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MÚSICA, IDENTIDADE, INDÚSTRIA CULTURAL E OUTRAS BATIDAS...
Jean Henrique Costa Lázaro Fabrício de França Souza Marcília Luzia Gomes da Costa Mendes Shemilla Rossana de Oliveira Paiva Tássio Ricelly Pinto de Farias
Edições UERN 2016 -1-
Reitor Prof. Pedro Fernandes Ribeiro Neto Vice-Reitor Prof. Aldo Gondim Fernandes Pró-Reitor de Pesquisa e Pós-Graduação Prof. João Maria Soares Comissão Editorial do Programa Edições UERN: Prof. João Maria Soares Profa. Marcília Luzia Gomes da Costa (Editora Chefe) Prof. Eduardo José Guerra Seabra Prof. Humberto Jefferson de Medeiros Prof. Sérgio Alexandre de Morais Braga Júnior Profa. Lúcia Helena Medeiros da Cunha Tavares Prof. Bergson da Cunha Rodrigues Assessoria Técnica: Daniel Abrantes Sales Capa: Antônio Pereira Fernandes (Tony)
Catalogação da Publicação na Fonte. Universidade do Estado do Rio Grande do Norte.
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Música, identidade, indústria cultural e outras batidas… / Jean Henrique Costa et al. - Mossoró – RN, EDUERN, 2016. 176 p. ISBN: 978-85-7621-134-1 1. Música. 2. Indústria cultural. I. Souza, Lázaro Fabrício de França. II.Mendes, Marcília Luzia Gomes da Costa. III. Paiva, Shemilla Rossana de Oliveira. IV. Farias, Tássio, Ricelly Pinto de. V. Universidade do Estado do Rio Grande do Norte. VI.Título.
Bibliotecária: Jocelania Marinho Maia de Oliveira CRB 15 / 319 UERN/BC
CDD 780.7
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Jean Henrique Costa Lázaro Fabrício de França Souza Marcília Luzia Gomes da Costa Mendes Shemilla Rossana de Oliveira Paiva Tássio Ricelly Pinto de Farias
MÚSICA, IDENTIDADE, INDÚSTRIA CULTURAL E OUTRAS BATIDAS...
Abril, 2016
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Dedicamos essa obra a todos aqueles que enxergam na música uma fonte de prazer e entretenimento, uma espécie de cura mística, de alento. Dedicamos a todos aqueles que a percebem também como ferramenta analítica, que pode e deve servir como meio de reflexão e contextualização acerca das questões que perpassam nossas vidas, sejam elas culturais, sociais ou políticas. Dedicamos igualmente, ainda, a todos aqueles que constituem suas vidas em torno da música: músicos, produtores, pesquisadores, técnicos, professores e entusiastas em geral. Que a música nos seja sempre leve como o pássaro de Paul Valéry.
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A inexprimível profundidade da música, tão fácil de entender e no entanto tão inexplicável, deve-se ao fato de que ela reproduz todas as emoções do mais íntimo do nosso ser, mas sem a realidade e distante da dor. - Arthur Schopenhauer
A musicalidade dos sons e dos arranjos, a poesia das letras, a entonação da voz fazem parte de um campo de organização social, cultural e econômica, no qual a criatividade individual se encerra e se desenvolve. Criatividade difícil, negociada, mediada pela técnica e pelas leis de mercado. - Renato Ortiz
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Sumário
Prefácio ......................................................................................................................................................................... 07 Paula Guerra Universidade do Porto Apresentação............................................................................................................................................................. 14 Thadeu de Sousa Brandão Universidade Federal Rural do Semi-Árido Palavras Iniciais... ................................................................................................................................................... 19 Jean Henrique Costa Lázaro Fabrício de França Souza 1 Andread Jó e a nova produção independente em Fortaleza/CE: reflexões sobre a música em tempos de reprodutibilidade técnica, ciberespaço e negócios eletrônicos ............................................................................................................................................. 23 Tássio Ricelly Pinto de Farias Jean Henrique Costa 2 Heavy metal, identidade e sociabilidade: itinerários em construção................................ 63 Lázaro Fabrício de França Souza 3 Na batida do consumo: uma análise sobre o funk ostentação ................................................ 100 Shemilla Rossana de Oliveira Paiva Lázaro Fabrício de França Souza Marcília Luzia Gomes da Costa Mendes 4 Indústria cultural e forró eletrônico no Rio Grande do Norte ............................................... 123 Jean Henrique Costa Sobre os Autores ..................................................................................................................................................... 174
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Prefácio
MÚSICA SIGNIFICA IDENTIDADE CULTURAL E SOCIAL DA NOSSA ÉPOCA
Paula Guerra Universidade do Porto
Relembrando Umberto Eco que faleceu no passado dia 19 de fevereiro, começo por abordar este livro: “É impossível pensar o futuro se não nos lembrarmos do passado. Da mesma forma, é impossível saltar para a frente se não se der alguns passos atrás. Um dos problemas da atual civilização - da civilização da Internet - é a perda do passado”. Um autêntico testemunho do presente marcado pelas novas tecnologias da comunicação e informação à escala global. Assim, somos de facto ‘todos translocais’ e este livro, com foco nas expressões musicais locais influenciadas e impactadas pelo global, mostra-o de forma premente e muito entusiasta. Ao mostrar e demonstrar estas apropriações contínuas da música, é um belíssimo documento de abordagem do passado e do futuro. Ao passado, remete-nos para a historicidade das cenas presentes e ao futuro, transmite-nos uma prospetiva das suas dinâmicas de desenvolvimento contemporâneo. Assim, este conjunto alargado de jovens investigadores, composto por Jean Henrique Costa, Lázaro Fabrício de França Souza, Shemilla Rossana de Oliveira Paiva, Tássio Ricelly Pinto de Farias e Marcília Luzia Gomes da Costa Mendes, fez algo de muito importante: transpôs para livro investigações muito relevantes em torno da importância da música e das suas diversidades estilísticas, sociais, artísticas e culturais no presente não descurando o passado e antevendo o futuro. Com efeito, a popular music e suas abundantes derivações tem tido uma importância fundamental na estruturação das vivências e sociabilidades lúdicas e culturais ao longo dos últimos setenta anos. Tal como refere Frith, a mensurabilidade dessa importância desemboca numa analítica orientada por dois
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vetores: a génese, a constituição e a consolidação do que poderemos apelidar de campo do pop rock e na avaliação dos impactos e consequências que a apropriação dessas modalidades e géneros musicais tiveram nas identidades dos agentes sociais que passaram a fruí-los, a consumi-los e a vivê-los: “a música pop tem sido uma forma importante na qual temos aprendido a compreender-nos a nós mesmos como sujeitos históricos, étnicos, de vinculações classistas e de género. (...) Durante os últimos trinta anos, por exemplo, pelo menos para os jovens, a pop tem sido a forma pela qual os cálculos diários de raça e sexo têm sido confirmados e confundidos. Pode ser que, no final, queiramos valorizar de forma suprema esta música (...) que tem efeitos coletivos, perturbadores e culturais. O meu ponto é que a música só faz isso através do seu impacto sobre os indivíduos. Que impacto é o que precisamos primeiro entender” (Frith, 2004: 46). Assim, a música é um domínio de investigação que responde no essencial à relação entre a estrutura social e a música, ao desenho e configuração dos mundos da música, à estruturação social da estética musical, à oficialização dos campos musicais, ao uso da música na elaboração de distinções de status e à importância das componentes musicais na formação identitária. A acrescentar a estas dimensões, não será despiciendo realçar que as próprias modalidades e conteúdos da relação entre música e sociedade se têm tornado mais enredados acompanhando a própria complexidade de estruturação societal. Se, nos séculos anteriores, a obra musical estava reservada às salas de espetáculos e a um público eminentemente burguês, hoje em dia, a música encontra-se disseminada um pouco por toda a parte, não só graças aos meios de comunicação social, mas, igualmente, ao facto de os espetáculos irem ter com as pessoas aos seus locais de trabalho, por exemplo. Igualmente, já não é só o público burguês que tem acesso à música, as camadas mais baixas também, o que faz com que o próprio conteúdo musical e a relação entre artista, o conteúdo do seu trabalho e o público se alterem. A música está em todo o lado, a música é translocal portanto (Guerra, 2015). E este livro prova isso. Assim, é um testemunho muito importante e inovador que marca a agenda científica brasileira e mundial, mostrando-nos os recortes, as variações, as pertenças e apropriações da música como recurso identitário para além da influência hegemónica do mundo anglo-saxónico.
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Em Fortaleza com o Andread Jó, entre os headbangers de Mossoró, com o funk ostentação do Rio de Janeiro e de S. Paulo, com o forró eletrónico no Rio Grande do Norte, estes autores mostram-nos o nascimento de determinados (sub)géneros musicais translocais. Não desconhecendo a influência do social na música, podemos salientar a importância que o contexto social, económico, político e ideológico detém no âmbito da criação musical. Assim, se até ao século XVIII tinha como obrigação criar dentro do estilo representativo do seu tempo, aceite e compreendido pelos consumidores de música, que tinha como função apenas um consumo imediato, a partir do século XIX, e como consequência das ideias renovadoras resultantes das revoluções, o músico procura essencialmente a originalidade na forma como expressa a sua própria mensagem. Dito de outra forma, até ao século XIX prevalece um estilo e uma linguagem musical coletiva, específicas de uma geração ou período histórico. Após essa altura, a criação musical liberta-se das necessidades de consumo imediato e o compositor apenas cria quando se sente inspirado e quando ele próprio sente necessidade de o fazer. As criações servem, então, para expressar de forma original a mensagem, a emoção, as imagens dos seus criadores, para além de ser agora possível identificar diferenciações consoante as diversas escalas nacionais como comprovam estes estudos de caso. Importa perceber as relações estabelecidas entre a música e a sociedade: até que ponto a música expressa temas, assuntos e emoções? Até que ponto esses temas, assuntos e emoções, bem como a realidade social em geral, se refletem na música? Reconhecendo a música como um fenómeno social, a sociologia deve aceitar a autonomia do mundo sonoro, com os seus próprios símbolos e com as suas próprias leis sem ignorar a influência de fatores externos que sobre eles recai. No fundo, torna-se crítico perceber até que ponto os impulsos recebidos da realidade social atuam sobre as atividades mentais do compositor e se traduzem na sua técnica e estilo, na sua produção. A música, ao contrário do que muitos advogam, não é uma linguagem universal e eminentemente direta. Pelo contrário, cria os seus símbolos específicos e só os que estão familiarizados com essa linguagem podem, de facto, captar a ideia do criador. Mas, por outro lado, a difusão que a música conhece hoje em dia acaba por compensar a escassez de
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conhecimentos musicais que eram habituais nos conhecedores e aficionados de outros tempos. A música é, sem dúvida, uma poderosa forma de expressão das emoções e das ideias individuais, mas é também uma forma de expressão de experiências partilhadas por uma comunidade e de coesão social, no sentido em que envolve as pessoas, integrando-as em grupos e promovendo a cooperação. Parte-se, pois, do pressuposto de que o valor da música é determinado pela sua função e pelo modo como preenche determinadas necessidades e cumpre funções específicas. Neste sentido, e acreditando no potencial da música para ir ao encontro destas necessidades, deduz-se uma obrigação ética para criar e/ou aderir a estruturas culturais, que permitem suportar a produção, distribuição e receção dos estilos musicais que preenchem cada uma das funções em causa. Também é de destacar a importância atribuída à música quando são consideradas as relações entre a cultura e as expressões de bem-estar ou desorganização social. Uma primeira interpretação possível centra-se nas funções sociais positivas da música. A ideia principal é a da que a música, como em qualquer outra atividade cultural e de lazer, constitui uma manifestação positiva da qualidade de vida. Por outras palavras, a música oferece uma compensação individual para aspetos que falham noutros campos e fornece oportunidades de criatividade, prazer e participação; integra os indivíduos, expressa e reforça os valores sociais, pelo que não há diferenças de maior entre as formas culturais populares e as mais elitistas. Deste modo, quanto maior for a oferta de oportunidades culturais num dado local, menores serão os níveis de desorganização social e descontentamento. Um outro ponto de vista, pelo contrário, estabelece a diferença entre a cultura de massas e a cultura de elites, defendendo uma associação entre a cultura popular e condições sociais desfavoráveis e até perigosas. Ora, o que nos mostram estes trabalhos é que de facto a música pode ser um meio poderoso de integração social, mas também de participação, de apropriação da cidade, de reconstrução identitária – sendo a face visível de expressividades (i)legitimadas pela sociedade hegemónica, mostrando resistências simbólicas e social de elevo, transformando-se em competências sociais, profissionais, culturais e juvenis. Fonte de libertação e afirmação identitária.
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Estamos perante uma obra que conduz a uma rematerialização da música e da cultura em termos de práticas contextualizadas e relacionais (resolvendo a ligação cultura-estrutura numa não homologia rígida e simplificadora). Num entendimento fiel à de relatividade dos campos sociais, o trabalho musical, que inclui a criação e fruição, é sobremaneira prático e decorre em espaços intersetados pelos planos biográfico dos artistas e da realidade social mais vasta em que se situam. De facto, a subjetividade produz-se e revela-se mediada pela música. Os lugares de ativação das práticas musicais são assim domínios privilegiados a partir dos quais se pode ler quer o desdobramento das atitudes incorporadas, quer os modos de atenção. Este é um plano em constante desenvolvimento – desenvolvem-se novas posturas, consciências e identidades. Aqui, neste livro, a música faculta ainda um importante fundo sobre o qual podem ser levadas a cabo, performativamente, estratégias subjetivas de afirmação identitária. E, por isso, é-nos possível adotar uma abordagem histórica que recomponha a interioridade musical a partir da análise das manifestações práticas e atuais da realização musical in loco. A cultura é muito mais do que ideias e valores e, concomitantemente, a relação da cultura com a estrutura social não poderia ser adequadamente compreendida assumindo uma simples homologia entre as duas. Desta feita, pela influência e uso das novas tecnologias e da Internet, a música produzida e sentida transmuta-se e diferencia-se como se mostra no capítulo 1. Paradigmaticamente, um subgénero musical como o metal, objeto de uma constância e fidelidade memoráveis por parte dos seus cultores e fiéis, apresenta-se na sua vivência à escala local com cambiantes, com especificidades como podemos observar no capítulo 2. Distante de uma visão pautada pelo determinismo cultural, a música é vista aqui como um reflexo da realidade, onde se espelham as condições de vida e características inerentes, sendo explorado o conceito de homologia. Na realidade, este conceito tem sido largamente utilizado por outros teóricos como explicar a música pop enquanto expressão das relações de classe. Desde meados da década de 90 do século passado, temos vindo a assistir à crescente centralidade da chamada viragem cultural. Não se perspetiva uma negação dos constrangimentos estruturais no dia a dia dos indivíduos, mas começa a ser considerada a capacidade
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dos mesmos na negociação dos constrangimentos, encontrando uma identidade e construindo um estilo de vida que vão para além desses condicionalismos. Neste cenário de viragem cultural, crê-se que os indivíduos têm capacidade de exercer reflexividade e de conseguir um distanciamento crítico em relação à sua identidade social e à gestão do seu quotidiano. Desta feita, o gosto ou as preferências musicais constituem formas de expressão reflexivas através dos quais os indivíduos constroem a sua identidade, e não um produto determinado estruturalmente pelas circunstâncias sociais. Assim, o funk ostentação é estrutura e ação, é autenticidade e imitação no capítulo 3. Dentre os estudos sociológicos sobre música pop pós viragem cultural que ressalvam as formas localizadas e subjetivas através das quais a música e as práticas culturais se traduzem no quotidiano, podemos demonstrar como os públicos juvenis exibem um conjunto de posições ideológicas em relação a toda a mercadorização dos festivais, por parte da organização e dos patrocinadores, posições essas que são por estes tomadas em linha de conta na construção dos espaços dos festivais, conferindo um patamar de reflexividade central aos atores sociais em situação. Na mesma linha, será lugar para assinalar os trabalhos de Hodkinson (2002) que dão conta do modo como a criação de uma cena musical é resultado de práticas reflexivas e criativas dos fãs de música gótica ou de Bennett e Peterson (2004) ao examinar as diferentes leituras que os fãs de hip-hop fazem dessa mesma sonoridade e os distintos papéis que este género musical desempenha nas suas vidas, mediante experiências diferenciadas do local. A perspetiva de Tia DeNora é central aqui, pois esta autora defende que a sociologia histórica da música concentrou-se progressivamente em grounded perspetives que mostram as bases institucionais e organizacionais da produção, consumo e distribuição musical. Passou-se, assim, a considerar a música como um “meio din}mico de ordenaç~o social” – i.e. como “os objetos e o seu uso podem estruturar relações sociais, consciência e subjetividade” (DeNora, 2004: 219). Assim, a música é a transposição dos princípios e propriedades estruturais da vida social, podendo ser uma matriz de moldagem de novas subjetividades e das exteriorizações destas: “por outras palavras, a música pode ter ajudado a delinear novas subjetividades e os seus correlatos externos como convenções da ação
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(musical), mas o acesso a estas não estava aberto a todos os executantes musicais (caso das mulheres)” (DeNora, 2004: 217). Ora, este é também o grande desafio de abordagem do capítulo 4 em torno do forró eletrónico e das relações de género. Não podia terminar este prefácio de modo diferente de como comecei, com uma citação de um dos meus pensadores favoritos, Eduardo Lourenço: “H| momentos em que a música nos comunica esse sentimento intenso de que a nossa vida é, efetivamente, uma vida sem morte.” (In C}mara Clara, 2007). Assim, a leitura deste livro permitiu-me recordar a imortalidade e constante vida da música. Mostrou-me que a globalização acelerada se tem traduzido em glocalizações permanentes. Por isso, faz sentido falar das intensas possibilidades de conculturação dos estilos, dos géneros musicais num vaivém incessante entre criação musical, criação social, apropriação musical e apropriação social, algo permitido pela leitura desta obra. Obrigada pela partilha. Porto, Fevereiro de 2016. Referências BENNETT, Andy; PETERSON, Richard A. (2004) – Introducing music scenes. In BENNETT, Andy; PETERSON, Richard A., eds. (2004) - Music scenes: local, translocal and virtual. Nashville: Vanderbilt University Press. ISBN 9 780826 514516. 1 - 15. CÂMARA CLARA (2007) – A felicidade. Beatriz Batarda (depoimentos de Eduardo Lourenço [et al.]). Lisboa: RTP2. 30 de dezembro de 2007. DeNORA, Tia (2004) - Historical perspetives in music sociology. Poetics. 32. ISSN 1419142402. 211 - 221. FRITH, Simon (2004) - Popular music: music and society. Volume 1 de Popular Music. Londres: Routledge. ISBN 978-04153326-75. GUERRA, Paula (org.) (2015) – More Than Loud. Os Mundos Dentro de Cada Som. Porto: Edições Afrontamento. ISBN 978-972-36-1428-2. HODKINSON, Paul (2002) – Goth: identity, style and subculture. Oxford: Berg. ISBN 978-1-85973-605-0.
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Apresentação
Música e musicalidade são manifestações da arte humana tão antigas quanto nossa própria “humanidade”. Manifestações da cultura e da linguagem, despertam nosso prazer e suscitam formas diferenciadas de expressão corporal e significados sociais. Talvez, pela sua proximidade e pela forma como utilizamos essas manifestações, tomamo-las como coisas “inatas”, naturais e n~o como construções socioculturais e, como este livro também aponta, atividades econômicas. Os autores da presente obra realizam uma tarefa que não é, por si só, inovadora. Afinal, desde Goethe e Schopenhauer, passando por Adorno e Walter Benjamin, a análise da música na modernidade tem ganhado um escopo e um aprofundamento cada vez maior. Porém, há elementos inovadores neste esforço intelectual coletivo apresentado, principalmente na tentativa de ir além das análises sociológicas, econômicas e filosóficas já realizadas pelos clássicos. Sob ombros dos gigantes, os autores dos capítulos descortinam as várias realidades musicais da indústria cultural brasileira nestes tempos “interessantes”. Os organizadores da presente obra aglutinaram neste trabalho quatro pesquisas sobre o tema. São elas, respectivamente: um capítulo intitulado “Andread Jó e a nova produç~o independente em Fortaleza/CE: reflexões sobre a música em tempos de reprodutibilidade técnica, ciberespaço e negócios eletrônicos” de T|ssio Ricelly Pinto de Farias e Jean Henrique Costa; um segundo sobre “Heavy metal, identidade e sociabilidade: itinerários em construção” de Lázaro Fabrício de França Souza; um terceiro denominado “Na batida do consumo: uma an|lise sobre o funk ostentaç~o” de Shemilla Rossana de Oliveira Paiva, Lázaro Fabrício de França Souza e Marcília Luzia Gomes da Costa Mendes; e o quarto e último “Indústria cultural e forró eletrônico no Rio Grande do Norte” de Jean Henrique Costa. O leitor irá perceber uma certa linha de continuidade nos trabalhos apresentados, não apenas no que condiz ao tema, mas também na abordagem
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teórico-metodológica e nas aproximações conceituais que os autores utilizam para o esforço analítico. Os ritmos e estilos musicais como o Reggae, Heavy metal, Funk e Forró, são compreendidos através de sua inserção da indústria cultural, onde elementos como produção, consumo e significação servem de suporte para análise tarimbada e pautada em dados de pesquisa empírica. Também ficará implícito que os esforços de entendimento estão pautados sobre ritmos musicais que os autores vivenciaram e vivenciam. Gostem ou não dos ritmos (eles não nos informam), fica patente que seus valores estão sendo postos à prova em cada uma dessas reflexões. Longe do apanágio positivista de que estes devem ficar de lado, em nome da “objetificaç~o” do fato social, percebemos que eles est~o { tona, weberianamente falando, mas sem atrapalhar e impedir a compreensão. Ao contrário, ajudam-na a enriquecer e dão sentido à empreitada. No primeiro capítulo, temos a análise do Reggae, a partir de um estudo de caso (quase biográfico) do cantor (e produtor musical) Andread Jó. Fruto de uma pesquisa empírica exaustiva, os autores Tássio Ricelly e Jean Henrique Costa apresentam a realidade da produção de um estilo musical que tenta sobreviver diante da hegemonia do forró em Fortaleza, Ceará. O principal elemento inovador da pesquisa é sua ênfase no papel da internet e do ciberespaço na dinamização do artista, em sua produç~o, distribuiç~o e no consumo junto aos seus “f~s”. [ margem do sistema de distribuição fonográfica oficial, abunda-se o uso dos “CDs piratas” e, mais do que nunca, dos “downloads” diretamente via internet, onde as páginas das redes sociais, principalmente o “Facebook”, terminam sendo os grandes dinamizadores da reprodução dessa musicalidade. Os autores apontam uma verdadeira “reestruturaç~o do mercado musical”, na medida em que, agora, os hits alcançam primeiro o sucesso espontaneamente, através da internet, e só depois são veiculados e assimilados pela tradicional indústria cultural. Esta não desapareceu, mas terminou por se adaptar e a se reconstruir em novos padrões mercadológicos, cada vez mais dinâmicos e ágeis. O segundo capítulo traz uma tentativa frutífera de compreender a produção social e simbólica do heavy metal, principalmente através de elementos como a sociabilidade e a identidade de seus “consumidores”. O esforço de Lázaro Fabrício de França Souza parte dos itinerários e construções dos processos identitários
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entre os chamados headbangers, através da experiência destes do gênero heavy metal, caminhando pelos conceitos de identidade e sociabilidade. A sociabilidade desses atores sociais, assim como sua identidade musical em construção, parecem se pautar enquanto formas de resistência, que o autor ainda está a investigar. No
terceiro
capítulo,
Shemilla
Rossana
de
Oliveira
Paiva
Lázaro Fabrício de França Souza e Marcília Luzia Gomes da Costa Mendes abordam o “Funk Ostentaç~o” que, dos quatro tipos musicais analisados neste livro, é significativamente o mais recente (historicamente) de todos. Sua diferença primordial é o fato deste fazer, propositadamente, uma apologia explícita ao consumo material através de suas letras. Enfatizando produtos de “marcas”, principalmente as esportivas, esse tipo de letra glorifica um estilo de vida ostentatório, mas, ao mesmo tempo, desviante, pois termina por fugir dos padrões estéticos mais dominantes. Oriundos de comunidades outsiders, os “mcs” e “raps” desse gênero (em sua ampla maioria, negros e pardos) constroem simbolicamente uma forma de resistência à dominação que, longe de negar, incorpora os valores mais intrínsecos do capitalismo e do fetichismo da mercadoria. Os autores, de forma competente, mostram que “se antes os ‘Mauricinhos’ e ‘Patricinhas’ do asfalto eram alvos de críticas nas letras do funk, hoje parece que há uma vontade de ter aquilo que eles possuem, se assemelhando o máximo possível àqueles que antes eram vistos com desaprovaç~o”. Após o protesto e após a apologia ao crime e à sensualidade, a pauta imposta agora é desejar o que há muito tempo todos já desejavam: a integração à sociedade através de seu maior apanágio, o consumo. Numa hipérbole fetichista, as mercadorias assumem seu valor de uso absoluto. São toda uma linguagem simbólica que expressam posições sociais e culturais, onde a música (rap), enfim, termina por contribuir para a disseminação e para a consolidação hegemônica nas mentes e almas da juventude das periferias brasileiras. O último capítulo aborda o Forró Eletrônico. O autor, Jean Henrique Costa, trilha sua análise em compreender determinados aspectos do forró eletrônico no Rio Grande do Norte, seguindo relatos de alguns dos indivíduos que vivem materialmente a deste mercado (músicos e empresários) e dos ouvintes de diferentes perfis. Como o mesmo colocou modestamente, trata-se de um estudo de
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caso. Ao mesmo tempo, busca perceber as diferenças entre o consumo do forró eletrônico como música de cultivo privado e como consumo festivo (espetáculo público). Consumo privado de música e consumo público de festa são práticas quase que indissociáveis, sobretudo num gênero musical dançante como o forró. Primeiramente, importa dizer que, de todos os gêneros abordados neste livro, o único dominante culturalmente no Rio Grande do Norte é o Forró. Portanto, não se trata, como nos demais supracitados, de um consumo de “outsiders”. Majoritariamente tocado nas rádios locais e sempre presente em praticamente todas as festas (inclusive no Carnaval), o Forró é o gênero musical, por isso, talvez, mais difícil de ser analisado. Afinal, os valores inerentes à pertença e à identidade local, imprimem uma dificuldade maior em afastar o que é considerado tão “natural” e “normal”. O autor buscou, neste ínterim, entender parte da natureza empresarial dos grupos musicais, assim como descrever o conteúdo dominante presente nas letras de determinadas músicas de forró eletrônico captadas pelo recorte musical selecionado, além de compreender como os ouvintes decodificam parte do forró eletrônico mais veiculado no Rio Grande do Norte e perceber a ligação e o sentido prático que essas músicas desempenham na vida de cada ouvinte. Mergulhando em uma perspectiva teórica absolutamente adorniana, Jean Henrique Costa não abriu mão de discutir e utilizar outras searas, como a da Nova Sociologia Econômica e sua análise de redes e a das análises culturais britânicas. Porém, sem perder o fio do fundador da Escola de Frankfurt, ele aponta a perspectiva de pensar o gênero como um aspecto da ideologia capitalista, elemento que, apesar das vogas e modas “complexas” e “líquidas”, permanece atual e ainda inesgot|vel. Como ele mesmo apontou, “as sutilezas da dominaç~o, pelas m~os da indústria cultural, são arguciosas e cada artimanha visa envolver o consumidor num esquema retroalimentado de falsa opção e liberdade. Imediatamente, nega-se uma coisa e se aceita outra praticamente idêntica. (...) a dominação pela indústria cultural não é de cima para baixo, mas sim, de todos os lados, principalmente no íntimo de cada um”. Costa mostra que o forró eletrônico é um ritmo musical estruturante de parte expressiva da sociabilidade da população norte-riograndense. Suas músicas dominantes exploram, de forma geral, temas como festa (diversão a todo custo), amor e sexo. Dialeticamente falando, longe de mostrar ao
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ouvinte faces de um mundo contraditório, termina o forró servindo como reforço do emudecer humano, ou seja, termina por justificar a realidade tal qual ela aparenta ser. “Suas letras mais cantadas desviam a atenç~o de qualquer coisa mais séria. Tome forró, cachaça e divers~o!” Ao mesmo tempo, seu consumo n~o se d| de forma ingênua. A estrutura mercadológica, reprodutora, não permite esquecimento algum. Como insinuei no início desta apresentação, tratar de musicalidade, na esfera das Ciências Sociais, é um desafio mais sério e obtuso do que imaginam os diletantes. Os capítulos descritos rapidamente aqui se colocam como amostras reconfortantes de como análises sérias e metodologicamente coesas permitem o descortinar desse assunto tão mistificado quanto à música e sua expressão capitalista: a indústria cultural. Além do gosto e da estética, fugindo dos preconceitos socioculturais e das estruturas simbólicas que hierarquizam o “belo”, os autores nos premiam com uma compreensão densa e científica de parte de nosso quadro musical. Claro que, obviamente, este quadro é muito mais extenso e tem muitas outras nuances. Mas, com certeza, o leitor e o interessado no tema aqui encontrarão alguns caminhos que permitem um iniciar nesta caminhada reflexiva no tema.
Prof. Dr. Thadeu de Sousa Brandão Sociólogo, Mestre e Doutor em Ciências Sociais. Professor do Departamento de Agrotecnologia e Ciências Sociais e do Mestrado em “Cogniç~o, Tecnologias e Instituições” da UFERSA (Universidade Federal Rural do Semi-Árido).
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Palavras Iniciais...
O apelo subjetivo, situações de arrebatamento, a inspiração que sopra regozijando a alma, os sentimentos emanados, os pelos que se arrepiam, os olhos que, marejados, reverberam; a nostalgia que vem com as experiências resgatadas, o coração que pulsa célere a partir de notas, acordes, melodias e harmonias que se sobressaem. Muitos s~o os “efeitos” advindos de uma simples – e tão complexa – audição musical. Também por isso, e não a esmo, a música esteja presente em, basicamente, todas as sociedades das quais se têm conhecimento e apresente tanta relevância para a grande maioria dos sujeitos, na medida em que está ligada às suas vivências, trajetórias e experiências. Reggae? Heavy metal? Funk? Forró?... Qual a relevância desses gêneros musicais – tão caros do ponto de vista subjetivo, emocional – para as ciências sociais e humanas? O que dizer, ainda, de gêneros musicais que por excelência fazem parte da indústria cultural? Para além da escolha de objetos hegemônicos, este livro aborda o fenômeno musical (produção, consumo e significação) com uma certa atenção especial, isto é, dando voz àqueles fenômenos sociais antes abafados pelas ciências sociais canônicas. Pensar na questão do fenômeno musical indo além da mera dicotomia popular x erudito; da infrutífera condenação da indústria cultural, ou mesmo do encantamento da música enquanto fenômeno cultural; e ainda, ir além do antagonismo produção x consumo, tecem o objetivo geral desta obra coletiva. Quatro
ensaios ilustram
as páginas a
seguir. Produzidos pelas
circunstâncias particulares de cada autor, expressam não um todo orgânico concordante, mas sim, muito mais a tentativa de sistematização de quatro gêneros musicais populares sob o olhar das ciências sociais e humanas. Nesse sentido, trata-se da possibilidade, sempre aberta, de criação de novos olhares sobre objetos nem sempre tradicionais em nossas searas acadêmicas. O reggae é trabalhado, no capítulo 1, a partir das categorias reprodutibilidade técnica, ciberespaço e negócios eletrônicos. O artigo discute a atual – e constante – reestruturação dos mercados musicais analisando, - 19 -
especialmente, o impacto causado pela revolução das Tecnologias da Informação e Comunicação (TICs) e o advento da Cibercultura, entendida como novo modo de reprodutibilidade dos bens culturais. Argumenta-se que a desmaterialização da música, unida ao processo de difusão em rede (via Internet), suscitaram novos hábitos de produção, circulação e consumo no negócio da música. Para tanto, o objeto da pesquisa recai sobre o estudo de caso realizado com Andread Jó, reggeiro autônomo da cidade de Fortaleza-CE. O estudo conclui que, se por um lado deve-se analisar o mercado musical de forma ‘dual’ (indies e majors), por outro, percebe-se que ‘dentro’ do mainstream busca-se adotar as estratégias que ‘de fora’ surtiram efeito de diferencial estratégico, entre elas, a comercializaç~o da música via streaming e a utilização de outros serviços de música online. Sociologicamente as estruturas do mercado se dinamizam e, relacionalmente, atores sociais distintos se conectam numa rede dinâmica, plural e aberta de possibilidades de negócios no campo da chamada “música independente”. O resultado pode ser expresso em maior possibilidade de acesso ao mercado de bens culturais, tanto por parte dos músicos, quanto pelos ouvintes. O heavy metal é trabalhado no capítulo 2. O ensaio busca discutir algumas formas como se dão os itinerários e construções dos processos identitários entre os headbangers, através da experiência do heavy metal, perfazendo inclusive uma espécie de “sobrevôo” no que se refere aos conceitos de identidade e sociabilidade. Trata-se o heavy metal enquanto um fenômeno musical global, presente em todos os continentes do globo. O estilo parece se constituir em meio a culturas híbridas e em um mundo globalizado, em constante ebulição e mudanças. Há toda uma esfera simbólica, que se manifesta no âmbito dos signos e que assegura certa “unidade” em termos de uma identidade grupal, no que se refere ser headbanger, podendo ser percebida desde as vestimentas até o compartilhamento do êxtase coletivo dos shows, das paixões por bandas e músicos e de alguma perspectiva de mundo e de relacionamento com os pares, com a música, com a arte, com a constituição da subjetividade, por meio de uma ética da resistência. Sendo assim, o ensaio esboça, em termos introdutórios, uma leitura desse cenário. O capítulo 3, que aborda o Funk, tem o propósito de analisar algumas características da nova vertente do Funk, difundida de São Paulo para todo o país, o
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denominado Funk Ostentação. Depois de outras modalidades já conhecidas e pesquisadas, como o Funk romântico/melody, o consciente, o pornográfico e o proibidão, a ostentação é a primeira vertente do Funk que nasceu fora do seu berço, o Rio de Janeiro, e que se espalhou por todo o país. Foi falando basicamente em riqueza, itens de luxo e curtição, através de canções que mais parecem anúncios publicitários, que os paulistanos assumiram a vanguarda desse estilo. O capítulo discute a imbricada relação entre o fenômeno do consumo e o Funk ostentação, universo este não só sonoro, mas primordialmente simbólico. Por fim, o quarto capítulo aborda o forró eletrônico no nordeste. O texto buscou compreender se, em que medida e como o forró eletrônico atualmente em foco no mercado musical norte-rio-grandense serve para estabelecer e sustentar relações de dominação nos contextos sociais em que é produzido, transmitido e recebido. A pesquisa foi realizada a partir de um estudo qualitativo pautado na realização de 12 entrevistas com músicos e empresários do mercado musical do forró no Rio Grande do Norte e 45 entrevistas com diferentes perfis de ouvintes, além de análise de conteúdo de álbuns da banda de forró Garota Safada. Como resultado, percebeu-se que não há como pensar num consumo cultural apático, passivo e monolítico. Os produtores e ouvintes de forró eletrônico fazem leituras diversas sobre o gênero: discordam, negam, fazem chacota, escarnecem, zombam, riem, bem como se emocionam, cantam, choram, vibram etc. Todavia, diante do crescente cerco sistêmico e prescritivo da indústria cultural, determinadas visões de mundo são reproduzidas e reforçadas por parte significativa do forró eletrônico atualmente dominante. Mesmo n~o passando muitas vezes de uma “economia da experiência” para parte substancial dos ouvintes, para outra parcela essas músicas representam todo um ethos de diversão, lazer e relações sociais. Logo, estes quatro estudos ilustram o intuito maior desta obra: dar um tratamento eclético (teórico) a objetos não hegemônicos na agenda das ciências humanas hoje. Esperamos que o leitor tenha em mãos a oportunidade de refletir sobre a música popular, não somente como crítica da indústria cultural, mas nela e, sobretudo, para além dela. Porquanto a música, como só ela, é capaz de revoluções internas e dos sentimentos chacoalhar, de empreender pensamentos, promover
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voos pujantes sem receios, sem lamentos. Parece surgir, amiúde, como panaceia; como prosopopeia visceral, uma relação dialógico-monogâmica com aquele que a ouve, que a respira, que dos pelos o arrepio suscita e que nos poros como faca penetra, que a vida ressuscita... capaz de sonhos arrebatar, do mundo uma fuga proporcionar, nos tronos um rei empoderar, uma lágrima dos olhos verter, do coração a chama alavancar. Música. Bem ela, sem a qual, como bem dissera Nietzsche, "a vida seria um erro". Um daqueles tremendos. A música, como só ela, faz refletir, extrai dos sentidos a alma e nos inspira. Talvez, entre todas as artes, seja ainda ela, a música, fulgurante, a responsável pelas maiores comoções e arrebatamentos, proporcionando-nos a ciência dos seres sencientes que somos. O espetacular fenômeno da música, presente em cada sociedade, nos mais longínquos rincões, nas mais abastadas e também nas menos prestigiadas comunidades, sempre nos acompanhando, como um alento, nas sendas incertas da vida. Que nas páginas que se seguem o caro leitor se permita adejar por novas perspectivas, itinerários e horizontes. Nos galopes da Ciência, sem desprezar o encantamento que se dá no âmbito da cultura e dos símbolos. Que se perca entre reflexões e se encontre em novos sentimentos. Que a leitura seja, enfim, prazerosa e elucidativa. Uma excelente jornada!
Jean Henrique Costa Lázaro Fabrício de França Souza Mossoró, RN Abril de 2016
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CAPÍTULO 1 ANDREAD JÓ E A NOVA PRODUÇÃO INDEPENDENTE EM FORTALEZA/CE: REFLEXÕES SOBRE A MÚSICA EM TEMPOS DE REPRODUTIBILIDADE TÉCNICA, CIBERESPAÇO E NEGÓCIOS ELETRÔNICOS
Tássio Ricelly Pinto de Farias Jean Henrique Costa
Introdução
Pensar na indústria cultural hoje é partir de uma inversão metodológica que reconfigurou o acesso aos bens culturais. Diga-se de passagem: se antes existiam ‘mídias de massa’, hoje imperam ‘massas de mídias’. Como disseram Albornoz e Gallego (2011, p. 104), “o emprego de ferramentas online est| na ordem do dia”. Assim, a desmaterialização da cultura, unida ao surgimento de plataformas virtuais de distribuição em rede (gratuitas ou não) dos bens simbólicos, constituem os novos desafios para se (re)pensar a atual dinâmica de produção-distribuiçãoconsumo da indústria cultural e, inserida nela, consequentemente, a indústria fonográfica. Para além de seu prelúdio histórico, hoje devemos considerá-la como uma indústria cultural de base local-global, dialeticamente produzida por aparelhos diversos de reprodução simbólica das sociedades contemporâneas. Indústrias culturais, no plural, expressam nosso novo tempo de midiatização e ciberespaço. De cima pra baixo, de baixo pra cima, vertical e transversalmente a produção cultural vem se forjando, fortalecendo, reinventando e impondo formas plurais e heterogêneas de disputa por legitimidade cultural e econômica. Diferente do que se poderia afirmar, esta indústria cultural hoje não mais se assenta completamente em bases hegemônicas do ponto de vista tecnoorganizacional. Muito embora não se diga que ela inexista, percebe-se que tecnológica e organizacionalmente já não é a mesma, tal qual analisada nos anos
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1940 por Theodor W. Adorno e Max Horkheimer. Muita coisa mudou! Falar em ‘indústrias culturais’ seria, portanto, mais apropriado, visto que, muito embora o ‘sonho’ ideal de padronizaç~o (estandardizaç~o) ainda exista, existem também formas alternativas e eficientes de driblar tais ditames. A produção musical independente é, de certo modo, uma dessas formas. Daí que, faz-se necessário uma análise menos pessimista das atuais estruturais de comercialização dos bens culturais. Esta, dar-se-ia não com o abandono do conceito de indústria cultural, como se ele estivesse caduco; muito menos com o tratamento pejorativo que ainda hoje é dado a este conceito – visto demasiadamente através do prisma da negatividade não-dialética, mas sim, por uma compreensão plural de suas múltiplas dimensões (econômica, cultural e simbólica). Primeiramente, é preciso entender que mesmo ao se falar de uma indústria fonográfica independente, trata-se de um negócio – um comércio de bens culturais. Ainda que alternativo ou distante do grande capital, todavia, permanece dentro da lógica comercial. O caráter de negócio da música tem sido analisado muitas vezes de forma dicotômica (e ingênua), como se os independentes não fossem também parte da indústria cultural. Claro que fazem! Por maior que seja o distanciamento organizacional e material alguns elementos de reprodução da lógica mercantil precisam permanecer para a sustentabilidade do artista no mercado. Como lembra o Andread Jó (2014; 2015b), “a música é um produto assim como o artista, querendo ele ou n~o”. Em seguida, faz-se necess|rio uma an|lise de ‘como’ e ‘até onde’, dentro da própria indústria cultural, surgem formas alternativas que tentam fugir da heteronomia dantes exercida hegemonicamente pelos detentores do grande capital. Como novamente lembra Andread Jó (2015b), primeiramente insere-se no jogo (sistema), para somente depois tentar implementar novas regras. Por conseguinte, pensar na indústria fonográfica hoje sem relacioná-la às mudanças das formas midiáticas contemporâneas é demasiadamente um exercício arriscado. Entende-se, assim como Miskolci (2011, p. 12), que “mídias digitais s~o uma forma de se referir aos meios de comunicação contemporâneos baseados no uso de equipamentos eletrônicos conectados em rede, portanto referem-se – ao mesmo tempo – { conex~o e ao seu suporte material”. Daí que, o desenvolvimento
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da microeletrônica resultou no aparecimento de novos equipamentos tecnológicos (Mp3 Player, iPod, Tablet, Smartphone e etc.) que suscitaram, juntamente com a potencialização do acesso à Internet, novos hábitos de produção e consumo musical. Doravante, a produção musical contemporânea se dá (em sua maior parte) por meio de mídias digitais. Não seria arriscado dizer que em poucas décadas uma substancial revolução operou nos mercados musicais. Desse modo, é neste pequeno caldeirão midiático e tecnológico que a denominada produção musical independente vem se tecendo. Outra premissa necessária à compreensão dessa atual indústria fonográfica, e mais especialmente da Nova Produção Independente – NPI (categoria de análise utilizada por DE MARCHI, 2006), pode ser expressa no conceito de negócio em rede, do sociólogo espanhol Manuel Castells. Parafraseando-o, ousa-se dizer que a Internet se tornou o alicerce organizacional da cultura atual. Portanto, sendo ela a infraestrutura tecnológica que possibilitou o advento das novas formas de produção e apropriação dos bens simbólicos, é mister, pois, entendê-la como um “tecido de nossas vidas” (CASTELLS, 2003, p. 8). Doravante, deve-se compreender que a rede – por excelência – dessa NPI é, portanto, a galáxia da Internet. Observa-se certa similitude entre as ideias de Castells e Herscovici à medida que, para este, a mudança nos hábitos de consumo da música deve ser entendida como sendo fruto de um processo de desmaterialização dos bens simbólicos unido { sua difus~o em rede. Est| claro que, “[...] no }mbito dessas redes, a música online é um bem livre, { medida que n~o é mais escasso” (HERSCOVICI, 2007, p. 16). Herscovici (idem, p. 11) afirma ainda que “a n~o exclus~o [dos novos formatos de áudio difundidos na rede] explica-se a partir da imaterialidade do serviço e a partir do fato que a cópia apresenta a mesma qualidade técnica que o original”. Logo, j| não faz sentido adquirir um CD ou um Vinil por questões de qualidade. No máximo o indivíduo irá adquiri-los por certo ‘fetiche’ de colecionador. Neste sentido, tentar excluir ou mesmo limitar as mídias disponíveis em rede se torna tarefa quase hercúlea. A tendência concreta é a imaterialidade em rede do bem cultural. Em A reconfiguração da indústria da música, Herschmann e Kischinhevsky (2011, p. 3) afirmam que a avalanche de mudanças ocorridas nos últimos tempos na indústria fonográfica tem duas faces: a) primeiramente, presencia-se “[...] n~o só
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a desvalorização vertiginosa dos fonogramas [...], mas também o crescente interesse e valorizaç~o da música ao vivo”; b) “e, em segundo lugar, a busca desesperada por novos modelos de negócio fonográficos [...], ou melhor, o crescente emprego das novas tecnologias e das redes sociais na web como una forma importante de reorganizaç~o do mercado [...]”. Hoje, as empresas que controlam as plataformas digitais de áudio parecem ter assumido um dos papeis que outrora era exercido pelas grandes produtoras: o papel de mediadoras. Observa-se, portanto, um jogo de mudanças de posições. Se por um lado, Pierre Lévy afirmou que “[...] a partir de agora os músicos podem controlar o conjunto da cadeia de produção da música e eventualmente colocar na rede os produtos de sua criatividade ‘sem passar pelos intermedi|rios’ [...] (LÉVY, 1999, p. 143, grifo do autor); por outro, observa-se o surgimento de uma infinidade de intermediários, a exemplo das plataformas digitais Youtube, Myspace, Last.fm, Spotify, iTunes e outras. Como disse Yúdice (2011, p. 45, grifo nosso): Frequentemente, diz-se que na era da Internet produtores e consumidores podem dispensar os intermediários. Isso é um mito, pois como acabamos de assinalar, plataformas como Youtube, Myspace e Last.fm (e outras), as quais presumivelmente dispensam intermediários, na realidade se constituem em outra geração de intermediários.
Logo, como bem observaram Herschmann e Kischinhevsky (2011, p. 5), as “velhas indústrias fonogr|ficas” estão mudando suas políticas e tornando-se, aos poucos, “companhias musicais”. O resultado geral desse novo processo é que, “[...] em muitos casos, [essas empresas buscam] franquear o acesso a seus acervos por meio de parcerias com novos intermedi|rios”. Portanto, os investimentos massivos agora se voltam para ferramentas de distribuição via web. Vê-se, de longe, um processo dinâmico, criativo e flexível de reestruturação no negócio da música. Herscovici (2007, p. 9, grifo nosso) ajuda a entender a situação paradoxal que vive hoje a indústria fonogr|fica ao afirmar que “a economia atual da internet se baseia nesta complementaridade entre atividades aparentemente não mercantis, em boa parte gratuitas e descentralizadas, e a estrutura de quase
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monopólio da info-estrutura”. Ou seja, se por um lado os artistas autônomos/independentes têm hoje maiores possibilidades de difundir – em rede – suas músicas, sem a necessidade de acordos com grandes gravadoras; por outro, as empresas que controlam esses intermediários (plataformas digitais) estão se tornando cada vez mais fortes e lucrando cada vez mais com o mercado musical. Nesse sentido, distanciando-se dos entusiasmos pró ou contra o conceito de indústria cultural (tal como problematizado por Theodor W. Adorno e Max Horkheimer), este ensaio objetiva compreender algumas estruturas sociais de um mercado musical independente da cidade de Fortaleza/CE, a partir do artista independente Andread Jó, buscando descrever algumas características do mercado independente do reggae numa cidade em que predomina (massivamente nos espaços de sociabilidade populares) o forró eletrônico e as estratégias de mercado utilizadas pelo músico, observando, nas vicissitudes desta problemática, como se manifestam certas formas de consumo musical e reprodução simbólica. As obras de Castells e Lévy ocupam papeis centrais nesta discussão. O ensaio foi produzido a partir de entrevistas com o próprio Andread Jó, realizadas nos dias 25 de setembro de 2014 e 21 de março de 2015, na própria cidade de Fortaleza. A identificação nominal do entrevistado neste escrito foi autorizada previamente. Metodologicamente, trata-se de uma reflexão, embora empírica, mais ensaísta sobre o objeto aqui esboçado. Seus resultados expressam mais o vigor da reflexão teórica do que a intenção metódica de demonstração sistem|tica de uma realidade. N~o h| aqui, pois, a intenç~o de produzir um ‘mega relato’ sobre as atuais estruturas e estratégias sistem|ticas e prescritivas da indústria cultural. O intento limita-se à tentativa de compreender algumas das novas formas de difusão da música enquanto bem imaterial e sua relativa relação com a ascensão de artistas autônomos. Dito isto, prosseguir-se-á com a análise das novas características da indústria fonográfica, focando-se na NPI.
A Indústria fonográfica em tempos de ciberespaço
A Revolução das Tecnologias de Informação que ocorreu nas últimas décadas do século XX proveu mudanças significativas no modo de produção
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capitalista, intensificando o comércio mundial e provocando alterações nos modos de produção e difusão da cultura (CASTELLS, 1999). Mais do que nunca, hoje vivemos em rede. Especificamente tomando o mercado musical, o fato é que as gravadoras independentes existem no Brasil há algumas décadas. Muitas delas tinham contratos com gravadoras tradicionais nas décadas de 1980 e 1990 e faziam parte do esquema de produção das grandes gravadoras, visto que estas terceirizavam alguns dos seus serviços que envolviam a produção dos fonogramas. Na visão de Castells (2003) isso já caracterizaria uma produção em rede. Com o crescente desenvolvimento entre as décadas de 1970 e 1990 da rede mundial de computadores e, consequentemente, com a potencialização do acesso à Internet (que chega para o público em geral em 19951), a cultura virtual – ou Cibercultura (LÉVY, 1999) – ganha maior relevo na vida do homem contemporâneo. A sociedade em rede agora estava provida de uma infraestrutura técnica jamais vista antes. A Internet surge, pois, como novo palco de atuação do homem: seja na dimensão dos negócios, seja na dimensão dos bens culturais, ela passa a ser a nova rede de inter-relações. O acesso à Internet, que teve sua popularização no Brasil iniciada nos anos 2000, trouxe consigo mudanças que afetaram profundamente o negócio da música. Dentre elas, pode-se destacar a facilidade de realizar o download das músicas. Também se pode afirmar que a queda na venda dos fonogramas está entre as mudanças que mais afetaram a indústria fonográfica tradicional na virada do século XX. Esse acontecimento parece ter sido o primeiro a ameaçar o monopólio das majors. O CD pirata (produzido à margem da legalidade jurídica) teria desencadeado uma série de mudanças na logística da produção musical. Diante destes desafios enfrentados pelas gravadoras tradicionais, poder-se-ia provocar se essa queda na venda dos fonogramas e o maior acesso à música (via Internet) estaria, assim, gerando menos comercialização de música. No entanto, o surgimento de outras estratégias de comercialização atesta a ingenuidade desta “As origens da Internet podem ser encontradas na Arpanet, uma rede de computadores montada pela Advanced Research Projects Agency (ARPA) em setembro de 1969. A ARPA foi formada em 1958 pelo Departamento de Defesa dos Estados Unidos com a missão de mobilizar recursos de pesquisa, particularmente do mundo universitário, com o objetivo de alcançar superioridade tecnológica militar em relação à União Soviética na esteira do lançamento do primeiro Sputnik em 1957” (CASTELLS, 2003, p 13). 1
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indagação. “As soluções que a grande indústria da música espera que tragam de volta os vultosos lucros do passado são as vendas online e os serviços que utilizam tecnologia streaming” (YÚDICE, 2011, p. 22). Fica claro, portanto, que embora as estratégias tenham mudado, abalando as bases do monopólio desfrutado pelos managers do entretenimento por décadas, ainda há certo domínio de mercado, visto que empresarialmente os atores sociais hegemônicos desenvolveram novas estratégias para se manterem de pé diante dos novos desafios. A supracitada indústria cultural muito tem sido analisada nos últimos tempos. Paralelo ao grande boom dos estudos que a rediscutem, é possível observar um crescimento notável de estudos na área de Sociologia da Música. Nas palavras de Timothy J. Dowd (2007, p. 1), “the sociology of music has enjoyed a notable boom during the final decade of the twentieth century and the early years of the twenty-first century”2. Entretanto, é necessário lembrar que na era da sociedade em rede (CASTELLS, 2003), um estudo de mercado como este não pode deixar de considerá-la como catalisador de mudanças. Ou, como disseram Albornoz e Gallego (2011, p. 104), embora seja “ainda complicado avaliar o crescimento da procura pela música ao vivo e pelos serviços musicais online, [...] qualquer análise sobre as transformações do mercado musical deve levar estes fatores em consideraç~o”. A atualidade desta discussão se evidencia nos muitos estudos que têm surgido sobre a tríade música, mercado e sociedade. Observa-se certo redimensionamento nas discussões, ou melhor, a divisão dá problemática em ‘subcampos’ específicos: música, cinema, novela, publicidade, games e etc. Logo, partindo somente do subcampo ‘música’ é possível destacar diversos estudos sobre a indústria cultural, a exemplo: Indústria cultural e forró eletrônico no RN (COSTA, 2012); A reconfiguração da indústria da música (HERSCHMANN; KISCHINHEVSKY, 2011); O Reggae no Maranhão: música, mídia e poder (BRASIL, 2011); Produção e consumo do reggae das radiolas em São Luís/MA: significados, simbolismos e aspectos mercadológicos (SANTOS, 2009); A Nova Produção Independente: Indústria Fonográfica brasileira e Novas Tecnologias da Informação e da Comunicação (DE MARCHI, 2006); Discutindo o papel da produção A Sociologia da Música tem desfrutado de um crescimento notável durante a última década do século XX e os primeiros anos do século XXI (tradução nossa). 2
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independente brasileira no mercado fonográfico em rede (DE MARCHI, 2011); Tecnobrega: o Pará reinventando o negócio da música (LEMOS; CASTRO, 2008); Economia “imaterial”, novas formas de concorrência e lógicas sociais n~o mercantis: uma análise dos sistemas de troca dos arquivos musicais (HERSCOVICI, 2007); O tecnobrega no contexto do capitalismo cognitivo: uma alternativa de negócio aberto no campo performático e sensorial (GABBAY, 2007); As estruturas sociais de um mercado aberto: o caso da música brega do Pará (FAVARETO; ABRAMOVAY; MAGALHÃES, 2007); Indústria cultural, cibercultura e música independente em Brasília: um estudo com as bandas ‘Amanita’ e ‘Feij~o de Bandido’ (COSTA; FARIAS, 2014); A Indústria Cultural na Contemporaneidade: uma introdução (FARIAS, 2015); Apontamentos sobre alguns dos novos negócios da música (YÚDICE, 2011); Novas formas de prescrição musical (PÉREZ, 2011); Setor da música... independente? Apontamentos sobre a trama empresarial espanhola (ALBORNOZ; GALLEGO, 2011); Apropriação de tecnologias e produção cultural: inovações em cenas musicais da região Norte (BANDEIRA; CASTRO, 2011); Wado, um ilustre desconhecido nos novos tempos da indústria musical (JANOTTI JR.; GONÇALVES; PIRES, 2011); dentre inúmeros outros estudos. Aqui está destacado apenas um pequeno recorte do já produzido. Uma ‘ressalva’ metodológica a ser destacada neste momento diz respeito { terminologia utilizada aqui. Esta pesquisa analisa o mercado musical de forma ‘dual’: por um lado, considera-se como indústria fonográfica tradicional toda gama de empresas que por décadas desfrutaram de certa hegemonia na produção e prescrição dos sucessos musicais: referir-se-á à estes sempre como majors, managers, mainstream; por outro, analisa-se principalmente a atitude indie (independente), podendo também ser referida como underground, fora do mainstream e etc. Nesse ínterim, a indústria cultural contemporânea se destaca principalmente pela mudança estrutural causada pelo advento da Web 2.0, bem como pela desmaterialização (digitalização) dos bens simbólicos e sua consequente distribuição em rede. Doravante é possível sonhar (mesmo que a possibilidade permaneça utópica) com o fim da hegemonia dos managers do entretenimento. Tornou-se possível, portanto, falar numa real descentralização da produção e distribuição dos bens simbólicos. Como disse De Marchi (2011, p. 151),
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“a digitalizaç~o dos fonogramas e sua desvinculaç~o dos suportes físicos d~o início, na verdade, a outra etapa [...]” de produç~o na indústria fonogr|fica. Para ele a indústria da música passou da sua fase propriamente industrial, caracterizada pela produção do fonograma físico (o disco de vinil, o K7 ou o CD/DVD), e ingressou na sua fase pós-industrial, caracterizada pela produção e distribuição imaterial em rede. Isso porque a desmaterialização da produção de fonogramas faz com que toda a estrutura industrial que caracterizava a fonografia perca sua razão de ser: o fonograma digital não é um bem que deva ser reproduzido em larga escala para recuperar os custos de produção, mas uma informação que precisa ser difundida, compartilhada, por redes de comunicação, a fim de que se valorize e, por conseguinte, cobresse [cobre-se] por seu acesso (DE MARCHI, 2011, p. 151-152).
Prontamente, é natural que a indústria fonográfica tradicional tenha encarado (inicialmente) com maus olhos essa nova dinâmica de distribuição em rede dos bens simbólicos. Falou-se até mesmo em uma suposta ‘crise’, decorrente da queda nas vendas dos CDs no período que vai de meados da década de 1990 até os dias atuais (DE MARCHI, 2006). No entanto, se por um lado essa suposta crise abalou o mercado das majors, por outro, suscitou novas estratégias de produção e comercialização que, claro, foram incorporadas (e desenvolvidas) em sua maioria primeiramente pelas indies. Mas pouco depois despertou os olhares das majors. Em seu escrito intitulado Novas formas de prescrição musical, Pérez (2011) aborda as mudanças proporcionadas ao meio musical pela Web 2.0. Esta, ele a define n~o como uma ‘tecnologia’ em si, mas sim como uma ‘atitude’. Conforme Pérez (2011, p. 52-53), [...] a Web 2.0 abarca características como interatividade, participação, intercâmbio, colaboração, redes sociais, bases de dados, usuário, plataforma. Realmente, passa-se de uma comunicação unidirecional e complexa à possibilidade de criar um espaço próprio e a realizar una interação, uma atuação mais participativa.
Outros pensadores também teorizaram sobre as mudanças trazidas pela popularização do acesso à Internet. Considerando que a Web 2.0 está inserida no conceito de Ciberespaço do filósofo tunisiano Pierre Lévy (1999), entendemos o
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quanto este teórico também cabe na lista dos ‘apologistas’ dessa rede interativa. Na tentativa de conceituar o ciberespaço, Lévy (1999, p. 198, grifo nosso) diz que: O ponto de partida fundamental é que o ciberespaço, conexão dos computadores do planeta e dispositivo de comunicação ao mesmo tempo coletivo e interativo, não é uma infraestrutura: é uma forma de usar as infraestruturas existentes e de explorar seus recursos por meio de uma inventividade distribuída e incessante que é indissociavelmente social e técnica [...] O nervo do ciberespaço não é o consumo de informações ou de serviços interativos, mas a participação em um processo social de inteligência coletiva.
Observa-se nas citações acima que tanto Lévy quanto Pérez veem essa nova conex~o como uma ‘atitude’, uma forma de ‘usar’ a técnica, mas n~o como a própria técnica. A guinada que a Internet operou na dinâmica das mídias faz dela um espaço bidirecional (ou multidirecional), mas não unidirecional. Por isso, não é possível caracterizá-la como ‘veículo de massa’, como a TV e o r|dio. “Enquanto as mídias de massa, desde a tipografia até a televisão, funcionavam a partir de um centro emissor para uma multiplicidade receptora na periferia, os novos meios de comunicação social interativos funcionam de muitos para muitos em um espaço descentralizado” (LÉVY, 2010, p. 13). Trocando em miúdos (como diz o jarg~o popular), enquanto antigamente se tinham mídias de ‘m~o única’ – com receptores supostamente passivos, hoje se têm mídias de ‘m~o dupla’ – com receptores ativos (atividade de múltiplas formas de recepção e decodificação do que se consome). Lemos esclarece a diferença: Na estrutura massiva do controle da emissão – a indústria cultural clássica – a informação flui de um polo controlado para as massas (os receptores). Com o surgimento e a expansão do ciberespaço, esse modelo est| sendo tensionado pela emergência de funções “pós-massivas”. Aqui a liberação da emissão não é apenas liberar a palavra no sentido de uma produção individual, mas colocar em marcha uma produção que se estabelece como circulação e conversação [...] O sistema pós-massivo permite a personalização, o debate não mediado, a conversação livre, a desterritorialização planetária (LEMOS, 2010, p. 26, grifo do autor).
Ressalta-se que, “diferente do que dizem os mais afoitos, o sistema de comunicaç~o de massa n~o vai acabar [...]” (LEMOS, 2010, p. 26). O que se tem testemunhado são mudanças de perspectivas proporcionadas pelo ciberespaço. Se
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antes se tinha um público-massa que era encharcado de tanta informação unidirecional, desprovida de conversação; hoje, tem-se um público (‘massa’ ou n~o, não cabe aqui questionar) que tem nas mãos ferramentas de conversação multidirecionais, como as redes sociais do ciberespaço. Vale ressaltar, a característica basilar da Web 2.0 (e do ciberespaço) é a ‘mudança de atitude’. “Web 2.0” é um termo criado em 2004 por Tim O’Reilly para diferenciar a primeira fase do desenvolvimento do ciberespaço, onde as páginas na Internet eram mais estáticas, para a fase atual, onde diversas ferramentas e novas funcionalidades foram adicionadas aos websites, fazendo-os mais abertos e participativos (LEMOS; LÉVY, 2010, p. 38, grifo dos autores). As aplicações vinculadas à Web 2.0 são as seguintes: blogs; fotologs; redes sociais (Myspace e Facebook); redes sociais mais voltadas para a música (Last.fm); lugares de recomendação (Pandora Music, Podcast); serviços musicais via streaming (Spotify); redes de intercâmbio de arquivos P2P; e fóruns” (PÉREZ, 2011, p. 53).
Pérez (2011) vê a Web 2.0, sobretudo, como uma ‘mudança de atitude’. Lemos e Lévy (2010) veem o ciberespaço como ‘liberaç~o da palavra’. O resultado imediato dessa nova mídia é a maior participação do consumidor/internauta no negócio da música. Se antes os grandes managers da indústria cultural prescreviam hegemonicamente o gosto musical, hoje se percebe uma suposta descentralização da produção e promoção de determinados hits. O que se ouve nas grandes rádios e na TV não corresponde necessariamente ao gosto dos consumidores (YÚDICE, 2011). Este tipo de assédio já não tem a mesma eficiência de outrora (se é que já teve este tão sonhado poder!). Otimismos à parte! Reconhecer que a mudança de atitude característica do ciberespaço tem sido fator relevante para que os independentes concorram com as gravadoras tradicionais, é justo; entretanto, permanece alguma hegemonia, pois mesmo quando bandas ascendem através das novas ferramentas da Web 2.0, a tendência é fecharem contratos com gravadoras tradicionais, integrando-se, dessa forma, ao catálogo das majors. Pérez esclarece na citação abaixo quando diz que: Já durante os anos de 1980, bandas como U2 ou REM cruzaram a linha que separava os fãs mais underground que escutavam as “college radios” para se transformarem em fenômenos de massa assimilados pela cultura
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mainstream. Ainda nos anos de 1990, formações como Nirvana, Pearl Jam ou Red Hot Chili Peppers também cruzaram essa barreira, e foi então que os grandes selos começaram a perceber o poder destas mídias não tradicionais (PÉREZ, 2011, p. 51, grifos do autor).
Embora existam hoje diversas ferramentas que proporcionam uma concorrência mais justa das indies frente às majors, o que se tem testemunhado comumente é a assimilação de alguns independentes pelas gravadoras tradicionais. No Brasil, por exemplo, tem-se no próprio reggae a banda brasiliense Natiruts, que despertou interesse da gravadora EMI (adquirida pela Sony Music) somente após já ter se consolidado no mercado musical com o disco Raçaman, gravado pela Unimar Music. Houve, portanto, o reconhecimento do potencial das indies pelas majors. As novas tecnologias, assimiladas mais rapidamente por artistas independentes, configuram-se como novos desafios às majors. Entretanto, como observou Pérez (2011, p. 51), a mídia tradicional “[...] percebeu a forte concorrência que são os reprodutores de MP3, que possibilita à audiência formar sua própria cultura musical sem atender às prescrições da rádio comercial ou das televisões tipicamente musicais”, e dessa forma elaborou novas estratégias de atuação ante ao novíssimo mercado musical digital ascendente. Se antes a prescriç~o dos gostos musicais se dava hipoteticamente ‘de cima para baixo’, agora ela acontece (ou tenta!) de todos os lados; e não se deve esquecer, todavia, que o ouvinte agora caminha mais ‘livremente’ pelos aplicativos da Web 2.0, e isso permite que bandas e artistas antes abafados pela tradicional indústria cultural ganhem espaço nesse concorrido mercado independente. Por conseguinte, esse ‘novo’ espaço favorece uma multiplicidade de novos atores sociais nos mercados musicais, impactando no surgimento de novos e diversificados artistas, bem como, na dinamização, fragmentação e complexificação dos públicos ouvintes. [...] se o rádio ocupou um papel central no cenário musical, atualmente cabe à Web 2.0 aportar outras ferramentas que permitam ao ouvinte romper as hierarquias e entrar no mundo da prescrição musical. Já comentamos também sobre o podcasting, que permite ao usuário da Internet fazer seus programas de rádio em casa, difundindo mundialmente a música que mais lhe interessa (PÉREZ, 2011, p. 55, grifo do autor).
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A citaç~o acima é ilustrativa de ‘um’ dos ‘muitos’ aplicativos da Web 2.0, o podcasting. Essa ferramenta permite não somente que bandas e artistas criem programas de rádio que podem ser ouvidos off-line (após o download), mas também que indivíduos criem listas de músicas preferidas e compartilhem na rede. Além do podcasting existem diversos aplicativos/ferramentas que servem para ampliar o acesso à música. Atualmente, é possível observar a crescente cultura musical até mesmo no Facebook, à medida que muitos dos aplicativos para sistemas Android, IOS e Windows Phone possibilitam aos seus portadores compartilharem em redes sociais informações sobre as músicas que estão ouvindo. Hoje já é possível acessar muitos portais brasileiros de música online que proporcionam o consumo via streaming; entre eles: Som13, GaragemMp3, SomBrasil (pioneiro no país), PlanetaMúsicas, Vagalume, PalcoMp3. Há no Brasil também a presença de sites internacionais especializados nesse tipo de distribuição de música, a exemplo dos maiores do mundo: iTunes, Spotify, Rdio, SoundCloud, Last.Fm, entre outros. A comercialização de música via streaming tem se tornado uma tendência mundial, e, diferente do que se poderia imaginar, apesar de ter surgido como estratégia das indies tem sido utilizado e adquirido pelas majors. A prova de que a indústria cultural tradicional tem absorvido certas tendências dos independentes é a Last.Fm3 ter se tornado “[...] propriedade da CBS [Columbia Broadcasting System] desde maio de 2007” (PÉREZ, 2011, p. 56). Concluindo a ilustraç~o, o YouTube, pioneiro em distribuição de músicas e vídeos de forma gratuita, responsável por promover milhares de indies, recentemente resolveu trabalhar com a estratégia de comercialização streaming, ameaçando bloquear os vídeos dos independentes que não fechassem acordos com o site. A atitude foi criticada pela organização que representa os indies no Brasil4.
Ver também Yúdice (2011, p. 44): “Tanto a Last.fm quanto o Facebook são o tipo de plataforma que faz negócios com grandes empresas. Na realidade, o Last.fm foi adquirido pela CBS e o Youtube, pelo Google.” Ver em: <http://oglobo.globo.com/cultura/selos-independentes-criticam-youtube-por-acoesindefensaveis-em-novo-servico-de-streaming-12584553>. Acesso em 08 dez. 2014. 4 Ver em: <http://oglobo.globo.com/cultura/selos-independentes-criticam-youtube-por-acoesindefensaveis-em-novo-servico-de-streaming-12584553>. Acesso em 08 dez 2014. 3
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Com o que foi exposto ficou claro que, pelo menos, a Internet tornou-se a nova rede de produção-distribuição-consumo da música. Ela “[...] passou a ser a base tecnológica para a forma organizacional da Era da Informaç~o: a rede”. Portanto, em um mundo onde as “atividades econômicas, sociais, políticas, e culturais [...] est~o sendo estruturadas pela Internet e em torno dela” (CASTELLS, 2003, p. 8), é indispensável a sua compressão na tentativa de teorizar sobre os novos mercados musicais. Vale ainda lembrar que, embora a Internet tenha possibilitado múltiplas formas de distribuição em rede da música, isso não significa o fim dos intermedi|rios. Como disseram Herschmann e Kischinhevsky (2011, p. 10), “correse [ainda] o risco de concentração empresarial sem precedentes no mercado da música, devido à ascensão de novos intermediários que selam parcerias milionárias com as majors [...]”. Para o entendimento das muitas tendências acima apontadas, a seguir será exposto um breve estudo de caso com um artista fortalezense que faz uso das novas tecnologias para promover sua carreira no mercado musical. Certamente se perceberá que ele é exemplo concreto da célebre afirmação de Castells (2003, p. 78): “talento é a chave da produç~o em negócios eletrônicos”. ‘Talento’ aqui é aplicado no sentido de ‘fazer bom uso das redes como meio de negócios’, ou seja, sua capacidade de articulação ante ao mercado musical virtual. No mais, se apreenderá que a utilização da rede, juntamente com o capital social do artista, tem sido diferencial estratégico de sua promoção, concomitantemente ao seu capital cultural no cenário do reggae nacional e internacional. Mostrar-se-á que, Andread Jó, apesar de ser produto global dessas novas estruturas sociais dos mercados musicais independentes, é também um fenômeno local detentor de capital cultural articulador de seu público ouvinte. Estruturado e estruturante, para usar a terminologia de Pierre Bourdieu, Andread Jó tem reafirmado seu capital simbólico enquanto artista independente de Reggae na capital do Ceará.
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Andread Jó: outsider e underground (?!)
O desafio aqui é pensar na indústria fonográfica diante de uma situação mais que paradoxal: se por um lado vivencia-se – nos últimos anos – o encolhimento exponencial da venda dos fonogramas (CDs), que por muito tempo foi o ‘carro chefe’ da indústria fonogr|fica tradicional, sendo esta sua maior fonte de renda; por outro, observa-se o surgimento de novas estratégias de comercialização que passaram a reconfigurar toda a lógica da atual indústria fonográfica. É mister observar que o maior uso da Internet, agora como Web 2.0, caracteriza-se como elemento-chave dessa nova indústria cultural. Como bem observou George Yúdice (2011, p. 20), [...] vale a pena destacar que quase todos os comentários nas matérias dos jornais e ainda nos estudos de mercado divulgados enfatizam especialmente o encolhimento do mercado tradicional (venda de CDs) e ressaltam que o grande desafio é o intercâmbio de fonogramas na Internet (chamado de pirataria pela grande indústria da mídia tradicional).
Por conseguinte, o presente estudo pretendeu, no primeiro momento já colocado nas páginas anteriores, visualizar uma resumida parte da literatura produzida sobre a Nova Produção Independente – NPI, caracterizada, essencialmente, pela oportunidade de expansão comercial suscitada pelo advento das novas estratégias de produção, divulgação e comercialização da música via Internet. Neste segundo momento, o intuito será apresentar um estudo de caso realizado com o cantor e compositor cearense Andread Jó. Pretende-se agora, portanto, analisar uma dimensão (uma dentre outras existentes) do mercado musical independente de reggae em Fortaleza/CE, a fim de compreender uma cena quase isolada que, acredita-se, poder ser considerada (de certa forma) como outsider. Para além disso, esta cena é também underground. Esses termos se referem à um artista que além de autônomo/independente, representa um gênero pouco explorado comercialmente na capital cearense (se comparado ao forró eletrônico, gênero musical, a priori, dominante).
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André Augusto Apoliano, 35 anos, nome artístico Andread Jó, nasceu em Fortaleza/CE no dia 22 de abril de 1979. É compositor, cantor e guitarrista. Seu último álbum, lançado em 2012, chama-se Andread Jó Sings Bob Marley. Atualmente o artista encontra-se produzindo o quarto disco da carreira solo. Começou na música profissionalmente aos dezessete anos. Hoje soma quase dezoito anos de mercado. A princípio participou de outros projetos. Em um deles, o Projeto Roots, o artista cantava blues e reggae. Ao falar deste projeto Andread (2014) releva: “[...] era eu e um amigo inicialmente, tocando guitarra e cantando; um pouco de gaita, depois nós colocamos ‘baixo’ e bateria, e o repertório era esse: blues e reggae, blues e reggae... até o ponto em que eu cheguei [...] a ficar só na música reggae, que foi quando surgiu a Donaleda [primeira banda]”. Blues e Reggae são gêneros musicais de origem negra. Essa característica em comum revela o gosto peculiar do Andread, que sempre valorizou a música negra por sua capacidade de denúncia de certas desigualdades e também por ser utilizada como forma de ‘lamento’ (ANDREAD, 2014). Reitera que começou a curtir o reggae n~o somente pela sonoridade, mas pela mensagem, e afirma: “[...] todas as músicas que eu curto, assim – boa parte delas, no caso – a que eu trabalho, principalmente é voltado pra questão da mensagem” (ANDREAD, 2014). Andread iniciou no mercado do reggae com um projeto em que tocava apenas músicas do Bob Marley, por ser este um artista que todos na banda – na época – j| ‘curtiam’. No começo, afirma: “[...] a gente tentou fazer um repertório bem grande, eu cheguei a decorar mais de cinquenta músicas/letras do Bob Marley” (ANDREAD, 2014). Do contato com as letras do ‘rei’ do reggae surgiu a necessidade também de dizer ‘alguma coisa’ (ANDREAD, 2014). Foi ent~o que, juntamente com alguns integrantes do grupo, começaram a brotar as primeiras composições. Andread Jó (2014) afirma que, nesse momento inicial, “[...] foi fundamental a música de Bob Marley nesse processo de composiç~o”. Após o contato com os grandes nomes do reggae, mais especialmente Bob Marley, Andread (2014) fala do sucesso da sua primeira composição. A primeira banda que toquei foi a Donaleda, em 2001, e a primeira música que a gente escreveu foi uma música minha ‘né’! Letra e música minha que chama Luz de Jah, e... por incrível que pareça, foi a música
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mais vendida até hoje, tanto na Donaleda quanto na minha carreira solo... Essa música chegou a ficar em primeiro lugar na rádio mais ouvida de Fortaleza durante mais de três meses, até com as nacionais e internacionais. Então, assim... foi um lance muito legal, a gente começou bem, muito bem.
Vivendo especificamente da música, Andread (2014) revela que seu último emprego de carteira assinada (leia-se formal) foi quando tinha dezoito anos. De lá pra cá, quando percebeu que o que ganhava como músico já se igualava ao salário que recebia na empresa onde trabalhava, largou o trabalho e passou a se dedicar somente { carreira artística. Assim complementa: “[...] porque era isso que eu queria [...] Eu já tinha feito faculdade de letras, não cheguei a me formar, porque nesse ínterim que eu comecei a tocar na Donaleda, logo [...], foi uma coisa muito rápida, a gente mal lançou o disco e já surgiu turnê no Norte e Nordeste [...]. Eu acabei tendo que trancar em funç~o da música”. Daí em diante: [...] a música ela sempre foi minha fonte de renda, tive altos e baixos, tenho altos e baixos, acho que viver de música não é fácil, ainda mais num país onde as pessoas não valorizam a cultura, onde não existe uma cultura de ajudar o artista, comprando disco, participando de outras coisas que possam trazer um ‘soldo’ [leia-se lucro] pro artista poder sobreviver, lançar disco, gravar DVD, e ‘tal’... Ent~o, é uma parada muito complicada! [...] E a gente tem que ‘se virar’, juntar dinheiro de caixinha de shows ‘pra’ produzir um disco, lançar o disco, e o disco vira o cart~o de visitas do músico, tanto disco quanto a música, é o cartão de visitas. O show é onde você vai começar a receber sua renda, tirar o seu sustento (ANDREAD, 2014).
Por ter cursado a faculdade de Letras (com habilitação em inglês e português), Andread Jó afirma ter se aprofundado no estudo de línguas estrangeiras, interesse que já tinha quando criança. Hoje, fala inglês, francês e espanhol, o que revela parte do capital cultural que o habilitou a se inserir na cena musical de artistas internacionais consagrados. O artista revela certa visão empreendedora ao vislumbrar o mercado internacional, o que se evidencia não somente no fato de ter estudado outras línguas, mas também por ter gravado músicas com trechos em espanhol, a exemplo de uma faixa chamada Capitalismo Selvagem (do álbum We Are One), e muitas outras faixas em inglês, inclusive, tendo lançado em 2012 um disco completamente gravado em língua inglesa – Andread Jó Sings Bob Marley – em que canta as músicas
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do chamado rei do reggae. Essas características proporcionaram ao músico a entrada no mercado europeu, tendo feito sua primeira turnê no exterior em 2006, ano em que ficou quase dois meses e meio na França. Esta passagem pelo cenário europeu amplia seu capital cultural5 e, de quebra, reforça seu capital social 6 e seu capital simbólico (prestígio). Andread (2015b) revela que sua porta de entrada no continente europeu foi o Movimento Capoeira Brasil, através da pessoa do Mestre Cibriba, seu professor de capoeira quando tinha quinze anos. Depois de um tempo morando na França Cibriba voltara à Fortaleza a passeio e na ocasião assiste um show do Andread na Boate Órbita. Daí surge o convite para ir tocar na França. Dois anos depois, “após ser convidado pela Cufa, Central Única das Favelas, Andread Jó volta a Europa em 2008” (ANDREAD, 2015), desta vez indo para a Suécia, onde foi tradutor e testemunha do trabalho desenvolvido pela Cufa no Brasil, nos eventos de grande importância como o The National Cuncil of Swedish Youth Organizations, “[...] discutindo com lideranças juvenis de v|rios países a quest~o da mudança clim|tica” (ANDREAD, 2015). Participou também de seminários nas cidades de Estocolmo e Uppsala, abordando as dificuldades e desafios dos jovens que habitam nas favelas brasileiras. Novamente destacando,
Para Bourdieu (2007, p. 74-78), o capital cultural existe em três estados: incorporado, objetivado e institucionalizado. O estado incorporado nos mostra que a acumulação de capital cultural exige, por parte do indivíduo, uma incorporação que pressupõe um trabalho de inculcação e de assimilação, um tempo que deve ser investido pessoalmente pelo sujeito, um trabalho de aquisição do sujeito sobre si mesmo. Sintetizando: um investimento paciente e árduo no mundo das economias simbólicas. O estado objetivado, por sua vez, expressa “o capital cultural objetivado em suportes materiais, tais como escritos, pinturas, monumentos etc.”. Diferente do estado incorporado que é intransferível, o estado objetivado é transmissível em sua materialidade, ou seja, a possessão dos instrumentos que permitem desfrutar de um quadro ou utilizar uma máquina. Por fim, o estado institucionalizado representa a certificaç~o (“escolar”) dos estados anteriores. 5 Segundo Bourdieu (2007, p. 67), o “capital social é o conjunto de recursos atuais ou potenciais que estão ligados à posse de uma rede durável de relações mais ou menos institucionalizadas de interconhecimento e de inter-reconhecimento ou, em outros termos, à vinculação a um grupo, como conjunto de agentes que não somente são dotados de propriedades comuns (passíveis de serem percebidas pelo observador, pelos outros ou por eles mesmos), mas também são unidos por ligações permanentes e úteis”. 6 Segundo Bourdieu (2007, p. 67), o “capital social é o conjunto de recursos atuais ou potenciais que estão ligados à posse de uma rede durável de relações mais ou menos institucionalizadas de interconhecimento e de inter-reconhecimento ou, em outros termos, à vinculação a um grupo, como conjunto de agentes que não somente são dotados de propriedades comuns (passíveis de serem percebidas pelo observador, pelos outros ou por eles mesmos), mas também são unidos por ligações permanentes e úteis”. 5
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em termos relacionais, o capital social do artista em questão o inseriu em espaços sociais bem mais amplos que o mercado do reggae nordestino. Sempre como artista independente, Andread Jó gravou dois discos com a banda Donaleda, e três discos em sua carreira solo. No momento encontra-se produzindo seu quarto disco solo (sexto como músico profissional), que será seu primeiro CD/DVD ao vivo. Em ordem cronológica, seu primeiro álbum, Liberdade e Libertação, foi lançado no ano de 2003, com a banda Donaleda; em 2005 Andread Jó lança seu primeiro disco solo, Força; em 2008, We Are One, “[...] recebido pela crítica especializada com grande respeito” (ANDREAD, 2015); também em 2008, Tudo tens de rever, novamente com Donaleda; em 2012 lança Andread Jó Sings Bob Marley, “[...] tornando-se o terceiro7 brasileiro a conseguir autorização oficial da família Marley para gravar um disco com canções do rei” (ANDREAD, 2015). Ressalta-se, todos estes fonogramas foram produzidos como artista independente e em gravadoras independentes. Ao ser questionado sobre a produção dos discos acima listados, Andread Jó (2014) respondeu: Todos esses discos foram gravados no mesmo estúdio, com o mesmo cara, que é um cara que eu comecei a trabalhar desde o primeiro disco, que é o Moises Veloso; e... o processo ele é um processo um pouco complexo porque tudo é gravado de forma separada. A banda se reúne pra tocar uma música e é gravado primeiro a bateria, depois coloca-se só o baixo, a guitarra, os teclados... ‘bl| bl| bl|’... e, nos ‘finalmentes’, o vocal principal e depois os back vocals. E o processo pra gente concluir esse disco e prensá-lo, foi exatamente como eu disse anteriormente, a gente juntou granas de shows, pagou o estúdio, todos os músicos foram gravar, é claro! Faziam parte do projeto – tanto na minha carreira com a Donaleda, quanto na minha carreira solo, eu acho que só tive que pagar músicos ‘pra’ gravar metais (que é sax, trombone e trompete). [...] No nosso meio artístico não existem muitos músicos de sopro que são do reggae de fato, então, eles são artistas, músicos contratados, que não interessa qual estilo eles vão tocar, eles querem receber a grana deles e pronto! Já os demais integrantes não! Conhecem a minha história, e ‘tal’... Alguns chegam a dar até desconto (desses ‘caras’ dos metais) por saber que é música reggae, que é independente, e ‘tal’... que n~o tem muita grana, e ‘bl| bl| bl|’ – mas o processo é assim, funciona dessa forma!
Os outros dois foram, respectivamente, Tribo de Jah e Gilberto Gil (ANDREAD, 2015). Vale salientar que, muitos artistas e bandas gravaram o Bob Marley no Brasil, contudo, sem autorização oficial da gravadora e da família do ‘Rei do Reggae’. 7
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Observa-se na passagem acima que todos os custos de produção e gravação dos discos são do próprio artista, não havendo investimentos de empresários ou produtoras. Andread Jó revela também a utilização de estúdios alugados e de músicos freelancer (no caso, os metais); entretanto, parece haver nessas relações de produç~o certo tipo de ‘camaradagem’, característica da música independente, o que reduz determinados custos envolvidos no processo de produção. Fora do mainstream musical as relações de produção são, na maioria dos casos, informais, havendo muitas vezes ‘trocas de favores’: músico ‘x’ grava mais barato para banda ‘y’ por esta ser independente; banda ‘y’ se predispõe a ajudar banda ‘x’ na produção de um álbum em troca de futuros favores, como abertura de shows e etc. É interessante observar também o quanto a gravação digital facilitou a cópia dos fonogramas. É certo que a reprodutibilidade (informal) já era utilizada desde a época das fitas K7. No entanto, como o custo da reprodução era consideravelmente elevado (se comparado ao de hoje), reproduzia-se em quantidade limitada. Hoje, como o custo médio do chamado ‘CD virgem’ e de um gravador de CD/DVD são consideravelmente baixos (sem contar que a qualidade material da cópia é praticamente a mesma da mídia original), os músicos independentes – mesmo terceirizando o estúdio de gravação – podem, na posse de um simples microcomputador, reproduzir os seus trabalhos e distribuir para o público. Não se pode esquecer que o próprio CD vem sendo substituído pelo hábito de fazer o download das músicas via internet e coloca-las em um pen drive, o que dinamiza o consumo e torna a produção menos onerosa para o artista. Favareto, Abramovay e Magalhães (2007) afirmam que as tecnologias dos Long Players (LPs), bem como das fitas K7, possibilitaram nos anos 1960 a formação de mercados musicais de amplo alcance. O grande problema era que os investimentos estruturais eram muito altos e, por isso, os mercados se estruturavam de forma muito concentrada em torno de um pequeno número de gravadoras que possuíam condição suficiente para adquirir equipamentos técnicos de alto custo. Como disseram Costa e Farias (2014, p. 11), Com o lançamento do Compact Disc (CD), que chegou ao mercado mundial em 1983 e passou a ser popularizado no Brasil nos anos 1990, e com o posterior desenvolvimento de mecanismos de regravação
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independente (pirataria), iniciou-se a possibilidade de descentralização do mercado fonogr|fico [...] Logo, o denominado ‘CD pirata’ (produzido { margem das estruturas legais) possibilitou algo que o ‘CD original’ (legal) já estava lentamente implementando: o crescimento de gêneros musicais antes abafados pela concentração do mercado musical nas mãos de poucas e grandes empresas. Juntamente com o CD pirata – reproduzido sem a permissão dos selos formais –, o surgimento e o crescimento de produções musicais independentes também contribuíram para a desconcentração dos mercados musicais populares.
Andread Jó é exemplo do crescimento local de um gênero musical (neste caso, o reggae) frente a um mercado fortemente lucrativo e consolidado. Trata-se do forró eletrônico, gênero mais comercial na cidade de Fortaleza/CE, fato que lhe concede o título de capital brasileira do forró. Vale lembrar que o forró cearense não exerce monopólio somente em seu estado, mas também nos estados do Rio Grande do Norte e da Paraíba. As maiores bandas de forró eletrônico hoje, no Brasil, são cearenses. Desta forma, estudos revelam que o mercado informal (fora do mainstream musical) vem proporcionando o crescimento exponencial de estilos antes ‘abafados’ pelas gravadoras tradicionais, como o forró eletrônico no Rio Grande do Norte (COSTA, 2012), o tecnobrega no Pará (LEMOS; CASTRO, 2008), o chamado ‘reggae das radiolas’ no Maranh~o (SANTOS, 2009), entre outros, como o ‘axé Bahia’, o gospel e até mesmo o sertanejo universit|rio, que atraiu nos últimos tempos os investimentos massivos da grande indústria cultural brasileira. Andread Jó também é exemplo de que as produções independentes tiveram e têm tido um papel fundamental na criação e na estruturação de novos grupos musicais, sobretudo aqueles mais distanciados dos mercados mais consolidados em determinadas regiões. É preciso reafirmar que a consequente crescente divulgação de músicas pela internet foi e está sendo um dos maiores vetores dessa superexposição musical (COSTA, 2012), como se pôde confirmar neste estudo sobre o mercado musical do Andread Jó. Observa-se que o artista se utiliza de múltiplas estratégias de divulgação via Internet, dentre as quais, pode-se destacar a disponibilização de todas as suas músicas de forma gratuita em sites e aplicativos via streaming, além de possuir um site próprio, onde é possível ouvir e baixar todas as suas músicas.
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Retomando a an|lise da entrevista, ao ser questionado sobre a ‘pirataria’, Andread Jó (2014) revelou a seguinte concepç~o: “[...] eu sou a favor da divulgaç~o gratuita das músicas, porque eu entendo que a melhor forma de – no meu caso, do reggae, como ele tem um propósito – a melhor forma ‘da’ mensagem chegar até o povo, ela tem que ser de forma gratuita”. Vê-se, sobretudo, que neste ponto específico Andread não é exceção, ou seja, ele segue a lógica dos novos mercados musicais, ou melhor, da Nova Produção Independente – NPI. Essa NPI inicialmente operava com grande amadorismo. Passados anos, hoje ela conta com certa experiência, somada à facilidade do acesso a equipamentos de gravação e reprodução. Desta forma, ultimamente ela tem buscado maior autonomia e procura evitar parcerias desfavoráveis com as majors. Na visão de De Marchi (2006, p. 8), a princípio a reconfiguração do mercado fonográfico (início do século XXI) suscitou por um lado o sentimento de ‘crise’ dentro do mainstream musical; por outro, gerou expectativas positivas para a NPI, que passava a ser vista naquele momento como o ‘futuro da música brasileira’. Tomando como mira a desgastada quest~o das ‘parcerias desfavor|veis’ entre músicos e produtoras, a citação abaixo é deveras útil para se entender como Andread vê hoje as gravadoras tradicionais. Na ocasião, ao ser levantada a hipótese sobre um possível convite de uma gravadora tradicional, perguntou-se ao entrevistado se ele aceitara. Assim se manifestou: Em 2004 eu recebi o convite da Som Livre, da Globo, e eu não assinei o contrato! Eu não assinei porque algumas cláusulas não ficaram claras, como, por exemplo, a data de lançamento do disco, e alguns outros quesitos. As gravadoras, elas às vezes elas trabalham de uma forma suja. Elas pegam um artista que está com um potencial, independente, ele já tem um produto com eles, que eles querem vender, e eles compram o trabalho daquele artista só pra poder botar na prateleira, e não atrapalhar o produto deles, que eles querem lançar. Então, é um lance muito complicado e sujo, esse mercado de gravadoras. Eu assinaria com uma gravadora se fosse num âmbito internacional, pra mim interessaria. Pro Brasil, não me interessaria! Até porque, aqui, esse trabalho é muito sujo! É uma coisa muito suja! E, eu assinaria, na condição de ter um prazo ‘pra’ lançamento do meu disco, ‘né’! Pra eles não terem poderes sobre a minha música, como no caso... como... quando no caso, você assina por uma gravadora, você assina por uma obra, por um disco, então eles ficam com o poder sobre esse seu disco durante um certo período. O da Som Livre eram cinco anos. Então, imagina você não poder prensar nenhum disco sem a autorização da tua gravadora. Isso é ridículo! Uma música que você escreveu, um produto que você criou, ‘né’! Que é um ‘lance teu’.
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Ficar preso na mão do outro por causa de um contrato, e por causa de um valor irrisório de dinheiro.
Logo, o desinteresse em fechar acordo com uma gravadora tradicional, somado à relativa autonomia (proporcionada pela experiência musical de dezoito anos de mercado), a facilidade de gravação e promoção via ciberespaço, e, sobretudo, capital social, oferecem condições para este artista sustentar-se nos mercados abertos (‘open business’). Segundo Lemos e Castro (2008, p. 21, grifo nosso), De forma resumida e simplificada, pode-se dizer que negócios abertos são aqueles que envolvem criação e disseminação de obras artísticas e intelectuais em regimes flexíveis ou livres de gestão de direitos autorais. Nesses regimes, a propriedade intelectual não é um fator relevante para sustentabilidade da obra. No open business a geração de receita independe dos direitos autorais. Entre as principais características desse modelo, estão a sustentabilidade econômica; a flexibilização dos direitos de propriedade intelectual; a horizontalização da produção, em geral, feita em rede; a ampliação do acesso à cultura; a contribuição da tecnologia para a ampliação desse acesso; e a redução de intermediários entre o artista e o público.
Retomando a quest~o da ‘pirataria’, ressalta-se que Andread revelou posicionamento ‘brando’ em relaç~o { reproduç~o dos seus fonogramas: “[...] se o cara quiser pegar meu disco e vender ‘pra’ ganhar o p~o dele, pra mim n~o tem problema nenhum, eu acho que ‘pra mim’ é até uma forma de divulgaç~o... ‘t| l|’, o cara chega lá no Centro [da cidade], tem uma barraquinha cheia de CD, e meu CD ‘t| l|’ no meio – como eu já vi em Fortaleza, e já vi em outros estados. Não me incomoda nenhum pouco!” (ANDREAD, 2014). Apesar de divergir em relação à flexibilização dos direitos autorais (como ficará evidente mais adiante), Andread Jó (2014) revela utilizar-se de estratégias características dos ‘mercados abertos’. Em pergunta feita sobre pirataria ele revela: [...] de uma forma geral, eu sou adepto dessa forma de divulgação, eu acho que tem que ser gratuito mesmo, eu acho que o público tem que ter direito a esse acesso, ‘né’! ‘Pra’ conhecer. E aí o público vai julgar se é interessante ou n~o, se é bom ou n~o, ‘né’! E isso aí j| vai... j| é uma questão do público! Acho que cada artista tem que fazer o seu papel, que é investir no seu trabalho, colocar a música de todas as formas possíveis, e a pirataria é uma delas, não posso negar! Como já lhe
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disse, não sou contra! Agora, existem alguns pontos que me faz ser contra, e ‘foi’ os que eu falei aqui, alguns deles (ANDREAD, 2014, grifo nosso).
Pensar nos mercados musicais populares hoje é encarar conceitualmente duas mudanças relacionais que ocorreram e vêm se intensificando nas últimas décadas: maior acesso à crescente inovação tecnológica e flexibilização dos direitos autorais. É mister, pois, considerá-los como ‘mercados abertos’ (FAVARETO; ABRAMOVAY; MAGALHÃES, 2007), desenvolvidos sem rigidez nas regras formais do direito de propriedade e por sistemas de distribuição descentralizados, nos quais a produção é feita com custos reduzidos através do avanço tecnológico, e a comercialização é feita, em grande medida, via redes sociais. Portanto, o baixo custo de produção das músicas, a distribuição midiática em rede (no caso do Andread Jó, via Internet), e a redução de hierarquias organizacionais (ausência de contratos com as managers e intermediários) são fatores de estabilidade desses novos mercados musicais. Percebe-se, portanto, que as configurações dos mercados abertos tornam economicamente viável a distribuição gratuita das músicas. Ora, como a venda de CDs já não gera receita suficiente para os artistas sobreviverem,
estes
decidem
distribuí-los
gratuitamente
no
intuito
de
potencializar o acesso às suas músicas, vislumbrando, assim, um possível aumento de público nos shows. Sobre direitos autorais, Andread manifesta opini~o muito particular. “[...] sobre direitos autorais aí já é uma questão mais séria, porque envolve direito intelectual. Então, como compositor, [...] eu acho que todo artista tem esse direito. [...] A música do mesmo jeito [...]” (ANDREAD, 2014). Por ser cantor e compositor, o artista revela concepções – até certo ponto – distintas, no que diz respeito à reprodução do seu disco (pirataria) e a regravação de suas músicas. Ou seja, ele admite que seus discos sejam reproduzidos sem que lhe repassem nenhuma quantia, pois para ele isso serve também como forma de divulgação; no entanto, no caso de alguém regravar uma composição sua, ou de uma rádio transmitir suas músicas, ele diz ser direito seu cobrar (ou não) os direitos autorais.
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[...] a questão do direito autoral envolve uma questão muito simples. Primeiro, se ele for só tocar, ele pode tocar quantas músicas minhas ele quiser! Agora, se ele for gravar aí ele tem que pedir autorização! Eu nunca cobrei por nenhuma autorizaç~o ‘pra’ nenhum cara do Brasil que já quis gravar uma música minha, eu nunca cobrei um centavo! Já veio gente do Rio Grande do Sul, do Rio de Janeiro, de vários estados, gravaram músicas minhas; gente de igreja evangélica, eu libero ‘numa boa’! A quest~o é: a música continua sendo minha, se aquela banda – quantas vezes aquela música for tocada na rádio, os direitos do compositor vão cair pra mim – e ‘pra mim ta’ ótimo! É diferente você gravar, e é diferente você tocar ao vivo. São duas situações completamente diferentes. Diz respeito ao mercador musical, claro! (ANDREAD, 2014).
Embora Andread – como ficou claro em sua fala acima – acredite que a execução ao vivo de uma de suas músicas seja livre de qualquer tarifação por parte do executante, a Lei nº 9.610, de 19 de fevereiro de 19988, que “regula os direitos autorais, entendendo-se sob esta denominação os direitos de autor e os que lhes s~o conexos” é clara em seu Artigo 68, quando diz que “sem prévia e expressa autorização do autor ou titular, não poderão ser utilizadas obras teatrais, composições musicais ou lítero-musicais e fonogramas, em representações e execuções públicas”. Como bem afirma Costa (2012, p. 152, grifo nosso): [...] as artimanhas do mercado são amplas e a faculdade de eficácia da legislação é limitada frente aos imperativos das novas configurações e exigências dos mercados musicais abertos. Legalmente essas bandas não poderiam executar as músicas que não são de sua autoria sem a autorização prévia do titular do direito autoral (nem mesmo ao vivo) [...].
“Art. 68. Sem prévia e expressa autorização do autor ou titular, não poderão ser utilizadas obras teatrais, composições musicais ou lítero-musicais e fonogramas, em representações e execuções públicas”. “§ 2º Considera-se execução pública a utilização de composições musicais ou lítero-musicais, mediante a participação de artistas, remunerados ou não, ou a utilização de fonogramas e obras audiovisuais, em locais de freqüência coletiva, por quaisquer processos, inclusive a radiodifusão ou transmiss~o por qualquer modalidade, e a exibiç~o cinematogr|fica”. “§ 3º Consideram-se locais de freqüência coletiva os teatros, cinemas, salões de baile ou concertos, boates, bares, clubes ou associações de qualquer natureza, lojas, estabelecimentos comerciais e industriais, estádios, circos, feiras, restaurantes, hotéis, motéis, clínicas, hospitais, órgãos públicos da administração direta ou indireta, fundacionais e estatais, meios de transporte de passageiros terrestre, marítimo, fluvial ou aéreo, ou onde quer que se representem, executem ou transmitam obras liter|rias, artísticas ou científicas”. In: BRASIL. Lei nº 9.610, de 19 de fevereiro de 1998. Altera, atualiza e consolida a legislação sobre direitos autorais e dá outras providências. Presidência da República, Casa Civil, Subchefia para Assuntos Jurídicos. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/L9610.htm>. Acesso em 13 jan 2015. 8
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Observa-se, portanto, que no cerne dessa realidade estrutural da economia imaterial e das novas tecnologias digitais, o consumo musical se midiatiza digitalmente e/ou virtualmente. Logo, a mídia física durável (CD/DVD) e o direito de propriedade intelectual (direito autoral) deixam de ser determinantes para o sustento do músico interprete. Nas palavras de Costa (2012, p. 153): “[...] n~o é que o direito de propriedade inexista, tampouco que os agentes envolvidos não o reivindique. Apenas deve-se atentar que essa propriedade intelectual (autoral) não se torna um fator relevante para a sustentabilidade da banda” e/ou do artista. Sobre essa nova realidade comercial do mercado da música, disseram Costa e Farias (2014, p. 12): “deve-se destacar que não se trata apenas de uma determinação econômica pelas mãos da inovação tecnológica. Trata-se, também, de uma mudança na própria din}mica do consumo”. Portanto, os usos – e desusos – do consumidor também são condicionantes nessa nova fase da economia do entretenimento. E, como os artistas fora do mainstream est~o fazendo ‘bom uso’ das novas formas de consumo musical (isso se deve às suas configurações: baixos investimentos e relativa autonomia) é comum que passem a condicionar algumas tendências do mercado musical online. Por isso, é notável a efervescente (e predominante) participação desses indies em algumas plataformas digitais que não geram receita, como PalcoMp3, Som13 e outros. Ao ser questionado sobre quais meios (mídias) mais utiliza para a divulgaç~o dos trabalhos, Andread (2014) respondeu: “Bom, atualmente, a Internet ela é o melhor veículo de divulgação e disseminação [...] pra um artista. Eu acho que n~o só na música, como de outros meios”. Ora, hoje em dia “[...] a Internet incomoda muito mais a televis~o do que aquela própria briga entre os canais” (ANDREAD, 2014). Prontamente, [...] o maior meio de divulgação é a Internet, e através dela a gente consegue disseminar ‘pra’ v|rias pessoas, chegar ‘na’ m~o de contratantes, e ‘tal’; porém, o CD não deixou de ser, ainda, uma alternativa. Ele deixou de ser a primeira! ‘Né’! No caso... e a r|dio também, porque hoje j| existem muitas ‘web r|dios’, as r|dios de Internet, e, também, televisões da Internet. Então, todos esses meios eu participo! Porém, o que eu estou mais ativo, que é todos os dias, é a Internet! Porém, eu trabalho, em todos os Estados que eu vou, as cidades que eu vou, vou ‘em’ televis~o, vou ‘em’ r|dio, participo de tudo! Porém, ‘ao’ meu ver, pra um artista que vive da música independente, a Internet
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ainda é o ponta pé inicial e o que vai manter o ‘cara’ l| sendo visto, ‘né’! (ANDREAD, 2014).
“Como nossa pr|tica é baseada na comunicaç~o, e a Internet transforma o modo como nos comunicamos, nossas vidas são profundamente afetadas por essa nova tecnologia da comunicaç~o” (CASTELLS, 2003, p. 10). N~o é diferente com o mercado musical! A crescente participação das pessoas no ciberespaço transforma os bens simbólicos antes restritos a uma classe privilegiada em bens livres: surge aí a cibercultura. Para Martins (2012, p. 2), o ciberespaço deve ser “caracterizado como uma multimídia digital baseada nas TIC’s [Tecnologias da Informaç~o e Comunicaç~o] que converge textos, áudio e vídeo, [e] pode ser visto como um sistema de comunicação global e interativo”. Com a Revoluç~o Tecnológica da Informaç~o (CASTELLS, 1999), surge a cibercultura (LÉVY, 1999), podendo ser entendida como “[...] um novo modo de reprodutibilidade tecnológica do mundo simbólico, ou dos bens culturais” (MARTINS, 2012, p. 2). Todo esse processo alterou profundamente a dinâmica da produção-distribuição-consumo da música, visto que ela é também ‘informaç~o’. É comum, portanto, falar em (re)estruturaç~o do mercado musical. Retomando o estudo de caso com o Andread, este, além de possuir perfis em algumas redes sociais como Facebook, MySpace e Twitter (micro blog considerado como rede social), utiliza também como estratégia de divulgação os DJs, não apenas no Brasil como também no exterior. Esta estratégia de uso de DJs se assemelha ao reggae das radiolas em São Luís/MA, como observou Santos (2009), em que as novas produções (mixagens) são postas nas mãos dos DJs das grandes radiolas, pois eles (no caso de S~o Luís/MA) s~o os principais agentes da ‘produç~o do sucesso’. Algo semelhante acontece no tecnobrega paraense (FAVARETO; ABRAMOVAY; MAGALHÃES, 2007). Com as facilidades trazidas pelas novas tecnologias de gravação/regravação e pela consequente dinamização da distribuição das músicas via Internet, os artistas e bandas (fora do mainstream) desistiram de vender as mídias físicas. Já reconhecem que o CD n~o é um ‘fim’ de lucratividade, mas sim, apenas ‘meio’ de divulgação e permanência nos concorridos mercados musicais. Fica evidente que - 49 -
em tempos de digitalização (e virtualização) do patrimônio cultural “[...] o disco vira o cart~o de visitas do músico, tanto disco quanto a música” (ANDREAD, 2014). Como bem observou Yúdice no caso dos músicos peruanos: Os músicos ganham muito pouco com os fonogramas gravados (os preços dos CDs são muito baixos, cerca de 60 centavos de dólar) e os vários intermediários – produtor, copiador e o camelô/vendedor – ficam com quase todo o lucro; mas eles funcionam mais especificamente para a promoção do cardápio principal que são os concertos, onde propriamente os artistas realizam a maioria dos seus ganhos [...] Na ausência de selos fonográficos que forneçam serviços aos artistas, os músicos peruanos têm que fazer sua própria promoção. Para isso, eles procuram entrar nas redes de distribuição de CDs e DVDs, bem como disponibilizar seus vídeos no Youtube e Myspace (YÚDICE, 2011, p. 27, grifo nosso).
Decorrente dessa tendência de difusão das músicas em rede, via Internet, e da flexibilização dos direitos autorais, a fonte de renda das bandas e/ou artistas resume-se a praticamente a venda dos shows. Reafirmando com Andread (2014), “[...] o show é onde você vai começar a receber sua renda, tirar o seu sustento”. Entrementes, é possível de antemão compreender que, enquanto as majors vislumbravam na divulgação via rádio a venda física de discos (CD/DVD), que são (ou tentam resistir) os principais produtos das empresas do mainstream, os produtores e empresários das bandas independentes, bem como os artistas autônomos, escolheram os shows como recursos estruturais de vendas. Gabbay (2007) e Santos (2009) identificaram essa tendência – respectivamente – nos mercados do tecnobrega (Pará) e do reggae das radiolas (Maranhão). Perceberam nessas cenas que o mercado tinha se reestruturado e eleito a apresentação ao vivo (show) como principal produto comercial. Nesse cen|rio competitivo de luta por aceitaç~o, onde todos disputam ‘um lugar ao sol’, o mais vi|vel para os grupos e/ou artistas musicais é a aderência ao modelo de mercado marcadamente ‘aberto’. Portanto, o direito autoral torna-se ‘carta sem valor’. Ele até existe, mas n~o é reivindicado por n~o ser mais o principal ‘meio’ de sustento do músico. Andread (2014) esclarece: “Eu nunca cobrei por nenhuma autorizaç~o ‘pra’ nenhum cara do Brasil que j| quis gravar uma música minha, eu nunca cobrei um centavo!”.
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O mercado independente mostra-se ascendente por seus integrantes terem expressado entendimento, habilidade e capacidade de adaptação aos novos padrões de produção e consumo da indústria do entretenimento musical. Andread Jó é um exemplo concreto desta destreza. É produto da NPI, mas também produtor de seu capital simbólico. É necessário lembrar, novamente, que os músicos que dele fazem parte imprimiram ‘normas’ e estratégias de divulgaç~o e comercialização. Hoje, é comum perceber a presença de bandas estabelecidas no mercado mainstream, que, mesmo tendo contrato com gravadoras tradicionais, disponibilizam seus fonogramas em plataformas digitais de forma gratuita. Esse hábito deve-se a adaptação dessas bandas às tendências surgidas fora do mainstream. O ciberespaço é condição também, e cada vez mais, para a sustentabilidade dos músicos não-independentes. Este ciberespaço conta com diversas interfaces que possibilitam a rápida e eficaz digitalização dos mais variados arquivos (LÉVY, 1999). Desta forma, com um simples notebook equipado com uma placa de captura de áudio, as bandas podem gravar os seus ensaios e com o auxílio de softwares como o Nuendo, o Audacity e outros, podem mixar e produzir seus próprios CDs. Poder-se-ia afirmar que, embora possam gravar seus trabalhos, esses não estariam no padrão de qualidade estabelecido pelas produtoras mais especializadas. No entanto, o formato Mp3 tornou praticamente imperceptível as variações de qualidades em uma gravação. Acredita-se ser quase impossível um indivíduo, mesmo provido da melhor capacidade auditiva, ouvir uma e outra música e dizer: esta foi gravada em padrão de qualidade 256kbps e aquela 128kbps. As variações, no máximo, iriam ser decorrentes da qualidade dos músicos e/ou equipamentos, questão que pode ser resolvida antes do momento de gravação. Portanto, o processo de gravação em si foi substancialmente simplificado. A banda carioca Detonautas pode ser tomada como exemplo em estratégias de divulgação via ciberespaço. Atualmente o grupo se encontra confeccionando seu novo disco, porém, antes de o lançarem oficialmente, disponibilizam links em sua página em que se pode ouvir as músicas que já gravaram 9. Percebe-se nesse
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Ver: <http://www.detonautas.com.br/library/jPlayer/soundcloud.php>. Acesso em 12 jan. 2015.
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exemplo que a banda ‘abriu m~o’ do chamado lançamento do CD ‘aos moldes’ do que ocorria tradicionalmente. Aos poucos as músicas vão sendo jogadas na Web e os fãs vão acompanhando e participando ativamente da produção do disco. Com exceção de rádios locais, pôde-se perceber que Andread Jó não tem acesso à grande mídia (rádios e TVs nacionais). A pesquisa revelou ainda que a promoção e divulgação do artista é dada, essencialmente, via Internet ou em apresentações ao vivo. Andread Jó (2014), em pergunta sobre a utilização de redes sociais de relacionamento e plataformas digitais de distribuição de música online, afirmou possuir perfil em: Facebook, MySpace, SoundCloud, PalcoMp3, Twitter, e site próprio10. Sobre as plataformas e aplicativos de distribuição de música Andread diz: [...] todos esses dão direito também de, além de você ouvir online, você também baixa gratuitamente. Além do meu site, onde você pode baixar os [...] discos de forma gratuita. Tem um link ‘pra’ download... ent~o, a gente tenta utilizar o máximo. No caso, o PalcoMp3 é o mais... do Brasil, é o mais acessado... então a gente fica focado mais no PalcoMp3. Inclusive, nós já fomos capa do PalcoMp3 umas dez vezes já, né... pelo número de acessos que nós temos... e isso, graças a Deus, tem ajudado bastante a divulgação do nosso trabalho aqui (ANDREAD, 2014).
É interessante notar que entre os aplicativos streamings existe mais de uma categoria (não cabe aqui discuti-las). De forma simplificada, há aqueles que disponibilizam o serviço de forma totalmente gratuita, como PalcoMp3 e SoundCloud, isentando o ouvinte de qualquer tarifa, e por isso não repassam nada aos músicos/bandas. A música está ali especificamente para exposição. E existem aplicativos que embora veiculem a música de forma gratuita, restringem alguns serviços à licença premium, como Spotify, Last.fm, Rdio e outros. Estes, repassam lucros aos artistas (mesmo que mínimos). Concernente ao Andread (2015b), o artista revela certo desinteresse em realizar o upload de suas músicas em aplicativos que cobram licença de uso. Para ele, isso seria também uma forma de restringir o acesso. A pesquisa revelou que a presença de suas músicas se restringe à aplicativos 100% gratuitos.
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Ver: <http://www.andreadjo.com/>. Acesso em 22 fev. 2015.
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Fica evidente, portanto, que embora se utilizem de rádios e emissoras de televisão locais, as bandas independentes, predominantemente, utilizam-se mais do ciberespaço para divulgarem os seus trabalhos, tendo em vista o custo e a facilidade de acesso. Andread Jó não foge a regra. É certo, portanto, que o avanço das técnicas de reprodução somadas ao maior acesso à Internet, que vem crescendo exponencialmente nos últimos anos, dotaram os artistas undergrounds de relativa autonomia. Como resultado, levanta-se a hipótese de esses artistas terem adquirido maior liberdade de expressão, já que não precisam se adaptar aos padrões estabelecidos pelas managers da produção musical. A experiência proporcionada pelo estudo realizado com Andread Jó pode ser resumida na seguinte fórmula: reprodutibilidade técnica (facilidade de reprodução dos formatos digitais) + ciberespaço (ferramentas da Web 2.0 utilizadas para distribuição das músicas) + Capital Cultural + Capital Social = maior capacidade criativa de produção e promoção musical. Ou seja, a soma dos elementos enunciados proporcionou ao artista maior autonomia e possibilidade de concorrência em relação aos majors. O resultado genérico mais amplo desse processo se materializa na maior quantidade de artistas/bandas alcançando certa popularidade, mesmo os que antes eram esquecidos ou abafados pela indústria cultural tradicional. Temos, portanto, o advento de um leque cada vez mais plural e heterogêneo de músicas sendo produzidas e prescritas via Internet. A distribuição da música via internet se dá em rede. A principal característica de uma rede são os nós, ou seja, as interconexões. Dessa forma, o monopólio outrora garantido pela centralização da produção – desfrutado por décadas pelas principais majors (Universal Music, Sony BMG, e Warner Music Group) – vem sendo ameaçado. Já não há ponto central, por isso, a prescrição das músicas não se dá somente via Rede Globo, ou Jovem Pan, e etc. Aqueles que compõem a NPI agora estão dotados de maior capacidade de concorrência frente aos mercados tradicionais. Portanto, o que se pode observar com ampliação do mercado informal é uma relativa ampliação das expressões da criatividade humana, visto que a flexibilização dos direitos autorais, a produção musical independente, a difusão e a potencialização do acesso aos bens simbólicos por meio do ciberespaço, contribuem para uma maior produção cultural (heterogênea
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e plural), diferente da cultura de massa veiculada pela grande mídia, que caminha em seu sonho ideal de padronização abafando determinados gêneros (como o reggae) enquanto supervaloriza outros. Fechando a análise sobre as estratégias de divulgação utilizadas por Andread Jó, questionou-se o artista sobre como ele achava que a maioria do seu público tinha acesso à sua música. Obteve-se a seguinte resposta: “Na verdade, acho que via Internet, e... shows! Eu acho que os shows [...] Os shows! Porque muitas pessoas até hoje v~o através de um amigo que conhece no trabalho [...]” (ANDREAD, 2014). Por conseguinte, o papel das redes sociais é ilustrativo do poder de promoção desses novos mercados. Entrementes, muito se tem falado em indústria cultural ou, mais especificamente, em ‘indústria fonogr|fica’; no entanto, é imperioso lembrar que o mercado musical deve ser entendido enquanto ‘plural’ e ‘heterogêneo’. Logo, devese abster de generalizações. Cada mercado – apesar de certas semelhanças – é dotado de características particulares. Como disse Andread (2014), cada gênero tem suas características de mercado específicas, e o reggae se diferencia de todos os outros mercados. [...] nos outros mercados, por exemplo, o mercado da música sertaneja, do forró, eles são bem mais estruturados, eles possuem empresários que investem nos trabalhos... só que também se tornam proprietários das bandas. No caso do reggae, não! O reggae, ele é um estilo musical alternativo e independente, poucos são os artistas que assinam com gravadoras. Quando assinam, a gravadora já quer se envolver dentro do trabalho musical ‘pra’ tirar o estigma de ser ‘música reggae’, e já levar ‘pra’ outro lado, ‘pra’ se tornar uma coisa mais popular e mais vendável, claro! Porque eles [os investidores] visam a grana. Então, o reggae ainda é uma música popular sim! É uma música de fácil acesso! Totalmente diferente do blues, do jazz, né... até do rock mais pesado, aquele rock-in-roll. O reggae... ele é mais popular. Porém, ele se diferencia por isso! Por ainda os artistas quererem viver de forma independente. E isso dificulta muito o nosso trabalho! (ANDREAD, 2014, grifo nosso).
Observa-se na citação acima que as gravadoras tradicionais tendem a buscar o ‘sonho ideal’ da indústria cultural: a padronizaç~o. Se uma banda de reggae fecha contrato com uma gravadora tradicional hipoteticamente haveria interferência no ‘estilo’ das músicas, na tentativa de agradar um público maior.
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Esse seria um – dentre muitos – dos pontos negativos em se fechar um contrato com uma gravadora tradicional. Andread destaca alguns pontos positivos em ser um artista independente: O principal, é que você continua sendo você! Você não se torna um produto! Um produto que eu digo... a música é um produto, o artista, ele é um produto. Porém, eu continuo sendo quem eu sou! Eu posso expor minhas opiniões, eu posso expor meus pensamentos. Sem ter medo de sofrer algum tipo de julgamento. Já quando você entra numa gravadora, você vai ser moldado ‘pra’ viver dentro dos par}metros da televis~o, do rádio, da forma de se comportar, o que você deve dizer, o que você não deve dizer. Ent~o, digamos, eles começam a ‘cortar as asinhas do artista’! Você se torna um produto! [...] Então, assim... tem um preço! Paga esse preço quem quer! Eu acho interessante, se você... se o artista, tem condições de sobreviver – não é nem viver, é sobreviver – independente, eu acho que é melhor ele mesmo administrar a sua carreira! Claro, que com uma equipe decente do seu lado, pessoas que também curtem o teu trabalho e acreditam nele. Porém, se aparecer uma boa proposta – que você possa continuar sendo você – eu acho interessante você aceitar (ANDREAD, 2014, grifo nosso).
Fechando a reflexão sobre a facilidade trazida pela inovação tecnológica, observa-se que, aos poucos, o resultado tem sido a crescente desmaterialização da música (HERSCOVICI, 2007). O CD hoje tem sido substituído por músicas em formatos digitais arquivadas em pen drives. Na década de 1990, quando o CD tornou-se mais comercializável do que o disco LP e as fitas K7, o mercado fonográfico passou por uma completa mudança de hábitos proporcionados pela facilidade da reprodutibilidade da mídia física. Doravante, com a predominância do formato MP3, que chegou ao mercado por volta de 1995, popularizando-se nos anos 2000, os hábitos de consumo foram novamente se reconfigurando: o CD caiu substancialmente de venda, e mesmo quando se compra o Compact Disc, transformam-se as suas músicas para formato MP3, salvando-os em memórias mais portáteis como cartões de memória e pen drives, pois os próprios aparelhos de reprodução de mídias estão chegando ao mercado – a maioria deles – sem leitores de disco. Surgem, portanto, novos hábitos. O consumo de música online – via streaming – torna-se ‘a nova ordem do dia’. No entanto, quando se fala em digitalização da música, deve-se pensar esse processo em duas dimensões: produção e consumo. Percebe-se que o consumo tem-se midiatizado digitalmente. Vale salientar: o formato digital promoveu
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mudanças tanto no consumo quanto nos processos de produção da música. Como disse o próprio Andread Jó ao ser questionado sobre a gravação digital: Bom, facilitou bastante! Hoje em dia já tem Home Studio... vários artistas que eu conheço até nem vão mais em estúdio gravar uma música, até pelo fato da... de terem vários programas gratuitos na internet, de gravaç~o. Basta você comprar uma placa de som, e ‘tal’, ‘pro’ seu computador; ter boas caixas de referência, um bom microfone. Eu acho que esse processo foi bom pra música, porque muitos artistas antes precisariam de uma boa grana pra um estúdio, ou de uma gravadora ‘pra’ gravar um trabalho, né... e hoje já podem ter acesso, né... através desses programas, e ‘tal’. Ent~o, esse processo de digitalizaç~o, nesse sentido da produção musical, eu acho o máximo, [...] barateou o custo, deu acesso aos artistas a terem... a poderem gravar de forma com que ficasse mais barato e mais rápido, também (ANDREAD, 2014).
Atualmente, Andread tem tocado em seus shows as músicas do disco Andread Jó Sings Bob Marley, além de músicas do seu primeiro e segundo disco solo, assim como algumas canções inéditas do próximo disco que será lançado em breve. Ele informou que seu principal mercado hoje tem sido o Norte/Nordeste. Sobre o tipo de público ele diz: “[...] é o público mesmo ligado mais à música reggae... eu toco tanto pra galera da periferia quanto pra galera da ‘classe A’ [...] todos esses públicos gostam do meu trabalho, independente de onde seja. Então, eu toco em qualquer lugar que eu for convidado!” (ANDREAD, 2014). Andread revelou ter tocado “[...] desde o Macap| até a Bahia” (Feira de Santana), em diversas cidades, vindas do Norte até Fortaleza; além de Rio de Janeiro, Vitória do Espírito Santo, e em v|rios países da Europa. Assim disse: “[...] o público que eu quero atingir é o máximo! Se me colocarem num evento que não tem nada a ver com reggae, [...] e que eu possa estar nesse evento, eu vou estar! Por que eu quero estar representando meu estilo e também levando a mensagem, claro!” (ANDREAD, 2014). Portanto, o resultado mais amplo de todo esse processo que revolucionou as estruturas do mercado fonográfico é a liberação da palavra via Internet, que culminou na maior expressão da criatividade humana, doravante, bem mais plural e heterogênea. Entretanto, Castells (2003, p. 10) ajuda a encerrar essa breve reflex~o ao lembrar que se “por um lado, a nova economia é a economia da indústria da Internet. Em outra abordagem, observamos o crescimento de uma
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nova economia a partir de dentro da velha economia, como um resultado do uso da Internet pelas empresas [...]”, ou seja, observamos hoje tanto o crescimento das indies quanto a apropriação por parte das majors das suas estratégias. Portanto, qualquer otimismo ingênuo pode implicar no risco de desgaste de uma possibilidade teórica rica em termos de análise de expressão popular.
Considerações finais
A cena analisada esclarece o quanto é atual falar em reestruturação do mercado musical. De agora em diante, como os avanços na microeletrônica e na informática além de serem constantes operam ao nível de revoluções (em média, a cada 18 meses as memórias e os processadores dobram as suas capacidades), é mister observar suas consequências ante a indústria cultural. Ora, os novos hábitos de produção-distribuição-consumo da música são condicionantes e condicionados por essas mudanças na infraestrutura tecnológica. Como lembra Castells (2003), a Internet não é somente aquilo que foi projetada para ser, mas também o que os seus usuários fazem dela. Portanto, por permitir certo nível de liberdade no ato do fazer, a cibercultura traz consigo uma dinâmica diferente das mídias de massa, à medida que possibilita não apenas os usuários se adaptarem ao que é proposto pela indústria fonográfica, mas também, imprimirem novas tendências (novas formas) de consumo musical. Por isso tem-se visto hits que alcançam o sucesso espontaneamente, e só depois são veiculados e assimilados pela tradicional indústria cultural. Uma coisa é certa, a indústria fonográfica caminha a todo vapor! Embora se fale em ‘crise’, prefere-se aqui interpretar essa nova realidade como um momento de reestruturação. Tanto dentro, quanto fora (e nas bordas) do mainstream musical. Equipados com tecnologias que lhes proporcionam maior autonomia, os independentes agora podem gravar com custos reduzidos e utilizar plataformas de música via streaming que geram (ou não) receitas ao serem ouvidas as suas músicas. O que de fato conta é a facilidade de expor o que estão produzindo sem a necessidade de parcerias tão desfavoráveis como as que os artistas estabeleciam antes com as majors. Ressalta-se que não se extinguiram os intermediários; no
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entanto, os novos intermediários oferecem maior facilidade de acesso às suas músicas (via Internet) e com menores exigências. Sites como PalcoMp3 (e muitos outros) são abertos; qualquer artista pode criar uma conta de acesso e realizar o upload das suas músicas livremente. Outras plataformas, como, por exemplo, o Spotify, Rdio e Deezer, ainda geram alguma receita (cerca de R$ 0,02 por execução)11 para esses profissionais. Sem dúvida, Andread Jó é exemplo concreto de como o streaming trouxe à tona artistas antes abafados pelo mainstream musical. Através do PalcoMp3 ele aumentou o seu público significativamente, o que lhe proporcionou maior recepção no cenário reggae do Brasil. Utilizando-se também do SoundCloud foi possível adquirir contatos importantes e chegar ao público internacional, sendo por exemplo, convidado para abrir o show do Alpha Blondy no Brasil. Portanto, o artista revela o forte potencial do ciberespaço ao utilizar principalmente a Internet como veículo midiático de exposição. Esse breve estudo revelou, portanto, que estratégias diversas são utilizadas pelo caso em questão como forma de se manter no mercado. Além das estratégias ‘flexíveis’ amplamente abordadas neste escrito, há também os recursos formalizados desta NPI. Andread, por exemplo, pagou os direitos da gravadora de Bob Marley para produzir o seu disco Andread Jó Sings Bog Marley – que apesar de estar disponível para download livre, foi gravando numa triagem de 1.000 unidades (ANDREAD, 2014). Conclui-se, portanto, que o que de fato caracteriza essa NPI, bem como o mercado fonográfico com um todo, é a confluência de valores e estratégias que implicam em modelos de negócios diversamente estruturados. Sociologicamente as estruturas do mercado se dinamizam e, relacionalmente, atores sociais distintos se conectam numa rede dinâmica, plural e aberta de possibilidades de negócios no campo da chamada “música independente”. O resultado pode ser expresso em maior possibilidade de acesso ao mercado de bens culturais, tanto por parte dos músicos, quanto pelos ouvintes.
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Ver: <http://olhardigital.uol.com.br/video/43390/43390>. Acesso em 23 fev. 2015.
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Para fechar esta breve reflexão é mister pois, destacar que embora a análise empírica tenha revelado no Andread Jó características que o enquadram amplamente na NPI, n~o significa que este artista seja apenas ‘mais um’ neste segmento. É possível afirmar que ele se destaca, a priori, pela especificidade da cena em que está inserido, tocando reggae em uma cidade onde massivamente predomina o forró eletrônico; por seu capital cultural, expresso não somente na habilidade com os idiomas inglês, francês e espanhol, mas também pelo conhecimento de tecnologias de gravação e divulgação; bem como, por seu capital simbólico, manifesto na pessoa que ele representa para o Movimento Reggae Ceará (MRC), tendo sido convidado para abrir shows de Alpha Blondy em turnê no Brasil, e acompanhar a visita de Julian Marley (filho de Bob Marley) em Fortaleza (janeiro de 2015). Andread também já participou como representante do MRC em eventos musicais em fortaleza, como o Ceará Music (edições 2003 e 2004), e em São Luís do Maranhão, como o Festival Maranhão Roots Reggae (edição 2005), onde tocaram bandas brasileiras e jamaicanas (ANDREAD, 2015b). Logo, a utilização das redes sociais, juntamente com o capital social do artista, tem sido um diferencial estratégico de sua promoção, concomitantemente ao seu capital cultural no cenário do reggae nacional e internacional. Andread Jó, apesar de ser produto global dessas novas estruturas sociais dos mercados musicais independentes, é também um fenômeno local detentor de capital cultural articulador de seu público ouvinte. Estruturado e estruturante, Andread Jó tem reafirmado seu capital simbólico enquanto artista independente de Reggae na capital do Ceará.
Referências
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CAPÍTULO 2 HEAVY METAL, IDENTIDADE E SOCIABILIDADE: ITINERÁRIOS EM CONSTRUÇÃO
Lázaro Fabrício de França Souza
Apresentação
Esse ensaio é um excerto de dissertação que no momento de publicação desse livro se encontrava em fase derradeira de pesquisa e escrita. Nele, buscamos discutir as formas como se dão os itinerários e construções dos processos identitários entre os headbangers, através da experiência do heavy metal, perfazendo inclusive uma espécie de “sobrevoo” no que se refere aos conceitos de identidade e sociabilidade. Aqui tratamos o heavy metal enquanto um fenômeno musical global, presente em todos os continentes do globo. O estilo parece se constituir em meio a culturas híbridas e em um mundo globalizado, em constante ebulição e mudanças. Sendo assim, a ideia aqui é esboçar uma leitura desse cenário, se não de forma cabal, ao menos em termos introdutórios. Scenarios metallicus
Pouco mais de 22h. Os presentes, cerca de 150 pessoas, denotam claramente ansiedade e expectativa. Os olhos parecem reverberar, da mesma forma que “brilha a chama do metal em nossos corações”, alguém sensibiliza. Estrutura pronta. Luzes apagam-se. Headbangers12, vestidos de preto ou não, erguem os braços para uma vez mais empunhar, simbolicamente, a bandeira do Termo usado para designar um fã do estilo musical heavy metal ou ainda qualquer uma de suas variantes, cuja traduç~o pode ser entendida como “batedor de cabeça”, uma alus~o ao modo como os headbangers costumam manifestar sua performance corporal. Evitamos usar o termo “metaleiro”, em virtude de sua conotaç~o um tanto quanto pejorativa entre os apreciadores do estilo. 12
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metal. Inicia-se mais uma noite de louvor ao heavy metal, um estilo de música singular, nascido no efervescente decênio de 1960, nos seus últimos anos, mais especificamente, como um movimento de contracultura. Musicalmente, em sua gênese, com bastante influência do rock, do blues e até mesmo da música clássica e erudita. Quando as luzes são acesas novamente os primeiros acordes de guitarra são entoados para deleite dos metalheads13. O pub torna-se pequeno para a euforia dos entusiastas do “metal”. Exímios batedores de cabeça, fazendo jus ao termo “headbanger”, sacodem seus pescoços, fecham os olhos, e de pelos arrepiados e coração em ritmo célere, absorvem toda aquela atmosfera, de puro êxtase e significado. Os “stagediving”14, movidos a um thrash metal15 pujante, também passam a fazer parte do cenário 16. Cultura, expressão, sentimentos são disseminados por meio daquela música pesada, por corpos pulsantes e mentes ativas. Essa é apenas uma sintética e genérica descrição de um show de heavy metal, onde os indivíduos, como grupo, tornam-se uno, unidade, um amálgama, onde corpo e alma misturam-se numa complexa teia de significados, e embriagamse, absortos, com a energia do ambiente. Em meio a esse fenômeno envolto em simbologias e ritos, buscamos exercer um olhar treinado sobre esse fenômeno tão curioso e singular. A proposição em pauta é um excerto de pesquisa de dissertação de mestrado em andamento e de reflexões compartilhadas. Destarte, a ideia é fazer apontamentos e exercícios reflexivos preliminares, visando, nalguma feita, pôr às claras parte do cotidiano e das práticas do ser headbanger, capturar seu ethos e o universo simbólico e Termo análogo a headbanger. Sinteticamente, pode ser definido como o ato de mergulhar do palco sobre a plateia dos shows. 15 O thrash metal é uma subdivisão do heavy metal conhecida por uma maior velocidade e maior peso do que seus antecessores. Suas origens remontam ao fim da década de 1970 e começo da década de 1980, quando um grande número de bandas começou a incorporar elementos da New Wave of British Heavy Metal (NWOBHM) com a nova música hardcore/punk que surgia, criando assim um novo estilo. Este gênero é muito mais agressivo do que o speed metal, considerado seu predecessor. As “quatro grandes”(conhecidas como big four) bandas do thrash metal são Anthrax, Megadeth, Metallica e Slayer, que estão entre os criadores do estilo e popularizaram o gênero no começo da década de 1980. 16 Por falar em stagediving, dentro de um show de heavy metal ele tem importância ímpar na compreensão, por exemplo, do nível de autoridade e prestígio de um indivíduo dentro do grupo. Quanto mais pessoas se posicionarem para “aparar o voo” maior parece ser o grau de sociabilidade e prestígio desse indivíduo perante o restante do grupo. O fenômeno pode também se referir à autoridade e ao status que o sujeito usufrui dentro do grupo no qual está imerso. 13 14
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ritualístico do heavy metal, o que mostra a monta do desafio. Sem nos intimidar pelo receio de ser seduzido pelo objeto (ou já tendo sido seduzido por ele, à maneira de Loïc Wacquant [2002]), levaremos a cabo a tentativa de fornecer uma arrazoada compreensão dos mecanismos sociais e signos que emergem e são engendrados no contexto delimitado.
Prolegômeno metálico
Segundo Oliver Sacks (2007), há diversos indícios cujos apontamentos dão conta que nós, humanos, temos, tanto quanto o instinto da linguagem, um “instinto musical”. Para ele, somos uma espécie, além de linguística, “musical”, capazes (exceto raras exceções) de perceber música, tons, intervalos entre notas, timbres, melodias, harmonia e, em especial, ritmo. Contudo, Jannoti (2014) adverte que “n~o h| como estabelecer uma noç~o totalizante, imut|vel ou de maneira definitiva para o que chamamos de música”. Isso porque, prossegue ele, “h|, em torno da vivência com relações sonoras reconhecidas como música, envolvimentos estéticos, sociais, econômicos e culturais que transformam a ideia de continuidade de uma experiência dita ‘musical’”. Percebemos e significamos a música de maneira distinta, conforme determinados códigos, aquisições, experiências. Ortiz (2008, p. 12) expõe que a musicalidade dos sons e dos arranjos, a poesia das letras, a entonação da voz fazem parte de um campo de organização social, cultural e econômica, no qual a criatividade individual se encerra e se desenvolve. Criatividade difícil, negociada, mediada pela técnica e pelas leis de mercado. Mais { frente, nas palavras dele (2008, p. 12), demanda dizer “que o rock constitui-se numa cultura internacional-popular, cuja legitimidade contrasta com as musicalidades nacionais, regionais e étnicas”. O metal, enquanto subproduto do rock, faz parte desse espectro mais amplo, capaz de eclipsar e superar inclusive as noções de território. O heavy metal é um fenômeno musical global e está presente em todos os continentes do globo, sendo reconhecido e tendo adeptos em praticamente todos os países e regiões do mundo. Algumas das principais bandas do estilo lotam estádios inteiros mundo afora levando milhares de pessoas ao êxtase. Tem seu
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berço sobremaneira na Europa (mais especificamente na Inglaterra) e nos Estados Unidos. Descende principalmente do rock‘n’ roll e do blues, mas mostra influências do rhythm& blues, do jazz, da música clássica e erudita, da música barroca, e da música country. Dentre as primeiras bandas a serem denominadas heavy metal está o Black Sabbath, considerada a precursora do estilo e cuja origem remete à classe trabalhadora inglesa do decênio de 1960. No início havia apenas o céu, em sua noturna e sombria extensão, e o desconhecido. Os mais profundos segredos da história – que só poderiam ser reanimados por forças tão antigas quanto a própria civilização – revolviam nesse inquieto limbo, onde tudo era acinzentado, fumacento, escuro e sagrado. Essas poderosas correntes – por tanto tempo esquecidas e adormecidas até que a guerra, a crise e a angústia pudessem despertar e trazer à tona seus mais horrendos poderes – não possuíam definição nem emitiam sons até serem capturadas e subjugadas por uma epifania conhecida como Black Sabbath: a banda primordial, a origem do heavy metal. Desde o começo, o entusiasmo poderoso de Black Sabbath reverberava para além dos perímetros da opinião geral. Profetas criados à margem da sociedade inglesa, eles eram desempregados, socialmente desprezíveis e, ainda, moralmente suspeitos. (CHRISTE, 2010, p. 13).
Dentre intentos precípuos do gênero sempre estiveram presentes a subversão, a transgressão, o rompimento, muitas vezes, com o status quo, além de uma postura e comportamento que causassem choque, incomodasse, “mexesse” com o sistema e quebrasse padrões sociais e a ideia de ordem, um ato político, o que não significa um movimento político organizado de contestação. O próprio fato de tratar ou se expressar, quer seja visualmente ou musicalmente, a partir de tabus, temas polêmicos, macabros e ocultos, em grande parte dos casos destinavase a se utilizar da ficção e do sobrenatural para chamar atenção, o que não especificamente representa determinada banda enquanto indivíduos ou suas experiências. Obviamente, isso trouxe e – embora em menor grau hoje, até mesmo pelo maior espaço ocupado pelo estilo nos meios de comunicação de massa, a partir, em larga escala, dos grandes festivais de música, como Rock in Rio ou S.W.U, por exemplo – continua trazendo problemas para bandas e artistas, tais como reprovação pública, perseguição, estigmas e certa repulsa. Parte disso vem pelo motivo de alguns estilos dentro do heavy metal – com relevo para o black e o death metal –“dessacralizarem” e blasfemarem símbolos religiosos e o cristianismo.
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Como elemento central da discriminação [...] emerge a dessacralização de símbolos religiosos associados ao domínio do mal em diversas tradições religiosas promovida pelo heavy metal, que converte determinados símbolos dotados de significado sobrenatural malévolo, sobretudo para setores do Cristianismo, em convenções artísticas esvaziadas de periculosidade e muitas vezes positivadas – dessacralização não compreendida e suscitadora de reações negativas por parte de não participantes dessa cultura musical (LOPES, 2013, p.1).
Como aclara Janotti (2000, p. 92), “o heavy metal surge em meio à fissura e confusão do início da década de setenta, época marcada pela perda das referências que marcaram o rock durante a década de sessenta, que culminaram nos movimentos de maio de 1968”. Janotti destaca também o fato de o heavy metal fazer parte de um contexto sociohistórico em que “a tomada de consciência e a mobilização provocaram uma mostra do poder de aglutinação da juventude em busca de um espaço societal”. Ainda sob a pena de Janotti (op. cit.), a despeito da efervescência e profusão do rock durante o decênio de setenta, que traz a leme novamente o vigor contestatório com alicerce no movimento punk, apenas nos anos 1980 que o heavy metal se consolida como um gênero dentro do rock. Bandas como Iron Maiden, Scorpions, AC/DC e Van Halen, prossegue o autor, projetaram um espaço societal e de vivência dos fãs de heavy metal para além da ideia de um gênero musical, alcançando, por conseguinte, maior visibilidade. “Através dos trajes, dos shows e dos locais de encontro, os fãs de heavy metal construíram territórios existenciais, onde é possível exercitar a subjetividade fora dos espaços normatizados” (JANOTTI, 2000, p. 92). Esse ‘neotribalismo’, explica-nos Janotti, traz a ideia de um imaginário metálico como meio de agregação social característica da cultura contemporânea. A sociabilidade marcaria ('daria o tom') os agrupamentos urbanos contemporâneos, colocando ênfase na 'tragédia do presente', no instante vivido além de projeções futuristas ou morais, nas relações banais do cotidiano, nos momentos não institucionais, racionais ou finalistas da vida de todo dia. Isso a diferencia da sociabilidade que se caracteriza por relações institucionalizadas e formais de uma determinada sociedade (LEMOS, 1998, p. 2 apud JANOTTI, 2002, p. 92).
Ademais, no decênio de oitenta o sistema de comunicação broadcasting e a radiodifusão passam a assimilar a nova safra de bandas de heavy metal, dando
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visibilidade ao gênero e ampliando searas mercadológicas. Por consequência, entrementes, as bandas deixaram de caracterizar e compartilhar determinadas nuances e particularidades da “tribo met|lica” e do sentimento underground, ameaçando a demarcação do seu espaço tribal. É nesse cenário que é encetado o fenômeno das divisões do heavy metal em vários subgêneros (JANOTTI, 2002). O estilo de música heavy metal é reconhecido por lojas de música, de instrumentos, grandes distribuidoras e gravadoras, pelos meios de comunicação, e, principalmente, pelo público consumidor, ratifica Campoy (2008), além de movimentar
um
mercado
bilionário
anualmente.
Com
a
expansão
e
reconhecimento do estilo, já a partir dos anos 1970 e com mais força nos anos 1980, originaram-se várias ramificações culminando com a divisão em diversos subestilos. Assevera-nos Leonardo Campoy (op. cit.) que: Durante os anos de 1980, além de sedimentar sua presença fora da Europa ocidental e Estados Unidos, o heavy metal começa a se desdobrar em uma série de subestilos. Surgem o thrash metal, o doom metal, o speed metal, o glam metal, entre inúmeros outros. Essas diferenciações certamente se deram pela intenção de gravadoras e distribuidoras de especificar seus produtos, seguindo a lógica mercadológica de constantemente oferecer mais opções ao cliente.
Por outro lado, o autor supracitado mostra que são também resultado do anseio, por parte da crítica especializada e das mídias, de identificar quais seriam as “bolas da vez”, as próximas linhas-mestras da estética que dominariam o panorama do estilo, lançando mão, portanto, da invenção de rótulos que exprimiam, de modo mais claro, o tipo de som, de música, feito por esta ou aquela banda. Mas o surgimento desses subestilos dentro do heavy metal, acusa Campoy (2008), se deu e se dá principalmente por parte da ação das bandas e do público. Dessa forma, à medida que o número de bandas foi aumentando e a diversidade de estilos de heavy metal crescendo, as bandas e o público sentiram necessidade de caracterizar de modo mais específico o que estavam compondo, tocando, ouvindo. A assertiva do autor (ibidem) nos dá a tônica:
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O thrash metal, música rápida e mal gravada propositalmente, com vocais gritados e versando sobre o caos do fim do milênio e as guerras nucleares, era visto como sendo bem diferente, por exemplo, do glam metal com seus músicos vestidos com roupas fortemente coloridas e usando laquê e purpurina nos cabelos, fazendo um metal dançante que tratava de carros, mulheres, bebidas e dinheiro. Hoje em dia, a quantidade existente dessas diferenciações nos faz pensar se ainda é possível falar de heavy metal como um grande estilo contendo vários subestilos.
A despeito de certas peculiaridades, o heavy metal não é uma ilha. Por um lado, o movimento cultural heavy metal parece seguir amiúde na contramão do que se denomina “cultura de massas”, fugindo, portanto, da adaptaç~o e do consumo para as massas, primando pelo consumidor como sujeito e não meramente um objeto, mormente levando em consideração que se pretende, inclusive, romper com o status quo também nesse sentido. Noutras vezes, no entanto, de algum modo, parece ir ao seu encontro, assumindo padrões comerciais facilmente reproduzidos. Abda Medeiros (2008, p. 160), no que concerne à organização e produção de shows undergrounds, corrobora essa perspectiva assinalando que: [...] esses eventos configuram-se e realizam-se seguindo os princípios da filosofia denominada underground, ou seja, orientam-se pela ideia “faça você mesmo” independente de patrocinadores, apoios institucionais públicos e/ou privados, seguindo uma lógica de mercado diferenciada da difundida pela “cultura de massa”.
Ainda na perspectiva da autora, em certas ocasiões, na busca por espaços, apoio financeiro para a realização dos eventos, e igualmente nas formas de divulgação e difusão dos trabalhos produzidos pelas bandas e consumidos pela plateia e por outras bandas ligadas ao estilo, os grupos recorrem às formas de produção, organização, disseminação e distribuição características da indústria cultural para o estabelecimento de trocas simbólicas e materiais, o que enseja novos laços de sociabilidade e provoca, amiúde, um enriquecimento cultural por meio desses contatos, embora possíveis antagonismos de interesses possam eclodir. O heavy metal não deixa de ser uma faceta da indústria fonográfica e cultural. Em linhas gerais, trazemos indústria cultural aqui como a “forma sui generis pela qual a produção artística e cultural é organizada no contexto das
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relações capitalistas de produç~o, lançada no mercado e por este consumida” (FREITAG, 1994, p.72). Como postulara Marshall Sahlins (1997), a cultura não pode ser abandonada, sob pena de não se compreender o fenômeno singular que ela distingue e nomeia, a saber, a organização da experiência e da ação humanas por meios simbólicos. Os significados não podem ser explicados a partir de propriedades biológicas ou físicas. As relações, coisas e pessoas que povoam a existência humana manifestam-se essencialmente como valores e significados. Pois, bem. É exatamente a experiência da ação humana por meios simbólicos, no caso específico, a cultura heavy metal, o ethos e estética headbanger, o escopo desse empreendimento de pesquisa. Nesse direcionamento, nosso objetivo preliminar é compreender como os headbangers constroem suas identidades e como se dá o processo de construção de laços e sociabilidades entre os integrantes dessa “cultura alternativa” e urbana. Para além das categorizações supramencionadas, outro ponto-chave, no qual acreditamos fornecer razoável possibilidade de compreensão acerca do universo delimitado, trata-se de trabalhar como as diferentes gerações que coexistem atualmente e entender como elas assimilam e se expressam a partir do heavy metal, na medida em que nasceram e se criaram em tessituras histórico-sociais diferentes, logo, possuem cosmovisões, valores e referenciais também distintos. Ademais, os avanços na tecnologia, atrelado aos trâmites da cibercultura, sobretudo, mas também os novos hábitos e valores criam uma dimensão quase abissal entre as gerações.
A noção de cena e o heavy metal
O heavy metal na maioria das vezes se estabelece em meio {s “cenas”. Acessar a concepç~o de “cena” auxilia a pensar o heavy metal enquanto fenômeno social. A ideia de cena, mostra-nos Janotti, foi pensada buscando dar cabo de uma série de práticas sociais, econômicas, tecnológicas e estéticas ligadas às formas como a música se faz presente nos espaços urbanos. Sob o prisma do autor:
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Isso inclui processos de criação, distribuição e circulação, além das relações sociais, afetivas e econômicas decorrentes desses fenômenos. São poucos os conceitos relacionados à música que se firmaram com tanta influência no imaginário de jornalistas, fãs e músicos ao redor do mundo. O primeiro uso remete à década de 40, quando o termo foi criado por jornalistas norte-americanos, para caracterizar o meio cultural do Jazz, de modo a abranger a movimentação em torno do gênero musical. Bandas, público, locais de shows, produtores culturais, críticos, gravadoras, entre outros atores sociais, todos estavam sendo englobados dentro do universo denominado cena musical (JANOTTI, 2011, p. 11).
A ideia e o termo “cena” se tornou popular e foi amplamente utilizado por jornalistas, nos decênios de 80 e 90, assinala Janotti, para conceituar as práticas musicais presentes em determinados espaços urbanos. Mas, não somente. Os desdobramentos sociais, afetivos culturais e econômicos também entram nesse rol conceitual. Geralmente, quando existe certa efervescência na produção musical em determinado local, ela é logo nomeada, ou legitimada, pelo discurso da crítica cultural, que procura delimitar a existência de uma cena em torno de expressões musicais distintas. (op. cit.).
O autor, em outras palavras, assevera que a cena é uma forma das práticas musicais ocuparem o espaço urbano e ser foco dos processos sociais dos atores envolvidos na produção, consumo e circulação da música nas cidades. Para Straw (apud S\, 2012, p.151) “cena musical” remete a um “espaço cultural no qual uma gama de práticas musicais coexiste, interagindo umas com as outras através de uma variedade de processos de diferenciação e de acordo com trajetórias amplas e vari|veis de mudança e interc}mbio”. A afirmação das cenas musicais ocorre através de experiências que são nomeadas e também modeladas pelos modos como músicos, público e crítica definem essas experiências. “Desse modo, compreende-se o alcance de uma cena e suas conexões sonoras, através de suas perspectivas regionais (cena indie carioca), suas ligações nacionais (cena punk brasileira) e suas conexões globais (cena heavy metal)” (JANOTTI, 2014). Diante do já exposto nossa justificativa para o presente empreendimento de pesquisa também se assenta na exiguidade de estudos focados, sobretudo na região Nordeste do país, em relação a um fenômeno cultural carregado de críticas sociais e simbologias, o heavy metal, que está, como disse Zagni (2009):
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[...] circunscrito a segmentos sociais específicos, com dinâmicas e códigos de conduta muito próprios e que se organizam parcialmente ao arrepio do Estado, parte sob controle deste e manifestando significativas condutas de contra-controle, construindo zonas de contato e resistência, negociação e incorporação.
Em conformidade com Zagni, não é possível compreender a sociedade em sua totalidade se não entendermos suas segmentações sociais. No heavy metal encontramos segmentos marginalizados não somente pela ordem cultural e social vigente, nem pela mídia condutora de comportamentos e atitudes, “mas também pelo próprio pensamento acadêmico, fruto em larga medida desses mecanismos de controle” (ZAGNI, 2009). Noutra ponta, o interesse pela pesquisa apresentada também se constitui e justifica diante das inquietações de pesquisa que nos acompanha desde algum tempo, mais especificamente 2006/2007, quando nos deparamos, ao adentrarmos no universo acadêmico e já imersos no contexto da cena heavy metal e cultural mossoroense há anos, com ferramentas teóricas capazes de explicar, de pensar, as sociedades e grupos sociais os mais distintos ou específicos. As motivações subjetivas, portanto, não podem ser desconsideradas, mitigadas ou ofuscadas, mas sim somadas a justificativas mais amplas e pertinentes no delineamento da pesquisa para tornar possível uma leitura crítica e aprofundada sobre o fenômeno estudado.
Heavy metal, globalização, identidade cultural e sociabilidades A globalização, enquanto fenômeno mundial, é fator impactante sobre as identidades culturais, que são influenciadas, outrossim, pela existência de processos globais que transcendem as classes sociais, grupos e nações, como aponta Renato Ortiz (1994), ao falar da emergência de uma “sociedade global”, da “mundializaç~o da cultura”. Na concepção de Boaventura de Sousa Santos (2002), a globalização põe o mundo diante de um fenômeno multifacetado, interligando de modo complexo dimensões econômicas, sociais, culturais, políticas, religiosas e jurídicas, o que torna as explicações “monocausais” e “monolíticas” insuficientes para dar cabo das mais diversas questões. O autor acrescenta que a globalização
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das últimas três décadas parece combinar “a universalizaç~o e a eliminaç~o das fronteiras nacionais, por um lado, o particularismo, a diversidade local, a identidade étnica e o regresso ao comunitarismo, por outro” (op. cit.). A globalização interage com transformações outras no sistema mundial que lhe são simultâneas, como o drástico aumento da desigualdade entre países ricos e países pobres, as catástrofes ambientais e os conflitos étnicos, a sobrepopulação e a acentuada migração internacional, por exemplo. A proliferação de guerras civis, o crime organizado, bem como a democracia formal como condição política para eventual assistência internacional, também entram nesse bojo. Na perspectiva do sociólogo português, o processo de globalização, além de complexo, atravessa as mais diversas áreas da vida social, da globalização dos sistemas financeiros e produtivos à revolução nas tecnologias e práticas de informação e comunicação. O processo de globalização está relacionado igualmente às novas práticas culturais e identitárias e dos estilos de consumo globalizado. Não é possível sair incólume do processo de globalização, que trespassa todas as esferas e âmbitos nos níveis social, econômico, político e cultural. O heavy metal também se encontra em meio a esse cenário. Mas, se o global envolve “tudo”, as especificidades encontram-se perdidas em termos de totalidade, aponta Ortiz (1994), para depois esclarecer que ocorre justamente o inverso: “a mundializaç~o da cultura se revela através do cotidiano”, utilizando-se amiúde de elementos locais dentro de uma perspectiva e narrativa globais. É o local influenciando o global e o global interferindo no local, numa relação dialética, articulada e interdependente, metamorfoseando as identidades ou reiterando-as, na medida em que oferece mais padrões de ser e sentir. A identidade plenamente unificada, completa, segura e coerente é uma fantasia. Ao invés disso, à medida em que os sistemas de significação e representação cultural se multiplicam, somos confrontados por uma multiplicidade desconcertante e cambiante de identidades possíveis, com cada uma das quais poderíamos nos identificar – ao menos temporariamente (HALL, 2006, p. 13).
No âmbito da música ‘pesada’ vários exemplos podem ser dados nesse sentido, a começar por bandas do próprio Brasil, como os dois maiores expoentes
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do metal nacional dentro e fora do país: a banda mineira Sepultura e a paulista Angra, que se utilizam de elementos e batidas “próprias” da música e do folclore brasileiros em suas composições e discos, o que lhes assegura estilos singulares e reconhecimento, muito conquanto traga também como consequência certa ojeriza por parte de f~s mais conservadores, que vêem essa “mistura” como algo negativo, que “corrompe” o som e se d| no intuito de deixar a banda “mais acessível, comercial e vend|vel”. A relaç~o dialógica e de interdependência entre local e global enseja, inclusive, articulações estéticas diferenciadas. Nesse sentido, a banda israelense Orphaned Land, maior nome do metal proveniente do oriente médio, que associa elementos e influências singulares da música e cultura tradicionais do oriente médio às bases, imagem e cânone do heavy metal, é referência. A banda produz um som com traços híbridos, multiculturais, trazendo instrumentos nativos do oriente médio junto a guitarras, teclados, sintetizadores, baixo e bateria. Voltando ao exemplo brasileiro Sepultura, a banda gravou em 1995 o seminal álbum Roots, que marcaria peremptoriamente a carreira da banda e a alçaria à estratosfera da música pesada mundial. Roots não se tornou clássico apenas por sua música densa, mas sobremaneira por estar na vanguarda, pelas referências à cultura indígena brasileira, expressa na capa, nas letras e pelas menções a personagens brasileiras. Ademais, a banda chegou a gravar parte do álbum em uma tribo Xavante, localizada na região central do Brasil, com participação dos próprios índios da tribo. Roots também ficou marcado pelos elementos percussivos, tão caros à música brasileira, e traz, inclusive, o percussionista Carlinhos Brown como convidado especial na faixa “Ratamahata”. Max Cavalera (2013, p.133), ex-vocalista da banda e um dos grandes responsáveis pelo seu sucesso, nos referencia acerca dessa experiência: A experiência como um todo foi alucinante. Ninguém jamais tinha feito algo parecido. Quando voltamos pra casa pra terminar o álbum, tínhamos consciência de ter feito algo que permaneceria para sempre com a gente, não importava por quanto tempo vivêssemos. Gravar o restante das músicas de Roots foi uma grande diversão. A ideia para “Ratamahatta”, lançada como single, veio de Carlinhos Brown. Ele viajou para Los Angeles com um monte de instrumentos de percussão, como pedimos. Levou um fuldu, uma cuíca e um berimbau. Este último consiste de uma cabaça e um fio de aço. No Brasil, geralmente é tocado por negros, não é um instrumento para brancos. Por isso eu me sentia
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atraído por ele. Achei que seria algo diferente se conseguisse aprender a tocá-lo. Estava dentro da proposta de experimentação geral pela qual estávamos passando. Assim, ele levou aquilo tudo e entramos no estúdio: havia equipamento por todos os lados. Os instrumentos de percussão estavam em todo lugar; era como um playground.
Roots sintetizou uma mistura rítmica, étnica, de culturas poucas vezes empreendidas no universo metal, que é marcado por certo conservadorismo e ortodoxismo, o que, a priori, mostra-se contraditório, já que os headbangers sempre associam o estilo à liberdade, supostamente em todos os sentidos. Grande parte das bandas que incorporaram outras influências ou se arriscaram em outros estilos foram vítimas do preconceito e conservadorismo aludidos. Bandas como Metallica, Paradise Lost, Kreator, além do próprio Sepultura são apenas parcos exemplos. Ainda sobre o Sepultura, foi no álbum anterior ao Roots, o Chaos A.D., lançado em 1993, que a bandadeu os primeiros indícios dos novos itinerários que pretendia percorrer, mas foi somente com o Roots, lançado internacionalmente em 1996, que condensou mais claramente elementos locais e globais, incorporando ao seu som novas influências e sonoridades e subvertendo a ideia de homogeneização a partir dos processos de globalização. Como sublinha Ianni (1992, p. 77): No âmbito da sociedade global, as sociedades tribais, regionais e nacionais, suas culturas línguas e dialetos, religiões e seitas, tradições e utopias, não se dissolvem, mas recriam-se, a despeito dos processos avassaladores, que parecem destruir tudo, as formas sociais passadas permanecem e afirmam-se por dentro da sociedade global. Em alguma escala, todas se transformam, revelando originalidade, dinamismo, congruência interna, capacidade de intercâmbio.
Segundo o antropólogo Néstor Canclini (2001, p. 18), “ambivalências da industrializaç~o e massificaç~o globalizada dos processos simbólicos [...]”, s~o marcas da sociedade contemporânea e da globalização. Entrementes, a globalizaç~o apresenta igualmente “uma interaç~o entre fatores econômicos e culturais, causando mudanças nos padrões de produção e consumo, as quais, por sua vez, produzem identidades novas e globalizadas” (WOODWARD, 2008, p. 20).Mesmo face à globalização não é possível pensarmos em uma expressão cultural única ou em homogeneização imperante. Como nos indica Ortiz (1994, p.
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27) “a cultura mundializada n~o implica o aniquilamento das outras manifestações culturais, ela coabita e se alimenta delas”.Nalguma medida, ao menos,aspectos das culturas locais mantêm-se mesmo diante de uma tendência de homogeneização das culturas. Segundo Stuart Hall (2003, p. 45), há, de certo, dois processos opostos funcionando em meio às formas contemporâneas de globalização, o que, para ele, é algo fundamentalmente contraditório. Existem as forças dominantes de homogeneização cultural, pelas quais, por causa de sua ascendência no mercado cultural e de seu domínio do capital, dos "fluxos" cultural e tecnológico, a cultura ocidental, mais especificamente, a cultura americana, ameaça subjugar todas as que aparecem, impondo uma mesmice cultural homogeneizante — o que tem sido chamado de "McDonald-ização" ou "Nike-zação" de tudo. Seus efeitos podem ser vistos em todo o mundo, inclusive na vida popular do Caribe. Mas bem junto a isso estão os processos que vagarosa e sutilmente estão descentrando os modelos ocidentais, levando a uma disseminação da diferença cultural em todo o globo.
Stuart Hall (2003, p. 45-46) mostra que, contudo, essas “outras” tendências ainda não têm poder de confrontar e repelir as anteriores, porém apresentam capacidade, em todo lugar, de subverter e “traduzir”, de negociar ensejando a assimilação do assalto cultural global sobre as culturas mais vulneráveis. Dessa maneira, local e global est~o atados um ao outro, “n~o porque este último seja o manejo local dos efeitos essencialmente globais, mas porque cada um é a condição de existência do outro” (HALL, 2003, p. 45). Antes, ainda sob o olhar do autor, a “modernidade” era transmitida de um único centro. Hoje, ao revés, est| por toda a parte. Para Hall (2006), um dos principais nomes dos “estudos culturais”, a quest~o da “identidade” – um dos grandes enfrentamentos desse trabalho – tem enfrentado extensa discussão na teoria social. Roberto Cardoso de Oliveira (2000, p. 07), proeminente antropólogo brasileiro, segue em perspectiva análoga afirmando que “o interesse sobre o tema da identidade tem tido ultimamente, entre nós, estudiosos de ciências sociais, uma frequência extraordin|ria!”. Com efeito, o argumento para tal profus~o é o seguinte: “As velhas identidades, que por tanto tempo estabilizaram o mundo social, estão em declínio, fazendo surgir novas
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identidades e fragmentando o indivíduo moderno, até aqui visto como um sujeito unificado” (HALL, 2006, p. 07). Hall postula que as identidades modernas se encontram em processo de fragmentação, onde indivíduos são descentrados de si mesmos, mas também de seu lugar no mundo social e cultural. Há um deslocamento dos “sujeitos”, uma perda do “sentido de si” est|vel 17. Essa configuraç~o constitui uma “crise de identidade”, segundo o autor jamaicano, dando conta de sublinhar que essa é a linha de raciocínio dos teóricos que acreditam estarem em colapso as identidades modernas diante da modernidade tardia. Sob a acepção de Hall (1990, p. 43 apud KOBENAMERCER, 2006, p. 09), verbi gratia, a identidade se transmuda em querela somente em vias de crise, quando algo tido como fixo, estável, coerente, é deslocado pela experiência da incerteza e da dúvida. O colapso da identidade surge como “resultado das mudanças estruturais e institucionais. O próprio processo de identificação, através do qual nos projetamos em nossas identidades culturais, tornou-se provisório, vari|vel e problem|tico”. (HALL, 2006, p.12). Kathryn Woodward (2008, p. 08) expõe que as identidades adquirem sentido através “da linguagem e dos sistemas simbólicos pelos quais elas s~o representadas”, ao passo em que, como atesta Velho (1999, p. 119), a cultura é uma expressão simbólica. Ainda em consonância com o pensamento de Woodward, a construção da identidade, além de simbólica é também social. Ademais, seu caráter é eminentemente relacional, uma vez que, em grande parte dos casos, demanda, para existir, algo de fora dela, a saber, de outra identidade. “A identidade é, na verdade, relacional, e a diferença é estabelecida por uma marcação simbólica relativamente a outras identidades” (WOODWARD, 2008, p. 09). Outra forma pela qual as identidades estabelecem suas reivindicações é por meio do apelo a antecedentes históricos (op. cit., p. 11). Contudo, mesmo dentro de um grupo, sociedade, tribo ou congênere, as identidades podem não ser unificadas. Contradições podem surgir no seu interior tendo que ser negociadas. Seguindo o O mesmo Stuart Hall mostra as limitações dessa perspectiva que, para ele, malgrado parecer uma formulação simplista, possibilita esboçar um quadro coerente e aproximado pertinente às conceptualizações e mudanças do sujeito moderno e sua ligação com a formulação das identidades. Para mais cf.: HALL, Stuart. A Identidade Cultural na Pós-Modernidade. Rio de Janeiro: DP&A, 2006. 17
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ponto de vista da autora Woodward, pode-se dizer que a identidade se distingue por aquilo que ela n~o é, sendo marcadas as identidades pela “diferença”. Para Judith Butler (2003) a identidade não é algo, mas sim efeito que se manifesta num jogo de referências, em meio a um regime de diferenças. Um headbanger, por exemplo, pode empreender uma postura mais radical e conservadora, reprovando determinadas bandas, entre seus pares e ouvir essas mesmas bandas na privacidade do seu lar ou longe daqueles que podem emitir julgo desfavorável. Segundo Michel Agier (2001), levando a cabo a abordagem contextual, não existe definição de identidade em si mesma. Os processos identitários não existem fora de contexto, são sempre relativos a algo específico que está em jogo. A identidade remete, portanto, a um alhures, a um antes e aos outros. Expressa o antropólogo francês (2001, p. 10) que: O processo identitário, enquanto dependente da relação com os outros (sob a forma de encontros, conflitos, alianças etc.), é o que torna problemática a cultura e, no final das contas, a transforma. O mesmo ocorre com relação à mudança em um mesmo contexto local. Em uma situação de mudança social acelerada, como a que se vive em todas as partes do mundo ao longo das últimas décadas, os estatutos sociais se recompõem e os indivíduos devem redefinir rapidamente sua posição, em uma ou duas gerações.
Mostra Agier que é nesse momento que a questão identitária torna-se um problema de ajuste, concomitantemente social na sua definição e individual em sua experiência. “A relaç~o do indivíduo consigo próprio ao mesmo tempo que com sua cultura e sua linhagem se torna ent~o problem|tica”. N~o h| mais a presença de identidades totalmente coerentes e integrais, como já expunha Hall (2006, p. 84). Em toda parte, estão emergindo identidades que não são fixas, mas que estão suspensas, em transição, entre diferentes posições; que retiram seus recursos, ao mesmo tempo, de diferentes tradições culturais; e que são produtos desses complicados cruzamentos e misturas culturais que são cada vez mais comuns num mundo globalizado (op. cit., p. 88).
De todo modo, há toda uma esfera simbólica e que se dá no âmbito dos signos e que assegura uma certa “unidade” em termos de uma identidade, seja ela tangente ao próprio sujeito, quer seja em seu viés grupal.
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No âmbito da música, no heavy metal, especificamente, a título de exemplificação, headbangers, enquanto grupo, têm parte de suas identidades denotadas desde as vestimentas até o compartilhamento do êxtase coletivo dos shows, das relações de sociabilidade, das paixões por bandas e músicos, da performance corporal e de uma certa perspectiva de mundo e de relacionamento com a música, a arte e com a constituição da subjetividade, por meio do que estamos denominando aqui de uma ética da resistência, a saber, uma construção identitária que leva em consideração toda uma trajetória vivenciada e marcada – em maior ou menor intensidade – por aprovações, óbices, sanções sociais e resiliências. O heavy metal, portanto, enquanto manifestação cultural e fonte de expressão,contribui no processo de construção das práticas identitárias, das relações e dos laços de sociabilidades, tendo nos shows o suprassumo desses processos, onde toda a “irmandade” headbanger se manifesta e as alianças se fortalecem. No que tange à associação entre os headbangers, ainda à guisa de ilustração, ela parece se aproximar, em grande medida, do modelo de interação e sociabilidade concebido por Simmel. Georg Simmel, sociólogo alemão de grande envergadura, elaborou um conceito de sociabilidade enquanto tipo ideal, um “social puro”, segundo Frúgoli Jr. (2007). A saber, um conceito de sociabilidade entendido como “uma forma lúdica arquetípica de toda a socialização humana, sem quaisquer propósitos, interesses ou objetivos que a interação em si mesma, vivida em espécies de jogos, nos quais uma das regras implícitas seria atuar como se todos fossem iguais” (FRÚGOLI JR., 2007, p. 09). Tal modo de associação se mostra presente, em alguns momentos, entre os headbangers, principalmente nos shows e eventos destinados ao metal. Simmel (2006) assinala que, para além de conteúdos específicos, as formas de sociação são acompanhadas pelo sentimento e satisfação de estar junto socializado, um “impulso de sociabilidade”, em sua efetividade pura, que se desvencilha das realidades da vida social e do processo de sociação como valor e felicidade, constituindo o que ele chamou de “sociabilidade” [Geselligkeit], onde se coloca à parte as motivações concretas ligadas a delimitações e finalidades específicas da vida e adquirindo da realidade um papel simbólico capaz de preencher a vida e dotá-la de significado. Porém, as formas de associações entre os
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indivíduos costumam igualmente levar em consideração elementos identificadores e de distinção, estabelecendo parâmetros e guiando socialidades. Enquanto grupo, ou tribo, esses indivíduos parecem compor o que Maffesoli, sociólogo francês, denominou neotribalismo. Maffesoli enxerga o individualismo sendo substituído pela necessidade de identificação com um grupo, com uma tribo. Não se trata, no entanto, de uma nova cultura, afirma o sociólogo, mas de sua metamorfose como aspecto decisivo e factual. Desse modo, na perspectiva maffesoliana (2006) podemos falar que a partir da concepção que determinada época faz da alteridade é que pode ser dada a forma essencial de uma determinada sociedade. Destarte, Maffesoli comunica que ao lado da existência de uma sensação coletiva, assistimos ao desenvolvimento de uma “lógica de rede”. Ou seja, com os processos de atração e repulsão se fazendo por escolha. Assevera ainda Maffesoli que assistimos um processo que ele denomina de “socialidade eletiva”, percebendo que, embora este mecanismo sempre tenha existido, no que diz respeito à modernidade ele foi temperado pela restrição do político, que faz intervir o compromisso e a finalidade, ultrapassando de muito os interesses particulares e o localismo. Sob a ótica desse autor (MAFFESOLI, 2004, p. 28): De agora em diante, parece-me que o indivíduo deve dar o lugar a outra coisa. O termo resta ainda a ser encontrado. Da minha parte, eu proponho aquele de “pessoa” no sentido etimológico do termo (persona). Isso significa que somos confrontados {s “m|scaras” e que nós temos menos uma identidade do que identificações. A aquisição da identidade era até agora o ápice da educação, o apogeu da socialização.
Porém, para Maffesoli, assistimos agora a passagem da identidade para as identificações múltiplas, passagem capaz de fundar o renascimento de formas tribais de existência. O tribalismo seria, assim, uma metáfora profícua para tentar, ao menos provisoriamente, mostrar a saturação do individualismo e sua derrocada diante do ressurgimento dos microconjuntos e de formas comunitárias (MAFFESOLI, 2004).
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Frequentemente, temos o hábito de insistir, nos dias de hoje, no indivíduo ou no individualismo. De fato, agora prevalecem as “afinidades eletivas” que n~o s~o mais o feito de alguns, mas o feito de um grande número de pessoas, constituindo-se em tribos no seio das nossas instituições (MAFFESOLI, 2004, p. 28).
O autor (op. cit.) complementa o raciocínio inferindo que diferentemente do contrato que manifesta aspecto racional e voluntário vem se constituindo uma outra maneira de ser e, por conseguinte, uma outra forma de socialidade. Essa outra maneira de ser vai reinvestir os elementos que a análise social tinha deixado de lado: o emocional e o afetual. O afetual e o emocional não são unicamente da ordem do emotivo ou do afetivo, mas um clima específico baseado nos processos de contaminação, no fato de que toda uma série de “transes”, {s vezes macroscópicos, frequentemente microscópicos, constitui o terreno da vida social.
Lemos (1997), inscreve que o tribalismo refere-se a uma vontade de “estar junto”, onde o mais importante é o compartilhamento de emoções e sentimentos em comum. Para ele: Isso vai formar o que Maffesoli identifica como uma “cultura do sentimento”, formada por relações t|cteis, por formas coletivas de empatia. Essa cultura do sentimento não se inscreve mais em nenhuma finalidade, tendo como única preocupação, o presente vivido coletivamente. [...] Maffesoli propõe analisar esta nova “ambiance” comunitária pós-moderna a partir do que ele chama de “paradigma estético”. Para Maffesoli, a socialidade tribal, greg|ria e emp|tica contemporânea, que se apoia sobre as multi-personalidades (as máscaras do teatro cotidiano), age a partir de uma ética da estética e não a partir de uma moral universal.
A sociedade, grupo ou tribo, elabora a partir daí um ethos, uma forma de ser, um modo de existir. Todavia, adverte-nos Hall (1997 apud WOODWARD, 2008, p. 30), que em todos os nossos encontros e interações, não é difícil perceber que somos posicionados diferentemente, em diferentes lugares e momentos, vistas aos diferentes papéis sociais que estamos exercendo. Contextos sociais distintos fazem com que nos envolvamos em diferentes significados sociais. Complementa Kathryn Woodward (2008, p. 30):
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Em todas essas situações, podemos nos sentir, literalmente, como sendo a mesma pessoa, mas nós somos, na verdade, diferentemente posicionados pelas diferentes expectativas e restrições sociais envolvidas em cada uma dessas diferentes situações, representando-nos, diante dos outros, de forma diferente em cada um desses contextos. Em um certo sentido, somos posicionados – e também posicionamos a nós mesmos – de acordo com os “campos sociais” nos quais estamos atuando.
H| sempre uma delimitaç~o “posicional”, pois, como nos mostra Woodward e Hall, a complexidade da vida moderna demanda esse tipo de postura, que é assumir identidades diferentes. Entretanto, essas identidades podem se chocar, estabelecendo um conflito. Isso decorre da interferência de uma identidade em relação à outra e das expectativas geradas em torno das identidades exercidas. Um profícuo exemplo pode ser visto tal qual segue: Para ser “bom pai” ou uma “boa m~e”, devemos estar disponíveis para nossos filhos, satisfazendo suas necessidades, mas nosso empregador pode exigir nosso total comprometimento. A necessidade de ir a uma reunião de pais na escola do filho ou da filha pode entrar em conflito com a exigência de nosso empregador para que trabalhemos até tarde (WOODWARD, 2008, p. 32).
Como supramencionado, alguns conflitos exsurgem a partir das tensões que envolvem as normas sociais e as expectativas geradas quanto ao exercício ou uso das identidades. Identidades diferentes (mãe e lésbica, por exemplo, ou headbanger e forrozeiro) e que rompam com as expectativas engendradas serão construídas como “desviantes”, estranhas, seja pela sociedade, enquanto “todo social”, quer seja pelo grupo no qual o indivíduo se encontra inserido. É consenso entre diversas correntes e autores das Ciências Sociais que estamos diante de uma nova contextura social, que apresenta aspectos singulares quando comparada a outras épocas. A aurora dessa mudança de paradigma, que rompe com as manifestações da sociedade tradicional, suscitou a curiosidade e interesse da Ciência, em especial das Ciências Humanas. Hipermodernidade, modernidade tardia, capitalismo tardio, pós-modernidade e modernidade líquida, além de “contemporaneidade” (denominaç~o mais genérica e livre), s~o apenas
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algumas das alcunhas para essa suposta e nova ordenação social.18 Pluralidade e instabilidade são aspectos particulares de nossa época, ao tempo em que isso não constitui mais nenhuma grande novidade no mundo ocidental, uma vez que desde o advento da Revolução Francesa, as mudanças no mundo têm ocorrido numa velocidade nunca antes vista no que tange aos nascimentos, transformações e desaparecimento de grupos e formas de relações sociais, assim como a emergência, mutações e concretizações de práticas e projetos institucionais (SILVA, 2008). Segundo Zygmunt Bauman (2007), estamos diante do que ele denominou de “modernidade líquida”. Para o autor, ‘líquido-moderna’ é uma sociedade em que as condições sob as quais agem seus membros mudam num tempo mais curto do que aquele necessário para a consolidação, em rotinas e hábitos, das formas de agir e ser. A liquidez da vida e da sociedade se alimenta e se revigora de forma mútua. “A vida líquida, assim como a sociedade líquido-moderna, não pode manter a forma ou permanecer em seu curso por muito tempo” (2007). Para Bauman (2001), um dos problemas que circundam a questão da identidade na sociedade “líquido-moderna” diz respeito { grande oferta de padrões existentes. Para o autor, a liquidez da vida e da sociedade se alimenta e se revigora de forma recíproca. A vida líquida, tal qual a sociedade líquido-moderna, não é capaz de manter a forma ou permanecer em seu curso por um longo tempo. Um ritmo frenético instaurou-se no mundo e impulsionadas sobremaneira pela revolução digital e da informática as mudanças sucedem-se de maneira cada vez mais célere. Sendo assim, evita-se incorporar definitivamente uma única identidade, preferindo-se trocá-la, como alguns animais trocam de pele, sempre que considerar necessário e oportuno. Os indivíduos de identidade líquida, fluida, são imediatistas, vivem intensamente o presente, para sobreviver (tanto quanto possível) e para obter o máximo de satisfação possível, assevera ele. Fixar-se ao solo, num único lugar, também não é visto com bons olhos, já que o solo pode ser alcançado e abandonado a bel-prazer, quando e assim que se queira. A identidade é reciclável e o Just do it 19, o ser original, é pressuposto indispensável na sociedade
Não é objetivo nosso, ao menos nesse momento e lugar, discutir a fundo a noção/conceito de pósmodernidade e em que grau ou medida ele se aplica à nossa realidade e tempo. 19 “Faça você mesmo”, em traduç~o livre. 18
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líquido-moderna. Colin Campbell (2004), por sua feita, postula que no contexto em riste os indivíduos se definem em termos de seus gostos e consumo porquanto sentem que é isso o que de forma mais clara sintetiza quem são, estando a real identidade nas preferências. Porém, o verdadeiro local onde reside a identidade é na reação aos produtos, e não nos produtos em si, na medida em que a identidade é descoberta e não comprada. Desse modo, o consumo, para ele, não gera a tão propalada crise das identidades, e ao contrário, poderia inclusive ajudar a resolver tal dilema. Ainda diante do fenômeno do consumo, segundo Karl Mannheim (apud NUNES, 2007), haveria uma espécie de comunhão mental entre os jovens, sociologicamente realidades tangíveis, que se aproximam e partilham referências, contribuindo para a formação de um grupo. A participação no grupo tem seu efeito socializante, onde ao lado dos dados mentais, emergem como elementos constitutivos a linguagem apropriada ao grupo, a vestimenta com suas características de moda (a marca do tênis, da camiseta, ou o corte de cabelo) e a própria gestualidade corporal, são fatores que v~o moldando os indivíduos “que, por esses signos, são reconhecidos e se reconhecem. O consumo aparece como instrumento que vincula socialmente os indivíduos, dando-lhes um conjunto de características que os distinguem e os individualizam” (NUNES, 2007). Esse conjunto integrado, constituído principalmente de elementos visuais distingue de maneira imediatamente identificável determinado indivíduo e, em alguns casos, até determinados grupos, funcionando inclusive como peça de identificação. Julgamos pertinente, nesse ponto, estabelecer certa diferenciação entre identidade e subjetividade, conceitos reiteradas vezes utilizados como sinônimos, que, todavia, apresentam particularidades, embora estejam ligados, intercalados. Tomaz Tadeu Silva nos faz essa distinção: Os termos “identidade” e “subjetividade” s~o, {s vezes, utilizados de forma intercambiável. Existe, na verdade, uma considerável sobreposiç~o entre os dois. “Subjetividade” sugere a compreens~o que temos sobre o nosso eu. [...] Entretanto, nós vivemos nossa subjetividade em um contexto social no qual a linguagem e a cultura dão significado à experiência que temos de nós mesmos e no qual nós adotamos uma identidade (SILVA, 2008, p.55).
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Conforme assinala Stuart Hall (2006, pp. 21-22), a identidade muda de acordo com o modo como o sujeito é representado ou interpelado. A identificação, sendo assim, n~o é autom|tica, podendo ser ganha ou perdida, dentro do “jogo de identidades” e suas consequências políticas, constituindo-se enquanto mudança de uma política de identidade para uma política da diferença. Hall ainda explana que a ideia de identidade está atrelada às conceptualizações acerca do sujeito moderno e suas mudanças históricas. Utilizo o termo “identidade” para significar o ponto de encontro, o ponto de sutura, entre, por um lado, os discursos e as práticas que tentam nos “interpelar”, nos falar ou nos convocar para que assumamos nossos lugares como os sujeitos sociais de discursos particulares, e, por outro lado, os processos que produzem subjetividades, que nos constroem como sujeitos aos quais se pode “falar” (HALL, 2008, p.112).
As identidades, continua Hall (op. cit.), são dois pontos de apego temporário às posições-de-sujeito construídos para nós pelas práticas discursivas. Tomaz Tadeu Silva também nos traz elementos interessantes e relevantes para pensarmos as conceptualizações acerca das identidades e sua relação com a “diferença”. Segundo ele (2008, p. 74), em um primeiro momento parece f|cil definir identidade e diferença a partir do critério da auto-referenciação: aquilo que se é, em relação à primeira, e aquilo que não é, no que concerne à segunda. Em essência, identidade e diferença mantêm uma estreita relação de dependência. Essa relação tende a ser eclipsada devido expressarmos a identidade de maneira afirmativa. Quando digo “sou brasileiro parece que estou fazendo referência a uma identidade que se esgota em si mesma. “Sou brasileiro” – ponto. Entretanto, eu só preciso fazer essa afirmação porque existem outros seres humanos que não são brasileiros. Em um mundo imaginário totalmente homogêneo, no qual todas as pessoas partilhassem a mesma identidade, as afirmações de identidade não fariam sentido. De certa forma, é exatamente isto que ocorre com nossa identidade de “humanos”. É apenas em circunstâncias muito raras e especiais que precisamos afirmar “somos humanos”.
A assertiva “sou brasileiro”, implica uma série de negações, manifestações negativas de identidade, de diferenças. “Por tr|s da afirmaç~o “sou brasileiro” deve-se ler: “n~o sou argentino”, “n~o sou chinês”, “n~o sou japonês” e assim por
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diante, numa cadeia, neste caso, quase intermin|vel” (SILVA, 2008, p. 75). Congenericamente, afirmações acerca da diferença só fazem sentido quando compreendidas em sua relação com as afirmações sobre a identidade, ao passo em que “as afirmações sobre diferença também dependem de uma cadeia, em geral oculta, de declarações negativas sobre (outras) identidades” (op. cit.). Posto isso, é possível inferir, sob a regência do autor, que identidade e diferença, pois, não podem ser separados; um depende do outro. Faz-se mister esclarecer que identidade e diferença são forjadas no contexto das relações socioculturais e políticas; criadas através de atos de linguística. Ou seja, identidade e diferença são elementos que só encontram sentido no seio de uma cadeia de diferenciação linguística. São seres da cultura e dos sistemas simbólicos que a compõem. Silva trata de ressalvar, não obstante, que a própria linguagem, como sistema de significação, é uma estrutura instável, vacilante. A citação a seguir enseja a compreensão. Essa indeterminação fatal da linguagem decorre de uma característica fundamental do signo. O signo é um sinal, uma marca, um traço que está no lugar de uma outra coisa, a qual pode ser um objeto concreto (o objeto "gato"), um conceito ligado a um objeto concreto (o conceito de "gato") ou um conceito abstrato ("amor"). O signo não coincide com a coisa ou o conceito. Na linguagem filosófica de Derrida, poderíamos dizer que o signo não é uma presença, ou seja, a coisa ou o conceito não estão presentes no signo. Mas a natureza da linguagem é tal que não podemos deixar de ter a ilusão de ver o signo como uma presença, isto é, de ver no signo a presença do referente (a "coisa") ou do conceito. É a isso que Derrida chama de "metafísica da presença". Essa "ilusão" é necessária para que o signo funcione como tal: afinal, o signo está no lugar de alguma outra coisa. Embora nunca plenamente realizada, a promessa da presença é parte integrante da idéia de signo. Em outras palavras, podemos dizer, com Derrida, que a plena presença (da "coisa", do conceito) no signo é indefinidamente adiada. É também a impossibilidade dessa presença que obriga o signo a depender de um processo de diferenciação, de diferença, como vimos anteriormente (SILVA, 2008, pp. 78-79).
Dentro de toda sua complexidade, as construções de identidades, são trespassadas igualmente por relações de poder. Silva (2008) nos dá a ideia, apontando que o poder de definição quanto à identidade e de marcação da diferença é insepar|vel das relações mais amplas de poder. “A identidade e a diferença não são, nunca, inocentes. Podemos dizer que onde existe diferenciação -
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ou seja, identidade e diferença - aí est| presente o poder.” (op. cit.., p. 81). O autor continua mais à frente sublinhando que a diferenciação é o processo central pelo qual a identidade e diferença são produzidas. Entrementes, há uma série de outros processos que traduzem essa diferenciação ou que com ela estabelecem uma relação estreita. São outras tantas marcas da presença do poder: incluir/excluir ("estes pertencem, aqueles não"); demarcar fronteiras ("nós" e "eles"); classificar ("bons e maus"; "puros e impuros"; "desenvolvidos e primitivos”; “racionais e irracionais”); normalizar (“nós somos normais; eles s~o anormais”). A afirmaç~o da identidade e a marcaç~o da diferença implicam, sempre, as operações de incluir e de excluir. Como vimos, dizer "o que somos" significa também dizer "o que não somos". A identidade e a diferença se traduzem, assim, em declarações sobre quem pertence e sobre quem não pertence, sobre quem está incluído e quem está excluído. Afirmar a identidade significa demarcar fronteiras, significa fazer distinções entre o que fica dentro e o que fica fora. (Ibid., pp. 81-82).
Há uma pujante separação entre "nós" e "eles", em se tratando de construções identitárias. Demarcações e separações de fronteiras e busca de distinções que afirmam e reiteram relações de poder. Silva ainda anota que as demarcações “nós” e “eles”, para além da categoria gramatical dos pronomes, evidenciam posições-de-sujeito substancialmente marcadas por relações de poder. A título de proposição, Michel Agier (2001, p. 12), escreve que, mais que nunca, diante da complexidade crescente das realidades locais, apresenta-se como necessário se empreender uma abordagem situacional das culturas e das identidades à feita de um instrumento de compreensão das lógicas observadas diretamente, e igualmente tal como princípio de vigilância antiexótica da antropologia, devendo o observador direcionar especial atenção para as interações e situações reais onde há o engajamento dos atores. Cabe-nos dizer, alicerçado nas elucubrações de Canclini (2006), que as identidades se reestruturam, na senda de um mundo t~o “fluidamente interconectado”,
em
meio
a
conjuntos
interétnicos,
transclassistas
e
transnacionais. As formas diversas em que os membros de cada grupo se apropriam dos híbridos e heterogêneos repertórios e dos bens e mensagens disponíveis nos circuitos transnacionais engendram novas maneiras de
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segmentação, situando-se em meio à heterogeneidade e compreender a produção das hibridações, que está ligada aos movimentos demográficos, às diásporas, as viagens, deslocamentos nômades e as fronteiras cruzadas, oportunizando o contato entre diferentes identidades. Trazemos à baila, agora, Manuel Castells, que, a nosso entender, lança mão de uma pertinente e interessante concepção de identidade. No que diz respeito a atores sociais, diz esse autor (1999), identidade é o processo de construção de significado baseado em um atributo cultural, ou ainda um conjunto desses atributos culturais inter-relacionados, que prevalecem sobre outras fontes de significado. Com efeito, conforme segue, o autor estabelece uma importante distinç~o entre ‘identidade’ e ‘papel social’: Para um determinado indivíduo ou ainda um ator coletivo, pode haver identidades múltiplas. No entanto, essa pluralidade é fonte de tensão e contradição tanta na auto-representação quanto na ação social. Isso porque é necessário estabelecer a distinção entre a identidade e o que tradicionalmente os sociólogos têm chamado de papéis, e conjuntos de papéis. Papéis (por exemplo, ser trabalhador, mãe, vizinho, militante socialista, jogador de basquete, frequentador de uma determinada igreja e fumante, ao mesmo tempo) são definidos por normas estruturadas pelas instituições e organizações da sociedade. A importância relativa desses papéis no ato de influenciar o comportamento das pessoas depende de negociações e acordos entre os indivíduos e essas instituições e organizações. Identidades, por sua vez, constituem fontes de significados para os próprios atores, por eles originadas, e construídas por meio de um processo de individuação. Embora, conforme argumentarei adiante, as identidades também possam ser formadas a partir de instituições dominantes, somente assumem tal condição quando e se os atores sociais as internalizam, construindo seu significado com base nessa internalização. Na verdade, algumas autodefinições podem também coincidir com papéis sociais, por exemplo, no momento em que ser pai é a mais importante autodefinição do autor (CASTELLS, 1999, p. 23).
Contudo, adverte Castells (op. cit.), identidades são fontes mais relevantes de significado do que papéis, em virtude do processo de autoconstrução e individuação que envolvem. Em linhas gerais, é possível dizer que identidades organizam significados, enquanto papéis organizam funções. O significado é definido, para o sociólogo espanhol (1999, p. 23) como “a identificaç~o simbólica, por parte de um ator social, da finalidade da aç~o praticada por tal ator”. Para ele o significado, para a maioria dos atores na sociedade em rede, organiza-se em torno
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de uma identidade primária, que estrutura as demais e que é autossustentável ao longo do tempo e do espaço. Para Castells (op. cit., p. 24) “a construç~o identit|ria vale-se da matéria-prima proveniente da história, geografia, biologia, instituições produtivas e reprodutivas, pela memória coletiva e por fantasias pessoais, pelos aparatos de poder e revelações de cunho religioso”. Entretanto, esses materiais s~o processados pelos indivíduos, grupos sociais e sociedades, que passam a reorganizar seu significado amparados nas tendências sociais e projetos culturais arraigados em sua estrutura social e em sua visão de tempo e espaço. Castells (1999, p. 25) propõe distinguir entre três formas e origens a construção de identidades. São elas: Identidade legitimadora: introduzida pelas instituições dominantes visando expandir e racionalizar sua dominação em relação aos atores sociais; Identidade de resistência: criada por atores sob a lógica da dominação, em condições desvalorizadas e/ou estigmatizadas, criando trincheiras de resistência e sobrevivência, apresentando como basilares princípios diferentes ou opostos ao status quo; Identidade de projeto: quando os atores sociais, usando qualquer material cultural ao seu alcance, buscam construir uma nova identidade para redefinir sua posição e situação na sociedade e, a partir de tal, transformar as estruturas sociais.
Identidades que se mostram de início como resistência podem, ao cabo, resultar em projetos, ou até mesmo tornarem-se dominantes diante das instituições
sociais,
transformando-se
posteriormente
em
identidades
legitimadoras para instituir sua dominação. As identidades headbangers, diante do que já pudemos observar, parecem estar mais próximas da identidade de resistência, conquanto não haja um movimento organizado ou intuito explícito, um caminho sendo percorrido, a fim de se tornar uma identidade de projeto. Diferentemente do punk, que em muitos momentos apresenta uma proposta ideológica relativamente definida e uma cosmovisão estabelecida, o metal, salvo em poucos momentos e estilos, com especial ênfase para o thrash metal, parece - 89 -
não apresentar elementos políticos universais em sua composição. Desse modo, é passível de ser interrogado em relaç~o a ser ou n~o um “movimento”, dada a exígua conotação política enquanto movimento social e político organizado e deliberado. Em generalidade, sobretudo em “tempos líquidos”, parece haver uma busca considerável por diferenciação e distinção e, por outro lado, criando um paradoxo, uma busca por associaç~o, aceitaç~o e reconhecimento. Uma espécie de “diferente igual”. Vemos, amiúde, indivíduos ponderando suas ações e atitudes para que sejam consonantes e não causem perplexidade e ojeriza noutrem. Arraigadas em uma cultura e/ou consciência coletiva que sobrepõe, em maior ou menor grau, tempo, dita valores e comportamentos, parte das pessoas se vê diante do dilema da “aç~o natural” ou da “artificialidade do agir” visando { satisfaç~o da sociedade e em menoscabo ao seu próprio âmago. Chega a ser trivial pautar ações pelo receio do “olhar diferente” e até da exclus~o social. A instauração social de préestabelecimentos e dicotomias e a criação de uma conjuntura social baseada nesses preceitos perfazem um amálgama no qual o indivíduo, com mais ou menos força, preocupa-se com o seu autopoliciamento e com o viver condizente com a expectativa que a sociedade ou grupo tem acerca dele. Porém, tomando como exemplo os espaços societais do heavy metal, há determinadas estruturas e normatizações que devem ser observadas, sob pena de sofrerem os “incautos” ou “negligentes” pequenas coerções e sanções dentro do próprio grupo/tribo, caso não se leva a sério o cânone comportamental a ser seguido e preconizado, contrastando com o próprio ideário de liberdade - já supracitado - geralmente presente quando se fala em heavy metal. Ou seja, enquanto um constructo assentado em uma identidade e ética da resistência, ainda mais levando-se em consideração as gerações mais antigas,há pouca liberdade de transição e fluidez comportamental e de identidades nesses espaços societais, na medida em que parece subsumir-se empreender e denotar uma postura a partir de enunciados prescritivos, almejando manter uma “legitimidade”. Contudo, em uma analogia com o passado recente, há 20 anos, por exemplo, já se nota uma acentuada flexibilização nesse sentido, embora adentrar o universo heavy metal, enquanto
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“candidato” a headbanger ainda demande trilhar certos caminhos e passar por determinadas “aprovações”, o que, frisamos, vem perdendo cada vez mais força.
(Des)caminhos e rotas de fuga
Empreender a tentativa de adentrar no universo heavy metal, como cientista social, já fazendo parte dele como entusiasta e apreciador do estilo, surge como uma aguilhoada à parte, ao passo em que é preciso livrar-se de alguns preconceitos, das noções e visões cristalizadas e do apego subjetivo, conquanto acreditemos que não seja mister prescindir da subjetividade headbanger, digamos, para lograr o êxito necessário na desenvolução da pesquisa e na obtenção de seus resultados. Paralelo à pessoa do headbanger há a do cientista; enquanto pessoa do cientista também há a do headbanger, o que não exime a necessidade de transformar o “familiar em exótico” (DAMATTA, 1978), de uma “descriç~o densa” (GEERTZ, 1989) ou de um “mergulho profundo” nas |guas do metal. Foi exatamente essa simbiose (aliar a perspectiva científica à subjetividade headbanger) que deu sentido às pesquisas de Sam Dunn20. Assim, nas palavras de Peirano (2008, p. 3, 4), “a personalidade do investigador e sua experiência pessoal não podem ser eliminadas do trabalho etnográfico. Na verdade, elas estão engastadas,
plantadas
nos
fatos
etnográficos
que
são
selecionados
e
interpretados”. De todo modo, é necess|rio certo “afastamento”, oportunizar o “estranhamento”, na medida em que a Antropologia deve nos desestabilizar, como aponta Goldman (2008, p. 7): Os discursos e práticas nativos devem servir, fundamentalmente, para desestabilizar nosso pensamento (e, eventualmente, também nossos sentimentos). Desestabilização que incide sobre nossas formas dominantes de pensar, permitindo, ao mesmo tempo, novas conexões com as forças minoritárias que pululam em nós mesmos.
Em relação ao universo da pesquisa nos utilizamos de técnicas de observação participante e elementos da etnografia, além de entrevistas Antropólogo e cineasta canadense, famoso por documentários/pesquisas sobre o universo heavy metal [como Global Metal e A Headbanger’s journey e bandas como Iron Maiden, Rush, Metallica, etc. 20
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estruturadas. O estudo da cultura heavy metal vem sendo desenvolvido prioritariamente com os frequentadores de shows, headbangers com idade entre 14 e 70 anos. Por se tratar de uma pesquisa em desenvolvimento – é preciso sublinhar novamente –, não apresentamos aqui resultados definitivos, já que o que trazemos como pauta é parte da reflexão feita no primeiro capítulo, sobretudo, da dissertaç~o intitulada “Entre universos simbólicos e guitarras distorcidas identidade, música e significado entre os headbangers de Mossoró/RN”. Pretendemos lançar na íntegra, em formato livro, ainda no decorrer de 2016 o resultado da pesquisa. A opção sobremaneira pela observação participante, com elementos da etnografia, enquanto constitutivos da metodologia, se dá por acreditarmos que dessa forma nos aproximaremos factualmente da realidade a qual nos propomos compreender e estudar. Outrossim, por acreditarmos que o método etnográfico, como postula a antropóloga Urpi Uriarte (2012), “consiste num mergulho profundo e prolongado na vida cotidiana desses Outros que queremos apreender e compreender”. Nessa perspectiva Magnani (2002, p.17) aponta que o método etnográfico não se confunde nem se reduz propriamente a uma técnica, mas pode usar ou servir-se de várias, de acordo com as circunstâncias de cada pesquisa; é, antes de tudo, um modo de acercamento e apreensão do que um conjunto de procedimentos. Esse “modo de acercamento” ou “mergulho” tem suas fases. A primeira delas é um mergulho na teoria, informações e interpretações já feitas sobre a temática e a população específica que queremos estudar. A segunda consiste num longo tempo vivendo entre os “nativos” (rurais, urbanos, modernos ou tradicionais); esta fase se conhece como “trabalho de campo”. A terceira reside na escrita, que se faz quando se volta para a casa. Nas páginas seguintes falaremos sobre cada uma destas três fases, iniciando pela segunda, em virtude de requerer uma exposição mais detalhada (URIARTE, 2012, p. 175).
Goldman (2008, p. 7), por sua feita, nos fala que os discursos e práticas nativos devem servir, fundamentalmente, para desestabilizar nosso pensamento e, de modo eventual, nossos sentimentos. Desestabilização, segundo ele, que incide sobre nossas formas dominantes de pensar, e que permitem, simultaneamente, novas conexões com as forças minoritárias que pululam em nós mesmos.
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Seguimos, então, na perspectiva de Urpi Uriarte (2012), onde, a rigor, fazer etnografia n~o consiste apenas em “ir a campo”, ou “ceder a palavra aos nativos” ou ter um “espírito etnogr|fico”. Fazer etnografia supõe uma vocação de desenraizamento, uma formação para perceber o mundo de forma descentrada, uma preparaç~o teórica para entender o “campo” que se almeja pesquisar, um “se jogar de cabeça” no mundo que pretendemos desvendar, um tempo prolongado dialogando com as pessoas que buscamos entender, levando a cabo, seriamente, a sua palavra, encontrando uma ordem nas coisas e, depois, colocar as coisas em ordem por meio de uma escrita realista, polifônica e intersubjetiva. No que concerne ainda à nossa pesquisa, trata-se de uma etnografia em contexto urbano. A etnografia urbana olha, assim, ‘de perto e de dentro’, tentando captar, mediante a experiência do trabalho de campo prolongado ou da ‘frequentaç~o profunda’, a perspectiva dos próprios nativos urbanos (transeuntes, moradores, usuários, sujeitos políticos como associações de bairro etc.) em relação a como transitam, como usufruem, como utilizam, como estabelecem relações. Então, os resultados da etnografia urbana (e suas narrativas) são muito diferentes das realizadas a partir apenas da observaç~o (mesmo que se trate de uma “observaç~o encarnada”), porque usar t~o somente a observaç~o gera um discurso subjetivo, enquanto que fazê-lo através da observação-participante produz intersubjetividade. O que a etnografia urbana reflete é esta intersubjetividade, este discurso a partir de uma relação, como bem expressou Viveiros de Castro, e não a subjetividade do pesquisador, isto é, as revelações intimistas do autor, suas próprias sensações, seu Eu. O trabalho de campo é concebido como uma experiência de imersão subjetiva, produtora de uma intersubjetividade (GUBER, 2005 apud URIARTE, 2012, p. 181).
Como nos revela Uriarte (2012), a rigor, fazer etnografia consiste muito além do que “ir a campo”, “ceder a palavra aos nativos” ou possuir supostamente um “espírito etnogr|fico” ou uma sensibilidade aguçada. Supõe desenraizamento, perceber o mundo de maneira descentrada, disposição mental e intelectual necessária para o entendimento das diversidades. Ademais, supõe e demanda uma preparaç~o teórica para entender o “campo” que queremos pesquisar, um “se jogar de cabeça” no mundo que pretendemos desvendar, um tempo prolongado dialogando com as pessoas que almejamos entender, um “levar a sério” sua palavra, um encontrar uma ordem nas coisas e, depois, um colocar as coisas em ordem mediante uma escrita realista, polifônica e intersubjetiva (URIARTE, 2012, p. 187).
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Dessa forma, a análise dos resultados, por meio de todo material coletado, das anotações, observações de campo, perspectivas, entrevistas e literatura, será realizada buscando dar luz a uma cosmovisão a partir dos elementos e realidades sociais
abordados,
procurando
dar
sentido
e
significado
aos
estudos
empreendidos. Portanto, de perto e de dentro (MAGNANI, 2002), esforçar-nosemos para contribuir de forma substancial, tentando articular teoria e dados empíricos para tornar a análise rica e relevante, até mesmo porquanto há uma carência de trabalhos e pesquisas que voltem suas energias para analisar as questões postas nesse projeto, outro ponto que justifica a necessidade dessa pesquisa. Cremos, ainda, que o aferimento, pois, das questões erigidas, bem como a pesquisa em si, tendo como objetivo cerne a formação de um arcabouço necessário para a reflexão e compreensão dos problemas expostos denotam parte da relevância e justificativa do projeto ora em voga.
Pautas derradeiras para (não) concluir Além de perpassar as formas como se dão os itinerários e construções dos processos identitários entre os headbangers de Mossoró/RN, perfazendo inclusive uma espécie de “sobrevoo” no que se refere aos conceitos de identidade, buscamos equacionar, outrossim, como esses indivíduos elaboram seus mecanismos de sociabilidade, como tecem seus relacionamentos e se constituem enquanto “tribo”. Há toda uma esfera simbólica, que se manifesta no âmbito dos signos e que assegura certa “unidade” em termos de uma identidade grupal, enquanto indivíduos headbangers, podendo ser percebida desde as vestimentas até o compartilhamento do êxtase coletivo dos shows, das paixões por bandas e músicos e de alguma perspectiva de mundo e de relacionamento com os pares, com a música, com a arte, com a constituição da subjetividade, por meio de uma ética da resistência. Interrogamos também se a sociabilidade entre os headbangers se aproxima do modelo simmeliano de interação e sociabilidade. Uma sociabilidade entendida como arquétipo lúdico de socialização, sem propósitos ou interesses
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específicos, que não a interação em si mesma, vivenciada em espécies de jogos, atuando como se todos “fossem iguais”. É preciso sublinhar, por oportuno, que tal conceito aqui é utilizado como um tipo ideal weberiano. Tal modo de associação se mostra de forma mais evidente entre os headbangers nos shows, lócus e eventos destinados ao metal. Como pano de fundo utilizamos também a concepção de “cena”, o que nos auxilia a pensar o heavy metal enquanto fenômeno social. A ideia de cena foi pensada buscando abarcar uma série de práticas sociais, econômicas, tecnológicas e estéticas ligadas às formas como a música se faz presente nos espaços urbanos. O heavy metal se constitui em meio a culturas híbridas e em um mundo globalizado, em constante ebulição e mudanças. A ideia aqui, assim, é esboçar uma leitura desse cenário, se não de forma cabal, ao menos em termos introdutórios. Como já também mencionado, a proposta que aqui se mostra é parte de pesquisa de dissertação em andamento e também de reflexões compartilhadas. Dessa feita, o mote é apresentar ponderações, apesar de preliminares e inacabadas. Tão logo a pesquisa seja finalizada é objetivo publicá-la em toda sua extensão e tendo como alicerce referenciais teóricos, pesquisas bibliográficas, vivência de campo e todo o material coletado e observações realizadas, almejando dar cabo das questões aqui erigidas.
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CAPÍTULO 3 NA BATIDA DO CONSUMO: UMA ANÁLISE SOBRE O FUNK OSTENTAÇÃO
Shemilla Rossana de Oliveira Paiva Lázaro Fabrício de França Souza Marcília Luzia Gomes da Costa Mendes
Introdução
Trazendo semelhantes elementos rítmicos e melódicos de suas outras vertentes, o Funk ostentação se diferencia por fazer propositadamente uma apologia explícita ao consumo através de suas letras. Não que isso seja exatamente algo inédito no Funk, porém, ocorre que, agora, o consumo é especificamente a temática central, do início ao fim. Com uma linguagem própria, os MC’s21 denominam os carros de luxo de “naves” e ressaltam a todo instante em suas canções que é importante ostentar o “kit”, express~o que define os acessórios de vestuário como tênis, bermuda, camisa, anéis, colares, óculos escuros e boné. Roupas da marca Oakley e tênis das marcas Nike ou Adidas, estão entre os mais citados nas letras. Nesse sentido, demanda dizermos que parece não ser igualmente novidade a utilização do consumo como forma de os indivíduos se credenciarem a determinado grupo de aspiração, afinal, a visão da roupa enquanto mera indumentária protetora do corpo tornou-se superada há tempos. Aliás, como poderemos constatar nas letras das canções do Funk ostentação, não é a roupa, o tênis ou os óculos, mas a marca da roupa, do tênis e dos óculos. O valor não é utilitário, é simbólico, mas, o que realmente é novo aqui é o surgimento de uma vertente dentro de um estilo musical que trata unicamente sobre o consumo, e que 21
Masters of Cerimony, ou “Mestre de Cerimônia”, numa traduç~o livre para o português.
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tem como porta-vozes pessoas que vivem e/ou têm origem em classes sociais populares, o que talvez não seja tão paradoxal como pode parecer à primeira vista. Nota-se uma ânsia por pertencimento a um nicho, todavia há também uma busca por se mostrar e ser reconhecido, e essa afirmação escolheu o papel de consumidor para se impor. É a era da procura por auto-expressão, por um estilo de vida. É nesse contexto e alicerçado em um período de ascensão no qual as classes C e D brasileiras atravessam, já há alguns anos, que se encontra o Funk ostentação. Consonante seu público e astros desse estilo, essa vertente do Funk é mais do que entretenimento, é um estilo de vida. Sobre “Estilo de Vida”, Anthony Giddens explica que: Os estilos de vida são práticas rotinizadas, as rotinas incorporadas em hábitos de vestir, comer, modos de agir e lugares preferidos de encontrar os outros; mas as rotinas seguidas estão reflexivamente abertas à mudança à luz da natureza móvel da auto-identidade. Cada uma das pequenas decisões que uma pessoa toma todo dia – o que vestir, o que comer, como conduzir-se no trabalho, com quem se encontrar à noite – contribui para essas rotinas. E todas essas escolhas (assim como as maiores e mais importantes) são decisões não só sobre como agir, mas também sobre quem ser. Quanto mais pós-tradicionais as situações, mais o estilo de vida diz respeito ao próprio centro da auto-identidade, seu fazer e refazer (GIDDENS, 2002, p. 80).
Portanto, é interessante questionar o porquê de tanta aceitação de uma vertente que trata objetivamente de uma única temática, que não é inédita, porém, é mais incisiva nesse subestilo, por assim dizer, que descreve minuciosamente um estilo de vida a ser seguido, ou dando a tônica do que seria uma vida de sucesso. E mais, se um estilo de vida é composto por práticas rotinizadas, que por sua vez incorporamos através dos hábitos de vestir, comer, se divertir e etc., como esses indivíduos conseguem se identificar com um padrão de vida que é cantado e dançado nos bailes Funk, mas que não é o seu? Seria esse um fenômeno apenas de identificação ou também de projeção? Comecemos por entender melhor em que consiste essa nova vertente do Funk para que possamos jogar luz sobre tais questões. O fenômeno do Funk ostentação foi determinante para diferenciar a cena Funk do Rio de Janeiro da cena Funk paulistana. Agora, a primeira passou a ser classificada entre os frequentadores como a da paquera e sensualidade; a última - 101 -
passou a ser classificada com a da ostentaç~o. “O visual dos Funkeiros sempre foi inspirado nas estrelas do rap americano, mas isso nunca foi tema das letras no Funk carioca. Isso é algo bem recente e próprio da cena paulistana”, afirma o jornalista Sílvio Essinger (2005, p. 05), autor do livro Batidão, sobre a história do Funk no Brasil. Ou seja, a cena Funk de São Paulo foi a primeira a atentar para o vestuário como uma linguagem significante de auto-expressão, digna de ser cantada e dançada freneticamente. Sobre a noção de cena, afirma-nos Simone Pereira de Sá que: A noção de cena refere-se: a) A um ambiente local ou global; b) Marcado pelo compartilhamento de referências estéticos-comportamentais; c) Que supõe o processamento de referências de um ou mais gêneros musicais, podendo ou não dar origem a um novo gênero; d) Apontando para as fronteiras móveis, fluidas e metamórficas dos grupamentos juvenis; e) Que supõem uma demarcação territorial a partir de circuitos urbanos que deixam rastros concretos na vida das cidades e de circuitos imateriais da cibercultura, que também deixam rastros e produzem efeitos de sociabilidade; f) Marcadas fortemente pela dimensão midiática (SÁ, 2001, p. 157).
O termo “cena”, portanto, ultrapassa o lugar em sentido geogr|fico e desemboca em constructos e demarcações no terreno da subjetividade de cada indivíduo. MC Guimê, um dos grandes nomes do Funk ostentação, ilustra essa afirmação quando diz: Hoje vamos dizer assim que a música toca, tipo, em todos os lugares, tá ligado? A gente chega a cantar na Eazy, que é uma casa top, um público bem selecionado, e a gente canta também numa periferia, num fundão da Zona Leste, Zona Sul. Hoje, graças a Deus, está bem geral, o som tá indo pra tudo que é lado.E esse sucesso que a música faz no YouTube, ela começa a ser muito tocada. A galera começa a tirar muito o som do YouTube, baixa pelo 4Shared, pega aquele áudio ali da internet aí coloca em pendrive e sai no carro. Ela começa a ser muito isso, muito a rua mesmo. Então, tipo assim, se você vai numa balada está tocando aquela música que é uma música de festa, aí você vai na praia, tipo num Carnaval, numa temporada, são todos os carros tocando a música alta, porque quer ouvir aquela batida, quer falar aquela ideia. (REDAÇÃO, 2013).
Os indivíduos dessa cena participam ativamente do processo de recepção, ditando, amiúde, os rumos e tendências através da assimilação completa ou parcial das referências que ali existem. Prova disso é o Miami Bass (também conhecido
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como som de Miami), um tipo de Hip Hop que se tornou popular no Brasil, por sua feita já um derivado do electro, e que foi a base do chamado Funk Carioca. Ou seja, houve um hibridismo, a apropriação de elementos próprios de uma cena que passa a originar outra. Um processo de hibridação cultural que não acontece por acaso, mas por uma necessidade latente que os indivíduos têm de se reconhecerem naquilo. É o toque pessoal e identitário. No início, em um processo quase artesanal, os MC’s simplesmente colocavam letras em português (retratando a rotina nas favelas, denunciando violências, desigualdades sociais, etc.) nas melodias provenientes do Miami Bass. Hoje, a produção de conteúdo do Funk brasileiro é totalmente nacional. Portanto, como já apontado anteriormente, uma das características marcantes de qualquer cena musical é a transformação do espaço (geográfico e virtual) em lugares significantes. A identidade cultural dos indivíduos dessa cena contemporânea passa, dessa maneira, por constantes mutações. O tecido sonoro em questão é apenas um pano de fundo onde ocorrem questões maiores. Em termos genéricos, as pessoas de um determinado local comungam de uma mesma base comportamental, ocorrendo, assim, a preferência por certo gênero musical, que pode ser readaptado ou não para que se adeque ainda mais ao estilo de vida dessas pessoas (como aconteceu no caso do Funk ostentação), e que formará a partir desse estágio uma cena, que se refletirá no cotidiano dessas pessoas, nos seus modelos de sociabilidade, no papel que exercem em seu espaço. Nos tempos atuais, principalmente com o advento da cibercultura, o resultado disso não se percebe somente em âmbito local, mas igualmente no regional, nacional, e quiçá mundial. No supracitado conceito de cena, SÁ (2011) traz como o último ponto a dimensão midiática que a envolve. Nesse quesito é pertinente lembrar que a tendência do Funk ostentação ainda é recente. Em sua gênese sequer chegava às rádios, pouco aparecia na TV e não impressionava nos downloads. Mas, quem precisa disso em tempos de vídeo e audição em streaming?
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MC Guimê, um dos astros do gênero, tem mais de 15 milhões de acessos no site YouTube com a canç~o chamada “Plaquê de cem”. MC Boy do Charmes chegou a 20 milhões de acessos no mesmo site com a música “Onde eu chego paro tudo” (“Meu cord~o é um absurdo, meu perfume é da Armani, de Christian ou de Oakley, de Tommy ou Lacoste”). (ARAGÃO, 2012).
Num curto intervalo de tempo esse quadro mudou substancialmente. A televisão e as rádios abriram suas portas para os cantores do Funk Ostentação e nas listas de hits mais tocados estão sempre canções do gênero. Nomes como MC Gui e MC Guimê, por exemplo, já deixaram de ser reconhecidos apenas em nichos restritos, para serem conhecidos nos país todo. Para se ter uma noção, somente no ano de 2011, quando a modalidade ostentação ainda engatinhava, a produtora pertencente a um dos maiores empresários da área, o Kondzilla, colocou no ar mais de 70 clipes do Funk ostentação, sendo que muitos deles ultrapassaram a marca dos 20 milhões de visualizações no YouTube. Em suma, e para diferenciar mais claramente o nosso objeto, podemos dizer que o Funk nomeado “proibid~o” trazia em suas letras uma apologia explícita ao crime organizado, ao tráfico de drogas e ao sexo, a ponto de precisar ser feito em duas versões, a mais pesada dos bailes, e uma mais leve para uma remota aparição em r|dios. J| o “consciente” cantava justamente o contr|rio: o orgulho de ser pobre e favelado, mas digno e honesto, fazendo críticas aos governantes e ao descaso que vivenciavam em seu cotidiano, enquanto o chamado “Funk melody” ou rom}ntico relata relações amorosas complicadas, paquera e curtição. Esse último já apresenta nomes famosos no circuito nacional e na grande mídia, como os cantores Anitta, Ludmilla e Naldo, que em todos os casos, e não por acaso, retiraram a sigla MC, até então utilizada em seus nomes artísticos, como forma de se tornarem cada vez mais vinculados e pertencentes ao universo pop, buscando maior inserção mercadológica, e provando que o Funk ainda é estigmatizado. O Funk ostentação, a sua feita, traz versos que mais parecem leituras de catálogos de lojas de luxo. Seus clipes têm dança na boquinha da garrafa de uísque 18 anos, lanchas, carros importados, mansões e helicópteros e fazem uma associação direta entre poder aquisitivo-pecuniário e a conquista de mulheres.
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“Ostentação fora do normal: quem tem motor faz amor, quem não tem passa mal”: o Funk ostentação e o fenômeno do consumo
A sociedade contemporânea recebe também como rótulo a alcunha de “sociedade de consumo”. Quiç| mais que em outras épocas viva-se e se experiencie um mundo, sobretudo, voltado aos signos e símbolos, que parece ganhar notório sentido quando nos referimos a uma de suas facetas, a saber, o mundo dos bens e do consumo. Ao se comprar um carro, exempli gratia, não o adquire-se somente como um meio de locomoção. Adquire-se um símbolo, que denota estilo de vida, um tipo de perspectiva de mundo, uma forma de distinção, de expressar-se, de se comunicar, de se inserir. Ademais, um carro pode implicar status, poder, admiraç~o; além de despertar a “inveja” e olhares de seus pares. Assinalara o francês Jean Baudrillard (2008), complementando o raciocínio, que o carro, denota um signo, uma apresentação abstrata relacionada à velocidade e prestígio, à distinç~o, uma projeç~o de fantasia, uma “catexia emocional”. Ora, Baudrillard refere-se ao carro especialmente como um símbolo, onde o indivíduo projeta-se na sua própria aquisição, tirando-o de um mundo inanimado, trazendo-o para o mundo dos signos e exprimindo-se por meio deles. No Funk Ostentação isso é sintomático quando observamos nas letras a correlação entre ter um carro e conseguir mulheres. A música “Plaquê de 100”, do MC Guimê, cantor que j| aparece rotineiramente na TV aberta e que diz viver em sua realidade aquilo que canta, traz a seguinte letra:
Contando os plaquê de 100, dentro de um Citroën, Ai nois convida, porque sabe que elas vêm. De transporte nois tá bem, de Hornet ou 1100, Kawasaki, tem Bandit, Rr tem também. (2x) A noite chegou, e nois partiu pro Baile Funk, E como de costume, toca a nave no rasante De Sonata, de Azera, as mais gata sempre pira Com os brilho das jóias no corpo de longe elas mira, Da até piripaque do Chaves onde nois por perto passa, Onde tem fervo tem nois, onde tem fogo há fumaça.
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É desse "jeitim" que é, seleciona as mais top, Tem 3 porta, 3 lugares pra 3 minas no Veloster Se quiser se envolver, chega junto vamo além Nois é os pica de verdade, hoje não tem pra ninguém. Nois mantem a humildade, Mas nois sempre para tudo E os zé povinho que olha, de longe diz que absurdo. Os invejoso se pergunta, tão maluco o que que é isso, Mas se perguntar pra nóis, nóis vai responder churisso, Só comentam e critica, fala mal da picadilha Não sabe que somos sonho de consumo da tua filha. Então não se assuste não, quando a notícia vier a tona, Ou se trombar ela na sua casa, Em cima do meu colo, na sua poltrona.22
É possível observar o prestígio que esses indivíduos conferem a certas marcas de roupas, veículos e bebidas. A música apresenta vários modelos de motos e de carros caros, bem como o uso de correntes de ouro como forma de causar inveja no “Zé povinho que olha de longe e diz que absurdo”, e de atrair mulheres, j| que dentro de um Citröen, contando plaquês de notas de cem reais eles se tornariam irresistíveis: “ai nois convida porque sabe que elas vem”, e n~o qualquer mulher, mas, “nois seleciona as mais top”. Ou seja, esses indivíduos cantam que já não querem ser os favelados do proibidão ou do consciente, mas alguém que usa objetos que os distinguem de uma grande parcela de pessoas para a qual esses itens são inacessíveis, obtendo, com isso, prestígio, mulheres e a inveja de quem pensou que eles jamais conseguiriam sucesso. O que confirma que o consumo de bens, em larga medida, supre uma demanda dos indivíduos que é simbólica, fazendo parte de todo um sistema de significação, configurando um escopo privilegiado para se entender a vida contemporânea. Ainda no decênio de 1970, a antropóloga Mary Douglas e o economista Baron Isherwood (2009), já evidenciavam, em seu hoje reconhecido livro “O Mundo dos Bens”, em se tratando do contexto da sociedade contemporânea, o caráter proeminentemente simbólico do consumo. Mike
MC Guimê – Plaquê de 100. Disponível em: http://www.vagalume.com.br/mc-guime/plaque-de100.html#ixzz3rllZOm8N- Acesso em 17/11/2015. 22
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Featherstone (apud Siqueira, 2003) aponta que “o consumo n~o deve ser compreendido apenas como consumo de valores de uso, de utilidades materiais, mas primordialmente como consumo de signos”. Esse é um viés deveras muito bem explorado pela publicidade e pela mídia, tão como pelas mais diversas técnicas de exposição, quando passa a se operar (seja em relação aos mais variados bens, como automóveis, eletrodomésticos e bebidas, até uma simples caneta), consonante Siqueira (2003), com imagens de sedução, romance, beleza, autorealização e também de qualidade de vida, o que desestabiliza a noção original e torna as mercadorias em verdadeiras ilusões da cultura, que fascinam o consumidor pós-moderno pela sua estética e, principalmente, pelas extravagantes associações com os signos e pelas justaposições entre elas. Desse modo, constróise um meio de justificar a prerrogativa dada pelo capitalismo pós-moderno à considerável produção de imagens e signos, ao invés das mercadorias propriamente. Na mesma linha de raciocínio Baudrillard (apud Padilha, 2006, p. 126), ratifica essa perspectiva, apontando que “a personalizaç~o se funda nos signos e n~o nos objetos em si”. Uma vis~o que certamente aproxima-se do prisma marxiano da “fetichizaç~o da mercadoria”, explicitado mais a frente. Segundo Lívia Barbosa (2008, p. 12), consumir e utilizar elementos da cultura material como meio de construção e afirmação de identidades, diferenciação e exclusão é fenômeno universal. Conquanto e a despeito da afirmação de que a cultura material e o consumo são aspectos fundamentais de qualquer sociedade, apenas a nossa tem sido caracterizada como “sociedade de consumo”. Entrementes, a autora (op. cit.) enfatiza, outrossim, que “consumir e utilizar elementos da cultura material como elemento de construção e afirmação de identidades, diferenciação e exclus~o social s~o universais”. Destarte, infere também que o apego a bens materiais não é característica nem daqueles que são abastados materialmente nem especificidade, circunscrição, da sociedade contemporânea, mas esteve presente em todas as sociedades. Todo e qualquer ato de consumo é essencialmente cultural. As atividades mais triviais e cotidianas como comer, beber e se vestir, entre outras, reproduzem e estabelecem mediações entre estruturas de significados e
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o fluxo da vida social através dos quais identidades, relações e instituições sociais são formadas, mantidas e mudadas ao longo do tempo. (BARBOSA, 2008, p. 13).
Com base no pensamento da supramencionada antropóloga, tem-se a assertiva de que o consumo preenche uma função para além daquela de satisfação de necessidades materiais e reprodução social comum aos demais grupos sociais. Implica admitir de modo congenérico que o consumo na sociedade moderna contemporânea adquiriu espaço tamanho ao ponto de permitir que através dele sejam discutidas questões tangentes à realidade e à vida em sociedade. Dito isso, é preciso ressaltar, no entanto, que algumas concepções acerca de uma mudança de paradigma e em relação aos bens materiais e sua verve simbólica datam de muito antes. Em Marx, a título de exemplificação, já se percebe no Manifesto do Partido Comunista (2007, p. 51), a assertiva de que a burguesia e o capitalismo modificaram substancialmente as relações e a conjuntura anterior: Onde quer que conquistou o poder, a burguesia destruiu todas as relações feudais, patrimoniais e idílicas. Todos os laços complexos e variados que unem o homem feudal aos seus “superiores naturais” esmagou-os sem piedade para não deixar subsistir outro vínculo entre os homens que o frio interesse, as duras exigências do “a contado”.
Os autores ainda postulam que a emergente burguesia fez da dignidade pessoal um frugal valor de troca, substituindo as liberdades conquistadas por uma liberdade única e de caráter impiedoso: a liberdade do comércio. A burguesia despojou da sua auréola todas as atividades que até ai passavam por veneráveis e dignas de piedoso respeito. Converteu o médico, o jurista, o padre, o poeta, o sábio em assalariados ao seu serviço. A burguesia rasgou o véu de emocionante sentimentalismo que cobria as relações familiares e reduziu-as a simples relações de dinheiro. [...] Todas as relações sociais estancadas e ferrugentas, com o seu cortejo de concepções e de ideias antigas e veneradas, dissolvem-se; as que as substituem envelhecem antes de se terem podido ossificar. Tudo o que tinha solidez e permanência esfumam-se; tudo o que era sagrado é profano, e os homens, finalmente, veem-se forçados a encarar as suas condições de existência e as suas relações recíprocas com olhos desiludidos. (op. cit.).
Karl Marx também é vanguarda quando o assunto em riste é o caráter simbólico dos bens (ou das mercadorias), com sua teoria acerca do “fetichismo da mercadoria”. Segundo o proeminente pensador alem~o (Marx, 1985, p. 70): - 108 -
À primeira vista, a mercadoria parece uma coisa trivial, evidente. Analisando-a, vê-se que ela é uma coisa muito complicada, cheia de sutileza metafísica e manhas teológicas. Como valor de uso, não há nada misterioso nela, quer eu a observe sob o ponto de vista de que satisfaz necessidades humanas pelas suas propriedades, ou que ela somente recebe essas propriedades como produto do trabalho humano. É evidente que o homem por meio de sua atividade modifica as formas das matérias naturais de um modo que lhe é útil. A forma da madeira, por exemplo, é modificada quando dela se faz uma mesa.
Para Marx, n~o obstante a mesa continuar sendo madeira, “uma coisa ordin|ria física”, logo que ela aparece como mercadoria transforma-se numa coisa “fisicamente metafísica”. “Além de se pôr com os pés no ch~o, ela se põe sobre a cabeça perante todas as outras mercadorias e desenvolve de sua cabeça de madeira cismas muito mais estranhas do que se ela começasse a dançar por sua própria iniciativa”. (op. cit.). Marx criou o conceito de "fetichismo da mercadoria" para explicar esse processo em que a mercadoria, quando acabada, não mantinha seu valor real de venda, que seria determinado pela quantidade de trabalho materializado na confecção de determinado bem ou artigo. Essa mercadoria adquiria, na perspectiva marxiana, uma valoração irreal de venda, infundada, que não podia ser mensurada, como se não tivesse berço no trabalho humano. Em essência, a mercadoria perdia sua relação com o trabalho e parecia ganhar uma "vida própria", passando a ser objeto de adoração, algo transcendental, fazendo sentido sobretudo em um universo simbólico pelos signos que acessava ou expressava. Para citar outra literatura clássica, evocamos a Teoria da Classe Ociosa, de Thorstein Veblen (1974), para o qual, no contexto dos indivíduos e grupos abastados, a acumulação decorreria, cada vez menos da necessidade material e cada vez mais da busca por uma posição honorífica na sociedade, o que corrobora a perspectiva do consumo para além do quesito material e sua expansão para a esfera dos significados. Aqui, contudo, após o que assinala Veblen, e recorrendo novamente a Lívia Barbosa, é mister empreender uma ressalva: dificilmente, independente da época, sociedade qualquer tenha desenvolvido uma relação meramente funcional e estrita com o mundo material. “O que é apresentado como uma característica distorcida
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da ‘cultura de consumo’ contempor}nea n~o passa de uma dimens~o estrutural e estruturante de toda e qualquer sociedade humana.” (BARBOSA, 2006, p. 11). David Harvey (2008, p. 45), com efeito, oferece uma significativa contribuiç~o atestando que símbolos da “pós-modernidade” como os modismos e a promoção midiático-publicitária são partes de uma lenta transformação cultural emergente nas sociedades do ocidente, onde a ocorrência dessa metamorfose é indubitável. Para ele, num relevante setor de nossa cultura, há uma notável mutação na sensibilidade, nas práticas e nas formações discursivas que “distingue um conjunto pós-moderno de pressupostos, experiências e preposições de um período precedente”. Lipovetsky, filósofo francês, um dos estudiosos da contemporaneidade características
e
citadas
de
seus
desdobramentos,
anteriormente
como
enxerga
marcas
algumas
inconfundíveis
das da
hipermodernidade23, onde a oferta de produtos dá-se de forma permanente e em escala e intensidade jamais observadas. Lipovetsky (2007) observa que nesse universo dominado pelo mercado, novos modos de vida e costumes instituíram uma nova hierarquia de objetivos e uma nova relação do indivíduo com as coisas e o tempo, consigo próprio e com os outros. O mercado atua por meio de um processo de sedução ininterrupta, impelindo o indivíduo a um consumo cada vez maior. Lipovetsky (2005, p. 17) analisa a questão da sedução na sociedade de consumo: A sedução tornou-se o processo geral que tende a regular o consumo, as organizações, a informação, a educação, os costumes. Toda a vida das sociedades contemporâneas é doravante governada por uma nova estratégia que destrona o primado das relações de produção em proveito de uma apoteose das relações de sedução.
Entre as elaboradas estratégias de mercado para captação e cooptação do consumidor est~o as que fazem uso das famigeradas “obsolescências" programada e perceptiva. A obsolescência programada ocorre quando um produto é planejado para ter uma vida reduzida e tornar-se obsoleto rapidamente, o que acarreta prejuízos consideráveis para o ambiente e para o consumidor. A lógica faz parte de Gilles Lipovetsky é o criador das expressões “hipermodernidade” e “hiperconsumo”. Seus significados e características, na verdade, est~o bem próximos dos conceitos de “pós-modernidade” ou, para citar Bauman, “Modernidade Líquida”, por exemplo. (Cf. LIPOVETSKY, 2004). 23
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uma estratégia de mercado para que os consumidores fiquem insatisfeitos com desempenho do produto comprado, adquirindo um mais moderno e profícuo. Já a obsolescência perceptiva nasce como uma maneira de reduzir a vida útil de um produto – mesmo que este ainda se apresente em condições plenas de uso – apelando para seu caráter estético-visual. Os fabricantes lançam produtos com visuais e designs “mais modernos” dando aos produtos anteriores aspectos de ultrapassados, antiquados, fazendo com que consumidor se sinta constrangido ou fora de contexto ao utilizá-lo e adquira um mais moderno e condizente com os ditames da época. Um ótimo exemplo de obsolescência perceptiva são os celulares24. Para Lipovetsky (2007), o hedonismo e o tempo presente tomaram lugar às expectativas de futuro, aos vínculos com o pretérito e às militâncias políticas. É a sociedade com características narcisistas e promotora do narcisismo de que fala Berlink (2008). A autora também explana sobre alguns traços que caracterizam a sociedade contemporânea: [...] o gosto pelo efêmero e a perda de referência temporal ao passado e ao futuro; a rápida obsolência das qualificações para o trabalho, dos valores e das normas de vida e o prestígio do paradigma da moda; a competição como forma de constituição da identidade pessoal; o medo, gerado pela insegurança e pela competição; a perda da autonomia individual sob o poderio do “discurso competente” (a fala dos especialistas)”; [...] o consequente fascínio pelas imagens e pela nova forma da propaganda e da publicidade, que não operam referidas às próprias coisas e sim às suas imagens (juventude, beleza, sucesso, poder) com as quais o consumidor deve se identificar...
Lipovetsky (2007) segue com conclusões análogas ao mencionar que essa sociedade além de ser alvo das elaboradas estratégias de mercado, onde as pessoas são estimuladas, de forma manipuladora, a consumir, ensejou um tipo de homo consumericus, muito mais flexível, voraz, móvel, sem as amarras das antigas Nesse sentido, para Bauman (2008), o “lixo” é o produto mais abundante dessa sociedade líquida, uma vez que tudo é fadado a tornar-se obsoleto e consequentemente vira descartável, indo para o lixo. A produção de lixo, segundo o autor polonês, é sólida e imune a crises. Ao mesmo tempo a remoção do lixo aparece como um dos principais desafios na tessitura líquida da sociedade de consumo. Outro perigo é o de se tornar também lixo, descartável. Para não cair na pilha de lixo, é necessário adentrar e se adaptar aos trâmites da sociedade de consumo, aos seus preceitos e normas. Na sociedade de consumidores, ninguém pode se tornar sujeito sem antes ter se transformado numa mercadoria “vend|vel”. Os consumidores s~o transformados também em mercadoria na sociedade de consumo. 24
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culturas de classe, que denota certa imprevisibilidade nas suas compras, aquisições e gostos e igualmente ávido por experiências emocionais e de mais bem-estar, autenticidade, marcas, de comunicação, de imediatidade. Nessa sociedade de consumo “pós-moderna” ou “líquida” os consumidores são primeiro e acima de tudo, postula Zygmunt Bauman (1999, p. 91), “acumuladores de sensações” e “colecionadores de coisas”, s~o “caçadores de emoções e colecionadores de experiências [...] percebem o mundo como um alimento para a sensibilidade [...]” (op. cit., p. 102 e 103). Uma cultura do excesso, sustentada pela lógica hedonista e emotiva, capaz de engendrar em cada sujeito o desejo de consumo evidenciado na busca de emoções e de prazer, na superficialidade e frivolidade da expressão dos afetos. Surge então, pois, a “felicidade paradoxal” exposta por Lipovetsky (2007), onde o homo consumericus, ao gozar de ampla liberdade face às imposições e ritos coletivos, veria sua autonomia trazer consigo novas formas de servidão, onde este seria refém de um mercado cuja finalidade precípua é a incessante oferta de novidades. Baudrillard (2005, p. 19, grifos do autor) corrobora a discussão acusando que: Chegamos ao ponto em que o consumo invade toda a vida, em que todas as atividades se encadeiam do mesmo modo combinatório, em que o canal das satisfações se encontra previamente traçado, hora a hora, em que o envolvimento é total, inteiramente climatizado, organizado, culturalizado.
Conforme Douglas e Isherwood (2009, p. 114), a escolha dos bens cria continuamente determinados padrões de discriminação, superando ou reforçando outros. Os bens são a parte visível da cultura, arranjados em perspectivas e hierarquias que podem dar vazão para a total variedade de discriminações de que a mente humana é capaz. “As perspectivas não são fixas, nem aleatoriamente arranjadas como um caleidoscópio. Em última análise, suas estruturas são ancoradas nos propósitos sociais humanos”.
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Funk ostentação: o hino do “consumo, logo existo”
Um fator interessante oriundo da dita “sociedade do hiperconsumo” é a inclusão de camadas economicamente mais baixas da população, com menor poder aquisitivo, no mercado de consumo, como consumidores ativos. Esses indivíduos, objetivando a não marginalização e exclusão dos novos moldes sociais e alimentados pela tônica do hiperconsumo e da mídia, na maioria das vezes sem condições suficientes ou sem poderio pecuniário que lhe permita usufruir do fulgor do consumo e, portanto, de assegurar sua “devida” posiç~o e status social, partem para a obtenção do que lhes convém através da feitura de atos ilícitos. Essa subversão pode ser identificada desde a compra de um produto falsificado até atos deveras socialmente danosos como roubos, assaltos e análogos. Ocorre que a possibilidade de consumo e acesso a bens materiais, depois transformados em simbólicos, inscreve o indivíduo no mundo e na sociedade, uma vez que, na modernidade tardia, a noção de cidadania parece estar atrelada ao poder de consumo. Sendo assim, pode-se dizer que o consumo promete inscrição e existência social. Ademais, o consumo também impulsiona alguns dos mecanismos de inclusão e exclusão social: ao consumir determinado produto, por exemplo, você passa a ser aceito como consumidor e será inscrito entre os consumidores daquele produto, se tornando visível, socialmente falando. Os indivíduos são impelidos a um consumo acentuado, entretanto, nem todos têm as mesmas possibilidades e acesso a bens materiais e de consumo. Ora, não é de se estranhar que o mercado pirata venha alcançando, há tempos, seu ápice. Todos querem vestir a marca do “vencedor”, aquela que lhe permite apropri|-la simbolicamente. As marcas que fazem parte do imaginário social, que promovem a identificação como alguém de status, de poder, de prestígio. Segundo Lívia Barbosa (2008, p. 22-23), os produtos “piratas” e similares permitem que estilos de vida sejam construídos e desconstruídos e lançados ao mercado, cuja utilização será feita por pessoas que certamente não serão compatíveis com o uso de muitos deles nas suas respectivas versões originais. Sendo assim, a diferenciaç~o pode se dar por outros meios, sen~o vejamos: “com a polarização e a imitação dos bens de luxo, a questão nas sociedades de consumo
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modernas é muito mais de legitimidade e de conhecimento sobre como usar do que o que est| sendo usado”. Ao se referir, por exemplo, às classes menos abastadas e aos jovens da periferia, Nunes (2007, p. 657), assinala que: a valorização de espaços de consumo de classe média, como os shoppings centers, apontados como áreas de lazer de fim de semana, indicam que, mesmo em desvantagem em relação aos grupos dominantes, há uma permanente tentativa de diferenciação do lugar de origem, do próprio grupo, prevalecendo a individualização. A tentativa de se adaptar à moda vestimentária ditada pelos canais de comunicação é um exemplo desse fenômeno, de resto um comportamento generalizado nos diferentes grupos sociais, especialmente nessa faixa etária.
Embora os bens em si sejam neutros, como bem disse Douglas e Isherwood (2009, p. 36), “seus usos s~o sociais”, podendo serem utilizados como “cercas” ou “pontes”, na medida em que é possível integrar, excluir e até mesmo classificar os sujeitos a partir das escolhas realizadas nas pr|ticas de consumo. Essas “cercas” ou “pontes” podem ser percebidas na letra da música “Bonde da Juju” dos MC’sBlackdi e Bio-g3, primeiro Funk do gênero ostentação, e que traz as seguintes estrofes:
Quem não é, não se mete, porra. Nóis só porta Oakley. É o bonde da Juliet. Tá de Juliet, Romeo 2 e Double Shox, 18 K no pescoço, de Ecko e Nike Shox. Tá de Juliet, Romeo 2 e Double Shox. Vale mais de um barão, esse é o bonde da Oakley É o bonde da juju. É o bonde da juju. Porque água de bandido é whisky e Red Bull Eles gostam de desfilar por aí com um tênis que custa mais de 500 reais. Óculos que custam mais de 1500 reais e correntes de ouro no pescoço. Essa pouca que nós vimos agora é um tapa na cara da sociedade. Quem não é, não se mete. Porra, nóis só porta Oakley. Hei Hei Hei Hei Hei Hei Hei Hei É o bonde da Juliet.25
O título da música “Bonde da Juju” faz alus~o ao modelo de óculos chamado Juliet, um dos mais caros da marca Oakley, e já começa dizendo que quem não tem acesso a esse e aos outros itens que virão no decorrer da canção não deve emitir opinião, pois “quem n~o é, n~o se mete, porra. Nois só porta Oakley”. Além do Backdi e Bio - Bonde da Juju. Disponível em: g3https://www.letras.mus.br/backdi-biog3/1548816/ - Acesso em 17/11/2015. 25
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modelo Juliet, a música cita outros dois, conhecidos também pelo alto valor e exclusividade, o Romeo 2 e o Double Shox. A bebida é whisky e Red Bull, o tênis de mais de R$ 500,00 e correntes de ouro que s~o “um tapa na cara da sociedade”. H| um verdadeiro fetiche em torno desses produtos, servindo como demarcadores de mobilidade social, prestígio e status para esses indivíduos que foram (e na verdade ainda o são, em maioria) pertencentes às classes pobres e invisibilizadas socialmente. Everardo Rocha, antropólogo e proeminente estudioso das questões que envolvem o caráter simbólico do consumo, à guisa de outros autores26, alerta sobre os riscos teóricos e de abordagens reducionistas ligados ao estudo do consumo como fenômeno contemporâneo. É fundamental travar tal debate e mostrar os vários vieses – as caixas ideológicas, para parafrasear o próprio Rocha – quando se discute o consumo. Segundo o autor de Magia e Capitalismo (2005, p. 126-127) quando se fala em consumo nas mais diversas esferas, o discurso postulado geralmente tende a classificá-lo em uma dentre quatro possibilidades. O consumo parece ser sempre explicado sob esses prismas. Rocha denominou essas quatro possibilidades de hedonista, moralista, naturalista e utilitária. Elas podem aparecer sozinhas ou combinadas de diversas formas, não se excluem mutuamente e podem se alternar no discurso. O consumo, desse modo, pode ser visto como algo que se explica a partir de uma das quatro, ou pela articulação de algumas delas ou todas conjuntamente. A primeira forte marca seria, na perspectiva do autor (op. cit., p. 128), a hedonista. Aponta Rocha que a visão hedonista se estabelece como o mainstream da ideologia do consumo, sendo a percepção mais enfatizada e mais recorrente, na medida em que se repete de forma incessante na mídia e mormente no discurso publicitário. No entanto, é exatamente por força dessa popularidade que ela também se torna facilmente perceptível ao observador mais crítico. Por isso, parece ser uma das perspectivas mais frágeis no sentido de que sua própria natureza ideológica a denuncia. Denuncia a si mesma, ao passo em que expõe sua
26
Cf. Lívia Barbosa (2008); Diana Nogueira (2010).
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carga ideológica ao equacionar e relacionar consumo com felicidades, sucesso, ou qualquer outra das mais diversas seduções publicitárias. A segunda marca seria a moralista (ROCHA, 2005, p. 128): Assim, a segunda marca que atravessa as representações do consumo é a que estou chamando de visão moralista. É a responsabilização do consumo pelas diversas mazelas da sociedade. A simples observação dos discursos cotidianos nos mostra que é muito comum o consumo ser eleito como responsável por uma infinidade de coisas, geralmente associadas aos assim chamados problemas sociais.
O discurso moralista, em relação ao consumo, ganhas ares de discurso apocalíptico, e torna-se o responsável pelos mais diferentes problemas sociais. Abordar o consumo a partir de algumas dessas perspectivas ou com algumas dessas pré-noções põe em xeque a análise que se pretende mais imparcial e lúcida. Já nos reitera o autor (ROCHA, 2005, p. 130) que o consumo se torna cultural, simbólico, definidor de modos de ser, práticas sociais, assim como estabelece diferenças e atua como sistema de classificação. É para se explicar este plano que se demanda uma teoria do consumo, já que o consumo é um fenômeno típico da experiência social da modernidade. Everardo Rocha ainda demonstra outras duas ideologias do consumo: uma que denominou de naturalista, onde a característica capital dessa marca é a explicação do consumo por outra coisa que seja; onde o consumo existiria em razão da natureza, da biologia ou do espírito humano. Olhar o consumo por este viés é uma escolha política deliberada cujo objetivo é encontrar uma espécie de explicação biológica ou natural, determinista, portanto, para algo que pertence a uma dimensão totalmente diferente. Entre o consumo natural que o fogo faz do oxigênio e o consumo cultural que fazemos de cartões de crédito se impõe um corte lógico. Não há nenhuma hipótese de mistura. O determinismo está em assumir a continuidade entre o primeiro tipo de consumo - comida e o segundo - churrasco, goiabada ou sushi. (op. cit., p. 131).
Tal perspectiva naturalista do consumo quer fazer com que um plano (natural) seja o determinante do outro (cultural). Em outras palavras, seria a tentativa deliberada de o natural explicando o cultural. Por fim, o antropólogo carioca expressa que a quarta ideologia seria a que chamou de utilitária. É a visão
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predominante nos estudos de marketing. Para além, constitui uma área de pesquisa que se volta ao consumo como “uma quest~o pr|tica de interesse empresarial.”. (op. cit., p. 133). Everardo Rocha, ainda exprime que para se entender o consumo é necessário conhecer como a cultura constrói tal experiência na vida cotidiana. De todo modo, em suas proposições de análises de consumo o autor não apresenta, efetivamente, novas ideias e sugestões de abordagens, mas sim reforça concepções clássicas sobre o estudo do consumo como, na medida em que o concebe como um sistema de significação cuja principal necessidade que atende é a simbólica, algo que, como mencionado outrora, está presente e é fundante, por exemplo, na obra de Mary Douglas e Baron Isherwood, o Mundo dos Bens, lançado em 1979. Obviamente, isso não influencia na pujante contribuição que o Everardo Rocha deu às pesquisas que tangem à temática nos últimos decênios. Também buscando ir além de explicações monocausais, Colin Campbell (2006), em seu texto “Compro, logo existo: as bases metafísicas do consumo”, traça uma relação entre a metafísica e o consumo, mostrando que não são termos isolados ou opostos, mas intrinsecamente ligados. Essa afirmação do autor gera estranhamento num primeiro momento, pois o consumo ainda é visto como uma prática irrefletida, impulsionada exclusivamente pelos estímulos do mercado e da publicidade, ou seja, ainda existe aquela ideia de um indivíduo que, perdendo sua consciência por alguns minutos ou horas, consome cegamente para só depois cair em si e no arrependimento. Discordando da mais propalada visão do consumo, a de que é uma atividade mecanizada que coisifica não só os produtos, mas também quem os compra, – e se aproximando de Everardo Rocha –, Campbell insiste na conexão entre a metafísica – princípios básicos do ser e saber – e o consumo. Para chegar a essa conclusão o autor propõe abandonar o questionamento em torno do “Por que consumimos?”, que serviria apenas para reconstatar o que já se tornou óbvio, como a satisfação de necessidades, a emulação dos outros, o prazer, defesa e status, e convida o leitor a adotar o consumo enquanto dimensão que se imbrica com as mais profundas e definitivas questões que os seres humanos possam se fazer, com o verdadeiro propósito da existência.
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Por que tratar como um tema menor o fenômeno do consumo, mais especificamente o moderno, se ele ocupa espaços tão centrais na vida das pessoas? Entre as incontáveis ofertas e diferentes modelos de um mesmo tipo de produto que o mercado coloca nas gôndolas, o indivíduo-consumidor se vê diante de um trabalho de escolha que envolve suas memórias afetivas, cheiros, custo-benefício, relação de confiança com a marca, anseio em experimentar uma nova, identificação ou não com as campanhas dos produtos, entre tantos outros elementos, não só de ordem prática, mas como advertiu Campbell, metafísica. Não a esmo a publicidade vai além do anúncio com a apresentação do produto e seu respectivo preço, e investe fortemente em narrativas que vão desde as lúdicas até as humorísticas, se utilizando de arquétipos universais como os heróis desbravadores, a mãe carinhosa, o bobo-da-corte, etc. É também por isso que os anunciantes contratam celebridades para seus comerciais, na tentativa de personificar a marca, de dar-lhe vida, de oferecer um ponto onde o receptorconsumidor possa se projetar e se identificar. Ou seja, a compra é muito mais orientada pelo desejo do que pela necessidade, são as razões de ordem íntima e não práticas que definem as escolhas. Logo, o fenômeno do consumo se dá subjetivamente e não como algo objetivamente estabelecido. O consumo moderno é enraizado no self, o que impera é a emoção, o desejo, a imaginação, o querer, o experimentar, e não apenas necessitar. Nota-se então que o mercado tem suas estratégias de convencimento inegavelmente fortes, mas é a demanda do consumidor que se encontra na liderança. A ideologia individualista, tão em voga na modernidade, reivindica exclusividade e conquista no momento da procura, da compra e utilização de bens e/ou serviços. Na modernidade, os indivíduos se definem em termos de seus gostos porque sentem que é isso o que mais claramente sintetiza quem são. A real identidade está nas preferências, mas o verdadeiro local onde reside a identidade é nas reações aos produtos, e não nos produtos em si, porque a identidade é descoberta e não comprada. Assim sendo, o consumo não gera a tão propalada crise das identidades, mas, ao contrário, geralmente ajuda a resolver esse dilema.
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Visto por esse prisma, o fato de o consumo ter adquirido importância central em nossas vidas pode indicar algo bem diferente do que se costuma sugerir – que somos todos vítimas de uma aquisitividade e um materialismo egoísta. Muito pelo contrário, isso pode ser visto como indicativo da aceitação de uma metafísica fundamentalmente idealista. Se assim for, então, isso pode significar que o consumo não deve ser mais visto como uma reação desesperada e necessariamente fútil à experiência da insignificância e, sim, como uma perfeita solução para essa experiência (CAMPBELL, 2004, p. 63).
O consumo oferece a segurança ontológica tão procurada na modernidade. Esse selfie moderno não é aberto e flexível por escolha, mas justamente por padecer de uma insegurança que pode ser sanada através do consumo. Não é que a tradição ou as instituições tenham perdido totalmente suas forças, é que na modernidade, onde a realidade se converte na intensidade das experiências, o consumo é quem mais pode proporcionar essa buscada segurança. Ao cabo, é relevante também fugir de um denuncismo moral, tal como postula Lívia Barbosa (2006, p. 41), que não exerce respaldo sobre a vida individual das pessoas e fazer permanentemente uma reflexão crítica em relação ao consumo, explorando profundamente as relações entre cultura, consumo e as diversas concepções de pessoas, bem como as relações sociais e as formas de mediação com as quais o consumo estabelece ligação.
Considerações finais
Se antes os “mauricinhos” e “patricinhas” do asfalto eram alvos de críticas nas letras do Funk, hoje parece que há uma vontade de ter aquilo que eles possuem, se assemelhando o máximo possível àqueles que antes eram vistos com desaprovação. Se outrora o Funk consciente criticava os burgueses, a mádistribuição de renda e a ganância, hoje os MC’s fazem mais de três bailes numa única noite para conseguir tornar real aquilo que cantam.
Questionado sobre o que acha do Funk ultimamente estar prezando tanto pela ostentação e luxo, dois principais pontos de vista se destacam. O diretor do instituto de pesquisa Data Popular, voltado para o comportamento da classe C, Renato Meireles sentencia: “Quem disse que quem é da classe C gosta de tomar pinga e não whisky? Quem diz isso é a
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elite. A classe C quer falar que gosta de whisky sim, e não tem nada de errado nisso. É reflexo da melhora que o país teve, e brasileiro gosta de celebrar isso cantando". Já o Funkeiro carioca MC Leonardo, presidente da Associação dos Profissionais e Amigos do Funk (apa Funk), vê a ostentaç~o de modo diferente: “Eu particularmente n~o quero fazer isso da minha arte, porque acho que gera frustração em boa parte das pessoas. Mas acho que a cultura deve ser livre e que ela é reflexo da sociedade. Toda vez que a periferia escolhe um assunto tem que dar satisfação, vira bode expiatório, como se a ostentação não estivesse no discurso de tantos, como os políticos e jogadores de futebol”. (ARAGÃO, 2015).
Passado o momento do protesto, da apologia ao crime e da sensualidade, a pauta agora é desejar o que há muito tempo todos já desejavam. A ostentação como ponto central na música começou com o Funk, mas outros estilos musicais já se apropriaram da temática, como foi o caso da canção sertaneja da dupla Munhoz e Mariano “Camaro Amarelo”, que conta a história de um rapaz que tinha dificuldades em se relacionar, até ganhar um carro e ficar “doce igual caramelo”, por estar “tirando onda de Camaro amarelo”. O Funk ostentação parece ter alcançado o status de produto, tendo sua receita reproduzida em larga escala. Fizemos aqui, alicerçados no Funk ostentação, uma espécie de sobrevoo pelo universo do consumo, apresentando algumas versões e perspectivas, dentre elas aquela que vê o consumo como uma atividade guiada por automatismos e manipulação, e uma outra que o vê como um fenômeno reflexivo. Fato é que para o Funk ostentação, o consumo foi escolhido como a temática cerne e o papel de consumidor foi escolhido por aqueles que querem ser vistos como cidadãos, mas que estiveram sempre às margens do social, o que pode parecer um erro, mas não assim tão óbvio se relembramos as palavras já citadas pelo presidente da ApaFunk27 quando diz que a ostentação há tempos está no discurso de celebridades, políticos e jogadores de futebol, e que só vira bode expiatório quando surge nas classes desfavorecidas. Muitos dos envolvidos com o Funk ostentação ainda não têm acesso aos itens que aparecem nas canções, portanto, há muito mais um imaginário que se projeta num determinado padrão do que mesmo a identificação. Apenas alguns poucos, como o MC Guimê, alçou a condição daquilo que canta, tendo espaço franco 27
Associação dos Profissionais e Amigos do Funk.
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na televisão e fazendo parcerias com cantores de outros estilos. Se tínhamos, então, um Funk consciente que dizia “eu só quero é ser feliz, andar tranquilamente na favela onde eu nasci, e poder me orgulhar, e ter a consciência que o pobre tem seu lugar”, n~o podemos dizer que agora temos um sem consciência, mas, certamente um que coloca o consumidor como tendo papel central, o consumo como bandeira, e seus produtos como meios de se afirmarem, distinguirem e, porque não, serem notados.
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CAPÍTULO 4 INDÚSTRIA CULTURAL E FORRÓ ELETRÔNICO NO RIO GRANDE DO NORTE
Jean Henrique Costa
Introdução
O presente estudo está ancorado, em significativa forma-conteúdo, nos escritos da primeira geração de pensadores do que se convencionou chamar Escola de Frankfurt, particularmente em Theodor W. Adorno. Não obstante, o seu questionamento capital encontra guarida numa inquietação posta por John B. Thompson no início dos anos 1990 ao estudar a teoria social crítica na era dos meios de comunicação de massa. Thompson (2002, p. 18) estava interessado em saber “se, em que medida e como [...] formas simbólicas servem para estabelecer e sustentar relações de dominação nos contextos sociais em que elas são produzidas, transmitidas e recebidas”. Para Eagleton (1997, p. 19) essa quest~o tem relaç~o direta com o conceito de ideologia, isto é, “os modos pelos quais o significado contribui para manter as relações de dominaç~o”. Trata-se, provavelmente, da definição mais amplamente aceita para o conceito de ideologia. Prontamente, indo para além dos muros das relações de dominação, por ideologia entende-se não apenas as ilusões socialmente construídas, mas, também, as formas pelas quais os homens compreendem e modificam a vida social. Tal dialética é central para evitar os excessos do pessimismo da dominação, bem como, o romantismo das formas de resistência. Esse problema de pesquisa substancialmente dilatado nos revelou uma possibilidade de estreitamento empírico, ou seja, buscou-se saber, com alento na questão contida em J. B. Thompson, se, em que medida e como o forró eletrônico atualmente em foco no mercado musical norte-rio-grandense serve para estabelecer e sustentar relações de dominação nos contextos sociais em que é produzido, transmitido e recebido. Em outras palavras: como é produzido esse
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forró eletrônico? Que visão de mundo oferece aos ouvintes? Como se dá o consumo desse gênero? A partir das possibilidades de recepção, como pensar o estabelecimento de relações de dominação em determinados contextos empíricos? Essas questões não podem, grosso modo, serem simplesmente respondidas considerando apenas as formas de produção da indústria cultural, nem tampouco somente os textos midiáticos. É preciso, no dizer de Johnson (2000), entrar no circuito da produção, dos textos (produtos), das leituras (recepção) e das culturas vividas. Para tanto, visando esse intento johnsoniano e, de quebra, revigorar parte do projeto crítico-adorniano, recorreu-se sistematicamente às contribuições dos Estudos Culturais (fundamentalmente, Richard Hoggart, Raymond Williams, Edward P. Thompson, Stuart Hall e Richard Johnson) e da sociologia de Pierre Bourdieu, objetivando uma melhor compreensão desse chamado “circuito de capital/circuito de cultura” (JOHNSON, 2000). Assim, no cerne da dialética entre práxis questionadora e conformismo, tencionou-se observar na produção, na circulação e na recepção do forró eletrônico atualmente dominante no mercado musical norte-rio-grandense elementos que demonstrem algo para além das possibilidades festivas de utilização desse gênero musical de massa, isto é, seu lado não transparente. Vale lembrar, nas palavras de Albuquerque Júnior (1999, p. 23), que as linguagens “não apenas representam o real, mas instituem reais”. Procura-se, desta forma, apreender o fenômeno musical para além de seu efeito lúdico, buscando entendêlo também como elemento de (re)produção de realidades sociais (conservando ou modificando-as). Metodologicamente o presente trabalho é fruto de um investimento qualitativo de pesquisa. Tratou-se de compreender determinados aspectos do forró eletrônico no Rio Grande do Norte a partir dos relatos de alguns de seus sujeitos constitucionais, ou seja, indivíduos que auferem materialmente a vida nesse mercado (músicos e empresários) e ouvintes de diferentes perfis. Esta é a primeira observação metodológica a ser ressaltada: trata-se de um estudo de caso. A segunda nota metodológica diz respeito a diferença entre o consumo do forró eletrônico como música de cultivo privado e como consumo festivo (espetáculo público). Consumo privado de música e consumo público de festa são práticas
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quase que indissociáveis, sobretudo num gênero musical dançante como o forró. Aliás, tomar o forró eletrônico apenas como música ou dança seria minimizar o fenômeno. Trata-se, em vez disso, de um Mix de música, dança, festa, humor, moda, linguagem, etc., ou seja, toda uma teatralização de uma nordestinidade urbanoindustrial. Mesmo assim, o presente estudo possui uma maior inclinação para o consumo privado das canções (audição de CDs, DVDs, mídias digitais), embora também preste atenção à festa de forró eletrônico como fenômeno marcante da sociabilidade de parte significativa da população potiguar, independentemente de classe social, sexo, local de residência, educação e/ou faixa etária. Após as duas advertências metodológicas elencadas, procurou-se, no presente campo empírico, especificamente: a) entender parte da natureza empresarial dos grupos musicais; b) descrever o conteúdo dominante presente nas letras de determinadas músicas de forró eletrônico captadas pelo recorte musical selecionado; c) compreender como os ouvintes decodificam parte do forró eletrônico mais veiculado no Rio Grande do Norte; d) perceber a ligação e o sentido prático que essas músicas desempenham na vida de cada ouvinte. O entrosamento desses quatro objetivos – feitos em “nó” – permitiu apreender que visão de mundo o forró eletrônico oferece aos ouvintes e, a partir das possíveis formas de recepção, pensar o estabelecimento de relações de dominação em determinados contextos empíricos. Assim sendo, em seguida, adotou-se como terceira referência metodológica basal a ideia de que não se pode compreender o problema posto através de uma visão fragmentada do processo de comunicação. Logo, foi necessário entrar no “circuito” da produç~o, da circulaç~o e da recepç~o cultural, atentando tanto para os momentos estruturados, quanto para os estruturantes do processo comunicacional. Para tanto, Johnson (2000) apresenta uma construção metodológica que procura romper com essa linearidade e, conforme sua recomendação, entender os fenômenos comunicacionais a partir de seus quatro momentos estruturantes (e indissociáveis): 1. Produção da mensagem; 2. Mensagem (texto); 3. Leituras possíveis; e 4. “Cultura vivida”. O modelo intitulado “circuito de capital/circuito de cultura” representa uma possibilidade de captar a
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totalidade da produção e do consumo cultural sem, contudo, abafar as particularidades dos processos comunicativos. Destarte, para o entendimento da produção do forró eletrônico, realizou-se um programa de doze entrevistas 28 estruturadas com músicos, ex-músicos e empresários do mercado do forró potiguar, visando compreender aspectos como formação das bandas; gravação dos shows; pirataria; lucratividade das bandas; competitividade no mercado; composições, etc. As entrevistas foram realizadas entre o mês de julho de 2010 e fevereiro de 2011, nas cidades de Natal, Parnamirim, Ceará-Mirim, João Câmara, Nova Cruz e Mossoró. Para a compreensão dos textos produzidos pelo forró (o conteúdo musical propriamente dito), realizou-se uma análise descritiva do conteúdo da discografia oficial da banda Garota Safada, grupo cearense de forró eletrônico atualmente muito difundido no RN e no mercado nacional. Deste modo, foram analisados os cinco (05) primeiros álbuns da banda Garota Safada, lançados, efetivamente, entre os anos de 2004 e 2008. Em seguida, o estudo se fundamentou no uso das categorias presentes em Hall (2003) para a compreensão do consumo do gênero musical supracitado. O uso das categorias leitura preferencial, leitura negociada e leitura de oposição foi, consequentemente, a base metodológica para a interpretação da recepção do forró eletrônico.
Buscou-se,
por
conseguinte,
uma
aplicação
desse
modelo
codificação/decodificação em quatro grupos distintos de informantes (obtidos, igualmente os grupos musicais, por acessibilidade). Foram eles: 10 estudantes do ensino médio de uma escola pública estadual localizada no município de São Gonçalo do Amarante, região metropolitana de Natal; 10 estudantes de uma instituição pública de ensino superior, localizada na cidade de Mossoró, aproximadamente 280 km de Natal; 12 estudantes do ensino médio de uma distinguida escola privada situada em Natal; e 13 estudantes também do ensino médio de uma escola pública estadual na cidade de Touros, distante aproximadamente 90 km da capital. A coleta de dados com os ouvintes se deu Todos os informantes citados ao longo deste artigo estão identificados por numeração progressiva (músicos e empresários) e codinomes (ouvintes). Logo, o anonimato foi devidamente respeitado. A totalidade dos relatos foi perdida na adaptação da tese (309 páginas) para o artigo. Contudo, o essencial da pesquisa de campo está registrado nos esparsos relatos aqui descritos. 28
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efetivamente entre os meses de fevereiro e abril de 2011, especificamente, em 24 e 25 de fevereiro e 07, 16 e 18 de abril. No roteiro de entrevista foram abordados temas como perfil do ouvinte; sentido e utilidade do forró no cotidiano; bandas preferidas; aquisição de mídias; preferências musicais, frequência a shows, etc. Por fim, encerrou-se o circuito com uma análise compreensiva do cotidiano do ouvinte (cultura vivida), ora associando sua preferência musical e seus hábitos de lazer às condições materiais de existência, ora ao acesso a determinados códigos e seus respectivos meios de leitura (capital cultural). A sociologia de Pierre Bourdieu, nesse quarto momento, ocupou lugar de destaque.
A potência do conceito de indústria cultural: da teoria crítica aos estudos culturais A expressão Indústria Cultural foi cunhada pela primeira vez em 1947 por Theodor W. Adorno e Max Horkheimer nos fragmentos filosóficos reunidos sob o título de Dialética do Esclarecimento, termo que viria contrapor o conceito cultura de massa por tratar de um fenômeno distinto quanto a sua natureza. Preferiram, ent~o, “usar a express~o ‘indústria cultural’, para evitar a confus~o com uma arte que surgisse espontaneamente no meio popular, que é algo bastante diferente” (FREITAS, 2008, p. 17). Na apreciação de Maar (2003), o termo cultura de massas parece indicar uma cultura solicitada pelas próprias massas, fora do alcance da totalização. Contrariamente, o termo indústria cultural ressalta o mecanismo pelo qual a sociedade como um todo é construída, sob o escudo do capital, reforçando as condições vigentes. Segundo Gabriel Cohn, trata-se de um conceito elaborado como resposta direta ao conceito de cultura de massa. Ambos compartilham a referência { cultura. “Mas é significativo que, enquanto na express~o ‘cultura de massa’ ela aparece como nome, na sua contrapartida crítica ela esteja na condiç~o de predicado” (COHN, 1998, p. 18). A indústria cultural é fruto da oportunidade de expansão da lógica do capitalismo sobre a cultura. Como enfatizou Mandel (1985, p. 352), existe no capitalismo
tardio
uma
tendência
à
industrialização
das
atividades
superestruturais e muitas dessas atividades já se organizam hoje em termos
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industriais, produzidas para o mercado e para a maximizaç~o do lucro: “a pop-arte, os filmes feitos para a televisão e a indústria do disco são fenômenos típicos da cultura capitalista tardia”. Daí que, para Hullot-Kentor (2008, p. 21), o conceito de indústria cultural em Adorno “nos leva a crer que foi para ele um achado preciso, resultado de uma auscultação minuciosa das tendências históricas, mais do que um neologismo historicamente oportuno”. Há, contudo, quem ateste hoje em dia as limitações do conceito e, inegavelmente, a realidade atual é bem distinta daquela vigente no período vital dos frankfurtianos. Todavia, suas limitações não invalidam, nem o fenômeno, nem tampouco o método crítico. A indústria cultural está aí! Todos os dias seus produtos, dentre best-sellers, games, Cds e Dvds, invadem o cotidiano de bilhões de pessoas. O que dizer, então, dessas cifras? Logo, sumariando com Costa (2001, p. 110), a heteronomia cultural; a transformação da arte em mercadoria; a hierarquização das qualidades; a incorporação de novos suportes de comunicação pelos setores que já detinham os meios de reprodução simbólica; o caráter de montagem dos produtos; a capacidade destes prescrever a reação dos receptores; a reprodução técnica comprometendo a autenticidade da arte; o consumidor passivo; a falsa identidade entre o universal e o particular; a técnica como ideologia; o “novo” como manifesto do imediato; e a fraqueza do “eu”, apontam para a continuidade da administração da cultura. Desta forma, o conceito não é apenas atual como empiricamente demonstrável. Como afirma Crochík (2008, p. 304), “certamente Adorno escreveu em outro tempo e em outros lugares, mas a regressão individual como fruto do avanço da sociedade da administração prossegue”. O capitalismo continua a liquidar, n~o com o trabalho, mas com o trabalhador e, para além disso, a criação de necessidades supérfluas vem se ampliando. Daí que o cerco da indústria cultural é vigoroso. Não se trata de um conceito-fetiche, mas sim, de um conceito eminentemente ligado ao seu tempo social, que, em termos de expansão do capitalismo, não se encerrou. Para Cohn (1998), a atualidade do conceito de indústria cultural reside essencialmente em dois aspectos capitais: a ideia de que seus produtos são oferecidos em sistema (o assédio sistemático de tudo para todos) e a noção de que a sua produção obedece
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prioritariamente a critérios administrativos de controle sobre os efeitos no receptor (capacidade de prescrição de desejos). Em suma, o cerco sobre o indivíduo tem sido crescentemente elevado e “com falsa unç~o a indústria cultural proclama orientar-se pelos consumidores e lhes oferecer aquilo que desejam para si” (ADORNO, 2008b, p. 196). Assim, enquanto ela desaprova toda possibilidade de autonomia do indivíduo, consegue por tabela aprovar muita heteronomia. Do mesmo modo, a capacidade de prescrição sobre o consumidor se constitui o seu grande trunfo. “N~o é bem que a indústria cultural se adapte {s reações dos clientes, mas sim que elas as finge” (ADORNO, 2008b, p. 197). Daí que a resistência se torna obstruída mediante tamanhas artimanhas administradas no âmbito da cultura. Divergentes a essa visão de mundo se posicionam os chamados Estudos Culturais britânicos (Cultural Studies), apresentando uma abordagem – também marxista – que proporciona possibilidades mais ativas de resistência do indivíduo frente aos mecanismos de sedução e encanto da indústria cultural. Como enfatiza Kellner: “os estudos culturais [...] s~o materialistas porque se atêm {s origens e aos efeitos materiais da cultura e aos modos como a cultura se imbrica no processo de dominaç~o e resistência” (KELLNER, 2001, p. 49). Deste modo, conforme nos lembra Canclini (2008, p. 17), n~o podemos ser “nem indivíduos soberanos, nem massas uniformes”. Como implicaç~o mais geral, tem-se que, ao distanciar-se das generalizações apocalípticas da dominação e das idealizações românticas da resistência, os Estudos Culturais sinalizam uma alternativa de compreensão do consumo cultural menos engessada nos vieses dos efeitos das ideologias. O marxismo, que se verifica distintamente dentre os teóricos dos Estudos Culturais, possuiu influência direta no desenvolvimento intelectual dos estudos culturais especialmente devido a três questões apontadas por Johnson (2000): 1. Os processos culturais estão intimamente vinculados com as relações sociais (por exemplo, relações de classe, divisões sexuais, estruturação racial e opressões de idade); 2. A cultura envolve poder, contribuindo, pois, para produzir assimetrias nas capacidades individuais de realização de necessidades; 3. A cultura não é um campo totalmente autônomo, nem externamente determinado, mas um local de diferenças e de lutas sociais.
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Diante dessas três constatações, as obras pioneiras de Richard Hoggart, Raymond Williams e E. P. Thompson têm um elemento central em comum: um diálogo com o conceito de hegemonia – “consentimento ativo” (GRAMSCI, 1989, p. 56) – em Antonio Gramsci como forma de pensar o cotidiano como uma arena de lutas por significação. Críticas à parte, Hoggart, Williams e Thompson imprimiram nova vitalidade ao conceito gramsciano de hegemonia, atitude que desembocará numa maneira menos engessada de pensar os processos culturais. No comentário de Martin-Barbero (2009, p. 268), começa, ent~o “a surgir uma nova percepç~o sobre o popular enquanto trama, entrelaçamento de submissões e resistências, impugnações e cumplicidades”. Na avaliação de Schulman (2000, p. 179), a releitura de Gramsci no final dos anos 1970 foi extremamente importante para colocar em movimento a reavaliação que os estudos culturais fizeram da cultura popular. Deixou-se de ver a cultura popular como mero veículo ideológico do status quo e passou-se a vê-la como um local de resistência e conflito potencial, desenvolvendo-se uma história da hegemonia. Nas palavras de Mattelart e Neveu (2004, p. 74), “longe de serem consumidoras passivas [...] as classes populares mobilizam um repertório de obst|culos { dominaç~o”. Ali|s, muito distintamente do que se poderia supor, a “esmagadora maioria das nossas experiências constitutivas permanece – e permanecerá sempre – fora do âmbito do controle e da coerção institucionais formais [...] Nem mesmo os piores grilhões têm como predominar uniformemente” (MÉSZÁROS, 2008, p. 54). Por conseguinte, não pode existir, nem tampouco se pensar, numa coerção ideológica onipotente. Nos Estudos Culturais há a concepção de que a própria ideologia é uma arena de luta, com base numa perspectiva também de baixo para cima, que atribui poder aos sujeitos e aos grupos para intervir nos sistemas políticos e nos sistemas de significação para produzir mudanças (SCHULMAN, 2000). Ampliando o debate sobre a indústria cultural em Adorno, uma análise enérgica da indústria cultural deve diagnosticar a complexidade e as lutas cotidianas na vida concreta dos sujeitos, encarando a arena cultural como um campo de lutas pela hegemonia. É preciso ver, portanto, a cultura como um jogo de poder, no qual a negociação dos problemas da vida cotidiana se realiza dentro de
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uma complexa estrutural social, que passa por alianças com grupos diferentes de acordo com o contexto ou com o momento. Não basta, pois, ver as mensagens veiculadas pela indústria cultural, nem tampouco como são produzidas. Tem-se que pensá-las em suas significações concretas, seus usos e desusos. Uma relevante recomendação presente em Certeau (1994, p. 39) é que se observe, além das mensagens emitidas, também aquilo que “o consumidor cultural fabrica” durante o seu uso, sua recepção, seu consumo, ou seja, entender as possibilidades de releituras. Nesse ínterim, a pesquisa de recepção pode ser considerada um marco nos estudos de comunicação, sobretudo a partir da obra de Stuart Hall. Segundo Porto (2003), o novo paradigma dos Estudos Culturais enfatiza disputas ideológicas no processo de comunicação, tratando o receptor (audiência) como um agente que interpreta ativamente o conteúdo midiático, teorização distinta de alguns marxistas que “costumavam tomar como um dado da realidade o poder da mídia, ignorando assim os processos de recepç~o das suas mensagens” (PORTO, 2003, p. 09). Schulman (2000, p. 182-183) aponta que Hall identificou quatro componentes de ruptura com as abordagens tradicionais do estudo da comunicação (recepção) – ruptura que significou uma verdadeira “virada etnogr|fica”. Primeiramente, os Estudos Culturais rompem com as abordagens behavioristas que viam a influência dos meios de comunicação de massa nos termos de estímulo-resposta. Rompem também com as concepções que viam os textos da mídia como suportes transparentes do significado, não percebendo, portanto, as entrelinhas. Em terceiro lugar, rompem com a ideia passiva e indiferenciada de público, optando por considerá-lo numa análise variada dos modos pelos quais as mensagens são decodificadas. E, em quarto lugar, rompe-se com a ideia monolítica de cultura de massa. Em decorrência dessa virada etnográfica, Hall (2003) identificou três posições hipotéticas de interpretação da mensagem midiática: a) Uma posição dominante ou preferencial, quando o sentido da mensagem é decodificado segundo as referências da sua construção; b) Uma posição negociada, quando o sentido da mensagem entra em negociação com as condições particulares dos receptores; c) Uma posição de oposição, quando o
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receptor entende a proposta dominante da mensagem, mas a interpreta segundo uma estrutura de referência alternativa. Essas três categorias possibilitam o entendimento da recepção cultural a partir de um cenário no qual as subjetividades passam, portanto, a serem vistas também como subjetividades negociadas, consentidas, e não apenas como dominação (OLIVEIRA, 1999). Aportado no pensamento de Stuart Hall, pode-se dizer que é na esfera cultural que se dá a luta pela significação. Nesse sentido, os textos culturais são o próprio local onde o significado é negociado. Destarte, uma música não pode ser simplesmente pensada como uma pueril manifestação cultural, nem tampouco como simples canal da ideologia, mas sim, como um artefato produtivo, prática produtora de sentido: aceito, negociado ou simplesmente rejeitado. Desta forma, mesmo no consumo dos chamados bens culturais de massa há, para além do fetichismo da mercadoria, uma certa possibilidade ativa de re-significação de seu uso. Para Dalmonte (2002) as reflexões dos Estudos Culturais se baseiam no argumento que o elemento cultural norteia o posicionamento do indivíduo frente aos produtos da indústria cultural. Desta forma, a diversidade cultural é responsável por distintas formas de apropriação e consumo da produção massiva. Trata-se, portanto, da capacidade popular em fazer leituras múltiplas, tornando a recepção um local de construção de significado e não de submissão total à esfera econômica. A obra de Hall nesse sentido é basilar para o entendimento empírico dessa pluralidade de recepção. Hall (2003) enfatiza que a mensagem é uma estrutura complexa de significados, não sendo algo tão simples como se poderia pensar, resultando que a recepção não pode ser pensada como algo perfeitamente transparente, ou ainda, operando de forma unilinear. Não havendo determinismo na relação produção/consumo, também não se pode problematizar a recepção de forma homogênea. Mais uma vez posto, nem há determinismo nem tampouco homogeneidade na recepção. Mesmo na crescente situação de heteronomia vislumbrada por Adorno (e este artigo concorda com a expansão do poder da indústria cultural), ainda assim podem ser encontradas negociações e contestações de várias ordens. Nesse sentido, pensar a expansão da indústria cultural significa
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pensar também nos modos como o sujeito se porta nesta ampliação. Eis o objetivo básico deste estudo.
Do baião de Luiz Gonzaga ao forró eletrônico
A história do forró enquanto gênero musical está sumariamente atrelada à figura de Luiz Gonzaga. Nas palavras de Chianca (2006, p. 67), “entre os artistas da cena musical dos anos de 1940, Luiz Gonzaga foi aquele que preencheu mais eficazmente a funç~o de ‘inventor’ de um estilo musical regional”. Gonzaga planejara o Baião. Embora muita coisa tenha ocorrido no improviso, principalmente a parte empresarial, na vontade gonzagueana tudo estava orquestrado. Fez-se, segundo Albuquerque Júnior (1999), uma recriação comercial de uma série de sons, ritmos e temas folclóricos do Nordeste. Gonzaga inaugurou o trio instrumental composto por sanfona, zabumba e triângulo e, buscando se aproximar das raízes sertanejas, começou a compor a sua própria imagem de nordestino, na qual o chapéu de couro foi sua marca registrada. De acordo com Chianca (2006, p. 71), “com Luiz Gonzaga, o bai~o, o xaxado e o xote foram popularizados e sintetizados numa expressão urbana, representando a música regional nordestina”, ou, segundo Albuquerque Júnior (1999, p. 157), representando “a voz do Nordeste”. O forró “passa a ser a música do ‘povo nordestino’” (LIMA, 2002, p. 237- 238). De acordo com Silva (2003, p. 88), Gonzaga cantou a seca; cantou a triste partida do povo nordestino para as terras do Sul; cantou a chuva, grande alegria do pobre agricultor sertanejo; cantou o verde da mata, a aridez do agreste e as asperezas da caatinga; cantou também os rios, a fauna e a flora; cantou a geografia nordestina, homenageando cidades, aspectos da cultura popular e personagens típicos do cenário humano nordestino. Cantou também o São João, instituindo-o como gênero junino por excelência. Fez também muitos versos críticos (evidentemente que dentro de certo tradicionalismo); no entanto, certas contradições das disparidades regionais não ficaram despercebidas. Denunciou a exploração do homem sertanejo pelos fazendeiros e denunciou governos pela inoperância para com os problemas mais imediatos do Nordeste, sobretudo a seca,
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a fome e a violência. “A característica inconfundível da obra de Luiz Gonzaga é o espelho que ele traça do sentimento nordestino. Fazia isso mostrando todas as manifestações da Regi~o e do povo” (OLIVEIRA, 1991, p. 71). Sua música, que ora pede, ora agradece; que ora tece críticas, ora mostra a alegria do cotidiano da região, representou para o Brasil um novo gênero musical, seja na dança, seja nas melodias. Gonzaga foi ator ativo na construção de um ritmo musical e na representação simbólica de uma região, produtor e produto, ator e espectador, senhor e sujeito de suas canções. O que virá depois é, em menor ou maior grau, fruto deste movimento iniciado nos anos 40. Chianca (2006) mostra que de 1975 em diante surge uma nova geração de forrozeiros, produzindo um forró dirigido fundamentalmente às camadas urbanas. O cenário mudará de forma substancial no final dos anos 1980 e início da década de 90. Num curto intervalo de tempo todo um mercado musical “urbano” paulatinamente vai se criando em torno de um jovem forró que pouco a pouco vai se modernizando e adquirindo elementos de outros gêneros da cultura pop. A indústria cultural toma as rédeas da sanfona e, num contexto histórico em que a modernização é demasiadamente desejada em certas áreas periféricas, o elemento eletrônico ganha força como expressão de novas perspectivas econômicas, culturais, sociais e políticas. Silva e Honório (2004, p. 16) apontam que o forró, longe da expressão alegórica e regional do pé-de-serra, inserido no campo da indústria cultural, “ganha uma nova roupagem, adequando-se à dinâmica social e às regras impostas pelo sistema capitalista”. Significa o ingresso numa nova fase, ou seja, no novo forró, “agora exibindo a guitarra, o baixo, o órg~o elétrico e a bateria, instrumentos utilizados por bandas que executam o som típico do ambiente urbanizado, como o rock” (SILVA; HONÓRIO, 2004, p. 16). A vertente eletrônica do forró caracteriza-se por imprimir uma atmosfera jovem e urbana ao gênero, utilizando como estratégia discursiva a apresentação explícita de temáticas sexuais. Sonoramente, o baixo e a bateria tornam-se principais protagonistas dos arranjos e a sanfona – símbolo sonoro e visual principal do gênero – tem sua importância diminuída em relação ao naipe de metais (quase sempre formado por trompete, sax e trombone) (TROTTA, 2009b, p. 140).
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Essa vertente eletrônica do forró foi criada, evidentemente, a partir do forró tradicional, mas “incorporando conceitos de outros gêneros musicais (axé music, música sertaneja e pagode). As bandas desse forró pós-moderno surgiram com a maquiagem do romantismo brega e o apelo sensual” (SILVA, 2003, p. 113). Nessa paisagem de transformações, empresarialmente diversas bandas começam a surgir nos anos 1990 e o estado do Ceará foi, e ainda é, o lócus vital de produção das bandas de forró. No estado do Ceará há, pois, uma ampla cadeia produtiva que engloba uma multiplicidade de espaços de “sociabilidade, produtoras e gravadoras musicais, programas de r|dio e televis~o e mesmo uma ‘cultura de celebridades’ local que promove novos ídolos, fã-clubes e o aparecimento de revistas especializadas centradas no gênero musical” (FEITOSA, 2008, p. 05). Nas vicissitudes dessas querelas, a década de 1990 simbolizou o surgimento do forró eletrônico. Também mostrou o acirramento de um gênero musical como um negócio moderno, administrado não para o público dançar agarradinho numa sala de reboco, mas sim, em grandes estruturas abertas para milhares de pessoas. O que virá depois terá nova exterioridade, sobretudo em virtude da ampliação das novas tecnologias e das novas configurações do mercado musical (inovação tecnológica e flexibilizaç~o dos direitos autorais). Assim, algo diferente do “pé-deserra” se configurou com os grupos eletrônicos. Os shows de forró eletrônico são espetáculos de luzes, danças e músicas. Ao invés do sanfoneiro como ator central da noite, inúmeras bandas se alternam no grande palco montado. Cavaleiros do Forró, Saia Rodada, Aviões do Forró, Garota Safada, Forró do Muído, Forró dos Plays, Forró da Pegação, Solteirões do Forró, Forró do Bom, Desejo de Menina, Calcinha Preta e inúmeras outras bandas alternam citadinamente em shows semanais, seja em grandes cidades, seja em pequenos e médios municípios. Sem a figura outrora dominante do vaqueiro, atualmente a juventude urbana, “industrializada”, faz-se protagonista do show de forró eletrônico. Jovens em busca de diversão lotam não apenas os espetáculos com maior visibilidade, mas também, shows em cidades menores, geralmente patrocinados pelas prefeituras municipais ou promovidos por casas privadas de forró. Segundo Trotta (2008, p. 10), “esse jovem urbano do interior desenvolve novos modelos de identificação musical, aproximando tradições musicais locais de
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suas práticas e imaginários cotidianos como o shopping center ou o último lançamento
cinematográfico
norte-americano”.
Destarte,
competitivamente
desfavorável à velha e pequena barraquinha de cachaça no forró pé-de-serra, presentemente existe no forró eletrônico toda uma estrutura mercadológica de marcas de bebidas, seja das cervejas mais consumidas no país, seja de whiskys importados – a marca Johnnie Walker é até aludida em letra de forró bastante tocada (Dança do Ice). Deste modo, no espaço do forró eletrônico estar na moda do consumo é requisito importante para ser visto (distinguido!). Ninguém quer ficar de fora do forrozão.
“The Experience Economy”: para pensar a produção do forró eletrônico
Pensar o mercado do forró eletrônico hoje é encarar duas mudanças relacionais que ocorreram e vêm se intensificando nos mercados musicais populares nas últimas décadas: maior acesso a crescente inovação tecnológica e flexibilização dos direitos autorais. É mister, pois, considerá-lo como um “mercado aberto” (FAVARETO; ABRAMOVAY; MAGALHÃES, 2007), desenvolvido sem se fundamentar rigidamente nas regras formais do direito de propriedade e por um sistema de distribuição descentralizado, no qual a produção é feita com custos reduzidos através do avanço tecnológico e a comercialização é feita por atores sociais diversos – com forte importância para os informais – que divulgam as músicas e atraem grande público para os shows. Logo, baixo preço do produto (produção de músicas em estúdios nem sempre convencionais e sua consequente venda informal), flexibilização jurídica dos direitos autorais e redução de hierarquias organizacionais são os fatores de estabilidade desse mercado. Conforme ilustra o depoimento abaixo, as facilidades de gravação e distribuição em massa de CDs feitos em estúdios caseiros, atualmente, estão à disposição de muitos novos artistas e a baixo custo: “Hoje pra você gravar um CD é simples. Você junta os músicos, pega um ‘computadorzinho’ seu, grava e amanh~ j| tem 15... 20 mil CDs rodando...” (INFORMANTE FORROZEIRO 02). Isso pode ser intitulado, pois, como uma “indústria cultural com base local” (JACKS, 2003, p. 138).
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Daí que no final dos anos 1990 o Brasil viu crescer alguns mercados musicais marcadamente regionais, tais como o forró eletrônico nordestino, o sertanejo universitário no centro-sul, o chamado “axé Bahia”, músicas religiosas, o tecnobrega paraense, etc. Assim, a chamada pirataria e as produções independentes tiveram e têm tido um papel fundamental na criação e na estruturação de novos grupos musicais, sobretudo aqueles mais distanciados das grandes gravadoras e seus selos formais. Concomitantemente, a consequente crescente divulgação de músicas pela internet foi e está sendo, seguramente, um dos maiores vetores dessa superexposição musical. Consensualmente entre os informantes se pôde constatar tal realidade. Os dois entrevistados a seguir categorizam essa realidade: o primeiro destacando a internet como meio de comercialização imediata; o segundo reafirmando a importância da tecnologia caseira na gravação e reprodução de CDs: Hoje em dia é internet. Saiu no show, baixou o CD, você já tem o CD em casa... Aí passa pra um, passa pra outro... Hoje a maneira mais rápida de se divulgar o sucesso é a internet (INFORMANTE FORROZEIRO 09). Essa questão da gravação hoje em dia qualquer um pode gravar. Qualquer um pode comprar um notebook e colocar um programa de gravação... Ao vivo todo show é um CD... (INFORMANTE FORROZEIRO 08).
O mercado de venda de mídias físicas (especialmente os CDs) vem decaindo, enquanto a circulação – formal e informal – de mídias digitais pela internet vem aumentando. Prontamente, com as facilidades oportunizadas pelas novas tecnologias de gravação/regravação e pela consequente dinamização e propagação das mídias piratas, no forró eletrônico de hoje as bandas já desistiram de vender CDs. Já reconhecem que o CD não é um fim de lucratividade, mas sim, apenas meio de divulgação e permanência no concorrido mercado musical. Os depoimentos de todos os entrevistados, em unanimidade, comprovaram tal afirmativa. Hoje o meio de renda principal é a questão de show mesmo. A questão de venda de CD não existe... se trabalha mais com CD promocional, de divulgação... pega o CD, faz 10, 15, 20 mil CDs e distribui em rádios, com o público mesmo pra curtir... o mercado de consumo de venda de CD não rende... o que rende mesmo é o show. Você é contratado, toca e com isso recebe seu cachê [...] As bandas elas geralmente levam o ‘cedezinho’ e na hora do show tão lá vendendo, mas vende pouco; outras fazem um
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brinde, um boné, uma camiseta, e vende a camiseta acompanhando o CD... às vezes até mesmo a pessoa assim chega com boa intenção: - eu quero comprar um CD! Aí a gente diz: - não, leve pra você. Já há um certo vício que a gente tomou em só dar mesmo a questão do CD (INFORMANTE FORROZEIRO 02). Hoje em dia o lucro do empresário de banda não é com venda de CD. Ele não vende mais CD porque não tem lucro. É por isso que eles dão o CD que é a forma de divulgar... pra banda ficar conhecida e tentar vender mais o show da banda (INFORMANTE FORROZEIRO 05).
Duas características são marcantes nos mercados musicais abertos. Primeiro, a importância das redes informais de produção e distribuição (gravadores e vendedores). A gravação informal, longe de ser vista simplesmente como um mal necessário, pelo contrário, torna-se quase uma panaceia para o pequeno músico e, por que não dizer, até mesmo para as grandes bandas. A pirataria não deixa de ser também consentida! Segundo, em decorrência da tendência à informalidade das gravações, as próprias bandas maiores entram no esquema das gravações em formato ao vivo, gravações essas basicamente realizadas no savoir-faire da produção informal. Logo, todos os grupos são não apenas produtos dessa tendência, mas também seus agentes estruturantes. Decorrente dessa tendência à informalidade das mídias digitais de áudio, em suma, o meio de lucratividade das bandas, com a pirataria e a exposição no chamado ciberespaço, resumiu-se a praticamente a venda do show. É possível de antemão compreender que enquanto nas tradicionais grandes gravadoras “a divulgaç~o em rádio tem como objetivo a venda de discos, que são os principais produtos dessas empresas, os produtores e empresários das bandas de forró elegeram os shows como produto b|sico de vendas” (TROTTA, 2009a, p. 104). Nesse ínterim, uma vez que não se obtém nenhum rendimento expressivo com a venda de mídias, igualmente flexível e, por conseguinte, precária, tem sido a arrecadação dos direitos autorais. Como destacam Lemos e Castro (2008), do ponto de vista do Direito, a principal questão a ser observada é a flexibilização das regras de propriedade intelectual. No forró eletrônico praticamente quase todo o mercado fonográfico é fundamentado nos CDs/DVDs gravados em shows, principalmente para as bandas pequenas que, buscando escapar (flexibilizar) da formalização do direito autoral, gravam seus repertórios praticamente em cima
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dos palcos. Segundo afirmaram em unanimidade os entrevistados, a gravação informal no formato “ao vivo” n~o é passível de nenhuma medida repressiva jurídica. Pra você fazer um CD oficial todas aquelas músicas têm que ter autorização. E o [CD] promocional é gravado no show. Então nele bota a música que você quiser. Ele canta até Roberto Carlos no CD promocional e não tem problema (INFORMANTE FORROZEIRO 06). O forró... é um mercado aberto... você tem uma música lançada, mas amanhã qualquer pessoa pode tocar, botar num show, e dizer que foi ao vivo e pronto... fica por isso... Ao vivo pode... Em estúdio já tem um certo medo, mas também o pessoal é ousado. Gravam [...] É aquele velho problema... aquele ditado ‘Maria vai com as outras’ (INFORMANTE FORROZEIRO 02).
Gabbay (2007, p. 11) auxilia essa compreens~o e argumenta que “é nesse contexto que as mídias alternativas começam a emergir como forma de driblar os difíceis sistemas de distribuiç~o e divulgaç~o do mercado formal”. As estratégias alternativas de circulaç~o dessas produções s~o “elaboradas dentro de um contexto específico que envolve canais de comunicação livres do controle financeiro das grandes corporações, formas imateriais de propagação de conteúdos e redes colaborativas informais” (GABBAY, 2007, p. 11). Assim, muito além de uma mera diversão popular, todo um mercado é movimentado por agentes fortemente envolvidos com a reprodução empresarial da música. Músicos, empresários, donos de estúdios de gravação, casas de show, reprodutores autorizados e não autorizados, vendedores ambulantes, rádios, prefeituras e fãclubes fazem parte desse complexo mercado do forró eletrônico. Longe de uma arte musical caseira e tradicional, constitui-se em torno do forró eletrônico uma grande rede empresarial para o entretenimento popular: “É mais f|cil um empresário bom conseguir fazer uma banda de sucesso com músicos ruins, do que músicos bons conseguirem fazer uma banda de sucesso com um empres|rio ruim” (INFORMANTE FORROZEIRO 06). Daí que o capital econômico a ser investido termina sendo, na visão dos entrevistados, o elemento orquestrador para a entrada e a permanência vital no mercado. Importa destacar a dinamicidade do mercado do forró eletrônico, sempre enfatizando que esse caráter enérgico termina por impor grande competitividade
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ao setor e faz com que as bandas vivenciem um paradoxo de difícil resolução para alcançar o sucesso ou mantê-lo: deve-se ser igual e diferente ao mesmo tempo. Ser igual, no sentido de seguir a moda em voga; diferente, no sentido de inovar fazendo a mesma coisa na rotina do sempre idêntico. “A música deve ser sempre nova e sempre a mesma. Por isso os desvios s~o t~o estandardizados quanto os standards” (ADORNO, 2001, p. 123). Reside aí um dos dilemas maiores do setor que, em si, termina por personalizar as canções dominantes via estandardização. O sucesso se faz, pois, pela morte da criatividade. Com a produção temática das músicas ocorre o mesmo. O conteúdo temático dominante das músicas de forró eletrônico, em geral, utiliza-se do trinômio “festa, amor e sexo” em suas canções (TROTTA, 2008; 2009a; 2009c; 2010). Referente ao amor e ao sexo, o próprio dançar “agarradinho”, as letras das canções e o ambiente extremamente sensual promovido nos palcos favorecem à paquera e à formação de casais, potencializando diversas possibilidades de encontros amorosos. Desta forma, segundo Trotta (2008, p. 08; 2009a, p. 109), a “simbiose entre o próprio show (festa), os desejos (sexo) e os estados afetivos do casal (amor)” constitui a temática dominante das canções do forró eletrônico. Além das letras propriamente ditas, “o estribilho malicioso e as intervenções faladas [dos cantores e cantoras], com risadas e expressões coloquiais entre os versos” (LEME, 2003, p. 97), tornam ainda mais sensual os shows e reforçam o conteúdo sexual das letras. Certamente, o repertório sentimental que caracterizou o forró dos anos 1990 permanece com os grupos de forró eletrônico atuais, contudo, dividindo espaço com novos temas mais urbanizados e mais ligados aos mercados de consumo modernos. De acordo com Feitosa (2008, p. 07), “s~o frequentes as referências de ‘imagin|rios’ construídos nos símbolos de consumo desse público (carros, equipamentos de som, bebidas alcoólicas), nas suas relações afetivas, ou no uso de expressões contempor}neas”. Deste modo, em muitas letras é substancial { alus~o, por exemplo, aos chamativos “paredões de som” em automóveis que, hoje em dia, são marcas distintivas em muitas festas e cidades, além de ritualizados em várias canções de sucesso. Assim, as canções que deliberadamente enfocam o consumo dos “paredões de som” em automóveis s~o
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sinais muito intensos de uma tendência conspícua, ou seja, dessa necessidade demasiada de evidência, justamente em realidades na qual o capital econômico é forte indutor de prestígio. Sincrônico ao tema do paredão de som é importante realçar também seus artifícios simbióticos, isto é, farras, conquistas amorosas, aquisição de bebidas alcoólicas em postos de gasolina, cabarés (bordéis) e, logicamente, a autopromoção das bandas de forró. Esses temas, produzidos para um público numericamente dilatado, s~o condicionados “pelo” e condicionantes “do” contexto musical dominante. Dentre lamentos amorosos; exaltaç~o de virilidade; a própria valorização do forró como espaço distintivo de diversão; incentivo ao consumo de bebidas alcoólicas; busca incessante por acometidas sexuais e a apologia a determinados padrões de consumo (o atual forró da ostentação), muitas letras de forró eletrônico, atualmente em sucesso, veiculam uma concepção de mundo que cria, muito distante de qualquer hedonismo, também certos valores e representações sociais. Conforme Trotta (2009a, p. 112), o público jovem “também se identifica e frequenta com assiduidade as apresentações de forró eletrônico, absorvendo elementos identitários e construindo estratégias de pertencimento através dos valores, pensamentos e perfil ideológico do forró”. Do mesmo modo, “possivelmente nesses locais, o imaginário da juventude e o trinômio festa-amor-sexo prevaleçam nas estratégias de construç~o de sentido e nos fluxos de interpretações e de gosto musical” (TROTTA, 2009a, p. 112). As letras, via de regra, obedecem a três critérios básicos: a) Temáticas que exploram acentuadamente a diversão e as relações íntimo-pessoais; b) Estruturas internas de grande simplicidade conceitual, evitando temas incompreensíveis; c) Reprodutibilidade dos hits da moda. Como a maioria dos gêneros musicais populares, o forró possui uma significativa padronização temática de suas canções, o que resulta em forte previsibilidade nas letras das canções e forte estandardização do material sonoro: o sucesso copia o sucesso, ciclicamente. Para além da condenação de possível falta de imaginação artística, interessa, por conseguinte, destacar que não se produz determinada música acreditando plenamente que se está criando uma pérola de tempos idos, mas sim, um produto para agradar em um mercado competitivo muito paradoxal: deve-se ser igual e
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diferente concomitantemente. Daí que se deve agradar ao público renovando sempre com canções que “evocam um mundo imagin|rio bem conhecido” (HOGGART, 1973, p. 59). A discografia em exame, da banda Garota Safada, corrobora tal assertiva. Os cinco (05) primeiros álbuns oficiais lançados apresentam exatamente esse mundo da diversão e das investidas amorosas, regado por músicas basicamente encaixadas na caracterização acima realizada: amor, sexo, festa e suas possíveis interfaces para o entretenimento. A análise descritiva da discografia da banda apontou para a domin}ncia das canções comumente denominadas “rom}nticas”, ou seja, àquelas que falam de conquistas e/ou lamentos amorosos (estados afetivos). Quase metade (48,61%) delas enfocou este tema. A tem|tica do “sexo” ficou em segundo lugar, ocupando 15,27% das canções, seguidas daquelas que exaltaram as bebedeiras e farras (5,55%). Contudo, como os temas são essencialmente intercambiáveis, tais percentuais se acentuam e revelam, reiteradamente, os padrões de conteúdo das letras de forró eletrônico. A temática do “amor” se eleva para 65,26%, a tem|tica do sexo para 36,09% e as festas e bebedeiras para 26,37%, o que demonstra como tais canções exploram a tríade apontada por Trotta: festa-amor-sexo, isto em 97,2%. Sinopticamente, a totalidade do forró eletrônico dessa banda explora essa representação – o que não resta dúvida de apontar que tal padrão se aplica também as demais bandas do gênero, sobretudo as mais competitivas, já que a competitividade do mercado induz à padronização dos hits. Como bem lembra a canção interpretada pela banda Cheiro de Menina: “pode até me copiar que eu n~o vou me incomodar...”. Evidentemente, o consumo no forró eletrônico não se dá exclusivamente em torno da música em si (apego incondicional pelo material sonoro), mas sim, fundamentalmente, através do próprio fenômeno festivo, àquilo que vem sendo chamado de “economia da experiência” (Experience Economy), conforme termo trabalhado por Joseph Pine e James H. Gilmore. “An experience occurs when a company intentionally uses services as the stage, and goods as props, to engage individual customers in a way that creates a memorable event” (PINE; GILMORE, 1998, p. 98-99). Nesse referencial, os consumidores não adquirem a música em si, mas sim, uma experiência. Tornam-se compradores de experiência - “buyers of
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experiences”. Trata-se, pois, de um sistema comercial no qual o consumidor paga não para adquirir essencialmente um produto, mas para passar algum tempo participando de uma série de eventos memoráveis. Mesmo assim, não se trata de um mero consumo festivo, mas, sobretudo, de todo um mix de possibilidades sociais. Para além do consumo do tempo “livre”, para uma parcela dos ouvintes essas músicas podem representar todo um ethos de diversão, lazer, prazer e relações sociais. Algo além da festa pode estar posto. Nem tudo se perde na ressaca do dia seguinte! (risos).
“Nem indivíduos soberanos, nem massas uniformes”: para pensar o consumo do forró eletrônico
A recepção do forró eletrônico dentre os 45 informantes da pesquisa de preferência musical se mostrou, longínqua de qualquer categorização monolítica, razoavelmente multifacetada. Driblando até certo ponto os esperados padrões dominantes, os relatos coletados são indícios de significativa heterogeneidade, tanto extra, como intraestratos. Ouvintes cativos de forró eletrônico, ouvintes ocasionais, ouvintes indiferentes e não ouvintes expressaram, grosso modo, os tipos puros weberianos para as possibilidades de consumo do supracitado gênero musical. Não obstante, uma coisa foi concretamente perceptível: o forró eletrônico é, para mais ou para menos, referência na formação da cultura musical do entretenimento potiguar, seja para aceitá-lo, seja para negá-lo. Torna-se difícil se esquivar totalmente de um ritmo tão disseminado no RN, desde botecos localizados em bairros periféricos da capital ou de cidades do interior até os paredões de som instalados nas modernas caminhonetes Toyota Hilux. Assim, nas vicissitudes das truncadas relações entre capital econômico e capital cultural, os relatos aqui apresentados expressaram uma realidade até certo ponto plural. Para além da suposição imaginável da dominância de uma decodificação apocalíptica do material musical pelas mãos da indústria cultural, os distintos casos em exame se apresentaram como uma alegórica expressão multiforme do consumo cultural. Faz-se mister enfatizar que as formas de consumo da recepção musical foram significativamente conflituosas. Logo, não significa que os depoimentos de
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cada ouvinte estão unificadamente enquadrados numa privilegiada forma de leitura. Um mesmo informante pode apresentar, concomitante e conflituosamente, momentos de leitura preferencial e momentos de leitura de oposição. Assim sendo, no consumo da música popular existe, pois, eixos concordantes e eixos destoantes de recepção. Em suma, os indivíduos não podem ser nem massas amorfas, nem essencialmente autônomos. São, pois, condicionados e condicionantes de sua construção particular. Assim, empiricamente as leituras negociadas, ou seja, àquelas decodificações na qual o significado criado pela interface entre o intérprete e o codificador da mensagem é habilmente contestado, foram as leituras mais frequentes. Estão representadas por ouvintes que gostam (alguns mais, outros menos) do forró eletrônico como gênero musical, o escutam com certa frequência (muito variável entre eles), até chegam a adquirir CDs/DVDs (ou mesmo fazer downloads da internet), mas, com um dado senso de julgamento, discorrem ajuizamentos diversos sobre a música e sua mensagem. Tratam-se, pois, de consumidores de forró, mas que, de uma forma ou de outra, não o recebem de forma entorpecidamente preferencial, nem efetivam leituras puramente de oposição. Por exemplo, muitos o usam, num nível mais localizado, apenas como referencial de consumo da chamada “economia da experiência” ou como narrativas sentimentais de experiências vivenciadas, enquanto que, todavia, num nível mais abstrato, terminam conferindo uma decodificação dominante a alguns sentidos codificados (em especial, sentidos como diversão, consumo, etc.). Os depoimentos a seguir ilustram esse senso de apreciação estética e, para além do substancialista “pensar” dicotômico (dominaç~o versus resistência), relevam alguns elementos de leituras negociadas: Tem umas letras no forró que são bonitas, agora também tem umas que os compositores delas faz já pensando na sacanagem. Hoje em dia a maioria das músicas feitas pra forró mesmo é mais pra sacanagem... Eu acho que faz mais sucesso (ANDRÉ, 19 anos, Touros). O instrumental de umas bandas até que são boas, tem bons músicos, mas as letras são muito decadentes, eu acho... por que a maioria das letras denigrem a imagem das mulheres... tipo xingando: ‘O amor é feito capim...’, ‘Você n~o vale nada...’. É tudo pra ferir alguém... e eu acho assim que música é pra você relaxar e eu não vejo relaxar escutando a música ‘O amor é feito capim’ (LÍDIA, 18 anos, Mossoró).
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Eu gosto de Garota Safada. Primeiro, algumas músicas da banda. Não todas. Algumas! Mas o que eu gosto de ver mais é Mastruz com Leite e Limão com Mel. Das antigas (JONATAS, 23 anos, São Gonçalo do Amarante). Cavaleiros [do Forró] tem músicas mais românticas... Aviões [do Forró] tem músicas que têm certa vulgaridade [...] Olha, Mastruz com Leite, músicas mais antigas... Calcinha Preta, etc. [...] a música deles não era vulgar... As de hoje são vulgares até demais [...] (SABRINA, 20 anos, São Gonçalo do Amarante).
A negociação vigente nas leituras acima apresenta basicamente que não se consome plenamente o forró eletrônico conforme os objetivos hegemônicos dos produtores. Segundo os depoimentos acima, algumas letras são boas, outras não; algumas bandas são melhores, outras não. Daí que, apesar do consumo ser atravessado por contradições, é visível que a codificação dominante não se faz inteiramente enérgica. Algumas lógicas específicas dos ouvintes não permitem tal sonho de poder dos produtores culturais. As citadas apreciações exemplificam que o consumo é relacionalmente negociado: negocia-se com o tempo (em geral as bandas dos anos 1990 são aludidas frequentemente como de melhor qualidade) e negocia-se com a moral (as temáticas mais eróticas nem sempre são bem avaliadas). Conforme observado nos depoimentos acima, o assunto da vulgaridade se torna reentrante nessas leituras negociadas. São indícios de que a linha tênue que separa o considerado “moral” do “imoral” é bastante condicionante para uma recepção positiva. Prontamente, num jogo de negociação, de acordo com Trotta (2009c), o que se negocia no uso dessa linguagem sexual é a fronteira do permitido e o ousado no campo da sexualidade. Portanto, o forró eletrônico é produto de uma indústria do entretenimento que joga com códigos morais, sobretudo e apesar das polêmicas despertadas. Essa negociação com o campo da sexualidade demonstra o quanto esse sistema de significados sexuais é “formado por múltiplos subsistemas, diversos sistemas de referência, lógicas conflitantes, configurações disparatadas e coisas semelhantes” (PARKER, 1991, p. 254). Daí que nem toda permissividade é aceita pelo ouvinte, mesmo dentre aqueles que estão mais abertos a outras formas de permissividade em outros campos da vida social. O exemplo a seguir demonstra bem essa lógica conflitante:
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Eu gosto, acho legal o forró, mas é uma qualidade que não tem respeito [...] Eu acho que todas as pessoas sabem que realmente a música é dessa maneira, mas eles levam pelo divertimento; eles se deixam levar tanto e não se dão nem conta do que tão fazendo [...] Eu gosto de todas as músicas, principalmente essas que chamam muita atenção da sensualidade... porque eu sei que a letra, se for reparar, é muito vulgar, só que eu gosto desse estilo de dança... desde pequena eu gosto de dançar mesmo [...] [A música] é boa, mas se você for olhar direitinho, a letra é pura sacanagem [...] Hoje em dia o sucesso tá puxando mais pra sacanagem do que pra essas músicas românticas... Hoje o que a gente mais vê é esses sucessos de música puxando mais pra sacanagem mesmo (LEILA, 26 anos, São Gonçalo do Amarante).
A negociação acima se torna alegórica dessa lógica conflitante: gosta-se das danças sensuais, mas não se gosta das letras de caráter sensual. Assim, seguramente é possível afirmar que o campo da moralidade é estruturante para o consumo dos bens culturais de massa. Outro componente funcional desse consumo negociado é o reconhecimento de que as bandas e músicas de maior sucesso conseguem impor seus produtos com maior complacência do público. Assim, o ouvinte sabe, em certo sentido, a força que a indústria do entretenimento musical tem para prescrever o gosto popular. “Mesmo os mais ineptos sabem, nos recônditos de sua alma, o que é verdadeiro e o que n~o é” (ADORNO, 2011, p. 169). Sabe-se que parte do que se consome deriva de determinadas imposições do mercado. O ouvinte não é um viajante sem bagagem. Para o ouvinte negociado não se escuta tal música como livre criação artística, mas sim, derivada de certos jogos de mercado: 1. O ouvinte sabe que o sucesso produz mais o sucesso (o prestígio adquirido é um meio de distinção); 2. Que o sucesso tem que seguir determinados clichês temáticos; 3. E que o sucesso depende cada vez mais de capital empresarial. Portanto, seria uma ingenuidade metodológica tratar o ouvinte como um receptáculo. Muitos aspectos são questionados e rejeitados. Decididamente é possível inferir que nem todo ouvinte acredita ou toma a produção do forró eletrônico como algo puramente artístico. Sabe-se, e inclusive com certa coerência, das regras mercadológicas do jogo da indústria cultural. Assim, é evidente que certas contradições da negociação perpassam todo o consumo, como muito bem aconselha Stuart Hall. Mesmo assim, numa postura negociada, reconhecem-se partes dos bastidores da codificação forrozeira. Os
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ouvintes, mesmo que precariamente, sabem de algumas estratégias da indústria cultural. Reconhecem, inclusive, que: a) A competitividade do setor impõe regras de padronização; b) O sucesso é o meio e fim para o próprio sucesso; c) Ocorre a padronização do material sonoro (letra e música) e até mesmo dos vocais; d) Parte substancial das músicas é de consumo efêmero e descartável; e) O papel da mídia e do capital na criação e manutenção do sucesso é essencial. Contudo, e aí reside o caráter negociado do consumo, termina-se ouvindo o forró, seja pela sua dominância, seja por necessidade de sociabilidade. Apesar disso, não se trata de um contexto puramente estruturado, mas também, dinamicamente estruturante. O ouvinte não se lança ao jogo sem, ao menos, o conhecimento prévio de algumas regras. No ápice desse consumo negociado importante tem sido a atratividade sentimental das músicas, geralmente atribuída ao chamado romantismo das letras. Em contraste com a “vulgaridade” fortemente alegada anteriormente, o balanço entre o gostar e o não gostar nessas leituras negociadas gira bastante em torno do saldo entre o sentimentalismo e a presença do apelo erótico nas letras das canções. As músicas de antigamente eram músicas mais emocionais, músicas que tocavam muito a gente. Até hoje eu chego a escutar aquelas músicas de antigamente, música amorosa, tipo Mastruz com Leite, Banda Magníficos... Era uma música muito boa de forró. Depois de um tempo prá cá as músicas começaram a botar muita pornografia que não tem nada a ver (MARCELO, 17 anos, Touros). Acho que, por exemplo, nas letras eles falavam mais de amores perdidos, paixões, mas era de uma forma diferente das de hoje em dia. Antigamente se dava um valor bem maior para a mulher e hoje em dia a mulher não é tão mais bem tratada como antigamente (DANIELA, 17 anos, Natal).
Outro aspecto recorrentemente vigente nas leituras negociadas se refere aos espaços de consumo do forró. Expressa-se na distinção entre o consumo musical privado (escuta doméstica de CDs, DVDs, mídias digitais...) e o apartado consumo em festas (consumo musical em shows), apregoado pelo ditado que diz que “forró n~o é muito para se ouvir, mas sim para dançar”. A busca pela separaç~o entre ouvir e dançar o forró eletrônico mostra como alguns ouvintes o têm apenas como meio de entretenimento e não como música de audição mais íntima e privada.
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Assim... é porque forró ele anima né! Eu acho que forró não é bem pra escutar. É mais pra dançar, em festa, em show, essas coisas assim. Eu acho que é mais pra animação mesmo [...] Escuto, mas eu prefiro em festa... As pessoas escutam, mas eu acho que eles preferem estar numa festa dançando do que em casa escutando (KARINA, 17 anos, Natal). ... a melhor parte do forró, a parte mais contagiante, é o ritmo, porque os cantores geralmente não tem voz muito bonita, e o que faz eu gostar mais é o ritmo, embora quase todos se pareçam, mas é o ritmo... Eu sei que não tem muita qualidade não, mas... (CAROLINA, 17 anos, Natal). Forró é mais pra ir pra festa. Não sou muito de escutar forró em casa ou no mp3. Só festa mesmo. Por que aqui em Mossoró e região só tem festa de forró. Aí é por isso que eu vou... Geralmente quem vai pra festa de forró não vai só pra ver a banda, só pra escutar. Vai pra dançar mesmo (LÍDIA, 18 anos, Mossoró). Eu acredito que não chame tanta atenção para se ouvir, mas, já como eu falei anteriormente, para dançar é ótimo. Vai no embalo mesmo e pronto (ALESSANDRA, 23 anos, Mossoró).
A música torna-se, pois, um procedimento de possibilidades para além do próprio consumo do material sonoro. Um desses artifícios se materializa na possibilidade de encontros amorosos. Num ambiente extremamente sensual como o forró, criado não apenas pela motivação do público, mas também pela atmosfera das bandas, as probabilidades de encontros são elevadas. Eu acho que o show é só pra namorar. O povo hoje entra numa festa de forró só pra ‘pegar’ a menina pra dançar e namorar mesmo (FRANCISCO, 23 anos, Mossoró). Eu estando em casa eu quero ouvir outras músicas. Agora também se eu tiver numa festa o forró é bom pra ‘pegar’ mulher. Agora em casa, também, toda hora não... (JOÃO, 19 anos, Touros).
No cerne da distinção entre consumo privado e consumo público (festivo) de forró eletrônico, uma das constatações mais manifestas desse consumo negociado parece ser a vocaç~o do “lugar” para o gênero, geralmente atribuída a frequência de shows no local de residência e a falta de outras possibilidades de entretenimento distanciadas do forró: “... é a cultura da regi~o, da cidade, de escutar muito forró, e eu gosto... gosto mais ainda de ir pras festas do que ficar propriamente
ouvindo
em
casa”
(MADALENA,
20
anos,
Mossoró).
Consequentemente, grande parte dos entrevistados reconhece o forró como o gênero mais tocado no RN e na cidade em que residem.
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Onde eu moro praticamente todo mundo ouve forró. Aí se eu for contra, vou acabar enlouquecendo (JULIA, 26 anos, São Gonçalo do Amarante). Eu vou porque tem que ir, senão não saio de casa não. Só tem forró em Mossoró. Vão os amigos aí eu vou também (FRANCISCO, 23 anos, Mossoró). Já é tradição do Nordeste. Eu acho que todo nordestino gosta de forró... Toda festa aqui em Mossoró se não tiver o forró o pessoal não vai. Tem que ter pelo menos uma banda de forró... É o forró, por que aqui em Mossoró todo mundo gosta. É quase impossível não gostar de forró. Se não gostar de forró, não mora em Mossoró (TEODORO, 22 anos, Mossoró).
Nessa conjuntura, estruturadamente, mas também estruturante, tem sido essa sociabilidade forrozeira em boa parte do RN. Embora na capital Natal as opções de lazer sejam bem superiores, no restante do estado o forró se torna dominante no cotidiano do entretenimento da população. Em suma, laqueando essa inquietação das leituras negociadas, pode-se compreender, pois, que num dado nível situacional (localizado), o público “negociado” possui certa avers~o ao conteúdo mais erótico de algumas letras (extrapolação dos chamados limites morais); vigora também uma dada separação entre o “ouvir” e o “dançar” forró: nem toda canç~o de sucesso consegue se tornar música de audição privada. E, não menos importante, o ouvinte possui forte realismo acerca de alguns jogos de mercado. Mesmo assim, num nível mais abstrato, contudo, o ouvinte termina conferindo algumas posições privilegiadas às definições dominantes, tais como, por exemplo, o intenso apego ao conteúdo sentimental das canções. Em suma, para Hall (2003), essas lógicas de consumo são sustentadas por uma relação desigual e diferencial com as lógicas do poder. Por conseguinte, é importante enfatizar que esses depoimentos nem estão a contrapelo do código preferencial, tampouco estão narcotizados por ele. Estão, como o próprio conceito indica, negociando significados. É preciso salientar, todavia, que os relatos acima destacados não possuem propriedade categoricamente estabelecida, ou seja, as leituras dos indivíduos oscilam significativamente entre as posições hegemônicas e de oposição, sendo seguramente bastante intercambiáveis. Praticamente não houve nenhum indivíduo com depoimentos exclusivamente hegemônicos, nem tampouco somente de oposição. Tal condição demonstra como
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variável é a percepção acerca dos bens culturais, o que inviabiliza pensar em referenciais de grande estruturação (Theodor Adorno) ou, na contramão, de grande resistência. N~o obstante, e é exatamente esse “entretanto” que torna o problema mais instigante do ponto de vista metodológico, tal diversidade de percepções não deve ser vista somente como uma dada estética popular, mas, também, pela obliquidade de um pujante contexto estruturado. Como adverte Adorno: “quem assovia uma canção para si mesmo, acaba dobrando-se a um ritual de socialização (ADORNO, 2011, p. 95). Assim, o conceito de pseudo-individuação em Adorno possui o mérito de apresentar que tal diversidade de apreciações pode esconder um lado bem mais sutil e de difícil constatação, ou seja, que as leituras em negociação e/ou em oposição a um dado gênero musical podem significar a adesão hegemônica (preferencial) a outro, também guardião da regressão da audição (fetichizado). Assim, o consumidor acredita, de fato, estar escolhendo livremente gêneros musicais num mercado que, em si, oferece essencialmente gêneros musicais padronizados. A indústria cultural “providencia marcas comerciais de identificaç~o para diferenciar algo que de fato é efetivamente indiferenciado” (ADORNO; SIMPSON, 1994, p. 124). Nesse
sentido,
de
acordo
com
o
visualizado
nas
entrevistas,
fundamentalmente figuraram como preferências musicais circunvizinhas do forró gêneros como o axé music, samba (chamado pelos informantes muitas vezes de “pagode”), reggae, músicas religiosas, o sertanejo universit|rio, pop internacional, etc. Em suma, basicamente todos estandardizados. Sob a auréola da livre escolha, do “gosto disso e n~o gosto daquilo”, muitos terminam negando algo em um dado gênero musical e o aceitando noutro tipo de música. Apenas aparentemente dotados de senso de opção, a individualidade debilitada pouco tem de decisão nas escolhas, sobretudo quando o mercado musical oferece tantos gêneros estandardizados sob rótulos somente aparentemente distintos. Logo, a negociação deve existir em todos os gêneros e não apenas no forró. O cerco, contudo, é administrado e sistêmico. Se uma crítica ao modelo de Hall pode ser efetivada neste momento, é que tal negociação, no Mundo Administrado, é também sumariamente administrada.
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Em todos eles (axé, samba, forró, sertanejo, pop internacional, etc.), praticamente figuram fortemente a tríade “festa, amor e sexo” como marca tem|tica geral, e, mesmo variando entre um gênero e outro, criam certos significados, reforçam os existentes e anulam as possibilidades de outros sentidos para além do mundo da diversão e do entretenimento sob a égide da indústria cultural. Embora essas afirmações não possam ser probabilisticamente mensuráveis (nem devem!), intenta-se aqui pelo menos destacar que os significados da indústria cultural estão por aí, espalhados pelas rádios mais populares, festas, paredões de som, CDs, DVDs, players de música, internet, celulares, etc. Como nem tudo se desmancha na ressaca do dia seguinte, alguma coisa é, certamente, sugada pelo público. Além dessa reflexão, conforme pode ter sido observado nos diferentes ouvintes analisados, cabe destacar de igual valia que o tipo-ouvinte dominante no forró eletrônico pode ser classificado exemplarmente como o ouvinte do entretenimento (ADORNO, 2011). Para Adorno, trata-se daquele ouvinte “que só escuta música como entretenimento, e nada mais” (ADORNO, 2011, p. 75). Daí que esse tipo de ouvinte “é aquele pelo qual se calibra a indústria cultural, seja porque esta conforma-se a ele a partir de sua própria ideologia, seja porque ela o engendra ou o traz { tona” (ADORNO, 2011, p. 75). Portanto, tem-se aí a dominância de um público que não se importa em demasia com o que consome. Em todo caso, Adorno proporciona uma compreensão muitíssimo acurada do consumo musical de massa, uma vez que mostra o lado dominantemente heterônomo dessa recepção. Negociações e oposições existem na Teoria Crítica, contudo, numa proporção bem limitada frente {s capacidades de prescriç~o e “incrustamento” da indústria cultural. Não obstante, uma observação deve ser destacada neste momento: mesmo em Adorno o indivíduo não é um consumidor plenamente passivo. Ressalta-se agora que esta é a melhor possibilidade de diálogo do autor com os Estudos Culturais. Assim, mesmo diante do extenso poder da indústria cultural, as pessoas têm certa capacidade – mesmo limitada – de compreensão do consumo. Se minha conclusão não é muito apressada, as pessoas aceitam e consomem o que a indústria cultural lhes oferece para o tempo livre, mas com um tipo de reserva, de forma semelhante à maneira como mesmo
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os mais ingênuos não consideram reais os episódios oferecidos pelo teatro e pelo cinema. Talvez mais ainda: não se acredita inteiramente neles [...] Os interesses reais do indivíduo ainda são suficientemente fortes para, dentro de certos limites, resistir à apreensão [Erfassung] total (ADORNO, 2002, p. 116, destaques nossos).
Prontamente, a passagem acima, de 1969 (texto Tempo Livre - Freizeit), já revela um Adorno diferente do vigor pessimista muito marcante na Dialética do Esclarecimento. Continua afirmando a potência da indústria cultural; porém, dando atenção também ao momento da recepção. Apesar da potência da indústria cultural, o indivíduo ainda guarda uma força, “el potencial que este necesita para no confiarse en lo que ciegamente se le impone, para no identificarse con ello ciegamente” (ADORNO, 1973, p. 52). Vê-se, logo, que aí reside uma curiosa ambiguidade percebida por Adorno. Pode-se dizer que os homens são efetivamente formados pela indústria cultural, contudo, que também não o são. Os homens se subordinam aos esquemas de percepção da indústria cultural, ao mesmo tempo em que, a rigor, sabem que suas representações não são, de fato, verdadeiramente significativas. Nem tudo que é propagado pela indústria cultural tem a importância atribuída pelo behaviorismo de plantão. Bourdieu neste sentido oferece uma contribuição que, embora não apresente fácil adesão orgânica com Adorno, pode auxiliar no entendimento geral do consumo forrozeiro. Para Bourdieu, o consumo cultural é marca de distinção de classe, criador e criatura da diferenciaç~o no espaço social. Em suma, “as diferenças de capital cultural marcam as diferenças entre as classes” (BOURDIEU, 2008, p. 67) e, consequentemente, de gosto e apropriação estética. O capital cultural é orquestrador dessa disposição. Prontamente, um indivíduo educado numa família que consome o forró eletrônico cotidianamente, e que não tem acesso ao arbitrário cultural legítimo via Escola, somente pode ter o supracitado gênero musical como meio de sentido musical maior em seus meios de entretenimento. “A minha família também todinha curte o forró... J| é de nascença j|” (SABRINA, 20 anos, S~o Gonçalo do Amarante). Distintamente:
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A imersão em uma família em que a música é não só escutada (como ocorre nos dias de hoje com o aparelho de alta fidelidade ou o rádio), mas também praticada (trata-se da ‘m~e musicista’ mencionada nas Memórias burguesas) e, por maior força da razão, a prática precoce de um instrumento de música ‘nobre’ - e, em particular, o piano - têm como efeito, no mínimo, produzir uma relação mais familiar com a música que se distingue da relação sempre um tanto longínqua, contemplativa e, habitualmente, dissertativa de quem teve acesso à música pelo concerto e, a fortiori, pelo disco (BOURDIEU, 2008, p. 73).
Deste modo, o contato com a música erudita desde cedo, seja por meio da prática musical, seja por meio da frequência a concertos, cria esse habitus musical erudito. Por conseguinte, o capital cultural constitui-se no elemento basilar para a definição do tipo de consumo cultural que o indivíduo terá como habitus (de classe). Para Bourdieu a família e a escola são os espaços nos quais se formam esses juízos de atribuições. São os dois espaços que possibilitam ao indivíduo o ingresso nas distintas formas de uso e decodificação da economia legítima dos bens simbólicos. Indivíduos socializados sem herança cultural familiar portadora do habitus musical legítimo e educados em instituições de ensino não voltadas para o fomento de uma cultura artística legítima terminam desprovidos do acesso aos códigos para os mercados de bens simbólicos eruditos. Terminam consumindo, muito provavelmente, os bens da chamada indústria cultural. Bourdieu, então, reconhece que o elemento orquestrador do consumo dos bens da indústria cultural é o car|ter pessoal e direto de tais códigos. “Seja no teatro ou no cinema, o público popular diverte-se com as intrigas orientadas, do ponto de vista lógico e cronológico, para um happy end...” (BOURDIEU, 2008, p. 35). Daí que o consumo desses bens não pode ser pensado somente como imposição de algo, mas sim, como a sugestão de algo que faz sentido. Para Bourdieu (2008, p. 37), a música popular, por exemplo, é mais “popular” em raz~o de ser menos eufemística e oferecer um prazer mais imediato. “... s~o mais ‘populares’ que outros espet|culos [pois] deve-se ao fato de que, por serem menos formalizados [...] e menos eufemísticos, eles oferecem satisfações mais diretas e imediatas”. Nesse sentido, o consumo do forró eletrônico obedece, fundamentalmente, ao nível de capital cultural do ouvinte. De tal modo, o consumo do forró eletrônico é produto e produtor direto do capital cultural do ouvinte. Tal capital cultural, isto
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é, o estoque de conhecimento incorporado no sujeito, é definidor desse consumo. Definidor e definido pelo habitus (de classe), o indivíduo escuta aquilo que, em geral, faz parte de seu cotidiano e que, primeiramente, o habilita a decifrar os códigos que o rodeiam. Adentrando na empiria, nas entrevistas realizadas nas escolas públicas localizadas nos municípios de Touros e São Gonçalo, em unanimidade, nenhum informante declarou consumir algum gênero musical que fugisse do padrão estandardizado dos meios populares. Confirma-se, pois, a assertiva de que o consumo cultural está intimamente ligado ao capital cultural do ouvinte. Mas e o consumo do forró eletrônico dentre as chamadas elites econômicas? E dentre àqueles que têm investimento em educação e possibilidade de acesso aos bens culturais legítimos? Como explicar tal desvio do padrão estabelecido relacionalmente pela equação capital cultural + obra erudita = deciframento do código + habitus musical erudito. O conceito de capital social é, para essa inquietude, basilar para o entendimento do consumo do forró. A forma como o indivíduo se relaciona socialmente e consegue mobilizar relacionamentos também é orquestradora de habitus. A cultura musical possui forte vínculo com determinados padrões de sociabilidade (imersão em redes), padrões estes que ultrapassam barreiras de classe e capital cultural. Adorno e Horkheimer j| haviam percebido tal realidade. Para eles, “a rede de relações sociais entre os indivíduos tende a ser cada vez mais densa; é cada vez mais reduzido o }mbito em que o homem pode subsistir sem elas” (ADORNO; HORKHEIMER, 1978, p. 40). Toda essa tendência de vinculação dos indivíduos a redes de relacionamentos reforça o papel do capital social como recurso aglutinador na configuração de espaços distintos de cultura de entretenimento. Segundo Bourdieu (2007, p. 67): O capital social é o conjunto de recursos atuais ou potenciais que estão ligados à posse de uma rede durável de relações mais ou menos institucionalizadas de interconhecimento e de inter-reconhecimento ou, em outros termos, à vinculação a um grupo, como conjunto de agentes que não somente são dotados de propriedades comuns (passíveis de serem percebidas pelo observador, pelos outros ou por eles mesmos), mas também são unidos por ligações permanentes e úteis.
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Deste modo, as chamadas elites econômicas que consomem a música ligeira (popular) o fazem, sobretudo, por duas razões: pela eventual falta do código de deciframento da música erudita (nem toda elite econômica é elite intelectual) e/ou por meio de relações de sociabilidade nos meios em que a música popular é mais veiculada (fortemente reforçada pela chamada economia da experiência). Assim, os estudantes entrevistados na escola privada de Natal – freqüentada pela elite econômica e alta classe média da cidade – foram praticamente unânimes em afirmar que o forró eletrônico tem sido um gênero muito ouvido pelos discentes, especialmente em razão da freqüência a shows, inserção em redes de relacionamentos e popularidade das bandas. Para Bourdieu (1996), mais do que racionalismos estreitos e ou estruturalismos que reduzem os agentes a simples epifenômenos das estruturas, é preciso ver a realidade em termos de relações, ou seja, realidades que não são dadas (classes, papeis, gostos, etc.), mas sim, relacionais: as coisas são na medida em que estão! Logo, num estado em que o forró eletrônico é bastante ouvido, nada mais lógico do que ouvi-lo. Portanto, todos querem entrar na onda da moda e freqüentar os espaços hegemônicos do entretenimento de massa, independente de classe social. Daí que a “oposiç~o ‘cultura erudita’ x ‘cultura popular’ é substituída por outra: ‘os que saem muito’ x ‘os que permanecem em casa’. De um lado os sedent|rios [...] De outro os que ‘aproveitam a vida’” (ORTIZ, 2000, p. 211). Se todo mundo diz que é bom, você com certeza vai achar bom... com certeza não, tem uma grande chance... por causa da propaganda... ah! Você mora em natal e não dança forró? Que isso!... vai... (ANDERSON, 17 anos, Natal). As festas são só isso, se você não souber a música você fica um pouco excluído (VANESSA, 16 anos, Natal). Tem gente que não curte o forró, mas só porque os amigos gostam, eles acham que isso vai... se sentir na moda... aí tem os que escutam só pra dizer que estão no mesmo grupo... tem gente que nem gosta do forró, mas o grupo gosta, eles acabam gostando... é legal, o toque, essas coisas, animam muito as festas e eu acho que representa muito o Nordeste; a gente sempre tá acostumado a ter forró em todas as festas... eu acho que é bem legal (KARINA, 17 anos, Natal). É a necessidade da socialização, porque eu preciso estar envolvido no meio... chega numa festa e você não sabe que músicas são aquelas... você se sente meio por fora do que todo mundo tá escutando (ROGÉRIO, 17 anos, Natal).
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Mesmo
dentre os informantes desta
escola privada não
sendo
significativamente presente os “f~s” cativos de forró, quase todos reconhecem que, dentro do distinguido espaço escolar investigado, boa parte dos estudantes consome o forró como meio de entretenimento. Deste modo, os juízos estéticos também se modificam com esse tipo de sociabilidade de festa. Embora a correlação entre os membros de um grupo e a ideologia poder ter diferentes tipos de determinação em cada indivíduo, é plausível considerar que determinados indivíduos podem passar de simpatizantes a fãs de forró com a exposição sistemática do ritmo. A força do grupo é um aspecto a ser considerado, mesmo não sendo determinante. Saindo da primazia do econômico, o mesmo ocorre com a elevação na escolaridade. O forró eletrônico foi expressivamente valorado dentre os informantes universitários, o que reforça a dependência dos capitais econômico, cultural e social para a definição do habitus. Embora a recepção do forró não tenha sido unânime como quase foi nas escolas públicas de Touros e São Gonçalo do Amarante, dentre os informantes desta universidade estudada o ritmo foi significativamente aludido como consumo musical de entretenimento. Em suma, pode-se afirmar que o forró eletrônico, seja pela questão de capital cultural, seja pela questão das redes de sociabilidade, termina sendo uma máxima do divertimento de massa no estado do Rio Grande do Norte. Novamente destacando, independentemente de classe social. Nesse cenário, é sempre bom lembrar que escolhas tendem a reproduzir as relações de dominação e que, para mais ou para menos, o consumo do forró eletrônico foi significativamente consumido dentre os informantes, virtualmente reforçando nas representações sociais, por exemplo, noções de prazer, de entretenimento, de consumo, de sentimento, de gênero, de estilo de vida, etc. Tais representações, em menor ou em maior dimensão – não cabe aqui especular –, conseguem se transformar, mesmo que pontualmente, em leitura hegemônica. O aumento no número de bandas e de canções “dificilmente funcionaria se n~o houvesse alguma susceptibilidade a ele entre as pessoas” (ADORNO, 2008a, p. 174).
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Considerações finais
O presente estudo se lançou num desafio metodológico bastante arriscado: estudar um fenômeno cultural inside através de uma perspectiva teórica outside, ou seja, um referencial deslocado temporal e espacialmente do proposto para a empiria. A opção por Theodor W. Adorno foi, acima de tudo, um exercício de renovação do vigor de suas ideias, algo muito além de modismos acadêmicos e/ou oportunismos técnico-metodológicos. A não sujeição incondicional aos imperativos do hibridismo e da diversidade cultural foi, neste trabalho, o maior escopo. Daí que não cair na tentativa de criação de um jargão da autenticidade para o hibridismo e para o espetáculo da diferença foi, desde o início, uma aventura na dialética negativa adorniana. Sabiamente, “a interpretaç~o feita pelo aparelho de propaganda e pela maioria n~o precisa ser, por isso, a melhor” (HORKHEIMER, 1991, p. 67). Logo, como alternativa de renovação da obra adorniana, a opção pelos Estudos Culturais (Hoggart, Williams, Thompson, Hall, Martin-Barbero, Canclini...) e pela sociologia de Pierre Bourdieu também não se deu por modismo ou oportunismo, mas sim, pelo reconhecimento da necessidade de atualização do projeto crítico e pela potência explicativa de ambos os referenciais. Theodor Adorno poderia, caso estivesse vivo, tanto se sobressaltar com o forró eletrônico de hoje, quanto, a partir da renovação de sua Teoria Crítica – quem sabe até pelas mãos do conceito de hegemonia em Antonio Gramsci –, compreendê-lo de forma menos pessimista, buscando sobrepujar a austera dicotomia entre o objetivismo e o subjetivismo. A criatividade da especulação sociológica não tem limites! Logo, examinar o forró atualmente dominante no Rio Grande do Norte requisitou a aceitação desse risco estrutural: pensá-lo através de Adorno numa época em que o mesmo parece estar, dentre o ardiloso senso comum acadêmico, tão desgastado, além do fato de que são dominantes hoje as perspectivas teóricas do hibridismo cultural. Mesmo assim, encarando o desafio e reconhecendo que esses diagnósticos limitativos são majoritariamente parciais, partiu-se adornianamente para a crítica – não qualquer crítica, mas sim, a Kritische Theorie.
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Deste modo, dentre aqueles que assistem a realidade como uma fronteira de “arames rígidos29”, compreender as formas de dominaç~o parece ser um exercício extremamente fácil, pois as determinações estruturais são muitíssimo pujantes. Na outra ponta, dentre aqueles que observam a realidade como uma fronteira repleta de “arames caídos”, perceber a realidade e suas possibilidades de desvio em relação à norma e ao controle social também parece ser tarefa simplificada, já que em todos os espaços há lócus para resistências30. Nas vicissitudes desse embate epistemologicamente territorial, termina o indivíduo apreendido a partir de esquemas conceituais pouco perspicazes, uma vez que falham essencialmente pela obliqüidade da unilateralidade, seja pela unilateralidade da potência dominadora, seja pela unilateralidade da supra-capacidade de resistência dos indivíduos. Conforme já dito anteriormente, não podemos ser nem indivíduos soberanos, nem massas amorfas. Daí que as pessoas não são e nem podem ser padecentes culturais. Não obstante – e essa é uma inferência instigante –, os indivíduos vivem e lutam contra estruturas que também não são. Eis aí o resultado dessa inquietude epistemológica. O peso dos arranjos coercitivos é, estruturalmente, muitíssimo orquestrador de nossa vida social: “la enfermedad no está en los indivíduos de malas intenciones, sino en el sistema mismo” (ADORNO, 1969, p. 82). Nessa relação nada idílica, muito se ganha, mas também muito se perde. Desigual e combinadamente, as perdas robustecem um caminho quase sempre muito artificioso para grande parcela da humanidade, j| que, “como sempre, o pior fica reservado {queles que n~o têm escolha” (ADORNO, 2008b, p. 35). A educaç~o, não a educação triunfante de hoje, mas a educação pensada por Adorno, torna-se um caminho para a saída de muitas das armadilhas do poder e das ideologias capitalistas presentemente dominantes, tais como as ideologias de liberdade, consumo, progresso, individualidade e informação. Muito do que as ideologias dizem, segundo Eagleton, é verdadeiro e seria impotente se não o fosse; mas, evidentemente, as ideologias também têm muitas “proposições que s~o evidentemente falsas, e isso n~o tanto por causa de alguma qualidade inerentemente falsa mas por causa das distorções a que são submetidas 29 30
“Em toda fronteira h| arames rígidos e arames caídos” (CANCLINI, 2003, p. 349). É imperativo não reificar a resistência contra a reificação (ADORNO, 2008b, p. 198)
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nas suas tentativas de ratificar e legitimar sistemas políticos injustos, opressivos” (EAGLETON, 1997, p. 193). Como advertem Adorno e Horkheimer (1978, p. 191), trata-se da “consciência objetivamente necess|ria e, ao mesmo tempo, falsa, como interligação inseparável de verdade e inverdade, que se distingue, portanto, da verdade total tanto quanto da pura mentira”. Nessa relaç~o, a ideologia se d| exatamente onde se regem relações de poder que não são exatamente transparentes. Na verdade, que são até atenuadas. Nesse sentido, a crítica ao processo de semi-formação – Halbbildung – (educação para o status quo) realizada por Adorno e sua conseqüente superação não é uma simples discussão utópica, vazia e especulativa. Trata-se, na verdade, de um projeto intelectual humanista, apesar de todo o rótulo de pessimismo atribuído a sua pessoa31. Igualmente, o conceito de indústria cultural não é uma metanarrativa capaz de explicar tudo, mas sim, partes de um longo processo histórico de expansão capitalista sobre a cultura. Sua atualidade reside essencialmente em dois aspectos capitais: a ideia de que seus produtos são oferecidos em sistema (o assédio sistemático de tudo para todos) e a noção de que a sua produção obedece prioritariamente a critérios administrativos de controle sobre os efeitos no receptor (capacidade de prescrição de desejos). Dessas duas inferências dificilmente há como escapar, pelo menos não com os padrões de civilização atuais. As sutilezas da dominação, pelas mãos da indústria cultural, são arguciosas e cada artimanha visa envolver o consumidor num esquema retroalimentado de falsa opção e liberdade. Imediatamente, nega-se uma coisa e se aceita outra praticamente idêntica. Como ironiza Eagleton (1997, p. 13): “o opressor mais eficiente é aquele que persuade seus subalternos a amar, desejar e identificar-se
A esperança na humanidade é uma reflexão presente em Adorno mesmo em seus escritos após a redaç~o da “Dialética do Esclarecimento”. Como exemplo capital, tem-se uma das passagens finais de “A Personalidade Autorit|ria”, ao mostrar que a quantidade de energia que se emprega no processo de moldagem das pessoas para a manutenção do padrão econômico global, relaciona-se diretamente com a capacidade que tem as pessoas para caminhar numa direção diferente. Isto é, se h| dominaç~o, h| também resistência. “It is the fact the potentially fascist pattern is to so large an extent imposed upon people that carries with it some hope for the future. People are continuously molded from above because they must be molded if the over-all economic pattern is to be maintained, and the amount of energy that goes into this process bears a direct relation to the amount of potential, residing within the people, for moving in a different direction” (ADORNO, et al, 1950, p. 976). 31
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com seu poder”. Logo, a dominaç~o pela indústria cultural n~o é de cima para baixo, mas sim, de todos os lados, principalmente no íntimo de cada um. O gênero musical aqui estudado foi um fecundo exemplo para essa querela. O forró eletrônico tem se configurado como um ritmo musical estruturante de parte expressiva da sociabilidade da população norte-rio-grandense, seja no interior do estado, seja na própria capital e sua dinâmica luminosa de entretenimento. Para negá-lo ou aceitá-lo, é evidente que ele está presente na vida de boa parte dos potiguares. Sua massificação, racionalização e padronização enchem as programações das rádios, os carrinhos de vendedores ambulantes de CDs e DVDs piratas, os hard disks (HDs) dos computadores, os players de MP3 dos aparelhos celulares, os potentes paredões de som dos automóveis, os encontros familiares de fim de semana e as barraquinhas de aguardente espalhadas pelos cantos das cidades. Muitos são os seus consumidores, independentemente de sexo, faixa etária, renda e escolaridade (escolaridade entendida como quantitativo contábil dos anos de estudo). Distintamente do que se poderia supor, indivíduos economicamente abastados e com nível superior de educação também ouvem o forró eletrônico. O capital cultural para o consumo estético erudito não está acessível a todos. Por sua vez, as chamadas “massas” terminam estruturalmente envolvidas com essa produção industrial-musical. Produz-se tal música, metaforicamente, como se produz um modelo de automóvel popular estilo Ford ou Fiat. As similaridades vigentes no processo de produção são muitas. Decididamente, as cifras do mercado do forró eletrônico são crescentes: aumento do número de músicos e bandas, de canções, de intermediários (responsáveis pela circulação e promoção do mercado), de shows e de consumidores. Uma advertência basal, para uma melhor sistematização do já dito anteriormente ao longo de todo o escrito, reside na constatação de que a crítica dialética não pode ser uma crítica de mão única (pelos caminhos antagônicos da dominação ou da resistência), tampouco um mero juízo valorativo. A dialética em geral não pode cair nesses esquemas binários. Um dos ilustrativos exemplos de crítica conservadora est| presente no artigo jornalístico “a música dos valores perdidos” (texto muitíssimo divulgado em blogs, e-mails, sites, etc.). Com forte tom
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valorativo – percebam as expressões “leitores de família”, “esculhambaç~o”, “lament|vel”, “doente” e “culpa” – a reflexão jornalística termina caindo em um dos lados do binarismo partidário, isto é, o lado dos que julgam a cultura como perversão cultural. Abaixo seguem alguns trechos: [...] o culpado desta ‘desculhambaç~o’ n~o é culpa exatamente das bandas, ou dos empresários que as financiam, já que na grande parte delas, cantores, músicos e bailarinos são meros empregados do cara que investe no grupo. O buraco é mais embaixo [...] Aqui o que se autodenomina ‘forró estilizado’ continua de vento em popa. Tomou o lugar do forró autêntico nos principais arraiais juninos do Nordeste. Sem falso moralismo, nem elitismo, um fenômeno lamentável, e merecedor de maior atenção. Quando um vocalista de uma banda de música popular, em plena praça pública, de uma grande cidade, com presença de autoridades competentes (e suas respectivas patroas) pergunta se tem ‘rapariga na platéia’, alguma coisa est| fora de ordem. Quando canta uma canção (canção ?!!!) que tem como tema uma transa de uma moça com dois rapazes (ao mesmo tempo), e o refr~o é ‘É vou d|-lhe de cano de ferro/e toma cano de ferro!’, alguma coisa est| muito doente. Sem esquecer que uma juventude cuja cabeça é feita por tal tipo de música é a que vai tomar as rédeas do poder daqui a alguns poucos anos32.
O binarismo não-dialético da matéria opinativa fica melhor expresso pelos vieses dicotômicos entre autenticidade x inautenticidade; vítimas x culpados; moral x imoral. Assim, diante do olhar partidário, perde-se exatamente seu momento de negatividade, ou seja, a capacidade de mudança da situação. Em Adorno, embora a práxis transformadora esteja estruturalmente bloqueada pelas ideologias do status quo, esse momento de negatividade não nega uma outra situação para além dessa condição vigente. Se há dominação, há resistência (e viceversa). A dialética tem que “ser vista como uma tentativa de escapar ao ou/ou” (ADORNO, 1996, p. 46), pois “a alternativa previamente dada j| é um fragmento de heteronomia” (ADORNO, 2009, p. 35). Logo, esquece-se que mesmo nesse cenário de música-mercadoria muitas mudanças estão em processamento, sobretudo nas disputas por legitimidade cultural. Muitas contendas entre estilos musicais podem contribuir na luta pela redefinição do juízo estético, do direito autoral, da autenticidade das obras, da informalidade na produção cultural e outras temáticas ligadas aos mercados musicais populares. É na crise que se manifesta a enfermidade e sua conseqüente superação. Daí que o caminho da crítica dialética A música dos valores perdidos. Disponível em: http://www.forroemvinil.com/a-musica-dosvalores-perdidos/. Acesso em: 08. out. 2011. 32
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n~o deve ser o mesmo da “crítica” conservadora. Nesta, afeta-se o teor da crítica. “Mesmo o implac|vel rigor com que esta anuncia a verdade sobre a consciência não-verdadeira permanece confinado na órbita do que é combatido” (ADORNO, 2001, p. 08). Nesse ínterim entre bom gosto e o suspeito gosto dos “outros”, um dos assuntos mais comuns atualmente que visa mostrar o lado positivo dessa indústria cultural de “base local” argumenta que n~o se trata de uma produç~o de cima para baixo, advinda de grandes empresários e grupos detentores do monopólio da produção cultural. Tais músicas de forró, por exemplo, seriam produzidas fora do monopólio das grandes empresas e, por serem essencialmente descentralizadas, informais e fragmentadas, não trariam consigo o lado mecanicista da indústria do entretenimento, sendo, por conseguinte, “artes do povo”. Até aí, pouco se tem de substancialmente limitativo. Porém, o fato de vir de baixo não significa estar isenta do compromisso com o status quo. As conseqüências não premeditadas da ação estão presentes e não podem ser simbolicamente eliminadas. Não se deve esquecer que há, até mesmo no }mbito teórico, toda uma “‘conformaç~o pelo n~oconformismo’, por parte da oposiç~o socialmente canalizada” (ADORNO; HORKHEIMER, 1978, p. 163) que procura tornar criativo o que, em si, mais constrange o indivíduo do que o habilita. Mesmo assim, prosseguir com a distinção entre cultura de massas (cultura popular) e indústria cultural (produção capitalista da cultura), de fato, seria um estorvo
intelectual
muito
regressivo
para
as
ciências
sociais
na
contemporaneidade. O hibridismo do consumo cultural hoje é intrínseco à própria produção e ao próprio uso da cultura. A distinção entre o puro e o canalizado, o popular e o industrializado, uma comunidade de significados (Gemeinschaft) e uma sociedade de interesses (Gesselschaft) termina por obstruir o entendimento das entrelinhas das relações sociais, das brechas do consumo, dos usos e desusos culturais (nem tudo pode ser dominação). Contudo, seja na utópica comunidade pura, seja no admirável/terrível mundo novo – o brave new world huxleyano –, as relações de dominação persistem. Logo, as relações de dominação não se acabam sob os rótulos de hibridismos. Se há dialética, logicamente, há resistência, bem
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como, dominação. Na dialética adorniana essa condição é reforçada pelo seu viés negativo. As músicas dominantes no forró eletrônico exploram, genericamente, temas como festa (diversão a todo custo), amor e sexo. Longe de mostrar ao ouvinte faces de um mundo contraditório, termina o forró servindo como reforço do emudecer humano. Suas letras mais cantadas desviam a atenção de qualquer coisa mais séria. Tome forró, cachaça e diversão! Fugindo da análise do estímulo-resposta (behaviorista), bem como escapando de uma leitura mecanicista do sentido do “texto em si” (inculcaç~o passiva da mensagem musical), o forró eletrônico é sim um sustentador de valores na atualidade. Não podemos falar num forró determinante na criação de valores, mas sim, de um forró que, mesmo acidentalmente, termina por reproduzir ideologias. Pode não as criar substancialmente, mas sustenta parte do arbitrário cultural já existente. Decididamente, aceitar o espetáculo da diversidade como explicação para o fim das ideologias dominantes é, em si, aceitar que as ideologias não podem, igualmente, diversificar-se de modo a atingir a todos, fragmentadamente. Ledo engano. As ideologias, diferentemente da forma como pensada em tempos pretéritos, não são mais impostas de cima para baixo, tampouco dominantemente homogêneas. São, pois, flexíveis, seja nos valores, seja nas extensões. O consumo do forró eletrônico não se dá de forma ingênua, onde supostamente após a deglutição musical se esqueceria o escutado. Pelo contrário: canta-se a música após o despertar do sonho. Os clichês temáticos, a repetição exaustiva dos hits e o apelo dos empresários do entretenimento não permitem o esquecimento de cada refrão. Não obstante, não há como pensar num consumo apático, passivo e monolítico. Os seus consumidores fazem leituras diversas sobre o gênero (a maior parte das leituras são leituras negociadas: nem a favor, nem a contrapelo do sentido dominante). Os ouvintes discordam, negam, fazem chacota, escarnecem, zombam, riem, bem como se emocionam, cantam, choram, gritam, etc. Todo estudo sério sobre o consumo cultural deve reconhecer que o consumidor tem um certo “senso crítico” em relaç~o ao que adquire. Uma das contribuições essenciais dos
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Estudos Culturais reside nessa assertiva, ou seja, nessa capacidade criativa de viver e de dizer “n~o” {quilo que tenta insistentemente se impor. Contudo, é bom lembrar que esses mesmos indivíduos “críticos” terminam caindo no esquema sistêmico da indústria cultural ao negarem o forró e consumirem outros gêneros estandardizados, massificados e racionalizados. A capacidade de prescrever o “gosto” popular tem sido o grande trunfo da indústria cultural. Novamente lembrando: o cerco e a prescrição dos desejos são concretos. A pseudoindividuação é a regra e não a exceção. Do ponto de vista teórico, os estudos que se centram na ideia de hegemonia como um campo de lutas pela significação cultural dão um passo importante rumo a uma ciência social preocupada com o saber popular e suas estratégias de significado. Pensar para além das determinações estruturais requer um acurado senso crítico e uma apurada esperança na humanidade. Os Estudos Culturais e, por exemplo, seus desmembramentos latino-americanos, bem como a sociologia de Pierre Bourdieu, representam opções intelectuais críticas para uma sociologia da cultura preocupada em se libertar dos muitos objetivismos fatalistas da análise social. Contudo, a atualidade do conceito de indústria cultural não permite romantizar tal capacidade popular de resistência cultural. A pujança da indústria do entretenimento é alta e envolve os consumidores em esquemas sistêmicos poderosos. Nega-se o forró, mas consome-se o axé Bahia; nega-se o axé Bahia, mas escuta-se o funk; nega-se o funk, mas consome-se o tecnobrega; nega-se o tecnobrega, mas escuta-se algum pop-star norte-americano ou música de novela das 21 horas... O assédio é elevado e a fuga inibida. De cima para baixo, de baixo para cima e transversalmente o indivíduo – de individualidade debilitada – se encontra envolvido nessa produção midiática de cultura musical. É impossível pensar num consumidor ideal { maneira do “artista da fome 33” de Franz Kafka, que, por não conhecer nenhum alimento saboroso o bastante, levava a vida a jejuar. Tal postura é, no mínimo, inconsistente empiricamente. Gostando pouco ou
Quando o “artista da fome” [o jejuador] perguntado o porquê jejuava, afirmou “porque n~o pude encontrar comida que me agradasse. Se a tivesse encontrado, podes acreditá-lo, não teria feito nenhuma promessa e me teria fartado como tu e como todos” (KAFKA, 2001, p. 71). 33
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não gostando, as pessoas terminam por consumir mesmo aquilo que não têm grande apreço. A indústria cultural não dorme. Porém, não há nenhuma relação mensurável entre o consumo do forró eletrônico e a aceitação de sua visão de mundo. Não existe nenhuma relação de mensurabilidade entre o forró e a inculcação de suas ideologias. Mas, seria ingênuo dizer que o forró eletrônico não reforça valores (sobretudo o reforço das ideologias mais presentes, por exemplo, de gênero e consumo). O simples fato de viver já implica certa aceitação dos condicionantes estruturais. O preconceito contra a diversidade sexual está presente em muitas músicas de forró eletrônico; o papel secundário da mulher na sociedade é reforçado através de muitas letras; e o modelo de masculinidade dominante no gênero é aquele pautado no indivíduo festeiro, consumidor inconseqüente de álcool e distante das questões sociais mais importantes. Deste modo, papéis sexuais e relações de gênero estão contidos nas letras de muitas músicas, expressando assimetrias de gênero, tornando cômica a homossexualidade, reforçando padrões de masculinidade, cristalizando o papel da mulher na sociedade e estabelecendo dissimetrias entre a permissão e a coibição sexual. Do mesmo modo, são feitas apologias a determinados padrões de consumo (álcool, automóveis potentes), além de sugerirem-se cotidianamente modelos de sociabilidade pautados no arquétipo da diversão a todo custo. Daí que visões de mundo são reproduzidas e reforçadas por parte substancial do forró eletrônico atualmente dominante. Mesmo n~o passando muitas vezes de uma “economia da experiência” – consumo imaterial da festividade – para parte substancial dos ouvintes, para outra parcela significativa essas músicas representam todo um ethos de diversão, lazer e relações sociais. Deste modo, assim como a reflexão sobre a música brega contida em Costa (2003), o forró possui sim um sentido prévio localmente multifacetado para os ouvintes, já articulado ao modo de vida – fundamentalmente – das classes populares. Por conseguinte, termina sendo estruturado e estruturante nos padrões de “comportamento familiar, entre vizinhos e amigos, em relações amorosas, em problemas e trivialidades da vida cotidiana, nas festas típicas e momentos rituais, nas questões de trabalho e de lazer” (COSTA, 2003, p. 22).
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Certamente há toda uma participação teatral no consumo do forró eletrônico, participaç~o essa que nos faz refletir que o “beber, cair e levantar” – contido numa música dada de sucesso – faz parte de todo um contexto biográfico, social e cultural do indivíduo, algo muito maior do que a indústria cultural. Mas, adornianamente, é apropriado destacar que alguns elementos dessa teatralização são resultados do próprio avanço da indústria cultural sobre a cultura. Se o forró tradicional (pé-de-serra) cumpria uma função social era a de criar, para o bem ou para o mal, um certo sentimento de nordestinidade. Contudo, a música dominante no forró eletrônico, apesar de ter utilizado determinados elementos estético-formais do forró tradicional, “tem, hoje, uma funç~o alienante para o seu grande público, distanciando-se da sua realidade concreta, através do uso que a indústria cultural faz dela” (CALDAS, 1977, p. 142). Mesmo diante dessa assertiva, seria ingênuo pensar numa relação de causaefeito (consumo = inculcação), bem como numa manipulação incondicional – de cima para baixo – via indústria cultural. Mas, igualmente seria pueril dizer que tal esquema da indústria cultural não reforça valores. Uma simples freqüência a shows de forró eletrônico, confraternizações íntimas e festas particulares mostrará ao leitor mais desconfiado que o forró é sim absorvido por parte dos consumidores, certamente não como querem os produtores do entretenimento, mas sim como permitem os próprios ouvintes: a dominação também tem que ser consentida. Alguma coisa, logicamente, é tragada. As leituras negociadas não podem ser majoritárias o tempo todo. Mesmo o ouvinte que negocia seu consumo em um determinado momento (no âmbito doméstico), termina efetuando uma leitura dominante noutro tempo e espaço (no âmbito público); ou o contrário. Assim, não dá para ver tanta resistência na leitura negociada, já que se negocia não entre um mundo reificado e outro mundo possível, mas sim, entre diversos mundos reificados. Se a capacidade de resistência dos indivíduos é perspicaz, as estratégias da indústria cultural também são. Contudo, o consumo não é homogêneo. Daí que tal absorção e dominação também não podem ser. Da mesma forma que há leituras negociadas, de oposição e hegemônicas, também há formas heterogêneas dessa dominação. No cerne desse consumo, a heteronomia é dominante para uma parte
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desses consumidores. Embora não dimensível, tal constatação não pode ser reduzida. Um esforço de reflexão e especulação tem que ser perpetrado. Deve-se aguçar a “imaginaç~o sociológica”, isto é, segundo Wright Mills, aquela “qualidade intelectual básica para sentir o jogo entre os homens e a sociedade, a biografia e a história, o eu e o mundo” (1982, p. 10). Aos que negam ou limitam essa conclusão empírica, é importante lembrar que o super-relativismo cultural está do mesmo lado do conservadorismo cultural, j| que “tudo pode” e tudo é “vir-a-ser”, mas nada de fato se efetiva. Nesse sentido, não dá para pensar no consumo desse gênero musical como algo simplesmente idílico. Toda escolha tem suas conseqüências, mesmo que num nível metaforicamente micro-sociológico. Tal análise crítica não se aplica, todavia, evidentemente, a toda música popular. Há músicas populares que, mesmo estandardizadas no material sonoro, fazem parte de outro projeto político e social que não apenas o da reprodução da sociedade capitalista: Cazuza não pode ser colocado integralmente na mesma gaveta de Aviões do Forró. Todavia, olhando para o outro lado do espelho, também o forró eletrônico não pode ser globalmente visto somente sob o ponto de vista da ideologia, já que nele também há dissidências em seu núcleo produtor (muito acanhadas, mas, viventes). Como defesa da cultura de massa, os apologistas do capital e os impressionáveis culturalistas de gabinete podem alegar que se trata de um gênero musical dançante e que, por isso, a padronização e mecanicidade do estilo são intrínsecas e devem ser reforçadas. Tem-se aí um equívoco conceitual basal, já que se olvida que após a dança e a festividade vem também o canto: na memorização e divulgação das letras também se reproduzem visões de mundo. Além disso, a alegaç~o do chamado consumo da “economia da experiência” também é fr|gil do ponto de vista da justificação do caráter idílico do forró, uma vez que após a festividade e seus momentos de diversão memoráveis, leva-se parte da experiência para casa. Como num sonho, ao acordar, nem tudo se esquece. A guisa de palavras finais, mesmo se toda a argumentação ainda parecer frágil, vale lembrar que se nenhuma relação de dominação for criada ou reforçada pelo forró eletrônico, pelo menos deve-se levar em conta que se não se criam ou se
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reforçam ideologias, que pelo menos não se contribui para acabar com as já existentes. Logo, a cumplicidade é também ativa. Na educação, como na política, a abstenção é sempre precária. Daí que não tomar firmemente alguma posição é, de fato, consentir que os indivíduos continuem a ser “conduzidos pelo fluxo da ideologia dominante, pela maré dos hits-parades” (SNYDERS, 1997, p. 74). Desviar a atenção para o vácuo é também direcionar o olhar para algum lugar: o da cumplicidade. A omissão é também engajada, sobretudo nas coisas mais simples que passam despercebidas cotidianamente. Como já lembrou Bertolt Brecht, “desconfiai do mais trivial, na aparência singelo. E examinai, sobretudo, o que parece habitual. Suplicamos expressamente: não aceiteis o que é de hábito como coisa natural...” (BRECHT, 1982, p. 45).
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Sobre os Autores
Jean Henrique Costa Professor da Universidade do Estado do Rio Grande do Norte - UERN (Adjunto IV com Dedicação Exclusiva). Professor permanente do Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais e Humanas (PPGCISH/UERN). Doutor em Ciências Sociais (PGCS/UFRN); Mestre em Geografia (PPGe/UFRN); Especialista em Demografia (DEST/UFRN); Licenciado em Ciências Sociais – Bacharelado em Sociologia e Licenciatura Plena (DCS/UFRN); e Bacharel em Turismo (UNP). Líder institucional do Grupo de Pesquisas em Lazer, Turismo e Trabalho (GEPLAT/UERN). Fundador e editor da Revista Turismo: Estudos e Práticas (RTEP/UERN). E-mail: prof.jeanhenriquecosta@gmail.com
Lázaro Fabrício de França Souza Mestrando em Ciências Sociais e Humanas pela Universidade do Estado do Rio Grande do Norte - UERN. Bacharel em Ciências Sociais pela mesma Instituição. É Coordenador de Pesquisa e Docente na Faculdade Nova Esperança de Mossoró FACENE/RN. Foi bolsista do Programa Institucional de Bolsas de Iniciação Científica - PIBIC/CNPQ (2010 - 2011) - e do Programa de Educação Tutorial (PET) em Ciências Sociais (SESu/MEC) (2009 - 2011), ambos igualmente pela UERN. Tem interesse e experiência em várias áreas no âmbito das Ciências Sociais, da Antropologia e Sociologia. Atualmente, tem se dedicado principalmente aos temas: Cultura, Música e Identidade; Sociologia e Antropologia da Saúde; Representações sociais e velhice; Sociedade de Consumo. Desenvolve também outras atividades, ligadas à produção musical e escrita literária. E-mail: lazaroffsouza@gmail.com
Marcília Luzia Gomes da Costa Mendes Graduada em Comunicação Social pela Universidade Federal da Paraíba, mestrado em Ciência da Informação pela Universidade Federal da Paraíba e doutorado em Ciências Sociais pela Universidade Federal do Rio Grande do Norte. Atualmente é professora Adjunto IV do Curso de Comunicação Social da Universidade do Estado do Rio Grande do Norte. Tem experiência na área de Comunicação Social, com ênfase em Jornalismo e Publicidade e Propaganda; pesquisando principalmente sobre os seguintes temas: mídia, discurso, tecnologia e crítica da mídia. Docente dos Programas de Pós-Graduação em Letras e em Ciências Sociais e Humanas da UERN. Pesquisadora da base de pesquisa em Comunicação, Cultura e Mídia (COMÍDIA) da UFRN. Líder do Grupo de Pesquisa em Informação, Cultura e Práticas Sociais da UERN. E-mail: marciliamendes@uol.com.br
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Shemilla Rossana de Oliveira Paiva Comunicóloga com habilitação em Publicidade & Propaganda pela Universidade do Estado do Rio Grande do Norte - UERN. Mestranda em Ciências Sociais e Humanas. Experiência na área de comunicação, com ênfase em Publicidade e Propaganda. Tem interesse em: consumo, identidade, sujeito, publicidade, a relação mídia/celebridades e Análise do Discurso de vertente francesa. E-mail: shemillarossana@hotmail.com
Tássio Ricelly Pinto de Farias Possui Mestrado em Ciências Sociais e Humanas (PPGCISH/UERN) e Graduação em Filosofia pela Universidade do Estado do Rio Grande do Norte. Tem experiência nas áreas de Filosofia e Sociologia, com ênfase em Filosofia Contemporânea, atuando principalmente nos seguintes temas: Teoria Crítica, Indústria Cultural, Cibercultura, Indústria Fonográfica e Música Independente. Atua como docente nos cursos de graduação da Faculdade Evolução Alto Oeste Potiguar (FACEP). Email: tassioricelly@gmail.com
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ISBN: 978-85-7621-134-1
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