E book investigações sobre o agir humano

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ISBN 978-85-7621-091-7

Galileu Galilei Medeiros de Souza Francisco de Assis Costa da Silva (organizadores)

Investigaçþes sobre

O Agir Humano



Investigações sobre

O Agir Humano



GALILEU GALILEI MEDEIROS DE SOUZA FRANCISCO DE ASSIS COSTA DA SILVA (Organizadores)

Investigações sobre

O Agir Humano AUTORES Antônio Júlio Garcia Freire Elder Lacerda Queiroz Francisco de Assis Costa da Silva Francisco Ramos Neves Galileu Galilei Medeiros de Souza Guilherme Paiva de Carvalho Martins Jean Henrique Costa José Renato de Araújo Sousa Josaílton Fernandes de Mendonça José Teixeira Neto Lindoaldo Vieira Campos Júnior Lourival Bezerra da Costa Júnior Marcela A. Pereira Cabrita Marcos de Camargo Von Zuben Maria José da C. Souza Vidal Tássio R. Pinto de Farias Telmir de Souza Soares Edições UERN Mossoró, 2014


Copyright © Edições UERN, 2014.

Todos os direitos reservados e protegidos pela Lei 9.610 de 19/02/1998. Nenhuma parte deste livro poderá ser reproduzida ou transmitida, sejam quais forem os meios empregados, sem a autorização prévia e por escrito dos autores. Editoração: Galileu Galilei Medeiros de Souza Projeto Gráfico/Capa: Galileu Galilei Medeiros de Souza. Foto da capa: Paul Cézanne (Les joueurs de cartes, 1890-1892) Revisão: Francisco de Assis Costa da Silva

Catalogação da Publicação na Fonte.

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Investigações sobre o agir humano. / Galileu Galilei Medeiros de Souza, Francisco de Assis Costa da Silva (Orgs). Mossoró: UERN, 2014. Edições UERN 394 p.

ISBN: 978-85-7621-091-7

1. Filosofia. 2. Investigações filosóficas. 3. Agir humano. I. Souza, Galileu Galilei Medeiros de. II. Silva, Francisco de Assis Costa da. III. Título. UERN/BC

CDD 100

Bibliotecária: Elaine Paiva de Assunção CRB 15 / 492 Direitos em língua portuguesa reservados às Edições UERN BR 110 — Km 46 — Rua Prof. Antônio Campos, s/n. Bairro Costa e Silva CEP: 59.633.010 Caixa Postal 70 — Mossoró/RN. Fone: (84) 3315.2177 www.uern.br edicoesuern@uern.br


SUMÁRIO

APRESENTAÇÃO 1. A LÓGICA DA VIDA MORAL COMO CHAVE DE COMPREENSÃO DA FILOSOFIA COMO TAREFA Galileu Galilei Medeiros de Souza

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2. CIÊNCIA E CRIAÇÃO CIENTÍFICA Josaílton Fernandes de Mendonça

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3. LINGUAGEM E CULTURA EM WITTGENSTEIN Guilherme Paiva de Carvalho Martins

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4. O PROBLEMA DA CULTURA EM DA INTERPRETAÇÃO DE PAUL RICOUER Flávio José de Carvalho 5. SOBRE RAZÃO E SENTIMENTOS MORAIS Maria José da C. Souza Vidal 6. ECOLOGIA, AMBIENTE E VIDA: UM OLHAR SOBRE A QUESTÃO AMBIENTAL E SUAS REPERCUSSÕES ÉTICAS Francisco de Assis Costa da Silva 7. A IDEIA DO CAPITALISMO ESTÉTICO: DO FETICHISMO DA MERCADORIA À EXPLORAÇÃO DO SENSÓRIO Elder Lacerda Queiroz 8. ASPECTOS DO CONCEITO DE ALIENAÇÃO EM ROUSSEAU E MARX Telmir de Souza Soares

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Investigações sobre

O Agir Humano 9. NOTAS SOBRE O TEMPO LIVRE EM THEODOR W. ADORNO Jean Henrique Costa; Marcela A. Pereira Cabrita; Tássio R. Pinto de Farias

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10. A TEORIA REVOLUCIONÁRIA DA VIOLÊNCIA PURA A PARTIR DE BENJAMIN: PODER, VIOLÊNCIA E ESTADO DE EXCEÇÃO NA HISTÓRIA. 249 Francisco Ramos Neves 11. DE PACE FIDEI: PRESSUPOSTOS PARA “A CONCÓRDIA E A PAZ PERPÉTUA” NAS RELIGIÕES José Teixeira Neto

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12. POLÍTICA, EDUCAÇÃO E FORMAÇÃO MORAL NAS LEIS DE PLATÃO José Renato de Araújo Sousa

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13. PENSAMENTO PURO E IMAGEM NO FÉDON DE PLATÃO Lourival Bezerra da Costa Júnior

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14. A NATUREZA DA ALMA E A CAUSA DAS DOENÇAS ANÍMICAS: UMA INTRODUÇÃO SOBRE O SIGNIFICADO DA MORTE EM LUCRÉCIO Antônio Júlio Garcia Freire 15. NIETZSCHE: O TRÁGICO COMO AFIRMAÇÃO DA VIDA Marcos de Camargo Von Zuben; Lindoaldo Vieira Campos Júnior

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APRESENTAÇÃO

Onde começa a filosofia? Com essa pergunta Maurice Blondel iniciava um artigo publicado em 1906, Le point de départ de la recherche philosophique1, em que procurava falar sobre as características de uma investigação filosófica. Eram tempos de entusiasmo e preocupação. As ciências positivas iam “de vento em popa”, enquanto a filosofia e, especialmente, a ética e a metafísica, experimentavam uma crítica sem precedentes. Desta vez, os seus adversários tinham se tornado parte majoritária nas discussões. Não tardou, todavia, para que também a ciência positiva tomasse assento na tragédia contemporânea da crise da razão, alargada como crise civilizatória. Mas, que relação há entre a pergunta sobre o início da filosofia e essa tão anunciada crise? Uma relação estreita, antes como hoje. Para Blondel, a questão sobre onde começa a filosofia não se resolve no referimento a sua aparição cronológica. Diversamente, ela se desenvolve como investigação do que seja a filosofia, incluindo, de seus motivos. Extravasando o ambiente cultural da Grécia antiga, a compreensão a respeito desses motivos parece não ser dada de uma vez por todas, mas evoluir de acordo com as expectativas e desafios de cada época. A resposta sobre o que a filosofia tem a oferecer parece se modificar sem, contudo, deixar de se referir a uma mesma intuição originária, a saber, ligada à compreensão de nossa relação com o ser. Nesse sentido, a filosofia é um programa de conhecimento para o qual é imprescindível a justificação das próprias condições. Como esse olhar da filosofia sobre ela mesma se expressa em tempos de crise da razão? A razão descobre-se em crise — causa da outra crise, civilizatória — exatamente quando a filosofia descobre-se faltosa em sua justificação como programa de conhecimento.

BLONDEL, Maurice. "Principe élémentaire d'une logique de la vie morale”. In: ______. Ouvres complètes II: 1888-1913. La philosophie de L'Action et la crise moderniste. Paris, PUF, 1997, p. 365-385. 1


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O Agir Humano Não é sem “razão” que na história dos quatro mais significativos movimentos filosóficos contemporâneos — a saber, a filosofia analítica, a fenomenologia, o marxismo ocidental e o estruturalismo2 —, com o endereçamento de seus respectivos movimentos de “superação” (seus “pós...”), desenvolveram-se pesquisas que se pautam fundamentalmente pela investigação da natureza da filosofia, de sua legitimidade como programa de conhecimento. Nelas se procura identificar os limites lícitos do emprego da razão especulativa, como instrumento de mediação entre o mundo da existência, da vivência concreta, e o discurso dos especialistas. A filosofia contemporânea apresenta-se eminentemente como indispensável exercício de preservação da originalidade da prática e do mundo da vida contra o perigo da “alienação resultante das intervenções objetivadoras, moralizantes e estetizantes das culturas de especialistas”3. Observava Maurice Merleau-Ponty, em Les philosophes Célèbres,4 que não há modo de enfocar o que importou e o que importará em filosofia sem partir de si e, assim, sem encarar a tradição de um ponto de vista próprio e localizado. Partindo do estado atual em que se encontra a filosofia, é bem certo que a ela cabe uma tarefa mediadora, profundamente ligada à leitura de sua própria tradição e, mais extensivamente, da tradição cultural na qual ela se nutre. Pensando na centralidade contemporânea desse enfoque — dessa tarefa mediadora —, esse livro reúne alguns textos de pesquisadores e estudiosos ligados à filosofia e a um projeto comum e concreto de criação de um programa de pós-graduação nessa área, junto à Universidade do Estado do Rio Grande do Norte, voltado fundamentalmente para o estudo da história da filosofia e da filosofia da cultura. O presente livro é composto por onze artigos que procuram traçar orientações investigativas a respeito de importantes problemas relacionados com a função interpretadora da filosofia em relação ao agir humano. Cf. HABERMAS, Jürgen. Pensamento Pós-metafísico. 2ª. Ed. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 2002, p. 12. 3 HABERMAS, idem, p. 27. 4 Cf. MERLEAU-PONTY, Maurice. “L’Existence et la dialectique”. In: _____. Les philosophes Célèbres. Paris, Éditions D’Art Lucien Mazenod, 1956. (Collection la Galerie des Hommes Célèbres), p. 288-291. 2

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O Agir Humano Em A lógica da vida moral como chave de compreensão da filosofia como tarefa, o Professor Galileu Galilei Medeiros de Souza apresenta uma leitura do escrito blondeliano referido no início dessa apresentação, Le point de départ de la recherche philosophique, como um lugar privilegiado para se entender a proposta de prepor à especulação filosófica e à lógica abstrata, que a substancia, uma lógica e função mais originais. Desse modo, a filosofia será evidenciada como tarefa e exercício de reintegração entre reflexão e prospecção (experiência vivida) e não simplesmente como um programa de representação da realidade. Em seguida, em Ciência e criação científica, o Professor Josaílton Fernandes de Mendonça problematiza a interpretação tradicional da ciência positiva — que a entende como sendo portadora de uma racionalidade superior, dotada de neutralidade e autonomia —, para sugeri-la alternativamente como um programa de conhecimento ligado à prática ou à atitude de seus cultores — o que implica que ela incorporará tanto valores pessoais e sociais, quanto elementos heurísticos. Na mesma direção geral, de aproximação entre discurso e prática, o Professor Guilherme Paiva de Carvalho Martins propõe, em Linguagem e cultura em Wittgenstein, um texto cujo foco é o exame da relação entre a construção de valores morais e a formação da identidade cultural. Nesse escrito se discute o modo como Wittgenstein interpreta o uso da linguagem, migrando de uma apresentação do discurso válido como sendo restrito à proposição ao entendimento de que, qualquer que seja o discurso, ele será sempre tanto um resultado da prática, quanto a causa de seu enriquecimento, pela elucidação do sentido da prática que o uso compartilhado da língua propicia. Essa reviravolta interpretativa permitirá entender a afirmação do primado da cultura em relação ao uso da língua e a relativização de sua vinculação a um uso científico universalmente normativo.

Tratando de examinar alguns pontos centrais do famoso ensaio de Paul Ricoeur a respeito da psicanálise de Freud — Da Interpretação: ensaio sobre Freud —, o Professor Flávio José de Carvalho, em O problema da cultura em “Da interpretação” de Paul Ricoeur, destaca outra importante reviravolta ligada à consideração 9


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O Agir Humano da cultura, a saber, a de como a psicanálise freudiana migrará de uma perspectiva fisicalista a uma outra metacultural, tornando-se cada vez mais filosófica. Nesse capítulo, analogamente (com suas proximidades e discrepâncias) ao que se mostrará no seguinte — Sobre razão e sentimentos morais —, evidencia-se o esforço para se falar de uma certa função “reguladora” da cultura. Na sequência, assim, a Professora Maria José da Conceição Souza Vidal, em seu artigo Sobre razão e sentimentos morais, traz-nos indicações a respeito de como, a partir da filosofia de Ernst Tugendhat e diante da necessidade de se pensar uma ética compartilhada (“dever ser”) para se assegurar o futuro da humanidade (“querer ser”) em uma época de crise da razão, é possível apostar na edificação do compromisso ético sobre a base da adesão a uma comunidade moral, onde se cultivam sentimentos morais de apreciação e desaprovação. Não distante dessas preocupações éticas, o Professor Francisco de Assis Costa da Silva, em Ecologia, ambiente e vida: um olhar sobre a questão e suas repercussões éticas, discute o problema paradoxal da necessidade e da falta de um consenso moral em torno da inadiável questão ambiental, que enfrentamos em nossos dias. O iminente risco de potencialização catastrófica da atual problemática ambiental leva ao imperativo não só de repensar a relação entre o homem e o meio ambiente, mas da assunção concreta de novos estilos de vida. É preciso modificar o estilo de vida humana se quisermos garantir a possibilidade de sobrevivência das gerações futuras. O problema é que não há um consenso fácil a esse respeito, desde que a crise da física aristotélica repercutiu na autoridade moral das religiões. Situação esta agravada pela insistência da mentalidade consumista e capitalista de nosso tempo. O artigo do Professor Elder Lacerda Queiroz, A ideia do capitalismo estético: do fetichismo da mercadoria à exploração do sensório, por seu turno, procura enfocar o cultivo, por parte do capitalismo mais contemporâneo (pós-industrial), do apelo estético e fetichista da mercadoria, voltado para provocar os sentidos e, assim, o consumo. Para a interpretação de mundo apregoada por essa mentalidade capitalista “ser” equivale a “aparecer”. O que não se destaca e não provoca o sensório parece perder consistência. A 10


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O Agir Humano exploração capitalista se estende, desse modo, do abuso do trabalho para o abuso dos desejos e dos estímulos sensoriais, mantendo, porém, sua meta intocada: o aumento do lucro. Uma alienação mais sutil, mas sempre uma alienação. O exame da noção de alienação, tão caro à tradição ligada ao marxismo ocidental, é proposto também pelo Professor Telmir de Souza Soares, em Aspectos do conceito de alienação em Rousseau e Marx. Como o próprio título do artigo sugere, ele evidencia e compara as noções de alienação presentes no pensamento filosófico-político desses dois autores. Por essa estratégia, colhe proximidades e diferenças, mas, e isso é essencial no texto, nunca oposições. Com efeito, a oposição entre os conceitos de alienação nos dois autores parece inevitável. Primeiramente, porque a noção de alienação em Rousseau, caracterizada como a necessária renúncia de cada um dos cidadãos ao seu bem individual em prol do bem coletivo, implica que, para esse filósofo, a alienação individual seria uma condição sine qua non para estabelecer o contrato social e, assim, a garantia do bem comum. Ademais, o conceito de alienação em Marx — aplicada tanto à expropriação do trabalhador em relação ao fruto de seu trabalho, quanto à anulação de si mesmo que é consequência do processo capitalista de trabalho — não admitiria nenhuma interpretação “benévola”, como aquela que ocorre em Rousseau. Não obstante esses “pretextos”, seja porque em Rousseau há também uma interpretação negativa da alienação, especialmente enquanto alienação da liberdade e do bem comum de um povo, seja porque em Marx há espaço para se pensar em um trabalho cujos frutos e atividade não são alienantes, apesar de comportarem uma transferência de benesses, não se poderia considerar tais interpretações simplesmente como opostas. O texto pretende justificar essa leitura. Notas sobre o tempo livre em Theodor W. Adorno, do Professor Jean Henrique Costa, em colaboração com dois orientandos, Marcela A. Pereira Cabrita e Tássio R. de Pinto Farias, traz-nos uma interessante exposição, evidentemente baseada na filosofia de Adorno, a respeito de uma outra alienação, a nós perturbadoramente contemporânea, ligada dessa vez ao tempo livre. Na sequela de Adorno e da teoria crítica, seremos guiados por essa leitura a tomar consciência do quanto nosso

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O Agir Humano tempo — dito — “livre” encontra-se “aprisionado” a uma visão alienante do trabalho. Também ligado ao exame de noções tradicionalmente caras à teoria crítica, encontraremos em nosso livro o artigo do Professor Francisco Ramos Neves, A teoria revolucionária da violência pura a partir de Benjamin: poder, violência e estado de exceção na história. O texto, partindo do pensamento de Walter Benjamin e de autores a ele próximos, apresenta e opõe conceitos diferentes de violência, a saber, os de uma violência instrumental, a serviço unicamente da constituição e manutenção das estruturas capitalistas de poder e modos de vida a elas ligadas, e a violência pura, ou seja, o despertar e insurgir-se dos historicamente oprimidos contra a violência dos opressores, tendo como fim o resgate da dignidade e dos valores humanos. Mais exatamente, o texto procura evidenciar a violência pura como sendo uma “contraviolência”. Embora os capítulos sobre filosofia moderna e contemporânea sejam majoritários em nosso livro, o leitor poderá também se beneficiar de interessantes estudos sobre filosofia antiga e medieval, voltados ao exame do agir humano, como indicamos a seguir. Assim, o Professor José Teixeira Neto nos oferece em seu texto, De pace fidei: pressupostos para “A concórdia e a paz perpétua” nas religiões, uma análise da produção filosófica de Nicolau de Cusa, que já no século XV, em razão de circunstâncias ainda hoje relevantes — ligadas ao choque entre as três grandes religiões monoteístas (Cristianismo, Judaísmo e Islamismo) —, dedicava-se à difícil tarefa de pensar e propor fundamentos racionais para a paz entre povos de bases cultural-religiosas conflitantes. Será mostrado como, para o Cusano, a proximidade das religiões, pela unidade fundamental de referência ao divino, não pode ser racionalmente sustentada como motivo de divisão e disputa. Em outras palavras, como a unidade fundamental das religiões e do próprio gênero humano seja mais original que a pluralidade de suas manifestações e precise ser mais bem enfocada para a preservação da concórdia. Outros três textos são voltados para a apresentação de estudos de filosofia antiga. O Professor José Renato de Araújo Sousa, da Universidade Federal do Piauí, convidado a participar do nosso livro, enriquece-nos com o seu Política, educação e formação moral nas Leis de Platão. 12


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O Agir Humano O artigo faz um exame da ideia presente em algumas obras platônicas — que se complementam —, especialmente as Leis, a respeito da importância fundamental do processo educacional (paideía) para a vida da pólis. Sua leitura sugere diversas temáticas obrigatórias em qualquer discussão sobre um projeto educativo civilizatório, como a da inseparabilidade da educação do corpo e da alma, da assunção da educação como uma responsabilidade do estado, do respeito às fazes naturais de evolução do educando e da finalidade da educação orientada para a formação moral do cidadão visando o bem da pólis. O caráter abrangente do texto é precioso por possibilitar ao leitor um apanhado geral sobre as discussões platônicas a respeito da educação, sempre tratada em vinculação com a vida cultural na pólis, o que para Platão é a própria vida política. Também de “estirpe platônica”, Pensamento puro e imagem no Fédon de Platão é-nos oferecido pelo Professor Lourival Bezerra da Costa Júnior como uma estimulante leitura do Fédon, centrada na apresentação desse diálogo como uma obra de ontoepistemologia. Em outros termos, ao invés de entender a referida obra platônica simplesmente como um tratado sobre a imortalidade da alma, o texto mostrará que a investigação a respeito da imortalidade da alma presente no Fédon é sim um recurso para se falar sobre o conhecimento verdadeiro. Esse, por seu turno, entendido como reciprocidade entre um processo distintivo ou negativo de cognição e o estado cognitivo inato . Já em A natureza da alma e a causa das doenças anímicas: uma introdução sobre o significado da morte em Lucrécio, o Professor Antônio Júlio Garcia Freire trata da relação entre corpo e alma (como anima e como animus) e das consequências dessa relação para a edificação de uma vida moralmente saudável, sob a orientação do filósofo epicurista Lucrécio. É interessante observar a perenidade da problemática relacionada à consideração da composição do corpo animado, de como o ponto de vista epicurista se distingue da maioria das interpretações antigas e, especialmente, do modo como Lucrécio sustenta uma proposta ética, enquanto bem viver e preparação para a morte, desvinculada de pressupostos religiosos, procurando evidenciar que não seria necessário esperar uma redenção além-morte para dar sentido à vida.

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O Agir Humano O texto que segue, embora de filosofia contemporânea, está perfeitamente vinculado a esse esforço, caro à filosofia desde seus inícios, por dar sentido à vida e, por isso, o dispomos nessa específica posição do texto. Nele, os professores Marcos de Camargo Von Zuben e Lindoaldo Vieira Campos Júnior, não sem pouca arte poética e literária, resgatam a discussão do trágico em Nietzsche, procurando mostrar como essa noção é abraçada pelo filósofo de Sils-Maria para caracterizar a sabedoria dionisíaca. O trágico será, assim, apresentado como uma proposta de afirmação da vida: transvalorar todos os valores significa ser artisticamente (tragicamente) criativo para criar os próprios. Em suma, os artigos reunidos em nosso livro trazem propostas de leitura e interpretação bastante atuais, porque consideravelmente reveladoras a respeito da própria natureza da filosofia. Dito isso, não nos resta senão desejar ao leitor que sua familiarização com os textos aqui presentes seja tão edificante quanto foi escrevê-los, organizá-los e, finalmente, publicá-los. A esse respeito, gostaríamos de sinceramente agradecer aos nossos colegas coautores pelo empenho e a audácia no projeto e na realização que aqui dividimos. Galileu Galilei Medeiros de Souza Francisco de A. Costa da Silva (Organizadores)

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1 A LÓGICA DA VIDA MORAL COMO CHAVE DE COMPREENSÃO DA FILOSOFIA COMO TAREFA Galileu Galilei Medeiros de Souza 1

O presente capítulo constitui um ensaio no qual procuraremos traçar as linhas mestras para a interpretação do escrito Principe élémentaire d’une logique de la vie morale 2 de Maurice Blondel como uma das principais chaves de leitura da filosofia da ação, que, por sua vez, é responsável pelo que julgamos ser uma verdadeira revolução filosófica, ao introduzir a compreensão da filosofia como tarefa. Esse escrito blondeliano corresponde ao memorial apresentado por Maurice Blondel quando do Congresso Internacional de Filosofia, realizado em Paris no ano de 1900. 3 Trata-se de um estudo que retoma e desenvolve uma passagem da conclusão da Action (1893), p. 470-474, sobre a relação entre lógica da ação e lógica reflexiva (ou intelectual), de forma que essa última é apontada como uma derivação da primeira. Esse texto é expressão do esforço de Blondel por colocar-se ao interno do ponto de interseção entre pensamento e ação, ou seja, na vida. A partir daí, ele pretenderá extrair o princípio elementar4 Doutorando do Programa Interinstitucional de Pós-graduação em Filosofia das UFRN/UFPB/UFPE. Professor do departamento de filosofia da UERN (E-mail: galileumed@yahoo.com.br). 2 A partir de agora nos referiremos apenas como Principe élémentaire. 3 Fazendo parte das atas do referido congresso, o texto será publicado somente em 1903. 4 Como nos diz Álvaro Pimentel, o qualificativo “élémentaire” é uma noção de derivação kantiana: “Blondel utiliza, em seu título, uma distinção 1


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O Agir Humano que preside o desenvolvimento, ao mesmo tempo solidário e original, das ideias e dos atos. Esse princípio será o alicerce de uma dialética que domina ideias e atos sem anular ou sacrificar um ao outro, superando o dualismo que aí pode ser insinuado.5 consagrada por Kant, na Critica da Razão Pura, em que o ‘elementar’ diz respeito a um princípio universal e necessário, válido, portanto, para toda moral em geral” (PIMENTEL, 2008, p. 81). 5 A dialética blondeliana será marcada por uma lógica toda própria, que determinará inclusive o tipo da argumentação a ser utilizada, que nesse caso será elênctico. A esse respeito são relevantes os esclarecimentos de Marc Leclerc presentes em seu sintético e interessante texto denominado La Destinée Humanaine, especialmente no capítulo que trata do estudo do princípio de não contradição em Aristóteles, onde a retorção é a noção utilizada para designar o tipo de argumentação elênctica (LECLERC, 2000, p. 25-32). Seu procedimento é basicamente o seguinte: procurando-se negar um argumento, acaba-se por ser obrigado a aceitá-lo. Leclerc assume como referimento teórico para seu estudo sobre a retorção, proposto em La Destinée Humanaine, o texto do próprio Aristóteles (Metafísica, Livro IV), explicitado por Tomás de Aquino (Redarguitio) e precisado tecnicamente por Gaston Isaye (“La justification critique par rétorsion”. Revue Philosophique de Louvain, 52 (1954), p. 205-233. Reproduzido posteriormente em L’affirmation de l’être et les sciences positives (ISAYE, 1987, p. 122146)). Um exame mais pormenorizado desse conceito pode ser encontrado na obra conjunta escrita por Marc Leclerc e Dominique Lambert: Au coeur des Sciences: une métaphysique rigoureuse (LAMBERT; LECLERC, 1996). Nessa obra, será afirmado sobre a retorção, entendida como um método filosófico: “au fin du siècle dernier Blondel l’a concrètement mise en œuvre dès L’Action de 1893: au XXe siècle, la méthode transcendantale de l’école maréchalienne et ses prolongements dans l’analyse dialectique de Lonergan reposent essentiellement sur cet argument de la ‘rétorsion’, systématiquement étudié par Isaye” (LAMBERT; LECLERC, 1996, p. 16-17). Posteriormente, o próprio Marc Leclerc (1998) utilizará a expressão confirmação performativa para tentar significar a argumentação elênctica ao estilo blondeliano, sem ligá-la à disposição teórica exclusivamente negativa e pejorativa que o termo retorção parece evocar. Simone D’Agostino, ainda que reconheça os méritos desse sintagma, por reequilibrar de maneira positiva a retorção, não o considera completamente adequado para significar o tipo de argumentação elênctica blondeliano, por justamente sacrificar a dimensão de negação que também é essencial no discurso filosófico blondeliano. D’Agostino preferirá o sintagma “privação positiva”, por sua aptidão a conservar seja o aspecto positivo, seja o negativo da argumentação elênctica blondeliana: “en exprimant la positivité nécessaire et immanente à l’opération même de négation” (D’AGOSTINO, 2003. In: LECLERC, 2003, p. 224-225, nota 41).

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O Agir Humano Para tanto, Blondel procurará considerar três perguntas: a) que obstáculos obscurecem o entendimento do problema que diz respeito à relação entre pensamento e ação e conduzem a uma sua compreensão dualista? b) Como é possível e mesmo necessário, por sua própria natureza, que esse problema seja posto de um modo diferente de como o faz os que sustentam o dualismo? c) Em que sentido uma lógica moral não só possui um princípio próprio, mas ainda como esse princípio constitui a pedra fundamental da lógica geral? Esse percurso nos elucidará porque será preciso prepor à lógica especulativa, constituída a partir do ponto de vista da negação e da oposição (da apóphasis e da antífasis), uma lógica da vida moral, constituída a partir do ponto de vista da privação (da héxis e da stérēsis), erigindo as bases para o que será a reinterpretação da filosofia como uma tarefa e, consequentemente, para uma reafirmação da metafísica.

1. ESCLARECIMENTO DA DIFICULDADE DA QUESTÃO. Principe élémentaire parte da consideração de um dado aparentemente pacífico, ou seja, de que é comum conceber que nosso agir e nosso pensar estejam unidos entre si. De fato, é bastante evidente para nós que nossas decisões possam ser levadas a termo em nossas ações. Isso pode ser facilmente constatado: agora quero mover meu braço, decido por fazê-lo e o movo. Assim, não só meus atos parecem estar unidos entre si por meio de um vínculo, que permite que sejam identificados justamente como meus atos, mas também, pelo menos aparentemente, esse mesmo vínculo serve de ligação entre meu pensar e minha conduta. Que aparentemente as coisas estejam assim é facilmente demonstrado. No entanto, não é fácil explicar a solidariedade entre 17


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O Agir Humano nossos atos e desses com o pensar. De alguma forma, o liame ou vínculo aí está e pede para ser interpretado e erigido como verdade necessária (Cf. Principe élémentaire, p. 368), entretanto, a lógica interna que governa o encadeamento dessas solidariedades não é fácil de ser definida. Como explicar a relação de cumplicidade que se cria entre meu pensar e minha ação? Essa questão se torna ainda mais problemática quando consideramos que essa não é uma ação qualquer, mas uma ação voluntária: como explicar a síntese que é a ação voluntária, concomitantemente enraizada em nossa materialidade corporal e na idealidade de nossa consciência? E, ainda mais, como explicar que na ação voluntária essa cumplicidade se traduz também em normas morais? Como explicar a influência dos ideais morais sobre nossa ação? Teriam eles alguma justificação científica? Essas são questões tão antigas quanto a própria filosofia. Entretanto, a seu respeito não conseguimos estabelecer progressos substanciais. Mas, por quê? Segundo Blondel, porque se insiste em colocar a questão de modo inadequado. Posto apenas como o propõem o naturalismo e o formalismo moral, esse problema é insuperável. Sem provas ou refutações definitivas, naturalismo e formalismo moral se opõem, fundando-se mutuamente pela alimentação de um dualismo insuperável para seus próprios pontos de vista, constituindo sua força e sua fraqueza. De fato, para preservar a liberdade e a autonomia do agente, o referido formalismo sustenta que a moral não possui qualquer vinculação com a materialidade dos fatos, sendo um a priori da razão ou ainda um fato da razão. Para sustentar a cientificidade moral, o naturalismo interpreta a moral como um fato da natureza, sendo que a mesma natureza ou uma entidade ontológica da natureza é considerada como princípio supremo e determinante do bem ou do mal. Ora, por um lado, sem o dualismo entre materialidade e formalidade da moral, nem o naturalismo, nem 18


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O Agir Humano o formalismo moral se sustentariam. Por outro, em razão dele, não podem se estabelecer cientificamente. Procuraremos a seguir entender três razões que levam a esse dualismo.

1.1. Primeira iluminação do conflito: a oposição entre o apriorismo racional do fato moral e seu enraizamento empírico. Primeiramente, é necessário dizer que nem todos os atos do homem6 são morais, mas apenas os voluntários. Chamaremos os atos voluntários de ação moral ou fato moral. Ademais, é necessário também precisar que o problema do dualismo entre naturalismo e formalismo moral não diz respeito a todo ato de homem, mas apenas aos atos humanos, ou melhor, às ações morais. Será a partir da ação moral que estudaremos o modo como se apresenta a aparente dualidade entre a vinculação material dos atos e sua vinculação racional. Nessa direção, partamos de uma afirmação que procuraremos justificar: o fato moral é concomitantemente ideia e corpo. Essa é a razão de sustentação do dualismo e a razão porque sua superação é necessária. De uma parte, definindo sua moralidade pela intenção formal que o anima, o fato moral possui certa transcendência material. Sua dialética se orienta na direção do reino ideal das deduções racionais, sendo ele uma forma objetiva do a priori da razão. Dessa forma, sob esse aspecto, o fato moral define sua moralidade a partir do ideal moral que lhe serve de parâmetro de juízo e do qual ele é uma realização. As razões do formalismo moral se apoiam nesses dados. De outra parte, justamente por ser 6 Adotaremos a distinção entre ato humano e ato de homem. Ato humano é a ação humana voluntária. Ato de homem é qualquer ação humana, voluntária ou não.

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O Agir Humano realizado, o fato moral se encarna na engrenagem das forças físicas e psicológicas, sendo impossível não reconhecer que ele é por elas mais ou menos condicionado (materialmente condicionado). E é por essa razão que o naturalismo sustenta suas pretensões explicativas. Ora, isso já é suficiente para nos dar uma primeira pista a respeito de como essa questão precisa ser elucidada: uma vez que o fato moral é tanto ideal quanto material, não se pode interpretá-lo como o resultado de uma evolução alcançada pela simples influência das deduções racionais. O fato moral se dá e evolui dentro da vida dos homens e dos povos. É por essa razão que ele não poderá ser atingido considerando apenas as suas representações abstratas. Por sua natureza positiva, por sua encarnação e concretude, é preciso estudá-lo a partir de métodos adequados, ou seja: ...sem incluir outros métodos a não ser os métodos positivos de observação e indução, os únicos métodos aptos a esclarecer pouco a pouco suas relações universais com o ambiente onde ele se reproduz, os únicos métodos capazes de estudar as repercussões mesmas que, a partir de nossos atos, reverberam infinitamente até as consciências, até nossa consciência, nossa consciência para a qual se impõe sempre um tipo de lógica factícia, de falsa sinceridade ou de índice pessoal e subjetivo (Principe élémentaire, p. 369).

Enfim, a submissão do fato moral a estudos que se baseiam em métodos incapazes de colher a sua riqueza sintética, incapazes de preservar no fenômeno da moralidade concomitantemente a sua imanência e a sua transcendência material, é a primeira raiz do conflito que opõe naturalismo e formalismo moral e que leva ao dualismo entre lógica e moral (Principe élémentaire, p. 369): “Que se penetre em fundo esta oposição e se verá talvez que, longe de ser atenuada, ela chega mesmo a implicar ou que a ideia de uma moral 20


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O Agir Humano exclui a ideia da lógica ou que a ideia da lógica exclui a ideia da moral”. Mas, isso ainda não é tudo a se dizer a respeito da oposição entre lógica e moral.

1.2. Segunda iluminação do conflito: a contradição não se dá nos fatos. Explicada uma primeira razão do dualismo, partamos para a elucidação de outra, relacionada dessa vez com a noção de contradição. O sentido dessa noção parece ser o de que o real não lhe diz respeito, porque é impossível que qualquer contradição possa ser dada nos fatos. Com efeito, a “não contradição” parece ser a lei descritiva da própria realidade: Ora, suprimir este princípio, suprimir também pelo mesmo movimento toda oposição lógica. O que é dado é dado e isto é tudo, sem nenhuma determinação de contraditório ou de contrário: homogeneidade do determinismo, heterogeneidade qualitativa ao infinito, é a fórmula da realidade empírica (Principe élémentaire, p. 369).

Não obstante, para a moral, os fatos reais e concretos são dotados de uma oposição radical, devendo ser absolutamente qualificados, existindo uma distância infinita entre um fato bom e um fato mau. Com efeito, o papel da moral é o de fazer que os fatos sejam a ocasião de uma opção decisiva entre bem e mal. Desse modo, evidencia-se uma segunda raiz do conflito entre formalismo e naturalismo, obrigando a tomada de uma decisão: é preciso salvar a moral ou a lógica. Para salvar a moral, reconhecendo a possibilidade de se dar uma oposição radical nos fatos, entre fatos bons e maus, é preciso condenar a lógica da não contradição e reconhecer que elementos contraditórios podem ser 21


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O Agir Humano dados simultaneamente e validamente. Para salvar a lógica, é preciso manter firme a impossibilidade da contradição em relação aos fatos. Para tanto, será preciso ou assumir que a moral seja inteiramente deduzida a partir de seu elemento formal e indiferente a qualquer materialidade dos fatos, ou assumir que seja suprimida toda vida individual e ato particular, como se não passassem de ilusões: “quietismo ou budismo” (Principe élémentaire, p. 369). Em suma, “Isto significa que a moral, no sentido popular ou normal da palavra não existe mais” (Principe élémentaire, p. 369). Aprofundemos essa contraposição.

1.3. Terceira iluminação do conflito: oposição radical entre lógica e moral. Uma última raiz da oposição entre lógica e moral pode ser determinada a partir do que foi discutido a pouco. Para que exista lógica é preciso que haja uma lei de necessidade inflexível que forje a natureza, oriente a reflexão e sustente a ciência. Consequentemente, para ser científica, a moral precisaria ser constituída a partir de leis determináveis e constantes. Todavia, para que exista moral é preciso que haja “contingência no mundo, liberdade no homem” (Principe élémentaire, p. 369), em suma, flexibilidade e indeterminismo. Portanto, a conciliação entre a liberdade e o determinismo aqui exigidos parece impossível. Como já foi implicado anteriormente pelas outras raízes desse conflito, ou se sacrifica uma ou outra, moral ou lógica, ou se afirma que possuem domínios separados e incomensuráveis. Não obstante, em razão da natureza sintética da ação moral, essa conciliação parece ser necessária. Não só a moral não seria nada “de fato” se o homem fosse absolutamente determinado ou se a vida teórica, onde ele encontra 22


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O Agir Humano sua própria autonomia, escapasse-lhe, mas nem mesmo poderia ser algo de “direito”, ou seja, poderia ser justificada racionalmente, se houvesse um conflito insanável entre as exigências da dialética especulativa (ciência) e as do imperativo prático (moral). De fato, como algo puramente racional teria qualquer vigência prática? Aporia essa insolúvel quando implica em justificar uma coação sem qualquer espécie de contado. De modo semelhante, se esse conflito fosse insanável, a lógica não realizaria sua ambição de possuir um domínio universal, “...de englobar todas as formas de pensamento e de vida em sua unidade científica, como elas são unidas na realidade; (...) de esclarecer (...), o determinismo subjacente a todos os empregos possíveis da atividade especulativa e prática” (Principe élémentaire, p. 370). Do domínio lógico deveria ser excluído tudo o que não diz respeito ao puramente racional. A ciência e a lógica teriam definitivamente embargado seu acesso a qualquer objetividade. Em suma, esse dualismo implicaria em um aniquilamento mútuo: nem a moral, nem a lógica saberiam se sustentar isoladamente. De difícil conciliação, moral e lógica só se dão caso se deem concomitantemente. Examinada a raiz das dificuldades que lhes opõem, partiremos para a exploração de sua relação, mostrando como ela precisa ser problematizada em outros termos.

2. O QUE REALMENTE ENVOLVE A QUESTÃO DA RELAÇÃO ENTRE AGIR E PENSAR. A aporia com a qual estamos lidando ao investigar a questão da relação entre pensar e agir — a saber, o dualismo entre lógica e moral — embora pareça insuperável para o esforço reflexivo, não se dá na concretude dos fatos. O conflito entre lógica 23


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O Agir Humano e moral pode e mesmo exige ser resolvido para a ciência, porque ele é resolvido na vida. Na vida, a ação voluntária é ao mesmo tempo ideal e material, sujeita à lógica e à moral. A solução científica, todavia, é realmente impossível caso se considere moral e lógica com se o faz habitualmente, ou seja, como significando entidades fixadas pelo pensar. O próximo passo a ser dado por nossa investigação filosófica destina-se a revelar o verdadeiro sentido da relação que se estabelece entre moral e lógica, pensando essa relação de modo alternativo a como se faz habitualmente, mas em estreita consonância com os dados da realidade fenomenalmente a nós acessíveis, de modo a tomar o que é dado por si, sem a ele nada acrescentar ou tolher. Para tanto, seguindo as indicações blondelianas, começaremos pelo estudo da lógica reflexiva, mais especificamente das noções lógicas, objetivando explicitar o que realmente implicamos quando as formulamos. Procuraremos responder a três questionamentos: a) como tomamos consciência das noções lógicas e qual a sua real gênese? b) Como e por que isolamos as noções lógicas de suas origens vitais? c) Como essas noções lógicas se dirigem à ação e servem à vida moral?

2.1. A gênese das noções lógicas. Umas das raízes, a pouco consideradas, da dicotomia entre pensar e ação dizia respeito à noção de contradição, ou seja, ao fato de que ela não se dá nos fatos. Isso significa que a lei expressa pelo princípio de não contradição não advém por abstração dos fatos, porque esses “não podem nem a produzir, nem a sugerir, nem mesmo ser a ocasião direta ou indireta de sua aparição na consciência” (Principe élémentaire, p. 371). Mas, o que dizer a respeito de outros princípios ou noções como o de identidade? 24


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O Agir Humano De modo semelhante à lei ou ao princípio de não contradição, o princípio de identidade não se realiza no mundo, nem de forma a priori, nem a posteriori: “é um princípio acósmico” (Principe élémentaire, p. 371). Com efeito, o princípio de não contradição, como o princípio de identidade ou qualquer outro princípio lógico, funcionam como leis formais, aplicáveis a uma infinidade de casos especiais, ao modo da aplicação de um juízo universal a casos particulares. Assim, por exemplo, o princípio de identidade pode ser enunciado, ao modo leibniziano, da seguinte forma: “os indiscerníveis são idênticos”. Ora, a aplicação desse princípio à realidade deve significar que toda vez que entidades sejam tão semelhantes a ponto de não poderem ser distintas absolutamente, elas serão idênticas. Entretanto, como ocorre com o princípio de não contradição, mais uma vez é impossível que a lei expressa no princípio de identidade seja dada factualmente. É impossível que os fatos possam reproduzi-la concretamente porque é impossível que se deem entidades, no plural, indiscerníveis. O que se diz do princípio de não contradição e do princípio de identidade se pode dizer de qualquer outro princípio lógico: leis lógicas não se dão nos fatos. A lei lógica que necessariamente me obriga a entender que o sentido da afirmação “a maçã é vermelha” se oponha ao de outra afirmação como “a maçã é verde” não ocorre nos fatos. A maçã é o que é e isso é tudo. Os fatos são simplesmente, sem nenhuma iniciativa opositiva. Os juízos dizem respeito não aos fatos, mas a nossas afirmações e negações que pretendem dizer respeito aos fatos. Não obstante, os fatos são por nós representados e não o podem ser sem o uso de leis lógicas. Desse modo, por um lado, não há como negar que a nossa consciência existe e que ela intenciona algo além de si mesma, independentemente de que esse algo se realize de fato ou não. Por outro, a consciência atual não existe senão como ação de produção de sentido, regulada por leis que 25


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O Agir Humano permitem a sua inteligibilidade. Em verdade, produzir sentido é perceber inteligivelmente, é sair da apatia e da indiferença em relação aos dados percebidos, é organizar os fenômenos, desde seus estados mais primitivos, de modo lógico. Em suma, a consciência é o lugar de intersecção entre as leis do pensar e o que é pensado (fenômenos). Melhor ainda, porque existe consciência, existe uma relação necessária entre as leis do pensar e o que é pensado. De fato, a consciência é como que a síntese de ambos. Mas, não acabamos de afirmar que os princípios lógicos são acósmicos? Como entender que o que é pensado — os fenômenos — e o que parece ser a lei do pensar — a lógica — se relacionam e se relacionam necessariamente já que a consciência existe? Como no seio da heterogeneidade qualitativa dos fenômenos empíricos, a que a consciência reconhece em suas luzes e trevas, introduzem-se as noções lógicas de contraditório, contrário, outro, relativo e tantas outras possíveis? Uma resposta a essa questão não pode ignorar a complexidade dos dados do problema aí envolvido. Afirmar simplesmente que as noções lógicas são a condição a priori do pensar, deixa o dualismo que estamos procurando superar intocado e o acesso materialidade do fato moral comprometido. Afirmar que os princípios lógicos são abstraídos da realidade, a posteriori, como representação de leis que existem concretamente, contraria o fato de que tais princípios não se dão nos fatos. Para explicar como as noções lógicas se introduzem na experiência, no nosso viver, é preciso considerar o ponto de contato entre pensar e vida. É preciso partir do ponto onde o que é pensado é reconhecido como imanente à representação que dele se faz e, ao mesmo tempo, como transcendente e mais rico que essa representação, já que ela não mostra dele senão aspectos, parcialidades. É preciso partir do ponto onde se reconhece que a parcialidade do pensar é experienciada. É preciso partir da vida, é 26


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O Agir Humano preciso partir da consciência em ato, onde se dá em realidade a síntese entre o que é pensado e as leis do pensar, e procurar responder à pergunta que versa sobre a gênese das noções lógicas. É preciso explicar a genealogia vital das noções lógicas. De fato, a perspectiva desse problema deve ser revolucionada. Sua solução exige uma atitude filosófica. O que isso significa? Significa adotar, como ponto de partida, uma reinterpretação revolucionária da filosofia como tarefa. A filosofia não é o esforço por representar a realidade ou por fundamentar a adequação entre pensar e ser, como se eles pudessem ser significados impunimente a partir de uma perspectiva que os opõem na forma do esquema sujeito e objeto. Diversamente, é preciso interpretá-la como uma tarefa. Limitados pelas dimensões do presente texto, não teríamos como explicar pormenorizadamente como poderíamos interpretar a filosofia como tarefa. Contudo, é-nos suficiente dizer que entendida como uma tarefa a noção de filosofia e, consequentemente, de pensar reflexivo é redimensionada completamente. De que tarefa estamos falando? Da tarefa de fazer uso do pensar reflexivo para elucidar o que Blondel chamará de prospecção e, assim, contribuir para que a ação realize mais perfeitamente seus fins. Ora, a prospecção é um conhecimento direto e imediato que acompanha nossa ação e que permite que ela possa ser realizada sem necessidade de envolver, a cada decisão e ato, uma análise exaustiva de todas as suas condições. É o conhecimento espontâneo de que dispomos no próprio momento da ação. A reflexão ou especulação, por sua vez, é um conhecimento teórico, abstrato e representativo da ação, que nos permite traduzi-la em ideias que, por sua vez, podem ser comunicadas. É preciso compreender, entretanto, que a reflexão não é um fim em si mesma, mas um meio de levar uma inteligência sempre maior à prospecção. Tornando a prospecção inteligível, a reflexão permite que essa última seja 27


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O Agir Humano enriquecida e se potencialize em sua capacidade de aperfeiçoar a realização da ação. Isso fazendo, não só a prospecção se expande em sua envergadura operativa, como também a reflexão se transforma. Iluminando a prospecção, a reflexão também é enriquecida em sua inteligência da ação. Em suma, por esse processo prospecção e reflexão são mutuamente beneficiadas, em favor último da realização da ação e, consequentemente, do progresso da vida, que se faz por meio da ação. Compreendendo que a especulação — e que a lógica reflexiva, que constitui a sua essência e cuja essência, por sua vez, é o princípio ou lei de não contradição — não se fecha em si mesma, mas se abre na direção da elucidação da prospecção e do progresso da vida, compreender-se-á que a origem das noções lógicas deve ser buscada levando em conta o próprio destino da reflexão. Evite-se, a todo custo, pensar reflexão e lógica isoladamente e se abrirá um caminho promissor de superação de qualquer dualismo envolvido na relação entre pensar e ser/agir. Partindo dessa nova perspectiva, Blondel é capaz de esclarecer a gênese das noções lógicas, que fundamentalmente funcionam como leis lógicas de oposição: “Porque, espontaneamente, cremo-nos capazes de modificar as coisas, adquirimos a ideia de que elas poderiam ser outras” (Principe élémentaire, p. 372). O modo em que isso ocorre é o seguinte: por um lado, nosso automatismo psicológico insere seu dinamismo na engrenagem dos fatos; por outro lado, o choque entre nossos desejos e exigências nos dá a consciência de que temos uma capacidade relativa de mudar os fenômenos, de adaptá-los mais ou menos às reivindicações de nossa atividade, ao mesmo tempo, determinada e determinante. Dessa forma, não é de modo a priori que “nos conhecemos desejosos e capazes de agir sobre as coisas” (Principe élémentaire, p. 372). Diversamente, “nós afirmamos retrospectivamente que um possível, diferente do real, foi possível e 28


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O Agir Humano se conserva concebível. Assim, após nossa iniciativa prática e de nossa ação, ao mesmo tempo, serva e senhora” (Principe élémentaire, p. 372). Em suma, são as tendências originais, os postulados práticos, as exigências de nossa ação que nos permitem conceber a vida lógica. As regras do pensar, as ideias possuem sua gênese na ação. As coisas e os atos não são para nós simplesmente diferentes uns dos outros de modo abstrato, mas na medida em que se assimilam à nossa ação. A oposição diz respeito ao sentido que as coisas e os atos possuem em relação ao nosso destino, em relação à tarefa que o pensar descobre como própria: “Isto significa que o princípio mesmo da ideia da contrariedade não está nas coisas, não está no conhecimento especulativo originariamente e imediatamente, mas na determinação subjetiva de nossa atividade” (Principe élémentaire, p. 372). Porque escolhemos, porque subjetivamente nos decidimos e agimos, porque nada do que é para nós nos é indiferente, mas participa da evolução de nosso viver, contribuindo para seu progresso ou dificultando-o, as coisas e os atos aparecem para nós como organizados logicamente em relações de oposição. Blondel exemplificará a gênese de algumas noções. A noção de oposição, por exemplo, seria o resultado do choque dos múltiplos princípios (motivos e moventes) ou fenômenos que solicitam nossa ação, formando diante da reflexão um todo sistemático, no qual alguns destes princípios aparecerão como coerentes em relação ao nosso destino último e outros não. Quando um deles é escolhido e realizado é como que oposto a todos os que não o foram, formando um todo sistemático. Assim, o ato realizado confere aos fatos uma fixidez tal que constitui a base de onde surgem as oposições lógicas. O mesmo ocorre em relação às noções de contradição e de identidade. Com efeito, nenhuma oposição lógica poderia ser 29


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O Agir Humano concebida sem a noção, ao menos implícita, da contraditoriedade. E como ele surge? Surge pela consciência da irreparabilidade do passado: o que foi realizado o foi para sempre. Sua origem está na concepção da ação que era possível e foi consagrada no passado de modo irreparável. Uma vez realizada, a ação é posta para sempre e é por isso mesmo que as opções aparecem como contraditórias. Por sua vez, a noção de identidade surge da ação de escolher, precisar e realizar uma intenção singular, que se distingue das outras. Nas palavras de Blondel: Para ter consciência de que uma coisa poderia ser diversa, é preciso que tenhamos consciência de que nossa ação possui dois gumes. Para conhecer nossa ação, é preciso que, conscientes ao menos confusamente sobre o conflito entre nossas tendências e as exigências de nosso destino, nós nos encontremos em frente a uma opção que interessa nosso ser: em uma palavra nós temos a ideia do ser e da contradição somente porque nós somos virtualmente postos em condição de resolver a alternativa da qual depende a orientação de nossa vida e nossa entrada no ser, alternativa, caso se possa dizer, “autoontológica” (Principe élémentaire, p. 374).

Em conclusão, não poderíamos melhor resumir o sentido do que queremos afirmar a não ser como o fez Blondel (1997 (1900/1903) p. 374): “O emprego da razão especulativa está ligado solidariamente ao exercício real e atual da razão prática, que (...) lhe determina o sentido verdadeiro e o alcance legítimo”. Assim, as noções lógicas são produções ou projeções das leis de nossa ação no sensível e no inteligível. Mas, porque as isolamos das suas condições orgânicas e que perigo há nisso? É o que se procurará discutir em seguida.

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O Agir Humano 2.2 Por que isolamos as noções lógicas de sua origem vital. As noções lógicas possuem uma origem vital. A exemplo da contradição, elas possuem um sentido original e real, traduzível em leis lógicas. Nas palavras de Blondel, por exemplo, o sentido original e real do princípio de não contradição: é de estabelecer que o que teria podido ser e se incorporar, pelo que fazemos, ao que somos (héxis)7, foi para sempre excluído (stérēsis), sem que o que é assim excluído deixe de servir para pensar distintamente o que foi escolhido e feito, deixe de alimentar o esforço do conhecimento e da execução, e de determinar moralmente o ato realizado e o agente mesmo. Mas, se nós consideramos unicamente a partir de fora o resultado aparente ou os fatos que parecem externos à nossa ação, então tudo se resume a uma questão de sim e de não (katáphasis ou apóphasis); e, perdendo de vista a elaboração interna do resultado e a complexidade das relações que subsistem sob a ideia da contraditória excluída, nós substituímos estas relações viventes pela simplicidade artificial do conceito e da palavra (Principe élémentaire, p. 374).

Neste trecho fundamental, Blondel introduzirá quatro noções que nos darão a chave de compreensão de todo o, a pouco citado, escrito: héxis, stérēsis, katáphasis e apóphasis. À síntese que somos, ao resultado nunca definitivo e perpetuamente mutável de nossa ação, para a qual contribui todos os elementos que nos constituem, Blondel chama de héxis. A héxis é cada ser particular, é a totalidade da ação, que é cada ser singular. Ora, ao agir, é preciso realizar algumas possibilidades e excluir outras. Uma vez tendo

As transliterações apresentadas nesse artigo são nossas. Os textos originais trazem caracteres gregos. 7

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O Agir Humano agido, o que foi excluído o foi para sempre. Nesse sentido, a ação é posta de modo eterno. Entretanto, as possibilidades não realizadas não deixam, por isso, de também contribuírem para o que nós somos. É por isso que a esse algo excluído Blondel chamará de stérēsis, privação. Nós somos o resultado de nossa ação, mas nossa ação não leva a marca apenas do que foi escolhido e realizado, mas também do que não o foi. Em outras palavras, a héxis não é só o resultado de tudo o que foi escolhido e atuado, mas também de tudo o que foi preterido. A héxis, que somos nós, assim, não pode ser compreendida segundo uma lógica artificial que resume toda ação a uma questão de sim e de não entre possibilidades, ou seja, de katáphasis e apóphasis (afirmação e negação). A equacionalização da questão é bem mais complicada do que uma explicação baseada em uma analogia com a aritmética daria conta. Em suma, somos a síntese do que realizamos e do que nos privamos de realizar. Portanto, a explicação do que somos deverá levar em conta a lógica da stérēsis ou da privação. Não há como propor aproximações legítimas do real sem considerá-la. Procuraremos aprofundar seu sentido logo adiante. Por ora, é preciso saber que não são comuns compreensões baseadas no uso da lógica da stérēsis. Geralmente, a base das compreensões são sustentadas por uma pura lógica do abstrato, por uma pura lógica reflexiva e opositiva. Blondel chamará a lógica que se resume ao puro pensar abstrato de “logologia”. A logologia tem servido de alimento para muitas ontologias, consistindo em se tomar as coisas e suas relações pela linguagem e suas regras. Por exemplo, Aristóteles permanecerá vinculado ao ponto de vista da linguagem. Fazendo-se o naturalista do logos, terminará por identificar substância e substantivo. 8 Apesar de 8 É importante, seguindo os conselhos de Simone D’Agostino, fazer uma ressalva em relação a essa leitura de Blondel a respeito de Aristóteles: “L’errore di Aristotele consiste precisamente nell’aver confuso il piano reale e

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O Agir Humano distinguir que as coisas enunciadas por privação e possessão não são opostas entre si como o são os relativos e os contrários, Aristóteles afirma que, ao fim de contas, tudo se resume ao único ponto de vista da afirmação e da negação “porque é assim que se fala” (Principe élémentaire, p. 375). Nas palavras de Blondel: “as categorias que, rigorosamente, 'não podem receber contrários' (porque é próprio da substância recebê-los sem possuir ela mesma contrários), são tratadas na proposição e no raciocínio en ousías eídei9, e submissas à lei de contradição” (Principe élémentaire, p. 375-376). Sem dúvida, afirma Blondel, Aristóteles reconhecerá uma certa distinção entre a substância, que existe em si e para si, e as demais categorias, que só “subsistem” na substância. Entretanto, afirmará igualmente que: ...”a oposição entre ser e não ser, diferente em cada categoria, será a mesma em sua forma”. Que graças a este artifício, a privação mesma e as outras formas específicas de oposição são consideradas como uma forma de negação e tratadas como tal (...) que “a última forma a qual toda oposição deve se reportar é a contradição” (Principe élémentaire, p. 376).

Estas teses fundarão uma metafísica falsa e tirânica sobre a base da aliança híbrida entre gramática e física: ...por um lado, ela atribui às modalidades fenomenais e aos dados sensíveis tudo o que os conceitos, substantivados pelas palavras, tomaram emprestado do quello logico attribuendo le proprietà di questo a quello. Un errore che — in base all’analisi delle classificazioni dei tipi di opposizione in Aristotele — è certamente attribuiile più all’autore delle Categorie che a quello della Metafisica, da cui Blondel trae in parte gli strumenti concettuali per le proprie obiezioni” (D’AGOSTINO, 1999, p. 415-416). 9 O que pode ser traduzido por: “Sub specie substantiae” (Latim) ou “Na forma da substância” (Português).

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O Agir Humano ser vivente e pensante; por outro lado, estas usurpadoras uma vez entronizadas impõem seu próprio modo como lei do ser à atividade intelectual e moral que somente é que deveria lhe medir no que possuem de verdade ontológica e lógica; de modo que pensar en eídous eídei10 termina por equivaler a pensar en hýles eídei11 e a fazer reinar na ciência e na vida a literalidade, princípio de toda imobilidade doutrinal e de toda intolerância prática...(Principe élémentaire, p. 376).

Fazer reinar a literalidade equivale a fazer coincidir o real e o racional na representação. A atividade intelectual e moral não são aproximadas em seu acontecer concreto, mas substituídas por representações abstratas regidas por leis abstratas. Paradoxalmente, provocando essa coincidência de modo artificial, como que buscando a representação objetiva da realidade, o acesso ao real é impedido. E não é somente a concretude da representação ou a materialidade da ideia a ser traída. O mesmo acontece com a forma da ideia, com as próprias noções e leis lógicas. Isoladas de seu princípio vital e utilizadas fora de seu contexto próprio, são transformadas em usurpadoras, substituindo a legitimidade da lógica da stérēsis pela literalidade da afirmação e da negação dos sistemas conceituais, pela lógica da antífasis e da apóphasis. Não é estranho que, procedendo assim, atinjamos a impossibilidade de uma dialética real ou de uma lógica moral. O nosso próximo passo nos conduzirá a elucidar como é necessário romper com a idolatria dos conceitos e, sem abandonar a lógica reflexiva, reconciliar ideia e vida.

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Na forma da ideia. Na matéria da ideia.

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O Agir Humano 2.3 A superação da idolatria dos conceitos e o serviço da ideia à vida. É preciso superar a superstição que sujeita o real à lógica abstrata, sem deixar de reconhecer o verdadeiro papel dessa última, porque a lógica da antífasis e da apóphasis não é um artificio sem sentido e utilidade. Ao contrário, ela é mesmo um veículo de desenvolvimento da vida moral. O modo como tudo nos é proposto sub specie substantiae, como submetido às leis da não contradição e identidade, é, na verdade, “a maneira rápida e econômica por meio da qual a consciência distinta emerge do mundo” (Principe élémentaire, p. 377). Substituto da riqueza do real, a linguagem é um substituto útil, pois permite que o real possa ser entendido de modo simplificado: Não há conhecimento nítido, pronto, preciso, exprimível sem este artifício espontâneo que fratura a unidade do dado, estabelece oposições e constitui entidades discretas que comportam a aplicação de procedimentos lógicos, em uma sorte de fenomenologia ontológica ou de atomismo intelectual: é este trabalho de simplificação implícita que explicita o silogismo; e seu aparente rigor, repousando sobre a hipótese teoricamente falsa e praticamente útil das identidades parciais, é apenas uma aproximação, mas indispensável aos primeiros delineamentos da linguagem, do positivismo prático e da ciência (Principe élémentaire, p. 377).

Sem a simplificação que nos é possível por meio da representação e da linguagem conceitual, conhecer algo seria uma empresa impraticável. A simplificação da linguagem permite que o que é conhecido o seja como o que pode ser relacionado com a integridade de nosso destino, sem que para tanto tenhamos que ter total luz sobre o que é conhecido e sobre nosso destino. 35


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O Agir Humano A própria consciência não subsistiria sem essa economia conceitual. A consciência distinta que possuímos das coisas e de nós mesmos depende não só do fato de que conhecemos processualmente, mas também do fato de que o que entra em contato conosco pode ser imediatamente julgado em relação ao nosso destino. Com efeito, por um lado, um conhecimento que significasse um saber direto, imediato de tudo o que é seria equivalente a um estado de inconsciência. Sem o contraste entre o que já é nossa ação e a tendência que a impulsiona a renovar-se perpetuamente não há como subsistir consciência. Considerando que o conhecimento existe em função da ação, um conhecimento direto e imediato do que é seria o equivalente de uma ação completa em si mesma, uma ação sem nenhum futuro e sem nenhum passado, porque não haveria aí processo. Mas também, sem nenhuma consciência de presente, já que a consciência do presente não subsiste a não ser como movimento. Por outro lado, um conhecimento processual que exigisse atingir a riqueza de tudo o que é comprometeria seu avanço por um procedimento infinito. Em suma, as simplificações lógicas do conhecimento processual servem de ponto de apoio para a decisão radical do querer, somente a partir da qual temos acesso ao que é: Elas preparam, conferindo ao relativo o caráter de um absoluto, o preço infinito de nossos sacrifícios aparentes e de nossos ganhos reais, a responsabilidade mortificante de nossos ganhos aparentes e de nossas perdas reais: pelo que têm de precário, como pelo que oferecem de solidez provisória, elas são, então, ao mesmo tempo, um chamado permanente ao exercício do poder crítico do espírito para nos fazer sair do dado e um trampolim para o impulso das resoluções que engajam o destino humano (Principe élémentaire, p. 377).

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O Agir Humano Por exemplo, isso é o que ocorre com o princípio de não contradição. Ele supõe que de algum modo nada pode ser para nós sem passar pelo crivo de sua adequação ou inadequação em relação ao nosso destino e sem que a realização dessa adequação ou inadequação possa, a cada momento, estabelecer-se de uma vez para sempre (Principe élémentaire, p. 378). Em outras palavras, a lei de não contradição é a tradução simplificada do valor infinito de cada escolha realizada. É a tradução do estado em que se encontra cada ação particular, posta de uma vez por todas em relação ao nosso destino, contribuindo para seu progresso ou não. Portanto, a lógica da antífasis e da apóphasis vinculada a suas origens vitais e subordinada a seus fins morais ganha todo seu sentido como verdade relativa. Ela é “o fenômeno objetivo e inadequado da dialética real” (Principe élémentaire, p. 379). Inadequada enquanto não é capaz de dar conta da riqueza desta dialética. Objetiva, porquanto a realização da dialética real — como trabalho de adequação do pensamento em ato à vida, da reflexão à prospecção tendo em vista o progresso da vida — se dá por seu intermédio (Principe élémentaire, p. 378-379). Tendo sido suficientemente elucidadas seja a reflexão, seja a lógica das ideias que lhe caracteriza, podemos partir para o esclarecimento do sentido da lógica da stérēsis. Seguindo o percurso proposto por Blondel, procuraremos nos concentrar sobre o sentido do princípio fundamental que a sustenta e das leis lógicas que dele derivam.

3. O PRINCÍPIO ELEMENTAR DA LÓGICA MORAL E DE TODA LÓGICA. A lógica que caracteriza a reflexão governa o modo de compreensão que se fundamenta a partir do ponto de vista da 37


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O Agir Humano linguagem. Essa compreensão possui sua utilidade, mas também seus limites. Sem ela a evolução em nossa ação estaria comprometida. Entretanto, restrito a ela não podemos pretender que nosso conhecimento possua qualquer alcance ontológico. Mas, sejamos cuidadosos. A ontologia, do ponto de vista filosófico de que estamos falando aqui, não se constitui como um discurso na forma de uma representação adequada do real. Pensar assim seria continuar aderindo ao dualismo que procuramos insistentemente superar. Sendo a filosofia uma tarefa, a ontologia se identificará com o conhecimento em ato, síntese do processo de elucidação da prospecção pela reflexão e da renovação da reflexão pela prospecção em uma espécie de circunsessão. No conhecimento em ato, procurando realizar nossa ação e a nós mesmos de modo sempre mais adequado, incorporamos tudo o que é a nós mesmos. No conhecimento em ato, passamos constantemente do ponto de vista da linguagem à perspectiva da verdade vivente, não mais considerando a relação abstrata dos conceitos, desprovida de sua interioridade e suporte vital, mas “as relações de atos, estados, fatos assimilados ou eliminados por um organismo que combina, compensa, digere” (Principe élémentaire, p. 379); ou seja, considerando a síntese que é cada vida. Ora, como tal trabalho de consideração da vida pode ser dita ainda uma lógica, ou seja, “uma razão reguladora e determinante” (Principe élémentaire, p. 379), é o que ainda resta a esclarecer. Em razão do discurso sustentado até esse ponto, já podemos afirmar com segurança que a fonte vivente de toda determinação lógica é a decisão refletida e voluntária que escolhe e atua fixando o ser de um ato, entre os inúmeros possíveis. Ainda, também podemos afirmar que toda decisão é uma possessão e uma privação de algo, de modo que tanto o que se possui quanto aquilo de que se é privado contribui para fixar o ser de nossa ação e a nos definir. Esse é o determinismo da ação, segundo o qual tudo o que 38


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O Agir Humano atuamos e que deixamos de atuar forma uma síntese que nos define (Principe élémentaire, p. 379): “Há um determinismo que, envolvendo todos os empregos possíveis do pensamento e da liberdade, exprime uma ligação ao mesmo tempo inteligível e real de todos os nossos estados, compõe nossa vida como um problema único, e requer uma solução integral”. Em suma, o estudo da lógica da vida moral é o estudo desse determinismo. Mas, qual o seu princípio elementar e quais são suas leis? Qual é sua lógica?

3.1 O princípio elementar: a stérēsis. Em um recurso a Aristóteles, para Blondel a noção de stérēsis “implica a privação de algo que seria devido ou natural, e cuja possessão foi adquirida, poderia ou deveria ser” (Principe élémentaire, p. 379). Desde que uma exigência se constitua como parte da natureza de um agente possuirá sempre consequências correlativas ao emprego de sua atividade, seja ela atendida, rejeitada ou desconhecida. Seja por sua satisfação, seja por sua não satisfação, essa exigência natural será julgada em relação à solução do problema posto pela vida, segundo a lei imanente à vida mesma e que nos coloca diante da decisão fundamental, origem orgânica do princípio de contradição. Em outras palavras, quando parte da natureza de um agente, uma exigência não é nunca indiferente. Blondel significará o termo stérēsis com a expressão “privação positiva”.12

Com afirma Álvaro Pimentel, stérēsis e privação positiva são expressões sinônimas que aparecerão já na Action (1893), p. 368 e 438, mas cujo sentido será explicitado apenas no Príncipe élémentaire d’une logique de la vie morale, ainda que a expressão “privação positiva” não apareça propriamente nesse texto (PIMENTEL, 2008, p. 101, nota 170). Sobre o modo como a compreensão da stérēsis desenvolveu-se na filosofia blondeliana significando a privação positiva, remetemos a um curto, mas denso e esclarecedor texto de Simone D’Agostino 12

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O Agir Humano Diferentemente do que presume uma lógica da apóphasis, segundo a qual o rejeitado é anulado, o que poderia ser realizado em nossa ação e não o foi deixa sempre a sua marca no que somos. Para passar da perspectiva da linguagem para aquela da verdade vivente é preciso uma lógica diversa, capaz de assumir que “a héxis que segue não é idêntica à héxis que precede a stérēsis” (Principe élémentaire, p. 380). É preciso uma lógica capaz de dar conta da riqueza infinita das repercussões orgânicas de nossa ação: “As relações das ideias se resumem em sim e não; e tudo é dito: é como uma geometria plana, onde duas linhas se cruzam em um só ponto. As relações reais são orgânicas infinitamente, sempre infalivelmente repercutidas e integradas” (Principe élémentaire, p. 380). Com efeito, nossas exigências ideais, nossas disposições, não se limitam a um número restrito de relações. Elas não só repercutem e se integram infinitamente umas nas outras, mas ainda tudo o que é o homem participa deste processo de integração, do qual uma dialética verdadeiramente completa não poderia prescindir: ...nada dele [do homem] lhe é estranho ou indiferente, ou mais ainda, o que não interessa em nada a sua ação não é conhecido por ele; nada nele lhe escapa, se se pode dizer, à héxis e à stérēsis. Tudo o que faz e tudo o que não faz contribui para lhe constituir; tudo, assim, entra no sistema de seu organismo dialético. E porque as determinações da lógica abstrata são um estrato da atividade espontaneamente orientada em nós pela natureza ou uma expressão de nossas tendências originais projetadas no espelho do pensamento reflexo, uma dialética verdadeiramente completa não saberia se restringir ao formalismo lógico (Principe élémentaire, p. 380).

denominado “Privation Positive” (D’AGOSTINO, 2003. In: LECLERC, 2003, p. 211-225).

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O Agir Humano Sem dúvida, a abstração confere às noções lógicas certa necessidade. Mas, essa é de caráter extrínseco e transcendente ao concreto.13 Para dar conta do real nós precisamos de uma lógica diversa. Nas palavras de Blondel: ...nós precisamos de uma lógica real que contenha o que a lógica formal exclui como se não existisse, de uma ciência que reencontra, por meio da reflexão, o nexus de todos os estados e de todos os erros mesmos, a lei intrínseca, a norma imanente que torna inteligível todos os desenvolvimentos opostos da vida, e os julga absolutamente, compreendendo mesmo o que ela não saberia perdoar. Há uma lógica da desordem. (...) lógica universal que abraça todas as singularidades e as aproximações da casuística, todas as complicações que preparam a colaboração da natureza e da liberdade; lógica infinitamente imparcial e exata, já que é a lei duplamente interior à vida espontânea e à atividade voluntária, norma sui. Lógica luminosa, já que, através das obscuridades de nosso destino presente, tende apenas a exprimir a relação do que podemos e devemos com o que nós queremos e fazemos, para esclarecer antecipadamente a justiça final de nossa sorte. Lógica que somente merece propriamente este nome tour court, porque a ciência que parcialmente a usurpou é dela apenas um resíduo parcial e um aspecto isolado (Principe élémentaire, p. 381).

Enfim, a stérēsis é o objeto elementar e material desta lógica. Mas, quais são suas leis formais e científicas, que se põem diante da reflexão? É o que será mostrado em seguida.

13 De fato, se assim não fosse, não existiriam, por exemplo, sofismas ou paralogismos. Os sofismas e os paralogismos são, apesar de sua condição, pensamentos e pensamentos viventes. Desse modo, não são contradições do pensamento válido, porque do contrário nem mesmo poderiam existir, já que a contradição não se dá na realidade e é impossível que se dê.

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O Agir Humano 3.2 As leis do processo lógico da vida. No texto de Principe élémentaire Blondel proporá algumas leis ligadas à lógica da vida. Essas não devem, porém, ser entendidas como condições a priori ou axiomas a partir dos quais a lógica é construída da forma como se pode imaginar que a lógica reflexiva seria construída a partir das noções lógicas fundamentais, como o princípio de não contradição. Diversamente, essas leis da lógica da vida não são condições dessa mesma lógica, mas suas consequências, deduzidas a partir do complexo orgânico que é a ação. É a partir da ação vivente que se constituem e são compreendidas como descrições gerais da dinâmica do viver e expressões da lógica da stérēsis. São elas: 1) lei do alogismo inicial e do polilogismo espontâneo; 2) lei da solidariedade das forças discordantes; 3)lei das compensações; 4) lei da reintegração final ou da perda total. 1) Lei do alogismo inicial e do polilogismo espontâneo. Blondel afirma que a vida real apresenta-se para nós inicialmente sob a forma de uma aparente anomia, desordem ou anarquia a que se pode chamar de alogismo inicial. Antes de possuírem sentido para nós, os elementos da vida simplesmente se relacionam conosco, em uma relação que, embora ainda não ordenadamente perceptiva, já é uma relação disponível à percepção. Antes de fazerem sentido, os elementos da vida simplesmente são a nós anarquicamente disponíveis. Todavia, isso não significa que os elementos da vida sejam interpretados como coisas que se colocam diante de sujeitos como matéria primitiva para a futura representação. A perspectiva da filosofia como tarefa oferece subsídios para superar essa visão dualista da vida. Do ponto de vista filosófico não há caos inicial 42


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O Agir Humano independente da vida, mas, desde o mais primitivo momento, os elementos da vida são para nós a partir da síntese que é a vida. A anarquia inicial não significa existência fora da vida, mas vivência ainda não elucidada. A anarquia inicial se dá, assim, não em razão da aparição de númenos que seriam transformados posteriormente em fenômenos pela ação da subjetividade, mas em razão da multiplicidade natural das nossas potências vitais (polizoísmo) e das nossas aptidões mentais (polipsiquismo). A multiplicidade de nossos estados subjetivos são a condição do caos inicial. Todavia, o caos inicial não tem a última, nem a única palavra aqui. O estado inicial caótico tende a uma síntese, a uma ordem. Espontaneamente, o caos inicial de nossa vida tende a assumir um sentido ordenado. Espontaneamente somos levados a elucidá-lo e a criar sentido. Ora, a criação espontânea de sentido, a compreensão da vida a que muito facilmente e naturalmente somos levados a constituir pela coação de nossa reflexão e de nossas disposições pessoais, não é nunca estática. O trabalho de síntese coordenadora nunca é feito de modo definitivo porque os estados subjetivos, que convivem em nós e a partir dos quais conscientemente e inconscientemente se determina a ordem singular de nossa vida, nunca estão em um equilíbrio definitivo. Em suma, nosso polizoísmo e polipsiquismo não só são responsáveis pelo alogismo inicial, mas também pelo polilogismo espontâneo, ou seja, pela dinamicidade de nossa compreensão da vida: O caos inicial tende, então, a uma ordem e a uma certa ordem singular, que se organiza graças à mistura do instinto que determina a vocação pessoal e da reflexão que se torna o princípio das decisões, dos méritos e das faltas voluntárias. De modo que, de um lado, graças à parcialidade profunda de nossa idiossincrasia, nós tendemos a constituir um sistema que nós cremos 43


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O Agir Humano exclusivo e fechado; mas, por outro lado, este trabalho de síntese coordenadora não é nunca feito imediatamente, jamais inteiramente acabado, mesmo depois de uma longa vida de unificação e de conversão metódica (Principe élémentaire, p. 381).

Por fim, o polizoísmo e polipsiquismo que nos caracteriza não se resolvem de modo linear como em uma equação matemática, mas nem mesmo como em uma equação física sobre a interação mecânica de forças discordantes, como veremos a seguir. 2) Lei da solidariedade das forças discordantes. A cristalização que determina em nós os delineamentos de cada personalidade não suprime, não negligencia nenhum elemento fornecido e imposto pela natureza. Tanto as tendências escolhidas e atuadas quanto aquelas rejeitadas compõem a síntese que somos nós, onde nada se perde e onde tudo constantemente se transforma. Com efeito, a cada escolha a síntese se transforma e com ela o que se escolheu e o que se rejeitou: “nada entra em nós sem sair, por certos aspectos, de uma predisposição íntima; nada sai de nós sem penetrar mais profundamente. (...) há realidade nova, porque uma ideia realizada não é a mesma de antes de ser oposta e preferia a outras” (Principe élémentaire, p. 382). A essa coação de forças, permanente, dinâmica e imanente à vida, Blondel chama de solidariedade das forças discordantes. Ela se dará a partir de certas compensações, muito singulares. 3) Lei das compensações. A lógica da vida moral funciona segundo o jogo da compensação das forças que formam a síntese da vida de cada indivíduo. A dificuldade precisa de sua ciência está justamente em 44


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O Agir Humano que é difícil definir a composição própria das forças que aí entram, constituindo cada caráter moral. Como consequência disso, segundo Blondel, não é suficiente uma casuística geral e abstrata que nos leve a pensar que todos temos as mesmas obrigações, luzes, forças e desculpas. Ao contrário, é preciso um trabalho de compreensão de cada vida particular, cuja responsabilidade é intransferível: “Trata-se, ao contrário, de desenvolver sem cessar em nós o sentimento de nosso original destino e de nossa incomparável responsabilidade” (Principe élémentaire, p. 382). Deste modo, a elucidação da lógica da vida moral exige a superação do perigo da generalidade e a assunção da responsabilidade pelo próprio destino: ...revelando, de uma parte, a insuficiência ou a insignificância das determinações abstratas e das codificações inteiramente construídas com ideias e pelas ideias; mostrando, por outra parte, a edificação progressiva de nosso caráter moral com o auxílio de todos os elementos compensadores, os quais nenhum saberia ser totalmente ausente da solução final... (Principe élémentaire, p. 383).

Embora não se possa precisamente definir o quadro das compensações que resultam na composição das forças que agem sobre nós, uma coisa é certa: há um determinismo inflexível na lógica da vida, segundo o qual tudo o que nos diz respeito, toda força ou tendência que se exerce sobre nós, determina quem somos, seja que adiramos ou não a elas. Poder-se-ia, então, objetar: se tudo se integra segundo uma lei e um determinismo inflexível isso não significaria uma abolição da moralidade? A resposta de Blondel a essa pergunta é “não”. Toda decisão comporta uma stérēsis (privação) e uma kthésis (possessão), 45


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O Agir Humano entretanto, o que é rejeitado não é integrado pelo agente como o que é escolhido, as marcas que deixam são diversas: “umas são positivas, na medida mesma em que realizam a ideia essencial de nosso ser e subordinam os diversos elementos a esta unidade diretiva; as outras são privativas, no sentido de que perturbam nossa direção virtual e exigida” (Principe élémentaire, p. 383). Sendo assim, o papel da lógica moral não pode ser o de procurar detalhadamente seguir na concretude particular da nossa ação o modo como as regras que governam o nosso destino encontram sua aplicação, o modo preciso como a compensação se dá. São muitas as incógnitas envolvidas nessa equação. Sua equacionalização é impraticável. Entretanto, é possível proceder por uma via alternativa e mais adequada. Ao invés de procurar determinar o quadro integral das compensações, é possível dedicar-se a avaliar o que a escolha livre de cada possessão e privação, que se anuncia para nossa ação, tem de positivo ou negativo em relação à nossa héxis primitiva. É possível, não obstante a complexidade aí envolvida, procurar avaliar as consequências de nossa ação livre, julgando-a pelo parâmetro da realização de nós mesmos. Assim, sem pretender quimericamente conhecer no detalhe a compensação das forças que constituem nossa héxis, é possível esforçar-se por esclarecer o dinamismo antecedente, concomitante e consequente de nossa liberdade sob a luz do projeto que somos nós mesmos: Porque a liberdade necessariamente produzida em nós pela dialética espontânea da vida resulta necessariamente em consequências, sem ser necessitada ela mesma, é este dinamismo antecedente, concomitante e consequente à liberdade que a lógica deve esclarecer. Assim, a verdade lógica se encontra definida como o acordo do pensar e da vida com eles mesmos, não mais no sentido puramente ideológico, mas no sentido concreto e segundo as exigências ou os créditos da vida interior: se alcançar, 46


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O Agir Humano entrar em possessão de si, se igualar explicitamente, tal qual se é no concreto implícito, é o trabalho que estimula e que julga a lógica integral. E é esta coerência do conteúdo total que é o gênero cujo acordo formal é apenas uma espécie (Principe élémentaire, p. 383).

Em suma, não sendo possível equacionar todo o jogo das forças que nos definem, a lógica da vida moral, fazendo abstração do valor variável das incógnitas aí envolvidas, deve dedicar-se ao esclarecimento da liberdade, de suas condições antecedentes, concomitantes e consequentes, segundo a totalidade da vida, que se apresenta a nós como uma tarefa de reintegração final e cujo fracasso implica uma perda total de si. Mas, qual seria o sentido dessa reintegração de si a si mesmo? 4) Lei da reintegração final ou da perda total. Todos os nossos atos expressam a totalidade de nossa vida, da síntese orgânica e dinâmica que somos nós e do modo como essa síntese se posiciona diante do nosso destino. Com efeito, viver é procurar realizar a tarefa de reintegrar-nos a nós mesmos, de cumprir nosso destino. Dessa tarefa ninguém pode se eximir. A vida exige a ação. A ação realiza a vida segundo necessidades internas das quais, uma vez postas, não podemos mais nos desvencilhar. Seja que as satisfaçamos, seja que as rejeitemos, elas contribuirão para constituir o que somos e para decidir se poderemos ou não nos reintegrar, a partir do acordo ou do desacordo em relação ao nosso destino, ou seja, a partir de certa opção última e fundamental. Mas, que opção última é esta a que nos referimos? Na tarefa de reintegração de si, a força intrínseca das tendências naturais são constantemente amortecidas. Optando por agir de um modo e não de outro, depositamos na escolha realizada 47


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O Agir Humano toda a energia proveniente do jogo das forças, compensadas na direção do ato. Mas, isso é possível somente porque ao agir nós não procuramos nas tendências escolhidas e rejeitadas bens ou males, mas o bem e o mal, ou seja, nossa realização final e nossa perdição total. Agindo, depositamos na opção escolhida toda a força que nos impulsiona a nos reintegrar, traduzindo as opções como se elas comportassem não uma stérēsis, mas uma subordinação aos princípios acósmicos de identidade e não contradição. Assim, as opções concorrentes são artificialmente interpretadas sob a forma de proposições que comportam oposições lógicas (Principe élémentaire, p. 384). Um artifício esse, mas artifício útil e mesmo necessário. Nossas escolhas comportam um sacrifício apenas parcial, já que não só o que é escolhido, mas também o que é rejeitado contribuirá para o que somos. Mas, por um artifício útil, com a intervenção do princípio de não contradição, podemos julgá-las como se elas levassem o peso do infinito, como se a cada momento nossa escolha pudesse ser definitiva. Sem poder atingir a realidade das compensações das forças que determinam nossa ação, como anteriormente já nos referimos, somos por esse artifício levados a superar a própria compensação das forças subjetivas. Somos por ele capacitados a entrar em possessão de uma vida suprassensível e suprarracional, de uma vida livre. Lançando raízes no sensível e no racional, a liberdade lhes é transcendente. Como já acenamos anteriormente, a contradição não existe na realidade, mas apenas a partir do momento em que nossas escolhas são opostas, do ponto de vista de nossa reintegração, como o bem e o mal. É a própria energia que nos impulsiona à reintegração, alimentada pelo jogo das forças de nossas tendências, que uma vez posta a serviço de uma escolha particular permite-nos amortecer as forças a ela mesma discordantes, fundando nossa liberdade. 48


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O Agir Humano Deste modo, a liberdade não é contraditória ao determinismo de nossa ação, mas encontra nele sua fonte, assim como também daí nascem todas as noções da lógica reflexiva. Com efeito, necessariamente somos obrigados a implicar em cada escolha que fazemos a totalidade de nosso destino e a julgar nossas ações não como bens ou males, mas como o bem o e mal. Ademais, a percepção que temos da irreparabilidade de uma ação realizada diz respeito não somente à nossa impossibilidade de retornar no tempo e agir diversamente, mas, sobretudo, ao peso infinito do qual a ação é carregada em razão de sua relação com o nosso destino. O fato da irreparabilidade de uma ação realizada nos é importante somente porque em cada ação nossa realização última é posta em jogo. Assim, lógica e moral não são contraditórias: “...se a exclusão ideal parece absoluta, é porque a solução real é, com efeito, decisiva e radicalmente cortante; se a ação humana se estabelece no absoluto de uma héxis ou de uma stérēsis, isto se dá pela mediação do princípio formal de contradição” (Principe élémentaire, p. 384). A lógica possui suas raízes na moral e a moral não é ela mesma, não é livre, se não participa do rigor da lógica formal, estabelecendo a distinção entre as opções radicais que definem o destino humano e julgando cada ato relativo de modo a ver neste o peso do absoluto. Esclarecidos o princípio fundamental da lógica moral e algumas de suas leis fundamentais, resta-nos afrontar uma última questão: o que esse estudo nos pode elucidar sobre a possibilidade de revolucionar a filosofia, interpretando-a como tarefa?

4. CONSIDERAÇÕES FINAIS: A CAMINHO DE UMA RENOVAÇÃO DA FILOSOFIA. Para um pensar que se limita à lógica baseada na não contradição, a compreensão do ser será sempre contraditória, 49


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O Agir Humano porque não se pode admitir o diverso, o não ser, porque, como o afirmara a tradição eleática “o não ser não pode ser conhecido”. Ora, essa afirmação, abstraída do seu contexto originário, ganha um significado sensivelmente diverso em razão do modo como o conhecimento veio sendo interpretado pela tradição filosófica, ou seja, como processo, reflexão ou especulação. Com efeito, a meta da especulação não é justamente uma fiel reprodução ideal do ser? Ora, não há problema em estabelecer tal meta como algo realizável caso se pudesse demonstrar que as leis que valem para a reflexão de alguma forma reproduzissem as próprias leis do ser. Sob essa crença injustificável, repousará todo o abuso de competência ligado ao uso do pensar reflexivo. Todavia, para a tradição eleática o produto da especulação ou do conhecimento processual não é um verdadeiro saber, mas apenas um erro e uma mistura, um caminho a ser evitado. Nesse sentido, segunda ela, se conhecer equivale a um saber consumado e completo do ser, de modo que conhecimento e ser são idênticos, a especulação não é um verdadeiro conhecimento justamente porque para ela ser e conhecimento (reflexivo) não podem ser idênticos, porquanto o produto do conhecimento (reflexivo) não é o ser, mas sua representação. Em outras palavras, contrariamente ao que pensa a tradição eleática, se pensar é representar, o pensamento será sempre estranho ao ser. Dessa forma, a compreensão do conhecimento restrita à especulação e à lógica abstrata, que a caracteriza, nos levará a nos deparar sempre com esse dualismo insuperável entre ser e conhecer. Em suma, restringindo conhecer a representar, a menos que se possa provar de alguma forma que a representação é equivalente ao ser, não é só o contraditório do ser — o não ser — a não poder ser conhecido pela especulação, mas também o próprio ser. Diversamente, a partir do ponto de vista da lógica da stérēsis ou da lógica da vida moral, a relação entre ser e conhecer pode ser 50


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O Agir Humano reinterpretada e a filosofia, especialmente a metafísica, renovada. Para uma lógica baseada na stérēsis continuará sendo válida a afirmação segundo a qual “o não ser não pode ser conhecido”, mas em um sentido inteiramente novo. O não ser não é conhecido porque só o ser é, porque conhecer não tem por meta a reprodução do ser, mas sua realização e só o ser se realiza. Assim, do ponto de vista da filosofia da ação e da lógica da stérēsis, que a caracteriza, o extremo oposto do ser não é a antífasis do ser, mas a stérēsis positiva. Do ponto de vista da ação, o ser verdadeiro é o ser moral: é a héxis, síntese de stérēsis (privação) e de kthésis (possessão), que admite em si contrários, mas não possui contrários. Consequentemente, do ponto de vista da ação, não há ser sem mortificação, sem privação, de tal modo que o extremo oposto do ser também se realiza: Somente a mortificação realiza a contraditória do não-ser e por um tipo de experiência metafísica produz nosso ser no ser; realizou a solução antagonista na privação, a qual não é a inexistência. Porque, diferentemente da lógica intelectual, que se limita em afirmar a igualdade abstrata no âmbito do possível e a incompatibilidade formal das soluções opostas, a lógica moral, justificando este exclusivismo do qual manifesta a utilidade, o supera, porque no fundo de todas as soluções possíveis resta um mesmo sujeito de inerência em vista do qual elas são inegáveis e de sinal contrário. Assim, encontra-se verificada esta visão de Aristóteles: a substância, o ser verdadeiro, o ser moral admite contrários, mas não possui contrários. Neste sentido, a realidade metafísica escapa às determinações lógicas do entendimento e é preciso restituir ao princípio real de contradição a fórmula original de Parmênides, embora interpretada de modo totalmente diferente: o não-ser não é, nem em si nem em nós; o ser moral não morre; e, sob o ponto de vista real, não é a antífasis, mas a stérēsis positiva que é o extremo oposto do ser (Principe élémentaire, p. 384). 51


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O Agir Humano

A questão importante não é mais a da identidade entre ser e conhecer, mas aquela que diz respeito à capacidade da reflexão em iluminar a prospecção e contribuir por meio da circunsessão aí criada para o progresso da vida humana. Nesse sentido, conhecimento autêntico é o saber que contribui para a realização do ser, para a realização de uma tarefa. Ainda que nunca subjugado pelo pensar, o ser poderá sempre abrir-se à experiência humana, de modo que o que nunca se poderá saber de forma consumada pode ser reintegrado à ação. Em conclusão, a antífasis (o não ser) não é senão um símbolo inadequado da stérēsis (da privação). Reconhecê-lo é colocar a lógica reflexiva em seu devido lugar, afirmando sua subordinação à lógica da vida, de onde o pensamento lança suas raízes. Reconhecê-lo é a condição de acesso a uma nova filosofia e a uma metafísica ainda possível, livres das antinomias de que o pensar ocidental se encontra a séculos substanciado, em razão do insuperável dualismo entre ser e conhecer que lhe caracteriza. Seria interessante explicitar essa nova filosofia. Infelizmente, devemos remeter isso para outras ocasiões.

REFERÊNCIAS BLONDEL, Maurice. “Principe élémentaire d'une logique de la vie morale”. In: ______. Ouvres complètes II: 1888-1913. La philosophie de L'Action et la crise moderniste. Paris, PUF, 1997, p. 365-385. D'AGOSTINO, Simone. “Privation Positive”. In: LECLERC, Marc (éd.). Blondel entre L’Action et la trilogie. Bruxelles, Lessius, 2003. (Actes du Colloque international sur les “écrites intermédiaires” de Maurice Blondel, tenu à l’Université Grégorienne à Rome du 16 au 18 novembre 2000).

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O Agir Humano LAMBERT, Dominique; Paris, BAP, 1996.

LECLERC, Marc. Au cœur des sciences.

LECLERC, Marc (éd.). Blondel entre L’Action et la trilogie. Bruxelles, Lessius, 2003. (Actes du Colloque international sur les “écrites intermédiaires” de Maurice Blondel, tenu à l’Universitè Grégrorienne à Rome du 16 au 18 novembre 2000). LECLERC, Marc. “La confirmation performative des premiers principes”. Revue Philosophique de Louvain, 96(1998), 69-85. PIMENTEL, Álvaro. A “Lógica da Ação” de Maurice Blondel: explicitação crítica na Ação (1893). Belo Horizonte: UFMG, 2008. (Tese de doutorado) [Disponível em: http://hdl.handle.net/1843/ARBZ-7G5K29. Acesso: 13/03/2012]. YSAYE, Gaston. L’affirmation de l’être et les sciences positives. Paris, Lethielleux e Namur, Presses Université de Namur, 1987.

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2 CIÊNCIA E CRIAÇÃO CIENTÍFICA Josaílton Fernandes de Mendonça1

1. INTRODUÇÃO. De acordo com a visão tradicional, normalmente associada a uma metafísica materialista, a ciência representa o mundo tal como ele realmente é e o faz com uma rede de enunciados2. Sob essa perspectiva a ciência se desenrola segundo compromissos com a verdade, com a explicação, com a previsão, simplicidade, objetividade, método, teorização, experimentos, corroboração ou verificação e demonstração. Nessa leitura, a ênfase recai sob a ciência formalizada e não sob a ciência em vias de se fazer. Assim, rejeita-se, como se fossem extremamente restritos, os traços muito salientes da ciência, tais como, a sua aplicação em grande escala, seu caráter prático, sua vinculação estrita ao poder e o ideal de controle da natureza. No entanto, as teorias da ciência de Thomas Kuhn (1975) e de Imre Lakatos (1970), Hugh Lacey (1998) e Joseph Rouse (1987) questionam essa ortodoxia abrindo espaço para teorias centradas na Doutor em Filosofia. Professor do departamento de filosofia da UERN (E-mail: josailtonf@gmail.com). 2 De acordo com a análise da ciência promovida na linha do positivismo lógico, a explicação geral da significatividade científica está relacionada com o exame da estrutura lógica das teorias. Essa análise, que concerne a uma reconstrução racional com propósitos de esclarecimento lógico das teorias, precisa concebê-las como um conjunto consistente de enunciados. A esse respeito ver Alston (1974), Kneller (1980). 1


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O Agir Humano análise das condições históricas de produção e desenvolvimento do conhecimento científico. Sob esta perspectiva a ciência deixa de ser vista como portadora de uma racionalidade superior dotada de neutralidade e autonomia, e firma-se como uma prática ou atitude que incorpora valores pessoais e sociais tanto quanto elementos heurísticos, tais como, as estratégias de pesquisa, as técnicas experimentais, os algoritmos mentais — a curiosidade, as motivações pessoais, a criatividade. Dessa maneira são incorporadas à análise da ciência novas e fundamentais categorias. Examinarei sob este aspecto uma categoria fundamental para o pesquisador, a qual permite vê-lo, não como um descobridor da “verdade”, mas como aquele que constrói um edifício, uma representação do mundo, sempre em interação com outros pesquisadores: trata-se da criatividade científica. Tradicionalmente, elegem-se a verdade e a certeza como categorias epistêmicas padrões para o entendimento e a caracterização da ciência. De fato, o ideal científico moderno propõe que há boas razões para a aceitação de estratégias de pesquisa apoiadas na perspectiva da verdade e da certeza, no entendimento de que a ciência descreve o mundo tal como ele é, independente de valores pessoais e sociais, tanto quanto de categorias mentais. Entretanto, decorre desse ideal o problema de saber até que ponto a ciência é produto de uma criação intelectual. E esta questão, ao que tudo indica, se coaduna melhor à discussão da atividade da ciência como derivado da estrutura mental e procedimentos dos cientistas. Assim, analisando a categoria da criatividade científica em contraposição a outras como verdade e certeza, argumentarei em favor de três hipóteses, a saber, (1) a ciência é produto de uma intensa e dinâmica atividade mental ou intelectual; (2) a ciência é um campo de práticas influenciadas; (3) as mudanças científicas se explicam por mudanças na mente dos cientistas. 56


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O Agir Humano 2. CIÊNCIA – VERDADE – CERTEZA. Na tradição científica, a verdade é um valor supremo. A busca da verdade determina o objetivo da ciência, o seu significado e a expressão da racionalidade humana. O cientista, nesta condição, é um pesquisador da verdade. Contudo, isso não é suficiente, espera-se do investigador a capacidade de demonstrá-la. Mas essa exigência não se constitui, por assim dizer, num empecilho. Segundo Porchat (2001), a tradição filosófica grega sempre confiou na capacidade humana de provar a verdade. Não porque o homem seja criatura divina ou dotado de capacidade sobrenatural, mas simplesmente porque é dotado de razão, cuja expressão mais nobre — continua ele — se encontra na matemática. A bem dizer, o único saber capaz de rivalizar com a própria filosofia. Com efeito, o homem por ser racional persegue o porquê das coisas, suas causas e princípios como diz Aristóteles (1987). É, portanto, a razão que dota o homem das categorias inteligíveis, capacitando-o não somente a buscar a verdade, mas também a demonstrá-la. E o modelo perfeito desse equilíbrio entre a busca e a demonstração se encontra nas ciências, especificamente nas matemáticas. É então da matemática que emergiu o parâmetro de racionalidade científica. Segundo Porchat (2001), o rigor e a disciplina com que os geômetras demonstram seus teoremas serviram de espelho a todo conhecimento que almejasse a cientificidade. Desta maneira, o saber científico, na medida em que é definido em função dessa racionalidade matemática, se constituiu numa ferramenta adequada para se buscar a verdade. Mas aqui uma divergência se impunha, pelo menos nas duas maiores correntes de pensamento que nos legou a tradição, a saber, a de Platão e a de Aristóteles. Como bem enfatiza Wedberg (1982), enquanto para Platão somente a filosofia poderia ter acesso à verdade por ter o 57


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O Agir Humano controle da ferramenta mais eficaz, a dialética, ficando a matemática localizada num limbo entre o mundo das ideias e o mundo sensível, para seu discípulo maior, Aristóteles, a ciência se caracterizava exatamente por essa sede de busca das causas e princípios necessários bem como pela sua capacidade de demonstrar a necessidade dessas causas e princípios através da lógica — ferramenta que expressava a estrutura racional e rigorosa que fazia da matemática o modelo de ciência. De qualquer modo, a ideia que se coloca desde os primórdios da tradição filosófica é a de que não basta ter a verdade, mas é preciso ter a certeza de possuí-la, daí o papel reservado à demonstração na teoria da ciência de Aristóteles e à tese da contemplação das verdades eterna pelo filósofo, em Platão. O trinômio Ciência-Verdade-Certeza se impõe naturalmente com base na credibilidade da razão humana. Razão esta que trabalhava dentro de padrões rígidos de leis e princípios. Assim o princípio da identidade, a não contradição e o terceiro excluído, garantiam a consistência do arcabouço demonstrativo lógicomatemático. E se impõe, então, o fascínio pela prova em detrimento à descoberta, pelo menos na tradição que emerge a partir de Aristóteles. Mas se a ciência é conhecimento demonstrável em que situação se encontra o processo de descoberta? É possível serem alcançados procedimentos certos e seguros de obtenção da verdade? É o que examinaremos na próxima seção.

3. UM OBSCURO MUNDO E A LUZ DE DESCARTES. As questões relativas aos processos de descobertas sempre fizeram parte ou das teses metafísicas ou, como consideram alguns, das teses místicas. Hoje, dizem os defensores da ortodoxia 58


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O Agir Humano filosófica, estas teses fazem parte da psicologia da mente do sujeito investigador. Com efeito, já adverte Urbach (1982), quando se indaga o modo como o homem conhece, adentra-se em um contexto obscuro em que as coisas não parecem tão certas e indubitáveis quanto no reino da prova. De fato, Aristóteles, por exemplo, monta uma doutrina sobre o processo indutivo/intuitivo de captação da essência das coisas. Assim, a partir da percepção do que é comum entre muitos, o sujeito, portador de um intelecto agente, é capaz de abstrair num ato intuitivo ou de intuição intelectual o significado último do objeto, isto é, captar a essência desse objeto. Esse processo, na verdade, foi objeto de intensa reflexão na idade média, particularmente na teoria do conhecimento de Tomás de Aquino e constituiu, juntamente com a metafísica Aristotélica, o pilar do pensamento gnosiológico medieval. Contudo, Aristóteles herdou a preocupação por este tema de Platão. De fato, no diálogo Ménon, Platão discute a questão do modo de obtenção do conhecimento, apresentando a — desde então — famosa aporia segundo a qual quem pergunta não sabe a resposta e, portanto, não seria capaz de reconhecê-la quando essa se apresente; e quem conhece, não precisaria perguntar, por que já conhece3. Em todo caso, toda investigação seria desprovida de sentido. Platão resolve a aporia por meio da doutrina socrática da reminiscência. De acordo com esta, todos têm um saber inato, que se encontra, entretanto, obscurecido ou esquecido desde que a alma habitou num corpo. Ao filósofo cabe fazer com que os homens se lembrem deste conhecimento. Para tanto, Sócrates no Ménon faz uso do método maiêutico que, conforme ele, tinha exatamente esse papel de fazer nascer o saber de que todo homem é grávido. 3

A esse respeito ver o Menon (Platão, 2001).

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O Agir Humano O que chama a atenção nesta tese platônica é a apresentação e defesa de um procedimento de obtenção do conhecimento. Já a certeza deste é garantida por uma doutrina de cunho muito mais espiritualista e mística do que propriamente racional. Todavia, Platão participava, como toda a filosofia grega, da doutrina da uniformidade entre mente-realidade. De tal modo que não se pode dizer que a doutrina da reminiscência e a maiêutica se constituam num procedimento heurístico de criação científica. Na verdade, a doutrina da reminiscência explica a estratégia de desvelamento do real, isto é, o método socrático não permite que se crie, no sentido estrito do termo, mas que se desvele a estrutura íntima das coisas. Aristóteles (1987) asseverará esta tese da uniformidade entre mente-realidade com a defesa da ideia de que a relação de causalidade e necessidade, expressa através da demonstração silogística, exprime antes de tudo uma relação intrínseca da natureza como tal. O salto qualitativo nesta discussão se dá quando a modernidade desconfia da capacidade do sujeito em des-velar o real, ou do real se deixar refletir na sua intimidade essencial. Dois modelos partilharão deste pressuposto, embora com teses mutuamente antagônicas: o modelo cartesiano e o modelo representacional do conhecimento. Nesta seção discutiremos o modelo cartesiano e na próxima o modelo representacional. Descartes fez ver um aspecto bastante pontual e problemático na reflexão epistemológica, por assim dizer, herdada da tradição, qual seja, a uniformidade entre mente-realidade não é garantia de saber certo e indubitável da verdade, ou seja, o real pode até se manifestar à mente, mas isto não quer dizer que o sujeito conhece, com certeza, a essência que se desvelou. Assim se impõe, segundo Descartes, a necessidade de um método capaz de oferecer a garantia de obtenção não somente da 60


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O Agir Humano verdade, mas acima de tudo da certeza da mesma. É neste sentido que não se discutirá a suposta essência do real que se manifesta ao intelecto do sujeito, mas a consciência deste sujeito que num ato de intuição é capaz de ter a certeza da verdade em função da evidência, clareza e simplicidade da mesma. É, com efeito, a primeira regra do método “jamais acolher alguma coisa como verdadeira que eu não conhecesse evidentemente como tal; [...] nada incluir em meus juízos que não se apresentasse tão clara e distintamente a meu espírito, que não tivesse ocasião de pô-lo em dúvida” (DESCARTES, 1973, p.53). E este é então o fundamento das demais regras uma vez que a segunda — a divisão das dificuldades, ou a análise — tinha como limite a parcela mais evidente de todas. Segue-se a partir de então a regra da síntese e da revisão e a enumeração. Aqui o parâmetro não é místico ou metafísico, mas matemático e a lógica silogística deixa de ser o instrumento de estabelecimento de relação de necessidade, para dar lugar à consciência do sujeito cognoscente, isto é, o Cogito. Fica claro, portanto, que prevalece ainda em Descartes a perspectiva da verdade-certeza, que, mesmo sobre novos fundamentos, ainda não abre espaço na discussão epistemológica para a categoria da criatividade. Neste caso a necessidade de ser criativo é irrelevante, em face da habilidade em seguir certos procedimentos mecânicos os quais garantiriam a segurança da obtenção de um saber certo e verdadeiro. É dito que a ideia de ciência como um procedimento mecânico de obtenção da verdade está diretamente ligada ao ideal Bacon-Descartes de conhecimento certo e seguro. Aliás, este ideal servirá de pano de fundo para toda a discussão epistemológica posterior a Descartes e mesmo em reação a ele. Constata-se, por exemplo, que toda a tradição empirista pós-cartesiana preserva este ideal de conhecimento certo e seguro agregando a lógica como 61


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O Agir Humano instrumento de demonstração. Esta alternativa, segundo Hempel (1970), garantiria a racionalidade do discurso científico e sob esta ótica a prova dedutiva é capaz de estabelecer a relação de necessidade entre enunciados gerais e enunciados particulares que representam o real.

4. MODELO REPRESENTACIONAL E A SUPER-REAÇÃO A DESCARTES. O ideal científico cartesiano de uma heurística 4 infalível para a montagem de teorias científicas encontra-se hoje desacreditado, mas o binômio verdade-certeza perdura ainda nas teorias da ciência de muitos de seus críticos. Na verdade, a reação à concepção cartesiana de ciência não fez com que o cerne de seu ideal fosse abandonado, exceto a partir do pensamento popperiano, quando se estabelece um segundo nível de reação a Descartes. Mas consideremos por parte.

4.1. O descrédito em relação à possibilidade de captação do real. A reação contra Descartes, pode-se dizer, começa com uma reação ainda mais radical ao pensamento clássico, mais especialmente à metafísica clássica. Trata-se do ceticismo em relação à real possibilidade da natureza se desvelar a uma consciência “Heurística”, do grego “Eureca”, que significa “encontrar” ou “descobrir”. É um método ou processo criado com o objetivo de examinar os procedimentos de descoberta e resolução de problemas, compreendendo esses procedimentos como operação de comportamento automático, intuitivo e inconsciente. A esse respeito ver Moles (1998). 4

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O Agir Humano cognoscente. Na verdade, já diz Locke (1999), se há uma essência no real ela nos é incognoscível. Mas isto não quer dizer que não possamos conhecer, já que o sujeito racional é dotado de categorias intelectivas e sensíveis que o faz representar o real, e é com essa representação que, em última instância, ele dialoga com o mundo. Essa desconfiança na nossa capacidade cognitiva de conhecer a essência do real, cujo significado maior refere-se a uma reação crítica ao realismo epistemológico, traz consigo um desapego à noção clássica de verdade: a noção de verdade com correspondência. Assim, verifica-se um fenômeno peculiar: quanto mais crítico do realismo mais distante da concepção correspondentista de verdade. É neste contexto, então, que se apresentam concepções do tipo coerência, pragmática, mininalistas e outros. Mas, importa ressaltar, é sob este aspecto que se forma uma ortodoxia em relação à ideia de criatividade como uma categoria propriamente psicológica. A criação científica estaria restrita à esfera das afecções privadas e, portanto, um tema que caberia, muito mais, na discussão acerca dos parâmetros das descobertas científicas do que nas análises, sempre a posteriori, dos critérios de justificação das teorias.

4.2. O Empirismo Lógico: A unidimensionalidade da razão. Uma radicalização da crítica ao cartesianismo, pelo menos no que se refere à adoção de um critério absoluto de descoberta da verdade e fixação da certeza, ocorre com o empirismo lógico. De fato, aqui mais do que nunca — talvez somente com o próprio Aristóteles houvesse uma concepção tão radicalmente clara em sua fixação e defesa — ciência é conhecimento demonstrável, ou melhor, logicamente demonstrável. 63


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O Agir Humano Nesta condição, o ponto chave é a exigência de um critério de cientificidade, o qual coloque na experiência a palavra final no que se refere à verdade ou falsidade das teorias. Ora, considerando que o empirismo lógico tem a ciência como conhecimento logicamente demonstrável, as teorias são vistas como um conjunto consistente de sentenças significativas com base nos dados observáveis, os quais também são, em última instância, descrições linguísticas, representativas do real. A ideia básica, então, é a de que é possível caracterizar uma sentença cognitivamente significante por certas condições às quais seus termos constituintes têm que satisfazer. Essas condições, segundo Hempel (1970), referem-se à exigência de ter uma referência experimental e, portanto, seu significado deve ser capaz de explicar por referência exclusiva às observações. Neste sentido, esta abordagem exigirá que se tente especificar, de antemão, o vocabulário que pode ser usado para formar as sentenças. Os elementos deste vocabulário são termos lógicos e termos de significado empírico. Estes últimos dizem respeito àqueles termos definíveis ou explicáveis em função dos termos de observação, os quais podem ser ou predicados de observação (azul, quente, etc.) ou nomes de objetos físicos (água, vulcão, etc.). Fica claro que a abordagem é formulada estabelecendo condições relativas à linguagem. Realmente, conforme conclui Ladriere (1978), se a linguagem contivesse somente termos designando propriedades perceptíveis ou acessíveis à intuição sensível, então seria fácil reformular o princípio empirista sob a forma de um princípio relativo à linguagem. Para Carnap (1988), por exemplo, qualquer termo que tenha significado empírico deve ser definível em função dos termos de observação. Assim na sentença “x é solúvel na água” o termo “solúvel” tem significado empírico se e somente se quando x for 64


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O Agir Humano colocado na água e x se dissolver efetivamente. Mas, esse esforço é altamente restritivo e muitos termos importantes da linguagem científica não poderiam ser explicitamente definidos, como é o caso dos construtos teóricos comuns nas teorias científicas, tais como quark, anti-matéria, ribonucleico e outros. Neste caso, é preciso concordar com Hempel (1970) quando ele afirma que, ao se considerar as teorias como sistemas dedutivos axiomatizados e, portanto, com um vocabulário constituído de termos básicos, termos definidos e termos lógicos, com seus postulados, a teoria pode ser desenvolvida formalmente sem qualquer consideração do significado empírico dos seus termos extra-lógicos, que são os construtos teóricos da teoria. Contudo, esse sistema formal somente se constituirá uma teoria científica se se dispuser de uma interpretação empírica de certos termos ou sentenças. Neste caso, Hempel (1970) apresenta e comenta dois critérios que tal sistema formal deve satisfazer em nome de sua cientificidade. O primeiro deles é o de que um sistema teórico é cognitivamente significante somente se é parcialmente interpretado de modo que nenhuma de suas sentenças primitivas (postulados) é isolada (As sentenças que são perfeitamente dispensáveis na dedução). Mas considerando as limitações desta exigência, Hempel (1970) propõe um novo critério de sentido, o critério de interpretação parcial. Por esse critério, segundo explica Ladriere (1978) um sistema de interpretação para uma teoria T a qual é portadora de um vocabulário V — termos descritivos da linguagem de T — e de um vocabulário W — termos previamente compreendidos — deve satisfazer duas condições: a linguagem do sistema deve ser constituído de proposições compatíveis com T, de tal modo que esse conjunto não contenha nenhum termo descritivo além daqueles fornecidos pelos vocabulários de V e W; e os termos de V e W devem ocorrer essencialmente em T. 65


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O Agir Humano Com efeito, num sistema como esse se estabelece uma conexão entre os termos teóricos e os termos empíricos sem precisar traduzir o primeiro em função dos últimos e, portanto, não permite que se substitua uma proposição teórica por uma proposição empírica, nem tampouco substituir um termo teórico por uma expressão de observação. Naturalmente, lembra Hempel (1970), que tal teoria não pode ter sentenças isoladas, já que estas não contribuem nem para a explicação, nem para a predição que a teoria quer fornecer. O que se pode concluir de tudo isso é a imensa dificuldade de se estabelecer um critério empirista de significado e, portanto, um radical esforço de se locomover dentro dos padrões lógicos justificacionistas, os quais trabalham considerando apenas uma dimensão da razão, a lógica, sem se preocupar ao menos com o suporte histórico para embasar suas teorias da ciência. Ao que parece, uma teoria científica compreendida apenas enquanto sistema formal é cega.

4.3. Kuhn, Lakatos e a crítica ao ponto de vista ortodoxo. O aspecto central da teoria da ciência de Tomas Kuhn está no fato de se constituir numa crítica radical do modelo lógico de explicação da ciência. Neste sentido, sua abordagem aponta para as limitações do justificacionismo e considera a plausibilidade de um modelo explicativo da ciência dentro de um contexto de descoberta5.

5 Os termos “contexto da descoberta” e “contexto da justificação” e os seus significados foram elaborados por Hans Reichenbach e apresentados em seu livro “Experience and prediction: an analisys of the foundations and the structure of knowledge” de 1938. Através dessa terminologia, Reichenbach quis expressar a

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O Agir Humano Na abordagem kuhniana a atividade científica se desenvolve no interior de um quadro referencial que orienta a prática investigativa segundo a psicologia do chamado grupo científico normal. É o que ele compreende com ciência paradigmática ou que se move apoiada no paradigma vigente. Tal paradigma encontra-se sujeito a reverses quando, incapaz de solucionar problemas e dirimir as crises que tais problemas suscitam, é questionado pelos novos investigadores ou por parcela insatisfeita daqueles que foram formados em seus quadros — o grupo científico extraordinário. Tal estado de coisa é denominado por Kuhn de ciência revolucionária e é, neste contexto que, segundo ele, se engendra a mudança de paradigma. Pode parecer que uma análise do ato criador das teorias científicas possa se desenvolver a partir do exame acurado dos fatores psicológicos, sociais e valorativos presentes no contexto das mudanças de paradigma, pois somente neste momento é que se pode falar, segundo Kuhn, de estratégias de solução de anomalias e mesmo de colocação de problemas constrangedores ao paradigma vigente. No entanto, as categorias sociais e psicológicas com que Kuhn analisa a prática científica não permitem uma análise elucidativa da ciência como uma prática criativa intelectual, embora permita elucidar a ciência como uma atividade influenciada. Afinal, se não é exigido do investigador, na ciência normal, atitudes inventivas por que o seria no período revolucionário? Com efeito, não é preciso tanto espírito inventivo e mesmo crítico, num instante em que um paradigma já está suficientemente deteriorado pelas anomalias ignoradas no decorrer de sua existência. O modelo dos programas de pesquisa de Imre Lakatos, no entanto, sugere uma abordagem que procura contemplar tanto a diferença entre o modo de o pensador encontrar seu teorema e seu modo de apresentá-lo.

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O Agir Humano dimensão normativa da prática científica — dimensão esta que Kuhn parece rejeitar —, quanto à dimensão criativa. Lakatos descreve as estratégias que permitem o desenvolvimento científico dentro de um programa de investigação. De acordo com Lakatos (1970), um Programa de Pesquisa consiste num núcleo, num cinturão protetor e numa heurística. O núcleo é constituído pelos pressupostos do programa e o cinturão protetor são as hipóteses auxiliares que mantêm o núcleo irrefutável e a heurística é o que se pode chamar de política de pesquisa, que sugere os tipos de hipótese propostas, os problemas e as técnicas para resolvê-lo. Assim, a heurística é uma parte importante dentro de um programa de investigação. Ela determina a capacidade de progresso ou de degeneração de um programa. De modo que, quando a heurística é suficientemente potente poderá, de um lado, manter por um longo período intacto o núcleo e, por outro, sugerir problemas novos, hipóteses ousadas e, consequentemente, fomentar o progresso teórico do programa de investigação. Portanto, a potência heurística é sinônima de criatividade e oferece outra base de racionalidade para a ciência. Ora, a racionalidade do modelo justificacionista está ligada ao domínio do objetivo, das argumentações e dos esquemas lógicos, das construções teóricas tomadas em si mesmo, isoladas, do ato criador que lhes deu origem — ressaltei anteriormente as consequências e as limitações desse modelo unidimensional. Assim, quando se diz que o modelo explicativo dos programas de investigação de Lakatos oferece outro fundamento de racionalidade para a ciência se quer dizer que ela se encontra alicerçada num modelo de razão entendida, antes de tudo, como algo que designa certa capacidade humana que permite compreender, organizar a ação e resolver problemas. É à luz dessa “outra racionalidade” que se apoia o exame da criatividade científica. 68


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O Agir Humano 5. CRIATIVIDADE, QUADROS PROGRESSO CIENTÍFICO.

CONCEITUAIS

E

Para Moles (1998, p. 59): A Criatividade é a aptidão de criar ao mesmo tempo o problema e sua solução, em todo caso a de cerrar formas constituídas de elementos disparatados, fragmentos de pensamentos, átomos de raciocínio, que denominaremos: Semantemas. Semelhante definição implica que a ciência é uma atividade imaginativa e crítica, conduzida a partir de experiências e teorizações apoiadas por intuições e uma intensa motivação pessoal para obter os melhores resultados possíveis, reunindo os “elementos disparatados” em termos de precisão e resultado teórico. Portanto, a dinâmica da atividade científica não deriva de uma metafísica abstrata, nem da adesão consciente a um código normativo, antes é impulsionada pela tensão psicossocial entre o criativo e o crítico. Sob este aspecto, como bem coloca Ziman (1996, p. 180): “[...] o conhecimento científico não é tão ‘objetivo’ quanto ‘intersubjetivo’ e só pode ser validado e traduzido em ação pela intervenção de mentes humanas”. Nessa condição, o conceito de conhecimento é inteiramente carente de significado desconsiderando alguns atos mentais do sujeito conhecedor. Esses atos envolvem uma variedade de processos tais como, identificação rápida, entendimento claro, capacidade de interpretação, representação e síntese, habilidade para formar metáfora e imaginação criativa. Assim, dificilmente pode-se desprezar na ciência esses elementos básicos da cognição humana individual, sob risco de se voltar para um modelo positivista irrealista da ciência. Nesse sentido, compreende-se a ciência como produto de uma 69


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O Agir Humano intensa e dinâmica atividade mental condicionada por fins e valores cognitivos, morais, sociais e políticos. Exatamente porque a atividade científica revela-se como uma prática criativa é que ela se encontra condicionada pelas tradições de pesquisas. Como afirma Ziman (1996, p. 170), o candidato a cientista deve primeiro aprender seu “tema”. Não basta ter capacidade técnica em áreas como manipulação algébrica ou circuitos eletrônicos. É preciso também estar plenamente familiarizado com os fundamentos conceituais da pesquisa no momento e apreender os paradigmas contemporâneos de uma disciplina. Não se trata aqui de doutrinação, mas de aprender a pensar cientificamente, o que envolve um processo longo e complexo. Em particular, “aprender a pensar cientificamente” é compreender a importância de ir além do ponto de vista individual, sobretudo, internalizar o ponto de vista do grupo, isto é, assimilar o núcleo firme de um programa de investigação, como afirma Lakatos ou aderir ao paradigma, como diz Thomas Kuhn. Por essa razão é possível afirmar que a ciência é um campo de práticas influenciadas. De fato, a ciência que se faz exige uma boa dose de fé na competência e na sinceridade do grupo científico, o que significa dizer, particularmente, que é impossível fazer ciência sem consensualidade. A consensualidade implica forte interação entre os membros de uma comunidade científica. É preciso lembrar que erros e imprecisões são eliminados pela repetição independente dos experimentos ou pela crítica teórica. Assim, a atividade científica se desenvolve no esforço de maximizar a área de consenso e convencer os outros cientistas da validade de uma hipótese nova ou da refutação de uma tese aceita. Portanto, a atitude criativa de cada cientista individual não se impõe a um espaço teoricamente vazio. Antes eles devem ter a consciência do enorme corpo de resultados obtidos por seus 70


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O Agir Humano predecessores e contemporâneos, sob condições de crítica mútua e de resultados persuasivos. Assim, a autoridade intelectual da ciência não decorre exatamente da capacidade técnica de seus praticantes, nem tampouco dos vastos e complexos processos lógicos e epistêmicos de justificação; reside, a meu ver, nos processos pelos quais o conhecimento científico é criado e validado. Com efeito, o próprio desenvolvimento da ciência que se faz exige criatividade, isto é, produção de ideias novas que possam entrar em conflito com teses e opiniões aceitas ou toleradas. Nesse sentido, na medida em que o conhecimento científico está sob constante revisão, à luz de evidências novas, as mudanças científicas se explicam por mudanças na mente dos cientistas, isto é, na coragem e engenhosidade com que o cientista planeja sua pesquisa, percebe o significado das anomalias, aprecia as possibilidades de solução, descarta hipóteses, examina dados e interage com o grupo científico. Portanto, a lógica formal, o racionalismo e o valor de verdade desempenha um papel extremamente restrito no processo de criação. No entanto, se por um lado a atitude criativa é elemento caracterizador do cientista individual que trabalha sob a égide uma tradição de pesquisa, por outro, a criação de novos conceitos e padrões investigativos, que favorecem o desenvolvimento científico, não deixam de gerar um quadro de tensão. Esta tensão decorre da relação conflitante entre o fomento, as atitudes criativas no interior de uma tradição de pesquisa e a resistência da comunidade científica a possíveis inovações e reviravoltas. A história da ciência é repleta de casos que manifestam esse conflito. Por exemplo, o sistema astronômico ptolomaico com todo o seu infindável mecanismo de ajustes, ciclos, epiciclos, encontravase apoiado na tradição de pesquisa aristotélica. Embora altamente criativo, o sistema ptolomaico não inibiu o surgimento de quadros conceituais inovadores, como os decorrentes das teses de Galileu. Com efeito, mesmo quando a escola de Galileu trabalhava num 71


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O Agir Humano outro quadro conceitual, erigido, diga-se de passagem, da crítica ferrenha ao aristotelismo e que favorecia esquemas mentais muito mais criativos, o quadro conceitual do aristotelismo ainda permitiu atitudes altamente criativas de resolução de problemas na área de anatomia e fisiologia na escola de Pádua. É claro que, um quadro conceitual em si mesmo não é criativo ou não criativo, a criatividade é um atributo do sujeito, do investigador e a criação de pensamentos conceituais se efetua num clima de motivação e tensão. Assim, o empreendimento científico em si mesmo não é resistente a inovações conceituais radicais, mas só o aceita depois que todas as interpretações ortodoxas falharam e isso pode levar um tempo considerável a depender do grau de desenvolvimento de um programa de pesquisa. A meu ver, tal comportamento é perfeitamente justificável quando se considera que cada tradição de pesquisa vê a si mesma como guardiã do “mundo real”. E isso tem consideráveis consequências para o modo como os cientistas se comportam no interior dessas tradições de pesquisa.

6. CONCLUSÃO. O conhecimento científico não é portador de uma racionalidade superior, como sugere certos padrões de racionalidade fomentados por uma visão materialista da prática científica. Contrapõe-se a essa concepção, não apenas uma tradição de pesquisa, mas também uma variedade de processos mentais e compromissos morais, sociais e políticos. Nessa condição, a ciência dificilmente pode ser compreendida a partir dos procedimentos lógicos-formais, à medida que uma tal análise promove uma visão, em muitos aspectos, irrealista da atividade científica.

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O Agir Humano Nesse sentido, a promoção da ciência como um empreendimento de que decorre a descrição fiel do mundo, isto é, um empreendimento voltado à verdade e a certeza, descarta como secundário alguns elementos fundamentais da prática científica “normal”, tais como, as intuições, as motivações pessoais e a atitude criativa. Procurei demonstrar, então, que a racionalidade que caracteriza a atividade científica define a ciência como produto de uma intensa e dinâmica atividade mental ou intelectual; ao mesmo tempo, como um campo de práticas influenciadas; e, finalmente, como um empreendimento que está sujeito às mudanças científicas, as quais se explicam por mudanças na mente dos cientistas individuais. Enfatizei, então, que esses elementos, atuando em conjunto, são geradores da tensão que caracteriza o empreendimento científico e o comportamento do cientista. Ainda mais, é precisamente essa tensão que definirá a ciência como um saber que progride. Portanto, qualquer teoria da ciência construída à luz do exame dos fundamentos para a crença no conhecimento científico há de considerar a posição do sujeito conhecedor e, assim, a atitude criativa a que ele é chamado a desenvolver para que o empreendimento científico floresça.

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3 LINGUAGEM E CULTURA EM WITTGENSTEIN Guilherme Paiva de Carvalho Martins1

O presente estudo aborda a relação entre a concepção de linguagem em Wittgenstein e a temática da cultura. Primeiramente, pretende-se tratar do conceito de proposição no Tractatus Logico Philosophicus para demonstrar os limites da figuração da realidade e a impossibilidade de uma reflexão acerca dos valores ético-culturais a partir de uma concepção purificada da linguagem, baseada nos preceitos da lógica e na ciência. Em seguida, são abordadas as noções de jogos de linguagem e vivência da significação. Para tanto, tomase como referência a obra Investigações Filosóficas. Tais conceitos propiciam uma reflexão sobre a construção de valores morais e a formação da identidade cultural. A obra de Wittgenstein é um marco na filosofia da linguagem. Entre as doutrinas filosóficas que exerceram influência sobre a perspectiva de Wittgenstein destacam-se as abordagens de Frege e Bertrand Russel concernentes à lógica. A estrutura dos discursos construídos pelo ser humano é tratada pela lógica. Tais discursos se referem à realidade que cerca o ser humano. Seguindo esses pressupostos, a filosofia da linguagem pode ser entendida como uma teoria do significado e da proposição (SANTOS, 2001). Em 1879, Frege publicou o livro Conceitografia, obra que constituiu o referencial teórico da filosofia analítica e dos sistemas lógicos da modernidade (citado por SANTOS, 2001). Na lógica, Doutor em Sociologia e professor do Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais e Humanas da UERN/Mossoró (E-mail: guimepaivacarvalho@gmail.com). 1


Investigações sobre

O Agir Humano Frege (1999) propôs uma análise sobre as funções de verdade das proposições, enfatizando a relevância do sentido e da referência. Uma das principais inovações de Frege na lógica foi mostrar que as condições de verdade de uma proposição se baseiam no sentido da proposição. Assim, um enunciado só pode ser considerado verdadeiro ou falso se apresentar um significado, ou seja, um sentido. Por sua vez, Russel tratou da natureza do sentido proposicional e da natureza da lógica como forma de conhecimento da realidade. Com este intuito, estabeleceu uma distinção entre o formato lógico da proposição e sua estrutura gramatical. Na visão de Russel, o sentido proposicional depende da articulação entre os significados das partes da proposição. Para Frege e Russel, as especulações metafísicas ligadas à moral, à ética e a noções de justiça, são totalmente desprovidas de sentido, constituindo, por conseguinte, discursos sem significado (SANTOS, 2001). Entre as obras de Wittgenstein que abordam o conceito de linguagem, merecem destaque o Tractatus Logico Philosophicus e as Investigações Filosóficas. O Tractatus Logico Philosophicus corresponde à primeira fase do pensamento de Wittgenstein, etapa em que a definição da linguagem é influenciada por Frege e Russel. A obra Investigações Filosóficas marca uma mudança em sua visão sobre a linguagem, correspondente à segunda fase do seu pensamento. O texto apresentado aqui trata da concepção de linguagem nas duas fases do pensamento de Wittgenstein. É abordada, na primeira parte, a definição do conceito de proposição como forma de descrição da realidade, destacando os limites da ideia de linguagem como modo de figuração do mundo para abordar a problemática dos valores culturais e da identidade. Na segunda parte, enfatiza-se a mudança na perspectiva de Wittgenstein, com destaque para a questão do uso da linguagem no cotidiano e a crítica à primazia da primeira pessoa. Os conceitos de jogos de linguagem 78


Investigações sobre

O Agir Humano e vivência da significação, os quais possibilitam uma reflexão sobre a dimensão da cultura, são discutidos na última parte desse estudo.

1. A LINGUAGEM PHILOSOPHICUS.

NO

TRACTATUS

LOGICO

No Tractatus Logico Philosophicus, Wittgenstein relaciona a lógica com a filosofia, propondo uma análise da estrutura da proposição. Há uma articulação entre a tradição lógica inaugurada por Frege e Russel e a crítica do conhecimento. Wittgenstein estabelece uma articulação entre linguagem, pensamento e realidade, tomando como referência a questão do conhecimento. A questão do conhecimento, abordada a partir do viés da linguagem, é fundamental para Wittgenstein. Há uma referência à teoria do conhecimento já que se levanta a questão sobre o que é possível conhecer. Ao analisar a essência da proposição, Wittgenstein constata que só é possível conhecer o que é possível dizer. Deste modo, existiriam limites para o pensamento humano, demarcados pelas fronteiras de uma concepção sobre a linguagem fundada na lógica. A demarcação dos limites da linguagem permite mostrar o que é possível pensar e dizer. Como afirma Wittgenstein (2001, p.131) no Prefácio do Tractatus Logico Philosophicus, “o que se pode em geral dizer, pode-se dizer claramente; e sobre aquilo de que não se pode falar, deve-se calar”. A lógica tem como objeto de estudo a estrutura do discurso. Os discursos proposicionais dotados de sentido e significação tratam da realidade. Tudo depende do sentido do discurso. Se do discurso for possível dizer ou que é verdadeiro ou que é falso, então é uma proposição e possui significado. Nesse sentido, a relação entre as proposições e o mundo é uma questão central para Wittgenstein (2001). Esta questão é 79


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O Agir Humano entendida a partir da relação entre linguagem e realidade. As proposições são afirmações sobre um estado de coisas. Se houver uma referência a um estado de coisas, a proposição é verdadeira. Caso não haja, ela é falsa. Para que tenha sentido é preciso que possa ser julgada como verdadeira ou falsa. Se for possível julgá-la, ela tem sentido. Wittgenstein (2001) substitui as relações entre sujeito-objeto pela relação entre linguagem e fatos, ou seja, entre as proposições e estados de coisas. Assim, a linguagem dá sentido à realidade; não como se significasse entes ontologicamente determinados, mas estados de coisas. Substância em Wittgenstein corresponde a estados de coisas. Como proposições elementares, os signos constam de nomes que correspondem a estados de coisas elementares, fatos atômicos, ou seja, não decomponíveis. Quando os nomes são combinados, formam uma proposição. Como afirma Wittgenstein (§3.141, 2001, p.149), “a proposição não é uma mistura de palavras. [...] A proposição é articulada”. Seguindo esta perspectiva, a proposição seria um modo de “figuração da realidade” que corresponde à “descrição de um estado de coisas” (WITTGENSTEIN, §4.021-§4.023, 2001, p.169). A figuração pode concordar ou não com a realidade, podendo ser “correta ou incorreta, verdadeira ou falsa” (WITTGENSTEIN, §2.21, 2001, p.147). É preciso que haja correspondência entre a proposição e os fatos observados na realidade. Desta maneira, “a totalidade dos pensamentos verdadeiros” consiste em um modo de “figuração do mundo” (WITTGENSTEIN, §3.01, 2001, p.147). Na proposição, os nomes são combinados da mesma forma que os estados de coisas nomeados aparecem combinados na realidade. A proposição verdadeira reproduz o estado de coisas que é a realidade, mas não a falsa. A proposição falsa não combina nomes como o é o estado de coisas que ela procura descrever, denotando o significado ou o sentido da proposição. Wittgenstein 80


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O Agir Humano (2001) se refere ao conhecimento humano, sustentando que a legitimidade das ciências empíricas tem como base os fatos observados na realidade. Por outro lado, a metafísica consiste em um saber que não apresenta significação em seus discursos, pois não há referência entre seus discursos e a realidade. Ademais, um discurso pode ter sentido, sem possuir um referente. Para esse Wittgenstein, o primeiro, o discurso metafísico não possui sentido e, menos ainda, referente. Todavia, não é por não possuir referente que não tem sentido, mas não tem sentido porque não se pode discutir sua veracidade, ou seja, sua referência. Constata-se, consequentemente, a ilegitimidade da metafísica e a impossibilidade de um conhecimento sobre os valores ético-culturais, já que as proposições da ética também não são passíveis de verificação. Wittgenstein pretende “especificar a essência da proposição”, ou “a essência de toda descrição e, portanto, a essência do mundo” (citado por SANTOS, 2001, p.16). A finalidade da proposição seria descrever a essência do mundo, ou a essência da realidade. Desta maneira, a linguagem é entendida como uma forma de descrição da realidade. A ideia segundo a qual o que é possível pensar também é possível dizer constitui um princípio fundamental para Wittgenstein, que propõe uma filosofia sobre tudo que se pode dizer. As proposições que fazem referência ao mundo ou à realidade encontram-se na linguagem. Deste modo, os limites da linguagem demarcariam as fronteiras do pensamento humano. A validade do discurso se assenta sobre sua capacidade de ser propositivo, ou seja, de possuir sentido. Nos casos em que a enunciação expressar um sentido, ela pode ser considerada verdadeira ou falsa. Quando não é possível analisar a veracidade de uma enunciação ela não possui sentido. Para afirmar, por exemplo, que o desmatamento da floresta amazônica é uma das causas do aquecimento global, tomam-se como referência fatos empíricos (neste caso, o desmatamento da floresta e o aquecimento global) 81


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O Agir Humano para compor esta proposição. Do mesmo modo, a proposição que sustenta o contrário, ou seja, que o desmatamento da floresta amazônica não tem nada haver com o aquecimento global, apresenta um sentido já que contém elementos empíricos observados na realidade. A proposição pode ser considerada falsa se as evidências, ou seja, os fatos empíricos ou o estado de coisas a que ela faz referência não forem comprovados. Em ambos os casos, a enunciação possui sentido, mesmo sendo falsa, na medida em que tem pode-se discutir sua referência a fatos da realidade. Logo, o sentido da proposição fundamenta-se na relação entre a linguagem e a realidade. Na visão de Wittgenstein (2001), as proposições da linguagem (escrita ou falada) correspondem a uma combinação significativa de elementos devido à conexão entre signos diferentes que aparecem combinados. As conexões compõem o que Wittgenstein (2001) chama de relações projetivas baseadas no método de projeção, isto é, nas interconexões entre a linguagem e a realidade. O signo proposicional é uma forma de representação da situação encontrada. Seu significante é arbitrário, porquanto convencionalmente referido a estados de coisas. Mas, enquanto proposicional, enquanto pretendendo significar estados de coisas, o uso dos signos não é arbitrário. Ainda, articulados, os signos ou proposições elementares compõem proposições mais complexas. As possibilidades de articulação entre signos adotados para representar a realidade caracteriza a multiplicidade lógica. A linguagem é vista como um sistema de signos dotado de conteúdo significativo que pode representar diversas situações da realidade, articulada através de regras sintáticas e convenções semânticas. Contudo, como compreender o sentido da proposição? Ora, o sentido da proposição é um fato. Isto quer dizer que os objetos aparecem combinados na realidade. Na proposição, os nomes são 82


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O Agir Humano combinados. Daí se infere que a proposição diz respeito ou pretende representar um fato. Para que a proposição seja verdadeira é necessário que os nomes combinados no signo proposicional estejam designando estados de coisas existentes na realidade. Então, qual é o contato entre a proposição e a realidade? A interligação entre proposição e realidade ocorre quando os nomes que aparecem na composição do signo proposicional correspondem a fatos empíricos. A estrutura da linguagem é composta por sentenças complexas e atômicas. Diversamente das sentenças complexas, as sentenças atômicas são aquelas que descrevem fatos atômicos, ou seja, não decomponíveis em outros fatos mais elementares. Proposições genuínas pretendem descrever sempre fatos que ou são atômicos ou podem ser decomponíveis em fatos atômicos, “fatos que em princípio podem ser verificados pela observação”, de tal modo que “as proposições significativas são totalmente redutíveis a proposições elementares ou atomísticas, afirmações simples descrevendo um possível estado de coisas” (POPPER, 1972, p.69). Somente uma proposição diz alguma coisa acerca do mundo, desta forma, é possível avaliar uma proposição como verdadeira ou falsa. Os fatos complexos estão interligados a proposições complexas. O valor de verdade depende do sentido da proposição. Os conectivos das sentenças complexas devem ser “verifuncionais” para que a sentença tenha valor de verdade. Tal valor de verdade está fundado nas partes que compõem a sentença. Desta maneira, a sentença só terá valor de verdade se cada parte da proposição tiver valor de verdade ou falsidade. Seguindo esse raciocínio, o pensamento é limitado pela linguagem. No Tractatus Logico Philosophicus, Wittgenstein apresenta os limites do pensamento e, consequentemente, os limites do inteligível. A finalidade da filosofia é, nesta perspectiva, possibilitar um “esclarecimento lógico dos pensamentos” (WITTGENSTEIN, 83


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O Agir Humano §4.112, 2001, p.177). É, portanto, uma atribuição da filosofia, tornar as proposições claras e delimitar de modo preciso os pensamentos. Por um lado, a filosofia da linguagem de Wittgenstein tornou-se a base do positivismo lógico, de acordo com o qual as noções metafísicas, éticas e teleológicas são destituídas de sentido já que não são passíveis de verificação. A partir daí temos o questionamento do positivismo às concepções metafísicas. O valor de verdade e falsidade das proposições se fundamenta em uma visão purificada e universal da linguagem já que os signos proposicionais são dotados de uma coerência lógica. Neste caso, interessam somente as proposições com conteúdo significativo que podem ser analisadas pela lógica. A concepção purificada e universal da linguagem considera somente os discursos dotados de sentido ou significação como científicos. Tal perspectiva limita o uso válido da linguagem a proposições, ou seja, a discursos que fazem referência a fatos. Nessa concepção purificada da linguagem são considerados como providos de sentido os discursos da moral e, consequentemente, os valores culturais. É necessário reconhecer que tanto o pensamento quanto a realidade são caracterizados pela complexidade. Uma visão mais abrangente da linguagem propicia uma reflexão sobre as questões que envolvem a temática da cultura e a questão dos processos de significação relacionados à construção e incorporação dos valores ético-culturais. Na segunda fase do seu pensamento, Wittgenstein reformula o conceito de linguagem, definindo-o como uma prática habitual ligada a significações construídas na convivência dos indivíduos em comunidade.

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O Agir Humano 2. O USO DA LINGUAGEM NO COTIDIANO. A segunda fase do pensamento de Wittgenstein é marcada por uma mudança em sua compreensão da linguagem. No livro Investigações Filosóficas, Wittgenstein (1991) desenvolve a noção de jogos de linguagem, ou a ideia de multiplicidade de jogos de linguagem, a qual refere-se à diversidade de usos das palavras e expressões e, por conseguinte, da linguagem no cotidiano. Há, nas Investigações Filosóficas, uma reflexão sobre a comunicação humana e o uso da linguagem na práxis, isto é, em atividades habituais. É importante analisar o uso da linguagem nas práticas sociais. A abordagem da linguagem abrange uma visão acerca da estruturação da mente humana mediante a análise dos modos de utilização da linguagem no cotidiano. É possível observar, por um viés, a relação entre a filosofia da linguagem e a filosofia da mente. A estruturação da mente humana é discutida a partir da reflexão sobre a multiplicidade de usos da linguagem na comunidade. Os eventos mentais não são vistos como experiências que só poderiam ser vivenciadas pelo próprio indivíduo, ou seja, por uma subjetividade separada do contexto. Para conhecer as formas de utilização da linguagem e o mundo objetivo é necessário apreender a linguagem. Portanto, o aprendizado da linguagem é condição para o conhecimento de si mesmo, ou seja, a compreensão da subjetividade pressupõe o compartilhamento e a aprendizagem da língua. Durante o convívio com outras pessoas, o indivíduo compartilha significações, valores, apropriando-se dos modos de uso da linguagem na comunidade. Há, neste sentido, uma reflexão sobre a linguagem, a psicogênese da fala e a estruturação da mente. Wittgenstein (1991) faz referência às formas primitivas da linguagem empregadas por crianças. O ensino da linguagem consiste em uma forma de treinamento direcionado para que as crianças utilizem signos e 85


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O Agir Humano tenham reações às palavras e expressões de outras pessoas. Como sugere Wittgenstein (§5, 1991, p.11), “quem ensina mostra os objetos, chama a atenção da criança para eles, pronunciando então uma palavra [...]”. No convívio social, o indivíduo aprende a linguagem, passa a conhecer o mundo objetivo mediante o aprendizado das palavras e expressões que servem para designar objetos, descrever situações ou expressar pensamentos, sentimentos e sensações. Wittgenstein (1991) se refere à noção de linguagem privada para discutir os modos de expressão das sensações. O uso da linguagem é importante para designar objetos e expressar sensações. Os signos podem funcionar de diversos modos, servindo para várias finalidades como transmitir pensamentos e descrever situações. Todavia, a linguagem precisa ser inteligível para todas as pessoas que convivem na comunidade, não sendo, portanto, privada. Há uma crença na ilusão da primeira pessoa, pois o indivíduo acredita ter mais certeza das suas próprias sensações e estados mentais do que de outras pessoas. O indivíduo observa de forma indireta o estado mental de outras pessoas, como elas utilizam palavras em determinados contextos para expressar sensações e sentimentos. A ideia de que a sensação de dor só pode ser sentida pelo indivíduo que está sofrendo de alguma maneira corresponde à teoria cartesiana da subjetividade, concepção fundamentada na primazia da primeira pessoa com relação aos estados mentais. Há uma crítica de Wittgenstein (1991) a esta perspectiva. Se fosse dessa forma, não seria possível expressar uma sensação mediante o uso de palavras inteligíveis correspondentes à linguagem geral ou à linguagem pública. “Minhas palavras que designam sensação estão ligadas a minhas manifestações naturais de sensação; neste caso, minha linguagem não é ‘privada’. Um outro poderia compreendê-la como eu”. Como seria, então, se uma pessoa “não possuísse manifestações naturais da sensação, mas apenas a sensação?” 86


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O Agir Humano (WITTGENSTEIN, §246, 1991, p.95). As pessoas associam nomes a suas sensações e empregam signos para descrever um sentimento ou descrever uma situação. Wittgenstein (1991) questiona a primazia dada para a primeira pessoa, baseada na concepção de Descartes acerca da subjetividade como fundamento do conhecimento. É enfatizada a prioridade da terceira pessoa já que o mundo é considerado sob o prisma do significado. Há um modo particularmente humano de compreender o mundo e conceber os objetos observados na realidade através do uso da linguagem e da significação das coisas. A filosofia, seguindo esta perspectiva, se direciona para uma análise e descrição dos aspectos que caracterizam a comunicação e a mente humana. Para conhecer a estrutura da mente é preciso conhecer os modos de uso da linguagem em práticas habituais. No tocante à primazia da primeira pessoa, Wittgenstein (1991) levanta o seguinte questionamento: como sustentar que as sensações são privadas? O argumento da linguagem privada, que defende o caráter subjetivo das sensações e das formas de representação das coisas, é questionado. Tomando o exemplo da sensação de dor, Wittgenstein (§246, 1991, p.95) diz que quando se afirma: somente “eu posso saber se realmente tenho dores; o outro pode apenas supor isto”; há aí uma sentença falsa e até mesmo absurda. O §247 dá continuidade à argumentação e mostra que: “‘Apenas você pode saber se você tinha a intenção’. Poder-se-ia dizer isto a alguém, se lhe fosse elucidado o significado da palavra ‘intenção’. Isto significa então: nós a usamos assim” (WITTGENSTEIN, §246, 1991, p.95). Desta forma, é uma ilusão achar que as sensações e as representações são relativas somente a uma forma de linguagem privada. Para que o indivíduo possa expressar sentimentos, descrever situações, demonstrar uma sensação, é preciso apreender o significado das palavras e os modos de uso da linguagem, 87


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O Agir Humano compartilhados pela comunidade. As pessoas se expressam e utilizam palavras em determinados contextos, apropriando-se de uma linguagem inteligível para a comunidade em que vivem. Se a linguagem fosse privada, não seria possível expressar uma sensação mediante o uso de palavras inteligíveis correspondentes à linguagem geral, ou ao que Wittgenstein (1991) chama de linguagem pública. As pessoas associam “nomes a sensações” e empregam “esses nomes em uma descrição”. O § 257 complementa o argumento anterior. Wittgenstein apresenta a seguinte argumentação: ora, a palavra “sensação” “é [...] uma palavra de nossa linguagem geral e não de uma linguagem inteligível apenas para mim. O uso dessa palavra exige, pois, uma justificação que todos compreendem”. Como seria se os homens não manifestassem suas dores (não gemessem, não fizessem caretas, etc.)? Então não se poderia ensinar a uma criança o uso das palavras ‘dor de dente’. Ora, imaginemos que a criança seja um gênio e descubra por si própria um nome para a sensação! Mas então, é claro, não poderia fazer-se entender com esta palavra. [...] Quando se diz: ‘Ele deu um nome à sensação’, esquece-se o fato de que já deve haver muita coisa preparada na linguagem, para que o simples denominar tenha significação (WITTGENSTEIN, §261, 1991, p.98).

Uma criança pode inventar um nome para se referir a um determinado objeto, como, por exemplo, a água. Imagine que entre os pais, ela se refira à “água” com outro nome. Os pais entenderão que quando a criança falar o nome, ela quer água. No entanto, se for para a casa de outros familiares que não sabem que ela criou um nome para designar a água, as pessoas não compreenderão o que a criança quer quando utilizar um nome inteligível somente para ela e seus pais. Mesmo se os pais explicarem aos colegas que a filha 88


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O Agir Humano inventou um nome para se referir à água, para tornar o nome público seria necessário tornar público para toda a comunidade o fato. Portanto, as palavras só têm sentido quando estão associadas às condições de torná-las públicas. A referência da linguagem é pública. Supor que a referência é privada seria o mesmo que negar a publicidade do sentido. Se os estados mentais correspondem a uma linguagem privada não seria possível referir-se a eles mediante o uso de palavras que compõem a linguagem geral, ou seja, a linguagem pública. O aprendizado e o domínio da língua possibilitam o conhecimento dos modos de usos da linguagem na comunidade, sendo essenciais para a comunicação entre as pessoas. “Podemos apenas dizer alguma coisa, se aprendemos a falar”. Ninguém advinha como uma palavra é utilizada e nem mesmo em que circunstâncias. É necessário “ver seu emprego e aprender com isso” (WITTGENSTEIN, §340, 1991, p.114). Só vemos e aprendemos a empregar as palavras e as expressões através do aprendizado da língua no cotidiano. É no dia-a-dia que a criança aprende a utilizar palavras e expressões à medida que conhece os usos da linguagem e incorpora significações mediadas pela convivência na comunidade. Uma pessoa só pode dizer que alguém fala consigo mesmo se lhe ensinaram “a significação da expressão ‘falar consigo mesmo’” (WITTGENSTEIN, §361, 1991, p.118). Foi durante o convívio com outras pessoas que aprendeu, desde criança, o significado de diversas palavras e expressões. Wittgenstein (1991) sustenta a prioridade da terceira pessoa, tendo em vista que a linguagem é pública e a referência do significado direciona a multiplicidade de usos da língua na comunidade. Há um modo particularmente humano de compreender o mundo e conceber os objetos observados na realidade através do uso da linguagem e da significação das coisas. É interessante notar como Wittgenstein se aproxima de uma perspectiva que considera o aprendizado da 89


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O Agir Humano linguagem como um princípio fundamental para o desenvolvimento da capacidade de pensar. O aprendizado e o domínio da língua são essenciais para o conhecimento da multiplicidade de usos da linguagem no cotidiano. A criança aprende a empregar as palavras e a ter reações a expressões mediante a incorporação e o aprendizado da língua nas práticas habituais. Além do significado dos objetos, a criança incorpora valores a partir do aprendizado da linguagem que compartilha no grupo social do qual faz parte. As significações dependem do modo como a comunidade atribui significações e valores a determinados objetos. É interessante observar como são construídos valores em relação a palavras. Nas sociedades ocidentais, a cor rosa é associada a coisas de menina enquanto o azul a coisas de menino. Mesmo se a criança não incorporar no meio familiar os valores relacionados a categorizações de gêneros ligados às cores que o rosa e o azul representam para a sociedade, é provável que incorpore na escola ou através da mídia. Valores, sentimentos e sensações têm uma referência pública, não sendo, portanto, privadas. Wittgenstein (1991) sustenta que o indivíduo só pode expressar uma angústia ou um sentimento de dor se conhecer as significações atribuídas a palavras pela comunidade que compartilha uma língua. É no convívio social que a criança aprende significações e incorpora valores no processo de comunicação com outras pessoas em contextos específicos. O conhecimento da multiplicidade de usos da linguagem depende, nesta perspectiva, da vivência da significação que o indivíduo incorpora no meio social a partir de práticas e do uso habitual da língua.

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O Agir Humano 3. JOGOS DE SIGNIFICAÇÃO.

LINGUAGEM

E

VIVÊNCIA

DA

O conceito de jogos de linguagem corresponde ao processo de uso das palavras no cotidiano. As formas de utilização da linguagem para designar objetos e expressar sensações caracterizam a multiplicidade dos jogos de linguagem. Nas Investigações Filosóficas, Wittgenstein (1991) ressalta que a linguagem pode funcionar de diversos modos, servindo para várias finalidades como transmitir pensamentos, expressar sensações, ou descrever situações. A experiência imediata da consciência não é um dado, mas sim as formas de vida que apresentam, por sua vez, diversos modos de utilização da linguagem. A primeira pessoa considerada isoladamente não nos oferece nenhuma certeza plausível. Para se comunicar com os outros é preciso aprender as formas de utilização da linguagem nas práticas habituais. Logo, o conhecimento do mundo torna-se possível mediante o aprendizado de uma língua. Na Segunda Parte das Investigações filosóficas, Wittgenstein (1991) se refere ao uso da linguagem em contextos de comunicação específicos, ou ao uso habitual da linguagem em determinadas situações. Wittgenstein (1991) cita a seguinte frase para fazer referência ao uso da língua em determinados contextos: “quando ouvi a palavra, ela significou para mim...”. Destaca-se aí o contexto no qual a palavra é empregada. Outras expressões podem ser utilizadas para que possamos nos referir a um dado momento e a uma determinada ação ou situação, como quando se diz: “eu quis dizer naquela ocasião que...”. Em determinados contextos de comunicação, as palavras podem adquirir sentidos ou significações diferentes. Para tratar do contexto em que a linguagem é empregada, Wittgenstein (1991) se refere aos conceitos de “vivência da significação” e “vivência da imagem da representação”. A problemática da vivência da 91


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O Agir Humano significação é mencionada na seguinte proposição: “Dona Rosa não gosta de rosa”. Neste caso, a primeira “rosa” poderia corresponder à significação de um nome próprio, “Dona Rosa”, enquanto a segunda “rosa” faria referência à flor (qualquer rosa já que “Dona Rosa não gosta de rosa”) em um sentido genérico. Ora, a primeira “rosa” tem um significado diferente da segunda “rosa”. Há formas diferentes de pensar a significação da primeira e da segunda “rosa”, mesmo fazendo um esforço mental para imaginar a primeira “rosa” como nome próprio e a segunda como um nome comum. Ao emitir a expressão “Dona rosa não gosta de Rosa”, mantendo a mudança da significação dos termos somente em nossa mente, outra pessoa que venha a escutar a frase não a entenderá do mesmo modo que nós a representamos. Provavelmente, a pessoa compreenderá a frase do modo habitual. Wittgenstein (1991, p.179) mostra que “cada palavra [...] pode ter caráter diferente em contextos diferentes [...]”. Se uma pessoa afirma que “tem dores” (WITTGENSTEIN, 1991, p.185) não quer dizer que esteja expressando um sofrimento físico, descrevendo um estado do seu corpo. Pode ser que esteja querendo descrever um estado de sua alma, expressando, então, um sentimento, uma mágoa, um arrependimento, a compaixão pelo sofrimento de outras pessoas, ou mesmo se queixando de alguma outra coisa. A significação da expressão depende do contexto em que a frase é enunciada. Frases são enunciadas em contextos específicos. Uma pessoa que ficou gripada e diz que “sente dores”, expressa um sofrimento físico. Se tivesse sofrido uma decepção amorosa poderia dizer também que “sente dores”, entretanto, estaria descrevendo, nesta situação, um estado da alma. No convívio social com a comunidade, as pessoas vivenciam e se apropriam de modos diversificados das significações compartilhadas pelo grupo. Se o emprego das palavras depende do 92


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O Agir Humano contexto, o indivíduo empregará as palavras de acordo com as significações que os signos possuem para as pessoas que compartilham a língua na comunidade. Daí se infere que o uso da linguagem se relaciona com as formas de vida, isto é, o “jogo de vivência da palavra” (WITTGENSTEIN, 1991, p.209) e os contextos de comunicação. Wittgenstein (1991) cita o exemplo do “cálculo de cabeça”. Ora, somente para a pessoa “que aprendeu a calcular – por escrito ou oralmente – pode-se tornar compreensível [...] o que é o cálculo de cabeça”, pois no convívio com o grupo o indivíduo apreendeu o significado do que é o conceito de cálculo, podendo, então, utilizar e se fazer entender quando afirmar que vai realizar um “cálculo de cabeça”. Como sugere Valle (2009), a partir da abordagem de Wittgenstein sobre a linguagem nas Investigações Filosóficas seria possível tratar de conceitos importantes para uma reflexão sobre a cultura. Com o conceito de multiplicidade dos jogos de linguagem, Wittgenstein retoma o modo habitual de uso da linguagem no cotidiano, referindo-se às formas de utilização das palavras e das expressões em contextos sociais específicos. O aprendizado da língua na convivência com outras pessoas em uma determinada comunidade possibilita o compartilhamento de significações e, por conseguinte, de valores ético-culturais. Sentimentos, valores e modos de identificação do grupo encontram-se nas significações e na multiplicidade de usos da linguagem compartilhada pela comunidade. Neste sentido, a identidade cultural é construída no convívio social a partir do compartilhamento da multiplicidade de jogos de linguagem e na vivência das significações. É preciso ressaltar que Wittgenstein não desenvolveu intencionalmente uma filosofia da cultura. Contudo, a sua concepção de linguagem propicia uma reflexão sobre as formas de significação compartilhadas pela comunidade em situações 93


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O Agir Humano habituais. É apontada, neste viés, a relevância dos problemas da cultura. O paradigma da razão universalista desconsidera as particularidades ou especificidades dos grupos sociais que utilizam uma língua como meio de comunicação. Tal paradigma sustenta a autonomia da razão universal e se encontra, por exemplo, na ideia de Habermas da universalidade da razão comunicativa. Seguindo outra perspectiva, Wittgenstein retoma a questão da construção de significações na convivência entre os indivíduos em comunidade, possibilitando uma reflexão sobre a formação da identidade cultural. Os conceitos de jogos de linguagem e vivência da significação propiciam uma análise reflexiva sobre o uso da linguagem em contextos específicos, levando em consideração as particularidades de cada grupo social através de uma visão acerca da multiplicidade das formas de utilização da língua. O uso da linguagem em uma comunidade proporciona o compartilhamento da língua no grupo. Se o indivíduo é diluído na sociedade, no grupo do qual faz parte afirma a sua identidade mediante valores, modos de uso da linguagem e significações compartilhadas pela comunidade. É atribuído um significado cultural para a linguagem, pois ela expressa valores étnico-culturais específicos de cada grupo social. Wittgenstein tenta redirecionar a linguagem para o âmbito familiar, analisando o uso da língua no cotidiano, contrapondo-se a uma visão universalista da linguagem. É no contexto das formas de vida na comunidade que palavras e expressões adquirem um significado específico para o grupo. Ao pertencer a uma comunidade, o indivíduo compartilha o modo de vida do grupo através do uso habitual da linguagem. A linguagem é compartilhada pelas pessoas em práticas habituais, isto é, no cotidiano. Os indivíduos utilizam a linguagem para se comunicarem uns com os outros. Desta forma, a língua, os modos de significação e os valores ético-culturais são compartilhados pela comunidade. 94


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O Agir Humano Wittgenstein reformula o conceito de linguagem nas Investigações Filosóficas, relacionando-a com a concepção de jogos de linguagem e vivência da significação. A atribuição da filosofia passa, então, a ser redirecionar as palavras do seu emprego metafísico para o uso cotidiano, observando os processos de significação em determinados contextos. Brasil e Portugal, por exemplo, são sociedades que compartilham a mesma língua, no entanto, os processos de significação entre as pessoas que vivem nos dois países se diferenciam. A convivência entre grupos diversificados de índios, índias, africanos, africanas, europeus e europeias oriundos de variadas regiões propiciou o desenvolvimento de um vocabulário peculiar no Brasil, diferenciado do português europeu. Apesar da diversidade2 de línguas africanas e indígenas, a vivência da significação no Brasil colônia proporcionou o desenvolvimento de um dialeto português que incorporou elementos da família linguística Níger-Congo e indígena Tupi. Palavras como “senzala”, “mucama”, “quilombo”, “açaí”, “canoa”, “carioca”, entre outras, são originários das famílias Níger-Congo e Tupi, apresentando significações específicas para o povo brasileiro. Além das significações, o modo de falar se diferencia na sociedade brasileira, sendo constituído pela diversidade de culturas que formaram a sociedade. Segundo Silva e Machado Filho (2009, p.301), “construções como umas caixaø ou As lavraø é nosso” 2 De acordo com Silva e Machado Filho (2009), chegaram ao Brasil “entre duzentas e trezentas línguas africanas durante todo o período do tráfico, a grande maioria delas, à exceção do hauçá [...] pertencia ao tronco CongoCordofaniano, a uma única família linguística, isto é, a Níger-Congo [...]”. Em relação à diversidade da língua indígena, Rodrigues (2005, p.35) mostra que as estimativas evidenciam a existência “de cerca de 1,2 mil [...] diferentes línguas faladas em nosso atual território pelos povos indígenas”. Atualmente, o número se reduz a 180 línguas que possuem o tronco tupi como estabelecido e o macro-jê com um caráter ainda hipotético.

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O Agir Humano correspondem a “ocorrências morfossintáticas” característicos do dialeto quimbundo que influenciou tanto o português angolano como o brasileiro. Na estrutura linguística do quimbundo, “o morfema -s de número do português basta ser acrescentado ao determinante, para indicação da pluralização do nome” (SILVA; MACHADO, 2009, p.301). Contudo, no Brasil a regra linguística originária do quimbundo é estigmatizada tanto na escrita quanto no modo de falar, sendo contrária ao português vernáculo culto. O que se pode derivar do segundo Wittgenstein não é tanto questões ligadas ao uso culto da língua, mas simplesmente ao uso público, do que vai de uma extensão considerável até o uso por comunidades que compartilham jogos de linguagem caracterizados pela multiplicidade. A regra culta é uma “normatização” não somente de “modos de falar”, mas de “modos de viver” e “ver” o mundo. O que nos diz o repúdio de formas linguísticas comuns, por exemplo, ao quibumdo? Há uma imposição ainda colonialista de uma cultura sobre outra. Pensadores e pensadoras de países colonizados, às vezes, reforçam a concepção colonialista quando sustentam em seus discursos que “por causa da colonização [...], nós também fazemos parte [...] de modo inferiorizado e colonizado — do Ocidente europeu [...]” (CHAUÍ, 2000, p.22). As formas de vida estão associadas ao uso da linguagem em práticas habituais em uma comunidade situada em um contexto específico. A linguagem expressa diversos modos de ser, descreve situações, designa objetos, expressa sensações, tendo, portanto, uma multiplicidade de usos correspondente aos jogos de linguagem.

4. CONSIDERAÇÕES FINAIS. No Tractatus Logico Philosophicus, Wittgenstein discute o conceito de proposição como uma forma de figuração da realidade. 96


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O Agir Humano A significação é considerada sob o prisma da relação entre o pensamento e os fatos observados na realidade. O sentido da proposição depende da correspondência entre a linguagem entendida como um modo de descrição da realidade baseado na lógica. É somente na linguagem científica que existiriam proposições dotadas de significação, tendo em vista que esta corresponde à descrição de fatos. Assim, a ciência é entendida como linguagem universal já que é passível de uma análise acerca da veracidade e da significação de suas proposições. Só é possível dizer o que se pode pensar. Nesta perspectiva, os enunciados éticoculturais são destituídos de sentido, pois não há a possiblidade de demonstrá-los, porque eles não são proposições. A concepção de linguagem apresentada no Tractatus Logico Philosophicus considera como desprovida de sentido as pretensões linguísticas dos valores ético-culturais. Seguindo outro viés, na obra Investigações Filosóficas, Wittgenstein reformula a sua concepção de linguagem. Nesta perspectiva, o discurso com sentido não se restringe a uma forma de descrição da realidade baseada na referência a fatos. Na comunidade, a linguagem possui usos diversificados, servindo para descrever uma situação, expressar um sentimento, dar uma ordem, etc. Cada grupo social compartilha modos específicos de atribuir significações aos objetos, valores, sentimentos e modos de pensar. Os modos diversificados de uso da linguagem caracterizam os jogos de linguagem. É na convivência com o grupo ou a comunidade, que o indivíduo se apropria das significações. Tudo depende do contexto e nada vem do nada. As significações são apreendidas em processos diversificados de uso da linguagem nas práticas cotidianas, experimentadas pelo indivíduo no decorrer de sua vivência na comunidade. Com os conceitos de jogos de linguagem e vivência da significação é possível refletir sobre 97


Investigações sobre

O Agir Humano questões como a formação da identidade multiculturalismo, ou o diálogo intercultural.

cultural,

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O Agir Humano

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4 O PROBLEMA DA CULTURA EM DA INTERPRETAÇÃO DE PAUL RICOUER Flávio José de Carvalho1

1. À GUISA DE INTRODUÇÃO. Um dos terrenos mais vastos e complexos da análise e problematização filosófica pode ser reconhecido na discussão a respeito da cultura. Abordar a cultura requer uma perspectiva multidisciplinar — fazendo-se necessário uma amplitude metodológica que recorra a várias áreas do saber humano — e exige simultaneamente um posicionamento por parte do investigador como de um “arqueólogo” — na medida em que a investigação se movimenta cada vez mais interior e anterior, mais profunda e mais originária. Compreendemos que Freud reconhecia esta necessidade e que sua atitude, enquanto investigador, manifesta a compreensão e a postura metodológicas de uma busca progressivamente mais “radicalizante” — apesar de não fazer uso de termos como “anterior”, “originário”, “radical” (com a semântica que algumas ontologias contemporâneas lhes atribuíram). Ademais, toda a nossa vida é regida por relações: de forças; entre energias; de elementos; entre indivíduos; de sobrepujança; de insubordinação; de aglutinamento; de distanciamento, e outras centenas de modalidades. Nossa constituição, enquanto seres humanos, é a de “ser de relação”. 1 Doutor em filosofia. Professor da Universidade Federal de Campina Grande/UFCG (E-mail: flavio.carvalho@ufcg.edu.br).


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O Agir Humano Com base nestas compreensões e orientados pela leitura filosófica e psicanalítica de Paul Ricoeur (1913-2005), discutiremos neste texto a dinâmica das relações de forças e de energias no âmbito da constituição da subjetividade humana. Neste sentido, seguiremos pari passu o itinerário reflexivo que Paul Ricoeur percorre na sua obra Da Interpretação: ensaio sobre Freud — ou simplesmente, como a chamaremos daqui em diante, Da Interpretação —, publicada em 1965. Da Interpretação é uma das obras clássicas e mais importantes de Paul Ricoeur, na qual, grosso modo, está compactado quase todo o seu pensamento acerca da psicanálise. É uma obra extensa e sem pretensões de dar soluções aos vários problemas que surgem quando se trata de analisar filosoficamente a teoria psicanalítica. Ao invés de soluções, Ricouer levanta mais e mais problemas. Este trabalho é dividido em três partes. Nossa discussão se manterá no âmbito da segunda parte, a qual corresponde à interpretação da cultura.

2. PRAZER E MORTE: OS PRIMÓRDIOS DO PENSAMENTO FREUDIANO SOBRE AS RELAÇÕES SOCIAIS. Ricouer reconhece que no pensamento freudiano a relação entre Eros (em suas motivações de agregação e preservação), Tanatos (em suas motivações de desagregação e agressão) e Ananke (em suas motivações de necessidade e restrição) constitui um elemento fundamental na construção dos fenômenos manifestos na cultura. São conceitos a respeito dos quais não podemos recusar a consideração, sob o risco de não efetivarmos uma compreensão satisfatória da problemática que envolve a cultura e seus agentes e forças. Estes conceitos são partes constitutivas do que quer que represente para a subjetividade humana ter como modo de ser “o 102


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O Agir Humano ser cultural e o ser de relação”. Entretanto, esta compreensão corresponde a momento posterior às problematizações iniciais no pensamento freudiano sobre as relações experimentadas entre os indivíduos. Desde suas primeiras reflexões, desde as investigações da primeira tópica, desde os seus primeiros ensaios sobre metapsicologia, Freud se envolveu com a discussão energética, sobre a existência e funcionalidade das energias psíquicas. Desde o início, o jovem médico compreendeu que a psique humana trabalhava num regime de trocas, de relações energéticas. Assim sendo, suas primeiras categorizações culminam na constituição e introdução de termos, como “princípio de prazer”, “princípio de constância”, etc. Orientado pelos princípios de um dado esquema mecanicista, Freud busca compreender como interagem estas forças que constituem a psique humana. Neste momento, a compreensão que ele possuía do aparelho psíquico era primordialmente fisicalista, havendo, deste modo, para ele, a possibilidade de transcrever as atividades psíquicas ao modo de um discurso quantitativo, tomando-se diretamente seus produtos, os fenômenos psíquicos. Dentro desta perspectiva da leitura de Freud, o sistema energético vai se constituindo sem grandes problemas. Como que num esquema maquínico, as peças do seu quebra-cabeça teórico vão se combinando. As reações dos fenômenos se processam e se comportam segundo certa previsibilidade, até que as suas investigações — seguindo a busca de originariedade da reflexão que nominamos acima — começam a direcionar-se para um campo diferente, eventualmente divergente e incompatível com o que se via até então. A teoria energética freudiana permanece sem grandes alterações, sem conflitos de destaque, entretanto ela carece do acréscimo de um novo conceito, outro elemento compreensivo. Freud, então, agrega o conceito de “pulsão de morte” na sua teoria das pulsões, oportunizando a introdução da polaridade primordial 103


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O Agir Humano entre “prazer” e “realidade”. Essa oposição crescerá cada vez mais na reflexão freudiana, ao ponto que o real já não será apenas o contrário da alucinação, mas a representará a dura necessidade, a Ananke. Dizendo de modo sumário, 2 a reflexão freudiana compreende que a psique humana se constitui no modo de ser de relação e trocas de energia, experiência relacional entre Eros, Tanatos e Ananke. Os fenômenos psíquicos na teoria freudiana são compreendidos a partir de um ponto de vista mecanicista, que repercute na construção dos conceitos de “princípio de prazer”, “princípio de constância”, bem como do conceito de “pulsão de morte”.

3. EROS, TANATOS, ANANKE E A CULTURA. Seguindo a compreensão de Paul Ricouer, reconhecemos que Freud aponta para uma dupla relação entre o princípio de prazer e o princípio de realidade. De um lado, o princípio de realidade é um desvio, um alongamento do caminho de satisfação e não o oposto do princípio de prazer; de outro lado, o princípio de prazer prolonga seu domínio sob todas as espécies de disfarces; ele anima a existência das fantasias, sonhos, das ilusões da religião, dos ideais. Este é um processo que se manterá sempre assim, uma vez que não há sobrepujança definitiva de um princípio sobre o outro, ou seja, a substituição do princípio de prazer pelo princípio de

2 Essas descobertas seguiram um processo bem mais complexo do que traçamos neste momento. Entretanto, a fim de não nos tornarmos prolixos em dado aspecto que não é o ponto central que desejamos esclarecer, optamos por esta descrição resumida, cujo ônus de perder diversos aspectos da discussão vemo-nos obrigados a assumir.

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O Agir Humano realidade não se faz, nem completa, nem simultaneamente, em todo o campo das pulsões. Nesta perspectiva, assevera Ricoeur, Freud chega a afirmar que “de fato a substituição do princípio de prazer pelo princípio de realidade não marca nenhum destronamento do princípio de prazer, mas somente sua salvaguarda” (RICOUER, 1977, p. 237). 3 Como o ego de prazer nada pode fazer além de desejar, ele sempre buscará o que lhe é útil e se projetará além de quaisquer perdas. Traçando estas linhas gerais, podemos observar como o discurso psicanalítico de Freud estabelece a teoria das pulsões e o quanto do caráter energético manifesta seu discurso analítico. Entretanto, os elementos que até o momento cotejamos são insuficientes para a consideração sobre a cultura. Sua abordagem requer mais elementos compreensivos, os quais buscaremos em outro nível de anterioridade; requer que tomemos em consideração a relação com outras psiques humanas. Esclarecemos que não se trata de analisar tão somente as relações constituintes dos fenômenos sociais, mas de investigar a existência de elemento fundante, da condição de possibilidade das relações entre os fenômenos da cultura; investigação orientada pelo problema acerca do modo de ser da psique na constituição e na relação com a cultura. À medida que nos movemos em especulações filosóficas eivadas pelo caráter originário, conduzimos conjuntamente a reflexão sobre a cultura para o âmbito convenientemente denominado de reflexão metacultural. Sendo assim, quando nos perguntamos pela existência e funcionalidade da pulsão de morte na dinâmica da cultura construída pela humanidade, queremos tratar 3 Esta interpretação vai ao encontro da leitura de Sérgio de Gouvêa Franco, o qual esclarece: “a polaridade prazer/realidade que perpassa a teoria até aqui, de fato não é uma superação do princípio de prazer. A realidade é só um caminho mais longo ao prazer” (FRANCO, 1995, p. 152).

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O Agir Humano do modo de ser da destrutividade constituinte — não apenas de um conjunto de fatos —, o que compreende a compulsão de repetição nas deliberações e movimentações sociais. Nesta perspectiva, assim, também deslocamos a reflexão das considerações metabiológicas para as metaculturais. A introdução do conceito de pulsão de morte oportunizou importantes reconsiderações e reformulações no desenvolvimento do pensamento psicanalítico freudiano, sobretudo no plano da problematização metacultural. Como seguiremos observando, a abordagem realizada por Freud se manifestará em níveis diferentes de reflexão, uma vez que ele toma, inicialmente, a pulsão de morte como hipótese para o funcionamento e a regulação dos processos psíquicos, em um segundo movimento, estende sua abrangência aos fenômenos clínicos, e, por fim, alcançará o plano individual da existência social-histórica e cultural. O corolário destas reformulações mostra-se, a saber: com a introdução da pulsão de morte, a teoria da libido também será reformulada e, com esse remanejamento, será introduzido o conceito de Eros e a pulsão de morte será considerada para além da busca da felicidade, à medida que é algo constitutivo do homem.

4. PRESERVAÇÃO DA VIDA E CONTROLE DA AGRESSIVIDADE: O PROBLEMA DA CULPA E DA PUNIÇÃO. Fizemos este percurso pela construção de algumas noções freudianas tendo em vista municiar nossa reflexão de embasamento conceitual específico, bem como compreender como o filósofo e

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O Agir Humano fundador da Psicanálise construiu seus conceitos.4 Nos argumentos que colecionamos anteriormente fica evidenciado como Freud toma problemas contemporâneos e sobre eles constrói seus conceitos, os quais oportunamente são revistos e dão origem a novos conceitos. O ponto de retomada da nossa discussão filosófica é o conceito de pulsão de morte, o qual Freud introduz para explicar um conjunto de fatos agrupados em torno da compulsão de repetição. Em linhas gerais, segundo a visão da psicanálise, o questionamento acerca da destrutividade na cultura, na humanidade, não é fundamental. O que interessa não são tanto os fenômenos em suas manifestações materiais, os seus produtos, quanto a frequência destes fenômenos. Em poucas palavras a pergunta que a psicanálise propõe e que tenta responder não é por que se mata, mas por que se mata sempre. A originariedade da questão se manifesta na arguição pelo elemento condicional, isto é, o que torna possível o fenômeno da agressividade. Ricouer reconhece que esse posicionamento de busca pelo radical, durante toda essa fase da investigação que Freud desenvolve, marca seu trabalho de um certo caráter especulativo, exorbitando paulatinamente o âmbito da pragmática clínica ou social. Como afirmamos acima, seu trabalho realizou-se inicialmente na abordagem da dinâmica da pulsão de morte, ocupando-se com a reflexão sobre o seu funcionamento nos processos psíquicos, em seguida, encetou as referências com a clínica da saúde psíquica. No último estágio de suas análises, a pulsão será reconhecida e decifrada como destrutividade no plano individual, social-histórico e cultural. Deste modo, à medida que o conceito foi sendo redimensionado, retomado, paulatinamente foi ficando melhor compreendido que a pulsão de morte é algo que está para além da 4 De fato, a filosofia se distingue das outras abordagens sobre a realidade pelo fato específico de ser construtora de conceitos. O filósofo é um criador de conceitos, a filosofia é a arte de criar conceitos (DELEUZE; GUATARI, 2010).

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O Agir Humano busca da felicidade, como projeto individual, ela é algo constitutivo do homem, seu atributo originário. Como vimos na introdução deste trabalho, as hipóteses iniciais de Freud quanto à regulação dos processos psíquicos comportam as concepções de sistema energético, de jogo de tensões e de quantidade de excitação, de modo que o princípio de prazer se relaciona ao princípio de constância. A continuidade de suas pesquisas oportuniza a compreensão de alguns marcos diferenciais da psique humana: a primeira delas indica que o ser homem se constitui como homem devido ao fato que neste jogo de tensões entre princípio de prazer – princípio de constância – princípio de realidade, ele é capaz de adiar a satisfação, abandonar a possibilidade de gozo, mesmo que temporariamente, tolerando certo grau de desprazer. Com este mecanismo, visa-se sofrer um pouco “externamente” para sofrer menos “internamente”. Como diz Ricouer: “Se pode considerar essa admissão do desprazer em toda conduta humana como um longo desvio que toma o princípio de prazer para se impor em última instância” (RICOUER, 1977, p. 237). Tomando o clássico exemplo dado por Freud — a respeito da criança que brincava com um objeto, projetando-o e retomandoo, enquanto repetia os vocábulos em língua alemã “fort-da” — observamos um caso de uma repetição da renúncia não sofrida, passiva. Neste caso, o desprazer é dominado por meio da repetição praticada durante a brincadeira da criança. Entretanto, os detalhes do fato não nos devem prender a atenção e desviar-nos daquilo que, realmente, precisa ser notado, isto é, o apelo que o exemplo faz ao elemento de originariedade manifesto na experiência vivenciada. Freud quer fazer notar uma tendência mais essencial, a qual incita a repetição do desprazer sob forma simbólica e lúdica. Essa tendência mais primitiva se exprime unicamente na compulsão de repetição. Desprazer e prazer, vida e morte, o ser humano comporta originária e dialeticamente esta dinâmica — todos os nossos esforços de vida 108


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O Agir Humano também convergem para a morte. Ricouer retoma uma assertiva de Freud que retoma e expressa essa compreensão: “Todo ser vivo morre por razões internas... o fim de toda vida é a morte”(RICOUER, 1977, p. 241). Assim, somos levados a reconhecer na morte uma figura de necessidade, tanto quanto na vida. Diante do exposto compreendemos que Ananke, Tanatos e Eros compõem indissociavelmente a constituição da subjetividade humana, de modo que em suas relações a vida leva à morte, e a sexualidade se mostra como a grande exceção na marcha da vida para a morte. Tanatos revela o sentido de Eros como o elemento constitutivo que resiste à morte — igualmente elemento constitutivo. Analogamente ao movimento que ocorreu com a introdução da pulsão de morte na reflexão psicanalítica, esta nova teoria das pulsões, tendo na base esses três conceitos, vai estabelecer diferenças marcantes. Uma primeira diferença diz respeito ao conceito de libido que será substituído pelo de Eros. A compreensão desse exorbitará o âmbito dos fenômenos biológicos, oportunizando sua abordagem no âmbito da cultura. Reconhecemos como corolário desta ampliação a possibilidade de compreender que se no seu interior, o ser vivo direciona-se para a morte, pelo exterior, pela conjugação com outros mortais, pode-se lutar contra a morte — eis a posição e a função de Eros na dinâmica da vida social-histórica. Corroboramos com Sérgio de Gouvêa Franco quando afirma que: “Se cada ser humano é levado à morte por um movimento interno, então só o encontro dos humanos é que pode atenuar esse movimento. [...] O ser humano sozinho está ligado ao caminho de morte inexoravelmente, junto com outros humanos é que encontra meios para resistir à morte” (FRANCO, 1995, p. 153-154). Eros vai lutar pelos longos desvios da adaptação ao meio natural e cultural, 109


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O Agir Humano sempre na defesa da vida. Assim sendo, enquanto a libido está para as necessidades orgânicas, Eros está para as necessidades sociais. Indissociavelmente, em um sentido tudo é vida e num outro sentido tudo é morte. A segunda diferenciação trazida por esta nova teoria das pulsões se mostra na concepção freudiana de que a pulsão de morte é como uma energia “muda”, em oposição ao “clamor” da vida — nesta situação, “mudo” carrega o sentido de “defasagem em expressividade”. Dizendo de outro modo, ao passo que as manifestações em defesa da vida, os eventos promotores da existência da vida são evidentes, claros e facilmente distinguíveis, os fenômenos concernentes à pulsão de morte são geralmente velados, apresentam-se sub-repticiamente. Neste sentido, assevera Paul Ricouer que “o desejo de morte não fala como o desejo de vida” (RICOUER, 1977, p. 243). Como consequência desta condição, a decifração de um agente da pulsão de morte sempre será parcialmente realizada, uma vez que cada um destes agentes exibe apenas fragmentos da pulsão que os fundamenta. A destrutividade, por exemplo, representa apenas uma das manifestações da pulsão de morte. As várias mudanças substanciais nas perspectivas e abordagens do pensamento freudiano sobre as quais vimos discutindo manifestaram-se em vários de seus escritos. Serve-nos, como marcos referenciais, todavia, a obra Além do Princípio de Prazer (1920), em que o filósofo trata da tendência a repetir e sua relação com a tendência a destruir, e a obra O Mal-estar na Civilização (1930), na qual ele trabalha o deslocamento de uma compreensão com expressões biológicas para uma de expressões eivadas de conotações culturais. O processo que estamos acompanhando, portanto, define a transição entre a metabiologia de Além do Princípio de Prazer e a metacultura de O Mal-estar na Civilização.

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O Agir Humano A terceira diferenciação diz respeito às implicações do conceito de pulsão de morte na interpretação da cultura, oportunizando, conforme refletimos, uma compreensão em um nível mais radical. Dois momentos na obra de Freud, segundo Ricouer, nos situam na reflexão freudiana acerca da relação entre pulsão de morte e cultura: o primeiro momento corresponde aos capítulos iniciais de O Futuro de uma Ilusão (1927); o segundo momento compreende os capítulos III a V de O Mal-estar na Civilização. No seguimento da discussão ricoueriana, tomemos a segunda obra como marco de reformulação da interpretação de Freud sobre a cultura, na medida em que ela encerra o ápice do aprofundamento da sua compreensão de cultura em face da pulsão de morte. Ricouer orienta que em O Mal-estar na Civilização podemos identificar um segmento da obra que aborda “tudo o que se pode dizer sem recorrer à pulsão de morte” e outro que trata de “tudo o que não se pode dizer sem fazer intervir essa pulsão” (RICOUER, 1977, p. 250). Neste sentido, reconhecemos que no processo de constituição das construções e relações da existência da humanidade, a qual comporta os indivíduos sociais-históricos e culturais, há elementos constitutivos desta realidade que podem ser compreendidos a partir da referência à pulsão de morte, bem como se manifestam elementos que dispensam tal referência. Não identificamos na interpretação freudiana, portanto, pretensões de reduzir toda a dinâmica desta existência a uma unilateralidade interpretativa ou a um determinismo psíquico. De modo análogo, reconhecemos que os objetivos buscados pelo indivíduo e os que animam a cultura, ora convergentes, ora divergentes, são originários do mesmo Eros e que eles são modificados pelas necessidades, por Ananke. Ricouer nomeia esta relação de “erótica geral” sobre a qual afirma: “É, portanto, a mesma ‘erótica’ que faz a ligação interna dos grupos e que leva o indivíduo a buscar o prazer e a fugir do 111


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O Agir Humano sofrimento — o tríplice sofrimento que lhe infligem o mundo, seu corpo e os outros homens” (RICOUER, 1977, p. 250). Nos situamos, deste modo, no âmbito de discussão da relação do homem com o mundo, com seu corpo e com os outros homens. Decerto que o estudo dessa tríplice relação não é exclusivo da filosofia ou da psicanálise, sendo também objeto de problematização por diversas áreas do saber humano, tais como a psicologia, a antropologia, a sociologia — as quais também se aproximam desta tríplice relação, embora respondendo a recortes específicos, com acesso a fontes e recurso a métodos de investigação específicos. Não obstante, a perspectiva da psicanálise se diferencia à medida que, com seu próprio instrumental teórico e prático, objetiva compreender esta relação de tensão reconhecendo Eros como elemento que origina e sustém tanto a busca individual pela felicidade, quanto a necessidade da união grupal. Como corolário desta abordagem outras questões se apresentam, como por exemplo: como se realiza a relação entre a cultura e a sexualidade? Ou ainda, como a cultura impõe sacrifícios de gozo a toda sexualidade? Porque há o fracasso nos projetos do homem em busca de ser feliz? Como entender os conflitos e desastres sociais oportunizados pelo homem enquanto ser de cultura? O desenvolvimento dessa discussão oportuniza uma coleção de argumentos que sugere, como tese explicativa para as perturbações na relação entre homem e sociedade, o reconhecimento de que o ser humano não é em si um ser benevolente, antes ele possui uma agressividade inerente, constitutiva. Nas palavras de Ricouer: “a pulsão que perturba assim a relação do homem com o homem e exige que a sociedade se levante como implacável justiceira, é, reconhecemos, a pulsão de morte, identificada aqui à hostilidade primordial do homem para com o homem” (RICOUER, 1977, p. 251). Ressaltamos que não há 112


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O Agir Humano nesta compreensão acepção valorativa alguma, na medida em que seja a agressividade, seja a eroticidade são elementos constitutivos de um mesmo ser, que manifesta facetas de uma mesma dinâmica psíquica. Adaptando-se a este âmbito de abordagem, Freud termina por criar um novo termo, eivado por um novo conceito, a “pulsão anticultural”, que comporta a seguinte compreensão: a constituição das ligações sociais não pode mais ser tida como uma simples extensão da libido individual, não pode ser compreendida e orientada pela teoria da libido aplicada ao campo social-histórico e cultural. Antes, reconheçamos a especificidade desta constituição, cuja existência manifesta o conflito das pulsões, uma luta constante entre elementos de agregação e de desagregação. Essa luta constitui a vida humana. Portanto, reiteramos que não podemos tratar a pulsão de morte, pulsão anticultural, como algo mal, negativo, e esclarecemos que esta impossibilidade deve-se ao fato de que se trata de elementos originários, constitutivos do ser do ser humano, não cabendo acepções axiológicas ou conotações valorativas. Entretanto, o fato destes elementos serem constitutivos do ser humano não invalida o caráter danoso das manifestações práticas da agressividade constitutiva, cuja materialização na efetividade histórica, através dos fenômenos de violência, de guerras, de destruição, de discriminação, de dizimação de grupos étnicos, não pode ser desconsiderada e separada de seu caráter maléfico. Estas ações perturbam e mesmo destroem o bem estar da vida humana, ainda que se tratem de motivações inerentes às estruturas constitutivas do ser do homem. Neste sentido, reconhecemos e sustentamos a pertinência de que a discussão acerca da interpretação psicanalítica da cultura prossiga, problematizando oportunamente a existência e a função de um elemento capaz de frear a dominação da pulsão morte, da agressividade e da destrutividade na vida em sociedade. A discussão 113


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O Agir Humano agora se situa na função social do “sentimento de culpa”, ou seja, abordaremos a relação agressividade e sentimento de culpa no plano cultural da existência da humanidade. Para Ricoeur, a cultura se assenta no jogo dinâmico e tenso dos interesses, em Eros, que origina e sustém quer os interesses individuais, quer os interesses coletivos, como afirma no seguinte trecho de sua obra: “É agora a cultura que representa os interesses de Eros, contra eu-mesmo, centro do egoísmo mortal” (RICOUER, 1977, p. 252). A cultura se constituiria como elemento de preservação e de censura, na medida em que oportuniza a manutenção do bem estar social, ao mesmo tempo em que constrói meios de instrução e convencimento do refreio da agressividade. Sérgio Gouvêa Franco esclarece ainda que a cultura se serve de minha violência autoinfringida para fazer fracassar minha violência contra outrem: “... a cultura estaria a serviço de eros, lutando contra o egoísmo que conduz cada um à morte” (FRANCO, 1995, p. 154). A autocondenação e o autocastigo proporcionados pelo sentimento de culpa têm sua base no Superego, na constituição originária de cada ser humano, de cada indivíduo, como ser de autovigilância e controle. Na dinâmica da vida em sociedade, porém, o sentimento de culpa terá seu conteúdo construído conforme a sociedade dada a cada época. Cada sujeito histórico se orienta, age e se projeta dentro de um contexto social-histórico — embora não obstinadamente preso a este contexto, o que oportunizaria os movimentos de mudança e transformação social. Cada época, cada sociedade constitui e institui o seu sistema de valores, que — como construção e instituição com historicidade — é passível de ser renovado, reinterpretado, enfim, modificado. Esta breve e oportuna digressão objetiva nos posicionar diante do mecanismo do sentimento de culpa, sempre eivado pelas perspectivas moral e histórica relativistas, orientando-nos para compreender que, embora a culpabilidade não possa ser extinta do ser 114


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O Agir Humano humano — posto ser dele constitutiva —, os fenômenos que possam motivar o sentimento de culpa ou os valores e os juízos que se conjugarão nesta relação são socialmente estabelecidos e, portanto, passíveis de modificações. As circunstâncias e os elementos que motivam sentimentos de autocondenação e autopunição em uma dada sociedade e época podem não ter correspondentes análogos em outro contexto social-histórico. Assim, de modo sumário, acerca do fenômeno da culpa, convém afirmar que o modo de ser da culpabilidade é inextinguível, embora as motivações do sentimento de culpa sejam modificáveis; de modo análogo, reconhecemos que a severidade do Superego é insubstituível. Desta feita, no âmbito da experiência social-histórica, compreendemos que a renúncia principal que a cultura exige do indivíduo não é a do desejo enquanto tal, mas da agressividade, cabendo à cultura, segundo Ricoeur, engendrar este sentimento de culpa: “Mortificando o indivíduo, a cultura coloca a morte a serviço do amor e inverte a relação inicial da vida e da morte” (RICOUER, 1977, p. 253).5 E — diga-se, ainda —, cabendo à cultura não somente engendrar o sentimento de culpa, mas estabelecer a necessidade de punição, cujas funções de “castigar” e de “inibir” futuros atos, análogos aos censurados, corroboraram no processo de contenção da agressividade humana e de manutenção do bem estar social.

5 Neste contexto, reconhecemos dois elementos constitutivos, desenvolvendo duas funções em relação de reciprocidade: o sentimento de culpa, constituído e infligido pela cultura, e a função psicológica da angústia de consciência.

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O Agir Humano 5. À GUISA DE SÍNTESE. Tendo acompanhado o desenvolvimento do diálogo filosófico e psicanalítico entre Sigmund Freud e Paul Ricouer, compreendemos que a formação da sociedade, na complexidade que compõe o contexto social-histórico da humanidade em uma dada época histórica, acontece mediatizada pelas relações de indivíduos sociais, cuja constituição psíquica influencia e é influenciada pelos elementos culturais construídos e, igualmente, instituídos por indivíduos sociais. Nesta experiência relacional entre psique e sociedade, diversas relações de reciprocidade se manifestam simultaneamente: Eros (em suas motivações de agregação e preservação), Tanatos (em suas motivações de desagregação e agressão) e Ananke (em suas motivações de necessidade e restrição), cujas articulações constroem as possibilidades das experiências da vida em sociedade (vida cultural) e igualmente oportunizam os conflitos oriundos da relação tensa entre o âmbito psíquico individual e o âmbito social-histórico das relações coletivas — contexto em que reconhecemos a gênese do conflito pulsional anticultural. Por fim, compreendemos que nesta dinâmica de construção e instituição da sociedade, a cultura se investe de mecanismos de morte, de restrição às ações individuais, construindo uma relação entre culpa e punição. Sérgio Franco (1995, p. 157) denomina este processo de “ardil da cultura”, em que se usa a morte contra a própria morte. Todos estes mecanismos objetivam, mediados por estratégias e motivações de morte, perpetuar a existência humana, pela defesa da vida e do bem estar dos seres humanos: “a cultura aparece como o grande empreendimento para fazer a vida prevalecer contra a morte; e sua arma suprema é fazer uso da violência interiorizada contra a violência exteriorizada; seu ardil supremo é fazer trabalhar a morte contra morte” (RICOUER, 1977, p. 254). 116


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5 SOBRE RAZÃO E SENTIMENTOS MORAIS Maria José da C. Souza Vidal 1

Inicialmente, cumpre observar que, nesse texto, moral e ética são tidas como idênticas. Não fazemos distinção entre moral e ética, usando, portanto, as duas expressões como sinônimas. Nossa proposta neste ensaio, Sobre razão e sentimentos morais, parte do princípio de que um dos grandes problemas relacionados com o agir moral é o da dificuldade na justificação de um modelo ético a ser estendido e universalizado. A falta de sustentação argumentativa que nos capacite para tanto reflete a ausência de cânones, de princípios norteadores; reflete a dificuldade contemporânea de se distinguir o bem do mal, reflete a crise dos valores gerada, entre outros fatores, pela crise da razão. Nesse contexto, é salutar tentarmos entender qual o significado dessa crise. Podemos dizer que há uma proliferação do emprego do termo “crise” e esse uso multiplicado tem origem nas diversas formas de concepção da realidade. A crise se expressa não somente como uma fratura numa continuidade até então aparentemente estável, mas, sobretudo, com o aumento das possibilidades contrastantes acerca do que seria a realidade. Portanto, há a ideia de desenvolvimento de um mesmo núcleo reformável, como também de quebra e revolução das regras estabelecidas. A lógica do caos no qual vivemos, cuja representação é a ordem e a desordem que se sucedem, permeia mais e mais nossa 1 Doutora em filosofia. Professora do departamento de filosofia da UERN (E-mail: mariavidal@uern.br).


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O Agir Humano existência. Analisaremos a crise da ética como sintoma da crise na crença da razão, entendida enquanto guia e agente norteador da vida moral. Para tanto, faz-se necessário esclarecer a questão da razão enquanto justificativa para o agir moral. Qual a origem desse paradigma? Vamos tentar, sucintamente, expor um pouco da história da racionalidade, no intuito de compreendermos a essência da crise da razão, para, em seguida, mostrar nossa proposta de moral, constituindo-se enquanto justificativa que tem como finalidade garantir a possibilidade de ações éticas, questão cerne deste ensaio.

1. HISTÓRICO DA QUESTÃO. Desde o nascimento da filosofia, final do século VII e início do século VI a.C., já se constituía como questão filosófica ocupar-se da racionalidade, tendo no seu conteúdo originário a cosmologia (formada a partir da palavra cosmos que significa mundo ordenado e logia que vem da palavra logos, pensamento racional). Portanto, a filosofia nasce como conhecimento racional a respeito da ordem do mundo e da phisys (natureza). Nesse sentido, a razão é sua característica marcante, com princípios e regras que a fazem ser o critério da explicação válida. Ainda que a razão tenha entrado um pouco em decadência na filosofia medieval, chegando a ser subordinada à fé, ela teve revista a sua importância no século XVII e meados do século XVIII, com o Racionalismo Clássico. Nesse período aconteceram três mudanças marcantes, a saber:  na primeira, surge o sujeito do conhecimento, a partir da pergunta pela capacidade do intelecto humano para conhecer e demonstrar a licitude do próprio conhecer;

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O Agir Humano 

A segunda mudança parte do seguinte questionamento: como o intelecto pode conhecer aquilo que é diferente dele? Com essa indagação os modernos promovem uma mudança que diz respeito ao objeto do conhecimento. Para os pensadores desse período, as coisas exteriores podem ser conhecidas desde que sejam consideradas representações pensadas pelo sujeito do conhecimento. A terceira mudança fundamental nasce da noção de que a realidade pode ser traduzida matematicamente. Dessa forma, a realidade passa a ser concebida como um sistema racional de mecanismos físico-matemáticos, através do qual são explicados todos os fatos da realidade.

A partir dessas transformações impõe-se uma enorme confiança no poder da razão. A própria realidade passa a ser concebida como um sistema de causalidades racionais que podem ser conhecidas e modificadas pelo homem. Por conseguinte, a razão configura-se igualmente como capaz de tornar a ética e a política puramente racionais. No século XIX há uma continuidade da crença na razão, chegando a concebê-la como responsável pela evolução e o progresso, apontando que o homem pode, através da mesma, tornar-se perfeito, conquistar a felicidade e a liberdade. Noção essa que influenciou fortemente a Revolução Francesa de 1789. Em meados do século XIX, pode-se dizer que tem início a filosofia contemporânea e com essa nova visão de mundo entra em evidência a crise da razão que até então tinha sido “endeusada”, sendo capaz de responder todas as questões que afligiam a humanidade. É, paradoxalmente, a partir de Hegel e de seu idealismo exacerbado que essa noção cai por terra. Como se percebe é com esse filósofo que a crise da racionalidade entra em efervescência, uma vez que Hegel com a 121


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O Agir Humano filosofia da história, com o seu materialismo histórico trata de forma nunca antes concebida a questão da crise da modernidade, sob o aspecto de crise da identidade. Afirmando a história como sendo o modo de ser da razão, da verdade e dos seres humanos, transformando-nos em seres históricos. Isso não significa que antes desse pensador, outros filósofos não tenham abordado a questão, o que Hegel traz de novo é a transformação dessas questões acerca da modernidade, como questões filosóficas. Há uma espécie de consciência histórica do seu próprio tempo, uma consciência de uma outra ruptura, na qual não se mantém a visão de mundo da tradição. Hegel criticou os empiristas (esses afirmavam o conhecimento como sendo dado pela experiência) e os inatistas (acreditavam que ao nascermos já possuímos inteligência, princípios racionais e ideias verdadeiras), fazendo uma crítica semelhante a já apontada por Kant, segundo a qual os empiristas e inatistas enganaram-se por sustentarem que o conhecimento racional dependeria exclusivamente dos objetos do conhecimento, exagerando assim no objetivismo. Mas, afirma Hegel, Kant também se enganou por excesso de subjetivismo, dado que para Kant o conhecimento racional dependeria largamente do sujeito do conhecimento, das estruturas de sensibilidade e do entendimento. A razão, segundo Hegel, não é nem exclusivamente objetiva, nem subjetiva, mas configura-se enquanto unidade necessária a esses conceitos (inatismo e empirismo), sendo, portanto, a harmonia entre o objeto e o sujeito. Com a dialética hegeliana é possível explicar essas oposições, uma sendo o contrário da outra, “tese” e “antítese” constituindo momentos necessários na história da razão, a partir dos quais ela pode conhecer-se a si mesma. Ademais, segundo Hegel, a “síntese” teria o papel de unir os contrários. Após Hegel, outros filósofos repensaram a questão, originando as correntes que serão conhecidas como hegelianos de 122


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O Agir Humano esquerda e hegelianos de direita. Destes pensadores convém destacar alguns daqueles que criaram a Escola de Frankfurt, ou Teoria Crítica que concordaram com a solução hegeliana, mas afirmaram que esta não é suficiente. Nesse sentido, filósofos dessa Escola como Adorno e Horkheimer, talvez por terem influências marxistas, recusaram o determinismo histórico, apontando que a razão é também determinada pelas condições sociais, econômicas e políticas. Assim sendo, para esses filósofos, Hegel errou ao pensar que a razão seria uma espécie de força histórica que cria a própria sociedade, a política e a cultura. No entanto, Adorno e Horkheimer, criadores da Teoria Crítica, consideraram válida a ideia hegeliana de continuidade histórica e defendiam duas formas de razão, a saber: a primeira razão instrumental (razão técnico-científica que está a serviço da dominação) e a segunda a razão crítica (razão filosófica que reflete as contradições e os conflitos e se apresenta como força libertadora). Nos anos 60, desencadeia-se o Estruturalismo, principalmente na França, cuja corrente científica-filosófica tem, entre outras origens, a antropologia social. Para os estruturalistas o fundamental não é a mudança de uma realidade, mas a estrutura na qual ela se apresenta. Nesse aspecto, o Estruturalismo desconsidera as posições filosóficas do tipo hegeliana, tendo maior afinidade com a posição kantiana. Dessa forma, filósofos como Foucault e Derrida reafirmaram a razão como sendo histórica, no entanto, sem ser progressiva, apresentando-se “descontínua”, de maneira que cada nova estrutura de razão possui uma verdade válida apenas para essa determinada estrutura. Isso não significa que Foucault ou Derrida estão apregoando uma espécie de relativismo da razão, mas eles compreendem que a razão apresentou-se em cada momento da

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O Agir Humano história de maneira diversa e que de uma época a outra não há uma acumulação, um progresso, uma continuidade. Diante da exposição das várias formas de concepções da razão podemos compreender o porquê da sua crise? Ora, a contemporaneidade vivencia a descida da razão do pedestal de suporte da verdade. Atualmente, a filosofia contemporânea não dispõe de um sistema pronto que fundamente uma resposta absoluta para a mesma. Ao contrário, o pensamento em evidência é o da reflexão. Reflexão sobre todas as respostas que para nós já foram colocadas, reflexão sobre nossas próprias respostas e reflexão sobre nossas próprias questões. Para os povos ocidentais, que tinham na razão o fundamento para todas as explicações, o questionamento da validade dessa mesma razão representa o desmoronar de uma verdade que se tinha como absoluta. Como consequência, vivenciamos a “crise”, por não reconhecermos mais a razão como o “leme” que pode guiar a humanidade. Por conseguinte, a realidade mundial apresenta-se de forma nunca antes vista, os avanços tecnológicos, os novos aspectos nos quais a economia mundial se desenvolve, possibilita uma outra representação de mundo, de cultura, de sociedade e da forma de se fazer política, logo também de se pensar a moralidade.

2. SOBRE RAZÃO E SENTIMENTOS MORAIS. Todas as nossas ações, mesmo inconscientes, implicam numa escolha de futuro. O mundo apresenta-se cada vez mais interdependente e frágil e o futuro enfrenta a dualidade de vivenciar grandes perigos e grandes promessas. Neste contexto, corroborando com Boff (2003): Para seguir adiante, devemos reconhecer que, no meio de uma magnífica diversidade de culturas e formas de vida, somos 124


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O Agir Humano uma família humana e uma comunidade terrestre, com um destino comum. Nesse sentido, faz-se necessário, a partir da crise ética que vivemos, repensar nossa concepção de moral, procurando nos perguntar se seria possível evitar nos deixarmos arrastar pela corrente contemporânea que conduz a uma noção de ética que exalta o relativismo. Nossa hipótese é a de que devemos renegar o individualismo2 que nos distancia cada vez mais da responsabilidade com o outro e com valores morais, porque, se assim não o fizermos, estaremos promovendo a criação de uma sociedade tão fragmentada que deixará de se sustentar. Nossa intenção é, pois, apresentar uma forma de conceber a moral que considere a o estado da crise que vivenciamos. Isso não significa que tenhamos de buscar um modelo ético que se enquadre nas nossas relações; noutras palavras, que tenhamos que criar uma moral ao nosso bel prazer, mas que, a partir do que a nós está dado, devemos desenvolver uma forma ética que nos possibilite outra via que não seja o estado de natureza hobbesiano, a luta de todos contra todos, na qual o homem é o lobo do próprio homem. A questão da racionalidade, mesmo que em “crise” e que não se constitua mais como suficiente, não perdeu o seu total valor. Somos os únicos seres que sabemos que estamos para a morte, segundo Heidegger, e devemos usar de todo o poder da sabedoria que somos capazes, para melhorarmos coletivamente a nossa estadia no planeta. O viver-com precisa ser evidenciado, no intuito de pensarmos uma ética que responda às disparidades sociais que vivemos, assim como à falta de respeito e de paz.

2 Não devemos entender “individualismo” como sinônimo de “individualidade”, pois podemos afirmar que a sociedade capitalista deturpou o sentido de “individualidade” que significa respeito ao sujeito, já o “individualismo” diz respeito à utilização do outro como coisa, como instrumento para um fim desejado.

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O Agir Humano Usaremos como base para expormos a nossa proposta o texto do neokantiano, também alemão, Ernst Tugendhat, que tem como título: Reflexões sobre o que significa justificar juízos morais. Tugendhat falando em Lições sobre ética aponta-nos o seguinte questionamento: “o que precisamos então para justificar a moral, se a resposta kantiana com relação a mau enquanto sinônimo de irracional não é suficiente?” A respeito dessa questão, ele nos sugere duas orientações: mostra que o predicado “bom”, ainda que em relação com “racional” seja relevante, não chega ao núcleo da moral e que uma obrigação de só fazer o que é racional, por si mesma, não nos convence. Então, a partir dessa conclusão, ao fazer uma depuração da filosofia moral de Kant, Tugendhat vai afirmar que não devemos ver uma contradição entre moral e sentimento, uma vez que só podemos entender o que é a moral, o bom, quando a vemos conjuntamente com o afeto que lhe cabe, pois assim ela terá significado para nós. Aponta-nos, ainda, que a tarefa da filosofia é transitar entre um conceito intuitivo de sentimento moral e uma descrição estrutural do objeto desse sentimento que se constituirá na autonomia coletiva. Essa autonomia coletiva significa que cada um é, ao mesmo tempo, origem e objeto da norma; cada um se subordina a todos os outros, mas porque assim o quer. Dessa forma, o sujeito reconhece que a norma é boa porque ela parte da sua vontade e da vontade dos outros (maioria). É a partir dessa noção que estará pautada a proposta de moral sugerida por esse pensador no texto acima referido, vejamos, portanto, como ela se dá passo a passo. Devemos pensar a moralidade a partir do que chamaremos de “comunidade moral”. Nesta, os seus membros terão a liberdade restringida, uma vez que se submeteram as normas da comunidade por toda sua vida. Convém ressaltar que estes membros só aceitam

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O Agir Humano fazer parte da comunidade, se aceitarem as regras morais e as considerarem justificadas. Sob esse aspecto deve-se apresentar um conceito de boa pessoa, a partir do qual todos os participantes da comunidade deverão se orientar. Conforme Tugendhat: uma pessoa é boa no sentido moral se se comporta da maneira como é exigido reciprocamente pelos membros da comunidade moral. O que Tugendhat traz de novo, a esse respeito, é a questão da justificava recíproca e esta se expressa num tipo de “orações de dever”. Os membros da comunidade moral só aceitam dela fazer parte porque para eles as normas são todas justificadas e, sobretudo, porque são justificadas reciprocamente. A justificação recíproca é a origem da ligação entre a noção de “dever” e o que chamamos aqui de “sentimentos morais”. A obrigação que se expressa nessas “orações” baseia-se em aceitar os sentimentos morais de indignação e culpa, a partir dos quais deve surgir na comunidade moral a pressão social. Noutras palavras, se um indivíduo X não atua na comunidade de forma que todos exigem que ele atue, surgirá, no conjunto das pessoas que formam a comunidade, um sentimento de indignação por essa ação, a qual será digna de reprovação, pois todos a exigiram reciprocamente. Logo, esse sujeito X que t ambém é um membro da comunidade e que, como já dissemos acima, aceita as normas e se submete aos sentimentos morais, se sentirá culpado. Assim como esse mesmo indivíduo X sentir-se-ia indignado ao ver as normas sendo quebradas por outro membro da comunidade. Após expormos sucintamente como devemos pensar a comunidade moral, cumpre fazermos uma pergunta irrenunciável: como a moral pode ser justificada reciprocamente e de forma não autoritária? Contemporaneamente isso parece ser quase impossível. Vivemos hoje a não unanimidade de resposta para esta questão. Mas vejamos a saída sugerida por Tugendhat.

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O Agir Humano Ao elaborar a sua proposta de como devemos entender a moral, Tugendhat não está se referindo ao conjunto dos indivíduos, mas ao próprio indivíduo e essa consideração o aproxima do contratualismo. Lembremo-nos que essa corrente filosófica justifica a submissão às normas, alegando que essas são aquelas mesmas em relação as quais o indivíduo quer que também todos os outros se submetam. Assim, pode-se dizer que o “não querer ser tratado como meio pelo outro”, de modo a “não servir de instrumento para a finalidade de outrem” é a própria expressão do ponto de partida do contratualismo, com um toque de kantismo. Dessa maneira podemos pensar a moral em forma de contrato. Não significa termos de pensá-la enquanto um contrato comum, que considera apenas o interesse individua. O contrato moral apto a nortear a comunidade deve ser tido por todos como bom, o que, por sua vez, será definido de acordo com os sentimentos morais. Uma espécie de acordo de cidadãos(ãs). O conceito de bom a ser admitido na comunidade moral deve ser compartilhado por todos. Nessa perspectiva, a noção de bom constitui-se num conceito de justiça e deve ser construído de forma que possa ser justificado reciprocamente. A justiça assim concebida possibilitaria o equilíbrio na comunidade moral e promoverá a equidade entre os seus integrantes. Cumpre destacar outra questão também de suma importância, a da possibilidade do indivíduo de indagar os motivos para participar da comunidade moral. É a pergunta sobre o porquê se assumir enquanto integrante da comunidade moral. Esta não pode ser uma resposta autoritária, porque isso comprometeria a livre adesão dos contratantes. O dever de participar da comunidade moral, de acordo com esses pressupostos, só se sustenta quando é uma obrigação desejada. Podemos argumentar que este dever de cada indivíduo encontrará sustentação no próprio bem-estar da comunidade, ou 128


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O Agir Humano por ele não querer se reconhecer como egoísta, ou por não querer que os outros o reconheçam como egoísta. O sistema normativo gera uma espécie de motivação, para o participante da comunidade moral, que não existia antes dele ser moralmente apreciado. Isso significa que o sujeito que quebra a norma na comunidade passa a ser desapreciado. Não devemos deixar de considerar a possibilidade da existência na comunidade do chamado parasita moral, mas há motivos para acreditarmos na força transformadora do humano, como há igualmente meios para tornar esse ser um membro da comunidade moral, que são: a educação, como ponto de partida para reformar o pensamento e, em última instância, o papel coercitivo que pode ser desenvolvido pelo direito, enquanto norma jurídica. Cumpre ainda salientar a necessidade de construirmos a comunidade moral também com vista às gerações futuras. A esse respeito, porque não pensar ainda na comunidade moral que possa se estender para além do humano? É evidente que, nesse caso, não poderíamos falar de justificativa recíproca, mas o humano não poderia progredir a ponto de considerar respeitar aqueles que não podem se defender (exigir), como os seres vivos irracionais? A proposta moral fundada sobre comunidades morais só é possível mediante uma atitude de simetria, a qual não descarta o altruísmo espontâneo e deve orientar-se, sobretudo, nos dilemas que se vive cotidianamente entre moral e poder. Nessa perspectiva, devemos também esclarecer que pensar a ética a partir da noção de comunidade moral não exclui a possibilidade de uma comunidade convencer outra comunidade, de forma a estabelecer um diálogo, um consenso universal discutido e justificado reciprocamente. Concluindo, gostaríamos de citar Tugendhat (1993):

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O Agir Humano Quem se coloca a pergunta “quero eu fazer parte da comunidade moral?”, tem de perguntar-se: “quem afinal eu quero ser, em que reside para mim a vida e o que depende para mim disto, que eu me compreenda como pertencente à comunidade moral?” (...) A reflexão sobre o “eu quero”, que está na base do “eu tenho que”, conduznos no sentido de assumir a autonomia que faz parte do ser humano adulto. Pois, poderíamos nós querer que um tal ter de absoluto — supondo que por si não seja um contrassenso — fosse cravado em nós? Eu posso querer que uma parte do meu querer seja subtraída de mim mesmo?

Pensar a moral de forma heterônoma prova-nos a nossa falta de confiança, primeiro em nós mesmos e, depois, nos outros. Porém, não é pequeno o desafio de pensarmos sobre o significado do que realmente desejamos e nos pautarmos por ele. Desafio grandioso, mas não impossível. Na história, muitas foram as ocasiões em que o desejo dos grandes ideais moveu os humanos a serem moralmente melhores.

REFERÊNCIAS ABBAGNANO, Nicola. Dicionário de Filosofia. Martins Fontes, São Paulo, 2000. BOFF, L. Ethos Mundial A Carta da Terra. Rio de Janeiro: sextante 2003. CHAUÍ, Marilena. Convite à Filosofia. Editora Ática S.A., São Paulo, 1994.

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O Agir Humano GALLO, Sílvio (coord.). Ética e Cidadania caminhos para a filosofa. 5ª edição, Papirus Editora. Campinas, São Paulo, 1999. HABERMAS, J. O Discurso filosófico da Modernidade. Publicações Dom Quixote Nova Enciclopédia. HEIDEGGER, M. Ser e Tempo. Coleção Os Pensadores – Nova Cultural, RJ. KANT, Immanuel. A paz perpétua e outros opúsculos – textos filosóficos edições 70 nº 18, Trad. Artur Morão, Lisboa Portugal. KANT, Immanuel. Fundamentação da metafísica dos costumes - textos filosóficos edições 70 nº 7, Lisboa Portugal. OLIVEIRA, Manfredo A. de. (org). Correntes fundamentais da ética contemporânea. Petrópolis, RJ, Vozes, 2000. REALE, Giovani, e ANTISERI, Dario. História da filosofia, Vol. I, São Paulo: Paulinas, 1990. TUGENDHAT, Ernst. Lições sobre ética. 2a edição, Ed. Vozes – RJ, 1993. TUGENDHAT, Ernst. “Reflexões dobre o que significa justificar juízos morais” In Brito, Adriano Naves de (organizador). Ética: questões de fundamentação, Brasília, Editora da UNB, 2007, p. 19 – 36.

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6 ECOLOGIA, AMBIENTE E VIDA: UM OLHAR SOBRE A QUESTÃO AMBIENTAL E SUAS REPERCUSSÕES ÉTICAS Francisco de Assis Costa da Silva 1

1. INTRODUÇÃO. A questão ambiental é própria da atualidade. Diferentemente dos séculos passados, durante os quais os homens administravam os recursos naturais como se fossem “bons pais de família” — preocupados unicamente com seu aproveitamento — e a sua salvaguarda não colocava problemas especiais, hoje se percebe uma irregularidade na relação do homem com o meio ambiente. O problema ambiental extrapolou a questão que diz respeito ao melhor uso dos recursos naturais para a garantia ou melhoria das formas de vida humana e transformou-se em necessidade de respeito ao equilíbrio ambiental para preservar a possibilidade de uma civilização futura. O homem sempre modificou o locus de seu existir. É o que chamamos de cultura. Mas, o escalonamento da produção, do consumo e da poluição mudaram tudo. O crescimento demográfico, a urbanização, os modos de produção e consumo, etc., favoreceram não só um dispêndio de riquezas naturais insustentável em longo prazo — sem dúvidas, permanentemente estimulado, pelo menos nos países de economia capitalista —, como também um aumento Doutor em Teologia Fundamental pela Pontifícia Universidade Gregoriana de Roma. Professor do Departamento de Filosofia da UERN (E-mail: pcosta2002@libero.it). 1


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O Agir Humano do lançamento de resíduos no ambiente, nocivo e incontornável sem uma intervenção humana planejada. A civilização industrial e capitalista se baseia no aproveitamento das matérias primas. Mas, como estas são reconhecidamente limitadas, sua posse se tornou motivo de competição entre as nações mais poderosas e industrializadas. A esse respeito, o aumento expressivo dos níveis de poluição foi apenas uma das consequências diretas do consumo irresponsável, mas não a única. Basta dizer que a concorrência pelo controle de matéria prima, especialmente combustíveis, e da sua distribuição, com toda a carga de intolerância que se somou nos encontros ou choques culturais, está mesmo na origem da corrida armamentista e no desperdício que esta determina. Em suma, é quase unânime a leitura a respeito da existência de um desequilíbrio ambiental permanente e da sua progressiva piora. Os problemas ambientais têm origem substancialmente: 1. Na alteração dos equilíbrios naturais: isto se percebe facilmente a partir das catástrofes naturais, que acontecem periodicamente, recordando-nos sobre a instabilidade do ambiente no qual vivemos. 2. Nos comportamentos humanos em sociedade, que contribuem decisivamente para as alterações dos equilíbrios naturais. Assim, a transformação atual da relação do homem com o ambiente liga-se à tomada de consciência da limitação dos recursos e da impossibilidade de assegurar o progresso nos moldes atuais ou manter o estilo de vida das sociedades de consumo sem destruir o planeta. Isso é o que alimenta a urgência do trato de questões ambientais.

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O Agir Humano As questões ambientais envolvem dois aspectos complementares: 1) a preocupação para com o estado das riquezas naturais, que o homem considera serem colocadas à sua própria disposição e essenciais ao progresso da civilização; 2) o interesse a respeito dos princípios éticos que fazem jus ao seu uso. Ambos estes aspectos são hoje de uma atualidade inquietante. De uma parte, toma-se consciência que as riquezas não são em quantidades ilimitadas, que devem ser geridas e melhor repartidas entre as gerações presentes e futuras, que um novo modelo de desenvolvimento e civilização deve ser construído. De outra parte, parecem ser colocados em causa os fundamentos éticos segundo os quais o homem tinha sempre feito recurso para resolver tais questões, o que prejudica a proposição de uma resposta compacta e mais ágil a esse problema. O homem ocidental, até bem poucas décadas, estava habituado a considerar-se o centro do universo. Ideia essa de procedência bíblica e filosófica. Era comum entender que a realidade estivesse ao seu serviço e que a história cósmica fosse orientada por uma providência, que a conduziria a bom termo. A mesma providência que seria a razão última de todo bem moral. Descobre-se hoje, diversamente, com a ameaça da aniquilação, não digamos, pretensiosamente, da vida, mas da civilização humana conhecida, que o destino humano em nosso planeta pode não apontar para fins tão promissores. Nossa época parece ser bastante “clarividente” para perceber que o homem não é um tutelado, mas o único a que se pode responsabilizar por seus próprios atos e, assim, por seu destino. Para resguardar-nos de um desastre sem volta, urge estabelecermos e sustentarmos uma nova relação homem-mundo, tão difícil de ser erigida quanto é uma moral universalmente compartilhada. A perspectiva de uma catástrofe ambiental, na qual imerge o gênero humano há meio século, torna universalmente pertinentes 135


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O Agir Humano diversas interrogações: qual é a razão para temê-la, ou melhor, quais seriam suas repercussões? Como enfrentá-la? A réplica a esta última questão requer pensar as suas dimensões, antes de apresentar algumas linhas de resposta. A esse respeito, o que se propõe nesse texto é menos uma resposta que um esclarecimento de perspectivas sobre o estado em que se encontra a questão ambiental: a humanidade entrou numa nova era que requer um mínimo de lucidez e de iniciativa. Teria a humanidade do século XXI a capacidade moral de assumir coletivamente — porque ações individuais isoladas são insuficientes — sacrifícios imensos a seu estilo de vida, que parecem ser a condição imprescindível para se resolver os problemas ecológicos mais graves? Sem dúvida, ela é capaz de encontrar energias para organizar diversos projetos civilizatórios e humanitários, mas parece inapta quando se trata de conseguir resultados que abalem o seu estilo de vida de imediato: a conservação da água, a proteção das espécies, a difusão das energias renováveis, etc. É desconfortável pensar que o sonho da “civilização de consumo” não possa ser mais uma meta para as sociedades economicamente menos desenvolvidas e não possa ser sustentado por aquelas que há décadas dele gozam. Mas, é angustiante pensar nas consequências da recusa de sociedades inteiras em renunciar a seu estilo de vida atual em favor da possibilidade de um futuro para as gerações que hão de vir. O drama das catástrofes divulgadas diariamente pelos noticiários parece emocionar, mas não foram ainda suficientes para motivar uma resposta concreta à altura. É bem verdade que o pânico não seria útil. Se a opinião pública é chamada a concentrar sua atenção sobre as questões ambientais e suas urgências, precisa resguardar-se do risco de deixar-se devastar pelo quadro em que se projeta essa grave crise civilizatória. Uma crise que não é nova. À época da guerra fria, foram desenvolvidos, pelo Instituto Max Plank, alguns estudos que 136


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O Agir Humano colocavam em dúvida a possibilidade de sobrevivência da espécie humana em caso de conflito 2. Uma guerra atômica foi evitada a todo custo. Todavia, a resposta historicamente dada pareceu ser mais voltada para o reequilíbrio constante de forças, para o ditirambo “se queres paz, prepara-te para a guerra”, do que para uma solução real. O problema foi, então, postergado, mas não resolvido. A reproposição da discussão sobre a necessidade de acordos, finalmente não compactuados, a respeito da diminuição da emissão de gazes na atmosfera parece tomar o mesmo rumo. Mas, diferente da época da guerra fria, a corrida agora é contra o tempo. Nossos contemporâneos parecem oscilar entre dois comportamentos: um de resignação, de acordo com o qual o indivíduo se reconhece incapaz de modificar as evoluções em ato e se remete ao acaso ou às decisões dos governos, sem envolvimento pessoal, confortando-se — ingenuamente — com a ideia de que as forças que ameaçam destruir o planeta não completarão o seu trabalho durante o percurso de sua vida; o outro de responsabilidade, segundo o qual, consciente da amplitude dos problemas, intenciona enfrentar o desafio que se coloca e contribuir ativamente para sua solução. De qualquer modo, compartilha-se a certeza da impossibilidade de se postergar a decisão a ser tomada.

2. A AMPLITUDE DA QUESTÃO. Quem aceita refletir sobre questões ambientais de maneira racional e ética, não se encontra diante de uma tabula rasa. Não somente as Nações Unidas criaram uma agência que se ocupa das

Várias considerações sobre o assunto encontram-se em ACCADEMIA PONTIFICIA DELLE SCHIENZE, “Colloquio”, 1985. 2

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O Agir Humano questões ambientais, 3 mas existem estudos, associações e partidos políticos que agrupam pessoas e ativistas que procuram enfocar a importância de uma ação imediata não voltada apenas para a preservação de espécies, cujo desaparecimento comprometeria o equilíbrio ecológico, mas mais amplamente para a preservação de nossa própria espécie. Especial atenção é dada pelos movimentos ecológicos a pesquisas nucleares e aos perigos ligados ao aquecimento global, que se vinculam, segundo vários estudos, às emissões de gazes poluentes na atmosfera. Em todo caso, os problemas ambientais não são somente técnicos. Não se trata apenas de criar “tecnologias ecológicas”, mas de mudar um amplo estilo de vida. As questões ecológicas colocam à contemporaneidade o desafio de assumir um novo tipo de responsabilidade, para fazer com que o uso pacífico do progresso científico esteja a serviço da coletividade humana e não apenas de interesses econômicos imediatos. Utilizaremos de três considerações para vislumbrar a vastidão dos desafios a serem enfrentados nessa empreitada.

2.1. A dimensão do cosmo e a desconfiança moral. Nos últimos séculos, as ciências conheceram um desenvolvimento espetacular. Ainda durante o Renascimento, os estudiosos discutiam sobre a natureza do sistema solar: para alguns, como Tycho Brahé (1546-1601), a terra era imóvel e o sol se deslocava no espaço. Essa opinião, comum na época, era sustentada pelas grandes religiões monoteístas, especialmente pelo Judaísmo e 3 As nações unidas adotaram em 1972 um Programa para o Ambiente, cuja sede é Nairobi. Uma Convention on international trade in endangered species of wild fauna and flora, foi adotada em 1973. Tantos outros instrumentos foram adotados em seguida.

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O Agir Humano Cristianismo, sobre a base da autoridade da física de Aristóteles e de certas interpretações de trechos do Livro do Gênesis. Para outros, que seguiam Copérnico (1473-1543), Kepler (1571-1630) e Galileu Galilei (1564-1642), os planetas e, portanto, também a terra, giravam em torno do sol e possuíam um movimento rotatório em torno do seu eixo. A disputa entre estes dois modos de compreender será resolvida muito lentamente. Espíritos sérios e notoriamente sábios, como o astrônomo e físico Boscovitch (1711-1787) e o filósofo d’Alembert (1717-1783), tinham opiniões que hoje pareceriam ridículas. Certa vez, durante um jantar, alguém objetou a Boscovitch, que além de cientista era padre, que a cronologia bíblica não correspondia à realidade, dado que foram descobertas algumas estrelas cuja luz levava mais de quatro mil anos para chegar à terra. Ele respondeu que nada impedia a Deus de ter criado simultaneamente a terra, as estrelas e os raios que permitiam naquele momento de vê-las. Direcionandose para d’Alembert, o interlocutor então lhe perguntou o que pensava sobre esta explicação e este lhe respondeu “é evidente” (JOBLIN, 2008, p. 580). A opinião de Boscovitch nos parece hoje de um infantilismo surpreendente, mas provém de um dos mais iluminados espíritos científicos da sua época. O mundo, considerado como realidade física — se dizia —, não poderia ter sido construído sem um arquiteto, exatamente como não era possível pensar que um edifício pudesse despontar da terra como em um milagre. Para Boscovitch, como para a maior parte dos seus contemporâneos, o acordo entre razão e ensinamentos da religião pareciam “evidentes” — para usar a expressão de d’Alembert. Hoje este modo de raciocinar foi definitivamente abolido por várias descobertas científicas realizadas em campo astronômico. A transformação das representações cósmicas está entre as maiores revoluções de nossa época. Dando um imenso salto de 139


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O Agir Humano Copérnico, Kleper e Galileu até o século XX, basta dizer que em 1929, Hubble tinha demonstrado que o universo não era uma entidade fixa, mas se expandia e as galáxias se distanciavam umas das outras. O estudo do grau de expansão implicava que, originalmente, o universo fosse concentrado em um “ponto” e daí uma corroboração à teoria do chamado big bang, proposta por outro padre, Georges Lemaitre (1894-1966). Compreendeu-se, então, que o mundo fosse formado por meio de uma sucessão de fenômenos físicos e químicos, que a astronomia permitia finalmente observar. Este processo, iniciado há bilhões de anos, dera lugar à formação de galáxias, cujas dimensões não tinham nada a ver com as noções de espaço e tempo da nossa experiência quotidiana. Quando as primeiras formas microscópicas de vida apareceram sobre a terra, a cerca de 3,6 bilhões de anos, esta já tinha uma “idade” de mais de 1 bilhão de anos; quanto ao espírito humano, este seria consequência de um processo de complexidade crescente de ordem química no universo em expansão (MASANI, 1996, p. 113). Ora, embora a ciência positiva não se arrisque em afirmações que ultrapassem o estado primordial do universo, ligado ao momento inicial do big bang, suas explicações se dissociam daquelas tradicionalmente sustentadas até o renascimento, especialmente ligadas às narrativas do Livro do Gênesis. A consequência dessa reviravolta não só foi o enfraquecimento da crença de que as Sagradas Escrituras pudessem conter ensinamentos científico-positivos, como também daquela outra de que os ensinamentos morais, até então sustentados em virtude de uma forte cultura religiosa e da ética aristotélico-escolástica, pudessem ter uma “base sólida”. Em suma, contestada a autoridade científica da fé — e da física aristotélica —, também foi contestada sua autoridade moral — da Igreja e, de tabela, de Aristóteles — e, assim, a própria consistência dos valores cristãos (SOUZA, 2005). 140


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O Agir Humano Não é de se admirar que o acordo moral, antes tão natural, a partir de então se fizesse difícil, mais acentuadamente no âmbito das academias. Que consequências isso poderia acarretar? Não só a dissociação entre ciência e moral, como também sobre o acordo em relação a princípios morais — pela lacuna em seus fundamentos — e, assim, a respeito de estilos de vida.

2.2. A energia atômica e a necessidade da concórdia. No intervalo entre as duas grandes guerras mundiais, o progresso da pesquisa científica permitira a alguns especialistas descobrir que o aproveitamento de energia nuclear era possível. A respeito dos bombardeamentos de Hiroshima e Nagasaki (1945), a notícia do fim da guerra comprometeu a discussão sobre a legitimidade do uso dessa tecnologia e sobre suas consequências para a humanidade. Até então, ainda não havia sido colocado com tanta concretude o problema dos novos poderes que o homem era capaz de exercer sobre a natureza. Uma das primeiras reflexões sobre as consequências para o homem da tecnologia atômica foi realizada pelo Padre Teilhard de Chardin. Ele publicou na Revista Les Etudes uma reflexão a propósito das repercussões sobre o homem da era da arma atômica. Começou celebrando a “clarividência” de uma revista americana que em 18 de agosto de 1945 escrevera “somente uma energia política direta à realização de uma estrutura universal é capaz de equilibrar no mundo o aparecimento de forças atômicas”. Ele fez notar que na época atômica as condições completamente novas, as forças devastadoras que se colocavam ao alcance das mãos humanas exigiam um comprometimento político universal em relação à concórdia e à paz: 141


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O Agir Humano

O homem (...) até agora se servia da matéria. Chegou o momento de manejar os compostos, ordenando a gênese mesma da matéria. Energias assim profundas capazes de tornar possível reproduzir ao seu bel prazer aquilo que parecia domínio exclusivo das potências siderais. Energias tão potentes, que é preciso pensar duas vezes antes de permitir um gesto que poderia jogar para o espaço a terra. Como não nos sentir exaltados, (...) diante deste processo? (CHARDIN, 1946, p. 89).

Em suma, as pesquisas que se desenvolveram em torno da geração e aproveitamento da energia atômica corroboraram ainda mais a crença de que era possível descobrir e controlar as forças mais primordiais do universo, responsáveis pela própria composição da matéria. Evidentemente, esse aumento de poder, como advertia Chardin, não poderia se furtar ao aumento de responsabilidade, tornando urgente uma discussão sobre novas bases éticas e políticas universalmente compartilhadas. O caso específico das descobertas em torno da energia nuclear nos dá, assim, um exemplo claro do duplo ponto de vista, sempre prospectivo (voltado para o futuro), que deverá marcar as discussões sobre o desenvolvimento da ciência a partir de então: por um lado, científico-moral, porque, depois de ter constatado que os avanços científicos colocam nas mãos do homem um poder extraordinário, as sociedades deverão interrogar-se sobre a responsabilidade moral do seu uso; o outro político-moral, porque devem ser tomadas decisões a respeito do modo como as nações investirão em tecnologia e modos de vida ligados ao uso dessas tecnologias, no interesse ou não da maioria e em benefício ou não das gerações futuras.

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O Agir Humano 2.3 As biotecnologias e os princípios gerais de conduta em pesquisas. As considerações precedentes mostram, de uma parte, a imensa influência dos produtos do engenho humano sobre o futuro de nossa existência; de outra parte, que nos parece evidente que temos o poder de modificar nosso destino e o de nosso planeta e, assim, de que temos de assumir a responsabilidade de fazê-lo. É o que ocorre também no campo das transformações da medicina e das biotecnologias. Por milênios, a vida apareceu como uma realidade sobre a qual o homem não tinha poder. Podia curar a dor, favorecer com as curas a recuperação ou suprimir a vida. Mas, a sua natureza ou o conhecimento íntimo de seus processos lhe escapava. Agora, a vida cai progressivamente sob o poder do homem. Um monge austríaco, Mendel (1822-1884), mostrando que a transmissão dos caracteres hereditários dos seres viventes obedecia a leis inscritas na sua própria natureza (aquilo que hoje chamamos patrimônio genético) deu via a uma verdadeira e própria revolução. Ele levou adiante experimentações sobre vegetais, mais especificamente sobre ervilhas: cruzou-as, realizando um procedimento comum na prática agrícola e pecuária de seu tempo, para obtenção de plantas e animais melhorados, mas com uma intenção diferente. Constatou que a transmissão de caracteres, como forma e cor, obedecia a leis específicas e as enunciou. Foram chamadas leis de Mendel. Nasce daí a genética. As descobertas sucessivas permitiram agir sobre mecanismos da hereditariedade, a ponto de modificá-los. E, desse modo, não só a evolução do universo ou a matéria eram colonizados pela ciência positiva, como também a vida. Também nesse âmbito tecnologias foram desenvolvidas. O aparecimento das chamadas biotecnologias obrigou o homem contemporâneo a 143


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O Agir Humano deparar-se com um certo número de questões que não se colocavam às gerações precedentes: é lícito modificar o percurso da vida recorrendo às biotecnologias? Algumas intervenções sobre o ser vivente podem modificar os caracteres hereditários. Até que ponto tais experimentos podem ser aplicados ao homem? Podem ser criados homens “programados” para realizar determinadas funções? Em qual medida um estado pode adotar leis que impliquem a esterilização de deficientes mentais ou criminosos sexuais, com a finalidade de impedir, respectivamente, a transmissão de características hereditárias indesejáveis e a reincidência de crimes particularmente graves? Em que medida pode ser pesquisado o melhoramento genético do homem, assim como acontece no caso dos animais e dos vegetais, recorrendo-se à inseminação artificial ou à manipulação genética? O progresso da pesquisa é o único critério para julgar a oportunidade e a legitimidade de um experimento? Como julgar as experimentações conduzidas sobre neonatos ou crianças incapazes de compreender os tratamentos a que são submetidos? Que juízo emitir sobre as experimentações em embriões? Que implicações há na produção de tecidos e órgãos humanos substitutos? E o que pensar da clonagem terapêutica ou reprodutiva? O comércio de tecidos e órgãos para transplante pode ser autorizado, com o risco de abusos sobre seres indefesos? Até que ponto tal comércio pode ser regulamentado pela lei? Evidentemente, as respostas a tais questões não são simples e o que concretamente foi realizado a esse respeito o foi com grande custo. No final da segunda guerra mundial, a humanidade estremeceu ao tomar conhecimento de práticas abusivas em experimentações científicas realizadas em seres humanos. Também em resposta a isso, o Tribunal Internacional de Nuremberg, criado em 1945 para julgar os crimes de guerra dos nazistas, enunciou três

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O Agir Humano princípios que toda regulamentação política sobre o assunto deveria respeitar: 1º O princípio de utilidade, isto é, a experimentação deve ter como objetivo a solução de um problema de saúde do paciente ou da humanidade; 2º O princípio da inocência, isto é, a experimentação não deve produzir a morte do paciente, provocar dano à sua saúde ou atormentá-lo com uma enfermidade permanente; 3º O princípio do livre consentimento do sujeito, isto é, este deverá dar o consentimento antes de começar a experimentação e para prossegui-la porque lhe dever ser garantida a possibilidade de voltar atrás em qualquer momento. Estes três princípios estabelecem que a pesquisa científica só é lícita se respeita a igualdade fundamental dos seres humanos no gozo do direito de buscar o seu desenvolvimento material e o seu progresso espiritual, com igualdade de oportunidade. Mas, concretamente, são orientações gerais, em relação as quais os estados nacionais não se encontram necessariamente vinculados. Não obstante, servem de modelo e de teste a respeito do alcance e dos limites para se pensar já nas implicações de princípios mínimos, universalmente compartilhados.

3. RESPOSTAS AOS DESAFIOS POSTOS PELA CIÊNCIA. 3.1. A dúvida. Uma adequada elucidação da experiência direta do passado permite determinar aquilo que pode ser justo em função dos efeitos futuros previstos. Torna-se difícil decidir o que é bom para o homem na ausência de um juízo dos efeitos positivos ou negativos

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O Agir Humano de tais iniciativas. Mas, isso não parece ainda suficiente. Que parâmetro utilizar para julgar o que é positivo ou negativo? A diversidade das culturas parece explicar a diversidade de opiniões sobre princípios basilares. Mas, até que ponto uma nação poderia ser livre para respeitar ou não determinados limites comportamentais apoiada em razões culturais? Basta lembrar o testemunho dado pela história de vários genocídios do século passado. Estes pareceram plenamente justificados para aqueles que os ordenavam, a partir do momento que se integravam na lógica do seu sistema de valores. A conciliação de pontos de vista nem sempre compromete a paz coletiva da humanidade. Mas, e nos casos em que isso ocorra, como proceder? A resposta a essa questão não é simplesmente: na busca da verdade. O pluralismo e autonomia dos estados nacionais e da sociedade internacional torna difícil conciliar pontos de vista opostos, porque uma mesma verdade não é mais aceita universalmente. A razão carece de um ponto de apoio. Ora, as consequências desse estado de coisas possui uma relevância incontestável quanto o assunto são questões ambientais.

3.2. Busca de uma bússola. A questão ambiental não se limita simplesmente à decisão sobre se queremos salvaguardar ou menos as riquezas naturais do planeta, mas engloba a questão sobre se queremos salvaguardar nossa própria espécie. O sentido da questão ambiental liga-se, assim, ao sentido de nossa própria existência. É exatamente este sentido que está em crise e tal crise é particularmente aguda nos países ocidentais. Certamente, a maioria dos seres humanos está convencida de que nem toda forma de progresso seja lícita e que, para o bem da 146


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O Agir Humano humanidade, devam ser aplicadas regulamentações. O problema estar em como pactuá-las universalmente. A resposta não foi ainda construída. Não obstante, algumas certezas permitem indicar pontos incontestes no caminho para uma resposta: 1. A neutralidade não é possível diante dos problemas ambientais. Já que o homem não pode impedir-se de organizar a exploração e o desenvolvimento do planeta, deve decidir-se como fazê-lo. 2. Além de uma decisão, é necessário passar da intenção moral à ação, porque a solução dos problemas ambientais não pode ser postergada. 3. O parâmetro de decisão deve levar em conta tanto interesses individuais, quanto àqueles coletivos; tanto ações individuais, quanto decisões políticas coletivas. 4. Não há como pensar em parâmetros de decisão, sem pensar em um sentido global atribuível à existência humana, porque ou todos nos ajudamos ou todos fracassaremos.

4. CONSIDERAÇÕES FINAIS. Os problemas levantados pelas questões ambientais se tornaram tais que já não é possível ao homem resolvê-las sem refletir sobre o seu próprio destino. Descobrindo que seu estilo de vida influi nas transformações do mundo, não pode fingir não existir uma correlação entre o destino ambiental e seu próprio destino. O seu empenho nas questões ambientais reveste uma dupla dimensão: uma de ordem interna, de compromisso pessoal com as questões aí suscitadas e suas possíveis soluções; a outra de ordem externa, política, no sentido grego, de favorecimento da discussão e 147


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O Agir Humano da assunção de ações concretas a respeito de estilos gerais de vida e suas consequências, inclusive estilos futuros. Compreende-se a angústia que pode provar o homem do século XXI ao ter necessariamente que assumir o desafio inusitado da mudança de seu modo de vida, que, conservado como tal, colocaria em cheque a própria possibilidade de sua subsistência como espécie no mundo. O cerne da questão, porém, continua sendo a mesma de sempre: qual o sentido da vida humana e de nosso destino? Teremos a coragem de nos unirmos para que a humanidade tenha um futuro?

REFERÊNCIAS CHARDIN, T. Fenômeno Humano. São Paulo: Cultrix, 1986. _______. “Quelques refléxions sur le retentissement spirituel de la bombe atomique”. In: Études VII (1946). _______. Hino do Universo. São Paulo: Paulus, 1994. _______. O lugar do homem no universo. Lisboa: Instituto Piaget, 1997. JAKI, S. La cristologia e l’origine della scienza moderna. Milano, Mondatori, 1990. JOBLIN, J. “Les Églises aux prises avec la sécularisation”. In: Gregorianum, 89/3 (2008), p. 577-593. MASANI, A. La cosmologia nella storia fra scienza, religione e filosofia. Brescia, La Scuola 1996.

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O Agir Humano TANZELLA-NITTI, G. “Visione realista dell’universo e teologia della creazione”. In: Giornale di Astronomia 25 (1999), p. 14-20. ROYER, J. I tempi in astronomie e in astrofisica. Milano, Jacob, 2007. SALVINI, G.P. “L’aqua, bene indispensabile ma ancora non disponibile per tutti”. In: Civiltà Cattolica II (2007), p. 354-364.

SOUZA, G. G. M. Razão e Nihilismo. Rio de Janeiro, Letra Capital, 2005.

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7 A IDEIA DO CAPITALISMO ESTÉTICO: DO FETICHISMO DA MERCADORIA À EXPLORAÇÃO DO SENSÓRIO Elder Lacerda Queiroz1 O capitalismo pode não apenas ser destrutivo, pelo contrário, ele também é essencialmente distrativo (Noam Chomsky). A liberdade de mercado consiste em nos permitir aceitar os preços que nos são impostos (Eduardo Galeano).

O capitalismo não é apenas um sistema de fabricação de mercadorias, mas também de desejos, é um regime de desejo. Mercadorias são coisas imbuídas de associações estéticas e próteses de sentido que ultrapassam totalmente o seu “mero” valor utilitário, são coisas que, se abstraídas do seu valor de uso, aparecem como puros objetos de culto. Agora, a mercadoria só pode ser adorada como fetiche e emergir como objeto de culto se sua aparição é capaz de encobrir qualquer referência aos processos sociais de exploração implicados na sua fabricação. A virada estética do capitalismo nos deixa o desafio de entender e trazer à luz as novas formas de exploração. Será que o conceito marxista tradicional de exploração, depois da revolução da microeletrônica e da plena inserção das sociedades contemporâneas na era digital, ainda permanece válido e atual? Doutorando em filosofia na Hochschule für Grafik und Buchkunst, em Leipzig (Alemanha), sob orientação do Prof. Christoph Türcke. É professor do departamento de filosofia da UERN (E-mail: elderla@hotmail.com). 1


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O Agir Humano O capital aprendeu a expressar-se esteticamente. Categorias estéticas ocupam o cerne do sistema produtivo e são responsáveis por sua dinâmica. A atratividade do consumo e sua destreza de se tornar fascinante, não podem prescindir da arte e da beleza do design. “A estetização aderiu ao capitalismo não como sua indumentária, mas como sua pele” (Türcke 2002, p. 9). Mas, trata-se de uma estética sem ímpeto utópico. A estética da mercadoria, a demanda por belas formas, a produção do design, a sofisticação do gosto, a padronização da sensualidade humana, a hegemonia da lógica da espetacularização e da sensação, enfim, o estético, a muito se tornou, principalmente no domínio econômico, decisivo. Não é em vão que “A sociedade do espetáculo”, de Debord, publicada a 46 anos atrás, tenha notado que “o espetáculo é o capital em tal grau de acumulação que se torna imagem” (Debord 2009, p. 27). Debord iguala o espetáculo ao capital. O capital é o espetáculo, no sentido que o capital é, fundamentalmente, a produção do espetáculo comercial de mercadorias. O espetáculo é o componente mais decisivo na cadeia de produção de valor, por ser essencial à fabricação da demanda para a mercadoria, graças ao olhar social a ela agregado. Assim, o espetáculo representa nada mais do que o próprio espírito do materialismo. O capital é, simultaneamente o que produz esse mundo visível, mas também, o que se dá a ver nesse desfile de promessas e de esperanças de satisfação em torno do universo da oferta de mercadoria. O famoso aforismo 34 da Sociedade do Espetáculo, de Debord, não recebe dele nenhum esclarecimento posterior, mas é latente, em seu texto, a ideia de que o capital não é apenas imagem, mas ele é também aquilo que fala e se dá a compreender no espetáculo. A primeira impressão é que o aforismo 35 deveria ter sido: “o capital possui também linguagem e, sendo assim, não demorou muito para que ele aprendesse a falar”. Nesse sentido, a fabricação da mercadoria, pressupõe não só a produção da imagem, mas também a enunciação de um sentido. É, 152


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O Agir Humano justamente, essa procissão massiva de imagem e de prótese de sentido que protagoniza o espetáculo da oferta capitalista. Nada se repete mais, em todo desse massivo fluxo de imagens, do que o rosto humano. Este passou a desempenhar um papel decisivo no mundo da mercadoria. Sua presença no mundo da publicidade se dá numa escala tão assombrosa que, Thomas Macho, no esforço de apreender teoricamente esse estado de coisas, chega a lançar mão do conceito de civilização facial (facialen Gesellschaft). Ele lembra que basta sairmos de casa para sermos acompanhados, em toda parte, por essa imagem tão familiar, o rosto. Quer seja em outdoors, ou em quaisquer outras plataformas publicitárias, rostos nos interpelam, como se quisessem saber algo a nosso respeito, como se quisessem nos dizer alguma coisa ou como se estivessem prestes a nos revelar algum segredo. O uso instrumental do rosto, parte de um motivo importante, o de não existir nada tão familiar quanto o rosto humano. Por isso, o rosto serve tão bem como mediador para facilitar a circulação da mercadoria. Sua presença é de tal modo essencial, no mundo da mercadoria, que T. Macho sugere que já não é o homem a medida de todas as “coisas” (Maß aller Dinge), mas o rosto. Ninguém se arrisca a expor objeto algum em nenhum cartaz, em nenhum outdoor ou a fazer nenhuma propaganda, sem se valer do rosto humano. Até mesmo alguns produtos, aqueles que se dirigem a um comprador que deseja certo anonimato, refletem, direto aos nossos olhos, a expressão de júbilo e excitação de algum Modelo; já outros produtos trarão, até mesmo, um rosto gravado em seu corpo, de série. (Macho 2011, p. 263)

Assim, na civilização facial, o rosto é sobretudo um meio, capaz de emprestar a coisa mercadoria certa familiaridade, ele possibilita que essa coisa ganhe personalidade. Cabe lembrar que, no 153


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O Agir Humano grego antigo, persona vinculava-se originariamente ao rosto. Tratava-se de uma máscara, de expressão fixa, usada por atores no teatro clássico. Macho fala ainda de “Faciale Kompetenzen” como uma “virtude” que é, cada vez mais, extensivamente exercitada numa sociedade pautada e orientada pelo critério da fama e da celebridade (Macho 2011, p. 268). Não é mero acaso que a sociedade de consumo tenha obsessão por imagens, aparência, superfícies e design. Ele lembra, ainda, uma década depois de Christoph Türcke, da fórmula do Bispo George Berkeley, ser é ser percebido, “Omne esse est percepi”, “To be is to be perceived”, numa sociedade onde o sensacional torna-se a condição da possibilidade da percepção, não ser percebido significa, tanto em termos existenciais, como em termos sociais, não ser. Daí a pressão de auto enunciação chamativa, por trás da compulsão à emissão. Ou seja, a partir dessa lógica, não deveria nos causar nenhuma surpresa que, no final de 2012, o facebook já contasse com o número astronômico de mais de 250 bilhões de fotos carregadas. Para Edgar Morin, a produção se exprime através do jornal, do rádio, do filme, etc., pois, a partir daí, são criadas narrativas, histórias em que nascem as celebridades que se assemelham a heróis ou a semideuses mitológicos e tornam-se vedetes do imaginário cinematográfico, esportivo ou político, convertendo-se em modelos no plano estético e existencial, de modo que não só sua aparência, mas também seus modos de ser e estilos de vida, suas qualidades de ser atraentes e de se tornarem fascinantes, são capazes de se impor e de assumir um caráter normativo, indo de encontro à necessidade de identificação e identidade, de orientação e projeção, dos indivíduos. Com isso, a ficção da tela se confunde com a realidade e, por meio da mímica, é capaz de saltar da esfera da identificação para a plano da identidade.

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O Agir Humano Nesse sentido pode-se dizer que a produção dispara contra o futuro e provável consumidor, o tempo inteiro, na forma de inundação de enunciados e de estímulos, mas, se, por um lado, a produção fala, o consumidor, por outro, apenas escuta. Quer dizer, não há diálogo entre produção e consumo, mas, manipulação na forma de um monólogo. Diante do monólogo da oferta de mercadorias e da produção de sentido, os indivíduos são convidados a participar, tendo o privilégio de poder responder com sinais pavlovianos: sim ou não ou ainda apontar para esse ou aquele, como já o havia percebido E. Morin. Ou seja, o público participa, da procissão das mercadorias e de suas próteses de sentido, na condição de espectador. Todavia, a lógica do espetacular e do sensacional, característica de uma sociedade que atualiza constantemente sua capacidade técnica, permeia essa império da oferta de mercadorias. Tal lógica não só exige uma densa transformação dos padrões de percepção e da capacidade de atenção, assim como das formas de expressão, comunicação e relação. A esta nova sociedade, Debord chama de sociedade do espetáculo, uma vez que o espetáculo e sua lógica sensacional tornam-se o foco e modus operandi de uma sociedade inteira. Para Christoph Türcke, na mesma direção de Debord, “essa tendência a espetacularização é tão pouco evitável quanto a inovação técnica permanente” (Türcke 2002, p. 11). A lógica da espetacularizão é total, pois ela abrange tudo, nenhuma grande ação pode prescindir do trabalho de instrumentação midiático. A lógica da mercadoria predomina sobre as constantes modificações e aperfeiçoamentos dos recursos do espetáculo. Assim, há uma política espetáculo, há eleições-espetáculo, há uma espetacularização da crise financeira, uma medicina-espetáculo, uma justiça-espetáculo, uma guerra-espetáculo, uma ação espetacular de combate ao crime, há uma astrofísica-espetáculo, o protesto espetáculo, nem mesmo a crítica e ações que se pretendem firmar 155


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O Agir Humano como contrafogo ao regime do capital conseguem esquivar-se do paradigma do espetacular: Slavoj Zizek e Greenpeace há muito subsumiram ao padrão espetacular. Pois, é da própria natureza da publicidade chamar atenção e influenciar. Não chamar atenção, não provocar sensação e não ser espetacular é garantir a morte em termos sociais. Se a máxima de Berkeley, ser é ser percebido, é verdadeira, não é menos verdadeiro que numa era de superabundância de estímulos audiovisuais, de apelos chamativos, a atenção mesma se torne um recurso bastante escasso. O que não é chamativo não apenas não prende a atenção, como corre o risco de nem mesmo ser percebido. Assim, na lógica do sensacional e do espetacular, a produção de curtas narrativas impactantes e de alta densidade, apoiada na intensa associação de imagem ao som e do som a imagem, desempenha a função de criar um design mental, uma espécie de arranjo mental (Mentale Gestaltung) para a mercadoria, um capacete audiovisual para amplificar a experiência psicológica, o que facilita o processo de identificação e projeção, de modo que adquirir coisas seja uma atividade muito mais situada no campo da paixão e da fantasia do que da necessidade. Na sociedade do espetáculo, ninguém está imune ao imperativo da espetacularização, a compulsão à emissão e autoenunciação sensacional, nem mesmo quem apenas é puro espectador. Pois se “ser é ser percebido”, o que não é sensacional, o que não chama atenção, não é percebido, o que não é percebido não existe, não tem ser. Ou seja, não ser percebido significa, no sentido da psicologia social, não “estar-aí” 2 (Dasein). O que não chama atenção e não provoca sensação é nulo, imperceptível e sem valor, ou melhor, nem é. O que é “bom”, o que carrega em si relevância, é também capaz de chamar atenção, de aparecer. O que é bom é o 2

Em alemão Dasein também significa existência.

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O Agir Humano que é, também, chamativo. Com isso, cada um sente a pressão orientadora das normas da sociedade da sensação. O imperativo da espetacularização irriga o imaginário a partir do qual os indivíduos se orientam na vida real. O processo de produção de mercadorias implica a produção do design mental (Mentale Gestaltung), termo já a muito usado pela indústria publicitária alemã. Nesse sentido, a mercadoria, no capitalismo atual, é, sobretudo, um bem imaterial a ser consumido esteticamente. Dirigentes de grandes corporações, a muito, já perceberam isso. Naomi Klein cita, em seu “No Logo”, uma fala, extremamente significativa, de um dos diretores e CEO da Nike: “a nike não é apenas uma marca de tênis esportivos, mas é antes uma ideia de transcendência através do esporte” (Klein 2010, p. XVII). Mercadorias podem em muitos aspectos facilitar a vida cotidiana, contudo, a promessa de transcendência contida num anúncio de um par de tênis, criada no jogo de simulação midiática do marketing, não é mais do que o resultado da fabricação estética do consumo. Ou seja, a pesquisa estética ocupará um papel determinante no processo de produção de mercadorias. A fabricação de valores estéticos de ordem imaterial, de pequenas próteses de sentido, tem peso mais decisivo, em relação a determinação de seu valor de troca e da determinação de sua demanda do que a produção do substrato físico e material da mercadoria3. A beleza, aqui em questão, por um lado, diz respeito à bela aparência da mercadoria, não só enquanto sua manifestação sensível mas também no plano suprassensível, enquanto design mental fabricado, cuja função é assegurar a elevação do valor de troca. No capitalismo pós-industrial, ou seja, o capitalismo enquanto sistema pensado a partir da revolução microeletrônica, a Oportuno lembrar que o termo estética, em grego significa, originariamente, sensação ou percepção. 3

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O Agir Humano produção em massa passou a não mais ter necessidade de empregar trabalho em massa. Como não há mais nenhum grande exército de trabalhados na ativa, perde também completamente o sentido falarse em exército “industrial” de reserva, pois o que se estabilizou não foi o trabalho, mas o desemprego e a desocupação estrutural. Isso se deu, em virtude do desenvolvimento de tecnologias compressoras de tempo e trabalho (o que Daniel Bell apelidou de “labor saving devices”). A “racionalização” da organização da produção (o que implica também automação) e da produção em série, que não mais necessita do trabalho em massa, foram fatores igualmente importantes, como André Gorz e Robert Kurz (ver Kurz 1999, p 13-25), há pelo menos mais de duas décadas, já haviam percebido. Zigmunt Bauman, por sua vez, percebera que o progresso tecnológico chegara a um ponto dramático onde a produtividade cresce proporcional ao decréscimo da necessidade de mão de obra, exatamente o contrário do que acontecia nas sociedade industriais, onde o aumento da produção exigia simultânea ampliação do número de empregados. O que há muito deixou de ser o caso. A ética da sociedade de trabalho é a ética onde o trabalho abstrato torna-se finalidade em si mesmo, onde o trabalho é encarado como uma atividade que traz consigo o seu próprio valor, onde o trabalho é pensado como possuidor de uma essência suprahistórica, cujos fins transcendem as necessidades humanas e cujo sumo bem é a aquisição e acumulação, ad eternidade, de dinheiro e riquezas. Se o mecanicismo moderno via não só o mundo, mas também o corpo humano como uma máquina (mecane), então, não é nenhum acaso que a sociedade seja vista como não mais do que uma gigantesca máquina de trabalho. O desenvolvimento dessa ética tem efeito prático imprescindível para a transformação, gradual, dos hábitos e da mentalidade do homem medieval, de modo a imprimir nele indispensáveis normas de obediência e facilitar a aceitação de sua submissão à abstração do trabalho. A ética da motivação 158


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O Agir Humano fetichista em nome da submissão ao trabalho abstrato é, apenas, o outro lado da moeda de um sistema de exploração econômica abstrata, em que “todo processo vital social e individual é assim submetido à banalidade terrível do dinheiro e de seu automovimento tautológico” (Kurz 1999, p 24). No capitalismo da era industrial os membros da sociedade eram, antes de tudo, produtores-provedores-trabalhadores. A sociedade industrial engajava seus membros, acima de tudo, na condição de produtores e soldados. Numa sociedade sem grande necessidade de mão de obra e de grandes exércitos, os indivíduos são engajados numa outra condição, na condição de consumidores (Bauman 2012, cap. 4). Esse é o papel que o sistema econômico espera que ele desempenhe. Ou seja, a sociedade industrial se erigiu sobre a centralidade do trabalho e da produção. Não devemos olvidar o fato de que, a era industrial produziu duas grandes guerras mundiais, além de também ter produzido dois sistemas econômicos que, apesar de rivais, tinham o mesmo ethos do trabalho abstrato e nutriam a mesma “idolatria fetichista do maior e mais intenso dispêndio possível de força de trabalho, além das necessidades concretas subjetivamente perceptíveis (Kurz 1999, p. 18).” Essa mudança de uma sociedade, cuja prioridade quanto ao papel a ser desempenhado pelos seus membros era a produção, para uma sociedade cuja primazia é o consumo, trouxe consequências sociais e culturais profundas. Saímos de uma modelo de sociedade centrada na ética do trabalho para um outro modelo social, agora, centrado na estética do consumo (Bauman, 2004), onde a produção de bens imateriais e de valores estéticos passam a desempenhar papel central. A estética do consumo é a estética da simulação de mídias que vai da desmaterialização da realidade, onde o mundo se deixa manipular como jogo digital, até a estetização da própria estrutura capitalista.

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O Agir Humano Esse enraizamento da lógica sensacional de mercado na esfera da vida cotidiana molda e condiciona decisivamente a estrutura da percepção e o horizonte de ideação, de modo que a subjetividade, nesse contexto, mais se assemelha a um mero reservatório econômico (Kurz 1999, p. 1-7). O ser-chamativo e o produzir sensação não são apenas critérios de uma publicidade eficiente, mas são também indicadores de competência linguística. Ou seja, em contextos altamente concorrenciais, ninguém mais consegue fugir à lógica da espetacularização. Do ponto de vista jornalístico, essa nova lógica há muito já se tornou evidente. Desse modo, se um texto não chama atenção sobre si; se um orador que não tem habilidade de produzir sensação, de “prender” a atenção, então ambos não são bons. Lembremos que, nesse novo contexto cultural, ser bom e produzir sensação são, pode-se dizer, sinônimos. Christoph Türcke, por sinal, usa o termo paradigma da sensação, o qual ele toma como ponto de partida do atual panorama das sociedades contemporâneas. “As sensações estão a ponto de se tornar as marcas de orientação e as batidas de pulso da vida social como um todo” (Türcke 2010, p. 14). A mercadoria é por princípio um objeto altamente socializado. A memória coletiva é a matéria prima com a qual se constrói o invólucro simbólico e a significação social da mercadoria. A fabricação de imagens, a evocação de sentimentos e emoções em torno das mercadorias formam a base a partir da qual podemos compreender a origem da paixão de aquisição. Quando a produção da marca da mercadoria, através do branding, e a criação de uma proposição de sentido para a mercadoria tornam-se mais decisivas do que a sua produção material, não teria, com isso, o eixo da exploração mudado de lugar? A exploração da capacidade e disposição humana para o trabalho, no capitalismo da era digital, não está mais relacionada à imaginação humana para o consumo? Afinal, não se dispõe mais dos “recursos” humanos com o uso da 160


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O Agir Humano força bruta. Qual relação há entre a fabricação de valores estéticos e a exploração? Qual é o alcance, em termos sociais, da lógica da espetacularização e da sensação?

1. A DISTRAÇÃO EXPLORAÇÃO.

ENQUANTO

FENÔMENO

DE

A palavra portuguesa “distrair” vem do latim distringere, que significa ocupar(-se) em muitas coisas ou em muitos lugares, dividir, tirar fora a concentração, fazer perder o foco em uma única coisa. A distração passa a ser tema da economia política e da crítica da cultura, em virtude da função social e política por ela desempenhada e do poder de manipulação e dispersão a ela inerentes. Noam Chomsky, em entrevista, analisa a “estratégia” 4 da distração nas modernas democracias midiáticas como “o” elemento primordial do controle social, cuja função fundamental consiste em “desviar a atenção” do público dos problemas importantes e das mudanças decididas, mediante a técnica do “dilúvio ou inundações de contínuas distrações e de informações insignificantes”.5 A esse dilúvio estratégico de informações, Christoph Türcke chama de penúria por abundância. Chomsky ressalta ainda que a estratégia da distração é também imprescindível se se deseja fazer o público perder o foco dos conhecimentos essenciais na economia, política e tantas outras ciências fundamentais. “Manter a atenção do público distraída, longe dos verdadeiros problemas sociais, cativada por temas sem importância real” 6. No brasil, em agosto de 2013, mais 4

midiática.

A distração seria a primeira, de dez, estratégias de manipulação

Disponível, também, em: http://www.institutojoaogoulart.org.br/noticia.php?id=1861 6 Idem. 5

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O Agir Humano de 127 milhões de pessoas, mais de 5 vezes a população da Austrália, votaram no último paredão do big brother, ao passo que apenas um pouco mais de um milhão de assinaturas foram colhidas para pedir e pressionar o impeachment do senador Renam Calheiros. Em quase todas as cidades modernas, a quantidade de estímulos visuais e apelos publicitários que cada indivíduo está exposto, num único dia, é incomparavelmente maior do que a quantidade de estímulos publicitários que nossos bisavôs receberam ao longo de suas vidas. Não por acaso é cada vez mais crescente o número de jovens, da geração fingerprint, que são diagnosticados de déficit de atenção e hiperatividade, para não falar de um diagnóstico de apelido ainda mais chamativo: “demência digital” — termo utilizado por médicos da Coréia do Sul para classificar jovens com distúrbios crônicos de memória, atenção, concentração, frieza emocional e insensibilidade (Spitzer 2013, p.11). Jovens portadores desses males têm algumas características em comum, como p. ex., impaciência, extrema dificuldade de se deter em algo, perdendo rapidamente o interesse, facilidade de se entediar, tendência a dispersão, dificuldade de memorização e análise, são facilmente instigáveis e, via de regra, impetuosos. A que se deve isso? O que explica o fato de que globalmente gerações inteiras, progressivamente regridam quanto a sua capacidade de concentração? A fim de esclarecer o surgimento, pela primeira vez, na história, de um novo regime de concentração que, ao mesmo tempo em que nos faz prestar atenção, destrói a compreensão, C. Türcke lançou mão do conceito de distração-concentrada (Konzentrierte Zerstreuung)7. Esse fenômeno está associado à exposição, por horas 7 "Das Problem ist die konzentrierte Zerstreuung: Das Regime. In großen Filmen feiert es seine Sternstunden. In den Niederungen des Alltags nimmt die Rückannäherung der Vorstellung an die Halluzination die Gestalt von Jammer und Elend an. Davon zeugen die ADHS-Kinder. Je mehr es sie zu

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O Agir Humano ininterruptas e em doses de larga escala, aos choques visuais (Bildschocks8) de displays. Mesmo o que ficou de residual, depois de horas zapeando em ambientes virtuais, não consegue ser guardado por muito tempo e precisa desaparecer, em passo acelerado, no fluxo de novos estímulos a serem abrigados. No final, não há qualquer síntese. Pelo contrário, o que fica é não mais do que uma lembrança vaga daquilo que, no influxo contínuo dos choques audiovisuais, nos fez estarrecer. O meio virtual tem, assim, considerando seus efeitos, as características de uma droga. Pois são não apenas viciantes, como também são agentes produtores de dissociação e dispersão. Nesse sentido, dando um passo à frente, poderíamos dizer que o “aleatório” transformara- se em princípio “rigoroso” do agir humano. Na verdade, Adorno já havia percebido, e apontado, em sua Mínima Moralia, que esse princípio se tornara obrigatório na arte contemporânea e na música informal. Assim, vamos, gradativamente, mergulhando numa cultura de déficit de atenção. O déficit de atenção implica alto grau de dispersão e dissociação. Quem sofre de déficit de atenção não se detêm senão Fernseher und Computer zieht, desto mehr reduzieren sich ihre Vorstellungen auf bloße Wurmfortsätze dessen, was sie gerade erleben und wünschen. Und indem sie sich diesem Hier-Jetzt überlassen und darin um so besser versinken können, je unruhiger es flimmert und zuckt, nähern sie sich einer neuen Art des Tagträumens an - nicht jenem beschaulichen, in das ein gedankenverlorenes Sinnieren übergeht, wenn seine Vorstellungen zu Bildern absinken und für Momente halluzinatorische Plastizität gewinnen, sondern einem hektischen, worin Traum- und Wachzustand so ineinanderrutschen, daß die Betroffenen weder mehr intensiv träumen noch zur Strukturiertheit wachen Verhaltens gelangen. Wo der mentale Vorstellungsraum, also der innere Wachraum, kein nennenswertes Volumen mehr gewinnt, gewinnt auch der Traumraum keines mehr. Er vertieft sich nicht mehr zum mentalen back office, wo die Tagesreste, die das Wachbewußtsein unverarbeitet gelassen hat, nachbearbeitet werden, so daß etwas stattfinden kann, was das menschliche Nervensystem nicht minder braucht als den Schlaf: das mentale Nachsitzen." [C. Türcke 2012: Hyperaktiv Kritik der Aufmerksamkeitsdefizitkultur. S. 76f] 8 Vale lembrar que Walter Benjamin foi quem primeiro associou a imagem fílmica a um projetil disparado contra o telespectador.

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O Agir Humano diante do sensacional, do chamativo. Na ausência de estímulos visuais ou sonoros, ou desses dois associados, o indivíduo não consegue mais permanecer, sem desconcentrar, num mesmo tema, nem acompanhar o desenrolar de cadeia de raciocínios, sem se dissipar. Como pode um problema que era, por assim dizer, raro na psiquiatria, pelo menos até às últimas 8 décadas, tornar-se diagnóstico significativamente tão frequente? Türcke vê o déficit de atenção como novo regime perceptivo característico do mundo atual e, em especial, do capitalismo na era digital. Para poder acompanhar os passos e sobreviver a uma cultura que vai se tornando, mais e mais, deficitária em sua capacidade de se concentrar, os veículos de notícia da mídia impressa ou digital, adaptaram-se, fazendo uso espetacular da imagem, a essa nova cultura hiperativa e deficitária na sua capacidade de perceber. Mesmo na escolas e universidades, as novas mídias tem de ser, quase que compulsoriamente, utilizadas, na tentativa de “salvar” o aprendizado. Isso porque, na ausência de estímulos visuais ou audiovisuais, os indivíduos vão perdendo a capacidade de prestar atenção. Desse modo, ser chamativo é a condição para que algo possa ser percebido. A questão é que, não poder ser percebido é um atributo daquilo que não tem ser, daquilo que não é. O que não chama atenção é, assim, deficitário, em termos existenciais, além de não reunir os pré-requisitos necessários para poder ser percebido. Noutras palavras: o que não é capaz de chamar atenção e que não causa sensação está socialmente morto. Desse modo, para falar com Christoph Türcke, a máxima “Ser é ser percebido”, de Berkeley, precisou esperar por mais de um século, para se tornar plenamente atual. (Türcke 2002, p.11-18; 38-47) Diante da ditadura do marketing, o indivíduo sofre, cada vez mais, a pressão social para conformar-se às tendências e estilos de vida manufaturados, abrindo caminho para formas contemporâneas de exploração. O fenômeno da moda; o regime manufaturado da 164


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O Agir Humano distração; o paradigma da sensação e a fabricação do choque de imagem adquirem, numa sociedade de cultura audiovisual, um papel estrutural na exploração. A dependência do uso de tecnologias e a neophilia da sociedade de informação, mais uma vez, transformaram o homem em apêndice da maquinaria, mas uma maquinaria diferente das esteiras de montagem do início do século XX. Em oposição à maquinaria da era industrial, criaram uma certamente mais sofisticada, mas que, semelhante àquela, evidencia também uma estrutura de exploração. Todavia, uma exploração um pouco diferente, pois, agora, trata-se de uma exploração do sensório humano e da atenção. Diferente daquela, que era consumidora de força muscular e energia física, essa é bem mais sofisticada, pois faz uso apenas do um par de olhos e do dedilhar dos digitais. Nesse sentido, no contexto das tecnologias vigentes, displays digitais são, simbolicamente, os teares contemporâneos, que assim como aqueles de dois século atrás, são, igualmente, meios de exploração, também, como os antigos teares, não discriminam nem por gênero, nem por idade. Se entendemos que superfícies digitais são estruturas de exploração, então, partindo dessa base, fenômenos como vício e dependência de meios digitais correspondem ao lado fisiológico e psicológico da exploração, pois tem por base um tipo de estrutura social e econômica comum. Contudo é importante lembrar que o capitalismo atual de tipo pós-industrial convive com formas arcaicas de produção e, consequentemente, também, de exploração. Nessa ótica, não deveria causar nenhuma surpresa que na China, p. ex, trabalhadores iniciem revoltas nas “fábricas”, em virtude das más condições de trabalho. Além disso, segundo a organização internacional de combate ao trabalho escravo, a Anti-Slavery International, estima-se que existam mais de 21 milhões de escravos ao redor do globo. Em suma, se considerarmos que há uma estreita relação entre a teoria marxista do fetichismo da mercadoria e sua 165


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O Agir Humano teoria da alienação, então poderíamos sugerir que o próprio Marx, deixou brechas para se pensar um teoria da exploração, onde a ideia da exploração, em sua especificidade, iria muito além da diferença entre o preço de mercado da mercadoria e o valor pago pelo trabalho necessário para a sua produção.

2. GENEALOGIA DA EXPLORAÇÃO. “A crítica do capitalismo, como um todo, irrompe no espaço do estético” (Bolz 2009, p. 187). O capitalismo sempre foi um sistema centrado na exploração, mas a exploração não caiu do céu, nem teve nascimento mítico, mas tem uma história concreta que se inicia com a exploração do trabalho escravo, depois continua na exploração das riquezas coloniais, passando pela exploração do trabalho assalariado e maquinal da era industrial e chegando até aos dias atuais, na era dos grandes conglomerados de mídia, onde ela se dá a partir da exploração do sensório humano. O fato da exploração ter atravessado, historicamente, diversas fazes, não exclui a possibilidade de que, em diferentes “sítios” da economia global, formas arcaicas de exploração coexistam com outras mais perspicazes e mais avançadas. De acordo com Marx, tanto nas sociedades escravistas como durante o feudalismo, a exploração direta sobre escravos e vassalos se dava de forma aberta, seus métodos eram, a toda hora e em qualquer lugar, totalmente visíveis, ao passo que no capitalismo os seus mecanismos são muito mais complexos, inescrutáveis ou até mesmo ocultos. Nas economias estruturadas sobre a exploração da mão de obra escrava, a receita para elevação da produtividade se limitava a obrigatoriedade do trabalho forçado, da coerção física, sob a ameaça de atos lesivos mais severos. A imagem de uma movimentação forçada e involuntária define, tanto no sentido literal 166


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O Agir Humano quanto simbólico, o trabalho do escravo. Já no capitalismo, a exploração tem a ver com os deslocamentos “voluntários”, com as migrações, primeiro do campo para a cidade, depois, dentro do contexto dos estados-nação, a migração de uma cidade a outra, e, por último, no contexto das redes corporativas multi e transnacionais, as migrações transnacionais. Essa última diz respeito à migração para os grandes centros de consumo. Não só as mercadorias reluzem como objetos sagrados, mas também cidades, com suas fachadas, ambientes e arquitetura, cenários de vida de personagens ilustres, de biografias iconizadas que, há décadas, servem de matéria prima da indústria cultural niveladora. Esta última terminou por equiparar o discurso sobre gênio e sobre a “personalidade” ao imaginário da “celebridade”. Por isso, tanto as cidades quanto as mercadorias, tem um magnetismo próprio. A imagem noturna de satélite do globo azul expõe uma distribuição desigual não só de riquezas, mas, sobretudo, da luz, de modo que os centros mais densamente iluminados não são apenas as grandes metrópoles do consumo, mas não por acaso, registram os maiores fluxos migratórios, além de, coincidentemente, atraírem um maior número de turistas atordoados e desorientados, que quando não contam com os serviços de um “guia”, nem conseguem avançar, nem decodificar muito. Na natureza, a luz é dotada de um curioso poder, que é a capacidade de, em diferentes localidades, atrair diferentes espécies de mosquitos cegos. Analogamente, a exploração, no contexto do sistema do espetáculo comercial da mercadoria, tem uma particularidade que é contar com a movimentação voluntária e “motivada” do trabalhador. Ter um trabalho é conquistar, em definitivo, a inclusão, mas inclusão enquanto potencial tomar parte na festa do consumo. Pois inclusão, na era das sociedades pósdemocráticas, em que a ideia da cidadania se esvaziou e se tornou 167


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O Agir Humano supérflua, é menos o estado de quem ganhou relevância e voz na vida pública e mais a condição de quem já assegurou “o” direito por excelência das sociedades hedonistas contemporâneas: o direito ao consumo. Ainda é preciso focar mais num elemento decisivo para a compreensão do problema da exploração no capitalismo digital: a motivação. Cursos de motivação, como medida com a qual se espera influir, elevando o nível de produtividade, tornaram-se o recurso mais ordinário no terreno da iniciativa privada. O guru máximo do marketing, Domenico de Masi, alega que o capitalismo pós-industrial produziu uma gigante economia de tempo livre. O tempo “livre” no atual estágio do capitalismo desempenha, nos dias atuais, um papel similar ao desempenhado pelo ócio entre os antigos gregos; ou seja, um pré-requisito para a explosão de criatividade que possibilitou à mente helênica inventar a filosofia, a astronomia, a tragédia, a história, os relógios de sol e a democracia. Para De Masi, a criatividade é o grande capital dos países ricos, é a mola mestra que impulsiona o sistema produtivo. O pós-industrial é marcado pelo acúmulo de criatividade e ideias nos produtos, assim como no meios e modos de produzi-los. Em vez de fábricas, os países líderes possuem patentes e deste modo transformam criatividade científica e estética, administradas, em capital. A economia do tempo livre — turismo, propaganda e a indústria de entretenimento — depende desta criatividade inventiva. Criar condições que favorecem ao trabalho criativo e que atraiam os criativos é a função primordial da administração. Ao passo que a ideia de controle, vigilância e burocracia, antípodas da motivação e da inspiração criativa, devem e tendem a desaparecer, na medida em que agem como freio em termos de produtividade. A “utopia” light do capitalismo verde, ou do capitalismo com consciência, ideal das socialdemocracias avançadas, foi a expressão de uma orientação política que tem por modelo o equilíbrio entre o 168


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O Agir Humano “conservadorismo e pragmatismo na esfera econômica” e o “esquerdismo” em plano social. Essa utopia é também a ilusão do potencial civilizatório do capital. No sentido de que se alega que o livre mercado só pode se desenvolver onde a democracia e os direitos já se consolidaram ou estão em vias de concretização. Por isso, ele teria, potencialmente, o poder de fazer as sociedades avançarem em direção ao apreço pelos ideais dos direitos humanos e à consciência da liberdade. Assim, o mercado (e, em termos mais abstratos, o capital), apesar de estar fortemente associado com o egoísmo dos interesses particulares e das paixões individuais, teria uma “missão” civilizatória, pois, se por um lado, ele exige a democracia, por outro ele impulsiona a sociedade em direção à ela. Na periferia do capitalismo não houve nem transição, nem salto para o pós-industrial, pelo contrário, lá ainda vigem os padrões de produção industriais do século XIX. Nesse sentido, não é de se espantar que as chaminés, expelindo fumaça química, e o ambiente acinzentado das cidades industriais, como Cubatão em São Paulo e Cidade do México, façam lembrar, imediatamente, as antigas máquinas a vapor e as usinas de carvão. Se for possível falar em êxito do capitalismo da “era” pós-industrial, esse êxito foi ter deslocado para a periferia do globo a “era” industrial. O pósindustrial de Daniel Bell e de Domenico de Masi não consegue enxergar que a terceira revolução industrial representou não a liberação do trabalho mecânico, mas sim o crepúsculo da sociedade de trabalho, uma vez que, definitivamente, tornou-se impossível empregar e ocupar, de forma rentável, a grande massa e ao mesmo tempo resguardar o processo de acumulação capitalista. Pelo contrário, a liberação do trabalho mecânico é, precisamente ela, o pivô da crise da sociedade de trabalho, na medida em que ela conduziu o capital ao seu limite interno, ou seja, quanto mais automatizado é o processo de produção, tanto mais os homens são supérfluos. 169


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O Agir Humano Consequência: apesar dos produtos tenderem a custar sempre menos, os homens tem cada vez menos dinheiro para adquiri-los e, então, devem se habituar a recorrer ao crédito, se quiserem atender parte de suas demandas fetichistas. O trabalho necessário para produção de mercadorias diminui, com isso, o valor do trabalho encolhe, consequentemente, menor tendem a ser as remunerações. Quanto mais efetiva se dá a automação da produção, quanto mais eficazmente se comprime tempo e trabalho, tanto mais barato o produto. Quanto mais se avança na tecnologia de informática e de softwares, tanto mais supérfluo é o trabalho humano e tanto mais romantizado é visto o trabalho “voluntário”. Então, se, com a efetiva automatização e informatização da produção, as mercadorias tendem a custar sempre menos, como é possível assegurar altas taxas de lucro? Por um lado, com o aumento da oferta, o que exige um respectivo aumento da demanda, por outro, com a redução do custo “trabalho”. Portanto, a grande questão é: como assegurar a demanda se as remunerações tendem a diminuir e a desocupação a aumentar? Não é por acaso que André Gorz postula que a mercadoria precisa, primeiro, comprar seu comprador, seja por meio do crédito, seja por meio de subsídios e benefícios sociais à custa de impostos públicos, seja através da publicidade. Não obstante, revela-se frágil a teoria segundo a qual se afirma que no pós-industrial o trabalho intelectual de tipo residual — como o cálculo e a computação — foi delegado às máquinas e que ao homem ficou reservado somente o trabalho inventivo e criativo. O pós-industrial de Fourastié, Bell e de Domenico de Masi alimenta-se da esperança de que o setor de serviços seria capaz de resolver o problema do mercado de trabalho, que num sentido mais imediato se traduz na desocupação e demissão em massa, no desemprego estrutural e num sentido mais amplo corresponde a uma crise da sociedade de trabalho. Por outro lado, há um traço 170


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O Agir Humano comum entre os teóricos do pós-industrial, a saber, o subestimar o enorme potencial de substituição da força de trabalho humana, presente na revolução microeletrônica. Os três cavaleiros do pósindustrial ignoram também que o a melhoria da qualificação acadêmica, o aumento da expectativa de vida, “não implica numa nova acumulação além do boom industrial” (Kurz 2009, p.738-748). A ilusão de ótica do otimismo teórico do pós-industrial se dá graças a uma condição fundamental, a saber: ignorar que todos os setores são dependentes do setor industrial.

3. CONTROLE INDIRETO E EXPLORAÇÃO ESTÉTICA. “Big Brother is watching you”, certamente não mais apenas com uma expressão única, mas com intermináveis pares de olhos diferenciados e múltiplas expressões miméticas, simultaneamente, “ao modo de um grande exército, uma >grande família< de rostos.” (Macho 2011, p. 264). O novo nesse quadro de dominação anônima é que o controle estético contrasta com formas tradicionais de controle social, de modo que o primeiro se é exercido por sugestão, pelo imaginário estético e pelo poder que a imagem é capaz de exercer sobre o corpo do indivíduo. Desse modo, pode-se perceber que, sob o capitalismo estético, novas modalidades de poder e de controlem emergem, ora coexistindo com as antigas, ora as substituindo. Isso porque, nesse novo estágio do capitalismo, o acesso ao excedente pressupõe a luta concorrencial pela exploração do imaginário social, do mundo simbólico e psíquico, assim como a apropriação do universo visual e “sonoro”9 das imagens. Vejamos, num breve exemplo, como a 9 C. Türcke, no livro A Sociedade Excitada, menciona a emergência, na sociedade da sensação, de um novo órgão dos sentidos e um novo sentido, respectivamente: o olho-ouvido e o olhar sonoro.

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O Agir Humano categoria “controle indireto” se vincula, na atualidade, ao fenômeno da exploração. Escravos não precisam ser manipulados, persuadidos ou seduzidos. Violência direta e coação física são suficientes. Quem está no poder dita as ordens, não lhe cabe consultar quem dele é desprovido, não precisa legitimar, nem justificar. Autoridade a gente não diz que tem, a gente, meramente, exerce. Essa forma de exercer o poder ainda vigora em instituições militares. O controle de um exército, por exemplo, é exercido por meio de ordens vindas de cima. O controle se personifica na figura da autoridade hierárquica que dá as ordens. Os mecanismos de controle são visíveis e a exploração, direta. Na era dos grandes conglomerados de mídia, no entanto, o controle ainda se dá por meio de mecanismos muito mais sutis e indiretos. Um exemplo das novas formas de controle pode ser lido na transformação social do corpo feminino. Quem dita o padrão? Os mecanismos persuasivos que agem, no âmbito da esfera pública, capazes de mobilizar e engajar as mulheres num controle quase obsessivo com o corpo, com o peso e com a aparência. Não são tão palpáveis assim, no entanto, são potentes o suficiente pra efetuar mudanças globais na relação da mulher com o “próprio” corpo. P. ex., o que explica o aumento exponencial em cirurgias plásticas? Por que, em nome da “posse” de um novo corpo, muitas mulheres sintam-se encorajadas a arriscar a vida, nesse tipo de operação? O que dizer da crescente demanda por implantações de Botox? E da obsessão feminina por dietas de emagrecimento, como reflexo de um pavor coletivo da obesidade? Como surge, em culturas as mais distantes, apenas “uma” representação social do corpo ideal, apenas “um” modelo? Por que o imaginário do corpo belo e ideal, em toda parte, não diverge nunca dos padrões estéticos da indústria cultural? Não é somente através desta que uma representação de um corpo

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O Agir Humano “universalmente” belo é possível? Mas como é que essas noções são geradas? Um primeiro postulado lança luz sobre as questões mencionadas acima, a saber: o corpo ideal é um corpo produto. O ideal nada mais é do que a correspondência aos padrões estéticos da indústria cultural. O poder de persuasão da publicidade sobre crianças do sexo feminino, ainda na infância, funciona como uma espécie modelar de Branding. Cabe lembrar que nesse caso o produto com o qual o Branding se relaciona é o próprio “corpo”. O processo de familiarização, na infância, da menina com a boneca-modelo, por meio do exercício lúdico e “espontâneo” da imaginação e da fantasia, encarrega-se da interiorização inconsciente do padrão. A ideia da sedução, o valor de exposição, e a suscetibilidade de ser cotado, são características comuns entre o corpo da mulher e a mercadoria. Na condição de mercadoria, ele está sujeito às leis de compra e venda, tendo, portanto, valor de troca, de uso, de culto e de exposição. Nesse sentido, a estetização do corpo feminino é também um exemplo de estetização de uma forma, desapropriação e de exploração. A estética do imperativo do corpo belo é também a estética da legitimação da estrutura social que ele tem por base. Essa forma de dominação impessoal sobre o corpo é um modo de dominação estética e consentida. Um corpo belo é um corpo com potencial em termo de publicidade e com futuro em termo de mercado. Gisele Bündchen não é um ser, é um produto, uma peça publicitária e um veículo de reclamo. Em suma, o corpo feminino ideal é a construção social de um corpo apto a ser explorado, como carne 10, no mercado global da beleza.

10 Em Alemão, a palavra exploração, Ausbeutung, é formada pelo prefixo “aus”, tirar fora e o radical “Beute”, carne de caça. Assim, em alemão, a exploração estética anônima do corpo feminino soa um pouco melhor, pois,

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O Agir Humano Poder-se-ia, nesse sentido, afirmar que a mulher não mais possui seu próprio corpo, ele é para ela um objeto alheio e exterior, cujo controle diário lhe exige enorme dispêndio de energia física e mental. O cuidado com o corpo é uma forma de trabalho abstrato, que serve a um fim igualmente abstrato, a saber: o de garantir ao corpo uma boa cotação no mercado das relações sociais reificadas. A mulher mira esse estranho objeto, com um olhar devoto, como se se tratasse de um venerado objeto de consumo. Assim, essa forma de cuidado de si revela, por um lado, a presença manifesta da lei econômica, que não reconhece limites a sua autoridade, por outro, o primado do econômico sobre a vida social. A exploração do corpo feminino se dá mediante a exploração do imaginário estético e fetichista (Laurie 2011, p. 2). Tal modo de exploração estética, ou de dominação anônima, não é, no capitalismo estético, algo restrito a apenas um dos gêneros. Para dar um exemplo icônico, mencionemos a transformação, ao longo de um pouco mais de duas décadas, da imagem do rosto de Michael Jackson. Trata-se de um exemplo significativo do poder que o imaginário estético e o fetichismo é capaz de exercer sobre o indivíduo. Considerando esse rosto, numa “linha de tempo”, entre 1980 e 2000, poderíamos perguntar que forças estão descolorindo e modelando este rosto? Em nome de que? A fim de se alcançar um gozo diante do espelho, todo sacrifício é valido? Em todo caso, o narcisista é alguém que sempre se pergunta: como é que os outros me percebem. Por isso, ele é alguém que não consegue se ver a não ser através do olhar indireto, do olhar do outro. Ele é um especialista no olhar alheio. Nesse sentido, o narcisista é escravo da imagem, mas da imagem que os outros fazem dele. No caso do ícone pop, mencionado acima, quem é ou o que é esse outro? Na civilização em que o capital ao chegar a nesse sentido, em alemão, ser explorado é, simbólica e literalmente, perder a carne.

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O Agir Humano tal grau de concentração se torna imagem não se deve subestimar o poder que a imagem exerce sobre o corpo e a fantasia do consumidor. De modo similar exerce-se o controle sobre os consumidores. Explorando a imaginação estética a indústria transformou o consumidor no novo foco da exploração. Ora, o instrumentário que permitiu à indústria o controle sobre o imaginário estético foi fornecido pela revolução microeletrônica, cujo impacto social tem aumentado nas últimas décadas. Juntamente com o desenvolvimento de tecnologias de marketing e da ampliação da zona de consumo que se estendeu a enormes contingentes populacionais nas economias emergentes, a microeletrônica tornou possível novas modalidades de exploração, determinando transformações estruturais nos processos de produção. O novo produto é a imaginação do consumidor, na medida em que o marketing adota o modelo de estratégia de recrutamento militar, como intuito de “conquistar corações e mentes” (winning hearts and minds 11).

4. O ROSTO DA MERCADORIA. Thomas Macho postula haver uma conexão entre a civilização facial e a sociedade de consumo, no sentido de que o rosto se tornou o meio mais familiar para mediar mensagens publicitárias nos espaços urbanos contemporâneos. “Qualquer um que deixa sua casa, hoje, em qualquer cidade, é imediatamente saudado e acompanhado em seu caminho por uma estrutura bem familiar. (...) Em cada parede abrem-se olhos, toda a superfície se adensa num olhar que parece perguntar ao passante o que está lhe faltando?

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militar.

Expressão, de língua inglesa, usada em campanhas de recrutamento

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O Agir Humano Onde você realmente acha que está indo?” (Macho 2011, p. 263). O Big Brother não só nos observa, mas também nos seduz. Horror vacui 12: a civilização do rosto se volta desesperadamente para a busca de sentido, por isso detesta o vazio, por isso tem compulsão por ocupar e transformar em painel de imagens qualquer superfície livre. O horror vacui também se revela na compulsão em enunciar e em propagar. Nessa lógica, displays digitais são também superfícies móveis, são painéis com capacidade de enunciar ad aeternitatem. São disparadores de estímulos e criadores de dependência. A civilização facial foi gradativamente se aprimorando na arte da estimulação visual. Mas só com os displays digitais foi possível multiplicar exponencialmente a dose diária de estímulos visuais. Quem quer que pretenda compreender os efeitos sociais, fisiológicos e psíquicos do nosso “meio ambiente” tecnológico, não deve subestimar este fato. A concordar com C. Türcke e Manfred Spitzer, displays são meios, por excelência, criadores de dependência, são “disparadores de estímulos químicos que provocam sensações e dependência em nível orgânico” (Orsine 2011, p. 22) Seus usuários, via de regra, “necessitam” de estímulos audiovisuais cada vez mais in-tensos. Afinal, o que quer uma pulsão, senão o tornar-se sempre mais intensa? E o que quer um instinto, senão sua própria expansão? O viciado é escravo da próxima dose. É exatamente da próxima dose que é mais difícil se libertar. Claro que essa regra vale, também, pra aquele que se tornou dependente e condicionado pelos meios digitais. Até que ponto a dependência de meios digitais constitui, também, um dos pré-requisitos que demanda a reprodução

12 Horror vacui: Expressão usada por Christoph Türcke para sinalizar uma característica humana bem arcaica: os sentidos não suportam o vazio nem a inatividade. O mascar chicletes e o olho na revista ilustrada na sala de espera são, por si mesmos, belos indícios desse horror.

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O Agir Humano automática do espetacular integrado (Debord), e com ele, a estrutura de exploração que está na sua base? Nesse novo ambiente social planetário em toda parte populações inteiras estão aptas a se tornar dependentes e condicionadas de/por aparatos midiáticos. Os novos meios digitais tem, nesse sentido, um gigantesco efeito disciplinar. De acordo com J. Walker Smith, diretor do The Future Company, uma empresa líder global de consultoria em matéria de previsões de mercado, perspectivas e tendências futuras, a exposição média de anúncios para os norte-americanos subiu de 500 para 5.000 por dia, a começar a contar a partir de 1970. Isso resulta numa exposição mensal de 150.000 de estímulos e uma exposição anual na ordem de 1,8 milhões de estímulos. Assim sendo, o capitalismo não é apenas um sistema de produção superabundante de bens, publicidade e branding, mas também de estímulos e de excitação. Tais estímulos, distribuídos ao longo de toda a vida, exercem uma influência formativa decisiva sobre crianças e servem de base psicofisiológica para fundir as marcas no imaginário social e produzir o valor de culto em torno das mercadorias.

5. VALOR DE CULTO E FETICHISMO EM MASSA: DE VOLTA ÀS RAÍZES RELIGIOSAS DO SISTEMA. O fenômeno do fetichismo tem validade social objetiva, uma vez que ele aponta para uma forma de pensamento levada em conta no processo de produção de mercadoria. O valor de culto da mercadoria tem, igualmente, validade objetiva, pois é, em termos de sua validade social, tão relevante quanto seu peso e seu volume. O diretor de cinema de “A festa de Babette”, o dinamarquês Gabriel Axel, ficou perplexo, na ocasião de entrega da estatueta do óscar de melhor filme estrangeiro, em 1987, diante do olhar dos atores, 177


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O Agir Humano diretores e empregados da indústria cinematográfica, para as estatuetas do óscar. Era como se o metal reluzente fosse uma ungida imagem religiosa. A manutenção do fetichismo atua como uma força capaz de assegurar as condições da dominação e da exploração no capitalismo estético. O fetichismo não está apenas associado ao prazer, mas sobretudo à angústia, na medida em que ele pressupõe uma dialética entre a satisfação e a frustração, entre a antecipação da felicidade e o adiamento da felicidade. O fetichista não é só possuído por uma tensão diante da mercadoria, mas também por uma tensão diante do prematuro envelhecimento daquilo que ele adquire. Não obstante, essa é, do mesmo modo, uma característica do hedonismo de consumo, na medida em que este se nutre, primeiramente, do culto à novidade. Os indivíduos dessa categoria encontram-se permanentemente aterrorizados diante de suas próprias demandas fetichistas, e, são, deste modo, devorados pela trivialidade. O fetichista é, sobretudo, um sujeito que visa compensar uma ferida ainda aberta, resultada de uma intensa identificação com aquilo que ele imagina ter sido privado. O fetichismo da mercadoria é uma expressão da racionalidade técnica de uma dominação anônima. Ele é a própria cultura dessa dominação. Num mundo sem Deus, o culto fetichista das mercadorias — forma de totemismo dos objetos de consumo — é o substituto de uma espiritualidade da qual, no império fetichista da santíssima trindade do dinheiro, da mercadoria e do capital, fomos privados. No entanto, o fetichismo da mercadoria desempenha, no capitalismo, uma função econômica e um papel social tão objetivo quanto o dinheiro. Aquele é uma forma de assegurar uma massiva e constante demanda para a massiva e constante produção de supérfluos. Se a renda e os salários decrescem, e se apesar do 178


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O Agir Humano barateamento das mercadorias, a classe trabalhadora tem dificuldade em adquiri-las, graças a fixação fetichista, os indivíduos se sujeitarão, de bom grado, ao endividamento a jurus. O sacrifício do tempo de vida não é nada quando se trata de aplacar o desejo, “excitado por nomes e imagens cheias de brilho”, para lembrar Adorno. A própria durabilidade física das mercadorias, na era do obsoletismo planejado, tornou-se um pré-requisito secundário, tendo em vista a volatilidade do desejo. Ninguém pode garantir ter desejo de possuir, 6 meses depois, aquilo que se adquire hoje. Não há contradição alguma entre o aumento do fetichismo numa época de crepúsculo da sociedade de trabalho, pelo contrário, a atrofia desta, foi marcada pelo aumento do fetichismo, ao menos enquanto tendência. Contudo, se o crescimento econômico dependerá da consolidação do fetichismo como regime permanente da sociedade de consumo, então, quer dizer que o capitalismo só cresce, graças a infelicidade que ele produz. A crítica do capitalismo, como em Max Weber ou em W. Benjamin, desvelou um substrato religioso por trás de um sistema que se singulariza, em termos históricos, por ter consolidado a onipotência do valor econômico. A análise da estética da mercadoria vai possibilitar, mais uma vez, tornar visível o capitalismo como o herdeiro do cristianismo. Antes de tudo, é fundamental lembrar que a mercadoria deixa evidenciar sua dimensão religiosa até mesmo no fato dela poder tornar-se objeto de culto, de ser capaz de motivar os homens a fazer sacrifícios e, até, de motivar preces pela sua posse. Noutras palavras, o fetichismo é combustível fundamental que abastece a maquinaria do sistema econômico que aqui denominamos de capitalismo estético. É possível ter ideia do todo do sistema capitalista compreendendo bem uma de suas partes. Marx começa O Capital com a análise da mercadoria. Esta não foi uma escolha arbitrária, 179


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O Agir Humano mas deu-se em virtude da mercadoria corresponder à forma mais elementar da produção. A riqueza das sociedades industriais assemelha-se, de acordo com Marx, a uma colossal coleção de mercadorias (Ungeheure Warensammlung). Mas mercadorias são mais do que objetos para a satisfação de necessidades humanas concretas. “A mercadoria parece à primeira vista uma coisa cotidiana auto evidente, mas sua análise mostra que ela é, na realidade, uma coisa muito misteriosa, cheia de sutilezas metafísicas e argúcias teológicas.” (MARX 2009, p. 83). A mercadoria é, naturalmente, um objeto físico, mas um objeto com sua própria força interior e propriedades magnéticas. Este objeto é não só tecnicamente reprodutível, mas é também um repositório do trabalho necessário para fazê-lo, um reservatório de trabalho morto. Além disso, para que seja possível que essa coisa circule, ela deverá primeiro ser reconhecida como possuidora de valor. Um constituinte do seu valor — situado no início da cadeia de produção do valor da mercadoria — é a quantidade de trabalho necessário para a sua fabricação e, consequentemente, incorporado na mesma. No entanto, se a composição do valor da mercadoria é, em parte, resultado da atividade humana e da quantidade de trabalho nela depositada, ele é também consequência do “olhar social” nela absorvido. A mercadoria é uma coisa, fundamentalmente social, muito mais imaterial, não apenas física. Essa coisa não tem valor a priori, imediato e intrínseco. Seu valor surge apenas através do intercâmbio social e do cálculo social de sua equivalência com outras mercadorias. Ademais, seu valor não é determinado apenas em função de sua utilidade. Pelo contrário, a utilidade, no contexto da sociedade do espetáculo, não desempenha mais do que um papel marginal, enquanto o valor de culto é que é o verdadeiro motor por trás da circulação das mercadorias. As sociedades contemporâneas têm sido capazes de garantir uma demanda fetichista em massa para a assombrosa quantidade de 180


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O Agir Humano mercadorias que elas produzem. O fetichismo, por sua vez, pressupõe certa paixão coletiva pelas coisas, um amor pelas coisas mortas, o que Erich Fromm denomina de necrofilia. Nesse contexto de idolatria das coisas, os objetos de desejo tornam-se artigos de adoração, peças de culto. Assim, por trás do hedonismo fetichista de consumo subjazem elementos de base religiosa. Um primeiro traço em comum entre o hedonismo de consumo e a religião é que assim como as religiões, aquele também resulta de uma série de tentativas coletivas de dar significado a vida. As pessoas do mercantilizado socialismo de estado equiparavam-se, em termos sociopsíquicos e estéticos, à versão capitalista privada da sociedade de mercado, pelo próprio fato de colecionarem invólucros sem conteúdo e embalagens de mercadorias ocidentais a título de obras de arte e de culto, como, por exemplo, garrafas vazias de Coca-Cola. Um fetichismo análogo manifesta-se quando crianças e jovens de hoje incorporam à imaginação os nomes e logotipos de certas marcas de roupa, brinquedos e diversões eletrônicas. Não é mais a singular qualidade sensível e prática que se torna símbolo de status, mas a marca. A estética do sinal abstrato ocupa o lugar da estética dos conteúdos. (Kurz 1997, p. 1).

Para Benjamin, o capitalismo é um sistema religioso, porque “serve essencialmente a responder aos mesmos cuidados, as mesmas dores e mal-estar a que as religiões tentam dar respostas.” (Benjamin 2009, p. 15). O fetichista está sempre num estado de tensão com algo que ele deve consumir. Além disso, ele imagina antecipadamente o ato de compra como uma forma de liberação dessa tensão. Cabe lembrar que, tensão constante equivale ao desespero, que, como Benjamin enfatizou, tornou-se “(...) a condição religiosa do mundo a partir do qual a libertação é esperada” (Benjamin 2009, 16). 181


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O Agir Humano No entanto, ainda é preciso determinar melhor o que há de específico nessa “religiosidade” por trás desse fenômeno de fetichismo. Uma vez que não há nessa “religião” do marketing ou do consumo elementos de tipo altruístas, também não se trata de uma religião da compaixão, nem há espaço algum para a exaltação da humildade e não há, em lugar algum, indício de humanismo. Pelo contrário, é uma religião da competição aberta e sem tréguas entre todos os indivíduos, uns contra os outros, e ao invés de vestígios de solidariedade há apenas a estetização cínica do narcisismo e do egoísmo. Mas, tanto no que podemos chamar de religião autêntica quanto nesse seu simulacro, o impulso religioso primordial continuar a ser nutrido pelo anseio de aliviar as dores e angústias fundamentais da condição humana.

6. TRANSCENDÊNCIA ATRAVÉS DO CONSUMO. Von dem, was wir nicht wirklich brauchen, können wir nie genug bekommen13 (U2, >Stock in a moment<. Zitiert von Tomás Sedlácek, 2009, S-274).

Após o desencantamento moderno do mundo (Max Weber), o sistema global de comunicação comercial fez com que o mítico reemergisse na superfície estética da mercadoria, restabelecendo-o como o horizonte mundo (Bolz 2007, p. 37). O entusiasmo diante da dimensão mítica da mercadoria se nutre da mesma expectativa de liberação do desespero, fundamental para as religiões. No capitalismo estético, mercadorias são objetos de extrema carga simbólica. Em 1957, por exemplo, Roland Barthes comparou o novo Citroën com catedrais góticas, em virtude do entusiasmo 13

suficiente.”

“Daquilo que nós realmente não precisamos, nunca teremos o

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O Agir Humano generalizado, da mobilização e da comoção por ele provocados. O carro parecia algo mágico, superlativo (Barthes 2012, p. 196s). Fenômenos como o Citroën tornaram-se parte da mitologia cotidiana. Nesse sentido, poderíamos apelidar, a transformação da matéria em mercadorias, de alquimia da contemporaneidade. No sentido de que apenas por meio da alquimia ou da bruxaria acreditava-se ser possível transmutar seres naturais em criaturas mitológicas. Mercadorias não só circulam como se fossem seres, mas também são adquiridas por suas propriedades mágicas. Isto pode ser interpretado como um sinal de que, graças ao fetichismo hedonista de consumo, estamos de volta às raízes religiosas do sistema. O fetichista, o adorador das coisas que finda por sacralizar o universo profano das mercadorias, espera ser libertado da tensão insuportável, de uma inquieta hesitação que ele mantem com as coisas. Assim, o fetichismo revela uma raiz religiosa por trás do consumo. A origem do ímpeto, do fervor e do anseio religioso é, em última instância, a vontade de transcendência. Por sua vez, a aspiração por transcendência, na contemporaneidade, funciona como uma espécie de força motriz por trás da aquisição. Em meio ao espetáculo publicitário de mercadorias, até um simples par de sapatos, pode conter a promessa de transformar, de algum modo, a vida do consumidor. Sendo assim, a mercadoria seduz, na medida em que ela simula poder satisfazer a um anseio capital do consumidor, a saber: transformar-se. Por isso, o valor de culto é, por assim dizer, gerado pela promessa e expectativa de transcendência através do consumo. O caráter transcendental do capitalismo no século 21 é constituído predominantemente na transformação sistemática da mercadoria em um fato cultural e social. Em primeiro lugar, um novo significado é atribuído à 183


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O Agir Humano mercadoria, a fim de constituí-la como um sinal cultural apontando para além do seu valor de utilidade profano e capaz de estimular fantasias de consumo. A partir daí, ela se torna indispensável para a reprodução das relações sociais. (Hirschle 2012, p. 131).

É graças ao seu caráter transcendente e ao seu valor simbólico que a mercadoria circula. Mercadorias são coisas que, por estarem imbuídas de associações simbólicas e estéticas, ultrapassam e se descolam do seu valor meramente utilitário, só assim, elas podem adquirir status de objetos de culto. A base religiosa subjacente à estrutura social existente é a condição sine qua non do fetichismo da mercadoria. Com Giorgio Agamben, podemos dizer que a transformação capitalista do sagrado tornou possível a eclosão de uma das formas mais universais e duradouras de idolatria, o culto das coisas (Agamben 2005, p. 65-79). Mercadorias são objetos manufaturados transformados, de meras coisas inertes, em entidades misteriosas. “O que apenas é algo, mas ainda não se assemelha ao Ser, não será comprado. Aquilo que aparenta ‘Ser’ provavelmente será comprado” 14(Haug 2009, p. 28-29). Parecer ser é uma condição essencial do fetiche. A propósito, a palavra fetiche deriva do vocábulo português feitiço, originalmente aplicado pelos colonos e missionários portugueses, durante a colonização da África Central, a estátuas antropomórficas, utilizadas em rituais religiosos. Esses rituais deveriam germinar poderes e espírito sobre os objetos, investindoos, deste modo, com os desejos humanos e anseios. Os homens de pregos ou Nkisi do Congo são um exemplo deste tipo de prática. Neste ritual, cada participante martela um prego em uma efígie,

Em alemão: “Was nur etwas ist, aber nicht nach Sein aussieht, wird nicht gekauft. Was etwas zu “Sein” scheint, wird wohl gekauft”. 14

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O Agir Humano mediante uma promessa, um contrato espiritual, como forma de alojar nela o poderes espirituais.

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Um objeto só se torna um fetiche, quando um indivíduo ou um grupo acredita estar diante de um ser animado, que tem anima, vida própria. Assim, no capitalismo, a noção de fetiche ou de fetichismo não adensa seu sentido apenas quando relacionada à mercadoria, mas também se pode falar em dinheiro e em mercado como fetiches, na medida em que tratamos essas coisas como se elas fossem “entidades” e/ou lhe atribuímos movimento próprio. Por exemplo: as narrações jornalísticas do comportamento das bolsas de valores, aqui e alhures. A cobertura jornalística, nesse caso, refere-se à bolsa como se tratasse de um ser que se move por contra própria, cujo volume aumenta ou encolhe, cuja variação se acelera ou Disponível em: http://smcweb.smcvt.edu/amacmillan/African%20Art%20Web/Templ ates/home.html 15

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O Agir Humano desacelera, que se torna nervosa ou se acalma e ganha confiança. Quer dizer, algo que tem vida própria, que age de forma misteriosa, que é preciso interpretar, mas cujo conhecimento de sua ação é tão preciso quanto o conhecimento da influência dos astros na vida individual. Por mais que sejam seres misteriosos ou fantasmagóricos, são seres da realidade objetiva, se considerados em termos sociais. No entanto, apenas trataremos aqui da afinidade entre fetiche e mercadoria. Mercadorias só podem vir a ser adoradas como fetiches, se elas são capazes de esconder qualquer referência aos processos sociais de exploração envolvidos na sua produção. Se eu vejo o trabalho infantil nos tênis de corrida, eu não posso desfrutar do gozo associado à posse de um ambicionado símbolo de poder alcançado através do esporte. Em analogia com os fetiches de pregos, por um lado, as mercadorias são usadas como se possuíssem o poder de influenciar os outros, por exemplo, que imagem e opiniões terão sobre quem as possui, através da manipulação de sinais (marcas, tipos de carros, produtos com aura ética, etc.). Assim, a marca torna-se uma metáfora para o sonho do individualismo. A Apple usa, justamente, essa simbologia. Ao nos dizer para “fazer algo diferente”, procura nos convencer de que ela se destina a pessoas realmente capazes de “pensar diferente”, para indivíduos “capazes de mudar o mundo”, pessoas dispostas a se tornarem os arquitetos de seus próprios destinos. Por outro lado, ao mesmo tempo, o nosso fetichismo para com as mercadorias funciona como um elo subjetivo capaz de justificar, diante de nós mesmos, o sistema que torna possível a sua fabricação — e, assim, a exploração — possível. O fetichista é dependente deste sistema produtivo, tanto quanto o viciado acaba sendo uma peça que legitima a estrutura criminalizada sem a qual a droga não seria produzida. Seu comportamento implica um “estar 186


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O Agir Humano de acordo” com o sistema que produz a fantasmagoria, mesmo contra a sua própria vontade, como um viciado em tabaco, que reconhece ser seu próprio desejo seu pior inimigo. O capitalismo é, portanto, um sistema de desejo, e não apenas um sistema econômico. N. Bolz associa ao fetichismo de consumo uma religião de entretenimento, mas que pressupõe uma mitologia e um totemismo cotidianos (Bolz 2007, p. 37). Neste contexto, comprar coisas, significa muito mais do que tomar posse de valores econômicos. A concordar com Naomi Klein, a mais profunda esperança de uma sociedade consumista é atingir o nirvana da marca (Brandnirvana). Vale ressaltar que a análise do substrato religioso do fetichismo da mercadoria, feita por K. Marx já antecipava, há quase dois séculos, essa percepção. A mercadoria é, antes de tudo, um objeto externo, uma coisa com propriedades capazes de satisfazer a uma ou outra necessidade humana. A natureza destas necessidades, por exemplo, se ela se origina do estômago ou da fantasia, não muda nada sobre o assunto (Marx 2009, p. 2)

Em uma nota de rodapé a esta passagem, Marx cita Nicholas Barbon, “Um discurso a respeito da cunhagem de moedas novas”: Onde há uma vontade, há uma necessidade, e o apetite do espírito é tão natural como a fome para o corpo, (...) a maioria das coisas derivam seu valor do fato de que elas satisfazem às necessidades do espírito. (Marx 2009, p. 3)

É notório o paralelo, traçado por Giorgio Agamben, entre o capitalismo e a religião. Segundo ele, o capitalismo é a religião mais cruel já vista no planeta, por ser incapaz de reconhecer nem redenção, nem armistício. 187


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O Agir Humano Quanto a certo paralelismo entre os dois, poderíamos sugerir, que a sociedade de consumo é portadora de objetos de culto, as mercadorias, e de uma liturgia, o trabalho encarado como sacrifício para obtenção das mercadorias, atividade do purgatório, sem a qual não é possível ascender ao paraíso do consumo. A mercadoria é o objeto de culto, que se alude na publicidade e se insinua em vitrines de lojas. Que a lei do valor e a lógica da mercadoria influam no ambiente social e cultural por inteiro, não é nenhuma surpresa. Mas, como é que a mercadoria consolida o seu valor de culto? Há, ao mesmo tempo, uma analogia, mas também uma diferença com relação ao modo como os objetos religiosos adquirem valor. Um crucifixo, por exemplo, não tem qualquer utilidade, exceto servir de um apoio simbólico num ritual. Seu propósito e valor consistem, inteiramente, em ser exibido, nada mais. Seu valor é um puro valor de exibição. Enquanto peça de exibição, ele simboliza a paixão de Cristo, a superação do sofrimento e a transcendência fornecida pelo sacrifício da Cruz. A ideia do valor de exposição não se aplica apenas aos objetos religiosos, mas também a qualquer bem que, pela força da moda, circula. Em objetos como crucifixos e estátuas religiosas coincidem valor utilitário e valor de exposição. Por outro lado, com carros, smartphones e roupas de marca, o valor de exposição não coincide com a utilidade (mobilidade, telecomunicações, protegendo o corpo do frio ou lesão). Podendo até ser independente dele. Sob o capitalismo estético, as mercadorias são tratadas como se fossem objetos sagrados; o ato de fazer compras é um tomar parte em uma cerimônia religiosa, com toda circunspecção e com a gravidade de quem está imbuído de um dever sagrado. Os shoppings, as galerias e lojas são templos cheios de objetos mágicos e de próteses de sentido. A massa de consumidores empobrecida, via de regra, sacrifica-se e mobiliza enorme energia para conseguir congregar 188


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O Agir Humano poder de compra para suas demandas fetichistas. Esse esforço de aquisição é um esforço de ordem religiosa, que conduz à liturgia da compra e se completa na exibição ostensiva do objeto de culto adquirido (Cf. Hirschle 2012, p. 123ss). É significativo que, nas atuais sociedades de consumo, o consumir tenha adquirido um sentido existencial e, também, de reconhecimento social. De modo que, não consumir significa deixar de existir socialmente. O não consumir não produz apenas frustração, mas desconforto, inquietação, descontentamento e, principalmente, o sentimento de exclusão. 16 Numa sociedade onde não há consumidor que não tenha conhecimento enciclopédico sobre as mercadorias, não consumir é estar fora, sentir-se de fora. O capitalismo estético é também um regime de desejo. Nós não possuímos nossos desejos, somos afetados por eles. Isto está claro, porém o fato de que não sejamos nós os artesãos de nossos próprios desejos, não exclui a possibilidade de que alguém os possa fabricar. O capitalismo, com sua metralhadora giratória de estímulos, é uma fábrica de desejos, é essencialmente uma “matriz” produtiva, capaz de fazer surgir e desaparecer o desejo. Porém, essa “matrix” é totalitária, pois, em meio a sua ditadura de ofertas querer ter e dever ter são perfeitamente indistinguíveis. A única liberdade que nos resta é a de aceitar os preços que nos são impostos, como diria Eduardo Galeano. A liberdade real é a da guerra concorrencial decretada e da concorrência generalizada de todos contra todos. A concorrência, quer se dê entre indivíduos, quer se dê entre empresas, estados ou mesmo entre nações, significa não mais do que carregar a morte do outro. Nessa mesma perspectiva, a sociedade de consumo exige não só a concorrência entre as empresas, mas também a rivalidade entre os consumidores competindo por exclusividade, no plano simbólico. 16

O contrário é a ilusão ingênua de inclusão no falsamente comunal.

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O Agir Humano A consequência e o significado radical desta cultura de consumo é o velho darwinismo social. Ao envolver-se na competição social, cada participante engaja e contribui para a morte social dos outros. Quer dizer: quem não consume, não contribui; quem não contribui, não pode participar; quem não pode participar, atrapalha, torna-se um problema. Tomada em totalidade, esta fórmula social significa que qualquer pessoa que seja pobre é também supérflua e deve, portanto, apenas rolar e morrer (Cf. Kurz 1999, capítulo 12). O princípio abrigado dentro dessa lógica social darwinista da concorrência generalizada é a eutanásia social. A noção de eutanásia social, postulada por Robert Kurz, é muito significativa, não só porque ela se aplica, quase que literalmente, ao sistema de saúde, mas também por ser extremamente fecunda quando associada a quase todos os outros campos da vida social, como a educação pública, segurança, mobilidade e de telecomunicações. Os pobres não são apenas vítimas do totalitarismo econômico, mas ainda, obstáculos a ele, uma vez que o sistema exige dinheiro para ser transformado em mais dinheiro, isso com o mínimo de resistência possível. Este é o objetivo final, o fim em si mesmo, o imperativo abstrato do sistema. Como aponta R. Kurz, a prova definitiva para a falta de sustentabilidade e o impulso autodestrutivo desta sociedade global consiste no fato de que “na sua forma atual, ela não pode nem mesmo durar os próximos 50 ou 100 anos” (Kurz 1999, cap. 17).

7. O DISCURSO DA IMAGEM: A ACÚSTICA PSÍQUICA. A imagem acústica (Saussure) não se forma sem o auxílio da imaginação de quem ouve o som. A associação e a produção da imagem acústica dependem do repertório cultural do ouvinte. Meus avós, provavelmente, não produziriam nenhuma imagem acústica 190


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O Agir Humano para o som de um metrô se aproximando, como para o som de substantivos pronunciados numa outra língua. Nesse sentido, o “olimpo moderno” de deuses, semideuses e heróis da indústria cultural, nos seus diversos ramos, na imprensa esportiva, política, técnico-científica, artística, etc., tem um papel estrutural no processo de decodificação da proposição de sentido embutida na imagem acústica da mercadoria. Mesmo o fetichismo da mercadoria pressupõe esse repertório cultural. Na era dos ambientes virtuais e dos displays luminosos, a percepção comum mobiliza, sobretudo, dois órgãos dos sentidos que, quando associados, passam a valer como um só órgão, o olhoouvido (C. Türcke). Essa fusão criou um órgão altamente sensível a estímulos emocionais. Trata-se de um receptor adequado e exigido para os estímulos “químicos” típicos da metralhadora de estímulos audiovisuais do capitalismo estético. Depois de uma visita a uma exposição-industrial (Berliner Gewerbe-Ausstellung) em Berlim, em 1896, Georg Simmel descreve o efeito hipnótico produzido pela impressão causada dos produtos industriais ali expostos. A proximidade em close dos produtos industriais mais heterogêneos produz uma paralisia do poder de percepção, uma verdadeira hipnose, em que cada impressão individual apenas desliza sobre as camadas superiores da consciência e, finalmente, só a ideia mais frequentemente repetida é retida pela memória como vitoriosa sobre o cadáver de inúmeros fracassos de inúmeras tentativas, mas em seu estado fragmentado e mais enfraquecido, a consciência consegue destacar uma impressão — a de que está-se aqui para divertir-se (Apud Frisby 2001, p. 64).

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O Agir Humano 8. SHOPPINGS COMO LUGARES SAGRADOS. N. Bolz argumenta que shoppings substituíram as igrejas como locais de culto. Citando Harvey Cox, Bolz compara vitrines com presépios e etiquetas com hóstias (Bolz 2007, p. 115). “O mundo é minha representação”. Essa é a proposição de entrada da obra capital de Arthur Schopenhauer. O que eu posso saber acerca do mundo esbarra nos muros intransponíveis dos meus próprios conceitos. Coincidência, quase um século depois, L. Wittgenstein, um assíduo leitor de Schopenhauer, escreveria, em seu Tractatus, “o mundo é tudo o que é o caso”. Tratava-se da primeira proposição de sua primeira grande obra. Mas, é através da mídia que nós experimentamos o que é o caso (Bolz). Como Bolz observa: ...os meios de comunicação fazem uma pré-seleção, para nós, do que é o caso. Eles realizam uma tarefa, que os sociólogos denominam de absorção de incerteza, produzindo fatos, fatos e mais fatos. Podemos, portanto, dizer que a mídia de massas é a indústria da realidade da sociedade moderna. Muitas vezes, a apresentação na mídia de massa é, em si mesma, o evento que está sendo relatado. (Bolz 2007, p. 37).

Esta indústria da realidade compete pela apropriação de um recurso muito raro: a atenção. O espetáculo comercial de mercadorias seria incapaz de produzir valor de gozo 17 se ele não fosse capaz de tomar posse, temporária, do par de olhos dos espectadores. A atenção do espectador torna-se negociável, na medida em que ela pode ser quantificada. Sendo assim, ela adquire valor de troca. Empresas de TV alugam, para os anunciantes, 17 A noção de “valor de gozo” da mercadoria faz parte da interpretação de Eugênio Bucci, de forte influência lacaniana, da Sociedade de Espetáculo de Guy Debord.

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O Agir Humano quantidades específicas de pares de olhos, por intervalos precisos de tempo. A mercadoria é absorvedora de olhar social, na medida em que o seu significado, socialmente construído, entra na composição do seu valor. Isso porque a fabricação do Signum da mercadoria, não pode ser produzido in doors, somente no setor de produção da firma, pelo contrário, a proposição de sentido, previamente produzida, precisa adquirir relevância social e consentimento do lado de fora, no âmbito da esfera pública.

9. PRÓTESES DE SIGNIFICADO À VENDA. A análise do fetichismo da mercadoria possibilita, ao investigador, abstrair do valor de utilidade, que é mantido apenas como um pretexto para a produção de mercadorias, de modo a entrever o aparecimento de um valor totalmente independe da utilidade, o valor de culto (Cf. Fritz Haug, 2009). A Nike não vende apenas tênis, mas vende transcendência através do esporte. A Land Rover não vende apenas carros, mas, sobretudo, aventura. As agências de viagens não vendem viagens, mas experiências que deverão se eternizar. A Marlboro não produz cigarros, mas um gesto, uma postura corporal, uma pose. Quando as mercadorias são associadas com estilos de vida, seus significados também precisam ser fabricados. O mercado fabrica próteses de significado, que servem de atmosfera artificial que cercam as mercadorias. Associações positivas, como sustentabilidade ecológica ou consciência verde e responsabilidade social, são boas de vendas. Como Bolz aponta, idealismo vende muito bem (Cf. Bolz 2002, p. 106). O capitalismo aprendeu a vestirse refinadamente no idealismo, com slogans que conotam um capitalismo com consciência, responsabilidade moral e/ou idealismo ecológico. As marcas remetem a sistemas de signos 193


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O Agir Humano socialmente relevantes. Elas são frequentemente associadas com sentimentos sociais moralmente positivos, de modo que adquirir um produto possa também significar tomar parte, de modo responsável, numa causa idealista e, deste modo, possa valer como sinal de maturidade, de compromisso e de engajamento social, de responsabilidade moral e correta consciência política. Essas associações éticas tem altíssimo valor de exposição (valor de simulação), precisamente porque parecer se comportar eticamente é um componente importante da cultura consumista de simulação. Nessa cultura da simulação, a própria motivação de compra passa a ser fabricável e se torna um componente estrutural para a produção de demanda, numa economia, majoritariamente, de supérfluos. O capitalismo, após a revolução microeletrônica, mudou. Engendrou tecnologias compressoras de tempo e de trabalho, gerou uma profunda crise na sociedade de trabalho, tornou-se numa sociedade de consumo transformadora da dinâmica e do sentido das relações sociais, do conjunto das atividades humanas e da relação dos homens com a natureza. Contudo, a exploração permanece, aperfeiçoa-se e adquire um novo design. Em certo sentido, num contexto pós-industrial, ela migrou, em parte, das fábricas, onde se consumia força de trabalho de tipo física, para o sensório, onde se faz uso da ponta dos dedos e do par de olhos.

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8 ASPECTOS DO CONCEITO DE ALIENAÇÃO EM ROUSSEAU E MARX Telmir de Souza Soares 1

1. INTRODUÇÃO. O presente artigo busca compreender o conceito de alienação e, mais especificamente, como esse conceito é articulado em dois pensadores da teoria política, a saber, Rousseau e Marx. A proposta interpretativa, presente neste trabalho, procura demarcar aproximações e diferenças entre esses dois pensadores. Observamos em Rousseau o conceito de alienação enquanto fundamento da formação do Estado, a base do contrato social. Em Marx, a princípio, o conceito assume uma dimensão econômica, como a categoria que expressa a relação entre o trabalhador e o produto de sua atividade produtiva. Em seu discurso, a partir do conceito de alienação, são depreendidos os elementos básicos das análises da economia política, tais como a propriedade privada e a mais valia. Nos dois pensadores a alienação serve para tratar da existência humana e da sua busca por autonomia e liberdade, conceitos caros à teoria social.

1Professor Adjunto I da Universidade do Estado do Rio Grande do Norte – UERN, lotado no Departamento de Filosofia – DFI. Doutorando em Filosofia Prática pela Universidade Federal da Paraíba – UFPB. (E-mail: telmir@gmail.com).


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O Agir Humano 2. CONSIDERAÇÕES SOBRE ALIENAÇÃO: APROXIMAÇÕES.

O

CONCEITO

DE

Uma breve consideração histórica sobre o conceito de alienação nos mostra seu uso desde a Idade Média para tratar do êxtase místico, da relação contemplativa do homem com Deus. Apesar de possuir longa tradição, é em Rousseau, Hegel e Marx que encontramos seu uso mais continuado e consistente, associado à teoria social e a uma tentativa de explicar aspectos importantes da vida em sociedade, como os fundamentos do pacto social, da constituição do soberano, bem como de elementos da economia política. De modo geral por alienação compreende-se o processo por meio do qual o sujeito se encontra em uma relação de subordinação com outrem, daí a vocábulo “allius” de onde deriva “alienação”. Uma “figura” contemporânea para o sentido embutido nesse conceito pode ser encontrado nas atividades financeiras que remetem a um contrato assumido em uma compra financiada de um objeto qualquer sob o aspecto da alienação fiduciária. Nestas formas de contrato até que as prestações do mesmo sejam devidamente quitadas o objeto, apesar de estar em uso do comprador, por força desse contrato de alienação, resta como propriedade do credor estando, portanto, alienado. A posse em definitivo do bem pelo devedor se dá quando este, de fato, quita, zera seu débito com o credor. A concepção estabelecida contemporaneamente sobre alienação nos vem da tradição marxista, muito embora tal concepção tenha atualmente uma série de vertentes e variantes. O conceito de alienação em Marx representa uma crítica à concepção puramente especulativa que este conceito assume em Hegel. Para este, a alienação consiste num processo de objetivação levado à cabo por força da determinação da consciência de si, em um 200


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O Agir Humano processo de autoconsciência. Hegel identifica tal objetivação com a alienação. Em contrapartida, em Marx, a objetivação não é um conceito negativo, representa o processo pelo qual o homem se exterioriza através do trabalho agindo sobre a natureza transformando-a, e com isso elaborando-a em um espaço humano. Quanto à alienação, propriamente dita, apresenta-se como “o processo pelo qual o homem se torna alheio a si, a ponto de não mais se reconhecer.” Tal alienação se dá pelo processo de trabalho, quando neste, o produto da atividade do operário é usurpado pelo capitalista, fazendo com que o trabalhador não mais reconheça o fruto dos seus próprios esforços. O que o trabalhador produz não mais pertence a ele mesmo, mas ao patrão. Marx identifica esse processo de expropriação como alienação, como nos diz Abbagnano. ...a alienação é o dano ou a condenação maior da sociedade capitalista. A propriedade privada produz a alienação do operário tanto porque cinde a relação deste com o produto do seu trabalho que pertence ao capitalista, porque o trabalho permanece exterior ao operário, não pertence à sua personalidade. (ABBAGNANO, 1998, p. 26)

Na contemporaneidade, como resultado da contribuição marxista, o conceito assumiu diferentes concepções e as mais variadas aplicações no âmbito da teoria social. À guisa de exemplo, Adorno e Horkheimer fazem um uso diferenciado do termo em sua Dialética do Esclarecimento. Nesta obra a alienação assume uma concepção gnosiológica produzida pelo próprio esclarecimento quando da superação da concepção mítica. A despeito da “fortuna” que o conceito de alienação alcança no âmbito da filosofia, em função dos limites desse trabalho, consideraremos apenas dois 201


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O Agir Humano autores: Rousseau e Marx. Consideraremos, mais especificamente, como estes dois pensadores tratam do conceito de alienação, buscando fazer algumas aproximações e afastamentos dados ao conceito enquanto pressuposto para a teoria social dos mesmos.

3. DOS MÚLTIPLOS DIZERES SOBRE A ALIENAÇÃO: ROUSSEAU E MARX. A alienação pode ser dita de várias maneiras e, nesse texto duas são as perspectivas a serem consideradas para o conceito de alienação: a do direito político e a da economia política e sua crítica. Elas correspondem, respectivamente, aos autores objeto de trabalho: Rousseau e Marx. E, enquanto tratam da relação do homem consigo mesmo, da relação deste com os outros homens e com o “fruto” do seu trabalho, essas concepções se diferenciam quando buscam tratar do lugar das relações sociais travadas da política e da vida econômica no âmbito da teoria social. Entretanto, não devemos considerá-las como posições divergentes, muito menos excludentes, antes como aspectos teóricos complementares, a despeito da variância das proposições e efeitos desejados por cada autor.

3.1. Rousseau e a alienação na perspectiva do direito político. O conceito de alienação em Rousseau pode ser encontrado sob vários aspectos: a alienação em relação à natureza, a alienação no seio da sociedade, a alienação do eu particular em relação ao eu comum, entre outros. Tais leituras, entretanto, estariam ligadas ao esforço exegético e hermenêutico de tentar constituir tais aspectos a partir de claros e escuros na obra de Rousseau, de especular pelos 202


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O Agir Humano momentos em que o conceito ora se revela, ora se oculta sob outros temas da filosofia do genebrino. Nossa abordagem tem como obra principal o Contrato social pois nesta Rousseau deixa claro sua intenção ao se servir do conceito. O Contrato social, a despeito de que seu título tenha como pretensão mostrar o objetivo principal do texto, a saber, discursar sobre os termos do contrato social, tem como subtítulo os “princípios do direito político”, daí não causar estranheza que a primeira frase do texto seja: Quero indagar se pode existir, na ordem civil, alguma regra de administração legítima e segura, tomando os homens como são e as leis como podem ser. Esforçarme-ei sempre, nessa procura, para unir o que o direito permite ao que o interesse prescreve, a fim de que não fiquem separadas a justiça e a utilidade (ROUSSEAU, 1962, p. 19)

Rousseau deixa claro desde o início o seu propósito, para além de estabelecer uma descrição do Estado baseada no contrato, ele pretende investigar sobre as regras que tornem legítima a associação entre os homens. Tal declaração demonstra que ele não estava satisfeito com as teorias que até então tentavam dar conta da justificação da formação do Estado, entre elas as propostas contratualistas e os princípios do direito político vigentes no século XVIII. Ele buscava apontar caminhos para o dever-ser de uma associação que se quisesse justa e útil. Muitas são as referências que fundamentam essa tomada de posição de Rousseau. Seu pensamento trava um diálogo com um rol de autores importantes e reconhecidos. No âmbito do contratualismo, como já foi apontado, temos nomes como Locke e Hobbes; no que diz respeito ao jusnaturalismo, ele se baseia e debate com pensadores como Pufendorf e Grotius. Infelizmente, no escopo desse trabalho não será possível abordar essas 203


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O Agir Humano referências, tal discussão foi muito bem retratada no livro de Robert Derathé: Jean Jacques Rousseau e a ciência política de seu tempo. Assim, cabe-nos tratar das intenções de Rousseau ao propor a si mesmo a tarefa de teorizar sobre a fundação e os fundamentos do Estado e as relações desta teoria com o conceito de alienação. a) A alienação enquanto pressuposto para a constituição corpo político. É no âmbito do Contrato social que encontramos de forma bem definida a concepção rousseauniana de alienação. Tal apresentação se dá em meio à contra-argumentação sobre as formas legítimas de dominação e, mais especificamente, contra a justificação da escravidão enquanto uma forma de domínio sobre ao outro baseada em uma suposta “lei do mais forte”. No capítulo IV do Contrato, quando trata da escravidão, Rousseau argumenta contra Grotius. Segundo este, um homem particular pode alienar sua liberdade e tornar-se escravo e, por extensão, o mesmo poderia se dar com um povo. Este seria o fundamento do Estado para o pensador holandês, a efetiva doação que um povo faz de si mesmo em proveito de um governante a fim de que este possa representálo, conduzi-lo, protegê-lo, etc. Rousseau vai se colocar como opositor da tese de Grotius, e para isto ele se detém no conceito de alienação à guisa de dissipar equívocos no que diz respeito à concepção defendida pelo jurista holandês: Alienar é dar ou vender. Ora, um homem que se faz escravo de um outro, não se dá; quando muito, vende-se pela subsistência. Mas um povo, por que se venderia? O rei, longe de prover a subsistência de seus súditos, apenas dele tira a sua e, de acordo com Rabelais, um rei não vive com pouco. Os súditos dão, pois, a sua pessoa sob a 204


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O Agir Humano condição de que se tome também seus bens? Não vejo o que lhes resta. (ROUSSEAU, 1962, p. 23)

Rousseau, em oposição a Grotius, declara que a alienação, nos moldes da escravidão, não consiste em fundamento para a dominação sobre outrem. Servir como escravo quando muito é um regime de prudência, não de direito, pois, segundo ele, a força não produz direito. Assim, em sua forma negativa, enquanto subserviência ao mais forte por medo da morte, a alienação não pode se constituir como fundamento da associação política. Afirmar que um homem se dá gratuitamente, constitui uma afirmação absurda e inconcebível; tal ato é ilegítimo e nulo, tão só porque aquele que o pratica não se encontra no completo domínio de seus sentidos. Afirmar a mesma coisa de um povo é supor um povo de loucos: a loucura não cria direito. (ROUSSEAU, 1962, p. 23)

A argumentação de Rousseau assume ainda uma dimensão mais específica quando ele defende a liberdade como substrato fundamental para a criação da associação humana, bem como para sua manutenção. É preciso que o homem seja livre para constituir o corpo político. E, uma vez sendo livre, nada justifica que o mesmo queira vir a se tornar escravo. Destarte a escravidão não pode servir de substrato para a sociabilidade, pois em tal situação encontra-se o indivíduo coagido e, portanto, sem a posse de sua liberdade. O mesmo se daria com um povo que se alienasse de boa vontade sem nenhum retorno; isso seria loucura. Nem a escravidão nem a loucura são princípios que legitimem a alienação enquanto fundamento da associação política. Rousseau coloca a liberdade como condição sine qua non do exercício da condição humana, da sua natureza própria, de sorte que, expropriar-se desse elemento essencial seria compatível a 205


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O Agir Humano desistir dos direitos próprios da humanidade tornando-se um ser destituído de moralidade. Renunciar à liberdade é renunciar à qualidade de homem, aos direitos da humanidade e até aos próprios deveres. Não há recompensa possível a quem tudo renuncia. Tal renuncia não se compadece com a natureza do homem, e destituir-se voluntariamente de toda e qualquer liberdade equivale a excluir a moralidade de suas ações. Enfim, é inútil e contraditória convenção a que, de um lado, estipula uma autoridade absoluta, e, de outro, uma obediência sem limites. Não está claro que não se tem compromisso algum com aqueles que se tem o direito de tudo exigir? (ROUSSEAU, 1962, pp. 23-24)

Uma vez excluída a alienação enquanto fundamento para a obediência legal a outrem dá-se, por analogia, o mesmo no nível da sociedade. Enquanto Grotius defende que um povo pode se dar a um rei, Rousseau, argutamente considera que para efetuar tal doação o povo já teria que se encontrar constituído. Destarte, Rousseau leva em consideração qual ato constitui um povo antes de tudo. Este ato primeiro, em tese, possibilitaria tal alienação. Um povo, diz Grotius, pode dar-se um rei. Portanto, segundo Grotius, um povo é povo antes de dar-se um rei. Essa doação é um ato civil, supõe uma deliberação pública. Antes, pois, de examinar o ato pelo qual um povo elege um rei, conviria examinar o ato pelo qual um povo é povo, pois esse ato, sendo necessariamente anterior ao outro, constitui o verdadeiro fundamento da sociedade. (ROUSSEAU, 1962, p. 26)

Rousseau em sua argumentação chega ao ponto em que define o que é a sociabilidade e qual seu fundamento. Aqui a alienação assume um caráter positivo enquanto ato fundador de povo, de uma sociedade. Tal ato constitui-se antes mesmo de 206


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O Agir Humano decidir-se qual a forma de governo que seria a mais adequada para esta associação política. E, mais que isso, nesse conceito de alienação reside um sem número de elementos pressupostos na teoria de Rousseau que dão um caráter unificador ao seu pensamento e aos conceitos expostos em seus textos. Assim, no percurso do Contrato o problema fundamental que Rousseau procura resolver é novamente enunciado: Encontrar uma forma de associação que defenda e proteja a pessoa e os bens de cada associado com toda força comum, e pela qual cada um, unindo-se a todos, só obedece contudo a si mesmo, permanecendo assim tão livre quanto antes. Esse é o problema fundamental cuja solução o contrato social oferece. (ROUSSEAU, 1962, p. 27)

Enquanto a tradição filosófica, em termos de filosofia política, apontava para a paz como substrato da vida social, como podemos ver em Agostinho, Marsílio de Pádua e mesmo em Hobbes e Locke, encontramos em Rousseau um novo elemento: a liberdade. Rousseau afirma que muitos que estão presos encontramse em paz, a despeito de não se encontrarem em liberdade. A associação só tem sentido se cada um puder ser tão livre como se encontrava no estado de natureza. Associar-se para escravizar-se ao mando de outrem não faz o menor sentido para Rousseau. Assim, o formato adequado da associação política deve ser aquele em que cada um dando-se receba do outro, em contrapartida, o mesmo grau de doação prevista no contrato de forma equânime. Na justeza da alienação equitativa, e somente deste modo, está-se seguro que, na doação de todos, cada um obedece, quando da constituição da lei, somente a si mesmo: Essas cláusulas, quando bem compreendidas, reduzem-se todas a uma só: a alienação total de cada associado, com 207


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O Agir Humano todos os seus direitos, à comunidade toda, porque, em primeiro lugar, cada um dando-se completamente, a condição é igual para todos, e, sendo a condição igual para todos, ninguém se interessa por torná-la onerosa para os demais. (ROUSSEAU, 1962, p. 27)

Pressuposto está neste conceito de alienação temas que serão tratados posteriormente no Contrato Social como a vontade geral e a soberania. Desse modo, nos declara mais adiante Rousseau: “Cada um de nós põe em comum sua pessoa e todo o seu poder sob a direção suprema da vontade geral, e recebemos, enquanto corpo, cada membro como parte indivisível do todo”. (ROUSSEAU, 1962, p. 28). E, no mesmo capítulo, mas em um parágrafo anterior ele nos diz que essa igualdade de condições é a garantia de que não seríamos propriedade de ninguém, muito pelo contrário, tal composição seria a garantia de estarmos constituindo uma vontade geral que seria o sucedâneo da vontade particular: “Enfim, cada um dando-se a todos não se dá a ninguém e, não existindo um associado sobre o qual não se adquira o mesmo direito que se lhe cabe sobre si mesmo, ganha-se o equivalente de tudo que se perde, e maior força para conservar o que se tem”. (ROUSSEAU, 1962, p. 28) O resultado desse ato fundador baseado na alienação de todos seria a constituição do corpo político, de um corpo moral e coletivo que contém em si formas diferenciadas de exercício do seu ser e do seu dever-ser: Imediatamente, esse ato de associação produz, em lugar da pessoa particular de cada contratante, um corpo moral e coletivo, composto de tantos membros quantos são os votos da assembleia, e que, por esse mesmo ato ganha sua unidade, seu eu comum, sua vida e sua vontade. Essa pessoa pública, que se forma, desse modo, pela união de todas as outras, tomava antigamente o nome de cidade e, 208


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O Agir Humano hoje, o de república ou de corpo político, o qual é chamado por seus membros de Estado quando passivo, soberano quando ativo, e potência quando comparado aos semelhantes. Quanto aos associados, recebem eles, coletivamente, o nome de povo e se chamam, em particular, cidadãos enquanto partícipes da autoridade soberana, e súditos enquanto submetidos às leis do Estado. (ROUSSEAU, 1962, p. 28)

Com a alienação o indivíduo assume um novo estatuto, cabendo-lhe atuar em meio à coletividade a fim de fazer valer seu direito e garantir, assim, sua liberdade. Tal atuação tem por base o contrato social, que tem como pressuposto a alienação total de todos como fundamento da associação política, do Estado. Por meio da alienação de todos é que o homem garantiria a posse dos seus direitos. Destarte a alienação assume em Rousseau o papel de mal necessário que criaria as condições de possibilidade de uma constituição justa e útil para o Estado. Assim a alienação tem dois aspectos em Rousseau: a perda de si e o resgate de si. Enquanto perda, alieno o que tenho na perspectiva da constituição do Estado. Só que tal alienação não é gratuita, ela tem como contrapartida a doação na mesma proporção dos outros contratantes. Neste sentido surge o segundo aspecto: o resgate do que fora alienado. Uma vez que o outro compartilha e assume o mesmo compromisso no mesmo ato a doação faz com que todos componham na mesma disposição os mesmos deveres e tenham os mesmos direitos. O resultado de tal ato é que acabo por ter de volta tudo o que anteriormente havia alienado. E, como diz Rousseau, na constituição da vontade geral cada um que compõe a vontade geral, de fato, obedece a si mesmo. No Contrato Social Rousseau propugna estabelecer um tipo de associação que cure os males da vida humana em sociedade. Um dos mais graves males é a dominação de um sobre o outro pois, 209


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O Agir Humano como ele mesma asseverara no Discurso sobre a origem e o fundamento das desigualdades entre os homens, a sociabilidade constitui desigualdades, bem como amplia as já existentes. O aspecto a ser destacado nesse processo de alienação é que, se cada um aliena o que tem, todos estão sujeitos entre si e, no cômputo geral cada um, obedecendo a todos, só obedece a si mesmo. Neste sentido, por meio da alienação de todos os contratantes, desaparece o estatuo do domínio de um sobre o outro. E, como observamos acima, à ideia de alienação devemos anuir as ideias de vontade geral e soberania. O pensamento de Rousseau está assim interligado com outros aspectos de sua teoria social e política. A alienação teria esse aspecto positivo capaz de resguardar a sociabilidade dos problemas que Rousseau via no pensamento político de sua época. b) A alienação enquanto ruptura com a natureza. Cabe ainda destacar, como contribuição teórica ao conceito de alienação em Rousseau, uma concepção que aponta para alienação enquanto o processo de desnaturação que conduziu o homem à vida social. Alienação aqui consistiria em um afastamento ao que é originário, isto é, em relação à Natureza. Tal acepção podemos encontrar na obra da Profa. Olgária Matos intitulada Rousseau – uma arqueologia da desigualdade, e que consiste em sua dissertação de mestrado. Nesta trabalho, a alienação caminha de par a par com o origem e o desenvolvimento das desigualdades: A pergunta pela origem da desigualdade converte-se, pois, em questão acerca da transformação ocorrida na natureza humana e que a fez passar do estado de igualdade entre os homens autossuficientes ao estado de desigualdade entre homens que se tornam dependentes.

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O Agir Humano A Arqueologia da desigualdade é uma teoria da alienação. (CHAUÍ apud MATOS, 1978, p. 11)

Segundo essa acepção, a alienação se dá no processo de desenvolvimento da sociabilidade e tem como seu processo final a relação que os homens travarão no âmbito da propriedade privada. Esta tem como seu elemento crucial a apropriação da terra e a consequente guerra de todos: A apropriação da terra está na raiz do subsequente estado de guerra e de seus efeitos: ricos e pobres, fortes e fracos, senhores e escravos. As relações entre indivíduos que constituirão o estado de guerra são também produto da atividade do homem; tais relações não são externas com relação aos indivíduos, existem como “consubstancialidade”, isto é, todo o desenvolvimento da história do homem se produz de tal maneira que os efeitos da primeira socialização já determinam a alienação dos indivíduos; a partir dessa “primeira alienação” das relações sociais existentes, o homem se aliena cada vez mais. Enquanto subsistiu a “floresta”, o homem pôde escapar à tirania das relações sociais e a seus efeitos coercitivos. Quando o “reino da floresta” findou, toda a terra começou a ser cultivada, dominada pelo proprietário mais forte que usurpou a terra aos ocupantes primitivos; os homens não encontraram mais refúgio para sua liberdade, viram-se forçados aos estados de guerra à alienação. (MATOS, 1978, p. 84)

Matos percorre o Discurso sobre as desigualdades apontando as etapas do processo de desenvolvimento do homem, de sua perfectibilidade, que fizeram com que este desenvolvesse suas habilidades, a razão, a linguagem. Em meio a esse desenvolvimento o homem aprimorou técnicas que o deixou mais “imune” aos desígnios da natureza. Entretanto, tais necessidades e dificuldades promoveram o encontro entre os homens e, com isto o surgimento 211


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O Agir Humano de novas necessidades e novas dificuldades. Essas relações serão responsáveis pelo surgimento de vários tipos de propriedade: dos bens naturais, da moradia, de ferramentas, culminando com a apropriação de áreas de terra, sendo que esta última forma de propriedade aprofunda e agrava as demais desigualdades de forma drástica. Durante todo esse desenvolvimento o homem já se encontra em meio a um processo de alienação. Matos, entretanto, caracteriza esse processo dentro da guerra de todos e do surgimento da propriedade privada. É dentro deste quadro que se estabelece o que se considera o primeiro contrato ou, como também é possível ser compreendido, o contrato dos ricos. Este, em oposição ao contrato social, em que a alienação consiste na constituição do corpo político, representa um acordo que o possuidor faz com os despossuídos a fim de construir um estado de não agressão, entretanto esse contrato é na verdade um engodo: Os possuidores convencerão os demais acerca da dependência necessária e sem este convencimento a submissão seria impossível (...) eis o discurso do rico, fraco para se defender sozinho, converte-se em discurso do forte, pois conta com o auxílio submisso daqueles que acreditam que seu bem consistia em trabalhar para o bem do outro. Assim, trabalho e linguagem complementa-se no espraiamento interminável da alienação. (CHAUÍ apud MATOS, 1978, p. 14)

A despeito da acuidade da leitura de Matos sobre o Segundo discurso, há que salientar que, a nosso ver, sua leitura ultrapassa os limites de uma interpretação que se atém ao contexto no qual o autor fala. Nem a escravidão, nem o senhorio, nem a propriedade foram pensadas por Rousseau como categorias históricas e econômicas, mas enquanto categorias políticas e morais.

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O Agir Humano Tal postura é diferente da concepção de Marx que analisa a história a partir dos modos de produção, entre os quais se encontra a escravidão. Rousseau é um pensador que, desde seus escritos iniciais, procurou refletir sobre a situação do homem na sociedade, seu lugar, suas dificuldades. O Discurso sobre as desigualdades aponta para o desenvolvimento das desigualdades no âmbito da vida em sociedade. Muito embora a natureza tivesse feito dos homens seres desiguais, tais desigualdades não implicavam em desproporções de grande monta. Devemos salientar que Rousseau não faz uso programático e intensivo de categorias econômicas no âmbito de sua teoria social, sendo este o principal diferencial em relação a Marx. Mesmo no artigo mais específico sobre o tema, o verbete veiculado na Enciclopédia sobre Economia política, ele trata do governo da cidade em sua relação ao governo da casa. Na concepção de Matos, o conceito de alienação presente no Segundo discurso apresenta uma lacuna metodológica, uma incompreensão das relações de trabalho: “O que Rousseau não percebe é que a apropriação dos objetos revela-se como alienação não somente sob o aspecto moral, mas também sob o domínio econômico: quanto mais o trabalhador produz, menos ele possui, caindo sob a dominação de seu produto, o capital” (MATOS, 1978, p.87). Vale salientar que tal matriz interpretativa, de cunho hegelomarxiana, representa uma tomada de posição em face da obra de Rousseau. Entretanto, concordamos com Matos que podemos falar de uma alienação enquanto afastamento da origem, da Natureza, da perda causada por esse afastamento, algo que, como diz Rousseau, desfigurou o homem. Essa perda de um eu originário, desde seus primórdios pode ser subsumida sob o conceito de alienação. E, muito embora essa transformação que tornou o homem um ser infeliz não possa ser resgatada em sua integralidade e não seja 213


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O Agir Humano possível um retorno a esse estágio originário, é possível, ao menos, um resguardo daquilo que foi perdido, principalmente a liberdade. Neste sentido nos encontramos no âmbito do contrato social e do seu conceito de alienação.

3.2. A alienação em Marx: aspectos econômicos da teoria social. Marx trilha um caminho diferente do de Rousseau ao tratar da alienação. Se em Hegel a alienação tem como pressuposto o desenvolvimento da consciência que opõe a si um objeto exterior representando um momento no desdobramento do Espírito, Marx foge desse tipo de idealismo que remonta a Fichte e, invertendo a construção conceitual, parte das relações materiais de produção para explicar a vida em sociedade. Assim, o conceito assume uma dimensão histórica e econômica a partir das matrizes metodológicas postas pela modernidade. Enquanto em Rousseau economia política representava uma análise do governo, já no Período das Luzes temos o surgimento de um pensamento mais voltado para a análise da relação entre produção e constituição da sociedade. Adam Smith (1723-1790), David Ricardo (1772-1823), Jean-Baptiste Say (1767-1832), Thomas Malthus, (1766-1834) representam intelectuais que tratam da economia política de forma mais científica, mas atenta à realidade social e mais aproximada à interpretação da nascente sociedade capitalista. O próprio Hegel (1770-1831) trata, na sua Filosofia do direito, do reino das carências e, na Fenomenologia do Espírito, das figuras da consciência, sendo a mais famosa a dialética do senhor e do escravo, elementos de teoria que já compreende a importância da economia na compreensão da sociedade e na construção de teorias sociais.

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O Agir Humano Marx é tributário desta tradição e dessas teorias na constituição do seu pensamento, mas assume a perspectiva das relações materiais de produção da vida como pressuposto infraestrutural da sociedade e da efetivação de seu tutor, o Estado. Em Marx a alienação assume o caráter com que tem sido comumente apreendido até hoje, enquanto estranhamento do produto em relação ao produtor em meio ao modo de produção econômica e, mais especificamente, no âmbito do capitalismo: O estranhamento do trabalhador em seu objeto se expressa, pelas leis nacional-econômicas, em que quanto mais o trabalhador produz, menos tem para consumir; que quanto mais valores cria, mais sem valor e indigno ele se torna; quanto mais bem formado o seu produto, tanto mais deformado ele fica; quanto mais civilizado seu objeto, mais bárbaro o trabalhador se torna; quanto mais rico de espírito o trabalho, mais pobre de espírito e servo da natureza se torna o trabalhador. (MARX, 2008, p. 82)

A alienação surge no processo de apropriação/expropriação do trabalho ao qual o operário está submetido no modo de produção capitalista. Como o proprietário é dono dos meios de produção, ele se apropria do produto das mãos do trabalhador e o expropria daquilo que ele mesmo produziu. O produto torna-se estranho ao que o produziu, encontra-se em oposição ao produtor e, esse alheamento se agrava, pois o processo produtivo visa não ao bem enquanto uso, mas enquanto valor de troca, ou seja, à venda que tem como objetivo final o lucro. Para que este se dê de forma abundante, para além de uma justa relação de trabalho, o proprietário dos bens de produção visa aumentar a mais valia, o valor excedente da força de trabalho embutida na produção dos bens, das mercadorias. O mais nefasto é que o próprio trabalhador, duplamente expropriado e alienado (quanto ao produto do seu trabalho e 215


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O Agir Humano quanto aos fins da produção), vê-se excluído, também, do próprio mercado de venda de produtos, posto que ele nem pode comprar aquilo que ele mesmo fabrica pois a remuneração do trabalhador compreende tão somente os custos da manutenção da mão de obra, da sobrevivência mínima do trabalhador, a fim de que o mesmo tenha que dispor sua força de trabalho uma vez mais no mercado a fim de garantir, ao menos, sua sobrevivência. O resultado desse processo de alienação é o empobrecimento do trabalhador em meio ao processo de produção do que ele faz parte e é a peça mais importante. Assim, em função da forma do exercício do trabalho enquanto alienação, o trabalhador finda por corroborar com sua própria exploração no modo de produção capitalista: Nós partimos de um fato nacional-econômico, presente. O trabalhador se torna tanto mais pobre quanto mais riqueza produz, quanto mais a sua produção aumenta em poder e extensão. O trabalhador se torna uma mercadoria tão mais barata quanto mais mercadorias cria. Com a valorização do mundo das coisas (Sachenwelt) aumenta em proporção direta a desvalorização do mundo dos homens (Menschenwelt). O trabalho não produz somente mercadorias; ele produz a si mesmo e ao trabalhador como uma mercadoria, e isto na medida em que produz, de fato, mercadorias em geral. (MARX, 2008, p. 80)

O processo de alienação não só retira do homem o “suor do seu rosto”, com o qual ele deveria manter a sua vida, segundo a metáfora bíblica, ele também expropria o trabalhador da possibilidade de se constituir enquanto ser humano. Enquanto em Hegel a consciência se autodefine no desdobramento do Espírito, em Marx esse processo se dá pelo trabalho.

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O Agir Humano Até aqui examinamos o estranhamento, a exteriorização do trabalhador sob apenas um dos seus aspectos, qual seja, a sua relação com os produtos de seu trabalho. Mas o estranhamento não se mostra somente no resultado, mas também, e principalmente, no ato da produção, dentro da própria atividade produtiva. Como poderia o trabalhador defrontar-se alheio (fremd) ao produto de sua atividade se no ato mesmo da produção ele não estranhasse a si mesmo? O produto é, sim, somente o resumo (Resumé) da atividade, da produção. Se, portanto, o produto do trabalho é a exteriorização, então a produção mesma tem de ser a exteriorização ativa, a exteriorização da atividade, a atividade da exteriorização. No estranhamento do objeto do trabalho resume-se somente o estranhamento, a exteriorização na atividade do trabalho mesmo. (MARX, 2008, p. 82)

Esta atividade faz com que o homem transforme a natureza e, ao fazê-la, transforme a si mesmo. Ao transformar o trabalho e o trabalhador em mera mercadoria o modo de produção capitalista nega ao homem, ao trabalhador que ele se realize. O trabalho alienado assim não constitui o homem, muito pelo contrário é um fardo que tem que ser carregado ad infinitum sem perspectiva de libertação. Trabalho de Sísifo, sem perspectiva de sentido, de realização, nem de redenção: Em que consiste, então, a exteriorização (Entäusserung) do trabalho? Primeiro, que o trabalho externo (äusserlich) ao trabalhador, isto é, não pertence ao seu ser, que ele não se afirma, portanto, em seu trabalho, mas nega-se nele, que não se sente bem, mas infeliz, que não desenvolve nenhuma energia física e espiritual livre, mas mortifica sua physis e arruína o seu espírito. O trabalhador só se sente, por conseguinte e em primeiro lugar junto à si [quando] fora do trabalho e fora de si [quando] no trabalho. Está em casa quando não trabalha e, quando trabalha, não está em casa. O seu trabalho não 217


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O Agir Humano é, portanto, voluntário, mas forçado, trabalho obrigatório. O trabalho não é, por isso, a satisfação de uma carência, mas somente um meio para satisfazer necessidades fora dele. (MARX, 2008, p. 83)

Destarte, Marx apreende a alienação em um amplo espectro, enquanto a relação do trabalhador com o produto do seu trabalho e enquanto atividade produtiva dentro da cadeia do processo de produção capitalista. Enquanto na primeira dimensão temos o estranhamento entre o produto e o produtor, na segunda dimensão temos a alienação enquanto a separação entre a atividade e o agente dessa atividade. Nessas duas dimensões passamos da relação do homem com os objetos para a relação do homem com seu próprio ser, relação possibilitada por sua atividade laboral: Examinemos o ato do estranhamento da atividade humana prática, o trabalho, sob dois aspectos: 1) A relação do trabalhador com o produto do trabalho como um objeto estranho e poderoso sobre ele. Essa relação é ao mesmo tempo a relação com o mundo exterior sensível, com os objetos da natureza como um mundo alheio que se lhe defronta hostilmente. 2) A relação do trabalho como o ato de produção no interior do trabalho. Esta relação é a relação do trabalhador com sua própria atividade humana como uma [atividade] estranha e não pertencente a ele, a atividade como miséria, a força como impotência, a procriação como castração. A energia espiritual e física própria do trabalhador, sua vida pessoal — pois o que é a vida senão atividade — como uma atividade voltada contra ele mesmo, independente dele, não pertencente a ele. O estranhamento de si (Selbstentfremdung), tal qual acima o estranhamento da coisa. (MARX, 2008, p. 83)

O conceito de alienação possibilita uma reflexão sobre as formas de sociabilidade humana, pois, enquanto forma da produção, o trabalho nos relaciona com outros sujeitos, quer outros 218


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O Agir Humano homens nos postos de trabalho, quer seja com aquele que compra o objeto final do nosso trabalho enquanto mercadoria, ou mesmo com o próprio capitalista, o dono dos meios de produção. Tal perspectiva acerca das relações sociais como produto da atividade econômica já havia sido trabalhado por Smith e Ricardo. Em Marx essas relações se dão como a forma inerente ao modo de produção capitalista e tem como substrato o trabalho alienado: Através do trabalho estranhado, exteriorizado, o trabalhador engendra, portanto, a relação de alguém estranho ao trabalho — do homem situado fora dele — com este trabalho. A relação do trabalhador com o trabalho engendra a relação do capitalista (ou como se queira nomear o senhor do trabalho) com o trabalho. A propriedade privada é, portanto, o produto, o resultado, a consequência necessária do trabalho exteriorizado, da relação externa (äusserlichen) do trabalhador com a natureza e consigo mesmo. (MARX, 2008, p. 87)

Assim, em Marx, com a categoria do trabalho alienado temos acesso a vários aspectos da teoria econômica e social: “A propriedade privada resulta, portanto, por análise, do conceito de trabalho exteriorizado, isto é, de homem exteriorizado, de trabalho estranhado, de vida estranhada, de homem estranhado. “ (MARX, 2008, p. 87) E, ainda: Assim como encontramos, por análise, a partir do conceito de trabalho estranhado, exteriorizado, o conceito de propriedade privada, assim podem, com a ajuda destes dois fatores, ser desenvolvidas todas as categorias nacional-econômicas, e haveremos de reencontrar em cada categoria, como por exemplo do regateio, da concorrência, do capital, do dinheiro, apenas uma expressão determinada e desenvolvida desses primeiros fundamentos. (MARX, 2008, p. 89) 219


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O Agir Humano

O percurso do pensamento de Marx sobre o conceito de alienação nos leva da constituição do homem através do seu trabalho aos principais temas da economia política. Assim Marx dialoga com seu tempo, com os autores que estão na base de sua formação intelectual, mas associa esse pensamento não somente à uma compreensão da sociedade capitalista, ele faz uma crítica à concepção destes pensadores e produz uma condenação desse modo de produção que torna o homem um objeto em meio a outros objetos, em uma mercadoria em meio a outras mercadorias. Neste sentido a alienação representa a denuncia de uma dupla perda: do objeto do trabalho em relação ao trabalhador, e do trabalhador em relação a si mesmo, pela negação da sua possibilidade de constituição e afirmação como resultado e produto do seu próprio trabalho. A alienação em Marx, em oposição a Rousseau, assume uma dimensão crítica e negativa em relação à sociedade.

4. CONSIDERAÇÕES FINAIS. As concepções de Rousseau e Marx sobre alienação assumem aspectos diferenciadas, muito embora não excludentes entre si. Enquanto em Rousseau a alienação representa o momento da formação do povo e, por conseguinte, do Estado, representando, ainda, a garantia de que, por meio da alienação universal, a saber, de todos os contratantes, haveria a garantia do resguardo da liberdade individual, em Marx a alienação é um momento de sua crítica às categorias econômicas tendo em vista explicar o estranhamento do homem em relação ao produto de seu trabalho e em relação à atividade de autoprodução de seu próprio ser individual e social. Se em Rousseau a alienação implica em fundamento para aspectos 220


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O Agir Humano outros de sua teoria como a liberdade e a igualdade, já que pelo artifício da vontade geral, não haveria ninguém superior e, cada um ao obedecer às determinações do todo, estaria na verdade obedecendo a sim mesmo, em Marx a alienação é pressuposto para a economia política em geral, possibilitando explicações dos conceitos de propriedade privada, mais valia, etc. Os autores expressam determinadas diferenças em seus pensamentos. Somente sob o prisma da leitura interpretativa de Olgária Matos é que a teria de Rousseau apresentaria uma dimensão mais economicista, agregando o conceito de alienação em relação à natureza ao conceito de trabalho expropriado: O Homem separado da Natureza aliena-se porque passa a depender das coisas produzidas para viver e julga depender delas e não do trabalho que as produz; por outro lado a divisão entre senhor e servidor aliena o próprio trabalho na medida em que para ter as coisas para viver é preciso depender de outrem, seja daquele que possui a terra (dependência do servidor) seja daquele que realiza o trabalho (dependência do senhor). [...] Rousseau toma a alienação como resultado do movimento da produção e não como interior ao próprio ato produtivo e, incapaz de alcançar a “alienação em ato”, não pode ultrapassar a dimensão das oposições que descrevera. (CHAUÍ apud MATOS, 1978, p. 15)

Tal leitura apresenta a dificuldade de impor ao arsenal teórico do genebrino de categorias que estiveram ausentes na formação e na época de Rousseau. Esta perspectiva analítica encontramos no pensamento de Della Volpe, pensador marxista italiano. Como possível resposta a este tipo de interpretação é significativo pensarmos que os principais autores que influenciaram Marx no âmbito da teoria econômica tornaram-se referência somente após a época de Rousseau. Tais autores falavam, além 221


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O Agir Humano disso, a partir da Inglaterra que começava a apresentar os primeiros aspectos de sua revolução industrial, enquanto a França ainda se encontrava no âmbito de resolver suas antigas fissuras em busca de um novo regime. Entretanto, não pensando que a alienação é um conceito estanque, tanto em Rousseau como em Marx, podemos encontrar determinadas aproximações entre estes pensadores. Em Rousseau encontramos uma perspectiva negativa da alienação, aquela que é encontrada não somente no processo de desnaturação, mas na perspectiva da constituição política, como a que fora defendida por Grotius. A alienação enquanto subserviência e dominação é considerada como negativa para Rousseau e, mesmo a alienação no âmbito da constituição do corpo político é considerada apenas como um mal necessário para manter a equação das obrigações, deveres e direitos. Outrossim, a despeito do papel negativo que a alienação assume no pensamento de Marx, em uma nota dos Manuscritos irromper uma compreensão do trabalho que não se limita à teoria da alienação enquanto estranhamento, dando suporte a um tipo de compreensão da alienação em seu aspecto mais positivo. Suponha-se que tenhamos produzido de uma maneira humana; cada um de nós, em sua produção, teria afirmado duplamente a si mesmo e a seus semelhantes. Eu teria (1) objetivado na minha produção a minha individualidade, com suas peculiaridades e, assim, tanto na minha atividade eu teria conseguido uma expressão individual da minha vida, quanto ao olhar para o objeto eu teria tido o prazer pessoal de perceber que minha personalidade era objetiva, perceptível aos sentidos e, portanto, um poder que se levantava inquestionavelmente. (2) Quando você usasse ou desfrutasse de meu produto, eu teria tido a satisfação direta de perceber que eu não havia satisfeito uma necessidade com o meu trabalho como objetivado a 222


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O Agir Humano essência humana e, portanto, modelado para outro ser humano o objeto que atendia a sua necessidade. (3) Para você eu teria sido o mediador entre você e a espécie, e desse modo, eu teria sido reconhecido, teria sido sentido por você como um complemento de minha própria essência e uma parte necessária de você mesmo, e teria assim percebido que sou confirmado tanto em seu pensamento quanto em seu amor. (4) Na minha expressão da minha vida eu teria modelado a sua expressão de sua vida, concebendo assim, na minha atividade, a minha própria essência, a minha essência humana, comunal. (MARX apud McLELLAN, 1983, p.44)

Na efetivação de um trabalho desmembrado da alienação como simples mercadoria ou enquanto objeto explorado tendo em vista a mais valia encontraríamos a afirmação do homem e da espécie. Se o produto do meu trabalho é alienado em benefício de um outro especificamente e, mais genericamente, da comunidade, assim encontraria o produto de meu trabalho, ao final do processo, o reconhecimento e a afirmação do meu eu, o contrário do que se dá no sistema capitalista. Ao invés de um objeto hostil, um objeto que me insere na espécie e me torna pessoa, alguém, humano. Neste sentido a alienação, ou melhor, a superação desta pela emancipação humana das formas alienadas de produção se constituiria como um momento da construção da liberdade. A alienação pode, pois, ser vista de várias maneiras, tanto de forma positiva e afirmativa na constituição, quanto negativa e depreciativa. Ambas as formas podem assumir tais configuração na constituição do ser do homem e do ser social. Importa considerar que em ambos os casos, o que torna a alienação um tema importante para os dois autores é sua associação ao tema da liberdade. Importa que o indivíduo, na constituição do ser social seja livre. Em Rousseau a garantia deste processo se dá pela 223


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O Agir Humano alienação de todos. Por outro lado, importa que o que eu produzo, que é uma forma de alienação primeira e inerente ao processo produtivo, seja constitutivo do meu ser e do ser social, momentos da promoção da objetivação enquanto processo de humanização, momento de expressão da criatividade, momento de afirmação da liberdade. Tanto em Rousseau como em Marx a negatividade se dá pela usurpação e pela dominação de outrem sobre o nosso ser e sobre o fruto do nosso trabalho. Ao negar a dominação e ao afirmar a liberdade, tanto Rousseau como Marx estão ligados por um mesmo projeto. Há que se considerar, também, a centralidade desse conceito na obra dos dois autores, servindo de pano de fundo para a consolidação de suas teorias. Assim, da caracterização do êxtase místico ao processo de objetificação da consciência, a alienação passa a ser a peça chave para a compreensão do homem e da sociedade. Devemos essa prioridade e capilaridade do conceito de alienação aos trabalhos de Rousseau e Marx.

REFERÊNCIAS DELLA VOLPE, Galvano. Rousseau e Marx: a liberdade igualitária. Lisboa: Edições 70, s.d. KONDER, Leandro. Marxismo e alienação. 2ª edição, São Paulo : Editora Expressão Popular, 2009. MARX, Karl. Manuscritos econômicos e filosóficos. Tradução Jesus Ranieri. São Paulo: Bomtempo Editorial, 2008. MATOS, Olgária C. F. Rousseau – Uma arqueologia da desigualdade. São Paulo: MG Editores Associados, 1978. MCLELLAN, David. As idéias de Marx. São Paulo : Cultrix, 1984. MESZÁROS, Istvan. A teoria da alienação em Marx. São Paulo: Boitempo, 2009

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O Agir Humano

ROUSSEAU, Jean Jacques. Contrato social. Rio de Janeiro: Editora Globo, 1962. VASQUEZ, Adolfo Sanchez. Filosofia da práxis. 2ª edição, São Paulo: Editora Expressão Popular, 2009.

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9 NOTAS SOBRE O TEMPO LIVRE EM THEODOR W. ADORNO Jean Henrique Costa 1 Marcela Amália Pereira Cabrita 2 Tássio Ricelly Pinto de Farias3 “Todos têm que se dedicar a algo o tempo todo. O tempo livre exige ser gasto até o fim. Ele é planejado como empreendimento, preenchido com vistas a todos os eventos possíveis ou pelo menos com deslocamentos em velocidade máxima”. Theodor W. Adorno (2008, p. 134-135) Minima Moralia (aforismo 91).

Este ensaio objetivou aproveitar algumas reflexões presentes em Theodor W. Adorno para se pensar o lazer e o consumo do tempo livre nas sociedades contemporâneas. Fundamentalmente a partir das discussões acerca da semiformação (Halbbildung), da indústria cultural (Kulturindustrie) e do tempo livre (Freizeit), entendese o lazer como um fenômeno indissociável do espírito de nosso tempo, marcado, segundo Adorno, pela heteronomia cultural, pela transformação do homem em estatuto de coisa e pela ideologia Doutor em Ciências Sociais. Professor do Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais e Humanas da Universidade do Estado do Rio Grande do Norte. (E-mail: jeanhenrique@uern.br). 2 Bacharel em Turismo pela Universidade do Estado do Rio Grande do Norte (UERN). (E-mail: marcela-amalia@hotmail.com). 3 Graduado em Filosofia pela Universidade do Estado do Rio Grande do Norte e Mestrando do Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais e Humanas da Universidade do Estado do Rio Grande do Norte. (E-mail: tassioricelly@gmail.com). 1


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O Agir Humano como propaganda do mundo. Deste modo, não há como se pensar lazer e tempo livre longe das relações sociais concretas, históricas e, portanto, sujeitas aos imperativos da integração social. Nesse sentido, este estudo vem apresentar – ou (re)apresentar – a obra de Theodor W. Adorno para os chamados estudos do lazer e do tempo livre, campo interdisciplinar em que o autor ainda não é tão lido, sobretudo no Brasil. Autor de uma obra de difícil compreensão, Adorno necessita ainda de maiores reflexões acerca de suas ideias 4. Logo, esta breve reflexão vem tentar preencher uma lacuna existente, na medida em que traz as ideias de Adorno para um campo do conhecimento ainda marcado por uma visão muito instrumental do fenômeno do lazer. Assim, seguindo o pensamento crítico adorniano, é necessário que o lazer seja pensado para além do simples fato do entretenimento, ou ainda, da funcional reposição das energias vitais para o trabalho. O texto estrutural de apoio deste ensaio é Tempo Livre, “um texto que surgiu de uma conferência transmitida pela ‘Rádio Alemanha’ em 1969 – ano da morte de Adorno –, que tem por objetivo tratar da questão do ‘tempo livre’” (NASCIMENTO; MARCELLINO, 2010, p. 03). Este texto foi publicado no Brasil originalmente em Palavras e Sinais, de 1995, tradução brasileira de Stichworte: kritische modelle 2 (Frankfurt am Main, Suhrkamp). Em apreciação a obra de Adorno, Cohn (1994, p. 07) nos alerta para o fato que “Adorno é tido como autor de leitura particularmente difícil”. Segundo afirma, “quem gosta de tudo pronto e arrumado, não deve ler Adorno. Essa leitura é para quem está disposto a uma experiência instigante, às vezes exasperante, mas sempre fecunda” (COHN, 1994, p. 22). Terry Eagleton assim reforça tal assertiva: “[...] cada frase de seus textos é, por assim dizer, obrigada a trabalhar em excesso; cada sentença deve tornar-se uma obra-prima ou um milagre da dialética, fixando um pensamento um segundo antes que ele desapareça em suas próprias contradições [...] Todos os filósofos marxistas devem ser pensadores dialéticos, mas com Adorno pode-se sentir o esforço e a dificuldade desse estilo vivo em cada frase, numa linguagem construída contra o silencio, na qual tão logo o leitor percebe a unilateralidade de um argumento, o seu oposto é imediatamente proposto” (EAGLETON, 1993, p. 247-248). 4

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O Agir Humano Iniciando o debate, entende-se como tempo livre todo e qualquer tempo que se passa longe do trabalho ou das distintas obrigações cotidianas. Diferentemente do sentido comum de ócio, que expressaria algo mais contemplativo, o tempo livre está atrelado e anda lado a lado com o trabalho. Mas até que ponto se tem realmente um tempo livre? O que poderia ser esse tempo livre? Que tipo de “diversão” caberia nele? Essas e outras questões são levantadas quando pensamos mais profundamente o que é o tempo livre vigente sob relações capitalistas. Adorno (2002, p. 103) abre o problema do tempo “livre” com uma máxima presente em todo o ensaio: “o tempo livre é acorrentado ao seu oposto”. Assim, para ele, o tempo livre depende fundamentalmente das relações concretas que esse mantém com a sociedade. Por conseguinte, não há como se dissociar as práticas do tempo livre do modo de produção vigente. Tal dissociação traz, em si, metodologicamente um viés ideológico. O mesmo sangue que corre no lazer corre também no trabalho. Logo, em Adorno (2002, p. 103), “o tempo livre dependerá da situação geral da sociedade. Mas esta, agora como antes, mantém as pessoas sob um fascínio. Nem em seu trabalho, nem em sua consciência dispõem de si mesmas com real liberdade”. Assim, para ele, “numa época de integração social sem precedentes, fica difícil estabelecer, de forma geral, o que resta nas pessoas, além do determinado pelas funções” (ADORNO, 2002, p. 104). O problema da integração (tema que permeia toda discussão acerca da indústria cultural, da ideologia e da semiformação em Adorno) é central para entender o prolongamento da não liberdade do tempo livre. Aliás, para Adorno, o termo livre só funciona como paródia. Não há liberdade efetiva, real, concreta. Entenda-se por liberdade como paródia apenas a liberdade de se integrar numa ordem que não liberta das amarras vigentes. Como já estava posto

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O Agir Humano na Dialética do Esclarecimento em 1947: a máquina gira sem sair do lugar. Nesse ínterim, a semiformação se torna o grande maestro da integração. A formação cultural agora se converte em uma semiformação socializada, na onipresença do espírito alienado, que, segundo sua gênese e seu sentido, não antecede à formação cultural, mas a sucede. Deste modo, tudo fica aprisionado nas malhas da socialização (ADORNO, 1996, p. 388-411).

Zuin (2001, p. 10) reforça este entendimento: Compreende-se o conceito semiformação justamente pela tentativa de oferecimento de uma formação educacional que se faz passar pela verdadeira condição de emancipação dos indivíduos quando, na realidade, contribui decisivamente tanto para a reprodução da miséria espiritual como para a manutenção da barbárie social. E o contexto social no qual a barbárie é continuamente reiterada é o da indústria cultural hegemônica.

Vê-se, pois, que com o avanço da semiformação e da indústria cultural a organização do tempo livre passa cada vez mais a depender de critérios objetivos do que da autonomia do indivíduo. A heteronomia, expressão kantiana, vira uma regra. Um exemplo é a ideologia do hobby ditada pela indústria cultural, que nada mais é do que exercer alguma atividade durante o tempo livre. Exemplos “dessas atividades apontadas por Adorno eram os hobbies, ocupações que serviam apenas para matar o tempo e que todas as pessoas deveriam ter, fossem eles significativos ou não para elas” (FERNANDES, 2010, p. 34). Percebe-se, com isso, que até as atitudes mais simples tendem a passar pelo mercado. Tudo é 230


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O Agir Humano pensado e colocado de forma que permita que a vida social se torne mais planejada, principalmente com a expansão das chamadas atividades do tempo livre (indústria do entretenimento), oportunizadas pela redução legal da jornada de trabalho. O tédio passa a ser, então, uma enfermidade marcante nas sociedades administradas. De fato, o chamado tempo livre do trabalho, o que chamaremos aqui de tempo liberado do trabalho, aumentou. “Já agora, o tempo livre aumentou sobremaneira; graças às invenções, ainda não totalmente utilizadas — em termos econômicos — nos campos da energia atômica e da automação, poderá aumentar cada vez mais” (ADORNO, 2002, p. 104). Contudo, [...] Se se quisesse responder à questão sem asserções ideológicas, tornar-se-ia imperiosa a suspeita de que o tempo livre tende em direção contrária à de seu próprio conceito, tornando-se paródia; deste. Nele se prolonga a não-liberdade, tão desconhecida da maioria das pessoas não-livres como a sua não-liberdade, em si mesma (ADORNO, 2002, p. 104).

Assim, para Adorno o tempo livre tanto não pode ser pensado dissociado do tempo das obrigações, bem como, das possibilidades efetivas de dominação. A extensa citação abaixo, fruto de um depoimento biográfico do autor, ilustra o argumento: Eu não tenho qualquer hobby. Não que eu seja uma besta de trabalho que não sabe fazer consigo nada além de esforçar-se e fazer aquilo que deve fazer. Mas aquilo com o que me ocupo fora da minha profissão oficial é, para mim, sem exceção, tão sério que me sentiria chocado com a ideia de que se tratasse de hobbies, portanto ocupações nas quais me jogaria absurdamente só para matar o tempo, se minha experiência contra todo tipo de manifestações de barbárie — que se tomaram como que 231


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O Agir Humano coisas naturais — não me tivesse endurecido. Compor música, escutar música, ler concentradamente, são momentos integrais da minha existência, a palavra hobby seria escárnio em relação a elas. Inversamente, meu trabalho, a produção filosófica e sociológica e o ensino na universidade, têm-me sido tão gratos até o momento que não conseguiria considerá-los como opostos ao tempo livre, como a habitualmente cortante divisão requer das pessoas. Sem dúvida, estou consciente de que estou falando como privilegiado, com a cota de casualidade e de culpa que isto comporta; como alguém que teve a rara chance de escolher e organizar seu trabalho essencialmente segundo as próprias intenções. Esse aspecto conta, não em último lugar, para o fato de que aquilo que faço fora do horário de trabalho não se encontre em estrita oposição em relação a este. Caso um dia o tempo livre se transformasse efetivamente naquela situação em que aquilo que antes fora privilégio agora se tornasse benefício de todos — e algo disso alcançou a sociedade burguesa, em comparação com a feudal —, eu imaginaria este tempo livre segundo o modelo que observei em mim mesmo, embora esse modelo, em circunstâncias diferentes, ficasse, por sua vez, modificado (ADORNO, 2002, p. 105-106).

Deste modo, quando se considera o trabalho uma coisa significativa, prazerosa e gratificante, para Adorno, não se consegue considerá-lo oposto ao tempo livre. Por isso não há porque denominar o que se faz no não-trabalho de hobby. A imensa vontade de ocupar o tempo livre com algo que não lembre o trabalho, com coisas que escapem a ele, é prova de que não se consegue esquecêlo. Assim, fica claro que, lá onde mais nos escondemos do trabalho, onde mais tentamos nos refugiar dele, no tempo livre, ele está presente como que “por baixo do pano” (ADORNO, 2002, p. 107). Uma outra forma de percepção do problema é simplesmente reparar como organizamos o nosso fim de semana em função do nosso trabalho. Tudo é projetado como forma de 232


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O Agir Humano negar o trabalho, mas acaba sendo uma extensão dele. Bebe-se no sábado a noite toda (já que não se trabalha no domingo); no domingo, bebe-se somente até às dezesseis horas; depois disso, deve-se descansar, pois logo será segunda-feira e toda rotina de trabalho será retomada. Sem esquecer que o próprio ato de beber quer dizer “esquecer o trabalho”, ou então, sentir-se “livre”, porém, à todo momento pensando em retomá-lo. Por isso diz Adorno (2002, p. 103): “Nem em seu trabalho, nem em sua consciência dispõem de si mesmas com real liberdade.”, pois a separação entre sujeito e trabalho é impossível já que, no modo de produção capitalista, “não se pode traçar uma divisão [...] entre as pessoas em si e seus assim chamados papéis sociais” (ADORNO, 2002, p. 103104). Para não deixarmos de mencionar formas de lazer destacadas por Adorno (2002, p. 106) como “fenômenos específicos do tempo livre”, apontamos aqui o turismo e o camping, que “são acionados e organizados em função do lucro”. Destarte, sob as relações capitalistas, no tempo livre se prolongam formas de vida social organizadas segundo o regime do lucro. A indústria cultural cuida de manter a administração da cultura. A indústria cultural é a ferramenta indispensável para a manutenção e perpetuação do mundo administrado (verwalteten Welt), pois como aponta Ramos (2004, p. 61), a “interiorização das necessidades socialmente geradas e a administração monopolizada de suas satisfações podem significar, através da dominação material dos indivíduos, o controle dos corpos e, por decorrência, das mentes”. Dessa forma, o que muitos chamam de manifestação da cultura popular, entendemos ser muito mais uma cultura industrializada, produzida como forma de perpetuar a dominação dos indivíduos no capitalismo, mas não como forma de se opor a ele. Mas o que vemos, ab initio, é que o tempo livre tornou-se planejado e abertamente uma mercadoria. Um bem que além de ser 233


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O Agir Humano algo imposto é também excessivamente cobrado pelos próprios sujeitos. Não ter lazer e não consumir no lazer significa estar fora de toda uma rede de signos e significados no capitalismo. Ninguém quer ficar de fora! “O tempo livre segue como reflexo do ritmo de produção imposto heteronomamente ao sujeito, que forçosamente é mantido também nas fatigadas pausas” (ADORNO, 2008, p. 171). O tempo livre tornou-se, então, um negócio altamente rentável que é oferecido e quase forçado a ser consumido da mesma maneira para toda a sociedade, como Adorno deixa claro na expressão negócios do tempo livre (Frei-zeitgeschiffl). A indústria cultural se torna, pois, o maestro desta semiformação. “A indústria cultural seria a capacidade de produzir o produto e ao mesmo tempo criar sua necessidade de uso, ou seja, a indústria cultural seria um conceito e também um processo” (MEZZAROBA, 2009, p. 03). Para Adorno (2008, p. 104), “cada enunciado, cada notícia, cada ideia está formada de antemão pelos centros da indústria cultural”. A indústria cultural é responsável por perpetuar a nossa condição de vida irrefletida (o que Adorno chamou de vida danificada beschädigten Leben), na medida em que nos incentiva a consumir e nos distancia da reflexão acerca do trabalho necessário para bancar o consumo. Conforme Adorno e Horkheimer (1985, p. 112-114): [...] a indústria cultural permanece a indústria da diversão. Seu controle sobre os indivíduos é mediado pela diversão [...]. A verdade em tudo isso é que o poder da indústria cultural provém de sua identificação com a necessidade produzida, não da simples oposição a ela [...]. A diversão é o prolongamento do trabalho sob o capitalismo tardio. Ela é procurada por quem quer escapar ao processo de trabalho mecanizado, para se pôr de novo em condições de enfrentá-lo. [...] O espectador não deve ter necessidade de nenhum pensamento próprio, o produto prescreve toda reação: não por sua estrutura temática – que 234


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O Agir Humano desmorona na medida em que exige o pensamento –, mas através de sinais. Toda ligação lógica que pressuponha um esforço intelectual é escrupulosamente evitada. [...] o pensamento é ele próprio massacrado e despedaçado.

A passagem acima se refere à coesão do modo de produção capitalista (sua imensa capacidade de integração), a forma como ele aos poucos se torna cada vez mais fortalecido à medida que cria em nós a necessidade que ele mesmo virá suprir. Assim, a íntima relação entre indústria cultural e tempo livre se evidencia no fato de justamente no tempo de não-trabalho (livre) pararmos para consumir os produtos da indústria cultural que, transvestidos em produtos culturais, nos oferecem a fuga do trabalho, sendo uma forma de descansar dele para, inconscientemente, retornarmos a ele dispostos a produzir mais. E mesmo quando não estamos consumindo nada, ocupamos nosso tempo com coisas que prolongam a nossa condição de sujeitos coisificados, com práticas que nada acrescentam à nossa reflexão diante da vida e do mundo. A reflexão mais densa de Adorno é pensar, pois, os riscos estruturais da dominação a partir de elementos banais do cotidiano. Logo, o que se faz fora do trabalho repercute estruturalmente no trabalho. No tempo supostamente livre não esquecemos a lógica do trabalho. Aceita-se e se nega contraditoriamente o trabalho e suas dimensões. Aqui nos deparamos com um esquema de conduta do caráter burguês. Por um lado, deve-se estar concentrado no trabalho, não se distrair, não cometer disparates; sobre essa base repousou outrora o trabalho assalariado, e suas normas foram interiorizadas. Por outro lado, deve o tempo livre, provavelmente para que depois se possa trabalhar melhor, não lembrar em nada o trabalho. Esta é a razão da imbecilidade de muitas ocupações do tempo livre (ADORNO, 2002, p. 106-107). 235


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O Agir Humano Para Adorno e Horkheimer (1985), o lazer é apenas uma fase projetada do próprio trabalho, pois à medida que os indivíduos não aproveitam o descanso para refletirem sobre suas condições de existência, permanecem alienados ao próprio sistema, e, substancialmente, aproveitam os dias de folga para mergulharem nos devaneios do consumo. Tudo é projetado de forma tal que os homens não se detenham na reflexão acerca do estado de suas vidas e condições de trabalho. Com isso surge a configuração de que eles são programados para trabalhar e consumir. O próprio ócio vai se tornando apenas um consumo, pois neste momento a publicidade invade os lares através da TV, do filme, da música produzida para o mercado e de diversas outras mercadorias. [...] os indivíduos, na necessidade de momentos de lazer e fuga do trabalho, submetem-se aos produtos da indústria cultural que, por sua vez, prometendo essa fuga do trabalho, oferecem sempre atrações que reproduzem o cotidiano do trabalho como se fosse novidade (FERNANDES, 2010, p. 28).

No tempo livre, o qual se acostumou chamar de lazer por oposição ao tempo de trabalho (não-livre), “são introduzidas [...] formas de comportamento próprias do trabalho” (ADORNO, 2002, p. 107). Para ilustrar exemplificamos com o turismo feito por um motorista profissional, que dirige quarenta horas semanais e ao chegar ao fim de semana se obriga a pegar a estrada em direção à praia e dirigir novamente uma ou duas horas, para dizer na segundafeira aos seus colegas: “fui à praia no fim de semana”, sem ao menos refletir que fez no seu tempo livre aquilo que já havia feito em toda a sua semana de trabalho. O mesmo acontece com um trabalhador da construção civil que passa o dia inteiro realizando movimentos com tijolos, telhas, etc., e que a noite se dirige à academia para malhar e repetir os movimentos realizados o dia 236


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O Agir Humano todo. Portanto, observa-se que existe tanta imposição para o tempo livre que nos tornamos reféns dele. O tempo livre passou a ser uma obrigação que a sociedade tem com ela mesma e não um momento “livre” no qual se possa exercer atividades de livre escolha. Entrementes, o ideal seria que todos os indivíduos tivessem algo construtivo para fazer no seu tempo livre. Mas não é isso que ocorre. De uma forma geral, ocorre o contrário: vemos uma falta de liberdade de poder fazer o que se gosta e o que se quer. A heteronomia é dominante, seja pelas condições educacionais, seja pelas condições materiais de existência. “Para Adorno, as pessoas só se adaptavam ao sistema capitalista desenvolvendo papéis que lhes eram impostos pela sociedade, ou seja, não faziam o que gostavam, mas o que lhes cabia fazer” (FERNANDES, 2010, p. 33). Assim, os indivíduos, de individualidade debilitada, não possuem liberdade, nem dentro, nem fora do trabalho. Segundo Adorno, a separação entre as esferas da produção e da nãoprodução está na consciência. [...] a distinção entre trabalho e tempo livre foi incutida como norma a consciência e inconsciência das pessoas. Como, segundo a moral do trabalho vigente, o tempo em que se está livre do trabalho tem por função restaurar a força de trabalho, o tempo livre do trabalho — precisamente porque é um mero apêndice do trabalho — vem a ser separado deste com zelo puritano (ADORNO, 2002, p. 106).

“Essa rígida divisão da vida em duas metades enaltece a coisificação que entrementes subjugou quase completamente o tempo livre” (ADORNO, 2002, p. 107). Para Adorno a liberdade vigente hoje é organizada, logo, torna-se coercitiva. A representação do mundo como mundo administrado nada tem de apocalíptica. A ideologia do hobby já citada é exemplo disso. Todos buscam se 237


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O Agir Humano enquadrar na moda dos lazeres contemporâneos. A lista é enorme: artes marciais (o chamado mixed martial arts hoje é prova disso), esportes radicais, viagens, etc. Adorno (2002, p. 107) mostra que, se um indivíduo não possui um hobby, “se não tens ocupação para o tempo livre então tu és um pretensioso ou antiquado, um bicho raro, e cais em ridículo perante a sociedade, a qual te impinge o que deve ser o teu tempo livre”. Importa destacar que é essa necessidade de liberdade das pessoas que gera esse comércio do tempo livre. É a partir do momento em que se deseja algo que a indústria cultural comanda o tempo livre dos indivíduos. Podemos perceber essa dominação simbólica em outro exemplo que Adorno cita: quando um indivíduo sai de férias é esperado dele não só que aproveite, mas principalmente que volte com algo que indique que o mesmo estava realmente de férias. Pensando nisso é citado o exemplo do bronzeado, algo característico de quem está de férias. Além disso, o bronzeado deixou de ser apenas um sinal de saúde e vida ao ar livre para ser também comercializado. “Mais do que servir para auxílio de um determinado flerte, a obrigatoriedade da tez bronzeada concerne ao necessário reconhecimento dos outros de que o indivíduo conseguiu se desvencilhar por algum tempo do trabalho, afirmando a sua pretensa liberdade” (ZUIN, 2001, p. 14). Nesse meio tempo, a sutileza metodológica de Adorno (2002, p. 108) se apresenta no modelo de análise da dominação: “a integração do tempo livre é alcançada sem maiores dificuldades; as pessoas não percebem o quanto não são livres lá onde mais livres se sentem, porque a regra de tal ausência de liberdade foi abstraída delas”. O grande resultado disso é o estado de letargia no qual vivem os indivíduos. O tédio se torna a materialização e prova deste estado. Para Adorno (2002, p. 110),

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O Agir Humano O tédio existe em função da vida sob a coação do trabalho e sob a rigorosa divisão do trabalho. Não teria que existir. Sempre que a conduta no tempo livre é verdadeiramente autônoma, determinada pelas próprias pessoas enquanto seres livres, é difícil que se instale o tédio; tampouco ali onde elas perseguem seu anseio de felicidade, ou onde sua atividade no tempo livre é racional em si mesma, como algo em si pleno de sentido [...] Se as pessoas pudessem decidir sobre si mesmas e sobre suas vidas, se não estivessem encerradas no sempre-igual, então não se entediariam. Tédio é o reflexo do cinza objetivo.

Este cinza objetivo se materializa na perda da criatividade (e, com ela, a redução das possibilidades concretas de fuga do sempreigual). A falta de criatividade (leia-se fantasia) torna as pessoas desamparadas no consumo do tempo livre. A pergunta descarada sobre o que o povo fará com todo o tempo livre de que hoje dispõe — como se este fosse uma esmola e não um direito humano — baseia-se nisso. Que efetivamente as pessoas só consigam fazer tão pouco de seu tempo livre se deve a que, de antemão, já lhes foi amputado o que poderia tornar prazeroso o tempo livre. [...] Sob as condições vigentes, seria inoportuno e insensato esperar ou exigir das pessoas que realizem algo produtivo em seu tempo livre, uma vez que se destruiu nelas justamente a produtividade, a capacidade criativa. Aquilo que produzem no tempo livre, na melhor das hipóteses, nem é muito melhor que o ominoso hobby (ADORNO, 2002, p. 111).

Para Adorno, tempo livre produtivo, ou seja, aquele distante da heteronomia, somente pode ser possível para pessoas emancipadas. O que resta para a grande massa que vive sob o escudo da heteronomia é a pseudoatividade, intitulada por Adorno (2002, p. 113) como “ficções e paródias daquela produtividade que a 239


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O Agir Humano sociedade, por um lado, reclama incessantemente e, por outro lado, refreia e não quer muito nos indivíduos”. Assim, retomando o início do texto, o tempo livre não está em oposição somente ao trabalho, mas o segue diretamente como sua sombra. Esta pseudoatividade enquadra os indivíduos numa auréola da livre escolha quando, de fato, tudo já está escolhido previamente. Os filmes, músicas, jogos. etc. divergem apenas na aparência da livre concorrência. Em essência, contêm o mesmo objetivo da indústria cultural: a manutenção da condição estrutural de dominação dos indivíduos, dentro e fora do trabalho. Mas em que este texto Tempo Livre avança na teoria crítica (Kritische Theorie) adorniana? Que Adorno podemos encontrar nele? Primeiramente, trata-se de um Adorno que mantém fortemente o tom crítico e sempre fiel ao espírito da Teoria Crítica, sem se deixar encantar pelos encantos da diversidade cultural, tampouco pelas teorias conciliatórias da relação indivíduo-sociedade. Segundo, e esta é a grande inferência, neste texto vemos um Adorno refinando sua teoria, ao apontar possibilidades de questionamento do poder de sedução da indústria cultural. Ao realizar um estudo, no Instituto de Pesquisas Sociais de Frankfurt, percebe que nem tudo que é emitido pela indústria cultural pode ter eficácia efetiva. O estudo era relativo ao casamento da princesa Beatriz, da Holanda, com o jovem diplomata alemão Claus Von Amsberg. Deveríamos verificar como o povo alemão reagia a este casamento, o qual, difundido por todos os meios de comunicação de massas e minuciosamente descrito pelas revistas ilustradas, era consumido durante o tempo livre. Dado o modo de apresentação e a quantidade de artigos que foram escritos sobre o acontecimento, atribuindo-lhe importância extraordinária, esperávamos que também os telespectadores e os leitores o considerariam igualmente importante. Acreditávamos, em especial, que operaria a hoje típica ideologia da 240


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O Agir Humano personalização, que consiste em atribuir-se importância desmedida a pessoas individuais e a relações privadas contra o efetivamente determinante, desde o ponto de vista social, evidentemente como compensação da funcionalização da realidade (ADORNO, 2002, p. 115).

Diante desta constatação, de base empírica vale destacar, Adorno apresenta os limites do poder da indústria cultural e, estruturalmente, abre caminho para se pensar resistências diversas na produção e no consumo do tempo livre. Com o estudo Adorno percebeu que uma parte da audiência se portou de modo bem realista em relação ao acontecimento e avaliou com sentido crítico os fatos narrados. Assim, há na obra adorniana possibilidades de resistência mesmo no consumo dos veículos de comunicação de massa. A passagem abaixo é sinóptica desta condição: Em conseqüência, se minha conclusão não é muito apressada, as pessoas aceitam e consomem o que a indústria cultural lhes oferece para o tempo livre, mas com um tipo de reserva, de forma semelhante à maneira como mesmo os mais ingênuos não consideram reais os episódios oferecidos pelo teatro e pelo cinema. Talvez mais ainda: não se acredita inteiramente neles. É evidente que ainda não se alcançou inteiramente a integração da consciência e do tempo livre. Os interesses reais do indivíduo ainda são suficientemente fortes para, dentro de certos limites, resistir à apreensão [Erfassung] total. Isto coincidiria com o prognóstico social, segundo o qual, uma sociedade, cujas contradições fundamentais permanecem inalteradas, também não poderia ser totalmente integrada pela consciência. A coisa não funciona assim tão sem dificuldades, e menos no tempo livre, que, sem dúvida, envolve as pessoas, mas, segundo seu próprio conceito, não pode envolvê-las completamente sem que isso fosse demasiado para elas (ADORNO, 2002, p. 116-117).

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O Agir Humano Portanto, na parte final do ensaio Tempo Livre, apresenta-se o grande trunfo de esperança na obra adorniana: “Renuncio a esboçar as conseqüências disso; penso, porém, que se vislumbra aí uma chance de emancipação que poderia, enfim, contribuir algum dia com a sua parte para que o tempo livre [Freizeit] se transforme em liberdade [Freiheit]”. (ADORNO, 2002, p. 117) Assim, não há concordância com grande parte da literatura hoje produzida sobre a indústria cultural que enxerga o pensamento adorniano permeado por um pessimismo totalizador. A crítica desse autor não se encerra totalmente nesse tal pessimismo à medida que deságua na possibilidade – utópica – do tempo livre se tornar “tempo livre produtivo”. No entanto, conforme o próprio Adorno (2002, p. 113), “tempo livre produtivo só seria possível para pessoas emancipadas [...]”, daí a importância da educação, pois ela seria a única capaz de promover tal emancipação. Esse processo de emancipação se daria inicialmente pela via da negatividade, ou seja, deveria “simplesmente começar despertando a consciência quanto a que os homens são enganados de modo permanente” (ADORNO, 1995, p. 183), ou seja, esse processo deveria ser iniciado a partir da tomada de consciência dos meios pelos quais o capitalismo, através da indústria cultural, tem administrado o mundo. O mesmo Adorno que afirma em 1947, na Dialética do Esclarecimento, que nunca se chegou a uma verdadeira individualização, afirma também em 1969, em Tempo Livre, que “os interesses reais do indivíduo ainda são suficientemente fortes para, dentro de certos limites, resistir à apreensão [Erfassung]” (2002 p. 116), e o primeiro passo para essa resistência, para o exercício mínimo da liberdade, seria dado por aquelas pessoas que “interessadas nesta direção orientem toda a sua energia para que a educação seja uma educação para a contradição e para a resistência” (ADORNO, 1995, p. 183).

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O Agir Humano Portanto, apesar de não negar a alienação das massas, Adorno entendeu que ela parece muito mais uma alienação “consentida”, e como disse o mesmo, “as pessoas aceitam e consomem o que a indústria cultural lhes oferece para o tempo livre, mas com um tipo de reserva” (ADORNO, 2002, p. 116). Interpretamos aqui essa “reserva” como um resquício de consciência. É como se a consciência crítica ainda não tivesse sido completamente dissolvida. Tanto em Tempo Livre como em Educação e Emancipação Adorno expressa alguma fé na recuperação da autonomia por parte das massas. Ou seja, “embora originalmente pessimista, a tendência, no decorrer da obra de Adorno, é o caminho para o otimismo diante das possibilidades ‘utópicas’ do ‘tempo livre’” (FERNANDES, 2010, p. 47). No entanto, não sob as condições vividas na Europa até o final da Segunda Guerra Mundial. Primeiro, por causa dos regimes totalitários e autoritários; segundo, porque lá onde o homem se afirmou mais esclarecido, na Alemanha dos grandes filósofos, aconteceu também o holocausto, o que para Adorno foi a maior prova de que a racionalidade técnica havia destruído o sonho da razão emancipatória; por fim, por ter sido a indústria cultural utilizada para todas essas mazelas sociais, desde o culto à imagem do führer até a exaltação do orgulho alemão através dos filmes de Joseph Goebbels, ministro da propaganda do Terceiro Reich. A imaginação havia sido obliterada, e junto a ela, toda capacidade criativa. “Adorno defende que o tempo livre deveria ser aquele que o indivíduo tem por benefício, e não por privilégio, para decidir, escolher e organizar segundo suas próprias vontades” (FERNANDES, 2010, p. 37). E como Adorno já havia dito, a indústria cultural anda de mãos dadas com o tempo livre, pois é ela quem dita às regras do que deverá ser consumido, colocando no mercado o que se quer e deixando a sociedade estruturalmente sem escolha efetiva (real). 243


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O Agir Humano Contudo, é justamente no meio desse turbilhão de acontecimentos que vemos que nem tudo é aceito ou pelo menos não totalmente aceito. O texto de Adorno foi publicado em 1969. Embora tenham se passado 45 anos da publicação do texto de Adorno sobre o lazer, datado de 1969, e o contexto histórico seja completamente diferente, o texto é incrivelmente atual. A reflexão de Caniato a seguir corrobora o argumento: Certamente, as intervenções embebidas em teorizações que negligenciam na identificação e análise dos determinantes disruptivos de natureza social na estruturação das subjetividades [...] vem ratificando o agravamento das condições concretas do viver humano sem sequer ser identificada a exigência de integridade psicossocial para que os homens exerçam sua condição de sujeitos históricos e efetivem as mudanças nas instituições culturais e na ordenação social que viabilizem a preservação da vida humana [...]. Isto porque na contemporaneidade, não há dúvidas de que o capital é o grande Senhor da sociedade [...] (CANIATO, 2003, p. 67).

Estruturalmente os indivíduos vivenciam diversas imposições. Sejam elas na própria família, no trabalho, na escola, religião, distintas ideologias, etc. Não importa o grupo social, todos vivenciam estas imposições. Como cada indivíduo lida com tais imposições é que faz a diferença. “Em todos os seus ramos fazemse, mais ou menos segundo um plano, produtos adaptados ao consumo das massas e que em grande medida determinam esse consumo” (ADORNO, 1971, p. 287). Deste modo, não há como pensar o lazer sem refletir acerca de toda estrutura educacional hegemônica. O lazer é reflexo, pois, diretamente da educação vigente no espírito de nosso tempo, marcado por ideais de 244


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O Agir Humano competitividade, individualismo e pragmatismo. Também não há como pensar o lazer sem pensar nos tempos sociais em que está inserido, dentro e fora do mundo das obrigações. O mesmo ocorre com a indústria cultural: o cerco sistêmico, a capacidade crescente de prescrição de desejos e o consumo como dominação do sujeito impactam diretamente na relação do indivíduo com o lúdico, o ócio... Assim, num contexto de educação para o status quo, de existência de um “tempo livre” que não liberta e que aprisiona no consumo (e em mais trabalho), além de todo avanço sistêmico da indústria cultural, o lazer deixa de ser, muito provavelmente, um momento lúdico-criativo para se tornar tempo e ação de mais ideologia, de mais consumismo, de mais práticas nãoemancipatórias do indivíduo (mais conformismo). O lazer deve educar, nele e para além dele. Contudo, todos os limites apontados por Adorno mostram que o consumo do tempo livre tinha se tornado cada vez mais a produção de mais dominação. Mesmo assim, Embora originalmente pessimista, a tendência, no decorrer da obra de Adorno, é o caminho para o otimismo diante das possibilidades “utópicas” do “tempo livre”. [...] Assim, suas contribuições são fundamentais para entendermos o lazer mercadoria (simples atividades colocadas no mercado de consumo, que não obedecem a outro critério senão o do lucro financeiro imediato) (FERNANDES, 2010, p. 47).

Logo, fecha-se (ou se abre, depende da perspectiva) este ensaio com a confiança de que a teoria crítica adorniana contribui decisivamente para evitar uma elaboração conceitual instrumental do lazer como mera recreação. Trata-se, pois, de um rico referencial teórico crítico e disposto a denunciar as armadilhas do status quo, dentro e fora do tempo livre. 245


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O Agir Humano REFERÊNCIAS ADORNO, Theodor. Tempo livre. In: ______. Indústria cultural e sociedade. São Paulo: Paz e Terra, 2002. ______. Minima Moralia: reflexões a partir da vida lesada. Trad. Gabriel Cohn. Rio de Janeiro: Beco do Azougue, 2008. ______. Educação e emancipação. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1995. ______.Teoria da semicultura. Tradução de Newton Ramos-deOliveira, Bruno Pucci e Cláudia B. M. de Abreu. A revisão definitiva, feita pelo mesmo grupo, contou também com a colaboração de Paula Ramos de Oliveira. Publicado na Revista “Educação e Sociedade”, n. 56, ano XVII, dezembro de 1996, p. 388-411. ______. A indústria cultural. In: COHN, Gabriel. Comunicação e indústria cultural. São Paulo: Nacional; Editora da Universidade de São Paulo, 1971. ______.; HORKHEIMER, Max. Dialética do fragmentos filosóficos. Rio de Janeiro: Zahar, 1985.

Esclarecimento:

CABRITA, Marcela Amália Pereira. Semi-formação, tempo livre e indústria cultural: contribuições de Theodor W. Adorno para uma teoria crítica do lazer. 66 f. Monografia (Graduação em Turismo) Faculdade de Ciências Econômicas. Universidade do Estado do Rio Grande do Norte. Mossoró, 2013. ______; COSTA, Jean Henrique. Semi-formação, tempo livre e indústria cultural: contribuições de Theodor W. Adorno para uma teoria crítica do lazer. In: Semana de Tecnologia, Ciência e Inovação da UERN, 2013, Mossoró. Anais do IX Salão de Iniciação Científica: trabalhos completos. Mossoró: Edições UERN, 2013. p. 320-327.

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O Agir Humano RAMOS, C. A dominação do corpo no mundo administrado: uma questão para a Psicologia Social. Psicologia Ciência e Profissão, Brasília, v. 24, n.1, p. 56-63, 2004. RICELLY, Tássio P. F. A indústria cultural na contemporaneidade. 53 f. Monografia (Graduação em Filosofia) - Faculdade de Filosofia e Ciências Sociais. Universidade do Estado do Rio Grande do Norte. Mossoró, 2013. ______.; COSTA, Jean Henrique. Indústria cultural, cibercultura e música independente em Brasília: um estudo com as bandas 'Amanita' e 'Feijão de Bandido'. In: Semana de Tecnologia, Ciência e Inovação da UERN, 2013, Mossoró. Anais do IX Salão de Iniciação Científica: trabalhos completos. Mossoró: Edições UERN, 2013. p. 1174-1182. ZUIN, Antônio Álvaro Soares. Sobre a atualidade do conceito de indústria cultural. Cadernos Cedes, ano XXI, nº 54, agosto/2001.

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10 A TEORIA REVOLUCIONÁRIA DA VIOLÊNCIA PURA A PARTIR DE BENJAMIN: PODER, VIOLÊNCIA E ESTADO DE EXCEÇÃO NA HISTÓRIA. Francisco Ramos Neves 1

1. INTRODUÇÃO. O presente artigo não pretende apresentar conclusivamente uma nova teoria revolucionária, mas indica caminhos e reconstruções de abertura de possibilidades para a mesma. O resgate de Walter Benjamin como um dos principais referenciais nesse sentido implica dizer que o debate está aberto e que podemos encontrar em alguns dos seus escritos bases para esta reflexão. A violência nessa teoria não assume os contornos de uma simples e gratuita tomada de poder violenta e desumana com em teorias anteriores na história. No entanto, a violência em sua forma pura encontra no sentido da lei, e do direito, fundamentos que a colocam como condição de possibilidade para se instaurar o novo e para a institucionalização das desconstruções históricas. A discussão acerca dessa nova teoria, que se esboça nesse artigo, problematiza alguns aspectos da modernidade filosófica que nos colocam além de seus limites, alçando-nos ao encontro de novos atores e ideias que explodam a mesmice histórica e seus referencias de valor racional.

Doutorando do Programa Interinstitucional de Pós-graduação em Filosofia das UFRN/UFPB/UFPE. Professor do departamento de filosofia da UERN (E-mail: professor.ramos@hotmail.com). 1


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O Agir Humano 2. AS INJUSTIÇAS E AS BASES HISTÓRICAS DA REVOLTA. A explosão do continuum da tradição, pela desconstrução histórica, é a metodologia rigorosa para captarmos as ruínas, “o transitório, o fugidio, o contingente” da realidade existente, que é a condição da Pós-modernidade, para a qual a ...experiência do tempo e do espaço se transformou , a confiança na associação entre juízos científicos e morais ruiu (...) as imagens dominaram as narrativas, a efemeridade e a fragmentação assumiram precedência sobre verdades eternas e sobre a política unificada (HARVEY, 1993, p. 293). 2

Esta condição pós-moderna, prenunciada pela modernidade decadente do final do século XIX ao século XX, “nos despeja a todos em um turbilhão de permanente desintegração e mudança, de luta e contradição, de ambiguidade e angústia”, onde, parafraseando Marx, “tudo que é sólido se desmancha no ar” (BERMAN, 1986, p. 15). Nesta condição e neste cenário, o público se dissolve em inúmeras particularidades privadas e “em inúmeros e fragmentários caminhos” (BERMAN, 1986, p. 17), em um verdadeiro tourbillon social; onde, em um estado de exceção, todos se colocam frequentemente em contradição consigo mesmos, e “tudo é absurdo, mas nada é chocante, porque todos se acostumam a tudo” (BERMAN, 1986, p. 17). No entanto, perante esta imensa ausência e vazio de valores humanos, reprimidos pela memória histórica da cultura 2 Também a respeito da fragmentação dos coletivos políticos e a desreferencialização do social como características da pós-modernidade ver mais detalhes em: Santos, Boaventura de S.. O Social e o Político na Transição PósModerna. Lua Nova. N•. 31, 1993.

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O Agir Humano dominante, podemos verificar e nos contemplar ao “mesmo tempo, em meio a uma desconcertante abundância de possibilidades” (BERMAN, 1986, p. 21); e isto radicaliza a necessidade de não se conformar com a aparência da verdade objetiva de um continuum historicista no interior do tempo presente e optar pelo radicalmente novo. Destarte, a tarefa do olhar alegórico, na perspectiva benjaminiana, nesta condição de fragmentação da realidade é a de instrumentalizar uma hermenêutica anamnésica no sentido de “escovar a história a contrapelo”, para descoberta das “centelhas de esperança” dos “despojados”, é também mediação na relação entre o historiador da rememoração e a imagem histórica do sujeito do conhecimento histórico, subjugado pela tradição. Para Benjamin, este “sujeito do conhecimento histórico é a própria classe combatente e oprimida” (BENJAMIN, 1986, p. 228) 3, por ser a classe que vivifica o embate das gerações anteriores contra toda forma de dominação opressiva. Pelo olhar alegórico, o impulso desse embate ganha força ao realizar a descoberta do fio condutor que marca o “encontro secreto” entre as gerações precedentes e a nossa. O tempo presente deslocado do continuum do devir historicista, de um pretenso progresso em uma “correnteza histórica,” 4 possibilita, desta forma, a tarefa de supressão das injustiças em nome das “gerações de derrotados”, suspendendo-as da teleologia do idêntico (movimento do sempre-igual na história).

Tese 12. Essa temática da ideia de um progresso escatológico em uma racionalidade histórica é veementemente combatida por Benjamin em suas Teses, principalmente nas teses: 8, 9, 10, 11, 13, 14 e 15. Desta forma, Benjamin se identifica muito com a crítica pós-moderna à razão e ao determinismo da objetividade teleológica da filosofia da história dos clássicos da tradição iluminista, como bem temos enfatizado. 3 4

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O Agir Humano Nesta teleologia da repetição do idêntico, a noção de progresso, na ótica dominante, em vez de afirmar a liberdade atesta um aprisionamento das massas reprimidas historicamente. Para José Ortega y Gasset, a crença nesta teleologia do mesmo (o sempre igual) corresponde à fé na aprisionadora cultura moderna iluminista. ...a fé na cultura moderna era triste: era saber que o amanhã, na sua essência, ia ser igual a hoje, que o progresso consistia só em avançar eternamente por um caminho idêntico ao que já estava sob nossos pés. Um caminho que mais se parece com uma prisão que, elástica, se estica sem nos libertar (ORTEGA Y CASSET, 1987, p. 55).

O olhar alegórico interrompe a marcha a um futuro como espaço de efetividade da mesmidade do velho, resgatando a diferença do novo enfatizado pela rememoração de uma imagem dialética dos antepassados escravizados, conquistando sua presença no tempo presente da história (BENJAMIN, 1986, p. 228-9).5 As massas representam a grande maioria silenciosa descrita por Baudrillard. Para Jean Baudrillard as massas não encontram rebatimento político em nenhuma instância do social da história existente, embora o social também tenha se dissolvido nesta hiperrealidade cotidiana juntamente com as massas, visto que a história oficial subjuga suas manifestações ao não vivido, e desta forma a nega enquanto verdade histórica. “A história oficial só registra o progresso ininterrupto do social, relegando às trevas, como culturas passadas, como vestígios bárbaros, tudo que não concorreria para esse glorioso acontecimento” (BAUDRILLARD, 1993, pp. 36-7).6 Tese 12. Vale salientar que Baudrillard acredita na inexistência da realidade política de uma tomada de consciência histórica por parte da massa, por ela ser “inacessível aos esquemas de libertação, de revolução e de historicidade” (p. 24), isto devido ao silêncio ao qual é submetida essa grande maioria silenciosa. 5 6

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O Agir Humano A história oficial é contada em favor dos dominantes capitalistas, na qual a própria liberdade perde seu estado de direito natural e perdendo-a enquanto sua condição as massas e a humanidade em geral se submetem à servidão, que chega a ser voluntária na medida em que os costumes de servilismo, no bojo da experiência legada pela cultura das classes dominantes, enraízam-se em toda a cultura, a perda desta experiência é o motivo da liberdade, pois , conforme bem ilustra Etienne La Boétie (1982, p. 20): ...o costume, que por certo tem em todas as coisas um grande poder sobre nós, não possui em lugar nenhum virtude tão grande quanto a seguinte: ensinar-nos a servir, [isto para aceitar voluntariamente] e não achar amarga a peçonha da servidão.

Assim, a experiência da tradição cultural dominante se reproduz pelo costume para repetição dos seus monumentos de servidão, destarte, “a primeira razão da servidão voluntária é o costume” (BOÉTIE, 1982, p. 24). E a liberdade como condição natural do homem se perde se não é cultivada. Desta forma, o povo serve de tão bom grado ao cair no esquecimento de sua própria franquia e ao se submeterem à experiência tradicional da servidão, que outrora havia sido uma imposição pela violência instrumental, mas agora é transformada em costume. Ainda segundo Boétie, é ...verdade que no início serve-se obrigado e vencido pela força, mas os que vêm depois servem sem pesar e fazem de bom grado o que seus antecessores haviam feito por imposição. Desse modo os homens nascidos sob o jugo, mais tarde educados e criados na servidão, sem olhar mais longe, contentam-se em viver como nasceram; e como não pensam ter outro bem nem outro direito que o que encontraram, consideram natural a condição de seu nascimento (BOÉTIE, 1982, p. 20). 253


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O Agir Humano

O processo empático de transmissão cultural efetivado para a servidão das massas, perpetuando o costume das experiências dos subjugados no passado, garante uma aceitação passiva dos subservientes no presente de toda forma de escravidão sob o discurso da naturalidade das condições de qualquer servidão. “Eles dizem que sempre foram súditos, que seus pais viveram assim; pensam que são obrigados a suportar o mal” (BOÉTIE, 1982, p. 24). Destarte, o conceito de “experiência” que Benjamin nega refere-se ao conjunto de ensinamentos e costumes legados pela história oficial enquanto norma histórica de uma razão estratégica e instrumental, que serviria de modelo e monumento cultural a ser seguido no tempo presente como continuidade lógica do passado. E tal “experiência” vincula-se a circunstâncias concretas e situações específicas vividas no passado “como determinantes do comportamento humano”, e em “sua expectativa, a maior parte das pessoas se comporta da mesma maneira em situações similares” (MOORE, 1987, p. 137). Assim, as circunstâncias reproduzidas enquanto experiência legada do passado ao presente ...inserem-se na cadeia de causalidade enquanto influências sobre a formação do caráter e da personalidade” visto que, em uma “situação experimental planificada” ,em uma sociedade, pode-se provar que “as pressões sociais” forçavam o indivíduo a tomar uma decisão contrária às suas inclinações ‘normais’ ou previsivelmente racionais e humanas (MOORE, 1987, p. 138).

Esta mesma definição de “experiência” enquanto forma de influência dos indivíduos a uma submissão histórica aos valores

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O Agir Humano dominantes é bem ilustrada em Sennett, ao discutir as características da formação da esfera pública do social, quando ele afirma que, no ...antigo regime, a experiência pública estava ligada à formação da ordem social; no século passado, a experiência pública acabou sendo ligada à formação da personalidade. A experiência mundana como uma obrigação para o autodesenvolvimento apareceu nos grandes monumentos da cultura do século passado, bem como nos seus códigos de crença mais cotidianos. (...) uma crença subsistente no valor da experiência pública com o novo credo secular de que todas as experiências podem ter um valor igual, porque todas têm uma importância igual para a formação do eu (SENNETT, 1988, p. 40).

Este começar de novo requer a adoção de qualidades ou capacidades humanas que podem adicionar alguma “energia na alma” para resistência a essa experiência que reproduz a servidão à mesmidade da subserviência e obediência às ameaças e opressões sociais presentes na filosofia da história dos dominantes. Barrington Moore define estas qualidades fundamentais enquanto “coragem moral, capacidade intelectual ou percepção moral” [e, por fim, a] inventividade moral, [que é] a capacidade de criar, a partir das tradições culturais vigentes, padrões historicamentenovos de condenação ao que existe (MOORE, 1987, p. 136-7).

O que se traduz em uma vigorosa autonomia moral perante a filosofia da história oficial dominante, possibilitando o rompimento com o Establishment e o estado de coisas existentes, para elaboração de uma outra história, a partir da perspectiva dos injustiçados historicamente.

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O Agir Humano A indignação moral, o ódio e a ira às injustiças sóciohistóricas geradas, segundo Moore, pelas “situações universais” (MOORE, 1987, p. 34 e 35) 7, possibilitam as bases sociais da revolta e mobilizam as forças das classes combatentes. Alimentadas pela imagem de um passado reprimido e frustrado (MOORE, 1987, p. 74) 8 que poderia ser presente se não fosse considerada perdida pela história dos dominantes. Para tanto, pressupõe-se a não aceitação do passado “como de fato foi” e a crítica às noções de verdade objetiva e de direito impostas pelos vencedores, que manifestam um “sentido de injustiça” a ser suprimido. Para Benjamin, a finalidade iluminista da razão histórica, com a imposição da legitimação capitalista é a violência jurídica do monopólio da legalidade autoritária das leis positivas, no interior de um ciclo histórico, cuja tese do seu positivismo jurídico encaminha a questão da justiça à “legitimidade de determinados meios que constituem o poder” (BENJAMIN, 1986a, pp. 161ss).

3. A VIOLÊNCIA PURA E TAREFA REVOLUCIONÁRIA. Benjamin propõe a “violência pura” pela mobilização das forças revolucionárias da indignação moral contra a violência instrumental da imposição da legitimação capitalista do poder, para uma verdadeira vingança dos oprimidos historicamente, que clamam por justiça e pelo resgate dos valores e da dignidade humana. De acordo com Moore,

7 As situações universais, que Moore se refere, são aquelas que, acontecendo, representam um sentido de injustiça moral e social, que gerariam ódio e indignação moral em qualquer sociedade ocidental e não-ocidental. 8 Segundo Moore, “o esforço frustrado pode ser uma poderosa fonte de ira moral” por parte dos injustiçados (MOORE, 1987, p. 74).

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O Agir Humano ...o clamor de vingança – reprimido aqui, estimulado e elaborado ali – ecoou em uma imensa porção da experiência humana. A vingança significa retaliação. Também significa uma reafirmação da dignidade e do valor humanos, após a injúria ou o dano (MOORE, 1987, p. 38).

“A violência pura” criadora de um novo direito e uma nova perspectiva histórica, na interrupção do ciclo autoritário das forças do ordenamento jurídico dominante não propõe a revolta pela revolta, mas fundamenta o resgate da paz social da justiça. Ao mesmo tempo garante a realização da vingança moral da grande maioria silenciosa reprimida no passado, além de servir de trincheira de combate da violência no sentido estrito do termo, que representa a coerção e elemento fundante da servidão. “A política e a violência só podem ser ditas puras quando manifestam uma forma de justiça não corrompida pelos interesses de conservar ou outorgar certos modos de vida, não corrompida pelas formas positivas da lei” (HAMACHER, 1997, p. 122). Esta violência pura, a favor da política dos “puros meios, representa na filosofia da história um combate radical à violência da ordem instituída pela ideia de razão instrumental. Portanto, a violência pura a qual Benjamin se refere, conforme afirma Habermas a seguir, “caracteriza-se pela tentativa de expulsar da esfera da práxis política o caráter instrumental da ação e de negar a racionalidade instrumental (Zweckrationalität) a favor de uma ‘política dos puros meios’” (HABERMAS, 1980, p. 201). Assim, a “violência pura” representa um combate a esta forma coercitiva e instrumental da violência e do poder das autoridades dominantes. Como diz Barrington Moore: ...toda cultura parece dispor de alguma definição de crueldade arbitrária por parte dos detentores da autoridade. [E] o emprego indevido dos instrumentos de 257


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O Agir Humano violência dos governantes contra seus próprios súditos é uma violação extrema da obrigação de manter a paz (MOORE, 1987, p. 50).9

A problemática da “violência pura” é abordada por Benjamin especificamente em 1921 (BENJAMIN, 1986a), e nesses primeiros ensaios filosóficos distingue as formas de violência, como a criadora do direito público (violência estrutural) e a que mantém o direito (violência legítima). A primeira se manifesta em uma situação estrutural sóciohistórica, já a segunda é instrumentalizada para ser exercida pelos órgãos do Estado em sua hegemonia. E também há uma outra forma de violência emergente: a “violência pura”, criadora de um novo direito (contra hegemonia) e consequentemente supressora das formas de violência existentes. E esta “violência pura” é própria às forças da revolução histórica, como podemos ver também na abordagem que Habermas (1980, pp. 199-202) faz sobre o tema. Segundo Benjamin, como se observa, a violência se articula com a coerção da razão histórica; desta forma, o caráter desta violência instrumental dominante é totalmente repressivo, por tentar enquadrar a humanidade na lógica cega de um mundo sob um progresso técnico e juridicamente positivista, miticamente matematizado e linear.

9 E ainda reforçando, para este autor, “os fracassos da autoridade em cumprir suas obrigações, expressas ou implícitas, prover segurança e avançar propósitos coletivos despertam algo que pode ser reconhecido como ira moral frente ao tratamento injusto. A vingança aparece como motivo antes da autoridade organizada, servindo a um propósito coletivo similar.”(pp.77- 78).

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O Agir Humano 4. CONCLUSÃO. A “violência pura” assume a condição de uma contra violência (contra hegemonia), que representa o poder de um ato civil e político organizado pelos subjugados, capaz de suspender e explodir o “continuum historicista”, gerando, assim, um verdadeiro “estado de exceção,” que efetiva uma paralisação do fluxo continuo do tempo, refazendo um novo conceito de história. A tradição dos oprimidos nos ensina que o ‘estado de exceção’ em que vivemos é na verdade a regra geral.... Nesse momento, percebemos que nossa tarefa é originar um verdadeiro estado de exceção (BENJAMIN, 1986c, p. 226).10

E esta tarefa resultaria em uma nova hegemonia ativa de acúmulo maior de forças contra os inimigos históricos da humanidade, que na época da elaboração das teses eram hegemonizados pelos regimes nazifascistas. E somente um verdadeiro “estado de exceção” colocaria em evidência o “assombro” com os episódios de determinados regimes totalitários existentes na história. A terminologia existencial do “assombro” era utilizada por Brecht, em sua noção de teatro criativo (épico), que apela para a interferência do homem no processo de elaboração do conhecimento, propondo uma desconstrução da evolução escatológica e mecânica da humanidade. Criando, com isto, um refluxo, uma quebra do continuum da razão histórica, imobilizando até mesmo o movimento pela síntese da dialética, colocando-a em um “estado de repouso”.

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Tese 8.

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O Agir Humano Benjamin resgata esta influência terminológica em Brecht, afirmando a partir da noção do teatro épico, não-trágico do literato, que o refluxo, a interrupção explosiva do continuum representa o assombro existencial a ser aprendido, no qual a dialética em estado de repouso, suspensa de sua escatologia, propicia a emergência da criação do inteiramente novo na história. O assombro, que devemos incluir na teoria aristotélica dos efeitos da tragédia, deve ser visto como uma capacidade que pode ser aprendida. E que, quando o fluxo real da vida é represado, imobilizando-se, essa interrupção é vivida como se fosse um refluxo: o assombro é esse refluxo. O objeto mais autêntico desse assombro é a dialética em estado de repouso (BENJAMIN, 1986b, pp. 89-90).

A violência dos dominantes, ao articular o direito com a coerção instrumental da razão histórica, não gera um assombro no sentido filosófico do “começar de novo”; e, segundo o autor, a dominação totalitária e repressiva é um assombro que “não gera nenhum conhecimento, a não ser o conhecimento de que a concepção de história da qual emana semelhante assombro é insustentável” (BENJAMIN, 1986c, p. 226) 11. Um conhecimento ampliado, resultante do refluxo histórico benjaminiano, gera uma heteronomia e uma nova e transformadora política cultural para uma hermenêutica histórico-crítica do tempo presente, possibilitando a emergência revolucionária do inteiramente novo na história. Como já pudemos demonstrar, eminentemente filosófico é o assombro histórico da paralisaç ão (refluxo) e desconstrução do fluxo contínuo do tempo, por intermédio do qual a alegoria do “anjo da história” — Angelus Novus

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Tese 08.

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O Agir Humano —, com seu “caráter destrutivo”, sobrevoa melancolicamente as ruínas da história em fragmentos.

REFERÊNCIAS BAUDRILLARD, Jean. À Sombra das Maiorias Silenciosas. 3. ed. São Paulo: Brasiliense, 1993. BENJAMIN, Walter. Crítica da Violência - Crítica do Poder. In: _____. Documentos de Cultura - Documentos de Barbárie. São Paulo: EDUSP, 1986a. (Escritos Escolhidos). BENJAMIN, Walter. Que é o Teatro Épico ? Um estudo sobre Brecht. In: _____. Magia e Técnica, Arte e Política. 2. ed. Obras Escolhidas, v. 1. São Paulo: Brasiliense, 1986b, pp. 89 - 90. BENJAMIN, Walter. Teses Sobre o Conceito da História. In.: _____. Magia e Técnica, Arte e política. 2.ed. São Paulo: Brasiliense, 1986c. (Obras escolhidas, v.1). BERMAN, Marshall. Tudo que é Sólido se Desmancha no Ar. São Paulo: Cia. das Letras, 1986. BOÉTIE, Etienne La. Discurso da Servidão Voluntária. São Paulo: Brasiliense, 1982. HABERMAS, Jürgen. Sociologia. (Textos de Habermas ). São Paulo: Ática, 1980. HARVEY, David. A Condição Pós-Moderna. 2. ed. São Paulo: Loyola. 1993. HAMACHER, Werner. Aformativo, greve: A “crítica da violência” em Benjamin. In: BENJAMIN, Andrew; OSBORNE, Peter. (orgs.) A filosofia de Walter Benjamin. Destruição e experiência. Rio: Zahar, 1997. 261


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O Agir Humano

MOORE Jr., Barrington. Injustiça: As Bases Sociais da Obediência e da Revolta. São Paulo: Brasiliense, 1987. ORTEGA Y GASSET, José. A Rebelião das Massas. São Paulo: Ed. Martins Fontes, 1987. SANTOS, Boaventura de S.. O Social e o Político na Transição PósModerna. Lua Nova. n. 31, 1993. SENNETT, Richard. O Declínio do Homem Público. São Paulo: Companhia das Letras, 1988.

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11 DE PACE FIDEI: PRESSUPOSTOS PARA “A CONCÓRDIA E A PAZ PERPÉTUA” NAS RELIGIÕES José Teixeira Neto 1

O De pace fidei, escrito 1453, não é um texto ocasionado por disputas filosófico-teológicas. Motivado pelas perseguições e guerras que se seguiram a tomada de Constantinopla pelos turcos, propõe um diálogo imaginário entre o Verbo, Pedro, Paulo e os representantes de diversas tradições religiosas e culturais daquele tempo. A tomada de Constantinopla, atual Istambul na Turquia, pelos Turcos Otomanos em 29 de maio de 1453 é uma daquelas datas que marcaram o fim de uma época e o início de outra. Muitas foram as consequências desse acontecimento: o comércio, a política, a religião, as artes e a cultura foram influenciados diretamente. Do ponto de vista político representa o fim do Império Romano do Oriente. Em 330 d.C. Bizâncio, antigo nome grego de Istambul, havia sido escolhido pelo imperador Constantino para ser a capital do Império Romano, a sua Nova Roma. Enquanto Roma e o Império Romano do Ocidente caiam em ruínas por causa das diversas invasões, Constantinopla, a cidade de Constantino, prosperava e depois de mil anos se tornara um importante entreposto comercial, pois servia de passagem tanto marítima (Mar Negro — Mar Mediterrâneo) como terrestre para o comércio entre Doutor em Filosofia pela UFRN e professor do Curso de Licenciatura em Filosofia do Campus Caicó da Universidade do Estado do Rio Grande do Norte-UERN. (E-mail: josteix@hotmail.com) 1


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O Agir Humano a Europa e a Ásia, a China e Índia, por exemplo. Assim, o fechamento dessa porta comercial obrigaria italianos, mas, principalmente, espanhóis e portugueses a buscarem novas rotas comerciais. Por sua vez, deve-se também considerar o impacto da migração de sábios bizantinos para a Europa, principalmente Itália, e o impulso considerável para a crescente busca por textos antigos da cultura grega, uma das marcas principais do humanismo renascentista do século XV e XVI. Por outro lado, a queda de Constantinopla também esconde e em parte representa o fracasso do diálogo entre a Igreja Católica Latina e a Igreja Ortodoxa. Não se pretende aqui recuperar a história do cisma de 1054 entre as duas Igrejas Cristãs e nem a história das diversas tentativas de reaproximação. Cabe informar que as tentativas de reunificação da fé cristã culminará com a promulgação da Bula papal Laetentur caeli de 6 de julho de 1439 no Concílio Ecumênico de Florença (DENZINGER, n. 1300-1353). O Concílio de Florença, iniciado em 26 de fevereiro de 1439, é a continuação do Concílio de Basileia, iniciado em 23 de julho de 1431 e depois transferido em 18 de setembro de 1437 para Ferrara. É importante destacar a presença de Nicolau de Cusa já em Basileia como exímio defensor do conciliarismo, corrente que defendia a supremacia do Concílio sobre o Papa. Contudo, convencido da importância do Papa para a unidade da Igreja, Nicolau aproxima-se sempre mais da Cúria Romana e do Papa Eugênio IV que posteriormente o enviará como legado pontifício à Constantinopla2. Portanto, o contato do Cardeal de Cusa com a “Nel 1433 interviene nella lotta politica tra il Concilio di Basilea presieduto da Giuliano Cesarini e il papa Eugenio IV. La maggioranza dei Padri era per la teoria della superiorità del Concilio. Il Cusano è per la teoria conciliare, ma mitigata nei suoi aspetti conflituali. Scrive a questo proposito il De Concordantia catholica. [...]; Cusano deve proporre una soluzione alla spinosa questione della Presidenza del Concilio generale e di quali posti assegnare ai legati pontifici. A questo proposito scrive il De auctoritate praesidendi in concilio generali nel 1434. Nel 2

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O Agir Humano capital do Império Romano do Oriente à época da sua queda já durava mais de 15 anos. 3 O De pace fidei é um texto curto. Na edição publicada em <http://www.cusanus-portal.de/> consta de 19 curtos capítulos e 68 parágrafos. De modo geral, pode-se dividir a obra em duas partes: os capítulos I-III (n. 1-9) e os capítulos IV-XIX (n. 10-68). Na primeira parte encontra-se um epílogo (cap. I, n. 1) no qual se descreve a situação que ocasionou o escrito. Além disso, também ali se afirma que o escrito é resultado de uma “visão” e começa-se a descrever a visão de um “concílio celestial” ou “reunião dos santos” presidido pelo “Todo-poderoso” que ouve os relatos dos mensageiros (príncipes ou arcanjos) sobre a situação das perseguições seguidas à queda de Constantinopla (cap. I, n. 2). No restante do primeiro capítulo (cap. I, n. 3-6) fala um dos príncipes 1436-37 si convince dell’importanza conciliatrice del papa e si accosta sempre più alla Curia romana e al pontefice; sostiene quindi Eugenio IV contro l’antipapa Felice V e caldeggia il trasferimento del Concilio a Ferrara in occasione del progettato arrivo dei Padri greci, per trattare l’unione della Chiesa ortodossa con la latina. Eugenio IV l’aveva infatti inviato a Costantinopoli come suo delegato per invitare l’imperatore e il patriarca di Constantinopoli a partecipare al grande concilio che avrebbe dovuto tenersi in Italia per l’unione delle due Chiese” (VESCOVINI, 1998, p. 2-3). 3 A viagem a Constantinopla deixou marcas profundas na vida e no pensamento de Nicolau de Cusa. Em carta enviada ao Cardeal Juliano Cesarini junto com o De docta ignorantia, Nicolau recorda que alcança os conceitos-chave da sua especulação, “coincidência dos opostos” e “douta ignorância”, na viagem de retorno de Constantinopla no outono de 1437: “Recebe agora, venerável padre, o que eu desejava atingir já há muito, pelas vias diversas das ciências, mas que antes não consegui, até que, ao regressar da Grécia por mar, fui levado — segundo creio, por um dom do alto, do Pai das Luzes de quem deriva todo o dom excelente — a abraçar incompreensivelmente o incompreensível na douta ignorância, transcendendo o que é humanamente cognoscível das verdades incorruptíveis” (A douta ignorância, n. 263, p. 186). Também no De pace fidei, escrito 16 anos após a viagem a Constantinopla, Nicolau refere: “A divulgação de actos (sic.) tão cruéis cometidos pelo rei dos Turcos em Constantinopla encheu um certo homem, que em dada ocasião visitara aqueles lugares, de um tal selo divino que o levou a orar [...]” (A paz da fé, cap. I, n. 1; grifo nosso).

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O Agir Humano “em representação de todos os enviados”; o segundo capítulo consta da intervenção daquele “que estava sentado no trono” ou “Rei dos reis” (cap. II, n. 7); por fim, o terceiro capítulo conclui essa primeira parte com a intervenção do “Verbo feito carne” (cap. III, n. 8-9). A segunda parte, mais extensa, culmina com uma conclusão (cap. XIX, n. 68) precedida, em primeiro lugar, pelo diálogo entre o Verbo e o grego, o italiano, o árabe, o hindu, o caldeu, o judeu, o cita e o francês (cap. IV-X, n. 10-28); em segundo lugar, pelo diálogo entre Pedro e o persa, o sírio, o espanhol, o turco e o alemão (cap. XI-XV, n. 29-53); por último, entre Paulo, o tártaro, o armênio, o boêmio e o inglês (cap. XVI-XIX, n. 54-67). O texto é curto, porém, a pequenez contrasta com a densidade do conteúdo, já que nesse texto “ocasional” Nicolau não deixa de empenhar os principais conceitos, tanto filosóficos quanto teológicos, da sua especulação 4. O objetivo do diálogo é a procura pela unidade e consequentemente pela “paz perpetua” entre as religiões. Algumas perguntas servem de guia ao presente trabalho: a busca pela unidade (concórdia) preconizada pelo De pace fidei pode ser reduzida a uma postura meramente reducionista das diversas perspectivas àquela do autor? Nicolau pretende reduzir e cancelar as diferenças, a diversidade de ritos, quando busca “estabelecer nas religiões a paz perpétua” (A paz da fé, cap. I, n. 1, p. 21)? Se em 1453 o autor se assustava com as sangrentas perseguições decorrentes da tomada de Constantinopla, também hoje assustam os violentos conflitos que cotidianamente se assiste entre povos e culturas diferentes. Nesse O caráter ocasional da obra, portanto, não condiciona o escrito e, por isso, não é ele que funda e justifica a possibilidade do diálogo. Concorda-se, por isso, com Quillet (1993, p. 237) quando afirma que «[...] l’originalité du De pace fidei du Cardinal de Cues est de fonder le dialogue, non pas seulement sur des exigences ‘morales’, ou des impératifs d’opportunité dictés par les nécessités politiques de son temps, mais d’en établir la possibilité à un niveau proprement philosophique et théologique». 4

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O Agir Humano sentido, a resposta cusana poderia também iluminar e indicar o caminho a ser trilhado para se buscar a concórdia, a tolerância e o respeito na diversidade cultural que hoje se mostra? O pensamento cusano não se compreende adequadamente quando não se observa que o diálogo entre perspectivas diferentes o configura profundamente. A importância do diálogo aparece já na formação do seu pensamento. A esse respeito, quando se consideram as universidades que Nicolau frequentou percebe-se que ele teve contato com perspectivas diferentes da tradição escolástica e já com o primeiro humanismo 5. De modo fundamental, é necessário também atentar para o fato de que em sua especulação a filosofia e a teologia, o intelectus e a fidei, relacionam-se dinâmica e dialeticamente e configuram um único modo de pensar 6. Além disso, é importante destacar que Nicolau também adota o gênero literário do diálogo em diversas obras. Encontra-se desde o início até o fim da sua produção: De deo abscondito (1444); De genesi (1447); Apologia doctae ignorantiae (1449); Idiotae libri (1450) De pace fidei (1453); De possest (1460); De non aliud (1462); De ludo globi (1463); De apice theoriae (1464). Nessas obras, os personagens podem ser pessoas que gozavam da amizade e da proximidade do Cardeal de Cusa ou personagens fictícios, criados justamente para a obra em questão, como ocorre nos Idiotae libri de 1450. Em outras, o texto não está escrito em forma de diálogo, mas o pressupõe. Por exemplo, ainda 5 “[...] se em 1416 iniciou os seus estudos em Heidelberg onde pontificam os ockmistas, e se entre 1417 e 1423 entrou em contato com o primeiro humanismo italiano em Pádua, não deixa de ser importante referir que em 1425 se encontrava em Colónia dominada ainda pela escola tomista e albertista, o que não deixou de ser determinante para a sua formação filosófica. Confluem, assim, em Nicolau de Cusa [...] riquíssimas tendências filosóficas condicionantes da síntese que ele próprio terá de construir” (ANDRÉ, 1986, p. 372). 6 Sobre esse aspecto conferir os seguintes textos: BEIERWALTES (2005); REINHARDT (2002); HOPKINS (1996a; 1996b).

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O Agir Humano em 1453 Nicolau escreve o De visione dei em resposta aos diversos questionamentos dos monges do mosteiro de Tegernsee sobre a visão contemplativa. Por sua vez, o De pace fidei é escrito em forma de diálogo. É um diálogo imaginário cuja motivação é uma questão prática que precisa de resposta rápida. O termo “diálogo” e as suas flexões latinas não aparecem no De pace fidei. Por sua vez, o termo “tolerância” aparece uma vez no final do texto. Paulo está respondendo ao Tártaro sobre a dificuldade do seu povo acolher a circuncisão. Ao final do diálogo Paulo, então, responde: “Mas julgo esta prática difícil. Basta, pois, edificar a paz com firmeza na fé e na lei do amor, tolerando, por conseguinte, estes ritos” (A paz da fé, cap. XVI, n. 60, p. 75; grifo nosso)7. Os dois termos, contudo, são utilizados por Nicolau de Cusa tanto em suas obras como nos sermões. Quais os limites do diálogo proposto pelo De pace fidei? Dialogar pressupõe não somente a disposição para falar, mas também a disponibilidade para ouvir. De certa forma, pode-se dizer que essas disposições encontram-se nos personagens principais: o Verbo, Pedro e Paulo. Porém, na maioria das vezes, a disponibilidade para a escuta e para o discurso se limita a ouvir as questões e a dar respostas limitadas ao contexto histórico (eclesial e teológico-dogmático) no qual o autor do texto está inserido. Além disso, os personagens centrais encontram-se numa certa posição de superioridade com relação aos representantes das outras religiões. Por exemplo, já no diálogo inicial com o Grego, o Verbo assume a posição daquele que deve “instruir” os restantes sobre a possibilidade de “introduzir esta unidade da religião” (A paz da fé, cap. IV, n. 10, p. 28). Essa mesma função é também estendida a Pedro e a Paulo pelo próprio Verbo. Assim, por exemplo, caberá ao apóstolo Pedro “elucidar” e “ensinar” (A paz da fé, cap. X, n. 28, p. Sobre a proposta de tolerância de Nicolau de Cusa, especialmente no De pace fidei, conferir: D’AMICO (2012). 7

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O Agir Humano 47) sobre a encarnação do Verbo e “Paulo, doutor dos gentios, por encargo do Verbo” (A paz da fé, cap. XVI, n. 55, p. 69) começa a explicar ao Tártaro se a salvação é fruto da fé ou das obras. Outro limite aparece no De pace fidei. Os diálogos se concluem com os representantes das diversas tradições religiosas concordando com as explicações dadas pelo Verbo, por Pedro e por Paulo. Citemos alguns exemplos. No primeiro, o Judeu aceita a explicação sobre a Trindade; no segundo, o Persa aceita a explicação sobre a encarnação e, no terceiro, o Boêmio compreende a doutrina do sacramento da Eucaristia. Primeiro exemplo: “A isto respondeu o J UDEU: ‘foi muito bem explicada a Trindade sumamente bendita, que não pode ser negada’.” (A paz da fé, cap. IX, n. 25, p. 43). Segundo exemplo: Persa: Parece que, depois de bem considerada aquela união que existe necessariamente no altíssimo, seriam os árabes levados a receber esta fé, porque por ela não só não se prejudica, mas se salva a unidade de Deus, que eles se esforçam por preservarem ao máximo (A paz da fé, cap. XII, n. 39, p. 55).

Terceiro exemplo: Boêmio: Compreendo a tua doutrina que me é muito grata, segundo a qual este sacramento é o sacramento da alimentação da vida eterna, pela qual conseguimos a herança dos filhos de Deus em Jesus Cristo filho de Deus e segundo a qual o sacramento da eucaristia é uma semelhança desse sacramento, o que só pode ser atingido pela mente e compreendido e saboreado pela fé. (A paz da fé, cap. XVIII, n. 65, p. 79).

O que significam esses limites aqui apresentados? A indicação desses limites, supostamente presentes do De pace fidei, 269


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O Agir Humano seria fruto de uma leitura apressada e superficial do texto cusano 8? Mostrariam que o autor do texto não consegue se desvincular dos limites dogmático-teológicos e religiosos que parecem condicionar o texto? Esses limites devem ser considerados quando se busca compreender o conceito cusano de concordia? A concordia é a reformulação em âmbito de diálogo interreligioso do desejo cusano de pensar e buscar a unidade. 9 Se podemos aceitar essa tese, então o sentido da concordia deve ser buscado nos fundamentos da especulação filosófico-teológica de Nicolau de Cusa sobre a unidade e sobre a relação com a diversidade. A seguir escolheremos alguns textos mais específicos do De pace fidei que julgamos mais significativos para impostarmos essa problemática. Na primeira parte do texto (cap. I-III, n. 1-9) Nicolau descreve a situação que ocasionou o escrito. No epílogo afirma-se que a motivação do escrito é a tomada de Constantinopla e os atos cruéis do rei dos Turcos. É digno de atenção nesse epílogo o fato 8 “Uma leitura rápida e apressada do De pace fidei, que não esteja atenta às suas articulações internas e aos diversos níveis em que o debate vai acontecendo, poderá parecer que nos encontramos perante uma perspectiva do diálogo interreligioso meramente inclusivista, assimilacionista ou integracionista, assente no pressuposto de que a unidade e a paz se conseguirá se os outros aceitarem que os pressupostos da religião cristã são também aqueles que aparecem como verdadeiramente pressupostos, ainda que de uma forma implícita, nas outras religiões. Mas uma análise da estrutura dramatúrgica do texto, dos diversos registos, dos seus pressupostos e da respectiva articulação com outras obras do autor, permitem-nos concluir que, afinal, o tipo de unidade preconizada, em termos ideais, por Nicolau de Cusa, não é assim tão redutor” (ANDRÉ, 2002, p. 11). Conferir também: André, 2005, p. 25-43. 9 “El pensamiento del Cusano y su búsqueda de mediación entre opuestos, que en el ámbito eclesiástico-político había llevado al concepto de la concordantia catholica, y en él ámbito filosófico-teologico al concepto de la coincidentia oppositorum, se expresa más tarde, en el ámbito religioso, con la formulación típica del De pace fidei: ‘una religio in rituum varietate’. También aqui el Cusano busca la unidad no en la rígida igualdad de lo idéntico, sino en la concordancia viva de lo diferente” (LÜCKING-MICHEL apud ÁLVAREZ GÓMEZ, 2004, p. 106).

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O Agir Humano do Cardeal salientar que a crueldade “se devia aos diversos ritos das religiões”. Mais ainda, é só no reconhecimento dessa diversidade e no diálogo entre os “poucos sábios” que “seria possível encontrar a paz perpétua por um meio conveniente e verídico” (A paz da fé, cap. I, n. 1, p. 21). Portanto, é para diversidade e, consequentemente, para mutabilidade, alteridade e pluralidade que primeiramente o texto chama a atenção. A perseguição e, por isso mesmo, a crueldade deve-se a diversidade dos ritos10. Contudo, a unidade, no contexto da especulação cusana, antecede a diversidade (mutabilidade, alteridade e pluralidade) da mesma forma que a igualdade precede a desigualdade e a divisão precede a conexão. 11 Álvarez Gómez (2004, p. 127) explica que Nicolau “Equipara además bajo este aspecto diversidad de ritos y diversidad de religiones. Toma en este sentido la parte por el todo. Decir diversidad de ritos es tanto como decir diversidad de religiones […], no porque el rito abarque todo lo que es la religión, sino porque a la hora de identificar la causa de la persecución de quienes tiene creencias religiosas diversas, N. de Cusa entiende que tal diversidad se concentra en lo que llama ‘rito’”. Algumas páginas depois, Álvarez Gómez explica o sentido do termo “rito”: “El rito, al margen de su caracterización precisa, tiene que ver en cualquier caso con la forma como se practica la religión. Es ese conjunto de prácticas el que termina por constituir, sobre todo cuando se convierte en una costumbre, la base sobre la que el creyente afirma su identidad, o el referente en el que se siente identificado. La Trinidad o la Encarnación no son en sí mismas un rito, pero la vía de la representación, sea artística, literaria o conceptual, termina convirtiéndose fácilmente en un rito, cuando el creyente deja de referirse propiamente a ellas para hacer valer a cambio el modo como se las apropia y las objetiva. Entonces el creyente, en lugar de ver en ellas el principio de justifica su fe, las reduce a exponente diferenciador y, en caso extremo, a principio de exclusión” (2014, p. 132). 11 Já no primeiro livro do De docta ignorantia, no capítulo VII intitulado “A eternidade trina e una”, apresenta essa especulação (A douta ignorância, Livro I, cap. VII, n. 18-21). No De pace fidei reaparecem idêntica especulação no contexto do diálogo sobre a Trindade cristã entre o Hindu e o Verbo. O Hindu afirma que seria muito difícil chegar “[...] em toda parte à concórdia sobre o Deus trino. Pois a todos parece que a trindade não pode conceber-se sem três. Se na divindade existir a trindade, existirá a pluralidade na divindade” (A paz da fé, cap. VII, n. 20, p. 37). O Verbo começa “relativizar” a compreensão sobre o Deus trino. Quando se considera “Deus, enquanto criador, é trino e uno; enquanto infinito, nem trino, nem uno, nem nada daquilo que se possa dizer”. Encontram-se tais afirmativas na 10

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O Agir Humano Portanto, nesse caso da diversidade dos ritos e das religiões também é necessário perguntar pela unidade que a precede. Continuemos a nos fixar nessa primeira parte do De pace fidei para aí tentarmos encontrar a origem de toda diversidade e consequentemente a unidade que a precede, o fundamento da concórdia nas religiões e da consequente paz. Analisemos, em primeiro lugar, as palavras de um dos príncipes ou arcanjo que fala em nome de todos os enviados. Nessas palavras encontramos o esquema neoplatônico da processão e do retorno à unidade. Segundo o De pace fidei todos os homens compartilham a mesma origem e também o mesmo fim, pois, “a partir de um só [homem] multiplicaram-se muitos povos que ocupam a superfície da terra”. Embora criado racional e intelectual o homem não ver “o lugar de que procede”. Daí que todas as coisas foram criadas para que pela admiração ele possa reunir-se com o criador e retornar “ao seu lugar de origem” (De pace fidei, cap. I, n. 3-4, p. 22-23). Além disso, para o De pace fidei (cap. I, n. 4, p.23) “não pode haver uma grande multidão sem uma grande diversidade” e isso parece significar que à multiplicidade criada segue necessariamente a diversidade e a diferença. Por fim, para Nicolau todos os homens se encontram num estado de atribulações, misérias, submissão e distrações ocasionadas pelo fazer e pelas preocupações materiais de modo que nem todos “têm o ócio necessário” para se aprofundarem “no conhecimento de si mesmos” e, consequentemente, para buscarem o “Deus escondido”. Por isso, Deus enviou para as diversas nações, diferentes profetas e em tempos diferentes que “no desempenho das suas funções e da perspectiva de uma teologia afirmativa e negativa. Dessa forma, o Verbo explica que os nomes atribuídos a Deus são “extraídos da criatura”, mas “ele próprio é em si mesmo inefável e está acima de tudo que possa ser dito ou nomeado”. Sobre o tema da trindade no De pace fidei conferir: ARROCHE (2010).

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O Agir Humano missão” de auxiliarem os homens no processo de conversão e retorno instituíram o culto e leis em nome de Deus “e instruíram o povo ignorante” que acreditaram que era o próprio Deus a falar. Porém, tendo em vista a sua condição terrena, os homens terminam por “defender como verdade hábitos praticados há muito que se consideram como passando a fazer parte da natureza”. Desse modo, o que parecia ser um remédio e um auxílio termina por provocar mais divisões, pois as dissenções acontecem “quando uma dada comunidade prefere a sua fé à de outra”. Portanto, de acordo com as palavras do arcanjo (De pace fidei, cap. I, n. 5, p. 24) é por causa de Deus que acontecem as guerras e perseguições entre as religiões. Pois, Deus é o único a ser venerado em tudo aquilo que os homens parecem adorar; o único a ser desejado por todos aqueles que desejam o bem; o único a ser procurado por todos aqueles que buscam a verdade. Mais ainda, todos aqueles que existem, buscam ser e todos aqueles que vivem, procuram viver. Por isso, Deus “que dá a vida e o ser” é o que “parece ser procurado de modo diferente nos diversos ritos e ser nomeado com diversos nomes”, mas permanece desconhecido e inefável tal como é, pois nenhuma criatura pode conhecer o conceito da infinitude divina, já que não há proporção entre o finito e o infinito, de acordo com uma fórmula usada desde os tempos do De docta ignorantia. Se as perseguições são por causa do Deus desconhecido e oculto, somente uma revelação de Deus, uma mostração do seu próprio rosto poderia por fim às perseguições e às guerras entre as religiões. Por isso, o arcanjo suplica: “não permaneças oculto mais tempo”. A aparição de Deus poria fim às perseguições, às guerras, ao ódio e todos conheceriam que “não há senão uma religião na variedade dos ritos”. Parece, pelo exposto anteriormente e fundados na aparição do Deus escondido, que essa religião não poderia ser identificada com nenhuma religião particular. A religião una estaria 273


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O Agir Humano fundada não mais na diversidade de leis e cultos promulgados pelos diversos profetas das diversas religiões, mas na aparição do Deus desconhecido. A súplica do arcanjo termina reconhecendo que não é possível ou conveniente suprimir as diferenças, a variedade dos ritos, por isso, suplica-se que ao menos “haja uma só religião e um só culto de latria”, pois Deus é uno (De pace fidei, cap. I, n. 6, p. 2425). À súplica do arcanjo, ainda nesta primeira parte do texto (De pace fidei, cap. II, n.7, p. 25-26), responde “o que estava sentado no trono” enfatizando que o homem havia sido criado com liberdade e capacidade de chegar, usando a liberdade, à união com seu princípio e ao seu lugar de origem. Além disso, também se reafirma o plano de salvação, “porque o homem terreno e animal” se deteve na ignorância e preferiu caminhar “segundo a condição da vida sensível” e não “segundo o homem interior e intelectual, cuja vida é própria do seu lugar de origem”. Por isso, diligente e cuidadosamente o homem foi “chamado dos seus desvios” por meio dos profetas e do próprio Verbo, filho de Deus, que deu testemunho de que o homem é capaz de vida eterna. Por fim, as palavras do sumo Rei terminam por concluir perguntando “que mais se poderia fazer que não tenha sido feito?”. No último capítulo dessa primeira parte (De pace fidei, cap. III, n. 8, p. 26-27) intervém “o Verbo feito carne” que reconhece a perfeição das obras divinas. Portanto, também reconhece que o homem foi criado livre, a instabilidade do mundo sensível e a variedade das opiniões e conjecturas para justificar a necessidade de “visitas mais frequentes” para que a natureza humana possa conhecer a verdade sobre o Verbo “que sendo una e não podendo deixar de ser captada por qualquer intelecto livre” reconduza a “diversidade das religiões a uma só fé ortodoxa”. Podemos considerar dois aspectos até esse momento: em primeiro lugar, o reconhecimento da liberdade humana e a 274


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O Agir Humano capacidade de, se quiser, voltar ao seu lugar de origem. Em segundo lugar, reconhece-se o fato da multiplicidade das coisas criadas e a consequente diversidade que gera instabilidade tanto no mundo das coisas como no mundo humano que aparece na variedade de opiniões, conjecturas, línguas e interpretações. Portanto, por um lado se afirma a capacidade do retornar à unidade, lugar de origem de todo espírito intelectual, mas por outro também se insiste nos limites impostos pela própria finitude criatural. Daí que em um contexto marcadamente religioso se aceite a necessária intervenção divina para reorientar a natureza humana na busca da verdade. Contudo, no De pace fidei (cap. III, n. 9, p. 28), a intervenção divina nem se reduz a uma nova aparição de Deus nem no envio de novos profetas para reorientarem os povos. O texto aponta para um encontro entre os homens mais doutos e mais eminentes do mundo em Jerusalém. A missão recebida: que “a diversidade das religiões, mediante um consenso comum de todos os homens, fosse reconduzida de modo concordante a uma só”. A segunda parte do De pace fidei, capítulos IV-XIX (10-68), culmina com uma conclusão (cap. XIX, n. 68) na qual podemos destacar dois aspectos: no primeiro, afirma-se que depois das discussões foram apresentados livros sobre a “observância dos antigos” e sobre “a diversidade das religiões”, como Marco Varão entre os latinos e Eusébio entre os Gregos. Após a análise dos textos “ficou manifesto que toda diversidade está mais nos ritos que no culto a um só Deus”. O segundo enfatiza que a concórdia das religiões “se concluiu no céu da razão”. Para finalizar o nosso texto retornemos à ideia de buscar no De pace fidei a unidade que precede a diversidade, desigualdade e divisão e que é também o fundamento da concórdia e da paz entre as religiões. Assim, para permanecermos no “céu da razão” e no solo da filosofia, destaquemos o diálogo entre o Verbo e o Grego (cap. IV, n. 10-12, p. 28-20). Apontamos anteriormente os limites 275


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O Agir Humano do diálogo cusano. Dentre eles destacávamos que o Verbo, Pedro e Paulo assumem uma posição de superioridade com relação aos outros dialogantes. O Grego, por exemplo, começa louvando a Deus e reconhecendo que somente Deus “tem o poder de fazer com que uma tão grande diversidade de religiões seja reconduzida a uma paz concordante” e que os sábios convocados diante do Verbo não podem deixar de obedecer às suas ordens. Por isso, roga para que seja instruído sobre “o modo pelo qual [...] será possível introduzir esta unidade da religião”. O problema, segundo o Grego, é a diversidade da fé aceita e proclamada pela diversidade das nações. Sendo assim, ele está persuadido de que “uma nação dificilmente aceitará outra fé diferente daquela que até agora defendeu”. O Verbo assume a palavra (De pace fidei, cap. IV, n. 10, p. 28) e à solicitação de instrução e, principalmente, como resposta a persuasão do Grego e de todos os outros presentes, afirma que não se encontrará “outra fé, mas a mesma e única pressuposta em todo lado”. O princípio mais geral que sustenta essa afirmação é o pressuposto segundo o qual “antes de toda pluralidade existe a unidade” (De pace fidei, cap. IV, n. 11, p. 29). Assim, para explicar a relação entre a unidade e a pluralidade ou diversidade, portanto, entre a fé defendida por cada nação e a fé pressuposta e anterior à diversidade, o Verbo parte do seguinte fato: todos os que ali estão presentes são considerados em suas pátrias como sábios, filósofos ou amantes da sabedoria, mas se todos amam a sabedoria, devem também pressupor que existe a própria sabedoria (De pace fidei, cap. IV, n. 10, p. 29). Após o assentimento de todos de que a sabedoria existe, o Verbo afirma de maneira conclusiva, que “não pode haver senão uma sabedoria. Pois se fosse possível haver muitas sabedorias, seria necessário que elas fossem a partir de uma só, pois antes de toda pluralidade existe a unidade” (De pace fidei, cap. IV, n. 11, p. 29). É 276


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O Agir Humano necessário, porém, deixar claro a relação entre a diversidade das sabedorias e a sabedoria una que existe antes da pluralidade. Segundo o Grego “é por participação (cursivo nosso) [na sabedoria] que há muitos sábios, permanecendo a própria sabedoria simples e indivisa como é em si”. Para o Verbo, por outro lado, existe uma única sabedoria, “cuja força é inefável. E cada um experimenta, na explicação (cursivo nosso) da sua virtude, essa força inefável e infinita”. Portanto, em todas as coisas singulares atingidas pelos sentidos, cada um dos sentidos reconhecem que “a sabedoria invisível excede todas as coisas” (De pace fidei, cap. IV, n. 11, p. 29). É por essa via do mundo, via da admiração da multiplicidade e da diversidade ou via “da admiração das coisas que estão sujeitas aos sentidos” que todos os que fizeram da filosofia profissão amam “a doçura pré-saboreada (sic.) da sabedoria”, afirma o Grego. Contudo, é na vida humana ou “no organismo humano” que de modo privilegiado reluz a sabedoria absoluta. Se, acima de tudo a força da sabedoria reluz no espírito racional como na sua imagem próxima, pois o “espírito racional é capaz de artes admiráveis”, reluz também na ordem dos membros do corpo e na “harmonia dos órgãos, no movimento”. O mais admirável, contudo, reconhece Nicolau por boca do Grego [...] é que esse resplendor da sabedoria se aproxima cada vez mais da verdade por uma intensa conversão do espírito, até que o próprio resplendor vivo a partir da sombra da imagem se torna cada vez mais verdadeiro e conforme a verdadeira sabedoria, embora a própria sabedoria absoluta nuca seja, tal como é, atingível noutra coisa, para que assim a sabedoria eterna e inesgotável seja um alimento intelectual perpétuo e sem fim.

O diálogo entre o Grego e o Verbo termina com o Verbo reconhecendo que o Grego avança diretamente para o objetivo 277


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O Agir Humano pretendido que era mostrar como a diversidade da fé pressupõe a unidade de um único Deus. Afirma o Verbo, “[...] todos vós, ainda que chamados de diferentes religiões, em toda diversidade pressupondes uma só coisa a que chamais sabedoria”. Portanto, se levarmos a sério o diálogo entre o Verbo e o Grego e os fundamentos que o sustenta, então deveremos concluir que a concórdia, reformulação em âmbito de diálogo inter-religioso do desejo cusano de pensar e buscar a unidade não se reduz a uma negação da diversidade e da diferença. Dessa forma, a busca pela “paz perpetua” entre as religiões deve ser reorientada para o diálogo que começa quanto todos aceitam que a diversidade e a diferença é a aparição da unidade originária da qual a multiplicidade é explicação ou na qual a diversidade participa.

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O Agir Humano ARROCHE, Victoria. El tema de la Trinidad en el De pace fidei de Nicolás de Cusa. In: MACHETTA, Jorge M. & D’AMICO, Claudia (Editores). Nicolás de Cusa: identidad y alteridad. Pensamiento y diálogo. Buenos Aires: Biblos, 2010, p. 405- 416. BEIERWALTES (2005), Werner. La relación entre filosofía e teología en Nicolás de Cusa. In. ______. Cusanus. Reflexión metafísica y espiritualidad. Traducción de Alberto Ciria. Pamplona: Eunsa, 2005, p. 11-44. D’AMICO, Claudia. La propuesta de tolerancia de Nicolás de Cusa. In: RIVAS, Rubén Peretó (Editor). Tolerancia: teoría y práctica en la edad media. Fédération Internationale des Instituts d’Études Médiévales – Textes et études du Moyen Âge, 64, Porto/Portugal, 2012 (p. 75-88). DENZINGER, Heinrich. Enchiridion symbolorum definitionum et declarationum de rebus fidei et morum. Edizione bilingue a cura di Peter Hünermann. Bologna/Italia : EDB, 1996. HOPKINS, Jasper. Glaube und Vernunft im Denken des Nikolaus von Kues. Prolegomena zu einem Umriß seiner Auffassung. Trier: PaulinusVerlag, 1996a. Trierer Cusanus Lecture. Heft 3. (Tradução para o inglês: Prolegomena to Nicholas of Cusa’s conception of the relationship of faith to reason, 1996b). Disponível em: http://jasper-hopkins.info/. NICOLAU DE CUSA. A douta ignorância. 2ª Ed. Tradução, introdução e notas de João Maria André. Lisboa/Portugal: Fundação Calouste Gulbenkian, 2008. NICOLAU DE CUSA. A paz da fé seguida da Carta a João de Segóvia. Tradução e introdução de João Maria André. Coimbra/Portugal: MinervaCoimbra, 2002. QUILLET, Jeannine. La paix de la foi : identité et différence selon Nicolas de Cuses. In: PIAIA, Gregório (a cura di). Concordia Discors: 279


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O Agir Humano studi su Niccolò Cusano e l’umanesimo europeo offerti a Giovanni Santinello. Padova: Editrice Antenore, 1993, (p. 237-250). REINHARDT, Klaus. Concordancia entre exégesis bíblica y especulación filosófica en Nicolás de Cusa. In: ÁLVAREZ GÓMEZ, Mariano & ANDRÉ, João Maria. Coincidencia de Opuestos y Concordia: Los Caminos del Pensamiento en Nicolás de Cusa. Actas del Congreso Internacional celebrado en Coimbra y Salamanca los días 5 a 9 de noviembre de 2001. Tomo II. Salamanca: Sociedad Castellano-Leonesa de Filosofía, 2002, p. 135-148. VESCOVINI, Graziella F. Il pensiero di Nocola Cusano. Turin: UTET, 1999 .

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12 POLÍTICA, EDUCAÇÃO E FORMAÇÃO MORAL NAS LEIS DE PLATÃO José Renato de Araújo Sousa 1

Platão tinha mais de 70 anos quando começou a redigir o que seria seu último diálogo, publicado postumamente por um de seus discípulos, Felipe de Opunte, a quem a tradição atribui a organização do diálogo e a redação da Epínomis; o que seria um possível complemento às Leis no que tange à educação do governante. Nas Leis, ainda que a tradição e a crítica especializada reconheçam-na como um diálogo inacabado, encontramos algumas respostas fundamentais para compreender o pensamento de Platão e fazer uma revisão de suas ideias, quase sempre, associadas, unicamente, à obra A República. É bem verdade, como está nas entrelinhas das Leis, que seu projeto político principal ainda era aquele do governante-filósofo, mas nem por isso deixou de dar inestimável contribuição ao que hoje compreendemos por Estado moderno, ao reconhecer que até o corpo jurídico-legislativo deve ser submetido à soberania das leis. Ao sugerir o Estado das Leis como segunda opção e modelo para conter a crise política de Atenas, Platão novamente recai no problema da formação espiritual do homem e sua relação com o Estado. Nessa segunda opção nos deparamos com algumas concepções que indicam que o filósofo mudou seu ponto de vista acerca da natureza humana. Sua psicologia é mais uma vez pormenorizada e seu projeto educacional está devidamente 1Professor

adjunto da Universidade Federal do Piauí.


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O Agir Humano relacionado com as conclusões a que chegou a respeito da psykhé, mímesis e paideía. Mais uma vez ele mostra a necessidade de ter um planejamento educacional condizente com as necessidades do Estado, ampliando desse modo o significado da paideía a um nível que, infelizmente, nós modernos estamos lançando ao esquecimento. Pesquisar e discutir esse diálogo certamente nos remeterá a velhos problemas que, de algum modo, estão ainda presentes em nossa estrutura político-social. Segundo estudiosos de Platão, o livro Leis foi escrito durante os últimos dez anos de vida do filósofo. Nessa fase da vida, é consenso entre os estudiosos que Platão modificou seu pensamento político em alguns pontos. A principal mudança ocorre em relação à confiança que o filósofo passou a creditar às leis. Antes vistas como insuficientes para dar conta da ampla complexidade das relações humanas na polis, as leis passam agora a ser vistas como uma solução possível para a crise política grega. Platão argumentava em sua República que uma mente superior (filósofo) habilmente educada não necessitaria de prescrições legais escritas para cumprir suas obrigações cívicas. A legislação acabaria sendo desnecessária, pois o homem de bem (kalòskagathós) saberia por si só como agir em cada situação ou seria guiado pelo guardião filósofo (República, 425 a 426 e). As reservas de Platão em relação às leis escritas estão bem explícitas no Fedro (274 e - 275 e) e no Político (294 b-c), onde diz que a lei jamais seria capaz de estabelecer, ao mesmo tempo, o melhor e o mais justo para todos, de modo a ordenar as prescrições mais convenientes. A diversidade que há entre os homens e as ações, e por assim dizer, a permanente instabilidade das coisas humanas, não admite em nenhuma arte, e em assunto algum, um absoluto que valha para todos os casos e para todos os tempos [...].

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O Agir Humano Interessante notar também que Platão atrelou o problema político ao educacional de uma maneira muito lúcida e original, pois ao contexto dramático das Leis entrelaçou fatos históricos ocorridos de grande importância, realçando assim a precisão de sua análise filosófica. No próprio corpus da obra fez observar que o declínio político de três dos maiores Estados políticos da Grécia antiga estava diretamente relacionado com suas respectivas paideía: Atenas por cultivar uma excessiva liberdade após o fortalecimento da democracia, desprezando sua tradição educacional, política e religiosa; Esparta por cultivar unilateralmente a virtude da coragem e carecer de temperança; a Pérsia por sua tirania opressora, e sua monarquia padecer de um ideal educativo para transmitir o governo aos seus herdeiros. O contexto dramático das Leis situa-se em Creta. Três anciões se dispõem a uma longa jornada com o intento de fundar uma colônia para habitantes de Cnossos e outros cretenses interessados em habitá-la. Seus nomes e respectivas pátrias são: Ateniense, proveniente de Atenas; Megilo de Esparta e Clínias de Creta. Pela fala da personagem Ateniense, Platão apresenta uma maneira de elaborar uma constituição exequível para a pólis. Parece então deixar de lado o projeto político de A República, onde haveria uma comunidade de guardiões, de mulheres e crianças, e passa a reconsiderar o direito à propriedade privada e à família que havia abolido na classe dos guardiões e filósofos, em prol de um regime ‘comunista’, que visava suprimir todos os traços de individualidade e de uma possível personalidade egoísta. A administração da cidade cabe agora a um corpo experiente de trinta e sete administradores, incumbidos de várias funções, e não mais a um monarca com poder centralizador. Esse aspecto por si só, já mostra uma abertura do regime político que passaria a contar agora com um conselho deliberativo.

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O Agir Humano Um amplo plano educativo ou currículo educacional é apresentado em conformidade com o regime político escolhido para a cidade e delineia uma formação cívica para a manutenção dessa nova polis. A educação é pensada em dois momentos: a primeira etapa começa no início da vida e vai até os dez anos de idade; a segunda começa aos dez e vai até os dezesseis anos. Na primeira fase, de zero a três anos, no seio da família, a criança é submetida a movimentos contínuos ritmados, acompanhados de acalantos, para moderar o seu medo e lhe despertar a coragem. Frequentemente serão carregadas pelas amas que deverão tratá-las com o meio termo da brandura e do rigor para desenvolverem um comportamento comedido entre a sensação de prazer e dor. Dos três aos seis anos, as crianças de ambos os sexos serão cuidadas juntas por amas que deverão deixá-las brincar a vontade sem, no entanto, descuidar da ordem, chamando-lhes a atenção ou castigando-as quando necessário. Após os seis anos, as crianças serão separadas para darem início aos exercícios físicos até os dez anos de idade. Meninos e meninas terão os seguintes exercícios: montar a cavalo, manejar arco, dardo e funda. Ambos deverão desenvolver agilidade com os pés e as mãos, direitos e esquerdos. Mas dos exercícios de lutas só serão praticados aqueles que podem ser úteis na guerra e promoverem saúde ao corpo. Concomitantemente aos exercícios de luta, as crianças devem ser educadas na dança, outra parte da ginástica que se mistura à música. Aprenderão com as palavras da Musa a serem nobres e livres, e com os movimentos ritmados e flexíveis da dança adquirirão bons hábitos, agilidade e beleza. Hão de praticar as coréias, e imitarão tudo que for considerado digno: a dança armada dos curetes praticada em Creta, a dança dos dióscuros de Esparta e a dança armada de Atena, em Atenas. Ao que tudo indica, as coreias eram praticadas em sentido religioso, sempre acompanhando a procissão de determinadas divindades. Dessa prática Platão teria 284


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O Agir Humano percebido o valor educativo das danças quando praticadas com frequência e conforme as regras da harmonia e do êthos musical. Outro fato importante na teoria da educação de Platão é a importância concedida aos jogos, brincadeiras ou divertimentos infantis (paidiá). O Ateniense reclama que todas as cidades gregas ignoravam a importância dessa prática para a legislação. Recomenda assim que as regras e os princípios de cada jogo sejam mantidos sempre, pois alterações nas regras dos jogos levariam as crianças, no futuro, a tentarem mudar as leis que deviam ser inalteradas. A argumentação dietética vale como analogia para a alma. Pode-se observar que o corpo habituado a um determinando regime alimentar quando é submetido a outro tipo, no início fica conturbado, mas logo depois se acostuma ao novo hábito. Da mesma forma ocorre com a alma e o pensamento. Se desde cedo se aprende a renovar as regras dos jogos, da mesma forma poderá querer modificar as leis. Isso seria um grande problema para a cidade, pois sua estabilidade política depende da manutenção da tradição política e cultural. Dos dez aos treze anos os alunos e alunas terão aulas de leitura e escrita. Aprenderão somente trechos selecionados dos poetas, pois, à medida que eles escrevem coisas boas, também escrevem coisas ruins. Andarão sempre acompanhados pelo pedagogo, que observará seus costumes e poderá aplicar-lhes a correção. Até os treze anos deverão estar aptos a ler e escrever, mesmo sem perfeição. Quanto aos alunos que não conseguirem esse intento no tempo estipulado não lhes será concedido nenhum prazo a mais. Platão parece sugerir que eles devem desistir. No entanto não deixa claro se eles devem desistir também das outras disciplinas nem que destino tomarão. Após o ensino das letras (grámmata), segue o curso de música com o aprendizado da lira ou cítara, do cálculo (elementos de aritmética, geometria) e uma propedêutica à astronomia. O ensino 285


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O Agir Humano da matemática tem fins práticos, como a auxiliar na economia doméstica e pública, dentre outras coisas. No passo 819 b – d, Platão, ao citar o exemplo da paideía egípcia, recomenda que o cálculo seja inserido na aprendizagem das crianças desde cedo através de jogos matemáticos. Pois, aprendendo no jogo o emprego indispensável dos números, todos os alunos ficarão sabendo como distribuir convenientemente um exército e de que modo conduzir uma expedição militar, e bem assim administrar sua própria casa, com o que se consegue deixá-lo mais espertos e úteis para eles mesmos. Depois disso com o ensino das medidas de comprimento, largura e profundidade, ficarão livres da ignorância ridícula e vergonhosa que se encontra naturalmente em todos os homens, relativamente a esses assuntos.

Ernest Barker (1978) observa que Platão não especifica quando começará o ensino da matemática, mas se observamos que os números eram representados por letras do alfabeto grego, o ensino da matemática poderia começar assim que o aluno tivesse conhecimento desse alfabeto. O ensino da astronomia envolvia a revolução dos corpos divinos, dos astros, do sol e da lua, para compreenderem como se fazia a distribuição dos dias em cada mês, dos meses ao ano, das festividades e dos sacrifícios correspondentes a cada época e data. Além desse fim prático, a astronomia tinha a função de fundamentar a religião das Leis, como veremos mais adiante. As regras para o ensino da música incluíam o acompanhamento correto entre canto e som instrumental. O que equivale em termos modernos a ‘cantar afinado’, ou seja, a voz seguir o tom e a melodia da música. Rejeitava-se a improvisação ou a sofisticação da parte instrumental. Em suma, o ensino fica restrito ao domínio básico do instrumento para uma execução musical e ao 286


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O Agir Humano conhecimento teórico necessário para tal fim. A composição musical e a composição das letras deveriam ser fiscalizadas pelos diretores dos coros, que exigirão conformidade e adequação para cada rito e festividade religiosa. Barker (1978) notou também uma lacuna na vida dos jovens entre os dezesseis e vinte e cinco anos de idade nesse percurso de formação. Considerando-se que a educação vai só até os dezesseis anos, devemos nos perguntar o que ocorre depois disso. Teremos então que fazer conjecturas a esse respeito, pois Platão não precisou o que ocorreria durante esses nove anos. Antes de qualquer coisa, é importante lembrarmos que Platão propõe nas Leis uma formação de quatro classes de cidadãos conforme a renda censitária. A paideía das Leis visa à formação de todos os cidadãos independentemente de classe. Logicamente não devem estar aí incluídos os escravos nem os estrangeiros, pois a obrigação da pólis é somente com os cidadãos. Somente no Livro XII é que o Ateniense fala de uma formação superior voltada para o conselho noturno, pressupondo a formação especial do filósofo de A República sem, no entanto, desenvolver a questão 2. Os jovens depois dos dezesseis anos poderiam se aprofundar numa formação militar até os vinte e cinco anos, quando então teriam oportunidade de pôr em prática o que aprenderam. Mas como diz Barker (1978), seria um período muito longo de preparação militar. Em nenhum dos Estados gregos faz-se menção a um treinamento físico tão prolongado. Em Atenas, o serviço militar obrigatório para os jovens (efebos) era de apenas dois anos, um dedicado na cidade e outro no campo. Para os jovens espartanos esse período era de três anos. Por conseguinte, a vida 2 Na Epinomis essa questão é retomada. Como a maioria dos estudiosos diz que ela não pertence a Platão, mas ao seu discípulo Felipe de Opunte que quis complementar as Leis, no que diz respeito à educação do conselho noturno, não levamos em consideração esse diálogo.

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O Agir Humano adulta desses jovens em ambas as cidades começava aos dezoito anos. Mas Platão não explicita por que os jovens da nova pólis só começariam suas atividades militares a partir dos vinte e cinco anos. Nas Leis essa fase de efebia não é mencionada, os jovens começam suas atividades militares aos vinte e cinco anos, durante dois anos percorrendo todo o território. Tinham a função de vigiar fronteiras, construir estradas, ginásios, diques, fortificações, trincheiras, templos, dentre outras atividades. O Ateniense recomenda que o maior número de jovens fosse enviado para o campo a fim de conhecer o território. Só depois desse período eles viriam a servir na cidade. Em caso de guerra era necessário que todos conhecessem sua pátria detalhadamente. Estaria implícito que, nesse intervalo de nove anos, quem mostrasse aptidão para um ensino mais elevado prosseguiria nos estudos da matemática, da dialética, da astronomia, conforme o plano educacional de A República? Talvez. À medida que o diálogo avança Platão deixa claro que pretende exigir cada vez mais uma formação filosófica dos guardiões da lei, os nomofýlax. Mas isso só seria possível se a própria pólis reservasse uma formação superior para aqueles que se destacassem na busca do conhecimento.

1. O LEGISLADOR E O CARÁTER EDUCACIONAL DAS LEIS. A escolha do legislador, ao invés do rei-filósofo de A República, representa uma volta a um passado político considerado ideal e uma conciliação de Platão com as leis do Estado. Cada polis grega traz em sua história um relato mítico de sua origem e formação. Cada uma das cidades gregas atribui a sua fundação à intervenção de um legislador divino, um tipo ideal que teria interferido nas dissensões das comunidades, dando-lhes um “código 288


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O Agir Humano jurídico” que estabeleceria as regras da convivência. Sem essas regras e o respeito por elas, a unidade do grupamento social seria desfeita e os homens retornariam a um estado de selvageria 3. O mito de Prometeu no Protágoras ilustra bem a necessidade das leis. Zeus é considerado nesse mito o grande legislador divino cuja intervenção foi necessária para a sobrevivência da espécie humana. Conta o mito que os homens, no início da criação, eram facilmente vencidos pelos animais selvagens porque lhes faltava um senso de comunhão e uma arte política. Zeus então enviou Hermes, o deus mensageiro, e o ordenou que desse aos homens pudor (aidós) e justiça como princípio ordenador das cidades (Protágoras, 322 a – d). Logo no início das Leis Platão reaviva a crença de que os homens participam das coisas divinas, ao lembrar que o legislador é celebrado por todos os cidadãos como o benfeitor divino, que distribuiu a justiça da melhor forma possível, através das leis. A volta a uma crença tão antiga deve-se à necessidade de ordem política e religiosa. Ao atribuir o caráter divino à figura do legislador, Platão está conclamando os atenienses a aceitarem as leis como uma dádiva divina. Nesse retorno ao mítico-religioso, ele esperava fortalecer as leis, tal como foi no passado da Atenas de Sólon. Da mesma forma que, no diálogo Críton (50 a -54 e), Sócrates havia considerado as leis como fundamento do Estado, o Ateniense e seus interlocutores, Clínias e Megilo, consentem que o objetivo das leis é manter a paz e a benevolência recíproca entre os indivíduos, pondo fim às lutas internas, pois esse é o maior bem para as cidades (Leis, 628 c-d). Ao analisar a situação política das cidades gregas, o filósofo esclarece que a soberania das leis foi esquecida por causa das classes divergentes que chegavam ao poder. Nos passos 680 b-c; 701 c-d das Leis, Platão recorre a Ilíada de Homero para ilustrar esse estado de selvageria com o mito dos Ciclopes. 3

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O Agir Humano Qualquer classe que saísse vitoriosa fazia das leis seu instrumento particular para realizar seus interesses e defender-se das possíveis ameaças da classe rival. Mas, qualquer tipo de lei que fosse feita visando somente ao interesse de alguns não poderia ser considerada uma lei legítima, assim como também não será legítimo tal governo. Só podem ser consideradas legítimas as leis que visam ao bem da comunidade, visto que sua função principal é manter o espírito de coletividade. Na medida em que ditam as regras do bem viver e da cidadania as leis assumem uma função educativa tão importante quanto as instituições de ensino 4. Platão não hesitará mesmo em defini-la como a autêntica educação em oposição àquela educação de ordem técnica. Desse modo, entende que a educação está para além do ensino e aprendizagem de técnicas e artes. A genuína educação só pode ser entendida como “...educação para a virtude, que vem desde a infância e nos desperta o anelo e o gosto de nos tornamos cidadãos perfeitos, tão capazes de comandar como de obedecer, de conformidade com os ditames da justiça” (Leis, 643 e). Além de estabelecer um programa de educação formal amparado na legislação do Estado, o legislador deve fazer com que as leis escritas sejam aceitas por todos sem muitas dificuldades de entendimento ou divergência política. Tal missão política exige um método pedagógico, pelo qual as leis sejam internalizadas de maneira eficaz. Os preceitos legais são mais bem apreendidos quando vêm acompanhados de motivações psicológicas. Deve-se usar uma linguagem persuasiva, que lembra a retórica. A lei é expressão da razão, do logos, e é também discurso, por isso deve principiar com um prelúdio à maneira de um canto acompanhado por cítara. 4 No Protágoras (326 d-e), também já se havia considerado as leis como um dos instrumentos educativos do Estado. A pólis educa os adultos por meio das leis, dizia Protágoras.

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O Agir Humano No passo 721 b – e das Leis, Platão cita dois exemplos de como promulgar uma lei. A lei simples e pura determina o seguinte: “Para casar, é preciso ter de trinta a trinta e cinco anos; quem violar esse dispositivo sofrerá pena de multa e de atimia. A multa será deste ou daquele importe; a privação dos direitos civis e políticos, de tal ou qual extensão”. A lei dupla, persuasiva, onde se mistura prelúdio com as leis propriamente ditas: Casa-se quem tiver de trinta a trinta e cinco anos, tomando-se em consideração que, por natureza, o gênero humano participa de certa imortalidade, a que todos instintivamente aspiram. É ambição de todos adquirir fama e não ficar anônimo depois de morto. Ora, de certo modo o gênero humano se desenvolve em íntima correlação com o tempo, que ele acompanha e acompanhará até o fim, o que é sua maneira de ser imortal, com deixar após si os filhos de seus filhos, sempre uno e o mesmo, participando, pela geração, da imortalidade. É contra as leis divinas privar-se alguém voluntariamente desse privilégio, o que fará de caso pensado quem não se preocupar de ter mulher e filhos. Quem obedece à lei, ficará livre de qualquer penalidade; no caso de renitência, por chegar aos trinta e trinta cinco anos sem contrair matrimônio, pagará todos os anos a multa de tanto, para não pensar que o celibato é fonte de lucros e facilidades, como também se verá privado das demonstrações de respeito público que a todo instante os jovens dispensam às pessoas mais velhas.

Com a aplicação desse método, Platão considera que as leis perdem aquele caráter tirânico e passam a ser recebidas com simpatia e benevolência. A prescrição das leis acompanhada de prelúdio, Platão compara ao médico de homens livres que antes de tratar do paciente tenta persuadir-lhe sobre a necessidade do tratamento. O objetivo do médico, ao usar de persuasão, visa acalmar o doente e reconduzi-lo à cura. Da medicina hipocrática, 291


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O Agir Humano Platão extrai esse modelo para dar um aspecto didático às prescrições legais. Com seus preâmbulos às leis, o filósofo pretende dotar a comunidade de um senso crítico e uma ampla consciência política. Mesclando situações possíveis e, às vezes, até míticas com fatos reais, os preâmbulos ensinam a comunidade a ter uma ampla consciência cívica e a compreender a necessidade da soberania das leis. Diferente dos tempos modernos em que a aplicação e o estudo das leis ficam restritos a um grupo (advogados, magistrados e juristas, dentre outros), as leis deveriam tornar-se um patrimônio cultural de domínio público.

2. A ÉTICA E A POLÍTICA COMO UM PROCESSO EDUCACIONAL. A possibilidade da educação moral e política antes posta como um problema no diálogo Protágoras é agora reconhecida como possível. As virtudes são passíveis de serem ensinadas por meio dos hábitos e podem ser compreendidas em um nível satisfatório do conhecimento: a dôxa. O sofista Protágoras, no diálogo homônimo, ao descrever o processo educacional, dizia que a virtude é ensinada desde a infância a partir do convívio com a família, depois com os mestres de música, ginástica e gramática. Todos levam a criança a perceber a diferença entre ser justo e injusto, ser santo e ímpio, agir de forma boa e má. Ao contrário, Sócrates defendia que a apreensão da virtude se dá por meio da unidade que o conceito sugere, e isso só ocorre mediante o conhecimento e a sabedoria. Somente nos diálogos posteriores Platão concatenará essas duas teses. Não excluindo nenhuma das duas. Os dois processos educativos ocorrem em ordem, dependendo do tipo humano. Aqueles que apresentam uma natureza filosófica podem apreender um conceito 292


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O Agir Humano mais elevado de virtude mediante a ideia, a unidade formal que Sócrates buscava. Contudo, nas Leis Platão reconhece a importância dos hábitos e costumes na formação da consciência moral, aproximando-se, desse modo, do pensamento de Protágoras, que Sócrates parecia discordar durante o debate. Em seus dois projetos políticos, Platão tem em mente que a educação é indispensável na formação do Estado. A pólis, para existir como uma unidade política necessita de pessoas empenhadas em viver sob as regras de um bem comum. Entretanto, a noção de um bem comum para se viver em sociedade não é captada por todas as pessoas. Somente uma ínfima parcela dos seres humanos é capaz de saber, por si só, o que é necessário para se viver em sociedade. Essa pequena parcela de homens divinos, por que não dizer filósofos, ainda assim corre o risco de se desviar da reta conduta. Pois, por conta de sua natureza mortal, o homem está sujeito sempre ...a querer mais que os outros e a só ocupar-se com seus interesses pessoais, por fugir irracionalmente da dor e procurar o prazer, aos quais emprestaria muito maior importância do que ao justo e ao melhor, e gerando trevas em si próprio, acabaria enchendo-se, e enchendo a cidade, de todas espécies de infortúnio (Leis, 875 c).

A necessidade das leis deve-se à escassez desses homens sábios. Quanto a esse fato afirma o Ateniense: Se porventura em qualquer tempo nascesse algum homem dotado, pela graça divina, de natureza capaz de compreender o alcance de tais princípios, não haveria necessidades de leis para dirigi-lo, porque não há leis superiores ao conhecimento, pois é contrário à ordem divina ficar a mente escrava ou na dependência do que quer que seja, visto haver sido criada para mandar, no caso de ser, por natureza, verdadeiramente livre. Mas isso 293


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O Agir Humano é o que não ocorre hoje em parte alguma, a não ser em proporção muito reduzida [...] (Leis, 875 d).

E, ainda que viesse a existir tal natureza capaz, a impossibilidade de transmitir essa sabedoria superior aos demais os levaria a reconhecer a necessidade de barganhar o bem comum através das leis5. Essa é a conclusão de Platão, após uma longa jornada política. Assim como em A República, a educação nas Leis fica a cargo do Estado. À pólis compete construir escolas públicas, ginásios e outros espaços com fins educativos e divertimentos para os jovens (Leis, 804 d-e). A educação torna-se uma instituição pública, da qual nem mesmo os pais das crianças devem descuidar, sendo inclusive obrigados a mandá-las para a escola (Leis, 776 b; 804 d). A formação dos indivíduos mediante os preceitos das leis garante a existência salutar da cidade, pois de jovens bem educados advêm os bons cidadãos. Ser bem educado, conforme os preceitos das leis, significa

5 Sobre o bem comum Barker diz: “...e como tal nos une numa sociedade que tem a finalidade coletiva; só nesta sociedade, orientado para o bem comum, pode o indivíduo realizar o seu próprio bem individual. Não é fácil reconhecer esses fatos, e perceber que o bem comum é a condição prévia do bem individual; eis porque a arte verdadeira do legislador, que contribui para a civilização mais do que qualquer outro instrumento ou técnica, é uma necessidade real. De outro lado precisamos também das leis como motivação para a nossa vontade hesitante. Se a opinião coletiva não for organizada com o apoio de uma força comum, os homens tenderão a usar como padrão de conduta seu interesse particular (idiopragía), deixando-se levar à competição do egoísmo (pleonexía), mesmo quando têm uma percepção intelectual do bem comum. Quem for capaz de reconhecer naturalmente o bem, pela graça de Deus, não precisará das leis. Não qualquer lei que seja superior à sabedoria; e a mente livre e verdadeira é por natureza soberana. Mas isto é um sonho. Essa pessoa não existe, em nenhum lugar: seria um deus entre os homens; precisamos, portanto, das leis e da ordem, embora sabendo que são apenas uma alternativa inferior, em comparação com a situação perfeita; e que as leis são regras aplicação geral, que não se podem adequar perfeitamente a todos os casos, e atender a todas as circunstâncias, como faz a mente livre e soberana” (BARKER, 1978,p. 288)

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O Agir Humano agir segundo os princípios e as normas cívicas estabelecidas pelo Estado. Platão cria um cargo administrativo especialmente voltado para o cuidado com a educação, equivalente ao de Secretário ou Diretor Geral da Educação de nosso tempo, e o considera o cargo mais importante da pólis. Escolhido entre os guardiões da lei por votação, ele deve contar com mais de 50 anos, ser casado, e obrigatoriamente ter filhos, de preferência de ambos os sexos. Deve ser comprovadamente visto como o “cidadão mais completo em todos os sentidos” (Leis, 765 d – 766 d). Seu mandato será de 5 anos, tendo como principais tarefas: cuidar da administração das escolas e ginásios em todos os seus aspectos, educacional e funcional. Para facilitar sua difícil tarefa, serão escolhidos, por sorteio, auxiliares que inspecionarão as atividades de ginástica e música. Logicamente esses auxiliares terão que comprovar competência nessas atividades para poderem julgar as competições e a excelência da execução das mesmas. O fato de Platão exigir que esse guardião geral da educação tenha filhos não deve passar despercebido: a experiência paterna conta muito como conhecimento da natureza da criança, fase onde principia a educação moral. Se o homem for bem educado em um ambiente favorável “...torna-se, de regra, o mais tratável e divino dos seres; porém o mais feroz de quantos a terra já produziu, sempre que a educação for insuficiente ou mal orientada” (Leis, 766 a). Por isso mesmo o “Diretor da Educação” deve considerar a educação das crianças como algo de suma importância. A melhor forma de incutir nas pessoas a ideia da soberania das leis é desde cedo habituar as crianças no espírito das leis (JAEGER, 2003). A educação é uma responsabilidade que se estende à família também. Os pais devem cercar a criança de cuidados especiais durante o seu crescimento. Desde a mais tenra infância, as crianças 295


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O Agir Humano e os jovens, pelo treinamento de suas afeições e a formação de hábitos, serão levados a desejar ou odiar com desgosto instintivo tudo que as leis determinarem. Nessa fase, destaca-se a função dos instintos básicos: prazer e dor. É inicialmente pela orientação desses instintos que a criança começa a desenvolver uma noção instintiva de medida. Posteriormente vem o ensino da música e da dança, a ginástica, para completar a educação pelo movimento. A persuasão, tão usada por intermédio dos mitos, é chamada para servir às leis, assegurando o aprendizado das virtudes6. Ela pode garantir uma melhor receptividade ao ensino mesmo naqueles que não têm boa vontade para aprender. A persuasão é um método quase infalível e deve, sempre que possível, anteceder a objetividade e o emprego da força que torna fria toda forma de conhecimento. Platão pensa o Estado e toda sua estrutura política como uma força educadora, daí, a legislação ser submetida ao princípio educativo por intermédio dos preâmbulos das leis. O filósofo não hesitou mesmo em atribuir valor artístico, além de educativo, à constituição das leis, chamando-a de “a melhor e mais bela tragédia” (Leis, 817 a –d). Recomenda que ela seja tomada como cânone das artes e seja inserida como texto de leitura e interpretação nas aulas de gramática. Os educadores e guardas das leis a tomarão como modelo e exigirão que os professores as ensinem aos alunos. Outras obras semelhantes a essa também devem ser aceitas e difundidas no ensino com o mesmo intuito. Platão expressa claramente seu intento de substituir as tragédias gregas, tão apreciadas pelos atenienses, por uma obra que despertasse o interesse pela formação cívica e moral. A obra dos poetas trágicos, tão duramente rejeitadas em A República, novamente é atacada do ponto de vista moral e submetida a uma censura prévia 6 Brisson (2003) observa que em quase todos os preâmbulos do livro VI ao XII das Leis Platão recorre a mitos variados com o intuito de despertar a emoção, a empatia, pelo valor moral que a lei carrega.

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O Agir Humano para saber se são adequadas às exigências da formação moral que o Estado preconiza em suas leis. Platão, em sua velhice, ainda se preocupava muito com o destino político de sua amada pólis. Suas reflexões sobre a política o levaram a pensar as condições ideais pelas quais o Estado ateniense poderia soerguer-se e perpetuar-se na história como unidade integradora do seu povo. Ademais, fato surpreendente nessa trajetória e contexto é a constatação do filósofo de que um projeto político não pode prescindir de um projeto educacional. A República aos olhos de Platão servia assim como um modelo perfeito para se mirar e tentar se executar a reforma educacional necessária que todo Estado político, em fase de decadência, reclama. Num primeiro instante, se a edificação do Estado ideal é feita em detrimento do Estado real, aos olhos do filósofo, isso não se deve tanto ao seu tipo de regime político, mas à dissociação entre educação e Estado, que levou ao enfraquecimento da cultura (paideía) e dos valores pelos quais a pólis subsistia como unidade política. O planejamento político de A República foi desenvolvido sob a ótica de um governante sábio; por isso exigia um programa de educação diferenciado, após aquela fase de assimilação dos costumes e conhecimentos propedêuticos. Ele privilegiava mentes bem dotadas, que deveriam tornar-se a estirpe do poder estatal, caso o Estado ideal viesse a concretizar-se. Esse modelo de educação prestava-se muito bem para servir na formação dos filósofos, mesmo que não viessem a exercer o ofício político, ainda que Platão acreditasse que a solução para todos os problemas da pólis estaria na chegada do filósofo ao poder, ou então, do poder até a filosofia. No entanto, o filósofo era um tipo social demasiado hostilizado por seus conterrâneos; nem a aristocracia nem a democracia o viam com bons olhos. A melhor alternativa talvez fosse mesmo educar algum governante com propensões para a virtude e a filosofia, visando trazer para a prática suas ideias. Platão pensou ter achado essa 297


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O Agir Humano oportunidade em sua primeira viagem à Sicília, cerca de 388 a.C., quando foi tentar converter o tirano Dioniso I à filosofia. O velho tirano logo se aborreceu e o expulsou. Retornando a Atenas em 387, funda a Academia. Após a morte do tirano, seu cunhado Dion convidou Platão para retornar à cidade e pôr o plano do rei-filósofo em prática com a instrução do seu sobrinho Dioniso II. Por volta de 367 a.C. partiu outra vez para a Sicília para tentar convencer o jovem tirano, mas seu esforço foi em vão. Pensou ter encontrado em Dion, tio de Dioniso II, a pessoa e as condições certas para implantar seu projeto de legislação e política (Carta VII, 327 e – 328 c). O trágico desfecho dessa história supostamente levou o filósofo a repensar seu plano de ação e mais tarde sugerir outra alternativa para conter a dissolução da pólis grega.

3. POLÍTICA, EDUCAÇÃO E PSICOLOGIA. Nos livros I e II das Leis, o Ateniense argumenta que qualquer Estado, para efetivar-se e permanecer em sua excelência política, deve oferecer as condições necessárias para levar os homens ao cultivo de todas as virtudes: sabedoria, temperança, justiça e coragem, pois para se tornarem fiéis e incorruptíveis nas dissensões civis é necessário possuir todas elas. Sem o exercício de todas as virtudes, nenhuma alma permanecerá em seu equilíbrio, e, consequentemente, o Estado perderá sua unidade, sucumbindo novamente ao império dos vícios. A lealdade cívica, quer dizer, o respeito às regras que norteiam a coletividade na pólis, é o reflexo do cultivo dessas virtudes. E ela só é conseguida à custa de uma paideía que prepara o indivíduo para responder às necessidades jurídicoadministrativas da pólis grega. Para Platão, a verdadeira paideía é a que torna os cidadãos aptos a comandarem e a obedecerem segundo os “...ditames da 298


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O Agir Humano justiça” (643 a). Uma educação que não leve em consideração a razão e a justiça, nem mesmo merece ser chamada de “educação”. Platão se refere aqui, de maneira crítica, principalmente à educação profissional que visava à aquisição de riquezas sem nenhuma preocupação com a formação moral. A educação que prepara o homem para desempenhar uma vida de perícia profissional ou para o trabalho artístico se não acompanhada da formação ética carece de significado e importância. Ao acusá-la de ser “nada nobre”, Platão faz uma dissociação entre a educação profissionalizante e técnica da educação política e moral. Isso não significa que ele não tenha atentando para a importância da educação profissional. É que essa educação só de maneira muito reduzida contribui para a educação moral de que os homens livres necessitam. Talvez aqui tenha nascido na história da educação do Ocidente a exigência de que mesmo numa educação técnica e profissionalizante haja uma formação ética dos indivíduos. Das profissões antigas, ao que parece, somente a medicina tinha uma espécie de “código de ética profissional”, possivelmente redigido por Hipócrates. Platão é também um inovador ao fazer da ética e da moral o escopo da paideía grega, ao mesmo tempo em que deixou para a posteridade a responsabilidade maior de transformar o mundo pela ciência racional7. Platão não considerou o conhecimento como um fim, mas um meio para o êxito moral, o verdadeiro fim da educação. Segue assim a tradição grega ao retomar as duas maneiras de formar essa valorosa consciência moral: ginástica para o corpo e música para a alma. Sendo que a ginástica pode começar desde os primeiros meses de vida, período em que os bebês são submetidos a movimentos 7 “Opondo-se ao pragmatismo dos Sofistas, demasiado apegados à eficácia imediata, Platão edifica todo seu sistema educacional sobre a noção fundamental da verdade, sobre a conquista da verdade pela ciência racional”. (MARROU, 1990, p. 109)

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O Agir Humano ininterruptos, dia e noite, como se estivessem dentro de um barco sempre que possível acompanhados de acalantos. Platão toma como exemplos práticos os movimentos que a mãe ou a ama faz com o bebê, ao mesmo tempo que cantarola para ele dormir, e os casos de cura dos coribantos ao praticarem a dança ordenada e os cantos sagrados. É a combinação da música e do movimento ritmado que causa esse encantamento na alma. O filósofo então recorre a uma explicação psicofisiológica: O medo é a doença tanto de umas como de outras, oriundo de certa debilidade da alma. Quando opomos a semelhante estado um abalo externo, o movimento de fora domina o movimento interior do medo, diminuindo, de imediato, os batimentos do coração que acompanham tais estados, o que constitui benefício inestimável: a uns, faz dormir; a outros, que a música e a dança mantêm acordados, com a ajuda dos deuses acalmados por gratos sacrifícios, fazem passar do estado de loucura furiosa para o do bom senso. (Leis, 791 a-b)

Se a criança passa por essas perturbações interiores frequentemente, e não recebe o cuidado necessário, ela tende a se tornar uma criança medrosa e insegura. Os exercícios físicos motores ensinam pela força do hábito a criança a dominar o medo, tornando-a corajosa. Assim, ela adquire a primeira parte da virtude. Deve-se estar atento ao choro do bebê, pois essa é sua forma de comunicação quando algo não lhe agrada. Platão está ciente que é necessário entender o que o bebê sente, evitando ao máximo as situações de estresses, atenuando-se a dor ou o sentimento que lhe causa desagrado. A psicologia platônica requer uma educação física elementar, mas de importância fundamental na formação moral da criança. Os movimentos harmônicos e ritmados do corpo produzem na alma a harmonização dos movimentos caóticos dos círculos psíquicos que 300


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O Agir Humano impedem o indivíduo de exercer sua racionalidade. Nesse sentido, pode-se entender a racionalidade como um movimento circular uniforme como o que ocorre nos planetas em movimento em torno do Sol. A astronomia antiga vê todo o universo regido por um movimento cósmico de uma alma divina que opera de forma inteligente na matéria, o devir, submetendo-lhe a regras precisas e inexoráveis. A alma humana ao contrário, por ser menos perfeita, não tem esse poder total sobre o corpo, sôma, até que tenha percorrido um longo caminho que começa com seu nascimento e se prolonga até o desenvolvimento das suas faculdades mentais superiores na fase adulta. A psykhé que antes gozava de uma condição de equilíbrio no cosmo onde residia, ao entrar em contato com o corpo, tem suas atividades psíquicas, anteriormente reguladas, abaladas no ciclo do nascimento. A educação física e musical é o primeiro passo para restabelecer o equilíbrio perdido. Os movimentos externos regulares e ritmados aos quais a criança é submetida agem como uma força que ordena os movimentos internos da alma. Enquanto, ao mesmo tempo, a música – canção de ninar – age como um encantamento que faz a psykhé desordenada ceder e reorganizar seus movimentos circulares. O encontro conflituoso entre psykhé e sôma é mais intenso na primeira infância, visto que as forças psíquicas e corporais se confrontam como forças opostas que precisam ser equilibradas. A consequência de uma predominância de uma força sobre outra resulta na doença da alma e do corpo. De certa forma, pode-se dizer que o homem nasce com deficiência em sua saúde, e só progressivamente ele vai adquirindo o vigor espiritual e corporal mediante a educação e uma boa nutrição dietética. Em Platão a educação assume um papel terapêutico como a medicina. Sua função é estabelecer o equilíbrio entre alma e corpo através da harmonia dos seus movimentos. Nas Leis, o princípio básico da 301


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O Agir Humano educação do recém-nascido é pô-lo em movimento sempre que possível. Platão acredita que quanto mais cedo cuidar da personalidade humana, será mais fácil direcionar o homem para as virtudes espirituais. Frias observa que pela estrutura ontológica do Timeu, a alma não poderia ser a fonte do seu próprio desequilíbrio. Assim as doenças da alma seriam provenientes do corpo. Em Platão, a doença da alma, a desrazão (ánoia), que se subdivide em loucura (mania) e ignorância (amathía), “estados que manifestam o bloqueio da ação da alma racional (noûs)”, é a falta de comando da parte racional sobre as duas partes concupiscível e irascível. (FRIAS, 2005, p.130) Em termos médico-hipocráticos, significa dizer que a desordem nos elementos psíquicos se dá através de dois mecanismos físicos do sôma: o movimento desproporcional dos elementos terra, fogo, água e ar e dos quatros elementos humorais: bile amarela, bile negra, sangue, flegma (FRIAS, 2005). A proporção e o movimento desses elementos e suas qualidades agem no corpo e causam duas sensações opostas na alma: prazer e dor( Timeu, 86 a – 87 b). De par com as descobertas e teorias da ciência médica do seu tempo, Platão fundamenta a tese socrática do “mal involuntário”, e nos convida a uma tolerância com os erros do outro. A constituição física do corpo e seus distúrbios fisiológicos são responsáveis pelo estado de irracionalidade ou ignorância que impedem a alma (homem) de agir moralmente em determinados momentos. Nas Leis, passos 731 c - 734 b, o Ateniense repete a tese socrática de que a intemperança não é deliberada. Após o diagnóstico da doença, vem o prognóstico: a educação bem dirigida permite a alma recobrar todos os seus sentidos e raciocínio. (Timeu, 86 e) Podemos fazer uma comparação da psicologia e da ciência médica do Timeu com a política das Leis. O político (legislador) deve 302


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O Agir Humano agir como um médico e um psicólogo conhecedor da natureza humana. Aliás, como diz o Ateniense, no Livro I das Leis, é da competência da ‘arte’ política conhecer a natureza e a disposição das almas para prescrevê-la o melhor regime de vida. Somente com esse conhecimento, adquirido por meio de outro conhecimento mais elevado – a filosofia – é que o legislador estará apto a prescrever a melhor maneira de como viver e o melhor Estado a garantir a kalogathia grega. Diz o Ateniense sobre a melhor forma de vida: Ora, para viver bem, a primeira condição é não cometer injustiça, e depois, não ser alvo de injustiça por parte de terceiros. O primeiro item é fácil de conseguir; mas é extremamente difícil adquirir a força necessária para ficarse ao abrigo de injustiças, o que só conseguirá plenamente quem for bom em todos os sentidos. O mesmo passa com a cidade: com vida boa, viverá em paz; porém se for perversa, ver-se-á a braços com guerras externas e interiores. (Leis, 829 a)

Se a natureza humana consiste principalmente nos prazeres, dores e desejos, é pela orientação dessas afecções que a educação deve principiar, como de fato começa a pedagogia das Leis ao dedicar especial atenção à formação da criança. A orientação dos instintos pelo hábito leva a percepção da vida temperante, que é a vida mais sã. Aquele que conhece a vida temperante sabe que ela é moderada em tudo, evita as dores mais intensas e escolhe os prazeres tranquilos. Portanto, a vida mais feliz e agradável é a temperante, pois se liga às virtudes do corpo e da alma (Leis, 734 a d). Mas a educação não é algo infalível. Platão reconhece que a natureza humana mesmo sendo dirigida sob uma boa educação é passível de recaídas devido à força contrária dos instintos que puxam a alma para o caminho tortuoso dos vícios. São poucos os homens que conseguem se permanecer moderados quando 303


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O Agir Humano instigados por situações que despertam os desejos. Àqueles que fogem dos preceitos e regras determinadas pelas leis precisarão ser submetidos a uma penalidade para ressarcir o prejuízo causado a terceiros, e corrigi-los para que não errem mais no futuro (Leis, 863 a). A penalidade deve ser proporcional ao dano causado. O castigo deve ser proporcional ao nível de consciência do infrator, quanto maior a instrução ou formação maior a penalidade (Leis, 934 a). O homem que age tomado pela fúria e pela paixão desce de sua condição nobre para uma condição de selvageria, de animal furioso, que a kalokagathia grega despreza. O lado mais instintivo do homem, mais irracional, pode ser então corrigido pelo castigo corporal, caso a persuasão e os preâmbulos das leis não tenham êxito em sua recuperação. Se em último caso o castigo legal falhar somente resta o aniquilamento legal do infrator pelas mãos do próprio Estado. Na aplicação da pena, Platão procura um fim educativo. A pena é imposta não como uma retribuição ao dano causado, pois o que foi feito não tem volta. “Ela é imposta tendo em vista não o passado, mas o futuro, para garantir que tanto a pessoa punida como as que souberem da sua punição desistam do comportamento criminoso ou aprendam a detestar o crime” (BARKER, 1973, p. 340). As leis devem prever toda situação possível de infração e tentar impedi-las de acontecer mediante a orientação permanente dos indivíduos. Eles podem ser orientados para uma ação correta pelos preâmbulos ou em último caso pelo uso da força. Como havia discorrido no Górgias, passo 526 b, a dor e o sofrimento podem ser usados para tornar melhores os infratores, e ainda servir de exemplo para que outros não repitam aquele ato ignominioso. O legislador como um médico da alma prescreve a pena para purificar a alma da tirania das paixões e da cólera. O castigo visa neutralizar os prazeres violentos que levam a alma ao ato criminoso. Se fosse levada até as últimas consequências, a tese socrática do crime ou mal involuntário, certamente todos os criminosos se 304


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O Agir Humano tornariam inimputáveis. O crime ou injustiça é visto como uma doença da alma, mas mesmo assim é preciso fazer uma diferenciação entre crime voluntário e involuntário e exigir daqueles que forem considerados culpados uma compensação. Mesmo reconhecendo a necessidade de medir o grau de intenção de um delito para poder aplicar a pena cabível, Platão não deixa de precisar que o crime ou a injustiça é o desarranjo dos elementos psíquicos sobre os quais ele havia discorrido nos diálogos anteriores. Pode ser que a tirania das paixões exercidas sobre a alma, a leve a um estado de ignorância ou um estado de loucura (manía) ou algo semelhante que impeça o indivíduo de agir racionalmente. A exigência de equilíbrio mental é maior para aqueles que tiveram antes uma educação voltada para o rearranjo dos elementos psíquicos. Quanto maior a instrução recebida, maior a responsabilidade pelos atos cometidos.

4. CONCLUSÃO. Platão leva a sério uma máxima proferida no Político, de que a política é uma arte da alma. Por conseguinte, recomenda que o político ou legislador domine os conhecimentos acerca da natureza humana, se quer realmente ser um bom governante. Política e educação em Platão são termos tão entrelaçados que dificilmente alguém possa separá-los sem causar prejuízos aos valores semânticos que os termos expressavam para os gregos.

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O Agir Humano REFERÊNCIAS BARKER, E. Teoria Política Grega. 2 ed .Trad. Sérgio Bath. Brasília: UNB, 1978. BRISSON, L. A religião como fundamento da reflexão filosófica e como meio de ação política nas Leis de Platão. KRITERION, Belo Horizonte, nº 107, Jun/2003, p.24-38. CASSIRER,E. O Mito do Estado. Rio de Janeiro: Zahar Editores, 1976. FRIAS, Ivan. Doença do corpo, doença da alma: medicina e filosofia na Grécia Clássica. Rio de Janeiro: Ed. PUC – Rio; São Paulo: Loyola, 2005. JAEGER, W. Paideía: a formação do homem grego. São Paulo, Martins Fontes, 2003. PLATON, Œuvres complètes, (Collection des Universités de France publiée sous le patronage de l’Association Guilhaume Budé), trad. A. Croiset, L. Robin, A. Diès et al., Paris: Belles Lettres, 1920 e segs. PLATÃO, Diálogos (Coleção Amazônica). Trad. Carlos Alberto Nunes, Belém: UFPA, 1972 e segs. PLATÃO. A República. Tradução e notas de Maria Helena da R. Pereira. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 5 ed., 1987. PLATÃO. Sofista e Político. Trad. José Cavalcante de Sousa (et all.). São Paulo: Abril Cultural, 1983. PLATÃO. As Leis. Trad. Edson Bini. Bauru: EDIPRO, 1999. REALE, G. Corpo, alma e saúde: o conceito de homem de Homero a Platão. São Paulo: Paulus, 2002. ROBINSON, T.M. A Psicologia de Platão. São Paulo: Loyla, 2007.

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13 PENSAMENTO PURO E IMAGEM NO FÉDON DE PLATÃO Lourival Bezerra da Costa Júnior1

1. INTRODUÇÃO. A hipótese que procuraremos discutir nesse texto é a de que no Fédon de Platão o conhecimento verdadeiro se dá como reciprocidade entre um processo distintivo ou negativo de cognição 2 e o estado cognitivo inato3. O Fédon se desenvolve tendo em vista a explicitação de dois modos de aquisição do saber e estabelece uma diferença entre dois tipos de exigências — o modo de investigação direta dos fenômenos4 e o modo dialético de investigação ideal5 —, realizando uma crítica contra o modo naturalista de investigação direta dos fenômenos, a fim de mostrar que somente o pensamento puro conhece verdadeiramente.

Doutor em filosofia. Professor do departamento de filosofia da UERN/Caicó (E-mail: premhasido@hotmail.com) 2 Por processo distintivo de cognição esta pesquisa entende a negação dos derivados das sensações ou purificação do pensamento, que começa em (64a) e se estende com a pergunta sobre o que é a morte segundo o pensar filosófico a partir de (64e). 3 Por estado cognitivo inato esta pesquisa entende o conhecimento que a alma tem antes de usar as sensações, antes de nascer em forma humana, como está exposto a partir de (72e). 4 De acordo com a tradução de Jorge Paleikat e João Cruz Costa (Abril Cultural, 1972), tal método busca a aquisição do conhecimento investigando os fenômenos diretamente, por meio das sensações. 5 Tal método busca a aquisição do conhecimento investigando as Formas inatas, sem o uso das sensações e seus derivados. 1


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O Agir Humano Nessa direção, serão enfatizadas as afecções que os conteúdos do pensamento propiciam ao filósofo. Investigar-se-á que peso argumentativo possui para o referido diálogo a distinção entre as sensações e aquilo do que são sensações e se as sensações podem ser consideradas, ao mesmo tempo, propiciadoras e entraves do verdadeiro conhecimento. Com efeito, buscamos mostrar que a argumentação central do Fédon não se refere à exigência de uma prova fenomênica da imortalidade de psyché, como exigem os interlocutores de Sócrates a partir de 70a, mas à necessidade do modo filosófico de pensar a imortalidade e, assim, a morte. Segundo nossa interpretação, nesse diálogo a morte constitui um bem que assegura a aquisição do verdadeiro saber e, para o filósofo, ela e a purificação do pensamento se confundem. Em outros termos, nesse artigo nos ocuparemos a respeito da relação — necessária — que se estabelece para o filósofo entre a morte e o método de investigação ideal. Cuidando que a morte seja necessária a esse referido método e à obtenção do verdadeiro conhecimento, explicitaremos como aí se recorre à questão da purificação do pensamento como sendo a própria morte para o filósofo. Ou seja, explicitaremos a distinção entre sensações e aquilo do que são sensações — uma vez que, na confusão entre sentir e pensar não há pensamento puro; caso em que as sensações constituem entrave ao verdadeiro conhecimento —. Tal distinção será explicitada relacionando-a à alma existente num corpo humano. Isto implicará na tese de que há uma medida para a aquisição do conhecimento verdadeiro numa alma que se encontra em forma humana. Perscrutaremos, assim, quais são as dificuldades próprias ao modo de investigação ideal, qual é o sentido do termo “morte” e, portanto, de purificação do pensamento, necessária ao referido método, esclarecendo como é possível confundir a preparação para a morte com uma mera hostilidade ao corpo e às sensações. 308


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O Agir Humano Enfim, será evidenciado que nesse diálogo Platão descreve as razões pelas quais o filósofo considera que o homem que realmente consagrou sua vida à verdadeira filosofia, no sentido correto do termo, estabelece reciprocidade entre morrer e estar morto (64a), adquirindo, consequentemente, legítima convicção de ir encontrar para si, além da realidade sensível, excelentes bens (63e – 64a). Para fundamentar a tese aqui anunciada será preciso elucidar a seguinte argumentação: 1) O Fédon fala de Seres inatos (Formas), que são distintos de tudo que é sensível, inclusive das imagens ( vide 65a-d). 2) Tais imagens, que são sempre derivadas das sensações são imagens dos Seres inatos (74a -75b). 3) No Fédon o verdadeiro conhecimento é a recordação 6 de um Saber inato (72e) e se dá como distinção entre sensação e pensamento puro. 4) Todavia, não há tal recordação sem que essa seja propiciada pelas sensações ( vide 75a-77a), porque recordar é distinguir a imagem daquilo do que a imagem é imagem (73c-74b). 5) A morte para o filósofo é distinta da morte para o suicida (61c63d) e distinta da morte para o vulgo (64b-d), pois consiste na negação de que a imagem seja idêntica àquilo do que a imagem é imagem (73c-74b). 6) Logo, no Fédon o saber verdadeiro se dá como reciprocidade entre o processo negativo dos derivados das sensações — negação de que a imagem seja idêntica àquilo do que a imagem é imagem — e o estado cognitivo das Formas inatas, aquilo do que a imagem é imagem.

Recordação aqui se refere à distinção entre imagem e aquilo do que a imagem é imagem. 6

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O Agir Humano 2. A MORTE E O MODO DA OBSERVAÇÃO IDEAL DOS OBJETOS. Para relacionar a morte à aquisição do verdadeiro conhecimento, Sócrates começa sua argumentação descrevendo o estilo de vida de uma alma que existe em forma humana e é dedicada à filosofia, em seu sentido autêntico. Sócrates busca mostrar que esse estilo é determinado pelo foco do pensamento do filósofo e não por uma disciplina ascética imposta. Ou seja, o comportamento cotidiano do filósofo é consequência psicológica dos conteúdos do seu pensar, é resultante espontânea do que tal alma conhece verdadeiramente. O ser humano se comportará no cotidiano como um escravo das sensações sempre que as usa como um fim; caso em que as sensações são suas senhoras. Mas, viverá como um ser livre das sensações aquela alma que as conhece e as usa como um meio propiciador do verdadeiro saber, cujo prazer está além e é verdadeiramente mais real do que elas; caso em que a alma é senhora das sensações. Então, o que Sócrates tenta demonstrar é que o foco do pensamento — senhoria ou subserviência — é o fundamento da expressão cotidiana ou da ética de um ser humano. Sócrates — que um dia, banhado e calçado com as sandálias, o que poucas vezes fazia, encontra-se com Agatão, Apolodoro, Alcibíades e os demais para desfrutarem de um banquete regado a vinho e discursos sobre o amor (Banquete 174a) — no Fédon (64b-d) diz o seguinte sobre o verdadeiro filósofo: – Examina agora, meu caro, se te é possível compartilhar deste modo de ver, pois nisso reside, com efeito, uma condição do progresso de nossos conhecimentos sobre o presente objeto de estudo. Crês que seja próprio de um filósofo dedicar-se avidamente aos pretensos prazeres tais como o de comer e de beber? – Tão pouco quanto 310


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O Agir Humano possível Sócrates! - respondeu Símias. – E aos prazeres do amor? – Também não! – E quanto aos demais cuidados do corpo, pensas que possam ter valor para tal homem? Julgas, por exemplo, que ele se interessará em possuir uma vestimenta ou uma sandália de boa qualidade, ou que não se importará com essas coisas se a força maior duma necessidade não o obrigar a utilizá-las? – Acho que não lhes dará importância, se verdadeiramente for filósofo – De forma que, na tua opinião – prosseguiu Sócrates –, as preocupações de tal homem não se dirigem, de um modo geral, para o que diz respeito ao corpo, mas, ao contrário, na medida em que lhe é possível, elas se afastam do corpo, e é para a alma que estão voltadas? – Sim, sem dúvida. – É, pois, para começarmos a nossa conversa, em circunstâncias desta espécie, que se revela o filósofo, quando, ao contrário de todos os outros homens, afasta tanto quanto pode a alma do contato com o corpo – Evidentemente. – Sem dúvida, a opinião do vulgo, Símias, é que um homem, para o qual não existe nada de agradável nessa espécie de coisas e que com elas não se preocupa, não merece viver, mas, pelo contrário, está muito próximo da morte quem assim não faz nenhum caso dos prazeres de que o corpo é instrumento? – É a própria verdade o que acabas de dizer.7

Essas palavras de Sócrates são a expressão de uma grande incoerência em seu pensamento ou de um raciocínio que foge facilmente do senso comum? Se as sensações são propiciadoras do conhecimento das Formas inatas, como se verá no argumento da reminiscência, então, o que está em jogo no Fédon é o foco do pensamento e não uma mera hostilidade às sensações. Ao descrever o estilo de vida próprio do filósofo — não preocupado com as solicitações corporais —, Sócrates — que participava ativamente de banquetes — está apenas Utilizaremos a tradução do Fédon de Jorge Paleikat e João Cruz Costa, indicada nas referências. 7

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O Agir Humano estabelecendo uma distinção entre sentir e pensar — de uma vida cujo foco é sentir ou pensar —, ligada à noção filosófica de morte, que corresponde à purificação do pensamento e é desenvolvida no Fédon como método de investigação ideal. Sócrates procura justificálo utilizando-se de uma analogia sobre a observação de um eclipse do sol (Fédon, 99d-e): – Então – prosseguiu Sócrates – a minha esperança de chegar a conhecer os seres começava a esvair-se. Pareceu que deveria acautelar-me, a fim de não vir a ter a mesma sorte daqueles que observam e estudam um eclipse do sol. Algumas pessoas que assim fazem estragam os olhos por não tomarem a precaução de observar a imagem do sol refletida na água ou em matéria semelhante. Lembreime disso e receei que minha alma viesse a ficar completamente cega se eu continuasse a olhar com os olhos para os objetos e tentasse compreendê-los através de cada um de meus sentidos. Refleti que devia buscar refúgio nas ideias e procurar nelas a verdade das coisas. É possível, todavia, que esta comparação não seja perfeitamente exata, pois nem eu mesmo aceito sem reservas que a observação ideal dos objetos - que é uma observação por imagens - seja melhor do que aquela que deriva de uma experiência dos fenômenos. Entretanto, será sempre para o lado daquela que me inclinarei. Assim, depois de haver tomado como base, em cada caso, a ideia, que é, a meu juízo, a mais sólida, tudo aquilo que lhe seja consoante eu considero como sendo verdadeiro, quer se trate de uma causa ou de outra qualquer coisa, e aquilo que não lhe é consoante, eu o rejeito como erro.

Observada essa primeira reflexão de Sócrates, problematizemos a questão da relação que se pode fazer entre a morte para o filósofo, a distinção entre sentir e pensar, e o método platônico de investigação ideal. Para tanto, recorreremos à demonstração de que a noção de morte para o filósofo (64c-d), que surge depois da primeira reflexão de Sócrates, é outro passo na 312


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O Agir Humano direção da exposição do método de investigação ideal. Eis, pois, como se inicia o questionamento filosófico sobre a morte no Fédon: – Entre nós, com efeito, é que devemos tratar dessa questão, e, quanto ao vulgo e aos outros, não lhes demos atenção! Segundo nosso pensar, é a morte alguma cousa? Claro – replicou Símias. – Nada mais do que a separação da alma e do corpo, não é? Estar morto consiste nisto: apartado da alma e separado dela, o corpo isolado em si mesmo; a alma, por sua vez, apartada do corpo e separada dele, isolada em si mesma. A morte é apenas isso? – Sim, consiste justamente nisso. (Fédon, 64c)

Assim, é preciso transformar a morte num objeto de investigação filosófica. Mas, através de qual abordagem se pode colocar a morte no lugar de objeto filosófico? Através de qual abordagem Platão investiga a morte? Para o filósofo da Academia há uma relação profunda entre a morte e o conhecimento. Por isso, para ele é importante fazer uma investigação sobre a morte e sua função de purificar o pensamento. Além de observar que há um discurso mítico-poético sobre a morte nesse diálogo (61de), é preciso fazer uma investigação que estabeleça a relação entre a morte e o conhecimento. Isso é possível porquanto nesse diálogo a morte corresponde à negação das sensações e de quaisquer que sejam os seus derivados, inclusive a imaginação (eikasia). A morte, assim, é a purificação do pensamento, estando completamente relacionada com o método de investigação ideal. Nessa obra, o sentido filosófico da morte não diz respeito simplesmente à descrição dos fenômenos do morrer. 8 Por isso, a primeira reflexão de Sócrates preludia a crítica de Platão contra o 8 É o que ocorre, por exemplo, com a proposta de Steven Luper (2010). Ele insiste em uma abordagem fenomênica daquilo que se chama morte e, mesmo assim, chama seu trabalho de A filosofia da morte. Para o ponto de vista do Fédon, uma impropriedade.

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O Agir Humano método naturalista, porque descreve quão inapreensíveis são as coisas sensíveis (65a-69b) e o exame da noção de morte para o filósofo preludia o método de investigação ideal, porque, enquanto purificação do pensamento, descreve as condições sob as quais o pensamento puro constitui o único modo de obter o conhecimento verdadeiro. Isto quer dizer que, no Fédon, a noção de morte para o filósofo tanto abrange a fundamental distinção entre sentir e pensar, quanto descreve e fundamenta o estado em que deve se encontrar o pensamento do filósofo durante a investigação ideal, de acordo com o que está em (65a-d): – E agora, dize-me: quando se trata de adquirir verdadeiramente a sabedoria, é ou não o corpo um entrave se na investigação lhe pedimos auxílio? Quero dizer com isso, mais ou menos, o seguinte: acaso alguma verdade é transmitida aos homens por intermédio da vista ou do ouvido, ou quem sabe se, pelo menos em relação a estas coisas não se passem como os poetas não se cansam de no-lo repetir incessantemente, e que não vemos nem ouvimos com clareza? E se dentre as sensações corporais estas não possuem exatidão e são incertas, segue-se que não podemos esperar coisa melhor das outras que, segundo penso, são inferiores àquelas. Não é também este o teu modo de ver? - É exatamente esse. - Quando é, pois, que a alma atinge a verdade? Temos dum lado que, quando ela deseja investigar com a ajuda do corpo qualquer questão que seja, o corpo, é claro, a engana radicalmente. - Dizes uma verdade. - Não é, por conseguinte, no ato de raciocinar, e não de outro modo, que a alma apreende, em parte, a realidade de um ser? Sim. - E, sem dúvida alguma, ela raciocina melhor precisamente quando nenhum empecilho lhe advém de nenhuma parte, nem do ouvido, nem da vista, nem dum sofrimento, nem sobretudo dum prazer - mas sim quando se isola o mais que pode em si mesma, abandonando o corpo à sua sorte, quando, rompendo tanto quanto lhe é possível qualquer união, qualquer contato com ele, anseia 314


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O Agir Humano pelo real? - É bem isso! - E não é, ademais, nessa ocasião que a alma do filósofo, alçando-se ao mais alto ponto, desdenha o corpo e dele foge, enquanto por outro lado procura isolar-se em si mesma? - Evidentemente!

Todavia, é preciso deixar claro, a noção de morte para o filósofo, a distinção entre o corpo e a alma, entre sentir e pensar e a purificação do pensamento não dizem respeito a uma mera hostilidade ao corpo. Diversamente, a negação dos entraves derivados das sensações diz respeito ao processo cognitivo do método platônico de investigação ideal, cujos objetos de investigação são as Formas puras. É oportuno recordar que os interlocutores de Sócrates insistem numa demonstração do que acontece à alma depois da morte através de uma abordagem fenomênica. Contudo, o motivo pelo qual a purificação do pensamento é necessária ao método platônico de investigação das Formas, que conservam suas identidades em estados puros, é o real objetivo da filosofia da morte presente no Fédon. Para que o pensamento possa pensar essas Formas é necessário que ele próprio seja puro, pois, somente o puro apreende o puro (67a-d): Além disso, por todo o tempo que durar nossa vida, estaremos mais próximos do saber, parece-me, quando nos afastarmos o mais possível da sociedade e união com o corpo, salvo em situações de necessidade premente, quando, sobretudo, não estivermos mais contaminados por sua natureza, mas, pelo contrário, nos acharmos puros de seu contato, e assim até o dia em que o próprio Deus houver desfeito esses laços. E quando dessa maneira, atingirmos a pureza, pois que então teremos sido separados da demência do corpo, deveremos mui verossimilmente ficar unidos a seres parecidos conosco; e por nós mesmos conheceremos sem mistura alguma tudo o que é. E nisso, provavelmente, é que há de consistir a 315


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O Agir Humano verdade. Com efeito, é lícito admitir que não seja permitido apossar-se do que é puro, quando não se é puro! Tais devem ser necessariamente, segundo creio, meu caro Símias, as palavras e os juízos que proferirá todo aquele que, no correto sentido da palavra, for um amigo do saber. Não te parece a mesma Cousa? - Sim, Sócrates, nada mais provável.

Desse modo, a distinção entre o corpo e a alma, entre sentir e pensar e o próprio pensamento puro estão completamente relacionados no desenvolvimento do método platônico de investigação ideal. Isto quer dizer ainda que o próprio pensamento do investigador ideal é uma faculdade cuja realidade é da mesma natureza de seu objeto de meditação, ou seja, é da natureza das Formas puras. Por este motivo, segundo Platão, o pensamento deve estar purificado dos derivados das sensações tendo em vista que qualquer coisa sensível, por sua própria natureza, nunca sendo idêntica a si mesma não pode conhecer o idêntico a si mesmo. Então, a faculdade que conhece verdadeiramente deve ser distinta da faculdade de sentir já que as sensações são imperfeitas, enquanto meio de obtenção do conhecimento efetivo. A propósito, é importante recordar que Platão diz que até os poetas repetem até ficarem saciados que não se vê nem se ouve com clareza (65a-b). O filósofo da Academia diz ainda que, se a visão e a audição não podem recordar as Formas puras, então, não se pode esperar coisa melhor das outras sensações, pois elas são consideradas inferiores a essas duas (65b). Sendo assim, quando a alma deseja meditar por meio das sensações sobre qualquer objeto que seja, o corpo, é claro, lhe propicia engano (65b). É a isto que Sócrates chama de morte nesse diálogo: um método de aquisição do saber. Nisto, e não numa mera hostilidade ao corpo, fundamenta-se o motivo da necessária negação dos 316


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O Agir Humano derivados das sensações na obtenção do verdadeiro conhecimento, ou seja, porque se raciocina melhor dessa forma. Portanto, para Platão, a autêntica noção filosófica de morte, ao se relacionar com a distinção entre corpo e alma, entre sentir e pensar e com a purificação do pensamento, é propedêutica ao método de investigação ideal. Nesse sentido, é que se pode compreender a profundidade das distinções que o Fédon explicita a respeito desse autêntico significado filosófico de morte e o suicídio. Mas, o que é a morte para o suicida? No Fédon o suicida é aquele que, mesmo sabendo que sua vida é propriedade dos deuses, resolve tirá-la por meio de suas próprias mãos (61d – 62e). A propósito, depois de fazer o convite para que o poeta Eveno siga aquele que vai morrer (61c-d) Sócrates acrescenta o seguinte: - Ora - tornou Sócrates -, será que Eveno não é filósofo? - Segundo penso, é – respondeu Símias. - Então não há de desejar coisa melhor, ele ou quem quer que dê à filosofia a atenção que ela merece. Todavia, é de esperar que Eveno não fará violência contra si mesmo, pois, segundo dizem, isso não é permitido.

Em nenhum momento Platão diz que simplesmente morrer é suficiente para obter o verdadeiro conhecimento. Então, o suicídio não é uma via direta para obter o saber, é preciso algo mais. A verdadeira morte para o filósofo é a distinção entre o corpo e a alma. Por isso, de modo recorrente, Platão diz que na meditação pura, e não no ato de sentir, a alma recorda, em parte, a realidade de um ser (65c). A alma medita melhor se nenhum entrave lhe advém de nenhuma parte, nem da audição, nem da visão, nem dum sofrimento, nem dum prazer (65c). A alma medita melhor quando se isola o mais que pode em si mesma e por si mesma, quando entrega o corpo à sua própria sorte, quando desfaz tanto quanto lhe 317


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O Agir Humano é possível qualquer ligação, ou contato com o corpo (65b), pois, no momento em que a alma entrega o corpo à sua própria sorte, dele se libera e pode dar total atenção a si mesma, ocorre a mais alta meditação (65c-d). Isto tudo implica em dizer que não é suficiente examinar o problema por uma perspectiva fenomênica, nem simplesmente crer na realidade das Formas puras. Ou seja, mesmo que se pressuponha a realidade das Formas puras — tais como: o Justo em si mesmo, o Belo em si mesmo — uma vez que jamais se pode ver qualquer uma dessas Formas puras por meio dos sentidos, é preciso cumprir as exigências da purificação do pensamento para obter o conhecimento verdadeiro. Isto é o mesmo que morrer. Portanto, a morte para o filósofo é um método negativo de aquisição do conhecimento, não é produto de uma mera hostilidade à vida no corpo humano. Tal método vale para conhecer todas as outras Formas puras — tais como: a Grandeza, a Saúde, a Força — enfim, as demais Formas puras e o que cada uma delas é (65d). Com efeito, se o mais verdadeiro em cada uma dessas Formas puras não pode ser apreendido por meio do corpo (65e), então, somente a purificação do pensamento prepara o investigador para o método de investigação ideal e para o conhecimento sobre os únicos seres que podem ser realmente conhecidos. Por isso, a alma que estiver no mais alto ponto preparada para pensar em si mesma cada uma das Formas puras, a alma que as toma por objeto de meditação, é a que mais deve aproximar-se do conhecimento de cada uma delas (65e). É justamente por isso, ainda, que Platão diz que a referida alma somente há de obter a maior pureza no pensamento porque usa no mais alto grau, para recordar-se de cada uma dessas Formas puras, o pensamento puro, sem recorrer no ato de pensar nem à visão, nem a outro sentido. De fato, não recorre a nenhum deles para meditar (66a). Eis porque é importante relacionar a noção de morte para o filósofo à distinção entre corpo e alma, entre sentir e pensar antes 318


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O Agir Humano de expor o método de investigação ideal: por que tal distinção é propedêutica ao referido método. A morte é, portanto, um processo negativo de cognição e estar morto é um estado de saber inato, sendo, para o filósofo, distinta do mero ato de tirar a vida. Quando Sócrates estabelece a distinção entre a morte para o filósofo e a morte para o suicida está, desse modo, distinguindo a abordagem fenomênica da abordagem filosófica sobre a morte. Em outros termos, os fenômenos que ocorrem em torno da morte de alguém não conduzem ao conhecimento sobre a morte em si mesma. Apenas a distinção entre corpo e alma, entre sentir e pensar pode fundamentar o conceito de pensamento puro nesse diálogo. Essa distinção, que se dá no pensamento é, ela mesma, a morte para o filósofo. Se não fosse assim bastaria o suicídio para a aquisição do saber inato. Porém, logo que consideremos essas afirmações, se nos apresentam algumas perguntas inquietantes: por que Platão insiste quase de modo redundante na necessidade da alma transcender as sensações e o corpo antes de expor o método de investigação ideal que é espelhado na analogia da investigação de um eclipse do sol? Se a alma que se encontra num corpo humano necessita da morte desse corpo para saber alguma coisa, então, em que medida essa alma pode conhecer enquanto vive em corpo humano? Ora, como já sugerimos, a alma de que se fala acima há de obter a maior pureza no pensamento, ou seja, deve utilizar o pensamento em si mesmo, por si mesmo e sem mistura para se lançar à caça das realidades verdadeiras. E, fará isto somente se desembaraçando o mais possível da visão, da audição e, numa palavra, de todo o corpo, porque é o corpo que pode propiciar agitação no pensamento e constituir um obstáculo ao conhecimento da verdade todas as vezes que a alma está ligada a ele (66a). Portanto, aquele que neste mundo cumpre tudo isto está apto a

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O Agir Humano recordar o real verdadeiro (66a), que é o objeto da investigação ideal mesmo para a alma que se encontra em condições humanas. Mas, se a morte é necessária à obtenção do verdadeiro conhecimento, então, qual é o resultado da purificação do pensamento para a alma que existe num corpo humano? Tudo o que o autêntico filósofo cumpre para purificar seu pensamento e, consequentemente, para estar pronto para a investigação ideal, inspira-lhe uma crença, que persegue suas palestras, segundo a qual é possível existir um método que o conduz de modo reto, quando o pensamento puro o acompanha na investigação (66b). E, não obstante, enquanto o filósofo tiver sua alma misturada ao corpo, jamais será completamente recordado o objeto de seu desejo, ou seja, sem a morte jamais será completamente recordada a verdadeira realidade das Formas puras (vide 66b). Isto porque a alma ainda misturada com as sensações não pode apreender completamente as Formas puras, ainda que ela as possa apreender em parte, enquanto distingue a imagem daquilo de que a imagem é imagem. Segundo Platão, são as confusões suscitadas pelo corpo, quando clamam as necessidades efetivas da vida — por exemplo, as doenças, a inundação de amores, paixões, temores, imaginações de toda sorte, e uma infinidade de bagatelas —, que dificultam o pensamento sensato (65c). Outro entrave ao pensamento puro é ainda o fato de que, através do anelo de prazeres sensuais, o corpo propicia o aparecimento de guerras, dissensões, batalhas (65c-d). De fato, observa-se no diálogo, a posse e o amontoado de bens existem por causa da mísera escravidão ao corpo e podem dar origem a todas as guerras (65c-d). Aliás, é por causa de tudo isto que existe a preguiça de filosofar (65d). Insistindo em mostrar todos os aspectos que constituem os entraves derivados das sensações, Platão diz que, mesmo quando se consegue obter alguma tranquilidade para a meditação, os pensamentos podem ser agitados de novo pelo corpo 320


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O Agir Humano que é um intrujão que ensurdece, tonteia e desorganiza, a ponto de incapacitar a alma de recordar a verdade (65d). Mas, inversamente, quando a alma quer recordar de modo puro as Formas puras, é necessário distinguir-se do corpo e meditar por si mesma nas Formas em si mesmas, sendo esse o único modo de recordar o conhecimento inato (65d). Depois de investigar a importância da fundamental distinção entre sentir e pensar, é necessário compreender o modo pelo qual a morte para o filósofo tem relação com a purificação do pensamento e com o método platônico de investigação ideal. Ora, Platão diz que o conhecimento verdadeiro, ou seja, o conhecimento das Formas puras, somente será recordado por intermédio da morte, ou seja, da completa distinção, ou separação entre alma e corpo, pois enquanto há ligação entre alma e corpo é impossível haver recordação pura (65e). Sendo assim, ou a alma de modo algum recorda as Formas puras, ou somente o faz por meio da purificação do pensamento, ou seja, da morte. É através dessa purificação que a alma se reconhece como sendo em si mesma e por si mesma — nunca antes (66e). Então, mostra-se tanto mais pertinente a pergunta: em que medida o método de investigação ideal pode propiciar a recordação das Formas puras enquanto a alma existir em forma humana? Voltando-nos a dela nos ocupar, encontramos no diálogo a afirmação de que enquanto durar a vida humana, a alma estará mais próxima do verdadeiro conhecimento quando se afastar o mais possível da sociedade e união com o corpo, salvo em situações de necessidade premente. Sobretudo, quando não estiver mais contaminada pela natureza do corpo, quando se achar purificada do contato com o corpo, até o dia em que de modo divino tiverem sido desfeitas as amarras que prendiam a alma ao corpo (67a). Só então, livre das demências do corpo, a alma atinge a pureza e fica em união com os seres que são da mesma natureza dela e, por si mesma, sem mistura alguma, recordar-se-á de tudo o que é, pois somente o puro 321


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O Agir Humano apreende o puro (67a). Isto tudo é o que deve dizer todo aquele que for um verdadeiro amante do saber (67b), é essa a esperança e a convicção de todo aquele que tem o pensamento purificado (67c). Em suma, a alma alcança a purificação do pensamento necessária ao método de observação ideal pelo ato de distinguir o mais possível à alma do corpo. É nessa medida que o método de investigação ideal pode propiciar a recordação das Formas puras, enquanto a alma existir em forma humana. A alma deve isolar-se do corpo e concentrar-se em si mesma, vivendo tanto quanto puder, seja nas condições atuais ou nas futuras, isolada em si mesma e por si mesma, livre do corpo, tendo desatado, o quanto possível, as amarras que a prendiam ao corpo, pois ter uma alma desamarrada do corpo é o sentido da purificação e, portanto, da morte fundamental en(67c-d). A distinção entre corpo e alma, entre sentir e pensar, relacionada à morte para o filósofo, não é fortuita. É realmente ela que fundamenta a perspectiva onto-epistemológica do diálogo. Através dessa distinção, a morte para o filósofo é filosoficamente pensada e se torna um meio de transposição dialógica, a partir do que o método de investigação direta dos fenômenos, utilizado por alguns naturalistas, é substituído pelo método de investigação ideal. O que deve ser investigado, recordemos, não são os fenômenos que ocorrem em torno da morte de alguém, mas a morte em si mesma, segundo o pensar filosófico. Por isso, nesse diálogo as perguntas fundamentais sobre a morte são: – Segundo nosso pensar, é a morte alguma coisa? – Claro – replicou Símias. – Nada mais do que a separação da alma e do corpo, não é? Estar morto consiste nisto: apartado da alma e separado dela, o corpo isolado em si mesmo; a alma, por sua vez, apartada do corpo e separada dele, isolada em si mesma. A morte é apenas isso? – Sim, consiste justamente nisso. (Fédon 64c-d) 322


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O Agir Humano

Essas perguntas abrem novas perspectivas no reforço da defesa de Sócrates e da onto-epistemologia do diálogo. Que perspectivas são essas? A distinção entre: sensível e inteligível, corpo e alma, pensar e sentir, pensamento contaminado e pensamento puro. Sem essa distinção não seria possível desenvolver uma crítica ao método de investigação direta dos fenômenos, nem seria possível fundamentar o método de investigação ideal dos objetos. Ademais, através do aprofundamento do pensamento sobre a morte o foco do pensar do filósofo é, declaradamente, a alma e não o corpo (64d-65a). Com efeito, se os sentidos não podem conhecer aquilo que realmente deve ser conhecido (65b), então a morte é o meio de aquisição do verdadeiro conhecimento. Em outros termos, se o que realmente conhece é o pensamento puro (65c) e esse não pode ser atingido em seu ápice enquanto a alma permanece sujeita à influência das sensações, então a morte, como negação dos derivados das sensações, é o caminho por excelência para o verdadeiro conhecimento. Mediante essa morte se dá a melhor forma de pensar (65c-d), a única que pode apreender os seres inteligíveis (65d-67b). Por isso, o pensamento puro, alcançado para o filósofo pela morte, é o real propiciador da convicção desse filósofo (66b) e do conhecimento daquilo que não pode ser sentido, mas apenas pensado. A morte para o filósofo, ou a fundamental distinção entre sentir e pensar, propicia o conhecimento de quais são os entraves do pensamento (66b-67c), de como se purifica o pensamento, bem como da relação que a própria morte tem com tudo isso (67c-d). Nessa nova perspectiva do diálogo, como a morte e o pensamento purificado se identificam, o cultivo do próprio pensamento como um objeto de pesquisa da autêntica filosofia se torna uma virtude, estando relacionado ao estilo de vida do filósofo. Em verdade, a verdadeira virtude. Em outros termos, as virtudes e o 323


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O Agir Humano pensamento filosófico estão entrelaçados. Desse modo, é pertinente descrever o modo da relação entre o viver e a obtenção da sabedoria. Assim, por um lado, o diálogo procura apontar como vivem aqueles que se dedicam à morte (67d-e), qual o modelo de amor do amante da sabedoria (68a-c), qual o modelo da coragem do filósofo (68c), qual o modelo da temperança do filósofo (68c-d). Mas, por outro lado, nele também se considera o modelo de temperança e da coragem do vulgo (68d-69a), marcado pelo desprezo da morte e, assim, sendo diametralmente oposto ao do filósofo, uma vez que, para esse último, o verdadeira virtude é o cultivo do verdadeiro saber, ou seja, a purificação do saber, a morte (69a-d). Insistimos, é através da distinção entre sentir e pensar e investigando o que é a morte para o filósofo que Platão fundamenta sua crítica ao método de investigação direta dos fenômenos e justifica o método de investigação ideal no intuito de conduzir o diálogo ao seu âmbito onto-epistemológico. Aliás, é fazendo tal distinção que Sócrates espera convencer seus ouvintes de que sendo diferentes pensar e sentir, o pensamento puro e a alma pensante sobrevivem às mudanças do sentir, e que, portanto, a alma sobrevive à morte. Mas, apesar de toda essa distinção apresentada pelo filósofo, Cebes não se satisfaz, objeta e pede a explicação de como a alma não se aniquila após a morte (70a-c). Fazer a distinção entre sentir e pensar, a distinção entre a natureza do corpo e a natureza da alma não é suficiente para dizer por que a alma não se aniquila após a morte do corpo? Para Cebes parece que não. De fato, ele diz a Sócrates que excetua de todas as coisas que o filósofo bem disse a respeito da alma tudo o que é uma fonte abundante de incredulidade para o homem vulgar (70a). A objeção de Cebes se baseia no fato de que, apesar da distinção fundamental entre sentir e pensar (65b-69e), o homem vulgar pode ainda dizer que, uma vez separada do corpo, a alma talvez não exista 324


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O Agir Humano mais em nenhuma parte, talvez seja destruída e pereça no mesmo dia em que o corpo morre (70a). A exigência de Cebes parece, na verdade, ser uma situação criada pelo autor do Fédon para continuar aprofundando aquela distinção fundamental que culminará no método de investigação ideal. Por isso, Sócrates está diante de alguém que parece exigir provas fenomênicas daquilo que o filósofo diz sobre a imortalidade. Então, Sócrates deve buscar novo recurso argumentativo para defender a mesma tese, a saber, a de que sendo sentir e pensar coisas distintas, a alma é distinta do corpo e, portanto, não morre quando o corpo morre. É a partir daí que aparece a reflexão sobre o par viver/morrer através do argumento dos contrários. O argumento dos contrários, que fora preludiado na reflexão sobre o binômio prazer/dor em 60b, 9 agora é desenvolvido a partir de 70c para reforçar aquela mesma distinção entre sentir e pensar, entre corpo e alma. Os binômios agora explorados são os seguintes: dois estados contrários, morte/vida, e dois processos contrários, morrer/reviver. Para proceder com esse reforço argumentativo, toma-se como base a análise de uma antiga tradição conhecida de Sócrates (70c). Segundo ela, os mortos revivem (70c-d). Como revivem, as almas dos defuntos devem estar em algum lugar. Sócrates, então, propõe a seguinte questão: “... é, em suma, no Hades que estão as almas dos defuntos, ou não?” (70c). Ora, a afirmação de que os mortos revivem, com base na referida tradição, deve se basear no seguinte pressuposto: “...os vivos não nascem senão dos mortos...” (70d). Uma vez satisfeito o Pode-se considerar que a relação descrita em torno do binômio prazer/dor (Fédon, 60b) seja uma espécie de imagem que serve de modelo argumentativo, por se constituir como figuras da sensibilidade e do mitológico. Com efeito, o termo imagem, tal como aparece no Fédon, tanto é usado em referimento àquilo que é derivado das sensações, próprio da aparência sensível, da imaginação no interior da alma, quanto das alegorias usadas no discurso. 9

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O Agir Humano referido pressuposto, ficará provado que “...não poderia haver novo nascimento para as almas que já não tivessem existência...” (70d). Note-se que aqui, estamos trabalhando já com o par de contrários morte/vida, morrer/reviver. Se as coisas estão assim, para saber se o dito pressuposto possa se dá realmente, o primeiro passo será o de investigar se os contrários não nascem senão dos seus próprios contrários, onde quer que exista tal relação (70d-e).10 Se isso for verificado, a premissa será consistente, já que reviver e morrer — como processos —, morte e vida — como estados —, são contrários (70e-72e). A esse respeito afirma Sócrates: “- Não é verdade que esses estados se engendram um ao outro, já que são contrários, e também que a geração (processo) entre um e outro é dupla, já que são dois”? (71c). Ademais, Sócrates menciona que o exercício da referida verificação sobre a dupla geração entre contrários deve assumir como critério que não se deve fazê-la considerando apenas o homem, mas todos os casos das coisas que nascem, em toda parte onde se possa estabelecer relação entre: viver, morrer e reviver (70de).11 Assim, a estrutura da aplicação do argumento dos contrários, tendo como base os pares de estado (vivo/morto) e processo (morrer/reviver), pela natureza do que se quer verificar inicialmente — a saber, se os contrários não são gerados senão de seus próprios A propósito, é importante recordar que essa questão trata de uma verificação completamente relacionada à pergunta sobre o que “é” a morte para o filósofo, feita em 64e. Contudo, essa verificação é novamente uma situação criada para aprofundar a distinção que fundamenta a onto-epistemologia do diálogo e o método de observação ideal, pois a questão da morte deve convergir na questão do pensamento puro e vice-versa. 11 Tudo isto para responder, de modo extensivo, não só se é no Hades que se encontram as almas dos mortos, mas também àquela já referida pergunta: “Segundo nosso pensar, é a morte alguma coisa”? (64c). A resposta correspondente a essa última pergunta deve favorecer a defesa de Sócrates, que será considerado sensato se tiver a segura convicção de que a morte não é a aniquilação da alma (63b). 10

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O Agir Humano contrários — servirá à verificação não só do que diz respeito ao homem e sua alma, mas da relação de todos e quaisquer contrários (70e). Além disso, a importância fundamental da distinção entre estados e processos será ressaltada em 103a-b onde é mostrada a confusão que se pode fazer, a esse respeito, entre o verdadeiro contrário (os estados contrários) e as coisas contrárias (os processos contrários). Enfim, como o argumento dos contrários percorre transversalmente toda a argumentação do diálogo, é necessário dar suma importância à sua estrutura fundamental na associação com os outros argumentos. No que diz respeito à obtenção do conhecimento sobre os pares de “processos contrários” é preciso investigar se quando uma coisa se torna maior não é necessário que anteriormente ela tenha sido menor, para em seguida se tornar maior (70e-71a). Mas, é preciso investigar ainda se antes de algo se tornar menor não havia um “estado” chamado “maior” do qual ela participava, e há um estado chamado “menor” do qual ela agora participa (70e-71a). É dum mais forte que é gerado um mais fraco, e dum mais lento que é gerado um mais rápido? É dum pior que é gerado um melhor, e dum mais justo que é gerado um mais injusto? Caso seja, então, daí se obtém o princípio de toda e qualquer geração, segundo o qual é das coisas contrárias que nascem as coisas que lhes são contrárias (71a). Ora, analisando essa questão sob uma determinada perspectiva, já se torna possível antever o relativismo dos processos, ou das coisas sensíveis contrárias. Em outros termos, com essa questão, Platão parece estar buscando estabelecer de modo cada vez mais profundo o conhecimento sobre a distinção entre “processos” e “estados” para, a partir disso, reforçar a distinção fundamental entre sentir e pensar, entre corpo e alma. Nessa análise os processos parecem sempre absurdos, não constituem objetos do verdadeiro conhecimento porque não se deixam apreender sempre do mesmo 327


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O Agir Humano modo, por exemplo, parecem participar do “grande” e do “pequeno” ao mesmo tempo. Já os estados permanecem sempre os mesmos. Aliás, entre um e outro estado há, em todos os casos, uma dupla geração de processos contrários, pois um processo contrário vai sempre e reciprocamente ao seu processo contrário, enquanto os estados contrários permanecem idênticos a si mesmos (71a-b). Por exemplo, entre o estado chamado “maior” e o estado chamado “menor” há dois processos recíprocos: “crescer” e “decrescer”. Isto vale para todas as oposições semelhantes, ainda que às vezes tais oposições não possuam nomes apropriados (71b). Ademais, a reciprocidade entre os processos é contínua e circular (72a-b). O curioso é que Sócrates dá todos esses exemplos para convergir no par de processos morrer/reviver e no par de estados vivo/morto como modelos de estados que possuem uma dupla geração entre si (71d-e). O problema que surge com tais exemplos é que, se não há dúvidas de que o processo de morrer se dá, o mesmo não se pode dizer a respeito do reviver. Para resolver tal problema, o meio assumido não será o da investigação direta dos fenômenos que esses processos envolvem, mas o exame do pensamento, considerando outro binômio, esquecer/recordar, para determinar se a certeza de algo pode ser sustentada como consequência lógica da afirmação de seu contrário. Assim, recorre-se aí ao argumento da reminiscência. Assim, na associação entre o argumento dos contrários e o argumento da reminiscência,12 o diálogo Fédon aborda questões que se referem à imortalidade,13 mas, isso fazendo, desenvolve uma Com efeito, não é verdade que o argumento da anamnese entronca na conclusão do anterior, e de um modo pouco frequente nos diálogos? Não é um interlocutor quem o refere e apresenta, e em circunstâncias que dão a entender tratar-se de uma teoria bem conhecida do círculo dos frequentadores de Sócrates? 13 Com efeito, do que é enunciado a respeito da associação dos argumentos dos contrários e do argumento da reminiscência, são deduzidas algumas implicações associadas que sugerem a imortalidade da alma: 1. Somente a 12

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O Agir Humano investigação a respeito dos conteúdos do pensamento, 14 promovendo uma onto-epistemologia, como veremos. Com efeito, o primeiro esforço de Sócrates havia sido o de desenvolver uma distinção entre sentir e pensar (63e-69e). Mas, seus interlocutores não se fazem convencidos de que aquilo que tem natureza diferente da natureza do corpo mortal não pode morrer. Ademais, é conhecido o fato de que Cebes exige uma demonstração do que ocorre com a alma após a morte do corpo (70a-c) e, por causa disto, Sócrates recorre ao argumento dos contrários e o associa ao argumento da reminiscência (70c-77d). É, portanto, por causa daquela exigência — distinguir sentir e pensar — que surgem tanto o argumento dos contrários, quanto o da reminiscência e, assim, a problematização da imortalidade. De fato, observando o argumento da reminiscência constatamos que os objetivos com os quais Sócrates o desenvolve são: favorecer sua defesa, iniciada em 61b, verificar se o pressuposto de que aprender é apenas recordar uma verdade (72e), mas, principalmente, fundamentar a tese de que o método naturalista de investigação direta dos fenômenos não conduz, necessariamente, ao conhecimento verdadeiro. Então, a pergunta fundamental sobre o pressuposto do argumento da reminiscência é: “de que maneira o alma aprende verdadeiramente. 2. Aprender verdadeiramente é recordar as Formas inatas. 3. As Formas inatas são antes do nascimento da alma em forma humana. 4. Portanto, a alma que recorda as Formas existia antes de nascer na forma humana. 14 Se a morte corresponde à aniquilação da vida (70a) — como sugere a refutação de Cebes —, como é que o esquecimento não corresponde à aniquilação do saber, uma vez que, segundo o argumento da reminiscência, há um “saber inato” (75d). Dizíamos a pouco que, por causa do desenvolvimento de seu aspecto onto-epistemológico, na associação entre o argumento dos contrários e o argumento da reminiscência o diálogo Fédon passa a abordar questões a respeito dos conteúdos do pensamento. Ora, tais conteúdos são tanto conteúdos que sofrem mudanças — processos, como são recordar/esquecer —, quanto conteúdos que são sempre idênticos e imutáveis — estados, como são morte/vida.

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O Agir Humano que se chama aprender é apenas recordar”? (73b). A partir de tal questionamento, o diálogo passa a aprofundar seu aspecto ontoepistemológico dando grande importância à definição de recordação, de pensamento puro ou de conhecimento efetivo. Isto tudo reforça a noção de que a realidade verdadeira deve pertencer ao âmbito do pensamento e não da sensibilidade. Ou seja, entre sentir e pensar: o pensamento puro é o verdadeiramente real, enquanto tudo que é derivado dos sentidos constitui o verdadeiramente ilusório. Portanto, nesse novo contexto, embora as sensações sejam propiciadoras da recordação, é no próprio pensamento puro que se realiza o pensamento da Imortalidade. 15 A associação entre o argumento dos contrários e o argumento da reminiscência é introduzida no diálogo através de Cebes a partir de 72e, no entanto, é Sócrates que mostra como ela ocorre (vide 77c).16 O argumento dos contrários surge no diálogo com base no par de estados contrários morte/vida, o argumento da reminiscência com base no par esquecimento/recordação. Por isso, parece acertado pensar que, assim como a verificação sobre o reviver só pode ser feita pressupondo-se que o revivescente existia 15

mesmo.

Isto implicará em dizer que pensar a Imortalidade e ser imortal é o

16 De acordo com José Gabriel Trindade Santos (1994, p. 22-23), a própria tese pode justificar-se apelando para a prática do interrogatório (em termos quase inteiramente idênticos aos do “diálogo com o escravo”, do Ménon 82b-86c), pela qual se mostra serem “as pessoas por si capazes de explicar corretamente tudo o que se lhes peça” (73a). De fato, Símias não se mostra muito convencido, pelo que se torna necessário lembrá-lo. Isso não encerra alguma ironia? De qualquer modo, uma vez que Símias nunca se exercitou na reminiscência, então, para convencê-lo, não é mister levá-lo a recordar-se? Nesse caso, tal prova valeria duplamente. Isto não significa que ela não só demonstraria a teoria, mas, pelo fato de ser recordada por Símias, ainda constituiria um exemplo de si própria? Vale dizer que Sócrates não parece fazer qualquer esforço para demonstrar que o seu interlocutor tinha “tirado tudo de si mesmo” — em uma variação de perspectiva, a exemplo do Ménon.

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O Agir Humano no Hades antes de renascer em forma humana (70d), a verificação sobre a reminiscência deve, do mesmo modo, se apoiar no pressuposto de que o recordado era conhecido antes do conhecedor nascer em forma humana (vide 70d-73a). De fato, é esse pensamento puro, anterior ao nascimento da alma em forma humana, que fundamenta a Imortalidade, pois é em razão dele que é verossímil que a alma seja imortal, (vide 66d-e) e indestrutível (vide 107a). Isto, analisado de uma determinada perspectiva, não implicaria dizer que pensar a “Imortalidade” é o mesmo que ser imortal? Ora, se as Formas perfeitas são o que são desde sempre e para sempre — Inteligíveis, Imutáveis, Imortais — e se a alma conhece essas Formas como elas são, então, a alma é imortal porque conhece as Formas imortais. Há ainda outra perspectiva sob a qual se pode pensar a referida questão: como é possível ao pensamento ser capaz de conhecer o que “é”, ou seja, em que condições o pensamento pode pensar aquilo que é sempre do mesmo modo, Imutável, Inteligível, Imortal? Ora, essa questão deve ser colocada tanto a respeito do pensamento, quanto a respeito de seus conteúdos, tanto do conteúdo que sofre mudanças, quanto do conteúdo que “é”, sempre Imutável. Então, o problema se refere a um pensamento capaz de apreender tanto o mutável quanto o que é sempre Idêntico. Mas, pensar o Invisível, o Inteligível, o Imutável não exige um pensamento purificado de qualquer entrave, ou conteúdo mutável? Isto já não está implícito naquela distinção entre sentir e pensar (vide 63e-69e)? Ademais, no tocante à reminiscência enquanto fundamento da imortalidade da alma, não seria pertinente afirmar que um dos problemas a serem investigados é o da natureza do próprio pensamento, ou seja, do pensamento capaz de pensar as Formas perfeitas? Todo o diálogo parece ser um esforço nesse sentido: definir o pensamento puro capaz de pensar as Formas perfeitas. Nisto consiste a onto-epistemologia fundamentada pelo 331


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O Agir Humano método de investigação ideal. Mas, de que natureza podem ser os conteúdos de uma recordação, ou seja, de um pensamento? Para responder a essa pergunta é preciso considerar a definição de recordação encontrada no Fédon, relacionando-a àquele pressuposto do argumento da reminiscência, segundo o qual, numa época anterior, a alma apreendeu aquilo de que no presente recorda (72e) — e isso não poderia acontecer se a alma não existisse antes de assumir, pela geração, a forma humana. Assim, é pela mesma razão que se deve tornar verossímil que a alma seja imortal (vide 73a). Explicitando uma primeira noção de recordação, Cebes diz que, ao interrogar um homem com perguntas bem conduzidas, por si mesmo e de modo exato ele dirá como as coisas realmente são. Mas — acrescenta Cebes — ele não seria capaz de assim fazer se sobre essas coisas já não tivesse conhecimento e reto juízo (vide 73a). O tebano afirma, ainda, que o mesmo procedimento pode ser feito em relação às figuras geométricas e outras coisas do mesmo gênero (73a). É realmente essa a noção de recordação que deve ser considerada? Ora, esse exemplo de Cebes mostra um método, mas não diz como se dá a própria recordação, não coloca seu interlocutor nesse estado — de recordar — de que fala o argumento. Portanto, não é suficiente mostrar o método propiciador de uma recordação, ainda é preciso investigar como surgem e de que natureza podem ser os conteúdos de uma recordação ou de um pensamento. Além do método propiciador da recordação, é preciso levar em consideração os conteúdos dessa recordação, posto que sejam esses conteúdos o fim que justifica o método. Então, como colocar a alma nesse estado de que fala o argumento e qual o conteúdo desse estado é a questão a ser enfrentada. De fato, o que falta ao exemplo de Cebes? Justamente exemplos do que ocorre aos

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O Agir Humano conteúdos da recordação. Por isso, Sócrates inicia a análise sobre tais conteúdos levando em consideração o problema da imaginação. É importante lembrar que, no primeiro exemplo de recordação, Sócrates diz que quando o homem ouve, ou vê alguma coisa, ou experimenta não importa que outra espécie de sensação, não é somente a imagem da coisa percebida que a alma desse homem gera em seu pensamento, mas pode gerar também a imagem de uma coisa diferente do objeto percebido17 (vide 73b74b). É justamente essa a primeira definição de recordação que se deve considerar numa análise mais profunda sobre essa questão, pois nesse exemplo Sócrates não aponta apenas o método, mas todas as ocorrências dentro de uma recordação. Portanto, nesse exemplo, naquilo a que se pode dar o nome de recordação ou pensamento, são geradas associações de imagens, ou seja, ocorre a imaginação. Há alguns aspectos importantes que devem ser considerados a esse respeito: a recordação não é a investigação direta do fenômeno experimentado, é a geração de imagens no pensamento a partir do que se experimentou. Ou seja, a sensação sobre alguma coisa não gera, necessariamente, a associação de uma imagem semelhante à coisa experimentada, mas pode gerar também a associação com a imagem de uma coisa diferente daquele objeto sentido. Contudo, quaisquer que sejam as imagens, essas são sempre derivadas das sensações. Isto significa que a percepção direta de um fenômeno não garante, necessariamente, a recordação desse mesmo fenômeno, pois a observação direta sobre ele não leva, necessariamente, a alma do observador a associar a imagem gerada em seu pensamento com esse mesmo fenômeno.

Quando, por exemplo, o repicar de um campanário me leva à recordar de uma Igreja e não propriamente do campanário. 17

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O Agir Humano De fato, a recordação não se dá sempre do mesmo modo para todas as coisas. Por exemplo, Sócrates diz que são coisas bem diferentes recordar um homem e recordar uma lira (73d). Isto pode implicar, mais uma vez, em dizer que a investigação direta dos fenômenos não conduz, necessariamente, ao conhecimento. Outro exemplo, a alma de um amante ao observar uma lira, uma vestimenta, ou qualquer objeto que seu amado habitualmente usa, pode gerar a imagem de seu amado em seu pensamento (73d). Ademais, muitas vezes alguém pode ver Símias, mas em seu pensamento é gerada uma imagem que recorda Cebes. É assim em milhares de exemplos daquilo que se chama recordação, principalmente quando se trata de coisas que o tempo e a distração fazem esquecer (73d-e). Assim, quando alguém vê o desenho de um cavalo ou o desenho de uma lira pode gerar a imagem de um homem em seu pensamento (73e). Isto quer dizer que, não só a investigação direta dos fenômenos não garante o conhecimento desse fenômeno, mas a observação direta sobre uma simulação da realidade, ou seja, a observação direta sobre uma imagem (desenho de um cavalo, ou de uma lira) não conduz, necessariamente a uma imagem semelhante àquilo que está sendo observado. Portanto, tal observação não conduz, necessariamente, ao conhecimento, ou recordação do que está sendo observado. Sobre esse exemplo é importante lembrar também que um desenho de um cavalo, ou de uma lira, pode se distanciar muito de seu modelo original e mesmo assim continuar sendo o desenho de um cavalo, ou de uma lira. Nem mesmo a observação direta sobre um retrato, que é uma simulação muito próxima de seu modelo original — a observação direta sobre o retrato de Símias, a título de exemplo —, nem mesmo a observação direta sobre este tipo de simulação tão próxima do modelo original, gera, necessariamente, a imagem do próprio Símias no pensamento do observador. Pois, ao observar diretamente o

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O Agir Humano retrato de Símias o observador pode gerar a imagem de Cebes em seu pensamento, tal como está em 73e. Apesar de se poder dizer que da observação direta sobre o retrato de um objeto não sucede, necessariamente, a geração de imagens semelhantes ao objeto observado, há casos em que tal observação direta propicia a fácil geração de uma imagem semelhante a esse objeto na imaginação do observador. Por exemplo, ao observar o retrato de Símias, o observador pode gerar, facilmente, a imagem do próprio Símias em sua imaginação (73e74a). Contudo, tal exemplo não garante que a observação direta de um fenômeno conduza, necessariamente, ao conhecimento desse fenômeno, uma vez que tal observação pode propiciar a geração de imagens distintas desse fenômeno na imaginação do observador. Além disso, se alguém, ao observar o retrato de Símias, pode gerar a imagem do próprio Símias em sua imaginação, disto não resulta que a imagem de Símias seja o próprio Símias, pois, a imagem é diferente daquilo do que ela é imagem. Portanto, pensar por imagens é, reciprocamente, gerar no pensamento a imagem e aquilo do que essa imagem é imagem. De acordo com esses exemplos, depreende-se que a imagem gerada no pensamento é, em todo caso, a propiciadora da recordação, o que reforça o parecer segundo o qual a investigação direta dos fenômenos não gera, necessariamente, o conhecimento sobre tal fenômeno. Mas, o ponto mais importante a ser considerado é que tanto a imagem do objeto observado, quanto a imagem gerada no pensamento do observador são diferentes daquilo do que elas são imagens, ou seja, são diferentes do verdadeiro ser da coisa observada. Disto se pode concluir que o pensar puro ou a recordação do verdadeiro é reciprocidade entre gerar imagens e distingui-las daquilo do que são imagens. O que somente será explicado no diálogo por meio da analogia da investigação de um eclipse do sol, que serve de modelo ao método 335


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O Agir Humano de investigação ideal, ou seja, aquele da observação por imagem que distingue a imagem daquilo do que ela é imagem. Através dos referidos exemplos, o pensador é levado a refletir sobre os conteúdos de seu próprio pensamento, ou seja, o pensamento reflete sobre si mesmo. Ademais, por meio de tais exemplos, é possível distinguir um pensamento reflexivo que distingue a imagem daquilo de que a imagem é imagem daquela imaginação que não faz distinção entre imagem e imaginado. Ora, ao mostrarem que as imagens podem ser propiciadas por coisas semelhantes ou dessemelhantes a elas e, por outro lado, que as imagens podem propiciar a recordação de coisas diferentes do objeto observado, tais exemplos mostram que a observação direta dos fenômenos não conduz, necessariamente, à recordação do objeto observado. Logo, há necessidade para um conhecimento autêntico de uma alma pensante que saiba fazer distinção entre imagem e aquilo do que a imagem é imagem, ou seja, de uma alma que negue que a imagem é idêntica ao objeto do conhecimento e, assim, de um método de investigação diferente da investigação direta dos fenômenos. Ainda de acordo com o que está acima, não há objeto do pensamento sem uma alma pensante, nem há purificação do pensamento sem a distinção entre imagem e aquilo do que a imagem é imagem. Mas, para aprofundar tal reflexão é necessário considerar o seguinte: quando se trata de exemplos de recordações ocorridas mediante imagens semelhantes ao objeto observado é preciso investigar se essa imagem é realmente igual àquilo do que ela é imagem, pois semelhança e igualdade são distintas. Somente considerando todos os exemplos de recordação até agora mostrados é possível notar a importância de tal questão. Por isso, parece muito importante lembrar que enquanto Símias dá exemplos da recordação que ocorre por meio de perguntas bem conduzidas (73a), Sócrates começa dando exemplo de recordações 336


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O Agir Humano que ocorrem por meio das próprias sensações, tais como ver, ouvir, ou qualquer que seja a sensação (73c), passando, em seguida, a dar exemplo da recordação que se dá através de coisas bem específicas que o tempo ou a distração tinham feito esquecer, tais como, um homem, uma vestimenta, uma lira, Símias ou Cebes (73d-e). Depois, Sócrates segue dando exemplo da recordação que ocorre por meio de simulações da realidade. Algumas dessas simulações não precisam ser muito semelhantes aos seus originais, por exemplo, os desenhos das coisas. Nos exemplos dados por Sócrates se encontram, o desenho de um cavalo e o desenho de uma lira (73e). Outros exemplos se referem à recordação que ocorre através de simulações que são muito semelhantes aos seus originais, por exemplo, os retratos das coisas. Nos exemplos dados por Sócrates se encontram, o retrato de Símias e o de Cebes (73e). Aliás, Sócrates encerra esses exemplos ressaltando que tais objetos são às vezes, semelhantes, outras vezes, dessemelhantes aos objetos que por meio deles são recordados (74a). É possível notar, nessa sequência de exemplos dados por Sócrates, a presença do par semelhante/dessemelhante e uma espécie de digressão que ocorre dos objetos mais sensivelmente reais para os objetos que são apenas simulações da realidade. Não estaria Sócrates forçando sua argumentação na direção daquilo que está além da realidade sensível? Parece que sim, pois após os exemplos da recordação de coisas bem sensíveis ele passa a dar o exemplo de como o semelhante pode propiciar a recordação do Igual (74a). Portanto, Sócrates vai dando ao diálogo um aspecto onto-epistemológico, na direção de que os problemas devem ser resolvidos no pensamento puro, através do método de investigação ideal e não na sensibilidade. Tanto é verdade que, na continuação dos exemplos de Sócrates, o que sucede é a afirmação daquilo a que se dá o nome de Igual (74a-b), não mais de um igual sensível, como a igualdade entre dois pedaços de pau, entre duas pedras, nem entre 337


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O Agir Humano coisas desse mesmo gênero, posto que essa igualdade sensível, quando examinada a fundo, não pode ser comprovada na realidade, (vide 74a-b). Mas o Igual, a que Sócrates passa agora a se referir, segue aquela digressão do mais denso ao mais sutil e, quando comparada à igualdade encontrada entre as coisas sensíveis, se distingue delas por ser realmente Igual, não apenas semelhante como são as coisas sensíveis. Ora, na exposição da questão do conhecimento dessa realidade inteligível a que se dá o nome de Igual, um novo problema é suscitado: se em todos os fenômenos observáveis somente é possível encontrar semelhança e nunca igualdade real, onde é possível encontrá-la? A resposta é: não é possível encontrá-la, senão no pensamento, ou seja, na recordação. Assim, Sócrates diz que a recordação do Igual é propiciada pela observação de coisas sensíveis, tais como, pedaços de pau, pedras, ou outras coisas semelhantes, cuja igualdade, percebida pelo homem, faz recordar o Igual que, entretanto, é distinto delas. Sócrates faz entender, desse modo, que o realmente verdadeiro ocorre no pensamento puro, tendo como referência a Forma perfeita do Igual, que estrutura a percepção do sensível 18. Acredita18 “Depois de uma breve desaparição, no final do argumento, bem como no dos contrários sensíveis, como vimos, as Formas regressam no argumento da anamnese. A contraposição dos dois tipos de iguais caracteriza bem a diferença que opõe as Formas às suas instâncias sensíveis, ficando a natureza do processo de instanciação perfeitamente definida, de um ponto de vista epistemológicos. Isso quer dizer que fica bem claro como e em que circunstâncias as Formas estruturam nos homens toda a percepção sensível. Mas o cruzamento dos dois argumentos - o da anamnese com o da oposição da alma ao corpo (78a-84b) - vai complementar esta perspectiva com uma abordagem da noção de Forma de um ponto de vista ontológico. Platão quer mostrar a total estranheza da alma ao corpo, particularmente no que diz respeito à possibilidade de sofrer destruição (78b). Começa por distinguir compostos de não-compostos, para daí colher a evidente afinidade dos compostos com a decomposição e, consequentemente, por correspondência (pelo fato de restar apenas uma alternativa), dos nãocompostos com a imutabilidade (78bc)” (SANTOS, 2008, p. 62).

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O Agir Humano se, por isso, que é a partir da questão do conhecimento do Igual em si que Sócrates retira, de modo mais profundo, aquilo que é objeto do verdadeiro conhecimento do âmbito das sensações e o coloca no âmbito do pensamento puro. Se a alma nunca viu o Igual em algum fenômeno e, mesmo assim, esse Igual pode ser pensado, ou seja, recordado, então é necessário que o conhecimento do Igual seja anterior à observação dos fenômenos semelhantes, mesmo antes do tempo em que, pela primeira vez, a visão de coisas semelhantes gerou o pensamento de que elas tendem ao Igual em si (vide 74d-75a). Ora, neste passo não se encontra implícito que o Igual é uma realidade do âmbito do pensamento e não das sensações? Isso é evidente, mesmo que se possa dizer que para a alma que nasceu na forma humana a recordação do Igual é propiciada pelas sensações, pois as coisas sensíveis que são tidas como semelhantes, quando percebidas, fazem o observador recordar o Igual por apresentarem alguma semelhança com ele, embora permaneçam distintas do Igual (74b). A partir de tais considerações, o diálogo vai convergindo para uma realidade que somente pode ser pensada, ou seja, o diálogo converge para o seu aspecto onto-epistemológico, no qual, o pensamento puro se torna objeto de investigação e fundamento da imortalidade da alma, pois para pensar as Formas é necessário que ela seja anterior às sensações e distinta dessas sensações e do corpo. Isto implica em dizer que o pensamento puro e a alma não morrem, pois são de natureza distinta daquilo que morre. Ora, se pensar é distinto de sentir, então o que está dito atrás implica também em outra coisa, a saber: se esse Igual, do qual se fala, é sempre idêntico a si mesmo (74b); se as semelhanças, que permanecem diferentes do Igual, levam o observador a recordá-lo, mesmo que esse Igual seja semelhante ou diferente dessas semelhanças percebidas (74c); se a visão dos semelhantes faz o observador pensar noutra coisa, ou seja, no Igual; se entre o 339


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O Agir Humano semelhante e o Igual falta muito e se o semelhante apenas tende ao Igual, mas por ter diferenças não é o Igual mesmo; então, novamente, a investigação direta dos fenômenos não leva, necessariamente, ao conhecimento verdadeiro daquilo que é investigado. Portanto, é necessário abordar um caminho diferente da observação direta dos fenômenos para obter o conhecimento verdadeiro das Formas. Ora, ao se referir à recordação do Igual, Sócrates diz que uma tal reflexão e a possibilidade mesma de fazê -la provêm unicamente do ato de ver, de tocar, ou de toda e qualquer sensação; que depois da alma ter nascido em corpo humano são as sensações que lhe dão o pensamento de que todas as coisas semelhantes tendem à realidade própria do Igual. Mas, ao mesmo tempo, Sócrates diz que tais sensações são diferentes do Igual, posto que não seria possível comparar com o Igual as coisas meramente semelhantes mostradas por essas sensações (75a-b). Por conseguinte, se as sensações podem propiciar a geração de imagens diferentes do fenômeno que se observa diretamente, mesmo que sejam as sensações que propiciam a recordação ou pensamento, a observação direta dos fenômenos deve ser substituída por um método mais seguro para obter o conhecimento verdadeiro das Formas puras. E assim, é oportuno considerar aqui a importância das sensações nesse novo passo do diálogo. Se em 65d o conhecimento de realidades em si exigia um saber da alma separada do corpo, aqui a sensação parece adquirir um status distinto do “desmanchaprazeres” do pensamento puro. Aqui ela aparece como um prérequisito de reflexão (75a). Desde que se está vivo, é necessário perceber para aprender, refletir para se recordar. A vida e a sensação são de alguma forma o mal e o remédio? Viver é também ter que aprender a sentir, é a condição para ser capaz de recordar. A sensação perde seu status de obstáculo para se tornar condição 340


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O Agir Humano necessária à recordação. Assim é preciso fazer bom uso dela, entender o que está faltando e o que tende a aparecer nela como objeto da recordação. O desejo de possuir tal objeto por parte dos autênticos filósofos não permite-lhes compreender o que está faltando no que é dado pela sensação? Isto constitui o ponto de partida para a reflexão sensível. Não é verdade que esse ponto de partida é necessário, uma vez que há uma perda de conhecimento, um esquecimento? (SANTOS, 2008). Ademais, em consonância com tudo isso, é preciso considerar também que, dando-se no pensamento e sendo anterior às sensações, as formas são conhecidas tanto antes, quanto depois do nascimento da alma em forma humana (vide 75c-d). O saber eterno é conservado no curso da vida (75d). O esquecimento é apenas o abandono de um conhecimento (75d). Ao nascer em forma humana, a alma abandona o conhecimento das Formas (75e), mas ao fazer uso dos sentidos a alma recorda o conhecimento que tinha abandonado (75e). Quando uma coisa é percebida por qualquer um dos sentidos, essa sensação propicia a recordação de outra coisa que a alma havia esquecido (75e-76a). Ou a alma nasce com um conhecimento que dura a vida inteira ou apenas depois do nascimento a alma recorda esse conhecimento (76a-b). Quem sabe é capaz de dar razão do que sabe (76b), mas, segundo Símias, nem todos são capazes de explicar as Formas, mas apenas de recordá-las (76b-c). A alma não adquire o conhecimento das Formas na data do nascimento em forma humana (76c), a geração da alma e do conhecimento são idênticos (76d-e), a necessidade da existência das Formas implica na necessidade da existência da alma (76e-77a). Não é verdade que o ponto de partida da recordação não é, portanto, a sensação em si, a sensação refletida como algo deficiente? O objeto percebido adquire o status de imagem imperfeita. Para se tornar consciente desta falta de realidade a própria alma deve reconhecer a falta e o desejo que a prende? 341


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O Agir Humano Parece que a deficiência de um determinado objeto na coleção sensível para aqueles que aspiram à realidade deste objeto se faz evidente. Eis porque Sócrates não desenvolve uma análise da própria percepção, mas a análise da similaridade ou dissimilaridade entre o objeto percebido e a realidade referente a este objeto (Cf. SANTOS, 2008, p. 99 e 100). Mas, Símias diz que nada disto prova que a alma existe depois da morte do corpo (77a-b). A refutação de Símias é semelhante à objeção de Cebes (77a-b). Então, Sócrates tenta demonstrar que seu argumento já está completo pela associação entre o argumento dos contrários e o argumento da reminiscência (77c-e). Há um intervalo (77e-78b). Sócrates aprofunda sua defesa através da distinção entre as duas naturezas (78c), através do que se conhece a realidade do pensamento (79a84b). Para aprofundar sua defesa, Sócrates recorre mais uma vez à distinção entre sentir e pensar, entre corpo e alma. O resultado de tal reforço consiste em admitir que o pensamento puro é o meio apropriado de conhecer os seres inteligíveis (78c-80e). Essa distinção ressurge agora com a pergunta sobre quais são as coisas que são susceptíveis de aniquilação. Após a tentativa de Sócrates de fundamentar a imortalidade da alma, por meio da anterioridade do pensamento e de acordo com o argumento da reminiscência, Símias ressalta que daquela demonstração resulta apenas que a alma existe antes do nascimento, mas não resulta que depois da morte do corpo a alma não seja aniquilada (77b-c). Ademais, Sócrates havia dito, ironicamente, que tanto Cebes quanto Símias exigem uma demonstração de que a alma não se aniquila após a morte do corpo por estarem dominados pelo medo pueril de que um vento qualquer pode soprar sobre a alma no momento de sua saída do corpo para dispersá-la e dissipá-la (77c). Ocorre, porém, que o aprofundamento da questão sobre as coisas que se aniquilam e as coisas que não se aniquilam resulta, 342


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O Agir Humano necessariamente, na questão daquilo que, não sendo de natureza sensível, é uma realidade apenas do âmbito do pensamento. Portanto, tal aprofundamento implica, mais uma vez, na convergência do diálogo para seu aspecto onto-epistemológico e consiste numa estratégia de seu autor para fundamentar o método de investigação ideal. A propósito, não é demasiado repetir que, todas as circunstâncias mostradas no Fédon parecem existir como estratégias para essa convergência, de modo que o pensamento puro é o fim visado pelos argumentos, por ser a realidade mais verdadeira. Não é diferente no que diz respeito à questão sobre as coisas que se aniquilam. Se não é possível encontrar na realidade sensível aquilo que nunca se aniquila, somente no pensamento puro isso será possível. Por isso, Sócrates segue perguntando sobre as coisas compósitas e as não-compósitas, o que convergirá no tema do pensamento puro (78c). O mesmo ocorre acerca daquilo que é Imutável e daquilo que se comporta sempre do mesmo modo (78c): tais coisas não existindo na realidade sensível são realidades somente no âmbito do pensamento. As coisas que não se aniquilam, tais como, o Igual em si, o Belo em si ou toda e qualquer realidade que é em si, comportam-se sempre do mesmo modo, permanecendo imutáveis, sem admitir jamais, em nenhuma parte e em coisa alguma, a menor alteração (78d-e). Sócrates segue mostrando que tais coisas não são encontradas no âmbito sensível, mas apenas no pensamento puro (79a). O mesmo ocorre às coisas invisíveis (79a). Em outros termos, há no homem algo que é distinto de seu corpo, algo que sendo distinto dos sentidos é capaz de capturar essas realidades do âmbito do pensamento puro. Portanto, a alma nascida em forma humana é constituída de duas naturezas, uma corpórea e outra incorpórea (79b-c). A propósito, o corpo é um instrumento que às vezes a alma utiliza para observar algumas coisas por intermédio da vista, ou do ouvido, ou de qualquer sensação 343


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O Agir Humano (79c). Contudo, quando a alma tenta entrar em contato direto com os fenômenos, por meio dessas sensações, é levada na direção daquilo que não se comporta da mesma forma. Torna-se, então, inconstante, agitada e titubeia como se estivesse embriagada (vide 79c). Mais uma vez, chegamos a uma mesma certeza: a investigação direta dos fenômenos não conduz, necessariamente, ao conhecimento verdadeiro. Portanto, é necessário encontrar outro método para capturar o verdadeiro conhecimento. É necessário evitar que a observação seja feita através da natureza corpórea, através das sensações. A alma deve examinar as coisas através de sua própria natureza, lançando-se na direção do que é puro, do que “é” sempre, do que não se aniquila, do que se comporta sempre do mesmo modo. Esses seres se mantêm os mesmos e, por ser da mesma natureza desses seres, a alma pode se manter a mesma considerando-os, capturando o conhecimento verdadeiro sem vacilações. A este estado da alma se dá o nome de pensamento (79d). Ora, esse estado cognitivo é possível porque a alma é de natureza divina, ou seja, de uma natureza que move o corpo, que tem poder sobre o corpo (80a). Disto se conclui que: se, por um lado, a alma é divina, imortal, dotada de capacidade de pensar, uniforme, indissolúvel e idêntica a si mesma e, por outro lado, o corpo é humano, mortal, multiforme, desprovido de capacidade de pensar, decomponível e nunca idêntico a si mesmo; então, é a alma, por meio do pensamento puro, a capturar o conhecimento das Formas e, por isso, é indissolúvel, imortal, ou qualquer estado que disso se aproxime (vide 80a-e).

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O Agir Humano 3. CONSIDERAÇÕES FINAIS. No Fédon, Sócrates (ou Platão) acusa principalmente a incoerência daqueles que vivem como se as sensações, seus derivados e a investigação direta dos fenômenos constituíssem o meio seguro para a aquisição do verdadeiro conhecimento. Essa acusação é possível porque há uma confusão nos processos sensíveis, por eles serem circulares e recíprocos, embora sejam tidos como coisas concretas. Então, Platão desenvolve uma crítica contra o discurso dos naturalistas, que utilizam o método de investigação direta dos fenômenos para adquirir a verdade das coisas. Tal crítica tem sua fundamentação no entrelaçamento da noção de morte para o filósofo (64c), na associação entre o argumento dos contrários e o argumento da reminiscência (72e), na apresentação do método de investigação ideal (99 d-e) e na associação do argumento da afinidade com a teoria da participação (102a-107b). Nisto se constitui a solução para a aquisição do verdadeiro conhecimento e correção do discurso naturalista. A consequência da fundamentação dessa crítica permite que se possa dizer que o verdadeiro conhecimento se dá pela reciprocidade entre processo negativo de cognição (ou purificação do pensamento) e estado cognitivo inato (ou recordação das Formas inatas). A fundamentação para a tese anunciada neste trabalho ocorre tendo em vista o seguinte: No Fédon, o conhecimento está relacionado aos processos chamados esquecer/recordar, mas é um estado de pensamento puro (ou recordação) das Formas inatas (76e). É assim porque somente o puro pode pensar o puro (67a-d). Igualmente, não há Formas inatas sem uma alma (ou aquilo que as pensa), nem há alma pensante sem as Formas inatas (ou aquilo que é pensamento puro). Com isto se quer dizer que “a verdadeira vida” sendo um inteligível, somente é possível que a alma seja algo porque dele participa (105c). Igualmente, seria contraditório afirmar que a 345


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O Agir Humano vida, que é causa da alma, é possível sem aquilo do que a causa é causa. Ora, a causa jamais seria causa sem aquilo do que é causa (99 ab). Igualmente, não há corpo sem alma, posto que a alma seja causa do corpo. Então, a alma, empolgando uma coisa, sempre traz vida a essa coisa (105 d). Isto implica em se poder dizer também que assim como não há causa sem aquilo do que a causa é causa, não há alma sem corpo. E, assim como as Formas inatas são os verdadeiros estados e as verdadeiras causas, não há estados sem processos.

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14 A NATUREZA DA ALMA E A CAUSA DAS DOENÇAS ANÍMICAS: UMA INTRODUÇÃO SOBRE O SIGNIFICADO DA MORTE EM LUCRÉCIO Antônio Júlio Garcia Freire1

1.

INTRODUÇÃO.

Exceto pela sua única obra conhecida, o De rerum natura (“Da Natureza”), poema filosófico composto por seis Livros, pouco se sabe acerca da vida de Lucrécio, a não ser que o lugar de seu nascimento se deu provavelmente em Roma, vivendo ali até a sua morte, por volta do ano 55 a.C. A lenda da sua loucura e suicídio foi amplamente explorada pelo cristianismo posterior, sendo propagada por São Jerônimo como a prova do triste fim a que se chega um epicurista (ONFRAY, 2008, p. 249). Essa visão distorcida do poeta é contestada até mesmo pelos seus contemporâneos: Cícero, em uma de suas Cartas ao irmão, Quinto, diz que a poesia de Lucrécio mostrava muitos lampejos de gênio e de artista2, um conceito de arte muito próximo do sentido expressado pela techné grega. O poeta e filósofo romano foi um discípulo tardio do grego Epicuro, nascido nos fins do século IV a.C. Uma das doutrinas epicuristas tinha como fundamento um conjunto de quatro máximas, chamadas de tetraphármakon, as quais consistiam em uma 1 Professor da Universidade do Estado do Rio Grande do Norte — UERN (E-mail: antoniojulio@uern.br). 2 “Multis luminibus ingeni, multae tamen artis” (CICERO, Letters, translated by E. S. Shuckburgh. Vol. IX, Part 3. The Harvard Classics. New York: P.F. Collier & Son, 2001).


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O Agir Humano terapia para as doenças da alma. Dessas máximas, uma é tratada amiúde por Lucrécio: a morte nada significa para o sábio, uma vez que está além do domínio do sensível (SILVA, 2003, p. 81). Além disso, no De rerum natura, Lucrécio expõe os principais pontos da filosofia epicúrea, principalmente os princípios constituintes e de realização da natureza (phýsis), a teoria das sensações e do movimento dos mundos microscópico e macroscópico. Apesar de enfatizar o papel da natureza como fundamento de tudo o que existe, o De rerum natura é uma obra ética: somente através do estudo da phýsis (ou a physiología) e de seus princípios constituintes (os átomos e o vazio), além da cinética subjacente às partículas, é possível ao sábio afastar os medos insensatos que impedem o prazer e o exercício da filosofia. Um desses temores, é o medo infundado da morte, uma vez que objetivamente para um epicurista, ela nada significa. Para Lucrécio, é justamente o temor da morte que alimenta o apego à riqueza e à ambição de poder cujas consequências se refletem nas doenças anímicas. Por outro lado, a obra de Lucrécio enceta algumas dificuldades de análise, as quais, julgamos prudente antecipar. Em primeiro lugar, o poema faz referências muito estreitas ao Peri Phýseos de Epicuro, um tratado monumental em 37 volumes, dos quais sobreviveram alguns poucos fragmentos encontrados na Vila dos Papiros, em Herculano 3. Diante do estado fragmentário dessa fonte, serão utilizados como apoio às passagens transcritas de Lucrécio, os principais termos encontrados na Carta a Heródoto relacionados à temática central desta pesquisa, uma epístola transcrita na obra Vidas e Doutrinas de Filósofos Ilustres de Diógenes A Vila dos Papiros ou Villa dei Papiri foi a biblioteca da residência de um epicurista rico que viveu na antiga cidade italiana de Herculano, atualmente o município de Ercolano, próximo a Nápoles. A antiga Herculaneum, situada na região da Campânia, ficou conhecida pelo seu excelente estado de conservação, juntamente com parte de seus habitantes, após ter sido soterrada pela cinzas da erupção do vulcão Vesúvio em 79 d.C. 3

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O Agir Humano Laércio, doxógrafo grego que viveu no século II ou III a.C. (a época exata em que viveu é incerta). Em segundo lugar, um outro tipo de limitação é exposto pelo próprio Lucrécio, quando lamenta a dificuldade em expor o pensamento grego na sua língua materna, o latim4. Importante ressaltar que a longa tradição filosófica dos helenos permitiu o desenvolvimento da língua grega sob bases abstratas, conservando um terreno fértil para a especulação filosófica através da sua flexibilidade e poder de expressão. O objetivo deste artigo é expor algumas questões levantadas por Lucrécio sobre a relação entre a natureza e a saúde da alma, além de algumas consequências éticas sobre o problema da morte.

2.

A NATUREZA DA ALMA EM LUCRÉCIO.

Para os epicuristas, e especialmente para Epicuro, o fundamento de uma alma sadia estava intimamente ligado a sua imperturbabilidade (ataraxía). Tal estado era a condição de uma existência feliz (makários zèn)5, sendo então princípio e a própria realização da vida. Por outro lado, os temores e medos infundados, causas da angústia e do desespero do homem insensato, tinham como origem os terrores imputados principalmente pela superstição religiosa, além de um modo de vida em desacordo com a simplicidade da própria natureza (káta phýsin). Tal era a causa das doenças anímicas, as quais na antiguidade clássica, eram tão diversas como a melancolia ou a ira. Para alcançar a ataraxía e 4 “E também não ignoro que é bem difícil explicar em versos latinos as obscuras descobertas dos gregos, sobretudo porque se faz mister empregar palavras novas, dada a pobreza da língua e a novidade do assunto” (LUCRÉCIO, I, 136-137). 5 DL, X, 128.

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O Agir Humano consequentemente a makários zen, era necessário regular a conduta e as paixões, levar a alma a um processo de boas escolhas, recusando as vãs opiniões (kenón doxai) e os desejos desnecessários (SILVA, 2003, p. 85-87). Voltando a Lucrécio, é no Livro III que o poeta vai apresentar os argumentos relacionados à saúde da alma, além de afirmar o quanto a morte é insignificante para o homem sábio. O Terceiro Livro trata ainda dos temores infundados da morte e como esses medos são, algumas vezes, as causas de males e doenças anímicas e degenerescência moral, como a ambição desmedida, a avareza, a cobiça, a ausência de uma vida piedosa e de um cultivo à amizade. Nesse sentido, será importante examinar a constituição da própria alma no pensamento epicurista, e como esta se articula com os conceitos subjacentes a este artigo. A noção de alma (psychè) entre os epicuristas faz parte da concepção de uma filosofia da natureza que remonta – embora com algumas diferenças – ao antigo atomismo de Leucipo e Demócrito, para os quais, a realidade – isto é, o todo – era formada por apenas dois constituintes: os corpos indivisíveis (os átomos, inacessíveis à experiência) e o vazio (REALE, 1990, p. 242-243). Todos os corpos sensíveis são formados a partir desses dois componentes essenciais, constituindo-se em um tipo de agregado (athroísma) corpóreo e atômico, cujas partes, imperceptíveis e acessíveis somente pelo pensamento, estariam em um movimento contínuo. O choque dos átomos é que formam os mundos e os corpos, além de tudo o que pode ser percebido ou intuído6. 6 A filosofia da natureza em Epicuro e Lucrécio pode ser definida como um imanentismo. Isso significa que a totalidade do que existe ou pode ser nomeado é formada a partir desses dois elementos básicos, os átomos e o vazio. Nesse caso, até mesmo o pensamento e outras faculdades anímicas podem ser reduzidas a esses constituintes. A diferença será de aspectos meramente

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O Agir Humano Nesse todo universal, a alma também é um corpo (um corpo-alma), e como todos os outros, é um agregado de átomos muito sutis, os quais guardam certas características como o calor, o sopro (pneuma) e o ar, analogias retiradas da experiência: os seres vivos respiram e exalam um ar morno, sendo uma das evidências da sua vitalidade. Para Lucrécio, a concepção de alma é tripartida: divide-se entre uma parte racional, o espírito (animus), e uma parte irracional (anima)7. O animus é responsável pelas operações intelectuais, pelo raciocínio, enquanto que a anima encontra-se disseminada por todo o corpo dos seres vivos (o corpo-carne). Mas segundo Lucrécio, o sopro, o calor e o ar são insuficientes para criar por si mesmos a sensibilidade. Dessa forma, é necessário que exista uma outra parte, um elemento sem nome (akatônomaston) 8, uma quarta natura9. Trata-se de um elemento muito tênue e extremamente móvel e que não tem qualquer equivalente no mundo sensível, e por este motivo, não é possível nomeá-lo10. De fato, a força não-nomeada deve ter uma composição bastante sutil e ser capaz de uma extrema mobilidade, para que possa transmitir as sensações ao espírito e o movimento ao corpo, uma vez que as outras três substâncias não manifestam esta capacidade. Finalmente, como corolário das afirmações anteriores, o corpoalma enquanto um agregado corpóreo, não é eterno, sendo portanto, mortal. Por outro lado, a noção de alma enceta algumas dificuldades. Para os gregos do período clássico, o termo vai adquirir uma gama de significados bastante variada. A alma pode qualitativos: os átomos da alma tem uma constituição muito mais sutil e tênue do que os elementos de um corpo sensível. 7 Em Epicuro tais partes foram nomeadas de tó lógikon e alogon, respectivamente. Cf. Diógenes Laêrtios, Vida e Doutrina dos Filósofos Ilustres, X, 66. 8 DL, X, 63. 9 LUCRÉCIO. De rerum natura, III, v. 243. 10 “Omnino nominis expers” (idem, III, v. 244).

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O Agir Humano ser entendida como um conjunto de funções vitais pertencentes a qualquer ser vivo, ou ainda, uma força intelectual que habita o corpo-carne, responsável pelas faculdades superiores (o pensamento, o raciocínio, a memória) além de se referir às funções corporais e às sensações. Ao estabelecer essa divisão, Lucrécio está situando a alma entre esses dois aspectos funcionais. Nesse sentido, aproxima-se da posição estoica, que em seu sentido estrito, compreendia a alma como função vital nos animais, um princípio ativo do mundo, ou ainda, um excerto da “alma cósmica” (REALE, 1990, p. 260). Embora de natureza atômica, o espírito (animus) se distingue funcionalmente da anima, já que é responsável pelas operações intelectuais e as decisões racionais. Tendo características corpóreas, faz parte do ser vivo tanto quanto os membros e outros órgãos do corpo. Os átomos do animus e da anima estão ligados entre si11 embora as partículas do espírito sejam menores e mais redondos, o que são em última análise, a causa da sua grande velocidade. Ainda assim, fazem parte de uma mesma natureza anímica12. Os temores são sentimentos comparáveis às afecções13, com sede no espírito, ocupando um lugar determinado no corpo, o meio do peito14. O órgão que expressa com mais exatidão esse lugar, é sem dúvida, o coração. Dessa localização privilegiada, é possível afirmar que o espírito, além da sua função intelectiva, atua como princípio vital dos seres. O animus ainda remete à mente (mens, mentis), no sentido de que é o locus do pensamento e também “Animum atque animam dico conjuncta teneri” (LUCRÉCIO. De rerum natura, III, v. 137). 12 “Unam naturam conficere ex se” (idem, III, v. 138). 13 O termo é empregado aqui no sentido de tudo aquilo que possa afetar o corpo ou a alma. 14 “Situm media regione in pectoris hæret” (LUCRÉCIO. De rerum natura, III, v. 141). 11

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O Agir Humano da emoção. Dessa forma, sentimentos como o sofrimento e a alegria nascem do espírito (LUCRÉCIO, III, 142). Sendo o animus mente e pensamento, uma das suas características é justamente a capacidade de raciocínio e da reflexão 15. A anima está subordinada ao espírito e entre as suas funções básicas, está a transmissão dos impulsos ao corpo. Tais impulsos se prolongam através dos membros e órgãos, os quais por sua vez, interagem com o espírito por meio da anima. Do ponto de vista de uma analogia moderna, pode-se afirmar que o espírito e a anima, respectivamente, cumprem as funções que a fisiologia atribuiu aos papéis do cérebro e do sistema nervoso nos seres vivos (LONG e SEDLEY, 1987, p. 71). Subjacente ao aspecto funcional, é possível ainda identificar na descrição de Lucrécio, o esboço de uma teoria da identidade da mente quando insiste na relação com uma parte física do corpo.

3. A RELAÇÃO ENTRE O CORPO-ALMA E O CORPOCARNE: A TOTALIDADE DO AGREGADO CORPÓREO. Baseado nessa identificação ou relação corpo-alma e corpocarne, é que Lucrécio vai demonstrar a natureza corpórea do espírito e da alma. No início do seu argumento, diz o poeta:

…quando a vemos [a alma] impelir os membros, arrebatar o corpo ao sono, demudar o rosto, reger e dirigir todo o corpo, como nada disto se pode fazer sem contato e como não há contato sem corpo, não é verdade que se tem de aceitar que o espírito e a alma são de 15 “Sed caput esse quasi, et dominari in corpore toto; Consilium, quod nos animum mentemque vocamus” (LUCRÉCIO. De rerum natura, III, vv. 139140).

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O Agir Humano natureza corpórea?. (LUCRÉCIO. Da natureza, III, 162166).

Há portanto, uma influência do espirito e da alma sobre o corpo, e deste, sobre o espírito e a alma. No primeiro caso, o exemplo é a partir de um corpo sendo penetrado por um dardo, destruindo os ossos e os nervos (LUCRÉCIO, III, 170-174). A vida não é imediatamente suprimida, mas antes, se produz um desfalecimento, uma doce queda ao chão; uma perturbação ou abalo do espírito, aliada a uma vaga vontade de levantar-se. Para que sinta a dor do choques de tais dardos, argumenta Lucrécio, é necessário que o espírito seja de fato, corpóreo (LUCRÉCIO, III, 175-176). Quanto a sua constituição, o espírito (animus) é sutil e formado por elementos extremamente pequenos, lisos e redondos16. Prova disso, é a característica cinética do espírito, a saber, a sua extrema mobilidade. Vejamos essa passagem em mais detalhe:

Continuarei agora expondo-te de que matéria é formado este espírito e donde veio ele. Primeiro, digo que é perfeitamente sutil e constituído de elementos diminutos. Para que possas saber que isto é assim, basta que atentes neste ponto. Parece que nada sucede de maneira mais rápida do que aquilo que o espírito a si mesmo propõe e por si mesmo começa. O espírito, portanto, move-se, segundo parece, com maior celeridade do que qualquer corpo visível a nossos olhos. Mas o que é tão móvel deve compor-se de corpos extremamente redondos e extremamente diminutos, de modo a poderem deslocar“Principio esse aio persubtilem, atque minutis, perquam corporibus factum constare” (LUCRÉCIO. De rerum natura, III, v. 180-181). 16

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O Agir Humano se ao mais pequeno impulso que os abale. (LUCRÉCIO. Da natureza, III, 180-188)

Como já foi visto, o espírito é composto de três elementos misturados: o calor, o ar (ou o vento) e o sopro (isto é, o ar proveniente da respiração). Essa tríplice natureza, no entanto, não é suficiente para criar a sensibilidade17. Introduz então, um quarto elemento, uma certa “força sem nome” 18, formada por poucos e raros elementos. Tal força é “a própria alma de toda alma” 19, conforme a passagem transcrita a seguir: “Esta quarta substância encontra-se dissimulada, escondida, dentro de nós; nada está tão intimamente dentro de nós quanto ela; constitui-se assim, a alma de nossa alma”. (LUCRÉCIO, III, vv. 274-276) Tal “mistura” consiste em partes justapostas de calor, do ar, do sopro e da quarta natura. Os átomos individuais das quatro substâncias são separados e recombinados em um tipo inteiramente novo, constituindo-se num conjunto maior do que a soma de suas partes. No entanto, a alma ainda vai manifestar determinadas propriedades de suas características individuais. Dessa maneira, o calor do espírito explicaria o calor corporal, característica da vida. Quando predomina no espírito o calor em excesso, sobrevém a ira. O vento frio, por seu turno, quando presente em excesso, causa calafrios nos membros, medo e temor. O termo grego usado para “sopro” (pneuma) foi também utilizado pelos estoicos no sentido de “ar morno”, isto é, o ar resultante da respiração. Essa mistura de ar e calor tem em sua constituição os mesmos átomos do vento, mas com um padrão diferente de mobilidade (um “ar calmo”). Por ter uma cinética em 17

“Nec tamen hæc sat sunt ad sensum cuncta creandum” (idem, III, v.

18

“Omnino nominis expers” (LUCRÉCIO. De rerum natura, III, v. 243). “Atque anima est animæ proporro totius ipsa” (idem, III, v. 276).

239). 19

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O Agir Humano que predomina a baixa velocidade das partículas, é uma das causas para a serenidade do corpo. Quando predominante, o “ar morno” contribui para a tranquilidade do caráter (LONG e SEDLEY, 1987, p. 71).

4. AS DOENÇAS ANÍMICAS E A SAÚDE DA ALMA ENQUANTO TÉLOS: A MORTE NÃO É NADA PARA O SÁBIO. Uma vez que tenhamos examinado do que se compõe a natureza da alma, convém anunciar uma das proposições mais importantes da filosofia epicurista: sendo a alma corpórea, não sobrevive à morte do corpo. As implicações éticas dessa doutrina têm a jusante, relação estreita com a concepção de morte. Tal conclusão é apoiada em duas teses, já tratadas sumariamente, mas que será importante retomá-las: a primeira proposição é de que a alma é corpórea, um corpo dentro do corpo. “A alma é (...) princípio corporal unificador do corpo, isto é, a alma é um corpo que se move no seio do agregado corpóreo” (SILVA, 2003, p. 63). Deve-se ressaltar ainda que em grande parte da filosofia antiga, a incorporeidade da alma era considerada uma condição determinante para sua independência em relação ao corpo. Como pode-se perceber, não é esta a concepção epicurista. Com efeito, o fato de que a alma tem a capacidade de interagir com o corpo e de ser afetada por ele, é o que explica tal natureza. A segunda tese, e que nos ajudará a apoiar os argumentos morais sobre a morte, é a da interdependência entre alma e corpo, sendo que a primeira atua como um mediador, transformando as sensações (aístheseis) vindas do exterior (isto é, do mundo) em sentimentos, memória, pensamento e suas projeções (SILVA, 2003, p. 62). A sensação tem, portanto, uma função ética, situada na 362


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O Agir Humano esfera da responsabilidade. No entanto, é o corpo que permite o exercício da responsabilidade – empregada aqui como um conceito que exprime uma resposta às ações – ou dito de outro modo, é o corpo que oferece um lugar apropriado para a ação que tem origem na alma. Assim como o corpo pode sofrer, a alma, tomada em seu sentido conjunto (anima e animus), também está sujeita a doenças. Lucrécio nomeia três doenças anímicas fundamentais: a intranquilidade (curas), a dor ou a aflição (luctus) e o temor (metus). Este último, considerando o temor da morte, seria a causa de vários desvios morais. Para que a alma possa livrar-se de tal temor, faz-se necessária uma investigação da própria natureza, livre das explicações fantasiosas e terríveis propagadas pela superstição e pela religião. Trata-se assim, de uma autêntica terapia da alma, em que o desconhecido pode ser desvelado e compreendido em toda a sua plenitude, sem a necessidade de recorrer a argumentos baseados no castigo, na culpa e no sacrifício a deuses e entidades não-naturais. Uma vez que se pudesse compreender a natureza da alma, percebendo a sua constituição material, entendendo a sua finitude e o processo inerente de dissolução dos átomos, não haveria motivo para temer a morte. A morte como a completa extinção de uma combinação temporária de partículas atômicas, é talvez, a conclusão mais importante quando falamos da análise epicurista da alma. Como corolário moral, Lucrécio afirma que não se deve, em nome de vãs superstições, deixar o medo da morte arruinar nossas vidas, já que o objetivo do homem é desfrutar de uma vida feliz (makários zen). Esta é, ousamos dizer, é o ponto cardinal da doutrina na ética epicúrea. A doença do corpo é real, porque as agressões são externas, materiais e podem ser identificadas através dos seus agentes, tais como a bebida ou o alimento em excesso. Portanto, existem 363


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O Agir Humano relações patológicas entre os agentes e o sujeito. No caso da alma, as agressões não são propriamente reais. Os temores – isto é, os agentes agressores – não tem uma existência legítima, especialmente o medo da morte. Dito de outro modo, o temor não tem objeto. O temor da morte é ilegítimo porque é vazio de toda sensação correspondente, existe apenas no âmbito da imaginação (cogitatio). Na filosofia epicurista, não há a necessidade de criar medos, como se fosse a função auxiliar e desviante de um tratamento psicológico. A função do temor não é positiva. Diz-se, vazio de sentido e sensação, sendo dessa forma, um anti-prazer. Através da filosofia é possível instaurar a saúde da alma, substituindo o temor, pelo conhecimento da Natureza, através do primado das sensações. E a causa das sensações é um objeto real, não um falso-objeto, como a morte e o castigo. O pharmakon para as doenças da alma, consiste em fazer com que o sábio se desfaça desses pseudo-objetos, objetos de medo e temor. Isso acontece, atendo-se a princípios como a materialidade dos fenômenos e da própria alma. A filosofia não é a vida feliz, mas um modo de reflexão, um “saber para a vida”, fundado na compreensão da phýsis, que se realiza enquanto phrónesis, isto é, um modo de ser próprio da sabedoria (SILVA, 2003, p. 97). Dessa maneira, o remédio filosófico situa-se na esfera do pensamento, opondo-se às vãs opiniões. O poeta diz: “A morte, portanto, nada é para nós e em nada nos toca, visto ser mortal a substância do espírito” (LUCRÉCIO, III, 830). E continua:

Também, se o tempo depois de morrermos juntar toda a nossa matéria e de novo a dispuser onde agora está situada e outra vez nos for dada a luz da vida, nada nos importará o que se tiver feito, visto que foi interrompido uma vez o curso da nossa memória. Agora nada nos 364


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O Agir Humano importa o que fomos, nem nos afeta por isso qualquer angústia. (LUCRÉCIO, III, vv. 846-854).

Pensar a não-existência ou aquele que ainda não nasceu, também não deveria ser motivo de temor e angústia: a morte não é tão pior do que o fato de ainda não ter nascido. Passado e futuro seriam instâncias que teriam características semelhantes ou uma espécie de isometria, embora não necessariamente iguais. Isto tem implicações psicológicas poderosas, as quais nos parecem interessantes, sob o ponto de vista da análise contemporânea do discurso lucreciano. O medo da morte é irracional porque é baseado em proposições contrárias à natureza da alma e da própria constituição da phýsis. Para Lucrécio e toda a tradição epicúrea, o medo de um inferno após a morte é na verdade, o medo projetado a partir dos terrores morais pessoais, adquiridos nesta vida e que são a causa das doenças anímicas. De fato, mais da metade do Livro III é utilizado por Lucrécio para demonstrar a mortalidade da alma, refutar as teses de uma vida anterior e da metempsicose. Através da sua poesia, utiliza uma espécie de prosopopeia da Natureza, ao lhe dar voz, na seguinte passagem: Enxuga as lágrimas, mortal, e cessa tuas lamentações. Esgotaste todas as alegrias da vida antes da velhice. Mas, como desejastes sempre o que não tens, desprezando o presente, a tua vida decorreu incompleta e sem alegria e, de súbito, chegou-te a morte à cabeceira, sem tu a esperares, antes de te poderes ir, contente e saciado de todas as coisas. Mas agora, deixa todos esses bens, e cede lugar a outros: eis o que é necessário. (LUCRÉCIO, III, vv. 955-965)

Viver a vida corretamente, segundo o princípio de uma 365


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O Agir Humano makarios zen, é um treino para a morte. Para Lucrécio, a dissipação da alma e do corpo que advém com a morte, a dissolução atômica de ambos, não tem implicações morais positivas, ou seja, a morte não é considerada um avanço intelectual. Para a tradição epicúrea, morrer bem é o ápice de uma boa vida, entendida como uma existência pautada pelo equilíbrio dos desejos e dos prazeres, que favorece a tranquilidade da alma. Neste sentido, para o sábio, tudo o que realiza a vida enquanto prazer e “favoreça o equilíbrio no agir em relação às coisas do mundo” (SILVA, 2003, p. 97), deve ser valorizado.

5. CONCLUSÃO. No epicurismo a morte não pode ser considerada um mal. Lucrécio estabelece essa premissa basilar no seu pensamento, uma vez que o homem, sendo um agregado corpóreo de corpo-alma e corpo-carne, perde a sua identidade pelo aniquilamento. Ao fim da sua vida, restam apenas átomos dispersos no vazio: partículas mais leves (da alma) e mais pesadas (do corpo), que são o resultado da desagregação desse composto humano. Ao fim, cessa a sensibilidade e a consciência, e dessa forma, não é possível nem mesmo falar de um “antes” e um “depois” da vida.

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O Agir Humano REFERÊNCIAS CICERO. Letters. Trad E. S. Shuckburgh. Vol. IX, Part 3, The Harvard Classics. New York: P.F. Collier & Son, 2001. (DL) LAÊRTIOS, Diógenes. Vidas e Doutrinas dos Filósofos Ilustres. Tradução de Mário da Gama Kury. 2a. ed., reimpressão. Brasília: Editora Universidade de Brasília, 2008. LONG, Antony. A. e SEDLEY, David. N. The Hellenistic philosophers. Cambridge: Cambridge University Press, 1987. LUCRÉCE. De la Nature (De rerum natura). Paris: Garnier, 1954. LUCRÉCIO. Da Natureza. Antologia de textos in Epicuro, Lucrécio, Sêneca e Marco Aurélio, São Paulo: Abril Cultural, 1988. ONFRAY, Michel. Contra-história da filosofia: as sabedorias antigas, I. Trad. Mônica Stahel. São Paulo: Martins Fontes, 2008. ANTISERI, Dario e REALE, Giovanni. História da Filosofia: Antiguidade e Idade Média. São Paulo: Paulus, 1990. SEDLEY, David. N. Lucretius and the transformation of greek wisdom. Cambridge: Cambridge University Press, 1998. SILVA, Markus. F. Epicuro: sabedoria e jardim. Rio de Janeiro: Relume Dumará, 2003.

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15 NIETZSCHE: O TRÁGICO COMO AFIRMAÇÃO DA VIDA Lindoaldo Vieira Campos Júnior1 Marcos de Camargo Von Zuben2

Abreviaturas utilizadas ABM – Além do bem e do mal – prelúdio de uma filosofia do porvir CI – Crepúsculo dos ídolos – ou como se filosofa com o martelo EH – Ecce homo: como alguém se torna o que é FF – Fragmentos finais FT – A filosofia na idade trágica dos gregos GC – A gaia ciência GM – Genealogia da moral – uma polêmica HDH – Humano, demasiado humano – um livro para espíritos livres NT – O nascimento da tragédia ou helenismo e pessimismo SA – Sabedoria para depois de amanhã TA/NT – Tentativa de autocrítica VD – A visão dionisíaca do mundo ZA – Assim falou Zaratustra – um livro para todos e para ninguém

1 Licenciado em Filosofia pela Universidade do Estado do Rio Grande do Norte/UERN, mestre em filosofia pelo Programa de Pós-Graduação em Filosofia da Universidade Federal do Rio Grande do Norte/UFRN (E-mail: lindoaldo.campos@mpt.gov.br). Apoio FAPERN/Governo do Estado do Rio Grande do Norte/CNPq. 2 Doutor em filosofia, professor do departamento de filosofia da Universidade do Estado do Rio Grande do Norte/UERN. Coordenador do Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais e Humanas/UERN (E-mail: zuben@uol.com.br). Apoio FAPERN/Governo do Estado do Rio Grande do Norte/CNPq.


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O Agir Humano

1. INTRODUÇÃO. Inserida no âmbito daquilo que Nietzsche denomina de uma sabedoria dionisíaca, a noção de trágico permeia todo o pensamento de Nietzsche, havendo-se assinalado, inclusive, que ...o dionisíaco é não apenas o conceito que guia a sua filosofia trágica, mas é talvez o único conceito nietzschiano que percorre toda a sua obra, podendo ser encontrado desde a sua origem, em O nascimento da tragédia, até os fragmentos do último período de sua vida. (BRUM, 1998, p. 73)

É bem isto, aliás, o que o próprio Nietzsche assinala, quanto à concepção de Aurora e Humano, demasiado humano, em um fragmento póstumo (FF, 41[9], p. 594): Que eu confesse isso, portanto, com gratidão: naquela época, quando comecei a estudar a regra “ser humano”, andei encontrando e me passaram pelo caminho espíritos estranhos e nada inofensivos, entre eles até mesmo espíritos muito livres –, e sobretudo um, e este sempre de novo, nada menos que o próprio deus Dioniso: – o mestre a quem outrora eu, em anos bem mais juvenis, havia oferendado sacrifícios repletos de inocência e temor.

E, em Ecce Homo sobre a Genealogia da moral: As três dissertações que compõem esta genealogia são, quanto a expressão, intenção e arte da surpresa, talvez o

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O Agir Humano que de mais inquietante até agora se escreveu. Dionísio, como se sabe, é também o deus das trevas. (EH, p. 98)3

Não há que se negar, portanto, a existência de um “nexo subterrâneo” 4 entre O nascimento da tragédia e Assim falou Zaratustra, nexo este que espouca, aqui e ali, com mais ou menos virulência, nos demais períodos do pensamento de Nietzsche. Neste itinerário, o trágico sofre diversas e profundas variações: vinculado, num primeiro momento (O nascimento da tragédia) à concepção de uma metafísica de artista (de viés schopenhaueriano), a partir sobretudo de Assim falou Zaratustra Nietzsche passa a compreender esta noção como elemento substancial de sua crítica à moral cristã e da fundação de uma perspectiva ética de afirmação da vida em que, desvencilhado da culpa e do ressentimento, o homem possa, enfim, autossuperar-se e promover a construção artística de si mesmo 5. Neste sentido, Nietzsche se contrapõe às interpretações clássicas sobre o trágico – que o concebem, em suma, estreitamente vinculado a uma concepção fatalista e determinista da existência6 – Estas referências parecem bastar para desautorizar a assertiva de Nuno Nabais, segundo a qual, após O nascimento da tragédia, “o tema da tragédia desaparece por completo dos seus textos [de Nietzsche]” (NABAIS, 1997, p. 11). 4 A expressão é de Giorgio Colli (2000, p. 89). 5 De se ver, p. ex., que, em Humano, demasiado humano, Nietzsche chega a dizer que “Platão talvez tivesse razão em pensar que a tragédia nos torna mais medrosos e sentimentais” (HDH, 212), quando, em Além de bem e mal, ensinará a “dureza contra si e veneração diante de todo rigor e dureza” (ABM, 260). 6 A exemplo de Schelling, quando, a respeito da tragédia Édipo Rei, de Sófocles, termina por acentuar: “Muitas vezes se perguntou como a razão grega podia suportar as contradições de sua tragédia. Um mortal, destinado pela fatalidade a ser um criminoso, lutando contra a fatalidade e, no entanto, terrivelmente castigado pelo crime que foi obra do destino [...] O fato de o criminoso ser punido, apesar de ter tão-somente sucumbido ao poder superior do destino, era um reconhecimento da liberdade humana, uma honra concedida à liberdade. A tragédia grega honrava a liberdade humana ao fazer seu herói lutar contra o poder superior do destino [...]” (Cartas sobre dogmatismo e criticismo, vol. 3, 3

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O Agir Humano para pensá-lo como positividade, vinculando-o à consagração da vida em sua inteireza ao sentimento de leveza que arrima a atividade do artista-criador, o que remete à hipótese principal deste texto, que consiste na concepção de que a ética nietzscheana, como afirmação trágica da vida, vincula-se a uma nova relação com o tempo e com a temporalidade, que se manifesta sobretudo através da perspectiva do eterno retorno e da noção estética da existência, compreendida como o eterno trabalho de criação de si. Dadas, assim, a importância que a noção de trágico possui e as diversas e profundas implicações que dela ressaem no (e para o) pensamento de Nietzsche, o objetivo deste texto consiste em acompanhar este filósofo-andarilho em seu percurso reflexivo sobre este tema, não para reter uma constante a partir da qual fosse possível inferir uma sistematicidade em seu pensamento [uma tal perspectiva seria facilmente desautorizada por suas próprias palavras: “a vontade de sistema é uma falta de retidão” (CI, 22)], senão para trazer à baila elementos necessários (embora, à evidência, insuficientes) à iluminação das veredas em que se encontram algumas das principais questões (a) que seu pensamento (nos) expõe.

2. O TRÁGICO E A METAFÍSICA DE ARTISTA. Já se observou que com Aristóteles tem início uma poética da tragédia e, em Nietzsche, encontra-se o ápice de uma análise que se p. 81 e ss.. apud SZONDI, 2005, p. 29). Também assim Hegel, quando assinala: “A tragédia consiste nisto: a natureza ética, a fim de não se misturar com sua natureza inorgânica, separa-se de si mesma como um destino e se coloca frente a ela; e, pelo reconhecimento do destino na luta, a natureza ética é reconciliada com a essência divina, como a unidade de ambas” (Sobre as formas de tratamento científico do direito natural, sua posição na filosofia prática e sua relação com as ciências positivas do direito, apud SZONDI, 2005, p. 37).

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O Agir Humano refere, em última instância, a uma interpretação ontológica ou metafísica do fenômeno trágico, o que se logrou denominar de uma filosofia do trágico, iniciada com Schelling e presente já nos primeiros escritos do filósofo do Zaratustra (Cfr. SZONDI, 2005, p. 23). Com efeito, em 1870, Friedrich Nietzsche, então um jovem professor de filologia da Universidade de Basileia (Suíça), escreve um texto intitulado A visão dionisíaca do mundo e profere duas conferências, O drama musical grego e Sócrates e a tragédia, que viriam a constituir o substrato de seu primeiro livro, O nascimento da tragédia, originalmente publicado em 1872. Concebido a partir do interesse demonstrado pelas preleções de seu orientador Friedrich Ritschl e sob a influência das ideias do músico Richard Wagner e do filósofo Arthur Schopenhauer, O nascimento da tragédia é o centauro-primogênito de Nietzsche7, o rebento que o insere na polêmica sobre a arte grega que então se trava no seio da intelectualidade alemã, que postula uma ...divisão entre uma Grécia marcada pela serenidade, ou simplicidade, característica que lhe dá Winckelmann, e uma Grécia arcaica, sombria, violenta, selvagem, mística, extática, como aparece bem claramente em Hölderlin. (MACHADO, 2006, p. 215)8 7 Consoante informa Daniel Halévy (1989, p. 69-70), em carta enviada a Erwin Rohde em fevereiro de 1870, Nietzsche escreve: “Ciência, arte e filosofia crescem dentro de mim tão estritamente ligadas que vou acabar parindo um centauro. Esse centauro será meu livro sobre o nascimento da tragédia”. 8 Otto Maria Carpeaux assinala a diferença entre o pensamento de Hölderlin e o convencionalismo apolíneo dos classicistas alemães dos séculos XVIII-XIX, bem como a sua apreensão por Nietzsche: “[ele descobriu], para seu uso pessoal, uma Grécia que os dois milênios da era cristã tinham ignorado e da qual não sabiam Winckelmann nem Goethe: a Grécia exultantemente dionisíaca, a Grécia misteriosamente órfica [relativa a Orfeu, poeta-símbolo do devaneio e do canto como revelação sapiencial] [...] Nietzsche foi o primeiro moderno que chegou a compreender Hölderlin” (A literatura alemã, p. 89. São Paulo: Cultrix, 1964, apud PAES, José Paulo. O regresso dos deuses – uma introdução à poesia de Holderlin, in Hölderlin, Poemas, São Paulo: Companhia das letras, 1991, p. 12).

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O Agir Humano

Fundado nos conceitos de apolíneo e dionisíaco – referidos às noções schopenhauerianas de representação e vontade –, O nascimento da tragédia constitui um registro filológico-filosófico contraposto à concepção de Aristóteles a respeito da tragédia, sobretudo quanto a seu efeito, a catarse (katharsis), concebida, em suma, como “uma espécie de purificação e um alívio acompanhado de prazer” (Aristóteles, Política, Livro VIII, Cap. 7, 1341b, 32-40 e 1342a e ss..). O questionamento da catarse aristotélica é, no entanto, apenas o mote, o ponto de partida da crítica nietzscheana; seu principal alvo é bem outro, e só se dá a conhecer já nas últimas partes d’O nascimento da tragédia: a equação socrática razão = virtude = felicidade. Com esta equação, diz Nietzsche, “a mais bizarra equação que existe, e que, em especial, tem contra si os instintos dos helenos mais antigos” (CI, II, 4), representa-se “a ilusão de poder curar [...] a eterna ferida da existência” (NT, 18). Instaura-se, aí, o moralismo na filosofia: “razão = virtude = felicidade significa tão-só: é preciso imitar Sócrates e instaurar, permanentemente, contra os desejos obscuros, uma luz diurna – a luz diurna da razão”(CI, II, 10). E, para perfazer a contraposição a este pensamento de décadence 9, Nietzsche põe em evidência o aspecto dionisíaco da tragédia, esclarecendo: em sua perspectiva, o apolíneo e o dionisíaco são pulsões artísticas que caminham juntas, no mais das vezes em franca oposição, mas, de qualquer modo e ao fim, em um movimento de mútuo reforço que incita à criação de novas produções. O apolíneo é o princípio luminoso, ordenador, que, a partir do caos originário, doma as forças cegas da natureza e as 9 No pensamento de Nietzsche, o termo décadence possui sentido específico: significa a recusa à totalidade da existência, da “vida que declina”, ou seja, de ideias e práticas (verbigratia, da ciência e da má compreensão do corpo) que postulam a vida como algo que deve ser julgado, justificado, resgatado pela ideia, pela razão. Veja-se, a respeito: CI, II, 2 e X, 2 e 3.

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O Agir Humano submete a uma medida, dando-lhes contornos precisos e fixando, assim, sua individualidade em caracteres distintivos e identitários que desde então podem ser racionalmente apreendidos. O dionisíaco, por seu turno, diz respeito a uma experiência de reunidade, ante o perigo extremo advindo do excesso de individuação que pode suscitar o enfraquecimento da própria vontade e, portanto, a degradação, o despedaçamento da própria vida. Assim, se a pulsão apolínea respeita ao jogo com o sonho, a pulsão dionisíaca refere-se ao arrebatamento que repousa no jogo com a embriaguez10, através do qual se torna possível a apropriação artística das forças gerativas e plasmadoras da natureza para lhes conferir o sentido da criação artística. O dionisíaco consiste, em suma, no aspecto que permitiu ao grego antigo forjar a máscara que lhe tornou possível vislumbrar os aspectos mais terríveis da existência; o dionisíaco é o fundamento do conhecimento trágico, ou seja, ...o conhecimento básico da unidade de tudo o que existe, a consideração da individuação como causa primeira do mal, a arte como esperança jubilosa de que possa ser rompido o feitiço da individuação, como pressentimento de uma unidade restabelecida (NT, 7 e 10).

Ora, esta unificação é precisamente aquilo a que Nietzsche dará, adiante, a denominação de metafísica de artista (Cfr. TA/NT, 5): a miragem criada pelo gênio artístico que torna o homem capaz de se colocar diante da existência, sem excluir seus aspectos problemáticos e sem ceder à sua força destruidora. Tem-se, portanto, que, se, para Nietzsche, “a existência e o mundo aparecem justificados somente como fenômeno estético” 10

Estas expressões constam de VD, p. 6 e 8.

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O Agir Humano (NT, 24) 11 e se a tragédia consiste na “suma de todas as potências curativas profiláticas” (NT, 21), é porque de certa forma ele não deixa de considerá-la à maneira de um remédio. Não, contudo, como um purgante, como o quer Aristóteles; nem, tampouco, como “moralina” 12, como o pretende o sacerdote ascético, que “traz ungüento e bálsamo, sem dúvida; mas necessita primeiro ferir, para ser médico; e quando acalma a dor que a ferida produz, envenena no mesmo ato a ferida [...]” (GM, III, 15). Longe disto, Nietzsche tem na tragédia um tônico que oferece ao espectador um êxtase vital, uma vontade de viver capaz de torná-lo mais forte para não apenas suportar, mas – inclusive e sobretudo – alegrar-se com a dor. O trágico é, por fim, o triunfo do espírito dionisíaco: “A despeito de toda mudança dos fenômenos, [a vida] é indestrutivelmente poderosa e alegre” (NT, 17). Deste sentido do trágico como elemento afirmativo da vida Nietzsche não mais se apartará, embora o apresente sob nuances diversas no itinerário de suas reflexões.

Ouça-se, todavia, a advertência de Roberto Machado (2006, p. 239240): “[...] quando ele [Nietzsche] diz, em fórmula famosa, no § 24 do livro [O nascimento da tragédia], que ‘somente como fenômeno estético a existência e o mundo aparecem justificados’, isso não reduz sua análise da tragédia a uma estética. Um de seus objetivos é certamente esclarecer, contra Schopenhauer, que a vida não pode ser justificada moralmente. Mas, contrapondo-se a uma interpretação moral da tragédia, o que ele faz é propor uma interpretação metafísica, que vê na tragédia musical, na tragédia em que o mito trágico é expressão da música, uma ‘metafísica de artista’” 12 Karina Jannini esclarece: “Em alemão, moralinfreie Tugend. Conceito criado por Nietzsche, numa alusão irônica aos termos químicos terminados em – in (Moralin), e remete a uma concepção limitada e pequeno-burguesa da moral”. (in NIETZSCHE, Sabedoria para depois de amanhã, 2005, p. 295). 11

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O Agir Humano 3. O TRÁGICO: FRANCA ALEGRIA DINÂMICA. Também já se observou, com igual propriedade, que a tragédia ática sucumbe “no momento em que a filosofia triunfa” (VERNANTE, 2008, p. 7), ou seja, quando esta prevalece na incessante luta que há entre a consideração trágica e a consideração teórica do mundo, em que esta subjuga o instinto artístico-dionisíaco em nome da razão científica, cujo progenitor, segundo Nietzsche, é Sócrates. Sócrates, o “mistagogo da ciência”, “protótipo e ancestral do homem teórico”, “lógico despótico” (NT, 14, 15 e 17), “herói dialético do diálogo platônico” (FF, 14 [22], p. 148-149), propugnador de um esquematismo lógico que fez da razão um tirano. Sócrates, cuja índole ponderada repugna a tragédia, vista como unicamente instintiva, irracional, destituída de sentido e, portanto, pérfida, maléfica, amoral, em uma palavra; que deve sucumbir, em uma sentença. Descerrado o pano do palco, é possível contemplar os bastidores desta peça: as “carícias do martelo”13 nietzscheano fazem ver que a oposição Dionísio-Apolo dá lugar à oposição DionísioSócrates e que a questão fundamental, inicialmente apreendida em um âmbito puramente estético, pode ser então entrevista em seu aspecto ético: o socratismo estético que subjaz à tragédia euripidiana14 é, na verdade, o prolongamento do socratismo da

13 A expressão é de Victor-Pierre Stirnimann, constante do prefácio à obra Conversa sobre a poesia e outros fragmentos, de Schlegel. 14 Sobre Eurípides, um dos grandes tragediógrafos gregos antigos, ao lado de Ésquilo e Sófocles, cfr. Mário da Gama Kury, Introdução, in Eurípides, Ifigênia em Áulis; As fenícias; As bacantes. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2002, p. 7.

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O Agir Humano moral, donde deriva a ideia de uma cientificidade como sintoma de uma interpretação e de uma significação morais da existência 15. A crítica de Nietzsche, bem se vê, tem como propósito denunciar a função terápica, a “força de uma medicina universal” que Aristóteles pretende conferir à tragédia e, sobretudo, que Sócrates pretende oferecer ao conhecimento. Para isto, Nietzsche se faz acompanhar, de início, por Schopenhauer e Wagner – cavalheiros dürerianos a quem incumbiria o renascimento da tragédia (NT, 20) 16 – para logo em seguida abandoná-los: “para ser justo com O Nascimento da Tragédia, será preciso esquecer certas coisas”, dirá em seu testemunho intelectual (EC, NT, 1.). É preciso esquecer Schopenhauer porque é preciso se livrar dos “embaraços subterfúgios místicos de Schopenhauer [...], do absurdo da compaixão e da ruptura, que ela tornou possível, do principii individuationis [princípio da individuação] como fonte de toda moralidade” (GC, 99). Porque a tragédia não é, como Schopenhauer pensa, uma fórmula para a condução do homem à resignação, à vontade de se “desembaraçar voluntariamente e com alegria do fardo da existência” (EH/NT, 1), mas, ao contrário, uma experiência tonificante, que conduz à afirmação da vida em todos os seus aspectos. “Schopenhauer – arremata – enganou-se aqui, como se enganou em tudo” (EH/NT, 1). E é preciso esquecer Wagner porque, se em alguma época Nietzsche o considerou a “expressão de uma potencialidade dionisíaca da alma alemã”, isto se deveu, no entanto, a um mero arroubo juvenil. Dotado agora de “um olhar [...] cem vezes mais

O que Nietzsche designará, adiante, de vontade de verdade: nada mais que uma “crença no próprio ideal ascético”, “a verdade posta como Deus” (GM, III, 24). 16Nietzsche alude à gravura O cavaleiro, a morte e o diabo, de Albrecht Dürer (Nuremberg, 21/05/1471 – 06/04/1528), um dos mais famosos artistas do Renascimento alemão. 15

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O Agir Humano exigente”, Nietzsche rasga enfim esta “máscara ótima de seda”17 e vê Wagner em sua crueza 18: um representante da “pequenina miséria alemã” (EH/NT, 4), cuja arte se mostra enviesada por concepções morais cristãs, sintomáticas, segundo Nietzsche, de uma vida que declina. Este “remanejamento do conceito, sob uma aparência de continuidade” (LEBRUN, 2006, p. 357), que Nietzsche perfaz quanto ao trágico está presente nas autocríticas lançadas aO nascimento da tragédia, primeiro sob a forma de um segundo prefácio (Tentativa de autocrítica, 1886), após, sob a forma de um capítulo de sua autobiografia intelectual (Ecce homo, 1888). Nelas, considera sua primeira obra “um livro impossível [...] mal escrito, pesado, pesado, frenético e confuso nas imagens”, sobretudo por duas razões fundamentais e complementares: seu conteúdo teria sido “obscurecido e estragado” por fórmulas schopenhauerianas e seu estilo seria incompatível com a “nova alma” que então se apresentava sob o nome de Dionísio (TA/NT, 3 e 6). Todavia, como suas autocríticas nunca vão muito longe [“sobretudo porque ele tem o cuidado de mostrar quanto de suas análises de outrora continham o germe de sua obra futura” (LEBRUN, 2006, p. 355)], Nietzsche aponta a existência de indícios de seu projeto de transvaloração dos valores já nesta primeira obra: O dizer Sim à vida, mesmo em seus problemas mais duros e estranhos; a vontade de vida, alegrando-se da própria inesgotabilidade no sacrifício de seus mais elevados tipos – a isso chamei dionisíaco, nisso vislumbrei a ponte para a psicologia do poeta trágico. Não para livrar-se do pavor e da compaixão, não para purificar-se de um 17

dos Anjos. 18

rebuço”.

Referência ao primeiro verso do soneto A um mascarado, de Augusto No sentido de cru (do latim crudus), a significar “sem disfarce, sem

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O Agir Humano perigoso afeto mediante sua veemente descarga – assim o compreendeu Aristóteles –: mas, para além do pavor e da compaixão, ser em si mesmo o eterno prazer do vir-a-ser – esse prazer que traz em si também o prazer no destruir... E com isso toco novamente no ponto do qual uma vez parti – o Nascimento da tragédia foi minha primeira tresvaloração de todos os valores [...]. (CI, X, 5)

A mudança, infere-se, deixa entrever que Nietzsche caminha no sentido da formulação daquilo que denominou de filosofia trágica, alternativa alegre ao sombrio pessimismo schopenhaueriano. Por esta razão, acentua que foi o primeiro não apenas a “perceber o maravilhoso fenômeno do dionisíaco” como a realizar a sua transposição em um pathos filosófico: Nietzsche, “o primeiro filósofo trágico – isto é, o extremo oposto e o antípoda de um filósofo pessimista” (EH/NT, 2 e 3) 19. Solitário – pois “também os amigos e os conhecidos volverão tímidos e medrosos: esse fogo também terei que atravessálo. Depois disto, cada vez mais me pertencerei a mim mesmo” (Frag. póst. 5[190], apud MONTINARI, 2003, p. 79. Traduzi) –, Nietzsche procura novos amigos para sua jornada; eles serão Heráclito e Zaratustra, personae heteronímicas de Dionísio. No que respeita a Heráclito, Nietzsche assinala sua proximidade já nO nascimento da tragédia, quando compara o sempiterno jogo do construir e desconstruir à imagem heraclitiana da criança que brinca (NT, 24) 20. Entretanto, se Heráclito aqui ainda é “O Obscuro”, nA filosofia na época trágica dos gregos, escrita um ano Cfr. também: CI, X, 4. Posteriormente, já em suas últimas obras, após assinalar que a vitalidade do pensamento grego encontra-se precisamente no período pré-clássico – que se encerra com o socratismo e a tragédia euripidiana –, Nietzsche evidencia sua dívida em relação aos pensadores antigos (CI, X, precisamente intitulado O que devo aos antigos) e, a bem dizer, a Heráclito, com quem, para além de um débito, reconhece um parentesco estésico-estético-filosófico alinhavado pelo trágico (EH/NT, 3). 19 20

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O Agir Humano após, ele é o “relâmpago divino” que iluminou a “noite mística em que estava envolto o problema do vir-a-ser” e a partir daí, no pano de fundo das reflexões de Nietzsche sobre o trágico, permitiu-lhe substituir o ideal da arte pelo ideal da filosofia (Cfr. COLLI, 2000, p. 31). Ora, assim formulada, uma tal concepção deixa entrever um processo de autossuperação, “o início de uma conquista de autonomia por parte de Nietzsche: em relação a Wagner, com a substituição da arte pela filosofia [...] e, em relação a Schopenhauer, com a sua substituição por Heráclito como arquétipo do filósofo” (MONTINARI, 2003, p. 32). Isto porque se nO nascimento da tragédia o trágico era reproduzido e resolvido através de sua interiorização no seio do Uno-primordial, agora já não se trata de resolver o sofrimento, mas de afirmá-lo. A proposição fundamental é entrevista sob outra perspectiva: o sofrimento não é algo que acusa a vida (não faz dela algo que deva ser justificado), senão que a vida mesma justifica o sofrimento, afirma-o na alegria do vir-a-ser, do construirdestruir. É precisamente sob esta perspectiva que Nietzsche concebe seu parentesco com Heráclito, como outra máscara de Dionísio. Sim, porque, segundo Nietzsche, diversamente da concepção da existência formulada por Anaximandro, permeada por noções morais 21, Heráclito “ousou tomar nas mãos o novelo do mais profundo dos problemas éticos”: o sentido, a justiça da existência e a afasta da ideia de hybris, ou seja, de uma desmesura culpada, pois se há culpa e castigo, se há sobretudo correlação entre culpa e castigo – diz Heráclito –, isto existe apenas para o homem limitado, Segundo Nietzsche, Anaximandro pensa o devir como emancipação do ser eterno (apeíron, indeterminado) que deve ser castigada, qual uma injustiça que deva ser expiada por meio do sucumbir. É o que se infere de sua sentença: “De onde as coisas tiram a sua origem, aí devem também perecer, segundo a necessidade; pois elas têm de expiar e de ser julgadas pelas suas injustiças, de acordo com a ordem do tempo” (transcrita por Nietzsche em FT, 4). 21

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O Agir Humano ou seja, para aquele “que vê em separado e não em conjunto”. Não, porém, para o homem e deus contuitivo, para quem todo conflitante conflui em harmonia e, portanto, “diante de seu olhar de fogo, não resta nenhuma gota de injustiça no mundo que se derrama a seu redor” (FT, 7) 22. Com efeito, ao deixar de considerar o devir como hybris – melhor: ao modificar a própria noção de hybris para assimilá-la ao devir –, a concepção heraclitiana servirá de arrimo à crítica nietzschiana à metafísica, à crença na duração, à “necessidade psicológica de permanência”, à compreensão do mundo a partir de um princípio ordenador (cosmos) com o propósito de aliviar e tranquilizar o homem diante da exuberância das forças plurais da vida – ou, o que dá no mesmo, com o propósito de julgar e condenar a vida como “ilusão de ótica e de ética” (CI, III, 6, e IV). Deste modo, para que a existência recupere o domínio de si mesma, é preciso, segundo Nietzsche, um pensamento em que ela não seja postulada como culpada, em que a vontade não seja ela própria culpada por existir, um pensamento trágico, enfim: aquilo que chama de sua alegre mensagem: O que define o trágico é a alegria do múltiplo (nada de alegria como sublimação, compensação, resignação, reconciliação). Trágico designa a forma estética da alegria, não uma forma medicinal, nem uma solução moral da dor, do medo ou da piedade. O que é trágico é a alegria... [...]. A tragédia, franca alegria dinâmica (DELEUZE, 2001, p. 29 e 57).

22 Eis a sentença de Heráclito, transcrita por Nietzsche: “Vi o mundo inteiro como o espetáculo de uma justiça reinante e forças naturais demoniacamente onipresentes subordinadas a seu serviço. Não vi a punição do que veio a ser, mas a justificação do vir-a-ser” (FT, 5).

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O Agir Humano Daí a necessidade de que o homem se descarregue do pesado mal-estar do remorso e da culpa – da responsabilidade, enfim – através do instinto de jogo, compreendendo a existência como um fenômeno estético, não como fenômeno moral ou religioso. Nisto, se já nO nascimento da tragédia Nietzsche entrevira uma proximidade entre Dionísio e Heráclito (NT, 24), em Ecce homo termina por assinalar que “a doutrina do eterno retorno [...], essa doutrina de Zaratustra poderia afinal ter sido ensinada também por Heráclito” (EH/NT, 3). Ora, se tanto os aproxima, tentemos, então, vislumbrar estoutra máscara de Dionísio: o poeta Zaratustra, e a derradeira e mais vigorosa dança deste drama: a proposição do eterno retorno.

4. ZARATUSTRA E A DANÇA DO ETERNO RETORNO: A RADICALIZAÇÃO DO TRÁGICO. Originada já nos escritos anteriores a O nascimento da tragédia, entoupeirada em Aurora, Humano, demasiado humano e densificada nA gaia ciência, é apenas com Zaratustra, no entanto, que a noção do trágico adquire, a final, a condição de “ato supremo” (EH/ZA, 6) 23. Com efeito, se nas obras posteriores a O nascimento da tragédia, Nietzsche não deixa de se referir, ainda que en passant, ao trágico24, é somente no Zaratustra que apresentará os contornos, em todas as suas nuances, de sua filosofia trágica, sobretudo porque vertida sob uma forma poética por meio da qual apresenta a narrativa dramática do aprendizado trágico de um pequeno diabo dionisíaco (Cfr. TA/NT, 7). Sobre o termo “entoupeirada”, cfr. ZA, III, Das velhas e novas tábuas, 2. Em Aurora, o trágico transparece, p. ex., nos aforismos 78 e 172 e, em Humano, demasiado humano, p. ex., nos aforismos 108, 169 e 212. 23 24

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O Agir Humano Deste modo, é em Assim falou Zaratustra, em um dos derradeiros atos desta tragédia, que Dionísio veste, enfim, sua última máscara: no palco, sua persona é, agora, o anunciador do super-homem. Incipit Zaratustra é incipit tragœdia 25: aqui, novamente o trágico; entretanto, já não mais necessariamente associado a uma determinada forma estética mas a um aspecto ético-existentivo. Aqui, novamente a máscara; todavia, já não mais como artefato dissimulador, mas como a gálea dos que labutam reservando para si a ausência de determinações e descortinando para todos a riqueza do caos, a exemplo de Zaratustra, que fala “para todos e para ninguém”. Sob esta perspectiva, se nO nascimento da tragédia Dionísio ainda se “escondia sob o capucho do douto, sob a pesadez e a rabugice dialética do alemão” (TA/NT, 3), sua apresentação agora se perfaz por meio da máscara de Zaratustra, poeta em que se reflete, em todas as suas nuances, a imagem do artista ditirâmbico 26. Há, no entanto, uma sutil diferença: desta vez, ao invés de um centauro, Nietzsche pare uma estrela dançante, uma estrela delirante 27: é através de Zaratustra que finalmente pode se atrever a dizer as suas “estranhas e novas valorações”, usando “uma linguagem própria para intuições e atrevimentos tão próprios”. Isto porque Zaratustra fala através da palavra poética, único meio possível de expressão da sabedoria dionisíaca, da filosofia trágica, arredia, de todo modo, aos esquematismos lógico-sistemáticos28. A primeira expressão consta de GC, 342; a segunda, de CI, IV, 6. Cfr. EH/NT, 4, em que se lê: “A imagem toda do artista ditirâmbico é a imagem do poeta preexistente de Zaratustra”. 27 A primeira expressão consta em ZA, Pr, 5; a segunda é de Teixeira de Pascoaes (A nossa fome. In: O homem universal e outros escritos, p. 157. apud BORGES, Paulo, Heteronímia e carnaval em Teixeira de Pascoaes, p. 1). 28 Segundo Roberto Machado, “[...] a posição ímpar do Zaratustra está sobretudo em pretender realizar a adequação entre conteúdo e expressão, o que 25 26

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O Agir Humano Com efeito, o poeta é decifrador de enigmas, mas é, sobretudo, redentor do acaso, criador de seu presente, de seu futuro e de tudo o que foi (Cfr. ZA, II, Da redenção; Das velhas e novas tábuas, III, 3), aquele cujo domínio não consiste em refutar – não precisa refutar (Cfr. EH/NT, 2) –, aquele cuja “única negação seja desviar o olhar! E, tudo somado e em suma: [...] apenas alguém que diz Sim!” (GC, 276.), que se apropria dos aspectos mais terríveis e problemáticos da existência para afirmá-los na dança cirandal do eterno retorno, ante a decisão que deve tomar em razão desta proposição existencial transformadora (Cfr. GC,341 e ABM, 56). Ora, o pensamento do eterno retorno é um pensamento terrível, quiçá o mais terrível que possa assaltar o homem em sua dimensão ética como alternativa existencial, uma vez que aí pode estar o “grande destino de ser também o maior perigo e doença” (ZA, III, O convalescente, 2). Ele pode constituir o mais pesado dos pesos – para o espírito de vingança que range os dentes ante a imutabilidade do “assim foi” – ou o ponto culminante do dizer-sim à vida – para o espírito criador que redime o que passou ao dizer “assim eu quis” (ZA, III, Da redenção). Mas de que modo isto é possível? Como não transformar este pensamento terrível em “modinha de realejo” (ZA, III, O convalescente, 2) e como desvinculá-lo de uma mera circularidade físico-temporal? Ademais – e sobretudo –, como redimir o passado se não se pode mudar o que foi? Ora, diz Nietzsche, esse não-poder-querer-pra-trás quem o preconiza é o espírito de vingança, um mau espectador da tragédia, que concebe a “má vontade da vontade contra o tempo e seu 'Foi'“. É preciso, pois, extirpar esta “grande parvoíce”, pois a vontade é na

faz dele uma obra de filosofia e, ao mesmo tempo, uma obra de arte, o canto que Nietzsche não cantou em seu primeiro livro, e que permite considerá-lo o ápice de sua filosofia trágica”. (1997, p. 20).

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O Agir Humano verdade um redentor, um criador, e deve ser tornada “para si própria o redentor e o mensageiro da alegria” (ZA, II, Da redenção). Para isto, é necessário se desvencilhar da inexorabilidade do passado, ou seja, de qualquer injunção que tenda a concebê-lo como a incompletude de uma experiência que repercute (que deva repercutir) no horizonte do vir-a-ser. Para além desta perspectiva, cumpre entendê-lo como integrado ao instante por meio de uma aquiescência criativa, que só tem lugar a partir de uma decisão, de uma afirmação existencial. Portanto, o que oferece significado ao eterno retorno é o instante descomunal de que nos fala o demônio, “esse bater de sinos do meio-dia e da grande decisão, que torna a vontade outra vez livre, que devolve à terra seu alvo e ao homem sua esperança, esse anticristo e antiniilista, esse vencedor de Deus e do nada” (GM, II, 24). Cada situação particular; onde a história é tomada a serviço da vida, a serviço da cri-ação de si, através daquilo que Nietzsche denomina de força plástica, a medida a partir da qual o conhecimento histórico pode ser concebido como alimento da capacidade criativa, horizonte a partir do qual o homem promove a sempiterna (embora nem sempre terna) construção-destruição de si mesmo. A libertação do instinto de vingança não é, assim, como poderia parecer, uma simples mudança de atitude da vontade diante da inelutável necessidade da estrutura do mundo. Cuida-se, antes, de uma atitude de apropriação da história como elemento fundamental do processo de redenção criativa da própria vontade, de superação das aparentes antinomias entre as dimensões temporais constitutivas da ação (passado, presente e futuro) e, por fim, de autossuperação. Daí porque Zaratustra corporifica o herói trágico par excellence, o personagem de um drama que inicialmente vive o herói apolíneo e que, após um longo percurso, transmuda-se em um alegre “trasgo dionisíaco” (TA/NT, 7). 386


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O Agir Humano Sob esta perspectiva, em vez de ranger os dentes e se despedaçar, aquele que “é capaz de se entregar radicalmente no instante à criação de si mesmo e de se fartar [...] no interior dos limites de cada situação singular” (CASANOVA, 2003, p. 124) louvaria o demônio furtivo que lançasse tal desafio, o desafio do passado, o desafio de dizer a cada vez Sim “a cada dor e cada prazer e cada pensamento e suspiro e tudo o que há de indizivelmente pequeno e de grande” (GC, 341). O eterno retorno consiste, pois, em suma, na radicalização do trágico, na “mais elevada forma de afirmação que se pode em absoluto alcançar” (EH/ZA, 1): a alegria que santifica a dor. Daí, portanto, o liame que une Dionísio a Zaratustra: trata-se, em ambos, das mesmas questões, da mesma tendência, do mesmo sentido. As respostas é que são diversas: Se nO nascimento da tragédia Nietzsche aspira à justificação global da existência (o que significa “dizer sim à vida”) e a consegue com a “metafísica de artista”, em Zaratustra o eterno retorno, desejado pelo super-homem, torna vão o problema de justificação da existência, cerrando o horizonte não mediante o “mito trágico”, senão com a “eternização” do caráter integralmente terreno e imanente da vida. (MONTINARI, 2003, p. 116. Traduzi)

Deste modo, nas transmudações que a noção de trágico sofre no tumultuoso percurso do pensamento de Nietzsche observa-se que se nO nascimento da tragédia ele é vinculado a uma vontade que se apresenta como essência última das coisas, agora, no Zaratustra, vincula-se a uma vontade criadora, alheia à culpa, à responsabilidade, zombeteira, fruto do amor ao devir, do amor fati, elemento nuclear do trágico, consubstanciado na querência de “ver como belo aquilo que há de necessário nas coisas: – assim serei daqueles que tornam belas as coisas. Amor fati: seja este, doravante, 387


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O Agir Humano o meu amor!”, pois “o que se faz por amor sempre acontece além do bem e do mal” (GC, 276; ABM, 153). O trágico, diz Nietzsche, é “uma fórmula da suprema afirmação, nascida da plenitude, da abundância [...], um dizer-sim sem reserva, mesmo ao sofrimento, mesmo à culpa, mesmo a tudo o que é problemático e estranho na existência” (EH, NT). Neste drama que é a vida, a questão deve ser posta, a final: “E se a via do espetáculo fosse uma via de conhecimento, de libertação, da vida, afinal de contas?” (COLLI, 2000, p. 19). A resposta... Bem, tenhamos ouvidos para Nietzsche: não há a resposta; nem, talvez, qualquer resposta. Mas é possível (basta que o seja) que o objetivo da arte não mais radique na criação de imagens de sonho, no mascaramento do aspecto terrível da existência, senão na afirmação deste caráter, do caráter trágico da vida. E se o artista não fosse um alucinado abandonado à história? É possível que ele seja a obra de arte que se faz a si mesmo, um campo de batalha, um drama em gente, o autopoiético navegante que, dominando seus demônios e bailando sobre seus abismos, forja seu estilo, pare seus centauros, navega seu caminho, ése-endo29. E se...? – –

29 Parece-nos que é bem isto o que Fernando Pessoa exprime, na casca de Bernardo Soares: “Se quiser dizer que existo, direi ‘Sou’. Se quiser dizer que existo como alma separada, direi ‘Sou eu’. Mas se quiser dizer que existo como entidade que a si mesma se dirige e forma, que exerce junto de si mesma a função divina de se criar, como hei-de empregar o verbo ‘ser’ senão convertendo-o subitamente em transitivo? E então, triunfalmente, antigramaticalmente supremo, direi “Soume”. Terei dito uma filosofia em duas palavras pequenas. Que preferível não é isto a não dizer nada em quarenta frases? Que mais se pode exigir da filosofia e da dicção? (Livro do desassossego, 84). A expressão drama em gente é de António Azevedo (2005, p. 19).

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O Agir Humano 5. CONCLUSÃO. Nietzsche é um pensador de muitas máscaras. Veste-as e despe-as com o regozijo e a habilidade de um ator experimentado que, do palco em que representa a tragédia de sua própria vida, sorri, com lacerante ironia, dos outros bufões que debalde tentam surpreender-lhe a face nua. Nietzsche é um filósofo-poeta, para quem o pensamento deve ser manifestado e acolhido como atividade artística, não científica. Para ele, a escrita deve possuir musicalidade e é por isso que adota o aforismo como o elemento característico da expressão de suas reflexões. E é também por isto que existem várias formas de escutá-lo. Labiríntico, enigmático, resta-nos tentar vê-lo, escutá-lo a partir de seu próprio perspectivismo. Foi este o modesto propósito que se perseguiu nesta pesquisa, em que se adotou a vida de sua perspectiva trágica. Através dela, promete uma arte trágica: a arte suprema do dizer-Sim à vida, invertendo o sentido terapêutico tradicionalmente atribuído ao trágico (purgativo, segundo Aristóteles; resigna-dor, para Schopenhauer) para concebê-lo como elemento de uma sabedoria em que sejam não apenas considerados, mas amados como necessários os aspectos mais terríveis da existência. É o que, em fórmula poética, chama de “amor fati”. Desta forma, é necessário adotar um caminho que, embora (ou porque) mais laborioso, tem ao menos a virtude de respeitar a “partitura” da sinfonia nietzscheana, o enredo da obra de um homem para quem viver significou sobretudo pensar. Estoutra senda consiste em acolher os escritos de Nietzsche em sua totalidade, como um todo que tem aparência de um acervo variegado, mas tem uma substância unitária e compacta [...], através da 389


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O Agir Humano reconstrução de uma totalidade pressuposta, onde as expressões circunscritas têm o valor de fragmentos melódicos e harmônicos de uma música desconhecida. É conveniente escutar Nietzsche deste modo. (COLLI, 2000, p. 5)

Definida a forma, eis o “tema”, o “mote” desta sinfonia: o trágico, fundamento de uma ética da afirmação, concebida como alegria de viver, gáudio, júbilo, prazer de existir, adesão à realidade [...], a ideia [...] de uma fidelidade incondicional à nua e crua experiência do real, a que se resume e se singulariza o pensamento filosófico de Nietzsche. (ROSSET, 1989, p. 35)30

Para a orquestração desta composição nietzscheana, nada mais adequado que um de seus “instrumentos” mais caros: a genealogia, que nos permite compreender o trágico em sua historicidade, não no sentido tradicional do termo ou, menos ainda, em sua “essência”, mas a partir dos discursos a seu respeito, diagnosticando-lhes a relação de forças que tem origem em valores e que é capaz de produzir valores, para que, a partir daí, seja possível evidenciar a direção, o sentido destas forças (FOUCAULT, 2008, p. 16). Neste drama nietzscheano, a palavra poética reivindica o seu papel de instrumento da conversão do trágico em força criadora e cri-ativa. É preciso que esta música seja tocada.

30 Daí se vê quão acertada é a analogia que Giorgio Colli estabelece entre a obra de Nietzsche e a música de Beethoven (cfr. nr 1), cuja Nona Sinfonia incorpora parte da ode An die Freude ("À Alegria"), de Friedrich Schiller.

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