Teoria crítica: ensaios sobre Theodor W. Adorno.

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TEORIA CRÍTICA: ENSAIOS SOBRE THEODOR W. ADORNO

Critical Theory: Selected Essays on Theodor W. Adorno

Jean Henrique Costa


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Para todos que ainda nĂŁo sucumbiram perante nossa sociedade do conformismo.


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Riram do corpo do aleijado que em vão tentou se erguer. Riram ainda do improdutivo cego que nada pôde ver. Caçoaram da prostituta que com todos se deitava. Caçoaram ainda do afeminado que diferente se alegrava. Achincalharam do despossuído que nada tinha na barriga. Achincalharam ainda do mulato que, tolo, com ouro se embranquecia. Riem hoje do vagabundo que nas calçadas perambula. Riem, ainda, do artista de rua que com sua arte pouco reluz. Parodiam a carência que peca pela falta. Parodiam também a fartura que de abundosa se estafa. Com a astúcia de Ulisses, continuam a rir mesmo que com isso nada haja para auferir. E com o encanto da sereia, pouco podem resistir. Riem de tudo! Para além do que não há no mundo. Riem mesmo do luto que de sorumbático apenas emudece. Zombaram de todos os presentes que parados apenas riam. Zombaram, principalmente, porque a platéia parada e encantada, nada entendia. Zombaram até do triste humor que, feliz por ser lembrado, gracejou. Mas zombaram mais ainda do bom humor que, de tanto moralismo, até lamentou. Zombaram... Zombam... Zombarão... De fato, nada disso é engraçado. Exceto, talvez, o infortúnio de quem ri. Humor, Triste Humor Jean Henrique Costa


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³$ LPSRWrQFLD H D HVWXSLGH] GRs indivíduos devem estimular o pesquisador a averiguar quem os condena a VHUHP LPSRWHQWHV H HVW~SLGRV ´ Theodor W. Adorno e Max Horkheimer (1978, p. 128) Temas Básicos da Sociologia ³2 IDWR GH QmR SRGHUPRV GHPRQVWUDU FRP SUHFLVmR FRPR essas coisas funcionam naturalmente não significa uma contraprova desse efeito, mas apenas que ele funciona de modo imperceptível, muito mais sutil e refinado, sendo SRU LVWR SURYDYHOPHQWH PXLWR PDLV GDQRVR´ Theodor W. Adorno (2006a, p. 88) Educação e Emancipação


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PREFĂ CIO

Desde as primeiras traduçþes da obra DialÊtica do Esclarecimento, de Theodor Adorno e Max Horkheimer, a leitura, estudo e usos dos principais autores da FKDPDGD ³(VFROD GH )UDQNIXUW´ RX FRPR FKDPDUHPRV DTXL ³7HRULD &UtWLFD´ VH tornou lugar comum na Academia brasileira. O que o leitor Ê brindado aqui não traz, aparentemente, novidade alguma na imensa gama de comentadores e estudiosos da Teoria Crítica. Isso, só na aparência. Jean Henrique Costa conseguiu reunir neste livro, três leituras significativas sobre a inserção do pensamento de Theodor Adorno e as possibilidades analíticas de aspectos fenomenológicos da cultura brasileira, notadamente a sua indústria cultural e sua indústria do lazer. No primeiro capítulo, o autor nos remete a uma discussão da obra seminal adorniana, escrita em cooperação com Horkheimer (e supracitada), DialÊtica do Esclarecimento. O tratamento dado por Costa neste ensaio nos reporta ao avanço dos processos de racionalização e secularização e sua relação com as formas pelas quais o capitalismo reproduz a cultura de forma alienante e fetichizante. Costa nos mostra TXH HP $GRUQR ³R FDSLWDOLVPR Mi VH HQFDUUHJRX GH WUDQVIRUPDU WDQWR 0R]DUW TXDQWR $YL}HV GR )RUUy HP PHUFDGRULDV´ H QRV EULQGD FRP D UHIOH[mR LQRYDGRUD GH TXH ³D indústria cultural no atual estågio de acumulação capitalista não Ê uma produção de EDVH IRUGLVWD PDV GH IDWR IOH[tYHO WR\RWLVWD ´ 0HVPR SURGX]LQGR HP PDVVD HOD JHUD GLIHUHQFLDomR VHQGR HVWD D VXD PDUFD ³GLIHUHQFLDomR VHPSUH LQGLIHUHQFLDGD mas exiVWHQWH´ -i R VHJXQGR FDStWXOR QRV OHYD j GLVFXVVmR DGRUQLDQD VREUH ³R IHWLFKLVPR QD P~VLFD H D UHJUHVVmR GD DXGLomR´ WUDYDGD SHOR ILOyVRIR DOHPmR HP LGRV GH HP pleno III Reich. O texto debatido Ê uma resposta ao filósofo Walter Benjamin, onde este visualizava as possibilidades abertas trazidas pelas novas tecnologias de mídia e certas consequências positivas permitidas pela dessacralização da obra de arte. Theodor Adorno, em oposição, apontava o seu lado negativo: o consumo fetichizado, passivo e regressivo imperante nessa mesma arte e mídias. Remando contra a marÊ


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do pessimismo, que mesmo nos nossos dias, com a derrocada do Socialismo Real e dos avanços neoliberais, impelem a um conformismo agudo, Costa mostra que Adorno defendia um constante estado de crítica, um momento de possibilidade de autonomia tanto na produção da cultura como na educação em si. Se vivenciamos hoje, cada vez mais, devido às novas tecnologias e às formas fetichizadas de SURGXomR LQWHOHFWXDO H FXOWXUD XP ³VLPXODFUR GH HGXFDomR´, para o filósofo a educação verdadeira Ê o oposto a tudo isso. A educação Ê aquela que difere desta ³VHPLIRUPDomR´ RX ³VHPLFXOWXUD´ p R PHVPR TXH HPDQFLSDomR 8P JULWR SHOD emancipação ecoa na sua crítica à indústria cultural em todas as suas formas. No terceiro capítulo (produzido em co-autoria) folheamos uma anålise cara ao autor que transita pelos estudos do lazer desde antanho: Notas sobre o tempo livre. Aqui, Costa Ê mais que inovador na anålise, ele tambÊm inova na temåtica, ao trazer as contribuiç}HV GH $GRUQR QHVVH FDPSR $SRQWD TXH QmR ³Ki FRPR SHQVDU R OD]HU VHP UHIOHWLU DFHUFD GH WRGD HVWUXWXUD HGXFDFLRQDO KHJHP{QLFD´ 7HPRV XP ³WHPSR OLYUH´ TXH QmR OLEHUWD H VLP TXH DSULVLRQD-nos no consumo, nos remetendo a mais trabalho, fomentando mais ideologia, mais consumismo e mais pråticas nãoHPDQFLSDWyULDV GR LQGLYtGXR RX VHMD D PDLV FRQIRUPLVPR 2 OD]HU HP VL ³GHYH HGXFDU QHOH H SDUD DOpP GHOH´ (VWDPRV ORQJH GLVWR O leitor tem em mãos três importantes vertentes e caminhos do pensamento adorniano. Quebra-se nesta obra (opus), mais do que nunca, a visão de que Adorno Ê um pensador pessimista ou que não pensou as mídias eletrônicas em sua potencialidade. Costa nos brinda, em prosa elegante e sem retórica vazia, com a percepção de um Adorno preocupado com o grande tema de sua vida: Ê possível, dentro do desenvolvimento do capitalismo, com suas estruturas ideológicas e de reprodução cultural, conseguir romper a dominação? Resumindo: a emancipação Ê possível? Como cientistas sociais, a resposta Ê difícil jå que não cabe ao cientista tal resposta, como nos apontou Max Weber. Mas a grandeza de Theodor Adorno Ê mostrar que, se ao menos não sejamos instrumentos de ação, possibilitemos a crítica mais próxima do real possível. Prof. Dr. Thadeu de Sousa Brandão


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SUMÁRIO

APRESENTAÇÃO............................................................................................. 08

CAPÍTULO 1 ± A ATUALIDADE DA DISCUSSÃO SOBRE A INDÚSTRIA CULTURAL ........................................................................................................ 10

CAPÍTULO 2 ± REVISITANDO O DEBATE SOBRE O FETICHISMO NA MÚSICA E A REGRESSÃO DA AUDIÇÃO ..................................................... 31

CAPÍTULO 3 ± NOTAS SOBRE O TEMPO LIVRE......................................... 50


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APRESENTAĂ‡ĂƒO

Os três ensaios aqui publicados não são inÊditos. Embora tenham recebido novo tratamento textual e, pontualmente, alguns acrÊscimos, ainda assim não expressam nenhuma nova reflexão sobre a obra de Theodor W. Adorno. Pessoalmente este livro nasceu do intuito de sistematização, em livro, de três textos jå publicados, respectivamente, nos anos de 2012, 2013 e 2014, nas revistas Trilhas Filosóficas (UERN), Trans/Form/Ação (UNESP) e Turydes (EUMED). A motivação båsica deste exercício de novo tratamento de textos não inÊditos reside na permanente necessidade de aprimoramento textual, bem como, na necessidade de tornar mais acessível um autor tão denso como Theodor W. Adorno. A aventura na dialÊtica adorniana Ê sempre um desafio na própria condição do repensar o sujeito e a produção do conhecimento sob a Êgide da semiformação. Portanto, toda tentativa de ¾JXLDœ RX ¾PDSDœ VH ID] HQpUJLFD Por conseguinte, este pequeno livro ¹ DTXL LQWLWXODGR FRPR ³Teoria Crítica: Ensaios sobre Theodor W. Adorno´ ¹ busca reforçar o conjunto de publicaçþes sobre Adorno no Brasil, objetivando a contínua reafirmação de sua teoria crítica. O livro estå dividido em três capítulos. O capítulo 1 discute a atualidade da discussão sobre a indústria cultural, debate seminal produzido juntamente com Max Horkheimer na DialÊtica do Esclarecimento em 1947. O segundo capítulo debate HVSHFLILFDPHQWH R WH[WR ¾2 )HWLFKLVPR QD 0~VLFD H a RegrHVVmR GD $XGLomRœ WH[WR GH , uma amostra do que seria posto uma dÊcada depois. Por fim, no capítulo 3, na fecunda colaboração de Marcela Amålia Pereira Cabrita e Tåssio Ricelly Pinto de Farias, analisa-se a problemåtica do tempo livre, problema que Adorno especificamente se debruçou no texto homônimo publicado em 1969.


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Diante dos três ensaios aqui esboçados, espero que o leitor tenha em mãos um agradåvel e frutífero encontro com Theodor Adorno. O rigor adorniano exige e GHVSHUWD VHPSUH D FUtWLFD UDGLFDO DWLWXGH Mi UDUD GLDQWH GH QRVVR ³0XQGR $GPLQLVWUDGR´

Jean Henrique Costa MossorĂł, RN, 08 de Junho de 2015


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CAPÍTULO 1 A ATUALIDADE DA DISCUSSÃO SOBRE A INDÚSTRIA CULTURAL1

A expressão Indústria Cultural (Kulturindustrie) foi cunhada pela primeira vez em 1947, por Theodor W. Adorno e Max Horkheimer, nos fragmentos filosóficos reunidos sob o título de Dialética do Esclarecimento, termo que viria contrapor o conceito cultura de massa, por tratar de um fenômeno distinto quanto a sua natureza. Preferiram, então, "[...] usar a expressão 'indústria cultural', para evitar a confusão com uma arte que surgisse espontaneamente no meio popular, que é algo bastante diferente" (FREITAS, 2008, p. 17). Na apreciação de Wolfgang Leo Maar (2003), o termo "cultura de massas" parece indicar uma cultura solicitada pelas próprias massas, fora do alcance da totalização. Contrariamente, o termo "indústria cultural" ressalta o mecanismo pelo qual a sociedade como um todo é construída, sob o escudo do capital, reforçando as condições vigentes. Segundo Gabriel Cohn, trata-se de um conceito elaborado como resposta direta ao conceito de cultura de massa. Ambos compartilham a referência à cultura. "Mas é significativo que, enquanto na expressão 'cultura de massa' ela aparece como nome, na sua contrapartida crítica ela esteja na condição de predicado" (COHN, 1998, p. 18). Em 1962, Adorno (1971, p. 287) chega a afirmar que, ao que tudo indica, "[...] o termo indústria cultural foi empregado pela primeira vez no livro Dialektik der Aufklãrung, que Horkheimer e eu publicamos em 1947, em Amsterdã". Tal oposição conceitual se deveu ao fato da cultura de massa remontar a uma cultura espontaneamente surgida da própria massa, da forma contemporânea chamada de arte popular. Todavia, algo efetivamente distinto ocorre com a indústria cultural. O que importa destacar é que dessa arte popular a indústria cultural se distingue radicalmente: enquanto a cultura popular teria um caráter mais espontâneo e 1 Originalmente publicado na revista Trans/Form/Ação, Marília, UNESP, v. 36, n. 2, p. 135-154, Maio/Ago., 2013.


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nasceria internamente, numa dada comunidade, a indústria cultural constitui uma manifestação maquinal produzida exteriormente (sob a égide do capital). A indústria cultural é fruto da oportunidade de expansão da lógica do capitalismo sobre a cultura. Não somente esse avanço progressivamente acontece no domínio do cultural, mas também, cada vez mais, nas esferas da biologia (corpo), da natureza, das relações humanas, do conhecimento etc. Como enfatizou Ernest Mandel, existe no capitalismo tardio uma tendência à industrialização das atividades superestruturais, e muitas dessas atividades já se organizam hoje em termos industriais, produzidas para o mercado e para a maximização do lucro: "[...] a poparte, os filmes feitos para a televisão e a indústria do disco são fenômenos típicos da cultura capitalista tardia" (MANDEL, 1985, p. 352). Daí que, para Hullot-Kentor (2008, p. 21), o conceito de indústria cultural em Adorno "[...] nos leva a crer que foi para ele um achado preciso, resultado de uma auscultação minuciosa das tendências históricas, mais do que um neologismo historicamente oportuno". Há, contudo, quem ateste hoje em dia as limitações do conceito e, inegavelmente, a realidade atual é bem distinta daquela vigente no período vital de Theodor W. Adorno e Max Horkheimer. Todavia, suas limitações não invalidam, nem o fenômeno, nem tampouco o método crítico. A indústria cultural está aí! Todos os dias seus produtos, dentre best-sellers, games, filmes e músicas, invadem o cotidiano de bilhões de pessoas. O que dizer, então, dessas cifras? Sumariando, com Costa (2001, p. 110), a heteronomia cultural; a transformação da arte em mercadoria; a hierarquização das qualidades; a incorporação de novos suportes de comunicação pelos setores que já detinham os meios de reprodução simbólica; o caráter de montagem dos produtos; a capacidade destes em prescrever a reação dos receptores; a reprodução técnica comprometendo a autenticidade da arte; o consumidor passivo; a falsa identidade entre o universal e o particular; a técnica como ideologia; o "novo" como manifesto do imediato; e a fraqueza do "eu" apontam para a continuidade da administração da cultura. Dessa forma, o conceito, além de atual, faz-se empiricamente demonstrável. Segundo afirma Crochík (2008, p. 304), "[...] certamente Adorno escreveu em outro tempo e


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em outros lugares, mas a regressão individual como fruto do avanço da sociedade da administração prossegue". O capitalismo continua a liquidar, não com o trabalho, mas com o trabalhador, e, para além disso, a criação de necessidades supérfluas vem se ampliando. Logo, parte importante das limitações impostas ao debate deriva mais do fundamento não-dialético dos que apontam sua restrição do que da própria energia da teorização. Os críticos - precariamente críticos! - suprimem a dialética em Adorno e, ingenuamente, acreditam estar o autor superado.

Uma vez que ela [a crítica cultural] retira o espírito da dialética que este mantém com as condições materiais, passa a concebê-lo unívoca e linearmente como um princípio de fatalidade, sonegando assim os momentos de resistência do espírito. (ADORNO, 2001, p. 13).

Certamente o grande entrave do conceito de indústria cultural, no âmbito das ciências sociais, deva-se à não mensurabilidade dos efeitos advindos dessa produção cultural de massa. Adorno reconhece essa impossibilidade. Para ele, com razão, "[...] não é possível estabelecer com clareza um nexo causal, por exemplo, entre as 'repercussões' das músicas de sucesso e seus efeitos psicológicos sobre os ouvintes" (ADORNO, 1991, p. 93). Apesar desse impasse entre a especulação filosófica e a verificação empírica, a contenda acerca do problema em tese não invalida sua autoridade, nem tampouco suas propriedades relacionais. Algumas teorias sociais hoje, embora reconheçam o peso de determinados arranjos sociais para a explicação sociológica, apregoam certa reflexividade do sujeito no direcionamento de suas vidas, baseando-se, ora no avanço dos processos de racionalização e secularização, ora em perspectivas fenomenológicas (mundos vividos). Algumas teorias derivam mais da ênfase do papel do indivíduo na vida social; outras destacam mais a própria sociedade como estrutura coercitiva, que préexiste ao indivíduo. Individualismos metodológicos afirmam, em certo sentido, que o conceito de indústria cultural possui forte dimensão determinista, pois coloca o indivíduo como ente muito passivo frente as suas escolhas. Ora, tais posições são parciais, uma vez que não há determinismo no conceito de indústria cultural. Não há


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simplesmente imposição de cima para baixo. Estrategicamente, a indústria cultural lança no mercado coisas que são representações dos próprios consumidores, criadas antes por sugestão e fortalecidas pelo cerco sistemático de sua exposição 2. O próprio Adorno reconhece que os consumidores não são estúpidos. A indústria cultural sempre conta com um pouco de bom senso por parte de seus consumidores (FREITAS, 2005). A aceitação sem resistência - ou com pouca - não deriva simplesmente das necessidades intrínsecas ao indivíduo, já que seria uma explicação muito banal. Prescreve-se, logicamente, o que conjunturalmente permite ser prescrito. Todavia, não se cria o produto e se joga para o consumidor (numa lógica fordista). Pelo contrário, estuda-se o consumidor e se lança a mercadoria (sugerem-se necessidades, expressão do espírito toyotista). Não há puramente uma questão de autonomia, mas um jogo entre quem sabe as regras e quem não as conhece (ou não quer conhecer). "A verdade em tudo isso é que o poder da indústria cultural provém de sua identificação com a necessidade produzida" (ADORNO; HORKHEIMER, 1985, p. 113). Adorno e Horkheimer (1985), na Dialética do Esclarecimento, abrem o problema da indústria cultural afirmando que o declínio da religião no mundo ocidental, decorrente do avanço dos processos de racionalização e secularização (reflexão weberiana por excelência), não causou um caos cultural pela falta de uma unidade de referência coletiva, pois o cinema, o rádio e as revistas se constituíram num substituto para ela. Com o avanço da produção e do uso desses sucedâneos, o núcleo essencial da discussão reside em torno da problematização acerca da indústria cultural e seu caráter mistificador (fetichista) da realidade e coisificador 3 do homem. Adorno e Horkheimer constatam que o cinema e o rádio, por exemplo, não precisam mais se camuflar de arte, uma vez que o caráter de mercadoria já está 2 "Pela via do fetichismo da mercadoria, o modo de produção impõe formas determinadas que, como 'consciência' sujeitada, reproduzem a sujeição ao mesmo tempo em que geram experiências substitutivas pelas quais aparentam se constituir como sujeitos livres" (MAAR, 2002, p. 100). 3 "Em Marx por razões diversas, as mercadorias passam a ser ativas e o indivíduo se isola e se fragmenta pela divisão social do trabalho", transformando o homem em estatuto de coisa (MATOS, 2005, p. 18). Eric Fromm (1965, p. 82) também partilha desse argumento, uma vez que "[...] o homem transformou a si mesmo numa mercadoria, e sente sua vida como um capital a ser investido com lucro".


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estampado em cada um deles. Música, cinema, literatura magazine etc., tudo está a serviço do mercado. "A verdade de que não passam de um negócio, eles a utilizam como uma ideologia destinada a legitimar o lixo que propositalmente produzem" (ADORNO; HORKHEIMER, 1985, p. 100). Para eles, o novo não é a atitude comercial da obra de arte, mas o fato de hoje serem, de fato, indústrias como tal, renegando a própria ideia de arte. Um primeiro norte metodológico deve ser colocado, neste momento, em termos de orientação teórica. Segundo Durão (2008, p. 39), "[...] uma das armadilhas mais traiçoeiras no estudo contemporâneo da indústria cultural está na facilidade de adotar uma postura moralizante" diante do assunto, na tendência a lamentar acerca da qualidade dos produtos culturais ofertados. Opondo-se a essa visão, deve-se lembrar que o que determina o funcionamento da indústria cultural a princípio não possui ligação direta com o termo "qualidade", mas com a acumulação de capital. Não se trata em si de considerar a dimensão qualitativa, porém, essencialmente a sua extensão quantitativa. O que puder se transformado em venda, será, pois, objeto da indústria cultural: do funk carioca à massificação de Cds de Beethoven. Até mesmo a morte, isto é, a exposição de situações-limite, torna-se objeto de venda, conforme problematização de Zuin (2008), ao refletir sobre o projeto do filme holandês Necrocam4. Faz-se mister apontar uma segunda orientação teórica: a crítica à mercantilização da cultura não deve ser feita do ponto de vista da "inferioridade cultural". Contra tal postura moralizante, deve-se dar um enfoque dialético aos fenômenos. A dialética adorniana é uma dialética negativa (conforme sua obra-prima de 1966), que, afirmando e negando Hegel, consegue dar primazia ao momento de negatividade da análise. Segundo Zuin, Pucci e Ramos-de-Oliveira (2001, p. 76-77), a dialética tradicional significa elementos contraditórios que se negam num dos momentos do processo lógico, mas que se compõem, no momento posterior. Há, portanto, a ideia de conciliação de contrários. Utiliza-se do elemento negativo a Prova de que na sociedade atual, até mesmo a morte se metamorfoseia em espetáculo: projeto de um filme em que o cadáver teria uma microcâmera no caixão e, on line, os internautas poderiam controlar, via termostato, o processo de decomposição do corpo (ZUIN, 2008). 4


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serviço de um resultado positivo. Em Adorno, há uma proeminente diferença. Segundo afirma, mais especificamente no prefácio da Dialética Negativa, deve-se "[...] libertar a dialética de tal natureza afirmativa, sem perder nada em determinação" (ADORNO, 2009, p. 07). Adorno dará um peso maior ao elemento negativo. Nele, a negatividade é o momento propulsor da dialética, ponto de partida de crítica do princípio da identidade e ponto final como possibilidade de uma nova situação. Tratase de um método para se pensar e agir sobre a consciência reificada. Dentre aqueles autores que realizaram uma crítica não-dialética da "trivialidade" dos bens culturais, reconhecidos por Adorno, destaca-se Aldous Huxley. De acordo com Almeida, Adorno e Horkheimer perceberam Huxley como um nome importante no conjunto de pensadores, da primeira metade do século XX, que realizaram uma crítica não-dialética da cultura. Huxley, mesmo tratando o tema sob a ótica da vulgaridade dos bens de massa, trouxe uma distinção muito clara entre "[...] o sentido tradicional da 'cultura' e os avanços, já historicamente visíveis, da 'massa', da 'barbárie', ou mesmo da 'vulgaridade' (como prefere Huxley)" (ALMEIDA, 2008, p. 140). Adorno (2001, p. 92), no texto Aldous Huxley e a utopia, reconhece que o ponto de partida de Brave New World "[...] parecer ser a percepção da semelhança universal de tudo o que é produzido em massa, sejam coisas ou homens. A metáfora schopenhaueriana da manufatura da natureza é tomada ao pé da letra". Huxley estava atento às modificações no âmbito da cultura, contudo, conforme Almeida (2008), percebeu-as através de simples oposições entre civilização contra barbárie; elite contra massa; prazer real contra prazer administrado; liberdade contra submissão à diversão industrializada. Carece a Huxley, portanto, assumir o caráter histórico, fundamentado pelo modo de produção econômico, dessas oposições. "Elas são, de alguma forma, 'naturalizadas', transformadas em 'destino', sem que haja nenhum modo de reação que não seja o puramente individual [...]" (ALMEIDA, 2008, p. 144). Huxley, então, "[...] fetichiza o fetichismo da mercadoria" (ADORNO, 2001, p. 110), ao separar as relações de produção de seu modo de produção.


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Slavoj äLåHN (2003) igualmente ressalta a necessidade de não se reduzir algumas perspectivas mais enérgicas a uma mera crítica cultural. Para ele, esse tipo de crítica tem sido feita até mesmo pelos conservadores da sociedade de consumo. Retomando as implicações do problema, o resultado desse processo de tentativa de fetichização do mundo, seja da consciência em si, seja do próprio método de análise - não há como esquecer de Agnes Heller (1991) e a sociologia como desfetichização da modernidade 5 - , é a "liquidação" da Ideia de indivíduo. O conceito de reificação não é só relevante como alargamento do conceito de alienação, como concretamente observável na aceitação naturalizada das mercadorias surgidas sob o rótulo de culturais. Reforçando com as palavras de Erich Fromm (1965, p. 85), "[...] os homens são, cada vez mais, autômatos que fazem máquinas que agem como homens e produzem homens que agem como máquinas". Lucien Goldmann (1980, p. 172) vem afirmar categoricamente que uma das "[...] características fundamentais da sociedade capitalista é a de mascarar as relações sociais entre os homens e as realidades espirituais e psíquicas, dando-lhes o aspecto de atributos naturais das coisas ou de leis naturais". Desse princípio é que emerge a reflexão marxista da reificação, em alemão, Verdinglichung. Assim esclarece Tom Bottomore (2001, p. 314): Reificação é o ato (ou resultado do ato) de transformação das propriedades, relações e ações humanas em propriedades, relações e ações de coisas produzidas pelo homem, que se tornaram independentes (e que são imaginadas como originalmente independentes) do homem e governam sua vida. Significa igualmente a transformação dos seres humanos em seres semelhantes a coisas [...] A reificação é um caso 'especial' de alienação, sua forma mais radical e generalizada [...].

Nesse sentido, o clássico ensaio de Georg Lukács - a reificação e a consciência do proletariado - é expressão da maior vitalidade no estudo da dialética marxista e, com ela, o debate sobre a reificação. Para ele, "[...] o homem é confrontado com sua Em Agnes Heller (1991, p. 208), diga-se de passagem, "[...] não há sociologia sem uma certa medida de reificação; a metodologia científica inclui a reificação", já que trabalha-se com categorias analíticas que são exteriores aos sujeitos e a investigação. "Adorno, por exemplo, afirmou que as mentes dos sujeitos individuais na sociedade capitalista moderna já tinham sido reificadas e, portanto, o sociólogo empírico incorre numa dupla reificação: a do método de pesquisa e a que decorre da aceitação de sujeitos reificados como fontes de informações verídicas" (HELLER, 1991, p. 210).

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própria atividade, com seu próprio trabalho como algo objetivo, independente dele e que o domina por leis próprias, que lhes são estranhas" (LUKÁCS, 2003, p. 199). Como lembra Max Horkheimer (2007, p. 133), "[...] a máquina expeliu o maquinista; está correndo cegamente no espaço". Lukács reforça que, assim como o capitalismo se produz e reproduz incessantemente, a reificação penetra na estrutura da consciência humana de maneira cada vez mais profunda. Desse modo, a reificação se amplia com o progresso, substituindo relações originais que antes eram mais transparentes em termos de relações humanas por relações mais parcelizadas e mais fragmentadas. O essencial é entender que a reificação atinge a todos: "Não há uma diferença qualitativa na estrutura da consciência" (LUKÁCS, 2003, p. 219). David Harvey (1994, p. 308) também realça esse caráter de ocultação da realidade essencialmente ligado ao avanço da reprodução do capital: "[...] o processo mascara e fetichiza, alcança crescimento mediante a destruição criativa, cria novos desejos e necessidades, explora a capacidade do trabalho e do desejo humanos". Assim, o resultado é a exaustão do indivíduo. Vale lembrar que, em Adorno, a reificação não deve ser simplesmente eliminada, mas pensada como forma determinada. "O real não deve ser eliminado como absoluto, mas negado em sua determinação, superado" (MAAR, 2002, p. 03). Olgária Matos (2005, p. 50), de tal modo, com base na Teoria Crítica, lembra que o "[...] indivíduo autônomo, consciente de seus fins, está em extinção, em desaparecimento". Domingues (2001, p. 79), da mesma forma, salienta que Adorno e Horkheimer constatam analiticamente

pouca

importância ao indivíduo na

modernidade (devido ao bloqueio estrutural da práxis transformadora): "[...] na verdade, descrevem o que viam como declínio da individualidade". O pensamento adorniano citado em Habermas é elucidativo: "[...] a experiência individual apóia-se necessariamente no antigo sujeito - historicamente já condenado - 'que ainda é para si, mas não mais em si'" (HABERMAS, 1990, p. 142). Por conseguinte, nas palavras de Adorno e Horkheimer (1985, p. 128), por um lado, "[...] a individuação jamais chegou a se realizar de fato". Contudo, mesmo


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assim, a sociedade burguesa, "[...] contra a vontade de seus senhores", transformou os homens de crianças em pessoas, mas à custa de uma individualidade muito indigente e ilusória. Para Freitas (2005), trata-se de uma individualidade frustrada diante de si mesma, já que está muito aquém de seus projetos. Precisamente, Zuin (2001, p. 11) enfatiza que "[...] tal debilitação da individualidade é o resultado de um processo social que tem como principal característica a universalização do princípio da lógica da mercadoria, tanto na dimensão objetiva como na subjetiva". Nesse sentido - e Lukács já alertara para tal fato -, a reificação ocorre tanto na realidade objetiva quanto na subjetiva. Tanto as relações mercantis quanto a consciência se tornam naturalizadas. A indústria cultural, que não deve ser entendida no sentido estrito da expressão, progrediu graças ao avanço técnico do capitalismo. Segundo Morin (1967, p. 24), "[...] sin el impulso prodigioso del espíritu capitalista, esas invenciones [novas artes técnicas] no hubieran conocido sin duda un desarrollo tan radical y masivamente orientado". Como reforça Adorno, "[...] no capitalismo - isso é uma lei essencial - o que existe só pode ser considerado na medida em que se amplia e se expande" (ADORNO, 2008a, p. 122). Os elementos constitutivos da indústria cultural, ou seja, diversão, entretenimento, prazer etc., já existiam antes mesmo de ela vir à tona. Contudo, o que o século XX viu surgir foi uma imensa maquinaria voltada à comercialização da cultura. Nesse meio, o próprio interior de uma obra artística foi encerrado, quer dizer, a Ideia de autor, o seu caráter de individualidade estética. "A indústria cultural desenvolveu-se com o predomínio que o efeito, a performance tangível e o detalhe técnico alcançaram sobre a obra, que era outrora veículo da Idéia e com essa foi liquidada" (ADORNO; HORKHEIMER, 1985, p. 103-104). Destarte, os bens da indústria cultural, grosso modo pensando as maiores cifras (racionalizadas, massificadas e padronizadas), são essencialmente mercadorias. São criados para cumprir a função de valor de troca. A racionalidade estética é abandonada em prol da racionalidade instrumental. Zuin (2001, p. 10), sumariamente, afirma que uma produção cultural submetida "[...] quase que por completo ao seu


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caráter de valor afasta-se de si própria, ou seja, termina por negar toda possibilidade de felicidade ao dissimular um verdadeiro estado de liberdade". Padilha (2002) menciona que essa industrialização crescente e suas características mais importantes, na produção de mercadorias, estão também presentes na produção cultural desde o final do século XIX. O cinema e a televisão, por exemplo, obedeceram às mesmas regras da grande indústria: produção em série, divisão racional do trabalho e padronização. Morin (1967, p. 37) ainda realça esse aspecto, ao ressaltar que "[...] el gran arte nuevo, arte industrial tipo, el cine, ha instituido una rigurosa división del trabajo, análoga a la que se opera en una fábrica [...]". Dessa forma, a cultura produzida pela indústria cultural é padronizada e baseiase num gosto médio de um público que não tem tempo nem interesse em questionar o que consome. Os meios de comunicação de massa procuram, através de um mundo mágico, naturalizar as regras do jogo social, veiculando códigos serializados para qualquer um em toda a parte do planeta (PADILHA, 2002). Basicamente em boa parte da produção cultural - da indústria cultural - a qualidade estende-se, antes de qualquer coisa, não por um dado qualitativo conforme já alertou Durão (2008) -, mas por cifras de quanto já vendeu e de quanto irá render ainda. "O denominador comum 'cultura' já contém virtualmente o levantamento estatístico, a catalogação, a classificação que introduz a cultura no domínio da administração" (ADORNO; HORKHEIMER, 1985, p. 108). As diferenças de qualidade atribuídas aos filmes, livros e músicas têm mais a ver com a sua utilidade de venda do que com sua qualidade intrínseca. Por isso, para que todos possam ser atingidos pela mão invisível da indústria cultural, as próprias distinções são criadas, cunhando, assim, um certo ar de opção. "As vantagens e desvantagens que os conhecedores discutem servem apenas para perpetuar a ilusão da concorrência e da possibilidade de escolha" (ADORNO; HORKHEIMER, 1985, p. 101-102). Esperadamente, como sequelas desse processo, mecanismos diversos da ideologia disseminam que tal produção só existe porque há homens livres e capazes desejando o consumo. O princípio liberal da competência individualista se mostra também eficiente na indústria cultural: tudo pode ser vendido e comprado. No texto


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Crítica cultural e sociedade, Adorno (2001, p. 21) já se manifestara sobre o tema: "[...] hoje 'ideologia' significa sociedade enquanto aparência". Dessa forma, em Adorno a ideologia deixa de ser falsa consciência para se tornar propaganda do mundo: "[...] a organização do mundo converteu-se a si mesma imediatamente em sua própria ideologia" (ADORNO, 2006, p. 143). ³Não há mais ideologia no sentido próprio de falsa consciência, mas somente propaganda a favor do mundo, mediante a sua duplicação e a mentira provocadora, que não pretende ser acreditada, mas que pede o silêncio´ (ADORNO, 2001, p. 25). Por conseguinte, a indústria cultural consegue, no mesmo espaço, obter sucesso de venda em objetos díspares. Pensem, por exemplo, nos programas de auditório, no qual "[...] os 'enternecidos' apresentadores transitam, com espantosa facilidade, entre o relato da filha que foi estuprada pelo próprio pai e os produtos de limpeza do patrocinador" (ZUIN, 2008, p. 55). É como se a tragédia dos outros (alter) fosse coisa pequena frente à miséria individual de cada um (ego). Nesse sentido, sendo as grandes empresas ligadas ao cinema, à música, às revistas de entretenimento etc. entidades capitalistas que visam ao lucro, não há motivos para desconfiar que seus produtos sejam, quase que literalmente, mercadorias no sentido ríspido do vocábulo. A letra de uma música que é elaborada em um dia, com um instrumental de poucos arranjos, cada um mais dispensável que o outro, tematizando a traição de uma esposa e os lamentos do marido melancólico, não é outra coisa senão uma produção industrial, metaforicamente à maneira de uma indústria que produz uma série de canetas esferográficas. Tudo está a serviço da produção de mercadorias ou, mais além, como prefere Durão (2008, p. 43), da superprodução semiótica: "[...] a própria linguagem, sua natureza e forma de operação, quando completamente submetida à lógica de acumulação de capital". Basta que se observe hoje, além dos avanços das tecnologias midiáticas, suas manifestações empíricas: existem filmes em ônibus, insistentes comerciais em camisetas, outdoors humanos etc.; ou seja, há toda uma crescente produção de mensagens a serviço da indústria cultural.


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Nesse clima industrial da cultura, canções e filmes estandardizados nascem e renascem a cada dia. Às vezes, muda o formato, mas a essência permanece. De todo jeito, é sempre a mesma coisa. De marido traído a temática passa para a mulher submissa; do homem namorador, muda-se para um amor impossível etc. Não apenas músicas de sucesso nascem diariamente, mas também bandas, cantores, astros e novelas "[...] ressurgem ciclicamente como invariantes fixos, mas o conteúdo específico do espetáculo é ele próprio derivado deles e só varia na aparência" (ADORNO; HORKHEIMER, 1985, p. 103). Para Adorno e Horkheimer, cada filme é um trailer do filme seguinte, bem como cada música, seja no conteúdo, seja na montagem do produto. O público se contenta com a reprodução do que é sempre o mesmo. "Essa mesmice regula também as relações com o que passou. O que é novo na fase da cultura de massas em comparação com a fase do liberalismo avançado é a exclusão do novo. A máquina gira sem sair do lugar" (ADORNO; HORKHEIMER, 1985, p. 111). A indústria cultural consiste, portanto, na repetição do idêntico. O princípio maior da indústria cultural é a diversão, o entretenimento. Diversão! Palavra tão mencionada pelos apologistas da indústria cultural e tão indigesta (faca de dois gumes). A diversão, nos termos mais genéricos da indústria cultural - diga-se de passagem - , oferece exaustivamente a fuga do cotidiano. Eis o que proporciona a indústria cultural. Fuga! Ernest Mandel esclarece tal proposição:

Para o indivíduo cativo, cuja vida é inteiramente subordinada às leis do mercado não apenas (como no século XIX) na esfera da produção, mas também na esfera do consumo, da recreação, da cultura, da arte, da educação e das relações pessoais parece impossível romper a prisão social. A 'experiência cotidiana' reforça e interioriza a ideologia neofatalista da natureza da ordem social do capitalismo tardio. Tudo o que resta é o sonho da fuga - por meio do sexo e das drogas, que por sua vez são imediatamente industrializados (MANDEL, 1985, p. 352).

Logo, "[...] a indústria cultural está corrompida, mas não como uma Babilônia do pecado, e sim como catedral do divertimento de alto nível" (ADORNO; HORKHEIMER, 1985, p. 118). Antecipa-se que o divertimento - protocolarmente da indústria cultural, em si, não possibilita capacidade de resistência. Tem grande


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probabilidade de ser mera diversão, distração. Não oferece, em si, possibilidade de emancipação, nem crítica ao status quo. Conforme destacam Adorno e Horkheimer (1985, p. 119), "[...] divertir-se significa estar de acordo [...] É na verdade uma fuga, mas não [...] uma fuga da realidade ruim, mas da última idéia de resistência que essa realidade ainda deixa subsistir". Para pensar o grande desafio da primeira geração da Teoria Crítica, era preciso ponderar "[...] as formas aparentemente mais inofensivas de condução da vida no mundo contemporâneo [...], em busca do que nelas possa haver de regressivo" (COHN, 1998, p. 14). Portanto, não há forma aparentemente mais inofensiva do que a ocupação do tempo supostamente livre. Logo, como resultado de um "divertir" nada afetuoso, termina a grande parte da população envolvida numa forma de dominação muito sutil e, por isso mesmo, mais perigosa. "Assim como o Pato Donald nos cartoons, assim também os desgraçados na vida real recebem a sua sova [surra] para que os espectadores possam se acostumar com a que eles próprios recebem" (ADORNO; HORKHEIMER, 1985, p. 114). O humor triunfa sobre a própria (im)possibilidade de mudança da situação vigente. A arte, como possibilidade de emancipação, de expressão diante do mundo administrado, é abandonada por um humor que nada tem de engraçado, salvo a própria infelicidade de quem ri. A indústria cultural, ofertando cada vez mais seus produtos a um público sempre maior e propiciando diversão sempre "revigorada", oferece algo ao povo e, ao mesmo tempo, priva-o de outra. Oferece diversão, mas priva-o da possibilidade de uma vida com mais sentido. Com a indústria cultural, abre-se o sonho capitalista de uma educação plenamente produtivista e consumista. Como sabiamente alertou, já no século XVI, Étienne de La Boétie (2009, p. 48), "[...] o homem é naturalmente livre e quer sê-lo, mas sua natureza é tal que se amolda facilmente à educação que recebe". Por isso, não tem sido tarefa abstrusa acomodar os homens segundo os clichês da indústria cultural, pois, como lembra Horkheimer, no reconhecido estudo sobre Autoridade e Família: não é apenas a coação imediata que faz os homens obedecerem a ordens,


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"[...] mas os próprios homens [que] aprenderam a acatá-las" (HORKHEIMER, 2008, p. 192). Para Adorno, o clímax dessa situação é atingido quando os esquemas da indústria cultural não permitem mais a evasão ou a dificultam estruturalmente. Segundo aponta, a astrologia representa um dos exemplos mais basilares dessa sujeição. Caso um astrólogo prescreva a um de seus leitores/clientes guiar cuidadosamente seu automóvel, num determinado dia chuvoso, certamente tal conselho não lesará ninguém. Contudo, "[...] prejudicial é a estultice implícita na reivindicação de que esse conselho, válido para qualquer dia e, portanto imbecil, tenha requerido a consulta aos astros" (ADORNO, 1971, p. 294). Perante a indústria cultural e seus meios de divertimento, pouca coisa (ou quase nada) pode ser considerada inofensiva. O aforismo nº 5 de Minima Moralia muito habilmente traz essa reflexão a partir da vida lesada:

Nada mais é inofensivo. As pequenas alegrias, as expressões da vida que parecem isentas de responsabilidade do pensamento não só contêm um elemento de obstinada tolice, de impassível endurecimento, como se põem imediatamente a serviço do seu extremo oposto. (ADORNO, 2008b, p. 21).

Disso decorre que o cerco da indústria cultural é vigoroso. Não se trata de um conceito-fetiche6, mas de um conceito eminentemente ligado ao seu tempo social, que, em termos de expansão do capitalismo, não se encerrou. Para Gabriel Cohn (1998), a atualidade do conceito de indústria cultural reside essencialmente em dois aspectos centrais: a ideia de que seus produtos são oferecidos em sistema (o assédio sistemático de tudo para todos) e a noção de que a sua produção obedece prioritariamente a critérios administrativos de controle sobre os efeitos no receptor (capacidade de prescrição de desejos).

6 Uma vez que "[...] o desencantamento do conceito é o antídoto da filosofia, ele impede o seu supercrescimento: ele impede que ela se autoabsolutize" (ADORNO, 2009, p. 19).


24 Remete à ideia de uma articulação crescente entre todos os ramos de um empreendimento produtor e difusor de mercadorias simbólicas sob o rótulo de cultura, de tal modo que o consumidor se encontre cercado de maneira cada vez mais cerrada por uma rede ideológica com crescente consistência interna [...] O componente crítico básico consiste aqui na ideia de que nos produtos da indústria cultural os múltiplos níveis não são constituídos por significados intrínsecos aos requisitos formais da construção da obra, mas por níveis de efeitos, ou seja, de relações calculáveis entre determinados estímulos emitidos e as percepções ou condutas dos receptores. Não se trata, aqui, de mera 'manipulação'. Trata-se de uma modalidade específica de entidades simbólicas multidimensionais, produzidas e difundidas segundo critérios prioritariamente (mas não exclusivamente, embora no limite o sejam) administrativos, relativos ao controle sobre os efeitos no receptor e não segundo critérios prioritariamente estéticos, relativos às exigências formais intrínsecas à obra. (COHN, 1998, p. 20-21).

O cerco sobre o indivíduo tem sido crescentemente elevado. "[...] com falsa unção a indústria cultural proclama orientar-se pelos consumidores e lhes oferecer aquilo que desejam para si" (ADORNO, 2008b, p. 196). Assim, enquanto ela desaprova toda possibilidade de autonomia do indivíduo, consegue por tabela aprovar a heteronomia. Da mesma maneira, a capacidade de prescrição sobre o consumidor se constitui em seu grande trunfo. "Não é bem que a indústria cultural se adapte às reações dos clientes, mas sim que elas as finge" (ADORNO, 2008b, p. 197). Por isso, a resistência se torna obstruída mediante tamanhas artimanhas administradas no âmbito da cultura. Evidentemente, muitas desigualdades hegemônicas da vida social podem não ser estruturadamente criadas pela indústria cultural, mas, aqui e ali, reforçam-se nesse tipo-modelo de consumidor. A indústria cultural "[...] los convierte en lo que ya son, sólo que con mayor intensidad de lo que efectivamente son" (ADORNO, 1969, p. 64). Não se trata, todavia, de insistir em modelos teóricos pautados essencialmente contra a indústria cultural. Deve-se ter cuidado, pois "[...] o empenho desmistificador é valioso mas não garante a eficácia da desmistificação [e] a ideologia pode estar no excesso como na insuficiência" (KONDER, 2002, p. 258-259). É mister salientar que, por um lado, conforme realça Konder (2002), não há imunidade contra as ações sutis da ideologia. Ela se manifesta tanto na abstração quanto na empiria; tanto na pretensão à universalidade quanto na resignação à


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particularidade. Por outro lado, "[...] ao mesmo tempo em que se iludem, os indivíduos inquietos podem questionar suas próprias ilusões" (KONDER, 2002, p. 259). Logo, não se trata de estar a favor, nem contra. A presente discussão não está numa "guerra cultural7". Algumas análises são essencialmente contra o esboçado na presente reflexão sobre a indústria cultural, alegando sempre elitismo valorativo, excesso de especulação, busca por pureza conceitual e visão de homogeneização onde se verifica diferenciação. No mais, na análise dos meios de comunicação de massa e do consumo popular, de fato, esses elementos são questionáveis se levados ao extremo. Todavia, é possível efetuar uma análise pujante da indústria cultural abrindo mão desses quatro equívocos analíticos. E Adorno, na medida do possível, a fez! Primeiramente, se elitismo for analisar criticamente os processos capitalistas e não se deixar encantar por uma suposta diversidade também capitalistamente criada 8, o debate adorniano é, sim, elitista. Aliás, em Adorno, há uma crítica da cultura como espírito reservado. Segundo afirma, "[...] ciega es la creencia en una Geiteskultur [cultura do espírito], que, en virtud de su ideal de pureza autosuficiente, renuncia a la efectivización de su contenido y deja librada la realidad al poder y su ceguera" (ADORNO, 1973, p. 102); em segundo lugar, somente uma leitura apressada de Adorno diria que ele vê as massas através da aludida pureza conceitual "perdida". Em Adorno, o capitalismo já se encarregou de transformar tanto Mozart quanto Aviões do Forró em mercadorias; por fim, a indústria cultural no atual estágio de acumulação capitalista não é uma produção de base fordista, mas, de fato, flexível (toyotista). Logo, a diferenciação é sua marca: diferenciação sempre indiferenciada, mas existente. Assim, evitando suprimir a dialética em Adorno, e também evitando as relações causais e substancialistas, é necessário perpetrar uma tentativa de reequacionamento da relação entre estrutura e ação na análise da indústria cultural, mostrando, para além das ideologias e para além das resistências, uma tensão entre "A expressão 'guerras culturais' sugere batalhas campais entre populistas e elitistas, entre guardiões do cânone e partidários da différence..." (EAGLETON, 2005, p. 79). 8 "[...] considero esse tão falado pluralismo como em grande medida ideológico. Ou seja, porque creio que a coexistência das forças é efetivamente capturada e determinada em sua aparência pelo sistema social em que vivemos e tudo domina" (ADORNO, 2008a, p. 130). 7


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elas. Contudo, a presente reflexão procura evitar um equilíbrio entre os dois lados do campo de forças (dominação e resistência), uma vez que o lado estruturado vem demonstrando uma grande potência em criar e sustentar disposições estéticas. Ou seja, nas palavras de Adorno, há uma desproporção real entre o poder e a impotência social. La desproporción, que se vuelve desmesurada, entre poder e impotencia sociales se prolonga en el debilitamiento de la composición interna del yo, hasta el punto de que este no se mantiene sin identificarse con lo que, precisamente, lo condena a la impotencia. (ADORNO, 1973, p. 22).

A indústria cultural é atual, vigorosa, e sua força vem desequilibrando insistentemente esse campo. Os indivíduos não são padecentes culturais, mas vivem em estruturas que igualmente não são. O resultado tem sido a expansão crescente do poder da indústria cultural. Se esse tipo de evidência não for semiformação (Halbbildung), no sentido adorniano, não há o que dizer mais acerca das ideologias como instrumentos de reprodução do status quo, isto é, como esquiva dos "[...] contactos que pudieran sacar a luz algo de su carácter sospechoso" (ADORNO, 1966, p. 196). Como desfecho, nem tudo é alienação, bem como nem tudo pode ser resumido a uma compreensão de contextos estruturados, na qual a dominação é tomada simplesmente como modo de vida (cultura vivida). A busca de uma síntese epistemológica para essa dualidade - todavia, que não se abstenha de expor o tema da consciência reificada - foi o intento crítico desta reflexão, bem como, igualmente, expor que a indústria cultural contribui decisivamente para a manutenção de certos contextos estruturados de dominação. A potência do conceito adorniano está aí. Só não enxerga aquele que abate a dialética e/ou faz da diversidade cultural uma propaganda do mundo.


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CAPĂ?TULO 2

REVISITANDO O DEBATE SOBRE O FETICHISMO NA MĂšSICA E A REGRESSĂƒO DA AUDIĂ‡ĂƒO9

$ GLVFXVVmR GR WH[WR Âł2 IHWLFKLVPR QD P~VLFD H D UHJUHVVmR GD DXGLomR´ Âą Ăœber Fetischcharakter in der Musik und die Regression des HĂśrens (ADORNO, 1991) Âą, de 1938, embora escrito antes mesmo da DialĂŠtica do Esclarecimento (1947), expressa muito do entusiasmo criador do debate em torno do projeto adorniano de uma sociologia crĂ­tica da mĂşsica. O escrito ĂŠ uma contestação ao texto GH %HQMDPLP Âła obra de arte na era de sua reprodutibilidade tĂŠcnica´ (QTXDQWR Benjamim assinalava para as possibilidades abertas advindas das novas tecnologias midiĂĄticas e as conseqßências positivas abertas pela dessacralização da obra de arte, Adorno percebia o seu lado negativo, ou seja, o consumo fetichizado, passivo, regressivo10. Adorno (1991) inicia o texto afirmado que as reclamaçþes acerca da decadĂŞncia do gosto musical sĂŁo bastante antigas, e que, sempre que a chamada paz PXVLFDO VH PRVWUD SHUWXUEDGD HPHUJH D H[SUHVVmR ÂłGHFDGrQFLD GR JRVWR´ &RQWXGR para ele, o prĂłprio conceito de gosto estĂĄ superado, uma vez que a existĂŞncia de um indivĂ­duo com liberdade de escolha se encontra limitada sob a ĂŠgide do Mundo Administrado (verwaltete Welt). Essas queixas sobre a degeneração do gosto se baseiam em consideraçþes muito sentimentais, acrĂ­ticas e saudosistas, que louvam um passado que muito pouco difere do presente. Para Adorno, a realidade produz a ilusĂŁo de se desenvolver a

9 Originalmente publicado na revista Trilhas Filosóficas ¹ Revista Acadêmica de Filosofia, UERN, CaicóRN, ano V, n. 1, p. 59-76, jan.-jun. 2012. 10 ³<R VXEUD\DED OD SUREOHPiWLFD GH OD LQGXVWULD GH OD FXOWXUD \ ODV DFWLWXGHV FRUUHVSRQGLHQWHV PLHQWUas que %HQMDPLQ D PL MXLFLR WUDWDED GH ¾VDOYDUœ FRQ GHPDVLDGD LQVLVWHQFLD HVD SUREOHPiWLFD HVIHUD´ $'2512 1973, p. 111).


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partir de cima, mas no fundo, segue sendo o que era 11 (ADORNO, 1973, p. 42). AlÊm disso, na música a idÊia de gosto Ê ainda mais controversa quando se compreende a OyJLFD GD SURGXomR GD LQG~VWULD FXOWXUDO Mi TXH ³DR LQYpV GR valor da própria coisa, o FULWpULR GH MXOJDPHQWR p R IDWR GH D FDQomR GH VXFHVVR VHU FRQKHFLGD GH WRGRV´ (ADORNO, 1991, p. 79). Gostar de algo Ê quase que idêntico a reconhecê-lo e, nesse mundo de mercadorias padronizadas e racionalizadas ¹ na música ou fora dela ¹, esse comportamento valorativo torna-se muito questionåvel. As críticas adornianas se dirigem à categoria de arte ligeira (popular), em contraposição a uma suposta arte autônoma. Uma preocupação basilar em Adorno reside no caråter de educação que a música sÊria pode proporcionar aos indivíduos, que, alÊm de ser residual sob o domínio da indústria cultural, não estaria veiculada nos meios de comunicação de massa. Logo, o que a empiria vem demonstrando Ê um quadro infausto: massificação da música ligeira, que alÊm de quase nada (ou pouco) educar, fortemente contribui para desviar a atenção do público das contradiçþes estruturais da realidade. Como inferência mais genÊrica, pode-VH GL]HU TXH ³DR LQYpV de entreter, parece que tal música [ligeira] contribui ainda mais para o emudecimento dos homens, para a morte da linguagem como expressão, para a incapacidade de FRPXQLFDomR´ $'2512 S Mas, de fato, o que significa música popular (ligeira) para Theodor W. Adorno? O que define a música sÊria, ou seja, aquilo que foge ao padrão da indústria cultural? Adorno, em colaboração de George Simpson no início da dÊcada de 1940 ¹ mais especificamente entre 40 e 41 ¹, termina o seu escrito Sobre Música Popular (On Popular Music), avançando na discussão acerca do fetichismo na música e a regressão da audição. Para eles, a música costuma ser diferenciada, com freqßência, a partir de distinçþes de níveis (qualidade). Essa diferença Ê tão aceita que cada um mede o valor de cada tipo de música como totalmente independente da outra. Adorno não concorda com tal classificação e afirma que o fator decisivo na diferenciação 11 /D UHDOLGDG SURGXFH OD LOXVLyQ GH GHVDUUROODUVH GHVGH DUULED \ HQ HO IRQGR VLJXH VLHQGR OR TXH HUD´ (ADORNO, 1973, p. 42).


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entre música sÊria e música popular GHYH VHU R FRQFHLWR GH ³estandardização´ (padronização). AtravÊs deste critÊrio pode ser alcançada uma distinção concreta e mais precisa. Assim sendo, a estrutura da música popular (ligeira) Ê uma estrutura padronizada, atÊ mesmo quando se tenta desviar desse padrão, de tal modo que nesse modelo de música ligeira atÊ mesmo os detalhes são padronizados, atravÊs dos chamados break, blue chords, dirty notes.

Toda a estrutura da música popular Ê estandardizada, mesmo quando se busca desviar-se disso. A estandardização se estende dos traços mais genÊricos atÊ os mais específicos. Muito conhecida Ê a regra de que o chorus [a parte temåtica] consiste em trinta e dois compassos e que a sua amplitude Ê limitada a uma oitava e uma nota. Os tipos gerais de hits são tambÊm estandardizados: não só os tipos de música para dançar, cuja rígida padronização se compreende, mas tambÊm os tipos ¾FDUDFWHUtVWLFRVœ FRPR DV FDQo}HV GH QLQDU FDQo}HV IDPLOLDUHV ODPHQWRV SRU XPD garota perdida. E, o mais importante, os pilares harmônicos de cada hit ¹ o começo e o final de cada parte ¹ precisam reiterar o esquema-padrão. Esse esquema enfatiza os mais primitivos fatos harmônicos, não importa o que tenha intervindo em termos de harmonia. Complicaçþes não têm conseqßências. Esse inexoråvel procedimento garante que, não importa que aberraçþes ocorram, o hit acabarå conduzindo tudo de volta para a mesma experiência familiar, e que nada de fundamentalmente novo serå introduzido (ADORNO; SIMPSON, 1994, p. 116117).

3RU VXD YH] FRP D P~VLFD VpULD RFRUUH R FRQWUiULR ³&DGD GHWDOKH GHULYD R VHX sentido musical da totalidade concreta da peça, que, em troca, consiste na viva relação entre os detalhes, mas nunca na mera imposição de um esquema musical 12´ (ADORNO; SIMPSON, 1994, p. 117). Prontamente, cada detalhe estå conexo com o todo e o todo só adquire sua expressão com a conexidade dos detalhes, sempre indispensåveis. Assim, Ê a totalidade concreta da peça quem domina. Na música ligeira o sentido da totalidade da peça não Ê afetado caso algum detalhe seja alterado, uma vez que toda a estrutura musical não passa de um automatismo. Os detalhes são substituíveis, à maneira de uma engrenagem de måquina. Outra diferença geralmente colocada, e tambÊm insuficiente, tem sido o critÊrio GD FRPSOH[LGDGH GD SHoD PXVLFDO ³7RGDV DV REUDV GR SULPHLUR FODVVLFLVPR YLHQHQVH 12 ³3RU exemplo, na introdução do primeiro movimento da SÊtima sinfonia, de Beethoven, o segundo tema (em dó maior) só alcança o seu verdadeiro significado a partir do contexto. Somente atravÊs do todo Ê que ele adquire a sua peculiar qualidade lírica e expressiva, isto Ê, uma construção inteiramente contrastante com o caråter como que de cantus firmus do primeiro tema. Tomado isoladamente, o segundo tema seria reduzido j LQVLJQLILFkQFLD´ $'2512 6,03621 S


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são, sem exceção, ritmicamente mais simples GR TXH DUUDQMRV URWLQHLURV GH MD]]´ EHP FRPR ³RV ODUJRV LQWHUYDORV GH QXPHURVRV hits como Deep Purple ou Sunrise Serenade são per se mais difíceis de seguir que a maioria das melodias de, por H[HPSOR +D\GQ´ $'2512 6,03621 S 1HVWH VHQWLGo, da mesma forma que a diferença de nível não pode figurar como critÊrio de distinção, a complexidade igualmente não define o valor de uma peça musical. De tal modo, para Adorno, a sumåria diferença entre a natureza das peças musicais reside no fato de que, na música sÊria em geral (vale salientar que tambÊm existe uma parte da música sÊria submetida à indústria cultural), o detalhe contÊm o ³7RGR´ 1D P~VLFD SRSXODU D UHODomR p PHUDPHQWH DFLGHQWDO 1HVWD R Todo não Ê alterado pelo evento individual. Essa música ligeira como elemento do fetichismo e da audição regressiva revela traços båsicos definidores de sua condição padronizada. Primeiramente, a divisão do trabalho existente entre compositor, harmonizador e arranjador simula algo quase industrial, no qual ocorre uma divisão de funçþes e sua posterior montagem do produto. Em segundo lugar, a imitação Ê outra condição basal dessas músicas de sucesso. Por estarem submetidas à lei do valor de troca, estão logicamente imbuídas num mercado competitivo, portanto, nada mais natural que um hit de sucesso busque copiar a fórmula de sucesso de outro. Uma terceira característica Ê dada pela inserção da música ligeira no mercado fonogråfico, atravÊs do que Adorno e Simpson (1994, p. 125) chamaram de plugging, ou seja, a repetição incessante de um hit particular de modo a tornå-lo um sucesso UHFRQKHFtYHO $PSOLDQGR HVVD QRomR ³D SURPRomR SHOR plugging almeja quebrar a resistência ao musicalmente sempre-igual ou idêntico, fechando, por assim dizer, as vias de fuga ao sempre-LJXDO´ Na mesma mão, a música que se propþe ao sucesso tambÊm deve apresentar certo glamour, ou seja, ter caråter de show, de entretenimento. Esse glamour de certa forma leva a um comportamento infantil, jå que a representação do divertimento Ê


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buscada para relaxar do esforço, do trabalho, enfim, fuga do mundo da responsabilidade. Evidentemente, o caråter empresarial da música ligeira tambÊm não foi deixado de lado na anålise adorniana. Percebe-se que a música ligeira pertence a determinados grupos e, deste modo, tambÊm faz parte do circuito geral do valor. Daí que, adotando-se de forma competente as fórmulas mencionadas anteriormente, ³GHVGH TXH R PDWHULDO SUHHQFKD UHTXLVLWRV PtQLPRV TXDOTXHU FDQomR SRGH VHU promovida e transformada num sucesso, se houver uma adequada conexão entre JUDYDGRUDV QRPHV GH FRQMXQWRV PXVLFDLV HVWDo}HV GH UiGLR H ILOPHV´ $'2512 SIMPSON, 1994, p. 125). Como seqßela de toda essa estrutura promocional, surge a expressão regressão da audição, podendo ser mais bem entendida DWUDYpV GR DGiJLR TXH GL] ³VH QLQJXpP PDLV p FDSD] GH IDODU UHDOPHQWH p yEYLR WDPEpP TXH Mi QLQJXpP p FDSD] GH RXYLU´ (ADORNO, 1991, p. 80). A audição regressiva Ê encontrada, pois, no ouvinte que não deseja pensar no Todo. O ouvinte regredido torna-se um consumidor passivo, mero comprador de músicas que proporcionam o prazer imediato. Crochík (2008) enfatiza esse aspecto ao mostrar que a música era, e ainda hoje Ê, vista como um mero meio de entretenimento, sem nenhuma implicação política, dimensão que Adorno muito lhe atribuiu. O modo de comportamento perceptivo, atravÊs do qual se prepara o esquecer e o råpido recordar da música de massas, Ê a desconcentração. Se os produtos normalizados e irremediavelmente semelhantes entre si exceto certas particularidades surpreendentes, não permitem uma audição concentrada sem se tornarem insuportåveis para os ouvintes, estes, por sua vez, jå não são absolutamente capazes de uma audição concentrada [...] De vez em quando se ouvirå a opinião de que o jazz Ê sumamente agradåvel num baile e horrível de ouvir (ADORNO, 1991, p. 96).

A música sob o domínio da indústria cultural possibilita um prazer superficial que rejeita no prazer a própria noção de prazer, pois as músicas de sucesso, variantes da indústria do entretenimento, impedem qualquer avanço crítico-intelectual. Para Adorno o que regride de fato Ê a possibilidade de se chegar a um outro conhecimento


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consciente sobre música, ou seja, a liberdade de escolha frente à outra música oposta a estandardização. Como exemplo, Adorno realizou, em 1938, um estudo do então consagrado programa de educação musical clåssica pelo rådio, o The NBC Music Appreciation Hour Conducted by Walter Damrosch (CARONE, 2003). O artigo de Adorno, intitulado The analytical study of the NBC Music Appreciation Hour, na Êpoca, não agradou ninguÊm, segundo apreciação contida em Carone (2003). Por quê? -XVWDPHQWH SRUTXH ³DWDFDYD XP SURJUDPD HGXFDWLYR DSDUHQWHPHQWH VHP ILQV comerciais e não lucrativo, promovido pela rede para pessoas em idade escolar [...] TXH QmR SRGLDP WHU R SULYLOpJLR GH IUHT HQWDU DV JUDQGHV VDODV GH FRQFHUWRV´ (CARONE, 2003, p. 478). De acordo com Carone, Adorno argumentou que o programa de rådio falhava em transmitir uma verdadeira experiência musical, jå que era pautado numa estÊtica do efeito, que reduzia a apreciação musical ao prazer ou à diversão derivados da audição. Embora o conceito de indústria cultural ainda não tivesse sido formulado na DialÊtica do Esclarecimento, Adorno jå percebera o caråter prÊ-digerido da filosofia do Programa. Este foi o ponto principal da crítica de Adorno ao programa de HGXFDomR PXVLFDO SHOR UiGLR ³VH R HIHLWR p R SURSyVLWR GD P~VLFD VpULD HQWmR D ¾ERD P~VLFDœ p DTXHOD TXH VDWLVID] R RXYLQWH H QDGD H[LJH GHOH´ &$521( S 487). A popular Hora de Damrosch, que era seguida com muita atenção por seu aporte não comercial e que pretendia promover a educação musical, defendia falsas informaçþes sobre a música e uma imagem absolutamente distorcida desta [ADORNO, 1973, p. 121, tradução nossa]13.

Quatro inferências do estudo podem ser ilustrativas dessa crítica ao programa da NBC. A primeira mostrou que a noção de apreciação consistia na ideia do efeito sobre o ouvinte, interpretada em termos de prazer ou diversão. Esses princípios são, todavia, termos emprestados da indústria do entretenimento e, em si, são superficiais ³> @ OD SRSXODU +RUD GH 'DPURVFK TXH HUa seguida con mucha atención por su aporte no comercial y que pretendía promover la educación musical, defendía falsas informaciones sobre la música y una imagen DEVROXWDPHQWH GLVWRUVLRQDGD GH HVWD´ $'2512 S

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e não conduzem a uma concreta experiência musical. Para Adorno, a noção de "apreciação", como empregada pela The Music Appreciation Hour, baseava-se na idÊia de efeitos da música sobre o ouvinte, interpretada em termos de "prazer" e "diversão". Estes princípios levam a distorçþes de sentido musical, pelo menos se são tratados da forma como a Hora de Damrosch lidava com eles14. A segunda inferência demonstrou que a filosofia do Programa confundia reconhecimento com compreensão musical. Embora Adorno alerte que o reconhecimento seja necessårio ao entendimento musical, não se trata de coisas idênticas. Para ele, o que ocorria no Programa era o fetichismo da propriedade do conhecimento musical. Segundo afirma, a filosofia do The Music Appreciation Hour concebia a diversão proporcionada pela música como sendo praticamente idêntica a compreensão. Embora o reconhecimento possa contribuir para a compreensão musical, de modo algum isto Ê, por si só, um processo idêntico. Caso contrårio, qualquer coisa profundamente nova seria excluída a priori15. Diante disso, a música reconhecida se tornava uma propriedade daquele ouvinte expert em termos de estoque musical. Como terceira advertência, Adorno apontou que a estrutura desse tipo de educação musical promovia um certo culto de pessoas em vez de uma compreensão concreta da experiência musical, o que terminava por aumentar o prestígio da NBC. A estrutura autoritåria deste tipo de educação musical promovia um culto de pessoas em vez de uma compreensão dos fatos. Assim, havia a promoção do nome do Dr. Damrosch, cuja autoridade foi um meio de aumentar o prestígio da NBC com os ouvintes do The Music Appreciation Hour. Estas características do Programa praticamente produziam uma pseudo-cultura musical: o apreciador ideal de música, ³7KH QRWLRQ RI ¾DSSUHFLDWLRQœ Ds employed by the Music Appreciation Hour, is based upon the idea of PXVLFœV HIIHFW XSRQ WKH OLVWHQHU LQWHUSUHWHG LQ WHUPV RI ¾SOHDVXUHœ RU HYHQ ¾IXQœ 7KHVH SULQFLSOHV ERUURZHG from the sphere of commercialized entertainment, and shallow in themselves, lead, even if excusable as pedagogically expedient in inducing people to listen, to distortions of musical sense and cultural absurdities, DW OHDVW LI WKH\ DUH KDQGOHG LQ WKH ZD\ WKH +RXU KDQGOHV WKHP´ $'2512 S . 15 ³7KH 0XVLF $SSUHFLDWLRQ +RXU FRQFHLYHV RI ¾IXQœ RQH JHWV RXW PXVLF DV EHLQJ SUDFWLFDOO\ LGHQWLFDO ZLWK recognition. Although recognition may contribute to musical understanding, it is by no means alone identical with such understanding. Otherwise anything profoundly new would be excluded a priori. Actually, what RFFXUV LQ WKH +RXU LV D VKLIWLQJ RI WKH ¾IXQœ IURP D OLIH-relationship with music, to a fetishism of ownership of PXVLFDO NQRZOHGJH E\ URWH´ $'2512 S . 14


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do ponto de vista da Hora, seria um Babbitt16 >ÂłreferĂŞncia ao personagem George Babbitt, de Sinclair Lewis, que simboliza a mediocridade cultural do homem norteamericano´17]. Por fim, a cultura pseudo-musical do Hour se tornava mais marcante atravĂŠs das tĂŠcnicas mecânicas de ensino por meio do efeito do reconhecimento. Ao invĂŠs de promover uma compreensĂŁo real da mĂşsica, apenas se disseminavam informaçþes mecânicas. A tendĂŞncia em direção a pseudo-cultura musical se tornava mais marcante no ponto exato onde a The Music Appreciation Hour aparentemente tentava ÂłDWLYDU´ VHXV RXYLQWHV RX VHMD QRV WHVWHV TXH HUDP XWLOL]DGRV SHOR 3URJUDPD (VWHV testes utilizavam tĂŠcnicas mecânicas de aprendizagem. NĂŁo eram aplicĂĄveis aos fenĂ´menos concretos de escuta 18. Deste modo, a conclusĂŁo do estudo de Adorno revelou que, embora o Programa nĂŁo aparecesse como um negĂłcio em sentido aberto, ainda assim possuĂ­a as marcas da indĂşstria do entretenimento, jĂĄ que a intenção educativa tinha sido sabotada por uma intenção comercial nĂŁo confessa: vender mĂşsica clĂĄssica, alĂŠm de comercializar a imagem da NBC (CARONE, 2003). Tratava-se aĂ­ do interesse no desinteresse. É conveniente apontar que em Adorno nĂŁo hĂĄ um excesso de mĂĄ vontade para com a mĂşsica ligeira; nem tampouco apego valorativo pela mĂşsica sĂŠria. Em nenhuma das duas categorias ocorre juĂ­zo de valor. Para ele, a modificação de função atinge todos os tipos de mĂşsica e nĂŁo somente a ligeira. Nesse sentido, Adorno argumenta que uma parte da mĂşsica sĂŠria se tornou independente do consumo, Âł7KH DXWKRULWDULDQ VWUXFWXUH RI WKLV W\SH RI PXVLFDO HGXFDWion, promotes a cult of persons instead of an understanding of facts. In the first place, there is the name of Dr. Damrosch himself, whose authority, at the same time, is a means of enhancing the prestige of NBC with the listeners in the Hour. The actual measuring rod for musical personalities in the Hour is success. The conformist attitude of veneration for the successful is closely allied, in musical matters, with a profoundly reactionary attitude. These features of the Hour virtually produce a musical pseudo-culture: the ideal music appreciator, from the viewpoint of the Hour, ZRXOG EH D PXVLFDO %DEELWW´ $'2512 S 17 (CARONE, 2003, p. 491). 18 Âł7KH WHQGHQF\ WRZDUG PXVLFDO SVHXGR-culture becomes most striking at the very point where the Music ApSUHFLDWLRQ +RXU DSSDUHQWO\ WULHV WR ÂľDFWLYDWHÂś LWV OLVWHQHUV LQ WKH WHVWV WKDW DUH DSSHQGHG WR HDFK ZRUNVKHHW These employ a mechanical technique, are not applicable to concrete listening phenomena but only to the instruction given by the teacher, and are, as a whole, fit to promote only highly questionable information DERXW PXVLF DQG QRW DFWXDO PXVLFDO XQGHUVWDQGLQJ´ $'2512 S

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enquanto que o resto desta mesma música sÊria tambÊm foi submetida à lei do FRQVXPR 6HJXQGR DILUPD ³RXYH-se tal música sÊria como se consome uma mercadoria adquirida no mercado. Carecem totalmente de significado real as GLVWLQo}HV HQWUH D DXGLomR GD P~VLFD ¾FOiVVLFDœ RILFLDO H GD P~VLFD OLJHLUD´ (ADORNO, 1991, p. 84). Retomando o fio condutor da discussão, com a regressão da audição, abre-se um caminho mais dilatado para a indústria cultural, produtora do ouvido regredido e indutora de mais regressão. O fetichismo musical escancarado pela indústria cultural passa, então, a mostrar suas conseqßências. Por exemplo, uma delas Ê a valorização pública dada às vozes dos cantores. Para Adorno (1991), em outros tempos, exigia-se dos cantores alto virtuosismo tÊcnico. Hoje, ter boa voz e ser cantor jå Ê modus operandi do sucesso. Esqueceu-se que a voz Ê, na música, apenas um de seus HOHPHQWRV PDWHULDLV XPD SDUWH GD SHoD ³$JRUD exalta-se o material em si mesmo, GHVWLWXtGR GH TXDOTXHU IXQomR´ $'2512 S Logo, o fetichismo na música pode literalmente ser entendido como o fetichismo da mercadoria, da mesma maneira que Marx o descreveu em O Capital. Para Marx (1983), o feWLFKLVPR GD PHUFDGRULD RFRUUH TXDQGR ³RV SURGXWRV GR FpUHEUR humano parecem dotados de vida própria, figuras autônomas, que mantêm relaçþes HQWUH VL H FRP RV KRPHQV´ 0$5; S (P $GRUQR S SRU VXD YH] ³R FRQVXPLGRU ¾IDEULFRXœ OLWHUDlmente o sucesso, que ele coisifica e aceita como FULWpULR REMHWLYR SRUpP VHP VH UHFRQKHFHU QHOH´ Daí que Adorno Ê enfåtico ao desvendar que a música atual Ê dominada pela sua característica de mercadoria, sendo inclusive utilizada como instrumento para a propaganda comercial de outras mercadorias. Essa coisificação da música torna os ouvidos dóceis aos caprichos de um mercado nada preocupado com a condição de regressão da audição. O consumidor Ê, pois, prÊ-fabricado pela indústria cultural. Ouve-se a música conforme toda a esquematização jå prÊ-estabelecida. Formas de resistências são anuladas pelas estratÊgias comerciais, jå que a fetichização musical GLILFLOPHQWH VHULD ³SRVVtYHO VH KRXYHVVH UHVLVWrQFLD SRU SDUWH GR S~EOLFR VH RV


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ouvintes ainda fossem capazes de romper, com suas exigências, as barreiras que GHOLPLWDP R TXH R PHUFDGR OKHV RIHUHFH´ $'2512 S Adorno, contudo, não caminha no sentido de observar um nexo causal entre as músicas de sucesso e seus efeitos sobre os ouvintes. Todavia, coerente para com a afirmação que os indivíduos jå não estão em si, assevera dizer que a idÊia de um ouvinte atualmente influenciado se tornou vaga. Quem não estå em si mesmo tambÊm não pode ser influenciado integralmente. Essa situação de fetichismo na música e regressão da audição contribui com o estado de enfermidade conservadora do público. Praticamente nessa conjuntura se torna intricado pensar para alÊm dessa situação infantil geral. Adorno insiste numa argumentação que Ê bastante limitada em muitos GH VHXV FUtWLFRV ³RV RXYLQWHV H consumidores em geral precisam e exigem exatamente aquilo que lhes Ê imposto LQVLVWHQWHPHQWH´ $GRUQR HP PRPHQWR DOJXP HVWi VHQGR GHWHUPLQLVWD TXDQWR DR SHVR GRV DUUDQMRV LQVWLWXFLRQDLV $SHQDV HVWi FRORFDQGR TXH R ³FDUiWHU fetichista da música produz, atravÊs da identificação dos ouvintes com os fetiches lançados no mercado, o VHX SUySULR PDVFDUDPHQWR´ $'2512 S 7UDWD-se de uma dominação perspicaz na qual o dominado entra no esquema da indústria cultural e não deseja mais sair. Por duas razþes: 1ª. Dificuldade estrutural de saída do cerco sistêmico e crescente da indústria cultural; 2ª. Mesmo tomando consciência, não quer admitir que seja uma espÊcie de receptåculo. Assim, permanece como um elemento a mais no engodo das massas. Todo esse esquematismo pode ser identificado pela produção musical de massa que, como substância, fortemente corrobora com o ouvinte regredido e sua condição de infantilidade. Contudo, mesmo esse ouvido regredido ao consumir a música ligeira não o faz com a consciência tão tranqßila. Conforme Adorno (1991, p. 99), a ambivalência dos ouvintes pacientes da regressão encontra a sua fórmula no seguinte IDWR ³WRGD YH] TXH WHQWDP OLEHUWDU-se do estado passivo de consumidores sob coação e procuram tornar-VH ¾DWLYRVœ FDHP QD SVHXGR-DWLYLGDGH´ (P RXWUDV SDODYUDV VmR ainda mais iludidos. Todavia, e essa Ê uma observação importante que Adorno nos RIHUHFH ³PHVPR QD UHQ~QFLD j SUySULD OLEHUGDGH QmR VH WHP FRQVFLrQFLD WUDQT LOD DR


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mesmo tempo que sentem prazer, no fundo as pessoas percebem-se traidoras de uma SRVVLELOLGDGH PHOKRU´ $'2512 S Esse movimento de produção musical com caråter estandardizado causa certo desconforto ao ouvido regredido mais atento, jå que algo que ontem o encantava agora deve causar repúdio. Segundo avalia, esse ouvinte gostaria de ridicularizar aquilo que ontem mesmo o agradava, mas não o faz por razþes de bloqueio estrutural H SHOD QHJDomR GH VXD SUySULD VXMHLomR e FRPR VH HOH TXLVHVVH VH YLQJDU ³a posteriori GHVWH IDOVR HQFDQWDPHQWR´ $'2512 S &RPR MXVWLILFDWLYD SDUD D permanência na audição regressiva, redime-VH SHOD DOHJDomR TXH ³QHOD R FDUiWHU GD ¾DXUDœ GD REUD GH DUWH RV HOHPHQWRV GH VXD DXUpROD RX DSDUrQFLD H[WHUQD FHGHP HP favor do purameQWH O~GLFR´ $'2512 S Nesse ínterim, um elemento paradoxal surge: para uma música ligeira fazer sucesso ela precisa conter traços que a diferencie das demais, mas, ao mesmo tempo, deve conter ainda o completo esquematismo das demais cançþes. Em outras palavras: deve ser igual e diferente concomitantemente. Eis aí uma situação embaraçada para os managers do entretenimento de massa. Adorno e Simpson ilustram que uma audição mais atenta das músicas estandardizadas poderia ser a condenação de seu sucesso, jå que o ouvinte logo se cansaria delas. Por outro lado, se não se presta DWHQomR D FDQomR QmR SRGH VHU YHQGLGD ³,VVR HP SDUWH H[SOLFD R HVIRUoR constantemente renovado de limpar do mercado seus novos produtos, de afugentå-los para os seus túmulRV H GHSRLV UHSHWLU D PDQREUD LQIDQWLFLGD VHPSUH GH QRYR´ (ADORNO; SIMPSON, 1994, p. 137). Morin (1967, p. 30) esclarece oportunamente esse antagonismo mercadológico: a indústria cultural deve vencer, pois, constantemente, uma contradição fundamental entre suas estruturas burocratizadas-estandardizadas e a originalidade do produto que ela deve fornecer19. Logo, como saída e desenlace desse antagonismo entre o diferente e o igual coexistentes na música, ocorre a pseudoindividuação, isto Ê, a envoltura da produção cultural de massa com a falsa idÊia da livre-escolha. A ³OD LQGXVWULD FXOWXUDO GHEH YHQFHU SXHV FRQVWDQWHPHQWH XQD FRQWUDGLFFLyQ IXQGDPHQWDO HQWUH VXV estructuras burocratizadas-VWDQGDUGL]DGDV \ OD RULJLQDOLGDG GHO SURGXFWR TXH HOOD GHEH VXPLQLVWUDU´ 025,1 1967, p. 30).

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padronização dos hits PXVLFDLV ³PDQWpP RV XVXiULRV HQTXDGUDGRV SRU DVVLP GL]HU escutando por eles. A pseudoindividuação, por sua vez, os mantÊm enquadrados, fazendo-os esquecer que o que eles HVFXWDP Mi p VHPSUH HVFXWDGR SRU HOHV ¾SUHGLJHULGRœ´ $'2512 6,03621 S $ SVHXGRLQGLYLGXDomR GLIHUHQFLD algo que, em si, jå Ê indiferenciado. Busca dizer que os indivíduos são livres para escolher o que, na verdade, jå estå escolhido previamente. Como jå alertado, não Ê que a indústria cultural impere determinando o que se deve ouvir ou não. Trata-se de uma dominação muito arguta, na qual o próprio dominado pouco consegue sua libertação; e tambÊm, mesmo na tomada de consciência, não deseja sair. 6XPDULDQGR SDUD $GRUQR H 6LPSVRQ S R ³SULQFtSLR EiVLFR subjacente a isso Ê o de que basta repetir algo atÊ tornå-lo reconhecível para que ele VH WRUQH DFHLWR´ $ WUDQVIRUPDomR GD UHSHWLomR HP UHFRQKHFLPHQWR H GR reconhecimento em aceitação Ê uma equação doce para a consciência reificada. Adorno e Simpson mostram, então, os componentes que estão envolvidos na aceitação das massas. Em primeiro lugar, ao ouvir uma música ligeira de sucesso ocorre uma vaga recordação que diz: - ³HX GHYR WHU RXYLGR LVVR HP DOJXP OXJDU´. Todo esse crescente processo de estandardização provoca essa vaga recordação. Num segundo momento, ocorre a identificação efetiva que diz: - ³p LVVR ´. Surge, então, o repentino reconhecimento após o avançar da música, uma vez que Ê difícil recordar hits tão parecidos logo nos primeiros acordes. Num terceiro instante ocorre a subsunção por rotulação: a interpretação da experiência do ³p LVVR ´. Esse Ê o elemento crucial do reconhecimento. No momento em que o indivíduo reconhece o hit, ele sente segurança de estar entre muitos e acompanha a multidão de todos aqueles que ouviram a canção. O momento seguinte Ê o da autorreflexão do ato de reconhecer: ³2K HX VHL GLVVR LVVR ID] SDUWH GH PLP´. Essa transformação da experiência em objeto torna-a mais objeto de propriedade do que nunca ¹ o fato de que, por se reconhecer uma peça de música, se tenha comando sobre ela e se possa reproduzi-la a partir de sua própria memória. Por fim, ocorre a transferência psicológica da autoridade de reconhecimento para o objeto: ³,VVR p ERP PHVPR ´.


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³(VVD p D WHQGrQFLD GH WUDQVIHULU D JUDWLILFDomR GD SURSULHGDGH SDUD R SUySULR REMHWR H atribuir a ele, em termos de gosto, de preferência ou qualidade objetiva, o prazer da SRVVH TXH VH WHQKD DOFDQoDGR´ $'2RNO; SIMPSON, 1994, p. 134). Essas etapas expressam os processos de aceitação da música sob o prisma da indústria cultural. Visam a produção de uma concordância (embora seja importante salientar que a padronização por si mesma não implica necessariamente em desindividuação20). Como coroação, nascem e renascem essencialmente músicas produzidas quase que industrialmente. Enfim, o devir educacional da música Ê deixado de lado antes mesmo de sua concepção inicial. Tudo jå estå previamente esquematizado. Uma desejåvel emancipação crítica do indivíduo Ê abandonada nos simples atos de consumir e ouvir. Em suas Notas de Literatura PDLV HVSHFLILFDPHQWH QR WH[WR ³Lírica e Sociedade´ $GRUQR DSRQWD TXH R WHRU GH XP SRHPD ¹ da arte em geral ¹ não Ê a simples demonstração de emoçþes, experiências individuais e sensaçþes subjetivas. ³3HOR FRQWUiULR HVWDV Vy VH WRUQDP DUWtVWLFDV TXDQGR MXVWDPHQWH HP YLUWXGH GD especificação que adquirem ao ganhar forma estÊtica, conquistam sua participação no XQLYHUVDO´ $'2512 S 66). Para Adorno, a arte não pode ser reduzida ao domínio do irracionalismo, do mero subjetivismo. Tal concepção seria similar às estratÊgias da indústria cultural, jå que nela permaneceria a consciência reificada (ZUIN; PUCCI; RAMOS-DE-OLIVEIRA, 2001). A concepção adorniana de arte ¹ aquela que busca escapar da produção da indústria cultural ¹ reside em sua XQLYHUVDOLGDGH HVVHQFLDOPHQWH VRFLDO FDSD] GH DSUHVHQWDU D ³YR] GD KXPDQLGDGH´ atravÊs da construção estÊtica. Para ele, a arte, ao invÊs de ser mera exposição de SDODYUDV H HPRo}HV WHP GH ³HVWDEHOHFHU HP YH] GLVVR FRPR R todo de uma sociedade, tomada como unidade em si mesma contraditória, aparece na obra de arte; PRVWUDU HP TXH D REUD GH DUWH OKH REHGHFH H HP TXH D XOWUDSDVVD´ $'2512 p. 67 $ DUWH GHYH ³IDODU´ SRLV R TXH D LGHRORJLD VLOHQFLD 1mR SRGH VHU DOJR puramente individual. Para Adorno, o caråter social da arte deve mostrar, para alÊm ³> @ OD HVWDQGDUGL]DFLyQ SRU Vt PLVPD QR HQWUDxD QHFHVDULDPHQWH OD GHVLQYLGLGXDOL]DFLyQ´ 025,1 p. 39). 20


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de sua individualidade estÊtica, o anúncio de uma situação diferente; deve possibilitar uma reação à coisificação do homem e do mundo. Segundo mostram Zuin, Pucci e Ramos-de-Oliveira (2001, p. 44), em Adorno não se trata de uma arte pura, mas sim, XPD ³DUWH FRPR HVFULWXUD GD KLVWyULD OHPEUDQoD GH XPD SRVVLELOLGDGH GH OLEHUGDGH H promessa de uma futuUD OLEHUWDomR´ Freitas (2008), tambÊm ancorada no pensamento adorniano, afirma que o caråter fetichista da arte sÊria Ê necessårio ¹ expresso pelo preceito da arte pela arte (OœDUW pour OœDUW) ¹, uma vez que assegura o seu princípio antissocial e assegura o desprezo por normas e códigos prÊ-estabelecidos. Por outro lado, paradoxalmente, Adorno recusa a idÊia da arte pela arte, dizendo que esta esteriliza o seu potencial crítico. A arte possui, então, um forte vínculo com a sociedade, mas não aquele estabelHFLGR ³SHOD VXD IXQFLRQDOLGDGH VRFLDO H VLP GHYLGR DR IDWR GH TXH D GLQkPLFD histórica da relação entre os homens [...] reflete-se nos problemas inerentes das IRUPDV GD DUWH FRQWHPSRUkQHD´ )5(,7$6 S $VVLP D DUWH VH DIDVWD H VH aproxima da sociedade para, deste modo, fazer falar o seu silêncio. Como estå expresso na Teoria EstÊtica ³D DUWH QHJD DV GHWHUPLQDo}HV FDWHJRULDOPHQWH LPSUHVVDV QD HPSLULD H QR HQWDQWR HQFHUUD QD VXD SUySULD VXEVWkQFLD XP HQWH HPStULFR´ (ADORNO, 2006b, p. 15); ou seja: ³D DUWH p R SDUD VL H QmR R p´ (ADORNO, 2006b, p. 17). A arte só pode pretender ser vålida se carregar implicitamente uma crítica às condiçþes de produção, e se se recorda a distância privilegiada que ela guarda dessas condiçþes, esse valor se invalida instantaneamente. Inversamente, a arte só pode ser autêntica se reconhece, silenciosamente, o quão profundamente estå comprometida com aquilo a que se opþe; mas, ao levar essa lógica muito longe, enfraquece precisamente a sua autenticidade (EAGLETON, 1993, p. 253).

Por conseguinte, conforme nos enfatiza Terry Eagleton (1993, p. 255), a arte Ê, ³DR PHVPR WHPSR XP ser-para-si e um ser-para-a-sociedade´ 'HVWH IXQGDPHQWR båsico os produtos da indústria cultural, sobretudo os mais massificados, padronizados e racionalizados, distinguem-se radicalmente. Perpetram exatamente o oposto, ou seja, aproximam-se da sociedade para, em seguida, silenciå-la.


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Novamente de acordo com Zuin, Pucci e Ramos-de-Oliveira, a teoria estÊtica adorniana vem mostrar que as obras de arte, alÊm de despertarem o belo e o êxtase, GHYHP SURYRFDU LJXDOPHQWH R HVSDQWR D GRU D HVSHUDQoD H D QHJDomR ³,PSUHVVLRQDP QRVVD VHQVLELOLGDGH H SUHVVLRQDP QRVVD UDFLRQDOLGDGH´ S 'HYH KDYHU assim, um momento mimÊtico no conceitual e um momento racional na arte. Na leitura dos autores, nem a filosofia deve ser estetizada, nem a arte se racionalizar. A experiência estÊtica Ê, por conseguinte, a tensão entre esses dois pólos. Hå na DialÊtica Negativa uma passagem sinóptica dessa tensão:

Arte e filosofia não têm o seu elemento comum na forma ou no procedimento configurador, mas em um modo de comportamento que proíbe a pseudomorfose. As duas permanecem incessantemente fiÊis ao seu próprio teor atravÊs de sua oposição; a arte, na medida em que se enrijece contras as suas significaçþes; a filosofia, na medida em que não se atÊm a nenhuma imediatidade (ADORNO, 2009, p. 21-22).

Essa perspectiva renovadora de Adorno Ê observada na Teoria EstÊtica, obra publicada postumamente em 1971, no qual, em um contexto marcado por conflitos, a arte pode interiorizå-los e elaborå-los como experiência estÊtica, e, ao provocar perturbaçþes e transtornos de percepção, mostrar condiçþes de percepção de uma realidade conflituosa (GINZBURG, 2003). A música pode ser e ter essa possibilidade de expressão de uma estÊtica crítica, não plenamente a música ligeira, mas a música que permite uma experiência musical distinta do mero relaxamento e da pueril diversão. No tocante ao elemento diversão, atualmente tudo ¹ no sentido de entretenimento, prazer, etc. ¹ Ê colocado pelos apologistas da indústria cultural, PHQRV R IDWR TXH VHULD SRVVtYHO ³TXH LQHVSHUDGDPHQWH D VLWXDomR >GH GRPLQDomR@ VH modificasse, se um dia a arte, de mãos dadas com a sociedade, abandonasse a rotina do sHPSUH LJXDO´ $'2512 S 3DUD HVVD SRVVLELOLGDGH D VRFLHGDGH criou a música, não efetivamente a da indústria cultural, mas a música que resiste a audição regressiva. A música sÊria possui uma potencialidade crítica, na medida em que pode ser expressão do sofrimento humano diante do Mundo Administrado. Contudo, a música


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ligeira, alÊm de ser muito fortemente distração, contribui potencialmente para a regressão da capacidade de perceber algo alÊm do imediato. Para Adorno (2006a), na seleção de textos reunidos em Educação e Emancipação, mais especificamente no texto homônimo, vivemos numa Êpoca de educação não-emancipadora, mais voltada para a manutenção das instituiçþes do que para a busca da formação de indivíduos autônomos. Essa condição nãoemancipadora, chamada por Adorno de semiformação 21, compreende-se, nas palavras de Zuin (2001, p. 10), pela tentativa de oferecimento de uma formação educacional que se camufla da real condição de emancipação dos indivíduos quando, DGYHUVDPHQWH ³FRQWULEXL GHFLsivamente tanto para a reprodução da misÊria espiritual como para a manutenção da barbårie social. E o contexto social no qual a barbårie Ê FRQWLQXDPHQWH UHLWHUDGD p R GD LQG~VWULD FXOWXUDO KHJHP{QLFD´ 'H DFRUGR FRP %iUEDUD )UHLWDJ S D ³VHPLHGucação representa a educação deturpada, PDVVLILFDGD WUDQVIRUPDGD HP PHUFDGRULD´ /RJR DV PDVVDV VmR VHPLIRUPDGDV afirmativamente para a confirmação da reprodução do vigente, para a perpetuação de um mundo da adaptação (MAAR, 2003). Bahia (2004, p. 125) Ê EHP GLUHWR DR DILUPDU TXH ³QmR VH SRGH FRQIXQGLU escolaridade com capacidade de compreensão do mundo 22³ Mi TXH D HVFRODULGDGH QRV termos dessa educação semiformadora mais confunde do que esclarece. A semicultura Ê, pois, semiformação cultural que deforma e que limita o indivíduo, trazendo obståculos à uma formação crítica (ZUIN; PUCCI; RAMOS-DEOLIVEIRA, 2001). Assume-se, deste modo, seguindo o projeto teórico adorniano, a tese da necessidade da educação como um estado de consciência crítica ao status quo, capaz

21 'H DFRUGR FRP *UXVFKND ³a expressão semiformação foi cunhada modernamente no ano de nascimento de Adorno ¹ 1903 pelo neohumanista Friedrich Paulsen, no livro Halbbildung. Significava o LQGLJHVWR FRQWH~GR GD HVFROD VHFXQGiULD TXH PDVVDFUDYD RV DOXQRV´ (P $GRUQR D H[SUHVVmR DGTXLre um sentido mais largo, ou seja, de adaptação acrítica ¹ embora potencialmente competente ¹ ao mundo social. 3DUD $GRUQR ³HO VHXGRFXOWR VH GHGLFD D OD FRQVHUYDFLyQ GH Vt HQ Vt PLVPR´ S 22 ³8P SHQVDPHQWR FRQVHUYDGRU SRGHULD DGX]LU TXH D GLIXVmR GD LQG~VWULD FXOWXUDO Vy VH YHULILFD QR PHLR GRV LOHWUDGRV FRPR VH RV SRGHURVRV HVWLYHVVHP LVHQWRV GR FRQWDWR FRP RV SURGXWRV VHPLFXOWXUDLV /HGR HQJDQR´ (ZUIN; PUCCI; RAMOS-DE-OLIVEIRA, 2001, p. 63).


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de pensar em suas contradiçþes e imaginar algo para alÊm dessa situação23. Reforçando com a sinopse de Silva (2009), a educação em Adorno Ê uma educação negativa no confronto com a realidade: educação para a crítica, para a contradição e para a resistência. Daí que a emancipação não pode ser tratada como uma categoria vazia, capaz de elevar o indivíduo a um mundo que não existe em concretude. Tratase, aliås, da formação de um sujeito que, alÊm de saber jogar, conhece as regras do jogo. Para Adorno, deve-se alertar aos homens o caråter de sua ilusão permanente, ³SRLV KRMH HP GLD R PHFDQLVPR GD DXVrQFLD GH HPDQFLSDomR p R mundus vult decipi HP kPELWR SODQHWiULR GH TXH R PXQGR TXHU VHU HQJDQDGR´ $'2512 D S 183). A educação autêntica em Adorno tem um duplo sentido: adaptação, mas tambÊm um estado de crítica, um momento de possibilidade de autonomia. Nele, a educação verdadeira, ou seja, aquela que difere da semiformação ou semicultura, Ê, sumariamente o mesmo que emancipação. Portanto, não se trata de pensar o conceito de emancipação como uma categoria vazia, mas sim, como um vir-a-ser, jå que Ê preciso ver efetivamente as enormes dificuldades que se opþem ao conceito na atual organização do mundo e, tambÊm, não ser possível pensar num indivíduo existindo na sociedade simplesmente conforme suas próprias determinaçþes. Mesmo este suposto homem emancipado permanece arriscado a se tornar não emancipado, uma vez que qualquer tentativa de crítica Ê submetida a resistências. Segundo Zuin (2001, S ³Gificulta-se a sobrevivência do pensamento crítico numa sociedade em que os LQGLYtGXRV VH WUDQVIRUPDP HP ¾FDL[DV GH UHVVRQkQFLDœ´ Fechando esta reflexão, para Adorno (2006a), os defensores do status quo procurarão sempre demonstrar que essa emancipação estå superada; Ê utópica. Quem se habilita a demonstrar o contrårio? Quem se habilita a ilustrar uma nova música ou um outro uso para a indústria cultural? Fica esta provocação como desfecho. Um esclarecimento deve ser posto, baseado no pensamento adorniano problematizado por Freitag: ³2EYLDPHQWH XPD HGXFDomR DXWrQWLFD TXH SUHVHUYDVVH VHX FDUiWHU FUtWLFR H VXD IXQomR DR PHVPR WHPSR libertadora e repressora, não poderia, por si só, romper com essas estruturas objetivadas que se opþem de IRUPD LPSODFiYHO DR LQGLYtGXR´ )5(,7$* S 1R HQWDQWR XPD HGXFDomR DXWrQWLFD DLQGD TXH tenha um sentido, ora elitista, ora utópico, jå Ê um requisito para se pensar e refletir sobre o avanço da semicultura, da semi-formação.

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REFERÊNCIAS

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CAPĂ?TULO 3 NOTAS SOBRE O TEMPO LIVRE24

Este ensaio objetivou aproveitar algumas reflexþes presentes em Theodor W. Adorno para se pensar o lazer e o consumo do tempo livre nas sociedades contemporâneas. Fundamentalmente a partir das discussþes acerca da semiformação (Halbbildung), da indústria cultural (Kulturindustrie) e do tempo livre (Freizeit), entende-se o lazer como um fenômeno indissociåvel do espírito de nosso tempo, marcado, segundo Adorno, pela heteronomia cultural, pela transformação do homem em estatuto de coisa e pela ideologia como propaganda do mundo. Deste modo, não hå como se pensar lazer e tempo livre longe das relaçþes sociais concretas, históricas e, portanto, sujeitas aos imperativos da integração social. Nesse sentido, este capítulo vem apresentar ¹ ou (re)apresentar ¹ a obra de Theodor W. Adorno para os chamados estudos do lazer e do tempo livre, campo interdisciplinar em que o autor ainda não Ê tão lido, sobretudo no Brasil. Autor de uma obra de difícil compreensão, Adorno necessita ainda de maiores reflexþes acerca de suas ideias 25. Logo, esta breve reflexão vem tentar preencher uma lacuna existente, na medida em que traz as ideias de Adorno para um campo do conhecimento ainda 24 Produzido juntamente com Marcela Amålia Pereira Cabrita e Tåssio Ricelly Pinto de Farias. Originalmente publicado na revista Turydes (2014). Jean Henrique Costa, Marcela Amålia Pereira Cabrita y Tåssio Ricelly Pinto de )DULDV ³1RWDV VREUH R WHPSR OLYUH HP 7KHRGRU : $GRUQR´ 5HYLVWD Turydes: Turismo y Desarrollo, n. 17 (diciembre 2014). Hå uma versão ligeiramente reduzida publicada no livro Investigaçþes sobre o Agir Humano, Galileu Galilei Medeiros de Souza e Francisco de Assis Costa da Silva (Orgs), Ediçþes UERN, 2014. 25 (P DSUHFLDomR D REUD GH $GRUQR &RKQ S QRV DOHUWD SDUD R IDWR TXH ³Adorno Ê tido como autor de leitura particularmente difícil´ 6HJXQGR DILUPD ³quem gosta de tudo pronto e arrumado, não deve ler Adorno. Essa leitura Ê para quem estå disposto a uma experiência instigante, às vezes exasperante, mas sempre fecunda´ &2+1 S 7HUU\ (DJOHWRQ DVVLP UHIRUoD WDO DVVHUWLYD ³> @ cada frase de seus textos Ê, por assim dizer, obrigada a trabalhar em excesso; cada sentença deve tornar-se uma obra-prima ou um milagre da dialÊtica, fixando um pensamento um segundo antes que ele desapareça em suas próprias contradiçþes [...] Todos os filósofos marxistas devem ser pensadores dialÊticos, mas com Adorno pode-se sentir o esforço e a dificuldade desse estilo vivo em cada frase, numa linguagem construída contra o silencio, QD TXDO WmR ORJR R OHLWRU SHUFHEH D XQLODWHUDOLGDGH GH XP DUJXPHQWR R VHX RSRVWR p LPHGLDWDPHQWH SURSRVWR´ (EAGLETON, 1993, p. 247-248).


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marcado por uma visão muito instrumental do fenômeno do lazer. Assim, seguindo o pensamento crítico adorniano, Ê necessårio que o lazer seja pensado para alÊm do simples fato do entretenimento, ou ainda, da funcional reposição das energias vitais para o trabalho. O texto estrutural de apoio deste ensaio Ê Tempo Livre ³XP WH[WR TXH VXUJLX GH XPD FRQIHUrQFLD WUDQVPLWLGD SHOD ¾5iGLR $OHPDQKDœ HP ¹ ano da morte de Adorno ¹, que tem por REMHWLYR WUDWDU GD TXHVWmR GR ¾WHPSR OLYUHœ´ 1$6&,0(172 MARCELLINO, 2010, p. 03). Este texto foi publicado no Brasil originalmente em Palavras e Sinais, de 1995, tradução brasileira de Stichworte: kritische modelle 2 (Frankfurt am Main, Suhrkamp). Iniciando o debate, entende-se como tempo livre todo e qualquer tempo que se passa longe do trabalho ou das distintas obrigaçþes cotidianas. Diferentemente do sentido comum de ócio, que expressaria algo mais contemplativo, o tempo livre estå atrelado e anda lado a lado com o trabalho. Mas atÊ que ponto se tem realmente um tempo livre? O que poderia ser esse tempo livre? Que tipo de "diversão" caberia nele? Essas e outras questþes são levantadas quando pensamos mais profundamente o que Ê o tempo livre vigente sob relaçþes capitalistas. $GRUQR S DEUH R SUREOHPD GR WHPSR ³OLYUH´ FRP XPD Pi[LPD SUHVHQWH HP WRGR R HQVDLR ³o tempo livre Ê acorrentado ao seu oposto´ $VVLP SDUD ele, o tempo livre depende fundamentalmente das relaçþes concretas que esse mantÊm com a sociedade. Por conseguinte, não hå como se dissociar as pråticas do tempo livre do modo de produção vigente. Tal dissociação traz, em si, metodologicamente, um viÊs ideológico. O mesmo sangue que corre no lazer corre tambÊm no trabalho. Logo, em $GRUQR S ³R WHPSR OLYUH GHSHQGHUi GD situação geral da sociedade. Mas esta, agora como antes, mantÊm as pessoas sob um fascínio. Nem em seu trabalho, nem em sua consciência dispþem de si mesmas com UHDO OLEHUGDGH´ $VVLP SDUD HOH ³QXPD pSRca de integração social sem precedentes, fica difícil estabelecer, de forma geral, o que resta nas pessoas, alÊm do determinado SHODV IXQo}HV´ $'2512 S


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O problema da integração (tema que permeia toda discussão acerca da indústria cultural, do fetichismo, da ideologia e da semiformação em Adorno) Ê central para entender o prolongamento da não liberdade do tempo livre. Aliås, para Adorno, o termo livre só funciona como paródia. Não hå liberdade efetiva, real, concreta. Entenda-se por liberdade como paródia apenas a liberdade de se integrar numa ordem que não liberta das amarras vigentes. Como jå estava posto na DialÊtica do Esclarecimento em 1947: a måquina gira sem sair do lugar. Nesse ínterim, a semiformação se torna o grande maestro da integração.

A formação cultural agora se converte em uma semiformação socializada, na onipresença do espírito alienado, que, segundo sua gênese e seu sentido, não antecede à formação cultural, mas a sucede. Deste modo, tudo fica aprisionado nas malhas da socialização (ADORNO, 1996, p. 388-411).

Zuin reforça este entendimento:

Compreende-se o conceito semiformação justamente pela tentativa de oferecimento de uma formação educacional que se faz passar pela verdadeira condição de emancipação dos indivíduos quando, na realidade, contribui decisivamente tanto para a reprodução da misÊria espiritual como para a manutenção da barbårie social. E o contexto social no qual a barbårie Ê continuamente reiterada Ê o da indústria cultural hegemônica (ZUIN, 2001, p. 10).

Vê-se, pois, que com o avanço da semiformação e da indústria cultural a organização do tempo livre passa cada vez mais a depender de critÊrios objetivos do que da autonomia do indivíduo. A heteronomia, expressão kantiana, vira uma regra. Um exemplo Ê a ideologia do hobby ditada pela indústria cultural, que nada mais Ê do TXH H[HUFHU DOJXPD DWLYLGDGH GXUDQWH R WHPSR OLYUH ([HPSORV ³GHVVDV DWLYLGDGHV apontadas por Adorno eram os hobbies, ocupaçþes que serviam apenas para matar o tempo e que todas as pessoas deveriam ter, fossem eles significativos ou não para HODV´ )(51$1'(6 S 3HUFHEH-se, com isso, que atÊ as atitudes mais simples tendem a passar pelo mercado. Tudo Ê pensado e colocado de forma que permita que a vida social se torne mais planejada, principalmente com a expansão das chamadas atividades do tempo livre (indústria do entretenimento), oportunizadas pela


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redução legal da jornada de trabalho. O tÊdio passa a ser, então, uma enfermidade marcante nas sociedades administradas. De fato, o chamado tempo livre do trabalho, o que chamaremos aqui de tempo OLEHUDGR GR WUDEDOKR DXPHQWRX ³-i DJRUD R WHPSR OLYUH DXPHQWRX VREUHPDQHLUD graças às invençþes, ainda não totalmente utilizadas ² em termos econômicos ² nos campos da energia atômica e da autRPDomR SRGHUi DXPHQWDU FDGD YH] PDLV´ (ADORNO, 2002, p. 104). Contudo,

[...] Se se quisesse responder à questão sem asserçþes ideológicas, tornar-se-ia imperiosa a suspeita de que o tempo livre tende em direção contråria à de seu próprio conceito, tornando-se paródia; deste. Nele se prolonga a não-liberdade, tão desconhecida da maioria das pessoas não-livres como a sua não-liberdade, em si mesma (ADORNO, 2002, p. 104).

Assim, para Adorno o tempo livre tanto não pode ser pensado dissociado do tempo das obrigaçþes, bem como, das possibilidades efetivas de dominação. A extensa citação abaixo, fruto de um depoimento biogråfico do autor, ilustra o argumento:

Eu não tenho qualquer hobby. Não que eu seja uma besta de trabalho que não sabe fazer consigo nada alÊm de esforçar-se e fazer aquilo que deve fazer. Mas aquilo com o que me ocupo fora da minha profissão oficial Ê, para mim, sem exceção, tão sÊrio que me sentiria chocado com a idÊia de que se tratasse de hobbies, portanto ocupaçþes nas quais me jogaria absurdamente só para matar o tempo, se minha experiência contra todo tipo de manifestaçþes de barbårie ² que se tomaram como que coisas naturais ² não me tivesse endurecido. Compor música, escutar música, ler concentradamente, são momentos integrais da minha existência, a palavra hobby seria escårnio em relação a elas. Inversamente, meu trabalho, a produção filosófica e sociológica e o ensino na universidade, têm-me sido tão gratos atÊ o momento que não conseguiria considerå-los como opostos ao tempo livre, como a habitualmente cortante divisão requer das pessoas. Sem dúvida, estou consciente de que estou falando como privilegiado, com a cota de casualidade e de culpa que isto comporta; como alguÊm que teve a rara chance de escolher e organizar seu trabalho essencialmente segundo as próprias intençþes. Esse aspecto conta, não em último lugar, para o fato de que aquilo que faço fora do horårio de trabalho não se encontre em estrita oposição em relação a este. Caso um dia o tempo livre se transformasse efetivamente naquela situação em que aquilo que antes fora privilÊgio agora se tornasse benefício de todos ² e algo disso alcançou a sociedade burguesa, em comparação com a feudal ², eu imaginaria este tempo livre segundo o modelo que observei em mim mesmo, embora esse modelo, em circunstâncias diferentes, ficasse, por sua vez, modificado (ADORNO, 2002, p. 105-106).


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Deste modo, quando se considera o trabalho uma coisa significativa, prazerosa e gratificante, para Adorno, nĂŁo se consegue considerĂĄ-lo oposto ao tempo livre. Por isso nĂŁo hĂĄ porque denominar o que se faz no nĂŁo-trabalho de hobby. A imensa vontade de ocupar o tempo livre com algo que nĂŁo lembre o trabalho, com coisas que escapem a ele, ĂŠ prova de que nĂŁo se consegue esquecĂŞ-lo. Assim, fica claro que, lĂĄ onde mais nos escondemos do trabalho, onde mais tentamos nos refugiar dele, no WHPSR OLYUH HOH HVWi SUHVHQWH FRPR TXH ÂłSRU EDL[R GR SDQR´ $'2512 S $ SDVVDJHP D VHJXLU H[WUDtGD GH ÂłAs Estrelas Descem a Terra´ UHIRUoD R aludido: A ideia ĂŠ que, mantendo-se estritamente separadas as esferas do trabalho e do prazer, ambos os tipos de atividade serĂŁo beneficiados: aberraçþes instintuais nĂŁo interferirĂŁo com a seriedade do comportamento racional, e nenhum sinal sombrio de gravidade e responsabilidade macularĂĄ a diversĂŁo. Obviamente, esse dispositivo ĂŠ, de alguma maneira, derivado da organização social que afeta o indivĂ­duo Ă medida que sua vida ĂŠ dividida em duas seçþes: numa delas, ele funciona como um produtor; na outra, como consumidor. É como se essa dicotomia bĂĄsica do processo da vida econĂ´mica da sociedade fosse projetada sobre o indivĂ­duo. Psicologicamente, as conotaçþes compulsivas baseadas em uma visĂŁo puritana nĂŁo podem ser negligenciadas, nĂŁo apenas no que diz respeito ao padrĂŁo bifĂĄsico da vida como um todo, mas tambĂŠm a noçþes tais como a limpeza: nenhuma das duas esferas pode ser contaminada pela outra. Embora esse conselho possa oferecer vantagens em termos de racionalização econĂ´mica, seus mĂŠritos intrĂ­nsecos sĂŁo de natureza dĂşbia. O trabalho que ĂŠ completamente separado do elemento lĂşdico torna-se insĂ­pido e monĂłtono, uma tendĂŞncia que ĂŠ consumada pela quantificação completa do trabalho industrial. O prazer, quando igualmente isolado do conteĂşdo ÂľsĂŠrioÂś da vida, torna-se bobo, sem sentido, reduz-se completamente ao ÂľentretenimentoÂś e, em Ăşltima instância, ĂŠ apenas um mero meio de reproduzir a capacidade de trabalho do indivĂ­duo, enquanto a verdadeira substância de qualquer atividade nĂŁo-utilitĂĄria jaz na maneira como ela encara e sublima os problemas da realidade: res severa verum gaudium [a verdadeira alegria ĂŠ uma coisa sĂŠria, SĂŞneca, Epistulae Morales, 23, 4]. (ADORNO, 2008b, p. 98-99).

Uma outra forma de percepção do problema Ê simplesmente reparar como organizamos o nosso fim de semana em função do nosso trabalho. Tudo Ê projetado como forma de negar o trabalho, mas acaba sendo uma extensão dele. Bebe-se no såbado a noite toda (jå que não se trabalha no domingo); no domingo, bebe-se somente atÊ às dezesseis horas; depois disso, deve-se descansar, pois logo serå segunda-feira e toda rotina de trabalho serå retomada. Sem esquecer que o próprio ato GH EHEHU TXHU GL]HU ³HVTXHFHU R WUDEDOKR´ RX HQWmR VHQWLU-VH ³OLYUH´ SRUpP j WRGR


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momento pensando em retomå-OR 3RU LVVR GL] $GRUQR S ³1HP HP VHX WUDEDOKR QHP HP VXD FRQVFLrQFLD GLVS}HP GH VL PHVPDV FRP UHDO OLEHUGDGH ´ SRLV D separação entre sujeito e trabalho Ê impossível jå que, no modo de produção FDSLWDOLVWD ³QmR VH SRGH WUDoar uma divisão [...] entre as pessoas em si e seus assim FKDPDGRV SDSpLV VRFLDLV´ $'2512 S -104). Para não deixarmos de mencionar formas de lazer destacadas por Adorno S FRPR ³IHQ{PHQRV HVSHFtILFRV GR WHPSR OLYUH´ DSRQWDPRV DTXL R turismo e o camping, TXH ³VmR DFLRQDGRV H RUJDQL]DGRV HP IXQomR GR OXFUR´ Destarte, sob as relaçþes capitalistas, no tempo livre se prolongam formas de vida social organizadas segundo o regime do lucro. A indústria cultural cuida de manter a administração da cultura. A indústria cultural Ê a ferramenta indispensåvel para a manutenção e perpetuação do mundo administrado (verwalteten Welt), pois como DSRQWD 5DPRV S D ³LQWHULRUL]DomR GDV QHFHVVLGDGHV VRFLDOPHQWH JHUDGDV H a administração monopolizada de suas satisfaçþes podem significar, atravÊs da dominação material dos indivíduos, o controle dos corpos e, por decorrência, das PHQWHV´ 'HVVD IRUPD R TXH PXLWRV FKDPDP GH PDQLIHVWDomR GD FXOWXUD SRSXODU entendemos ser muito mais uma cultura industrializada, produzida como forma de perpetuar a dominação dos indivíduos no capitalismo, mas não como forma de se opor a ele. Mas o que vemos, ab initio, Ê que o tempo livre tornou-se planejado e abertamente uma mercadoria. Um tempo de consumo. Um bem que alÊm de ser algo imposto Ê tambÊm excessivamente cobrado pelos próprios sujeitos. Não ter lazer e não consumir no lazer significa estar fora de toda uma rede de signos e significados no capitalismo. NinguÊm quer ficar de fora! "O tempo livre segue como reflexo do ritmo de produção imposto heteronomamente ao sujeito, que forçosamente Ê mantido tambÊm nas fatigadas pausas" (ADORNO, 2008a, p. 171). O tempo livre tornou-se, então, um negócio altamente rentåvel que Ê oferecido e quase forçado a ser consumido da mesma maneira para toda a sociedade, como Adorno deixa claro na expressão negócios do tempo livre (Frei-zeitgeschiffl). A indústria cultural se torna, pois, o maestro desta semiformação.


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³$ indústria cultural seria a capacidade de produzir o produto e ao mesmo tempo criar sua necessidade de uso, ou seja, a indústria cultural seria um conceito e WDPEpP XP SURFHVVR´ 0(==$52%$ S 3DUD $GRUQR D S ³FDGD HQXQFLDGR FDGD QRWtFLD FDGD LGHLD HVWi IRUPDGD GH DQWHPmR SHORV FHQWURV GD indústria cultural". A indústria cultural Ê responsåvel por perpetuar a nossa condição de vida irrefletida (o que Adorno chamou de vida danificada beschädigten Leben), na medida em que nos incentiva a consumir e nos distancia da reflexão acerca do trabalho necessårio para bancar o consumo de nossa própria sujeição. Conforme Adorno e Horkheimer (1985, p. 112-114):

[...] a indústria cultural permanece a indústria da diversão. Seu controle sobre os indivíduos Ê mediado pela diversão [...]. A verdade em tudo isso Ê que o poder da indústria cultural provÊm de sua identificação com a necessidade produzida, não da simples oposição a ela [...]. A diversão Ê o prolongamento do trabalho sob o capitalismo tardio. Ela Ê procurada por quem quer escapar ao processo de trabalho mecanizado, para se pôr de novo em condiçþes de enfrentå-lo. [...] O espectador não deve ter necessidade de nenhum pensamento próprio, o produto prescreve toda reação: não por sua estrutura temåtica ¹ que desmorona na medida em que exige o pensamento ¹, mas atravÊs de sinais. Toda ligação lógica que pressuponha um esforço intelectual Ê escrupulosamente evitada. [...] o pensamento Ê ele próprio massacrado e despedaçado.

A passagem acima se refere à coesão do modo de produção capitalista (sua imensa capacidade de integração), a forma como ele aos poucos se torna cada vez mais fortalecido à medida que cria em nós a necessidade que ele mesmo virå suprir. Assim, a íntima relação entre indústria cultural e tempo livre se evidencia no fato de justamente no tempo de não-trabalho (livre) pararmos para consumir os produtos da indústria cultural que, transvestidos em produtos culturais, nos oferecem a fuga do trabalho, sendo uma forma de descansar dele para, inconscientemente, retornarmos a ele dispostos a produzir mais. E mesmo quando não estamos consumindo nada, ocupamos nosso tempo com coisas que prolongam a nossa condição de sujeitos coisificados, com pråticas que nada acrescentam à nossa reflexão diante da vida e do mundo. A reflexão mais densa de Adorno Ê pensar, pois, os riscos estruturais da dominação a partir de elementos banais do cotidiano. Logo, o que se faz fora do trabalho repercute estruturalmente no trabalho. No tempo supostamente livre não


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esquecemos a lĂłgica do trabalho. Aceita-se e se nega contraditoriamente o trabalho e suas dimensĂľes.

Aqui nos deparamos com um esquema de conduta do caråter burguês. Por um lado, deve-se estar concentrado no trabalho, não se distrair, não cometer disparates; sobre essa base repousou outrora o trabalho assalariado, e suas normas foram interiorizadas. Por outro lado, deve o tempo livre, provavelmente para que depois se possa trabalhar melhor, não lembrar em nada o trabalho. Esta Ê a razão da imbecilidade de muitas ocupaçþes do tempo livre (ADORNO, 2002, p. 106-107).

Para Adorno e Horkheimer (1985), o lazer Ê apenas uma fase projetada do próprio trabalho, pois à medida que os indivíduos não aproveitam o descanso para refletirem sobre suas condiçþes de existência, permanecem alienados ao próprio ¾sistemaœ, e, substancialmente, aproveitam os dias de folga para mergulharem nos devaneios do consumo. Tudo Ê projetado de forma tal que os homens não se detenham na reflexão acerca do estado de suas vidas e condiçþes de trabalho. Com isso surge a configuração de que eles são programados para trabalhar e consumir. O próprio ócio vai se tornando apenas um consumo, pois neste momento a publicidade invade os lares atravÊs da TV, do filme, da música produzida para o mercado e de diversas outras mercadorias.

[...] os indivíduos, na necessidade de momentos de lazer e fuga do trabalho, submetem-se aos produtos da indústria cultural que, por sua vez, prometendo essa fuga do trabalho, oferecem sempre atraçþes que reproduzem o cotidiano do trabalho como se fosse novidade (FERNANDES, 2010, p. 28).

No tempo livre, o qual se acostumou chamar de lazer por oposição ao tempo de trabalho (não-OLYUH ³VmR LQWURGX]LGDV > @ IRUPDV GH FRPSRUWDPHQWR SUySULDV GR WUDEDOKR´ $'2512 S 3DUD LOXVWUDU H[HPSOLILFDPRV FRP R WXULVPR feito por um motorista profissional, que dirige quarenta horas semanais e ao chegar ao fim de semana se obriga a pegar a estrada em direção à praia e dirigir novamente uma ou duas horas, para dizer na segunda-IHLUD DRV VHXV FROHJDV ³IXL j SUDLD QR ILP GH VHPDQD´ VHP DR menos refletir que fez no seu tempo livre aquilo que jå havia feito em toda a sua semana de trabalho. O mesmo acontece com um trabalhador da construção civil que passa o dia inteiro realizando movimentos com tijolos, telhas,


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etc., e que a noite se dirige à academia para malhar e repetir os movimentos realizados o dia todo. Portanto, observa-se que existe tanta imposição para o tempo livre que nos tornamos refÊns dele. O tempo livre passou a ser uma obrigação que a sociedade tem com ela mesma e não um momenWR ³OLYUH´ QR TXDO VH SRVVD H[HUFHU atividades de livre escolha. Entrementes, o ideal seria que todos os indivíduos tivessem algo construtivo para fazer no seu tempo livre. Mas não Ê isso que ocorre. De uma forma geral, ocorre o contrårio: vemos uma falta de liberdade de poder fazer o que se gosta e o que se quer. A heteronomia Ê dominante, seja pelas condiçþes educacionais, seja pelas FRQGLo}HV PDWHULDLV GH H[LVWrQFLD ³3DUD $GRUQR DV SHVVRDV Vy VH DGDSWDYDP DR sistema capitalista desenvolvendo papÊis que lhes eram impostos pela sociedade, ou VHMD QmR ID]LDP R TXH JRVWDYDP PDV R TXH OKHV FDELD ID]HU´ )(51$1'(6 p. 33). Assim, os indivíduos, de individualidade debilitada, não possuem liberdade, nem dentro, nem fora do trabalho. Segundo Adorno, a separação entre as esferas da produção e da não-produção estå na consciência.

[...] a distinção entre trabalho e tempo livre foi incutida como norma a consciência e inconsciência das pessoas. Como, segundo a moral do trabalho vigente, o tempo em que se estå livre do trabalho tem por função restaurar a força de trabalho, o tempo livre do trabalho ² precisamente porque Ê um mero apêndice do trabalho ² vem a ser separado deste com zelo puritano (ADORNO, 2002, p. 106).

³(VVD UtJLGD GLYLVmR GD YLGD HP GXDV PHWDGes enaltece a coisificação que HQWUHPHQWHV VXEMXJRX TXDVH FRPSOHWDPHQWH R WHPSR OLYUH´ $'2512 S 107). Para Adorno a liberdade vigente hoje Ê organizada, logo, torna-se coercitiva. A ideologia do hobby jå citada Ê exemplo disso. Todos buscam se enquadrar na moda dos lazeres contemporâneos. A lista Ê enorme: artes marciais (o chamado mixed martial arts hoje Ê prova disso), esportes radicais, viagens, etc. Adorno (2002, p. 107) PRVWUD TXH VH XP LQGLYtGXR QmR SRVVXL XP KREE\ ³VH QmR WHQV RFXSDomR SDUa o tempo livre então tu Ês um pretensioso ou antiquado, um bicho raro, e cais em ULGtFXOR SHUDQWH D VRFLHGDGH D TXDO WH LPSLQJH R TXH GHYH VHU R WHX WHPSR OLYUH´


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Importa destacar que ĂŠ essa necessidade de liberdade das pessoas que gera esse comĂŠrcio do tempo livre. É a partir do momento em que se deseja algo que a indĂşstria cultural comanda o tempo livre dos indivĂ­duos. Podemos perceber essa dominação simbĂłlica em outro exemplo que Adorno cita: quando um indivĂ­duo sai de fĂŠrias ĂŠ esperado dele nĂŁo sĂł que aproveite, mas principalmente que volte com algo que indique que o mesmo estava realmente de fĂŠrias. Pensando nisso ĂŠ citado o exemplo do bronzeado, algo caracterĂ­stico de quem estĂĄ de fĂŠrias. AlĂŠm disso, o bronzeado deixou de ser apenas um sinal de saĂşde e vida ao ar livre para ser tambĂŠm FRPHUFLDOL]DGR Âł0DLV GR TXH VHUYLU SDUD DX[tOLR GH XP GHWHUPLQDGR IOHUWH D obrigatoriedade da tez bronzeada concerne ao necessĂĄrio reconhecimento dos outros de que o indivĂ­duo conseguiu se desvencilhar por algum tempo do trabalho, DILUPDQGR D VXD SUHWHQVD OLEHUGDGH´ =8,1 S Nesse meio tempo, a sutileza metodolĂłgica de Adorno (2002, p. 108) se DSUHVHQWD QR PRGHOR GH DQiOLVH GD GRPLQDomR ÂłD LQWHJUDomR GR WHPSR OLYUH p alcançada sem maiores dificuldades; as pessoas nĂŁo percebem o quanto nĂŁo sĂŁo livres lĂĄ onde mais livres se sentem, porque a regra de tal ausĂŞncia de liberdade foi DEVWUDtGD GHODV´ O grande resultado disso ĂŠ o estado de letargia no qual vivem os indivĂ­duos. O tĂŠdio se torna a materialização e prova deste estado. Para Adorno (2002, p. 110),

O tÊdio existe em função da vida sob a coação do trabalho e sob a rigorosa divisão do trabalho. Não teria que existir. Sempre que a conduta no tempo livre Ê verdadeiramente autônoma, determinada pelas próprias pessoas enquanto seres livres, Ê difícil que se instale o tÊdio; tampouco ali onde elas perseguem seu anseio de felicidade, ou onde sua atividade no tempo livre Ê racional em si mesma, como algo em si pleno de sentido [...] Se as pessoas pudessem decidir sobre si mesmas e sobre suas vidas, se não estivessem encerradas no sempre-igual, então não se entediariam. TÊdio Ê o reflexo do cinza objetivo.

Este cinza objetivo se materializa na perda da criatividade (e, com ela, a redução das possibilidades concretas de fuga do sempre-igual). A falta de criatividade (leia-se fantasia) torna as pessoas desamparadas no consumo do tempo livre.


60 A pergunta descarada sobre o que o povo farå com todo o tempo livre de que hoje dispþe ² como se este fosse uma esmola e não um direito humano ² baseia-se nisso. Que efetivamente as pessoas só consigam fazer tão pouco de seu tempo livre se deve a que, de antemão, jå lhes foi amputado o que poderia tornar prazeroso o tempo livre. [...] Sob as condiçþes vigentes, seria inoportuno e insensato esperar ou exigir das pessoas que realizem algo produtivo em seu tempo livre, uma vez que se destruiu nelas justamente a produtividade, a capacidade criativa. Aquilo que produzem no tempo livre, na melhor das hipóteses, nem Ê muito melhor que o ominoso hobby (ADORNO, 2002, p. 111).

Para Adorno, tempo livre produtivo, ou seja, aquele distante da heteronomia, somente pode ser possível para pessoas emancipadas. O que resta para a grande massa que vive sob o escudo da heteronomia Ê a pseudoatividade, intitulada por Adorno (2002, p. 113) como ³ILFo}HV H SDUyGLDV GDTXHOD SURGXWLYLGDGH TXH D sociedade, por um lado, reclama incessantemente e, por outro lado, refreia e não quer PXLWR QRV LQGLYtGXRV´ $VVLP UHWRPDQGR R LQtFLR GR WH[WR R WHPSR OLYUH QmR estå em oposição somente ao trabalho, mas o segue diretamente como sua sombra. Esta pseudoatividade enquadra os indivíduos numa aurÊola da livre escolha quando, de fato, tudo jå estå escolhido previamente. Os filmes, músicas, jogos. etc. divergem apenas na aparência da livre concorrência. Em essência, contêm o mesmo objetivo da indústria cultural: a manutenção da condição estrutural de dominação dos indivíduos, dentro e fora do trabalho. Mas em que este texto Tempo Livre avança na teoria crítica (Kritische Theorie) adorniana? Que Adorno podemos encontrar nele? Primeiramente, trata-se de um Adorno que mantÊm fortemente o tom crítico e sempre fiel ao espírito da Teoria Crítica, sem se deixar encantar pelos encantos da diversidade cultural, tampouco pelas teorias conciliatórias da relação indivíduo-sociedade. Segundo, e esta Ê a grande inferência, neste texto vemos um Adorno refinando sua teoria, ao apontar possibilidades de questionamento do poder de sedução da indústria cultural. Ao realizar um estudo, no Instituto de Pesquisas Sociais de Frankfurt, percebe que nem tudo que Ê emitido pela indústria cultural pode ter eficåcia efetiva.


61 O estudo era relativo ao casamento da princesa Beatriz, da Holanda, com o jovem diplomata alemão Claus Von Amsberg. Deveríamos verificar como o povo alemão reagia a este casamento, o qual, difundido por todos os meios de comunicação de massas e minuciosamente descrito pelas revistas ilustradas, era consumido durante o tempo livre. Dado o modo de apresentação e a quantidade de artigos que foram escritos sobre o acontecimento, atribuindo-lhe importância extraordinåria, esperåvamos que tambÊm os telespectadores e os leitores o considerariam igualmente importante. Acreditåvamos, em especial, que operaria a hoje típica ideologia da personalização, que consiste em atribuir-se importância desmedida a pessoas individuais e a relaçþes privadas contra o efetivamente determinante, desde o ponto de vista social, evidentemente como compensação da funcionalização da realidade (ADORNO, 2002, p. 115).

Diante desta constatação, de base empírica vale destacar, Adorno apresenta os limites do poder da indústria cultural e, estruturalmente, abre caminho para se pensar resistências diversas na produção e no consumo do tempo livre. Com o estudo Adorno percebeu que uma parte da audiência se portou de modo bem realista em relação ao acontecimento e avaliou com sentido crítico os fatos narrados. Assim, hå na obra adorniana possibilidades de resistência mesmo no consumo dos veículos de comunicação de massa. A passagem abaixo Ê sinóptica desta condição:

Em conseqßência, se minha conclusĂŁo nĂŁo ĂŠ muito apressada, as pessoas aceitam e consomem o que a indĂşstria cultural lhes oferece para o tempo livre, mas com um tipo de reserva, de forma semelhante Ă maneira como mesmo os mais ingĂŞnuos nĂŁo consideram reais os episĂłdios oferecidos pelo teatro e pelo cinema. Talvez mais ainda: nĂŁo se acredita inteiramente neles. É evidente que ainda nĂŁo se alcançou inteiramente a integração da consciĂŞncia e do tempo livre. Os interesses reais do indivĂ­duo ainda sĂŁo suficientemente fortes para, dentro de certos limites, resistir Ă apreensĂŁo [Erfassung] total. Isto coincidiria com o prognĂłstico social, segundo o qual, uma sociedade, cujas contradiçþes fundamentais permanecem inalteradas, tambĂŠm nĂŁo poderia ser totalmente integrada pela consciĂŞncia. A coisa nĂŁo funciona assim tĂŁo sem dificuldades, e menos no tempo livre, que, sem dĂşvida, envolve as pessoas, mas, segundo seu prĂłprio conceito, nĂŁo pode envolvĂŞ-las completamente sem que isso fosse demasiado para elas (ADORNO, 2002, p. 116117).

Portanto, na parte final do ensaio Tempo Livre, apresenta-se o grande trunfo de HVSHUDQoD QD REUD DGRUQLDQD ³5HQXQFLR D HVERoDU DV FRQVHT rQFLDV GLVVR SHQVR porÊm, que se vislumbra aí uma chance de emancipação que poderia, enfim, contribuir algum dia com a sua parte para que o tempo livre [Freizeit] se transforme em liberdade >)UHLKHLW@´ (ADORNO, 2002, p. 117).


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Assim, nĂŁo hĂĄ concordância com grande parte da literatura hoje produzida sobre a indĂşstria cultural que enxerga o pensamento adorniano permeado por um pessimismo totalizador. A crĂ­tica desse autor nĂŁo se encerra totalmente nesse tal pessimismo Ă medida que desĂĄgua na possibilidade Âą utĂłpica Âą do tempo livre se WRUQDU ÂłWHPSR OLYUH SURGXWLYR´ 1R HQWDQWR FRQIRUPH R SUySULR $GRUQR S ÂłWHPSR OLYUH SURGXWLYR Vy VHULD SRVVtYHO SDUD SHVVRDV HPDQFLSDGDV > @´ GDt D importância da educação, pois ela seria a Ăşnica capaz de promover tal emancipação. Esse processo de emancipação se daria inicialmente pela via da negatividade, ou seja, GHYHULD ÂłVLPSOHVPHQWH FRPHoDU GHVSHUWDQGR D FRQVFLrQFLD TXDQWR D TXH RV KRPHQV VmR HQJDQDGRV GH PRGR SHUPDQHQWH´ $'2512 S RX VHMD HVVH processo deveria ser iniciado a partir da tomada de consciĂŞncia dos meios pelos quais o capitalismo, atravĂŠs da indĂşstria cultural, tem administrado o mundo. O mesmo Adorno que afirma em 1947, na DialĂŠtica do Esclarecimento, que nunca se chegou a uma verdadeira individualização, afirma tambĂŠm em 1969, em Tempo Livre TXH ÂłRV LQWHUHVVHV UHDLV GR LQGLYtGXR DLQGD VmR VXILFLHQWHPHQWH IRUWHV para, dentro de certos limites, resistir Ă apreensĂŁo [Erfassung@´ p. 116), e o primeiro passo para essa resistĂŞncia, para o exercĂ­cio mĂ­nimo da liberdade, seria dado por aTXHODV SHVVRDV TXH ÂłLQWHUHVVDGDV QHVWD GLUHomR RULHQWHP WRGD D VXD HQHUJLD SDUD TXH D HGXFDomR VHMD XPD HGXFDomR SDUD D FRQWUDGLomR H SDUD D UHVLVWrQFLD´ (ADORNO, 1995, p. 183). Portanto, apesar de nĂŁo negar (e acentuar) a alienação das massas, Adorno enteQGHX TXH HOD SDUHFH PXLWR PDLV XPD DOLHQDomR ÂłFRQVHQWLGD´ H FRPR GLVVH R PHVPR ÂłDV SHVVRDV DFHLWDP H FRQVRPHP R TXH D LQG~VWULD FXOWXUDO OKHV RIHUHFH SDUD R WHPSR OLYUH PDV FRP XP WLSR GH UHVHUYD´ $'2512 S ,QWHUSUHWDPRV DTXL HVVD ÂłUHVHUYD´ FRPR XP UHVTXtFLR GH FRQVFLrQFLD A esperança! É como se a consciĂŞncia crĂ­tica ainda nĂŁo tivesse sido completamente dissolvida. Tanto em Tempo Livre como em Educação e Emancipação Adorno expressa alguma fĂŠ na recuperação da autonomia por parte das massas 2X VHMD ÂłHPERUD originalmente pessimista, a tendĂŞncia, no decorrer da obra de Adorno, ĂŠ o caminho SDUD R RWLPLVPR GLDQWH GDV SRVVLELOLGDGHV ÂľXWySLFDVÂś GR ÂľWHPSR OLYUHϫ (FERNANDES, 2010, p. 47). No entanto, nĂŁo sob as condiçþes vividas na Europa atĂŠ


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o final da Segunda Guerra Mundial. Primeiro, por causa dos regimes totalitårios e autoritårios; segundo, porque lå onde o homem se afirmou mais esclarecido, na Alemanha dos grandes filósofos, aconteceu tambÊm o holocausto, o que para Adorno foi a maior prova de que a racionalidade tÊcnica havia destruído o sonho da razão emancipatória; por fim, por ter sido a indústria cultural utilizada para todas essas mazelas sociais, desde o culto à imagem do fßhrer atÊ a exaltação do orgulho alemão atravÊs dos filmes de Joseph Goebbels, ministro da propaganda do Terceiro Reich. A imaginação havia sido obliterada, e junto a ela, toda capacidade criativa. ³$GRUQR GHIHQGH TXH R WHPSR OLYUH GHYHULD VHU DTXHOH TXH R LQGLYtGXR WHP SRU benefício, e não por privilÊgio, para decidir, escolher e organizar segundo suas SUySULDV YRQWDGHV´ )(51$1'(6 S ( FRPR $GRUQR Mi KDYLD GLWR D indústria cultural anda de mãos dadas com o tempo livre, pois Ê ela quem dita às regras do que deverå ser consumido, colocando no mercado o que se quer e deixando a sociedade estruturalmente sem escolha efetiva (real). Contudo, Ê justamente no meio desse turbilhão de acontecimentos que vemos que nem tudo Ê aceito ou pelo menos não totalmente aceito. O texto de Adorno foi publicado em 1969. Embora tenham se passado quase 50 anos da publicação do texto de Adorno sobre o lazer, datado de 1969, e o contexto histórico seja completamente diferente, o texto Ê incrivelmente atual. Estruturalmente os indivíduos vivenciam diversas imposiçþes. Sejam elas na própria família, no trabalho, na escola, religião, distintas ideologias, etc. Não importa o grupo social, todos vivenciam estas imposiçþes. Como cada indivíduo lida com tais LPSRVLo}HV p TXH ID] D GLIHUHQoD ³(P WRGRV RV VHXV UDPRV ID]HP-se, mais ou menos segundo um plano, produtos adaptados ao consumo das massas e que em grande PHGLGD GHWHUPLQDP HVVH FRQVXPR´ $'2512 S 'HVWH PRGR Qão hå como pensar o lazer sem refletir acerca de toda estrutura educacional hegemônica. O lazer Ê reflexo, pois, diretamente da educação vigente no espírito de nosso tempo, marcado por ideais de competitividade, individualismo e pragmatismo. TambÊm não hå como pensar o lazer sem pensar nos tempos sociais em que estå inserido, dentro e fora do mundo das obrigaçþes. O mesmo ocorre com a indústria cultural: o cerco


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sistêmico, a capacidade crescente de prescrição de desejos e o consumo como dominação do sujeito impactam diretamente na relação do indivíduo com o lúdico, o ócio... Assim, num contexto de educação para o status quo, de existência de um ³WHPSR OLYUH´ TXH QmR OLEHUWD H TXH DSULVLRQD QR FRQVXPR H HP PDLV WUDEDOKR DOpP de todo avanço sistêmico da indústria cultural, o lazer deixa de ser, muito provavelmente, um momento lúdico-criativo para se tornar tempo e ação de mais ideologia, de mais consumismo, de mais pråticas não-emancipatórias do indivíduo (mais conformismo). O lazer deve educar, nele e para alÊm dele. Contudo, todos os limites apontados por Adorno mostram que o consumo do tempo livre tinha se tornado cada vez mais a produção de mais dominação. Mesmo assim, Embora originalmente pessimista, a tendência, no decorrer da obra de Adorno, Ê o FDPLQKR SDUD R RWLPLVPR GLDQWH GDV SRVVLELOLGDGHV ³XWySLFDV´ GR ³WHPSR OLYUH´ [...] Assim, suas contribuiçþes são fundamentais para entendermos o lazer mercadoria (simples atividades colocadas no mercado de consumo, que não obedecem a outro critÊrio senão o do lucro financeiro imediato) (FERNANDES, 2010, p. 47).

Logo, fecha-se (ou se abre, depende da perspectiva) este pequeno livro com a confiança de que a teoria crítica adorniana contribui decisivamente para evitar uma elaboração conceitual instrumental do lazer como mera recreação. Trata-se, pois, de um rico referencial teórico crítico e disposto a denunciar as armadilhas do status quo, dentro e fora do tempo livre.


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do

Esclarecimento:

fragmentos

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