! " #$ %& '() *" *+ %&( ,-) . % &/ 0)1 + 2
3 2
! 41 + 1 + 3 3
#
! 35 $ 1 6 ! 5 $ 2$ ! + 1 7 5
2
8/ + 91
: ; 6 < 3 $ & '
= ( > & '(1 - $ - 5 -# > = < , ; %--=<?,;*& '()1 0 < , @ / = 5 $ @ 0 5 $ @ A < , @ B ! 1
!"
! " # $ !% ! & $ ' ' ( $ ' # % % ) % * % ' $ ' + " % & ' ! # $, ( $ -. / -. / . 0 ! 1 . ( 2 -. . / 1 % % % % -3 % -3 % ! 4 5 -. -. % % 4 4 6 $$$ 7 8 8 -3 " 9 5 1 & ) * : 6 +) * ! ; !& <!=% <<>?> & % @ 8 6 A B ! * & ( C / 6 @ 6 D ?E>F 1 & ) * : 6 +) " G H & ?E>F
1
TEORIA CRÍTICA: ENSAIOS SOBRE THEODOR W. ADORNO
Critical Theory: Selected Essays on Theodor W. Adorno
Jean Henrique Costa
2
Para todos que ainda nĂŁo sucumbiram perante nossa sociedade do conformismo.
3
Riram do corpo do aleijado que em vão tentou se erguer. Riram ainda do improdutivo cego que nada pôde ver. Caçoaram da prostituta que com todos se deitava. Caçoaram ainda do afeminado que diferente se alegrava. Achincalharam do despossuído que nada tinha na barriga. Achincalharam ainda do mulato que, tolo, com ouro se embranquecia. Riem hoje do vagabundo que nas calçadas perambula. Riem, ainda, do artista de rua que com sua arte pouco reluz. Parodiam a carência que peca pela falta. Parodiam também a fartura que de abundosa se estafa. Com a astúcia de Ulisses, continuam a rir mesmo que com isso nada haja para auferir. E com o encanto da sereia, pouco podem resistir. Riem de tudo! Para além do que não há no mundo. Riem mesmo do luto que de sorumbático apenas emudece. Zombaram de todos os presentes que parados apenas riam. Zombaram, principalmente, porque a platéia parada e encantada, nada entendia. Zombaram até do triste humor que, feliz por ser lembrado, gracejou. Mas zombaram mais ainda do bom humor que, de tanto moralismo, até lamentou. Zombaram... Zombam... Zombarão... De fato, nada disso é engraçado. Exceto, talvez, o infortúnio de quem ri. Humor, Triste Humor Jean Henrique Costa
4
³$ LPSRWrQFLD H D HVWXSLGH] GRs indivíduos devem estimular o pesquisador a averiguar quem os condena a VHUHP LPSRWHQWHV H HVW~SLGRV ´ Theodor W. Adorno e Max Horkheimer (1978, p. 128) Temas Básicos da Sociologia ³2 IDWR GH QmR SRGHUPRV GHPRQVWUDU FRP SUHFLVmR FRPR essas coisas funcionam naturalmente não significa uma contraprova desse efeito, mas apenas que ele funciona de modo imperceptível, muito mais sutil e refinado, sendo SRU LVWR SURYDYHOPHQWH PXLWR PDLV GDQRVR´ Theodor W. Adorno (2006a, p. 88) Educação e Emancipação
5
PREFĂ CIO
Desde as primeiras traduçþes da obra DialĂŠtica do Esclarecimento, de Theodor Adorno e Max Horkheimer, a leitura, estudo e usos dos principais autores da FKDPDGD Âł(VFROD GH )UDQNIXUW´ RX FRPR FKDPDUHPRV DTXL Âł7HRULD &UtWLFD´ VH tornou lugar comum na Academia brasileira. O que o leitor ĂŠ brindado aqui nĂŁo traz, aparentemente, novidade alguma na imensa gama de comentadores e estudiosos da Teoria CrĂtica. Isso, sĂł na aparĂŞncia. Jean Henrique Costa conseguiu reunir neste livro, trĂŞs leituras significativas sobre a inserção do pensamento de Theodor Adorno e as possibilidades analĂticas de aspectos fenomenolĂłgicos da cultura brasileira, notadamente a sua indĂşstria cultural e sua indĂşstria do lazer. No primeiro capĂtulo, o autor nos remete a uma discussĂŁo da obra seminal adorniana, escrita em cooperação com Horkheimer (e supracitada), DialĂŠtica do Esclarecimento. O tratamento dado por Costa neste ensaio nos reporta ao avanço dos processos de racionalização e secularização e sua relação com as formas pelas quais o capitalismo reproduz a cultura de forma alienante e fetichizante. Costa nos mostra TXH HP $GRUQR ÂłR FDSLWDOLVPR Mi VH HQFDUUHJRX GH WUDQVIRUPDU WDQWR 0R]DUW TXDQWR $YL}HV GR )RUUy HP PHUFDGRULDV´ H QRV EULQGD FRP D UHIOH[mR LQRYDGRUD GH TXH ÂłD indĂşstria cultural no atual estĂĄgio de acumulação capitalista nĂŁo ĂŠ uma produção de EDVH IRUGLVWD PDV GH IDWR IOH[tYHO WR\RWLVWD ´ 0HVPR SURGX]LQGR HP PDVVD HOD JHUD GLIHUHQFLDomR VHQGR HVWD D VXD PDUFD ÂłGLIHUHQFLDomR VHPSUH LQGLIHUHQFLDGD mas exiVWHQWH´ -i R VHJXQGR FDStWXOR QRV OHYD j GLVFXVVmR DGRUQLDQD VREUH ÂłR IHWLFKLVPR QD P~VLFD H D UHJUHVVmR GD DXGLomR´ WUDYDGD SHOR ILOyVRIR DOHPmR HP LGRV GH HP pleno III Reich. O texto debatido ĂŠ uma resposta ao filĂłsofo Walter Benjamin, onde este visualizava as possibilidades abertas trazidas pelas novas tecnologias de mĂdia e certas consequĂŞncias positivas permitidas pela dessacralização da obra de arte. Theodor Adorno, em oposição, apontava o seu lado negativo: o consumo fetichizado, passivo e regressivo imperante nessa mesma arte e mĂdias. Remando contra a marĂŠ
6
do pessimismo, que mesmo nos nossos dias, com a derrocada do Socialismo Real e dos avanços neoliberais, impelem a um conformismo agudo, Costa mostra que Adorno defendia um constante estado de crĂtica, um momento de possibilidade de autonomia tanto na produção da cultura como na educação em si. Se vivenciamos hoje, cada vez mais, devido Ă s novas tecnologias e Ă s formas fetichizadas de SURGXomR LQWHOHFWXDO H FXOWXUD XP ÂłVLPXODFUR GH HGXFDomR´, para o filĂłsofo a educação verdadeira ĂŠ o oposto a tudo isso. A educação ĂŠ aquela que difere desta ÂłVHPLIRUPDomR´ RX ÂłVHPLFXOWXUD´ p R PHVPR TXH HPDQFLSDomR 8P JULWR SHOD emancipação ecoa na sua crĂtica Ă indĂşstria cultural em todas as suas formas. No terceiro capĂtulo (produzido em co-autoria) folheamos uma anĂĄlise cara ao autor que transita pelos estudos do lazer desde antanho: Notas sobre o tempo livre. Aqui, Costa ĂŠ mais que inovador na anĂĄlise, ele tambĂŠm inova na temĂĄtica, ao trazer as contribuiç}HV GH $GRUQR QHVVH FDPSR $SRQWD TXH QmR ÂłKi FRPR SHQVDU R OD]HU VHP UHIOHWLU DFHUFD GH WRGD HVWUXWXUD HGXFDFLRQDO KHJHP{QLFD´ 7HPRV XP ÂłWHPSR OLYUH´ TXH QmR OLEHUWD H VLP TXH DSULVLRQD-nos no consumo, nos remetendo a mais trabalho, fomentando mais ideologia, mais consumismo e mais prĂĄticas nĂŁoHPDQFLSDWyULDV GR LQGLYtGXR RX VHMD D PDLV FRQIRUPLVPR 2 OD]HU HP VL ÂłGHYH HGXFDU QHOH H SDUD DOpP GHOH´ (VWDPRV ORQJH GLVWR O leitor tem em mĂŁos trĂŞs importantes vertentes e caminhos do pensamento adorniano. Quebra-se nesta obra (opus), mais do que nunca, a visĂŁo de que Adorno ĂŠ um pensador pessimista ou que nĂŁo pensou as mĂdias eletrĂ´nicas em sua potencialidade. Costa nos brinda, em prosa elegante e sem retĂłrica vazia, com a percepção de um Adorno preocupado com o grande tema de sua vida: ĂŠ possĂvel, dentro do desenvolvimento do capitalismo, com suas estruturas ideolĂłgicas e de reprodução cultural, conseguir romper a dominação? Resumindo: a emancipação ĂŠ possĂvel? Como cientistas sociais, a resposta ĂŠ difĂcil jĂĄ que nĂŁo cabe ao cientista tal resposta, como nos apontou Max Weber. Mas a grandeza de Theodor Adorno ĂŠ mostrar que, se ao menos nĂŁo sejamos instrumentos de ação, possibilitemos a crĂtica mais prĂłxima do real possĂvel. Prof. Dr. Thadeu de Sousa BrandĂŁo
7
SUMÁRIO
APRESENTAÇÃO............................................................................................. 08
CAPÍTULO 1 ± A ATUALIDADE DA DISCUSSÃO SOBRE A INDÚSTRIA CULTURAL ........................................................................................................ 10
CAPÍTULO 2 ± REVISITANDO O DEBATE SOBRE O FETICHISMO NA MÚSICA E A REGRESSÃO DA AUDIÇÃO ..................................................... 31
CAPÍTULO 3 ± NOTAS SOBRE O TEMPO LIVRE......................................... 50
8
APRESENTAĂ&#x2021;Ă&#x192;O
Os trĂŞs ensaios aqui publicados nĂŁo sĂŁo inĂŠditos. Embora tenham recebido novo tratamento textual e, pontualmente, alguns acrĂŠscimos, ainda assim nĂŁo expressam nenhuma nova reflexĂŁo sobre a obra de Theodor W. Adorno. Pessoalmente este livro nasceu do intuito de sistematização, em livro, de trĂŞs textos jĂĄ publicados, respectivamente, nos anos de 2012, 2013 e 2014, nas revistas Trilhas FilosĂłficas (UERN), Trans/Form/Ação (UNESP) e Turydes (EUMED). A motivação bĂĄsica deste exercĂcio de novo tratamento de textos nĂŁo inĂŠditos reside na permanente necessidade de aprimoramento textual, bem como, na necessidade de tornar mais acessĂvel um autor tĂŁo denso como Theodor W. Adorno. A aventura na dialĂŠtica adorniana ĂŠ sempre um desafio na prĂłpria condição do repensar o sujeito e a produção do conhecimento sob a ĂŠgide da semiformação. Portanto, toda tentativa de ÂľJXLDÂś RX ÂľPDSDÂś VH ID] HQpUJLFD Por conseguinte, este pequeno livro Âą DTXL LQWLWXODGR FRPR ÂłTeoria CrĂtica: Ensaios sobre Theodor W. Adorno´ Âą busca reforçar o conjunto de publicaçþes sobre Adorno no Brasil, objetivando a contĂnua reafirmação de sua teoria crĂtica. O livro estĂĄ dividido em trĂŞs capĂtulos. O capĂtulo 1 discute a atualidade da discussĂŁo sobre a indĂşstria cultural, debate seminal produzido juntamente com Max Horkheimer na DialĂŠtica do Esclarecimento em 1947. O segundo capĂtulo debate HVSHFLILFDPHQWH R WH[WR Âľ2 )HWLFKLVPR QD 0~VLFD H a RegrHVVmR GD $XGLomRÂś WH[WR GH , uma amostra do que seria posto uma dĂŠcada depois. Por fim, no capĂtulo 3, na fecunda colaboração de Marcela AmĂĄlia Pereira Cabrita e TĂĄssio Ricelly Pinto de Farias, analisa-se a problemĂĄtica do tempo livre, problema que Adorno especificamente se debruçou no texto homĂ´nimo publicado em 1969.
9
Diante dos trĂŞs ensaios aqui esboçados, espero que o leitor tenha em mĂŁos um agradĂĄvel e frutĂfero encontro com Theodor Adorno. O rigor adorniano exige e GHVSHUWD VHPSUH D FUtWLFD UDGLFDO DWLWXGH Mi UDUD GLDQWH GH QRVVR Âł0XQGR $GPLQLVWUDGR´
Jean Henrique Costa MossorĂł, RN, 08 de Junho de 2015
10
CAPÍTULO 1 A ATUALIDADE DA DISCUSSÃO SOBRE A INDÚSTRIA CULTURAL1
A expressão Indústria Cultural (Kulturindustrie) foi cunhada pela primeira vez em 1947, por Theodor W. Adorno e Max Horkheimer, nos fragmentos filosóficos reunidos sob o título de Dialética do Esclarecimento, termo que viria contrapor o conceito cultura de massa, por tratar de um fenômeno distinto quanto a sua natureza. Preferiram, então, "[...] usar a expressão 'indústria cultural', para evitar a confusão com uma arte que surgisse espontaneamente no meio popular, que é algo bastante diferente" (FREITAS, 2008, p. 17). Na apreciação de Wolfgang Leo Maar (2003), o termo "cultura de massas" parece indicar uma cultura solicitada pelas próprias massas, fora do alcance da totalização. Contrariamente, o termo "indústria cultural" ressalta o mecanismo pelo qual a sociedade como um todo é construída, sob o escudo do capital, reforçando as condições vigentes. Segundo Gabriel Cohn, trata-se de um conceito elaborado como resposta direta ao conceito de cultura de massa. Ambos compartilham a referência à cultura. "Mas é significativo que, enquanto na expressão 'cultura de massa' ela aparece como nome, na sua contrapartida crítica ela esteja na condição de predicado" (COHN, 1998, p. 18). Em 1962, Adorno (1971, p. 287) chega a afirmar que, ao que tudo indica, "[...] o termo indústria cultural foi empregado pela primeira vez no livro Dialektik der Aufklãrung, que Horkheimer e eu publicamos em 1947, em Amsterdã". Tal oposição conceitual se deveu ao fato da cultura de massa remontar a uma cultura espontaneamente surgida da própria massa, da forma contemporânea chamada de arte popular. Todavia, algo efetivamente distinto ocorre com a indústria cultural. O que importa destacar é que dessa arte popular a indústria cultural se distingue radicalmente: enquanto a cultura popular teria um caráter mais espontâneo e 1 Originalmente publicado na revista Trans/Form/Ação, Marília, UNESP, v. 36, n. 2, p. 135-154, Maio/Ago., 2013.
11
nasceria internamente, numa dada comunidade, a indústria cultural constitui uma manifestação maquinal produzida exteriormente (sob a égide do capital). A indústria cultural é fruto da oportunidade de expansão da lógica do capitalismo sobre a cultura. Não somente esse avanço progressivamente acontece no domínio do cultural, mas também, cada vez mais, nas esferas da biologia (corpo), da natureza, das relações humanas, do conhecimento etc. Como enfatizou Ernest Mandel, existe no capitalismo tardio uma tendência à industrialização das atividades superestruturais, e muitas dessas atividades já se organizam hoje em termos industriais, produzidas para o mercado e para a maximização do lucro: "[...] a poparte, os filmes feitos para a televisão e a indústria do disco são fenômenos típicos da cultura capitalista tardia" (MANDEL, 1985, p. 352). Daí que, para Hullot-Kentor (2008, p. 21), o conceito de indústria cultural em Adorno "[...] nos leva a crer que foi para ele um achado preciso, resultado de uma auscultação minuciosa das tendências históricas, mais do que um neologismo historicamente oportuno". Há, contudo, quem ateste hoje em dia as limitações do conceito e, inegavelmente, a realidade atual é bem distinta daquela vigente no período vital de Theodor W. Adorno e Max Horkheimer. Todavia, suas limitações não invalidam, nem o fenômeno, nem tampouco o método crítico. A indústria cultural está aí! Todos os dias seus produtos, dentre best-sellers, games, filmes e músicas, invadem o cotidiano de bilhões de pessoas. O que dizer, então, dessas cifras? Sumariando, com Costa (2001, p. 110), a heteronomia cultural; a transformação da arte em mercadoria; a hierarquização das qualidades; a incorporação de novos suportes de comunicação pelos setores que já detinham os meios de reprodução simbólica; o caráter de montagem dos produtos; a capacidade destes em prescrever a reação dos receptores; a reprodução técnica comprometendo a autenticidade da arte; o consumidor passivo; a falsa identidade entre o universal e o particular; a técnica como ideologia; o "novo" como manifesto do imediato; e a fraqueza do "eu" apontam para a continuidade da administração da cultura. Dessa forma, o conceito, além de atual, faz-se empiricamente demonstrável. Segundo afirma Crochík (2008, p. 304), "[...] certamente Adorno escreveu em outro tempo e
12
em outros lugares, mas a regressão individual como fruto do avanço da sociedade da administração prossegue". O capitalismo continua a liquidar, não com o trabalho, mas com o trabalhador, e, para além disso, a criação de necessidades supérfluas vem se ampliando. Logo, parte importante das limitações impostas ao debate deriva mais do fundamento não-dialético dos que apontam sua restrição do que da própria energia da teorização. Os críticos - precariamente críticos! - suprimem a dialética em Adorno e, ingenuamente, acreditam estar o autor superado.
Uma vez que ela [a crítica cultural] retira o espírito da dialética que este mantém com as condições materiais, passa a concebê-lo unívoca e linearmente como um princípio de fatalidade, sonegando assim os momentos de resistência do espírito. (ADORNO, 2001, p. 13).
Certamente o grande entrave do conceito de indústria cultural, no âmbito das ciências sociais, deva-se à não mensurabilidade dos efeitos advindos dessa produção cultural de massa. Adorno reconhece essa impossibilidade. Para ele, com razão, "[...] não é possível estabelecer com clareza um nexo causal, por exemplo, entre as 'repercussões' das músicas de sucesso e seus efeitos psicológicos sobre os ouvintes" (ADORNO, 1991, p. 93). Apesar desse impasse entre a especulação filosófica e a verificação empírica, a contenda acerca do problema em tese não invalida sua autoridade, nem tampouco suas propriedades relacionais. Algumas teorias sociais hoje, embora reconheçam o peso de determinados arranjos sociais para a explicação sociológica, apregoam certa reflexividade do sujeito no direcionamento de suas vidas, baseando-se, ora no avanço dos processos de racionalização e secularização, ora em perspectivas fenomenológicas (mundos vividos). Algumas teorias derivam mais da ênfase do papel do indivíduo na vida social; outras destacam mais a própria sociedade como estrutura coercitiva, que préexiste ao indivíduo. Individualismos metodológicos afirmam, em certo sentido, que o conceito de indústria cultural possui forte dimensão determinista, pois coloca o indivíduo como ente muito passivo frente as suas escolhas. Ora, tais posições são parciais, uma vez que não há determinismo no conceito de indústria cultural. Não há
13
simplesmente imposição de cima para baixo. Estrategicamente, a indústria cultural lança no mercado coisas que são representações dos próprios consumidores, criadas antes por sugestão e fortalecidas pelo cerco sistemático de sua exposição 2. O próprio Adorno reconhece que os consumidores não são estúpidos. A indústria cultural sempre conta com um pouco de bom senso por parte de seus consumidores (FREITAS, 2005). A aceitação sem resistência - ou com pouca - não deriva simplesmente das necessidades intrínsecas ao indivíduo, já que seria uma explicação muito banal. Prescreve-se, logicamente, o que conjunturalmente permite ser prescrito. Todavia, não se cria o produto e se joga para o consumidor (numa lógica fordista). Pelo contrário, estuda-se o consumidor e se lança a mercadoria (sugerem-se necessidades, expressão do espírito toyotista). Não há puramente uma questão de autonomia, mas um jogo entre quem sabe as regras e quem não as conhece (ou não quer conhecer). "A verdade em tudo isso é que o poder da indústria cultural provém de sua identificação com a necessidade produzida" (ADORNO; HORKHEIMER, 1985, p. 113). Adorno e Horkheimer (1985), na Dialética do Esclarecimento, abrem o problema da indústria cultural afirmando que o declínio da religião no mundo ocidental, decorrente do avanço dos processos de racionalização e secularização (reflexão weberiana por excelência), não causou um caos cultural pela falta de uma unidade de referência coletiva, pois o cinema, o rádio e as revistas se constituíram num substituto para ela. Com o avanço da produção e do uso desses sucedâneos, o núcleo essencial da discussão reside em torno da problematização acerca da indústria cultural e seu caráter mistificador (fetichista) da realidade e coisificador 3 do homem. Adorno e Horkheimer constatam que o cinema e o rádio, por exemplo, não precisam mais se camuflar de arte, uma vez que o caráter de mercadoria já está 2 "Pela via do fetichismo da mercadoria, o modo de produção impõe formas determinadas que, como 'consciência' sujeitada, reproduzem a sujeição ao mesmo tempo em que geram experiências substitutivas pelas quais aparentam se constituir como sujeitos livres" (MAAR, 2002, p. 100). 3 "Em Marx por razões diversas, as mercadorias passam a ser ativas e o indivíduo se isola e se fragmenta pela divisão social do trabalho", transformando o homem em estatuto de coisa (MATOS, 2005, p. 18). Eric Fromm (1965, p. 82) também partilha desse argumento, uma vez que "[...] o homem transformou a si mesmo numa mercadoria, e sente sua vida como um capital a ser investido com lucro".
14
estampado em cada um deles. Música, cinema, literatura magazine etc., tudo está a serviço do mercado. "A verdade de que não passam de um negócio, eles a utilizam como uma ideologia destinada a legitimar o lixo que propositalmente produzem" (ADORNO; HORKHEIMER, 1985, p. 100). Para eles, o novo não é a atitude comercial da obra de arte, mas o fato de hoje serem, de fato, indústrias como tal, renegando a própria ideia de arte. Um primeiro norte metodológico deve ser colocado, neste momento, em termos de orientação teórica. Segundo Durão (2008, p. 39), "[...] uma das armadilhas mais traiçoeiras no estudo contemporâneo da indústria cultural está na facilidade de adotar uma postura moralizante" diante do assunto, na tendência a lamentar acerca da qualidade dos produtos culturais ofertados. Opondo-se a essa visão, deve-se lembrar que o que determina o funcionamento da indústria cultural a princípio não possui ligação direta com o termo "qualidade", mas com a acumulação de capital. Não se trata em si de considerar a dimensão qualitativa, porém, essencialmente a sua extensão quantitativa. O que puder se transformado em venda, será, pois, objeto da indústria cultural: do funk carioca à massificação de Cds de Beethoven. Até mesmo a morte, isto é, a exposição de situações-limite, torna-se objeto de venda, conforme problematização de Zuin (2008), ao refletir sobre o projeto do filme holandês Necrocam4. Faz-se mister apontar uma segunda orientação teórica: a crítica à mercantilização da cultura não deve ser feita do ponto de vista da "inferioridade cultural". Contra tal postura moralizante, deve-se dar um enfoque dialético aos fenômenos. A dialética adorniana é uma dialética negativa (conforme sua obra-prima de 1966), que, afirmando e negando Hegel, consegue dar primazia ao momento de negatividade da análise. Segundo Zuin, Pucci e Ramos-de-Oliveira (2001, p. 76-77), a dialética tradicional significa elementos contraditórios que se negam num dos momentos do processo lógico, mas que se compõem, no momento posterior. Há, portanto, a ideia de conciliação de contrários. Utiliza-se do elemento negativo a Prova de que na sociedade atual, até mesmo a morte se metamorfoseia em espetáculo: projeto de um filme em que o cadáver teria uma microcâmera no caixão e, on line, os internautas poderiam controlar, via termostato, o processo de decomposição do corpo (ZUIN, 2008). 4
15
serviço de um resultado positivo. Em Adorno, há uma proeminente diferença. Segundo afirma, mais especificamente no prefácio da Dialética Negativa, deve-se "[...] libertar a dialética de tal natureza afirmativa, sem perder nada em determinação" (ADORNO, 2009, p. 07). Adorno dará um peso maior ao elemento negativo. Nele, a negatividade é o momento propulsor da dialética, ponto de partida de crítica do princípio da identidade e ponto final como possibilidade de uma nova situação. Tratase de um método para se pensar e agir sobre a consciência reificada. Dentre aqueles autores que realizaram uma crítica não-dialética da "trivialidade" dos bens culturais, reconhecidos por Adorno, destaca-se Aldous Huxley. De acordo com Almeida, Adorno e Horkheimer perceberam Huxley como um nome importante no conjunto de pensadores, da primeira metade do século XX, que realizaram uma crítica não-dialética da cultura. Huxley, mesmo tratando o tema sob a ótica da vulgaridade dos bens de massa, trouxe uma distinção muito clara entre "[...] o sentido tradicional da 'cultura' e os avanços, já historicamente visíveis, da 'massa', da 'barbárie', ou mesmo da 'vulgaridade' (como prefere Huxley)" (ALMEIDA, 2008, p. 140). Adorno (2001, p. 92), no texto Aldous Huxley e a utopia, reconhece que o ponto de partida de Brave New World "[...] parecer ser a percepção da semelhança universal de tudo o que é produzido em massa, sejam coisas ou homens. A metáfora schopenhaueriana da manufatura da natureza é tomada ao pé da letra". Huxley estava atento às modificações no âmbito da cultura, contudo, conforme Almeida (2008), percebeu-as através de simples oposições entre civilização contra barbárie; elite contra massa; prazer real contra prazer administrado; liberdade contra submissão à diversão industrializada. Carece a Huxley, portanto, assumir o caráter histórico, fundamentado pelo modo de produção econômico, dessas oposições. "Elas são, de alguma forma, 'naturalizadas', transformadas em 'destino', sem que haja nenhum modo de reação que não seja o puramente individual [...]" (ALMEIDA, 2008, p. 144). Huxley, então, "[...] fetichiza o fetichismo da mercadoria" (ADORNO, 2001, p. 110), ao separar as relações de produção de seu modo de produção.
16
Slavoj äLåHN (2003) igualmente ressalta a necessidade de não se reduzir algumas perspectivas mais enérgicas a uma mera crítica cultural. Para ele, esse tipo de crítica tem sido feita até mesmo pelos conservadores da sociedade de consumo. Retomando as implicações do problema, o resultado desse processo de tentativa de fetichização do mundo, seja da consciência em si, seja do próprio método de análise - não há como esquecer de Agnes Heller (1991) e a sociologia como desfetichização da modernidade 5 - , é a "liquidação" da Ideia de indivíduo. O conceito de reificação não é só relevante como alargamento do conceito de alienação, como concretamente observável na aceitação naturalizada das mercadorias surgidas sob o rótulo de culturais. Reforçando com as palavras de Erich Fromm (1965, p. 85), "[...] os homens são, cada vez mais, autômatos que fazem máquinas que agem como homens e produzem homens que agem como máquinas". Lucien Goldmann (1980, p. 172) vem afirmar categoricamente que uma das "[...] características fundamentais da sociedade capitalista é a de mascarar as relações sociais entre os homens e as realidades espirituais e psíquicas, dando-lhes o aspecto de atributos naturais das coisas ou de leis naturais". Desse princípio é que emerge a reflexão marxista da reificação, em alemão, Verdinglichung. Assim esclarece Tom Bottomore (2001, p. 314): Reificação é o ato (ou resultado do ato) de transformação das propriedades, relações e ações humanas em propriedades, relações e ações de coisas produzidas pelo homem, que se tornaram independentes (e que são imaginadas como originalmente independentes) do homem e governam sua vida. Significa igualmente a transformação dos seres humanos em seres semelhantes a coisas [...] A reificação é um caso 'especial' de alienação, sua forma mais radical e generalizada [...].
Nesse sentido, o clássico ensaio de Georg Lukács - a reificação e a consciência do proletariado - é expressão da maior vitalidade no estudo da dialética marxista e, com ela, o debate sobre a reificação. Para ele, "[...] o homem é confrontado com sua Em Agnes Heller (1991, p. 208), diga-se de passagem, "[...] não há sociologia sem uma certa medida de reificação; a metodologia científica inclui a reificação", já que trabalha-se com categorias analíticas que são exteriores aos sujeitos e a investigação. "Adorno, por exemplo, afirmou que as mentes dos sujeitos individuais na sociedade capitalista moderna já tinham sido reificadas e, portanto, o sociólogo empírico incorre numa dupla reificação: a do método de pesquisa e a que decorre da aceitação de sujeitos reificados como fontes de informações verídicas" (HELLER, 1991, p. 210).
5
17
própria atividade, com seu próprio trabalho como algo objetivo, independente dele e que o domina por leis próprias, que lhes são estranhas" (LUKÁCS, 2003, p. 199). Como lembra Max Horkheimer (2007, p. 133), "[...] a máquina expeliu o maquinista; está correndo cegamente no espaço". Lukács reforça que, assim como o capitalismo se produz e reproduz incessantemente, a reificação penetra na estrutura da consciência humana de maneira cada vez mais profunda. Desse modo, a reificação se amplia com o progresso, substituindo relações originais que antes eram mais transparentes em termos de relações humanas por relações mais parcelizadas e mais fragmentadas. O essencial é entender que a reificação atinge a todos: "Não há uma diferença qualitativa na estrutura da consciência" (LUKÁCS, 2003, p. 219). David Harvey (1994, p. 308) também realça esse caráter de ocultação da realidade essencialmente ligado ao avanço da reprodução do capital: "[...] o processo mascara e fetichiza, alcança crescimento mediante a destruição criativa, cria novos desejos e necessidades, explora a capacidade do trabalho e do desejo humanos". Assim, o resultado é a exaustão do indivíduo. Vale lembrar que, em Adorno, a reificação não deve ser simplesmente eliminada, mas pensada como forma determinada. "O real não deve ser eliminado como absoluto, mas negado em sua determinação, superado" (MAAR, 2002, p. 03). Olgária Matos (2005, p. 50), de tal modo, com base na Teoria Crítica, lembra que o "[...] indivíduo autônomo, consciente de seus fins, está em extinção, em desaparecimento". Domingues (2001, p. 79), da mesma forma, salienta que Adorno e Horkheimer constatam analiticamente
pouca
importância ao indivíduo na
modernidade (devido ao bloqueio estrutural da práxis transformadora): "[...] na verdade, descrevem o que viam como declínio da individualidade". O pensamento adorniano citado em Habermas é elucidativo: "[...] a experiência individual apóia-se necessariamente no antigo sujeito - historicamente já condenado - 'que ainda é para si, mas não mais em si'" (HABERMAS, 1990, p. 142). Por conseguinte, nas palavras de Adorno e Horkheimer (1985, p. 128), por um lado, "[...] a individuação jamais chegou a se realizar de fato". Contudo, mesmo
18
assim, a sociedade burguesa, "[...] contra a vontade de seus senhores", transformou os homens de crianças em pessoas, mas à custa de uma individualidade muito indigente e ilusória. Para Freitas (2005), trata-se de uma individualidade frustrada diante de si mesma, já que está muito aquém de seus projetos. Precisamente, Zuin (2001, p. 11) enfatiza que "[...] tal debilitação da individualidade é o resultado de um processo social que tem como principal característica a universalização do princípio da lógica da mercadoria, tanto na dimensão objetiva como na subjetiva". Nesse sentido - e Lukács já alertara para tal fato -, a reificação ocorre tanto na realidade objetiva quanto na subjetiva. Tanto as relações mercantis quanto a consciência se tornam naturalizadas. A indústria cultural, que não deve ser entendida no sentido estrito da expressão, progrediu graças ao avanço técnico do capitalismo. Segundo Morin (1967, p. 24), "[...] sin el impulso prodigioso del espíritu capitalista, esas invenciones [novas artes técnicas] no hubieran conocido sin duda un desarrollo tan radical y masivamente orientado". Como reforça Adorno, "[...] no capitalismo - isso é uma lei essencial - o que existe só pode ser considerado na medida em que se amplia e se expande" (ADORNO, 2008a, p. 122). Os elementos constitutivos da indústria cultural, ou seja, diversão, entretenimento, prazer etc., já existiam antes mesmo de ela vir à tona. Contudo, o que o século XX viu surgir foi uma imensa maquinaria voltada à comercialização da cultura. Nesse meio, o próprio interior de uma obra artística foi encerrado, quer dizer, a Ideia de autor, o seu caráter de individualidade estética. "A indústria cultural desenvolveu-se com o predomínio que o efeito, a performance tangível e o detalhe técnico alcançaram sobre a obra, que era outrora veículo da Idéia e com essa foi liquidada" (ADORNO; HORKHEIMER, 1985, p. 103-104). Destarte, os bens da indústria cultural, grosso modo pensando as maiores cifras (racionalizadas, massificadas e padronizadas), são essencialmente mercadorias. São criados para cumprir a função de valor de troca. A racionalidade estética é abandonada em prol da racionalidade instrumental. Zuin (2001, p. 10), sumariamente, afirma que uma produção cultural submetida "[...] quase que por completo ao seu
19
caráter de valor afasta-se de si própria, ou seja, termina por negar toda possibilidade de felicidade ao dissimular um verdadeiro estado de liberdade". Padilha (2002) menciona que essa industrialização crescente e suas características mais importantes, na produção de mercadorias, estão também presentes na produção cultural desde o final do século XIX. O cinema e a televisão, por exemplo, obedeceram às mesmas regras da grande indústria: produção em série, divisão racional do trabalho e padronização. Morin (1967, p. 37) ainda realça esse aspecto, ao ressaltar que "[...] el gran arte nuevo, arte industrial tipo, el cine, ha instituido una rigurosa división del trabajo, análoga a la que se opera en una fábrica [...]". Dessa forma, a cultura produzida pela indústria cultural é padronizada e baseiase num gosto médio de um público que não tem tempo nem interesse em questionar o que consome. Os meios de comunicação de massa procuram, através de um mundo mágico, naturalizar as regras do jogo social, veiculando códigos serializados para qualquer um em toda a parte do planeta (PADILHA, 2002). Basicamente em boa parte da produção cultural - da indústria cultural - a qualidade estende-se, antes de qualquer coisa, não por um dado qualitativo conforme já alertou Durão (2008) -, mas por cifras de quanto já vendeu e de quanto irá render ainda. "O denominador comum 'cultura' já contém virtualmente o levantamento estatístico, a catalogação, a classificação que introduz a cultura no domínio da administração" (ADORNO; HORKHEIMER, 1985, p. 108). As diferenças de qualidade atribuídas aos filmes, livros e músicas têm mais a ver com a sua utilidade de venda do que com sua qualidade intrínseca. Por isso, para que todos possam ser atingidos pela mão invisível da indústria cultural, as próprias distinções são criadas, cunhando, assim, um certo ar de opção. "As vantagens e desvantagens que os conhecedores discutem servem apenas para perpetuar a ilusão da concorrência e da possibilidade de escolha" (ADORNO; HORKHEIMER, 1985, p. 101-102). Esperadamente, como sequelas desse processo, mecanismos diversos da ideologia disseminam que tal produção só existe porque há homens livres e capazes desejando o consumo. O princípio liberal da competência individualista se mostra também eficiente na indústria cultural: tudo pode ser vendido e comprado. No texto
20
Crítica cultural e sociedade, Adorno (2001, p. 21) já se manifestara sobre o tema: "[...] hoje 'ideologia' significa sociedade enquanto aparência". Dessa forma, em Adorno a ideologia deixa de ser falsa consciência para se tornar propaganda do mundo: "[...] a organização do mundo converteu-se a si mesma imediatamente em sua própria ideologia" (ADORNO, 2006, p. 143). ³Não há mais ideologia no sentido próprio de falsa consciência, mas somente propaganda a favor do mundo, mediante a sua duplicação e a mentira provocadora, que não pretende ser acreditada, mas que pede o silêncio´ (ADORNO, 2001, p. 25). Por conseguinte, a indústria cultural consegue, no mesmo espaço, obter sucesso de venda em objetos díspares. Pensem, por exemplo, nos programas de auditório, no qual "[...] os 'enternecidos' apresentadores transitam, com espantosa facilidade, entre o relato da filha que foi estuprada pelo próprio pai e os produtos de limpeza do patrocinador" (ZUIN, 2008, p. 55). É como se a tragédia dos outros (alter) fosse coisa pequena frente à miséria individual de cada um (ego). Nesse sentido, sendo as grandes empresas ligadas ao cinema, à música, às revistas de entretenimento etc. entidades capitalistas que visam ao lucro, não há motivos para desconfiar que seus produtos sejam, quase que literalmente, mercadorias no sentido ríspido do vocábulo. A letra de uma música que é elaborada em um dia, com um instrumental de poucos arranjos, cada um mais dispensável que o outro, tematizando a traição de uma esposa e os lamentos do marido melancólico, não é outra coisa senão uma produção industrial, metaforicamente à maneira de uma indústria que produz uma série de canetas esferográficas. Tudo está a serviço da produção de mercadorias ou, mais além, como prefere Durão (2008, p. 43), da superprodução semiótica: "[...] a própria linguagem, sua natureza e forma de operação, quando completamente submetida à lógica de acumulação de capital". Basta que se observe hoje, além dos avanços das tecnologias midiáticas, suas manifestações empíricas: existem filmes em ônibus, insistentes comerciais em camisetas, outdoors humanos etc.; ou seja, há toda uma crescente produção de mensagens a serviço da indústria cultural.
21
Nesse clima industrial da cultura, canções e filmes estandardizados nascem e renascem a cada dia. Às vezes, muda o formato, mas a essência permanece. De todo jeito, é sempre a mesma coisa. De marido traído a temática passa para a mulher submissa; do homem namorador, muda-se para um amor impossível etc. Não apenas músicas de sucesso nascem diariamente, mas também bandas, cantores, astros e novelas "[...] ressurgem ciclicamente como invariantes fixos, mas o conteúdo específico do espetáculo é ele próprio derivado deles e só varia na aparência" (ADORNO; HORKHEIMER, 1985, p. 103). Para Adorno e Horkheimer, cada filme é um trailer do filme seguinte, bem como cada música, seja no conteúdo, seja na montagem do produto. O público se contenta com a reprodução do que é sempre o mesmo. "Essa mesmice regula também as relações com o que passou. O que é novo na fase da cultura de massas em comparação com a fase do liberalismo avançado é a exclusão do novo. A máquina gira sem sair do lugar" (ADORNO; HORKHEIMER, 1985, p. 111). A indústria cultural consiste, portanto, na repetição do idêntico. O princípio maior da indústria cultural é a diversão, o entretenimento. Diversão! Palavra tão mencionada pelos apologistas da indústria cultural e tão indigesta (faca de dois gumes). A diversão, nos termos mais genéricos da indústria cultural - diga-se de passagem - , oferece exaustivamente a fuga do cotidiano. Eis o que proporciona a indústria cultural. Fuga! Ernest Mandel esclarece tal proposição:
Para o indivíduo cativo, cuja vida é inteiramente subordinada às leis do mercado não apenas (como no século XIX) na esfera da produção, mas também na esfera do consumo, da recreação, da cultura, da arte, da educação e das relações pessoais parece impossível romper a prisão social. A 'experiência cotidiana' reforça e interioriza a ideologia neofatalista da natureza da ordem social do capitalismo tardio. Tudo o que resta é o sonho da fuga - por meio do sexo e das drogas, que por sua vez são imediatamente industrializados (MANDEL, 1985, p. 352).
Logo, "[...] a indústria cultural está corrompida, mas não como uma Babilônia do pecado, e sim como catedral do divertimento de alto nível" (ADORNO; HORKHEIMER, 1985, p. 118). Antecipa-se que o divertimento - protocolarmente da indústria cultural, em si, não possibilita capacidade de resistência. Tem grande
22
probabilidade de ser mera diversão, distração. Não oferece, em si, possibilidade de emancipação, nem crítica ao status quo. Conforme destacam Adorno e Horkheimer (1985, p. 119), "[...] divertir-se significa estar de acordo [...] É na verdade uma fuga, mas não [...] uma fuga da realidade ruim, mas da última idéia de resistência que essa realidade ainda deixa subsistir". Para pensar o grande desafio da primeira geração da Teoria Crítica, era preciso ponderar "[...] as formas aparentemente mais inofensivas de condução da vida no mundo contemporâneo [...], em busca do que nelas possa haver de regressivo" (COHN, 1998, p. 14). Portanto, não há forma aparentemente mais inofensiva do que a ocupação do tempo supostamente livre. Logo, como resultado de um "divertir" nada afetuoso, termina a grande parte da população envolvida numa forma de dominação muito sutil e, por isso mesmo, mais perigosa. "Assim como o Pato Donald nos cartoons, assim também os desgraçados na vida real recebem a sua sova [surra] para que os espectadores possam se acostumar com a que eles próprios recebem" (ADORNO; HORKHEIMER, 1985, p. 114). O humor triunfa sobre a própria (im)possibilidade de mudança da situação vigente. A arte, como possibilidade de emancipação, de expressão diante do mundo administrado, é abandonada por um humor que nada tem de engraçado, salvo a própria infelicidade de quem ri. A indústria cultural, ofertando cada vez mais seus produtos a um público sempre maior e propiciando diversão sempre "revigorada", oferece algo ao povo e, ao mesmo tempo, priva-o de outra. Oferece diversão, mas priva-o da possibilidade de uma vida com mais sentido. Com a indústria cultural, abre-se o sonho capitalista de uma educação plenamente produtivista e consumista. Como sabiamente alertou, já no século XVI, Étienne de La Boétie (2009, p. 48), "[...] o homem é naturalmente livre e quer sê-lo, mas sua natureza é tal que se amolda facilmente à educação que recebe". Por isso, não tem sido tarefa abstrusa acomodar os homens segundo os clichês da indústria cultural, pois, como lembra Horkheimer, no reconhecido estudo sobre Autoridade e Família: não é apenas a coação imediata que faz os homens obedecerem a ordens,
23
"[...] mas os próprios homens [que] aprenderam a acatá-las" (HORKHEIMER, 2008, p. 192). Para Adorno, o clímax dessa situação é atingido quando os esquemas da indústria cultural não permitem mais a evasão ou a dificultam estruturalmente. Segundo aponta, a astrologia representa um dos exemplos mais basilares dessa sujeição. Caso um astrólogo prescreva a um de seus leitores/clientes guiar cuidadosamente seu automóvel, num determinado dia chuvoso, certamente tal conselho não lesará ninguém. Contudo, "[...] prejudicial é a estultice implícita na reivindicação de que esse conselho, válido para qualquer dia e, portanto imbecil, tenha requerido a consulta aos astros" (ADORNO, 1971, p. 294). Perante a indústria cultural e seus meios de divertimento, pouca coisa (ou quase nada) pode ser considerada inofensiva. O aforismo nº 5 de Minima Moralia muito habilmente traz essa reflexão a partir da vida lesada:
Nada mais é inofensivo. As pequenas alegrias, as expressões da vida que parecem isentas de responsabilidade do pensamento não só contêm um elemento de obstinada tolice, de impassível endurecimento, como se põem imediatamente a serviço do seu extremo oposto. (ADORNO, 2008b, p. 21).
Disso decorre que o cerco da indústria cultural é vigoroso. Não se trata de um conceito-fetiche6, mas de um conceito eminentemente ligado ao seu tempo social, que, em termos de expansão do capitalismo, não se encerrou. Para Gabriel Cohn (1998), a atualidade do conceito de indústria cultural reside essencialmente em dois aspectos centrais: a ideia de que seus produtos são oferecidos em sistema (o assédio sistemático de tudo para todos) e a noção de que a sua produção obedece prioritariamente a critérios administrativos de controle sobre os efeitos no receptor (capacidade de prescrição de desejos).
6 Uma vez que "[...] o desencantamento do conceito é o antídoto da filosofia, ele impede o seu supercrescimento: ele impede que ela se autoabsolutize" (ADORNO, 2009, p. 19).
24 Remete à ideia de uma articulação crescente entre todos os ramos de um empreendimento produtor e difusor de mercadorias simbólicas sob o rótulo de cultura, de tal modo que o consumidor se encontre cercado de maneira cada vez mais cerrada por uma rede ideológica com crescente consistência interna [...] O componente crítico básico consiste aqui na ideia de que nos produtos da indústria cultural os múltiplos níveis não são constituídos por significados intrínsecos aos requisitos formais da construção da obra, mas por níveis de efeitos, ou seja, de relações calculáveis entre determinados estímulos emitidos e as percepções ou condutas dos receptores. Não se trata, aqui, de mera 'manipulação'. Trata-se de uma modalidade específica de entidades simbólicas multidimensionais, produzidas e difundidas segundo critérios prioritariamente (mas não exclusivamente, embora no limite o sejam) administrativos, relativos ao controle sobre os efeitos no receptor e não segundo critérios prioritariamente estéticos, relativos às exigências formais intrínsecas à obra. (COHN, 1998, p. 20-21).
O cerco sobre o indivíduo tem sido crescentemente elevado. "[...] com falsa unção a indústria cultural proclama orientar-se pelos consumidores e lhes oferecer aquilo que desejam para si" (ADORNO, 2008b, p. 196). Assim, enquanto ela desaprova toda possibilidade de autonomia do indivíduo, consegue por tabela aprovar a heteronomia. Da mesma maneira, a capacidade de prescrição sobre o consumidor se constitui em seu grande trunfo. "Não é bem que a indústria cultural se adapte às reações dos clientes, mas sim que elas as finge" (ADORNO, 2008b, p. 197). Por isso, a resistência se torna obstruída mediante tamanhas artimanhas administradas no âmbito da cultura. Evidentemente, muitas desigualdades hegemônicas da vida social podem não ser estruturadamente criadas pela indústria cultural, mas, aqui e ali, reforçam-se nesse tipo-modelo de consumidor. A indústria cultural "[...] los convierte en lo que ya son, sólo que con mayor intensidad de lo que efectivamente son" (ADORNO, 1969, p. 64). Não se trata, todavia, de insistir em modelos teóricos pautados essencialmente contra a indústria cultural. Deve-se ter cuidado, pois "[...] o empenho desmistificador é valioso mas não garante a eficácia da desmistificação [e] a ideologia pode estar no excesso como na insuficiência" (KONDER, 2002, p. 258-259). É mister salientar que, por um lado, conforme realça Konder (2002), não há imunidade contra as ações sutis da ideologia. Ela se manifesta tanto na abstração quanto na empiria; tanto na pretensão à universalidade quanto na resignação à
25
particularidade. Por outro lado, "[...] ao mesmo tempo em que se iludem, os indivíduos inquietos podem questionar suas próprias ilusões" (KONDER, 2002, p. 259). Logo, não se trata de estar a favor, nem contra. A presente discussão não está numa "guerra cultural7". Algumas análises são essencialmente contra o esboçado na presente reflexão sobre a indústria cultural, alegando sempre elitismo valorativo, excesso de especulação, busca por pureza conceitual e visão de homogeneização onde se verifica diferenciação. No mais, na análise dos meios de comunicação de massa e do consumo popular, de fato, esses elementos são questionáveis se levados ao extremo. Todavia, é possível efetuar uma análise pujante da indústria cultural abrindo mão desses quatro equívocos analíticos. E Adorno, na medida do possível, a fez! Primeiramente, se elitismo for analisar criticamente os processos capitalistas e não se deixar encantar por uma suposta diversidade também capitalistamente criada 8, o debate adorniano é, sim, elitista. Aliás, em Adorno, há uma crítica da cultura como espírito reservado. Segundo afirma, "[...] ciega es la creencia en una Geiteskultur [cultura do espírito], que, en virtud de su ideal de pureza autosuficiente, renuncia a la efectivización de su contenido y deja librada la realidad al poder y su ceguera" (ADORNO, 1973, p. 102); em segundo lugar, somente uma leitura apressada de Adorno diria que ele vê as massas através da aludida pureza conceitual "perdida". Em Adorno, o capitalismo já se encarregou de transformar tanto Mozart quanto Aviões do Forró em mercadorias; por fim, a indústria cultural no atual estágio de acumulação capitalista não é uma produção de base fordista, mas, de fato, flexível (toyotista). Logo, a diferenciação é sua marca: diferenciação sempre indiferenciada, mas existente. Assim, evitando suprimir a dialética em Adorno, e também evitando as relações causais e substancialistas, é necessário perpetrar uma tentativa de reequacionamento da relação entre estrutura e ação na análise da indústria cultural, mostrando, para além das ideologias e para além das resistências, uma tensão entre "A expressão 'guerras culturais' sugere batalhas campais entre populistas e elitistas, entre guardiões do cânone e partidários da différence..." (EAGLETON, 2005, p. 79). 8 "[...] considero esse tão falado pluralismo como em grande medida ideológico. Ou seja, porque creio que a coexistência das forças é efetivamente capturada e determinada em sua aparência pelo sistema social em que vivemos e tudo domina" (ADORNO, 2008a, p. 130). 7
26
elas. Contudo, a presente reflexão procura evitar um equilíbrio entre os dois lados do campo de forças (dominação e resistência), uma vez que o lado estruturado vem demonstrando uma grande potência em criar e sustentar disposições estéticas. Ou seja, nas palavras de Adorno, há uma desproporção real entre o poder e a impotência social. La desproporción, que se vuelve desmesurada, entre poder e impotencia sociales se prolonga en el debilitamiento de la composición interna del yo, hasta el punto de que este no se mantiene sin identificarse con lo que, precisamente, lo condena a la impotencia. (ADORNO, 1973, p. 22).
A indústria cultural é atual, vigorosa, e sua força vem desequilibrando insistentemente esse campo. Os indivíduos não são padecentes culturais, mas vivem em estruturas que igualmente não são. O resultado tem sido a expansão crescente do poder da indústria cultural. Se esse tipo de evidência não for semiformação (Halbbildung), no sentido adorniano, não há o que dizer mais acerca das ideologias como instrumentos de reprodução do status quo, isto é, como esquiva dos "[...] contactos que pudieran sacar a luz algo de su carácter sospechoso" (ADORNO, 1966, p. 196). Como desfecho, nem tudo é alienação, bem como nem tudo pode ser resumido a uma compreensão de contextos estruturados, na qual a dominação é tomada simplesmente como modo de vida (cultura vivida). A busca de uma síntese epistemológica para essa dualidade - todavia, que não se abstenha de expor o tema da consciência reificada - foi o intento crítico desta reflexão, bem como, igualmente, expor que a indústria cultural contribui decisivamente para a manutenção de certos contextos estruturados de dominação. A potência do conceito adorniano está aí. Só não enxerga aquele que abate a dialética e/ou faz da diversidade cultural uma propaganda do mundo.
27
REFERÊNCIAS
ADORNO, Theodor W. Dialética negativa. Tradução de Marco Antonio Casanova. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2009. ______. Introdução à sociologia. Tradução de Wolfgang Leo Maar. São Paulo: Editora UNESP, 1968/2008a. ______. Minima moralia: reflexões a partir da vida lesada. Tradução de Gabriel Cohn. Rio de Janeiro: Beco do Azougue, 2008b. ______. Educação e emancipação. Tradução de Wolfgang Leo Maar. 4. ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2006. ______. Prismas: crítica cultural e sociedade. Tradução de Augustin Wernet e Jorge Mattos Brito de Almeida. São Paulo: Ática, 2001. ______. O fetichismo na música e a regressão da audição. In: ADORNO, Theodor W; HORKHEIMER, Max. Textos escolhidos. Tradução de Zejko Loparic et alii. 5. ed. São Paulo : Nova Cultural, 1991 (Coleção Os Pensadores, 16). ______. Consignas. Traducción de Ramón Bilbao. Buenos Aires: Amorrortu, 1973. ______. A indústria cultural. In: COHN, Gabriel. Comunicação e indústria cultural. São Paulo: Nacional; Editora da Universidade de São Paulo, 1971. ______. Intervenciones: nueve modelos de crítica. Traducción de Roberto J. Vernengo. Caracas: Monte Ávila, 1969. ______. Teoría de la pseudocultura. In: ADORNO, Theodor W; HORKHEIMER, Max. Sociológica. Traducción de Víctor Sánchez de Zavala. Madrid: Taurus, 1966. ______; HORKHEIMER, Max. Dialética do esclarecimento: fragmentos filosóficos. Tradução de Guido Antonio de Almeida. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1985. ALMEIDA, Jorge. Theodor Adorno, leitor de Aldous Huxley: tempo livre. In: DURÃO, Fábio A.; ZUIN, Antonio; VAZ, Alexandre F. (Org.). A indústria cultural hoje. São Paulo: Boitempo, 2008. BOTTOMORE, Tom (Org.). Dicionário do pensamento marxista. Tradução de Waltensir Dutra. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2001.
28
COHN, Gabriel. A atualidade do conceito de indústria cultural. In: MOREIRA, Adalberto da Silva (Org.). Sociedade global: cultura e religião. Petrópolis, RJ: Vozes, 1998. COSTA, Belarmino César Guimarães da. Barbárie estética e produção jornalística: a atualidade do conceito de indústria cultural. Educação & Sociedade, ano XXII, nº 76, p. 106-120, out. 2001. CROCHÍK, José Leon. T. W. Adorno e a psicologia social. Psicologia & Sociedade, 20(2), p. 297-305, 2008. DOMINGUES, José Maurício. Teorias sociológicas no século XX. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2001. DURÃO, Fábio A. Da superprodução semiótica: caracterização e implicações estéticas. In: DURÃO, Fábio A.; ZUIN, Antonio; VAZ, Alexandre F. (Org.). A indústria cultural hoje. São Paulo: Boitempo, 2008. EAGLETON, Terry. A ideia de cultura. Tradução de Sandra Castello Branco. São Paulo: UNESP, 2005. FREITAS, Verlaine. Adorno e a arte contemporânea. 2. ed. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2008. ______. Indústria cultural: o empobrecimento narcísico da subjetividade. Kriterion, Belo Horizonte, n. 112, p. 332-344, dez. 2005. FROMM, Erich. O dogma de Cristo e outros ensaios sobre religião, psicologia e cultura. 2. ed. Tradução de Waltensir Dutra. Rio de Janeiro: Zahar, 1965. GOLDMANN, Lucien. A reificação das relações sociais. In: FORACCHI, Marialice M; MARTINS, José de Souza. Sociologia e sociedade: leituras de introdução à sociologia. Rio de Janeiro: Livros Técnicos e Científicos, 1980. HABERMAS, Jürgen. Theodor W. Adorno - pré-história da subjetividade e autoafirmação selvagem. In: FREITAG, Bárbara; ROUANET, Sergio Paulo. Habermas. 2. ed. São Paulo: Ática, 1990 (Coleção Grandes Cientistas Sociais, nº 15). HARVEY, David. Condição pós-moderna: uma pesquisa sobre as origens da mudança cultural. Tradução de Adail Ubirajara Sobral e Maria Stela Gonçalves. 4. ed. São Paulo: Loyola, 1994.
29
HELLER, Agnes. A sociologia como desfetichização da modernidade. Tradução de Maria Helena Souza Patto. Novos Estudos CEBRAP, n. 30, p. 204-214, jul. 1991. HORKHEIMER, Max. Teoria crítica: uma documentação (tomo I). Tradução de Hilde Cohn. São Paulo: Perspectiva, 2008. ______. Eclipse da razão. Tradução de Sebastião Uchoa Leite. 7. ed. São Paulo: Centauro, 2007. HULLOT-KENTOR, Robert. Em que sentido exatamente a indústria cultural não mais existe. In: DURÃO, Fábio A.; ZUIN, Antonio; VAZ, Alexandre F. (Org.). A indústria cultural hoje. São Paulo: Boitempo, 2008. LA BOÉTIE, Étienne de. Discurso da Servidão Voluntária. Tradução de Casemiro Linarth. São Paulo: Martin Claret, 2009 (Edição Bilíngue Português/Francês). KONDER, Leandro. A questão da ideologia. São Paulo: Companhia das Letras, 2002. LUKÁCS, Georg. A reificação e a consciência do proletariado. In: ______. História e consciência de classe: estudos sobre a dialética marxista. Tradução de Rodnei Nascimento. São Paulo: Martins Fontes, 2003. MAAR, Wolfgang Leo. Adorno, semiformação e educação. In: Educação e Sociedade. Campinas, vol. 24, n. 83, p. 459-476, ago. 2003. ______. A perspectiva dialética em Adorno e a controvérsia com Habermas. In: Trans/Form/Ação, São Paulo, 25, p. 87-105, 2002. MANDEL, Ernest. A ideologia na fase do capitalismo tardio. In: ______. O capitalismo tardio. Tradução de Carlos Eduardo Silveira Matos et al. 2. ed. São Paulo: Nova Cultural, 1985. MATOS, Olgária C. F. A Escola de Frankfurt: luzes e sombras do Iluminismo. 2. ed. São Paulo: Moderna, 2005. MORIN, Edgar. La industria cultural. In: ADORNO, Theodor W; MORIN, Edgar. La industria cultural. Buenos Aires: Galerna, 1967. PADILHA, Valquíria. A indústria cultural e a indústria do lazer: uma abordagem crítica da cultura e do lazer nas sociedades capitalistas globalizadas. In: MÜLLER, Ademir; DACOSTA, Lamartine Pereira (Org.). Lazer e desenvolvimento regional. Santa Cruz do Sul: EDUNISC, 2002.
30
ZIZEK, Slavoj. De história e consciência de classe à dialética do esclarecimento, e volta. Tradução de Bernardo Ricupero. Lua Nova, n. 59, p. 159-175, 2003. ZUIN, Antonio Álvaro Soares. Morte em vídeo: Necrocam e a indústria cultural hoje. In: DURÃO, Fábio A.; ZUIN, Antonio; VAZ, Alexandre F. (Org.). A indústria cultural hoje. São Paulo: Boitempo, 2008. ______. A vingança do fetiche: reflexões sobre indústria cultural, educação pela dureza e vício. Educ. Soc.,Campinas, vol. 27, n. 94, p. 71-90, jan./abr., 2006. ______. Sobre a atualidade do conceito de indústria cultural. Cadernos Cedes, ano XXI, n. 54, p. 09-18, ago. 2001. ______; PUCCI, Bruno; RAMOS DE OLIVEIRA, Newton. Adorno: o poder educativo do pensador crítico. 3. ed. Petrópolis: Vozes, 2001.
31
CAPĂ?TULO 2
REVISITANDO O DEBATE SOBRE O FETICHISMO NA MĂ&#x161;SICA E A REGRESSĂ&#x192;O DA AUDIĂ&#x2021;Ă&#x192;O9
$ GLVFXVVmR GR WH[WR Âł2 IHWLFKLVPR QD P~VLFD H D UHJUHVVmR GD DXGLomR´ Âą Ă&#x153;ber Fetischcharakter in der Musik und die Regression des HĂśrens (ADORNO, 1991) Âą, de 1938, embora escrito antes mesmo da DialĂŠtica do Esclarecimento (1947), expressa muito do entusiasmo criador do debate em torno do projeto adorniano de uma sociologia crĂtica da mĂşsica. O escrito ĂŠ uma contestação ao texto GH %HQMDPLP Âła obra de arte na era de sua reprodutibilidade tĂŠcnica´ (QTXDQWR Benjamim assinalava para as possibilidades abertas advindas das novas tecnologias midiĂĄticas e as conseqßências positivas abertas pela dessacralização da obra de arte, Adorno percebia o seu lado negativo, ou seja, o consumo fetichizado, passivo, regressivo10. Adorno (1991) inicia o texto afirmado que as reclamaçþes acerca da decadĂŞncia do gosto musical sĂŁo bastante antigas, e que, sempre que a chamada paz PXVLFDO VH PRVWUD SHUWXUEDGD HPHUJH D H[SUHVVmR ÂłGHFDGrQFLD GR JRVWR´ &RQWXGR para ele, o prĂłprio conceito de gosto estĂĄ superado, uma vez que a existĂŞncia de um indivĂduo com liberdade de escolha se encontra limitada sob a ĂŠgide do Mundo Administrado (verwaltete Welt). Essas queixas sobre a degeneração do gosto se baseiam em consideraçþes muito sentimentais, acrĂticas e saudosistas, que louvam um passado que muito pouco difere do presente. Para Adorno, a realidade produz a ilusĂŁo de se desenvolver a
9 Originalmente publicado na revista Trilhas Filosóficas ¹ Revista Acadêmica de Filosofia, UERN, CaicóRN, ano V, n. 1, p. 59-76, jan.-jun. 2012. 10 ³<R VXEUD\DED OD SUREOHPiWLFD GH OD LQGXVWULD GH OD FXOWXUD \ ODV DFWLWXGHV FRUUHVSRQGLHQWHV PLHQWUas que %HQMDPLQ D PL MXLFLR WUDWDED GH ¾VDOYDUœ FRQ GHPDVLDGD LQVLVWHQFLD HVD SUREOHPiWLFD HVIHUD´ $'2512 1973, p. 111).
32
partir de cima, mas no fundo, segue sendo o que era 11 (ADORNO, 1973, p. 42). AlĂŠm disso, na mĂşsica a idĂŠia de gosto ĂŠ ainda mais controversa quando se compreende a OyJLFD GD SURGXomR GD LQG~VWULD FXOWXUDO Mi TXH ÂłDR LQYpV GR valor da prĂłpria coisa, o FULWpULR GH MXOJDPHQWR p R IDWR GH D FDQomR GH VXFHVVR VHU FRQKHFLGD GH WRGRV´ (ADORNO, 1991, p. 79). Gostar de algo ĂŠ quase que idĂŞntico a reconhecĂŞ-lo e, nesse mundo de mercadorias padronizadas e racionalizadas Âą na mĂşsica ou fora dela Âą, esse comportamento valorativo torna-se muito questionĂĄvel. As crĂticas adornianas se dirigem Ă categoria de arte ligeira (popular), em contraposição a uma suposta arte autĂ´noma. Uma preocupação basilar em Adorno reside no carĂĄter de educação que a mĂşsica sĂŠria pode proporcionar aos indivĂduos, que, alĂŠm de ser residual sob o domĂnio da indĂşstria cultural, nĂŁo estaria veiculada nos meios de comunicação de massa. Logo, o que a empiria vem demonstrando ĂŠ um quadro infausto: massificação da mĂşsica ligeira, que alĂŠm de quase nada (ou pouco) educar, fortemente contribui para desviar a atenção do pĂşblico das contradiçþes estruturais da realidade. Como inferĂŞncia mais genĂŠrica, pode-VH GL]HU TXH ÂłDR LQYpV de entreter, parece que tal mĂşsica [ligeira] contribui ainda mais para o emudecimento dos homens, para a morte da linguagem como expressĂŁo, para a incapacidade de FRPXQLFDomR´ $'2512 S Mas, de fato, o que significa mĂşsica popular (ligeira) para Theodor W. Adorno? O que define a mĂşsica sĂŠria, ou seja, aquilo que foge ao padrĂŁo da indĂşstria cultural? Adorno, em colaboração de George Simpson no inĂcio da dĂŠcada de 1940 Âą mais especificamente entre 40 e 41 Âą, termina o seu escrito Sobre MĂşsica Popular (On Popular Music), avançando na discussĂŁo acerca do fetichismo na mĂşsica e a regressĂŁo da audição. Para eles, a mĂşsica costuma ser diferenciada, com freqßência, a partir de distinçþes de nĂveis (qualidade). Essa diferença ĂŠ tĂŁo aceita que cada um mede o valor de cada tipo de mĂşsica como totalmente independente da outra. Adorno nĂŁo concorda com tal classificação e afirma que o fator decisivo na diferenciação 11 /D UHDOLGDG SURGXFH OD LOXVLyQ GH GHVDUUROODUVH GHVGH DUULED \ HQ HO IRQGR VLJXH VLHQGR OR TXH HUD´ (ADORNO, 1973, p. 42).
33
entre música sÊria e música popular GHYH VHU R FRQFHLWR GH ³estandardização´ (padronização). AtravÊs deste critÊrio pode ser alcançada uma distinção concreta e mais precisa. Assim sendo, a estrutura da música popular (ligeira) Ê uma estrutura padronizada, atÊ mesmo quando se tenta desviar desse padrão, de tal modo que nesse modelo de música ligeira atÊ mesmo os detalhes são padronizados, atravÊs dos chamados break, blue chords, dirty notes.
Toda a estrutura da mĂşsica popular ĂŠ estandardizada, mesmo quando se busca desviar-se disso. A estandardização se estende dos traços mais genĂŠricos atĂŠ os mais especĂficos. Muito conhecida ĂŠ a regra de que o chorus [a parte temĂĄtica] consiste em trinta e dois compassos e que a sua amplitude ĂŠ limitada a uma oitava e uma nota. Os tipos gerais de hits sĂŁo tambĂŠm estandardizados: nĂŁo sĂł os tipos de mĂşsica para dançar, cuja rĂgida padronização se compreende, mas tambĂŠm os tipos ÂľFDUDFWHUtVWLFRVÂś FRPR DV FDQo}HV GH QLQDU FDQo}HV IDPLOLDUHV ODPHQWRV SRU XPD garota perdida. E, o mais importante, os pilares harmĂ´nicos de cada hit Âą o começo e o final de cada parte Âą precisam reiterar o esquema-padrĂŁo. Esse esquema enfatiza os mais primitivos fatos harmĂ´nicos, nĂŁo importa o que tenha intervindo em termos de harmonia. Complicaçþes nĂŁo tĂŞm conseqßências. Esse inexorĂĄvel procedimento garante que, nĂŁo importa que aberraçþes ocorram, o hit acabarĂĄ conduzindo tudo de volta para a mesma experiĂŞncia familiar, e que nada de fundamentalmente novo serĂĄ introduzido (ADORNO; SIMPSON, 1994, p. 116117).
3RU VXD YH] FRP D P~VLFD VpULD RFRUUH R FRQWUiULR Âł&DGD GHWDOKH GHULYD R VHX sentido musical da totalidade concreta da peça, que, em troca, consiste na viva relação entre os detalhes, mas nunca na mera imposição de um esquema musical 12´ (ADORNO; SIMPSON, 1994, p. 117). Prontamente, cada detalhe estĂĄ conexo com o todo e o todo sĂł adquire sua expressĂŁo com a conexidade dos detalhes, sempre indispensĂĄveis. Assim, ĂŠ a totalidade concreta da peça quem domina. Na mĂşsica ligeira o sentido da totalidade da peça nĂŁo ĂŠ afetado caso algum detalhe seja alterado, uma vez que toda a estrutura musical nĂŁo passa de um automatismo. Os detalhes sĂŁo substituĂveis, Ă maneira de uma engrenagem de mĂĄquina. Outra diferença geralmente colocada, e tambĂŠm insuficiente, tem sido o critĂŠrio GD FRPSOH[LGDGH GD SHoD PXVLFDO Âł7RGDV DV REUDV GR SULPHLUR FODVVLFLVPR YLHQHQVH 12 Âł3RU exemplo, na introdução do primeiro movimento da SĂŠtima sinfonia, de Beethoven, o segundo tema (em dĂł maior) sĂł alcança o seu verdadeiro significado a partir do contexto. Somente atravĂŠs do todo ĂŠ que ele adquire a sua peculiar qualidade lĂrica e expressiva, isto ĂŠ, uma construção inteiramente contrastante com o carĂĄter como que de cantus firmus do primeiro tema. Tomado isoladamente, o segundo tema seria reduzido j LQVLJQLILFkQFLD´ $'2512 6,03621 S
34
sĂŁo, sem exceção, ritmicamente mais simples GR TXH DUUDQMRV URWLQHLURV GH MD]]´ EHP FRPR ÂłRV ODUJRV LQWHUYDORV GH QXPHURVRV hits como Deep Purple ou Sunrise Serenade sĂŁo per se mais difĂceis de seguir que a maioria das melodias de, por H[HPSOR +D\GQ´ $'2512 6,03621 S 1HVWH VHQWLGo, da mesma forma que a diferença de nĂvel nĂŁo pode figurar como critĂŠrio de distinção, a complexidade igualmente nĂŁo define o valor de uma peça musical. De tal modo, para Adorno, a sumĂĄria diferença entre a natureza das peças musicais reside no fato de que, na mĂşsica sĂŠria em geral (vale salientar que tambĂŠm existe uma parte da mĂşsica sĂŠria submetida Ă indĂşstria cultural), o detalhe contĂŠm o Âł7RGR´ 1D P~VLFD SRSXODU D UHODomR p PHUDPHQWH DFLGHQWDO 1HVWD R Todo nĂŁo ĂŠ alterado pelo evento individual. Essa mĂşsica ligeira como elemento do fetichismo e da audição regressiva revela traços bĂĄsicos definidores de sua condição padronizada. Primeiramente, a divisĂŁo do trabalho existente entre compositor, harmonizador e arranjador simula algo quase industrial, no qual ocorre uma divisĂŁo de funçþes e sua posterior montagem do produto. Em segundo lugar, a imitação ĂŠ outra condição basal dessas mĂşsicas de sucesso. Por estarem submetidas Ă lei do valor de troca, estĂŁo logicamente imbuĂdas num mercado competitivo, portanto, nada mais natural que um hit de sucesso busque copiar a fĂłrmula de sucesso de outro. Uma terceira caracterĂstica ĂŠ dada pela inserção da mĂşsica ligeira no mercado fonogrĂĄfico, atravĂŠs do que Adorno e Simpson (1994, p. 125) chamaram de plugging, ou seja, a repetição incessante de um hit particular de modo a tornĂĄ-lo um sucesso UHFRQKHFtYHO $PSOLDQGR HVVD QRomR ÂłD SURPRomR SHOR plugging almeja quebrar a resistĂŞncia ao musicalmente sempre-igual ou idĂŞntico, fechando, por assim dizer, as vias de fuga ao sempre-LJXDO´ Na mesma mĂŁo, a mĂşsica que se propĂľe ao sucesso tambĂŠm deve apresentar certo glamour, ou seja, ter carĂĄter de show, de entretenimento. Esse glamour de certa forma leva a um comportamento infantil, jĂĄ que a representação do divertimento ĂŠ
35
buscada para relaxar do esforço, do trabalho, enfim, fuga do mundo da responsabilidade. Evidentemente, o carĂĄter empresarial da mĂşsica ligeira tambĂŠm nĂŁo foi deixado de lado na anĂĄlise adorniana. Percebe-se que a mĂşsica ligeira pertence a determinados grupos e, deste modo, tambĂŠm faz parte do circuito geral do valor. DaĂ que, adotando-se de forma competente as fĂłrmulas mencionadas anteriormente, ÂłGHVGH TXH R PDWHULDO SUHHQFKD UHTXLVLWRV PtQLPRV TXDOTXHU FDQomR SRGH VHU promovida e transformada num sucesso, se houver uma adequada conexĂŁo entre JUDYDGRUDV QRPHV GH FRQMXQWRV PXVLFDLV HVWDo}HV GH UiGLR H ILOPHV´ $'2512 SIMPSON, 1994, p. 125). Como seqĂźela de toda essa estrutura promocional, surge a expressĂŁo regressĂŁo da audição, podendo ser mais bem entendida DWUDYpV GR DGiJLR TXH GL] ÂłVH QLQJXpP PDLV p FDSD] GH IDODU UHDOPHQWH p yEYLR WDPEpP TXH Mi QLQJXpP p FDSD] GH RXYLU´ (ADORNO, 1991, p. 80). A audição regressiva ĂŠ encontrada, pois, no ouvinte que nĂŁo deseja pensar no Todo. O ouvinte regredido torna-se um consumidor passivo, mero comprador de mĂşsicas que proporcionam o prazer imediato. CrochĂk (2008) enfatiza esse aspecto ao mostrar que a mĂşsica era, e ainda hoje ĂŠ, vista como um mero meio de entretenimento, sem nenhuma implicação polĂtica, dimensĂŁo que Adorno muito lhe atribuiu. O modo de comportamento perceptivo, atravĂŠs do qual se prepara o esquecer e o rĂĄpido recordar da mĂşsica de massas, ĂŠ a desconcentração. Se os produtos normalizados e irremediavelmente semelhantes entre si exceto certas particularidades surpreendentes, nĂŁo permitem uma audição concentrada sem se tornarem insuportĂĄveis para os ouvintes, estes, por sua vez, jĂĄ nĂŁo sĂŁo absolutamente capazes de uma audição concentrada [...] De vez em quando se ouvirĂĄ a opiniĂŁo de que o jazz ĂŠ sumamente agradĂĄvel num baile e horrĂvel de ouvir (ADORNO, 1991, p. 96).
A mĂşsica sob o domĂnio da indĂşstria cultural possibilita um prazer superficial que rejeita no prazer a prĂłpria noção de prazer, pois as mĂşsicas de sucesso, variantes da indĂşstria do entretenimento, impedem qualquer avanço crĂtico-intelectual. Para Adorno o que regride de fato ĂŠ a possibilidade de se chegar a um outro conhecimento
36
consciente sobre mĂşsica, ou seja, a liberdade de escolha frente Ă outra mĂşsica oposta a estandardização. Como exemplo, Adorno realizou, em 1938, um estudo do entĂŁo consagrado programa de educação musical clĂĄssica pelo rĂĄdio, o The NBC Music Appreciation Hour Conducted by Walter Damrosch (CARONE, 2003). O artigo de Adorno, intitulado The analytical study of the NBC Music Appreciation Hour, na ĂŠpoca, nĂŁo agradou ninguĂŠm, segundo apreciação contida em Carone (2003). Por quĂŞ? -XVWDPHQWH SRUTXH ÂłDWDFDYD XP SURJUDPD HGXFDWLYR DSDUHQWHPHQWH VHP ILQV comerciais e nĂŁo lucrativo, promovido pela rede para pessoas em idade escolar [...] TXH QmR SRGLDP WHU R SULYLOpJLR GH IUHT HQWDU DV JUDQGHV VDODV GH FRQFHUWRV´ (CARONE, 2003, p. 478). De acordo com Carone, Adorno argumentou que o programa de rĂĄdio falhava em transmitir uma verdadeira experiĂŞncia musical, jĂĄ que era pautado numa estĂŠtica do efeito, que reduzia a apreciação musical ao prazer ou Ă diversĂŁo derivados da audição. Embora o conceito de indĂşstria cultural ainda nĂŁo tivesse sido formulado na DialĂŠtica do Esclarecimento, Adorno jĂĄ percebera o carĂĄter prĂŠ-digerido da filosofia do Programa. Este foi o ponto principal da crĂtica de Adorno ao programa de HGXFDomR PXVLFDO SHOR UiGLR ÂłVH R HIHLWR p R SURSyVLWR GD P~VLFD VpULD HQWmR D ÂľERD P~VLFDÂś p DTXHOD TXH VDWLVID] R RXYLQWH H QDGD H[LJH GHOH´ &$521( S 487). A popular Hora de Damrosch, que era seguida com muita atenção por seu aporte nĂŁo comercial e que pretendia promover a educação musical, defendia falsas informaçþes sobre a mĂşsica e uma imagem absolutamente distorcida desta [ADORNO, 1973, p. 121, tradução nossa]13.
Quatro inferĂŞncias do estudo podem ser ilustrativas dessa crĂtica ao programa da NBC. A primeira mostrou que a noção de apreciação consistia na ideia do efeito sobre o ouvinte, interpretada em termos de prazer ou diversĂŁo. Esses princĂpios sĂŁo, todavia, termos emprestados da indĂşstria do entretenimento e, em si, sĂŁo superficiais Âł> @ OD SRSXODU +RUD GH 'DPURVFK TXH HUa seguida con mucha atenciĂłn por su aporte no comercial y que pretendĂa promover la educaciĂłn musical, defendĂa falsas informaciones sobre la mĂşsica y una imagen DEVROXWDPHQWH GLVWRUVLRQDGD GH HVWD´ $'2512 S
13
37
e nĂŁo conduzem a uma concreta experiĂŞncia musical. Para Adorno, a noção de "apreciação", como empregada pela The Music Appreciation Hour, baseava-se na idĂŠia de efeitos da mĂşsica sobre o ouvinte, interpretada em termos de "prazer" e "diversĂŁo". Estes princĂpios levam a distorçþes de sentido musical, pelo menos se sĂŁo tratados da forma como a Hora de Damrosch lidava com eles14. A segunda inferĂŞncia demonstrou que a filosofia do Programa confundia reconhecimento com compreensĂŁo musical. Embora Adorno alerte que o reconhecimento seja necessĂĄrio ao entendimento musical, nĂŁo se trata de coisas idĂŞnticas. Para ele, o que ocorria no Programa era o fetichismo da propriedade do conhecimento musical. Segundo afirma, a filosofia do The Music Appreciation Hour concebia a diversĂŁo proporcionada pela mĂşsica como sendo praticamente idĂŞntica a compreensĂŁo. Embora o reconhecimento possa contribuir para a compreensĂŁo musical, de modo algum isto ĂŠ, por si sĂł, um processo idĂŞntico. Caso contrĂĄrio, qualquer coisa profundamente nova seria excluĂda a priori15. Diante disso, a mĂşsica reconhecida se tornava uma propriedade daquele ouvinte expert em termos de estoque musical. Como terceira advertĂŞncia, Adorno apontou que a estrutura desse tipo de educação musical promovia um certo culto de pessoas em vez de uma compreensĂŁo concreta da experiĂŞncia musical, o que terminava por aumentar o prestĂgio da NBC. A estrutura autoritĂĄria deste tipo de educação musical promovia um culto de pessoas em vez de uma compreensĂŁo dos fatos. Assim, havia a promoção do nome do Dr. Damrosch, cuja autoridade foi um meio de aumentar o prestĂgio da NBC com os ouvintes do The Music Appreciation Hour. Estas caracterĂsticas do Programa praticamente produziam uma pseudo-cultura musical: o apreciador ideal de mĂşsica, Âł7KH QRWLRQ RI ÂľDSSUHFLDWLRQÂś Ds employed by the Music Appreciation Hour, is based upon the idea of PXVLFÂśV HIIHFW XSRQ WKH OLVWHQHU LQWHUSUHWHG LQ WHUPV RI ÂľSOHDVXUHÂś RU HYHQ ÂľIXQÂś 7KHVH SULQFLSOHV ERUURZHG from the sphere of commercialized entertainment, and shallow in themselves, lead, even if excusable as pedagogically expedient in inducing people to listen, to distortions of musical sense and cultural absurdities, DW OHDVW LI WKH\ DUH KDQGOHG LQ WKH ZD\ WKH +RXU KDQGOHV WKHP´ $'2512 S . 15 Âł7KH 0XVLF $SSUHFLDWLRQ +RXU FRQFHLYHV RI ÂľIXQÂś RQH JHWV RXW PXVLF DV EHLQJ SUDFWLFDOO\ LGHQWLFDO ZLWK recognition. Although recognition may contribute to musical understanding, it is by no means alone identical with such understanding. Otherwise anything profoundly new would be excluded a priori. Actually, what RFFXUV LQ WKH +RXU LV D VKLIWLQJ RI WKH ÂľIXQÂś IURP D OLIH-relationship with music, to a fetishism of ownership of PXVLFDO NQRZOHGJH E\ URWH´ $'2512 S . 14
38
do ponto de vista da Hora, seria um Babbitt16 >ÂłreferĂŞncia ao personagem George Babbitt, de Sinclair Lewis, que simboliza a mediocridade cultural do homem norteamericano´17]. Por fim, a cultura pseudo-musical do Hour se tornava mais marcante atravĂŠs das tĂŠcnicas mecânicas de ensino por meio do efeito do reconhecimento. Ao invĂŠs de promover uma compreensĂŁo real da mĂşsica, apenas se disseminavam informaçþes mecânicas. A tendĂŞncia em direção a pseudo-cultura musical se tornava mais marcante no ponto exato onde a The Music Appreciation Hour aparentemente tentava ÂłDWLYDU´ VHXV RXYLQWHV RX VHMD QRV WHVWHV TXH HUDP XWLOL]DGRV SHOR 3URJUDPD (VWHV testes utilizavam tĂŠcnicas mecânicas de aprendizagem. NĂŁo eram aplicĂĄveis aos fenĂ´menos concretos de escuta 18. Deste modo, a conclusĂŁo do estudo de Adorno revelou que, embora o Programa nĂŁo aparecesse como um negĂłcio em sentido aberto, ainda assim possuĂa as marcas da indĂşstria do entretenimento, jĂĄ que a intenção educativa tinha sido sabotada por uma intenção comercial nĂŁo confessa: vender mĂşsica clĂĄssica, alĂŠm de comercializar a imagem da NBC (CARONE, 2003). Tratava-se aĂ do interesse no desinteresse. Ă&#x2030; conveniente apontar que em Adorno nĂŁo hĂĄ um excesso de mĂĄ vontade para com a mĂşsica ligeira; nem tampouco apego valorativo pela mĂşsica sĂŠria. Em nenhuma das duas categorias ocorre juĂzo de valor. Para ele, a modificação de função atinge todos os tipos de mĂşsica e nĂŁo somente a ligeira. Nesse sentido, Adorno argumenta que uma parte da mĂşsica sĂŠria se tornou independente do consumo, Âł7KH DXWKRULWDULDQ VWUXFWXUH RI WKLV W\SH RI PXVLFDO HGXFDWion, promotes a cult of persons instead of an understanding of facts. In the first place, there is the name of Dr. Damrosch himself, whose authority, at the same time, is a means of enhancing the prestige of NBC with the listeners in the Hour. The actual measuring rod for musical personalities in the Hour is success. The conformist attitude of veneration for the successful is closely allied, in musical matters, with a profoundly reactionary attitude. These features of the Hour virtually produce a musical pseudo-culture: the ideal music appreciator, from the viewpoint of the Hour, ZRXOG EH D PXVLFDO %DEELWW´ $'2512 S 17 (CARONE, 2003, p. 491). 18 Âł7KH WHQGHQF\ WRZDUG PXVLFDO SVHXGR-culture becomes most striking at the very point where the Music ApSUHFLDWLRQ +RXU DSSDUHQWO\ WULHV WR ÂľDFWLYDWHÂś LWV OLVWHQHUV LQ WKH WHVWV WKDW DUH DSSHQGHG WR HDFK ZRUNVKHHW These employ a mechanical technique, are not applicable to concrete listening phenomena but only to the instruction given by the teacher, and are, as a whole, fit to promote only highly questionable information DERXW PXVLF DQG QRW DFWXDO PXVLFDO XQGHUVWDQGLQJ´ $'2512 S
16
39
enquanto que o resto desta mesma mĂşsica sĂŠria tambĂŠm foi submetida Ă lei do FRQVXPR 6HJXQGR DILUPD ÂłRXYH-se tal mĂşsica sĂŠria como se consome uma mercadoria adquirida no mercado. Carecem totalmente de significado real as GLVWLQo}HV HQWUH D DXGLomR GD P~VLFD ÂľFOiVVLFDÂś RILFLDO H GD P~VLFD OLJHLUD´ (ADORNO, 1991, p. 84). Retomando o fio condutor da discussĂŁo, com a regressĂŁo da audição, abre-se um caminho mais dilatado para a indĂşstria cultural, produtora do ouvido regredido e indutora de mais regressĂŁo. O fetichismo musical escancarado pela indĂşstria cultural passa, entĂŁo, a mostrar suas conseqßências. Por exemplo, uma delas ĂŠ a valorização pĂşblica dada Ă s vozes dos cantores. Para Adorno (1991), em outros tempos, exigia-se dos cantores alto virtuosismo tĂŠcnico. Hoje, ter boa voz e ser cantor jĂĄ ĂŠ modus operandi do sucesso. Esqueceu-se que a voz ĂŠ, na mĂşsica, apenas um de seus HOHPHQWRV PDWHULDLV XPD SDUWH GD SHoD Âł$JRUD exalta-se o material em si mesmo, GHVWLWXtGR GH TXDOTXHU IXQomR´ $'2512 S Logo, o fetichismo na mĂşsica pode literalmente ser entendido como o fetichismo da mercadoria, da mesma maneira que Marx o descreveu em O Capital. Para Marx (1983), o feWLFKLVPR GD PHUFDGRULD RFRUUH TXDQGR ÂłRV SURGXWRV GR FpUHEUR humano parecem dotados de vida prĂłpria, figuras autĂ´nomas, que mantĂŞm relaçþes HQWUH VL H FRP RV KRPHQV´ 0$5; S (P $GRUQR S SRU VXD YH] ÂłR FRQVXPLGRU ÂľIDEULFRXÂś OLWHUDlmente o sucesso, que ele coisifica e aceita como FULWpULR REMHWLYR SRUpP VHP VH UHFRQKHFHU QHOH´ DaĂ que Adorno ĂŠ enfĂĄtico ao desvendar que a mĂşsica atual ĂŠ dominada pela sua caracterĂstica de mercadoria, sendo inclusive utilizada como instrumento para a propaganda comercial de outras mercadorias. Essa coisificação da mĂşsica torna os ouvidos dĂłceis aos caprichos de um mercado nada preocupado com a condição de regressĂŁo da audição. O consumidor ĂŠ, pois, prĂŠ-fabricado pela indĂşstria cultural. Ouve-se a mĂşsica conforme toda a esquematização jĂĄ prĂŠ-estabelecida. Formas de resistĂŞncias sĂŁo anuladas pelas estratĂŠgias comerciais, jĂĄ que a fetichização musical GLILFLOPHQWH VHULD ÂłSRVVtYHO VH KRXYHVVH UHVLVWrQFLD SRU SDUWH GR S~EOLFR VH RV
40
ouvintes ainda fossem capazes de romper, com suas exigĂŞncias, as barreiras que GHOLPLWDP R TXH R PHUFDGR OKHV RIHUHFH´ $'2512 S Adorno, contudo, nĂŁo caminha no sentido de observar um nexo causal entre as mĂşsicas de sucesso e seus efeitos sobre os ouvintes. Todavia, coerente para com a afirmação que os indivĂduos jĂĄ nĂŁo estĂŁo em si, assevera dizer que a idĂŠia de um ouvinte atualmente influenciado se tornou vaga. Quem nĂŁo estĂĄ em si mesmo tambĂŠm nĂŁo pode ser influenciado integralmente. Essa situação de fetichismo na mĂşsica e regressĂŁo da audição contribui com o estado de enfermidade conservadora do pĂşblico. Praticamente nessa conjuntura se torna intricado pensar para alĂŠm dessa situação infantil geral. Adorno insiste numa argumentação que ĂŠ bastante limitada em muitos GH VHXV FUtWLFRV ÂłRV RXYLQWHV H consumidores em geral precisam e exigem exatamente aquilo que lhes ĂŠ imposto LQVLVWHQWHPHQWH´ $GRUQR HP PRPHQWR DOJXP HVWi VHQGR GHWHUPLQLVWD TXDQWR DR SHVR GRV DUUDQMRV LQVWLWXFLRQDLV $SHQDV HVWi FRORFDQGR TXH R ÂłFDUiWHU fetichista da mĂşsica produz, atravĂŠs da identificação dos ouvintes com os fetiches lançados no mercado, o VHX SUySULR PDVFDUDPHQWR´ $'2512 S 7UDWD-se de uma dominação perspicaz na qual o dominado entra no esquema da indĂşstria cultural e nĂŁo deseja mais sair. Por duas razĂľes: 1ÂŞ. Dificuldade estrutural de saĂda do cerco sistĂŞmico e crescente da indĂşstria cultural; 2ÂŞ. Mesmo tomando consciĂŞncia, nĂŁo quer admitir que seja uma espĂŠcie de receptĂĄculo. Assim, permanece como um elemento a mais no engodo das massas. Todo esse esquematismo pode ser identificado pela produção musical de massa que, como substância, fortemente corrobora com o ouvinte regredido e sua condição de infantilidade. Contudo, mesmo esse ouvido regredido ao consumir a mĂşsica ligeira nĂŁo o faz com a consciĂŞncia tĂŁo tranqĂźila. Conforme Adorno (1991, p. 99), a ambivalĂŞncia dos ouvintes pacientes da regressĂŁo encontra a sua fĂłrmula no seguinte IDWR ÂłWRGD YH] TXH WHQWDP OLEHUWDU-se do estado passivo de consumidores sob coação e procuram tornar-VH ÂľDWLYRVÂś FDHP QD SVHXGR-DWLYLGDGH´ (P RXWUDV SDODYUDV VmR ainda mais iludidos. Todavia, e essa ĂŠ uma observação importante que Adorno nos RIHUHFH ÂłPHVPR QD UHQ~QFLD j SUySULD OLEHUGDGH QmR VH WHP FRQVFLrQFLD WUDQT LOD DR
41
mesmo tempo que sentem prazer, no fundo as pessoas percebem-se traidoras de uma SRVVLELOLGDGH PHOKRU´ $'2512 S Esse movimento de produção musical com carĂĄter estandardizado causa certo desconforto ao ouvido regredido mais atento, jĂĄ que algo que ontem o encantava agora deve causar repĂşdio. Segundo avalia, esse ouvinte gostaria de ridicularizar aquilo que ontem mesmo o agradava, mas nĂŁo o faz por razĂľes de bloqueio estrutural H SHOD QHJDomR GH VXD SUySULD VXMHLomR e FRPR VH HOH TXLVHVVH VH YLQJDU Âła posteriori GHVWH IDOVR HQFDQWDPHQWR´ $'2512 S &RPR MXVWLILFDWLYD SDUD D permanĂŞncia na audição regressiva, redime-VH SHOD DOHJDomR TXH ÂłQHOD R FDUiWHU GD ÂľDXUDÂś GD REUD GH DUWH RV HOHPHQWRV GH VXD DXUpROD RX DSDUrQFLD H[WHUQD FHGHP HP favor do purameQWH O~GLFR´ $'2512 S Nesse Ănterim, um elemento paradoxal surge: para uma mĂşsica ligeira fazer sucesso ela precisa conter traços que a diferencie das demais, mas, ao mesmo tempo, deve conter ainda o completo esquematismo das demais cançþes. Em outras palavras: deve ser igual e diferente concomitantemente. Eis aĂ uma situação embaraçada para os managers do entretenimento de massa. Adorno e Simpson ilustram que uma audição mais atenta das mĂşsicas estandardizadas poderia ser a condenação de seu sucesso, jĂĄ que o ouvinte logo se cansaria delas. Por outro lado, se nĂŁo se presta DWHQomR D FDQomR QmR SRGH VHU YHQGLGD Âł,VVR HP SDUWH H[SOLFD R HVIRUoR constantemente renovado de limpar do mercado seus novos produtos, de afugentĂĄ-los para os seus tĂşmulRV H GHSRLV UHSHWLU D PDQREUD LQIDQWLFLGD VHPSUH GH QRYR´ (ADORNO; SIMPSON, 1994, p. 137). Morin (1967, p. 30) esclarece oportunamente esse antagonismo mercadolĂłgico: a indĂşstria cultural deve vencer, pois, constantemente, uma contradição fundamental entre suas estruturas burocratizadas-estandardizadas e a originalidade do produto que ela deve fornecer19. Logo, como saĂda e desenlace desse antagonismo entre o diferente e o igual coexistentes na mĂşsica, ocorre a pseudoindividuação, isto ĂŠ, a envoltura da produção cultural de massa com a falsa idĂŠia da livre-escolha. A ÂłOD LQGXVWULD FXOWXUDO GHEH YHQFHU SXHV FRQVWDQWHPHQWH XQD FRQWUDGLFFLyQ IXQGDPHQWDO HQWUH VXV estructuras burocratizadas-VWDQGDUGL]DGDV \ OD RULJLQDOLGDG GHO SURGXFWR TXH HOOD GHEH VXPLQLVWUDU´ 025,1 1967, p. 30).
19
42
padronização dos hits PXVLFDLV ÂłPDQWpP RV XVXiULRV HQTXDGUDGRV SRU DVVLP GL]HU escutando por eles. A pseudoindividuação, por sua vez, os mantĂŠm enquadrados, fazendo-os esquecer que o que eles HVFXWDP Mi p VHPSUH HVFXWDGR SRU HOHV ÂľSUHGLJHULGRϫ $'2512 6,03621 S $ SVHXGRLQGLYLGXDomR GLIHUHQFLD algo que, em si, jĂĄ ĂŠ indiferenciado. Busca dizer que os indivĂduos sĂŁo livres para escolher o que, na verdade, jĂĄ estĂĄ escolhido previamente. Como jĂĄ alertado, nĂŁo ĂŠ que a indĂşstria cultural impere determinando o que se deve ouvir ou nĂŁo. Trata-se de uma dominação muito arguta, na qual o prĂłprio dominado pouco consegue sua libertação; e tambĂŠm, mesmo na tomada de consciĂŞncia, nĂŁo deseja sair. 6XPDULDQGR SDUD $GRUQR H 6LPSVRQ S R ÂłSULQFtSLR EiVLFR subjacente a isso ĂŠ o de que basta repetir algo atĂŠ tornĂĄ-lo reconhecĂvel para que ele VH WRUQH DFHLWR´ $ WUDQVIRUPDomR GD UHSHWLomR HP UHFRQKHFLPHQWR H GR reconhecimento em aceitação ĂŠ uma equação doce para a consciĂŞncia reificada. Adorno e Simpson mostram, entĂŁo, os componentes que estĂŁo envolvidos na aceitação das massas. Em primeiro lugar, ao ouvir uma mĂşsica ligeira de sucesso ocorre uma vaga recordação que diz: - ÂłHX GHYR WHU RXYLGR LVVR HP DOJXP OXJDU´. Todo esse crescente processo de estandardização provoca essa vaga recordação. Num segundo momento, ocorre a identificação efetiva que diz: - Âłp LVVR ´. Surge, entĂŁo, o repentino reconhecimento apĂłs o avançar da mĂşsica, uma vez que ĂŠ difĂcil recordar hits tĂŁo parecidos logo nos primeiros acordes. Num terceiro instante ocorre a subsunção por rotulação: a interpretação da experiĂŞncia do Âłp LVVR ´. Esse ĂŠ o elemento crucial do reconhecimento. No momento em que o indivĂduo reconhece o hit, ele sente segurança de estar entre muitos e acompanha a multidĂŁo de todos aqueles que ouviram a canção. O momento seguinte ĂŠ o da autorreflexĂŁo do ato de reconhecer: Âł2K HX VHL GLVVR LVVR ID] SDUWH GH PLP´. Essa transformação da experiĂŞncia em objeto torna-a mais objeto de propriedade do que nunca Âą o fato de que, por se reconhecer uma peça de mĂşsica, se tenha comando sobre ela e se possa reproduzi-la a partir de sua prĂłpria memĂłria. Por fim, ocorre a transferĂŞncia psicolĂłgica da autoridade de reconhecimento para o objeto: Âł,VVR p ERP PHVPR ´.
43
Âł(VVD p D WHQGrQFLD GH WUDQVIHULU D JUDWLILFDomR GD SURSULHGDGH SDUD R SUySULR REMHWR H atribuir a ele, em termos de gosto, de preferĂŞncia ou qualidade objetiva, o prazer da SRVVH TXH VH WHQKD DOFDQoDGR´ $'2RNO; SIMPSON, 1994, p. 134). Essas etapas expressam os processos de aceitação da mĂşsica sob o prisma da indĂşstria cultural. Visam a produção de uma concordância (embora seja importante salientar que a padronização por si mesma nĂŁo implica necessariamente em desindividuação20). Como coroação, nascem e renascem essencialmente mĂşsicas produzidas quase que industrialmente. Enfim, o devir educacional da mĂşsica ĂŠ deixado de lado antes mesmo de sua concepção inicial. Tudo jĂĄ estĂĄ previamente esquematizado. Uma desejĂĄvel emancipação crĂtica do indivĂduo ĂŠ abandonada nos simples atos de consumir e ouvir. Em suas Notas de Literatura PDLV HVSHFLILFDPHQWH QR WH[WR ÂłLĂrica e Sociedade´ $GRUQR DSRQWD TXH R WHRU GH XP SRHPD Âą da arte em geral Âą nĂŁo ĂŠ a simples demonstração de emoçþes, experiĂŞncias individuais e sensaçþes subjetivas. Âł3HOR FRQWUiULR HVWDV Vy VH WRUQDP DUWtVWLFDV TXDQGR MXVWDPHQWH HP YLUWXGH GD especificação que adquirem ao ganhar forma estĂŠtica, conquistam sua participação no XQLYHUVDO´ $'2512 S 66). Para Adorno, a arte nĂŁo pode ser reduzida ao domĂnio do irracionalismo, do mero subjetivismo. Tal concepção seria similar Ă s estratĂŠgias da indĂşstria cultural, jĂĄ que nela permaneceria a consciĂŞncia reificada (ZUIN; PUCCI; RAMOS-DE-OLIVEIRA, 2001). A concepção adorniana de arte Âą aquela que busca escapar da produção da indĂşstria cultural Âą reside em sua XQLYHUVDOLGDGH HVVHQFLDOPHQWH VRFLDO FDSD] GH DSUHVHQWDU D ÂłYR] GD KXPDQLGDGH´ atravĂŠs da construção estĂŠtica. Para ele, a arte, ao invĂŠs de ser mera exposição de SDODYUDV H HPRo}HV WHP GH ÂłHVWDEHOHFHU HP YH] GLVVR FRPR R todo de uma sociedade, tomada como unidade em si mesma contraditĂłria, aparece na obra de arte; PRVWUDU HP TXH D REUD GH DUWH OKH REHGHFH H HP TXH D XOWUDSDVVD´ $'2512 p. 67 $ DUWH GHYH ÂłIDODU´ SRLV R TXH D LGHRORJLD VLOHQFLD 1mR SRGH VHU DOJR puramente individual. Para Adorno, o carĂĄter social da arte deve mostrar, para alĂŠm Âł> @ OD HVWDQGDUGL]DFLyQ SRU Vt PLVPD QR HQWUDxD QHFHVDULDPHQWH OD GHVLQYLGLGXDOL]DFLyQ´ 025,1 p. 39). 20
44
de sua individualidade estĂŠtica, o anĂşncio de uma situação diferente; deve possibilitar uma reação Ă coisificação do homem e do mundo. Segundo mostram Zuin, Pucci e Ramos-de-Oliveira (2001, p. 44), em Adorno nĂŁo se trata de uma arte pura, mas sim, XPD ÂłDUWH FRPR HVFULWXUD GD KLVWyULD OHPEUDQoD GH XPD SRVVLELOLGDGH GH OLEHUGDGH H promessa de uma futuUD OLEHUWDomR´ Freitas (2008), tambĂŠm ancorada no pensamento adorniano, afirma que o carĂĄter fetichista da arte sĂŠria ĂŠ necessĂĄrio Âą expresso pelo preceito da arte pela arte (OÂśDUW pour OÂśDUW) Âą, uma vez que assegura o seu princĂpio antissocial e assegura o desprezo por normas e cĂłdigos prĂŠ-estabelecidos. Por outro lado, paradoxalmente, Adorno recusa a idĂŠia da arte pela arte, dizendo que esta esteriliza o seu potencial crĂtico. A arte possui, entĂŁo, um forte vĂnculo com a sociedade, mas nĂŁo aquele estabelHFLGR ÂłSHOD VXD IXQFLRQDOLGDGH VRFLDO H VLP GHYLGR DR IDWR GH TXH D GLQkPLFD histĂłrica da relação entre os homens [...] reflete-se nos problemas inerentes das IRUPDV GD DUWH FRQWHPSRUkQHD´ )5(,7$6 S $VVLP D DUWH VH DIDVWD H VH aproxima da sociedade para, deste modo, fazer falar o seu silĂŞncio. Como estĂĄ expresso na Teoria EstĂŠtica ÂłD DUWH QHJD DV GHWHUPLQDo}HV FDWHJRULDOPHQWH LPSUHVVDV QD HPSLULD H QR HQWDQWR HQFHUUD QD VXD SUySULD VXEVWkQFLD XP HQWH HPStULFR´ (ADORNO, 2006b, p. 15); ou seja: ÂłD DUWH p R SDUD VL H QmR R p´ (ADORNO, 2006b, p. 17). A arte sĂł pode pretender ser vĂĄlida se carregar implicitamente uma crĂtica Ă s condiçþes de produção, e se se recorda a distância privilegiada que ela guarda dessas condiçþes, esse valor se invalida instantaneamente. Inversamente, a arte sĂł pode ser autĂŞntica se reconhece, silenciosamente, o quĂŁo profundamente estĂĄ comprometida com aquilo a que se opĂľe; mas, ao levar essa lĂłgica muito longe, enfraquece precisamente a sua autenticidade (EAGLETON, 1993, p. 253).
Por conseguinte, conforme nos enfatiza Terry Eagleton (1993, p. 255), a arte Ê, ³DR PHVPR WHPSR XP ser-para-si e um ser-para-a-sociedade´ 'HVWH IXQGDPHQWR båsico os produtos da indústria cultural, sobretudo os mais massificados, padronizados e racionalizados, distinguem-se radicalmente. Perpetram exatamente o oposto, ou seja, aproximam-se da sociedade para, em seguida, silenciå-la.
45
Novamente de acordo com Zuin, Pucci e Ramos-de-Oliveira, a teoria estÊtica adorniana vem mostrar que as obras de arte, alÊm de despertarem o belo e o êxtase, GHYHP SURYRFDU LJXDOPHQWH R HVSDQWR D GRU D HVSHUDQoD H D QHJDomR ³,PSUHVVLRQDP QRVVD VHQVLELOLGDGH H SUHVVLRQDP QRVVD UDFLRQDOLGDGH´ S 'HYH KDYHU assim, um momento mimÊtico no conceitual e um momento racional na arte. Na leitura dos autores, nem a filosofia deve ser estetizada, nem a arte se racionalizar. A experiência estÊtica Ê, por conseguinte, a tensão entre esses dois pólos. Hå na DialÊtica Negativa uma passagem sinóptica dessa tensão:
Arte e filosofia nĂŁo tĂŞm o seu elemento comum na forma ou no procedimento configurador, mas em um modo de comportamento que proĂbe a pseudomorfose. As duas permanecem incessantemente fiĂŠis ao seu prĂłprio teor atravĂŠs de sua oposição; a arte, na medida em que se enrijece contras as suas significaçþes; a filosofia, na medida em que nĂŁo se atĂŠm a nenhuma imediatidade (ADORNO, 2009, p. 21-22).
Essa perspectiva renovadora de Adorno ĂŠ observada na Teoria EstĂŠtica, obra publicada postumamente em 1971, no qual, em um contexto marcado por conflitos, a arte pode interiorizĂĄ-los e elaborĂĄ-los como experiĂŞncia estĂŠtica, e, ao provocar perturbaçþes e transtornos de percepção, mostrar condiçþes de percepção de uma realidade conflituosa (GINZBURG, 2003). A mĂşsica pode ser e ter essa possibilidade de expressĂŁo de uma estĂŠtica crĂtica, nĂŁo plenamente a mĂşsica ligeira, mas a mĂşsica que permite uma experiĂŞncia musical distinta do mero relaxamento e da pueril diversĂŁo. No tocante ao elemento diversĂŁo, atualmente tudo Âą no sentido de entretenimento, prazer, etc. Âą ĂŠ colocado pelos apologistas da indĂşstria cultural, PHQRV R IDWR TXH VHULD SRVVtYHO ÂłTXH LQHVSHUDGDPHQWH D VLWXDomR >GH GRPLQDomR@ VH modificasse, se um dia a arte, de mĂŁos dadas com a sociedade, abandonasse a rotina do sHPSUH LJXDO´ $'2512 S 3DUD HVVD SRVVLELOLGDGH D VRFLHGDGH criou a mĂşsica, nĂŁo efetivamente a da indĂşstria cultural, mas a mĂşsica que resiste a audição regressiva. A mĂşsica sĂŠria possui uma potencialidade crĂtica, na medida em que pode ser expressĂŁo do sofrimento humano diante do Mundo Administrado. Contudo, a mĂşsica
46
ligeira, alĂŠm de ser muito fortemente distração, contribui potencialmente para a regressĂŁo da capacidade de perceber algo alĂŠm do imediato. Para Adorno (2006a), na seleção de textos reunidos em Educação e Emancipação, mais especificamente no texto homĂ´nimo, vivemos numa ĂŠpoca de educação nĂŁo-emancipadora, mais voltada para a manutenção das instituiçþes do que para a busca da formação de indivĂduos autĂ´nomos. Essa condição nĂŁoemancipadora, chamada por Adorno de semiformação 21, compreende-se, nas palavras de Zuin (2001, p. 10), pela tentativa de oferecimento de uma formação educacional que se camufla da real condição de emancipação dos indivĂduos quando, DGYHUVDPHQWH ÂłFRQWULEXL GHFLsivamente tanto para a reprodução da misĂŠria espiritual como para a manutenção da barbĂĄrie social. E o contexto social no qual a barbĂĄrie ĂŠ FRQWLQXDPHQWH UHLWHUDGD p R GD LQG~VWULD FXOWXUDO KHJHP{QLFD´ 'H DFRUGR FRP %iUEDUD )UHLWDJ S D ÂłVHPLHGucação representa a educação deturpada, PDVVLILFDGD WUDQVIRUPDGD HP PHUFDGRULD´ /RJR DV PDVVDV VmR VHPLIRUPDGDV afirmativamente para a confirmação da reprodução do vigente, para a perpetuação de um mundo da adaptação (MAAR, 2003). Bahia (2004, p. 125) ĂŠ EHP GLUHWR DR DILUPDU TXH ÂłQmR VH SRGH FRQIXQGLU escolaridade com capacidade de compreensĂŁo do mundo 22Âł Mi TXH D HVFRODULGDGH QRV termos dessa educação semiformadora mais confunde do que esclarece. A semicultura ĂŠ, pois, semiformação cultural que deforma e que limita o indivĂduo, trazendo obstĂĄculos Ă uma formação crĂtica (ZUIN; PUCCI; RAMOS-DEOLIVEIRA, 2001). Assume-se, deste modo, seguindo o projeto teĂłrico adorniano, a tese da necessidade da educação como um estado de consciĂŞncia crĂtica ao status quo, capaz
21 'H DFRUGR FRP *UXVFKND Âła expressĂŁo semiformação foi cunhada modernamente no ano de nascimento de Adorno Âą 1903 pelo neohumanista Friedrich Paulsen, no livro Halbbildung. Significava o LQGLJHVWR FRQWH~GR GD HVFROD VHFXQGiULD TXH PDVVDFUDYD RV DOXQRV´ (P $GRUQR D H[SUHVVmR DGTXLre um sentido mais largo, ou seja, de adaptação acrĂtica Âą embora potencialmente competente Âą ao mundo social. 3DUD $GRUQR ÂłHO VHXGRFXOWR VH GHGLFD D OD FRQVHUYDFLyQ GH Vt HQ Vt PLVPR´ S 22 Âł8P SHQVDPHQWR FRQVHUYDGRU SRGHULD DGX]LU TXH D GLIXVmR GD LQG~VWULD FXOWXUDO Vy VH YHULILFD QR PHLR GRV LOHWUDGRV FRPR VH RV SRGHURVRV HVWLYHVVHP LVHQWRV GR FRQWDWR FRP RV SURGXWRV VHPLFXOWXUDLV /HGR HQJDQR´ (ZUIN; PUCCI; RAMOS-DE-OLIVEIRA, 2001, p. 63).
47
de pensar em suas contradiçþes e imaginar algo para alĂŠm dessa situação23. Reforçando com a sinopse de Silva (2009), a educação em Adorno ĂŠ uma educação negativa no confronto com a realidade: educação para a crĂtica, para a contradição e para a resistĂŞncia. DaĂ que a emancipação nĂŁo pode ser tratada como uma categoria vazia, capaz de elevar o indivĂduo a um mundo que nĂŁo existe em concretude. Tratase, aliĂĄs, da formação de um sujeito que, alĂŠm de saber jogar, conhece as regras do jogo. Para Adorno, deve-se alertar aos homens o carĂĄter de sua ilusĂŁo permanente, ÂłSRLV KRMH HP GLD R PHFDQLVPR GD DXVrQFLD GH HPDQFLSDomR p R mundus vult decipi HP kPELWR SODQHWiULR GH TXH R PXQGR TXHU VHU HQJDQDGR´ $'2512 D S 183). A educação autĂŞntica em Adorno tem um duplo sentido: adaptação, mas tambĂŠm um estado de crĂtica, um momento de possibilidade de autonomia. Nele, a educação verdadeira, ou seja, aquela que difere da semiformação ou semicultura, ĂŠ, sumariamente o mesmo que emancipação. Portanto, nĂŁo se trata de pensar o conceito de emancipação como uma categoria vazia, mas sim, como um vir-a-ser, jĂĄ que ĂŠ preciso ver efetivamente as enormes dificuldades que se opĂľem ao conceito na atual organização do mundo e, tambĂŠm, nĂŁo ser possĂvel pensar num indivĂduo existindo na sociedade simplesmente conforme suas prĂłprias determinaçþes. Mesmo este suposto homem emancipado permanece arriscado a se tornar nĂŁo emancipado, uma vez que qualquer tentativa de crĂtica ĂŠ submetida a resistĂŞncias. Segundo Zuin (2001, S ÂłGificulta-se a sobrevivĂŞncia do pensamento crĂtico numa sociedade em que os LQGLYtGXRV VH WUDQVIRUPDP HP ÂľFDL[DV GH UHVVRQkQFLDϫ Fechando esta reflexĂŁo, para Adorno (2006a), os defensores do status quo procurarĂŁo sempre demonstrar que essa emancipação estĂĄ superada; ĂŠ utĂłpica. Quem se habilita a demonstrar o contrĂĄrio? Quem se habilita a ilustrar uma nova mĂşsica ou um outro uso para a indĂşstria cultural? Fica esta provocação como desfecho. Um esclarecimento deve ser posto, baseado no pensamento adorniano problematizado por Freitag: Âł2EYLDPHQWH XPD HGXFDomR DXWrQWLFD TXH SUHVHUYDVVH VHX FDUiWHU FUtWLFR H VXD IXQomR DR PHVPR WHPSR libertadora e repressora, nĂŁo poderia, por si sĂł, romper com essas estruturas objetivadas que se opĂľem de IRUPD LPSODFiYHO DR LQGLYtGXR´ )5(,7$* S 1R HQWDQWR XPD HGXFDomR DXWrQWLFD DLQGD TXH tenha um sentido, ora elitista, ora utĂłpico, jĂĄ ĂŠ um requisito para se pensar e refletir sobre o avanço da semicultura, da semi-formação.
23
48
REFERÊNCIAS
ADORNO, Theodor W. Dialética negativa. Tradução de Marco Antonio Casanova. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2009. ______. Educação e emancipação. Tradução de Wolfgang Leo Maar. 4. ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2006a. ______. Teoria estética. Tradução de Artur Morão. Lisboa: Edições 70, 2006b. ______. Notas de literatura I. Tradução de Jorge de Almeida. São Paulo: Duas Cidades; Ed. 34, 2003. BBBBBB $QDO\WLFDO VWXG\ RI WKH 1%& ³0XVLF $SSUHFLDWLRQ +RXU´ The Musical Quartely, vol. 78, n. 2, p. 325-377, 1994. ______. O fetichismo na música e a regressão da audição. In: ADORNO, Theodor W; HORKHEIMER, Max. Textos escolhidos. Tradução de Zejko Loparic et alli. 5. ed. São Paulo : Nova Cultural, 1991 (Coleção Os Pensadores, 16). ______. Consignas. Traducción de Ramón Bilbao. Buenos Aires: Amorrortu Editores, 1973. ______. Teoría de la pseudocultura. In: ADORNO, Theodor W; HORKHEIMER, Max. Sociológica. Traducción de Víctor Sánchez de Zavala. Madrid: Taurus Ediciones, 1966. ______; SIMPSON, G. Sobre música popular. In: COHN, Gabriel. Theodor W. Adorno. 2. ed. São Paulo: Ática, 1994 (Coleção Grandes Cientistas Sociais, n° 54). BAHIA, Ricardo. Das luzes à desilusão: o conceito de indústria cultural em Adorno e Horkheimer. Belo Horizonte: Autêntica/FCH-FUMEC, 2004. CARONE, Iray. Adorno e a educação musical pelo rádio. Educ. Soc., Campinas, vol. 24, n. 83, p. 477-493, ago. 2003. CROCHÍK, José Leon. T. W. Adorno e a psicologia social. Psicologia & Sociedade, 20(2), p. 297-305, 2008. EAGLETON, Terry. A arte depois de Auschwitz: Theodor Adorno. In: ______. A ideologia da estética. Tradução de Mauro Sá Rego Costa. Rio de Janeiro: Zahar, 1993.
49
FREITAG, Bárbara. Política educacional e indústria cultural. 2. ed. São Paulo: Cortez; Autores Associados, 1989. FREITAS, Verlaine. Adorno e a arte contemporânea. 2. ed. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2008. GINZBURG, Jaime. Theodor Adorno e a poesia em tempos sombrios. ALEA, v. 5, n. 1, p. 61-69, jan/jun. 2003. GRUSCHKA, Andréas. Escola, didática e indústria cultural. In: DURÃO, Fábio A.; ZUIN, Antonio; VAZ, Alexandre F. (orgs.). A indústria cultural hoje. São Paulo: Boitempo, 2008. MAAR, Wolfgang Leo. Adorno, semiformação e educação. Educ. Soc., Campinas, vol. 24, n. 83, p. 459-476, ago. 2003. MARX, Karl. O capital: crítica da economia política. Vol. 1, livro primeiro. Tradução de Regis Barbosa e Flávio R. Kothe. São Paulo: Abril Cultural, 1983. MORIN, Edgar. La industria cultural. In: ADORNO, Theodor W; MORIN, Edgar. La industria cultural. Buenos Aires: Editorial Galerna, 1967. SILVA, Paulo Lucas da. Sobre educação, cultura e humanidade em Adorno. Trilhas Filosóficas, UERN, ano II, n. 1, jan./jun. 2009. ZUIN, Antonio Álvaro Soares. Sobre a atualidade do conceito de indústria cultural. Cadernos Cedes, ano XXI, n. 54, p. 09-18, ago. 2001. ZUIN, Antonio Álvaro Soares; PUCCI, Bruno; RAMOS-DE-OLIVEIRA, Newton. Adorno: o poder educativo do pensador crítico. 3. ed. Petrópolis: Vozes, 2001.
50
CAPĂ?TULO 3 NOTAS SOBRE O TEMPO LIVRE24
Este ensaio objetivou aproveitar algumas reflexĂľes presentes em Theodor W. Adorno para se pensar o lazer e o consumo do tempo livre nas sociedades contemporâneas. Fundamentalmente a partir das discussĂľes acerca da semiformação (Halbbildung), da indĂşstria cultural (Kulturindustrie) e do tempo livre (Freizeit), entende-se o lazer como um fenĂ´meno indissociĂĄvel do espĂrito de nosso tempo, marcado, segundo Adorno, pela heteronomia cultural, pela transformação do homem em estatuto de coisa e pela ideologia como propaganda do mundo. Deste modo, nĂŁo hĂĄ como se pensar lazer e tempo livre longe das relaçþes sociais concretas, histĂłricas e, portanto, sujeitas aos imperativos da integração social. Nesse sentido, este capĂtulo vem apresentar Âą ou (re)apresentar Âą a obra de Theodor W. Adorno para os chamados estudos do lazer e do tempo livre, campo interdisciplinar em que o autor ainda nĂŁo ĂŠ tĂŁo lido, sobretudo no Brasil. Autor de uma obra de difĂcil compreensĂŁo, Adorno necessita ainda de maiores reflexĂľes acerca de suas ideias 25. Logo, esta breve reflexĂŁo vem tentar preencher uma lacuna existente, na medida em que traz as ideias de Adorno para um campo do conhecimento ainda 24 Produzido juntamente com Marcela AmĂĄlia Pereira Cabrita e TĂĄssio Ricelly Pinto de Farias. Originalmente publicado na revista Turydes (2014). Jean Henrique Costa, Marcela AmĂĄlia Pereira Cabrita y TĂĄssio Ricelly Pinto de )DULDV Âł1RWDV VREUH R WHPSR OLYUH HP 7KHRGRU : $GRUQR´ 5HYLVWD Turydes: Turismo y Desarrollo, n. 17 (diciembre 2014). HĂĄ uma versĂŁo ligeiramente reduzida publicada no livro Investigaçþes sobre o Agir Humano, Galileu Galilei Medeiros de Souza e Francisco de Assis Costa da Silva (Orgs), Ediçþes UERN, 2014. 25 (P DSUHFLDomR D REUD GH $GRUQR &RKQ S QRV DOHUWD SDUD R IDWR TXH ÂłAdorno ĂŠ tido como autor de leitura particularmente difĂcil´ 6HJXQGR DILUPD Âłquem gosta de tudo pronto e arrumado, nĂŁo deve ler Adorno. Essa leitura ĂŠ para quem estĂĄ disposto a uma experiĂŞncia instigante, Ă s vezes exasperante, mas sempre fecunda´ &2+1 S 7HUU\ (DJOHWRQ DVVLP UHIRUoD WDO DVVHUWLYD Âł> @ cada frase de seus textos ĂŠ, por assim dizer, obrigada a trabalhar em excesso; cada sentença deve tornar-se uma obra-prima ou um milagre da dialĂŠtica, fixando um pensamento um segundo antes que ele desapareça em suas prĂłprias contradiçþes [...] Todos os filĂłsofos marxistas devem ser pensadores dialĂŠticos, mas com Adorno pode-se sentir o esforço e a dificuldade desse estilo vivo em cada frase, numa linguagem construĂda contra o silencio, QD TXDO WmR ORJR R OHLWRU SHUFHEH D XQLODWHUDOLGDGH GH XP DUJXPHQWR R VHX RSRVWR p LPHGLDWDPHQWH SURSRVWR´ (EAGLETON, 1993, p. 247-248).
51
marcado por uma visĂŁo muito instrumental do fenĂ´meno do lazer. Assim, seguindo o pensamento crĂtico adorniano, ĂŠ necessĂĄrio que o lazer seja pensado para alĂŠm do simples fato do entretenimento, ou ainda, da funcional reposição das energias vitais para o trabalho. O texto estrutural de apoio deste ensaio ĂŠ Tempo Livre ÂłXP WH[WR TXH VXUJLX GH XPD FRQIHUrQFLD WUDQVPLWLGD SHOD Âľ5iGLR $OHPDQKDÂś HP Âą ano da morte de Adorno Âą, que tem por REMHWLYR WUDWDU GD TXHVWmR GR ÂľWHPSR OLYUHϫ 1$6&,0(172 MARCELLINO, 2010, p. 03). Este texto foi publicado no Brasil originalmente em Palavras e Sinais, de 1995, tradução brasileira de Stichworte: kritische modelle 2 (Frankfurt am Main, Suhrkamp). Iniciando o debate, entende-se como tempo livre todo e qualquer tempo que se passa longe do trabalho ou das distintas obrigaçþes cotidianas. Diferentemente do sentido comum de Ăłcio, que expressaria algo mais contemplativo, o tempo livre estĂĄ atrelado e anda lado a lado com o trabalho. Mas atĂŠ que ponto se tem realmente um tempo livre? O que poderia ser esse tempo livre? Que tipo de "diversĂŁo" caberia nele? Essas e outras questĂľes sĂŁo levantadas quando pensamos mais profundamente o que ĂŠ o tempo livre vigente sob relaçþes capitalistas. $GRUQR S DEUH R SUREOHPD GR WHPSR ÂłOLYUH´ FRP XPD Pi[LPD SUHVHQWH HP WRGR R HQVDLR Âło tempo livre ĂŠ acorrentado ao seu oposto´ $VVLP SDUD ele, o tempo livre depende fundamentalmente das relaçþes concretas que esse mantĂŠm com a sociedade. Por conseguinte, nĂŁo hĂĄ como se dissociar as prĂĄticas do tempo livre do modo de produção vigente. Tal dissociação traz, em si, metodologicamente, um viĂŠs ideolĂłgico. O mesmo sangue que corre no lazer corre tambĂŠm no trabalho. Logo, em $GRUQR S ÂłR WHPSR OLYUH GHSHQGHUi GD situação geral da sociedade. Mas esta, agora como antes, mantĂŠm as pessoas sob um fascĂnio. Nem em seu trabalho, nem em sua consciĂŞncia dispĂľem de si mesmas com UHDO OLEHUGDGH´ $VVLP SDUD HOH ÂłQXPD pSRca de integração social sem precedentes, fica difĂcil estabelecer, de forma geral, o que resta nas pessoas, alĂŠm do determinado SHODV IXQo}HV´ $'2512 S
52
O problema da integração (tema que permeia toda discussĂŁo acerca da indĂşstria cultural, do fetichismo, da ideologia e da semiformação em Adorno) ĂŠ central para entender o prolongamento da nĂŁo liberdade do tempo livre. AliĂĄs, para Adorno, o termo livre sĂł funciona como parĂłdia. NĂŁo hĂĄ liberdade efetiva, real, concreta. Entenda-se por liberdade como parĂłdia apenas a liberdade de se integrar numa ordem que nĂŁo liberta das amarras vigentes. Como jĂĄ estava posto na DialĂŠtica do Esclarecimento em 1947: a mĂĄquina gira sem sair do lugar. Nesse Ănterim, a semiformação se torna o grande maestro da integração.
A formação cultural agora se converte em uma semiformação socializada, na onipresença do espĂrito alienado, que, segundo sua gĂŞnese e seu sentido, nĂŁo antecede Ă formação cultural, mas a sucede. Deste modo, tudo fica aprisionado nas malhas da socialização (ADORNO, 1996, p. 388-411).
Zuin reforça este entendimento:
Compreende-se o conceito semiformação justamente pela tentativa de oferecimento de uma formação educacional que se faz passar pela verdadeira condição de emancipação dos indivĂduos quando, na realidade, contribui decisivamente tanto para a reprodução da misĂŠria espiritual como para a manutenção da barbĂĄrie social. E o contexto social no qual a barbĂĄrie ĂŠ continuamente reiterada ĂŠ o da indĂşstria cultural hegemĂ´nica (ZUIN, 2001, p. 10).
VĂŞ-se, pois, que com o avanço da semiformação e da indĂşstria cultural a organização do tempo livre passa cada vez mais a depender de critĂŠrios objetivos do que da autonomia do indivĂduo. A heteronomia, expressĂŁo kantiana, vira uma regra. Um exemplo ĂŠ a ideologia do hobby ditada pela indĂşstria cultural, que nada mais ĂŠ do TXH H[HUFHU DOJXPD DWLYLGDGH GXUDQWH R WHPSR OLYUH ([HPSORV ÂłGHVVDV DWLYLGDGHV apontadas por Adorno eram os hobbies, ocupaçþes que serviam apenas para matar o tempo e que todas as pessoas deveriam ter, fossem eles significativos ou nĂŁo para HODV´ )(51$1'(6 S 3HUFHEH-se, com isso, que atĂŠ as atitudes mais simples tendem a passar pelo mercado. Tudo ĂŠ pensado e colocado de forma que permita que a vida social se torne mais planejada, principalmente com a expansĂŁo das chamadas atividades do tempo livre (indĂşstria do entretenimento), oportunizadas pela
53
redução legal da jornada de trabalho. O tÊdio passa a ser, então, uma enfermidade marcante nas sociedades administradas. De fato, o chamado tempo livre do trabalho, o que chamaremos aqui de tempo OLEHUDGR GR WUDEDOKR DXPHQWRX ³-i DJRUD R WHPSR OLYUH DXPHQWRX VREUHPDQHLUD graças às invençþes, ainda não totalmente utilizadas ² em termos econômicos ² nos campos da energia atômica e da autRPDomR SRGHUi DXPHQWDU FDGD YH] PDLV´ (ADORNO, 2002, p. 104). Contudo,
[...] Se se quisesse responder à questão sem asserçþes ideológicas, tornar-se-ia imperiosa a suspeita de que o tempo livre tende em direção contråria à de seu próprio conceito, tornando-se paródia; deste. Nele se prolonga a não-liberdade, tão desconhecida da maioria das pessoas não-livres como a sua não-liberdade, em si mesma (ADORNO, 2002, p. 104).
Assim, para Adorno o tempo livre tanto não pode ser pensado dissociado do tempo das obrigaçþes, bem como, das possibilidades efetivas de dominação. A extensa citação abaixo, fruto de um depoimento biogråfico do autor, ilustra o argumento:
Eu nĂŁo tenho qualquer hobby. NĂŁo que eu seja uma besta de trabalho que nĂŁo sabe fazer consigo nada alĂŠm de esforçar-se e fazer aquilo que deve fazer. Mas aquilo com o que me ocupo fora da minha profissĂŁo oficial ĂŠ, para mim, sem exceção, tĂŁo sĂŠrio que me sentiria chocado com a idĂŠia de que se tratasse de hobbies, portanto ocupaçþes nas quais me jogaria absurdamente sĂł para matar o tempo, se minha experiĂŞncia contra todo tipo de manifestaçþes de barbĂĄrie ² que se tomaram como que coisas naturais ² nĂŁo me tivesse endurecido. Compor mĂşsica, escutar mĂşsica, ler concentradamente, sĂŁo momentos integrais da minha existĂŞncia, a palavra hobby seria escĂĄrnio em relação a elas. Inversamente, meu trabalho, a produção filosĂłfica e sociolĂłgica e o ensino na universidade, tĂŞm-me sido tĂŁo gratos atĂŠ o momento que nĂŁo conseguiria considerĂĄ-los como opostos ao tempo livre, como a habitualmente cortante divisĂŁo requer das pessoas. Sem dĂşvida, estou consciente de que estou falando como privilegiado, com a cota de casualidade e de culpa que isto comporta; como alguĂŠm que teve a rara chance de escolher e organizar seu trabalho essencialmente segundo as prĂłprias intençþes. Esse aspecto conta, nĂŁo em Ăşltimo lugar, para o fato de que aquilo que faço fora do horĂĄrio de trabalho nĂŁo se encontre em estrita oposição em relação a este. Caso um dia o tempo livre se transformasse efetivamente naquela situação em que aquilo que antes fora privilĂŠgio agora se tornasse benefĂcio de todos ² e algo disso alcançou a sociedade burguesa, em comparação com a feudal ², eu imaginaria este tempo livre segundo o modelo que observei em mim mesmo, embora esse modelo, em circunstâncias diferentes, ficasse, por sua vez, modificado (ADORNO, 2002, p. 105-106).
54
Deste modo, quando se considera o trabalho uma coisa significativa, prazerosa e gratificante, para Adorno, nĂŁo se consegue considerĂĄ-lo oposto ao tempo livre. Por isso nĂŁo hĂĄ porque denominar o que se faz no nĂŁo-trabalho de hobby. A imensa vontade de ocupar o tempo livre com algo que nĂŁo lembre o trabalho, com coisas que escapem a ele, ĂŠ prova de que nĂŁo se consegue esquecĂŞ-lo. Assim, fica claro que, lĂĄ onde mais nos escondemos do trabalho, onde mais tentamos nos refugiar dele, no WHPSR OLYUH HOH HVWi SUHVHQWH FRPR TXH ÂłSRU EDL[R GR SDQR´ $'2512 S $ SDVVDJHP D VHJXLU H[WUDtGD GH ÂłAs Estrelas Descem a Terra´ UHIRUoD R aludido: A ideia ĂŠ que, mantendo-se estritamente separadas as esferas do trabalho e do prazer, ambos os tipos de atividade serĂŁo beneficiados: aberraçþes instintuais nĂŁo interferirĂŁo com a seriedade do comportamento racional, e nenhum sinal sombrio de gravidade e responsabilidade macularĂĄ a diversĂŁo. Obviamente, esse dispositivo ĂŠ, de alguma maneira, derivado da organização social que afeta o indivĂduo Ă medida que sua vida ĂŠ dividida em duas seçþes: numa delas, ele funciona como um produtor; na outra, como consumidor. Ă&#x2030; como se essa dicotomia bĂĄsica do processo da vida econĂ´mica da sociedade fosse projetada sobre o indivĂduo. Psicologicamente, as conotaçþes compulsivas baseadas em uma visĂŁo puritana nĂŁo podem ser negligenciadas, nĂŁo apenas no que diz respeito ao padrĂŁo bifĂĄsico da vida como um todo, mas tambĂŠm a noçþes tais como a limpeza: nenhuma das duas esferas pode ser contaminada pela outra. Embora esse conselho possa oferecer vantagens em termos de racionalização econĂ´mica, seus mĂŠritos intrĂnsecos sĂŁo de natureza dĂşbia. O trabalho que ĂŠ completamente separado do elemento lĂşdico torna-se insĂpido e monĂłtono, uma tendĂŞncia que ĂŠ consumada pela quantificação completa do trabalho industrial. O prazer, quando igualmente isolado do conteĂşdo ÂľsĂŠrioÂś da vida, torna-se bobo, sem sentido, reduz-se completamente ao ÂľentretenimentoÂś e, em Ăşltima instância, ĂŠ apenas um mero meio de reproduzir a capacidade de trabalho do indivĂduo, enquanto a verdadeira substância de qualquer atividade nĂŁo-utilitĂĄria jaz na maneira como ela encara e sublima os problemas da realidade: res severa verum gaudium [a verdadeira alegria ĂŠ uma coisa sĂŠria, SĂŞneca, Epistulae Morales, 23, 4]. (ADORNO, 2008b, p. 98-99).
Uma outra forma de percepção do problema Ê simplesmente reparar como organizamos o nosso fim de semana em função do nosso trabalho. Tudo Ê projetado como forma de negar o trabalho, mas acaba sendo uma extensão dele. Bebe-se no såbado a noite toda (jå que não se trabalha no domingo); no domingo, bebe-se somente atÊ às dezesseis horas; depois disso, deve-se descansar, pois logo serå segunda-feira e toda rotina de trabalho serå retomada. Sem esquecer que o próprio ato GH EHEHU TXHU GL]HU ³HVTXHFHU R WUDEDOKR´ RX HQWmR VHQWLU-VH ³OLYUH´ SRUpP j WRGR
55
momento pensando em retomĂĄ-OR 3RU LVVR GL] $GRUQR S Âł1HP HP VHX WUDEDOKR QHP HP VXD FRQVFLrQFLD GLVS}HP GH VL PHVPDV FRP UHDO OLEHUGDGH ´ SRLV D separação entre sujeito e trabalho ĂŠ impossĂvel jĂĄ que, no modo de produção FDSLWDOLVWD ÂłQmR VH SRGH WUDoar uma divisĂŁo [...] entre as pessoas em si e seus assim FKDPDGRV SDSpLV VRFLDLV´ $'2512 S -104). Para nĂŁo deixarmos de mencionar formas de lazer destacadas por Adorno S FRPR ÂłIHQ{PHQRV HVSHFtILFRV GR WHPSR OLYUH´ DSRQWDPRV DTXL R turismo e o camping, TXH ÂłVmR DFLRQDGRV H RUJDQL]DGRV HP IXQomR GR OXFUR´ Destarte, sob as relaçþes capitalistas, no tempo livre se prolongam formas de vida social organizadas segundo o regime do lucro. A indĂşstria cultural cuida de manter a administração da cultura. A indĂşstria cultural ĂŠ a ferramenta indispensĂĄvel para a manutenção e perpetuação do mundo administrado (verwalteten Welt), pois como DSRQWD 5DPRV S D ÂłLQWHULRUL]DomR GDV QHFHVVLGDGHV VRFLDOPHQWH JHUDGDV H a administração monopolizada de suas satisfaçþes podem significar, atravĂŠs da dominação material dos indivĂduos, o controle dos corpos e, por decorrĂŞncia, das PHQWHV´ 'HVVD IRUPD R TXH PXLWRV FKDPDP GH PDQLIHVWDomR GD FXOWXUD SRSXODU entendemos ser muito mais uma cultura industrializada, produzida como forma de perpetuar a dominação dos indivĂduos no capitalismo, mas nĂŁo como forma de se opor a ele. Mas o que vemos, ab initio, ĂŠ que o tempo livre tornou-se planejado e abertamente uma mercadoria. Um tempo de consumo. Um bem que alĂŠm de ser algo imposto ĂŠ tambĂŠm excessivamente cobrado pelos prĂłprios sujeitos. NĂŁo ter lazer e nĂŁo consumir no lazer significa estar fora de toda uma rede de signos e significados no capitalismo. NinguĂŠm quer ficar de fora! "O tempo livre segue como reflexo do ritmo de produção imposto heteronomamente ao sujeito, que forçosamente ĂŠ mantido tambĂŠm nas fatigadas pausas" (ADORNO, 2008a, p. 171). O tempo livre tornou-se, entĂŁo, um negĂłcio altamente rentĂĄvel que ĂŠ oferecido e quase forçado a ser consumido da mesma maneira para toda a sociedade, como Adorno deixa claro na expressĂŁo negĂłcios do tempo livre (Frei-zeitgeschiffl). A indĂşstria cultural se torna, pois, o maestro desta semiformação.
56
³$ indústria cultural seria a capacidade de produzir o produto e ao mesmo tempo criar sua necessidade de uso, ou seja, a indústria cultural seria um conceito e WDPEpP XP SURFHVVR´ 0(==$52%$ S 3DUD $GRUQR D S ³FDGD HQXQFLDGR FDGD QRWtFLD FDGD LGHLD HVWi IRUPDGD GH DQWHPmR SHORV FHQWURV GD indústria cultural". A indústria cultural Ê responsåvel por perpetuar a nossa condição de vida irrefletida (o que Adorno chamou de vida danificada beschädigten Leben), na medida em que nos incentiva a consumir e nos distancia da reflexão acerca do trabalho necessårio para bancar o consumo de nossa própria sujeição. Conforme Adorno e Horkheimer (1985, p. 112-114):
[...] a indĂşstria cultural permanece a indĂşstria da diversĂŁo. Seu controle sobre os indivĂduos ĂŠ mediado pela diversĂŁo [...]. A verdade em tudo isso ĂŠ que o poder da indĂşstria cultural provĂŠm de sua identificação com a necessidade produzida, nĂŁo da simples oposição a ela [...]. A diversĂŁo ĂŠ o prolongamento do trabalho sob o capitalismo tardio. Ela ĂŠ procurada por quem quer escapar ao processo de trabalho mecanizado, para se pĂ´r de novo em condiçþes de enfrentĂĄ-lo. [...] O espectador nĂŁo deve ter necessidade de nenhum pensamento prĂłprio, o produto prescreve toda reação: nĂŁo por sua estrutura temĂĄtica Âą que desmorona na medida em que exige o pensamento Âą, mas atravĂŠs de sinais. Toda ligação lĂłgica que pressuponha um esforço intelectual ĂŠ escrupulosamente evitada. [...] o pensamento ĂŠ ele prĂłprio massacrado e despedaçado.
A passagem acima se refere Ă coesĂŁo do modo de produção capitalista (sua imensa capacidade de integração), a forma como ele aos poucos se torna cada vez mais fortalecido Ă medida que cria em nĂłs a necessidade que ele mesmo virĂĄ suprir. Assim, a Ăntima relação entre indĂşstria cultural e tempo livre se evidencia no fato de justamente no tempo de nĂŁo-trabalho (livre) pararmos para consumir os produtos da indĂşstria cultural que, transvestidos em produtos culturais, nos oferecem a fuga do trabalho, sendo uma forma de descansar dele para, inconscientemente, retornarmos a ele dispostos a produzir mais. E mesmo quando nĂŁo estamos consumindo nada, ocupamos nosso tempo com coisas que prolongam a nossa condição de sujeitos coisificados, com prĂĄticas que nada acrescentam Ă nossa reflexĂŁo diante da vida e do mundo. A reflexĂŁo mais densa de Adorno ĂŠ pensar, pois, os riscos estruturais da dominação a partir de elementos banais do cotidiano. Logo, o que se faz fora do trabalho repercute estruturalmente no trabalho. No tempo supostamente livre nĂŁo
57
esquecemos a lĂłgica do trabalho. Aceita-se e se nega contraditoriamente o trabalho e suas dimensĂľes.
Aqui nos deparamos com um esquema de conduta do caråter burguês. Por um lado, deve-se estar concentrado no trabalho, não se distrair, não cometer disparates; sobre essa base repousou outrora o trabalho assalariado, e suas normas foram interiorizadas. Por outro lado, deve o tempo livre, provavelmente para que depois se possa trabalhar melhor, não lembrar em nada o trabalho. Esta Ê a razão da imbecilidade de muitas ocupaçþes do tempo livre (ADORNO, 2002, p. 106-107).
Para Adorno e Horkheimer (1985), o lazer ĂŠ apenas uma fase projetada do prĂłprio trabalho, pois Ă medida que os indivĂduos nĂŁo aproveitam o descanso para refletirem sobre suas condiçþes de existĂŞncia, permanecem alienados ao prĂłprio ÂľsistemaÂś, e, substancialmente, aproveitam os dias de folga para mergulharem nos devaneios do consumo. Tudo ĂŠ projetado de forma tal que os homens nĂŁo se detenham na reflexĂŁo acerca do estado de suas vidas e condiçþes de trabalho. Com isso surge a configuração de que eles sĂŁo programados para trabalhar e consumir. O prĂłprio Ăłcio vai se tornando apenas um consumo, pois neste momento a publicidade invade os lares atravĂŠs da TV, do filme, da mĂşsica produzida para o mercado e de diversas outras mercadorias.
[...] os indivĂduos, na necessidade de momentos de lazer e fuga do trabalho, submetem-se aos produtos da indĂşstria cultural que, por sua vez, prometendo essa fuga do trabalho, oferecem sempre atraçþes que reproduzem o cotidiano do trabalho como se fosse novidade (FERNANDES, 2010, p. 28).
No tempo livre, o qual se acostumou chamar de lazer por oposição ao tempo de trabalho (não-OLYUH ³VmR LQWURGX]LGDV > @ IRUPDV GH FRPSRUWDPHQWR SUySULDV GR WUDEDOKR´ $'2512 S 3DUD LOXVWUDU H[HPSOLILFDPRV FRP R WXULVPR feito por um motorista profissional, que dirige quarenta horas semanais e ao chegar ao fim de semana se obriga a pegar a estrada em direção à praia e dirigir novamente uma ou duas horas, para dizer na segunda-IHLUD DRV VHXV FROHJDV ³IXL j SUDLD QR ILP GH VHPDQD´ VHP DR menos refletir que fez no seu tempo livre aquilo que jå havia feito em toda a sua semana de trabalho. O mesmo acontece com um trabalhador da construção civil que passa o dia inteiro realizando movimentos com tijolos, telhas,
58
etc., e que a noite se dirige Ă academia para malhar e repetir os movimentos realizados o dia todo. Portanto, observa-se que existe tanta imposição para o tempo livre que nos tornamos refĂŠns dele. O tempo livre passou a ser uma obrigação que a sociedade tem com ela mesma e nĂŁo um momenWR ÂłOLYUH´ QR TXDO VH SRVVD H[HUFHU atividades de livre escolha. Entrementes, o ideal seria que todos os indivĂduos tivessem algo construtivo para fazer no seu tempo livre. Mas nĂŁo ĂŠ isso que ocorre. De uma forma geral, ocorre o contrĂĄrio: vemos uma falta de liberdade de poder fazer o que se gosta e o que se quer. A heteronomia ĂŠ dominante, seja pelas condiçþes educacionais, seja pelas FRQGLo}HV PDWHULDLV GH H[LVWrQFLD Âł3DUD $GRUQR DV SHVVRDV Vy VH DGDSWDYDP DR sistema capitalista desenvolvendo papĂŠis que lhes eram impostos pela sociedade, ou VHMD QmR ID]LDP R TXH JRVWDYDP PDV R TXH OKHV FDELD ID]HU´ )(51$1'(6 p. 33). Assim, os indivĂduos, de individualidade debilitada, nĂŁo possuem liberdade, nem dentro, nem fora do trabalho. Segundo Adorno, a separação entre as esferas da produção e da nĂŁo-produção estĂĄ na consciĂŞncia.
[...] a distinção entre trabalho e tempo livre foi incutida como norma a consciência e inconsciência das pessoas. Como, segundo a moral do trabalho vigente, o tempo em que se estå livre do trabalho tem por função restaurar a força de trabalho, o tempo livre do trabalho ² precisamente porque Ê um mero apêndice do trabalho ² vem a ser separado deste com zelo puritano (ADORNO, 2002, p. 106).
³(VVD UtJLGD GLYLVmR GD YLGD HP GXDV PHWDGes enaltece a coisificação que HQWUHPHQWHV VXEMXJRX TXDVH FRPSOHWDPHQWH R WHPSR OLYUH´ $'2512 S 107). Para Adorno a liberdade vigente hoje Ê organizada, logo, torna-se coercitiva. A ideologia do hobby jå citada Ê exemplo disso. Todos buscam se enquadrar na moda dos lazeres contemporâneos. A lista Ê enorme: artes marciais (o chamado mixed martial arts hoje Ê prova disso), esportes radicais, viagens, etc. Adorno (2002, p. 107) PRVWUD TXH VH XP LQGLYtGXR QmR SRVVXL XP KREE\ ³VH QmR WHQV RFXSDomR SDUa o tempo livre então tu Ês um pretensioso ou antiquado, um bicho raro, e cais em ULGtFXOR SHUDQWH D VRFLHGDGH D TXDO WH LPSLQJH R TXH GHYH VHU R WHX WHPSR OLYUH´
59
Importa destacar que ĂŠ essa necessidade de liberdade das pessoas que gera esse comĂŠrcio do tempo livre. Ă&#x2030; a partir do momento em que se deseja algo que a indĂşstria cultural comanda o tempo livre dos indivĂduos. Podemos perceber essa dominação simbĂłlica em outro exemplo que Adorno cita: quando um indivĂduo sai de fĂŠrias ĂŠ esperado dele nĂŁo sĂł que aproveite, mas principalmente que volte com algo que indique que o mesmo estava realmente de fĂŠrias. Pensando nisso ĂŠ citado o exemplo do bronzeado, algo caracterĂstico de quem estĂĄ de fĂŠrias. AlĂŠm disso, o bronzeado deixou de ser apenas um sinal de saĂşde e vida ao ar livre para ser tambĂŠm FRPHUFLDOL]DGR Âł0DLV GR TXH VHUYLU SDUD DX[tOLR GH XP GHWHUPLQDGR IOHUWH D obrigatoriedade da tez bronzeada concerne ao necessĂĄrio reconhecimento dos outros de que o indivĂduo conseguiu se desvencilhar por algum tempo do trabalho, DILUPDQGR D VXD SUHWHQVD OLEHUGDGH´ =8,1 S Nesse meio tempo, a sutileza metodolĂłgica de Adorno (2002, p. 108) se DSUHVHQWD QR PRGHOR GH DQiOLVH GD GRPLQDomR ÂłD LQWHJUDomR GR WHPSR OLYUH p alcançada sem maiores dificuldades; as pessoas nĂŁo percebem o quanto nĂŁo sĂŁo livres lĂĄ onde mais livres se sentem, porque a regra de tal ausĂŞncia de liberdade foi DEVWUDtGD GHODV´ O grande resultado disso ĂŠ o estado de letargia no qual vivem os indivĂduos. O tĂŠdio se torna a materialização e prova deste estado. Para Adorno (2002, p. 110),
O tĂŠdio existe em função da vida sob a coação do trabalho e sob a rigorosa divisĂŁo do trabalho. NĂŁo teria que existir. Sempre que a conduta no tempo livre ĂŠ verdadeiramente autĂ´noma, determinada pelas prĂłprias pessoas enquanto seres livres, ĂŠ difĂcil que se instale o tĂŠdio; tampouco ali onde elas perseguem seu anseio de felicidade, ou onde sua atividade no tempo livre ĂŠ racional em si mesma, como algo em si pleno de sentido [...] Se as pessoas pudessem decidir sobre si mesmas e sobre suas vidas, se nĂŁo estivessem encerradas no sempre-igual, entĂŁo nĂŁo se entediariam. TĂŠdio ĂŠ o reflexo do cinza objetivo.
Este cinza objetivo se materializa na perda da criatividade (e, com ela, a redução das possibilidades concretas de fuga do sempre-igual). A falta de criatividade (leia-se fantasia) torna as pessoas desamparadas no consumo do tempo livre.
60 A pergunta descarada sobre o que o povo farå com todo o tempo livre de que hoje dispþe ² como se este fosse uma esmola e não um direito humano ² baseia-se nisso. Que efetivamente as pessoas só consigam fazer tão pouco de seu tempo livre se deve a que, de antemão, jå lhes foi amputado o que poderia tornar prazeroso o tempo livre. [...] Sob as condiçþes vigentes, seria inoportuno e insensato esperar ou exigir das pessoas que realizem algo produtivo em seu tempo livre, uma vez que se destruiu nelas justamente a produtividade, a capacidade criativa. Aquilo que produzem no tempo livre, na melhor das hipóteses, nem Ê muito melhor que o ominoso hobby (ADORNO, 2002, p. 111).
Para Adorno, tempo livre produtivo, ou seja, aquele distante da heteronomia, somente pode ser possĂvel para pessoas emancipadas. O que resta para a grande massa que vive sob o escudo da heteronomia ĂŠ a pseudoatividade, intitulada por Adorno (2002, p. 113) como ÂłILFo}HV H SDUyGLDV GDTXHOD SURGXWLYLGDGH TXH D sociedade, por um lado, reclama incessantemente e, por outro lado, refreia e nĂŁo quer PXLWR QRV LQGLYtGXRV´ $VVLP UHWRPDQGR R LQtFLR GR WH[WR R WHPSR OLYUH QmR estĂĄ em oposição somente ao trabalho, mas o segue diretamente como sua sombra. Esta pseudoatividade enquadra os indivĂduos numa aurĂŠola da livre escolha quando, de fato, tudo jĂĄ estĂĄ escolhido previamente. Os filmes, mĂşsicas, jogos. etc. divergem apenas na aparĂŞncia da livre concorrĂŞncia. Em essĂŞncia, contĂŞm o mesmo objetivo da indĂşstria cultural: a manutenção da condição estrutural de dominação dos indivĂduos, dentro e fora do trabalho. Mas em que este texto Tempo Livre avança na teoria crĂtica (Kritische Theorie) adorniana? Que Adorno podemos encontrar nele? Primeiramente, trata-se de um Adorno que mantĂŠm fortemente o tom crĂtico e sempre fiel ao espĂrito da Teoria CrĂtica, sem se deixar encantar pelos encantos da diversidade cultural, tampouco pelas teorias conciliatĂłrias da relação indivĂduo-sociedade. Segundo, e esta ĂŠ a grande inferĂŞncia, neste texto vemos um Adorno refinando sua teoria, ao apontar possibilidades de questionamento do poder de sedução da indĂşstria cultural. Ao realizar um estudo, no Instituto de Pesquisas Sociais de Frankfurt, percebe que nem tudo que ĂŠ emitido pela indĂşstria cultural pode ter eficĂĄcia efetiva.
61 O estudo era relativo ao casamento da princesa Beatriz, da Holanda, com o jovem diplomata alemĂŁo Claus Von Amsberg. DeverĂamos verificar como o povo alemĂŁo reagia a este casamento, o qual, difundido por todos os meios de comunicação de massas e minuciosamente descrito pelas revistas ilustradas, era consumido durante o tempo livre. Dado o modo de apresentação e a quantidade de artigos que foram escritos sobre o acontecimento, atribuindo-lhe importância extraordinĂĄria, esperĂĄvamos que tambĂŠm os telespectadores e os leitores o considerariam igualmente importante. AcreditĂĄvamos, em especial, que operaria a hoje tĂpica ideologia da personalização, que consiste em atribuir-se importância desmedida a pessoas individuais e a relaçþes privadas contra o efetivamente determinante, desde o ponto de vista social, evidentemente como compensação da funcionalização da realidade (ADORNO, 2002, p. 115).
Diante desta constatação, de base empĂrica vale destacar, Adorno apresenta os limites do poder da indĂşstria cultural e, estruturalmente, abre caminho para se pensar resistĂŞncias diversas na produção e no consumo do tempo livre. Com o estudo Adorno percebeu que uma parte da audiĂŞncia se portou de modo bem realista em relação ao acontecimento e avaliou com sentido crĂtico os fatos narrados. Assim, hĂĄ na obra adorniana possibilidades de resistĂŞncia mesmo no consumo dos veĂculos de comunicação de massa. A passagem abaixo ĂŠ sinĂłptica desta condição:
Em conseqßência, se minha conclusĂŁo nĂŁo ĂŠ muito apressada, as pessoas aceitam e consomem o que a indĂşstria cultural lhes oferece para o tempo livre, mas com um tipo de reserva, de forma semelhante Ă maneira como mesmo os mais ingĂŞnuos nĂŁo consideram reais os episĂłdios oferecidos pelo teatro e pelo cinema. Talvez mais ainda: nĂŁo se acredita inteiramente neles. Ă&#x2030; evidente que ainda nĂŁo se alcançou inteiramente a integração da consciĂŞncia e do tempo livre. Os interesses reais do indivĂduo ainda sĂŁo suficientemente fortes para, dentro de certos limites, resistir Ă apreensĂŁo [Erfassung] total. Isto coincidiria com o prognĂłstico social, segundo o qual, uma sociedade, cujas contradiçþes fundamentais permanecem inalteradas, tambĂŠm nĂŁo poderia ser totalmente integrada pela consciĂŞncia. A coisa nĂŁo funciona assim tĂŁo sem dificuldades, e menos no tempo livre, que, sem dĂşvida, envolve as pessoas, mas, segundo seu prĂłprio conceito, nĂŁo pode envolvĂŞ-las completamente sem que isso fosse demasiado para elas (ADORNO, 2002, p. 116117).
Portanto, na parte final do ensaio Tempo Livre, apresenta-se o grande trunfo de HVSHUDQoD QD REUD DGRUQLDQD ³5HQXQFLR D HVERoDU DV FRQVHT rQFLDV GLVVR SHQVR porÊm, que se vislumbra aà uma chance de emancipação que poderia, enfim, contribuir algum dia com a sua parte para que o tempo livre [Freizeit] se transforme em liberdade >)UHLKHLW@´ (ADORNO, 2002, p. 117).
62
Assim, nĂŁo hĂĄ concordância com grande parte da literatura hoje produzida sobre a indĂşstria cultural que enxerga o pensamento adorniano permeado por um pessimismo totalizador. A crĂtica desse autor nĂŁo se encerra totalmente nesse tal pessimismo Ă medida que desĂĄgua na possibilidade Âą utĂłpica Âą do tempo livre se WRUQDU ÂłWHPSR OLYUH SURGXWLYR´ 1R HQWDQWR FRQIRUPH R SUySULR $GRUQR S ÂłWHPSR OLYUH SURGXWLYR Vy VHULD SRVVtYHO SDUD SHVVRDV HPDQFLSDGDV > @´ GDt D importância da educação, pois ela seria a Ăşnica capaz de promover tal emancipação. Esse processo de emancipação se daria inicialmente pela via da negatividade, ou seja, GHYHULD ÂłVLPSOHVPHQWH FRPHoDU GHVSHUWDQGR D FRQVFLrQFLD TXDQWR D TXH RV KRPHQV VmR HQJDQDGRV GH PRGR SHUPDQHQWH´ $'2512 S RX VHMD HVVH processo deveria ser iniciado a partir da tomada de consciĂŞncia dos meios pelos quais o capitalismo, atravĂŠs da indĂşstria cultural, tem administrado o mundo. O mesmo Adorno que afirma em 1947, na DialĂŠtica do Esclarecimento, que nunca se chegou a uma verdadeira individualização, afirma tambĂŠm em 1969, em Tempo Livre TXH ÂłRV LQWHUHVVHV UHDLV GR LQGLYtGXR DLQGD VmR VXILFLHQWHPHQWH IRUWHV para, dentro de certos limites, resistir Ă apreensĂŁo [Erfassung@´ p. 116), e o primeiro passo para essa resistĂŞncia, para o exercĂcio mĂnimo da liberdade, seria dado por aTXHODV SHVVRDV TXH ÂłLQWHUHVVDGDV QHVWD GLUHomR RULHQWHP WRGD D VXD HQHUJLD SDUD TXH D HGXFDomR VHMD XPD HGXFDomR SDUD D FRQWUDGLomR H SDUD D UHVLVWrQFLD´ (ADORNO, 1995, p. 183). Portanto, apesar de nĂŁo negar (e acentuar) a alienação das massas, Adorno enteQGHX TXH HOD SDUHFH PXLWR PDLV XPD DOLHQDomR ÂłFRQVHQWLGD´ H FRPR GLVVH R PHVPR ÂłDV SHVVRDV DFHLWDP H FRQVRPHP R TXH D LQG~VWULD FXOWXUDO OKHV RIHUHFH SDUD R WHPSR OLYUH PDV FRP XP WLSR GH UHVHUYD´ $'2512 S ,QWHUSUHWDPRV DTXL HVVD ÂłUHVHUYD´ FRPR XP UHVTXtFLR GH FRQVFLrQFLD A esperança! Ă&#x2030; como se a consciĂŞncia crĂtica ainda nĂŁo tivesse sido completamente dissolvida. Tanto em Tempo Livre como em Educação e Emancipação Adorno expressa alguma fĂŠ na recuperação da autonomia por parte das massas 2X VHMD ÂłHPERUD originalmente pessimista, a tendĂŞncia, no decorrer da obra de Adorno, ĂŠ o caminho SDUD R RWLPLVPR GLDQWH GDV SRVVLELOLGDGHV ÂľXWySLFDVÂś GR ÂľWHPSR OLYUHϫ (FERNANDES, 2010, p. 47). No entanto, nĂŁo sob as condiçþes vividas na Europa atĂŠ
63
o final da Segunda Guerra Mundial. Primeiro, por causa dos regimes totalitĂĄrios e autoritĂĄrios; segundo, porque lĂĄ onde o homem se afirmou mais esclarecido, na Alemanha dos grandes filĂłsofos, aconteceu tambĂŠm o holocausto, o que para Adorno foi a maior prova de que a racionalidade tĂŠcnica havia destruĂdo o sonho da razĂŁo emancipatĂłria; por fim, por ter sido a indĂşstria cultural utilizada para todas essas mazelas sociais, desde o culto Ă imagem do fĂźhrer atĂŠ a exaltação do orgulho alemĂŁo atravĂŠs dos filmes de Joseph Goebbels, ministro da propaganda do Terceiro Reich. A imaginação havia sido obliterada, e junto a ela, toda capacidade criativa. Âł$GRUQR GHIHQGH TXH R WHPSR OLYUH GHYHULD VHU DTXHOH TXH R LQGLYtGXR WHP SRU benefĂcio, e nĂŁo por privilĂŠgio, para decidir, escolher e organizar segundo suas SUySULDV YRQWDGHV´ )(51$1'(6 S ( FRPR $GRUQR Mi KDYLD GLWR D indĂşstria cultural anda de mĂŁos dadas com o tempo livre, pois ĂŠ ela quem dita Ă s regras do que deverĂĄ ser consumido, colocando no mercado o que se quer e deixando a sociedade estruturalmente sem escolha efetiva (real). Contudo, ĂŠ justamente no meio desse turbilhĂŁo de acontecimentos que vemos que nem tudo ĂŠ aceito ou pelo menos nĂŁo totalmente aceito. O texto de Adorno foi publicado em 1969. Embora tenham se passado quase 50 anos da publicação do texto de Adorno sobre o lazer, datado de 1969, e o contexto histĂłrico seja completamente diferente, o texto ĂŠ incrivelmente atual. Estruturalmente os indivĂduos vivenciam diversas imposiçþes. Sejam elas na prĂłpria famĂlia, no trabalho, na escola, religiĂŁo, distintas ideologias, etc. NĂŁo importa o grupo social, todos vivenciam estas imposiçþes. Como cada indivĂduo lida com tais LPSRVLo}HV p TXH ID] D GLIHUHQoD Âł(P WRGRV RV VHXV UDPRV ID]HP-se, mais ou menos segundo um plano, produtos adaptados ao consumo das massas e que em grande PHGLGD GHWHUPLQDP HVVH FRQVXPR´ $'2512 S 'HVWH PRGR QĂŁo hĂĄ como pensar o lazer sem refletir acerca de toda estrutura educacional hegemĂ´nica. O lazer ĂŠ reflexo, pois, diretamente da educação vigente no espĂrito de nosso tempo, marcado por ideais de competitividade, individualismo e pragmatismo. TambĂŠm nĂŁo hĂĄ como pensar o lazer sem pensar nos tempos sociais em que estĂĄ inserido, dentro e fora do mundo das obrigaçþes. O mesmo ocorre com a indĂşstria cultural: o cerco
64
sistĂŞmico, a capacidade crescente de prescrição de desejos e o consumo como dominação do sujeito impactam diretamente na relação do indivĂduo com o lĂşdico, o Ăłcio... Assim, num contexto de educação para o status quo, de existĂŞncia de um ÂłWHPSR OLYUH´ TXH QmR OLEHUWD H TXH DSULVLRQD QR FRQVXPR H HP PDLV WUDEDOKR DOpP de todo avanço sistĂŞmico da indĂşstria cultural, o lazer deixa de ser, muito provavelmente, um momento lĂşdico-criativo para se tornar tempo e ação de mais ideologia, de mais consumismo, de mais prĂĄticas nĂŁo-emancipatĂłrias do indivĂduo (mais conformismo). O lazer deve educar, nele e para alĂŠm dele. Contudo, todos os limites apontados por Adorno mostram que o consumo do tempo livre tinha se tornado cada vez mais a produção de mais dominação. Mesmo assim, Embora originalmente pessimista, a tendĂŞncia, no decorrer da obra de Adorno, ĂŠ o FDPLQKR SDUD R RWLPLVPR GLDQWH GDV SRVVLELOLGDGHV ÂłXWySLFDV´ GR ÂłWHPSR OLYUH´ [...] Assim, suas contribuiçþes sĂŁo fundamentais para entendermos o lazer mercadoria (simples atividades colocadas no mercado de consumo, que nĂŁo obedecem a outro critĂŠrio senĂŁo o do lucro financeiro imediato) (FERNANDES, 2010, p. 47).
Logo, fecha-se (ou se abre, depende da perspectiva) este pequeno livro com a confiança de que a teoria crĂtica adorniana contribui decisivamente para evitar uma elaboração conceitual instrumental do lazer como mera recreação. Trata-se, pois, de um rico referencial teĂłrico crĂtico e disposto a denunciar as armadilhas do status quo, dentro e fora do tempo livre.
65
REFERÊNCIAS ADORNO, Theodor. Tempo livre. In: ______. Indústria cultural e sociedade. São Paulo: Paz e Terra, 2002. ______. Minima Moralia: reflexões a partir da vida lesada. Trad. Gabriel Cohn. Rio de Janeiro: Beco do Azougue, 2008a. ______. As estrelas descem à terra: a coluna de astrologia do Los Angeles Times. Um estudo sobre superstição secundária. Tradução de Pedro Rocha de Oliveira. São Paulo: Editora UNESP, 2008b. ______. Educação e emancipação. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1995. ______. Teoria da semicultura. Tradução de Newton Ramos-de-Oliveira, Bruno Pucci e Cláudia B. M. de Abreu. A revisão definitiva, feita pelo mesmo grupo, contou também com a colaboração de Paula Ramos de Oliveira. Publicado na Revista "Educação e Sociedade", n. 56, ano XVII, dezembro de 1996, p. 388-411. ______. A indústria cultural. In: COHN, Gabriel. Comunicação e indústria cultural. São Paulo: Nacional; Editora da Universidade de São Paulo, 1971. ______.; HORKHEIMER, Max. Dialética filosóficos. Rio de Janeiro: Zahar, 1985.
do
Esclarecimento:
fragmentos
CABRITA, Marcela Amália Pereira. Semi-formação, tempo livre e indústria cultural: contribuições de Theodor W. Adorno para uma teoria crítica do lazer. 66 f. Monografia (Graduação em Turismo) - Faculdade de Ciências Econômicas. Universidade do Estado do Rio Grande do Norte. Mossoró, 2013. ______; COSTA, Jean Henrique. Semi-formação, tempo livre e indústria cultural: contribuições de Theodor W. Adorno para uma teoria crítica do lazer. In: Semana de Tecnologia, Ciência e Inovação da UERN, 2013, Mossoró. Anais do IX Salão de Iniciação Científica: trabalhos completos. Mossoró: Edições UERN, 2013. p. 320327. COHN, Gabriel. Theodor W. Adorno. 2. ed. São Paulo: Ática, 1994. COSTA, Jean Henrique; CABRITA, Marcela A. Pereira; FARIAS, Tássio R. Pinto de. Notas sobre o tempo livre em Theodor W. Adorno. In: SOUZA, Galileu Galilei Medeiros de; SILVA, Francisco de Assis Costa da. (orgs.). Investigações sobre o agir humano. Mossoró, RN: Edições UERN, 2014.
66
COSTA, Jean Henrique. A atualidade da discussão sobre a indústria cultural em Theodor W. Adorno. Trans/Form/Ação, UNESP, v. 36, p. 135-154, 2013. ______. Revisitando o debate sobre o fetichismo na música e a regressão da audição em Theodor W. Adorno. Trilhas Filosóficas, UERN, v. 5, p. 59-76, 2012. EAGLETON, Terry. A arte depois de Auschwitz: Theodor Adorno. In: ______. A ideologia da estética. Tradução de Mauro Sá R. Costa. Rio de Janeiro: Zahar, 1993. FERNANDES, É. A. O. Lazer: tempo livre e indústria cultural. Contribuições de Adorno para os estudos do lazer. 54 f. Dissertação (Mestrado em Educação Física) ± Faculdade de Ciências da Saúde. Universidade Metodista de Piracicaba. Piracicaba, 2010. MEZZAROBA, Cristiano. Esporte e lazer na perspectiva da indústria cultural: aproximações preliminares. Esporte e Sociedade, ano 4, n. 11, mar.-jul. 2009. Disponível em: <http://www.uff.br/esportesociedade/pdf/es1105.pdf>. Acesso em: 08 de abr. 2014. NASCIMENTO, R. M.; MARCELLINO, N. C. Notas sobre as possíveis contribuições de Theodor W. Adorno para estudos sobre lazer. Licere, Belo Horizonte, MG, v. 3, n.1, 2010. Disponível em: <http://www.anima.eefd.ufrj.br/licere/pdf/licereV13N01_ar3.pdf>. Acesso em: 04 de abr. 2014. RAMOS, C. A dominação do corpo no mundo administrado: uma questão para a Psicologia Social. Psicologia Ciência e Profissão, Brasília, v. 24, n.1, p. 56-63, 2004. RICELLY, Tássio P. F. A indústria cultural na contemporaneidade. 53 f. Monografia (Graduação em Filosofia) - Faculdade de Filosofia e Ciências Sociais. Universidade do Estado do Rio Grande do Norte. Mossoró, 2013. ______.; COSTA, Jean Henrique. Indústria cultural, cibercultura e música independente em Brasília: um estudo com as bandas 'Amanita' e 'Feijão de Bandido'. In: Semana de Tecnologia, Ciência e Inovação da UERN, 2013, Mossoró. Anais do IX Salão de Iniciação Científica: trabalhos completos. Mossoró: Edições UERN, 2013. p. 1174-1182. ZUIN, Antônio Álvaro Soares. Sobre a atualidade do conceito de indústria cultural. Cadernos Cedes, ano XXI, nº 54, agosto/2001.