos papéis e carimbos de passaportes. E sta é a nossa p rimei ra nego ciação de uma frontei ra africana. N a nos sa cabe ça pu lulam imagens preconcebidas e ecoam as palav ras de cautela da v isão de um europeu do continente v izinho, enorme e assustador.
“
Viajar com quem já passou por várias fronteiras em Á frica alivia o momento. Lev amos instruções claras: quem trata dos papéis é o líder do grupo e dev em ser recu sadas quai sque r ajudas. E nquanto v ou empurrando as motos ao longo da fila lenta e barulhenta, dou por mim a imaginar como se ria se e stiv esse por mi nha conta. E sforço-me por abso rv er tud o o que está acontecer, aqui e lá à frente junto às cabines onde ho rdas de gen te agitam papéis de várias cores. N o guichet o guarda impávido vai escrev endo num e noutro papel. A í, as batidas dos ca rimb os soam a pancadas de M oliè re numa ence nação africana que se an uncia à plateia impaciente. M ais ao fundo, o cenário assemelha-se a uma feira; trouxas de roupa espalhadas pelo chão, bagageiras e capots abertos. Tipicamente, as motos não são consideradas veículos suspeitos, t alv ez pe la l imi ta da ca pa ci dad e de ca rga , incompatív el com contrabando expressiv o. S eguimos v iagem 90 minutos depois de chegarmos à aduana, rumando a Tétouan o nde nos espera o primeiro jantar africano. Olhando para t rás fica a sen sação que nos teríamos safado melhor aceitando a ajuda local…
batidas dos carimbos soam a pancadas de Molière numa encenação africana que se anuncia à plateia impaciente.
Em cima, dentro do Ferry Algeciras-Septa; à direita em Algeciras, à espera do embarque
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brochura
quimérica
“
Que espaço reservo na bagagem para os sonhos?
Construo secretas esperanças romantizadas.
Merzouga, lago seco
S
empre que iniciamos uma v iagem vejo com ambiguidade a democratiza-
Dar a volta ao Mundo no Festival da Música Sagra-
ção do turismo e a extrema facilidade
da;
de acesso a mananciais de informação sobre tudo e de qualquer parte do M undo.
Conduzir pela estrada dos
P or um lado permite-nos antever, planear e ganhar a ilusão de algum controlo das nossas
Subir até ao cimo do Atlas;
v iagens. Por outro, cria em nós expectativas
Regatear nos souks de
geradas por conteúdos de uma riqueza gráfica profissional, ilustrando cenários fabulosos. A
Fés;
verdade? P rovavelmente, nunca os recrearemos e, aos poucos, consubstancia-se uma sen-
Fna;
sação de desconforto e desilusão.
Mil Kasbahs;
Deambular em Jemaa El
Percorrer a estrada ao longo do Sahara;
S emanas antes, vagabundo por uma liv raria.
Vagabundear por Essaoui-
Tropeço num liv ro que se poderia chamar Car-
ra;
pe D iem. E sta edição “M ake the M ost of Your Time on E arth” da editora Rough G uide colige
Aprender a arte da Escrita de Viagens em Marrakesh;
um milhar de experiências que revelam o nosso planeta fantástico. Marrocos promete-me
Rapar o fundo de uma Tajine;
onze. Arrastar-se pelas dunas na Maratona das Areias; Pernoitar com uma família
H esito…
em Merzouga.
secretas esperanças romantizadas de vir conseguir dormir em tendas no deserto profundo, de negociações animadas e coloridas com um mercador, irremediavelmente perdido num souq profundo numa qualquer medina. O u de acordar com o S ol num riad de S herazad, para tomar um sumo de laranja
Continuar e arriscar-me à decepção durante a av entura por África ou fechar o liv ro ilustrado e partir com tábua rasa, receptivo ao que esta tiver para me dar durante a experiência que será só minha?
Make the Most of Your Time on Earth: a Rough Guide to the World: 1000 Ultimate Travel Experiences (Rough Guides Reference Titles; ISBN 9781843539254, 2007)
na. E m Tétouan, adormeço na minha primeira noite em África com o desfile de imagens prometidas. Marrocos, v estido a rigor e com uma língua de mercador, promete e eu, sem regatear, escolho acreditar.
A carne é fraca e dou por mim a percorrer av idamente o índice, enquanto o queixo descai gradualmente a cada sugestão. C onstruo
fresco, acabado de sair do hammam à esqui-
Ensha’llah: Esta expressão terá dado origem ao “Oxalá” português.
“
Marrocos, vestido a rigor e com uma língua de mercador, promete e eu, sem regatear, escolho acreditar.
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azul fresco
“
Se Marrocos fosse uma banheira, Chefchaouen seria a torneira da ĂĄgua fria
Pormenor de porta em Chefchaouen
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A
o passearmos pelas ruas azuis de Chefchaouen, sentimos como se houvéssemos entrado na casa de alguém.
Olhamos para a esquerda e vemos um padeiro que coloca a massa de khoobz no forno a 2 metros de nós. À direita, uma criança brinca sentada num poial. As ruas são estreitas e a frescura não se esgota na côr: sente-se em todas as sombras e sabe bem. A magia de Chefchaouen parece desaparecer na enchente de turistas. S e passarmos os olhos pelas imagens que ilustram este texto, não v emos ninguém. D eixem-nos v iver esta fantasia, ainda que seja apenas nas fotos.
Imagino Chefchaouen sem turistas...
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cubo de açúcarem
chá de menta A
pro ximamo -no s de F és desenhan do círcu los cada v ez mais apertados, como um predador
que av alia a sua presa, incerto se o balanço de força s lhe se rá fav oráv el. A estrada ci rcu lar
passa pelas muralhas sobranceiras ao vale sobre o qual a cidade se espraia, densa e cinzenta. As paredes ruídas da fortificação fazem lembrar um bolo inglês, cor de laranja com passas. A o pôr-do-sol milhares de andorinhões negros, de asa em foice, ceifam os céus amuralhados.
Tinturaria em Fés
“
Em terra de medinas, quem tem GPS é Rei.
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Aproximamo-nos de FÊs [‌] como um predador que avalia a sua presa
À
chegada, F és é confusa e barulhenta. O GPS marca um ponto no miolo da M edina, onde dev eríamos dei xar as motos passar a noite. M as nenhum de nós parece acredi-
tar que será ali. À nossa volta já não há automóveis; apenas motocicletas, bicicletas e carros de fruta. Ah! E muita, muita gente. O parque sugerido é melhor descrito como um amontoado de aparelhos nos quais os locais se deslocam, a si e à sua carga. Tudo num lote onde estaria em tempos um edifício. À primeira v ista nem parece haver espaço. A s nossas motos de anca larga rev elam-se desajeitadas. D epois de confirmado que estáv amos onde dev íamos, com a ajuda dos locais, rapidamente se abrem espaços e todas as motos estão encaixadas. “ Ligo o alarme?”, “ Lev amos as malas da moto?” são perguntas que parecem fazer sentido, ainda que uma sirene de alarme seria inútil à distância de centenas de metro onde dormiríamos. O caminho até ao Riad apenas é percorrível a pé, pelo labirinto de ruas estreitas. E . havia feito o reconhecimento prévio e regressa com um ar desanimado “A ver se gostam ”, confidencia-nos no seu
portugalego div ertido: “Tem um bocado de humidade. P odemos sempre ir v er outros.” N ão é exactamente o que me apetecia ouvir neste momento, carregado com as malas e cansado de um dia em estradas exigentes. Chegamos à porta, discreta. C onforme se abre e subimos a escada escura apercebo-me que eu havia caído numa partida: o riad impress iona. M al entramos na sua área cent ral, uma fonte parece ser a única coisa que se ouv e, sem o rebuliço exterior. E spera-nos um chá de menta e outro de orégãos, serv idos nas mesas baixas do átrio luminoso.
Como servir o chá de menta No tabuleiro encontrarão um bule e os copos ornados com arabescos. O bule
A hora seguinte passámo-la num subir e descer de escadinhas, esbanjando fotos em recantos e pormenores. N ão disfarçámos que
metálico contém as folhas de menta fresca em abundância e água muito
nos sentíamos naquele momento como crian ças, marav ilhados com a “sorte”. Curiosos? E spreitem a secção “Confortos”.
quente. A quantidade de açúcar varia bastante de casa para casa. Pessoalmente, os que mais gostámos não tinham praticamente nenhum açúcar.
N
a idade mé dia, F és era co nside rada a cidade ma is asseada, mu ito f rut o da á gua canal izada e banh os
O primeiro copo é cheio levantando o bule cada vez mais alto. O chá desse
públicos construídas pelos A lmoráv idas.
copo volta ao bule, cumprida a função de misturar melhor os sabores. Só
Contudo, asseio não é a primeira palav ra que nos v em
então se servem os demais copos, com o mesmo aparato.
à mente. N ão quando a percorremos, numa manhã cinzenta, pelas ruelas escuras e estreitas no acesso às tinturarias.
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Balak! Nas ruas da Medina, os condutores de mulas gritam “Balak!”, algo que se assemelhará a “Abram Alas!” que vem aí carga.
Trabalhos duros numa cidade com um ritmo impressionante
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tâmara em
ostra árida
BMW HP2
A ponta da lança.
A rigidez do banco contrasta com a flexibilidade do itinerário. Em cima dela a cabeça de E. não pára, sempre à procura daquele trilho especial que trará sorrisos e dentes arreganhados.
BMW 1200GS
V. e J.A. conduzem a moto que define o mercado. Electrónica um pouco acima de q.b. e sensações em barda.
Zouala, Vale do oued Z iz
“
Da superfície, não se adivinha. Como num recife de coral, é mergulhando no oásis que as maravilhas se revelam.
BMW 1150GS
O canário do grupo canta na voz barítona de um boxer, pugilista de outros tempos. Em cima dela, viajamos nós 2.
Honda Varadero
Como se não bastasse ser a mais pesada do grupo, ainda leva 2 às costas e
BMW 800GS
R. viaja na irmã mais pequena da família GS, ainda que sem o motor boxer.
uma top-case. M&A fazem um surpreendente trabalho com os pneus mais cardados sempre que é necessário sair da estrada. A. é a camerawoman de serviço, em filme ou fotografia.
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De manhã, o Sol descobre o oásis.
Vista sobre o oásis de Amelkis
“
De moto chegamos onde vale a pena estar
Em cima: Em Zouala Em baixo: no final do caminho para Amelkis
A
aridez da paisagem domina e nem a altitude do A tlas parece dar hipóteses
O S ol boceja e a chegada ao descanso adivinhase, mas olhando em volta nada parece existir.
ao v erde. E m longas rectas chegamos
ao A lto A tlas das suaves curvas, serpentes cinzas em encostas secas e despojadas.
F oi num mergulho abrupto por um caminho de terra, que desco brimos o que oued Ziz tem andado a fazer nos últimos séculos. U m oásis ladeado de palmeiras e v egetação luxuriante, longo e cultiv ado à sombra fresca das árv ores.
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Ă€s portas de Rissani
P ara os marroquinos, a afirmação social derradeira é prover a família; partilhar esta com estranhos v indos de longe é, aqui, uma prova maior da infinita abertura que este povo é capaz. A travessamos as portas, recortadas em espessas paredes de um metro, revestidas a adobe numa mistura de palha e barro. Asseguram a protecção do calor cá fora regulando a temperatura constante ao longo do dia. O ambiente é escuro, pautado por iluminação fraca. P ercorremos os corredores da casa, primeiro quase a tacto, enquanto os olhos se adaptam à escuridão. As portas sucedem-se, escondendo áreas interiores onde se dispõem famílias em enxergas
Navegando com o vento lateral até Merzouga
espalhadas pelo chão. À entrada, fileiras de sapatos revelam quem por lá está. O aroma da lenha queimada deixa adiv inhar que o khoobz não tarda a sair do forno caseiro. Chegará às nossas mesas baixas, onde em almofadas de lã bordadas em cores v ivas, nos esparramamos de copo de chá de menta quen te na mão. O espaço de refeição é comunitário e por ele circula o anfitrião, sentando-se em conversas descontraídas. A o centro, uma ampla clarabóia sustenta-se em 8 pilares rev estidos por tapetes coloridos, e por ela, antev emos o luar
Em cima: À saída de Zouala Em baixo: ventos laterais fortes a caminho de Merzouga
intenso da noite. E nquanto adormeço com os sons do oásis, saboreio na boca Zouala, tâmara recheada e env olta na calda aquecida pelo calor da recepção marroquina. D e manhã, mal o S ol descobre o oásis, levanto-me para descobrir que se veste de outras cores e sons no varrer do pátio com folhas de palmeira, nas roupas brancas estendidas ao vento, nos bons-dias trocad os. N um tro nco de palmei ra de itado no chão en cont ro o assento onde rabisco uns traços no caderno negro e anoto ideias soltas, sensações. S uav e, o vento traz o aroma do feno e das canas cortadas, ainda húmidas. D a cozinha chegam outros aromas, com as delícias do pequeno-almoço.
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por entre os
dedos
“
Sahid segue descalço, guiando quatro dromedários ao vestíbulo do Sahara.
Merzouga, Erg-chebbi
cdefق اij
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“
A ideia do silêncio do deserto só para mim, empurra-me.
O
azul das vestes de Sahid combina na perfeição com o deserto em final de dia, pleno de contraste. Na cadência
da passada e do cimo do dr omedário, o deser to parece gr itar “E daí? Já me consegues ver? ”. N as costas o S ol ameaça desaparecer e as nossas sombras chegarão ao destino muito antes da caravana. P elo caminho, Hensel, o dromedário à minha frente larga pistas, redondas e luzidias, as quais G retel, a minha montada, segue para encontrar o caminho.
Merzouga, Erg-chebbi - Final de dia
Como preparar um lenço tuareg Passo 1
Junto à testa, enroscar o lenço algumas
Cubra a cabeça com o lenço dobrado em dois
vezes. De seguida, dar a volta à cabeça
longitudinalmente. O comprimento que deixa atrás depende do uso que lhe vai dar. No
entalando em si próprio.
deserto, deve ficar maior, o suficiente para puxar para a frente da cara e assim poder
1
Passos 2 e 3
Este é o passo que conv ém não fal har.
cobrir a boca e o nariz como protecção para vento e areia.
Passo 4
No deserto ou para proteger do vento e
2
poeiras, basta puxar a extremidade solta para a frente.
N a chegada ao sopé da duna e à voz de comando de Sahid, surpreendentemente firme e adulta, o imponente animal ajoelha-se, mas quem reza somos nós. O ângulo não inspira segurança enquanto fitamos o chão, imaginando-nos em desespero pendurados de um pescoço longo de pêlo hirsuto. P ersigo a minha sombra, sofregamente até ao cimo da duna pela encosta banhada em longos raios de S ol. N o cimo, a aresta viva da duna separa o quente do frio, o laranja do negro, as duas faces de um deserto, enigmáti-
-§Um mosquito irritante, cirandando ao meu ouv ido, redime-se: “É manhã e E rg-chebbi pôs-se bonita só para ti”. Levanto-me com os primeiros raios de S ol, v isto-me e à pressa saio do quarto com os chinelos numa mão e a máquina noutra. N o bolso das calças, leves castanhas, o meu
mim empurra-me.
co e mortífero.
H oje a pé, procuro seguir as pistas deixadas
N ada me hav ia preparado para o deserto, nem
por H ensel, mas o v ento lav ou o deserto do trilho de migalhas, desaparecidas no manto de
para o apelo suicida para mergulhar neste mar de v agas gigantes. Ao longe ecoam rugidos de motores, a face negra da democratização do turismo. “Amanhã cedo o deserto será só meu!”, prometi-me.
3
caderno negro de campo e algumas minas de grafite. A ideia do silêncio do deserto só para
areia fina e laranja forte. Mal posso, expulso os chinelos e deixo correr os grãos finos pelos dedos dos pés, enquanto percorro as cumeadas ondulantes das dunas.
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“[…] s rar d horas do des apena cabe fo
Tento resistir ao apelo de me entregar e rebolar pela encosta da duna íngreme…
H abituados a fazer as perguntas e a conduzir a v enda, parece desarmado quando lhe dev olvo outras questões. “O que fazes
…mas não consigo ev itar. Regresso ao hotel à “beira-duna” plantado, seguindo a linha de poços artesianos, dispostos como pedras a marcar o caminho. Ao longe uma bicicleta inflecte na minha direcção, impelida por um rapaz de 12 anos. A parenta 18 na idade do deserto. A perspectiv a de v ender a turistas acordou-o com o galo às 5h30. P ercorre nov amente os trilhos ao longo dos hotéis, com uma mochila carregada de fósseis, quartzos e “mãos-de-Fátima”. “ Bonjour, m’ssieur.”, avança. “Ç a v a?”
tão cedo pelas dunas”, “E M erzouga? Como é v iver aqui ao longo do ano?” ou “C omo te chamas?”. “M ohammed”, responde. N a sua v ida apenas conhece E rfoud até onde a sua bicicleta lhe permite chegar numa jorna de trabalho. D ivertido, comenta “Durante o Verão não há turistas.” M as do N orte vem gente para se enterrar durante duas horas na areia do deserto, ficando apenas com a cabeça de fora. “C ura
o reumático.”, assegura-me. Já
andar de dromedário...
Merzouga, Erg-chebbi ; à direita, a subida para cima do dromedário; em cima poços artesianos
se enterdurante na areia serto […] as com a eça de ora”
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de dentes
arreganhados E
m M arrocos nem todos os quilómetros nascem iguais. E ainda bem. Q uer seja para chegar a um lago mais inacessível, seco ou molhado, ou para ganhar uma v ista sobre um oásis no cami-
nho para Tinerhir. C onseguir v encer uma ligação sobre pedra solta ou atrav essar uma linha de água em areia molhada e seixos rolados, faz a diferença. Tem sabor de av entura, condimentada com adrenalina. Recordo o receio e hesitação em atirar a moto por uma estrada de pedra solta. Lembro a satisfação com que venci o obstáculo e a v ista sobre o Oásis, recompensa redundante. S obre o meu ombro regressa Carlos, mestre da poeira: “Q ue o acelerador esteja contigo”, diria. E acelerando negoceio o regresso à estrada, impelido pela confiança. “Mas afinal, quem é que manda aqui?”.
Merzouga, Erg-chebbi (foto: A.)
“
De pĂŠ sobre os estribos, cotovelos para fora e dentes arreganhados, movemo-nos em colunas de poeira
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“Os terrenos encharcados, sulcados em regos profundos de lama […]”
“
Sinto ainda os grãos de areia nos dentes.
A caminho do lago dos noivos de Imilchil (foto: A.). À direita no lago seco em Merzouga (fotos: A.)
S into ainda os grãos de areia nos dentes no caminho sobre Zouala. E nquanto respiro o
sulcados em regos profundos de lama, hav iam dificultado a progressão. O carro de
vale rasgado do Ziz, corre uma lágrima que
apoio teve inclusiv e bastantes dificuldades
podia ser dos ciscos de poeira do caminho.
para v encer o obstáculo. D este então, o escasso mês solarengo não
À noite, todos os calhaus são pardos D urante este Inv erno, o caminho de terra de Asilah até ao local de descanso hav ia sido um problema. Os terrenos encharcados,
antecipav a melhor fortuna para a nossa carav ana. E ssa perspectiva assombrava-nos, sov ados por uma ligação longa, feita sobre auto-estradas ao longo da costa A tlântica marroquina. D epois de tomar o pôr-do-Sol com cheiro lusitano na cidade fortificada, baixamos a cabeça e ligamos as luzes.
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A entrada para o caminho desconhecido faz-se de noite. O início parece fácil e, nas sombras projec-
pedras e das grandes. E estão por toda a parte. “Ok! Já percebi”, digo para mim mesmo: “Desv ia-
tadas pela luz alta dos faróis da moto, o caminho
te dos torrões. ”.
parece suave, pontuado por torrões. Não preciso de galgar com a roda da frente mais do que o primeiro torrão para perceber que o não são. S ão
P oucos metros mais e o terreno parece dizer “Ai escapaste ao meu exército de torrões?” com um esgar mefistofélico. “E ntão toma lá subidas em pedra solta!”. U ma v ez mais o holograma de Carlos, meu sensei na lama e pó, bichana-me ao ouv ido: “E m pé e inclina-te para a frente!”. Obedeço e abraço com os joelhos o depósito amarelo da BM W. “E sses braços curv ados! Descontrai”, corrige Carlos. Lá atrás, a minha pendura poderia estar a entoar rezas.
Cair faz parte… D esde que não se desfaça em partes. (M erzouga. Foto: A.)
No regresso do caminho do lago dos noivos de Imilchil (foto: MotoXplorers)
“ E toma lá uns regos!” grita histérico, o terreno. N esta fase, é difícil adiv inhar se estamos próximos de chegar. O caminho encaixa-se em morros de areia e arbustos, escondendo o horizonte imaginado apenas. P or um lado o saber que tudo o que se
Um após outro, cruzamos o portão do hotel, meta da etapa. E nquanto tiramos os capacetes trocamos sorrisos nerv osos entre nós. “Até foi div ertido”, recordamos olhando para trás. Nesse momento alguém ainda diz “Amanhã a descer é que vai ser
bonito.”
atrav essou ao caminho é ultrapassáv el dá-me força. P or outro, o desconhecido mantém-me alerta.
O terreno desconhecido à noite assusta, como
E é nesse estado que o terreno parece segredar às
num quarto de criança repleto de monstros imagi-
rãs: “A cham que lhes diga das passagens a vau, no riacho?”. E stas respondem “P siu, que já aí vêm. ‘Bora ver.”. O coaxar desaparece à nossa chegada
nários. C om o nascer do S ol este quarto ilumina-se e as sombras transformam-se em árvores, as des-
ao riacho. E ste galga a estrada, aqui e outra vez
cidas íngremes em suaves pendentes, e as pedras continuam pedras, imóveis.
acolá. É bom que a água não esconda uma surpresa menos simpática.
“
Esses braços curvados! Descontrai.
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Pri mei ro plano: A burra de ca rga ; Ao fundo uma ca ra va na de mulas de ca rga Ca minho pa ra os lagos de Imil chil
Pendura no carro de apoio: agora não há desculpas… … glup!
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genuĂno
anonimato
“
Imilchil (foto: R.)
Beni-Mellal nĂŁo vem no nosso guia e provavelmente nem em qualquer outro
E
isso será porventura a melhor qualidade desta cidade. E scolhemo-la como ponto de descanso não pelo que prometia ser
mas, simplesmente, por estar a meio de dois pontos, Imilchil e Marrakesh. E é quando temos as guardas e expectativ as em baixo que algo de marcante pode acontecer.
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I
Em baixo: à porta de uma venda de “refrescos”, sente-se o ritmo de Marrocos.
milchil e o caminho até Beni M ellal está no extremo oposto de sítios como C hefchaouen. O que encontramos é autêntico e sentimo-nos únicos em cada nuvem de crianças pastores que nos rodeiam as motos.
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rolar em
marrocos A
o longo do Vale do Todra as vagas não são apenas de um rio. Atravessamos as aldeias
por entre pequenas multidões de crianças, descalças. P or momentos fora de si, abando-
nam os rebanhos e acorrem à estrada para, numa excitação gritada, saudar a carav ana. E stendem as mãos a procurar um cumprimento. E stão tão próximos de nós que chegamos a recear atingi-los com uma mala ou um retrov isor. O vislumbre das faces dos rapazes e raparigas denuncia sorrisos de orelha a orelha.
Junto a Abdoula a caminho de Beni-Mellal (foto: A.)
“
Conduzir uma moto por Marrocos é uma experiência marcante e nem sempre pelas razões que anteciparíamos.
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S
e paramos a lgu res somo s env olv idos numa mole de miúdos. N a berma da estrada, paramos perto de A bdoula, uma minúscula aldeia
encaixada no v ale fértil do Todra. U m, mais temerário, cumprimenta-nos estendendo a mão e, pelo
caminho, sente o calor do motor. N um instante, uma mão-cheia de crianças aquece agora as mãos nas cabeças do motor da nossa moto. O frio da altitude gelalhes as mãos enquanto seguram os bordões com que encaminham as ovelhas. E sta rota está fora do roteiro mais turístico de M arrocos. Q uando abran damos numa trav essia de al deia, arri scamo -no s a lev ar uma crian ça às cav alitas das malas da moto. Literalmente. E abrandar o ritmo é mais do que prudente: é bom senso e civ ismo. O estado das ruas é i rregu lar e, n o dob rar de uma esquina, o nde hav ia um troço de terra compactada há agora uma cratera, coberta de água lodosa.
Em cima» todos querem andar de moto em Marrocos, até as ovelhas. Em baixo» idade mínima para conduzir burro: 5? À direita» Pastores junto ao lago da noiva de Imilchil
“
uma mão-cheia de crianças aquece as mãos nas cabeças do motor
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A
ntes de encetar a viagem não imaginava que esta s trav ess ias fa riam pa rte dos momentos mais cautelosos. P elo contrá-
rio, rolar dentro das cidades era antecipado como algo que inspira ria cuidados redobrados. As ruas movimentadas engolem-nos numa polme de motociclo s e mobile ttes. C ircular em grup o é um desafio acrescido. C etáceos num mar de sardinhas, os nossos movimentos são calmos e previsív eis e à nossa v olta, fluem cardumes prateados. Os cruzamentos funcionam. Visto de dentro intimida a prin cíp io, mas sob rev iv e-se numa coreo gra fia ensaiada em cada intersecção de ruas. As buzinas crepitam por toda a parte, inúteis. O truque parece ser preocupa r-se apenas com o que es tá à nossa frente; o que v em atrás fará o mesmo. Recomendação: ignorar os espelhos. O Inverno aqui, como havia sido no “vizinho” P ortugal, foi bem regado. A s linhas de água ganharam força e ao longo da frente de batalha com as estradas, as baixas são muitas. N estas condições, viajar em cima de um veículo todo-o-terreno é uma opção que potencia a experiência. A trav essar estradas a vau, negociar sequências de buracos e derrocadas, percorre r extensões de obras. Tudo isto seria um aborrecimento noutras circunstâncias, mas não em cima de uma moto destas. O ritmo diminui e o sorriso aumenta. N os finais de dia, o cansaço físico é ev idente. M as o sentimento é de um dia bem passado, recordado à volta de uma mesa de amigos.
Na praça Jemma El Fna onde um pirata (à esquerda) parece estar interessado na nossa caravana.
Um dia bem passado, recordado à volta de uma mesa de amigos
“
Sentimo-nos cetáceos num mar de sardinhas
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confortos U
ma das vantagens em v iajar com quem já tem alguma quilometragem de M arrocos é esta. Alguns dos segredos
do negócio da M otoXplorers residem na magia que estes sítios nos transmitem. E só apetece dizer:
“ Mas onde é que eles desencantam estas pérolas?”
Quarto no Riad em Fés
Fés
N A R O
o imaginário ocidentalizado, um mundo árabe é feito de locais como o Riad onde dormimos em Fés.
casa de hóspedes de Zouala é uma história árabe diferente.
Zouala
Marrakesh
Asilah
egressamos aos detalhes que fazem um riad. Neste, apetece morder tudo. nosso quarto é feito de grandes blocos arredondados, caiados de branco e pintados de vermelho forte.
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N
o imaginário ocidentalizado, um mundo árabe é feito de locais como o Riad onde dormimos em Fés. Sentimos nele a sabedoria de séculos de arquitectura inteligente. E m três lados as paredes
protegem o quarto lado, fresco e verde, onde o jardim e o elemento de água recordam um Feng S hui mais costumeiro no outro lado do planeta. E m v olta de um pequena praça interior e protegida do exterior, dispõem-se as div isões. P or amplas portas, em madeira escura talhada, com 3 metros de altura entra-se no quarto. Também viradas para o átrio, as janelas são ornamentadas por retorcidos de ferro, protectores dos vitrais azul, rosa, laranja e verde. Pesadas cortinas de lã forradas a cetim dourado roçam o rendilhado mosaico em losangos azuis e brancos. E quando erguemos a cabeça para o Céu a agradecer, descobrimos que no cimo, a 5 metros de altura, está um tecto de madeira indescritív el.
Riad em Fés
O nosso quarto desenvolv ia-se no primeiro andar, ao longo da aresta maior do rectângulo que é o riad. D uas magnânimes janelas e uma porta de castelo separam-nos da varanda que percorre os demais dois quartos. A cama é coberta por uma rede mosquiteira em V inv ertido, recolhida contra a cabeceira. N a outra ponta do quarto o lounge, onde se esparramam dois sofás e uma mesa baixa, sobre um tapete de lã de cores diversas.
Em cima» pátio interior central; Em baixo» pormenor da janela do quarto ao nascer do Sol; À direita» pormenores dos trabalhos manuais.
Por fora, ĂŠ apenas uma porta numa rua insuspeita.
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Longe de opulências, aqui procura-se a simplicidade dos tons terra
À direita, o Nascer do Sol sobre Zouala. Em cima: os primeiros raios da manhã sobre as escadas e o quarto. Em baixo, o espaço de refeições comunitário.
A
casa de hóspedes de Zouala é uma história árabe diferente. Partilha com os riads a sagaz escolha de materiais e linhas arquitectónicas. S ão as suas paredes com
um metro de espessura, forradas a adobe (mistura de palha e lama crua de barro), que lhe garantem variações mínimas na temperatura durante o dia. N os seus corredores escuros não adiv inhamos se lá fora é dia ou noite. O s sons da rua permanecem na rua. Os quartos são pequenos e despretensiosos. Nas div isões maiores dormem famílias em enxergas simples no chão. A família que nos recebe partilha dos espaços com os convidados. A s refeições são num espaço único comunitário. Os ingredientes são os da horta no oásis, em produção própria. A s cortinas e mantas são tecidas pela família.
zouala
Maison d’Hôtes Zouala
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“ E
Allahu Akbar!
m M arrakesh, a carav ana separa-se em dois grupos, cada um em seu riad. Mais pequeno que em Fés, optimiza o espaço e deliciamo-nos em detalhes. E estão por toda a
parte: a maçaneta de uma porta; o rebordo de um espelho rendilhado à medida do nicho que ocupa; a moldura de um quadro; uma tina de estanho martelado; candeeiros todos diferentes, como numa competição entre artesãos; a cabeceira da cama. N a casa de banho por detrás de uma franja, dois roupões pendurados em sentido à espera de serem chamados ao serv iço. Um chá de menta é servido na cómoda e bem decorada sala de estar Knab al ghazal é um biscoito em forma de corno de g azel a, com amênd oa e ág ua de flor de lara nje ira. Allahu Akbar significa “Al á é maior q ue qual quer d escriçã o”. Adhan é o chamamento muçu lman o à oração o brig atória, ento ado ci nco vezes por dia p elo mu ezzin a p artir do min arete na mesqu ita. Relem bra três crenças b asil ares: 1) não há n enh um Deus q ue nã o Alá; 2) Maomé é o profeta, mens age iro de Al á; 3) a Salvaçã o ating e-se pe la ob edi ênci a à palavr a de Alá atrav és da oraç ão.
no piso térreo. P ara completar o bouquet de relaxamento, uma travessa de Knab al ghazal. D ormimos com a porta aberta e, de manhã, acordo com “Allahu Akbar” , começo do Adhan. S ão seis da manhã e o primeiro instinto seria praguejar. M as à minha frente, no recorte da porta de arco em ogiv a, apercebo-me de onde estou. E nos próximos minutos, absorv o cada versículo como música. Uma pequena curiosidade: ao nascer do S ol, o chamamento acrescenta a frase pertinente: “A l-salatu khayru min an-naw m”. Relembra assim aos mais preguiçosos que a oração é
Riad em Marrakesh
melhor que dormir.
À esquerda: em cima, vista a partir do átrio central; em baixo: pormenor da janela das escadas. À direita: porta do quarto em ogiva; sala de estar na escadaria; sala de estar no piso térreo; pequeno-almoço no terraço.
Regressamos aos detalhes que fazem um riad. Neste ,apetece morder tudo.
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Yabbadabbadou!
Na suite “nupcial�, moldada na pedra em contornos arredondados
A
casa de hóspe des em A silah parece escav ada na pedra. O nosso quarto é feito de grandes blocos arredondados, caiados de branco e pintados de v ermelho forte. S obre eles, uma cama sem estrutura, composta apenas pela enxerga.
O telhado de colmo cobre a estrutura do tecto em v igas feitas de troncos de pinho. P ara lá chegar, e como tudo o que vale a pena, exige esforço.
asilah MarrocosXcape’2010
Maison d’Hôtes Asilah
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C
or ação de Marrakesh, dela partem as ar tér ias cheias de vida, em souqs oxi-
histórias que, em língua de trapos, coreografa uma qualquer av entura milenar de significados estranhos.
genados de cor e cheiros.
À noite, enquanto deambulo pela praça imagino o que fica por dizer sobre Jemma el F na. P odia descrever o exotismo das serpentes de boca cozida ou dos macacos, cansados de tantas cabeças rosadas de máquina fotográfica ao pescoço, ou do contador de
Bancas de comida na Jemma el-Fna
Absorto, perco-me no fumo das bancas de comida que dá ao ambiente um adicional misterioso. E m cada uma, vestidas de branco, línguas de camaleão caçam as moscas que são os v isitantes, locais e estrangeiros. Brandem idiomas a gosto, na esperança de convencer a presa das virtudes culinárias da sua banca. Os mais hábeis conseguem ser bastante físicos.
contadora de histórias
“
Jemma El Fna conta-nos histórias em cada banca e roda de gente
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De noite ou de dia, hรก uma praรงa pronta para servir e animar
Bancas de sumo de laranja, ovos cozidos, grelhados, tecidos, sapatos, ...
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A
o v iajar de moto cada centímetro de estrada, alcatrão ou terra, cada rio que atrav essamos, cada garganta que nos engole viaja bem perto connosco.
E quando regressamos, permeáveis aos v entos, aromas, gestos e sorrisos, trazemo-los dentro. P enduramos o fato, pejado de recordações e mosquitos e pensamos “N ão o v ou lav ar já… ainda não.”. É assim que Marrocos fica connosco: entranhado.
Ao longo do lago dos Noivos em Imilchil (foto: MotoXplorers)
“ “
É assim que Marrocos fica connosco:
entranhado
Marrocos é um teimoso grão de areia
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