COSTA, Jean Henrique; SOUSA, Michele de. (orgs.). Política de turismo e desenvolvimento: reflexões g

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Política de Turismo e Desenvolvimento Reflexões Gerais e Experiências Locais


Jean Henrique Costa & Michele de Sousa (Organizadores)

Política de Turismo e Desenvolvimento Reflexões Gerais e Experiências Locais

Série “C” – Volume 1582 – Março de 2010


Copyright © Jean Henrique Costa, Michele de Sousa (orgs.), 2010. Revisão Rosa Maria Mesquita Leite Diagramação Valdianio Macêdo Capa Rick Weakmann

Catalogação da Publicação na Fonte. Universidade do Estado do Rio Grande do Norte. Política de turismo e desenvolvimento: reflexões gerais e experiências locais. / Jean Henrique Costa; Michele de Sousa (Org.). - Mossoró, RN: Fundação Vingt-Un Rosado, 2010. 288 p. - (Coleção Mossoroense, Série “C” – Volume 1582 ) ISBN: 978-85-89888-48-6 1. Turismo. 2. Políticas públicas. 3.Turismo - Desenvolvimento . I. Costa, Jean Henrique. II. Sousa, Michele de. IV.Título. UERN/BC

CDD 338.4791

Bibliotecária: Jocelania Marinho Maia de Oliveira CRB 15 / 319


SUMÁRIO PREFÁCIO _______________________________________________ 07 Para além do consenso e das evidências: breve introdução __________________________________________ 09 Turismo, produção do espaço e desenvolvimento desigual: para pensar a realidade brasileira _____________________________ 15 Rita de Cássia Ariza da Cruz Turismo, desenvolvimento desigual e relações de trabalho no litoral potiguar _________________________________ 39 Jean Henrique Costa O reverso da interiorização: análise do turismo em Aquiraz/CE ____________________________ 69 Michele de Sousa Plano Nacional de Turismo 2007/2010: análise e desafios de sua implementação _______________________ 99 Heidi Gracielle Kanitz Jefferson Dantas Freire de Morais Liége Azevedo Martins Maria Arlete Duarte Araújo Gestão do território para o turismo e implicações na mudança do imaginário social e ambiental: o Ceará virtualizado ______________________________________ 123 Ingrid Carneiro de Lima Raimundo Freitas Aragão Análise institucional da estruturação do turismo em Fortaleza ___________________________________ 141 José Orlando Costa Nunes Competitividade turística e diferenciação espacial no Pólo Costa das Dunas/RN/Brasil __________________________ 159 Maria Aparecida Pontes da Fonseca Rosana Mazaro


O papel do residente na produção do espaço turístico em Natal/RN ____________________________ 181 Karina Messias da Silva Maria Aparecida Pontes da Fonseca Interfaces socioambientais do turismo sustentável em Icapuí/Ceará (1995-2000)______________________ 199 Maria Betânia Ribeiro Torres Do turismo cultural à política pública de eculturismo ___________ 221 Christian Dennys Monteiro de Oliveira Turismo cultural: reflexões e possibilidades de desenvolvimento no RN ____________ 243 Thadeu de Sousa Brandão Sítios geológicos, geoconservação e ecogeoturismo na região Seridó do Rio Grande do Norte _____________________ 257 Wendson Dantas de Araújo Medeiros Sobre os autores __________________________________________ 281


PREFÁCIO

Os estudos sobre o turismo têm se constituído em um importante campo de confluência de saberes e práticas. Ultrapassando fronteiras disciplinares, impostas mais por lógicas institucionais do que pela dinâmica no processo de produção do conhecimento, esses estudos têm contribuído para alargar a nossa compreensão de alguns dos fenômenos sociais mais significativos da atualidade. Por outro lado, e não menos importante, os estudos sobre o turismo têm implicado na incorporação de novos e sofisticados aportes dos estudos sobre território, meio ambiente, relações de poder e dinâmicas socioeconômicas locais. Prática social integrante ao conjunto de atividades constitutivas da socialização das classes médias e das elites, o turismo está cada vez mais associado ao fluxo de pessoas e bens sobre os lugares. E a intensificação desses fluxos não apenas provoca novos e inesperados processos socioculturais, como, por exemplo, o aumento exponencial da demanda por identidades, mas também tem implicado em uma profunda hierarquização dos territórios. Em consequência, assistese a entrada em cena não apenas de novos atores, mas também da reconquista de legitimidade por atores que pareciam, na década de 1990, condenados ao ocaso, dado que se vivia em um mundo no qual a ideologia do livre mercado como suprassumo da racionalidade parecia ter alcançado uma inabalável hegemonia. Referimo-nos aos defensores do planejamento e da intervenção reguladora do Estado.


Caso se considere positiva a renovação da legitimidade social do planejamento e da intervenção estatal na vida política e social contemporânea, há que se reconhecer o devido tributo dessa conquista aos estoques de conhecimentos aportados pelos estudos sobre o turismo. Esses estudos, especialmente aqueles dedicados à produção de diagnósticos socioambientais da turistificação dos lugares, contribuíram para chamar a atenção das imensas perdas, para além da depleção de recursos naturais, provocadas pela ausência de marcos regulatórios garantidos pela ação do Estado. Há que se relevar também os ganhos epistemológicos da emergência desse verdadeiro movimento teórico que é o campo dos estudos sobre o turismo. Referimo-nos, em especial, ao que poderíamos denominar de reforço da epistemologia do território. Durante muito tempo, especialmente no grande campo das ciências sociais, tivemos a dominância, mesmo que não explicitada, de uma apreensão do mundo social no qual a força modeladora do território era desconsiderada. Os estudos sobre o turismo têm conseguido afirmar a ideia de que o espaço é socialmente construído, sendo o território um suporte fundamental das relações e processos sociais. E essa é uma perspectiva que encontra ancoragem em alguns dos autores tomados como clássicos da moderna ciência social. Pensa-se, por exemplo, nas instigantes e pioneiras proposições de Georg Simmel. Espaço de cruzamento de saberes e práticas transdisciplinares, o campo de estudos do turismo será reforçado com a publicação do presente livro. Aqui estão reunidos trabalhos que se inserem muito fortemente no que já se constitui como uma expressão da tradição da área: a reflexão alicerçada em investigações fundamentadas empiricamente. O resultado é um mosaico dos processos de territorialização (e desterritorialização) impulsionados e impulsionadores do turismo, em especial no litoral do Nordeste do Brasil. Prof. Dr. Edmilson Lopes Júnior Professor do Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais da Universidade Federal do Rio Grande do Norte - UFRN


PARA ALÉM DO CONSENSO E DAS EVIDÊNCIAS: BREVE INTRODUÇÃO

Refletir acerca da atividade turística hoje significa pensá-la de maneira relacional no âmbito de suas várias interfaces: econômica, social, cultural, ambiental e política. Se as coisas são na medida em que estão, por conseguinte, não há como compreender e explicar determinados fenômenos de maneira fragmentada. O real é relacional e, em sua concretude, requer, ipso facto, uma forma de tratamento, embora objetiva e racional, mais sensível em suas várias conexões e singularidades históricas. É preciso, como Bourdieu1, ver as relações entre as realidades e não apenas “pensar em partes [dela] que podem, por assim dizer, ser vistas claramente”. A tessitura do mundo atual não permite mais as fragmentações cartesianas. Essas já tiveram o seu apogeu e, apesar de pontualmente ainda abrolharem determinadas respostas, não possuem a mesma faculdade explicativa de tempos pretéritos. Presentemente as conclusões “estilhaçadas” ficam mais para “um certo” didatismo ingênuo do que para inferências enérgicas. Não faremos aqui uma valoração ao discurso do “complexo” bastante presente no campo científico-filosófico atual. Ora, que a natureza dos fenômenos é complexa não é nenhuma novidade e, por esta razão, não há pretexto para proclamar um altar especial para 1 BOURDIEU, Pierre. Introdução a uma sociologia reflexiva. In: ________. O poder simbólico. 6. ed. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2003.


teorias que assim se assumem. Empreitamos, nesta obra coletiva, uma tentativa de desobscurecer, por meio do trabalho da crítica do pensamento, alguns discursos limitados acerca da atividade turística, geralmente, oriundos de certa tradição de cunho funcionalista e/ou técnico-administrativa. Infelizmente, essas alocuções pouco frutíferas permanecem tão arraigadas em parte do debate turístico que chavões ainda hoje são anunciados como a grande novidade da academia, não sabendo esses doutrinários, pois, que não passam de ideias com pretensões ortodoxas. Não são construções, destarte, nem críticas, nem compreensivas. Não passam, de tal modo, de simples esquematismos pouco úteis. A instabilidade, dinamicidade, imprevisibilidade e incertezas do momento atual requerem novas maneiras de pensar. Na atividade turística as coisas não se processam diferentemente. As mesmas alterações das diversas questões sociais gerais são também experimentadas. Nas vicissitudes do debate acadêmico acerca do turismo, basicamente ligadas ao tema do desenvolvimento local, encontrar-seão várias temáticas de pesquisa voltadas a objetos como: turismo e geração de emprego; distribuição versus concentração de renda; impactos ambientais; participação comunitária; avaliação de políticas públicas; espaço do residente e do turista; segregação socioespacial; precarização do trabalho; processos de aculturação; especulação imobiliária etc. Essas temáticas conjeturam concretamente o presente momento da atividade, isto é, um breve progresso em que a mesmo vem ganhando visibilidade não apenas como campo instrumental-administrativo, ligado à gestão de equipamentos de alimentação, hospedagem e agenciamento, mas, principalmente, como um campo de saber que necessita de maiores investigações críticas acerca de seus supostos benefícios socioeconômicos. O debate entre os saberes sociológico, geográfico, antropológico, da ciência econômica, da teoria política etc., fortalece as investigações sobre a temática, na medida em que traz para o campo disciplinar do turismo distintas perspectivas epistemológicas. Não


existe um olhar metodológico turístico, mas olhares sobre o turismo. No entanto, mesmo com esse avanço já sentido, muitas das análises que vêm sendo feitas sobre a atividade carecem de uma apreciação objetiva sobre sua substância empírica. Muitas apologias vêm sendo feitas. Distintas ideologias, sobretudo econômicas e políticas, são reproduzidas face ao debate sobre o turismo. É necessário quebrálas. Tornar visível o obscurecido. Além disso, muita análise de cunho meramente descritivo tem sido veiculada. Estudos que, via de regra, carecem de consistência teórico-metodológica e que, na melhor das hipóteses, apresentam alguma discussão fundada em referenciais deslocados de sua realidade empírica. Não passam, pois, de senso comum revestido com bibliografia. Hipoteticamente, nova reprodução ideológica. A ideologia, tomada na clássica abordagem marxista, na relação entre as formas invertidas de consciência e a existência material dos homens, não é meramente uma relação entre o erro e a verdade. É, nas palavras de Tom Bottomore2, uma inversão que obscurece o verdadeiro sentido das coisas. Uma inversão que vai além de uma simples ilusão. Trata da “distorção do pensamento que nasce das contradições sociais e as oculta”. Este livro é obra coletiva que, em meio a consensos e dissensos, reconhece a atual importância do debate em pauta e se lança no desafio de uma nova empreitada intelectual. O conteúdo impresso nas páginas desta obra não necessariamente se une a um todo orgânico. Há determinadas divergências, assim como também se verificam acordos intelectuais. Cada coautor é responsável pela formaconteúdo de sua comunicação, todavia, consentidos pela organização deste escrito coletivo. Pensamos através de uma inquietação de Anthony Giddens3 e reconhecemos que “se há uma multiplicidade 2 BOTTOMORE, Tom. Dicionário do pensamento marxista. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2001. 3 GIDDENS, Anthony. O que é ciência social? In: ________. Em defesa da Sociologia. São Paulo: UNESP, 2001.


de perspectivas teóricas, que sejam bem-vindas. Uma multiplicidade de teorias seria uma situação mais desejável do que o dogmatismo originário do predomínio de uma tradição teórica específica”. A obra se dirige mais a uma vontade cognitiva de desvendar parte do “aparente”. De fazer a crítica do pensamento. De dar um passo a frente. De desobscurecer as apologias, as paixões políticas e os fortuitos discursos empresariais. Sair, em tentativa, do communis sensus; ou ainda, como diria Bourdieu, do “senso comum douto”, ou, de teorias parciais (teoria tradicional), seguindo a perspectiva crítica de Adorno e Horkheimer. Esse “ir além”, este “devir metodológico”, in verbis, busca o entendimento de partes da realidade que, aos olhos de muitos, são valorativamente árduas. Apenas lembrando Max Weber4, um juízo de valor tenta esconder aqueles elementos da realidade que lhe são incômodos. Aqui não se trata de juízos de valor sobre a atividade turística, embora todos estejamos, naturalmente, abertos a essa possibilidade. Buscamos, assim como Weber, reconhecer que o conhecimento valorativo, além de ser uma cosmovisão, ainda não nos oferece um caminho metodológico consistente. Assim, buscamos imprimir, abertamente ou não, nos limites de cada capítulo deste livro, por necessidade e dever objetivo, os caminhos metodológicos de cada autor. Passeando pelas páginas impressas neste volume o leitor encontrará expressiva heterogeneidade que vai desde a análise da produção do espaço turístico à análise da cultura apropriada como fenômeno de lazer. Deste modo, pensa-se, inicialmente, acerca da produção do espaço turístico na realidade brasileira a partir da teoria do desenvolvimento desigual e combinado, seguido por outro capítulo enfocando a análise das condições e relações de trabalho no turismo potiguar sob a mesma perspectiva teórica. Em seguida, 4 WEBER, Max. A “objetividade” do conhecimento na ciência social e na ciência política. In: ________. Metodologia das ciências sociais. Parte 1. 4. ed. São Paulo: Cortez; Campinas, SP: Editora da Unicamp, 2001.


reflete-se sobre a interiorização da atividade e seus efeitos em municípios litorâneos, tendo como destaque, o destino Aquiraz-Ceará. Prosseguindo, analisa-se o Plano Nacional de Turismo (2007/2010) objetivando pensar suas limitações e desafios na atual conjuntura de nossa realidade nacional. Pensa-se também, no texto ulterior, acerca da construção da imagem turística do estado do Ceará, a partir de um imaginário turístico socioambiental que explora a ideia de mitoparaíso e esconde, em consequência, o “outro lado do espelho”, ou seja, o conjunto de problemas concretos existentes. Avançando, faz-se uma análise institucional da estruturação de um destino já consolidado (Fortaleza/CE), a partir da Teoria da Ação e Institucionalização. Em seguida, um novo texto analisa, a partir da análise comparativa de dois municípios turísticos potiguares (Natal e Tibau do Sul), até que ponto as condições competitivas dessas duas cidades correspondem “aos fatores determinantes globais que caracterizam um desempenho competitivo superior e sustentável para destinos turísticos atuais e de futuro”. O capítulo posterior enfatiza o papel do residente diante do processo de urbanização turística em Natal, a partir dos conceitos de inserção passiva e ativa. O texto subsequente avalia a política de desenvolvimento do turismo em Icapuí-CE (1995-2000), abordando os efeitos materiais dessa com as interfaces socioambientais do período. Como não poderia faltar numa publicação multifacetada, dois artigos refletem acerca do turismo cultural, um com ênfase mais de construção teórica (a partir do conceito de eculturismo como um vetor de consolidação da educação na construção de uma cultura turística), outro com foco num caso empírico: o estado do Rio Grande do Norte, investigando os limites e possibilidades de uma prática tão falada e tão pouco racionalmente vivente. Por fim, fecha-se este escrito coletivo com um singular capítulo problematizando um novo segmento de mercado intitulado ecogeoturismo, tanto em sua dimensão conceitual quanto em sua realidade no RN. Escrita genericamente por sociólogos, geógrafos, turismólogos, filósofos e administradores, a obra se conduz àqueles que pos-


suem o turismo como objeto de estudo e que desejam vê-lo com outro olhar, distante da mecânica lógica administrativa. Busca-se aqui uma visão crítica e sempre disposta a questionar as supostas “evidências dadas” do mundo turístico atual e suas várias nuanças de realidade. A obra tem limitações, mas também apresenta possibilidades explicativas. Citando o filósofo alemão Immanuel Kant5 (1724-1804), “nem neste mundo nem fora dele, nada é possível pensar que possa ser considerado bom sem limitação, a não ser uma só coisa: uma boa vontade”. Assim, encerrando esta apresentação, pensamos que esta publicação, se não disser coisa nova, pelo menos dirá algo com uma nova forma: sine non nova, saltem nove. Portanto, um pequeno passo já está sendo dado. Aos leitores, mira vital deste escrito, desejamos um bom proveito nesta caminhada, embora aprazível, nem sempre idílica. Jean Henrique Costa Michele de Sousa (Organizadores) Mossoró, 04 de setembro de 2009.

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KANT, Immanuel. Fundamentação da metafísica dos costumes e outros escritos. Tradução Leopoldo Holzbach. São Paulo: Martin Claret, 2005.


TURISMO, PRODUÇÃO DO ESPAÇO E DESENVOLVIMENTO DESIGUAL: PARA PENSAR A REALIDADE BRASILEIRA

Rita de Cássia Ariza da Cruz O desenvolvimento desigual é, no mínimo, a expressão geográfica das contradições do capital. (Neil Smith, 1988)6

A primeira premissa orientadora da análise empenhada neste texto é a de que o turismo, compreendido como prática social e, sobretudo, como atividade econômica é um vetor produtor de espaço. Outra premissa orientadora desta análise é a de que a abordagem geográfica do turismo não pode furtar-se a considerar o movimento da totalidade-mundo como contexto geral no interior do qual se desenrolam essa e todas as outras atividades humanas. É nesse sentido que recorremos ao conceito de “desenvolvimento desigual”, originalmente proposto por León Trotsky (desenvolvimento desigual e combinado), no início do século XX, e discutido por diversos autores ao longo do século passado. A partir da ideia de desenvolvimento desigual, empenhamos uma análise crítica da realidade brasileira no que diz respeito à sua 6 SMITH, Neil. Desenvolvimento desigual. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1988.


relação com o desenvolvimento da atividade turística e seu lugar no processo social e histórico de produção do espaço, primeiramente pensando na escala nacional e, em seguida, recorrendo a casos específicos em escala local. Desenvolvimento desigual Para Michael Löwy (2001), uma das mais importantes contribuições da teoria do desenvolvimento desigual e combinado de Trosty reside no fato de esta representar uma tentativa significativa de “romper com o evolucionismo, a ideologia do progresso linear e o euro-centrismo”. Ainda segundo Löwy (2001), essa teoria é uma tentativa de dar conta da lógica das contradições econômicas e sociais dos países do capitalismo periférico ou daqueles dominados pelo imperialismo, compreendido este como uma fase da história marcada pela formação de “impérios”, fundados na propriedade econômica monopolista e na realização de investimentos espacialmente disseminados. A análise de Trotsky recai sobre a Rússia do início do século XX e o reconhecimento de diferenças espaciais internas nesse país, iluminadas por uma reflexão acerca de sua inserção no mundo capitalista, conduzem o autor a refletir sobre uma forma de desenvolvimento que se dá de forma desigual e contraditória: Sobre o imenso espaço da Rússia [...] encontram--se todos os estágios da civilização: desde a selvageria primitiva das florestas setentrionais onde se alimentavam de peixe cru e faziam suas preces diante de um pedaço de madeira, até as novas condições sociais da vida capitalista, onde o operário socialista se considera como participante ativo da política mundial e segue atentamente [...] os debates do Reichstag. A indústria mais concentrada da Europa sobre a base da agricultura mais primitiva. (TROTSKY, 1909 apud LÖWY, 2001).


Tanto quanto desigual e contraditório, o desenvolvimento é compreendido por Trotsky como fruto de um movimento “combinado”, ou seja, que se processa de forma combinada no movimento da totalidade: Desta lei universal da desigualdade dos ritmos decorre uma outra lei que, na falta de uma denominação mais apropriada, chamaremos de lei do desenvolvimento combinado, no sentido da reaproximação de diversas etapas, da combinação de fases distintas, do amálgama de formas arcaicas com as mais modernas. (TROTSKY, 1909 apud LÖWY, 2001).

A ideia de totalidade é também fundante da teoria do desenvolvimento desigual e combinado de Trotsky posto que parte do entendimento do capitalismo como um modo de produção que se realiza em escala mundial. Na verdade, conforme aponta Smith (1988), o capitalismo representa a primeira vez na história em que um modo de produção se coloca, para o mundo, como um modo de produção hegemônico. “O capitalismo (...) preparou e, num certo sentido, realizou a universalidade e a permanência do desenvolvimento da humanidade” (TROTSKY, 1909 apud LÖWY, 2001). A ideia de desenvolvimento desigual, por sua vez, está diretamente relacionada ao conceito de Divisão Territorial do Trabalho – DTT. Segundo Smith (1988), “a divisão do trabalho na sociedade é a base histórica da diferenciação espacial de níveis e condições de desenvolvimento. A divisão espacial ou territorial do trabalho não é um processo separado, mas está implícito, desde o início, no conceito de divisão do trabalho”. Se, por um lado, o trabalho é “dividido territorialmente”, por outro, essa divisão não se dá no sentido de produzir, exclusivamente, um desenvolvimento igualitário. Considerando imanências do modo de produção capitalista, como a produção social da riqueza e sua apropriação privada, é mister reconhecer que o desenvolvimento


se dá no âmbito de um processo contraditório entre outras razões porque o capital é seletivo do ponto de vista espacial. Como assevera Chesnais (1996, p.18), “não é todo o planeta que interessa ao capital, mas somente partes dele”. Turismo e produção do espaço7 Desde que o filósofo francês Henri Lefèbvre cunhou, nos anos 60 do século XX, a expressão “produção do espaço”, a mesma tem sido utilizada nos mais diversos sentidos e, neste caso, a primeira necessidade que se nos coloca é definir o que entendemos por ela. Ao se debruçar sobre uma discussão acerca de uma das principais categorias de análise da Geografia - o espaço – e, especialmente, sobre o espaço urbano (como em “O direito à cidade”), as ideias e as obras de Lefèbvre se tornam objeto de acaloradas discussões e influenciam o pensamento de geógrafos espalhados pelo mundo. E como em ciências sociais não há verdades absolutas, é certo que essas discussões jamais findarão. De modo sintético e objetivo, a produção do espaço significava para Lefèbvre a própria (re)produção da vida, ou seja, viver é, em síntese, produzir espaço. Neil Smith vê na concepção de “produção do espaço” uma possibilidade teórica para superar o dualismo, historicamente construído, entre espaço e sociedade. Conforme o autor, “não é verdade que espaço e sociedade “interagem”; é uma lógica histórica específica (a do acúmulo de capital) que guia a dialética histórica do espaço e da sociedade” (1988, p.122), já que “[...] duas coisas somente podem interagir ou refletir-se mutuamente se elas forem definidas, em primeiro lugar, como coisas separadas” (1988, p.122-3). Na defesa desta concepção, reverbera Smith (1988, p.123): com “a produção do espaço”, a prática humana e o espaço são integrados 7 Publicado originalmente no livro: CRUZ, Rita de Cássia Ariza da. Geografias do turismo: de lugares a pseudolugares. São Paulo: Roca, 2007. Adaptado.


no nível do próprio conceito de espaço. O espaço é, para Smith, um produto social; um espaço geográfico que é abstraído da sociedade torna-se uma “amputação” filosófica, declara o autor. Tal afirmativa pode ser corroborada pelo pensamento de Milton Santos. Ao discutir a distinção entre espaço e paisagem, Santos lembra o projeto norte-americano, durante a Guerra Fria, de produzir uma bomba de nêutrons, capaz de aniquilar toda a vida, sem, entretanto, destruir os objetos (construções). Caso os americanos tivessem levado a cabo seu projeto, afirma Santos (1996, p. 85): [...] o que na véspera seria ainda o espaço, após a temida explosão seria apenas paisagem. Converge, também, consequentemente, o pensamento de Milton Santos sobre a produção do espaço com o pensamento de Lefèbvre e de Smith. Conforme Santos (1994, p. 88): [...] não há produção que não seja produção do espaço, não há produção do espaço que se dê sem o trabalho. Viver, para o homem, é produzir espaço. É a partir de tais pressupostos que Smith define o que entende por produção do espaço e, neste caso, se aproxima muito do pensamento de Lefèbvre. Para Smith (1988, p. 132), a sociedade não mais aceita o espaço como um receptáculo, mas sim o produz; nós não vivemos, atuamos ou trabalhamos “no” espaço, mas sim produzimos o espaço, vivendo, atuando e trabalhando. Há, todavia, uma diferença importante entre os pensamentos de Lefèbvre, de Smith e de Milton Santos relativamente à concepção de “produção do espaço”. Para o primeiro, apoiado na tese reproducionista originada da experiência do capitalismo pós Segunda Guerra, é a reprodução das relações de produção o fio condutor do processo em tela; para o segundo, a teoria reproducionista pura, defendida por Lefébvre, teria sido superada por acontecimentos históricos dos anos 80, em que, novamente, questões tradicionais de trabalho e da produção demonstram que conflitos sociais característicos da sociedade de classes capitalista não foram superados (Smith, 1988). A obra de Milton Santos deixa


clara, também, que suas análises são fundadas na produção e não na reprodução. Embora tais diferenças se apresentem como clara divergência teórica entre os autores, é preciso lembrar que não há reprodução que não seja, também, produção. Não é por acaso, portanto, que é o próprio Lefèbvre quem cunha a expressão “produção do espaço”. Um ponto comum entre os três autores citados é o entendimento de que a produção do espaço é, antes de tudo, um processo social e, consequentemente, histórico. Todavia, adverte Smith (1988, p.120): [...] por mais social que ele possa ser, o espaço geográfico é manifestadamente físico; é o espaço físico das cidades, dos campos, das estradas, dos furacões e das fábricas. O reconhecimento dessa natureza do espaço, ao mesmo tempo concreta e abstrata, está na base da definição miltoniana de espaço: “O espaço é formado por um conjunto indissociável, solidário e também contraditório, de sistemas de objetos e sistemas de ações, não considerados isoladamente, mas como o quadro único no qual a história se dá” (SANTOS, 1996, p. 51). É Milton Santos quem propõe, por sua vez, o conceito de “formação socioespacial” (em 1977) como conceito-chave na busca pelo entendimento do mundo. Cabe dizer aqui, então, que não há conflito entre esse e o conceito de “produção do espaço”, cunhado por Lefèbvre. Uma formação socioespacial é fruto de um processo social e histórico de produção do espaço. Também não há divergência entre a conceituação de espaço de Milton Santos e a de Smith, não ao menos no que se refere à sua historicidade, a seu conteúdo social e à sua concretude. Quando Santos fala em formação socioespacial, refere-se à escala das nações, embora não discuta à sua aplicação a outras possíveis escalas de análise. O conceito de produção do espaço não diz respeito, a priori, a uma escala específica de análise, mas a obra Lefebvriana que dá forte ênfase aos espaços urbanos e, por consequência, às escalas local e metropolitana. Sobre formação socioespacial, coloca Santos:


Fora dos lugares, produtos, inovações, populações, dinheiro, por mais concretos que pareçam são abstrações. A definição conjunta e individual de cada qual depende de uma dada localização. Por isso a formação socioespacial e não o modo de produção constitui o instrumento adequado para entender a história e o presente de um país. Cada atividade é uma manifestação do fenômeno social total. E o seu efetivo valor somente é dado pelo lugar em que se manifesta, juntamente com outras atividades. (SANTOS, 1996, p. 107).

Outra postura metodológica de Milton Santos, fundamental a esta análise, diz respeito ao conceito de Divisão Territorial do Trabalho (DTT). Por diversas vezes, ao longo de sua vasta obra, o autor chama a atenção para a necessidade de se recorrer ao conceito de DTT para se compreender a organização espacial do mundo ou as diferentes formações socioespaciais. Não há produção do espaço que se possa compreender apartada de um entendimento de que o mundo é regido por uma Divisão Internacional do Trabalho (DIT) e essa divisão internacional não é apenas uma divisão social do trabalho, mas também e, fundamentalmente, uma divisão territorial do trabalho. A divisão internacional do trabalho é processo cujo resultado é a divisão territorial do trabalho, afirma Santos (1996, p.106). Estado e Mercado ainda são atores hegemônicos da produção do espaço. Embora ao longo da história do modo de produção capitalista mudanças profundas tenham ocorrido nos papéis desempenhados por um e por outro, ambos continuam sendo ordenadores daquele processo. Para Milton Santos (1994, p.101)8, Estado e Mercado formam um par dialético, mas isto não elimina o fato de que o Estado exerça o seu auxílio ao Mercado. Neste caso, o autor chama a atenção 8 O conceito de Estado remete, também, a uma observação sobre níveis de governo, como nos chama a atenção Milton Santos. No caso brasileiro, o Estado se faz representar em três níveis: o federal, o estadual e o municipal.


para a subserviência cada vez maior do Estado aos interesses (muitas vezes mesquinhos e imediatistas) do Mercado. Subserviente ou não ao Mercado, o Estado tem uma inquestionável hegemonia na produção do espaço, dado seu papel de ente regulador das relações sociais e provedor de infraestruturas. Todo o conjunto de normas que emana do Estado regula tanto a vida pública quanto a vida privada. Não se pode, portanto, confundir “enxugamento da máquina estatal” com diminuição do Estado. Por fim, cabe ainda nesta discussão uma referência às escalas geográficas de análise. Há situações concretas nas escalas local e regional, em que agentes de mercado tomam para si a hegemonia do processo de produção do espaço no sentido de assegurar a consecução de seus interesses. Não são incomuns os casos de empresas que abrem vias de circulação e implementam todo tipo de infraestrutura necessária à realização de seus negócios, não raras vezes, inclusive, subvertendo normas. Daí a necessidade de se “dar nome aos bois”, ou seja, o Mercado não é um amálgama de empresas hegemônicas a render todo o tempo e em todos os lugares, o Estado. O Mercado é formado de sujeitos, ou melhor, de agentes. A forma como uma pequena indústria, voltada para um mercado consumidor regional, participa da produção do espaço é diferente, por exemplo, daquela de indústrias multinacionais, muito mais exigentes com relação à disponibilidade de infraestruturas e à eficiência e rapidez dos fluxos. Por outro lado, a hegemonia de um e de outro não anula as possibilidades de contra-movimentos. A sociedade civil organizada, seja na forma de associações, de Organizações Não-Governamentais ou outras, pode “tomar para si as rédeas do processo”, como demonstram experiências nas escalas local e regional. A ausência ou ineficiência do Estado e a voracidade conquistadora de agentes de mercado obrigam sociedades a reagirem na luta cotidiana pela sobrevivência.


Esse é o pano de fundo sobre o qual se desenrola o turismo, sendo não mais que uma pequena parte de um imenso jogo de relações. Se a produção do espaço é um processo complexo e conflituoso, entender a participação do turismo no mesmo requer o desvendamento de sua natureza, de sua complexidade e de seus conflitos. É o mundo que explica o turismo e não o contrário. Há que se considerar, também, que a maior parte do turismo feito no mundo se dá em espaços previamente ocupados, ou seja, em lugares em que populações historicamente se estabeleceram e nos quais vivem. Apreender o papel do turismo na produção do espaço é tarefa, portanto, metodologicamente bastante complexa. O turismo é uma prática social e uma atividade econômica que, no mais das vezes, se impõe aos lugares, mas ela não se dá sobre uma tabula rasa, sobre espaços vazios e sem donos. Portanto, não são apenas Estado, Mercado e turistas que produzem os espaços relativos aos fazeres turísticos, mas também as sociedades que vivem nesses lugares, parte delas transformada, por força de novas contingências, em empreendedores turísticos ou, mesmo em muitos casos, atuando como contrarracionalidades às determinações hegemônicas. A produção do espaço envolve seu uso e apropriação e, neste caso, o conflito termina por ser imanente ao processo. Na busca, assim, por caminhos metodológicos que nos conduzam a análises teoricamente fundamentadas acerca das possíveis relações entre turismo e espaço, entendemos ser a “produção do espaço” um conceito revelador porque diz respeito a um processo revelador. Não há produção do espaço que: • • • •

não remeta a uma divisão territorial do trabalho; não requeira uma análise sobre sujeitos sociais envolvidos; não diga respeito a ambas as dimensões do espaço geográfico, ou seja, à suas dimensões material e imaterial; não seja social e histórica.


Desenvolvimento local, expressão do desenvolvimento desigual O conceito de desenvolvimento está, certamente, entre os mais imprecisos do vocabulário comum e acadêmico-científico. Equivalido a crescimento, crescimento econômico, progresso, o conceito de desenvolvimento tem transitado entre leituras mais e menos economicistas ganhando novas adjetivações (tais como “sustentável” e “local”), motivadas pelo nascimento de novos paradigmas. Segundo Oliveira (2002), debates acerca da ideia de desenvolvimento econômico acirraram-se no pós Segunda Guerra, momento em que é criada a Organização das Nações Unidas (1945) que define, por exemplo, a década de 1960 como “Primeira Década das Nações Unidas para o Desenvolvimento”. Nesse momento, a ONU entende desenvolvimento como um processo de crescimento econômico das nações. É a partir do final da década de 1940 que economistas estruturalistas começam a encarar o desenvolvimento como algo distinto do crescimento (Oliveira, 2002), ou seja, o crescimento passa a ser compreendido como uma mudança quantitativa em uma dada estrutura enquanto desenvolvimento seria uma transformação qualitativa de uma estrutura econômica e social (SCATOLIN, 1989 apud OLIVEIRA, 2002). O crescimento econômico tem sido considerado por muitos um pressuposto indispensável para o desenvolvimento, já que a população mundial cresce e, consequentemente, as demandas por bens materiais e imateriais. Conforme Oliveira (2002): [...] O desenvolvimento deve ser encarado como um processo complexo de mudanças e transformações de ordem econômica, política e, principalmente, humana e social. Desenvolvimento nada mais é que o crescimento [...] transformado para satisfazer as mais diversificadas necessidades do ser humano, tais como: saúde, educação, habitação,


transporte, alimentação, lazer, entre outras. (OLIVEIRA, 2002, p. 40).

O questionamento do paradigma crescimento econômico = desenvolvimento leva ao nascimento do conceito de desenvolvimento sustentável, propalado pelo Relatório Brundtand (1987). Esse relatório, motivado por uma discussão, em escala mundial, sobre os limites do crescimento econômico no que diz respeito ao uso dos recursos naturais, propõe uma mudança de paradigma que, em certo sentido, aproxima-se da abordagem estruturalista nascida ainda na década de 1940. O desenvolvimento sustentável circunscreve o crescimento econômico ao desenvolvimento humano e social, colocando, ainda, em completa evidência, a necessidade de equilíbrio ambiental. O reconhecimento, pelas sociedades, dos efeitos perversos do crescimento econômico e do desenvolvimento econômico, que desconsideram os desdobramentos indesejados desse processo sobre a vida no planeta, fez do conceito de desenvolvimento sustentável um paradigma a partir do final do século XX, período em que se consolida o processo de globalização. Sobre a globalização e seus efeitos perversos, coloca Santos: De fato, para a grande maior parte da humanidade a globalização está se impondo como uma fábrica de perversidades. O desemprego crescente torna-se crônico. A pobreza aumenta e as classes médias perdem em qualidade de vida. O salário médio tende a baixar. A fome e o desabrigo se generalizam em todos os continentes. Novas enfermidades como a SIDA se instalam e velhas doenças, supostamente extirpadas, fazem seu retorno triunfal. A mortalidade infantil permanece, a despeito dos progressos médicos e da informação. A educação de qualidade é cada vez mais inacessível. Alastram-se e aprofundam-se males espirituais e morais, como os egoísmos, os cinismos, a corrupção. (SANTOS, 2000, p. 20-1).


O quadro social descrito por Milton Santos coloca em xeque ideias utópicas sobre uma possível escala global do desenvolvimento sustentável. É, possivelmente, também por esta razão, que ganha corpo, ainda no final do século XX, a ideia de desenvolvimento local. O conceito de desenvolvimento local parece ser um herdeiro direto do conceito de desenvolvimento sustentável e, embora os mesmos não sejam sinônimos, a literatura que consagra ambos aponta para indiscutíveis convergências entre eles, posto que ambos têm em seu cerne o pressuposto de que o desenvolvimento tem de ser, sobretudo, humano e social. Desenvolvimento local é, segundo Carestiato (2000) apud Mattos e Irving (2005): Um modelo de desenvolvimento que permite a construção de poder endógeno para que uma dada comunidade possa autogerir-se, desenvolvendo seu potencial socioeconômico, preservando o seu patrimônio ambiental e superando as suas limitações na busca contínua da qualidade de vida de seus indivíduos. (CARESTIANO, 2000, p. 27).

A ideia de poder endógeno relaciona-se, diretamente, ao conceito de “empoderamento”, derivado do inglês “empowerment”, conceito esse que começa a ser difundido a partir dos anos 70, nos EUA, e que embora tenha íntima relação com o ambiente empresarial, é assimilado por cientistas sociais que lhe atribuem uma abordagem humanitária, conforme se pode auferir a partir da definição que segue: O conceito de empowerment se tornou nos últimos tempos uma das mais requisitadas “buzz words” relativamente à intervenção social. O número de artigos e trabalhos acadêmicos onde se lhe faz referência tem aumentado em várias publicações de âmbito internacional ligadas ao serviço social e à política social. Neste artigo definimos empowerment como um processo de reconhecimento, criação e utilização de recursos e de instrumentos pelos indivíduos, grupos e comunidades, em si mesmos e no


meio envolvente, que se traduz num acréscimo de poder - psicológico, sociocultural, político e econômico - que permite a estes sujeitos aumentar a eficácia do exercício da sua cidadania. (PINTO, Carla. In: Política Social –1998, Lisboa: ISCSP, 1998, p. 247-264)9.

A partir das conceituações ora explicitadas, conclui-se que desenvolvimento local não envolve, necessariamente, crescimento econômico, mas sim o alcance de melhores condições de vida pelos meios disponíveis em uma dada comunidade ou sociedade vivendo em um dado lugar. Nesse sentido, o desenvolvimento local é um processo socializante, no qual as comunidades envolvidas são protagonistas de seu tempo e de seu espaço e não sujeitos hegemonizados. Trata-se de uma expressão espacial, em verdade, do desenvolvimento desigual. O turismo como instrumento do desenvolvimento local Como disse Alain Lipietz (O capital e seu espaço, 1988), “não há regiões pobres, mas regiões de pobres”, fazendo uma clara alusão à distribuição espacial da pobreza cujo completo entendimento somente pode ser pautado por uma análise profunda sobre seu contrário, ou seja, sobre a distribuição espacial da riqueza, sobre a Divisão Territorial do Trabalho, sobre os princípios daquilo que Trostky chamara de “desenvolvimento desigual e combinado”. A pobreza tem, em essência, uma causa estrutural e como fenômeno social não pode ser alijada de contextos históricos e espaciais. A pobreza na Região Semiárida do Nordeste brasileiro, por exemplo, não é fruto das condições naturais da região, embora não se possa negar que tais condições agravam os efeitos da pobreza bem como constituem, ao mesmo tempo, dificuldades conjunturais à sua superação. 9 Disponível em: <http://www.dhnet.org.br/direitos/sos/textos/empowerment.htm>.


No caso brasileiro, embora o país tenha, reconhecidamente, manchas de riqueza e de prosperidade econômica e social, a pobreza está em todos os rincões da nação, suscitando o reconhecimento de que a pobreza não é endêmica e que sua compreensão passa, necessariamente, pelo entendimento de dinâmicas sociais edificadas ao longo do tempo e no espaço. Turismo e desenvolvimento na escala das nações Com todas as ressalvas metodológicas que possam ser feitas, a comparação entre Índice de Desenvolvimento Humano – IDH, produzido pelo Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (PNUD), um indicador de qualidade de vida, e ranking do turismo internacional que é produzido pela Organização Mundial do Turismo - OMT, relativo à recepção de fluxos internacionais de turistas, nos permite construir algumas reflexões que, ao fim e ao cabo, iluminam o conceito de desenvolvimento local.


Quadro 1 – Vinte países maiores receptores de turistas em 200410 X IDH, 2007/200811 PAÍS 1. França 2. Espanha 3. Estados Unidos 4. China 5. Itália 6. Reino Unido 7. México 8. Turquia 9. Alemanha 10. Federação Russa 11. Áustria 12. Canadá 13. Malásia 14. Ucrânia 15. Polônia 16. Hong Kong, China 17. Grécia 18. Hungria 19. Tailândia 20. Portugal

IDH (posição no mundo) 10º 13º 12º 81º 20º 16º 52º 84º 22º 67º 15º 4º 63º 76º 37º 21º 24º 36º 78º 29º

Uma das ressalvas metodológicas a se fazer diz respeito ao fato de que a Organização Mundial do Turismo reconhece que a maior parte do fluxo de turistas do mundo é “doméstica”, ou seja, diz respeito a fluxos intranacionais. Todavia, é sabido que o turismo internacional tem importante impacto sobre as economias nacionais ao promover, por exemplo, a entrada de divisas nesses países. Além disso, o ranking da OMT, utilizado no quadro acima, diz respeito ao número de turistas e não à receita gerada por essa atividade. 10 Conforme a Organização Mundial do Turismo - OMT. 11 Conforme o Programa das Nações para o Desenvolvimento – PNUD. Disponível em: <http://hdr.undp.org/en/statistics>.


Outra ressalva importante diz respeito ao fato de que ambos os dados (ranking da OMT e IDH) referem-se a um momento da história dessas nações, não havendo qualquer possibilidade de se auferir, pelos mesmos, os processos subjacentes. Diante do exposto, há que se reconhecer que somente uma análise aprofundada sobre cada caso poderia revelar o real impacto do turismo sobre o IDH de cada nação considerada. Ainda assim, insistimos nessa comparação porque entendemos que a mesma é indicativa de processos importantes em curso. Abaixo, listamos algumas dessas reflexões. a. O México, sétimo colocado no ranking da OMT (2004) tinha, naquele ano, o 52º IDH do mundo; b. Apesar de ser a 8ª nação que mais recebe turistas no planeta, a Turquia tem o 84º IDH; c. A Tailândia, colocada entre os vinte destinos mais visitados do mundo, tinha, em 2004, o 78º IDH do planeta. O Brasil, não listado no Quadro 1, ocupa o 29º lugar no ranking da OMT, mas tem melhor IDH que a China. A principal hipótese que levantamos a partir desse confronto é a de que, se de um lado o desenvolvimento econômico, o social e humano parecem ser importantes fatores propulsores do turismo internacional (pela geração de fluxos emissivos) de uma nação, do outro a recíproca não é, necessariamente, verdadeira. De fato, esses desenvolvimentos são frutos de um complexo feixe de fatores históricos, econômicos, sociais e políticos, do qual o turismo é apenas uma pequena parte. Essa hipótese nos ajuda a compreender a aceitação que tem a ideia de desenvolvimento local relacionada ao turismo, que se coloca, mesmo, como um novo paradigma também no final do século XX.


Turismo e desenvolvimento local – dois exemplos em território brasileiro Conforme anteriormente colocado, o conceito de desenvolvimento local distingue-se de todas as outras abordagens sobre desenvolvimento que o antecedem porque demarca uma escala geográfica, a escala local. A escala local remete a uma dada sociedade e ao território em que essa sociedade vive e com o qual tem uma relação mais próxima. O processo de globalização, todavia, impacta as relações hierárquicas entre as diferentes escalas geográficas, rompendo com padrões históricos constituídos. A fluidez das ações hegemônicas e sua capacidade cada vez maior de penetrar os mais recônditos rincões do planeta impõem desafios a todo e qualquer projeto de desenvolvimento local, associado ou não à atividade do turismo, ou seja, em tempos de mundialização dos mercados, desenvolvimento local soa contraditório. Neste caso, cabe dizer que entendemos que o desenvolvimento local resulta da hegemonia de lógicas horizontais (endógenas) que se contrapõem a lógicas verticais (exógenas), embora submetido, naturalmente, às contradições do modo de produção capitalista no seio do qual se desenrola. Dadas as dificuldades em se superar as contradições as quais fizemos alusão no parágrafo anterior (produção social da riqueza e sua apropriação privada; produção social do espaço e sua apropriação também privada, por exemplo), experiências reconhecidamente bem sucedidas de desenvolvimento do turismo com base local, em território brasileiro, têm se restringido a experiências do chamado “turismo comunitário”, compreendido este como uma forma de turismo em que comunidades locais assumem o comando do desenvolvimento do turismo em seus territórios. Esse é o caso, por exemplo, de Silves no Amazonas, e Prainha do Canto Verde no Ceará.


A experiência de Silves, Amazonas Silves é um município do estado do Amazonas, maior estado da Região Norte do Brasil, distando cerca de 300 km da capital do estado, Manaus. Sua sede está localizada em uma ilha fluvial, no Rio Urubu. Com uma população de pouco mais de 8.200 pessoas, Silves tem uma área de 3.747 km2, no interior da qual se destaca a presença de lagos ricos em peixes e, até poucos anos atrás, ameaçados por uma exploração descontrolada. Considerando a importância dos lagos para a comunidade moradora de Silves, setores progressistas da Igreja Católica que atuam no município estimularam a população local a unir-se em torno do interesse comum de proteger um de seus mais importantes recursos: o ecossistema lagunar e a ictio-fauna por ele abrigada. É assim que nasce, em 1993, a ASPAC (Associação de Silves para a Preservação Ambiental e Cultural). A institucionalização dessa associação de moradores é o preceito legal necessário para a solicitação de recursos junto a organismos governamentais ou não-governamentais, como acontece um ano depois do surgimento da ASPAC. Em 1994, a Associação recebe apoio financeiro do governo da Áustria e da Organização Não-Governamental WWF-Brasil, o que permitiu a construção de um “hotel de selva”, na verdade a “Pousada Aldeia dos Lagos”.


Vista Aérea da Pousada Aldeia dos Lagos Disponível em: <http://www.viverde.com.br/aldeia.html>

A Pousada Aldeia dos Lagos é gerida pela comunidade local, que teve de aprender, por meio de oficinas de capacitação, aspectos da gestão em hotelaria. Os recursos gerados pela Pousada – que tem 90% de seus hóspedes estrangeiros – revertem para os associados da ASPAC, além de promover projetos de proteção de lagos do município. A atividade do turismo é utilizada pela população de Silves como alternativa à pesca comercial e predatória. Ao ocupar o pessoal ribeirinho em atividades diretamente relacionadas ao hotel e aos passeios oferecidos aos visitantes, o turismo gera renda para o lugar, além de possibilitar a preservação de um de seus mais importantes recursos naturais, que provê o peixe, base da alimentação dessa população. É por isso que Silves pode ser considerado um exemplo concreto de como a atividade turística pode ser um instrumento do desenvolvimento local.


A experiência da Prainha do Canto Verde Prainha do Canto Verde é o nome que se dá a uma comunidade formada por pescadores artesanais (cerca de 1100 pessoas), localizada no município de Beberibe, estado do Ceará, Região Nordeste do Brasil.

Vista parcial da Prainha do Canto Verde, Ceará, Brasil Disponível em: <http://www.fortalnet.com.br/~fishnet/>

Embora vivendo por gerações nessas terras, a comunidade de pescadores de Prainha do Canto Verde não dispunha de documentação de posse dessas terras e, por isso, começou a sofrer uma feroz pressão de agentes imobiliários, ávidos pela exploração das qualidades ambientais e paisagísticas do lugar. Essas pressões chegaram ao extremo de ações criminosas como o incêndio provocado na casa de um pescador, enquanto toda a sua família dormia. Todos escaparam com vida.


Esse incidente, dada a sua gravidade, reforça na comunidade local o sentimento de união em torno de uma causa comum: a propriedade legal do solo. Com o apoio do Centro de Defesa e Proteção dos Direitos Humanos e da Igreja Católica, no Ceará, a comunidade da Prainha do Canto Verde enfrentou uma longa batalha judicial estendida pelos últimos vinte anos. De outro lado, a comunidade enfrentava dificuldades em viver somente a partir da pesca artesanal. E é nesse sentido que acontece uma importante transformação no lugar. Um executivo da Swissair (até 1992), de nome René Schärer, decide dedicar-se ao empreendedorismo social e, por ter conhecido a Prainha do Canto Verde e as dificuldades dessa comunidade de pescadores, envolve-se com a comunidade e decide instrumentalizála para o desenvolvimento de um turismo com base comunitária. A partir do uso de técnicas de planejamento participativo, a comunidade é estimulada a pensar criticamente o uso de seu território e o desenvolvimento do turismo. Foi a comunidade que decidiu não querer um turismo massivo. As casas dos pescadores foram adaptadas para receberem turistas, sendo construídos apartamentos independentes, com banheiro que, embora simples, são limpos e aconchegantes. Existem hoje, em Prainha do Canto Verde, aproximadamente 40 leitos. Mais que isso, a comunidade, articulada, tem conseguido impedir a entrada de especuladores, ao construir uma espécie de “pacto social”, pelo qual todas as famílias se comprometem a não vender seus imóveis para sujeitos estranhos ao lugar. A pesca continua sendo a principal atividade econômica da comunidade e o turismo uma atividade complementar. A renda gerada pelo turismo de base comunitária dinamiza a economia local e fortalece os laços sociais entre os membros da comunidade.


À guisa de conclusão Embora os exemplos utilizados neste texto digam respeito a pequenas localidades, não consideramos o desenvolvimento local algo passível de ser alcançado apenas nesses casos. Entretanto, é preciso reconhecer que quanto mais populosa uma localidade, sobretudo quando pensamos em cidades, as complexas teias de relações políticas, econômicas e sociais constituem, não raras vezes, obstáculos mais difíceis de serem transpostos no sentido de socializar os efeitos desejados do turismo. Por outro lado, se se considerar o fato de que há uma crescente internacionalização da atividade econômica do turismo, sobretudo no que diz respeito à expansão mundial de redes hoteleiras e, cada vez mais, de empresas que atuam no mercado imobiliário de residências secundárias, faz-se necessário reconhecer que o desenvolvimento local termina por ser uma forma de resistência ou mesmo uma contra-racionalidade à racionalidade hegemônica do capital.

Referências CHESNAIS, François. A mundialização do capital. São Paulo: Xamã, 1996. CRUZ, Rita de Cássia Ariza da. Geografias do turismo: de lugares a pseudolugares. São Paulo: Roca, 2007. LIPIETZ, Alain. O capital e seu espaço. São Paulo: Nobel, 1988. LÖWY, Michael. A teoria do desenvolvimento desigual e combinado. Tradução de Henrique Carneiro. Actuel Marx, Paris, França, no 18, 1995. Disponível em: <http://www.revistaoutubro.com.br/edicoes/01/out01_06.pdf>. Acesso em: 10 out. 2008. MATTOS, Flávia Ferreira; IRVING, Marta de Azevedo. Nos rumos do ecoturismo e da inclusão social. O caso da Resex Marinha do Delta do Parnaíba (MA/PI). Caderno Virtual de Turismo, dez/2005. Disponível em: <http:// www.ivt-rj.net/sapis/anais2005/eixo5/mattos.htm>. Acesso em: 10 out. 2008. OLIVEIRA, Gilson Batista de. Uma discussão sobre o conceito de desenvolvimento. Revista FAE, Curitiba, v. 5, no 2, p. 41-48, mai./ago. 2002.


PINTO, Carla. Empowerment: uma prática de serviço social. In Política Social. Lisboa: ISCSP, 1998, 247-264 p. SANTOS, Milton. Por uma outra globalização, do pensamento único à consciência universal. Rio de Janeiro: Record, 2000. SMITH, Neil. Desenvolvimento desigual. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1988.


TURISMO, DESENVOLVIMENTO DESIGUAL E RELAÇÕES DE TRABALHO NO LITORAL POTIGUAR12

Jean Henrique Costa

O turismo no Estado do Rio Grande do Norte (RN) é apresentado constantemente pela mídia como uma fonte de “desenvolvimento” local, dados os investimentos auferidos e a real/potencial geração de “empregos” em seus diferentes setores. As políticas públicas de turismo no RN foram e são responsáveis pela captação de investimentos privados e sua consequente geração de postos de trabalho. Em meados dos anos 90, o Governo do RN implementou o “Programa de Desenvolvimento do Turismo no Rio Grande do Norte” - PRODETUR/RN I, com vistas à competitividade local enquanto destino regional e nacional. O referido Programa foi responsável por diversos investimentos em infraestrutura nos espaços envolvidos, muito embora de forma assimétrica. Tais investimentos contribuíram para reforçar ainda mais os discursos positivos sobre o binômio “turismo e emprego”. 12 O presente artigo foi resultado da dissertação de mestrado do autor, aprovada pelo Programa de Pós-Graduação e Pesquisa em Geografia da Universidade Federal do Rio Grande do Norte no ano de 2007. Uma versão parcial e reduzida do texto se encontra publicada como: Políticas públicas, turismo e emprego no litoral potiguar. In: Caderno Virtual de Turismo, COPPE/UFRJ, Vol. 8, n. 2, p. 115129, 2008.


Em decorrência desses discursos acríticos acerca do turismo enquanto gerador de empregos e desenvolvimento local é que se justificou esta pesquisa, já que não se questiona a qualidade dos empregos gerados pela atividade turística; e, de maneira análoga, não se questionam os custos sociais desta política pública, isto é, a pertinência de seu modelo de “desenvolvimento”. A partir da problemática delineada acima, as questões que nortearam este trabalho foram: em que medida a política pública de turismo denominada de PRODETUR/RN I foi eficaz para a geração de empregos nos municípios contemplados? Quais as características desses empregos? E como esses empregos se distribuem e repercutem espacialmente nos municípios integrantes? Dessa forma, a área delimitada para o estudo abrangeu os seis municípios englobados por esse programa: Natal, Parnamirim, Ceará-Mirim, Nísia Floresta, Extremoz e Tibau do Sul. A delimitação temporal compreende o início de implantação do referido programa, ou seja, 1996, estendendo-se até os dias atuais. A pesquisa de campo fundamentou-se na aplicação de 18613 questionários com 13 O número de 186 trabalhadores pesquisados não é suficiente para uma inferência probabilística com margem de erro segura. Conclui-se, por conseguinte, que todas as conclusões do estudo se referem apenas ao caso em questão. Foram aplicados 104 questionários com trabalhadores in loco nos equipamentos de hospedagem destes municípios. Outros 50 foram aplicados, de forma autoinstruída, com trabalhadores transeuntes pelo sindicato da categoria (Sindicato dos Empregados no Comércio Hoteleiro e Similares do RN – SECHS). E por fim, outros 32 foram coletados com estudantes de dois cursos superiores em turismo que ora estavam ingressos no mercado de trabalho (turístico), também autoinstruídos. A pesquisa de campo direta foi realizada nos meses de março e abril do ano de 2006. A eficácia quanto a geração de empregos pelo PRODETUR/RN I mensurou-se através de dados secundários sobre os empregos turísticos formais existentes no RN, numa evolução temporal do ano de 1994 a 2003, período de vigência do Programa. Esses dados apoiaram-se nos estudos de Pedrosa e Freire (2005), IPEA (2006) e IBGE/CEMPRE (2004). As características dos empregos foram levantadas a partir da análise de blocos temáticos e suas respectivas variáveis componentes, ou seja, genericamente: histórico do trabalhador na atividade turística; remuneração; jornada de trabalho; benefícios; saúde ocupacional/segurança no trabalho; e relação sindical. Tais variáveis foram obtidas em campo (trabalhadores captados diretamente nas empresas – por


trabalhadores empregados no turismo litorâneo potiguar, além da realização (secundária) de entrevistas com atores sociais diretamente ligados ao tema. A seguir, tem-se a estruturação teórica do escrito e suas considerações empíricas. A natureza do espaço turístico O espaço geográfico para a Geografia do Capitalismo, conforme termo trabalhado por Neil Smith (1988), significa, nas palavras de Milton Santos (1999), um sistema de objetos cada vez mais artificiais, a partir de ações igualmente artificiais estranhas ao lugar e seus habitantes. Assim posto, define-se o mesmo como um espaço socialmente produzido, condicionado e condicionante, distante da noção de espaço receptáculo presente na geografia tradicional. O espaço turístico, por sua vez, assim como os demais (industrial, agrícola etc.), constrói-se sob essa mesma fundamentação, embora com certas singularidades. O espaço turístico não foge desta lei capitalista inexorável e se converte em mercadoria, passando a comandar os ditames de toda a lógica de ordenamento e condução da vida de muitas cidades. No atual contexto de globalização, o espaço turístico assume uma função produtiva, pelo fato de tratar-se do uso de fatores físicos e culturais que precisam de toda uma série de serviços para que sejam passíveis de serem comercializados turisticamente. Tais espaços turísticos, na medida em que materialmente se tornam mais complexos (competitividade empresarial), criam e recriam novas formas e arranjos espaciais: redes de empresas, serviços específicos, infraestrutura, órgãos públicos setoriais, acessibilidade) e analisadas através de apreciação quantitativa. Por fim, a distribuição e repercussão espacial destes empregos se referem à abrangência desta política pública de turismo, no sentido de avaliar em que medida o PRODETUR/RN I induziu a geração de empregos nestes seis municípios contemplados e qual a repercussão espacial dos empregos nestas localidades. Este foi o interesse central da pesquisa, uma vez que avaliou a atuação do Programa no RN e a pertinência do seu modelo de desenvolvimento, observando-se os espaços que ganharam e os que perderam.


postos de trabalho etc. Estes últimos, expressos sob a forma da categoria “emprego”, auferem as populações locais novas formas de inserção na vida econômica, muito embora o conteúdo e as perspectivas dessa inserção não correspondam às expectativas descritas pelas apologias da atividade turística, devido às regras do jogo estipuladas pelo novo período de acumulação capitalista. A acumulação flexível do capital e o emprego turístico A acumulação flexível do capital trouxe para a reprodução da força de trabalho uma série de implicações nada idílicas. Antunes (2002) aponta os fatores que conduziram ao advento desta acumulação não-rígida e exemplifica algumas de suas características, tais como a necessidade do trabalhador ser flexível, isto é, operar várias máquinas, rompendo a ideia do homem-máquina fordista (polivalência do trabalhador); o trabalho em equipe, rompendo com o trabalho especializado e parcelar fordista; a organização do trabalho flexível, ou seja, agilidade na adaptação do maquinário e dos instrumentos para que novos produtos sejam elaborados; Kanban, Just in Time, flexibilização, terceirização, subcontratação, CCQ [círculos de controle da qualidade], Controle da Qualidade Total, eliminação de desperdício, gerência participativa, sindicalismo de empresa, entre tantos outros que se propagam profundamente (ANTUNES, 2002). Essa flexibilidade para Bresciani (1996) pode ser visualizada através da chamada terceirização de mão de obra, do achatamento da pirâmide hierárquica e das mudanças na organização da produção. Dessa forma, o toyotismo estrutura-se a partir de um número mínimo de trabalhadores, ampliando-os, através de horas extras, trabalhadores temporários ou subcontratados, dependendo das condições de mercado. Essa flexibilização, de acordo com Giddens (2004), se materializa na produção flexível, no trabalho em equipe e no trabalhador polivalente. Como resultado global do processo, Antunes (2002) afirma


que houve uma desproletarização do trabalho industrial, onde paralelamente efetivou-se uma expressiva expansão do trabalho assalariado, a partir da enorme ampliação do assalariamento no setor de serviços. Concomitantemente, verificou-se uma significativa heterogeneização do trabalho, expressa também através da crescente incorporação do contingente feminino no mundo operário. Vivencia-se também uma subproletarização intensificada presente na expansão do trabalho parcial, temporário, precário, subcontratado, ‘terceirizado’, que marcam a atual sociedade no capitalismo avançado. Na realidade brasileira, essas mudanças advieram pós década de 90. Mattoso (1999) alerta para dois pontos fundamentais que ocorreram economia brasileira, mesmo estes sendo em nível mundial: 1. Desemprego elevado; 2. Precarização das condições e relações de trabalho. Essas duas transformações negativas não ocorreram somente num setor econômico, ainda que se possa sentir mais acentuado em alguns, realça o autor. Também não podem ser atribuídos à falta de capacidade dos trabalhadores, conforme mostra a falsa ideia de “empregabilidade” difundida pelo neoliberalismo, nem exclusivamente a elementos internacionais, tecnológicos ou sazonais, como já se ousou alardear. Como coloca Mattoso (1999), a deterioração do mercado de trabalho brasileiro na década de 1990 foi um fenômeno de amplitude nacional, resultado do intenso processo de desestruturação do mercado de trabalho ocorrido nos anos 90, sobretudo, durante o primeiro governo de Fernando Henrique Cardoso (1995-1998). Tal período teve como ponto principal uma acentuada redução da capacidade de geração de empregos formais. Essa constatação é fundamental para o entendimento do problema em questão, já que se inicia, mais abertamente e de uma forma sem precedentes na recente história do país, a precarização das condições e relações de trabalho sob o rótulo da flexibilização.


Natureza e expansão do turismo potiguar O turismo no Estado do Rio Grande do Norte inicia-se com a construção da Via Costeira14 (meados dos anos 80), resultado da política de mega-projetos para a Região Nordeste. A construção dessa Via Costeira baseia-se no que usualmente se chama de privatização do patrimônio público a baixo custo, fenômeno esse ligado à privatização de dilatados trechos de litoral voltados ao capital, privatização significativamente errática quanto ao sistema geral de preços ligado à base fundiária e de caráter eminentemente excludente da população local. Francisco de Oliveira, citado por Lopes Júnior (2000), considera tal fenômeno como o desenvolvimento econômico via afirmação do Estado de mal-estar social. Para Cavalcanti (1993, p. 127-128), a expansão do turismo no RN não fugiu a essa regra estrutural de desenvolvimento, “em que o Estado assumiu papel decisivo possibilitando ao capital privado condições atrativas, além de fornecer a esse capital toda a infraestrutura necessária a sua instalação e expansão”. Assim como colocou Lopes Júnior (2000), Cavalcanti (1993, p. 129) também é contundente ao afirmar que o projeto de maior impacto do Governo do Rio Grande do Norte referente ao turismo, dentro do quadro de desenvolvimento privilegiado pelo II PND, foi o projeto Parque das Dunas/Via Costeira. O atual quadro empírico revigorou-se ainda mais com a implementação do “Programa de Desenvolvimento do Turismo no Rio Grande do Norte”, intitulado PRODETUR/RN, em sua primeira versão, implementado “efetivamente” entre os anos de 1995 e 2002. Esse, em sua primeira versão no Rio Grande do Norte, abarcou seis municípios potiguares, no qual possibilitou uma nova, porém desigual, dinâmica de interação espacial (ver mapa 01). Estes, Natal, Parnamirim, Ceará-Mirim, Nísia Floresta, Extremoz e Tibau do Sul 14 Avenida litorânea construída ao longo de uma área de preservação ambiental intitulada de “Parque das Dunas”, voltada para a construção de hotéis de grande porte na orla natalense, ligando as praias do centro da cidade à praia de Ponta Negra, localizada em seu extremo sul.


ganharam uma nova conotação no cenário turístico estadual, uma vez que a política de turismo foi responsável por investimentos em infraestrutura nesses municípios envolvidos.

CARTOGRAFIA: Josué Alencar Bezerra, 2007. Mapa 01 – Localização da área de estudo: PRODETUR/RN I - municípios e estratos.


Primeiramente, esta política pública de turismo no RN, não apenas no discurso, mas efetivamente em suas ações, foi o agente viabilizador do turismo potiguar. Isto se deu não através da omissão do Estado, mas fundamentalmente a partir de suas ações, implementando a materialidade da infraestrutura (por exemplo, a ampliação e modernização do Aeroporto Internacional Augusto Severo, reurbanização do bairro de Ponta Negra, estradas de acesso etc.); criando o ambiente competitivo para as empresas (incentivos indiretos diversos); e divulgando o produto turístico RN no cenário nacional e internacional. Natal, segundo documentos oficiais do Programa, foi o município mais tocado pelas ações do PRODETUR/RN I, abarcando cerca de 80% dos recursos (FONSECA, 2005). O espaço produzido por essas ações foi um espaço construído capitalisticamente com fins turísticos e não com fins sociais na perspectiva do residente. Isso leva a refletir sobre o lugar do morador na nova lógica de produção e organização do espaço, com vistas ao desmanche da ideia patriótica consensual que o turismo é condição ímpar para o desenvolvimento do estado e a criação de um novo pensar, fundamentado num novo modelo de desenvolvimento econômico. A assimetria no espaço turístico potiguar e as características do emprego na atividade As considerações empíricas da pesquisa apontam para a existência de uma assimetria no espaço turístico potiguar, onde Natal é o espaço que recebe os maiores benefícios proporcionados pela atividade, enquanto os demais municípios dão sustentação à atividade turística natalense. Dessa forma, os municípios periféricos (todos, exceto Natal) englobados no PRODETUR/RN I exercem o papel de subprodutos da cidade capital, onde a precarização das relações de trabalho se acentua ainda mais nesses espaços “secundários”. A política pública ao invés de tentar equalizar os benefícios da atividade nos seis municípios, contribui substancialmente para reforçar o nível de centralidade de Natal.


O PRODETUR/RN I foi capaz de gerar, indiretamente, significativos empregos15, muito embora a maioria desses se situe nos níveis operacionais da atividade, com as características vislumbradas pela pesquisa de campo (baixa escolaridade, ínfimos rendimentos, informalidade, elevadas jornadas de trabalho, baixo grau de sindicalização etc.); os empregos que são gerados se localizam expressivamente em Natal16; e os demais municípios servem como elementos de apoio para a capital enquanto produto central das decisões sobre o turismo no estado do RN, tendo, portanto, uma repercussão socioespacial restrita. As condições e relações de trabalho que se estabelecem na atividade turística seguem a tendência estrutural vigente atualmente 15 Pedrosa e Freire (2005) utilizam dados da Relação Anual de Informações Sociais RAIS (Ministério do Trabalho e Emprego - MTE) para caracterizar a relação entre a ampliação da demanda empresarial e a paralela oferta de empregos criados. No RN, as autoras apontam uma variação de 535,12% quanto ao aumento no número de estabelecimentos turísticos e uma variação de 68,74% quanto ao crescimento de empregos na atividade turística, tomando como recorte temporal os anos entre 1994 e 2003 – período de vigência do PRODETUR/RN I. Considerando os empregos formais criados pela atividade turística no RN, no ano de 1994, havia 689 estabelecimentos operando na atividade ocupando 10.802 trabalhadores; enquanto que, no ano de 2003, houve um aumento para 4.376 estabelecimentos e 18.227 empregos criados, ilustrando as variações já descritas (muito embora esse crescimento se verifique basicamente em Natal). 16 Tal centralidade se evidencia através dos dados contidos no Plano de Desenvolvimento Integrado do Turismo Sustentável do Pólo Costa das Dunas (ca. 2002), em avaliação ao PRODETUR/RN I, ao apresentar estimativas (construídas percentualmente pelo presente autor) que mostram que 83,69% dos empregos criados se concentram em Natal, enquanto que, no período do estudo, Tibau do Sul detinha apenas 7,1%, Extremoz 4%, Parnamirim 3,53%, Nísia Floresta 1,05% e CearáMirim apenas 0,58%. Essa desproporção é também verificada nos dados contidos no Sebrae RN (2002), onde se observa novamente uma acentuada e previsível centralidade natalense quanto aos empregos turísticos do RN. Em Natal, vê-se uma concentração de 79,86% dos empregos totais do espaço turístico do PRODETUR/RN I; Tibau do Sul, 2º lugar nessa desproporção, inseri-se no jogo de forças com apenas 12,24%; Extremoz com 3,90%; Parnamirim com 2,04%; Nísia Floresta com 1,33%; e Ceará-Mirim, novamente último da lista, participando com apenas 0,59% dos empregos turísticos.


no mundo do trabalho, ainda que com características singulares resultantes das especificidades do setor: sazonalidade, limitada racionalização do trabalho, demanda elástica, bem de consumo supérfluo e baixa profissionalização da mão de obra. Dessa forma, parte da literatura estudada caracteriza as condições de trabalho em turismo como tendo as seguintes características: são as maiores taxas de rotatividade do setor; há elevada e crescente participação de trabalhadores autônomos e das pequenas firmas; vigoram mecanismos distintos de formação de salários – capital humano, gênero, raça, idade, sindicatos etc. (ARBACHE, 2001); verifica-se baixa remuneração e baixa escolaridade dos trabalhadores (FONSECA; PETIT, 2002); parte expressiva dos trabalhadores situa-se nos níveis operacionais, enquanto uma ínfima parcela está nos níveis de direção, inclusive gerenciamento (PAIVA, 1995); há o caráter sazonal da atividade, fraca qualificação, baixa produtividade, flutuação do pessoal (trabalho apenas como interesse transitório) e condições de trabalho penosas e pouco atrativas, devido à jornadas de trabalho altas e em horários inadequados (CUNHA, 1997). Ocorre rotatividade de mão de obra aos objetivos das empresas; empregados em diferentes postos de funções (polifuncionalidade); estratégia do distanciamento que envolve o deslocamento das relações internas da política de empregos através de relações comerciais do mercado por meio da subcontratação e de outros procedimentos semelhantes; flexibilidade de pagamento – trabalhadores essenciais e periféricos; uso generalizado de empregados em turno parcial, para dar conta das flutuações da demanda durante o dia, de empregados temporários, sazonais, que atendam o muito conhecido caráter sazonal dessa mesma demanda, e da subcontratação para certas funções; nítida divisão quanto a flexibilização do gênero, na forma e na amplitude dessas várias e flexíveis práticas de trabalho (URRY, 1996). Há elevado percentual de trabalhadores atuando em tempo parcial; elevado percentual de trabalhadores temporários; importante presença de mulheres com contratos em tempo parcial; escasso número de mulheres em cargos de maiores


responsabilidades; importante presença de jovens, com baixa qualificação, empregados no setor esporadicamente; menor remuneração do que outros setores econômicos; maior número de horas trabalhadas por semana, com horários e turnos especiais; e baixo grau de sindicalização (OMT, 1998). Correlacionando os dados com desvendado bibliograficamente, percebe-se uma similaridade bastante clara entre o conteúdo trabalhado pelos estudos revisados e o obtido via pesquisa de campo, ou seja, os dados in loco. Veem-se nos dados colhidos com os trabalhadores, de maneira geral, trabalhadores predominantemente jovens (68,2% possuem entre 18 e 33 anos); baixa escolaridade média (38,4% não possuem sequer o ensino médio completo); não realização de cursos específicos para o exercício do trabalho, principalmente nos municípios periféricos; trabalhadores oriundos de uma ampla gama de atividades desconexas ao turismo (72,1%); motivação profissional fortemente aliada à falta de trabalho (41,3%) e indicação de terceiros (35,6%;) rotatividade da mão de obra elevada nos primeiros anos de trabalho; percentual expressivo de trabalhadores sem vínculo formal de trabalho (24%); baixo rendimento salarial (61,5% recebem até 1 salário mínimo; 31,7% recebem entre 1 e 2 salários mínimos; e somados, 93,2% recebem até 2 salários mensais); importante presença das remunerações extras como mecanismo de complementação salarial (57,7%); baixo percentual de benefícios de integração do trabalhador na empresa, basicamente restritos a alimentação na mesma (80,8%) e ajuda no transporte (53,8%); percentual significativo de desconto desses mesmos benefícios (36,5%); acentuado regime de trabalho flexível, ou seja, sem turno estável de trabalho (30,8%); ampliação da jornada de trabalho (8,7% informaram trabalhar acima de 14 horas diárias, sobretudo na alta estação); marcante presença da hora-extra de trabalho (63,5%) e baixo percentual de remuneração dessa hora-extra sob a forma “dinheiro” (28,8%); importante percentual de trabalhadores sem folga semanal (10,6% trabalham os sete dias semanais); existên-


cia de doenças ocupacionais, basicamente cansaço físico e mental; e baixo grau de sindicalização (41,3% não são sindicalizados). A realidade da precariedade vigente nessas condições e relações de trabalho se acentua fortemente nos municípios periféricos (Ceará-Mirim, Extremoz, Parnamirim, Nísia Floresta e, em menor escala, Tibau do Sul). No espaço natalense vigoram as condições laborais mais atrativas, sobretudo devido à complexidade do espaço turístico vigente e as maiores possibilidades de inserção dos trabalhadores nos benefícios da atividade. Essa afirmação ratifica o construído pela hipótese da pesquisa, já que a assimetria teve como agente indutor o Estado ao privilegiar Natal como espaço principal. O Estado reforça a desigualdade existente previamente. Sintetizando o apresentado, o PRODETUR/RN I, ao reforçar o nível de centralidade natalense frente a sua hinterlândia subsidiária, contribuiu robustamente para a não inserção dos municípios periféricos na dinâmica luminosa do turismo potiguar, restando a estes, genericamente, a condição de subprodutos do turismo natalense e a visível baixa atratividade da ocupação laboral turística. Não há outra nomenclatura para esta análise que não seja a precarização das condições e relações de trabalho, em maior escala, nos espaços deprimidos. Distribuição e repercussão espacial dos empregos turísticos potiguares a) Natal: o produto turístico central A centralidade natalense no espaço geográfico potiguar emerge, simultaneamente, à ocupação da capitania do Rio Grande, ainda no século XVI, na medida em que o ralo povoamento inicial e as estruturas de administração deste espaço se concentravam no embrião da atual urbe, fundamentalmente em razão da localização litorânea (menores adversidades naturais, posição estratégica mili-


tar e solo circundante de melhor produtividade). Essa centralidade, mesmo compartilhada em algum período de tempo com a produção agropecuária mossoroense, historicamente se verifica em Natal, principalmente por abrigar o aparato político-burocrático do estado e, recentemente (três últimas décadas), suas atividades mais modernas, onde o turismo possibilitou ao espaço uma nova funcionalidade econômica, juntamente com diversas atividades terciárias e o setor da construção civil. Felipe (2002, p. 233) é sucinto ao afirmar que no Rio Grande do Norte os detentores do poder, enquanto sujeitos ativos da dominação, submetem-se à lógica global do capital e criam as condições para a concentração de investimentos em Natal e seu entorno. Esse autor exemplifica tal afirmação com dados sobre a reforma do Aeroporto Internacional Augusto Severo, a urbanização do bairro de Ponta Negra, a construção do complexo viário do estádio de futebol Machadão etc., sem falar dos investimentos também direcionados à cidade em décadas recentes (pós 1980): Via Costeira, Rota do Sol etc. Todos esses investimentos foram efetivados na capital “em prol do RN”. Furtado (2005), em apreciação mais geral, afirma: O mesmo se verificou nas políticas de turismo, que privilegiaram aqueles locais onde a resposta ao capital privado era mais imediata, concentrando maior infraestrutura em determinadas cidades do país com tradição na atividade e relegando a um plano secundário locais que, embora possuidores de potencialidades, careciam de investimentos mais pesados para responder à racional visão de lucro que os empreendedores da iniciativa privada demandavam. (FURTADO, 2005, p. 60).

O PRODETUR/RN I, enquanto política pública, não foge a regra e segue tal tendência intrínseca à natureza do Estado capitalista, ou seja, parafraseando Marx: perpetuar a dominação de classes. Em outras palavras, o planejamento no modo de produção capitalista expressa os interesses da classe hegemônica e objetiva “ocultar/


amenizar” os conflitos sociais. Francisco de Oliveira (1981, p. 23, grifo nosso) é enfático ao dizer que “o planejamento não é encarado, portanto, apenas como uma técnica de alocação de recursos, em qualquer nível, nem como uma panaceia [remédio para todos os males]; escapa, pois, [...] a discussão muitas vezes bizantina [tola] sobre a neutralidade do planejamento e seu oposto, sobre seu caráter revolucionário”. Interpretando Oliveira (1981, p. 24), ao sintetizar o planejamento no capitalismo como “a forma de racionalização da reprodução ampliada do capital”, tem-se que as políticas públicas de turismo não são políticas destinadas à “massa da população” e sim ao capital. Uma vez que tais ações do PRODETUR/RN focalizam genericamente suas principais estratégias em Natal (força centrípeta que busca vantagens locacionais), e que destina para os demais municípios obras de peso inferior (basicamente estradas), fica evidente que, ao contrário de seu discurso social e democrático17, o objetivo de tal programa foi beneficiar o espaço turístico natalense (a elite política e o capital não estão na periferia). Esse beneficiamento deuse mediante a inclusão dos espaços secundários (litoral de Parnamirim, Ceará-Mirim, Extremoz, Nísia Floresta e Tibau do Sul) como apêndices do turismo natalense, ampliando, assim, a dependência desses espaços deprimidos frente à modernidade do espaço turístico de Natal. Essa força centrípeta que atrai investimentos para dadas localidades é proporcionada pelas vantagens locacionais de cada espaço (vantagens criadas e naturais). Cabe ao Estado tentar minimizar essas vantagens locacionais. No entanto, o que vem se observando é 17 “O Governo do Estado se propõe a dar continuidade ao processo de desenvolvimento econômico e social de toda a região impactada pelos investimentos que provocaram o início desse processo, envolvendo-se todos os municípios beneficiados com investimentos públicos, no sentido de proporcionar crescimento equilibrado, harmônico e sustentável” (PLANO DE DESENVOLVIMENTO INTEGRADO DO TURISMO SUSTENTÁVEL DO PÓLO COSTA DAS DUNAS, ca. 2002, grifo nosso).


que o Estado, contrariamente, tende a reforçar essas desigualdades, via seletividade espacial em suas ações. Além dos efeitos diretos em Natal produzidos por essas ações turísticas, há ainda a movimentação correlata de outros setores, principalmente o da produção imobiliária. De acordo com Felipe, “essa concentração de recursos, que chega também a estrutura urbana da cidade de Natal, cria condições para dinamizar a construção civil que, nesses últimos anos, verticaliza o crescimento da cidade; assim como o comércio, que se moderniza com os centros comerciais, com os shoppings e as novas redes de supermercados” (FELIPE, 2002, p. 234). Fonseca, Petit e Ferreira (2002, grifo nosso) mostram em seu estudo que os investimentos do PRODETUR-RN alocados para a ampliação e consolidação de uma rede viária nas áreas interiores (notadamente em Parnamirim, área conurbada com Natal) não se justificam pela atividade turística, inexistente na área. Para elas, essa constatação evidencia uma outra questão: Mais do que dar suporte à atividade turística, a aplicação de recursos em infraestrutura ocorreu pela necessidade de criação de espaços qualificados para a expansão do parque habitacional de Natal e dos investimentos dos produtores imobiliários, destinados a uma demanda formada por segmentos de renda diferenciada [...] A proximidade com a capital, os menores preços praticados pelo mercado imobiliário, as menores restrições de uso e ocupação do solo, aliado aos investimentos ocorridos no sistema viário de Parnamirim, explicam o incremento da produção imobiliária nesse município ao longo dos anos noventa. (FONSECA; PETIT; FERREIRA, 2002).

Diante deste quadro de seletividade espacial, isto é, segundo Corrêa (2003), do homem (Estado) decidir “sobre um determinado lugar segundo este apresente atributos julgados de interesse de acordo com os diversos projetos estabelecidos”, Natal emerge com tais predicados julgados como economicamente viáveis. Em contrapartida,


a marginalização espacial é um resultado matematicamente lógico: periferizam-se aqueles espaços em que as formas-conteúdo não são passíveis, de imediato, de valorização frente ao mercado. Para Felipe: Os lugares do Rio Grande do Norte, principalmente as cidades sertanejas, tanto no Seridó, como na região central e na região oeste do estado, têm pela frente uma luta gigantesca para se afirmar como lugar e como morada de uma sociedade particular, pois irão se confrontar com a lógica política – que é também econômica, que concentra capitais via políticas e programas governamentais em Natal e na sua precoce área metropolitana [...] que exclui os lugares que não se modernizam ou que não têm uma mercadoria para ser vendida nesse mercado global. (FELIPE, 2002, p. 234-235).

Sendo assim, uma luta - inexistente ao olhar imediato e imbuído em ideologias do “desenvolvimento a qualquer preço” (CRUZ, 1999) - acentuadamente desigual se manifesta entre os espaços dinâmicos (legais) e os periféricos (ilegais), numa conjuntura em que a própria reprodução da periferia é acentuadamente dependente da ação social do Estado. Este, por sua vez, abstém-se de suas funções sociais para conduzir a viabilidade de interesses de grupos que no turismo vêm auferindo riquezas, gerando, por conseguinte, novas dependências via marginalização espacial. Essas dependências se legitimam através desta nova racionalidade espacial, em que alguns espaços se submetem e são controlados pelos espaços hegemônicos. Quanto à reprodução social dos trabalhadores diretamente ocupados na atividade, a mesma dicotomia centro/periferia, embora numa discrepância reduzida, vigora no quadro atual das condições e relações de trabalho do turismo norte-rio-grandense. Considera-se uma “discrepância reduzida” em razão de que Natal, por ter um espaço materialmente racionalizado para a atividade, hipoteticamente deveria apresentar um grau de precarização das relações de trabalho significativamente menor. No entanto, o que se observa nos dados


da pesquisa é uma precariedade geral, mesmo Natal possuindo algumas singularidades que tornam o emprego turístico em seu espaço mais atrativo. Racional e quantitativamente os empregos se concentram em Natal: por ser o espaço privilegiado pelo turismo no RN, contar com a melhor infraestrutura/serviços e também por ter mais ampla oferta de mão de obra. Tal constatação é concreta e os dados colhidos e fontes secundárias, apesar de serem limitadas, oferecem contribuições à realidade da atividade. Sob o aspecto quantitativo, a distribuição espacial do emprego turístico nos municípios analisados se concentra em Natal, tendo Tibau do Sul com uma parcela, em termos relativos locais, importante no nível de ocupação. Por outro lado, referindo-se as variáveis vigentes nas condições e relações de trabalho, percebe-se uma diferenciação do emprego turístico natalense em relação aos demais municípios. O emprego turístico natalense em vigor apresenta remuneração menos abjeta; qualificação profissional mais expressiva; filiação sindical menos desconexa; política empresarial de benefícios mais presente; jornada de trabalho, embora ampla, menos distante da CLT etc. Todavia, e isso é o fundamental, estes ainda são bastante precários, em conformidade à tendência estrutural vigente no setor em nível global. Mesmo assim, o avanço da materialidade do espaço turístico de Natal contribui para uma maior inserção e reprodução do trabalhador na atividade, embora não seja possível tornar o trabalho mais sedutor nas dimensões alardeadas. b) Periferização dos demais municípios turísticos A consequência mais límpida deste processo é a periferização dos municípios secundarizados pelo PRODETUR/RN I. Na medida em que a ação da política beneficia Natal em detrimento dos demais espaços contemplados pelo Programa, atribui a estes uma menor capacidade de inserção no quadro de desenvolvimento


turístico do Estado, gerando novas e acentuando pretéritas dependências. Não se pode esperar, conforme acredita o poder público, que os benefícios se estendam a periferia involuntariamente. O setor privado necessita de vantagens locacionais e estas não se dão, salvo raros casos, de forma espontânea. No âmbito discursivo, o PRODETUR/RN ostenta constantemente sobre a necessidade de interiorizar o turismo no estado, através de ações estruturais e de qualificação da mão de obra. O discurso democrático se apresenta como a “bandeira” em prol da política de turismo, fazendo lembrar a ideia de pátria expressa por Carlos Vainer (2000). Tais práticas discursivas exploram a questão da busca do “equilíbrio” entre os municípios e em suas mensagens de “bem-comum” alardeiam retóricas quase sempre consensuais entre a população. O mais grave disso é que tais retóricas produzidas pelas classes dirigentes são também incorporadas por muitos agentes da sociedade civil, dentre eles organizações não-governamentais, cursos de turismo (inclusive superiores), associações etc. O sacrifício do intelecto weberiano parece imperar naqueles que “atuam” no turismo potiguar! Pinheiro afirma que a organização do espaço dá-se mediante a organização internacional do trabalho que gerou e continua gerando espaços diferenciados. A autora é enfática ao dizer que: As características de dependência desses espaços determinam uma hierarquia espacial, que no nosso caso é verdadeiramente indesejável, pois se de um lado temos espaços que lograram vantagens locacionais ao capital e este por sua vez acumulou-se gerando dinamismo econômico e social, já de outro lado encontramos espaços periféricos dos primeiros, que nada mais são do que fornecedores de mão de obra e matérias-primas ao dinamismo econômico que fora engendrado. (PINHEIRO, [1970?], p. 53).

Posto assim, com a centralização de Natal, dada pelo logro das vantagens locacionais induzidas pelo PRODETUR/RN I, os


espaços litorâneos de Extremoz, Ceará-Mirim, Parnamirim, Nísia Floresta e, em menor escala, Tibau do Sul (uma dessas “exceções”), passam a ser apêndices demandantes de “matérias-primas e mão de obra” para a capital do Estado, uma vez que Natal já possui estas vantagens locacionais e a política de turismo contribuiu para reforçá-las. Esses espaços, já deprimidos turisticamente em suas formas-conteúdo, agora são responsáveis por suprir as deficiências do espaço turístico natalense, efetivamente através do movimento oscilante e efêmero do turista de Natal para a área de “integração” do PRODETUR/RN I. Em termos concretos, o turista, em muitos casos, geralmente movimenta a economia natalense (hotelaria, agência de receptivo, bares, restaurantes, guias, transportes etc.) e, quando ocioso ou curioso, visita os atrativos dos espaços periféricos circundantes. A economia dos serviços de passeio de buggy-turismo muito bem exemplifica esta realidade, resultado do deslocamento de turistas dos hotéis de Ponta Negra/Via Costeira para as dunas de Genipabu, Pitangui e adjacências. Desta forma, quais os benefícios advindos do turismo potiguar para a periferia? Gastos ínfimos na limitada cadeia de serviços destes espaços marginais!? A coordenadora técnica da SETUR/RN (informação verbal)18 afirma que se não fossem os investimentos do PRODETUR/RN I, haveria muito menos empregos caso as obras estruturais não tivessem ocorrido. Ora, concordamos que estes poucos e precários empregos melhoram pontualmente a vida de x ou y. No entanto, o custo social desta política pública é altíssimo, tendo em vista o montante de recursos alocados para a requalificação (desigual) desses espaços. Quanto a isso concordamos com um dos entrevistados, quando afirma (informação verbal)19 que “há uma inserção dessa população [local] nesses equipamentos [turísticos], mas [que] não é aquela que a gente estuda nos livros”. Concernente às condições e relações de trabalho, há uma acentuação na precariedade dos empregos vigentes no setor, sobre18 Informação fornecida pela coordenadora técnica da SETUR/RN – 2006. 19 Informação fornecida por docente de Curso Superior em Turismo.


tudo nestes espaços onde o grau de dinamicidade da atividade é menor, em especial, o litoral de Ceará-Mirim, Extremoz, Parnamirim e Nísia Floresta. Nestes, há uma menor oferta de “emprego” e as variáveis aqui analisadas não revelam um quadro otimista para as populações locais. A pertinência do modelo de desenvolvimento turístico adotado pelo poder público potiguar: um breve desfecho Diante das considerações expostas, uma inquietante questão emerge como sequela da aludida política pública de turismo, ou seja: qual foi a pertinência social do PRODETUR/RN I para os espaços secundarizados pelas ações do programa e em que medida o mesmo contribuiu para a redução das desigualdades entre os espaços? Concordamos com a afirmação de Pinheiro ([1970?], p. 66) quando é dito que “caso trouxéssemos um histórico sobre a atuação do Estado concernente ao planejamento [...] verificaríamos que em todas as oportunidades a acumulação do capital foi privilegiada. Portanto, o que interessa é reiterar sempre que possível o caráter antissocial do planejamento na vigência do sistema econômico em que vivemos”. Por um lado, então, historicamente, vale lembrar a contundente teoria do desenvolvimento desigual, ampliada20 pela noção de desigual e combinada por Leon Trotski (BOTTOMORE, 2001). Para Bottomore, a lei do desenvolvimento desigual significa que países, sociedades, nações, (espaços, dizemos) etc., desenvolvem-se segundo ritmos diferentes, “de tal modo que, em certos casos, os que começam com uma 20 “Embora países relativamente atrasados, sob a forma de capitalismo do laissezfaire, tenham atravessado, em linhas gerais, fases de desenvolvimento semelhantes às atravessadas pelos países adiantados algumas décadas antes, isso já não pode ocorrer sob o imperialismo. Em lugar do crescimento orgânico, a maior parte dos países menos desenvolvidos passou por um processo de combinação de desenvolvimento e subdesenvolvimento. As economias desses países aparecem como uma combinação de um setor moderno e [...] um setor tradicional”. (BOTTOMORE, 2001, p. 99, grifos do autor).


vantagem sobre os outros podem aumentar essa vantagem, ao passo que, em outros casos, por força dessas mesmas diferenças de ritmo de desenvolvimento, os que haviam ficado para trás podem alcançar e ultrapassar os que dispunham de vantagem inicial” (2001, p. 98). Sendo assim, de acordo com o próprio Trotski, “a desigualdade do desenvolvimento histórico é [...] desigual para os diversos estados e continentes”, onde as condições geográficas e históricas são determinantes, havendo, portanto, uma medida de desigualdade para cada espaço (TROTSKI, 1981, p. 191). Assim se manifesta o autor diante da teoria: Antes de tudo, seria certo dizer que toda a história da humanidade se desenvolve sob o signo do desenvolvimento desigual. O capitalismo já encontra os diversos setores da humanidade em graus diversos de evolução, cada um com suas próprias contradições internas profundas [...] É apenas gradualmente que [o capitalismo] consegue dominar a desigualdade que herdou, para rompê-la e modificá-la com seus métodos e com seus sistemas [...] Mas aproximando os vários países e equiparando os níveis de seu desenvolvimento, o capitalismo opera com seus métodos, isto é, com métodos anárquicos, que minam continuamente o seu próprio trabalho, opondo um país a outro e um setor da indústria a outro, favorecendo o desenvolvimento de certas partes da economia mundial, freando e fazendo regredir outras. Só a combinação destas duas tendências fundamentais, centrípeta e centrífuga, ambas consequências da própria natureza do capitalismo, explica a conexão viva do processo histórico. (TROTSKI, 1981, p. 194-195, grifo do autor).

Para Michael Löwi (1995, p. 73), a “teoria do desenvolvimento desigual e combinado é interessante não apenas por sua contribuição à reflexão sobre o imperialismo, mas também como uma das tentativas mais significativas de romper com o evolucionismo, a ideologia do progresso linear e o euro-centrismo [...] Trata-se pro-


vavelmente da maior contribuição21 de Trotsky à teoria marxista”. Problematizando sobre Trotski, Löwi (1995) cita que os diferentes estágios de desenvolvimento não estão simplesmente um ao lado do outro, numa espécie de coexistência congelada, mas se articulam; combinam-se num processo de desenvolvimento capitalista criado pela união das condições locais (atrasadas) com as condições gerais (avançadas), formando uma amálgama social cuja natureza não pode ser definida pela busca de lugares comuns históricos, mas somente por meio de uma análise com base materialista. Outro interessado pelo tema do desenvolvimento desigual é Neil Smith (1988), ao estabelecer as bases gerais para a diferenciação espacial no capitalismo e, especificamente, a partir de sua base econômica, já que para ele “quaisquer que sejam as razões para a desigualdade pré-capitalista, elas são bastante diferentes daquelas pertinentes ao capitalismo”. Smith menciona que a divisão do trabalho na sociedade é a base histórica da diferenciação espacial de níveis e condições de desenvolvimento (1988, p. 152). Afirma ainda que na maior parte da História humana, a divisão do trabalho esteve baseada na diferenciação das condições naturais, mas que com o desenvolvimento das forças produtivas sob o capitalismo, a lógica que preside a localização geográfica afasta-se cada vez mais de tais condições naturais (1988, p. 157). Avançando na discussão, Smith argumenta que a diferenciação do espaço geográfico, chamada por ele de divisão territorial do trabalho, deriva da divisão social do trabalho mais geral (1988, p. 159). Desta forma, a diferenciação geográfica do mundo capitalista ocorre em duas instâncias: Na escala dos capitais individuais, o processo de diferenciação é bastante direto; o capital é concentrado e cen21 Citando Ernest Mandel, Löwi (1995, p. 79) menciona que “a ideia do desenvolvimento desigual e combinado do capitalismo mundial é — com a exceção da concepção de Marx sobre a determinação econômica da luta de classes — a tese marxista mais amplamente assimilada desde há meio século, mesmo que raramente seja feita referência ao seu autor. Esta influência — direta ou difusa — exerceu-se particularmente no domínio da economia política, mas também, de forma mais limitada, em outras ciências sociais, como a história, a sociologia ou a antropologia”.


tralizado em alguns lugares em detrimento de outros. Na escala da divisão particular do trabalho – a divisão da economia em setores específicos – a diferenciação do espaço geográfico é menos direta. Ela ocorre de maneira cíclica de acordo com a igualização da taxa de lucro dentro de dado setor, e com o movimento resultante do capital entre os setores, daqueles com uma baixa taxa de lucros para aquelas com uma taxa de lucro mais alta. (SMITH, 1988, p. 168).

Paralela a essa tendência à diferenciação locacional dos capitais, há uma tendência oposta, ou seja, a igualização das condições de produção (embora seja continuamente frustrada pela diferenciação do espaço geográfico). Marx, citado por Smith (1988), reconhece que o capital é um nivelador. Essa generalização, afirma Smith parafraseando Marx, é provocada pela observação de que o capital exige em cada esfera da produção igualdade nas condições de exploração do trabalho. Assim, ocorre uma tendência para a igualização das condições de produção e do nível de desenvolvimento das forças produtivas. Smith (1998, p. 170) argumenta que na “constante oposição à tendência para a diferenciação, a tendência para a igualização e a contradição resultante são os fatores determinantes mais concretos do desenvolvimento desigual”, expressa pelo desenvolvimento tecnológico que, por sua vez, é acentuado pela competição econômica. Nesse ponto, ele assim se manifesta: A competição é o fluxo social que generaliza a necessidade de inovação por toda a economia. Supondo condições de trabalho semelhantes, novas técnicas adotadas por um capital devem ser igualadas ou superadas por outros capitais no mesmo setor, se quiserem sobreviver no mercado. (SMITH, 1988, p. 171).

Destarte, novamente nas palavras de Marx citado em Smith (1988, p. 182, grifo nosso): “se considerarmos o elemento material da acumulação, ela significa apenas que a divisão do trabalho exige


a concentração dos meios de subsistência e dos meios de trabalho em pontos particulares, ao passo que anteriormente estavam espalhados e dispersos”, enquanto que no nível dos capitais individuais, a concentração e a centralização do capital oferecem o impulso central para a diferenciação geográfica. Visualiza-se, consequentemente, a própria natureza desigual que vivenciam os espaços no modo de produção capitalista, dada pelo fundamento da reprodução ampliada do capital via busca por vantagens competitivas. Por outro lado, porém indissociável do primeiro, há um ponto nevrálgico da dominação no caráter elitista da política profissional que limita o resultado da ação do Estado. Tal afirmação repousa no fato de que o planejamento está ligado ao Estado e, por conseguinte, a interesses particulares. Assim sendo, o PRODETUR/RN, na medida em que se insere nesse contexto geral do capitalismo periférico potiguar (misto de modernidade e tradicionalismo na esfera produtiva22), enquadrase no movimento desigual de valorização dos espaços, desigualdade esta que não é neutra e que encobre uma racionalidade empiricamente perceptível nos dados obtidos em campo: a reprodução do capital via concentração de recursos públicos em Natal. Os empregos foram gerados em grande parte decorrente dessa política pública de turismo. No entanto, não com o ritmo e amplitude do discursado pelos apologistas. Diante do cenário exposto, a ação do PRODETUR/RN I via Estado de mal-estar social - como denomina Francisco de Oliveira - se consolidou através do que chamamos de disfunção pública, ou seja, quando a mobilidade de recursos públicos, que deveriam retornar a população por meio de seus anseios mais urgentes, é transferida (deslocada) visando o beneficiamento do capital. De tal modo, evitando fatalismo e não partindo da premissa que as coisas vão-se reverter (conforme se percebeu na fala dos entrevistados do poder público), concordamos com Mattoso e Pochmann 22 Modernidade material da atividade e tradicionalismo nas relações de trabalho; diferenciação espacial entre os espaços.


(1995) quando afirmam que “o enfrentamento dos problemas que afetam o mundo do trabalho (desemprego, precarização, reduções salariais, elevação da jornada de trabalho) dificilmente poderá ser realizado através de políticas limitadas ao mercado de trabalho, sejam elas de maior ou menor desregulamentação”. Em outras palavras, são necessárias políticas públicas reguladoras, em um contexto de crescimento econômico mais acentuado, pautadas no melhoramento material das condições de vida da população – infraestrutura de saneamento, habitação, transportes, educação, saúde etc. O PRODETUR/RN não partiu dessa premissa e o resultado foi o observado: criação de postos de trabalho23, embora marcadamente indiretos (induzidos pela atividade da construção civil, em especial, devido ao boom da produção imobiliária), precários e informais. Dentre os diversos pontos negativos do Programa assinala24 dos em sua primeira versão, há um sine qua non se poderia encerrar e avaliar esta política pública, isto é, a falta de compromisso com a população local e o planejamento estatal dirigido ao visitante – com fins, é claro, da reprodução do capital. A isso denominamos de planejamento centrípeto do capital, uma vez que os anseios mais urgentes do residente são limitados frente às aspirações mais imperativas do capitalista, restringindo os benefícios da atividade para alguns espaços luminosos e reforçando as desigualdades espaciais. Desta forma, a pertinência social do PRODETUR/RN é seletiva e materializada pelo poder público. A título de desfecho, aliás, concorda-se com Pinheiro (1970?], p. 66) quando afirma que “é preciso antes de tudo acreditar no pro23 Tendo em vista a realidade local deprimida concernente ao desemprego e condições de vida. 24 Em entrevista concedida, o Subsecretário Estadual de Turismo e representante do PRODETUR/RN apontou algumas deficiências do Programa em sua primeira versão, dentre elas: 1. Simplesmente se implantando infraestrutura o turismo não acontece naturalmente; 2. Faltou na 1ª versão a questão do envolvimento e conscientização da população [que para ele está sendo realizado na 2ª versão]; 3. A coordenação à distância do Programa, ou seja, a partir do Banco e o Ministério do Turismo. Outro entrevistado (docente UnP) também assinalou alguns pontos negativos. Dentre eles: as obras aconteceram antes dos planos diretores; o fortalecimento institucional não foi o que deveria ser; e a questão ambiental que não foi totalmente observada.


cesso social e sentir que tal processo trará à tona as verdadeiras aspirações sociais que deverão criar novas estruturas e um modo de vida mais condizente com a natureza humana”. Assim colocado, pensar alternativas para além do capital, conforme expressão de István Mészáros25, capazes de empreender o grande desafio de “forjar novas formas de atuação capazes de articular intimamente as lutas sociais, eliminando a separação entre ação econômica e ação político-parlamentar” (ANTUNES, 2002, b), pode se constituir numa alternativa ao poderio da relação Estado/Capital, pois: O processo de autoemancipação do trabalho não pode restringir-se ao âmbito da política. Isto porque o Estado moderno é entendido por Mészáros como uma estrutura política compreensiva de mando do capital, um prérequisito para a conversão do capital num sistema dotado de viabilidade para a sua reprodução, expressando um momento constitutivo da própria materialidade do capital. (ANTUNES, 2002, b).

O PRODETUR, concordando-se parcialmente com Telles (2005), “é [...] um instrumento alimentador [no] processo de desenvolvimento, todavia, insuficientemente para viabilizar o crescimento e as expectativas estabelecidas anteriormente. Neste sentido, além do uso racional dos recursos públicos alocados ao turismo, depende da capacidade de investimentos do setor privado, tanto na ampliação da oferta como na atração da demanda turística agregada”. Esta dependência do setor privado é um fator limitante no conteúdo de seus objetivos, além da questão da seletividade espacial de suas ações se concentrarem em Natal. Acrescentemos, ainda, o problema da precariedade dos postos de trabalho em nível ínfimo de remuneração. Nas palavras do entrevistado representante dos trabalhadores26, “têm algumas empresas que oferecem algum tipo de condições [de 25 Resenha empreendida por ANTUNES, Ricardo. Resenha de Para Além do Capital, de István Mészáros. Revista Espaço Acadêmico. Ano II, nº 14, julho de 2002. b 26 Informação fornecida pelo representante do SECHS/RN – 2006.


trabalho] mais humanas, apesar de serem pouquíssimas [expressivas em Natal]”. Achar que a precariedade desses empregos é algo efêmero é rejeitar as características fundantes do trabalho em turismo (sazonalidade, produto supérfluo, demanda elástica etc.). A explicação dada pelo representante estadual do PRODETUR/RN, de que, por a atividade ser recente e pela consequente falta de organização do “lado mais fraco” – os trabalhadores – o patronato teria maiores condições para se organizar, é correta e pertinente. No entanto, considerar que isso é passageiro e que o jogo vai se alterar/equilibrar evidencia uma pobreza analítica bastante acentuada, uma vez que as regras do jogo são ditadas pelo capital flexível e suas formas de gerenciamento da força de trabalho. Não querendo perpetrar nenhum pessimismo e nem ambicionando expor “o fim da história”, seria uma inversão estrutural a priori difícil de se conceber no âmbito do modo de produção capitalista atual. Fora essa questão, geograficamente, até mesmo nos países desenvolvidos o trabalho em turismo apresenta grande precariedade, conforme apontaram os dados da OMT (1998). Negar estas constatações é desconsiderar todo o conhecimento produzido pelas ciências sociais longo de suas distintas trajetórias. E esse indeferimento produz males consideráveis, tendo em vista que novas versões desta e de outras políticas de turismo estão em andamento e a surgir.

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O REVERSO DA INTERIORIZAÇÃO: ANÁLISE DO TURISMO EM AQUIRAZ/CE

Michele de Sousa

O município de Aquiraz está inserido na Região Metropolitana de Fortaleza, na costa leste do Estado do Ceará. Possui uma área territorial de 481 km2, sendo 30 km de litoral, distante aproximadamente 26 km da capital. Do ponto de vista histórico e cultural, detém várias edificações do início do século passado e conserva atividades tradicionais como a pesca, artesanato, engenho e casas de farinha; porém, este município é mais conhecido por seu conjunto de belas praias. Os dados apresentados neste artigo são oriundos de pesquisa realizada no biênio 2004/2005 e pretendem mostrar como o turismo tem se desenvolvido em uma localidade que recebe um dos maiores fluxos de turistas que chegam ao Ceará via Fortaleza, segundo indicadores turísticos apresentados pela Secretaria de Turismo do Estado do Ceará. A “invenção” do turismo no Estado do Ceará A atividade turística no Ceará é recente. Seu fomento teve início na década de 1970 com a criação da Empresa Cearense de Turismo S/A – Emcetur, no ano de 1971, com o objetivo fomentar e gerir o turismo no Estado.


Apesar da inexperiência na administração do turismo pelo referido órgão, sua criação estava em consonância com o começo de declínio da considerada época do “milagre econômico brasileiro” 27 e a busca de opções de desenvolvimento econômico, ocorrendo, assim, conforme Benevides (1998), o “(re)descobrimento do Nordeste pelo turismo, concebido como espaço de atratividade e de potencialidades turísticas”. Em 1979, o governo Virgílio Távora desenvolveu o primeiro Plano Integrado de Desenvolvimento Turístico do Estado do Ceará, o qual fez um diagnóstico do Estado e dividiu o Ceará em seis regiões e cinco centros turísticos, abrangendo trinta e oito municípios. Foi o governo Tasso Jereissati, no entanto, no final da década de 1980, que passou a considerar em seu Plano de Mudanças a atividade turística como associada ao desenvolvimento e crescimento econômico cearense (CORIOLANO, 1998). Assim, em 1989, o Programa de Desenvolvimento do Turismo em Área Prioritária do Litoral do Ceará, o PRODETURIS, zoneou o litoral em quatro regiões turísticas, sinalizando uma proposta de planejamento para o desenvolvimento turístico do litoral cearense. Esse zoneamento serviu de base ao Programa de Ação para o Desenvolvimento do Turismo no Nordeste - PRODETUR-NE no Estado do Ceará (PRODETUR/CE), em 1992; que, no primeiro momento, atendeu a costa oeste do Estado em virtude da constatação de maior vulnerabilidade ambiental e de acelerado processo de crescimento populacional. Em 1995, foi elaborado o Plano de Desenvolvimento Sustentável do Estado do Ceará, no qual estava inserido o turismo, destacado como um dos segmentos de maior dinamismo na formação do PIB do Estado (CEARÁ, 1995). Para desenvolver a atividade turística, ainda em 1995, foi criada a Secretaria de Turismo do Estado do Ceará – SETUR-CE e com ela uma política que planejava 27 Trata-se do período entre os anos de 1967 e 1974, em que o Brasil cresceu economicamente em torno de 10% ao ano.


este segmento para um período de longo prazo (1995 a 2020). A missão seria transformar o Ceará num destino turístico consolidado, mediante basicamente o marketing promocional, implantação de infraestrutura geral e turística – particularmente - qualificação de mão de obra e captação de negócios e investimentos turísticos (CEARÁ, 1998). Para isto, concorreu a criação do novo imaginário cearense, diferente do existente até então. O sol, antes das inclementes secas que causavam sérios transtornos à população, passa a ser o sol do verão que não tem fim nas praias cearenses, o sol da “Terra da Luz”. Com efeito, essa nova “metáfora do sol” alcançou êxito e colocou Fortaleza, associada a um turismo de “sol e mar”, como uma das cidades mais visitadas no Brasil. Teles (2006) aponta que o turismo no Ceará, no período de 1995 a 2005, apresentou um incremento do fluxo turístico em torno de 11,7% ao ano, sendo Fortaleza o portão de entrada e principal destino dos visitantes. Os esforços da administração pública durante todo esse período, no entanto, foram no intuito de descentralizar este fluxo e as receitas oriundas dos gastos efetuados pelos turistas para outros municípios do Estado, promovendo assim, um processo de interiorização do turismo. As pesquisas da secretaria de turismo do Estado revelam que os esforços empreendidos obtiveram êxito levando em consideração que entre os anos de 1998 e 2005 aproximadamente 51,4 % dos visitantes deslocaram-se para outros municípios, sendo a preferência desses as localidades litorâneas (TELES, 2006). Dentre as localidades mais visitadas, de acordo com os Indicadores Turísticos do Ceará, entre os anos de 1995 a 2006, estão os seguintes municípios: Caucaia (Praia do Cumbuco), Aracati (Praia de Canoa Quebrada), Beberibe (Praia de Morro Branco), Jijoca de Jericoacoara (Praia de Jericoacoara) e Aquiraz (Praia do Porto das Dunas).


A descoberta do litoral cearense: as práticas marítimas em Aquiraz A partir do século XX, Macedo (2002) chama a atenção para a mudança na ocupação da zona costeira antes de caráter urbano, produtivo e agrícola e, agora, destinada para o veraneio e o turismo de férias. Nesse sentido, Moraes (1999) também aponta como vetores de ocupação mais recentes os processos de urbanização, industrialização e exploração turística. A zona litorânea, historicamente, foi ocupada por pobres e pescadores. As pessoas das classes abastadas, que tinham forte ligação com o sertão da cultura algodoeira, se estabeleciam em Fortaleza no centro da cidade, longe do mar. Por meio de um processo cultural com origem na Europa, no entanto, iniciou-se, primeiramente em Fortaleza, uma relação diferente das pessoas com o mar, antes ocupado por pobres, pescadores, pelo porto e as relações de troca, passou a ser também local de práticas terapêuticas e posteriormente cenário para a prática do lazer e até mesmo da habitação. A respeito disso, Dantas (2002) afirma que [...] as novas práticas marítimas, representativas da incorporação dos hábitos europeus pelas referidas classes, suscitam tímido movimento de urbanização das zonas de praia. Movimento iniciado nos anos 1920-1930 na praia de Iracema, que se amplia, pouco a pouco, até os anos de 1970, primeiro com a urbanização da praia do Meireles, segundo com a incorporação gradual, pelo veraneio, das praias dos municípios vizinhos de Fortaleza. (DANTAS, 2002, p. 46).

Assim, após 1970, a cidade de Fortaleza volta-se para o mar, ocorrendo, segundo Dantas (2002), a construção de calçadões e pólos de lazer nas zonas de praia para atender a demanda interna de lazer para os habitantes e a procura externa com a incorporação gradativa da atividade turística, refletindo-se na urbanização das praias


de Iracema, Meireles, construção do calçadão da avenida Beira-Mar e da Praia do Futuro, para citar as mais conhecidas. Com o advento das vias urbanas e ônibus, esses locais passaram a ser frequentados também pelos pobres, deixando insatisfeita a classe mais abastada. Desta maneira, “os amantes da praia, não satisfeitos com o estado das zonas de praia fortalezense – poluídas ou ocupadas por atores indesejáveis - podem, após a chegada do carro, utilizar as vias de circulação para se deslocar às praias distantes de Fortaleza” (DANTAS, 2002, p. 77). É neste momento que Aquiraz se insere no processo de uso do seu espaço para lazer, incluindo a apropriação para o veraneio e, posteriormente, para o turismo. Lima (2002) avoca esse fato, mais claramente, quando argumenta que [...] a prática do veranismo, a valorização do morar a beira-mar e a incorporação dos espaços à dinâmica turística, de maior expressão, inicialmente em Fortaleza, levaram a incorporação de vários lugares da zona costeira cearense, começando com algumas localidades praianas em municípios vizinhos (Iparana e Icaraí em Caucaia, Prainha em Aquiraz) e, em seguida, se expandido para localidades em municípios mais distantes (Iguape em Aquiraz, Cumbuco em Caucaia) [...] em alguns pontos determinados surgiram enclaves turísticos, particularizados pela presença do turista que deseja manter-se protegido e distante da realidade local das comunidades. É o que ocorre quanto aos empreendimentos turísticos do tipo Hotel Praia das Fontes (Beberibe), ‘Beach Park’ e ‘Aquaville Resort’ (Aquiraz), ‘Marina Park’ (Fortaleza) e ‘Cidade Turística de Porto Canoa’ (Aracati). (LIMA, 2002, p. 67 - 68).

O espaço litorâneo passa a se inserir numa nova racionalidade, relacionada ao consumo, onde não apenas o valor de uso (atende um desejo ou necessidade particular) é importante, mas também o valor de troca (objeto de barganha para conseguir outras mercadorias) (HARVEY, 2004), ou seja, é a transformação do lugar em mercadoria na


medida em que “a apropriação do espaço e os modos de uso tendem a se subordinar cada vez mais ao mercado” (CARLOS, 2002). Moraes (1999) entende que “o valor dos lugares no litoral é mais elevado do que na hinterlândia, o que acaba por condicionar um direcionamento de seus usos” e em função disto esses lugares “ficam disponíveis para utilizações de maior rentabilidade no uso do solo”. Moraes (1999, p.19) grifa, ainda, que essa interação com o mar proporciona alguns usos quase exclusivos do litoral, sendo identificado atualmente como relevante espaço de lazer, propício para as atividades turísticas e de veraneio. De acordo com Macedo (2002), “a urbanização turística de segunda residência é, no início do século XXI, o mais importante fator de transformação e criação de paisagens ao longo da costa brasileira”. Em Aquiraz, pode-se ver claramente este tipo de ocupação que teve início na década de 1970 e nos vinte anos seguintes se intensificou, estando hoje presente na paisagem artificial das praias do município. Esse crescimento populacional de modo desordenado das cidades litorâneas ocorre em razão das novas populações que se instalam nas localidades ou mesmo a população flutuante de visitantes. Além disso, o surgimento de outras atividades econômicas que passam a influenciar o modo de vida da comunidade, provoca danos ao meio físico e às populações nativas. Os espaços, antes das comunidades locais, são objeto da apropriação e dão lugar a segundas residências e/ou empreendimentos hoteleiros e de lazer, ocorrendo uma ocupação desenfreada do território por novos agentes, culminado na expulsão das comunidades, geralmente para áreas mais afastadas e menos valorizadas, caracterizando muitas vezes o surgimento de favelas. Desta maneira, o veraneio e a atividade do turismo foram também fatores que proporcionaram a ocupação litorânea brasileira, e não foi diferente no litoral do Ceará, sendo este fator decisivo na propagação de equipamentos imobiliários (hotéis, pousadas, parques aquáticos, marinas, resorts). Espaços disputados entre a comunidade e agentes externos a esta, a natureza intocada e a tranquilidade dos lugares recém-descober-


tos adquirem um valor inestimável, “espaço-mercadoria” vendido para o turismo que comercializa a ideia de paz e tranquilidade perdidas no cotidiano das grandes cidades e em todos os seus problemas urbanos e que, segundo Carlos (2002, p. 53), valoriza “os lugares da não produção industrial, não degradados pela atividade produtiva, não poluídos, que têm sua valorização exatamente enquanto modelo de ocupação que se justapõe ao primeiro”; e oferecido ao veranista que quer possuir um “pedacinho” deste paraíso. Moraes (1999) exprime que [...] o valor contido numa localidade pode determinar as formas economicamente viáveis de sua ocupação, num quadro em que as vocações locais e suas vantagens comparativas atuam como fatores de objetivação dos usos, mas cuja decisão repousa no campo da hegemonia política e dos embates sociais. Campo esse que ultrapassa muito a mera racionalidade econômica. (MORAES, 1999, p. 20).

No valor de uma terra estão implícitos vários fatores, como as condições locais, os recursos naturais e o valor social que ela adquire no mercado imobiliário que a situa como local revelador de status ou mesmo o próprio Estado, quando inibe ou induz o uso dos solos mediante as legislações ou as políticas. Moraes (1999) adverte para o fato de que o Estado, como produtor de espaços, é [...] o maior agente impactante na zona costeira, com capacidade de reverter tendências de ocupação e gerar novas perspectivas de uso, sobretudo pela imobilização de áreas (mediante seu tombamento) e pela instalação de grandes equipamentos ou dotação de infraestruturas (como estradas, portos, ou complexos industriais). (MORAES, 1999, p. 25).

Cabe ao Estado a responsabilidade de nortear, mediante os planejamentos urbanos, o crescimento das cidades e o ordenamento do solo por meio de políticas; porém a especulação imobiliária, por


vezes, direciona os investimentos em infraestrutura. Dantas (2002, p.78) evidencia que, “[...] embora os empreendedores imobiliários ofereçam os loteamentos, é ao Estado que se fazem as exigências dos novos frequentadores das zonas de praia, acostumados aos confortos da sociedade urbano-industrial”. Macedo (2002, p.205) observa ainda que a transformação sucede de forma rápida e se intensifica com a abertura de estradas, integrando “o antigo paraíso à rede viária nacional e, consequentemente, favorecendo a chegada de maiores fluxos de visitantes”. Os fatores citados decorrentes do processo de urbanização turística do litoral podem ser verificados em Aquiraz. Seu litoral possui aproximadamente 30 km de extensão, compreendendo seis praias: Porto das Dunas, Prainha, Iguape, Presídio, Barro Preto e Batoque. O Município pertence à Região Metropolitana de Fortaleza. Esta proximidade proporciona uma maior valorização dos terrenos, especialmente no Porto das Dunas, que já é considerado um bairro da Capital cearense (inclusive nas propagandas das imobiliárias é vendido como tal). O Porto das Dunas, localizado a 22 km de Fortaleza, é inegavelmente a porção do litoral aquiraense que recebe mais turistas, estando sempre presente nas pesquisas da SETUR-CE como uma das praias mais visitadas do Ceará. Sem dúvida, além de sua beleza cênica, o “complexo turístico Beach Park” é um atrativo importante, tour quase unânime nos roteiros dos pacotes de quem viaja a Fortaleza. Esse empreendimento atrai novos investimentos turísticos na área, especialmente os hoteleiros. O Porto das Dunas abrange também a Área de Proteção Ambiental - APA do rio Pacoti, criada em fevereiro de 2000, pelo Decreto Estadual no 25.778, a fim de preservar e nortear as atividades socioeconômicas nessa área. A fiscalização e o gerenciamento são de responsabilidade da Superintendência Estadual do Meio Ambiente – SEMACE, que desenvolve atividades de fiscalização esporádicas na unidade de conservação. Apesar de existir uma legislação am-


biental que proíbe algumas práticas nessas áreas, pode-se observar a ocorrência de algumas delas na APA do Pacoti, tais como: o corte da vegetação (para utilizar como combustível ou uso do terreno para constituir áreas de lazer como campos de futebol, barracas e bares), construções em local proibido e a poluição (principalmente pela ausência de saneamento básico e coleta deficiente de lixo). (SILVA, 2005). A paisagem artificial é composta pela presença de belas mansões, condomínios, terrenos loteados, hotéis (equipamentos voltados para o lazer e o turismo), parque eólico. Além disso, podem ser observadas edificações com até quatro andares. A proliferação dessa urbanização vai descaracterizando e encobrindo a paisagem do local. O litoral cearense encontra-se loteado e esse fenômeno ocorre também em Aquiraz. No Porto das Dunas já é possível encontrar algumas imobiliárias instaladas com o intuito de negociar os lotes ainda à venda, além de placas espalhadas ao longo de sua extensão, que dão a conhecer às pessoas que visitam o local os imóveis que ainda podem ser comprados, sejam eles casas, flats, apartamentos ou terrenos. Em visita, realizada a um dos últimos loteamentos postos à venda em 2004 (Loteamento Porto das Dunas), localizado nas dunas, pôde-se perceber que os terrenos mais valorizados eram os que tinham vista para o rio Pacoti, a poucos metros do mangue, e, segundo o corretor: “Uma vista que não será perdida nunca porque nesse local não poderá ser construído mais nada. Além disso, têm-se duas vistas privilegiadas a do rio e do mar”. Sem nenhuma infraestrutura, o corretor informou que, neste local, as casas faziam uso de poços e fossas sépticas. No que se refere à coleta de lixo e à melhoria do acesso, disse ainda que a Prefeitura de Fortaleza implementaria tais ações, em virtude da proximidade da Capital e pelas reivindicações dos futuros moradores. Apesar do traçado regular de suas vias, algumas se encontram em precário estado de conservação, ficando inclusive impedidas ao


tráfego de veículos automotores, agravando-se este fato nos períodos chuvosos, dificultando o acesso inclusive para os pedestres. Existem apenas duas vias asfaltadas, uma que dá acesso ao Aquaville e outra ao Complexo Beach Park; as demais são em piçarra. A respeito dos anúncios publicitários veiculados, ou mesmo no momento em que são mostrados os terrenos pelos corretores, não há menção ao fato de que os loteamentos estão na jurisdição municipal de Aquiraz. Dessa forma, em função de uma indústria imobiliária, imbuída da busca incessante pelo lucro, há uma indução à comercialização de um imóvel como se estivesse localizado em Fortaleza. Têm-se aí duas questões: a pressão sobre a área de tal manancial podendo trazer contaminação deste e dos recursos retirados dele; e o possível direcionamento da administração pública pela especulação imobiliária. Com relação ao exposto, é interessante observar que vem ocorrendo um processo de “(re)descobrimento” da costa do Brasil e não é diferente no Ceará. Já se fala até em uma “(re)colonização” em virtude do número expressivo de investimentos de portugueses e espanhóis na costa cearense. Além desses e de outros estrangeiros, há também brasileiros, geralmente da região Sul ou Sudeste, que ao chegarem à costa litorânea cearense, encantam-se com a beleza cênica do local e adquirem imóveis para serem utilizados em outros retornos ao Ceará, ficando estes aos cuidados de caseiros, geralmente habitantes da localidade. Esse processo pode ser observado também em Aquiraz, especialmente no Porto das Dunas, onde já é possível ver placas das imobiliárias em três idiomas, vislumbrando aquela demanda. Paradoxalmente a isso, porém, pode-se notar nesta última localidade uma significativa quantidade de residências fechadas, de arquitetura bem diferente dos domicílios da população local, número expressivo de placas em algumas destas casas e apartamentos, que expõem frases como: “aluga-se por temporada” (no intuito de suprir as despesas do imóvel) ou “vendese”, o que se acredita ser a “ociosidade” dos imóveis um dos principais


motivos, além da falta de infraestrutura de transporte, segurança, iluminação e comércio, justificado pela ausência de uma substancial população fixa, mas sentida pela população e comerciantes que habitam no local. Afora essas considerações, outro aspecto observado é o crescimento da construção de condomínios residenciais, inclusive por incorporadoras multinacionais. Essa oferta pode estar destinada tanto a demanda, já citada, dos que querem possuir um refúgio num “paraíso”, bem como atender as pessoas que desejem morar, o que já existe, tendendo a aumentar porque há vias de acesso ao local bem pavimentadas, como a CE-025, e previsão de outra (ponte sobre o Rio Cocó) e, além disso, há cerca de uma década tem ocorrido em Fortaleza a ocupação e urbanização da porção leste da cidade. Loteamento emblemático desse processo é o condomínio Alphaville, que suscitou várias dúvidas a respeito de sua localização, mas na verdade ainda pertence ao município de Eusébio, ficando no limite com o município de Aquiraz. Sendo assim, não seria nenhuma surpresa um incremento do uso residencial no Porto das Dunas, apesar da precária infraestrutura no local, e, certamente, para pessoas que possuem rendas privilegiadas, pois essa área já constitui hoje um território elitizado. Certamente por tal razão os preços praticados no comércio do Porto das Dunas sejam elevados, principalmente nas proximidades do complexo Beach Park. Esse notável processo de elitização teve início com a posse dos terrenos “disponíveis” (áreas vazias destinadas a uma futura especulação imobiliária) e com a compra das casas e expulsão dos primeiros habitantes que viviam naquele lugar, pelos especuladores. Diante disso, foi tarefa impossível para os habitantes mais antigos da localidade manter seus terrenos diante da “poderosa” especulação imobiliária. Mesmo os que esboçaram resistência, por fim, tiveram de vender suas casas e terrenos. Verdadeiramente, estes habitantes, cuja maioria é composta de pescadores, foram retirados de seus terrenos e casas, tendo que se deslocar para outros lugares longe do mar.


Nesse sentido, o Porto das Dunas tornou-se, visivelmente, um território elitizado, apresentando enclaves turísticos (resorts, condomínios residenciais e/ou turísticos) que impedem o acesso de pessoas indesejáveis, como, por exemplo, os antigos moradores, com anteparos de cercas e guaritas. É o que expressa Carlos (2002), quando diz que [...] a extensão da propriedade privada no espaço restringe ainda mais o seu acesso, vinculado, cada vez mais, à possibilidade de realização de um valor de troca criando o acesso diferenciado dos lugares da vida cotidiana e, com isso, contribui para o aprofundamento da segregação espacial. (CARLOS, 2002, p.49)

Personificação desta segregação espacial pode ser encontrada no Porto das Dunas, onde os pescadores “perderam” não apenas seus imóveis, mas também, o acesso ao mar. Ocorreu a proibição, pela administração do complexo do Beach Park, do ofício do pescador, seja com jangada ou com tarrafa, ou mesmo a simples passagem dos pescadores naquela praia e, especialmente, em frente ao complexo. Trata-se de um empreendimento que se iniciou a partir de um restaurante à beira-mar, em 1985, sendo hoje detentor de uma infraestrutura de serviços que conta com parque aquático e um hotel/spa (Beach Park Suítes Resort) numa área de 170 mil m2. E, segundo o PDDU (2001), ainda hoje a ocupação e implantação de edificações no Porto das Dunas seguem as normas da administração do Beach Park. Uma prática desse complexo, reproduzida também por outros empreendimentos da área, é a “privatização” da praia, ou seja, terrenos de marinha demarcados por cercas. Nesse contexto, a Constituição Federal de 1988, no Art. 20, inciso VII, outorga à União a propriedade sobre os terrenos de marinha e seus acrescidos. O Decreto - Lei Federal no 9.760/46 definiu estas áreas, a saber: Art. 2º - São terrenos de marinha, em uma profundidade de 33 (trinta e três) metros medidos horizontalmente para


a parte da terra, da posição da Linha do Preamar Média de 1931: a) os situados no continente, na costa marítima e nas margens dos rios e lagoas, até onde se faça sentir a influência das marés; b) os que contornam as ilhas situadas em zonas onde se faça sentir a influência das marés. Parágrafo único. Para os efeitos deste artigo, a influência das marés é caracterizada pela oscilação periódica de 5 (cinco) centímetros pelos menos do nível das águas, que ocorra em qualquer época do ano. Art. 3º - São terrenos acrescidos de marinha os que se tiverem formado, natural ou artificialmente, para o lado do mar ou dos rios e lagoas, em seguimento aos terrenos de marinha.

E, no que concerne à restrição do uso da praia aos pescadores, a Lei Federal no 7.661/88, acrescenta: Art. 10 - As praias são bens públicos de uso comum do povo, sendo assegurado, sempre, livre e franco acesso a elas e ao mar, em qualquer direção e sentido, ressalvados os trechos considerados de interesse da Segurança Nacional ou incluídos em áreas protegidas por legislação específica. § 1º - Não será permitida a urbanização ou qualquer forma de utilização do solo na Zona Costeira que impeça ou dificulte o acesso assegurado no caput deste artigo. § 2º - A regulamentação desta Lei determinará as características e as modalidades de acesso que garantam o uso público das praias e do mar. § 3º - Entende-se por praia a área coberta e descoberta periodicamente pelas águas, acrescida da faixa subsequente de material detrítico, tal como areias, cascalhos, seixos e pedregulhos até o limite onde inicie a vegetação natural, ou, em sua ausência, onde comece um outro ecossistema.

Há ainda outros pontos que merecem atenção em todo este processo, por exemplo, o fato de os funcionários dos empreendi-


mentos turísticos, em sua maioria, procederem de Fortaleza (onde estão localizados os cursos que oferecem formação) e não de Aquiraz, sendo o motivo disto a falta de mão de obra qualificada na área em apreço, quando uma das maiores preocupações que se escuta dos moradores do Município é a falta de emprego, principalmente, para os jovens. No litoral cearense em geral e, em Aquiraz em particular, transformações ocorrem desde o início deste processo de urbanização, como mudanças nas paisagens, anteriormente existentes, mediante ações impactantes, tais como desmatamento, aplainamento de dunas, aterramento de lagoas, abertura de ruas, loteamentos e edificações de pequeno, médio e grande porte. A grande quantidade de imóveis e empreendimentos construídos nesses espaços litorâneos “turísticos” exerce grande pressão no meio ambiente, nos serviços e infraestrutura urbanos. Esses equipamentos, geralmente, não possuem abastecimento de água e esgotamento sanitário, contudo fazem uso de poços artesianos, comumente cavados perto das fossas rudimentares, originando a probabilidade de contaminação dos recursos hídricos. Numa visão geral, podemos observar alguns problemas comuns no litoral de Aquiraz, tais como a remoção dos autóctones dos espaços que antes pertenciam às comunidades locais e que sofreram apropriação e deram lugar a segundas residências e/ou empreendimentos hoteleiros e de lazer, ocorrendo uma ocupação desenfreada do território por novos agentes. As comunidades, em virtude da venda ou expulsão de seus imóveis, foram se distanciando do mar, seu local de trabalho por excelência, sendo empurrados para áreas menos valorizadas e sem infraestrutura, incorrendo numa segregação espacial desses agentes. Essas comunidades, de acordo com alguns de seus membros, sofrem ainda com o desemprego e a falta de perspectivas para a população mais jovem, podendo ser uma das causas de problemas sociais como a prostituição e uso de drogas. Mesmo com a previsão da


chegada de empreendimentos hoteleiros no município, fator citado por vários moradores entrevistados como uma esperança de melhoria na geração de empregos, há carência de mão de obra qualificada para ocupar os cargos que forem ofertados. Em decorrência disso, quando são absorvidos pelas empresas existentes, esses habitantes assumem ocupações que exigem pouca qualificação e, consequentemente, menores remunerações. Outro fator que tem contribuído para a falta de trabalho e diminuição da renda é a falta de turistas trazidos pelos ônibus receptivos que movimentavam, quase diariamente, restaurantes, barracas e os centros de artesanato. Esses turistas têm sido levados para praias mais distantes como Canoa Quebrada, Morro Branco e Praia das Fontes. O motivo dessa evasão é que as empresas de receptivo, que como toda organização visa o lucro, sugerem aos turistas os lugares onde eles têm melhores acordos de comissão e melhor infraestrutura para oferecer ao seu cliente, aspecto que tem deixado a desejar nos últimos anos nas localidades de Aquiraz. Quando é o cliente que escolhe a praia que ele quer visitar, escolhe sempre as que são mais conhecidas ou divulgadas, o que não acontece com as praias deste Município. As localidades também sofrem com danos ambientais como: desmatamento de dunas e construções em locais inapropriados como área de dunas ou de mangue, ações essas que influem na dinâmica dos sedimentos ocasionando acúmulo de areia no leito dos rios, casas e barracas; desmatamento do manguezal e pesca predatória, além do uso de compressores pelos mergulhadores, recursos que podem estar ocasionando a redução do número de peixes e crustáceos; ausência de infraestrutura de abastecimento de água, saneamento básico e limpeza (a decomposição do lixo a céu aberto produz chorume), causando a contaminação dos recursos hídricos. Percebe-se que, com exceção do Porto das Dunas que se diferencia em alguns aspectos das outras localidades que foram expos-


tas, todas as demais compartilham problemas sociais, econômicos, ambientais, culturais e estruturais semelhantes. Assim, procuramos sistematizar no Quadro 01, visualizados com maior clareza, esses impactos e onde ocorrem. Quadro 01 - Problemas sociais, econômicos, ambientais, culturais e estruturais encontrados nas localidades litorâneas do município de Aquiraz – 2005 PORTO DAS DUNAS

PRAINHA

PRESÍDIO

IGUAPE

SOCIAIS EXPULSÃO/ REMOÇÃO DOS AUTÓCTONES

X

X

X

X

“PRIVATIZAÇÃO” DA PRAIA

X

SEGREGAÇÃO ESPACIAL

X

LOCALIDADES PROBLEMAS

BARRO PRETO

X

X

X

MÃO-DE-OBRA SEM QUALIFICAÇÃO

X

X

PROSTITUIÇÃO E DROGAS

X

AUMENTO DA VIOLÊNCIA

X

X

X

ECONÔMICOS DESEMPREGO

X

X

X

X

REDUÇÃO DO FLUXO DE TURISTAS

X

X

X

X

X

X

X

X

DECRÉSCIMO DAS ATIVIDADES COMERCIAIS

X

X

X

X

AMBIENTAIS DESMATAMENTO DE DUNAS E/OU MANGUE

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X

X

X

X

EDIFICAÇÕES EM LOCAL INAPROPRIADO

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X

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DESVIO DA DINÂMICA DOS SEDIMENTOS TRANSFORMAÇÃO/ARTIFICIALIZAÇÃO DA PAISAGEM

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X

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X

CONTAMINAÇÃO DOS RECURSOS HÍDRICOS

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X

X

X

X

PESCA PREDATÓRIA

X

X

X

X

TRÁFEGO DE AUTOMÓVEIS NA FAIXA DE PRAIA

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X

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X

X

X

X

ACÚMULO DE LIXO

X

CULTURAIS

DESPARECIMENTO PROGRESSIVO DAS ATIVIDADES TRADICIONAIS ESTRUTURAIS AUSÊNCIA DE ABASTECIMENTO DE ÁGUA

X

X

X

X

X

AUSÊNCIA DE SANEAMENTO BÁSICO

X

X

X

X

X

VIAS EM ESTADO PRECÁRIO

X

X

X

X

X

Organizado por: Michele de Sousa.

Assim, no curso da “descoberta” do litoral e de suas transformações, podem-se ver vários fatores que ocorrem e interferem


no cotidiano desses ambientes litorâneos e das comunidades que ali vivem. Essas mudanças se dão continuamente, em vários níveis, como expressa muito apropriadamente Carlos (2002) ao dizer que [...] o processo de produção/reprodução do espaço se realiza de modo ininterrupto, apresentando, em cada momento da história, características específicas – um processo que envolve vários níveis: o político que produz o espaço de dominação (posto que o poder político se realiza no espaço); o econômico que produz o espaço como condição e meio da realização da acumulação e, finalmente, o social, isto é, a realização da vida cotidiana enquanto prática socioespacial. Estes três planos articulados e justapostos revelam a dinâmica espacial iluminando os conflitos e contradições em torno desta produção. (CARLOS, 2002, p. 47 - 48).

Turismo: o “mito” do desenvolvimento O desenvolvimento deve ser imaginado a partir de uma melhoria na sociedade como um todo, ou seja, melhoria na qualidade de vida para todos. O turismo é visto pelas gestões públicas como uma atividade importante para compor este desenvolvimento. Pode-se constatar isto em alguns fragmentos do Plano Nacional do Turismo (2003), quando trata dos princípios orientadores para o desenvolvimento do turismo, como por exemplo: [...] A multidisciplinariedade do setor, os impactos econômicos, sociais, ambientais, políticos e culturais gerados pelo Turismo exigem um processo de Planejamento e Gestão que orientem, discipline e se constitua em um poderoso instrumento de aceleração do desenvolvimento nos níveis municipal, regional e nacional. Buscamos, por intermédio do Turismo, contribuir para o desenvolvimento do país gerando um amplo processo de mudanças que envolvem o cidadão, o estado e o setor produtivo.


[...] O aumento da competitividade do setor, o seu impacto na melhoria das condições de vida da população, a descentralização das decisões e o respeito ao meio ambiente, são pilares para a construção de um novo padrão de desenvolvimento, no qual todas as regiões possam crescer de forma integrada. Com o Turismo poderemos desconcentrar o crescimento econômico, reduzir desigualdades e criar novas oportunidades para a construção de um Brasil melhor, guiados por princípios universais da ética. [...] Desta forma, podemos afirmar que todos os Programas, Projetos e Ações do Plano Nacional do Turismo terão como pressupostos básicos a ética e a sustentabilidade e como princípios orientadores os seguintes vetores de governo: redução das desigualdades regionais e sociais, geração e distribuição de renda, geração de emprego e ocupação, equilíbrio do balanço de pagamentos (Ibidem, p. 19-20).

Observa-se, nesses princípios, um discurso que considera o turismo como uma espécie de “salvador da pátria”, atividade que trará desenvolvimento regional e local com inclusão social, redução das desigualdades e oferta de emprego e renda. Além disso, esse processo se dará guiado por diretrizes de sustentabilidade, ou seja, um desenvolvimento de forma economicamente viável, socialmente justa e ambientalmente sustentável. É verídica a capacidade que o turismo tem de transformar os lugares, e isso pode acontecer em diferentes aspectos e ser induzido por agentes distintos. O Estado, por exemplo, dota as localidades com infraestrutura para promovê-las e atrair investimentos dos agentes privados que implantam infraestrutura turística, sendo ambas primordiais para o desenvolvimento turístico. Conforme entende Cruz (2000, p.25), esta “apologia ao turismo como vetor de desenvolvimento deve ser ponderada”. Ela completa, dizendo:


[...] Desenvolvimento turístico não é sinônimo de desenvolvimento, pois nenhuma atividade econômica setorial pode assegurar um desenvolvimento global que contemple todas as dimensões da vida social. [...] O modelo de desenvolvimento que se tem levado a cabo no Brasil, por exemplo, ao qual está subordinado também o turismo, é concentrador de renda, excludente e perpetuador de desigualdades socioespaciais. O setor turístico (conjunto de atividades econômicas diretamente relacionadas à prática social do turismo), inserido neste contexto, reproduz, como qualquer outro setor produtivo, as contradições do sistema. Que possibilidades tem o turismo de promover, neste contexto, algum desenvolvimento local ou regional? (CRUZ, 2000, p. 25).

Lemos (2002, p. 76) concorda com as ponderações de Cruz (2000) e acrescenta que a atividade turística “[...] pode representar é uma alternativa de crescimento econômico, que é o aumento da produção de bens e de serviços que irão redundar no aumento do Produto Nacional Bruto”, concluindo assim, que o desenvolvimento passa por uma conjuntura bem mais ampla. Um argumento que, talvez, contribua para essa teoria desenvolvimentista é o efeito multiplicador do turismo. Segundo a EMBRATUR, 52 setores da economia são impactados diretamente por esta atividade. Rabahy (2003) descreve de uma forma bastante clara como tal ocorre: De uma forma geral, o funcionamento dos mecanismos que geram os efeitos indiretos dos gastos turísticos pode ser assim descrito: inicia-se com os gastos efetuados pelos visitantes, os quais geram salários e rendas para diversos setores envolvidos, de natureza bem diversificada, como os hotéis, restaurantes, agências de viagens, empresas de transporte, localidades de recreação, comércio e uma série de outros ramos de produção de bens e serviços. Os gastos diretos efetuados em um dado setor concorrem para a


geração de renda em várias outras etapas precedentes, pela solicitação de bens primários, intermediários ou finais de outros setores produtivos, consubstanciando então os chamados efeitos indiretos. (RABAHY, 2003, p. 66).

Esse “efeito-cascata de escoamento” reforça a teoria da distribuição de renda e da geração de emprego, que realmente acontecem, embora, no turismo, a maioria das ocupações seja malremunerada. As melhores remunerações estão nos cargos de gerência que, nas pequenas organizações, são ocupados, geralmente, pelo proprietário e seus familiares e nas grandes empresas por pessoas que tenham qualificação para desempenhar estas funções o que, dificilmente, um autóctone de um município pequeno e mais afastado dos centros de formação profissional terá. Também a respeito disso Krippendorf (2001) discorre: Ninguém pode contestar a importância do turismo no que se refere a empregos e rendimentos. Ele ocupa cerca de dez milhões de pessoas no mundo inteiro, e vários outros milhões de indivíduos vivem indiretamente disso. Entretanto, há o reverso da medalha, que raramente é evocado nos debates políticos: no setor turístico, a maioria dos empregos não é atraente. As condições de trabalho são rigorosas: horas extras, horários irregulares, sobrecarga de acordo com a estação do ano e comprometimento pessoal a favor do cliente. Ademais, os salários são inferiores à média. As opções profissionais e as possibilidades de carreira são restritas. Muitas atividades não são qualificadas e são socialmente desfavorecidas, como os trabalhos efetuados nos bastidores dos hotéis, sejam nas cozinhas ou nos quartos. (KRIPPENDORF, 2001, p. 72).

Ainda em relação a essas questões, os empreendimentos hoteleiros de cadeias internacionais, inclusive os instalados nos resorts, geralmente demandam para os cargos executivos pessoal dos países dos investidores, importam equipamentos ou produtos para satisfazer uma


demanda internacional e remetem grande parte do lucro para os países de origem, ficando pouco para as comunidades receptoras, ou seja, uma contribuição limitada para o desenvolvimento local (KRIPPENDORF, 2001; CRUZ, 2000). Como se pode notar, existe uma reprodução da lógica concentradora e excludente do capital, onde os maiores e mais fortes ficam com a maior parte e os menores e mais fracos com a menor parte. Isso acontece tanto na escala global, como na local. Além desses fatores negativos, há outros, já amplamente citados por diversos autores, tais como os passivos ambientais, sociais e culturais, nos quais o turismo tem o seu quinhão, especialmente nas localidades receptoras do turismo de massa. Estes não são contabilizados e assumidos em nenhuma conta, por nenhum dos agentes (turistas, empreendedores), ficando os autóctones com o prejuízo. Não há, porém, discussão que não tenha dois lados. O turismo também tem seus aspectos positivos, alardeados pelos investidores que obtém lucro e pelo Estado que aposta numa melhoria econômica, afora serem características desejadas pelas comunidades das localidades turísticas que almejam por melhores perspectivas de vida. Desenvolvimento do turismo em Aquiraz O sistema turístico denota a importância do equilíbrio e vinculação entre suas partes (oferta turística, demanda turística, infraestrutura e superestrutura) para o seu bom funcionamento. Diante disto, entre os meses de janeiro de 2004 e julho de 2005, foram realizadas pesquisas em Aquiraz com os agentes do turismo na localidade, representantes desse sistema, para análise do desenvolvimento da atividade no município. Foram encontrados, em Aquiraz, equipamentos com boa estrutura de hospedagem em todo o litoral, merecendo destaque os equipamentos localizados no Porto das Dunas. Alguns empreendimentos, no entanto, revelavam necessidade de reforma, ociosidade e


dificuldades financeiras, sendo a ausência de hóspedes e, consequentemente de receitas, fator predominante para compor tal realidade. Exemplo disso é o Camping Barra Encantada, localizado no Barro Preto, estrutura de lazer e hospedagem que, nos primeiros anos da década de 1990, recebia em torno de 10 ônibus de visitantes por dia e empregava em média 20 pessoas. No ano de 2005, pouco movimentado, empregava apenas 4 pessoas, sofrendo com a ausência de visitantes e turistas. Já o Praia Bela Park Hotel, localizado na Praia do Porto das Dunas, apesar de apresentar uma estrutura em bom estado de conservação, encontrava-se fechado, devido a baixa demanda de turistas. Sua estrutura havia sido inaugurada no final da década de 1990, tendo sido classificado como três estrelas junto à EMBRATUR. Mesmo hotéis de rede, como o Íbis Porto das Dunas, foram vendidos. No Alto da Prainha, encontraram-se também um hotel fechado e pousadas em difícil situação financeira, onde o proprietário relatava ter pago parte das despesas do seu estabelecimento com a remuneração proveniente de sua aposentadoria, em decorrência dos gastos serem superiores às receitas. Tal quadro obviamente apresentava interferência na quantidade do número de empregos, que já é normalmente afetada pela sazonalidade da atividade turística. Sendo assim, ocorria um acréscimo da oferta de trabalho temporário sempre em períodos com maior fluxo de pessoas, como o carnaval ou alta estação. A taxa de ocupação dos estabelecimentos na baixa temporada girava em torno de 20% e 50% e o tempo médio de permanência era de 2 dias (final de semana – demanda de fortalezenses). Na alta temporada, a ocupação variava entre 70% a 100%, permanecendo os hóspedes de 3 a 7 dias, em média. Em relação aos empregos, observou-se que, nos hotéis e pousadas da Prainha, Presídio, Iguape e Barro Preto, os funcionários são praticamente todos das comunidades do entorno, mas, em razão da maior frequência nos finais de semana, poucos são fixos, de modo


que a maioria é chamada a trabalhar quando há maior movimento de hóspedes ou visitantes, e remunerados pelo seu dia de trabalho, enquanto os garçons recebem comissões por suas vendas. Nesse aspecto o Porto das Dunas possuía características diferentes, a maioria dos funcionários advinha de Fortaleza. Havia um obstáculo que dificultava o acesso dos moradores do entorno aos trabalhos naquela localidade, a carência de transporte28. Nos maiores empreendimentos, como no hotel do Complexo Beach Park, a maioria dos funcionários era proveniente de Fortaleza, enquanto que nos hotéis de menor porte, cerca de 50% dos empregados eram de Aquiraz. Destes, aqueles que tinham melhor instrução e boa desenvoltura, chegavam a ser recepcionistas, mas a maioria trabalhava como garçom e nos serviços de cozinha, limpeza e manutenção. Tanto no Porto das Dunas como nas outras localidades, a média salarial dos funcionários fixos é de 1 salário mínimo, mas para algumas funções, havia acréscimo proveniente de comissionamento. Os meios de hospedagem pouco contribuíam para o aumento da renda do comércio local que poderia ocorrer advindo do provimento destes estabelecimentos. As compras para abastecimento dos meios de hospedagem eram feitas, a maioria, em Fortaleza. A compra de frutas e hortaliças, no entanto, era realizada no próprio Município. A contribuição dos hóspedes neste sentido, também era irrelevante, tendo em vista que seu maior consumo era realizado no próprio meio de hospedagem. Quanto às barracas de praia presentes no litoral da Prainha, Iguape e Barro Preto seu abastecimento era realizado na própria localidade. A maioria absoluta dos proprietários era de moradores das próprias localidades. Esses equipamentos foram citados pelos moradores como um importante gerador de trabalho, visto que 100% dos funcionários das barracas são pessoas da própria comunidade. Cada uma delas mantinha em torno de 2 a 10 pessoas empregadas durante o ano todo. 28 O transporte nesta área é restrito para dificultar o acesso e o fluxo de pessoas “indesejadas”.


Tanto os barraqueiros quanto os funcionários dos empreendimentos hoteleiros manifestaram insatisfação em relação a alguns aspectos manifestos no desenvolvimento da atividade turística no município, tendo sugerido então que o destino Aquiraz tivesse uma melhor divulgação, além de melhoria da infraestrutura das vias que dão acesso às localidades, melhoria da limpeza, mais linhas de transporte, ampliação do número de eventos durante o ano e melhor divulgação também dos atrativos histórico-culturais, o que poderia configurar mais um estímulo para atrair visitantes, tendo em vista que Aquiraz se encontrava praticamente fora da rota dos receptivos (com exceção do Beach Park). As sugestões encontram coro com as afirmações dos turistas29 pesquisados que em sua maioria (63%) estavam hospedados em Fortaleza, tendo chegado a Aquiraz por intermédio de amigos, taxistas ou serviço de receptivo. Ao serem perguntados se haviam conhecido o patrimônio histórico e o artesanato local, mesmo os que estão hospedados no município de Aquiraz, respondiam que sim e faziam menção à cidade de Fortaleza. Perguntou-se também sobre qual classificação eles dariam a alguns itens que são de extrema importância para a atividade turística, podendo responder com as seguintes opções: péssima, regular, boa e excelente. Assim, pôde-se observar na Figura 1 que o item que obteve maior reprovação foram os preços. O atendimento ao turista obteve a melhor classificação. Outro item bem classificado foi a alimentação. Apesar de, no geral, todos os itens terem sido bem classificados, merecem atenção os mais de 30% (se somados a classificação regular e péssima) obtidos pelos itens: infraestrutura turística e limpeza. Destaca-se, ainda, que a porcentagem dos meios de hospedagem expostos na Figura 1, abrange apenas as pessoas hospedadas no Município de Aquiraz e este item obteve classificação muito positiva. 29 Aplicação de 60 questionários em julho de 2004 e janeiro de 2005 nas localidades litorâneas.


Com exceção dessas perguntas, as pessoas citaram outros itens considerados deficientes, como ausência de maior divulgação, banco 24 horas, transportes, salva-vidas, lixeiras, opções de melhores restaurantes, sinalização e, ainda, melhorar as condições das vias de acesso às praias. Nos aspectos positivos, foram citadas a beleza natural das praias, a tranquilidade, a ausência de ambulantes e a simpatia das pessoas.

Figura 1 – Classificação atribuída pelos turistas entrevistados em Aquiraz para alguns itens importantes no cenário da atividade turística. Organizado por: Michele de Sousa.

De maneira geral, as pessoas que visitam Aquiraz têm boa impressão das localidades pesquisadas, apesar das deficiências citadas por elas. Deixaram registradas, porém, a ideia de que um lugar com aspectos naturais tão bonitos, o que a maioria deles busca, deveria ter melhor infraestrutura e mais divulgação para que outras pessoas também pudessem conhecê-lo. Especialmente aqueles que retornam frequentemente ao local há alguns anos, preocupam-se, particularmente, com a conservação da natureza (praia) que, apesar de ainda ser bela, para eles já não é mais a mesma.


Considerações finais O município de Aquiraz, até a década de 1960, era uma localidade essencialmente agrícola. A partir de 1970, passaram a ser incorporadas ali as práticas marítimas da modernidade, como o veraneio e o turismo, atividades que ocasionaram mudanças neste lugar, especialmente, as socioambientais. Desde a política estadual de turismo, elaborada em 1995, pelo “governo das mudanças” que visava à interação dos agentes do turismo para incrementar a competitividade do setor e, consequentemente, o Estado do Ceará como destino turístico, Aquiraz se insere na óptica desenvolvimentista do turismo. Todavia, algumas questões para a melhoria da qualidade de vida da população e para o desenvolvimento da atividade turística, de maneira mais eficiente e que produza menos impactos negativos devem ser consideradas, tal como a deficiência na oferta de serviços públicos (educação, saneamento básico, abastecimento de água, entre outros). Foram percebidos alguns problemas de ordem social, econômica, ambiental e cultural nas localidades litorâneas de Aquiraz, tais como: segregação espacial dos habitantes locais, jovens sem qualificação para ocupar postos de trabalho, desemprego, redução do fluxo de turistas, artificialização da paisagem, contaminação dos recursos hídricos, desaparecimento progressivo das atividades tradicionais, vias em estado precário de tráfego, entre outros problemas. Entende-se que a atividade turística pode vir a exacerbá-los, mas não se consegue detectá-la como sendo a origem destes. Sendo o veraneio anterior ao turismo no Município, poderia ter contribuído mais expressivamente para incrementar estes problemas. Em alguns aspectos, como o ambiental, por exemplo, os próprios moradores são agentes que impactam o meio ambiente em que vivem quando desmatam o mangue, abrem o leito dos rios, praticam a pesca predatória, entre outras ações. Neste sentido, programas de educação ambiental são importantes para a sensibilização, e consequente conscientização, a respeito da conservação dos bens naturais.


É necessária também a criação de normas para a implementação de loteamentos, pelos incorporadores imobiliários, que exercem forte pressão sobre os recursos naturais e estruturais, quando negociam imóveis, sem, contudo, dotá-los com um mínimo de infraestrutura, além de serem os grandes responsáveis pelas redefinições espaciais da localidade e expulsão das comunidades locais. Quanto à situação da atividade turística no Município, a presença de turistas se configura mais evidente na localidade do Porto das Dunas, mais especificamente, no Beach Park. Nas demais localidades, a presença do veraneio se apresenta mais fortemente e o “desaparecimento” progressivo de turistas nessas comunidades produz inquietação, especialmente nas pessoas que dependem economicamente deste fluxo, como, por exemplo, as rendeiras e os barraqueiros. A infraestrutura cada vez mais precária de estradas e equipamentos turísticos, porém, tem levado os receptivos para outros municípios. Essa situação se reflete na carência de empregos, proporcionada, também, pela baixa escolaridade e qualificação profissional da população, resultando na ocupação de cargos com menores remunerações nos empreendimentos. A falta de perspectivas para os jovens já se reflete em problemas sociais, como o uso de drogas e a prostituição. A visão da atividade turística como estratégia de desenvolvimento, compartilhada por governos, populações, empresas etc., muitas vezes não atenta para o fato de que o turismo, sozinho, não pode trazer “desenvolvimento”, que se trata de um conceito bem mais amplo, e sim, crescimento econômico. Para atingir melhorias que almejem contemplar as localidades de Aquiraz, como um todo, e as comunidades que nelas vivem, todavia, é preciso capacidade de organização social e efetiva participação popular nos processos de mudança no Município e, principalmente, vontade política para utilização dos instrumentos legais, como as políticas públicas e as leis, no sentido de promover um desenvolvimento social e econômico mais equitativo e justo, procurando ainda resguardar os recursos ambientais e culturais.


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PLANO NACIONAL DE TURISMO 2007/2010: ANÁLISE E DESAFIOS DE SUA IMPLEMENTAÇÃO

Heidi Gracielle Kanitz Jefferson Dantas Freire de Morais Liége Azevedo Martins Maria Arlete Duarte Araújo

O turismo configura-se como um dos mais importantes e promissores segmentos econômicos do país, apresentando taxas de crescimento percentuais superiores à média mundial em termos de fluxo turístico receptivo, de receita turística cambial e de geração de empregos. A atividade turística, assim como outras formas de atividade econômica, existe em um ambiente moldado por muitas forças distintas. Uma das forças mais importantes se manifesta através de uma rede complexa de políticas, leis, regulamentações e outras ações governamentais. Para compreender melhor como o envolvimento governamental afeta a indústria turística, as ações do setor público podem ser classificadas em quatro categorias gerais: planejamento, políticas, desenvolvimento e regulamentação. Em cada uma dessas áreas, os governos cumprem um papel único e vital, seja facilitando ou desestimulando o turismo (OMT, 2003).


Com relação ao desenvolvimento, a Organização Mundial do Turismo (2003) ressalta que o governo tem importante participação no planejamento da atividade turística, podendo controlar o processo, assumindo o papel de empreendedor, com a possibilidade de coordenar ações voltadas para a melhoria da infraestrutura, bem como projetos voltados para a educação e treinamento. A função regulamentadora do governo é importante para a atividade, visto que boa parte da mesma é dirigida à proteção do consumidor. As ações regulamentadoras surgem também a partir de uma preocupação com os recursos ambientais e culturais do destino turístico. Como processo, o planejamento tem um forte sentido de intangibilidade e não pode, portanto, ser confundido com um plano, que é um documento que reúne um conjunto de decisões sobre determinado tema/área/setor. Planejamento governamental nada mais é do que o planejamento que se faz no âmbito das administrações públicas, considerando-se suas diferentes escalas de gestão (CRUZ; SANSOLO, 2003). A política pública, por sua vez, é parte do processo de planejamento governamental e envolve tudo aquilo que um governo decide fazer ou não relativamente a um dado setor da vida social. Vista assim de forma tão abrangente, a política pública funde-se ao próprio processo de planejamento, com a diferença de que o planejamento é o processo e a política pública é o posicionamento da administração pública frente a um aspecto da vida social em um dado momento. Esse posicionamento pode ser exposto na forma de um documento - tal como o plano - e ter, consequentemente, a visibilidade que se espera de uma política pública ou não (CARVALHO, 2000). Portanto, uma política pública de turismo pode ser entendida como: O conjunto das decisões e ações relativas à alocação imperativa de valores que se encontram consubstanciadas, amparadas legalmente nos programas, projetos, planos,


metas e orçamentos dos poderes públicos (federal, estadual ou municipal) referentes ao turismo. (CRUZ, 2000, p.40).

Por incorporar um amplo conjunto de atividades, da competência de diferentes atores e agências estatais e privadas, as políticas públicas em turismo são, por excelência, multissetoriais e, na sua implementação, tornam-se extremamente complexas. Esse, aliás, tem sido um dos motivos das dificuldades de sua implementação, como apontado por Beni (2006). Assim, em outras políticas setoriais, podemos encontrar programas, projetos e atividades com forte rebatimento sobre o turismo, como é o caso da infraestrutura, das políticas urbanas, de desenvolvimento regional, de emprego e renda e, mais recentemente, de preservação ambiental e do patrimônio histórico-cultural. A presença de uma política nacional de turismo é importante para estabelecer as metas e direcionar o desenvolvimento do setor. Através das políticas, os governos podem articular seus objetivos para o turismo e suas preocupações com relação a seus impactos. Nessa perspectiva, este artigo tem por objetivo discutir o Plano Nacional de Turismo 2007/2010, a partir da análise de suas propostas para o desenvolvimento da atividade turística no país com a preocupação de apontar os desafios a serem enfrentados para que as metas propostas possam ser atingidas. Para tanto, serão utilizadas informações de fontes variadas e documentos oficiais constantes no site do Ministério do Turismo e da Embratur. A estrutura do artigo contempla, além desta introdução, um breve histórico sobre as políticas públicas voltadas para o turismo; em terceiro lugar, faz uma descrição das metas e macroprogramas contidos no PNT 2007/2010; em quarto lugar, destaca os desafios a serem enfrentados para a consecução de tais metas e, finalmente, tece algumas considerações sobre os objetivos do Plano à luz dos desafios identificados.


Políticas públicas de turismo no Brasil A história das políticas públicas em turismo vincula-se ao Estado de Bem-Estar social e tem na sua origem “a regulação do trabalho, a limitação do seu tempo, as férias remuneradas, a aposentadoria, a evolução dos transportes, da comunicação, além de outras conquistas da sociedade moderna” (PEREIRA, 1999, p. 9). Uma digressão histórica sobre políticas nacionais de turismo no país mostra que nem sempre essas políticas foram claramente explicitadas, além de terem se reduzido a aspectos parciais da atividade. Isso repercutiu, negativamente, sobre as políticas públicas para o setor, estabelecidas em outras escalas de gestão (regional, estadual e municipal), pois, como afirma Cruz (2000, p.9), “sem a referência de uma política nacional, políticas e planos de turismo – considerando-se essas diferentes escalas – ignoraram a possibilidade de concatenação entre si e com outras políticas setoriais”. A valorização da atividade turística no Brasil, a partir da década de 1990, resulta de diversos fatores conjugados, como o crescente significado econômico do setor de serviços no mundo e, inserido neste, o turismo; a chamada potencialidade natural turística do país; a disponibilização de capitais estrangeiros para financiamento de projetos e os posicionamentos público e privado favoráveis ao desenvolvimento da atividade. Um marco dessa mudança é a Política Nacional de Turismo, instituída durante o primeiro mandato do governo Fernando Henrique Cardoso (1995/1998), cuja finalidade era promover e incrementar o turismo como fonte de renda, de geração de emprego e de desenvolvimento socioeconômico do país. (CRUZ, 2000; FONSECA, 2005). Com 24 programas nacionais para o setor turístico, o governo FHC implantou o “Avança Brasil”, tendo como ponto de partida o Programa de Desenvolvimento do Turismo - PRODETUR, financiado pelo Banco Interamericano de Desenvolvimento. Isso possibilitou o direcionamento de investimentos na ordem de US$ 133 milhões para a melhoria de aeroportos e, em fase seguinte, US$ 560


milhões para melhorias futuras, incluindo a recuperação de monumentos históricos e a preservação ambiental. (MINISTÉRIO DO PLANEJAMENTO, 2002). Em seguida, nesse contexto, adota-se a ideia proposta pela Organização Mundial do Turismo (OMT, 1994) de que o turismo ocorre efetivamente nos destinos, ou seja, nos municípios, e que são os munícipes os verdadeiros conhecedores das potencialidades do território onde residem. O Instituto Brasileiro de Turismo – EMBRATUR começa então a repassar as diretrizes de desenvolvimento diretamente às prefeituras, baseando-se na participação comunitária e na formação de conselhos. Dessa forma, a municipalização ganhou força e o Programa Nacional de Municipalização do Turismo – PNMT, cujo surgimento se deu no governo Itamar Franco, influenciou a Política Nacional de Turismo da gestão seguinte, em princípio, uma continuidade deste. Tal programa sobreviveu até o fim da gestão de FHC, em 2002. O princípio norteador do PNMT foi a descentralização das ações por meio da municipalização visando fortalecer o Poder Público Municipal para que, em conjunto com as instituições privadas e os representantes da comunidade, assumisse a corresponsabilidade e fosse partícipe da definição e da gestão das políticas, dos programas e das ações locais voltadas para o desenvolvimento do turismo sustentável (EMBRATUR, 1999). Os órgãos estaduais passaram a ser parceiros do processo de municipalização e deixaram de ser representantes das políticas federais nos estados. Com a implantação do PNMT, o governo federal pretendia alcançar alguns resultados, tais como: A melhoria da qualidade de vida de milhões de brasileiros que vivem em regiões com potencial turístico; a diversificação qualitativa dos bens e serviços produzidos e da infraestrutura receptiva do turismo nacional; a geração de novos empregos e a manutenção dos existentes; o aproveitamento da mão de obra não qualificada, com sua


consequente capacitação; a redução das desigualdades regionais; o maior aporte de divisas ao balanço de pagamento; a integração socioeconômica e cultural da população; a proteção ao meio ambiente e ao patrimônio histórico e cultural; a inserção do Brasil no cenário internacional, constituindo-se uma imagem externa positiva. (EMBRATUR, [2000?], p.9 in FONSECA, 2005).

Porém, constatou-se que uma significativa fatia de recursos financeiros foi destinada aos grandes destinos receptores de turistas do país, a grandes projetos de empresas ou a grupos corporativos do setor, relegando aos pequenos municípios o papel de meros participantes de exaustivas discussões sobre a importância do turismo e outras questões que talvez nunca se transformem em realidade para os setores, tanto públicos quanto privados locais (CARVALHO, 2008; CRUZ, 2001). Além disso, outro gargalo importante na continuidade do PNMT foi que os municípios não estavam dotados de recursos técnicos e humanos para trabalhar o planejamento turístico adequadamente, o que truncava o andamento das ações: chegava-se até à fase de discussões e conscientização, porém quando era necessário avançar na elaboração de projetos e propostas tecnicamente viáveis não havia profissionais qualificados para tal, e os governos estaduais e federal também não possuíam contingente suficiente de técnicos para suprir a demanda, sem contar o fato de não haver reconhecimento por parte do poder público do potencial existente nos bancos das faculdades de turismo até o momento. No entanto, a grande crítica que se faz ao programa refere-se à sua incapacidade de transformar – ou avançar – essa grande mobilização para um patamar mais elevado no intuito de materializar resultados concretos para as comunidades locais. O PNMT perdeu-se em sua própria estrutura e grandiosidade, porém não se pode omitir que o seu legado de mobilização deixou as bases para o lançamento


das políticas do próximo governo, fundamentada na regionalização do turismo. Quando ainda candidato à presidência da república, o atual governo já manifestava publicamente a importância que daria ao turismo em sua gestão, caso fosse eleito. A criação do Ministério do Turismo em 01/01/2003 (Medida Provisória nº 103), primeiro dia do mandato do governo Lula, é emblemática do status conferido por este governo ao turismo na administração pública federal, uma vez que, pela primeira vez na história do país, o turismo tem um Ministério todo para si. O turismo deixou de ser “sobrenome” para se tornar um ministério independente, com ministro de Estado exclusivo e com verbas próprias, ganhando posicionamento diferenciado e status-quo depois dessa medida. Com a criação do Ministério do Turismo, foi implementado o “Plano Nacional do Turismo – Diretrizes, Metas e Programas”, que estabeleceu os rumos para o desenvolvimento da atividade turística no Brasil para o período 2003/2007. Assim, como afirma Santana apud Silveira (2005): With the introduction of the PNT (National Tourism Policy), Brazil has for the first time a clear national policy for tourism, which had as macro strategies: the planning, development, and promotion of tourism through the articulation of the government and the private sector; the implementation of basic and tourism infrastructure; the training of human resources in tourism in general; and the decentralization and modernization of tourism administration. (SILVEIRA, 2005, p. 5).

A partir do PNT 2003/2007, o governo federal realizou uma série de mudanças em sua estrutura administrativa para possibilitar a criação de um canal de comunicação mais efetivo com os governos estaduais e, ao longo do tempo, conseguiu compartilhar com o poder público estadual a responsabilidade pela condução do desenvolvimento turístico do país (SOLHA, 2005).


Esse órgão lançou, em 2004, o Programa de Regionalização do Turismo – Roteiros do Brasil, como instrumento de execução das políticas (BENI, 2006). Percebe-se que o modelo de gestão apoia-se na regionalização do turismo, incorporando a noção de território e de arranjos produtivos, como eixo estruturante dos macroprogramas do Plano Nacional - ainda que Beni aponte para a falta de compreensão do mercado sobre a intenção do Governo com a regionalização. Segundo o autor, o que se tem visto com frequência são “cenários de roteirização regionalizada em vez de regionalização sustentável do turismo, este sim o alvo e a meta do governo federal”. Por sua vez, Caio Luiz de Carvalho (in FONSECA, 2005) responde a esse processo dizendo que “é uma pena que tenham ‘matado’ o Plano Nacional de Municipalização por mesquinhez de assessores que iludiram o atual ministro” visto que o referido programa possuía, em sua essência, uma melhor capacidade de atender às premissas de regionalização sustentável. Baseado nos resultados do Plano Nacional de Turismo 2003/2007, o PNT 2007/2010, objeto de estudo deste artigo, traz uma série de estratégias e medidas que buscam representar um importante estímulo ao mercado interno. São propostas que visam o fortalecimento do turismo interno, com o intuito de abrir portas para a inclusão social, tendo ainda o claro objetivo de manter e aperfeiçoar todas as iniciativas que já estavam em curso no Ministério. Conhecendo o PNT 2007/2010 O Plano Nacional de Turismo 2007/2010, cuja temática evidencia o cunho social das ações, apresenta diretrizes, metas e programas do setor, exposto em um documento com 88 páginas. A proposta do PNT é ser um [...] instrumento de planejamento e gestão que coloca o turismo como indutor do desenvolvimento e da geração de emprego e renda no País [...] avançando na perspectiva


de expansão e fortalecimento do mercado interno, com especial ênfase na função social do turismo. (MTUR, 2007, p.5).

Dentre as ações a serem desenvolvidas, destacam-se o fortalecimento do turismo interno, promoção do turismo como fator de desenvolvimento regional, investimento em qualificação profissional e geração de emprego e renda, bem como “assegurar o acesso de aposentados, trabalhadores e estudantes a pacotes de viagens em condições facilitadas e garantir ainda mais condições para a promoção do Brasil no exterior” (MTUR, 2007, p.11). Com base em um diagnóstico dos problemas enfrentados pelo setor de turismo (MTUR, 2007), foram estabelecidos objetivos gerais e específicos. Entre os objetivos gerais estão: desenvolver o produto turístico brasileiro com qualidade, contemplando as diversidades regionais, culturais e naturais; promover o turismo como um fator de inclusão social, por meio da geração de trabalho e renda e pela inclusão da atividade na pauta de consumo de todos os brasileiros; fomentar a competitividade do produto turístico brasileiro nos mercados nacional e internacional e atrair divisas para o País. Quanto aos objetivos específicos, propõe-se garantir a continuidade e o fortalecimento da Política Nacional do Turismo e da gestão descentralizada, entre outros. O Ministério do Turismo se orienta pelas diretrizes definidas no Plano Nacional de Turismo, estruturado por um conjunto de macroprogramas e programas que, alinhados com os programas e as ações do Plano Plurianual de Governo, estabelecem, segundo o documento, as condições para a sua efetivação no âmbito do governo federal. As metas para o período 2007/2010 apresentam-se da seguinte maneira: Meta 1: promover a realização de 217 milhões de viagens no mercado interno; Meta 2: criar 1,7 milhão de novos empregos e ocupações (sendo esta cumulativa); Meta 3: estruturar 65 destinos turísticos com padrão de qualidade internacional; Meta 4: gerar 7,7 bilhões de dólares em divisas (MTUR, 2007).


Tais metas do PNT são orientadas por 8 (oito) macroprogramas. Os mesmos são constituídos por um conjunto de programas que organizam, por temas afins, as diversas atividades executivas da atuação ministerial e seus parceiros. Os programas, por sua vez, se desdobram em diversas ações, que traduzem o seu detalhamento em projetos e atividades que visam propiciar o alcance das metas. Os macroprogramas são os seguintes: Macroprograma 1, que diz respeito ao Planejamento e Gestão. A ele estão vinculados os seguintes programas: Programa de Implementação e Descentralização da Política Nacional de Turismo, Programa de Avaliação e Monitoramento do PNT e Programa de Relações Internacionais. Nele, explicita-se que ao Ministério do Turismo cabe a permanente articulação entre os diversos setores, públicos e privados, relacionados à atividade, no sentido de compartilhar decisões, agilizar soluções, eliminar entraves burocráticos e facilitar a participação de todos os envolvidos no processo de crescimento do setor. Coloca como um dos objetivos a descentralização da execução das ações definidas no Plano Nacional de Turismo, em alinhamento com os planos macrorregionais, estaduais, regionais e municipais do turismo. Sugere a implementação de mecanismos de acompanhamento e avaliação de desempenho do turismo, mas sem especificar de que forma e por quem este controle será exercido. Percebe-se um incremento relativo às ações do PNT 2003/2007 quando ele prevê a promoção da transversalidade do tema turismo por meio de uma ação de integração interministerial, particularmente onde sua interface com outros setores se torna estratégica, como no transporte aéreo, na infraestrutura básica, no desenvolvimento regional e na preservação do meio ambiente e da cultura. Traz uma meta ambiciosa no que diz respeito à geração de emprego e renda, estendendo as possíveis benesses, advindas da atividade aos países da América do Sul, quando coloca que [...] cabe ao programa acompanhar e avaliar as políticas e decisões internacionais relacionadas ao desenvolvimento


do turismo, estreitar laços com outros agentes da comunidade internacional, com vistas à troca de experiências no setor, além de realizar os esforços necessários à implementação de ações de cooperação técnica bilateral ou multilateral que promovam a geração de emprego e renda e a aplicação de medidas de facilitação de fluxos de pessoas entre os países da América do Sul. (MTUR, 2007, p.61).

O Macroprograma 2 refere-se à Informação e Estudos Turísticos e é composto pelo Programa Sistema de Informações do Turismo e pelo Programa de Competitividade do Turismo Brasileiro. De acordo com o documento, a geração de indicadores básicos para a análise do setor de turismo é essencial para garantir as condições necessárias para que se apure a magnitude da atividade e se avalie o seu impacto na economia, bem como os seus impactos de caráter socioambiental. Estão inclusas neste programa as ações relativas à realização e disseminação de estudos e pesquisas sobre o turismo e a compilação e sistematização de registros administrativos que subsidiem as ações, tanto da área pública, quanto da área privada. (MTUR, 2007, p.63) O Macroprograma 3 aborda o tema Logística de Transportes. Traz, alinhado a ele, os seguintes programas: Programa de Ampliação da Malha Aérea Internacional, Programa de Integração da América do Sul e o Programa de Integração Modal nas Regiões Turísticas. Busca tratar das questões relativas à desrregulamentação da atividade, custo de combustível e bilateralidade, bem como do problema das limitações relativas à infraestrutura para o transporte terrestre e aquaviário, não só com relação à integração de diferentes modais e como complemento para a acessibilidade aérea, mas também e, principalmente, como uma forma de acessibilidade, fundamental para a expansão do consumo turístico no País, particularmente para os deslocamentos de âmbito regional e intraestadual. Dentre seus objetivos, pretende atuar na transformação de destinos turísticos nacionais em destinos regionais sul-americanos, fomentar o turismo e o comércio regional, visando impulsionar a indústria


do turismo de lazer e negócios e viabilizar as redes nacionais e sul-americanas com potencial econômico, por meio da identificação de novos destinos turísticos e de negócios. Já o Macroprograma 4 é definido pela temática Regionalização do Turismo. Os programas que o compõem são: Programa de Planejamento e Gestão da Regionalização, Programa de Estruturação dos Segmentos Turísticos, Programa de Estruturação da Produção Associada ao Turismo, Programa de Apoio ao Desenvolvimento Regional do Turismo. A regionalização do turismo, implantada pelo Programa de Regionalização do Turismo – Roteiros do Brasil (lançado em abril de 2004 como uma das estratégias do PNT 2003/2007) propõe a estruturação, o ordenamento e a diversificação da oferta turística no País e se constitui no referencial da base territorial do Plano Nacional de Turismo. Constitui, dessa forma, um modelo de gestão de política pública descentralizada, coordenada e integrada, com base nos princípios da flexibilidade, articulação, mobilização, cooperação intersetorial e interinstitucional e na sinergia de decisões, como estratégia orientadora dos demais macroprogramas, programas e ações do PNT. No escopo desse macroprograma integram-se, de acordo com o PNT, os programas de apoio ao financiamento para o desenvolvimento regional – PRODETUR E PROECOTUR – que interagem em um processo de complementaridade. Esse macroprograma do PNT tem por objetivo promover o desenvolvimento e a desconcentração da atividade turística; apoiar o planejamento, a estruturação e o desenvolvimento das regiões turísticas; aumentar e diversificar produtos turísticos de qualidade, contemplando a pluralidade cultural e a diferença regional do País; possibilitar a inserção de novos destinos e roteiros turísticos para comercialização; fomentar a produção associada ao turismo, agregando valor à oferta turística e potencializando a competitividade dos produtos turísticos; potencializar os benefícios da atividade para as comunidades locais; integrar e dinamizar os arranjos produtivos do turismo; aumentar o tempo de permanência do turista nos destinos e roteiros turísticos e; dinamizar as economias regionais (MTUR, 2007).


Assim, numa ação integrada dos governos estaduais, o programa identificou e estão sendo trabalhados, prioritariamente, 87 roteiros que abrangem 474 municípios em 116 regiões turísticas. O Macroprograma 5 trata do Fomento à Iniciativa Privada. A ele correspondem os programas de Atração de Investimentos e de Financiamento para o Turismo. De acordo com o plano, o processo de desenvolvimento sustentável nas sociedades modernas está vinculado à disponibilidade e acessibilidade ao crédito, para expansão dos negócios que realizam as atividades de produção de cada setor econômico. A atividade turística é executada, fundamentalmente, pela iniciativa privada e envolve um amplo leque de oportunidades para o desenvolvimento da oferta de serviços. Traz como objetivos ampliar e melhorar a oferta de equipamentos e serviços turísticos em todo o País; incentivar a micro, pequena e média empresa, facilitando o acesso ao crédito; gerar novos postos de trabalho por meio da ampliação e diversificação dos equipamentos turísticos; fortalecer o mercado interno por meio do financiamento ao consumidor final; gerar divisas, promovendo a captação de investidores para o Brasil; captar investidores para projetos localizados em regiões potenciais remotas, ainda não desenvolvidas; divulgar as oportunidades de investimentos no turismo, sensibilizando os potenciais investidores para o desenvolvimento da atividade no País (MTUR, 2007, p.71). A infraestrutura pública é tratada no Macroprograma 6. A ele se vinculam os programas de Articulação Interministerial para Infraestrutura de Apoio ao Turismo e o Programa de Apoio à Infraestrutura Turística. No escopo do plano, discorre que as parcerias público-privadas devem ser também consideradas como uma das alternativas para alavancar a implantação e manutenção da infraestrutura nas regiões turísticas. Dotar um município ou região de infraestrutura turística de apoio é proporcionar as bases para a expansão da atividade turística, por meio da criação de condições para implantação de equipamentos, para o acesso de turistas, para a melhoria da qualida-


de do produto turístico e o fortalecimento da economia da região. Essas ações devem ser orientadas por um trabalho de identificação e quantificação das necessidades de infraestrutura, de modo a oferecer soluções que garantam a melhoria na capacidade, segurança e qualidade de atendimento ao turista. Devem considerar as necessidades de pessoas com deficiência ou com mobilidade reduzida e, ao mesmo tempo, melhorar a qualidade de vida nos destinos turísticos. Estrategicamente, as regiões devem ser preparadas para receber os investimentos como forma de otimizar os resultados e minimizar os impactos (MTUR, 2007, p. 72). O PNT aponta que parte significativa dos recursos que viabilizam as infraestruturas turísticas provém de emendas orçamentárias, sendo fundamental a realização de um trabalho permanente junto aos parlamentares por parte do governo federal, estados e municípios para que seus pleitos priorizem os programas do Plano Nacional nas regiões turísticas. Percebe-se, no entanto, a fragilidade na viabilização e concretização dessas ações, visto que, historicamente, as políticas públicas de turismo nunca foram prioridade para os governos. Destaca-se, no entanto, que dentro destes programas está referenciada a intenção de que haja ações de gestão governamental relativas à promoção da integração interministerial, particularmente, Cidades (saneamento ambiental), Transportes (sistema viário), Cultura, Meio Ambiente, Integração Nacional e Defesa, entre outros Ministérios, de modo a estabelecer parcerias intersetoriais para o atendimento das demandas relativas ao desenvolvimento das regiões turísticas, no que se refere às infraestruturas públicas, atendidas com recursos orçamentários. Outro ponto de relevância são as discussões para que se garanta a acessibilidade para pessoas com deficiência ou mobilidade reduzida em todos os equipamentos turísticos do país. Tais colocações são inéditas dentro do Plano Nacional de Turismo desenvolvido desde o ano de 2003, configurando-se em uma mudança positiva nas diretrizes para o desenvolvimento da atividade.


O Macroprograma 7 trata da Qualificação dos Equipamentos e Serviços Turísticos e traz, subordinados a ele, o Programa de Normatização do Turismo, o Programa de Certificação do Turismo e o Programa de Qualificação Profissional. É sabido que o grande número de empregos gerados pelo turismo, a sazonalidade e a alta rotatividade nos postos de trabalho requerem um esforço adicional em especial para a qualificação dos recursos humanos. Nesse sentido, é fundamental a implementação de uma política de qualificação que oriente as instituições responsáveis pelo financiamento, formulação e oferta de cursos para os diversos setores que integram a cadeia produtiva do turismo, nos seus diversos níveis, desde a formação gerencial e acadêmica até os níveis operacionais, com os empregados de menor qualificação. As instituições de pesquisa e de ensino superior, relacionadas ao turismo, devem participar da formulação e implementação dessa política (MTUR, 2007, p.74). Reforça-se essa premissa pelo fato de que a baixa qualificação profissional dos prestadores de serviços na atividade turística no Brasil, resultante da deficiência das políticas educacionais no país, constitui fator limitante ao desenvolvimento da atividade que, como outros setores econômicos, necessita de mão de obra qualificada. Esse macroprograma busca então, através dos seus programas, promover a qualificação e o aperfeiçoamento dos agentes atuantes em toda a cadeia produtiva do turismo, nos diversos níveis hierárquicos, tanto do setor público quanto do setor privado. Deve, dentre outras atribuições, apoiar a elaboração de normas técnicas brasileiras e estimular ações voltadas para a certificação de pessoas, produtos e empreendimentos. A Promoção e Apoio à Comercialização é tratada no Macroprograma 8. Em consonância a ele estão os programas de Promoção Nacional do Turismo Brasileiro, o Programa de Apoio à Comercialização Nacional, Programa de Promoção Internacional do Turismo Brasileiro e Programa de Apoio à Comercialização Internacional.


Esse último macroprograma traz questões relacionadas às ações de marketing que compreendem a publicidade, as ações promocionais e de relações públicas, com base na Marca Brasil, assinalando que deve ser consolidada a imagem de um país moderno, com credibilidade, alegre, jovem, hospitaleiro, capaz de proporcionar lazer de qualidade, novas experiências aos visitantes, realização de negócios, eventos e incentivos, tornando-o competitivo nacional e internacionalmente. Por fim, deve ter como essência a realização de experiências positivas de conhecimento, integração e valorização das riquezas culturais e naturais do País, para a difusão e promoção de um turismo seguro, qualificado, diversificado e sustentável. No mercado interno deve buscar, fundamentalmente, promover o aumento de viagens com a inserção de novos grupos de consumidores até então excluídos desse tipo de consumo (MTUR, 2007). Análise e desafios do PNT 2007/2010 O Plano Nacional de Turismo 2007/2010 traz consideráveis mudanças quando comparado ao PNT 2003/2007, principalmente pelo fato de estar referenciado pelos resultados alcançados quando da concretização do Plano anterior. Algumas mudanças são significativas no que diz respeito à participação de entidades acadêmicas, à análise de dados relativos ao crescimento da atividade e à adequação das metas a uma possível realidade. Ainda assim, alguns aspectos devem ser analisados. No que diz respeito à apresentação do plano, sinaliza-se que ele foi fruto de todos os segmentos turísticos, traduzido em um trabalho integrado de cooperação e participação entre diversos setores do governo, da iniciativa privada e do terceiro setor, bem como das instituições com assento no Conselho Nacional de Turismo – CNT. Entretanto, não há indicação com relação à paridade de participação desses segmentos. O seu processo de construção foi iniciado em 2006 com a elaboração do documento referencial Turismo no Brasil 2007/2010,


por solicitação do próprio Conselho. Para sua realização, o PNT mobilizou os quadros técnicos do Ministério do Turismo – Secretaria Nacional de Políticas de Turismo, Secretaria Nacional de Programas de Desenvolvimento do Turismo e Embratur, tendo como referências estudos e pesquisas de instituições acadêmicas do País e consultorias especializadas. Tal informação o diferencia do Plano elaborado para o período de 2003/2007, o qual não contou com representações de área acadêmica nem de proteção aos direitos do consumidor, conforme descreve Noia et al. (2007, p.7) O PNT 2007/2010 traz modificações metodológicas importantes que alteram metas anteriormente estabelecidas. Por exemplo: ao invés de utilizar desembarques nacionais, passa-se a adotar o número de viagens domésticas para medir o fluxo turístico interno; a geração de divisas com o turismo passa a ser medida exclusivamente por dados oficiais do Banco Central do Brasil. Entretanto, não sinaliza de forma clara e explícita a metodologia utilizada para a construção do plano como um todo. A estrutura de gestão mostra-se coerente e bem planejada, mas o questionamento que se levanta é com relação ao nível de capacitação dos que fazem parte deste processo que permeia a implantação das ações previstas no PNT: secretários de turismo, representantes nos fóruns estaduais, ou seja, se tais agentes multiplicadores do turismo estarão aptos a exercerem o seu papel. Como um todo, apresentam-se bem alinhadas as metas com os macroprogramas e programas apresentados, porém o plano ainda enxerga o turismo como uma atividade redentora para os problemas econômicos, sociais e políticos do Brasil, reforçando a visão ufanista que permeia os discursos oficiais. Tal visão é reforçada na fala institucional do Presidente da República na abertura do plano em que afirma: O século XXI vai ser marcado como o século do desenvolvimento sustentável e da preservação do meio ambiente. O turismo ambiental e sustentável tem aqui um potencial


no qual poucas nações do mundo podem se comparar ao Brasil. Nossas belezas naturais, rios, florestas, mananciais, praias e montanhas são um atrativo sem concorrência neste mundo assustado pelo aquecimento global e pela destruição da natureza. (MTUR, 2007, p. 5).

Deve-se atentar, portanto, para o exagero que permeia tais afirmações, pois como explica Trigo (2005, p.100) “o Brasil não possui atrativos exclusivos para o turismo internacional. Há praias, florestas, campos belíssimos, mas essas belezas naturais podem ser encontradas em outros lugares do planeta, apesar de serem extremamente exuberantes no Brasil”. O turismo não é uma questão apenas de vocação, uma vez que o potencial turístico não é dado naturalmente, mas sim como resultado de uma construção cultural. Enquanto produto, ele é fruto de um conjunto de condições decorrentes de relações entre cultura, mercado e políticas públicas que venham proporcionar o desenvolvimento da atividade. Alerta Souza (1997) que a noção de desenvolvimento deve ser compreendida como: Um processo de superação de problemas e conquistas de condições (culturais, técnico-tecnológicas, político-institucionais, espácio-territoriais) propiciadoras de maior felicidade individual e coletiva, exigindo “considerações simultâneas das diversas dimensões constituintes das relações sociais (cultura, economia, política) e, também, do espaço natural e social”. (SOUZA, 1997, p. 17).

O discurso governamental que permeia o Plano Nacional de Turismo gera uma espécie de crença generalizada de que o país tem todas as condições para se destacar no ranking internacional de destinos turísticos quando, na verdade, um melhor posicionamento do Brasil neste ranking depende não apenas das ações tomadas internamente, mas, inclusive, de externalidades sobre as quais não se têm possibilidades de ingerência. Entre essas externalidades destacam-se os modismos inter-


nacionalmente produzidos pelos agentes hegemônicos da publicidade, do marketing, do agenciamento de viagens bem como a competição cada vez mais acirrada com outros destinos tropicais. Assim, o principal desafio que se percebe será o de aliar os objetivos descritos com as ações dos poderes públicos durante o período de execução do PNT, lançando novas bases para a continuidade do programa pelas gestões posteriores. Sem mudanças na política regional que se tem levado a cabo no Brasil há décadas, com um privilégio latente a dadas porções do território, não há setor da economia que possa minimizar disparidades socioeconômicas entre uma e outra região. Com relação a esse ponto, convém destacar a dificuldade de uma atividade, tão vulnerável como a turística, desencadear ou promover a redução das desigualdades regionais desarticulada de outros tipos de políticas públicas. Para Balastreri (1997), o turismo é uma das alternativas para reduzir a exclusão social, uma vez que oferece novas oportunidades de investimentos e empregos para uma massa crescente de desempregados que o mercado formal não absorve. Mas, mesmo com relação ao suposto potencial de geração de empregos, é importante observar que grande parte dos empregos gerados por essa atividade mantém-se durante apenas três ou quatro meses ao ano, nos períodos de alta temporada. Ressalta-se, ainda, o alto grau de informalidade do trabalho turístico (FONSECA, 2005). Outra questão relevante dentro da discussão dos desafios a serem enfrentados refere-se à capacidade técnica dos governantes locais, visto que são eles os fomentadores das ações de planejamento, capacitação e promoção dos roteiros diversos a serem criados em função da descentralização prevista. Observa-se que uma fatia considerável dos que fazem parte da alta direção administrativa dentro das secretarias e coordenações de turismo nos municípios e estados não possui o conhecimento necessário para gerir a atividade. Diante disso, percebe-se certo desalinhamento entre o que propõe a teoria e o que se apresenta na prática.


Dentro das discussões atuais, assumem um papel relevante os assuntos relacionados à prática do turismo sexual. Nesse ponto, destaca-se o papel da EMBRATUR como promotora da imagem do Brasil no exterior. Percebe-se que atualmente o papel desenvolvido pelo Instituto Brasileiro de Turismo assemelha-se ao de um Convention Bureau Nacional. A mesma EMBRATUR que até a década de 1980 promovia o Brasil por meio da tríade carnaval, praia e futebol, hoje, preocupa-se em divulgar a diversidade de “Brasis” no exterior. Desvincular a imagem do país do estigma do turismo sexual mostra-se uma tarefa das mais difíceis, visto que as origens dessa marca encontram-se vinculadas às primeiras políticas públicas relacionadas à área. Note-se que a empresa, quando fora criada, como menciona Santos Filho (2004), “objetivava desviar a atenção internacional para os graves problemas sociais e passar a ideia de país dos trópicos e núcleo mundial do pecado capital”, ou seja, toda e qualquer atividade relacionada ao turismo, para que, de forma legal pudesse atuar, deveria ser obrigatoriamente registrada, autorizada e fiscalizada pela EMBRATUR. Manteve-se tal situação até o fim da ditadura militar e, durante todo esse período, o governo deteve controle sobre o desenvolvimento do turismo divulgando a imagem do país no exterior, contextualizada na liberdade sexual. Os reflexos são sentidos até os dias atuais. Por fim, a participação efetiva das comunidades locais tornase imprescindível para a execução dos programas. Silveira (2005) traz uma consideração fundamental quando se refere à participação da comunidade em todos os processos que permeiam as políticas públicas de turismo: Last but not least, the community should be the main beneficiary of tourism development and treated like an important actors of the process (GANDARA, 2004; WTO, 1997), as all other stakeholders. It is not possible to develop a destination without the approval of


the community or overlooking their opinion. Tourism is an activity performed by people and with people and to people, and both tourists and hosts should be at the same side enjoying its benefits. In that sense, both groups should be heard and taken into consideration when such an important development tool is conceived. (SILVEIRA, 2005, p. 11).

Assim, em um contexto de complexidades e particularidades, os desafios apontados devem permear todas as discussões sobre o futuro da atividade turística no País. Considerações finais O novo status adquirido pelo turismo na administração pública federal nada mais é do que um reflexo da reconhecida e crescente importância que tem a atividade do turismo hoje, sobretudo no plano econômico, por sua capacidade de dinamizar diversos setores produtivos, gerar riqueza, renda e empregos. Em tempos de globalização, de desemprego estrutural, de crescimento da pobreza, o setor serviços e, inserido nele, o turismo, tem jogado um papel cada vez mais importante para as sociedades. A criação, pela primeira vez na história do país, de um Ministério do Turismo é um paradoxo em relação ao sentido e à importância que tem o turismo para este governo. Como uma atividade multifacetada, capaz de mobilizar dezenas de setores produtivos, de movimentar contingentes de pessoas pelos territórios, de transformar os lugares, o turismo mostra que não é um tema passível de ser tratado apenas por um organismo da gestão pública. As interfaces entre turismo e outras práticas sociais e produtivas são fortes e evidentes; daí a problemática da concentração de ações voltadas ao seu desenvolvimento em um único órgão da administração. Uma cultura de valorização do turismo não é algo que se constrói da noite para o dia ou por meio de atos administrativos ou


de diplomas legais. Isso somente pode ser construído social e historicamente. E, historicamente, a administração pública federal no Brasil jamais tratou o turismo, de fato, como uma atividade relevante. Concebida como política de correção de “desequilíbrios regionais”, a Política Nacional de Turismo poderá não atingir os objetivos propostos se os desafios, citados anteriormente, não forem vistos com seriedade por todos os atores envolvidos no processo de planejamento e execução de ações alinhadas às diretrizes do PNT. A questão central e final que pode ser colocada diz respeito às limitações que tem o turismo assim entendido para produzir os efeitos desejados pelas sociedades e pelo governo, ou seja, um desenvolvimento econômico traduzido em melhores condições de vida para os brasileiros de um modo geral e não apenas para agentes de mercado ou parte das populações de núcleos receptores de turistas. O turismo deve ser entendido como um setor da vida social e, como tal, com capacidade limitada para mudar as condições sociais historicamente construídas no Brasil. O turismo tem que ser compreendido como uma atividade transversal a diversos setores da vida social e se tiver que ser uma prioridade para este ou para os próximos governos terá que ser lembrado pelas agendas das políticas públicas de diversos organismos públicos. O turismo pode ser sim um meio para se melhorar as condições de vida de muitos brasileiros, mas, para tanto, não poderá mais ser tratado como um fim.

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GESTÃO DO TERRITÓRIO PARA O TURISMO E IMPLICAÇÕES NA MUDANÇA DO IMAGINÁRIO SOCIAL E AMBIENTAL: O CEARÁ VIRTUALIZADO

Ingrid Carneiro de Lima Raimundo Freitas Aragão

Segundo Castro (2001), da relação entre natureza e sociedade emerge a essência do discurso que paulatinamente compõe o imaginário social do lugar. Ainda mais, da relação entre sociedade e natureza supõe, necessariamente, duas dimensões: a concreta, efetivada no nível de subsistência, e outra simbólica, elaborada a partir de elementos da natureza gravados no imaginário social. É a partir da fusão das diferentes dimensões continentes nessa relação que o imaginário social se torna campo privilegiado para as ações políticas e sociais. Como exemplo, podemos citar os pilares ideológicos, de cunho naturalista, dos grupos políticos que comandaram o Ceará por longo período quando formularam e difundiram seus argumentos acerca do seu território, nesse caso, o Semi-árido cearense, passando a compor a imagem de um Estado vitimado pelas secas. Dessa forma, esses argumentos tornaram-se, nos discursos e representações das elites, a raiz dos problemas que desolavam o Estado. Tal unificação desses discursos fundamentou a formação do imaginário local e dos valores a ele associados (CASTRO, 1997, 2001).


Apropriada pelo discurso político, embasada em produção intelectual regional e nacional, a tragédia natural tornou-se suporte dos grupos dominantes locais frente ao Governo Federal para a obtenção de vantagens políticas e recursos financeiros, ato caracterizador do cenário político cearense até a chegada ao poder de novos atores, os quais direcionaram uma visão diferente sobre o Estado e, dessa nova visão, emergiu outro discurso, notadamente associado ao turismo. É através dessa atividade que a gestão governamental inverteu por completo o papel tradicionalmente atribuído à natureza cearense e, além disso, aliou qualidades diferenciadas à sociedade. Dessa forma, constituiu-se o turismo em principal negócio e forma de melhorar as vantagens comparativas do espaço cearense frente à competitividade do mundo contemporâneo (CASTRO, 2001) e capaz de fomentar imagem positiva do Ceará e de seus governantes (ARAGÃO; DANTAS, 2005). Portanto, no Ceará, onde natureza e sociedade são retrabalhadas pelo turismo e estão orientando os novos rumos da economia e do imaginário do Estado, agora não mais apresentados em seu caráter “hostil” e “miserável”, mas envoltas em novos revestimentos. Neste novo momento, natureza e sociedade são reconvertidas em parceiras e aliadas de um novo discurso, culminando num novo quadro simbólico não mais coletivo – social, não mais articulado e transmitido através de antigos meios como os relatos de viagens, literatura, música, causos etc. Entende-se esse quadro como proveniente de um planejamento articulado em gabinete, cujos resultados desembocam em novas práticas políticas, utilizando-se de substrato baseado no marketing turístico e constituído, sobremaneira, de imagens virtuais. Nesse contexto, o novo imaginário, o turístico, foi arquitetado com objetivos de realçar e evidenciar outra visão sobre o Ceará, contribuindo fortemente para a imposição do pensamento único (SANCHEZ, 2003). Portanto, a natureza e a sociedade cearenses foram replanejadas para usufruto da nova política, produzindo arcabouço de imagens


essencialmente positivas que, ao longo do tempo, passaram a ser disseminadas constantemente pelas diferentes mídias e assimiladas pelos “turistas-consumidores” (POUTET, 1995), envoltos de desejos, sonhos, fetiches e fantasias. O suporte de análise deste artigo se baseia, fundamentalmente, em questionários aplicados aos turistas e em peças promocionais e institucionais produzidas pela Secretaria de Turismo do Ceará (SETUR/CE). Constata-se, por conseguinte, que a publicidade e a propaganda governamental vêm conseguindo substancialmente mudar o antigo imaginário cearense desembocando, essencialmente, em imaginário virtual. É o que pretendemos explicitar logo a seguir. Turismo como atividade prioritária: mais do que um projeto econômico O turismo foi integrado à política de desenvolvimento econômico do Ceará no final da década de 1980, com a adoção de projetos prioritários associados a discursos políticos que o transformam, grosso modo, em poderoso instrumento de poder argumentativo a serviço do Estado e capaz de salvar a economia local. A racionalidade retrocitada se nota no discurso da base política aliada, ao indicar o Programa de Ação para o Desenvolvimento do Turismo no Ceará (PRODETUR/CE), instrumento capaz de promover a sadia distribuição de renda e a erradicação da miséria no Estado. Inusitado nesta perspectiva é o discurso do parlamentar Jackson Pereira, ao apresentar a atividade turística como a única habilitada a realizar “[...] este milagre” (PEREIRA, 1995). Atribui-se a essa atividade uma “missão divina”, garantia da redenção econômica e da melhoria das condições de vida do cearense, até então vitimado pelas secas, nos termos apresentados pela ideologia oficial. Imbuídos dos elementos discursivos há pouco mencionados, empresários, políticos e governo criaram, ao utilizarem-se da mídia


na difusão de seus argumentos, ambiente propício à implantação da atividade turística no Ceará. Discorrendo a respeito, Ouriques (2005) assinala dispor “o discurso em defesa do turismo” de “grande poder de persuasão”, chegando a seduzir a sociedade inteira, de tal forma que as opiniões divergentes são rotuladas, imediatamente, de “inimigas do progresso”. A estratégia governamental de marketing, minuciosamente planejada, concebe ideário de “vocação natural” do turismo cearense indicando a natureza como dádiva divina posta à disposição da sociedade de consumo, notadamente dos amantes de praia. Por conseguinte, o Ceará é apresentado como um novo paraíso tropical. Com ênfase no ideário há instante referido, o governo, juntamente com a iniciativa privada, alia às características de seu território as necessidades eminentemente econômicas, investindo tanto no tombamento dos atrativos naturais, principalmente o litorâneo - e culturais - como na instalação de complexos turísticos capazes de integrar a infraestrutura e os serviços nas áreas de elevado potencial turístico. Fabrica-se, dessa forma, a “vocação natural” do turismo cearense. A racionalidade socioeconômica denota fragilidade do ideário da “vocação natural”, haja vista implicar a apropriação econômica da natureza, história e cultura pelo turismo (OURIQUES, 2005). Referenciando Knafou, Benevides (1998) remete à “turistificação” dos lugares, decorrente do estabelecimento de infraestrutura e de produção de imagem conferente da vocação turística cearense. Medida fundamental nesse sentido foi a da formação do “Pacto de Cooperação”, ideologia criada pelos principais grupos econômicos-políticos do Ceará na intenção de reunir autoridades governamentais e civis no sentido de pensar e organizar campanhas de convencimento dos cearenses acerca da “vocação” turística do Estado e do turismo como vetor de crescimento. No primeiro domínio, o da “vocação” turística, a promoção de campanhas educativas, com vistas a criar mentalidade turística na população, é estruturada nos momentos de encontro propicia-


dos pelo “Pacto de Cooperação”. Nessas campanhas, apresenta-se o turismo como atividade carente de colaboração e responsabilidade de todos os fortalezenses e cearenses. A sociedade, de forma geral, é convidada a participar dessa empreitada, dado evidenciado nos fôlderes, com slogans como: “Motorista de táxi, trate bem o turista” e “Deixe o turista com vontade de voltar”. No segundo domínio, o do turismo como vetor de crescimento, as diferentes mídias se armam de referências e exaltações políticoturísticas, estampadas e fazendo alusão às maravilhas do Ceará nas primeiras páginas de jornais (Folha de São Paulo, The Economist, The New Times, Wall Street Journal) e revistas (Veja e News Week) de circulação nacional e internacional. O conjunto das exaltações das manchetes midiáticas e as medidas oficiais direcionadas à atividade evidenciam caráter triunfalista do Estado e de seus governantes. Tais fatos conduziram ao destaque de uma sociedade de conquistas e êxitos. A título de exemplo, a novela “Tropicaliente” é representativa desta asserção. Resultado de parceria estabelecida entre a Rede Globo e o Governo Ciro Gomes, aponta para enfoque de reforço da imagem do Estado como possuidor de uma natureza preservada, “infraestrutura turística, modernidade e indústrias [...]” (SANCHEZ, 1994, p. 90). Exemplo desse caráter de exaltação e triunfalismo podem ser apreendidos no discurso de posse do governador Tasso Jereissati, no seu segundo mandato, em 1995. Ao reportar-se ao governo Ciro Gomes, de mandato anterior, e à sua própria administração, conclamou: Consolidou-se a imagem positiva do Ceará. O Ceará passou a ser parte da agenda internacional com o trabalho científico das universidades e da FUNCEME. Através da ICID, o Estado liderou o movimento mundial que colocou a questão das regiões semi-áridas do planeta na agenda da conferência das Nações Unidas sobre o meio ambiente e desenvolvimento. [...] Hoje, ainda há os que


subestimam as mudanças, mas o país reconhece a nossa experiência como fecunda e criativa. O Ceará passou a ser visto no país e no exterior como um caso de sucesso, em termos de modernização das finanças e das políticas públicas. Mudou a realidade, mudou a imagem, mudou a mentalidade (Assembléia Legislativa do Estado do Ceará. Divisão do Serviço de Taquigrafia e Revisão de Anais).

Tais triunfalismos evidenciaram, nas intenções das políticas públicas de desenvolvimento do turismo cearense, suplantação do direcionamento puramente econômico e salvador. Além do propósito de trazer divisas, os governantes o utilizaram como aparato ideológico, na difusão de imagens promotoras dos atrativos naturais e culturais associadas às imagens governamentais. Apresenta-se, nestes termos, racionalidade característica das políticas de marketing político, aquela que associa a publicidade à propaganda e vice-versa (DOMENACH, 1963), capaz de construir imagem positiva do Ceará e de sua nova elite política (“Governo das Mudanças”). Nos termos indicados, associados aos imperativos socioeconômicos e políticos, a lógica de desenvolvimento da atividade turística apresenta-se como argumento justificativo da modernização do Estado, cujos desdobramentos resultam de um lado na ruptura de ideário relacionado à semi-aridez (seca, fome, miséria, coronelismo etc.) e do outro a integração do Estado à economia turística. Arquitetado e difundido todo arcabouço imagético das transformações do imaginário em âmbito local, tornou-se necessário expandi-lo e reforçá-lo em caráter nacional e internacional. Criou-se, então, o “paraíso” Ceará, estampado em milhares de veículos promocionais institucionais como fôlderes, vídeos, brochuras etc. As novas configurações naturais e sociais cearenses serão apresentadas nos próximos itens.


O paraíso ressignificando a natureza cearense Da vasta e diferente forma de publicidade institucional posta a modificar o imaginário ligado à natureza “trágica” cearense destacamos a brochura “Fortaleza-Ceará: Terra da luz” a qual reverte por completo a imagem tradicional do Ceará. Essa brochura, produzida em 1995, faz parte das estratégias de marketing da denominada era dos “empresários-políticos”30, indicando que a tão veiculada “vocação natural” do turismo cearense foi “minuciosamente planejada” em gabinete pelos agentes ligados ao marketing turístico governamental. A concretização do “paraíso”, desde então, começou a ser referência em workshops, congressos turísticos nacionais e internacionais, encontros e demais atividades ligadas ao ramo. Vejamos a maneira como aconteceu a recriação da natureza cearense. A brochura apresenta de início a localização estratégica do “paraíso”. Ela é moldada, desta forma, em perspectiva valorativa com o consumidor-turista, pois ele, ao chegar e iniciar seu consumo, torna-se o astro principal: “No Nordeste do Brasil, bem abaixo da linha do Equador, existe um lugar criado pela natureza para você brilhar: O Ceará, a terra da luz”. Em segundo momento, são enaltecidas suas características desde já devidamente adequadas: Quem vem ao Ceará tem todo o tempo do mundo para se divertir. Agitação com festas, música e dança ou a contemplação da natureza. Para os amantes do mar é possível praticar esportes náuticos incríveis, como passear de jetski nas águas calmas e verdes de mais de 570 quilômetros de praias, ou sobrevoá-las de ultraleve, contemplando dunas, falésias e imensos coqueirais. Ou então se deliciar observando a vasta fauna e flora marítima formadas por golfinhos e todos os tipos de peixes e plantas deste rico 30 Esta fase corresponde à chegada (em 1986) ao poder político de um grupo de empresários originários do Centro Industrial do Ceará (CIC) que assume o governo estadual. A denominação “empresários políticos” foi cunhada por Costa (2005). Essa Administração estadual ficou tradicionalmente conhecida como “Governo das Mudanças” devido ao slogan adotado em campanha.


litoral. Já para os amantes da natureza a sugestão é deixar o ar puro e agradável ser respirado no lado mais verde do Ceará. O lado do campo, das serras e das montanhas do interior cearense. O Ceará é perfeito também para o lazer de quem procura tranquilidade, fugindo da vida estressante das grandes cidades. Acordar mais tarde, ver o mar, sentir o sol e a brisa dos ventos em cenas paradisíacas que você costuma ver apenas na TV ou no cinema. Ou então respirar o verde, caminhar pela manhã nas serras e ver os pássaros e plantas. Não deixe de conhecer uma das nossas maiores atrações: o ar puro. No Ceará, tudo o que você vai lembrar é que ainda existe ar puro nesse mundo, que as colinas são verdes e que os rios ainda começam nas nascentes. Mas se isso não é tudo que você precisa para ser feliz, ainda existem cachoeiras, as encostas e os vales. Tem também as serras com suas flores e pássaros e a beleza indescritível de luzes e formas de grutas de parques naturais. Nós preferimos sintetizar tudo e chamar de Ceará.

O reino turístico, acima descrito, revela a elaboração do “paraíso” cearense, dos lugares nele inseridos e, principalmente, da natureza. Vê-se claramente a inversão e subtração de suas características tradicionais dominantes, neste caso, o Semi-árido é substituído por “campo” e “colina” sempre verdes acarretando mudança de seu significado tradicional. Do estado de “rejeição”, passa-se ao estado de “contemplação”. Como podemos observar, as novas imagens que acompanham o “paraíso” Ceará são representativas de uma invenção turística e se traduzem na reutilização do espaço cearense considerado por longo período histórico como essencialmente “hostil”. Essa clássica característica outrora associada ao Estado é completamente apagada em favorecimento da beleza, do pitoresco da paisagem e ainda dos benefícios do sol e do ar. Reforçando essa reelaboração da natureza, observamos que o sol, outrora símbolo da “hostilidade climática” é transformado e estilizado, tendo agora a imagem benéfica e atraente.


Nesse caso, Costa (2005) esclarece que agora, o mesmo sol passa a oferecer incondicionalmente o “beijo da fecundidade” e não mais o da “morte”, e não só para o turismo, mas também para recentes e emergentes ramos da economia como a capitalizada agricultura irrigada, diferenciada da “estagnada” agricultura tradicional e de subsistência. A respeito dessas transformações, Cazes e Knafou (1992) nos chamam a atenção para a invenção do lugar turístico. Segundo eles, o lugar turístico para ser concretizado, em primeiro momento, começa por uma nova leitura do território onde atua, conduzindo à subtração de seu uso dominante, o que eles chamam de “poder de subversão interior”. Em segundo momento, ocorre a incorporação de novos espaços no lugar, designados por eles como “poder de conquista exterior do turismo”. Trata-se, então, da “inversão da utilização tradicional do território” e também da “mudança de seu significado”. A utilização do clima benéfico e da paisagem pitoresca pela publicidade estatal se inscreve perfeitamente na estratégia de reversão da imagem trágica cearense. Cria-se todo um cenário positivo para opô-lo às conotações negativas relacionadas ao “antigo” cenário natural. Sobre ele se constrói e se ajusta todo um imaginário turístico a fim de ocultá-lo mediante a seleção de particularidades consideradas mais pertinentes e edificando em torno delas a imagem do paraíso. É a criação da “terra prometida”, do “paraíso perdido”, discursos da propaganda política, sendo apropriada pelo turismo e aproximando o homo turisticus coletivo de sua necessidade de felicidade e de consumo dos lugares. Porém, nesse processo de invenção do mito “paraíso” cearense, a formatação da paisagem natural emudece a heterogeneidade do Estado, sendo apresentado ao turista e ao próprio cearense por meio de seletivas imagens, um espaço homogêneo, essencialmente puro e como símbolo de liberdade. As questões sociais e econômicas, apresentadas a seguir, são também extremamente relevantes nesse processo, pois sua renovação foi posta a se equiparar às qualidades positivas da natureza.


O social e o econômico renovados: ressignificando a condição humana As campanhas de marketing, elaboradas durante o “Governo das Mudanças”, estão incrustadas desse ideário de renovação, atualmente consolidado no novo imaginário brasileiro. O social e o econômico renovados são constantemente divulgados, constituindo “cenários” positivos fundados na modernização do Estado e em características diferentes das tradicionais de seu povo. O discurso pautado no ideário da modernização do Estado e na alta qualificação do cearense é uma constante, insistindo nas imagens produzidas pelas campanhas promocionais, em mostrar o Ceará economicamente desenvolvido com “ícones de progressos tecnológicos” acessíveis a todos: Prédios na orla marítima, transportes modernos, instrumentos náuticos, esportes radicais, aparelhos eletrônicos e trabalhadores utilizando equipamentos sofisticados ou com proteção para trabalhos especializados. (FROTA; SILVA, 2003, p. 230). A infraestrutura produtiva (redes viárias e ferroviárias, portos, aeroportos, linhas de transmissão de energia e comunicações) promissora e em ampliação; a nova postura da administração pública, que estaria empreendendo verdadeiro leilão de incentivos em busca de novas empresas e, finalmente, o excelente nível de desempenho dos trabalhadores que, para surpresa de diretores de empresas de fora aqui sediadas, possuiriam qualidades tão boas quanto as dos melhores trabalhadores de qualquer estado brasileiro. (COSTA, 2005, p. 265).

Reforçando os argumentos anteriores, aponta-se, grosso modo, para a estereotipagem da comunidade local, representada como [...] pessoas de paletó e pasta executiva, família em restaurante de luxo, hóspedes nos grandes hotéis da cidade


e ou fazendo caminhadas no calçadão da Beira-mar. Os trabalhadores são apresentados de duas formas: ou usando equipamentos sofisticados e proteção especial para trabalhos especializados ou de forma poética, e nesse caso, [...] um pescador artesanal numa cena contra a luz de um pôr do sol nas praias cearenses. A cultura popular toma a forma folclórica e é associada às formas recentes de comercialização do lazer e das artes como o carnaval fora de época. (FROTA; SILVA, 2003, p. 230)

Muitos dos fôlderes turísticos são contundentes em termos de divulgação das transformações sociais e econômicas. Por exemplo, o folder “Ceará, Brasilien, Brazil”, publicado no ano de 2000, destinado a turistas, operadoras, investidores e agentes de viagem e elaborado para ser divulgado em feiras e eventos em línguas alemã e inglesa com o objetivo de alcance internacional está carregado dessa ideologia. A importância deste se revela na apresentação feita do Estado, divulgando os pilares consolidados da Modernidade que sustentam o discurso propagandista governamental. O Governo, por intermédio desse folder, modifica definitivamente a imagem do Ceará. Nota-se a preocupação de transmitir imagem positiva do Estado no Exterior. Tratando-se de folder elaborado por órgão cuja função é implementar a atividade turística, o turismo é apresentado como elemento capaz de reforçar a imagem de um Ceará economicamente desenvolvido. O turismo aparece, nesse sentido, como vitrine para a economia globalizada, sequiosa por ambiente de progresso, eficaz e de qualidade, associada a um contexto de estabilidade e segurança. A esse propósito Costa (2005) acentua haver [...] idealização de uma imagem-síntese [...] a simbolizar um local altamente promissor para o mundo dos negócios. Definido como um dos principais centros de investimento mundial, [...] ideal à multiplicação da riqueza e à sofisticação da qualidade de vida dos que aqui viessem


investir, em razão da existência de recursos naturais ainda intocados e mão de obra abundante, de boa qualidade e de custo incomparável à existente na maioria do resto do mundo. (COSTA, 2005, p. 264).

O Governo, nesse e em outros diferentes fôlderes, utiliza o turismo para reforçar a imagem do Ceará como estável, avançado e moderno, parâmetros garantidores de retorno financeiro dos investimentos. O citado folder constitui, à luz do discurso da propaganda estatal, verdadeiro “guia de investimentos”, estruturado de forma a contemplar em seletivas imagens a totalidade do território cearense. O turista/ empreendedor é convidado a visitar a “monumentalidade” do Ceará e investir nesse mercado. Veremos, a partir de agora, as marcas do bombardeamento da publicidade turística e da propaganda política no imaginário dos turistas que visitam nosso Estado. As marcas: os turistas como assimiladores e transmissores do novo imaginário Na verdade, as campanhas publicitárias associadas à publicidade e propaganda estatal contribuíram para consolidação e acentuação de uma série de tópicos sobre o Ceará que já se consideram solidificados no novo imaginário brasileiro descrito anteriormente. E, para reforçarmos o embasamento de tal perspectiva, aplicamos questionários nos meses de julho de 2004 e julho de 2005, meses de maior fluxo turístico como os de dezembro e janeiro, objetivando observar os desdobramentos da chamada “inversão” de um imaginário antigo, repleto de conotações negativas para um imaginário novo, o turístico, que tem existência mais recente. Buscamos, enfim, verificar se o antigo imaginário cearense está sendo modificado e se o novo está sendo solidificado ou cristalizado no imaginário do turista. No mês de julho de 2004, desembarcaram em Fortaleza, de acordo com a Secretaria de Turismo do Ceará - SETUR, 187.382


turistas e no mês de julho de 2005 visitaram a Capital 220.878. Coletamos então uma amostra aleatória de cem turistas para responderem a um questionário, sendo 50 no mês de julho de 2004 e 50 em julho de 2005, espaço de tempo importante para análise dos resultados. Respondidas a um número significativo de perguntas, a amostra apresentou os seguintes resultados: levando-se em conta a imagem que os turistas tinham antes de viajar (Figura 1), 37% tinham em suas mentes praia e sol. Já as belezas naturais totalizaram 29% características essas associadas diretamente ao contexto “paraíso”. A modernidade despontou na opinião de 14%. Entre os 100 turistas dessa amostra, 14% optaram por não responder que imagem tinha do Ceará antes de viajar. Apenas 6% deles declararam que antes de viajar para o Ceará tinham em seu imaginário o conjunto das imagens negativas tradicionais tais como sertão, seca, pobreza, calor e miséria.

Figura 1 – Imagem antes de viajar para Fortaleza/Ceará

Não obstante às respostas anteriores, os turistas ainda declararam que, ao chegarem a Fortaleza, depararam-se com imagens e paisagens que provocaram surpresas e vislumbramento por possuir potencial a despeito de ser forte destino para o turismo devido à sua diversidade de atrações. A imagem ou as imagens são também colocadas como verdadeiras “ilhas da fantasia” (CRUZ, 2002).


No que concerne às imagens fixadas até o momento de responderem ao questionário, 55% declararam ter consigo imagens positivas de Fortaleza e do Estado; 29% disseram que estavam marcando as imagens de sol e mar. A imagem de paraíso estava na mente de apenas 4% enquanto a mesma percentagem, isto é, 4% tinham a imagem de alegria, festas e Fortal. Somente 8% dos turistas consultados consideraram que as imagens negativas estavam relacionadas a preços altos, violência e falta de consciência ecológica.

Figura 2 – As imagens que ficaram no imaginário dos turistas

A grande maioria dos turistas remete ao novo imaginário, ora colocado pelo Estado, visto que esse imaginário vem sendo “bombardeado” tanto pela publicidade governamental como privada, inserindo “cenários” positivos. Essa perspectiva é traduzida e, ao mesmo tempo, percebida em função dos dados obtidos pelas respostas e mostradas na Figura 3. As imagens que foram divulgadas corresponderam às expectativas desses turistas, ou seja, em torno de 92%. Somente 8% afirmaram que a imagem de Fortaleza e do Ceará não atendeu às expectativas, dado que reforça sobremaneira a mudança de imaginário dos turistas que visitam essa cidade.


Figura 3 – Expectativas finais dos turistas acerca de Fortaleza e do Ceará

Os resultados apresentados correspondem também às ponderações de Dantas (2004) sobre o “mar e o marítimo” em destinações turísticas em via de desenvolvimento numa visão exacerbada de “tropismo”, visivelmente posto no imaginário cearense e brasileiro: imagens e representações coletivas, mostrando que o Governo vem conseguindo substancialmente mudar o antigo imaginário cearense, desembocando na construção da imagem turística fortalezense e cearense imbuída de uma significação marítima e tropical associada à Modernidade, ao contrário da cidade outrora litorânea, porém não marítima e com raízes sertanejas. Conclui-se que esses milhares de turistas, impregnados desse conhecimento superficial, controlados pela publicidade e pela propaganda, contribuem na elaboração da imagem positiva do Ceará, pois para Enzenberger, apud Poutet (1995, p. 110), ”[...] o turismo é a indústria na qual a produção e a publicidade se constituem numa só: seus clientes são ao mesmo tempo seus empregados”. O turista, nesse sentido, é transformado inconscientemente “no mais fervoroso propagandista da empresa de férias”.


Considerações finais Embora o governo estadual venha investindo no turismo e elaborando novo imaginário para o Ceará, amplamente divulgado com o objetivo de atrair fluxos e investimentos, ainda não obteve o sucesso almejado em âmbitos econômico, social ou ambiental. A natureza e a sociedade cearenses, estrategicamente exploradas e propagadas por meio da mídia turística local, nacional e internacional, são configuradas como verdadeiros instrumentos capazes de fomentar o projeto de desenvolvimento estadual apoiado nas possibilidades que a atividade turística pode proporcionar. Porém, é notório que o imaginário promocional instituído não apresenta o Ceará em sua realidade. O Ceará é contemplado como mito-paraíso de férias, escondendo “o outro lado do espelho”, ou melhor, forçando o visitante a “vagar” em um imaginário de “pensamento único” e ilusório, demonstrado na opinião da maioria dos turistas, pois 92% vêem aspectos positivos nas transformações turísticas. No entanto, por trás desse paraíso, encontra-se um conjunto de problemas socioeconômicos, ambientais e culturais que ficam à margem de seus conhecimentos. Esses mesmos turistas que vêem o Ceará turístico com deslumbramento não se dão conta de que seus gastos estão sendo incapazes de manter e absorver constantemente empregos na área e também desconhecem sua ineficácia em minimizar a situação social e ambiental do Estado, um dos campeões nacionais em pobreza, analfabetismo, concentração de renda e degradação ambiental. A elaboração do novo imaginário cearense também se identifica com um aparato político-ideológico governamental o qual vem usufruindo desse processo. Tal imaginário, nesse sentido, tem papel importante, ou melhor, decisivo na construção da própria imagem governamental que vê na atividade turística um jogo de espelhos identitários. Por fim, mesmo com a crescente cristalização, na mente dos turistas, do significativo conjunto de elementos positivos, o turismo continua distante da realidade com o qual foi prometido em discur-


so econômico há aproximadamente vinte anos, ou seja, o de ser uma ferramenta primaz de eficiência capaz de “produzir milagres”, “atrair turistas dispostos a gastar”, trazer divisas com poder de “equilibrar a balança de pagamentos”, e ainda transformar o estado em um “prometedor lugar na economia mundial”, apto a “erradicar a miséria” promovendo a “sadia distribuição de renda”.

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ANÁLISE INSTITUCIONAL DA ESTRUTURAÇÃO DO TURISMO EM FORTALEZA

José Orlando Costa Nunes

Este artigo trabalha a ideia de orientar as diversas partes interessadas sobre a forma ideal de estruturação do turismo em uma cidade que pretende se desenvolver nesta área. Para tanto, todo o processo de estruturação é analisado e explicado teoricamente no intuito de esclarecer a forma de estruturação de uma cidade por meio não só de normas e leis impostas pelos órgãos governamentais responsáveis, mas também pelas ações de trabalhos específicos na área que se desenvolvem, a princípio naturalmente, mas posteriormente passam a ser institucionalizadas de acordo com a aceitação dos grupos interessados no desenvolvimento turístico da localidade ou região, num determinado período de tempo, conforme Donaldson (1998, p.122) esclarece: “Tem havido alguns movimentos no sentido de demonstrar o papel dos indivíduos em formatar a estrutura organizacional, em que as características individuais somam-se às contingências na explicação da estrutura”. No Brasil, a estruturação básica do turismo, oriunda do ambiente, compreende as normas e leis impostas pelo Governo Federal representado pelo Ministério de Turismo e seu maior representante, a Empresa Brasileira de Turismo - Embratur; pelos Órgãos de Turis-


mo Regionais; pelo Estado, representado pela Secretaria de Turismo do Estado e ainda no nível mais específico pelo Município, representado também pela sua Secretaria de Turismo. Para as relações do trabalho turístico eficiente, nesses diferentes níveis de atuação, Beni (1998, p.105) enfatiza que: “A coordenação deve ser considerada função básica do órgão nacional, ela é exercida nos níveis nacional, regional, estadual e municipal, com vistas à execução das políticas e outras medidas destinadas a impulsionar o desenvolvimento do turismo em todo o território nacional”. Das ações de trabalhos que se institucionalizam são significativas as normas técnicas aprendidas por meio de treinamentos operacionais para área, cujo desenvolvimento profissional quando adquirido, tende a processar no trabalho a institucionalização da ação (BARLEY; TOLBERT, 1997). Assim, o campo organizacional, representado pelas Secretarias de Turismo nos seus quatro níveis específicos (Federal, Regional, Estadual e Municipal), bem como pelos órgãos representativos da área, como o Sindicato dos Guias de Turismo, as Associações de Agências de Viagens, as Associações das Empresas Hoteleiras, as Associações de Agências de Eventos e as Associações de Restaurantes e Bares, entre outros; controla a partir das decisões de interesses conjuntas, todas as ações tidas como sanções e leis oriundas do ambiente, e as ações específicas da operação de trabalho. Vale ainda registrar que todo o desenvolvimento profissional para a área, também institucionaliza por meio da ação apreendida no trabalho, parte do processo, cujo reconhecimento profissional obtido pelo grupo que trabalha na área, também julga e controla as ações desenvolvidas e praticadas. Assim, as empresas de treinamentos profissionalizantes para a área, com significativo reconhecimento profissional, desenvolvem capacitação profissional no intuito de tornar sujeitos capazes para a ação institucionalizada, conforme Donaldson (1998, p.123) confirma: “A principal tentativa feita por Child (1973) para forjar uma teoria da estrutura ao


nível do ator individual sustenta que a formalização burocrática pelo grau de qualificação e especialização do Staff administrativo que é o arquiteto da burocratização”. Este artigo defende o argumento de que o processo de institucionalização de uma cidade turística compreende, na sua formação, não só aspectos oriundos de forças ambientais impostas pela ação dos órgãos representantes do turismo no intuito de manter a ordem na área, através de leis e sanções, mas também, por forças oriundas do trabalho de sujeitos que exercem atividades na área e que, por meio de suas ações técnicas de trabalho, apreendidas e desenvolvidas, institucionalizam processos, estruturas e até ações temporais como forma de regularizar e regulamentar toda a atividade turística de uma região na qual a cidade turística está inserida, objetivando obter reconhecimento e sucesso na área. O artigo trabalha também a ideia de que o processo de estruturação pode ser bem explicado teoricamente, principalmente, quando a teoria selecionada para referência já possui um arcabouço acadêmico considerável como as perspectivas estrutural e institucional utilizadas neste trabalho. Fortaleza é a cidade turística escolhida para exemplificar todo esse processo de institucionalização técnico e ambiental como forma de referenciação por apresentar não só uma significativa estruturação turística, mas também por apresentar considerações respeitáveis nesta área em âmbito nacional, conforme pesquisa da Embratur intitulada “Estudo de mercado doméstico de turismo no Brasil” (1998). Metodologia A análise desenvolvida neste artigo busca, através de uma revisão literária dos últimos trinta anos, orientar a estruturação do turismo em uma cidade que pretende se desenvolver nessa área; levando-se em consideração o processo de institucionalização técnico e ambiental, tendo como referencial a cidade turística de Fortaleza no


Ceará. O presente estudo caracteriza-se por ser predominantemente qualitativo, do tipo descritivo-interpretativo, tendo como unidade de análise, o desenvolvimento do setor de turismo da cidade de Fortaleza no Ceará. A teoria da ação e institucionalização A teoria da ação e instituição tem se desenvolvido nos últimos anos como mais uma das fontes analíticas de estudos organizacionais e institucionais, no que se refere à análise organizacional e institucional conforme os trabalhos de Giddens (1976, 1979 e 1984) que define todo o processo de estruturação como um trabalho orientado que trata a instituição como um produto do ambiente e de uma ação humana. Nesse sentido, Barley e Tolbert (1997) tratam da comunalidade entre as duas teorias estudadas e difundidas pela análise das organizações e instituições, argumentando que a fusão entre ambas significa vantagens para os estudos organizacionais e institucionais, visto que as teorias estrutural e institucional têm sido utilizadas em importantes estudos de pesquisas. Os estudos sobre estrutura organizacional tiveram ápice na década de 60 e metade dos anos 70 quando estudiosos da área desenvolveram suas pesquisas enfatizando questões como o tamanho e a sua interferência nas diversas relações interorganizacionais (KIMBERLEY, 1976; MARTIN, 1979; MILETI, GILLESPIE; HAAS, 1997; CHILD; MANSFIELD, 1972; DONALDSON; WARNER 1974; FREEMAN, 1979; HICKSON et. al., 1974; MAHONEY et. al., 1972) e outros estudos diversos, por exemplo, os estudos do grupo de Aston no Reino Unido e os de Blau e seus colaboradores. As tipologias apresentadas são diversas, no entanto, 80% dos estudos utilizaram a variável “pessoas” (número de participantes ou de funcionários) como referência do tamanho estrutural na análise (HALL, 1984). As abordagens de Meyer, Rowan (1977) e Kamens (1977) explicam a estrutura como um “mito”, criado pelas exigências so-


ciais, em que a estrutura possui práticas e procedimentos racionais de trabalhos organizacionais e institucionalizados na sociedade. E as abordagens da relação indivíduo versus estrutura de Blau e Schoenherr (1971) estabelecem a regulamentação da influência das variações individuais pela estrutura. O estudo de Herman, Dunham e Hulin (1975) afirma que o cargo modela as reações do seu ocupante de acordo com o tipo de organização e ainda o estudo de Ivancevich e Donnely (1975) aborda a satisfação do indivíduo no cargo em relação aos níveis hierárquicos da estrutura. A teoria institucional foi inicialmente sustentada nos estudos de Hughes (1936 e 1939), Parsons (1951) e Selznick (1949 e 1957) com abordagens sociológicas de desenvolvimento e aplicação de pesquisa. Sabe-se que recentemente a teoria institucional adquiriu proeminência nos estudos organizacionais a partir das pesquisas de Meyer e Rowan (1977), Zucker (1977 e 1983); e Di Maggio e Powell (1983 e 1991). Tais estudos são considerados tradicionais, cujas teorias retratam a eficiência como força para as variações estruturais racionais, sejam elas técnicas e ambientais. Outros estudos, como os de Woodward (1958), Lawrence e Lorsch (1967), Blau (1970), também abordam essas questões. Os estudos da teoria institucional, sob a perspectiva cultural, também ganharam força e passaram a se desenvolver de forma considerada. Nesse sentido, os estudos de Meyer e Rowan (1977), Di Maggio (1991 e 1998), Oliver (1991) e Strang (1994) abordam a questão da estruturação formal por meio de análise de valores, normas e crenças. Um ponto comum entre os teóricos estruturais e institucionais refere-se ao fato de que a cultura determina a ação do homem, mas não completamente. Reconhecendo as concordâncias teóricas dos estruturalistas e institucionalistas é que os estudiosos passaram a desenvolver uma nova teoria que representasse a comunalidade entre ambas. Assim, desenvolveu-se a teoria da relação entre a ação e instituição, conforme o estudo de Burns e Flam (1987), na qual eles observam as


instituições como um jogo de regras e tipificações que identificam categorias de atores racionais e suas apropriadas atividades ou relações de negócios. Zucker (1977), Meyer e Rowan (1977) e Berger e Luckmann (1967) estabelecem que as instituições são socialmente construídas pela ação e desenvolvem seus estudos examinando a mudança e a reprodução das instituições como geral e historicamente encravada nos processos. Os atuais estudos da teoria da ação e institucionalização abordam questões do tipo: como a instituição afeta e como ela é afetada pela ação; como os atores criam instituições através das histórias das negociações por meio de tipificações, de generalizações, de expectativas e interpretações de comportamentos; como se dá a formação do processo por meio da moral e do status dos atores responsáveis; como os atores com seus respectivos papéis de conhecimentos e interesses definem o campo organizacional, conforme enfatiza o estudo de Di Maggio e Powell (1983). As teorias da ação e institucionalização têm apresentados importantes significados nas pesquisas, pois se podem citar alguns modelos surgidos e que são utilizados na análise e explicação dos processos de institucionalização. Assim, o modelo de Giddens (1976, 1979 e 1984) define a estruturação como um processo orientado que trata estrutura (instituição) como um produto do ambiente e de uma ação humana. O processo de formação estrutural e institucional do turismo de Fortaleza é analisado por meio da ação de trabalho dos profissionais da área como forma de dimensionar a institucionalização processual, técnica e cognitiva de trabalho no turismo desta cidade, visto que as pesquisas desenvolvidas anteriormente analisavam apenas o processo normativo imposto pelos órgãos responsáveis, o que torna este estudo exploratório. Embora este trabalho enfatize a institucionalização pelo processo de ação, acredita-se que ambos os processos institucionais (ambientais e ação de trabalho) compõem em conjunto o procedimento necessário para a real formação de uma instituição, seja ela social ou não.


Fortaleza: cidade turística – o modelo de referência no Ceará Fortaleza é uma cidade turística com reconhecimento nacional, visto que entre as principais cidades do Nordeste é a que mais tem se destacado no que se refere ao recebimento de turismo doméstico em termos de receita, conforme dados da pesquisa da Embratur intitulada “Estudo do Mercado Doméstico de Turismo do Brasil” (FIPE, 1988). Fortaleza com mais de duzentos anos (279 anos) já foi considerada a capital do vento e possui clima bastante favorável para o turismo de praia conforme o guia Gazeta Mercantil: Fortaleza & Praias (1998). A cidade nasceu a partir do forte Schoonemborch, uma fortaleza construída pelos holandeses em 1649. O local foi pivô de mais de uma disputa entre portugueses e holandeses pelo controle do nordeste e depois da vitória dos portugueses, o pequeno povoado recebeu o nome de Nossa Senhora da Assunção, para mais tarde ser batizado de Fortaleza (GIRÃO, 1998). O desenvolvimento, no entanto, só chegou em 1808, com a abertura dos portos e o início das exportações de algodão para o Reino Unido. Hoje, a capital do Ceará com mais de 2 milhões de habitantes, vive um acelerado processo de modernização e concorre com Salvador e Recife o título de principal porta de entrada turística para o Nordeste. O turismo é responsável por 20% do produto interno bruto desse estado, empregando mais de 300 mil pessoas no setor. No Ceará a atividade turística está descentralizada, atingindo além do litoral, o sertão e as serras, totalizando mais de 70 municípios (GAZETA MERCANTIL: Fortaleza & Praia, 1998). Coriolano (1998, p.39) enfatiza: “Com a intenção de levar o estado do Ceará a competir no mercado global, implanta-se no território cearense uma infraestrutura e acelera-se sua modernização. Essas ações progressistas significam a entrada do Ceará na nova modernidade e seu alinhamento às exigências da globalização. O


governo passa a considerar o turismo uma prioridade econômica com a visão da globalidade”. O produto turístico de Fortaleza O produto turístico da cidade de Fortaleza foi estruturado e institucionalizado principalmente a partir da perspectiva histórica e mitológica da cidade, além de outras. Tais perspectivas denotam características fundamentais para ação do trabalho turístico de toda a sua região de forma diferenciável de sucesso. Benevides (1998, p.117) esclarece: “A referência à força do lugar, como resistência às centralizadoras tendências integristas em escala nacional/internacional, deve ser contextualizada melhor, levando-se em conta as diferentes significações políticas-ideológicas dadas ao localismo, ao longo de toda história”. Assim, pode-se observar que a forma de trabalho dos profissionais responsáveis, bem como as atitudes dos cidadãos da comunidade, cuja linguagem denota a ênfase do mito e da história institucionalizados podem predeterminar o sucesso turístico de uma região. Dentro das diversas atrações que formam o produto turístico de Fortaleza, podem-se exemplificar para um melhor entendimento as principais atrações da cidade turística. Os produtos como City Tour, By Nigth, turismo de praia, turismo com humor e turismo cultural são algumas das diversas atrações turísticas que se institucionalizaram na cidade de Fortaleza como forma de atrair o turista muito antes dele chegar na cidade, conforme coloca Gazeta Mercantil (1998). No City Tour, conforme já mencionado, as atrações históricas e mitológicas ficam em evidência quando exemplificam personagens como Martins Soares Moreno, Iracema e Moacir dentro de outros diversos que compõem a história do Ceará. Godoitrigo (1999, p.47) referenciando a pós-modernidade das instituições na estrutura, afirma: “Faz-se necessário articular novamente uma discussão sobre os


valores de mitos, símbolos e questões estéticas, para se tentar configurar no futuro uma nova identidade cultural e artística”. Todo trabalho estruturado e institucionalizado com esse tipo de atração reflete na ação individual dos profissionais de guia de turismo e de recepção de hotéis e ainda na ação coletiva dos cidadãos cearenses, quando pela ação verbal explica de forma encantadora o processo de colonização do estado do Ceará e da formação da cidade de Fortaleza que se deu por meio de uma história de amor entre Iracema, título do romance indianista do escritor cearense José de Alencar e descrita nessa obra como a virgem dos lábios de mel, e de Martins Soares Moreno, o guerreiro branco português. Assim, é importante registrar que não importa o profissional ou cidadão cearense que explique a história de colonização do Ceará e de formação da cidade de Fortaleza, ou seja, podem-se mudar os atores, mas o City Tour sempre será explicado pela perspectiva histórica e mitológica dos locais visitados. O By Night da cidade de Fortaleza pode ser considerado estruturado e institucionalizado pela ação quando se observa um deslocamento dos turistas para a festividade de cada noite. Pode-se observar que o By Nigth de Fortaleza é institucionalizado, fato que resulta numa melhor compreensão turística, visto que os visitantes sabem onde se encontrarem diariamente, quando enfim, quiserem. A ação do trabalho se desenvolve à medida que os profissionais e os cidadãos indicam aos visitantes qual o By Nigth do dia institucionalizado a participar (GAZETA MERCANTIL, 1998). No turismo de praia, a questão se apresenta bem mais relevante, visto que nesse caso, a institucionalização envolve interesses particulares de representantes do governo e empresários locais, no que se refere à escolha das praias que farão parte dos roteiros de passeios, obedecendo a diversos aspectos, sejam eles naturais, culturais e econômicos. Barreto (1991, p.85) estabelece que: “O planejamento de uma praia requer a previsão de: acessos, estacionamento, água, esgoto, energia elétrica, sanitários, equipamentos esportivos, rede


de alimentação e, como oferta diferenciada, vestiários, aluguel de guarda-sol, cadeiras, barracas, caiaques, windsurfe, escola de esportes náuticos. Como serviços imprescindíveis: vigilância, salvamento (pessoas e equipamentos), primeiros socorros (pessoal treinado)”. Tais aspectos compreendem a beleza natural da praia, o tempo de deslocamento partindo de Fortaleza, a infraestrutura do local, a diversidade de lazer, as situações das rodovias excelentes, as condições de higiene do local e outros. Coriolano (1998, p.43) comenta: “Nesse litoral, as praias do Porto das Dunas, onde fica o parque aquático Beach Park, Praia das Fontes, Porto Canoa e Canoa Quebrada são procuradas por turistas internacionais. Possuem há mais tempo uma infraestrutura para o lazer”. Após a escolha e estruturação dos destinos turísticos de lazer, a ação do trabalho institucionalizado ocorre quando os profissionais da área oferecem para a venda, somente as praias que estão no roteiro estruturado. Assim, o turista objetivando segurança e comodidade tem na sua escolha de lazer somente as praias que lhe foram apresentadas pelos profissionais de turismo. Em Fortaleza, pode-se considerar institucionalizada a questão do Fast-Food com apresentação de shows de humor. Coriolano (1998, p.49) enfatiza: “Costuma-se dizer que o cearense é hospitaleiro, “aberto”, gosta de fazer amizade e ser cômico. Essas qualidades muitas vezes se apresentam em tom de bom humor ou humorismo. Algumas dessas qualidades são básicas para o turismo, embora essa base não dispense o profissionalismo”. A institucionalização da cultura do Ceará, por exemplo, se formaliza pelas ações das apresentações dos maracatus de “baque virado”, caracterizado pela pintura de preto no rosto dos brincantes e pela luxuosidade de suas indumentárias no próprio centro cultural, nos centros de convenções e no aeroporto por ocasião da abertura da alta temporada.


O modelo turístico de referência Para se estruturar e institucionalizar uma cidade turística é necessário, primeiramente, fazer uma análise de sua localidade. Tal análise deve abranger diversas perspectivas que vai a partir da estrutura física para o recebimento, da beleza natural até a formação da estrutura comportamental (técnica e cognitiva) dos atores sociais que convivem e trabalham na localidade. Barreto (1996, p.34) reforça: “A etapa de estudo-diagnóstico define-se como sendo de investigação, reflexão, compreensão e juízo dos dados da realidade a partir de um quadro normativo definido, com fins operativos com vista à intervenção”. Assim, a teoria da ação e institucionalização se torna importante perspectiva de análise, visto que por meio dela, pode-se compreender as ações individuais dos profissionais da área e das ações coletivas do governo e da comunidade em que o turismo pretende se desenvolver. Por meio de análises é que se definirão quais os recursos disponíveis e necessários da localidade que fundamentarão suas perspectivas quanto aos trabalhos com a questão de escolha e preservação de lugares tidos como especiais de acordo com o seu grau de beleza natural, higiene e bem-estar físico e social. A perspectiva mitológica é importante no sentido de dimensionar o fator cognitivo de maior satisfação por parte do turista, muitas vezes não percebida, mas que possui um importante fator de diferencial na qualidade de serviço desenvolvido pela área. Nesse sentido, por meio do uso de linguagem, na explicação do mito, de acordo com os fatos locais, são apresentados pelos profissionais numa sequência de hábitos que torna as ações institucionalizadas, não importando quais atores as exerçam. Meyer e Rowan (1991, p.41) argumentam que: “As estruturas formais das organizações industriais refletem dramaticamente o mito de seu ambiente institucional por ocasião de suas atividades de trabalho”. Assim, as ações de trabalho dos profissionais da indústria do turismo tendem a colocar sempre em evidência o mito.


Já a perspectiva histórica, que também deve ser trabalhada, apresenta conotações para o entendimento de fatos reais de acordo também com a localidade do passeio em questão. Tal perspectiva complementa o encantamento sentido pelo turista sobre o conhecimento dos fatos reais existentes no passado da localidade conhecida. Assim, os profissionais de turismo podem desenvolver um trabalho de maior qualidade, visto que somente dessa forma o turista atinge um grau de satisfação que vai além das perspectivas físicas e naturais. Vale ainda mencionar a perspectiva intitulada “história da arte como história da cidade”, uma perspectiva que também encanta o turista, visto que a partir da restauração de prédios com características de arte, seja ela de natureza clássica, neoclássica, gótica ou moderna; o profissional de turismo no exercício de seu trabalho explica essas particularidades juntamente com a história do prédio em questão em suas visitas com grupos turísticos. De acordo com tais perspectivas, a análise de planejamento turístico abrange aspectos da infraestrutura local, da beleza natural, da história da arte como história da cidade, das relações sociais e cognitivas necessárias para a compreensão do modelo final de referência para a estruturação e institucionalização de uma cidade turística. Nesse sentido, tem-se uma compreensão mais abrangente desse processo, visto que, a questão analisada refere-se aos aspectos determinantes, oriundos do ambiente de legitimação, impostos pelos órgãos competentes, bem como da ação de trabalho interna desenvolvida de forma institucional. Beni (1998, p.44) explica: “A partir dessa base conceitual, pode-se configurar o diagrama de contexto do sistema de turismo que permite visualizar três grandes conjuntos: o das relações ambientais, o da organização estrutural e o das ações operacionais, bem como seus componentes básicos e as funções primárias atuantes em cada um dos conjuntos e em interação no sistema total” (grifo nosso).


Conclusões e recomendações Este trabalho analisou, por meio das teorias da ação e institucionalização, a forma da estruturação e institucionalização do turismo em Fortaleza, de forma que as conclusões obtidas sirvam de referências, particularmente as oriundas da ênfase da perspectiva histórica e mitológica, para qualquer localidade que deseja atingir eficácia no serviço turístico, a partir de um grau mais elevado da satisfação do turista em sua visita. Assim, tais perspectivas trabalham a questão cognitiva do processo de satisfação do turista de forma que as ações de trabalho desenvolvidas pelos profissionais da área complementam o processo necessário de institucionalização desenvolvido pelos órgãos competentes no referente aos aspectos físicos e de infraestrutura, quando nos planos turísticos gerais de desenvolvimentos. Donaldson (1998, p.122) afirma que: “Tem havido alguns movimentos no sentido de demonstrar o papel dos indivíduos em formatar a estrutura organizacional, em que as características individuais somam-se às contingências na explicação da estrutura”. Este artigo objetivou analisar a ideia de estruturação e institucionalização de uma cidade turística a partir da correlação da teoria institucional e estrutural partindo das análises de duas correntes teóricas oriundas do ambiente externo por forças de normas e leis e do ambiente interno pela força do trabalho de atores, de forma que, ambas conceituações teóricas, relacionadas em conjunto, apresentam resultados mais conclusivos e mais compreensíveis da realidade do fenômeno em estudo. Conclui-se então que um estudo mais relevante, em termos de maior profundidade empírica, deve ser realizado para permitir uma abrangência de aspectos cognitivos e técnicos dos trabalhos dos profissionais de turismo no que se refere a sua ação para estruturação e institucionalização de uma cidade turística; visto que este trabalho apenas tratou da apresentação explicativa do processo teoricamente correlacionado, e tão pouco analisado desta outra forma. Outros estudos, também analíticos, devem ser realizados abordando a real necessidade ou não da formação de um mito para


o desenvolvimento dos planejamentos de cidades com tendências turísticas e ainda uma análise comparativa do processo de institucionalização por meio da ação de trabalho e de normas impostas pelos órgãos de turismo como fatores dimensionadores dos respectivos graus de importância de ambas perspectivas para o processo de formação de uma cidade turística em questão.

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COMPETITIVIDADE TURÍSTICA E DIFERENCIAÇÃO ESPACIAL NO PÓLO COSTA DAS DUNAS/RN/BRASIL31

Maria Aparecida Pontes da Fonseca Rosana Mazaro

O setor turístico do estado do Rio Grande do Norte, a exemplo do que ocorre no resto do mundo, vem apresentando, nas últimas décadas, resultados extraordinários e sucessivos recordes no que se refere aos indicadores de fluxo de visitantes, arrecadação, emprego, renda e, mais recentemente, investimentos estrangeiros, alcançando o turismo hoje ao status de atividade econômica de maior contribuição ao PIB estadual e projetando o RN para a posição de segundo destino turístico do Nordeste brasileiro (EMBRATUR-FIPE, 2005). No entanto, a observação e consideração de dados quantitativos isolados e imediatos como fatores de avaliação do desempenho competitivo dos destinos potiguares não é suficiente para caracterizar uma situação favorável e próxima daquilo que vem sendo apontado pelos diferentes estudos e pesquisas como modelos de desenvolvimento turístico local que atendam satisfatoriamente aos determinantes competitivos e condicionantes sustentáveis em um contexto global e sob uma perspectiva estratégica. 31 Apoio do MCT/CNPq.


Este contexto exige a superação da concepção de um destino como produto turístico para uma orientação de experiência integral ao visitante, o que implica em preocupação com fatores relacionados a diferentes dimensões de planejamento, organização e gestão dos recursos e atrativos turísticos de cada localidade (VALLS, 2004; GODFREY, 1998). A exaltação de resultados positivos em sua maioria relacionados a indicadores econômicos e que refletem benefícios imediatos, tende a negligenciar fatores comprometedores do futuro da atividade e da localidade turística, inclusive, destruindo argumentos sobre os quais se fundamenta o próprio turismo e a experiência prometida ao visitante. Entendendo os impactos do turismo sobre as localidades do destino potiguar como um tema de extrema relevância e de presença compulsória nas pautas dos responsáveis por seu planejamento e gestão, esta pesquisa teve como objetivo central analisar até que ponto as condições competitivas dos municípios do Pólo Costa das Dunas (PCDunas) correspondem aos fatores determinantes globais que caracterizam um desempenho competitivo superior e sustentável para destinos turísticos atuais e futuros. Com relação à metodologia, a pesquisa caracteriza-se como comparativa de casos e combina técnicas quantitativas e qualitativas para levantamento e análise dos dados. Utiliza-se como instrumento de avaliação o Competenible Model32, que consiste em uma proposta sistematizada dos principais atributos de avaliação das condições de competitividade e sustentabilidade de destinos turísticos e que interpreta o sistema turístico sob três dimensões de um mesmo processo: uma condição de maturidade, competitividade e sustentabilidade (eficiência-eficácia-efetividade), que juntas caracterizam uma situação geral denominada Sustentabilidade Estratégica do Destino (SED). Uma explicação detalhada da metodologia se pode encontrar em Mazaro (2006). 32 Competibilidade.


As dimensões do Modelo reúnem os principais fatores de influência sobre as condições competitivas do destino e que são considerados como determinantes de desempenho turístico superior. O universo corresponde aos dezesseis municípios que compõem o Pólo Costa das Dunas. No entanto, a análise neste trabalho se concentrará em dois destes destinos turísticos: Natal e Tibau do Sul. Esses municípios concentram grande parte da atividade turística do Estado e a esmagadora maioria dos recursos, atrativos e infraestrutura turística do Pólo que tem como segmento turístico principal o lazer e como primeiro atrativo o sol e praia. O levantamento de dados foi realizado em fontes secundárias e primárias. Foram realizadas entrevistas com representantes dos agentes institucionais do turismo local e regional com interesse sobre suas atividades e impactos, tais como governo local/regional, líderes de associações e sindicatos, dirigentes de organizações não-governamentais. A análise de dados baseou-se em indicadores quantitativos e qualitativos de avaliação das condições de desenvolvimento, competitividade e de sustentabilidade turística das localidades, objeto de verificação neste trabalho, de acordo com o Competenible Model. Novos padrões de competitividade e de sustentabilidade para destinos turísticos Vários estudos apontam o incrível crescimento da atividade turística mundial nos últimos anos. Conforme a OMT, entre 1990 e 2006, o fluxo de turistas internacionais praticamente dobrou. Ainda que o continente europeu continue a deter uma significativa cota desse mercado, diferentes e espacialmente espalhadas entre praticamente todos os continentes, surgem para brigar por parte desse quinhão, novas e diversificadas destinações turísticas que apontam para uma nova configuração da competitividade turística internacional. No ano de 1990, a chegada de turistas internacionais no mercado global se distribuía da seguinte forma: Europa (60,1%), Amé-


ricas (21,28%), Ásia e Pacífico (12,88%), África (3,48%) e Oriente Médio (2,2%). Em 2006, dezesseis anos depois, verificam-se mudanças no fluxo turístico global, de modo que a Europa continua a liderar, mas apresentando diminuição de sua cota para 54,4%, assim como as Américas que passam a ter uma participação menor, caindo para 16,1%, enquanto a Ásia e Pacífico ganham posições, participando com 19,8%, constituindo-se um mercado emergente, a África e o Oriente Médio também têm um incremento da atividade turística, participando com 4,8% e 4,9%, respectivamente. Nesse contexto, compreender o significado e condicionantes de competitividade para o turismo tem merecido a atenção de pesquisadores, governantes, investidores e de todo um conjunto de agentes interessados em incentivar o setor como alternativa ao desenvolvimento sustentável para diferentes localidades. (RITCHIE; CROUCH, 1998 e 2003; VALLS, 2004). Os parâmetros competitivos globais para destinos turísticos parecem definidos por modelos teóricos que interpretam o sistema turístico em sua dinâmica e que, dentre uma infinidade de fatores que podem influenciar o seu sucesso competitivo, alcançam cotejar um conjunto comum daqueles que se pode caracterizar como fatores determinantes de êxito (MAZARO; VARZIN, 2005). Ainda, esses modelos reproduzem um novo contexto competitivo para o turismo e, mais que um elenco de fatores relacionados ao desempenho de mercado e resultados econômicos, estão orientados por uma nova ordem na compreensão da dimensão e impactos das atividades turísticas sobre outras variáveis macroambientais, entendidas como condicionantes do desenvolvimento integral das localidades turísticas (BOSCH et al., 1998; CROUCH; RICTHIE, 1999). Estabelecido um conjunto comum de fatores condicionantes e determinantes, o esforço científico agora se volta para a avaliação das condições concretas de competitividade dos destinos, a partir de padrões de desempenho competitivo superior, sugeridos por estudos


com destinos turísticos referenciais, e que, principalmente, fundamentam o seu desenvolvimento em obediência e atenção preferencial a esse conjunto de fatores. A seguir, apresentaremos alguns indicadores que mostram a expansão recente da atividade turística potiguar decorrente do processo de internacionalização. A internacionalização do turismo potiguar Considerando as dificuldades dos países periféricos em competirem com os países centrais, nos segmentos mais tradicionais da economia, pela exigência de grandes inversões em desenvolvimento tecnológico e de inovações e em qualificação de pessoal, estes redirecionam o alvo de atenção para segmentos econômicos que potencializem aquilo que já possuem como recurso inato, como a disponibilidade de extensas áreas ainda pouco alteradas pela ação do homem e que, em sua maioria, compõem paisagens paradisíacas e exóticas, condições climáticas favoráveis e abundância de mão de obra. Tendo em vista que essas características conformam um cenário de oportunidades para o turismo, se observa grande interesse desses países na promoção do setor turístico, especialmente de segmentos ligados à natureza, tais como turismo verde, turismo de aventura, turismo rural, agroturismo, ecoturismo, geoturismo, dentre outros, uma vez que esta atividade constitui uma das poucas possibilidades de inserção mais ativa na economia globalizada e que, equivocadamente, não demanda de imediato grandes investimentos. Para Beni (2003, p.28) “o turismo [...] passou há pouco a ser visto como o único meio de permitir às nações mais pobres viabilizarem sua integração à economia mundial”. É nesse contexto que, a partir dos anos noventa, o governo brasileiro começa a desenvolver esforços continuados para promover o turismo no país. As ações do Governo Federal para captação da demanda internacional têm sido exitosas, uma vez que no intervalo de


aproximadamente dez anos o fluxo receptivo internacional cresceu cerca de 100%: em 1996 esse fluxo foi de 2,7 milhões, enquanto no ano de 2005 aumentou para 5,4 milhões (MTUR). O Nordeste brasileiro constitui uma das áreas prioritárias de investimentos turísticos públicos e privados em virtude de sua vasta faixa litorânea, da predominância absoluta de dias de sol durante o ano, clima tropical e da sua diversidade cultural. A existência desses fatores locacionais atraiu, inicialmente, a atenção de investidores nacionais e agora, em função da maior capitalização do território propiciada por políticas públicas que têm destinado recursos para a infraestrutura básica, verifica-se a chegada de investimentos de grupos internacionais que atuam nos segmentos turístico e imobiliário. No Rio Grande do Norte, os investimentos efetuados pela primeira etapa do Programa de Desenvolvimento do Turismo (PRODETUR/RN), foram fundamentais para a inserção mais efetiva do Estado no fluxo turístico internacional e para a atração de investimentos estrangeiros. A ampliação e modernização do aeroporto e investimentos no sistema viário (estradas), que totalizaram 77,8% das inversões na primeira fase desse programa, marcaram o início do processo de internacionalização do turismo potiguar, uma vez que esses dois componentes vieram facilitar as conexões e interações espaciais, aspecto fundamental para o desenvolvimento do sistema turístico, conforme demonstrado em trabalho anterior (FONSECA, 2004). A inserção do produto turístico potiguar no turismo globalizado se expressa através de alguns dados, que são mostrados a seguir. Em 2001, a participação de estrangeiros no fluxo turístico da Grande Natal era de aproximadamente 13% e no ano de 2005, esse percentual aumentou para 20%. Com relação aos principais países emissores para o ano de 2005, Portugal assume liderança participando com cerca de 34% do fluxo internacional no Rio Grande do Norte; em segundo lugar, o destaque é para a Espanha emitindo 18% desse fluxo, seguida da Argentina (8,6%), Holanda (7,0%), Suécia (6,0%) e Itália (5,8%) (SETUR, 2006).


A magnitude assumida pelo turismo internacional também se expressa pelo movimento de aeronaves internacionais no aeroporto local. No ano de 2001, ocorreram 297 pousos procedentes do exterior e em 2005, esse número elevou-se para 1.092, aumentando, portanto, 367,6% em um período de apenas quatro anos. Paralelamente ao aumento do fluxo internacional de turistas, verifica-se um extraordinário incremento de investimentos estrangeiros no estado do Rio Grande do Norte. Com base em dados da SETUR/RN, nota-se que a procedência dos investimentos estrangeiros em realização ou previstos no Estado é predominantemente europeia, com destaque para os portugueses e espanhóis, seguidos de italianos, noruegueses, suíços, franceses e de brasileiros quase sempre associados ao capital internacional (FONSECA, 2007). A competitividade dos destinos turísticos potiguares no contexto da internacionalização Os dados apresentados acima expressam a magnitude do crescimento do turismo potiguar, mas não são suficientes para indicar se as destinações turísticas do estado atendem os determinantes competitivos e condicionantes estratégicos exigidos atualmente sob uma perspectiva estratégica e de longo prazo. Procurando avançar na análise, iremos avaliar três dimensões das duas destinações consideradas na pesquisa (Natal e Tibau do Sul), conforme modelo proposto por Mazaro (2006): o Desenvolvimento Turístico do Destino, a Competitividade Turística do Destino e a Sustentabilidade Estratégica do Destino. Desenvolvimento turístico do destino Pólo Costa das Dunas/RN Aquilo que no modelo de referência foi definido como estado de desenvolvimento ou maturidade institucional do destino, diz respeito às políticas locais de turismo, através das quais são definidas


as formas de gestão e planejamento turístico. Conforme Mazaro (2006, 160), “esta dimensão de análise compreende as condições primárias sobre as quais o turismo está organizado e estruturado no contexto local”, sendo essencial para o êxito competitivo de uma destinação.

Cartografia: Josué Alencar Bezerra, 2007. Organização: Maria Aparecida Pontes da Fonseca. Fonte: Brasil/MTur (2004). Mapa 1 - Regiões Turísticas no Rio Grande do Norte/Brasil

Apesar dos esforços no sentido de interiorização do turismo potiguar, a atividade concentra-se no Pólo Costa das Dunas (PCDunas), localizado no litoral oriental (Mapa 1). Esse Pólo é composto por 16 municípios que, em seu conjunto, ofertam 64,8% dos meios de hospedagens e 76,7% das unidades habitacionais do total existente no Estado (SETUR, 2007). Dentre esses municípios, encontramse as duas principais destinações turísticas do Estado, representadas por Natal e Tibau do Sul, onde se destaca a Praia de Pipa, localizada


a cerca de 90 km ao sul de Natal. Nesses dois municípios, o turismo encontra-se consolidado, constituindo-se em uma das principais funções urbanas. Focando a atenção para esses dois destinos do PCDunas, verifica-se grande deficiência nas linhas norteadoras e diretrizes gerais do turismo, no sentido de propiciar uma gestão mais integrada da atividade em uma perspectiva de médio e longo prazo, o que pode ser constatada pela escassez de instrumentos de gestão, tais como planos, programas e projetos turísticos. No atual estágio de desenvolvimento da atividade, os interesses mais imediatos do mercado são definidores do modelo turístico potiguar e as ações em turismo estão concentradas na promoção do destino. Esses destinos, conforme sugerido pelo modelo de referência, são caracterizados como míopes em relação ao futuro, ou seja, não têm fixado o modelo de desenvolvimento turístico a ser implementado e apenas reagem às contingências. Ainda que Natal e Tibau do Sul integrem o PCDunas e que este se encontre atuante de fato e de direito há mais de 10 anos e que, através do Pólo essas localidades tenham recebido a maior parte dos recursos destinados ao RN pelo Prodetur/NE, os agentes não são protagonistas do turismo local, mas sim expectadores, resultando em uma postura de incentivo indiscriminado ao turismo e ao imediatismo nas decisões, justificadas por critérios quantitativos e invariavelmente econômicos. De acordo com Valls (2004), esses destinos se encontram em um estado básico de organização e gestão para o turismo, concentrando a atuação em atribuições de comercialização, comunicação e promoção da marca. Os programas e ações implementadas são quase sempre originados do Governo Federal e os mecanismos e programas de desenvolvimento e financiamento do turismo são oriundos de fontes externas e, certamente, insuficientes para o atendimento das carências básicas das localidades no que diz respeito tanto a questões de infraestrutura geral e turística, quanto à qualificação para a gestão do turismo. Ainda que esses dois municípios mantenham em suas estruturas administrativas um órgão específico


de gestão do turismo local sob a tutela de secretaria municipal, o setor não é benemérito de recursos orçamentários oficiais para investimentos e, muitas vezes, até para atendimento de suas inerentes necessidades gestoras. Considerando que a destinação de recursos consiste em um dos condicionantes para o exercício de uma gestão efetiva e protagonista do turismo, a insuficiência destes tem gerado uma espécie de gestão figurativa do governo local em turismo, quando muito uma gestão coadjuvante. Apesar das distorções ainda predominantes na condução do turismo, Natal possui condições mais satisfatórias no que se refere a esta dimensão em relação à Tibau do Sul, por ser a capital do Estado e apresentar uma estrutura organizativa significativamente diferenciada da outra destinação, estar mais bem preparada para o turismo, com gestores mais capacitados, possuir maior disponibilidade de recursos financeiros e instrumentos de gestão mais consistentes que definem as diretrizes de uso e ocupação do solo, inclusive delimitando e regulamentando as áreas de interesse turístico. Competitividade turística do destino Pólo Costa das Dunas/RN A competitividade turística refere-se, de modo geral, as características da oferta turística, a forma como esse produto é colocado no mercado e a sua capacidade de retenção e satisfação da demanda. Para Mazaro (2006, p. 177) “se atribuem a esses fatores os padrões de eficiência que podem alcançar os processos de gestão e produção dentro do sistema turístico”. Estão relacionados mais aos resultados colhidos pelo destino como consequência de suas decisões sobre a composição de sua oferta turística e, principalmente, a resposta que obtém da demanda. O atributo básico de referência avaliado nessa dimensão está relacionado aos recursos e atrativos do destino. Nesse quesito, Pipa está mais bem posicionada que Natal e de acordo com o mode-


lo de referência utilizado na avaliação, apresenta um significativo e diferenciador conjunto de atrativos turísticos, tendo nos recursos naturais o fundamento de sua oferta e de seu posicionamento de mercado, e que, pela extraordinariedade desses recursos, reúne condições de definir e compor um conjunto de atrações com potencialidade de posicionar-se em seu segmento competitivo ao nível de seus máximos concorrentes. Natal, por sua vez, apresenta um relevante conjunto de recursos e atrativos turísticos, combinando sol e praia com turismo urbano, onde a gastronomia e o comércio complementam a oferta de atividades diretamente turísticas. No entanto, em que pese à existência de importantes recursos naturais e históricos nos destinos analisados, esses apresentam um restrito conjunto de atividades, com escassos e ocasionais esforços na consolidação de um núcleo consistente de atividades para oferta aos visitantes, que integre diversificadas experiências, de modo a explorar, no melhor dos sentidos, os atributos inatos e natos das destinações e que seja capaz de sustentar um posicionamento competitivo diferenciado. Notadamente, o gap entre o que se tem de recursos e o que se é capaz de fazer com tais recursos, só pode ser vencido pela capacidade inventiva, criativa e, sobretudo, comprometido dos agentes locais com a gestão do destino; e para isso, exigem-se grandes esforços, mas, em consonância com a abordagem que orienta esta análise, são os caminhos mais consistentes para se alcançar posições competitivas duradouras. Tabela 1: Natal e Tibau do Sul / RN Capacidade dos meios de hospedagens e unidades habitacionais - 1999/2004 Destinação turística

1999

2001

2003

2004

MH

UH

MH

UH

MH

UH

MH

UH

Natal

178

5757

179

6548

179

7162

199

7653

Tibau do Sul

57

593

73

770

78

950

83

1255

FONTE: SETUR/RN MH: Meios de Hospedagens, UH: Unidades Habitacionais.


Com relação à oferta turística no segmento hospedagem, Natal encontra-se mais equipada com 199 unidades que totalizam 7.653 unidades habitacionais, representando 31,9% e 56,2%, respectivamente do total estadual. Levando em conta as diferentes proporções, Tibau do Sul aparece em posição inferior, dispondo de 83 meios de hospedagem e 1.255 unidades habitacionais correspondendo a 13,3% e 9,2%, respectivamente, do conjunto estadual. No entanto, quando observados os dados disponíveis referentes ao período de 1999-2004 (Tabela 1) verifica-se que Tibau do Sul tem apresentado crescimento de sua infraestrutura hoteleira muito superior a Natal (45,6% dos meios de hospedagens e 111,6% das unidades habitacionais). O rápido crescimento da oferta hoteleira sugere um incremento também rápido do fluxo turístico, o que nem sempre é satisfatório para o êxito competitivo da destinação, uma vez que pode comprometer a qualidade do produto, especialmente quando se trata de destinações onde a natureza é o fundamento sobre o qual se assenta a atividade, como é o caso da praia de Pipa em Tibau do Sul. Já no segmento alimentação, esse município se diferencia de Natal, congregando a rusticidade ambiental com uma gastronomia diversificada e sofisticada, que se expressa pela presença de restaurantes portugueses, espanhóis, italianos, suíços, dentre outros, imprimindo um diferencial a essa destinação. No que tange a infraestrutura básica dos dois destinos, igualmente respeitadas as respectivas proporções, se identifica substancial investimento na construção, ampliação e melhoria das condições de acesso aos destinos, fator condicionante do fluxo, considerando que esse acesso é feito fundamentalmente via terrestre e por meio rodoviário. Ainda que Pipa já sustente a condição de destinação independente no que diz respeito à capacidade de atração de visitantes no âmbito regional, nacional e internacional, o acesso aéreo mais próximo é Natal, que detém a condição de portão de entrada aéreo do turismo potiguar. Dessa forma, os acessos terrestres e os meios de transporte coletivo eficientes são atributos determinantes para o êxito competitivo desses destinos.


Em ocasiões de grande fluxo, como no período de férias escolares e feriados prolongados, a infraestrutura turística dá sinais de esgotamento ao registrar engarrafamentos nas ruelas de Pipa, impossibilidade de acesso a determinados pontos devido ao grande número de automóveis, estacionamentos improvisados em calçadas e espaços para pedestres. Natal, como metrópole não planejada do Estado, acumula os problemas antigos com os da modernidade e típicos de grandes centros urbanos como ocupação desordenada do solo, excesso de veículos, saturação do sistema de abastecimento de água e esgoto, poluição e acúmulo de resíduos de toda natureza, entre tantos outros. Como consequência das condições gerais de preparação para o turismo analisadas na dimensão desenvolvimento ou maturidade dos destinos, conforme sugerido pelo modelo de referência e confirmado nesta avaliação, a dimensão que analisa atributos de competitividade do destino revela a miopia antes comentada, ao contabilizar resultados mais insatisfatórios que satisfatórios em indicadores importantes para a construção de estratégias competitivas consistentes e diferenciadas. Os dados de tempo de permanência nestes destinos e de sazonalidade do fluxo durante os diferentes períodos do ano são relativamente positivos e representam indicadores da potencialidade destes destinos em alavancar outros segmentos de mercados, uma vez que as condições geográficas e climáticas possibilitam por estratégias de diversificação e segmentação, manter índices de fluxo equilibrados e ainda, explorar segmentos qualificados de demanda para o incremento do indicador referente ao nível de gastos dos visitantes e, portanto, dos benefícios gerados pelo turismo na localidade. Em face da ausência de um plano global de gestão turística do destino, como antes apontado, não se tem formalizado ou sistematizadas estratégias e ações de marketing, tampouco se tem definido um conceito-posicionamento turístico do destino. Dessa forma e muito longe dos critérios norteadores do marketing responsável, os


esforços de atração estão orientados para segmentos de mercado caracterizados por variáveis de comportamento turístico baseado em modelos tradicionais (Camprubí, et al. 1998), contrariamente ao sugerido para um novo contexto competitivo, baseado na proposição de valor superior para o posicionamento e foco na experiência integral dos visitantes. Já para o quesito satisfação do visitante, as pesquisas realizadas indicam um alto grau de satisfação dos visitantes que destacam os atrativos naturais e a hospitalidade da população local como atributos diferenciadores (SETUR, 2006). Apesar dos indicadores dessa dimensão também se apresentarem mais favoráveis para o município de Natal do ponto de vista quantitativo, Tibau do Sul, particularmente a Praia de Pipa, reúne atributos que indicam oportunidades para o desenvolvimento de uma oferta turística qualitativamente diferenciada, aliando natureza exuberante com um estilo de vida peculiar aos antes vilarejos de pescadores, agora transformados em pequenos centros urbanizados que conjugam diversidade e sofisticação, porém imbuídos por uma atmosfera de despojamento e de liberdade de comportamento que projetam destinações com tais características como coqueluche dos desejos de turistas do mundo todo. Sustentabilidade turística do destino Pólo Costa das Dunas/RN Considerando que a sustentabilidade está vinculada inexoravelmente a perspectiva de longo prazo e que os impactos estão representados por fatores possíveis de se avaliar apenas ao longo do tempo, o Competenible Model estabelece uma terceira categoria de análise denominada sustentabilidade turística. Os atributos desta dimensão equivalem aos outputs do sistema turístico, revelando as alterações ou pressão que o turismo exerce sobre importantes elementos naturais e socioculturais na localidade, que podem ser positivos ou


negativos, e que vão sugerir as condições de sustentabilidade ou não dos destinos no presente e frente ao futuro. O foco da análise centra-se em elementos que relacionam diretamente as atividades turísticas com os recursos do meio ambiente natural e com a comunidade local, sua história e cultura, seus recursos materiais e imateriais. Nesse sentido, se pode inferir que ambos os destinos aqui analisados apresentam condições muito semelhantes no que se refere aos cuidados com os recursos naturais. Novamente, respeitando as devidas proporções e características de urbanização absolutamente distintas tanto Natal quanto Tibau do Sul revelam situações preocupantes quanto ao uso, tratamento e distribuição de água, a dependência de fontes energéticas tradicionais e o descuido com o uso da energia elétrica, em que pese o já propagado potencial da região para a exploração de fontes alternativas de energia como a solar e eólica. Entendendo o transporte como um dos fatores estruturantes do turismo e de extrema relevância para o planejamento urbano na atualidade, os destinos avaliados revelam condições aquém do esperado, apresentando falhas tanto na diversificação de meios de transporte quanto na qualidade daquilo que já oferece. Igualmente, o modelo de turismo seguido pelos destinos aqui analisados segue tendências contrárias àquelas recomendadas pelos pressupostos sustentáveis para os destinos turísticos. Praticamente, de todos os atributos ou indicadores observados nesta dimensão de análise e sugeridos pelo modelo de referência, não estão sendo alvo de decisão e atuação mais contundente por parte dos agentes tendo em vista a preservação dos fundamentos sobre os quais repousa o próprio turismo, como é o caso dos recursos naturais. Com relação à sustentabilidade social e cultural, tampouco se observa uma mobilização por parte dos agentes turísticos envolvidos no sentido de garantir uma inserção mais efetiva da população na atividade turística, através da promoção do empreendedorismo local de modo a possibilitar maior distribuição da riqueza gerada pela ati-


vidade. Verifica-se o empenho por parte do poder público em atrair grandes investimentos turísticos e turístico-imobiliários, conforme vimos acima. Em poucas palavras, a dimensão da sustentabilidade turística se apresenta bastante frágil nas destinações consideradas neste trabalho. Competitividade, turismo e diferenciação espacial no Pólo Costa das Dunas Ao discutir a relevância assumida pela categoria espacial no atual estágio do capitalismo, Harvey (1993, p. 267) observa um paradoxo que ele expressa da seguinte forma: “Quanto menos importante as barreiras espaciais, tanto maior a sensibilidade do capital às variações do lugar dentro do espaço e tanto maior o incentivo para que os lugares se diferenciem de maneira atrativa para o capital“. Para esse autor, a redução das barreiras espaciais implicou uma valorização das vantagens decorrentes da localização e aumentou a sensibilidade em relação às diferenciações espaciais. As qualidades espaciais são agora mais valorizadas, uma vez que podem propiciar melhores condições de rentabilidade e competitividade às empresas. No caso específico da atividade turística, observa-se também que o acirramento da competitividade desencadeado com a entrada de novos produtos no mercado tem levado as destinações turísticas a se diferenciarem entre si cada vez mais, seja através da capitalização do território (infraestrutura e equipamentos), da valorização das especificidades locais de caráter natural ou cultural (identidade, história, cultura) ou ainda redimensionando os padrões culturais com a recriação da identidade local (FONSECA, 2004). Nesse sentido, Robertson (2000, p.235) discute a relevância do turismo que busca a diferenciação do espaço local para atender segmentos específicos do mercado, observando que “o turismo internacional é um dos mais destacados espaços da produção contemporânea do local e da diferença”.


A evolução da atividade turística nas duas destinações enfocadas neste trabalho ocorreu de forma bastante distinta. Em Natal, o agente responsável pelo desencadeamento do processo de turisficação foi o poder público (estadual e municipal), enquanto em Tibau do Sul foi o mercado, o que repercutiu na forma de evolução da atividade em ambos os municípios. De modo geral, o processo de gestão do turismo em Natal é mais satisfatório, ocorrendo um diálogo mais estreito entre a administração pública e os empresários do setor e apresentando instrumentos um pouco mais elaborados para nortear a expansão da atividade. Em Tibau do Sul, o mercado, desde o início, se constitui no principal agente turistificador, o que acarretou um desenvolvimento espontâneo e desordenado do turismo, agravado pela omissão do poder público municipal e pelo pouco interesse do poder público estadual em promover a atividade localmente, já que sua prioridade era o desenvolvimento do turismo na capital do estado, isto é, Natal. Essa diferença é crucial para se compreender as características que os dois espaços turísticos assumem, sendo que em Tibau do Sul os agentes exógenos (empresários), que predominam na exploração do turismo local, são os principais responsáveis pela definição do modelo turístico, introduzindo novos elementos na cultura local (gastronomia e padrões de comportamento, por exemplo), redefinindo, portanto, a identidade do lugar e da população local. Natal, com relação à infraestrutura básica, que já era servida de forma muito superior, foi privilegiada pelas políticas públicas estaduais enquanto área de investimentos turísticos prioritária, propiciando uma maior capitalização do espaço através de investimentos em infraestrutura (saneamento, urbanização, recuperação de parques etc.). As condições de competitividade mais favoráveis em Natal foram reforçadas pelas políticas estaduais de turismo, acentuando a diferenciação entre Natal e Tibau do Sul. Considerando as qualidades superiores de Natal em termos de infraestrutura básica, não é difícil entender o maior poder de atração de investimentos turísticos para essa destinação, que conta


inclusive com hotéis de redes internacionais que primam pela qualidade dos serviços prestados. De modo que Natal se diferencia de Tibau do Sul tanto do ponto de vista quantitativo como qualitativo no que diz respeito aos meios de hospedagens, que se constitui o segmento estruturante da atividade, sendo aparelhada de modo bastante superior. Finalmente, quando analisamos a dimensão da sustentabilidade turística, as duas destinações não se diferenciam muito, pois apresentam problemas bastante similares, de modo que as externalidades negativas do turismo são significativas seja no âmbito natural, social ou cultural. Na Praia de Pipa, a magnitude desses impactos é mais intensa, especialmente os culturais, uma vez que as verticalidades (SANTOS, 1999) incidem localmente de forma mais agressiva pelo fato da comunidade apresentar um nível de organização ainda elementar e um baixo grau de autonomia. Assim, nas duas destinações, o processo de gestão turística não estimula a integração e a participação do conjunto da população local, de modo que o espaço produzido para fins turísticos exclui e segrega o cidadão, o que se constitui um equívoco, na medida em que a ausência do residente desses espaços contribui para a insustentabilidade dos mesmos, se pensarmos em médio e longo prazo. Apesar das dificuldades apresentadas nas destinações enfocadas, o acirramento da competitividade turística entre as mesmas tem desencadeado uma requalificação do espaço e a busca pela distinção da destinação turística, de modo que a competitividade entre as duas localidades tem acentuado as diferenciações espaciais. Por outro lado, observa-se também a homogeneização de certos processos espaciais, ou seja, a ocorrência desses processos em ambas as localidades, tais como segregação socioespacial, degradação ambiental, privatização de espaços públicos, além da inserção precária da população local na atividade turística local.


Considerações finais A partir da análise de desempenho dos destinos turísticos a luz dos determinantes traduzidos nos atributos indicados pelo Competenible Model, se pode afirmar que as variáveis de maior motricidade - ou que causam uma maior influência sobre o resto de variáveis consideradas na análise - são classificadas como partes da dimensão maturidade de gestão do destino, relacionadas diretamente com a capacidade dos agentes regionais de fixarem os marcos do desenvolvimento turístico nos âmbitos de seus interesses e atribuições e que vão condicionar as demais dimensões de análise, traduzidos em atributos de competitividade e sustentabilidade turística no destino. A evolução da atividade turística nas duas destinações ocorreu de forma bastante distinta, sendo que Natal sempre foi privilegiada pelas políticas públicas enquanto área de investimentos turísticos prioritária. No entanto, a inegável aptidão de Pipa para a atração de turistas fez voltar a atenção dos agentes regionais para o controle e coordenação desse desenvolvimento e hoje empreende esforços no sentido de auto organizar-se para enfrentar um futuro cujos determinantes são definidos no presente. Considerando que, no contexto atual para o turismo, é consensual a compreensão que a sustentabilidade turística, em todas as suas dimensões, torna-se imprescindível para que um destino turístico seja competitivo, é no marco teórico de convergência destes temas que se justifica o empenho deste trabalho em contribuir para fazer cumprir as premissas sobre as quais repousam o paradigma sustentável e orientar para o desenvolvimento turístico e de sua implementação através de ações que correspondam, ao mesmo tempo, aos critérios de competitividade globalizada e às expectativas de sustentabilidade turística local.


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O PAPEL DO RESIDENTE NA PRODUÇÃO DO ESPAÇO TURÍSTICO EM NATAL/RN

Karina Messias da Silva Maria Aparecida Pontes da Fonseca

O modelo de turismo desenvolvido em Natal/RN, assim como na maioria das demais capitais do Nordeste Brasileiro, tem desencadeado uma especialização dos espaços litorâneos para a recepção do fluxo turístico internacional. As políticas públicas locais e regionais influenciam fortemente a concepção desse modelo, propiciando a ampliação e melhorias infraestruturais nas áreas selecionadas para a promoção da atividade, de modo a proporcionar a atração de investimentos públicos e privados para a cidade. No entanto, à medida que algumas áreas do espaço urbano vão sendo turistificadas, verifica-se uma tendência à intensificação de problemas de natureza socioambiental (prostituição, violência, poluição das praias, entre outros), interferindo nas atividades de lazer dos residentes que acabam se deslocando para outras áreas para praticar tais atividades quando a urbanização turística assume maior magnitude. Observa-se que o processo de desterritorialização dos residentes das áreas turistificadas acaba contribuindo ainda mais para o aumento desses problemas e, portanto, na degradação das áreas turísticas. Dessa forma, a principal questão que se coloca neste trabalho é: qual o papel do residente diante do processo de urbanização turística em Natal?


A hipótese que norteou o desenvolvimento do trabalho é que a frequência por parte do residente às áreas turistificadas é essencial para garantir a sustentabilidade da destinação turística. Comumente os trabalhos existentes sobre a temática do turismo têm dado pouca ênfase à atuação do residente diante da atividade turística e de seus desdobramentos na produção do espaço. Assim, essa linha de pesquisa assume importância, pois se trata de uma abordagem que privilegia o papel do residente, considerando esse um agente importante para a sustentabilidade dos espaços turísticos.

Nota: Mapa trabalhado por Paiva, 2007. Mapa 1 – Praias do município de Natal, objeto do estudo – 2007


Sendo assim, o objetivo deste artigo é analisar a participação dos residentes enquanto agente produtor do espaço turístico natalense, observando suas ações e reações em relação à territorialização turística de suas áreas de lazer. O recorte temporal é definido pela conclusão do PRODETUR/RN I (no ano de 2002), até os dias atuais, período em que ocorre uma intensificação no processo de urbanização turística em Natal decorrente da internacionalização da atividade no estado potiguar, resultando no aumento do fluxo de turistas e investimentos estrangeiros. O recorte espacial abrange as quatro praias da cidade de Natal: as Praias do Centro, a Via Costeira, Ponta Negra e Redinha (ver Mapa 1). Com relação aos procedimentos metodológicos que possibilitaram a realização da pesquisa, optou-se pela aplicação de questionários junto à população local, no período de janeiro a maio de 2007, para obtenção de dados primários. Os questionários foram aplicados junto aos moradores da cidade (totalizando 116 pessoas), englobando, nesta amostra, residentes de várias camadas sociais, faixas etárias, níveis de escolaridade, distribuídas nas quatro Regiões Administrativas de Natal. Foram utilizados também dados secundários obtidos nos seguintes órgãos governamentais: IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística), IDEMA/RN (Instituto de Desenvolvimento Econômico e Meio Ambiente do Rio Grande do Norte); SEMURB (Secretaria Municipal de Meio Ambiente e Urbanismo); SEBRAE/RN (Serviço de Apoio às Micro e Pequenas Empresas do Rio Grande do Norte); CEFET/RN (Centro Federal de Educação Tecnológica do Rio Grande do Norte). O residente enquanto agente produtor do espaço turístico Na produção do espaço turístico, Knafou (1996) identifica a existência de três fontes de turistificação dos espaços, a saber: os


turistas, o mercado e os planejadores turísticos. Tais agentes são os principais responsáveis na transformação de uma localidade em uma destinação turística, imprimindo características específicas ao espaço produzido, segundo o modelo turístico adotado. No entanto, quando nos referimos especificamente ao processo de transformação do espaço desencadeado pela turistificação do lugar, além dos três agentes destacados por Knafou, ocorre a participação de um outro segmento fundamental para compreendermos a natureza dos espaços turistificados: os residentes. Os residentes podem participar da produção do espaço turístico de formas distintas: passivamente, quando aceitam as determinações dos agentes turísticos hegemônicos (Estado e o Mercado) e, de forma omissa, compactuam com a racionalidade dos atores que imprimem a lógica que deve pautar a produção da destinação turística, ou ativamente, quando se manifestam através dos movimentos sociais e como cidadãos que cobram e exigem seus direitos. Ao analisar a produção do espaço na cidade, Carlos (1984, p.86) identifica que “a produção espacial realiza-se no cotidiano das pessoas e aparece como forma de ocupação e/ou utilização de determinado lugar num momento específico”. Ou seja, os espaços na cidade também são produzidos através do cotidiano das pessoas em suas atividades corriqueiras. Neste trabalho, procuramos ressaltar o papel do residente enquanto agente produtor corresponsável pelo modelo turístico urbanístico que vem sendo desenvolvido em Natal. No entanto, devemos considerar que na produção dos espaços turísticos local, o poder público e o mercado (segmento empresarial) assumem relevância em relação aos demais agentes (FONSECA, COSTA, 2004; CRUZ, 2007). São eles que, juntos, impulsionam a concretização da atividade nos territórios. Cabe salientar que a formação de parcerias entre ambos tanto pode acarretar o fortalecimento do turismo enquanto atividade econômica, como gerar parcerias que possam se desdobrar em ações para a elaboração de projetos de preservação ambiental.


Inseridas nessas ações, também podem ser incluídas aquelas que se voltam para a responsabilidade social, não se restringindo apenas em garantir os interesses dos empresários turísticos, nem em gerar divisas aos cofres públicos, mas que respeitem os direitos básicos dos cidadãos, inclusive o direito básico ao lazer. A seguir, abordaremos as formas de inserção dos residentes de Natal na produção do espaço turístico local. O papel do residente diante da urbanização turística em Natal: inserção passiva e inserção ativa No processo de urbanização turística em Natal, os espaços públicos da orla são alvos preferenciais dos agentes do mercado turístico para a produção da atividade turística e, coincidentemente, esses espaços também se constituem nas principais áreas de lazer para o conjunto da população local. Assim, mesmo sendo espaços turísticos, os moradores locais também participam de sua produção, realizando suas atividades de lazer, demandando obras infraestruturais e outras medidas preservacionistas, ou inclusive se retirando das áreas praianas mais turistificadas. Este trabalho optou por relacionar a produção espacial e o residente, considerando-se duas situações: 1- a população se torna um agente passivo, caracterizando-se pela omissão no processo de produção do espaço turístico. O residente abandona seus espaços de lazer e, nesse caso, sua saída também se reverte numa forma de produzir o espaço, na medida em que essa ação potencializa a inserção de outros grupos nos espaços de lazer; 2- a população se torna um agente ativo, quando a sociedade civil organizada não compartilha com a racionalidade excludente e organiza movimentos sociais na defesa de seus interesses.


A inserção passiva A atuação da população em relação à defesa de seus espaços de lazer se reverte em uma situação em que a maioria dos residentes assume uma atitude passiva. Podemos analisar esse comportamento sobre os seguintes aspectos: em primeiro lugar, no planejamento e na gestão da atividade turística não é muito comum considerar a participação da população nas tomadas de decisões, seja por negligência dos principais agentes responsáveis pelas tomadas de decisões (poder público e o dos agentes do mercado turístico), seja por uma atitude hegemônica, isto é, em não inserir deliberadamente a população na esfera do planejamento turístico. Em segundo lugar, existe o conformismo de parcela significativa da população em não fazer valer o seu direito à cidade e, mais especificamente, o direito de manutenção e preservação de suas áreas de lazer. Devemos analisar também que a atitude de passividade da população também vem do descrédito em relação ao poder público vir considerar os interesses dos moradores (CORIOLANO; SILVA, 2005). A atividade turística se concretiza cada vez mais na cidade, associada a uma intensa transformação socioespacial nos locais turistificados, devido à construção e ampliação dos equipamentos turísticos pelos agentes do mercado turístico e pelo poder público, intervenções espaciais estas que se revertem no crescimento do número do fluxo e da receita turística. No entanto, quando se trata de decisões pertinentes à expansão da atividade e dos efeitos perversos que a atividade é passível de causar ao meio ambiente e aos espaços públicos, observa-se uma despreocupação com a população local, sendo pouco considerados os efeitos dessa atividade no cotidiano desses moradores. A ausência de mecanismos que possibilitam a inclusão do residente no planejamento e gestão turística é manifestada por 93,7% dos entrevistados que responderam que nunca foram consultados ou ouvidos a respeito do planejamento dos espaços turísticos.


A pouca expressividade dos residentes em relação às formas de protestos diante dos problemas socioambientais manifestados nas áreas de lazer agora turistificadas, têm levado muitos a optar por outro tipo de atitude, ou seja, o afastamento das áreas turísticas, como uma forma de protesto silencioso. Assim, a escolha por esse tipo de protesto faz do residente um agente passivo, diante da degradação de suas áreas de lazer. A inexistência de um planejamento participativo na atividade turística reforça a lógica dessa produção espacial que tende a privilegiar o visitante em detrimento da população local. Na gestão da atividade turística prevalecem as ações do poder público e dos agentes de mercado que comandam de forma hegemônica a atividade, excluindo a possibilidade de considerar o residente enquanto agente ativo e participante da gestão do espaço turístico. Os resultados do estudo convergem para a confirmação de que a maioria da população local vem desenvolvendo atitudes passivas diante dos efeitos negativos que a atividade tem proporcionado ao ambiente público das praias urbanas. Na medida em que as praias de Natal passaram a ser frequentadas mais intensamente pelos turistas, os problemas de ordem socioambiental também se intensificaram, resultando na saída gradual dos residentes das praias. Os motivos que têm contribuído para o descontentamento e a saída dos residentes das praias são: poluição (18,1%), prostituição (17,2%), preços dos produtos e dos serviços (16,4%), violência/insegurança (14,7%), deficiência na infraestrutura (10,3%) e dificuldade de acesso (2,6%). Na pesquisa, identificamos que 19,6% dos residentes entrevistados estão transferindo suas práticas de lazer para as praias localizadas em outros municípios: Parnamirim (praias de Pirangi e Cotovelo), Nísia Floresta (praias de Pirangi do Sul, Búzios e Tabatinga), Extremoz (Praia de Pitangui), Ceará-Mirim (Praia de Muriú) e o município de Touros. Com o objetivo de caracterizar melhor os residentes que passaram a frequentar praias fora de Natal, fizemos uma correlação com


os níveis salariais. Os dados obtidos mostram que não são apenas os residentes pertencentes às classes sociais mais favorecidas que estão transferindo suas práticas de lazer para outros municípios. O mesmo está se dando com as classes populares. Dessa forma, alguns residentes optam por se ausentarem das praias de Natal como forma de protesto. Consideramos que essa atitude dos residentes, enquanto atores sociais, repercute no processo de produção espacial. Esse tipo de reação facilita e intensifica o surgimento de outros grupos sociais nos espaços turísticos, desencadeando novas formas de territorialidades, como é o caso da prostituição, do tráfico de drogas, entre outros. Nesse sentido, conforme as palavras de Coriolano e Silva (2005, p.144), “a sociedade enfrenta e partilha desse processo hegemônico de forma subordinada e, embora sendo maioria, tem sempre menor poder de decisão, apesar de exercer pressão política em determinados momentos”. A omissão ou a passividade dos moradores diante dessa produção espacial excludente, embora se processe numa realidade que esbarra no poder hegemônico dos agentes turísticos (empresários e Poder Público), dificulta ainda mais a possibilidade de inserção do residente nesse processo. A inserção ativa No processo de urbanização turística em Natal, a sociedade civil começa, mesmo que timidamente, a se posicionar de maneira crítica diante da turistificação dos espaços de lazer na cidade, originando movimentos sociais que lutam contra essa intensa produção e valorização espacial motivada pelo crescimento da atividade turística, que é responsável por uma forte especulação imobiliária sobre áreas ambientalmente frágeis (áreas dunares, protegidas por lei) e por provocar diversos problemas de ordem socioambiental (segregação, poluição, prostituição, violência, entre outros).


Nesse contexto, o estudo mostrou que uma pequena parcela dos residentes pesquisados está engajada em algum tipo de manifestação contra os problemas de natureza socioambiental evidenciados nas áreas onde o processo de turistificação se intensificou, ou seja, a partir do momento em que houve um aumento do número de turistas, principalmente, do turista estrangeiro a partir do início da década atual (ver Gráfico 1). Dos resultados obtidos junto aos entrevistados, no que se refere às reações dos residentes em defesa dos seus espaços de lazer que passam pelo processo de turistificação, no sentido de combater os problemas socioambientais, apenas 31% dos residentes disseram se manifestar de alguma forma (mobilizando a sociedade, fazendo passeatas, divulgando na imprensa, dentre outros) enquanto 68,1%, ou seja, a maioria dos entrevistados, respondeu que não se manifesta (ver Tabela 1).

Gráfico 1 – Evolução do fluxo turístico em Natal – 1996/2006 Fonte: FONSECA (2005); SETUR-RN. Nota: não dispomos dos dados referentes aos anos de 1997 a 1998.


Tabela 1: Município de Natal Formas de manifestação dos residentes em relação aos problemas socioambientais Tipo de Manifestação Denunciando aos Órgãos Competentes Mobilizando a Sociedade Fazendo Passeatas Divulgando na Imprensa Outro tipo de Manifestação Não se Manifestam Não Responderam Total Fonte: pesquisa de campo, 2007.

Porcentagem (%) 14,7 6,0 4,3 1,7 4,3 68,1 0,9 100

A intensificação da atividade turística na cidade de Natal recai sobre intervenções urbanísticas que incidem sobre o meio ambiente, provocando a inquietação de alguns segmentos da sociedade. Somando-se a esse quadro, tem-se a atuação do poder público diante do processo de urbanização turística, que tende a relegar certos espaços da cidade aos interesses dos agentes turísticos, em detrimento dos interesses do residente. Em Natal, os primeiros movimentos reivindicatórios em defesa do meio ambiente surgiram no final da década de 1970, período no qual a atividade turística começava a ser implementada na cidade, com intervenções urbanísticas em áreas que apresentavam frágil caráter ambiental. Foi assim com o Projeto do Parque das Dunas / Via Costeira (PD/ VC), idealizado no final da década de 1970 e início de 1980, quando uma via foi construída numa área dunar considerada local de proteção ambiental para a implementação de uma cadeia hoteleira de grande porte. Com isso, criou-se um movimento formado por profissionais liberais e ambientalistas que reagiam contra a localização desse megaprojeto turístico, alegando o forte impacto ambiental que poderia ser provocado na área. Para Lopes Júnior (2000, p.130), esse movimento social foi considerado, até aquele momento, o “mais importante movimento social relacionado à questão ambiental em Natal e o que mais produziu reordenações positivas nas intervenções ambientais dos governantes locais”.


A reação de segmentos sociais contra o Projeto PD/VC obteve resultados significativos para a cidade, embora, a luta não tenha impedido a construção do mega empreendimento. Entre suas perdas e conquistas, os ambientalistas conseguiram que os empresários turísticos redefinissem seus objetivos iniciais e que o poder público criasse uma reserva ecológica para a preservação do ecossistema daquela área - o Parque Estadual das Dunas33 -, considerado uma vitória significativa para os ambientalistas (LOPES JÚNIOR, 2000). Após a luta contra a construção da Via Costeira, ainda na década de 1980, outro movimento se aquecia, agora para impedir o avanço da especulação imobiliária que incidia sobre outro espaço de lazer na cidade: Praia de Areia Preta (uma das praias incluídas no conjunto praias do centro). Essa luta tinha o intuito de dificultar a construção de espigões na orla da praia. O movimento era composto pelos moradores locais, dentre os quais se destacavam “entidades estudantis, igreja católica e algumas das personalidades públicas que haviam se envolvido com a luta anterior contra o projeto Via Costeira” (LOPES JÚNIOR, 2000, p.131). Em meados da década de 1990, com a expansão da urbanização turística, alguns movimentos sociais passam a reivindicar o direito ao espaço público da orla, na medida em que alguns empreendimentos hoteleiros se apropriaram de áreas próximas ao bairro de Mãe Luíza, dificultando o acesso às Praias do Centro para os moradores do bairro. Mas, diante dos impasses travados entre ambientalistas e empresários imobiliários, a luta representou ganhos, mais precisamente para os empresários, beneficiando-se da legislação urbanística da cidade, uma vez que essa passou a tornar possível a verticalização em apenas um único trecho da orla urbana, mais precisamente na Praia de Areia Preta. 33 O Parque Estadual Dunas de Natal é uma Zona de Proteção Ambiental (ZPA), que pela diversidade de sua flora, fauna e das belezas naturais, constitui importante unidade de conservação destinada a fins educativos, recreativos, culturais e científicos (PREFEITURA MUNICIPAL DO NATAL, SEMURB, 2005).


As consequências da verticalização desse trecho da orla foram consideradas como uma falta de respeito para com os marcos históricos da Cidade (o Farol de Mãe Luíza), encobrindo a paisagem e agravando a situação de risco de várias famílias que há anos viviam na encosta localizada por trás dos prédios, onde se localiza o bairro de Mãe Luíza (SILVA, 2007). No decorrer do ano de 2006, outro movimento em defesa do meio ambiente desponta na cidade. O alvo dessas reivindicações recai sobre a construção de empreendimentos imobiliários próximos ao Morro do Careca localizado na Praia de Ponta Negra, detentor de um alto valor sentimental para os residentes. O Morro do Careca é considerado um dos principais cartões postais da cidade, sendo alvo de forte apelo publicitário para o turismo. Nesse contexto, essa paisagem natural tem despertado o interesse do setor imobiliário, que a utiliza como recurso mercadológico, seguindo uma tendência do mercado em atrair um público que prefere morar próximo à natureza, sendo que o porte dos empreendimentos pode vir a comprometer a visualização de uma das mais belas praias de Natal. Foi então que o movimento denominado de S.O.S Ponta Ne34 gra foi criado, contando com a participação de ambientalistas, profissionais liberais, estudantes, entre outros segmentos da sociedade civil. O movimento tenta dificultar a construção desses empreendimentos imobiliários em uma área de proteção ambiental, como também impedir que a população local seja atingida pela forte especulação imobiliária. O movimento S.O.S Ponta Negra conseguiu, com a sua luta e reivindicações, fazer com que o poder público embargasse as obras de tais empreendimentos, como também discutir a criação de áreas não edificantes para o bairro de Ponta Negra. 34 O movimento começou com a denúncia no blog do jornalista Yuno Silva, que entrou no ar no dia 17/09/2006, com o intuito de protestar contra as construções dos espigões no entorno do Morro do Careca. Quatro dias depois, o assunto já ganhava as primeiras páginas de todos os principais jornais do Estado (TRIBUNA DO NORTE, 4/12/2006).


Diante de todos esses movimentos que vêm provocando inquietação em uma parcela da população, inicia-se uma discussão acerca da intensa produção espacial para fins turísticos, a qual vem seguindo um modelo de urbanização que se reverte numa produção espacial que tende a deixar de lado tanto as questões ambientais importantes quanto os interesses da população. O ressurgimento dos movimentos sociais em Natal mostra que a sociedade não está totalmente apática com relação à defesa dos seus interesses. Mesmo diante do intenso processo de urbanização em certos pontos da cidade, esses movimentos colocam em questão os interesses dos agentes capitalistas, instigando a participação da sociedade que, segundo Santos (1999) se apresentam como as ‘contrafinalidades’ em relação aos atores hegemônicos. Mesmo que ainda não consigam envolver parcela significativa da população, já apresentam resultados positivos na defesa dos interesses desta e em outras conquistas. O residente se insere, portanto, como agente produtor dos espaços turísticos de forma ativa, não apenas por sua participação na arrecadação dos impostos que são revertidos em subsídios para a manutenção desses espaços, mas também por sua participação em movimentos sociais, reivindicando o seu direito à cidade, ao lazer e a melhoria da qualidade de vida, que deve ser observado no processo do planejamento turístico. Embora os resultados da pesquisa revelem um alto índice de pessoas que não se manifestam diante dos problemas socioambientais evidenciados nas praias, existem iniciativas por parte de alguns residentes, conforme mencionado acima, que podem vir a se fortalecer no combate aos efeitos negativos do turismo em algumas áreas da cidade. Ao questionar sobre as medidas que deveriam ser tomadas pelo poder público para que a população local volte a frequentar as praias de Natal, foram apontadas as seguintes medidas: melhoria da segurança (25%), diminuição dos problemas socioambientais


(20,7%), diminuição nos preços abusivos dos produtos e serviços (5,2%), melhoria da infraestrutura (4,3%), combate à privatização de áreas públicas (1,7%), combate ao comportamento abusivo de alguns turistas (0,9%), conforme é mostrado no Gráfico 2.

Gráfico 2 – Principais medidas para o residente voltar a frequentar as praias de Natal Fonte: pesquisa de campo, 2007.

A análise dos resultados revela que uma parcela significativa dos residentes está ciente dos aspectos positivos e negativos do turismo, tanto sociais quanto ambientais, bem como do que deve ser realizado pelo poder público para que eles possam voltar a desempenhar suas práticas de lazer com mais frequência nas praias. Considerações finais A racionalidade da produção do espaço turístico é dada pelos agentes hegemônicos que qualificam uma destinação para o consumo, enquanto a lógica de produção do espaço para o residente é outra, pois o espaço é para ser vivido. Os interesses, portanto, são distintos.


Nesse contexto, surgem as indagações de como conciliar essas duas lógicas distintas e como o poder público media essa relação. Também nasce o questionamento sobre como garantir o funcionamento da atividade turística, sem esquecer a necessidade de garantir o bem comum, que o espaço é de uso comum, especialmente, a área de lazer, que é um direito do cidadão. Ao longo do processo de produção dos espaços turísticos em Natal, transformações foram evidenciadas nos espaços de lazer do residente, com a inserção de equipamentos e serviços turísticos para o consumo dos turistas, além das transformações de ordem socioespacial nesses espaços. Paralelamente aos investimentos do poder público e às intervenções dos empresários do setor, a atividade turística revela suas contradições e paradoxos, no sentido de que, quanto mais os espaços recebem investimentos e se especializam na atração de turistas estrangeiros e na oferta de serviços a estes, os problemas de ordem socioambiental se intensificam. Exemplos locais não são considerados pelo poder público como um quadro de referência para o planejamento turístico. Os problemas de ordem socioambiental (poluição, prostituição, violência/insegurança, deficiência na infraestrutura, dentre outros), que outrora contribuíram para o afastamento de uma parcela significativa da sociedade das praias do Centro, atualmente se tornaram uma constante nos espaços turísticos que emergem com intensa atividade turística, como é o caso da Praia de Ponta Negra. Dada a sua magnitude, esses problemas resistem às várias investidas do poder público no seu combate. Diante desse quadro de problemas, em que os espaços são produzidos numa lógica em que o visitante se torna o agente prioritário dessa produção, esses espaços têm sido alvos constantes da prostituição, da violência, da criminalidade, da poluição etc. Os resultados convergem para uma realidade preocupante. Das pessoas que compuseram o universo da análise, um número


significante vem deixando de frequentar as praias urbanas da cidade na medida em que essas vão se turistificando. Em contrapartida, as praias localizadas em outros municípios têm sido alvos preferenciais de uma parte dos residentes, que passaram a transferir suas práticas de lazer para essas localidades devido à intensificação dos problemas que emergiram associados ao turismo nas praias da cidade. A pesquisa constatou que os residentes que estão saindo das praias de Natal não são apenas aqueles pertencentes às classes socioeconômicas mais favorecidas, mas, em sua maioria, aos das classes mais populares, o que se constitui um dado importante, pois as praias urbanas estão aos poucos deixando ou perdendo o encanto para os seus residentes de modo geral ou se tornando impróprias para seu consumo, devido aos altos preços praticados pelos serviços prestados. A população local, porém, ao resgatar a sua cidadania, fazendo prevalecer seus direitos na busca de sua participação na gestão do espaço turístico, poderá contribuir, inclusive, para a sustentabilidade da destinação turística. Dessa forma, um modelo de gestão turística deve direcionar ações que contemplem a necessidade de se produzir um espaço turístico que integre o residente, de modo que este não perca sua identidade com o lugar, como o que está se evidenciando com esse modelo de turistificação.

Referências CARLOS, Ana Fani Alessandri. A (re) produção do espaço urbano. São Paulo: EDUSP, 1984. CORIOLANO, Luzia Neide M.Teixeira; SILVA, Sylvio C. Bandeira de Mello. Turismo e geografia: abordagens críticas. Fortaleza: UECE, 2005. CRUZ, Rita de Cássia Ariza. Política de Turismo e Território. 3. ed. São Paulo: Contexto, 2002. ______. Geografias do turismo: de lugares a pseudolugares. São Paulo: Roca, 2007.


FONSECA, Maria Aparecida Pontes; COSTA, Ademir Araújo. A Racionalidade da Urbanização Turística em Áreas Deprimidas: o espaço produzido para o visitante. MERCATOR, Revista de geografia da UFC; Fortaleza, no 6, 2004. p. 25-32. KNAFOU, Remy. Turismo e território: para um enfoque científico do turismo. In: RODRIGUES, Adyr A B. Turismo e geografia: reflexões teóricas e enfoques regionais. São Paulo: Hucitec,1996. LOPES JÚNIOR, Edmilson. A construção da cidade do prazer: Natal. Natal/RN, EDUFRN, 2000. PREFEITURA MUNICIPAL DO NATAL. Secretaria Municipal de Meio Ambiente e Urbanismo (SEMURB). Anuário de Natal. Natal, 2005. Disponível em: <http://http://www.natal.rn.gov.br/semurb>. Acesso em: 10 dez. 2006. SANTOS, Milton. A natureza do espaço: técnica e tempo, razão e emoção. 3. ed. São Paulo: Hucitec, 1999. SILVA, Maria Florésia Pessoa de Souza. A produção habitacional contemporânea e a autoexclusão dos ricos no espaço urbano de Natal – RN (1995 – 2003). Dissertação (Mestrado em Arquitetura e Urbanismo) Universidade Federal do Rio Grande do Norte. Natal (RN), 2004. Disponível em: <http:// www.ppgau.ufrn.br/dissertacoes/2004/2004>. Acesso em: 28 fev. 2007. VERA, J.F.et al. Analisis territorial del turismo. Barcelona: Ariel, 1997.



INTERFACES SOCIOAMBIENTAIS DO TURISMO SUSTENTÁVEL EM ICAPUÍCEARÁ (1995 – 2000)

Maria Betânia Ribeiro Torres

O objetivo aqui proposto é o de avaliar a política de desenvolvimento do turismo sustentável em Icapuí-CE como geradora de trabalho e renda e suas interfaces socioambientais no período de 1995-200035. Abordam-se, neste artigo, os diversos aspectos que envolvem o turismo nesse pequeno município litorâneo cearense, com enfoque nas principais comunidades praianas de potencial turístico: Ponta Grossa, Redonda, Peroba, Barreiras e Tremembé. Procedeu-se a análise desde a participação dos atores sociais na implantação do turismo, passando pelos aspectos positivos e negativos desta atividade na sua relação com o meio ambiente, percorrendo a geração de trabalho, emprego e renda, penetrando na imagem e concepções de turismo e meio ambiente, indo para as novas configurações socioespaciais locais. Este trabalho indica pistas que possam servir de fundamento para propostas de planejamento e avaliação de programas, revisão de 35 Este trabalho é parte de minha dissertação de mestrado intitulada: Novos Rumos na Canoa Veloz: o turismo sustentável e suas interfaces socioambientais - a experiência de Icapuí – Ceará, sob a orientação do Prof. Dr. Eustógio Wanderley Correia Dantas (PRODEMA/UERN), 2003.


conceitos, transformação de relações, mudanças institucionais, dentre outras possibilidades do turismo sustentável; como num painel, uma fotografia pretensamente por inteiro e interdisciplinar, para dizer como foi implantada a política de desenvolvimento do turismo sustentável em Icapuí e suas interfaces com a economia, o meio ambiente e a população local. Desenvolvimento do turismo: do turismo de massa ao turismo sustentável O turismo tem em sua origem uma historicidade circunscrita a um determinado tempo e espaço, antes de se transformar numa prática social presente, hoje, em quase todas as sociedades e, inclusive, integrada à agenda dos indivíduos das diversas classes sociais, variando essencialmente o tempo disponível e o nível de consumo de bens e serviços (LABATE, 2000). O desenvolvimento do turismo de massa36 difundiu-se após os anos 50, no pós-guerra, com a institucionalização das férias remuneradas, apoiado na concepção de sociedade de massa, concepção advinda da produção em série de bens materiais. Nesse contexto, a degradação ambiental pela atividade turística vem à tona. O desenvolvimento rápido e descontrolado do turismo em localidades com recursos naturais de excepcional beleza tem provocado excesso de demanda e a descaracterização da paisagem, fazendo com que a destinação perca as características que deram origem à atratividade. Em meados da década de 80 do século XX, a preocupação com a intensificação dos fluxos turísticos possibilitou uma abordagem mais refinada e científica da atividade, tratada até então, com raras exceções do ponto de vista do gerenciamento e da administração, em uma espécie de manual de “como fazer”. É nesse período que a concepção de desenvolvimento sustentável é incorporada às análises da atividade 36 O turismo de massa é caracterizado pelo grande volume de pessoas que viajam em grupos ou individualmente para os mesmos lugares, geralmente nas mesmas épocas do ano (RUSCHMANN, 1997).


turística. Contudo, também possui limitações. Partindo da constatação de que o ambiente é o foco de atração do turismo, a proteção ambiental torna-se o pressuposto de uma atividade turística durável (LUCHIARI, 2000). O crescimento da atividade turística nas regiões litorâneas está fortemente condicionado à valorização de suas paisagens tropicais e à construção de infraestrutura. Destacando-se extensos trechos de praias, a Região Nordeste do Brasil tem visto no turismo uma solução econômica viável na tentativa de amenizar os graves problemas sociais que a atingem. Muitas vezes, o turismo é tido como única possibilidade de desenvolvimento econômico para um lugar, ocorrendo, possivelmente, a submissão das populações locais a uma ordem externa, desarticulando culturas tradicionais, como é o caso da maioria das comunidades litorâneas (LUCHIARI, 2000). A apropriação espacial da cidade e o modelamento de suas paisagens potencializam conflitos. Esses conflitos dizem respeito tanto ao uso do espaço quanto ao poder de visão sobre ele. Mais do que qualquer outra área de consumo, a atividade turística implica alargamento de percepções. |Nessa atividade também se estende uma nova esfera de reflexividade social. Se o deslocamento territorial por si só tem implicações profundas na construção da personalidade, a prática turística incorporada ao consumo estético de paisagens pode produzir não só novas identidades e estilos de vida, mas também novas atitudes e ações sociais. É o caso em que os turistas impõem, pela necessidade do consumo da natureza, uma relação mais equilibrada com o meio ambiente (LUCHIARI, 2000; LOPES JR, 2000). Depois da metade dos anos 80, distingue-se um outro período, no qual as práticas turísticas e de lazer da fase precedente perde sua amplitude. O turismo de natureza ou o turismo ecológico ocorre na maioria das localidades estabelecidas e, nas novas, evita-se a ocupação de todos os espaços (RUSCHMANN, 1997). Trata-se, portanto, da renovação do turismo, cuja clientela busca a calma, as aventuras e o conhecimento mais profundo das regiões visi-


tadas. Os ambientes naturais conservados estão cada vez mais sensíveis diante dos acidentes naturais e políticos do planeta. Com isso, ganham força no contexto internacional onde a concorrência é intensa, constituindo-se em grande força mercadológica para este século. É importante ressaltar que todas as intervenções do turismo não se traduzem, necessariamente, na agressão ou na degradação do meio ambiente natural. O turismo não pode ser responsabilizado por todos os efeitos negativos e agressões à natureza. O desenvolvimento turístico em ambientes naturais apresenta vantagens e desvantagens que merecem avaliação criteriosamente. Ruschmann aponta os seguintes aspectos: Impactos positivos do turismo: •

Criação de planos e programas de conservação e preservação de áreas naturais, de sítios arqueológicos e de monumentos históricos; Os empreendedores turísticos passam a investir nas medidas preservacionistas, a fim de manter a qualidade e a consequente atratividade dos recursos naturais e socioculturais; Promove-se a descoberta e a acessibilidade de certos aspectos naturais em regiões antes desconhecidas, a fim de desenvolver o seu conhecimento por meio de programas especiais (turismo ecológico); A renda da atividade turística, tanto indireta (impostos) como direta (taxas, ingressos), proporciona as condições financeiras necessárias para a implantação de equipamentos e outras medidas preservacionistas; Interação cultural e aumento da compreensão entre povos, originados pelo conhecimento maior do turista dos usos e costumes das comunidades que visita; A recuperação psicofísica dos indivíduos, resultante do descanso, do entretenimento e do distanciamento temporário do cotidiano profissional e social;


• •

Na economia, o turismo favorece o aumento da renda e sua distribuição nas localidades receptoras; Ecologicamente, percebe-se uma utilização mais racional dos espaços e a valorização do convívio direto com a natureza.

Impactos negativos do turismo: •

As barreiras sóciopsicológicas entre comunidades receptoras e os turistas. Estes últimos são tolerados apenas pelo dinheiro que gastam nas localidades. Não há registros de interação ou compreensão entre visitantes e habitantes das localidades; Economicamente, o dinheiro trazido pelos turistas circula apenas em tipos restritos de organizações do núcleo receptor, ao passo que as camadas mais pobres da população, que fornecem o solo e a mão de obra não qualificada, ficam apenas com uma parcela muito pequena dos lucros; Ecologicamente, o turismo implica a ocupação e a destruição de áreas naturais que se tornam urbanizadas e poluídas pela presença e pelo tráfego intenso de turistas.

Foi a incorporação dos pressupostos do desenvolvimento sustentável à análise turística que gerou a derivação em direção ao conceito de “turismo sustentável” (LUCHIARI, 2000). A Organização Mundial do Turismo (OMT), na sua Agenda 21 para as Viagens e o Turismo, define o turismo sustentável como aquele que satisfaz as necessidades dos turistas atuais e das regiões de destino, ao mesmo tempo em que protege e garante a atividade no futuro. Concebe-se como uma forma de gestão de todos os recursos de forma que as necessidades econômicas, sociais e estéticas possam ser satisfeitas ao mesmo tempo em que se conservam a integridade cultural, os


processos ecológicos essenciais, a diversidade biológica e os sistemas que suportam a vida.

O planejamento do turismo sustentável surge, assim, como a forma de evitar a ocorrência de danos irreversíveis nos meios turísticos, para minimizar os custos sociais que afetam os moradores das localidades e para aperfeiçoar os benefícios do desenvolvimento turístico em prol das comunidades anfitriãs. As críticas ao conceito de desenvolvimento sustentável do turismo argumentam que desenvolver é uma meta que implica – no mundo moderno e pós-moderno – a produção de mais e mais mercadorias. O desenvolvimento, na sua dimensão econômica, não escapa a esta meta produtivista/consumista. Portanto, o turismo nessa perspectiva, não altera ou muda o quadro de pobreza e miséria e a dilapidação dos recursos naturais e ambientais. O desenvolvimento da atividade turística é insustentável do ponto de vista de que a natureza torna-se uma mercadoria e quando a sua sustentabilidade não é pensada numa inter-relação entre todas as atividades econômicas, no seu circuito produtivo de forma ampla (RODRIGUES, 2000). A atividade turística permite e facilita o uso fugaz e intenso do território como parte integrante do ideal de modernidade que considera o desenvolvimento como uma meta a ser atingida e mediada pela produção e consumo de mercadorias. É parte integrante do ideal da pós-modernidade a fragmentação do uso, sendo, portanto, o desenvolvimento da atividade turística insustentável, pois a natureza se torna mercadoria: a paisagem é capturada pela atividade turística que propicia sua rápida mudança. Além disso, a sustentabilidade não pode ser pensada numa única atividade dada à inter-relação entre todas as atividades econômicas. Para Luchiari (2000), embora o conceito de desenvolvimento sustentável seja reconhecido como cientificamente legítimo, ele é antes de tudo um instrumento político e, nesse sentido, funciona como uma panaceia que irá garantir exploração econômica ao longo do tempo e na escala planetária. Muitas vezes, discute-se a viabili-


dade e a validade do turismo “ecológico”, muito mais como opção econômica para atrair turistas de países desenvolvidos e divisas em moeda estrangeira, do que como alternativa para a preservação do potencial turístico natural das localidades receptoras. O turismo pode encontrar alternativas para uma relação saudável e harmoniosa entre a sociedade e a natureza. O meio ambiente é a base econômica da atividade turística e apresenta oportunidades e limitações. O caráter finito da qualidade dos recursos naturais, os custos e benefícios do desenvolvimento turístico para as populações e seu meio trazem à tona uma série de conflitos. Um dos mais marcantes ocorre como consequência dos efeitos econômicos da atividade, em que os interesses individuais de curto prazo dos empresários se sobrepõem aos de longo prazo dos poderes públicos. “Quando a filosofia de ‘enriquecer rapidamente’ der lugar à de cuidar dos produtos e dos recursos para proporcionarem lucros menores, porém contínuos, o problema do impacto ambiental dará lugar a uma nova era de turismo responsável” (RUSCHMANN, 1997, p. 112). O modelo de desenvolvimento de “turismo sustentável” ou socialmente responsável representa um desafio que implica descobrir novas políticas econômicas, sociais e ambientais que promovam as diversas dimensões do desenvolvimento sustentável e reforcem os potenciais de crescimento presente e futuro. O êxito do desenvolvimento sustentado do turismo numa localidade vai depender da ação do Estado, enquanto mediador e regulamentador das relações sociais; e da ação organizada e solidária das comunidades anfitriãs para garantir o seu bem-estar e sua identidade cultural, atualizando seus conhecimentos e assumindo também a gestão do desenvolvimento de sua localidade através da mobilização da sociedade local e dos diversos mecanismos de incentivo ao turismo local. Nesse sentido, a experiência de Icapuí no Ceará indica que o processo de implantação de uma política de desenvolvimento sustentável do turismo passa, prioritariamente, pela mobilização e


sensibilização da população local e pela crença na inteligência coletiva do lugar, refletindo sobre a vida de cada um e sobre a vida de todos do lugar e do mundo, ampliando o campo de percepção de pessoas simples: O que antes já existia como objetividade, mas não era percebido em suas implicações mais profundas e, às vezes, nem sequer era percebido, se ‘destaca’ (grifos do autor) e assume o caráter de problemas, portanto de desafio. A partir deste momento, o “percebido destacado” já é objeto da “admiração” dos homens [e mulheres], e, como tal, de sua ação e de seu conhecimento. (FREIRE, 1987, p. 71).

Portanto, a participação popular na gestão de políticas públicas representa ganhos sociais e desenvolvimento humano, como apontam os diversos exemplos pontuados neste trabalho e apresentados mais adiante. Turismo e meio ambiente: a arena do discurso local De que maneira os planos de desenvolvimento do turismo sustentável podem ser articulados a resultados concretos no cotidiano das pessoas beneficiadas? Minayo, citando Bakhtin (1996, p. 107-111), diz que “a palavra é a arena”. É através da comunicação verbal – inseparável de outras formas de comunicação – que as pessoas “refletem e refratam” conflitos e contradições próprios do sistema de dominação, em que a resistência está dialeticamente relacionada com a submissão. Em que sentido a fala de um é representante da fala de muitos? Quando a identidade de condições de existência tende a reproduzir sistemas de disposições semelhantes através de uma harmonização objetiva de práticas e obras, afirma aquela autora. Observa-se que, de maneira geral, a discussão da política de turismo sustentável em Icapuí esteve, no período em estudo, bastan-


te vinculada à questão ambiental como um elemento de preservação, cuidado da natureza e identidade cultural local. Isso repercute nas falas dos gestores locais, dos conselheiros do Conselho Municipal de Turismo (CMT), dos sócios da Cooperativa de Turismo de Icapuí (Copitur) e dos entrevistados, indicando que no período de implantação do turismo em Icapuí o cuidado com o meio ambiente foi à tônica no discurso dos atores sociais locais, embora, no cotidiano do município, estivessem presentes: a especulação imobiliária, a construção desordenada e sem autorização, a poluição do ar e dos recursos hídricos, o desmatamento do manguezal e das falésias e a ausência de mecanismos eficazes de regulamentação ambiental. Pode-se afirmar que o período de desenvolvimento local e sustentável do turismo em Icapuí está marcado por uma trajetória anterior de discussões e questionamentos da população e governo local em torno da questão do meio ambiente e do turismo. Existem registros de discussões sobre o meio ambiente e turismo datados de 1993 que indicam a preocupação dos gestores e da população local quanto aos rumos do desenvolvimento da atividade turística em Icapuí. Essas preocupações alcançam várias questões: a descaracterização da cultura local, a especulação imobiliária, a questão ambiental e a geração de emprego e renda. De acordo com o Plano de Desenvolvimento do Turismo de Icapuí/1997-2000: ‘O turismo é uma atividade importante na geração de emprego e renda, exigindo, portanto, atenção e tratamento especial por parte da Prefeitura e demais órgãos estatais responsáveis com o objetivo de encontrar alternativas para o aprimoramento e consequente desenvolvimento desta atividade’. E define mais adiante nas suas prioridades e metas que ‘o desenvolvimento de um turismo sustentável em Icapuí requer um planejamento participativo e uma boa aceitação da população local’. E diz ainda que ‘os princípios norteadores de Icapuí para o turismo são três: a não depredação do meio ambiente, a não degradação da pessoa humana e a não concentração de renda’.


Isso sugere que, em Icapuí, o turismo não sobrevive sem o meio ambiente. E, nesse sentido, o discurso oficial de Icapuí indica: Em Icapuí, o sertão encontra o mar. Sol, falésias, dunas, coqueirais, praias de águas límpidas emolduram um cenário paradisíaco e que deve ser preservado. Durante a elaboração do Plano de Desenvolvimento Municipal, a preocupação com o meio ambiente também esteve sempre presente. O respeito ao patrimônio natural é tão importante quanto à luta pelo desenvolvimento. Não adianta um vir separado do outro. 37

Depreende-se, então, que a concepção predominante no período 1995-2000, realçou bastante o conceito de turismo sustentável, anteriormente citado, incentivando a iniciativa local no processo de desenvolvimento da atividade turística em Icapuí. Leonard, citado por Araújo (2001), afirma que dois desafios cruciais foram postos no alto da agenda de desenvolvimento para a década de 1990: a redução da pobreza e a proteção do meio ambiente. É um discurso governamental baseado na concepção de desenvolvimento sustentável, ecodesenvolvimento e sustentabilidade, com ênfase para as inter-relações entre crescimento e eficiência econômicos; conservação ambiental; qualidade de vida e equidade social. Esse discurso também encontra eco na imagem turística do município, projetada para a valorização de um turismo em harmonia com a natureza, como veremos mais adiante. O turismo litorâneo cearense: a construção do olhar do turista O clima quente, o sol, o mar e a praia são os elementos que vão concretizar o turismo litorâneo cearense. O turismo litorâneo é atualmente um dos signos mais vendidos aos países emissores de fluxos turísticos, ‘consumidores’ das belezas naturais. 37 Revista de Icapuí, Prefeitura de Icapuí. Janeiro de 2000.


Para Dantas (2000), a valorização das zonas de praia pelo turismo, nos países em desenvolvimento, instaura novas discussões que se opõem à antiga tradição referenciadora do interior, evidenciando, no Nordeste do Brasil, o processo de litoralização38, movimento iniciado e organizado a partir de 1980 e cujas repercussões também atingem o Ceará, articulada ao novo imaginário social do Nordeste. Essa reversão possibilita a passagem de uma imagem anteriormente associada à pobreza para outra de caráter predominantemente turístico associada ao sol, às praias e aos coqueirais e a exemplo de Fortaleza, Icapuí também se beneficia dessa nova imagem do Nordeste. Tupinambá (2001, p. 55), analisando a política de turismo do Estado do Ceará, nos diz que o foco do material publicitário do Ceará está mais voltado para os elementos naturais que compõem a paisagem cearense do que para o ser humano ressaltando a forte conotação da natureza como mercadoria de consumo turístico. Para essa autora “a invenção do litoral pelo turismo é dirigida por uma forte propaganda, sobretudo estatal, que se destina à sociedade urbano-industrial orientada para autorizar esse olhar”. O município de Icapuí no Ceará balizou sua propaganda turística em dois pilares sociais importantes servindo de vaidade para os gestores e a população local: a política de educação e saúde. Essa imagem repercutiu no cenário nacional destacando que Icapuí havia inaugurado um novo modelo de turismo: A outra natureza de Icapuí, pequena e maravilhosa cidade do litoral do Ceará que preserva tradições, investe na vocação caiçara e inaugura um modelo de turismo político, estava atraindo centenas de pessoas – prefeitos, secretários de municípios, assessores, professores, dirigentes de asso38 Para Dantas (2000), a litoralização representa um neologismo explicitador do movimento de ocupação contemporânea do litoral. A necessidade de criação de um novo termo é consequência da transformação do movimento de valorização do litoral em verdadeiro fenômeno da sociedade, ligado a uma urbanização significante dos espaços litorâneos e traduzidos na inserção gradual das zonas de praia à lógica derivada de uma sociedade de lazer e turística.


ciações de classe, ONGs, partidos políticos, de todos os locais do Brasil para conhecer a ‘experiência de Icapuí39.

Tratando-se de Icapuí, cuja imagem turística está relacionada à administração política do Partido dos Trabalhadores, o material publicitário de promoção integrou gestão pública, sociedade e natureza. Essa exposição está respaldada em prêmios nacionais e internacionais de gestão pública recebidos pela administração municipal e, através deles, Icapuí criou e projetou a sua imagem turística. O foco principal foi o bem-estar da população, com destaque para todas as crianças na escola e o acesso da população aos serviços de saúde, aliado às belezas naturais de suas praias, ou seja, o município integrou no seu marketing turístico a sociedade-natureza. Essa imagem articulada sociedade-natureza nos apresenta aspectos que constituem o modelo de turismo concebido pelo governo e sociedade local e encontra eco nos depoimentos coletados por esta pesquisa, mas para os visitantes, são as belezas naturais os fatores de atração para a viagem. Uma pesquisa realizada em 1999 pela Secretaria de Pesca, Turismo e Desenvolvimento, junto aos turistas, no item sobre o que mais agrada em Icapuí, destacou três respostas: 1) hospitalidade; 2) belezas naturais; 3) as praias. Nas narrativas locais constatam-se a exaltação e o orgulho pela história política, belezas naturais e a tranquilidade do lugar, elementos em ascendência no desenvolvimento atual do turismo. Além disso, a seguir, há um depoimento que merece destaque: Antes foi por causa da administração do PT. Hoje, pelas belezas naturais. Descobriram através da administração que existem coisas mais bonitas do que a administração: o acolhimento das pessoas. (Membro da Copitur, dezembro de 2002).

Em outras palavras, “as paisagens turísticas só existem em relação à sociedade. Elas não existem à parte como um dado da 39 Mamede, Maria Amélia. Revista República. Fevereiro de 1998, Ano 2, nº 16.


natureza. Mesmo a vocação de uma região faz parte de uma seleção de atributos que a sociedade elege historicamente” (LUCHIARI, 2001, p. 120). Turismo e meio ambiente, concepções globais e locais O turismo foi definido e redefinido de modos variados por órgãos governamentais e por acadêmicos como uma área relacionada à economia (desenvolvimento econômico da área de destino), sociologia, antropologia cultural (se interessam pelo comportamento dos indivíduos e de grupos de pessoas nas viagens e pelos costumes, hábitos, tradições e estilos de vida tanto das populações quanto de seus hóspedes) e a geografia (cuida dos aspectos espaciais do turismo e estuda os fluxos das viagens e as locações, a dispersão do desenvolvimento, o uso da terra e as modificações do ambiente físico), conforme nos explica Coriolano (1998). A pesquisa de campo em Icapuí aponta que a concepção de turismo está bastante relacionada a viagens, lazer e geração de emprego e renda para a população anfitriã, ressaltando-se a concepção de um turismo sadio e de desenvolvimento comunitário: Turismo, eu acho que é lazer quando uma pessoa vem pra um lugar, vem pra descansar, geralmente às pessoas saem de uma cidade grande para um lugar pequeno. (Empreendedor local, Ponta Grossa, dezembro de 2002). Turismo para mim é um meio de renda. É trabalho e renda. E tudo aquilo que tem trabalho, tem renda. É um turismo sadio, porque turismo sadio é aquele que você trabalha e tem renda. É esse turismo que a gente quer. Um turismo sem lixo, turismo sem doença, um turismo sadio. (Empreendedora local, Praia de Peroba, dezembro de 2002).


É uma grande coisa. É uma grande coisa que a gente trabalha no turismo e se desenvolve nas coisas. Vai se desenvolvendo a cada dia. Em termos de receber as pessoas, a gente se desenvolve, em termos da comunidade, desenvolvimento, tudo isso desenvolve também. Porque se hoje em dia, se a comunidade, se o turismo chegar aqui nós podemos convidar qualquer pessoa para uma casa dessas da comunidade e saber receber a pessoa que chegar, saber cuidar daquela pessoa. (Empreendedor local, Ponta Grossa, dezembro de 2002).

Com relação ao meio ambiente, percebe-se uma concepção mais voltada para os aspectos físico-naturais do que mesmo o próprio ser humano como um ser natureza. Destaca-se o seguinte depoimento: “É tudo que está ao nosso redor, como a natureza, como as coisas que o homem faz, como as casas, tudo o que está ao nosso redor é meio ambiente” (Membro de Associação de Turismo de Ponta Grossa, dezembro de 2002). A Política Nacional do Meio Ambiente define o termo meio ambiente como: “O conjunto de condições, leis, influências e interações de ordem física, química e biológica, que permite, abriga e rege a vida em todas as suas formas”. Nesse caso, o homem também, mesmo não citado explicitamente. Ao se relacionar com a natureza e com outros homens, o ser humano produz cultura evidenciada por seus valores, modos de fazer, de pensar, de perceber o mundo, de interagir com a própria natureza e com os outros seres humanos, o que constitui o patrimônio cultural construído pela humanidade ao longo de sua história40. Ressalta-se que a relação sociedade-natureza, embora fundamental, não é suficiente para direcionar um processo de análise e reflexão que permita a compreensão desse relacionamento em toda a sua complexidade, sendo necessário, ainda, assumir-se que a construção do conhecimento sobre essa relação se realiza sob a ótica dos 40 CORIOLANO, 1997.


processos que ocorrem na sociedade. É nesse contexto que se espraia a gestão ambiental, entre conflitos sociais e políticos inerentes à própria existência do meio social41. A Constituição Federal ao consagrar o meio ambiente ecologicamente equilibrado como direito de todos, bem de uso comum e essencial à sadia qualidade de vida, atribuiu à responsabilidade de sua preservação e defesa não apenas ao Poder Público, mas também à coletividade. Mesmo assim, a Constituição de 1988 atribuiu ao Poder Público o papel de principal responsável pela garantia a todos os brasileiros, do direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado. Em se tratando de ações de educação ambiental existe uma percepção da sua importância para o meio ambiente e o desenvolvimento do turismo. Mas é importante lembrar que quando ressaltamos a importância da educação ambiental na gestão do meio ambiente e do turismo, estamos tratando da necessidade da participação coletiva dos cidadãos na gestão do uso dos recursos ambientais e nas decisões que afetam a qualidade do meio ambiente. Novas paisagens litorâneas e a gestão ambiental: as praias turísticas de IcapuíCeará Daqui a cem anos, não valerá mais a pena viajar, pois o mundo está ficando cada vez mais uniforme (Paul Bowles, escritor norte-americano) 42.

Luchiari (2001), em artigo sobre a urbanização turística como um novo nexo entre o lugar e o mundo, afirma que “as cidades turísticas representam uma nova e extraordinária forma de urbanização, porque são organizadas não para a produção, como o foram às cidades 41 Ibidem. 42 Apud HAZIN; OLIVEIRA; MEDEIROS (2003).


industriais, mas para o consumo de bens, serviços e paisagens”. E nesse processo, antigas e novas identidades se cruzam, recriando um espaço social híbrido dando lugar a uma nova organização socioespacial, colocando em desafio a sobrevivência de antigas paisagens e à resistência do lugar. Para Luchiari (2001), a organização territorial dos lugares turísticos não responde somente à lógica do lugar, do meio e da população local, ela é a reprodução de atributos valorizados nos centros urbanos emissores, materializando-se nas novas representações sociais impressas ao uso do território. O turismo, ao se apropriar do espaço e usá-lo de forma específica, modifica a paisagem existente e dá origem a novas formas urbanas. No processo de desenvolvimento de Icapuí o turismo afetou a sua paisagem natural e construída e modelou as feições das praias com cimento e concreto e um traçado arquitetônico que entrou em descompasso com as propostas de desenvolvimento de um turismo sustentável em vários aspectos. O primeiro deles, na concepção compartilhada dos projetos, pois muitas vezes as comunidades eram chamadas para saber que o projeto urbanístico iria chegar, mas não eram chamadas para decidir sobre como seria executado esse projeto. Alguns depoimentos coletados chamam a atenção para isso. Muito embora, considerem a importância das obras para o desenvolvimento do turismo. A construção de calçadões nas praias de Redonda, Barreiras e Tremembé, dentro de um projeto de urbanização turística, resultaram completamente numa transformação da paisagem natural dessas praias, assim como a construção de barracas padronizadas na praia de Redonda. Nesse caso, as opiniões são bem divergentes. Para aquelas pessoas mais relacionadas ao turismo como comércio e meio de vida, as barracas trouxeram um visual novo e mais bonito para a praia. Enquanto que para aquelas pessoas com que o turismo e meio ambiente se inter-relacionam, as barracas e os calçadões acabaram com


as paisagens e intervieram no movimento das marés. Entretanto, as barracas antigas eram bastante precárias tanto no aspecto visual quanto nas condições sanitárias. Por outra, os muros estão fazendo a praia virar cidade. É importante observar estes depoimentos contrários e complementares: A organização das barracas mudou muito, porque antes existiam umas barracas veias e nojentas e isso era muito ruim, depois foram feitas as barracas e deu um termo de limpeza, embora a barraca seja feia, um termo de limpeza fico [...] (Empreendedor local, Praia de Redonda, dezembro de 2002). O calçadão, as barracas, as estradas, foram coisas boas que ficou melhor pra gente. A estrada não prestava, era esburacada, era de piçarra, a gente dizia que não vinha o turista por causa da estrada, mas não era. Não vinha turista porque não tinha quem organizasse. Nunca participei desses projetos, só participei das reuniões. Essas reuniões eram pra discutir turismo, barracas, empréstimos. Nunca fiz empréstimos (Empreendedora local, Redonda, dezembro de 2002). Eu acho que esses projetos de calçadão e essas barracas que vieram são uns desastres para a comunidade porque acabaram com as paisagens, além de intervir nas coisas da natureza, da orla marítima que atrapalha, prejudica. Não prejudica Redonda, mas prejudica Ponta Grossa através do movimento das marés (Membro de associação cultural e de meio ambiente, Redonda, dezembro de 2002).

Observa-se que o traçado natural das praias não foi levado em consideração, além de não incluir a arborização. Além disso, não foi feito nenhum estudo de impacto ambiental. Esse jeito de fazer contradiz com o discurso de sustentabilidade ambiental. O cuidado com o uso dos espaços nas regiões costeiras, como é o caso de Icapuí,


é importante para que não se congestione o espaço turístico com muitas estruturas físicas e isso venha a implicar intervenções reparadoras de alto custo, além de inviabilizar a dinâmica do modelo de turismo sustentável em processo de consolidação. Além das intervenções públicas no ambiente que transformam os espaços litorâneos e das construções de novos equipamentos turísticos, autorregulados, existem também as casas de veraneio que estão numa curva ascendente nas comunidades litorâneas, como um dos resultados da valorização das praias de Icapuí. Archer e Popper (2001) advertem que o desenvolvimento excessivo e mal planejado do turismo afeta o ambiente físico e os destinos. Em muitas áreas, a desenfreada exploração comercial do turismo resultou em hotéis feios, com projeto estrangeiro, que penetraram no ambiente cultural e cênico à volta deles (a exemplo de Canoa Quebrada, em Aracati; da Praia das Fontes, em Fortim; Jericoacoara, em Jijoca e tantos outros). Pode-se observar à existência de novos espaços públicos que propiciam o lazer e recreação da população local. A reivindicação de praças e áreas de lazer por crianças e jovens de Icapuí indica também uma apropriação do meio ambiente local, podendo implicar uma relação de preservação desses lugares, mesmo porque, ao que parece, predomina na população dessa cidade uma identidade com o lugar, uma relação de cuidado e preservação ambiental. É fato que o desenvolvimento de potencialidades turísticas imprime a necessidade de preparação para a demanda crescente por espaços naturais e para sua utilização para recreação e turismo. No município de Icapuí, a fraca existência de critérios claros e medidas legais para o uso do solo e a falta de recursos técnicos e humanos para o monitoramento e acompanhamento da região incidem sobre o uso e ocupação desordenada do solo urbano. Esse é um grande desafio para a atual estrutura institucional e política para o meio ambiente a nível nacional, estadual e local (Sistema Nacional de Meio Ambiente - SISNAMA), diante das condições e limites existentes.


Entrando, na esfera da gestão ambiental, tem-se em Quintas (2000, p. 140) que a gestão ambiental é o processo de mediação de interesses e conflitos (potenciais ou explícitos) entre atores sociais que agem sobre os meios físico-natural e construído objetivando garantir o direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, conforme determina a Constituição Federal.

Quintas observa que no Brasil o poder de decidir e intervir para transformar o ambiente (ou mesmo para evitar sua transformação) seja ele físico-natural ou construído, e os benefícios e custos dele decorrentes, estão distribuídos socialmente e geograficamente na sociedade de modo assimétrico. Portanto, a prática da gestão ambiental não é neutra. O Estado, ao tomar determinada decisão no campo ambiental, está de fato definindo quem ficará com os custos, na sociedade e no país e quem ficará com os benefícios advindos da ação antrópica sobre o meio, seja ele físico, natural ou construído. Daí a importância de se praticar uma gestão ambiental participativa do turismo com mecanismos legais difundidos para a sociedade em geral. Somente assim, é possível se avaliar custos e benefícios de forma transparente. Constata-se, em Icapuí, a inexistência de um sistema de registro de informações sobre o número de licenças para construir e de alvarás de habitação cedidos ou negados, bem como de outros mecanismos de gestão da cidade, necessários e importantes para o desenvolvimento local sustentável. O uso do espaço, o consumo das paisagens e dos demais recursos ambientais requer uma regulamentação para garantir a sobrevivência da população local naquilo que ela optou como vocação/profissão: a pesca, o turismo e a agricultura. Por outro lado, o mergulho nas representações dos moradores de Icapuí permitiu constatar o apego e o valor dado pela população local aos recursos ambientais existentes no município. A Paisagem natural de Icapuí significa: beleza, preservação, cuidado, zelo, sobrevivência, lazer, tranquilidade, privilégio, diversidade, vida. A terra


e o mar são complementares para os habitantes de Icapuí e é nesse encontro que o turismo interveio no período de 1995 a 2000. Pode-se afirmar que a tendência atual do turismo em Icapuí necessita de ajustes e aperfeiçoamentos, principalmente, na sua forma de organização comunitária, pois embora a atividade turística ajude na geração de empregos, evitando a migração de mão de obra para os grandes centros urbanos, haverá setores da comunidade local que se sentirão “invadidos” pelos turistas. Por fim, os efeitos benéficos do turismo poderão ser mais bem vistos quando segmentos maiores da população local se beneficiarem do efeito multiplicador (mencionado anteriormente), através de melhores salários. Persistindo a necessidade de maior incentivo aos microempresários e a pequenos projetos, com a abertura de créditos populares com prazos adequados à natureza da atividade turística. Contudo, ações integradas de desenvolvimento do turismo que se importem com a formação escolar e profissional, acesso ao crédito, incentivo às ações comunitárias, visando à autoestima e a autoconfiança dos habitantes locais são caminhos possíveis como está sendo demonstrado nas praias de Ponta Grossa (Icapuí), Prainha do Canto Verde (Beberibe), Batoque (Aquiraz), Balbino (Cascavel), Tatajuba (Camocim), entre tantos outros exemplos já mencionados anteriormente.

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DO TURISMO CULTURAL À POLÍTICA PÚBLICA DE ECULTURISMO

Christian Dennys Monteiro de Oliveira

Caminhamos pela aerodinâmica de nossas duas pernas; mas ainda nos vemos como canhotos ou destros ao fazer nossa identificação pela maneira de chutar uma bola. Escrevemos preferencialmente com uma das mãos; mas nas refeições controlamos dois talheres; e na digitação informatizada de um texto, precisamos refazer a parceria que já constatamos pelo ato de andar. Somos progressivamente destros, canhotos ou canhotos destros: somos novas formas de hibridação. Ocorre que tal hibridismo (seja como mistura, junção, ambiguidade, sincretismo, duplicidade; seja como pares distintos de um sistema) nos incomoda, por demais. E mesmo na latência de um pensar científico, aceitar o hibridismo é algo semelhante a contrariar princípios. É aceitar perder o chão. Vem a pergunta: até quando considerá-lo para efeito de estudo? Para quem começou a estudar o Turismo, com um mínimo de responsabilidade teórica – e aqui se incluem os profissionais mais pragmáticos, dado que a teoria aplicada é um requisito do cotidiano moderno – importa SIM, compreender de convivência produtiva com a hibridação de ideias e práticas. Do contrário, para sermos bem diretos, toda ação de turismo cultural, tornar-se-á uma valorização


exclusiva de uma “cultura” montadinha, arranjadinha, bem feitinha, para turista ver; um teatro a céu aberto; um playmobil de tradições pasteurizadas e sustentáveis apenas para o capital especulador. Podemos operar as ilusões de uma política de turismo nesse horizonte de concepção. Diríamos até que a maior parte de nossas governanças (municipais, estaduais e federais) presta-se a esse papel, até para ganhar tempo em suas mesmices propositivas. Abram qualquer programa para implantação de uma pauta de desenvolvimento turístico e não estranhem se a cada 9 de 10 textos não afirmar, quase em um coro fatalista, que é indubitável a capacidade do turismo de gerar ocupação e renda como nenhuma outra industria contemporânea. Não vou contestar mesmices. Elas cumprem um papel mitológico e eu respeito muito os mitos como estratégia simbólica primordial de concepção do mundo. Acontece que os mitos não precisam nem de profissionais, nem instituições públicas complexas (CAMPBELL, 2006). O indubitável desse processo funciona mais ou menos com a mesma certeza de que o sol nascerá amanhã. Qual a novidade? Nenhuma. Então, porque tomar o indubitável como pressuposto primitivo para argumentar que também precisamos investir no óbvio? Não tenho certeza; apenas elementos lógicos de desconfiança de que aquela rejeição ao hibridismo – falada a pouco – ataca o planejamento turístico e de outros setores sociais da vida pública como espelho das nossas manias e achismos. Instituições e governantes, cada vez mais parecidos com o nosso senso comum, querem direcionar opções excludentes e acabar com os hibridismos. De maneira idêntica, idealizamos o campo das escolhas individuais. Esse valor de imitação forja alguns nomes fortes e desprezíveis: banalização, mediocridade, incompetência. Como ser humano, tenho direito ao erro e a ingenuidade. No âmbito da cidadania, porém, o erro deveria servir de “matéria-prima” para inovações coletivamente administradas; não para justificativas insensatas. Na experiência das localidades e regiões brasileiras, tem servido para manter o folclore de que política é assim mesmo. Porque o político é


um ingênuo mais esperto; alguém que se “sacrifica” na política para o bem de seu povo. Ciclo vicioso do cinismo. Discordamos dessa tendência e requisitamos a oportunidade de abrigar no turismo – no pensar epistemologicamente seu processo, melhor dizendo – um caminho para a hibridação. A questão essencial aqui é compor um raciocínio que integre os programas de turismo como uma efetiva política pública. Posto no plano de valorização dos bens patrimoniais de uma região, tal raciocínio resulta na seguinte fórmula:

Transformada no discurso das siglas: TC = (PEtur + IEP): NEATR. O que serviria qualificar um debate tranquilo e amistoso em nossa apresentação se o denominador dessa fórmula não representasse mais de 90% do que se faz (ou o que é pior, se quer fazer) em termos de política convencional de turismo. A geração explosiva, nos últimos 20 anos, de uma série de programas governamentais reconhecidamente favoráveis a turistificação dos territórios, pauta-se pela discriminação de localidades – cirurgicamente selecionadas – para atender aos postulados de uma elitização. Para não encerrarmos essa afirmação provocativa sem ao menos exibirmos uma demonstração contemporânea da racionalidade elitista, convém questionar o Governo Federal no sentido de saber por qual motivo o Ministério do Turismo está excluído da imensa lista de gestores institucionais responsáveis pelos Territórios da Cidadania 43. Se esse mega programa, implantado a partir de fevereiro 43 Programa do Governo Federal instituído pelo decreto de 25 de fevereiro de 2008 e centrado na promoção do desenvolvimento regional sustentável como o objetivo de levar o crescimento econômico e universalizar os programas básicos de cidadania. Tais territórios agrupam municípios com baixo IDH e alta concentração de


de 2008, tem como meta a inclusão socioambiental das regiões mais carentes do território, existe justificativa plausível para não visualizar os processos turísticos nessa meta? Existe a ilusão recorrente de que fazer turismo não é fazer cultura; é transformar em mercadoria aquilo que não serve como gênero de primeira necessidade. Será que vamos necessitar, pelos meus cálculos mais otimistas, de duas gerações (50 anos, aproximadamente!) para perceber que uma política de turismo só se inicia em uma política ambiental integradora (portanto, macrorregional); e só consolida como uma política cultural emancipadora? Trata-se de uma Política, de fato, com Turismo, que aqui preferimos recompor na palavra eculturismo. Antes de seguir nessa reflexão, vamos apenas delimitar, mais didaticamente, nossa rota de encaminhamento. Na primeira parte deste ensaio, retomaremos o conceito de hibridação para cimentar as bases de tratamento e valorização do turismo no âmbito interno de uma cultura regional e nacional. Não precisamos limitar o “mercado das viagens” a uma concessão entre duas sociedades desiguais: a que viaja porque tem dinheiro e a que recebe porque está “precisando” das sobras da primeira. Na hibridação cultural, veremos que por motivos lógicos (embora, pervertidos), esse separatismo sagrado e perfeito desaparece a todo instante; mas o discurso idealista, dos que insistem em ignorar os fatos, permanece. Passamos para uma segunda parte, então, a fim de arregimentar novos argumentos para além da hibridação. É a vez de pensar em uma cultura do turismo fazendo contraposição a velha tese de que só nos falta capacitar bem os profissionais para que esses aprendam a receber. A cultura do turismo põe em xeque a velha máxima da hospitalidade nordestina para afirmar: não há cultura turística sustentável nessa capacitação. Qual o motivo? Ausência de experiência turística no âmbito profissional (de um lado); e o excesso de improvisos na agricultoras familiares e assentados da Reforma Agrária. Portanto, baixo dinamismo econômico. São 60 territórios, envolvendo 958 municípios (14% da população brasileira) e recursos de 11 bilhões em 3 anos.


ação familiar e na aceitação de apelos emocionais como critério de qualidade (do outro). Assim, todo programa turístico passa a ser restrito a um grupo capaz de viajar e valorizar os atrativos como espelho de seu status social. Voltaremos aqui na fórmula apresentada. Para encerrar, apresentaremos a origem do termo eculturismo como estratégia conceitual para enfrentar a elitização dos turismos culturais (OLIVEIRA, 2007), principalmente, as insígnias modelares do turismo sustentável, do ecoturismo e das denominações apresentadas nos fóruns internacionais de defesa de um “verdadeiro” planejamento do turismo, que não toca jamais no âmago do problema essencial: como tratar o turismo como uma política pública se o seu alvo privilegiado é o estrangeiro? Guardemos a questão para aferir seus problemas mais adiante. Guardemo-na, antes de tudo, para lembrar que ela funciona como uma bengala que nos faz tropeçar. Independente de ser sermos destros ou canhotos. Hibridação como tendência Uma formação cultural sustentável para qualquer comunidade étnica pode ser expressa a partir de uma série de valores capazes de diferenciá-la das demais. Entretanto, a expressão que define “diferenciais” apenas constitui um fator essencial quando caímos no determinismo das simplicidades aparentes. Aquelas que nos fazem acreditar que as “coisas verdadeiras” são as mais simples e puras. Já as coisas ilusórias e falsas, ao contrário, seriam as responsáveis pela complexidade e tumultuariam a sabedoria. Eis o jogo invertido que condena o olhar analítico à mediocridade. Vejamos, por exemplo, o que significa a reificação permanente das afirmações estereotipadas de que o sertanejo é antes de tudo um forte, ou de que o índio vive mais próximo da natureza do que o branco. A metonímia da força e da proximidade, radicalizada a esses extremos, não esconde o preconceito contra comunidades e localidades, bastante espoliadas no cotidiano habitual; mas tratadas,


no discurso turístico, por abordagens compensatórias. Sertanejos e indígenas como integrantes de paisagens periféricas (SERPA, 2003). Nesse esquema, o discursivo compensatório, alvo do convencimento é claro e simplificador: falar em nome do povo significa agir em seu lugar. Afinal, tudo que é moderno e validado, na contemporaneidade, estrutura-se a partir das representações e mediações. O povo de hoje é o deus ou as divindades de ontem. O discurso hegemônico é aquele que tem legitimidade para falar em nome de Deus, em nome do Povo, em nome do Desenvolvimento Sustentável. Resta-nos a indagação sobre a possibilidade de outros discursos e outros poderes. Onde e como se localizariam? A primeira tendência de resposta – historicamente experimentada pelas inúmeras tentativas (e sucessos) de ruptura – continua ligada à construção de uma alteridade puritana. A experiência de um processo alternativo, geralmente local, majoritariamente subalterno e associado à emergência de grupos marginalizados da sociedade. No turismo, quando se trabalha com essa tendência, encontra-se uma modelagem de ações à semelhança do Projeto Ecoturístico (PELLEGRINI FILHO, 2000). Como seria sua expressão? Vejamos a ocupação predatória que vai avançando nas praias, mangues e formações lacustres de nosso litoral nordestino. Se, em um primeiro momento, há uma pré-disposição em condenar o turismo e os interesses “estrangeiros”, responsabilizando-os pelos desarranjos na produção da cultura local, noutro momento abre-se um campo “mais sustentável” para o planejamento das vias alternativas. Podem-se forjar espaços de turismo solidário (constituído para gerar ações de apoio assistencial dos turistas); de turismo comunitário (centrado na oferta de bens mantenedores das tradições locais) e de turismo social (aberto a inclusão de faixas econômicas inferiores ou atrativos mais periféricos nos roteiros estabelecidos). Contudo, não se pode negar, muito menos enfrentar a “indústria turística” já estabelecida posto ser a responsável pela consolidação dos rendimentos, investimentos e atenções políticas governamen-


tais. A multiplicação de modelos e espaços alternativos para um “outro” turismo é prova dialética da sustentabilidade tão perversa quanto real do turismo hegemônico. Daí nossa ocupação maior em evitar opções extremistas por os caminhos alternativos, para antecipar soluções à prática turística hegemônica. Afinal, a história crítica das experiências sociais do século XX pode ser traduzida como uma história de cooptações. As alternativas que não foram cooptadas pelo sistema capitalista, ou se extinguiram antes de se consolidar ou não eram alternativas de fato. As demais – táticas de guerrilha, planejamento socialista, música pop, movimento punk, culinária regional, entre tantas - alimentaram a pujança do Dragão dos Mares. Viraram marca registrada de alguma coisa relativamente regular ou estabelecida. O caminho para Edmund Husserl (readaptadas ao fazer político) está na volta às coisas mesmas. Como criadores de técnicas – de maravilhas mecânicas amiúde convertidas em frankstein eletrônico – precisamos aceitar o desafio de reeducá-las. Reeducá-las, entretanto, nas entranhas do Dragão dos Mares, na condição de dragões; ou seja, assumindo coletivamente que somos a “coisa” que denominamos capitalismo e devoramos as “outras” coisas que inventamos para disfarçar nossa voracidade. O caminho da “voltas às coisas mesmas” é um exercício invertido de imersão selvagem na sociedade estabelecida. Um descaminho. Esta segunda tendência de resposta é o que explica o valor das práticas de hibridação (BURKE, 2003) como dinâmicas que alimentam o permanente exercício social de defender a existência de uma só humanidade no infinito mar da diversidade. Alvo de muitos estudos culturais, das mais diferentes matrizes disciplinares, a ideia de “hibridação” tem sua origem conceitual na biologia; mais especificamente na genética. Hibridar é misturar genes de espécies diferentes. Autores como Nestor Garcia Canclini, Stuart Hall, Clifford Geertz, Homi Babha, Arnold Tonybee, entre tantos que se multiplicam nas disciplinas próximas ao turismo, preferem pensar a hi-


bridação em suas conceituações assemelhadas. Misturas, sincretismos, trocas, intercâmbios, contatos, mudanças, imitação e apropriação, renovação; seja qual for a qualificação mais precisa, podemos considerar impensável o Turismo sem práticas híbridas. O historiador inglês Peter Burke dedica um ensaio sobre esse processo apontando uma ideia que nos parece seminal a respeito dessa tendência. Ao discutir as práticas como uma variedade das hibridações, ao lado dos artefatos, povos e experiências linguísticas e conceituais, afirma: Esse é o momento apropriado para introduzir uma ideia que irá voltar à bailar nas páginas seguintes, a ideia de circularidade cultural. Alguns músicos do Congo se inspiram em colegas de Cuba, e alguns músicos de Lagos em colegas do Brasil. A África imita a África por intermédio da América, perfazendo um trajeto circular que, no entanto, não termina no mesmo local onde começou, já que cada imitação é também uma adaptação. (BURKE, 2003, p.32).

As páginas subsequentes, referidas pelo autor, abrem um enorme leque de possibilidades para as variedades de terminologias, situações e reações, densamente ilustrativas de um jogo paradoxal. Quanto mais humanos nos tornamos, mais inseridos no corpo do Dragão da Riqueza (o capitalismo), reconhecemos nosso ser. Eis a caótica mensagem da hibridação, apontada pelo êxito global da experiência turística e debatida em seus processos colaterais. Burke aponta entre as concepções de hibridismo, com sua amplitude cognitiva, o conceito de crioulização. Segundo ele, mais consistente para pensar a mistura de misturas e desviar a reflexão dos raciocínios puritanos. Vejamos este exemplo, muitas vezes “confirmado” pelos guias de turismo para enquadrar a legitimidade das tradições afro-brasileiras. Em outras palavras, todas as tradições culturais hoje estão em contato, mais ou menos direto com as tradições alter-


nativas (...) o caso do Candomblé, interpretado em um ensaio brilhante por Roger Bastide como a construção simbólica do espaço africano, uma espécie de compensação psicológica para os afro-brasileiros pela perda de sua terra nativa. Apesar disso, foi mostrado que as práticas do Candomblé se alteraram gradualmente com o tempo. Portanto, não se pode dizer que o Candomblé é “puro” enquanto que a Umbanda, por exemplo, é um híbrido. Podemos dizer que as tradições africanas são mais importantes no Candomblé do que na Umbanda, mas todas as formas culturais são mais ou menos híbridas. (BURKER, 2003, p.102).

Para finalizar essa reflexão mais aberta, o autor enumera quatro possíveis tendências para a hibridação como pauta de desenvolvimento humano: a contraglobalização (alternativa crítica formadora de experiências insulares), a diglossia cultural (combinação de culturas locais com as formas globais), a homogeneização (não distinção de uma origem cultural) e o surgimento de novas sínteses, enfatizada por ele como a crioulização do mundo, pela capacidade de multiplicar circularidades de formas díspares, portanto, não convergentes, necessariamente. Essa hibridação, portanto, sugere um desvio inovador na maneira de abordar os impactos turísticos. Sugere a ação determinante das culturas visitadas na capacidade veemente de “exportar” modelos, ou seja, uma invenção cultural. Permitiria, por exemplo, uma investigação sobre a crioulização do turismo de “sol e praia” como meio de ocupação efetiva da cultura sertaneja no litoral setentrional do nordeste brasileiro. Afinal, a chegada do turismo no Litoral do Rio Grande do Norte, do Ceará e do Maranhão é quase tão recente quanto a diversificação de formas de ocupação desse litoral Atlântico. A respeito dele, mais adiante, discutiremos o modelo político conceitual de eculturismo como encaminhamento da hibridação, tomando por base as questões constituintes da produção do patrimônio histórico-cultural em cidades como Aracati-CE. Por


hora, é importante insistir em um ponto central do processo de hibridação acelerado pelo turismo. Dificilmente os lugares turísticos, em longo prazo, podem manter essa monofuncionalidade. As teorias sistêmicas para interpretar seu desenvolvimento e declínio, entretanto, nunca levam em consideração um componente cultural essencial para explicar tais mutações: as populações direta ou indiretamente, envolvidas no receptivo aprendem amiúde o desejo de fazer seu próprio turismo (quando já não o fazem). Neste momento, o segmento sólido do possível e enriquecedor turismo cultural se desmancha no ar da cultura turística. Culpa do capital? ... Não creio! Singela expressão de que o dragão da riqueza capitalista não passa de uma fantástica roupagem (mitologia contemporânea) para nos eximirmos da culpa de criarmos um turismo que não sabemos controlar (ou educar). Por uma cultura turística além do turismo cultural Partindo na direção do foco central de nossas reflexões, encontramos o solo fértil do universo híbrido das localidades. Inúmeras cidades, vilas e povoados, interioranos ou litorâneos, no contexto nordestino, poderiam afirmar uma densa materialidade de expressões culturais capazes de redirecionar seu turismo. O caldeirão diversificado da cultura material dos lugares é geralmente muito rico. Mas a riqueza se multiplica quando atentamos para nossa matriz ameríndia. São rarefeitas as construções (monumentos, edifícios, conjuntos arquitetônicos e paisagísticos) frente à avalanche de manifestações da cultura imaterial. Embora os patrimônios tangíveis e intangíveis sofram ainda do mesmo mal, imposto pela marginalidade cultural brasileira, o valor da Educação Patrimonial permanece como um privilégio de poucos; apesar do esforço de muitas lideranças e educadores em modificar esse descompasso. Considerando a fragilidade relativa do valor patrimonial fica difícil sustentar a defesa para o desenvolvimento do turismo cultural


como foco prioritário de uma política pública de turismo. As tentativas estão se multiplicando na forma de projetos e programas de estímulo. O Cariri cearense, os roteiros nas Chapadas, as práticas de Turismo Rural, Turismo Sertanejo e as modalidades de trilhas urbanas favorecem as sensibilidades para com os bens culturais. Toda essa dimensão valorativa necessita, contudo, da formação de uma cultura turística que amplie e qualifique as demandas pelo Turismo Cultural e outros tipos de segmentos correlacionados a esse. Uma cultura turística capaz de introduzir a relação simultânea e híbrida de alteridade/identidade, de alteridentidade no cotidiano social. Se antes, nos remotos tempos de consolidação dos nacionalismos, a força patriótica das identidades heróicas cristalizava símbolos oficiais, atualmente novos elementos socioambientais entram em cena. A natureza e a complexidade de tais elementos exigem uma valorização ampliada da lógica de pertencimento do bem patrimonial. Os bens de uma comunidade são bens progressivamente globais. As escalas de apropriação já não se limitam à identidade nacional e estão em franco processo de internacionalização. O paradoxo é contatar que tais processos de constituição oficial (tombamentos) surpreendem seus próprios habitantes, que ao longo de toda uma vida conviveram com aquele parque, casario ou equipamento. Resultado incômodo: a valorização da comunidade local para com aquele bem projetado, em caráter patrimonial, depende da incorporação de uma cultura turística, de teor igual ou superior ao próprio visitante. Mas como atingi-la diante das múltiplas prioridades sociais que simplesmente antecederiam essa meta? Quem irá redirecionar orçamentos da saúde, educação, segurança ou infraestrutura para incentivar uma cultura turística dos próprios moradores? As dificuldades parecem intransponíveis quando a leitura ingênua isola a perspectiva em questão. Não se trata de investir economicamente em um setor chamado “turismo cultural” ou invertê-lo de maneira a priorizá-lo na condição de cultura turística. Trata-se da recomposição do projeto turístico como prática social, por intermé-


dio do setor mais competente para massificar uma transformação social: a educação pública. Mais do que pensar em demandas compensatórias para a educação (escolar e não escolar) o poder público e a sociedade civil podem antever um sistema de ações educativas, como base para as novas demandas patrimoniais. É o que pretendemos explorar no exemplo desafiador do Município de Aracati-CE, epicentro do desenvolvimento turístico do roteiro Costa Leste (polarizado pela praia de Canoa Quebrada), no Estado do Ceará, e base para constituição do maior conjunto de edificações contínuas (casarios, praças, monumentos e igrejas) tombadas pelo IPHAN no interior do estado. Se considerarmos o alerta de Michel de Certeau (2005, p. 213-214) quanto a composição de um poder político como potência e limite para as ações culturais do corpo social, ampliaremos o grau de realismo na visualização dos incentivos turísticos, em contextos como o de Aracati. O turismo ali é uma eterna prioridade retórica que o cotidiano pode: a) deixar para depois; ou b) restringir aos pólos de isolamento e gestão de atrativos exploráveis em curto prazo. Nessa ótica, como fica a composição integrada do patrimônio histórico e cultural representado pelo eixo da Rua Grande (Cel. Alexanzito) e todo o conjunto religioso (da Igreja Matriz a do Senhor do Bonfim) aclamado nas festividades de outubro (mês do município) e de fevereiro (carnaval)? Fica a mercê de uma relativa desarticulação capaz de criar eventos e fatos turísticos sem recriar a cultura. A não ser na multiplicidade crescente de projetos educacionais que desafia a Secretaria de Educação, na composição de outro olhar para as formas de envolvimento da comunidade escolar com o turismo. Se de um lado, a escolarização acontece fazendo de conta que tudo se justifica pela formação de cidadãos futuros, a aceleração contagiante das hibridações turísticas insiste em lembrar que diversos futuros estão presentes no aqui e agora. Alguns absolutamente fechados à lógica predatória e exploratória. É aquele futuro do jogo de marginalização que empurra o morador de Canoa Quebrada para


a periferia do Pedregal (bairro periférico de Aracati com sérios problemas sociais e ambientais). Outros relativamente acessíveis como no exercício cotidiano do Projeto de Educação Patrimonial e Ambiental, liderado pelo professor e arte-educador Ocivan Moreira. Comandando um grupo de jovens, de diferentes séries do Ensino fundamental II das Escolas Municipais, Ocivan desenvolve semestralmente toda uma dinâmica de atividades complementares junto a esses jovens. Compõe assim, uma experiência coletiva absolutamente compatível com a gestão de uma cultura turística local. Eis apenas um exemplo de possibilidades promissoras para uma política educacional e cultural (com turismo) consolidar estratégias para o fortalecimento da cultura turística em uma comunidade. Que tal o eculturismo na política? Entre as iniciativas pulverizadas em Aracati para projeção de uma Cultura turística e a constituição de um projeto político especificamente Turístico nesse sentido, há uma longa estrada a percorrer. Principalmente porque grande parte do que delimitamos como um entendimento limitado do turismo cultural passa pela ausência de uma reflexão sobre o papel dos conflitos sociais locais. É impossível ignorar nessas bases que grupos empresariais e proprietários rurais dividem espaços da turistificação local, a revelia ou ostensivamente contra os interesses mais legítimos de inclusão de novos grupos e lideranças, até então excluídos do controle político local. Dessa forma, é interessante considerar a perspectiva crítica das vinculações teóricas que apontam para a cultura patrimonial como um campo de forças a ser reinventado pela profusão de formas de valorização. Formas simbólicas em disputa política – e midiática – pela consolidação de sua representatividade local. Para o exemplo aqui considerado na lenta e disforme expansão de uma cultura turística, pode-se questionar onde se encontra o alvo central da política


pública de turismo de Aracati. Na intensificação e supervalorização do destino Canoa Quebrada (e sua expansão praiana), no resgate da centralidade histórica do patrimônio edificado da Rua Coronel Alexanzito, ou na ousadia da diversificação de expressões da cultura imaterial, redirecionando a articulação socioambiental dessas e outras localidades turistificáveis? O questionamento, conforme a figura 1 exposta, permite a reconstituição da fórmula inicial para Turismo Cultural local, como plataforma de regionalização centrífuga de uma política de eculturismo. Reconhecendo o acelerado dinamismo da cultura, frente a sua contextualização moderna e pós-moderna (aqui tomados como processos simultâneos de globalidade), e admitindo a integração de localidades que se emanciparam politicamente, mas não quebraram vínculos regionais, podemos lidar com a seguinte visualização do Eculturismo, a fim de operá-lo em uma prática mais responsável de turismo cultural.

Figura 1 – Esquema de compreensão do eculturismo como política intersetorial. Fotos: Laboratório de Estudos Geoeducacionais – DG-UFC

Chamamos, portanto, de Eculturismo o conjunto articulado de iniciativas políticas e administrativas que visam implantar o turismo cultural como prática de visitação educacional aos patri-


mônios tangíveis e intangíveis de uma localidade regionalmente representativa. Embora seja possível a adaptação desse turismo como prática escolar, mobilizando sistematicamente as aulas de campo e os estudos do meio no ensino de Geografia – o que consideramos estritamente por Turismo Educativo - compreendemos o Eculturismo como estratégia pública de redução do elitismo da Indústria Cultural. A “equação” apontada pela figura 1 indica que o “conteúdo local” dos lugares turísticos (efetiva ou potencialmente) precisa ser “dividido”, ou seja, tornar-se acessível, ao público escolar como forma de construção geográfica para novas práticas e significados. Do contrário, os ambientes, equipamentos e serviços, reconhecidos como turísticos, têm que permanecer mitificados como um “mundo fechado” aos grupos hegemônicos (globais e locais). Mantendo o Turismo como um gerador privilegiado de renda, emprego e perversidade, assim como a mineração, as guerras e o narcotráfico. A comparação não seria sequer mencionada se no lugar de um discurso superficial, forjado no jogo de interesses econométricos, os técnicos e planejadores do setor apontassem, de forma substancial, qual a melhor maneira de garantir uma gestão comunitária e participativa das classes populares e médias nas benesses do consumo turístico. Forma substancial não é e nem pode ser constituída de senso comum. Aquela habitual maneira de dizer que a expressão democrática do povo nos aparelhos de estados e câmaras de setoriais (conselhos, comissões) e a garantia política de sustentabilidade do turismo. Nosso raciocínio discordante é simples e complexo em um só tempo. Para ser sustentável, a política de turismo tem de ser responsável pelo presente futuro. E esse tempo ambíguo e prospectivo encarna necessariamente as ações do setor Turismo no campo da Educação Pública (formal e não-formal). Por isso, considerar o Eculturismo – ao contrário de seu quase homônimo Turismo Ecológico ou Ecoturismo (restritivo e ambientalmente conservador) – uma política intersetorial de Turismo na Educação e na Cultura, visando à transformação em médio e longo prazo, dos


lugares turísticos, ou turistificáveis, em espaços públicos de lazer e interação social. Uma política de Turismo que não abra caminhos, diretos ou conflituosos, para tal transformação, é promover a continuidade de uma política de territórios apartados e a reprodução das concentrações de renda, apenas com outra roupagem. Um turismo demarcado pela violência da seletividade, no qual muitos são chamados para não serem jamais escolhidos. No Eculturismo, ao contrário, a cultura turística em emancipação – é esta a melhor decodificação do neologismo – pode obrigar o acesso de uma comunidade específica aos espaços turísticos e suas estratégias de valorização de serviços e equipamentos. Referimo-nos à comunidade escolar e seu papel de projeção cultural no meio visando a transformação significativa e ponderada da Comunidade ali representada. Obviamente, localidades maiores possuem mais de uma escola. E entre essas também é habitual o contraste de interesses e a divergência de métodos e gestão. Entretanto, toda e qualquer escola detém uma significativa parcela da mais positiva esperança de reorganização político-cultural da comunidade onde se encontra. É nessa racionalidade que um turismo proposto como indústria branca, nos pressupostos contemporâneos da sustentabilidade precisa, obrigatoriamente, abrir-se como política pública de visitação; e, por extensão; promover o desenvolvimento de ações educativas explícitas e estratégicas. Enfim, todo um conjunto de tratativas que faça, por meio da visitação, aquilo que a modernidade consolidou na revolução industrial: acesso a uma tecnologia estranha, estrangeira, mas representativa da nossa unidade na diversidade. Ações que tornam o fazer turístico uma prática cultural alteridentitária. Daí a importante discriminação entre a potencialidade de enfrentamento político da ação social por intermédio do turismo e a “ingenuidade” das propostas setoriais. Tratando das mutações que o turismo agregou a uma vasta região do eixo rodoviário Rio de Janeiro - São Paulo – o vale do Rio Paraíba do Sul – o geógrafo Henrique Prudente afirma:


O turismo definido como predatório age contrariamente diante dos princípios que se propõe (...). O turismo emancipador é, em verdade, a negação profunda destes mecanismos exemplificados que excluem as populações dos municípios das conquistas oriundas desta atividade e propicia uma acumulação de recursos de forma abusiva em agentes completamente alheios à realidade local. O turismo emancipador encontra respaldo junto ao grau de consciência da comunidade que articula suas diferentes facetas culturais enraizadas nas tradições ancestrais presentes na esfera cotidiana. Há uma reciprocidade entre o grau de historicidade e a resistência cultural. (PRUDENTE, 2005, p.117)

Uma prática política-cultural de inversão do jogo hegemônico (PRUDENTE, 2005), gramsciana é tão revolucionária quanto a logística do universo cibernético dos defensores dos softwares livres. Posto o exemplo não-terrorista de suas marcantes táticas: apontar que todo programa computacional é originalmente livre e denunciar que é a perversidade da apropriação, de patentes e licenças, que tornam proibitiva a democratização do conhecimento. O Turismo pode continuar imitando e construindo guetos paradisíacos a revelia dos grupos subalternos. O eculturismo alteridentitário também pode, aliás, deve contrariá-lo, como forma de dizer não a produção de uma política exclusivamente Turística. Vetores de alteridentidade para concluir A potencialidade do Eculturismo, tanto na emancipação socioespacial como no acesso ao campo virtual das mídias e sistemas de comunicação, consolida o papel da educação na construção de uma significativa cultura turística. Enquanto proposta alteridentitária, o Ecoturismo não encontra exemplo de execução em nenhuma instância municipal ou estadual do território cearense. Talvez, outros estados nordestinos estejam amadurecendo experiências articuladas a esse parâmetro da gestão


intersetorial. Nem mesmo em Aracati – onde concentramos a exploração crítica das potencialidades paisagísticas e educacionais – observamos o estabelecimento dessa estratégia macrossetorial de administração. Constatamos sim, um conjunto de preocupações ambientais e culturais que mobilizam os técnicos e suas ações no âmbito promocional da “desconcentração” – no tempo e no espaço – de atividades turísticas. A ideia é incluir outros períodos e localidades na dinâmica da oferta turística. Tecnicamente como dissemos, anteriormente, uma diversificação de oferta não encaminha transformações; apenas expande o setor. No caso específico de Aracati e de muitas cidades do interior nordestino, esse processo apenas manifesta que o turismo, como setor público, não anda com suas próprias pernas e precisando se agregar às demais Secretarias: de Cultura, Meio Ambiente e Turismo; algumas vezes acrescentando, Esportes, Eventos ou Lazer. Mas as Secretarias de Educação, com vida própria e orçamentos incomparavelmente superiores, geralmente têm autonomia e não se articulam a esse setor. Pensar os vetores da alteridentidade é tocar, inicialmente, nesse ponto administrativo fulcral: por que Turismo e Educação nunca se articulam minimamente, embora os interesses quanto ao meio ambiente e a cultura estejam no centro de seus interesses? A resposta mais imediata está noutro apartheid administrativo e unidirecional: o Turismo é visto como setor econômico e aceito politicamente como um sacrifício comunitário de atendimento ao não cidadão. Um mal necessário apenas. A Educação é considerada, por outro lado, um caminho mágico para redenção de todos os malefícios. Um bem em si mesmo, independente dos custos, por representar o maior investimento no e do cidadão. Sabe-se que o econômico e o social constituem e invertem interesses e focos, mas tudo estaria perfeito se eles não constituíssem dinâmicas cada vez mais interdependentes na contemporaneidade. Portanto, a Educação forma cidadãos cada vez mais estrangeiros nos seus lugares de origem e o Turismo aproxima ou leva cada vez mais alguns estran-


geiros de uma condição especial (e superior) de cidadania. Daí, a compreensão da racionalidade emergente para “outra” política de Turismo (preferencialmente cultural) que fomente ações educativas de turistificação local e regional de sua própria comunidade. Mas não qualquer comunidade; a comunidade alteridentitária dos estudantes do ensino básico. Consideramos assim alguns vetores capazes de favorecer esse processo e, ao mesmo tempo, eliminar a leitura “preconceituosa” que tornam as políticas brasileiras de turismo, principalmente na escala local, letra morta. Se o atual Plano Nacional de Turismo (PNT 2007-2010) tivesse acrescentado, explicitamente, essas quatro linhas de articulação destinadas à inclusão do processo educativo, poderíamos acionar o salto de qualidade na constituição da cultura turística. O 1º vetor se encontra na abertura radical dos equipamentos de hospedagem, lazer e alimentação para autocrítica estudantil. Sem esse olhar dos jovens escolarizados, com suas observações e críticas, dificilmente um empreendimento turístico vá se sustentar para além da reprodução de relações desiguais. O trade turístico costuma explicar o crescimento do setor como uma tendência mundial; mas não consegue avaliar as retrações e facilmente “condena” a ausência de incentivo (monetário) governamental. Entretanto, como injetar dinheiro sem pesquisa de mercado? E como pesquisar o mercado sem participação estudantil? Portanto, para a alteridentidade é a construção explícita do olhar turístico do estudante. O 2º vetor está na acessibilidade da informação e dos transportes. Trata-se de uma acessibilidade mais democrática e coletiva possível. Os meios técnicos de viagem física e informacional não podem fixar duas classes de usuários. E essa impossibilidade tem de ser vigiada por uma política intersetorial de Turismo. Vamos a dois exemplos: como é possível pensar uma cidade/localidade turística com infraestrutura de aeroporto e conexões de internet sem fio, se a “rodoviária” local ainda parece uma praça com amontoado de cargas, sem balcão de informações ou atendimentos nem para


explicar por que não há jornais semanários na localidade? Os mais espertos vão justificar que essas “dificuldades” favorecem a manutenção do “ar bucólico”, típico do morador daquela localidade. Os que compreenderam o papel do eculturismo antecipar-se-ão, percebendo a estratégia preconceituosa de um planejamento turístico perverso, capaz de justificar a miserabilidade local em nome do bucolismo. Nada justifica, constitucionalmente, ausência de estruturas comunicacionais. Se todo lugar do Brasil tem acesso à televisão e rádio, um planejamento turístico efetivo precisa garantir acesso a outros bens de sua própria irradiação. Transporte rodoviário e Jornais são apenas dois de muitos exemplos diretamente ligados ao processo escolar. O 3º e último vetor se direciona à coparticipação de instituições comunitárias – igrejas, associações, cooperativas – na parceria diversificada com prefeituras que pudessem explorar a vivência turística dos estudantes, dentro e fora dos circuitos turísticos. Haveria um questionamento imediato, direcionado a ironizar essa coparticipação: por que motivos uma cooperativa agrícola, uma igreja pentecostal, uma associação de pesca ou de bairro promoveria receptivos turísticos integrados às escolas públicas? Por que todos esses setores têm, com seus desafios e limitações, que constituir seus públicos consumidores, seus respectivos mercados. E esses mercados serão cada vez mais seletivos e mais profissionais, com características delineadas por exigências qualitativas do usuário turístico (conforto, efemeridade, diversificação, segurança, informação). Nesse vetor é preciso considerar que uma prática de viagens e intercâmbios, não assumidamente turística, na maioria das vezes, já se realiza. Entretanto, motivada pela necessidade de expansão da organização, reduzindo custos ou ignorando recomendações técnicas dos serviços de qualificação da mão de obra, as mencionadas instituições fomentam essa articulação de maneira indireta. O exemplo mais representativo vem da Igreja Católica e suas diversas organizações comunitárias. Afinal, o próprio cristianismo como religião missionária, promotora de diásporas e conquistas intercontinentais,


motivou os primórdios do turismo e da hospedagem. Como entender a farta mobilização do turismo religioso hodierno desprezando esse vetor? Múltiplos Caminhos de Santiago de Compostela percorrem hoje o mundo cristão provando a interface das instituições não turísticas na constituição de uma alteridentidade pertinente à política intersetorial. Cabe-nos agora, fortalecer o investimento teórico – como profissionais e pesquisadores – para permitir que os vetores da visita técnica escolar, da acessibilidade informativa e do intercâmbio institucional, subvertam as bandeiras isolacionistas daqueles que defendem uma Política de Turismo Cultural, como se o segmento, por si só, representasse o mapa do tesouro pelo vetor único da qualificação técnica profissional.

A subversão representa um ato de rebeldia inteligente e propositiva. Uma proposta além do esperado. Nesse caso, uma proposta que afirma ser possível ao Turismo reeducar a cultura local por legítimo processo de emancipação política.

Referências BURKE, Peter. Hibridismo cultural. Injui-RS: Ed. Unisinos, 2003. CAMPBELL, Joseph. Mitos de luz: metáforas orientais do Eterno. São Paulo: Madras, 2006. CERTEAU, Michel de. A cultura no plural. Campinas-SP: Ed. Papirus, 2005.


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TURISMO CULTURAL: REFLEXÕES E POSSIBILIDADES DE DESENVOLVIMENTO NO RN

Thadeu de Sousa Brandão

Construir uma reflexão acerca das possibilidades de desenvolvimento de um turismo cultural no Rio Grande do Norte é o ponto central da discussão deste texto. Isso numa época em que este segmento turístico é muito discutido, mas, como será mostrado, pouco implementado. Ousamos dizer que, de maneira estruturada, não há turismo especificamente cultural no RN. Não há uma destinação de turistas especificamente com a finalidade de visitar ou conhecer algum atrativo turístico do Estado. Não se visita nenhuma cidade devido ao seu patrimônio cultural e histórico. Mesmo o turismo de eventos ainda é incipiente e apenas engatinha rumo a um futuro incerto. Um pleno desenvolvimento desse seguimento poderia servir de meio para contribuir junto à preservação dos bens culturais e das tradições da população local, como veículos de identificação e orgulho local, além de atrair novos tipos de turistas, geralmente mais conscientes, colaborando e somando dias na permanência de seus visitantes nos hotéis e indiretamente, contribuindo no aumento do consumo em restaurantes, na procura maior por áreas de lazer e entretenimento, além de resgatar a memória e o orgulho da tradição pela população local.


No entanto, o que percebemos realmente é um segmento esquecido e engolido pelos atuais planos de turismo que se pautam em frequentes investimentos no segmento praia-sol, abandonando os bens culturais e patrimoniais, sendo os mesmos resumidos a um passeio chamado, turisticamente, de city tour. Esse turismo na cidade é, geralmente, realizado de forma rápida com pura e simples intenção de visitação a centros de artesanato e complexos de lazer, abordando, salvo casos isolados, somente o turismo de fachada. Dessa forma, cruza-se a cidade em carro fechado, fazendo uso de ar-condicionado e ouvindo um guia exclamar o nome do prédio, sem a preocupação com os aspectos históricos, arquitetônicos, a importância daquele local na construção da cidade de hoje, as danças, arte, folclore, entre outros aspectos. Nesse sentido, a perspectiva de se escapar dessa lógica turística massificante é imprescindível. Existem alternativas, mas ainda são pouco exploradas e, quando o são efetivamente, ocorrem de maneira voluntária e com pouca perspectiva de se estruturarem efetivamente. Assim, tendo como contexto uma apresentação panorâmica do turismo cultural no Rio Grande do Norte, construímos aqui um conjunto de observações (e especulações) mais gerais sobre o tema. O turismo cultural O turismo cultural é um segmento cujos programas são voltados aos participantes interessados em conhecer costumes de determinado povo ou região. Dentre essas atividades estão as músicas, as festas, as danças, o folclore, a religiosidade, a culinária, o modo de viver em uma determinada região etc. Turismo cultural pode também ser definido como o conjunto de atividades turísticas que se desenvolve em função do patrimônio histórico-cultural e permitem a observação da organização social do homem junto ao seu ambiente, retratando seus usos e costumes, tanto atual como de seus antepassados. Sendo assim, pode-se dizer que o turismo cultural engloba todos os aspectos das viagens pelos quais os turistas conhecem a vida,


o prazer e o pensamento de cada comunidade receptora. Com essa visão, o turismo se apresenta como uma ferramenta importante para promover as relações culturais e também estimular fatores culturais dentro de uma localidade, sendo um meio de fomentar a atração de turistas e visitantes. Segundo Funari e Pinsky: Turismo Cultural consiste no deslocamento do indivíduo com objetivo de conhecer a história daquele povo, sua cultura, idioma, folclore, gastronomia, costumes, artes, tradições e crenças, não somente no intuito de conhecer, mas conseguir de certa forma o aprendizado ou saciedade da vontade em compreender e vivenciar alguns dos vários aspectos daquela sociedade. Esse é o principal ponto que diferencia as outras formas de turismo do turismo cultural, pois não é o que se vê, mas como se vê que caracteriza o turismo cultural. (FUNARI; PINSKY, 2003, p. 10).

No entanto, o turismo visa, acima de tudo, a fuga do turista de seu local habitual e de seus âmbitos de vida na busca do novo, do desconhecido, visando algum ganho nas áreas da aventura, do lazer, do descanso, da cultura e conhecimento, entre outros. Em um mundo globalizado, onde as atividades profissionais, o lazer, o conhecimento e a cultura são sobrepostos e impulsionados a um padrão pré-determinante por determinadas nações, o segmento do turismo cultural surge como grande potencialidade a ser desenvolvida, haja vista a ampla necessidade de exploração de produtos diferenciados pelo mercado turístico, e vem colaborando também como um incentivador e impulsionador para preservação do patrimônio histórico e das manifestações culturais. Isso porque este atual padrão de desenvolvimento globalizado, gerador de uma verdadeira homogeneização da cultura, serve como impulsionador para que a identidade cultural de uma sociedade tradicional se autopreserve e sirva como diferencial no segmento cultural de viagens (BARRETO, 2004, p.24).


Nosso entendimento ao patrimônio cultural pauta-se em pensálo como “tudo aquilo que constitui um bem apropriado pelo homem com suas características únicas e particulares” (FUNARI, PINSKY, 2003, p. 08). Isso inclui tanto um alimento, quanto um gesto ou mesmo estilo de vida, e é a diversidade dessas formas que faz com que as sociedades se diferenciem uma das outras. Portanto, preservar o patrimônio cultural é garantir que a sociedade tenha maiores oportunidades de perceber a si própria sua importância, respeito e criação. Esse segmento recobre um espectro muito amplo de interesses, tanto pela diversidade de modalidades artísticas quanto pelos níveis ou origens de expressão: popular, de massa, erudita, urbana, rural, nativa etc. Além disso, o que parece caracterizar mais fortemente esse segmento é a intenção de apreciar manifestações e obras de arte, seja pelo aspecto estético ou histórico. O turismo cultural apresenta níveis diversos de programação, tanto em modalidades artísticas quanto na amplitude do interesse. Os roteiros mais genéricos normalmente incluem visitas a museus e construções de relevante valor arquitetônico como igrejas e palácios. Atraem pessoas que pretendem experimentar a sensação de observar de perto obras culturais importantes. Mas existem interesses bastante específicos, como, por exemplo, conhecer os locais em que viveu determinado artista, procurar entender, a partir desse contato, o ambiente e as circunstâncias que motivaram a criação das obras etc. Dentre os mais variados segmentos, o turismo cultural é o que tem recebido uma maior valorização por parte de estudiosos. Portanto, sabe-se que qualquer que seja o segmento, a cultura vai estar sempre presente, facilitando um intercâmbio entre povos, incluindo o consumo de bens culturais. Consideram-se cultura todas as maneiras de existência humana. É assim, todo conhecimento que uma sociedade tem de si mesma. Cultura inclui as maneiras como esse conhecimento é expresso por uma sociedade como no caso de sua arte, religião, tecnologia e ciência.


Laraia (2003, p.25) afirma que: No final do século XVIII e no princípio do seguinte, o termo germânico Kultur era utilizado para simbolizar todos os aspectos espirituais de uma comunidade, enquanto a palavra francesa Civilization referia-se principalmente às realizações materiais de um povo. Ambos os termos foram sintetizados por Edward Tylor (1832-1917) no vocábulo inglês Culture, que “tomado em seu amplo sentido etnográfico é este todo complexo que inclui conhecimentos, crenças, arte, moral, leis, costumes ou qualquer outra capacidade ou hábitos adquiridos pelo homem como membro de uma sociedade”. Com esta definição Tylor abrangia em uma só palavra todas as possibilidades de realização humana, além de marcar fortemente o caráter de aprendizado da cultura em oposição à ideia de aquisição inata, transmitida por mecanismos biológicos.

O turismo cultural engloba todos os aspectos das viagens pelos quais o turista conhece a vida e o pensamento da comunidade receptiva. Por isso, o turismo se apresenta como uma ferramenta importante para promover as relações culturais e a cooperação internacional. Por outro lado, estimular os fatores culturais dentro de uma localidade é um meio de fomentar recursos para atrair visitantes. O turismo pode ser estimulado não só como um meio de conhecimento, mas também como uma forma de transmitir uma imagem favorável ao visitante. Segundo Andrade (1976), o termo Turismo Cultural designa uma modalidade de turismo cuja motivação do deslocamento se dá com o objetivo de encontros artísticos, científicos, de formação e de informação. Portanto, as características básicas ou fundamentais do turismo cultural não se expressam pela viagem em si, mas por suas motivações, cujos alicerces se situam na disposição e no esforço de conhecer, pesquisar e analisar dados, obras ou fatos, em suas variadas manifestações como: representações religiosas, rotas e roteiros, festivais de música, cinema e teatro, manifestações populares, lendas, exposições de arte entre outras.


No turismo cultural, o termo cultura abrange tanto a cultura própria do turista como o conjunto de ideias e criações dos mesmos em seu contato com novas realidades e convivências diferentes. E a motivação do turismo cultural depende bem mais dos turistas do que da cultura dos locais visitados, pois é de certa forma, através deles que a cultura local se torna, de fato, conhecida, além de melhorar a autoestima da comunidade visitada e fornecer oportunidade para um melhor conhecimento da cultura alheia (SOUZA, 2000, p. 143). O turismo cultural abre perspectivas para a valorização e revitalização do patrimônio, do revigoramento das tradições, da redescoberta de bens culturais materiais e imateriais, muitas vezes abafados pela concepção moderna. A identidade cultural é, sobretudo, um fato cultural e político que propõe a consciência da soberania e da autodeterminação. O turismo cultural quando valoriza as culturas locais, principalmente pela sua singularidade, estimula a recuperação e a revitalização de patrimônios materiais e pode gerar rendimentos econômicos para pequenas e médias cidades se as mesmas tiverem um projeto de valorização e aproveitamento daquele potencial. À medida que o interesse estético ou histórico mistura-se com o interesse recreativo e de lazer, cedendo espaço para a participação lúdica ou o divertimento puro e simples, as fronteiras entre o turismo cultural e o turismo de lazer (ambos de amplo espectro) tornamse muito tênues. O folclore é área cultural onde mais se manifesta esse cruzamento. Se, por um lado, as festas folclóricas tendem a se transformar em espetáculos, com requintes de produção em muitos casos, por outro, conservam sempre uma reserva para a participação popular ativa. Começando como Entrudo, uma manifestação bruta e desorganizada de liberação de comportamentos, o carnaval passou a ser realizado em torno de grupos musicais, primeiramente os ranchos, depois as escolas de samba. Estas, especialmente no Rio de Janeiro, atingiram tal nível de apelo popular que ganharam áreas especiais para desfilar, competindo entre si e atraindo turistas do mundo todo. Enquanto as escolas passavam a espetáculo para ser


apreciado, os bailes de salão e os desfiles de bandas ou festas de rua continuaram possibilitando a participação das pessoas. Fenômeno semelhante, embora em dimensões mais modestas, começou a ocorrer com o boi-bumbá, manifestação tradicional da cidade de Parintins, no interior do Amazonas. É uma festividade em que duas agremiações, o boi Garantido (de cor vermelha) e o boi Caprichoso (cor azul), desenvolvem uma espécie de competição que mobilizam torcidas como numa disputa esportiva. De certo modo, a festa mistura o folclore com uma animação carnavalesca. Cada grupo com levantadores oficiais, lembrando os puxadores de samba-enredo das escolas. As toadas de boi-bumbá acabaram sendo divulgadas em todo o país através de grupos musicais que se multiplicaram rapidamente. Com o sucesso, o Festival passou a ser organizado em bases profissionais, chegando a criar franquias para apresentações em outras localidades e até para cruzeiros marítimos (VEIT, 1997). É importante ressaltar que o turista de hoje é mais exigente, na medida em que se integra na cultura local, vivencia seus costumes e não usufrui apenas das belezas e atrativos naturais. O turista está em busca do diferente, do criativo, do novo, algo que possa aguçar sua imaginação e isso passa pelo resgate e manutenção da cultura local, daquilo que a diferencia das demais, de seu passado histórico, artesanato, danças, arquitetura, música, enfim, de tudo aquilo que a torna “sui generis” aos olhos do outro. O turismo cultural no RN O Rio Grande do Norte sempre se destacou por possuir um turismo com ênfase em seus recursos naturais, ou seja, binômio “sol e mar”, concentrando efetivamente o turismo em sua capital, Natal, e em praias próximas, como por exemplo, Pipa e Barra de Cunhaú, respectivamente nos municípios de Tibau do Sul e Canguaretama, (SANTOS, 1994). Diferentemente da Bahia e Salvador, que guar-


dam um exuberante patrimônio histórico e cultural, o Rio Grande do Norte, praticamente, centraliza seus atrativos no turismo “sol e mar”. Apesar desses fatos demonstrados atualmente, percebe-se uma diminuição na busca de turistas por esse segmento, como diz Barbosa: “Investigações contemporâneas mostram estar diminuindo o interesse de turistas pelo binômio (sic) praia-sol, ao mesmo tempo em que se desenvolve o interesse por atrativos da natureza e por atrativos da cultura” (BARBOSA, 2004, p.22). Essa tendência se liga a uma busca a formas alternativas de atrativos turísticos, principalmente, aquelas ligadas ao Turismo Cultural. No Rio Grande do Norte, transparecem algumas tentativas iniciais de se efetivar e se consolidar essa modalidade turística, mas isso ainda ocorre, como mostraremos adiante, de forma incipiente. O exemplo mais típico é o caso dos grandes eventos culturais da cidade de Mossoró que, efetivamente, já fazem parte do calendário local. São, especificamente: “Chuva de Bala no País de Mossoró”, que ocorre no mês de junho, juntamente com o projeto “Mossoró Cidade Junina”; “Auto da Liberdade”, no mês de setembro; e o “Auto de Santa Luzia” no mês de dezembro. Nesses eventos, é nitidamente clara a preocupação de construir momentos culturais apoteóticos, onde as pessoas possam ser atraídas pelo espetáculo. Nesse sentido, grandes palcos e estruturas são montados e, durante os dias do evento, são apresentados repetidamente, relembrando os velhos autos medievais e coloniais. Na tradição festiva brasileira, o comum era que as festas saíssem do âmbito religioso para o espaço profano, onde a festa e o espetáculo se mostram como elementos agregadores e renovadores socioculturais. O primeiro dos “Autos” a serem encenados em Mossoró foi o que é efetivamente religioso e está ligado à festa da Padroeira: Santa Luzia. Momento de efervescência cultural e de sociabilidade da sociedade mossoroense, a festa da padroeira enseja muito mais que o puro e lúdico ato de se divertir. Representa também a perspectiva de se reencontrar com outros membros da sociedade a que pertence; ir


ao encontro de uma rede de representações e de símbolos que emprestam sentido ao viver em comunidade e do sentir-se pertencente a esse grupo comunitário e societário. Os demais Autos estão ligados à história de Mossoró e de como essa história é reconstruída e reapropriada miticamente pela sociedade. Tanto no “Chuva de Balas” quanto no “Auto da Liberdade” há uma clara reinterpretação da história, havendo uma supervalorização de microeventos históricos, cuja relevância externa é mínima, mas que passaram a representar, principalmente após a década de 1980, extremamente singulares para os mossoroenses. Deixando de lado as especificidades históricas, que aqui não são nossa preocupação, voltemos à questão central: Turismo Cultural. Dos três eventos supracitados, apenas o “Chuva de Bala no País de Mossoró” e, conjuntamente, o “Mossoró Cidade Junina”, podem ser tratados como momentos onde existe uma possibilidade de se concretizar essa modalidade turística no momento atual. Isto porque a cidade, nessa época, disponibiliza toda uma estrutura turística capaz de dar conta de um afluxo mínimo de turistas no local. Não nos referimos apenas a hotéis e restaurantes, o que a cidade já possui minimamente, embora em número insuficiente para uma demanda maior, mas a uma estrutura de banheiros públicos, comércio de artesanato, estrutura de deslocamento (que em Mossoró é extremamente precária) e um sistema de guias turísticos locais que privilegiem não apenas o espetáculo, mas o patrimônio histórico e cultural local (gastronomia, arte, manifestações da cultura popular etc.). Assim, se existe o evento, ainda não há a estrutura para recepcionar um quantum significativo de turistas. Mesmo assim, os eventos crescem gradativamente, o que talvez –aqui especulo – enseje uma necessidade de adequação estrutural para se preparar para essa demanda (bem ao estilo nacional de “apagar incêndios”). Outro fator que vem contribuindo positivamente para a efetivação da consolidação de um projeto de turismo cultural em Mossoró é o significativo repasse dos royalties de petróleo que a cidade recebe


anualmente e que estão sendo, ao menos parcialmente, investidos em infraestrutura urbana (saneamento básico, pavimentação, educação, saúde etc.) imprescindíveis para a atração turística. Outro exemplo significativo, embora menos relevante em relação ao turismo cultural em si, é o caso da “Festa de Sant’Ana de Caicó” que ocorre nos dez últimos dias do mês de julho de cada ano. Essa festa tende a atrair, na visão de alguns, uma multidão que se encontra na cidade sertaneja para festejar Sant’Ana, padroeira de Caicó. Mas, numa análise mais cuidadosa, isso efetivamente não ocorre44. A Festa de Sant’Ana de Caicó é, essencialmente, um evento que diz respeito aos caicoenses. Mesmo assim, existe uma forte demanda de turistas, embora sejam esses efetivamente caicoenses migrantes, familiares e amigos. Portanto, embora para os caicoenses a festa de Sant’Ana apareça como um mega-evento, ela na verdade não pode ser considerada um evento capaz de se tornar turisticamente viável. Isso por fatores que são efetivamente estruturais. Embora nos últimos anos tenham tido grandes investimentos estruturais, como a da “Ilha de Sant’Ana” (com recursos do Governo do Estado e do Governo Federal), a cidade ainda dispõe de uma estrutura incipiente: poucos hotéis (apenas um de médio porte), poucos restaurantes etc. Mesmo se fosse possível efetivar essa infraestrutura, isso traria um problema fundamental: não há eventos e atrativos para manter esses equipamentos viáveis ao longo do ano. O último exemplo é o caso da capital, Natal e de seu entorno. Embora possua um significativo patrimônio histórico e cultural, o turismo cultural ainda é extremamente incipiente. O grande evento cultural que a cidade disponibiliza é o “Auto de Natal”, que, pela infraestrutura precária, pouco atrai. Fora esse, tem-se o Carnatal, “micareta” (carnaval fora de época) que ocorre em fins de novembro 44 Para um aprofundamento mais cuidadoso da Festa de Sant’Ana de Caicó indico a leitura de minha dissertação de mestrado: BRANDÃO, Thadeu de Sousa. A Senhora do Sertão: a Festa de Sant’Ana de Caicó. Natal: UFRN/CCHLA, Dissertação de Mestrado, 2002. (mimeo).


e início de dezembro. Embora essa festa atraia uma quantidade significativa de visitantes, há uma longa discussão acadêmica para saber até que ponto esse evento pode se encaixar efetivamente enquanto turismo cultural. Em termos de estrutura turística, Natal é o único local no Rio Grande do Norte que possui condições de receber uma grande demanda de visitantes, mas devido a políticas públicas e empreendimentos voltados essencialmente para o turismo de “sol e mar”, não se buscou concretizar e trabalhar com atrativos culturais passíveis de absorver essa demanda. Existem preocupações nesse sentido: tem-se uma maior valorização de manifestações da cultura popular, de espaços arquitetônicos e históricos (principalmente no centro da cidade), da gastronomia local, de roteiros alternativos em espaços até então desvalorizados – como a feira do Alecrim e o Cemitério do Alecrim, por exemplo – que passam a serem vistos como atrativos. Mesmo assim, como já ressaltado, isso ainda é insignificante diante da enorme demanda e oferta do turismo, do lazer pautado na praia e nas diversões ligadas a esse espaço. O que vem sendo efetivamente explorado ainda é extremante aquém daquilo que poderia ser realmente trabalhado. Turismo cultural e diversidade cultural: reflexões Quando abordamos a temática do turismo cultural temos a vaga consciência de que estamos pisando em um terreno bem familiar, principalmente para nós, brasileiros, que nos orgulhamos de pertencer a um Estado-nação que se caracteriza e se diferencia dos demais países por possuir uma rica diversidade cultural. Mas, longe da visão comum, o turismo cultural esconde algumas idiossincrasias quase que imperceptíveis. Então, quando nos referimos ao turismo cultural, estamos nos referindo também à diversidade cultural, algo que é inerente ao


homem. Em toda a sua longa história, o homem caracterizou-se por ser um animal sui generis, ou seja, único. Enquanto toda a natureza seguia lentamente o caminho da adaptação biológica e escolhia, para cada espécie, uma única forma de viver e sobreviver, o homem firmou suas características biopsicosociais e passou para uma nova forma de adaptação: a cultural. Isso mesmo, num determinado período de nossa história (com o aparecimento do Homo Sapiens, ou seja, nós) deixamos de evoluir simplesmente, ao menos como a biologia e a genética assim compreendem esse termo. Nossa “evolução” passou a ser cultural e, para ser mais preciso, educacional. O homem passou a lentamente construir ferramentas, dominar o fogo, construir abrigos e a consolidar laços de solidariedade social. Tudo isso numa escala titânica de tempo para nós. Imagine que, geração após geração, todo esse saber ia sendo repassado através, simplesmente, do processo educacional. Assim, cada nova geração adaptava melhor aquilo que a outra ia lhe repassando, possibilitando-nos a acumular conhecimentos e a tornar nossa cultura cada vez mais complexa. Sim, mas o que isso tem a ver com a diversidade cultural humana? Bem, o mais fantástico de tudo isto é que, dado as possibilidades de respostas possíveis para os mesmos problemas que o homem enfrentava (frio, fome, calor, chuva, criar filhos etc.), cada povo, cada agrupamento humano que ia se separando uns dos outros na sua migração e ocupação contínua da terra, foi fornecendo respostas diferentes a tudo isso. Desse modo, lentamente foram firmando-se culturas diferenciadas, nascidas da intensa capacidade humana de fornecer respostas variadas e complexas a problemas também variados e complexos. Por isso não podemos jamais falar de uma cultura humana, embora não caiba aqui essa discussão, nem mesmo de “raça(s) humana(s)”. Devemos sim, falar de culturas humanas; diversas, multicoloridas, multilingues, multibela, sendo cada uma fruto de uma interminável correlação de suas sociedades com a natureza,


consigo mesma e com outros povos e culturas. Cada uma devidamente consolidada e mutável. No Brasil, a diversidade cultural é sempre vista como um fator quase que exclusivo de nossa identidade. Somos efetivamente um país que congrega – pelo seu recente “fazimento” e história – uma ampla gama de elementos que nos fazem diversos: culinária, danças, modos de falar e gesticular, formas de ver o mundo etc. Essa diversidade, mais do que nunca, é celebrada como algo que o Brasil tem de ensinar a toda a humanidade (RIBEIRO, 1995). Isto porque, no mundo afora, diversidade cultural não é sempre vista como algo positivo. Num paradigma globalizante e secularizante, em que a cultura tende a uma padronização e racionalização extremas (porque não dizer, uma “macdonaldização”), o diferente nem sempre é tratado como algo bem-vindo. Não me refiro aqui à tendência natural dos povos de tomarem sua cultura como algo mais importante (etnocentrismo) e, por isso, tenderem a rejeitar as demais. Refiro-me a um amplo processo de exclusão e uniformização cultural que, ou levará as nações e culturas periféricas a uma incorporação e aniquilação ou as jogará à margem e exclusão absoluta do sistema. Gostaria de retomar a conclusão com uma reflexão esboçada pelo escritor português José Saramago em sua obra “A Caverna”. Será que estamos acorrentados à sombra do sistema produtor de mercadorias e não concebemos que nossos estilos tradicionais de vida (que sofrem modificação, é claro) estão em vias de serem totalmente absorvidos pelo faustoso (de fausto mesmo) mundo dos Shoppings Centers e dos cartões de crédito? E o oleiro, para onde vai? Tudo será igual a tudo o mais? É este o nosso “admirável mundo novo”? É nesse sentido que refletimos sobre o turismo cultural. O turismo do lazer é massificante, desagregador e não consegue, efetivamente, permitir uma valorização da diversidade cultural e de suas manifestações locais. O Rio Grande do Norte tem alguns potenciais eventos turísticosculturais, como demonstrado, que se possuírem o incentivo público e privado necessários, poderão ser uma alternativa viável.


Mas, efetivamente, o grande legado do turismo cultural é possibilitar uma salvaguarda das múltiplas manifestações culturais diante do avanço racionalizante e padronizador da globalização. Longe de ser apenas uma alternativa econômica, o turismo cultural tende a ser uma alternativa de sobrevivência do legado cultural humano em sua gigantesca diversidade.

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SÍTIOS GEOLÓGICOS, GEOCONSERVAÇÃO E ECOGEOTURISMO NA REGIÃO SERIDÓ DO RIO GRANDE DO NORTE45

Wendson Dantas de Araújo Medeiros

O presente artigo trata-se de um estudo realizado na Região Seridó do Rio Grande do Norte, em sua porção oriental, visando à identificação de sítios geológicos, geomorfológicos, arqueológicos, paleontológicos e mineralógicos que possuam características singulares e representativas para o desenvolvimento de projetos de geoconservação e do ecogeoturismo. Os sítios geológicos são recursos concretos dotados de formas e feições típicas ou estruturas com características marcantes que possuam importância fundamentada em sua multifinalidade para: Pesquisa científica; difusão do conhecimento científico na área das Ciências da Terra; atividades educacionais e recreativas; criação e fortalecimento de uma consciência conservacionista; referenciais em guias turísticos, estimulando, através do ecoturismo (ecogeoturismo), a participação e desenvolvimento socioeconômico das comunidades locais (SIGEP, 2002, grifo nosso). 45 Publicado originalmente com o título Ecogeoturismo e Geoconservação no Semiárido do Rio Grande do Norte: o caso da Região Seridó, na Revista Global Tourism, v. 3, nº 2, novembro de 2007.


Muitos desses sítios, que correspondem à geodiversidade do planeta, encontram-se ameaçados por atividades predatórias e destrutivas que ocorrem nas proximidades de suas localizações ou devido a utilizarem-se diretamente deles como matérias-primas para uma série de atividades, como a mineral, por exemplo. Outro fato que justifica a necessidade de proteção desses sítios, verdadeiros patrimônios e registros da história evolutiva da Terra, é a ausência quase que total de leis e regulamentos que os protejam, ao contrário do que ocorre com elementos da biodiversidade e da cultura da humanidade. Nesse sentido, a partir da década de 90, as comunidades geocientíficas do mundo inteiro passaram a se preocupar com o desaparecimento deste patrimônio natural, tendo como marco referencial as propostas elaboradas pelo grupo Gilges (Global Indicative List of Geolocical Sites), de modificações nas diretrizes existentes até então para World Heritage Sites (Sítios do Patrimônio Mundial) da Unesco, inserindo as propriedades geológicas afetadas como objeto daquele projeto. Surgem, consequentemente, os primeiros projetos de geoconservação, iniciados na Europa, onde o objetivo principal é promover a preservação da geodiversidade para as presentes e futuras gerações. Exemplo dessa iniciativa é a atuação da Unesco que financiou e incentivou a realização de inventários dos patrimônios geológicos de diversos países do mundo, com destaque para os países europeus. Posteriormente, em 1994, o Gilges viria a estabelecer novos conceitos e metodologias referentes aos projetos de geoconservação. Destarte, em 1996, a International Union of Geological Sciences – IUGS (União Internacional de Ciências Geológicas), juntamente com a Unesco, através do World Natural Heritage (Patrimônio Natural da Humanidade), desenvolveram um método para a geoconservação denominado Geosites, que consiste num inventário dos principais sítios geológicos merecedores de receber proteção legal face às suas peculiaridades e características intrínsecas e, principalmente, devido ao fato de constituírem um patrimônio que uma vez


deteriorados não poderiam ser recuperados. Esse fato provocaria um impacto de grande magnitude, uma vez que estava sendo apagado um capítulo da história evolutiva da Terra. Dentre os projetos pioneiros desenvolvidos na Europa, podese citar o implantado pela Associação Europeia para a Conservação do Patrimônio Geológico – ProGEO, que, fundamentado nos conceitos do Gilges e Geosites, tem promovido projetos de geoconservação em estágios notáveis por grande parte dos países europeus. Seguindo o exemplo dos países da Europa, vários outros países, como a África do Sul, através da Sociedade Geológica SulAfricana, também passaram a desenvolver projetos nesse sentido e a reivindicar a adoção de leis que venham a proteger o patrimônio nacional (REIMOLD, 1999). Em outros países, como no Brasil, por exemplo, apesar da existência de inúmeras leis de proteção ao meio ambiente, referentes aos recursos naturais, principalmente os orgânicos, e culturais (Patrimônio Histórico e Artístico Nacional), resta ainda uma lacuna no que se refere à preservação e conservação dos sítios geológicos. Apesar disso, a Lei n°. 9.985 de 18 de julho de 2000, instituiu o Sistema Nacional de Unidades de Conservação da Natureza – SNUC, garantindo, com isso, certa proteção aos sítios geológicos, a qual pode ser confirmada com a criação das unidades de conservação denominadas Parque Nacional, Estação Ecológica, e em especial, Monumento Natural. Este último trata-se da única modalidade em que se pode inserir isoladamente o patrimônio geológico. Em se tratando ainda de Brasil, país signatário do Patrimônio Mundial da Unesco, Convenção Internacional para a Proteção de Sítios Culturais e Naturais, foi criada no final da década de 90, uma comissão científica constituída de geocientistas de todo o país, objetivando inventariar, de acordo com os princípios do Geosites, o seu patrimônio nacional. Essa comissão, denominada Comissão Brasileira de Sítios Geológicos e Paleontológicos – SIGEP, após reunião realizada nos dias 26 e 27 de março de 1997, definiu as ações para


a catalogação dos sítios brasileiros resultando na publicação de um livro bilíngue com os 100 principais Sítios Geológicos do Brasil e com o mesmo intuito aqui discutido, garantindo sua proteção legal a partir de uma proposta como Sítios do Patrimônio Mundial da Humanidade à Unesco, visando a sua conservação e preservação in situ (SIGEP, 2002). Atualmente, a SIGEP está desenvolvendo ações para a publicação do segundo e, também, de um terceiro livro. Baseando-se nesses princípios é que se fundamentou este estudo. Porém, propõe-se, como aliada aos projetos de geoconservação, a implementação do ecogeoturismo que se trata de: Uma modalidade de turismo, desenvolvido em bases geocientíficas e apoiada nos princípios da atividade ecoturística, que visa ao aproveitamento econômico dos sítios geológicos, como forma de fortalecer a sua proteção, a partir da participação das comunidades locais inseridas nas áreas dos sítios, da promoção da educação ambiental e de incentivos à pesquisa científica. (MEDEIROS, 2003, p. 28).

Ao longo deste estudo, foram identificados 7 sítios geológicos-geomorfológicos, sendo 3 no município de Acari, 3 no município de Currais Novos e um complexo de sítios no município de Carnaúba dos Dantas. Contudo, apresentar-se-ão aqui, apenas os principais sítios referentes a cada um dos municípios conforme se percebe a seguir. Ecoturismo, ecogeoturismo e geoconservação: uma proposta para o Semiárido Nordestino A atividade turística, ao longo das últimas décadas, alcançou elevados índices de crescimento, sendo hoje considerada uma das principais indústrias do globo, chegando a disputar a hegemonia do mercado mundial com as indústrias petrolíferas e de armamentos (EMBRATUR, 2002).


Juntamente com o seu crescimento, essa atividade tem gerado inúmeras alterações nos espaços onde ela se desenvolve, em função de sua apropriação de maneira desordenada e indevida. Essas alterações são claramente visíveis na paisagem, as quais são desfiguradas em função da construção de espaços artificializados para atender a demanda da atividade, gerando profundos impactos ambientais que são verificados pelas mudanças no relevo, desmatamento, fuga da fauna, aumento na produção de lixo e em diversas formas de poluição. Segundo Ruschmann (1999), os impactos dessa atividade referem-se à variedade de modificações ou à sequência de eventos decorrentes do processo de desenvolvimento turístico nas localidades receptoras como consequência de um método complexo de interação entre os turistas, as comunidades e os meios receptores. Esses impactos se manifestam de formas diferenciadas variando de acordo com a natureza das sociedades nas quais ocorrem. No âmbito cultural, esses impactos podem ser relacionados com a descaracterização do artesanato das localidades receptoras, tais como: a vulgarização das manifestações tradicionais, a arrogância cultural, a destruição do Patrimônio Histórico. Economicamente, ao contrário do que se pensa, o turismo também gera impactos negativos como: a dependência excessiva da atividade; a inflação e a especulação imobiliária; a sazonalidade da demanda turística, que vai provocar o desemprego, entre outros. No meio natural, os impactos são mais evidenciados e, entre outros fatores, provoca o desequilíbrio ecológico a partir da destruição dos ecossistemas nas localidades receptoras (RUSCHMANN, 1999). Por isso, nas últimas décadas têm surgido inúmeras críticas a respeito da inviabilidade da atividade turística convencional, de massa, principalmente porque é considerada altamente danosa ao meio ambiente (MEDEIROS, 1999). De uma maneira geral, o consumo do espaço e do meio ambiente pelo turismo de massa têm provocado uma degradação pro-


funda, ameaçando o futuro da atividade, uma vez que esse mesmo meio ambiente se constitui na matéria-prima fundamental do turismo. Tendo percebido isso, os estudiosos da atividade passaram a propor formas alternativas de turismo que viessem a reduzir os impactos gerados pela atividade praticada de forma tradicional, com intuito de manter a sua sustentabilidade, a partir da conservação do meio em que ela está inserida. Nesse contexto, surgem outras formas de turismo, como o ecoturismo ou turismo ecológico, o turismo de aventuras, o turismo científico, entre outras modalidades denominadas de turismo responsável. Dar-se-á, neste estudo, uma maior atenção ao ecoturismo, haja vista ser essa atividade semelhante à atividade aqui proposta – o ecogeoturismo. No que se refere ao ecoturismo, esse é o segmento mais dinâmico da atividade turística e que mais cresceu nas últimas décadas, mantendo-se, ainda hoje, como um importante segmento do turismo. O ecoturismo deve ser entendido como uma atividade que respeita as capacidades de carga dos meios de acolhimento, em termos naturais, culturais e sociais, com conservação dos recursos locais, físicos e humanos, incluindo os de interesse turístico, diminuindo custos e elevando benefícios, e não menos importante, reduzindo as saídas de divisas (CAVACO, 1996). Surgido na década de 80 e criado por Héctor Ceballos-Lascuráin, significa, também, a viagem a áreas naturais, onde há uma responsabilidade, calcada nos seus princípios, com vistas à preservação do meio ambiente e à promoção do bem-estar da população envolvida (LINDBERG; HAWKINS, 1995). Até esse período, o ecoturismo era praticado por uma camada privilegiada da sociedade, passando a ser encarado como uma atividade restrita às classes sociais de maior poder aquisitivo. Entretanto, com o seu crescimento e desenvolvimento em relação a outras atividades econômicas, e com a maior facilidade de ultrapassar fronteiras, fruto da globalização, o ecoturismo passou a


ser praticado por grupos cada vez mais numerosos, de diferentes classes sociais e, como consequência, desencadeou um processo de geração de renda bastante considerável em diversas localidades do mundo. Processo esse diferenciado do turismo convencional, visto que proporciona a redução dos impactos ambientais comuns e visíveis no turismo convencional. No Brasil, o ecoturismo começa a ganhar força a partir da década de 90, surgindo como uma importante atividade para pôr em prática, ou ao menos tentar, o desenvolvimento sustentável nas diversas regiões brasileiras dotadas de uma enorme potencialidade, verificada nos seus variados atrativos para esse fim. A partir do reconhecimento preliminar dos atrativos e das potencialidades presentes em todas as regiões do Brasil, que possibilitariam a implantação da atividade em questão, foi elaborado um documento intitulado Diretrizes para uma Política Nacional de Ecoturismo, em 1994, fruto de uma reunião do Grupo de Trabalho Interministerial em Ecoturismo composto por representantes do Ministério da Indústria, Comércio e Turismo (MICT); do Ministério do Meio Ambiente, dos Recursos Hídricos e da Amazônia Legal (MMA); do Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (IBAMA); e da EMBRATUR, além de empresários e consultores das diversas regiões do País (LINDBERG; HAWKING, 1995). No referido documento, define-se ecoturismo como: Um segmento da atividade turística que utiliza, de forma sustentável, o patrimônio natural e cultural, incentiva sua conservação e busca a formação de uma consciência ambientalista através da interpretação do ambiente, promovendo o bem-estar das populações envolvidas. (EMBRATUR, 2002).

Destacam-se, no referido documento, os principais ecossistemas dotados de potenciais atrativos turísticos para a exploração da atividade ecoturística e, em especial, a Caatinga, típica das áreas


semiáridas do Nordeste, o que vem confirmar a potencialidade já conhecida desse ecossistema para fins turísticos, dada a beleza de aspecto cênico bastante rústico, marcada por sua litologia diversificada e geomorfologia típica. Respeitando os princípios do ecoturismo, propõe-se aqui uma nova forma de turismo direcionada especialmente para a geodiversidade, representada pela diversidade de sítios geológicos, geomorfológicos, paleontológicos, mineralógicos, entre outros. Esta atividade proposta é o ecogeoturismo, uma modalidade de turismo desenvolvida em bases geocientíficas, que visa ao aproveitamento econômico da geodiversidade como forma de fortalecer a sua proteção a partir da participação das comunidades locais inseridas nas áreas dos sítios geológicos, da promoção da educação ambiental e de incentivos à pesquisa científica. Apesar de não haver um consenso geral entre os pesquisadores quanto ao aproveitamento turístico para se garantir a proteção da geodiversidade, a proposta defendida se aplica bem à área de estudo, uma vez que as populações, daquela área, trazem arraigadas em sua cultura tradicional formas de manejo da terra inadequadas, ambientalmente, na atualidade. E como essas populações ainda têm nas atividades primárias a sua principal fonte de renda, esse projeto se torna, então, uma forma de introduzir, mesmo que lentamente, algumas mudanças no processo produtivo a partir de uma conscientização ambiental que deverá ocorrer de maneira lenta e gradual. Em suma, a partir do momento em que essas populações necessitam de um meio conservado para obter rendimentos extras, passarão a praticar suas atividades tradicionais de uma maneira ambientalmente adequada à área, principalmente, em função de suas atividades tradicionais não se sustentarem ao longo do ano devido às condições climáticas e ambientais e, de um modo geral, não permitirem o seu desenvolvimento pleno. E, assim, podem-se associar atividades tradicionais, desenvolvidas com um manejo adequado e a geoconservação, a partir do


ecogeoturismo, envolvendo as populações locais que seriam beneficiárias do projeto com o incremento da renda, principalmente, nos períodos desfavoráveis. Beneficiados também seriam os municípios, pois teriam um meio de divulgação estratégica para poderem desenvolver a atividade ecogeoturística conjuntamente com uma atividade turística maior, envolvendo turismo rural, ecoturismo, turismo cultural, de eventos. Nessa atividade, especificamente, os roteiros poderiam estar integrados a outras modalidades de turismo, conforme as mencionadas acima, e devem visar à divulgação do conhecimento científico acerca do patrimônio geológico e natural do município a partir de extraordinárias histórias pertencentes a vários capítulos do livro de evolução da Terra. Tal conhecimento deve, ainda, ser acrescentado da percepção da paisagem pela população que normalmente é impregnada de conotações culturais que permeiam o imaginário local e que agregam forte valor aos atrativos ecogeoturísticos. A geodiversidade do Seridó do Rio Grande do Norte A geodiversidade da Região Seridó do Rio Grande do Norte é constituída por variadas litologias e formas de relevo que constituem verdadeiros registros, ainda preservados, em sua maioria, de eventos tectono-metamórficos ocorridos ao longo do Tempo Geológico nessa região. Estes possuem idades diversas, abrangendo épocas remotas que contam a história evolutiva desde 2,5 bilhões de anos, passando por eventos e registros de 600 milhões de anos até registros atuais, da ordem de 10 a 2 mil anos antes do presente. Esses registros são caracterizados por rochas aflorantes na superfície e suas mineralizações; por formas exuberantes do relevo, decorrentes de processos de desnudação e erosão diferencial; pela presença de sítios paleontológicos com registros de fauna pretérita, entre outros.


Para efeito deste estudo, detalhar-se-á, a seguir, os principais sítios identificados nos municípios de Acari, Carnaúba dos Dantas e Currais Novos, haja vista esses municípios estarem integrados dentro da proposta de desenvolvimento turístico integrado intitulado Roteiro Seridó (SEBRAE, 2005) e por reunirem, em seus territórios, os principais exemplos de sítios geológicos já identificados da Região Seridó. Sítio geológico-geomorfológico-arqueológico Barra da Carnaúba Situado no município de Acari, na comunidade de Barra de Carnaúba, no leito do rio Carnaúba, distante cerca de 18 km do centro da cidade, o sítio se caracteriza pelo afloramento de rochas graníticas, de idades em torno de 600 Ma (SOUZA, 1996), textura predominante porfiroblástica e coloração acinzentada, onde se encontram grandes cristais, bem preservados e orientados, os quais podem indicar a direção do pólo magnético da Terra no período de sua cristalização, uma vez que há uma relação semelhante entre a fábrica magmática e a magnética, conforme observou Archanjo (1993). Neste sítio, pode-se observar a atuação de eventos tectonometamórficos em ambientes pretéritos, sendo evidenciados pela presença de inúmeros diques pegmatíticos que intruindo as rochas, apresentando-se ora homogêneos, com predomínio de K-feldspatos, ora heterogêneos, com mineralizações de turmalina negra (schorlita) e berilo, que podem ser vistas a olho nu. Em toda sua extensão, as formas predominantes no sítio decorrem de processos de dissecação do relevo, em virtude do entalhamento da drenagem do rio Carnaúba, principal responsável, juntamente com os processos intempéricos, pela sua esculturação atual. Constituemse de pequenos serrotes alongados no sentido W-E, de composição granítica predominante, com cristas sob a forma de domos bastante dissecados. Nesses, destaca-se um grande número de marmitas e for-


mações curiosas, com profundidades consideráveis, chegando a mais de 4 metros em alguns pontos do rio (Figura 1), proporcionado um cenário de grande beleza cênica, e assemelhando-se à paisagem lunar. Essas, por sua vez, tiveram sua origem relacionada a movimentos turbilhonares decorrentes da alta energia fluvial durante épocas de intensa pluviosidade, alternando-se a períodos de escassez pluviométrica, que determinaram os regimes energéticos e deposicionais dos rios da região.

Figura 1 – Marmitas do Rio Carnaúba. (Fonte: acervo do autor)

Apesar de sua importância geológica e geomorfológica, verificada em função de seus constituintes e morfologias variadas, este sítio também possui grande importância histórico-cultural e didático-científica, uma vez que são encontrados em algumas marmitas registros pré-históricos sob a forma de inscrições rupestres realizadas pelos nômades da Tradição Itaquatiara, que, segundo dados cronológicos, habitaram a Região Seridó há cerca de 2.500 anos (MARTIN, 1999). Tudo isso, aliado ao seu potencial didático-científico, constitui forte potencial para o desenvolvimento da atividade ecogeoturística e justifica a necessidade de projetos de geoconservação.


Sítios geomorfológicos do município de Carnaúba dos Dantas Os sítios geomorfológicos do município de Carnaúba dos Dantas se encontram integrados em uma grande área, denominada Complexo Geomorfológico Riacho do Bojo. Essa denominação se deve ao fato de ao longo desse riacho, afluente do Rio Carnaúba, ocorrer vários sítios arqueológicos inseridos em feições geomorfológicas de grande beleza cênica e paisagística, constituídas por canyons e gargantas profundas. A litologia dominante – quartzitos da Formação Equador – ao longo do riacho do Bojo permitiu o desenvolvimento de um modelado marcado pela presença de canyons, gargantas, grutas e marmitas profundas, que asseguraram ao homem pré-histórico condições de sobrevivência, e dotaram a região de uma grande e diversa beleza cênica de elevado potencial turístico e ecogeoturístico, pelo seu caráter didático e científico. Essas formações são decorrentes de intensos processos erosivos e intempéricos, iniciados com o processo de rebaixamento do relevo no Cretáceo, pela forte atuação da drenagem, que era marcada por intensa energia hidráulica dos rios nesse período determinado e que obedecia a um rígido controle estrutural de sentido predominante NE-SW. Dentre as formações típicas desse processo, encontradas ao longo do riacho do Bojo, tem-se o Canyon dos Fundões, ou Grota Funda; o Canyon da cachoeira do Bojo; o pequeno Canyon da passagem, e o abrigo Casa Santa. No afluente da margem esquerda do Rio Carnaúba – o Riacho do Ermo, formações como a Serra do Xique-Xique e a Pedra do Alexandre também apresentam particularidades e, por isso, serão discutidas a seguir. O Canyon dos Fundões possui elevada profundidade e declividades com inclinações de 70-90°, e no seu leito encontram-se blocos rochosos que, depois de erodidos, foram transportados pelo rio na sua juventude, registrando a sua alta energia hidráulica em épocas


passadas e a existência de um clima mais ameno e mais chuvoso naquela Região Semiárida. Também se verifica sedimentos grosseiros, tipo areia, que registram um período de calmaria do rio, onde o seu potencial de transporte diminuiu e aumentou a sua função de deposição, indicando um período de modificação climática assemelhando-se ao clima atual dominante, onde as chuvas são escassas e os rios secam durante a maior parte do ano. Neste sítio geomorfológico, podem-se observar gravuras rupestres, as quais são atribuídas à Tradição Itaquatiara, formando o sítio arqueológico dos Fundões ou Grota Funda. Além disso, possui subdivisões (Fundões I,II,III e IV) e se observa inscrições da Tradição Agreste, no local conhecido por Pedra da Macambira, tendo recebido esse nome pela abundância dessa espécie vegetal na área. As inscrições, embora de difícil interpretação, podem indicar processos de contagem realizados pelas tribos, bem como o desenho de astros ou início de uma tradição que tinha no geometrismo sua forma de representação, bem como representações possivelmente relacionadas ao uso de substâncias alucinógenas (PESSIS, 1992; MARTIN, 1999). Como se pode observar, esse sítio possui características que possibilitaram o abrigo de tribos indígenas pré-históricas, como as marmitas na Pedra da Macambira que acumulavam água na época chuvosa que permanecia armazenada durante a estação seca, e as grutas dos Fundões, que serviam de abrigo e proteção àquelas tribos. Vale ressaltar que esse abrigo deveria ser mais profundo na época de ocupação desse povo, há cerca de 2.500 anos, haja vista que a quantidade de sedimentos inconsolidados presentes na área indica que houve um processo de assoreamento, diminuindo, portanto, a profundidade da referida gruta. Tal fato possibilita o desenvolvimento de estudos arqueológicos mais aprofundados nessa área, uma vez que é possível a realização de escavações com o intuito de se encontrar elementos materiais que auxiliem no estudo evolutivo dessa tradição.


Seguindo, ainda, o percurso rumo à nascente desse riacho, observa-se a formação de pequenos canyons como o escavado pela cachoeira do Bojo. Nesse canyon, ainda jovem, é possível identificar a sinuosidade do rio durante o seu processo erosivo, e nele pode-se observar a existência de água em profundidade mesmo na época de estiagem. Esse local recebe o nome de Cachoeira do Bojo, e devido ao fato de não secar, habitam, no imaginário popular, crendices a respeito de encantos e mitos que vivem em suas águas, conforme afirmações de antigos moradores daquela região. Embora seja um lugar de difícil acesso, antigamente havia naquelas imediações várias fazendas de gado e suas comunidades usavam o local para prática de lazer, sendo hoje restrita aos aventureiros e caçadores que rondam constantemente a área. Também se percebem registros da passagem humana na antiguidade, como as gravuras da Tradição Itaquatiara. Continuando a trilha pelo afluente da margem direita do Riacho do Bojo, atravessando obstáculos como canyons e paredões, tomase o acesso para um dos mais representativos sítios arqueológicos do Nordeste: a Casa Santa (MARTIN, 1999). Trata-se de um abrigo sob a rocha, onde um grande painel encontra-se pintado com registros das tradições Nordeste e Agreste e, em menor número, da Itaquatiara. Ao longo desse percurso, observam-se formações semelhantes, esculpidas em rochas quartzíticas, como o Canyon da Passagem, demonstrando claramente o seu controle estrutural pelo seu aspecto retilíneo. As formas da Casa Santa permitem identificar a atuação predominante de processos intempéricos provocando a desagregação da rocha, facilitando o seu transporte pelo rio, que se encontra muito próximo de sua nascente. Os painéis apresentam figuras de fácil identificação, como cenas clássicas de caça, dança e luta. Observam-se desenhos de pirogas com remos, indicando a existência de rios caudalosos na época em que essa tribo ocupou a região. Essas, no entanto, têm gerado hipóteses diversas, algumas consideradas até fantasiosas. Entre elas, está


a que defende uma possível relação com os povos fenícios, os quais poderiam ter chegado à região através desse meio de transporte. Estudado desde a década de 80, esse abrigo não possui condições que permitam o habitat das tribos, tendo sido usado apenas para abrigos temporários, para rituais ou como ponto de observação, devido à sua situação em pontos elevados (MARTIN, 1999). Além desses sítios, ao longo do Riacho do Bojo, têm-se outros sítios de mesma importância que são encontrados na Serra do Xique-Xique e às margens do Riacho do Ermo, também afluente do Rio Carnaúba, que são, respectivamente, os sítios arqueológicos Xique-Xique I e Pedra do Alexandre. No caso do Sítio Arqueológico Xique-Xique I, pode-se verificar registros rupestres dotados de cenas clássicas, como dança ao redor de uma espécie de fitomorfa; representação de zoomorfos, como uma ema deitada no ninho com ovos, ameaçada por um caçador; cenas de sexo e de estupro (Figura 2) (PESSIS, 1992; VIDAL, 1996; MACEDO, 2001a), que se encontram apagadas em função da deterioração natural, derivado dos processos intempéricos e da atuação antrópica no sítio, que é bastante visitado, dado às facilidades de acesso.

Figura 2 – Cenas de sexo e estupro copiadas do Sítio Xique-Xique. (Fonte: Vidal, 1996)


Já o Sítio Pedra do Alexandre, caracterizado pela atuação de processos erosivos diferenciais, consiste de um micaxisto da Formação Seridó que sofreu profundas alterações decorrentes da intrusão do Maciço Acari, há aproximadamente 600 Ma. Ele possui uma particularidade em especial: o caso de ter sido utilizado como cemitério indígena e como lugar para prática de rituais funerários. Escavações realizadas nesse local permitiram a identificação de 28 esqueletos humanos, os quais haviam sido enterrados junto com adornos como colares e apitos. Nesses corpos, foram encontrados restos de carvão que poderiam ter sido utilizados em fogueiras realizadas nos rituais para enterramentos secundários. As datações realizadas nesse carvão revelaram idades de 9.400 anos AP (MARTIN, 1999; MACEDO, 2001b). Todo esse complexo se vê constantemente ameaçado em detrimento da prática de garimpagem de minerais como tantalita e columbita, abundantes nessa área, que ocorre sem nenhum tipo de controle, de forma rudimentar, provocando sérios impactos ambientais e desrespeitando os patrimônios naturais e culturais aí identificados. Complexo geomorfológico-arqueológicopaleontológico do Totoró A Região do Totoró está localizada no município de Currais Novos, a cerca de 12 km da sede municipal, em sua porção norte, sendo reconhecida, historicamente, como a base do início do processo de colonização da cidade. Foi nela onde se estabeleceram os primeiros currais para a criação de gado, atividade fundamental para a ocupação do território e fundação do município. O Complexo Totoró encontra-se assentado sobre um embasamento cristalino gnáissico-migmatítico que não chega a aflorar na área, tendo como sequência supracrustal, rochas granitóides de idade brasiliana, correlacionadas ao Maciço Acari-Totoró.


Também sobrepostas ao embasamento, ocorrem sequências metassedimentares vulcânicas e formações sedimentares recentes, do Quaternário, como os sedimentos da Formação Tanques ou Cacimbas, onde se encontram vestígios de uma megafauna pretérita. Essa constituição litológica proporciona a esculturação de formas típicas no modelado da área, muitas vezes assemelhando-se a materiais e objetos presentes no cotidiano da região. Tais feições decorrem de processos erosivos e intempéricos que atuam na região há milhares de anos, e esses produziram um modelado marcado por serras elevadas e íngremes, geralmente de composição granítica. No processo de morfogênese da área, a rede de drenagem controlada por falhamentos nas estruturas geológicas propiciou um arrasamento do relevo, reduzindo-o a altitudes modestas, em torno de 600 metros. A principal alimentação dessa rede deriva das vertentes da Serra de Santana, que fica a norte da área do Totoró. Em função desses processos, a região abriga feições típicas, de aspectos curiosos e que cultivam o imaginário popular, podendo ser identificados como sítios geomorfológicos, tanto por apresentar certa beleza cênica, como por permitir um estudo sobre o seu processo evolutivo ao longo de milhares de anos. Nesse caso, possui um importante potencial didático-científico e ecogeoturístico, necessitando, portanto, de proteção legal com vistas à sua preservação para as futuras gerações. Um dos casos que vem caracterizar o sítio geomorfológico é o da Pedra do Caju (Figura 3). Essa feição, típica de regiões graníticas, tem seu processo de origem ligado à atuação de agentes intempéricos e da erosão diferencial. Isto é, a ação desses processos, de forma conjunta e simultânea, propiciou a fragmentação da rocha, obedecendo aos seus planos de fratura, e foi desgastando as partes mais frágeis, que foram carreadas pela ação dos ventos e das águas, propiciando a formação atual. O que se observa é uma cena natural de equilíbrio, em que uma rocha, aparentemente solta, se equilibra de forma muito es-


tável. Tal situação influencia o imaginário popular, que não raro, atribui à formação uma origem divina ou até mesmo extraterrena.

Figura 3 – Pedra do Caju. (Fonte: acervo do autor)

Ainda em relação ao patrimônio geomorfológico, pode-se citar outro exemplo semelhante: a Pedra do Letreiro, que possui, também, relevância histórico-cultural, haja vista a existência de registros rupestres da Tradição Agreste que caracterizam o sítio arqueológico que originou o topônimo. Em virtude disso, faz-se necessário a adoção de medidas urgentes de proteção a esses sítios, uma vez que o desaparecimento desses registros teria um profundo impacto negativo na busca da evolução histórica e ocupacional do homem pré-histórico naquela região. Complementando o sítio geomorfológico e arqueológico, pode-se citar o caso da Pedra Furada, que recebeu esse nome em


função da existência de um orifício quase no centro dela, decorrente da atuação dos processos intempéricos e erosivos. Desses processos, merecem destaque a atuação do intemperismo químico e a erosão diferencial, que propiciaram uma espécie de abrigo, erodindo a rocha internamente. Nesse abrigo, observa-se a existência de registros rupestres da Tradição Agreste, onde se observam, inclusive, antropomorfos. Nesse sítio arqueológico, porém, verificou-se a necessidade urgente de adoção de medidas de proteção, uma vez que o mesmo encontra-se degradado por pichações realizadas pela ação antrópica. Complementando o contexto geral da área, a importância histórica e geológica é fortalecida pela existência de um sítio paleontológico denominado Lagoa do Santo. Nele, já foram retirados, desde a década de 70, inúmeros registros de fósseis de mamíferos gigantes, como preguiças, mastodontes e outros, registrando a passagem desses animais constituintes da megafauna pleistocênica – megatérios – nessa localidade (PORPINO; SANTOS, 1997; SANTOS, 2001). O Sítio Paleontológico Lagoa do Santo caracteriza-se por sedimentos constituintes da Formação Tanques ou Cacimbas, de idade quaternária que se limita estruturalmente com granitóides précambrianos. Os fósseis retirados encontram-se espalhados por vários lugares como no Museu Câmara Cascudo, em Natal; no Colégio Camilo Toscano e na Associação Amigos do Seridó, em Currais Novos; e em coleções particulares. Constitui-se, portanto, de um importante registro da existência de megafauna pretérita, o que permite a realização de estudos científicos que podem vir a possibilitar a identificação de paleoambientes climáticos, conforme sugere Prado e Alberdini (1999), em seu estudo sobre a importância dos fósseis na Região dos Pampas argentinos, os quais haviam favorecido a existência dessa abundante fauna. Ainda na área da Lagoa do Santo, cujo topônimo deriva do fato de há cerca de 300 anos ter sido encontrada uma imagem de um santo (São Sebastião) soterrada na lagoa, segundo conta a história


popular, e que hoje, existe uma particularidade que chama a atenção de todos que visitam a área. Trata-se de uma rocha, de composição granítica, partida ao meio, que emite o som de um sino a partir de qualquer pancada que venha a receber, de um instrumento metálico ou de outra rocha. A essa rocha denominou-se Pedra do Sino. Problemática ambiental A problemática ambiental envolvendo estes sítios decorre da degradação paisagística já existente, a qual é mais perceptível no âmbito da vegetação, em função do desmatamento excessivo ocorrido para suprir a demanda de lenha nas cerâmicas da região. Somando-se a isso, pode-se citar o desenvolvimento da atividade mineira, principalmente, com a prática de garimpos irregulares visando tanto à extração de minerais e gemas semipreciosas, quanto à extração de rochas ornamentais, nesse caso, tem nos granitos sua principal matéria-prima. Essa atividade, da forma como vem ocorrendo, sem nenhum controle ou planejamento, coloca em risco a existência do patrimônio geológico e cultural da região. Ela é responsável pela destruição de belos exemplares e afloramentos geológicos, por alterações drásticas no relevo, pelo desaparecimento de sítios arqueológicos, só para citar alguns dos diversos impactos que causam. Considerações finais Diante da problemática ambiental que envolve os sítios identificados, juntamente com sua potencialidade ecogeoturística ainda inexplorada, aliada à ausência de leis que visem proteger esse patrimônio, propõe-se algumas medidas de proteção, calcadas em projetos de geoconservação e ecogeoturismo, como forma de garantir a preservação do patrimônio natural objeto deste estudo. Destarte, objetivam preservar a história do planeta e da evolução da vida na Terra para as presentes e futuras gerações, uma vez que, quando deteriorados estes sítios, que possuem idades na escala de bilhões e milhares de anos, jamais podem ser recuperados, desaparecendo por


completo da face da Terra. Analogamente, seria como se arrancasse uma página do único livro que conta a história evolutiva do nosso planeta, e essa página não pudesse mais ser reescrita. Dentre essas medidas, a seguir se sugere algumas específicas que podem ser adotadas à proteção do sítio: •

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reconhecer os sítios geológicos, geomorfológicos, mineralógicos, arqueológicos e paleontológicos identificados como patrimônios naturais, ou culturais, ou ainda, monumentos naturais e/ou culturais; elaborar leis no âmbito municipal e/ou estadual que garantam a sua proteção; criar unidades de conservação, tais como áreas de proteção ambiental, parques temáticos e/ou geoparques com o intuito de proteger estes patrimônios; elaborar plano de gestão para a implantação do ecogeoturismo, envolvendo as comunidades locais num processo participativo; disciplinar a visitação e as atividades desenvolvidas nas áreas destas unidades ou dos sítios, a partir da elaboração de planos de manejo destas unidades; promover a educação ambiental nas comunidades circunvizinhas; divulgar o potencial histórico-natural dos sítios, promovendo campanhas de conscientização e educação ambiental para a população.

Referências ARCHANJO, C.J. Fabriques de plutons granitiques et déformation crustale du Nord-Est du Brésil: une étude par anisotropie de susceptibilité magnétique des granites ferromagnetiques. Toulouse: Universite de Toulouse III, 1993. (Tese de Doutoramento).


CAVACO, Carminda. Turismo rural e desenvolvimento local. In: Rodrigues, Adyr B. (Org.). Turismo e geografia: reflexões teóricas e enfoques regionais. São Paulo: Hucitec, 1996. EMBRATUR – Instituto Brasileiro de Turismo. Webpage. Disponível em: <http://www.embratur.gov.br>. Acesso em: 12 ago. 2002. IDEMA – Instituto de Desenvolvimento Econômico e Meio Ambiente do Rio Grande do Norte. Anuário Estatístico do RN 2000. Natal: IDEMA, 2001. ______. Informativo Municipal de Acari. Natal: IDEMA, 1999. LINDBERG, K.; HAWKINS, D. E. (Eds.). Ecoturismo: um guia para planejamento e gestão. São Paulo: Senac, 1995. MACEDO, H. A. M. Arqueologia do Seridó III: o Sítio Xique-Xique I, Carnaúba dos Dantas. In: Levantamento dos Sítios Arqueológicos do SeridóRN. Disponível em: <http://www.seol.com.br/rnnaweb/historia/prehistoria>, 2001a. ______. Arqueologia do Seridó I: as pinturas rupestres do Sítio Pedra do Alexandre, Carnaúba dos Dantas. In: Levantamento dos Sítios Arqueológicos do Seridó-RN. Disponível em: <http://www.seol.com.br/rnnaweb/historia/ prehistoria>, 2001b. MARTIN, G. Pré-História do Brasil. 3. ed. Recife: Editora Universitária da UFPE, 1999. MEDEIROS, W. D. A. Sítios geológicos e geomorfológicos dos municípios de Acari, Carnaúba dos Dantas e Currais Novos, Região Seridó do Rio Grande do Norte. Programa de Pós-Graduação em Geociências, Universidade Federal do Rio Grande do Norte, Natal, 2003 (Dissertação de Mestrado). ______. Potencialidades do município de Acari-RN para o desenvolvimento do ecoturismo. Departamento de Geografia, Universidade Federal do Rio Grande do Norte, Natal, 1999 (Monografia). PESSIS, A-M. Identidade e classificação dos registros gráficos pré-históricos do Nordeste do Brasil. Clio, Recife, no 8, UFPE, p. 35-68, 1992. (Série Arqueológica). PORPINO, K.O., SANTOS, M.F.C.F. Mamíferos pleistocênicos de Lagoa do Santo, Rio Grande do Norte-Brasil. In: Congresso Brasileiro de Paleontologia, 15, São Pedro. Resumos, 1997, 116 p. PRADO, J. L., ALBERDINI, M. T. The mammalian Record and climating change over the last 30,000 years in the Pampean Region, Argentina. Quaternary International, Argentina, 57/58, p. 165-177, 1999.


REIMOLD, W. U. Geoconservation: a southern African and African perspective. Journal of African Earth Sciences, África do Sul, no 29, p. 469483, 1999. RUSCHMANN, D. V. M. Turismo e planejamento sustentável: a proteção do meio ambiente. Campinas-SP: Papirus, 1999. SANTOS, M.F.C.F. Geologia e paleontologia de depósitos fossilíferos pleistocênicos do Rio Grande do Norte. Programa de Pós-Graduação em Geodinâmica e Geofísica, Universidade Federal do Rio Grande do Norte, Natal, 2001. (Dissertação de Mestrado). SEBRAE – Serviço de apoio às pequenas e médias empresas. Roteiro Seridó. Disponível em: <http://www.roteiroserido.com.br>. Natal: 2005. SIGEP webpage. Sítios Geológicos e Paleontológicos do Brasil. Disponível em: <http://www.unb.br/ig/sigep>. Acesso em: 2002. SOUZA, L.C. Zoneographie metamorphique, chimie dês mineraux, petrochimie, geochronology 40Ar/39Ar et histoire P-T-t des micaschistes englobant le Massif Gabbro-Granitique d’Acari (Brasiliano), ceinture móbile du Seridó (NE du Brésil). Louvain-la-Nelve, Belgique, Universite Catholique de Louvain, 1996. (Tese de Doutoramento). VIDAL, I. A. Las representaciones hitifálicas en las pinturas rupestres de la Tradición Nordeste, subtradición Seridó, Rio Grande do Norte, Brasil. Clio, Recife, no 11, UFPE, p. 141-151, 1996. (Série Arqueológica).



SOBRE OS AUTORES

Christian Dennys Monteiro de Oliveira Professor adjunto do Departamento de Geografia da Universidade Federal do Ceará. Coordenador do Programa de Mestrado e Doutorado em Geografia e pesquisador do Núcleo Multidisciplinar de Avaliação em Políticas Públicas (NUMAPP-UFC), do Centro de Estudos Latino Americano sobre Cultura e Comunicação (CELACC-USP) e da Rede “Observatório das Metrópoles”. E-mail: cdmo49@yahoo.com.br

Heidi Gracielle Kanitz Bacharel em Turismo pela Universidade Federal do Rio Grande do Norte. Mestranda em Administração pela Universidade Federal do Rio Grande do Norte. E-mail: heidi_kanitz@yahoo.com.br


Ingrid Carneiro de Lima Bacharel em Turismo. Especialista em Políticas Públicas de Turismo (CEFET/CE) e Meio Ambiente e Turismo (UECE). Mestre em Geografia (UFC). Professora do Curso de Turismo da Universidade do Estado do Rio Grande do Norte - UERN. E-mail: ingridclima@hotmail.com

Jean Henrique Costa Sociólogo. Bacharel em Turismo. Especialista em Demografia. Mestre em Geografia e doutorando em Ciências Sociais (PPGCS/UFRN). Professor do Departamento de Turismo da Universidade do Estado do Rio Grande do Norte – UERN. E-mail: jeanhenrique@uern.br

Jefferson Dantas Freire de Morais Bacharel em Turismo pela Universidade do Estado do Rio Grande do Norte. Bacharel em Administração pela Universidade Federal do Rio Grande do Norte. Mestrando no Curso de Administração (PPGA/UFRN). E-mail: jeffertur@gmail.com


José Orlando Costa Nunes Bacharel em Administração de Empresa pela Universidade do Estado do Ceará. Especialista em Administração de Empresas pela Universidade Federal da Bahia. Mestre em Administração (Análise Organizacional) pela Universidade Federal de Pernambuco. Professor assistente do Departamento de Administração da Universidade do Estado do Rio Grande do Norte – UERN. E-mail: joseorlandobrasil@hotmail.com

Karina Messias da Silva Licenciada em Geografia pela UFRN. Mestre em Geografia pela Universidade Federal do Rio Grande do Norte. E-mail: karinatrn@yahoo.com.br

Liége Azevedo Martins Bacharel em Turismo pela Universidade do Estado do Rio Grande do Norte. Especialista em Planejamento Estratégico em Marketing pela Universidade Federal do Rio Grande do Norte. Professora substituta do Curso de Turismo da Universidade do Estado do Rio Grande do Norte – UERN. E-mail: liegeam@hotmail.com


Maria Aparecida Pontes da Fonseca Bacharel em Geografia pela Universidade Estadual Paulista. Mestre em Geografia pela Universidade de São Paulo. Doutora em Geografia pela Universidade Federal do Rio de Janeiro. Atualmente desenvolve pósdoutoramento na UFRJ. Professora do Departamento de Geografia – DGE/UFRN, do Programa de PósGraduação em Geografia – PPGG/UFRN e do Programa de Pós-Graduação em Turismo – PPGTUR/ UFRN. E-mail: mariapontes@cchla.ufrn.br

Maria Arlete Duarte Araújo Bacharel em Administração pela Universidade Federal de Sergipe. Mestre em Administração pela Universidade Federal da Paraíba. Doutora em Administração de Empresas pela Fundação Getúlio Vargas-SP. Professora titular da Universidade Federal do Rio Grande do Norte. Atua no Programa de Pós-Graduação em Administração. E-mail: dfb@digi.com.br


Maria Betânia Ribeiro Torres Licenciada em Ciências Sociais pela Faculdade Frassineti do Recife. Mestre em Desenvolvimento e Meio Ambiente pela Universidade do Estado do Rio Grande do Norte. Doutoranda em Ciências Sociais pela Universidade Federal do Rio Grande do Norte. Professora assistente do Departamento de Gestão Ambiental/Faculdade de Ciências Econômicas da Universidade do Estado do Rio Grande do Norte. E-mail: betaniatorres@gmail.com

Michele de Sousa Bacharel em Turismo pela Universidade de Fortaleza. Especialista em Turismo e Meio Ambiente pela Universidade do Estado do Ceará. Mestre em Desenvolvimento e Meio Ambiente pela Universidade Federal do Ceará. Professora assistente da Universidade do Estado do Rio Grande do Norte. E-mail: sousa_michele@ yahoo.com.br


Raimundo Freitas Aragão Licenciado em Filosofia. Bacharel em Geografia. Especialista em Educação Ambiental pela Universidade Estadual do Ceará. Mestre em Desenvolvimento e Meio Ambiente pela Universidade Federal do Ceará. Doutorando em Geografia Humana pela Universidade Federal do Ceará. E-mail: ararageo2007@yahoo.com.br

Rita de Cássia Ariza da Cruz Bacharel em Geografia pela Universidade de São Paulo. Mestre em Geografia (Geografia Humana) pela Universidade de São Paulo. Doutora em Geografia (Geografia Humana) pela Universidade de São Paulo. Professora adjunta da Universidade de São Paulo. Email: ritacruz@usp.br

Rosana Mazaro Bacharel em Administração. Mestre em Administração pelo PPGA/UFSC. Doutora em Administração/ Turismo pela Universidade de Barcelona-DITMUB, Espanha. Coordenadora do Programa de Pós-Graduação em Turismo - PPGTUR/UFRN. Coordenadora do Grupo Interdisciplinar de Pesquisa em Turismo e Sociedade – BITS. E-mail: rosanamazaro@uol.com.br


Thadeu de Sousa Brandão Sociólogo. Mestre e doutorando em Ciências Sociais pela Universidade Federal do Rio Grande do Norte. Professor de Sociologia do Curso de Direito da Faculdade Câmara Cascudo e da FARN. Professor de História do Ensino Médio do Centro de Educação Integrada (CEI), Natal/RN. E-mail: professorthadeu@ hotmail.com

Wendson Dantas de Araújo Medeiros Bacharel e licenciado em Geografia pela Universidade Federal do Rio Grande do Norte. Mestre em Geociências também pela UFRN. Professor assistente do Departamento de Gestão Ambiental da Universidade do Estado do Rio Grande do Norte - UERN. E-mail: wendsonmedeiros@uern.br




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