Jornal Memai - Letras e Artes Japonesas

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MEMAI w w w. j o r n a l m e m a i . c o m . b r

Letras e Artes Japonesas - Edição 02 - Curitiba - Verão de 2010

DESAFIOS DA TRADUÇÃO INDIRETA

Até os anos 90 a tradução por línguas intermediárias era a única alternativa 04

INSTANTÂNEOS DE SIMPLICIDADE

Haruo Ohara transportou o imaginário do imigrante japonês para a fotografia 10

UM POEMA DE JOSÉ KOZER

O cubano cria “Divertimento” tendo o Japão como idílio cultural 16

CORES VIBRANTES DE

TOMIE ohtake

A Dama das Artes Brasileiras conversa sobre vida, amigos e arte e revela porquê tem tanta vitalidade 06


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SUMÁRIO

要 約

MEMAI 03 CONCURSO NENPUKU SATO

10 PERFIL INSTANTÂNEOS DE SIMPLICIDADE

Vencedores da 1ª. edição

O fotógrafo Haruo Ohara, que transportou o imaginário do imigrante japonês para o território da arte é o retratado da seção, por Poliane Brito

04 TRADUÇÃO COMO VESTIR ROUPAS DE OUTRA PESSOA

Até os 80 traduções de literatura japonesa eram de línguas intermediárias e não do original em Japonês. Tais tentativas foram as únicas disponíveis no Brasil até os 90. Por Suzana Tamae Inokuchi

05 MINHA VERTIGEM

TOMIE OHTAKE

Os filmes que fizeram a história do Cinema Japonês

14 VIDA OOSOUJI – A GRANDE FAXINA Nossa colunista fala como aprendeu a gostar de fazer uma limpeza interior a cada fim de ciclo. Por Lina Saheki

Leitores muito especiais indicam leituras e atrações culturais vertiginosas

06 ENTREVISTA

13 CINEMA

AS CORES VIBRANTES DE

A ambigüidade típica japonesa transparece nesta conversa, por email, com Tomie Ohtake , a artista que cria obras de tirar o fôlego. Por Sandra Hiromoto e Marilia Kubota

15 LANÇAMENTOS Resenhas de O Som da Montanha, de Yasunari Kawabata e Koando, Komo, Onde, de Tadeu Wojciechowski

16 FICÇÃO DIVERTIMENTO Um poema de José Kozer traduzido por Zapparoli

Adriana

UMA PONTE ENTRE DOIS LUGARES

UMA PALAVRA

por Marilia Kubota

Já na terceira edição, o JORNAL MEMAI tem algumas histórias para contar. A primeira e mais visível é de uma revolução visual. Ganhamos uma nova marca e um projeto gráfico arejado. Quem assina o remodelagem do jornal é a artista plástica Sandra Hiromoto, convertida ao cult japonês nos 100 anos da Imigração Japonesa. Nesta edição, o destaque é para a vida e obra de Tomie Ohtake e Haruo Ohara - japoneses de nascimento que adotaram o Brasil e se apaixonaram pela cultura tupiniquim. Para construir suas obras reconhecidas pela crítica e público, os artistas aparentemente transitaram em pólos opostos. Morando em São Paulo, Tomie teve contato com a vanguarda do circuito das artes. Este contato a estimulou a realizar uma obra Geral: Marília Kubota Expediente Editora Editora Assistente: Mylle Silva

caracterizada pelo rigor formal. Ao mesmo tempo, ela se orgulha de continuar sendo uma “dona de casa” aos 96 anos e diz que a relação de sua obra com a filosofia zen é mais uma conversa de especialistas. Em outra ponta, Haruo Ohara passou a vida no interior do Brasil, na cidade de Londrina. O trabalhou na lavoura não o impediu de fotografar as cenas de seu cotidiano. Sua obra começou a ganhar o mundo a partir de exposição no Festival Internacional de Artes Cênicas de Londrina, em 1988. E a vertigem se alastra. Amigo há longa data do escritor Wilson Bueno, o poeta cubano José Kozer vibrou ao ler a entrevista com ele na edição 00. E mandou de presente para a

Editora de Artes: Sandra Hiromoto Convidados especiais: Tomie Ohtake e José Kozer Colaboradores: Adriana Zapparoli, Eliége Jachini, Luisa Sprenger Bodnar, Poliane Brito, Rodrigo Garcia Lopes, Simonia Fukue Nakagawa e Teruko Oda. Colunistas: Lina Saheki e Suzana Tamae Inokuchi Apoio editorial: Marcy Junqueira, da Pool Comunicação (assessoria de Tomie Ohtake) e Nathalia Pazini (assessoria Instituto Moreira Salles), Jorge Yamawaki e Teruo Kato. Apoio Logístico: Associação Paranaense de Ex-Bolsistas Brasil- Japão (APAEXPR). Projeto Gráfico/diagramação: Sandra Hiromoto Imagem da capa Tomie Ohtake - sem título, 1993 foto Tomie Ohtake - Nelson Kon Impressão O Estado do Paraná Tiragem 2000 unidades Verão de 2010

equipe do jornal, alguns poemas em que ponto de partida é a cultura japonesa. Publicamos um deles, traduzido do espanhol por Adriana Zapparoli, inaugurando a seção Ficções, que passa a receber colaborações de criações literárias. Com tais histórias, estabelecemos que ser uma ponte entre várias artes e culturas é o motor de nosso projeto. Além de abrigar textos sobre literatura e artes, abrimos espaço para fotografia e cinema. A ponte é uma imagem clássica nas gravuras da arte japonesa. Para nós, é um símbolo de busca do Outro. Para quem quiser fazer esta travessia desejamos uma leitura vertiginosa.

Email : contato@jornalmemai.com.br Correspondência: Av. Jaime Reis, 28 - sobreloja - 80.510-010 São Francisco - Curitiba – PR Assinaturas: 4 edições R$ 25 (nacional) R$ 50 (internacional) ERRATA: Nossos colaboradores detectaram uma falha no artigo “Os cinco estilos de haicai no Paraná”, de José Marins, publicado na edição 01 foi . Segundo observações de Teruko Oda e Gustavo Felicíssimo, existem duas – e não quatro, como está publicado - rimas no haicai guilhermino: uma do 1º com o 3° verso e outra interna, da 2ª com a 7ª sílabas do segundo verso. Agradecemos aos haicaistas pela atenção e pedimos desculpas aos leitores pelo erro de revisão.


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CONCURSO NACIONAL DE HAICAI

NENPUKU SATO

- Feliz Ano Novo! A voz de meu pai velhinho Cada vez mais débil.

Dia de Ano Novo – Numa janela de asilo Um grou de papel

Calendário Novo Pendurado na parede Quais são as surpresas!

Francisco Handa São Paulo - SP

Eduard Tara Romania – Europe

Tereza Delong Irati – PR

REGULAMENTO Realizamos o 1º. Concurso Nenpuku Sato 2010. Os quatro melhores poemas, escolhidos pela haicaista Teruko Oda, estão publicados nesta página. Os vencedores receberão os livros Boa Companhia, organizado por Rodolfo Witzig Guttilla, A Vida Secreta do Senhor Musashi, de Junichiro Tanizaki, “e O Violoncelista, de Lúcia Hiratsuka. Haverá mais 3 concursos, com premiação em maio, agosto e novembro. Os poemas inscritos devem ser inéditos, escritos em língua portuguesa e seguir as regras do haicai japonês, como descritos no Site Caqui (www. kakinet.com.br) e difundidos pelos grêmios de haicai em todo o Brasil: ter um kigo, seguir a métrica, não ter título, rima nem subjetividade.

Podem concorrer maiores de 16 anos (inclusive), amantes do haicai, sem distinção de raça, credo, classe social, participantes ou não de grêmios e/ou Encontros de Haicai. COMO ENVIAR 1. Enviar os trabalhos em duas vias, em uma única remessa/ envelope; 2. Se mandar mais de um poema, digitar todos na mesma página. Reservar um espaço no rodapé da primeira via, onde deve constar nome do(a) participante, RG, profissão, endereço completo com CEP, telefone/fax, e-mail . 3. A segunda via deverá vir sem nenhuma identificação, no mesmo envelope. De preferência, não enviar manuscritos.

Dr Helio Hashimoto

PRAZO PARA O ENVIO: 1. Para o concurso de maio: 30/04/2010 2.Para o concurso de agosto: 31/07/2010 3. Para o concurso de novembro: 30/10/2010 PARA ONDE ENVIAR: Os trabalhos (até 3 poemas) devem ser enviados para: JORNAL MEMAI/Concurso Nenpuku Sato Rua Jaime Reis, 28 – São Francisco 80.510-010 – Curitiba - PR

CRM: PR10442

Dr. Milton Hiromu Kumagai

Clínica Médica Reumatologia

Urologia

Rua Buenos Aires, 441 / Cj 1112, BATEL

tel.: (41) 3225-5292

AVENIDA IGUAÇU 1236 - 1º andar SL 116
- Curitiba / PR

Tel.: (41) 3259-6670

俳 句 HAICAI

MEMAI


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TRADUÇÃO

俳 句

MEMAI

COMO VESTIR ROUPA DE OUTRA PESSOA Até os anos 80 as traduções de literatura japonesa eram feitas de línguas intermediárias – inglês, francês, espanhol – e não diretamente do original. Tais tentativas foram as únicas disponíveis no Brasil até os anos 90 Por Suzana Tamae Inokuchi

Após meu entusiasmado artigo sobre os rumos da tradução direta de romances japoneses nos anos 90, surgiu a idéia de enfocar o período anterior, para responder às questões que o próprio texto suscitou. O que era feito da tradução de autores japoneses até os anos 80? Quais os processos de tradução disponíveis no mercado? Quem eram os autores mais traduzidos, os mesmos da atualidade ou há lacunas a preencher? Há diversas questões a serem consideradas sobre a tradução de língua japonesa ocorrida até os idos de ‘80, devido ao fato de que foi empregado, no período, mais de um método de tradução. Um deles era a tradução indireta;. Outro, a tradução indireta “artesanal”, efetuada não por especialistas, mas por pessoas da comunidade interessadas em difundir a literatura japonesa no Brasil. Neste primeiro momento pretendo enfocar apenas um desses processos, a tradução indireta. Esse foi o método utilizado prioritariamente pelas editoras de grande porte. Como o próprio nome indica, a tradução indireta é o método de tradução de texto que não se reporta diretamente aos originais – no caso, em japonês – mas a versões veiculadas em idiomas como o inglês, o francês, o alemão, o italiano e o espanhol; pertencentes ao eixo entre os Estados Unidos e a Europa. São traduções efetuadas em países que já dispunham de tradução direta consolidada de autores japoneses

Shusaku Endo

há bastante tempo. Vou tomar como autorexemplo deste artigo uma observação feita por Geraldo José de Paiva, professor do Instituto de Psicologia da Universidade Federal de São Paulo. Ele estranhou a ausência, no artigo anterior, de Shūsaku Endō, autor largamente traduzido para o português. Também senti esta lacuna na elaboração daquele texto; entretanto, trata-se de uma questão alheia à minha alçada devido ao seu caráter unicamente mercadológico. Endō, tão frequente nos títulos oriundos do processo de tradução indireta, não foi retomado no momento atual em que há uma predominância de traduções do japonês. Assim, ele é a grande ausência que responde, em parte, à última pergunta que fiz. Esta questão não parece derivar de um desinteresse por parte dos leitores, mas de um encaminhamento das editoras, que se esqueceram deste autor japonês contemporâneo significativo, principalmente em se tratando da literatura católica japonesa. Esperemos que o nosso interesse mútuo e os questionamentos feitos levem ao lançamento de traduções diretas de romances como, por exemplo, O samurai (1980) e Escândalo (1986). Até que isso aconteça, os leitores brasileiros podem conhecer um pouco da dicção deste escritor – salvaguardadas as limitações do método de tradução empregado (explicadas a seguir) – nas inúmeras bibliotecas e sebos do país. Lá, encontram-se edições traduzidas, geralmente, em duas etapas: do japonês para um idioma intermediário e, posteriormente, a tradução destes volumes estrangeiros para o português a partir desse idioma “ponte”. Em casos extremos, as etapas multiplicam-se devido ao fato de que a tradução para o português é feita de uma matriz, por sua vez, traduzida indiretamente.

Kenzaburo Oe

Podemos citar alguns nomes de tradutores que se envolveram na tradução indireta de Shūsaku Endō, tais como Luiz Horácio da Matta e Edyla Mangabeira Unger (ambos tradutores do inglês). Nesse ponto, um leitor que não conheça a fundo o processo de tradução, mas reconheça um desses nomes, pode se questionar porque uma tradução feita por um tradutor experiente como Luiz da Matta – tradutor de autores tais como Virginia C. Andrews, Frank de Felitta e Edgar Wallace – não equivale às traduções diretas. A resposta não está no tradutor, mas no processo empregado: a tradução indireta. Isto significa que os volumes em língua estrangeira foram pensados para os seus respectivos públicos e, obviamente, não considera as especificidades do público leitor no Brasil. Além disso, as notas de rodapé, caso existam, estão, novamente, vinculadas à cultura estrangeira em questão, quer seja norte-americana, francesa, etc. Desta forma, essa tradução é como vestir a roupa de outra pessoa, a numeração, o corte, o gosto... Nada parece se adequar. IMPASSE No caso do mercado editorial norte-americano, em particular, há mais uma questão a se considerar – processo de corte. As editoras daquele país têm por hábito desmembrar obras de culturas muito diferentes da sua, retirando dos romances e novelas as passagens em que o aspecto cultural diferenciado lhes pareça incompreensível para o seu público leitor. Assim, uma tradução indireta oriunda do inglês pode conter não um romance completo, mas o texto mutilado do qual algum editor tenha eliminado fragmentos textuais problemáticos culturalmente, com


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a finalidade de tornar o todo palatável e inteligível para o leitor norte-americano médio. Em suma, a tradução indireta ocorre para suprir um impasse editorial: por um lado, as editoras desejam colocar títulos de literaturas exóticas fora do eixo Estados Unidos-Europa; por outro, não estão interessadas em investir na tradução direta nesses idiomas tidos como exóticos, através do aumento do quadro funcional através da contratação de novos profissionais. A existência do método de tradução indireta é um indício de que uma literatura nacional específica não se consolidou comercialmente no idioma e no país em que a tradução é efetuada. Esse amadurecimento independe, na maioria das vezes, da qualidade da literatura nacional em questão, como a literatura japonesa, que é bastante apreciada em outros países há muitas décadas (e começa a ser reconhecida também em nosso país) e conta com dois Prêmios Nobel de Literatura: Yasunari Kawabata em 1968 em e Kenzaburo Oe em 1994. Então, o que acontecia no Brasil até o final da década de ’80 era exatamente isso, havia uma parcela de leitores para os livros de autores japoneses, mas não era uma parcela significativa o bastante para que houvesse um esforço real no sentido de depurar o processo de tradução em língua japonesa. Foi preciso um amadurecimento do mercado – devido, em grande parte, à imensa repercussão de público e crítica obtida pelo primeiro volume do romance Musashi, de Eiji Yoshikawa – para que a tradução direta de escritores japoneses se firmasse no país. Mesmo com essas limitações, que distanciam o texto traduzido do original em japonês, essa foi a maneira pela qual não apenas Shusaku Endo, mas também outros autores de destaque na literatura japonesa, tais como Kawabata, Junichiro Tanizaki e Yukio Mishima, dentre outros, puderam chegar às mãos dos leitores brasileiros durante um longo período de tempo. Desta forma, a tradução indireta não é exatamente o método ideal de tradução; entretanto, muitas vezes, ela é a única alternativa viável, embora provisória, para aproximar uma literatura específica de seu público receptor. Suzana Tamae Inokuchi é graduada em

Relações Públicas e Letras e mestranda em Estudos Literários na Universidade Federal do Paraná, além de poeta e contista..

O mangá Full Moon wo Sagashite (de Arina Tenemura, editora JBC). A série de 7 volumes conta a historia de Mitsuki, uma garota cujo sonho é ser cantora , para assim reencontrar seu amor de infância, mas como tem câncer na garganta, certo dia é visitada por uma dupla de shinigamis que a informam que ela só tem mais um ano de vida. Assim, para aproveitar seu pouco tempo, com a ajuda deles , ela faz de tudo LUISA SPRENGER DE OLIVEIRA para seu sonho se concretizar. é estudante no Curso de Língua Full Moon mistura romance, Japonesa de Curitiba Bunkyo. drama, fantasia e comédia de uma forma apaixonante, além do traço impecável.

Indico o livro Trilha Forrada de Folhas, do Maurício Arruda Mendonça, com haikus do poeta nipo-brasileiro Nenpuku Sato, que chegou ao Brasil em 1927 e foi praticamente descoberto e traduzido por Maurício neste trabalho importante de resgate. Sato teve como mestre um dos quatro grandes do haiku japonês, Kyoshi, e foi incumbido de trazer o haiku ao Brasil e difundi-lo na colônia. A introdução de Maurício é oportuna. Sato teve que de certa forma adaptar o haiku para a nova realidade e paisagem brasileira. Um trabalho muito bem realizado, com gosto de quero mais. Os haikus são simples, mas com o poder de observação e de captar o instante com palavras, o que está no melhor da tradição deste gênero.

RODRIGO GARCIA LOPES é poeta, tradutor e ensaísta, autor dos livros Vozes & Visões, Solarium, Visibilia , Polivox e Nômada. Traduziu Arthur Rimbaud, Sylvia Plath, Laura Riding., Walt Whitman, entre outros.

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私 の 眩 暈 MINHA VERTIGEM

MEMAI


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AS CORES VIBRANTES DE TOMIE OHTAKE

Os críticos fazem questão de aproximar suas obras da arte japonesa. Na vida pessoal, Tomie é enfática na identificação com a cultura brasileira. Nesta entrevista a ambiguidade típica japonesa transparece e a artista revela um pouco sobre sua vida, os amigos e carreira na Terra Brasilis.

A “Dama das artes plásticas brasileiras”, Tomie Ohtake, nascida em Quioto, em novembro de 1913, veio para o Brasil em 1936. Iniciou a carreira artística aos 40 anos, construindo uma impressionante trajetória no panorama das artes, dentro e fora do Brasil. Sua biografia compreende inúmeros prêmios, incluindo exposições individuais no Japão, EUA, Inglaterra, Itália, Áustria, Argentina, Espanha, França, Canadá, Dinamarca, Porto Rico, Peru e Equador, além de participação em bienais do mundo todo. Aos 96 anos, com o mesmo frescor e habilidade da juventude, a artista tem a capacidade de se recriar em suas obras. Nelas se percebe a expressividade da cor e da textura, onde a transparência

FOTOGRAFIA: NELSON KON

ENTREVISTA

イ ン タ ビ ュ

MEMAI

imprime uma marca peculiar, elementos de uma pintura própria que dialoga com várias linguagens plásticas. Em sua poética, o rigor formal dialoga com o silêncio zen e se contrapõe à intensidade de expressão. Com poucas, mas intensas cores, a artista aproxima o pensamento construtivo e a pincelada gestual, como um movimento caligráfico, resultando em obras que remetem a ambigüidades e tensões. Apesar da pintura ser a espinha dorsal de sua arte, a artista domina com maestria a gravura, técnica em que a serigrafia e litogravura tiveram destaque especial - nos últimos 25 anos, é a gravura com matriz em metal que o tem. Mesmo de caráter abstrato muitas das imagens sugerem paisagens, movimentos e curvas orgânicas, de cores

quentes e fortes. Numa série especial, as gravuras avançam num plano perpendicular, criando “objeto-gravuras”, que, de tão inovadoras foram reconhecidos internacionalmente, sendo a artista convidada para participar da sala Grafica D’Oggi na Bienal de Veneza. Tomie Ohtake dedica-se também a esculturas, de caráter abstrato e monumental. Ela propõe intervenções nos mais variados espaços urbanos. Das suas curvas e cores vibrantes, apoiadas na terra ou na água, as esculturas também estão suspensas, elegantemente desafiando o tempo e a gravidade, mostrando mais uma vez a inovação do espírito da sua criadora. ( Sandra Hiromoto )


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MEMAI – Sua chegada ao Brasil é semelhante à história de muitos imigrantes japoneses. Veio visitar um irmão e ficou aqui por causa da guerra sinojaponesa. Quais as primeiras impressões sobre este colorido país tropical? TOMIE - A rigor, eu não vim como imigrante, vim com um irmão para visitar outro que aqui tinha negócios de importação e exportação. E como você disse, a guerra sino-japonesa impediu a minha volta e aqui fiquei, casando e tendo dois filhos. Logo que cheguei, era dezembro, o calor era muito forte e senti que a atmosfera tinha a cor amarela, e depois vi que as cores fortes predominavam. Gostei do Brasil e me adaptei rapidamente, nunca morei em bairros que tivessem japoneses. A comida era ótima, desde o dia que cheguei a Santos, quando meu irmão me levou a um restaurante onde comi bife a cavalo, arroz temperado de cor rosada. Meus filhos foram estudar em escola primária católica porque a população era desta religião e eu achava importante eles serem educados na cultura brasileira, e estudaram em colégio estadual (público). MEMAI - De que modo o shodo (arte da caligrafia), que a senhora praticava no Japão teve reflexos no desenvolvimento de sua pintura? TOMIE - Não existe uma semelhança formal entre a caligrafia e a minha pintura, mas existe uma relação de postura para quem faz caligrafia e pintura, como o manejo do pincel, a técnica do uso de tintas e, pensando bem, eu tive, entre 1959 e 1962, uma fase chamada pelo crítico Paulo Herkenhoff de “pinturas cegas”. São trabalhos que eu fiz tapando os olhos e executando pinceladas automáticas, realizadas a partir de conversas com Mario Pedrosa, o mestre dos críticos de arte brasileiros. A propósito, Herkenhoff fará a curadoria da exposição dessa fase, ainda neste semestre, na abertura do novo prédio do Museu de Arte Contemporânea, no Parque Ibirapuera, em São Paulo.

23 de maio, São Paulo- 1988

MEMAI

MEMAI - A senhora começou os estudos de pintura tomando aulas com o artista plástico japonês Keisuke Sagano, já em São Paulo, em 1944. Como foi deixar de ser uma dona de casa para passar a ser uma artista?

Logo que cheguei ao Brasil, o calor era forte e senti que a atmosfera tinha a cor amarela, e depois vi que as cores fortes predominavam. Gostei e me adaptei: nunca morei em bairros japoneses. A comida era ótima, comi bife a cavalo, arroz de cor rosada. O processo de realizar as pinturas não se deu de um dia para outro. Levou anos, porque nunca deixei de ser dona de casa. Até hoje sou eu que administro minha vida e minha casa, onde também funciona o meu ateliê. A arte vai se introduzindo aos poucos. O contato com Sugano durou em torno de um mês, uma vez por semana, sendo mais um incentivo à prática do que aulas. Era uma pessoa sensível, transmitia ótimos conselhos da vida na arte. O período da arte entrar na minha vida levou uns cinco anos, quando, então, foi possível me concentrar

primordialmente na pintura. Já tinha ganhado prêmios, participado de coletivas, salões, e realizado a 1ª. individual no Museu de Arte Moderna quando senti que estava dando um rumo ao meu trabalho. Até então foram tentativas e experimentos que não levavam a um caminho. MEMAI - Como era a convivência com o poeta Haroldo de Campos, com quem a senhora criou a série YU-GEN, gravuras e poesia? TOMIE - A proximidade foi maior com os artistas neoconcretos, principalmente os paulistas, Willys de Castro e Hércules Barsotti, e o critico Mario Pedrosa. Willys me visitava toda semana, para discutirmos questões de arte e particularmente a minha pintura. Creio que os neoconcretos tiveram interesse pela fase das “pinturas cegas” e, por isso, Hélio Oiticica me visitava quando vinha a São Paulo, assim como Ligia Pape e bem mais tarde, Amílcar de Castro. Haroldo de Campos e Carmen (sua mulher) tornaram-se amigos mais tarde, creio que depois da ida dele ao Japão, por volta de 1990. Haroldo conversava muito sobre cultura japonesa até que um dia Claudio Vasques, meu mestreimpressor de gravuras, inventou de realizarmos, Haroldo e eu, o álbum Yu-gen com os haicais que o poeta escreveu sobre o Japão. Eu criei gravuras com os manuscritos dele nas próprias imagens.


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MEMAI MEMAI - Numa entrevista a MEMAI - Muitas de suas obras e ambas estão contidas na senhora diz inspirar-se na são esculturas públicas. Em pergunta. A primeira é levar em noção de tempo do ukiyo-e*, geral este tipo de obra de conta que uma obra é para ser arte japonesa que revela cenas grandes proporções, projetada colocada num local específico, de uma beleza fugaz. Como é para espaços públicos tende diferente de uma pintura de traduzir esse pensamento? Seu a ser “apagada” na paisagem cavalete ou uma escultura móvel, trabalho tem pontos de diálogo urbana. Mas suas obras se que são obras de museu (ou com o de gravuristas célebres destacam. Qual o segredo galeria ou residência). A obra deste período, como Hokusai, para criar monumentos que pública tem que dialogar com sejam apreciados pelo público o local em que está colocada e Hiroshigue e Sharaku? este diálogo se dá com o espaço, TOMIE - Diferença fundamental comum? entre meu trabalho e o ukiyo-e é que TOMIE - Existem duas questões com a arquitetura em volta, com meu trabalho é abstrato e a gravura básicas para que a obra pública a natureza/paisagismo etc., das japonesa mostra a vida e seu seja considerada como tal, maneiras mais variadas possíveis, pois é essa percepção e sua cotidiano, as pessoas bonitas A diferença entre meu criação que tornam a obra e heróis, as paisagens e a natureza, as ruas e as cidades. trabalho e o ukiyo-e é que meu mais ou menos interessante. Num determinado instante trabalho é abstrato e a gravura Por outro lado, o trabalho e principalmente a partir de japonesa mostra a vida e seu faz parte de um espaço por Hokusai e Hiroshigue é possível cotidiano: pessoas bonitas onde circulam milhares de pessoas e que passam por perceber uma subjetividade e heróis, paisagens, as lá, não para observar a obra no desenrolar da cena. Tal cidades. A partir de Hokusai e de arte, como no museu, subjetividade é que tem em Hiroshigue pode-se perceber mas que se defrontam comum com a pintura abstrata, e se você verificar o meu subjetividade nas cenas, o que com algo que não é de seu trabalho em alguns momentos tem em comum com a pintura interesse imediato. A obra precisa ser identificada pelo da minha trajetória, há algo que abstrata, e meu trabalho. passante e estabelecer é captado num certo momento. uma conversa. É minha luta *Ukyo-ê conhecida também como xilogravura à base d´água, o ukyoê é uma arte japonesa introduzida no ocidente através dos artistas impressionistas : Van em cada trabalho desses, porque Gogh, Gaugin são os pintores mais conhecidos influenciados pela gravura a não clareza dos dois casos permite que eu possa realizar japonesa. uma excelente obra de arte, mas não uma boa obra pública. MEMAI - Como foi seu encontro com Yoko Ono? Como está o projeto de escultura em homenagem a John Lennon? TOMIE - Quando Yoko Ono realizou a sua exposição em São Paulo em 2008, Emilio Kalil, o organizador da mostra, a trouxe em minha casa, conversamos muito e no dia seguinte ela propôs que fizéssemos uma obra pública juntas, o que ocorre com certa dificuldade pela distância que nos separa, mas também porque empreender uma obra pública é muito complexo. MEMAI - O crítico Paulo Herkenhoff diz que sua obra reconcilia a tradição e a modernidade. Outros críticos, como Frederico Morais e Miguel Chaia falam sobre a influência do zen. Em suas obras a senhora usa o conceito de vazio, central na filosofia zen-budista?

Sem título - 1969


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MEMAI TOMIE - Acho melhor você perguntar estas coisas ao Paulo, Frederico e Miguel, porque eu mesma nem sei como me relaciono com o zen-budismo. MEMAI - Além de realizar exposições de suas obras, o Instituto Tomie Ohtake divulga trabalhos de artistas contemporâneos e japoneses. Jovens talentos têm oportunidade no espaço? TOMIE - O Instituto Tomie Ohtake realizou uma retrospectiva com meus trabalhos na inauguração, uma exposição com as pinturas e esculturas que antecederam a obra pública, uma mostra com as obras da coleção Miguel Chaia e algumas pequenas exposição de gravuras, nestes oito anos de existência. As outras 130 mostras são de outros artistas e a outra questão pode ser respondida pelo Ricardo, que preside o Instituto. Ricardo Ohtake : a cada 2 anos, o Instituto Tomie Ohtake promove uma mostra para artistas com menos de 27anos que nunca tiveram uma individual. Um júri reconhecido seleciona até 30 obras para uma exposição no Instituto.Há prêmios culturais para os três melhores trabalhos. A próxima convocação já foi iniciada, e a exposição acontecerá em agosto de 2010. O resultado do incentivo é que meio ano após a última mostra, pelo menos metade dos artistas selecionados já tinha convites para participar de outras exposições. Isso demonstrou que o incentivo do Instituto foi importante , e

Memorial da América Latina São Paulo- 1990

que curadores, galeristas e dirigentes estão atentos ao projeto.

A obra pública é colocada num local diferente de obras de museu. Tem que dialogar com o espaço público, por onde circulam pessoas que se defrontam com algo não de seu interesse imediato. A obra precisa ser identificada e estabelecer uma conversa. MEMAI - A senhora está desenvolvendo algum projeto atualmente? Como

Dr. Airton Seiji Yamada CRM PR 12977

• UNIDADE NUCLEDENSITO
 Prudente de Moraes, 644
Curitiba Tel.: (41) 3083-6100 • UNIDADE NUCLECOR
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 Rua Rosa Saporski, 229 Curitiba Tel.: (41) 3335-8181 / 3015-4271

encontra vitalidade e inspiração para vencer as barreiras do tempo e criar? TOMIE - Estou desenvolvendo dois projetos públicos e preparando uma exposição de pintura, com os trabalhos que estou realizando desde setembro e que deve acontecer ainda no primeiro semestre, a primeira de obras atuais que terei no Instituto Tomie Ohtake. Se você acredita no que faz, a vitalidade e inspiração aparecem. Como as perguntas da entrevista que foram muito interessantes e como o JORNAL MEMAI, que levanta ótimas questões. Parabéns. Muito obrigada.

Sandra Hiromoto é artista plástica e designer. Participou de mostras coletivas e salões de arte nacionais, recebeu diversos prêmios. Expôs em Ehime, Kumamoto, Yokohama e Kobe no Japão, Ceuta, Córdoba e Madri na Espanha. Marília Kubota é escritora e jornalista, integrante de 6 antologias de poesia e crônicas, publicadas no Brasil, Argentina e Portugal. Foi organizadora da exposição Arte Nikkei no Centenário da Imigração Japonesa e Concurso Nempuku Sato 2008. É autora do livro Selva de Sentidos (2008).


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INSTANTÂNEOS DE SIMPLICIDADE EM HARUO OHARA Por Poliane Brito

O meio rural não foi limitador para o artista, que soube tirar proveito do ambiente em que vivia tornando-se mestre da luz natural e cronista do cotidiano da cidade de Londrina, durante os 50 anos de sua atividade por trás das lentes. Prestes a completar 18 anos, em 1927, Haruo Ohara deixou a cidade de Kochi, no sul do Japão, rumo ao Brasil a bordo do navio Hawaii Maru em busca do kane no naruki (Pé-dedinheiro, o café) junto com os pais Massaharu Ohara e Kuniju Ohara. No Brasil iniciaram o cultivo de batatas no interior paulista e em 1933 mudaram-se para Londrina, onde assumiram o lote número 1 da cidade - conhecido como Chácara Arara - passando a plantar café, frutas e flores. Mesmo com a nova realidade de agricultor, Haruo não deixou de

ser um homem culto, ele gostava de fotografia, literatura, poesia e música erudita. Londrina tornou-se para o jovem imigrante cidade natal e local onde conheceu atividade que viria a ser uma paixão: a fotografia. Não seguiu influências de um nenhum retratista em especial, mas foi o amigo José Juliani, fotógrafo da Companhia de Terras do Norte do Paraná, que trouxe o primeiro contato com a arte de registrar em filmes de prata cenas e pessoas, ao clicar o rennai-kekkon (casamento) de Haruo com Kô Sanada, em 1934. De acordo com o neto de Haruo, Saulo, o avô costumava se referir a Juliani como mestre. A partir de 1938, Haruo passou a fotografar sem deixar de lado o cultivo da lavoura e tornou-se um autodidata no meio do sertão, aprendendo com amigos, revistas e livros técnicas e conceitos fotográficos, o que foi suficiente para deixálo informado das tendências da arte mesmo vivendo numa cidade ainda isolada do eixo de informações culturais e econômicas. Em 1951, a família vendeu as terras da Chácara Arara para a construção de novo aeroporto e outra parte para loteamento de casas. Na rua São Jerônimo, no centro londrinense, passou a residir em um sobrado e registrou a nova realidade que o cercava. No mesmo ano fundou o Foto Cine Clube de Londrina e filiou-se ao Foto Cine Clube Bandeirantes de São Paulo.

Crédito: Haruo Ohara/ Acervo Instituto Moreira Sall

PERFIL

プ ロ フ ィ ル

MEMAI

Magro, sempre asseado, sem vícios e notável humor, mas introvertido era sempre aguardado pela vizinhança com a máquina registrando, ao rigor da composição, cenas que revelam um estudo exaustivo da luz, o enquadramento clássico, Maria, filha de Haruo, e Maria Tomita, sobrinha, 1955. Sítio Tomita, Londrina-PR

um clique desapressado, alguma ironia e um senso de humor que refletia traços de personalidade, segundo muitos depoimentos de familiares e amigos. Através da arte de retratar encontrou um jeito próprio e singular de contar a própria história. “Se no início talvez [a fotografia fosse] apenas como puro registro, com o aprofundamento dos conhecimentos tornou-se o meio de expressar as impressões do novo mundo que ele adotou como lar, e também como arte”, relata o neto Saulo. A família foi um tema constante em seus cliques, mas de acordo com o historiador e biógrafo de Haruo, Rogério Ivano, pensar na família, no contexto da vida social de Haruo, não é apenas referir-se à esposa, pais, filhos, netos, mas também aos irmãos, parentes, aparentados, velhos e novos amigos. “Pela quantidade de fotografias e rostos, percebese que família, para Haruo, era esse macrocosmo social, e não o atual ‘núcleo familiar’, de duas ou três pessoas. O que se nota é a captura de uma beleza do dia-adia familiar, o registro da vivência cotidiana, pois não são muitas as imagens de ritos ou passagens sociais, como casamentos, batizados, enterros. Família, neste caso, era sua rotina, não uma instituição”. O clique universal Considerado um dos pioneiros da fotografia londrinense, Haruo revelou ao mundo o cotidiano através da universalidade dos cliques, como conta Ivano: “revelar ao mundo a sua aldeia. Esta é a universalidade que as fotografias de Haruo possuem. Sua fotografia só é londrinense ou paranaense porque antes de tudo é uma fotografia universal, e não o


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Participou de inúmeros salões fotográficos com algum reconhecimento. Em 1988, data comemorativa dos 80 anos de imigração japonesa, foi homenageado pelo pioneirismo e memória fotográfica de Londrina. A família acredita que Haruo, em vida, não imaginava que um dia sua obra fosse reconhecida, mas segundo relato do neto Saulo, “ele [Haruo Ohara] sabia que eram boas fotos, de qualidade estética e técnica”.

Crédito: Haruo Ohara/ Acervo Instituto Moreira Salles

inverso ”. Mais do que a estética ou a escolha de temas, de acordo com Ivano, é a relação de Haruo com o próprio olhar que torna a obra tão importante. Ele não criou apenas belos registros, grandes retratos, mas fez com que a imagem também pudesse revelar a maneira como via as coisas e, assim, o sentimento sobre elas.

Terreiro de café – Sunao, filho de Haruo, c. 1949. Chácara Arara, Londrina-PR

com Ivano, deixar a arte para Haruo seria como deixar de ver. Os amigos contam que ele dizia que se tivesse captado a melhor imagem já tinha parado, tinha chegado ao final. E ele só parou quando o Alzheimer não deixou mais.

cuidado os negativos e separouos por tema. O violinista Haruo, leitor ávido de literatura japonesa, fã de Shimazaki Toson, Ryonosuke Akutagawa, Junichiro Tanizaki e dos haicais de Nenpuku Sato, clicou imagens em preto e branco e também coloridas.

poses e descrevendo o conteúdo registrado em cada uma das imagens. Guardou com extremo

na madrugada de 25 de agosto de 1999, dois anos depois dos primeiros sinais do Alzheimer.

Estudava minuciosamente a imagem que gostaria de compor para depois decidir o momento certo de fazer a foto, tudo era pensado antes e dificilmente Haruo se rendia ao acaso. Costumava dizer que a cada 10 cliques, apenas 3 fotografias ficavam verdadeiramente boas. A agricultura era a atividade de onde tirava sustento para a mulher e os 9 filhos e dinheiro para a manutenção da arte, a fotografia. O laboratório para revelação que tinha em casa ficava embaixo da escada que levava aos cômodos superiores do sobrado. O espaco era diminuto 2 metros de comprimento, 1 de largura e 1,5 de altura - onde cabia Haruo sentado e os apetrechos. Embora fazer foto na época não fosse coisa barata, de acordo

Crédito: Haruo Ohara/ Acervo Instituto Moreira Salles

Às vezes, ainda com a primeira luz do dia, Haruo tirava da cama algum dos filhos para fotografar. Outras Deixou cerca de 10 Revelar ao mundo a sua vezes, observava a estação mil negativos preto e branco, do ano para flagrar um tipo aldeia. Esta é a universalidade sobretudo nos formatos 4x4cm, que as fotografias de Haruo 6x6 e 6x9 cm, que compreendem de luminosidade que só havia naquela época. O sol possuem. Sua fotografia só desde fim da década de 1930 parecia estar sempre na linha é londrinense ou paranaense até início década de 1980. E do horizonte sobre o sítio porque antes de tudo é uma outros 10 mil cliques em cor, de Haruo Ohara, como um fim da década de 1970 até fotografia universal, e não o entre eterno verão polar a serviço 1994. Sem esquecer também de de sua fotografia. Contam-se inverso. dezenas de álbuns, e centenas Rogério Ivano, historiador e biógrafo. nos dedos em sua coleção os de prints preto e branco feitos dias chuvosos ou nublados”, por ele. Todos os retratos feitos segundo o jornalista Marcos Regrado, organizou bem como equipamentos utilizados Sá Correa, que escreveu a metodicamente a produção em pelo “lavrador de imagens” foram apresentação para um livro com pequenos cadernos onde anotava doados ao Instituto Moreira Salles. fotos dele. o filme utilizado, enumerando as Haruo veio a falecer aos 89 anos,

Umeji Ohara e netos diante da colheita, c. 1950. Chácara Arara, Londrina-PR


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MEMAI O reconhecimento A primeira exposição individual com fotos de Haruo continha 70 imagens foi organizada em 1998 por iniciativa do Festival Internacional de Teatro de Londrina. Dois anos depois, o fotógrafo e curador Orlando Azevedo apresentou mostra de 160 obras na 3ª Bienal Internacional de Fotografia Cidade de Curitiba. Em 2003, o fotógrado desapressado foi homenageado com uma sala especial na 12ª edição da Coleção Pirelli-MASP, em São Paulo. Vida e obra de Haruo foram tema para os livros: Haruo Ohara Fotografias, textos de Sergio Burgi e Marcos Sá Correia e edição do Instituto Moreira Salles; Lavrador de Imagens – uma biografia de Haruo Ohara (2003),

Sua obra, alinhada com a fotografia moderna e humanista do século 20 contribui para mostrar que alguns dos modernismos atávicos da cultura brasileira , como aquele que contrapõe o campo e a cidade como símbolos do arcaico e do moderno, herança de nosso período colonial extrativista e escravocrata, não resiste ao surgimento de uma nova personagem histórica na passagem do século 19 para o 20: o imigrante europeu e asiático, que renova cultural e economicamente o país e no caso específico de Haruo Ohara, encarna tanto o homem da terra como o homem da cultura. Ao lado do trabalho diário na lavoura, Haruo cultivou a delicadeza dos infindáveis registros possíveis de da luz, delineando formas abstratas e texturas dos objetos e da natureza presentes em seu ambiente e entorno.

Sérgio Burgi, organizador do livro Haruo Ohara.

com escrita de Marcos Losnak e Rogério Ivano, fotos de Haruo Ohara, José Juliani e Saulo Haruo Ohara; e Haruo Ohara, da Editora Positivo, lançado em 2009, com textos de Rogério Ivano, Marcos Losnak e Orlando Azevedo. Em breve o filme biográfico Haruo Ohara (Pausa para a Neblina), realização da Kinoarte (Instituto de Cinema e Vídeo de Londrina) com patrocínio do Ministério da Cultura, será lançado. Poliane Brito é jornalista formada pela Universidade Federal do Paraná, atua como assessora de imprensa na Assembléia Legislativa do Paraná.

INOSHISHI-KAI de Curitiba Clube dos nascidos no

ano do JAVALI (Horóscopo japonês)

1911-1923-1935-1947-1959-19711983-1995-2007

Contatos: Toshimi Ueda : 9691-3442 Teichum Hiramatsu : 9637-2592


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MEMAI

VIAGEM AO JAPÃO CLÁSSICO

O SOM DA MONTANHA, de Yasunari Kawabata (Yama no Oto), Estação Liberdade, 2009, 344 páginas. Tradução do Japonês de Meiko Shimon e capa: Midori Hatanaka Shingo Ogata é um empresário que vive com a mulher, Yasuko, o filho Shuichi e a nora Kikuko na mesma casa, em Kamakura - cidade situada próxima a Tóquio, na região central do Japão, conhecida por abrigar uma famosa estátua de Buda. Aos 61 anos, Shingo vê sua memória e a moral familiar se debilitarem. Logo no início do romance ficamos sabendo que o filho tem uma amante, Kinuko. Shingo acolhe sua outra filha, Fusako, separada do marido. Os dois casos e sua obsessão pela nora mobilizam a atenção do patriarca. Nos romances de Yasunari Kawabata, a trama das relações familiares é sempre complexa e o termo intriga se ajusta perfeitamente a vínculos tecidos sobre equívocos. As intricadas relações começaram já na origem da família, quando Shingo se apaixonou pela irmã de Yasuko. A cunhada morre e Yasuko deseja secretamente substitui-la. Como seu desejo não é percebido pelo cunhado, Shingo decide casar com ela.A imagem da irmã de Yasuko atravessará a narrativa, como um fantasma .

Kikuko reencarna o fantasma do amor impossível, tema nuclear na obra de Kawabata . Outro elemento constante das narrativas do Nobel japonês é a estrutura poética. Os títulos dos capítulos, além de remeter a paisagens líricas (“O Som da Montanha”, “As Labaredas de Nuvens”, “O Sonho das Ilhas” ), fazem também referência às estações do ano (“As Asas de Cigarra”, “As Cerejeiras do Inverno”, “Os Sinos da Primavera”, “Os Peixes do Outono”). É através da linguagem poética que se descobre a passagem do tempo na narrativa. É também a poesia que suaviza a dramaticidade de temas como a decrepitude da velhice, o adultério, o aborto e o suicídio – fatos quase sempre revelados secamente. A partir daí vê-se que o primeiro plano não é para a tragédia grega construída por anticlímax. E sim para a cultura japonesa clássica, explicada em 88 notas de rodapé, abrangendo desde elementos da natureza, como espécies de chá, flores e pássaros a elementos históricos e humanos: festividades , artistas e haicaistas japoneses. Desta forma, Kawabata constrói uma estória em que a graça não está apenas em chegar ao fim de uma intriga romanesca. Mas em provocar curiosidade por uma cultura nem sempre tão explorada nos romances escritos pelos colegas contemporâneos. (MK)

LITERATURA

Nos romances de Yasunari Kawabata, o termo intriga se ajusta perfeitamente a vínculos tecidos sobre equívocos

Capa do Livro O Som da Montanha

O autor Yasunari Kawabata nasceu em Osaka, em 1899. Estudou Literatura na Universidade Imperial de Tóquio. Foi um dos fundadores da Bungei Jidai, revista literária influenciada pelo surrealismo francês. Mais tarde defenderia os ideais da corrente neosensorialista (shinkankakuha), que se opunha ao realismo a favor de uma escrita lírica, impressionista. Os temas centrais de sua obra são o mundo feminino e a morte. Alguns críticos relacionam tais temas à sua vida: perdeu os pais aos três anos, a avó aos nove e o avô aos quatorze anos. Defensor da cultura japonesa clássica, tornouse amigo de Yukio Mishima. Recebeu o Prêmio Nobel de Literatura em 1968. Doente e deprimido, suicidou-se em 1972. Obras publicadas no Brasil: A Casa das Belas Adormecidas (2004), O Pais das Neves (2004), Mil tsurus (2006), Kyoto (2006), Contos da palma da mão (2008), A dançarina de izu (2008) e Beleza e Tristeza (2008)

KOANS DE UM MESTRE IRREVERENTE

O mestre zen Saboro Nossuco é inspirado pela inocência das crianças, pelo convívio com o mundo natural e principalmente pela irreverência. KOAN DO COMO ONDE, por Saboro Nossuco, Bernúncia Editora, 2009, 120 páginas. Saboro Nossuco é um mestre zen-vergonha que vive num templo situado no bairro da Barreirinha, em Curitiba. Na infância foi um capeta: “Matava passarinho, soltava balão, fazia malcriação com as menininhas, roubava dinheiro das capelinhas, enfim tinha mais pecado na alma que população na China”. Subitamente, como ocorre com todos os mestres zen, teve sua iluminação. E passou a criar

koans – na literatura búdica, uma charada não lógica que leva ao despertar da mente. Saboro Nossuco é o nome que Thadeu Wojciechowski assumiu para divulgar seus koans. No livro Koan do Como Onde ele cria paradoxos , paródias, parábolas e outras invenções poéticas para desmontar os clichês da literatura mística. Assim, o Satori (iluminação budista) do Mestre Saboro passa pelo riso desbragado. Além do humor, Saboro também é inspirado pela inocência das crianças, pelo convívio com o

mundo natural. e principalmente pela irreverência, como se vê nesta curta parábola: - As estrelas estão todas aí há muito tempo, né Mestre ? - Não sei, acabei de chegar. Para conhecer mais insights do Monge da Barreirinha basta pedir o livro pelos emails thadeupoeta@yahoo.com.br e thadeupoeta@gmail.com ou acessar seu blogue: www.polacodabarreirinha. wordpress.com.


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CINEMA

映 画

MEMAI Conhecer o cinema japonês no Brasil baseando-se apenas nos títulos lançados no cinema e em DVD é uma impossibilidade. No primeiro caso, o último filme a chegar à grande tela no país foi A partida, mas o lapso temporal entre este e o título anterior, Tampopo – os brutos também comem spaghetti, foi mais de duas décadas. Em DVD, os títulos lançados nos últimos anos aumentam um pouco a gama de opções. Nas minhas dicas, iniciadas nesta edição, falarei do cinema japonês como um todo. (Suzana Inokuchi)

A partida – Okuribito (2008) Dir. Yōjirō Takita. Oscar de Melhor Filme de Língua Estrangeira (2009). Após a dissolução da orquestra da qual fazia parte, o violoncelista Daigo Kobayashi (Masahiro Motoki) sai de Tóquio rumo à sua pequena cidade natal. Em seu novo emprego como uma espécie de coveiro (nōkanshi), o protagonista desvenda o sentido da vida. Disponível em DVD. Gênero: Drama.

Tampopo

(1985) Dir. Jūzō Itami. O caminhoneiro entregador de leite e aficcionado em lāmen Gorō conhece Tampopo, a viúva dona de um modesto restaurante japonês (ryōriya). Deste encontro, a relação entre eles se transforma rapidamente em um vínculo mestre-discípulo. Surgem, assim, as mais inusitadas situações na busca do prato perfeito dessa massa oriental. Disponível em VHS. Gênero: Comédia.

Bounce koGāls

– (1997) Dir. Masato Harada. Este filme desvenda o polêmico mercado sexual juvenil em Tóquio, através da experiência de algumas jovens envolvidas com este universo. O submundo da capital japonesa revela uma dura realidade, composta de elementos tais como as lojas clandestinas de roupas íntimas e uniformes de colégio de adolescentes, a prostituição de estudantes do ensino médio e o confronto das jovens com os yakuza. Indisponível no país. Gênero: Drama.

Centro Cultural Oriental

TOMODACHI

língua japonesa - mandarim (chinês) música - mangá - origami cursos e oficinas especiais Rua Jaime Reis, 28 - Largo da Ordem - Curitiba Fone: 41 3022-3477 www.tomodachi.com.br


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MEMAI

Oosouji a Grande Faxina

命 VIDA

Sem sujeira, sem sujeira. Tínhamos que recolher o lixo. Só então, brindávamos a chegada do ano novo.

Existe uma tradição de fim de ano no Japão chamada de “Oosouji” , expressão que pode ser traduzida aproximadamente como “A Grande Faxina”. Lembro-me de que durante toda minha infância e adolescência, não gostava do mês de dezembro. Enquanto meus amigos programavam festas e aguardavam ansiosos os presentes de Natal e as aventuras das viagens de férias, eu suspirava com resignada indignação pelos longos dias de limpeza que me aguardavam. E, é claro, temia a inevitável pergunta: - O que você vai fazer nas férias? Onde você vai passar o anonovo? Engolia em seco e respondia vagamente que ainda não sabia... mas como sabia! Afinal, havia toda uma programação de tarefas a serem cumpridas até o dia 1º de janeiro. O que não faltava em casa eram janelas a serem polidas, objetos e móveis a serem lustrados, banheiros a serem limpos, enfim, todas aquelas atividades domésticas das quais eu passava o ano inteiro tentando fugir. Como não havia muita escapatória, eu e meus dois irmãos nos conformávamos e, ainda que a contragosto, trabalhávamos para que até a virada do ano não restasse um único canto sujo em nossa casa. Literalmente.

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Os últimos instantes antes da meia-noite do dia 31.12 para o dia 01.01, então, eram momentos quase decisivos. “Sem sujeira, sem sujeira...” com esse pensamento, tínhamos que recolher o lixo do jantar para fora de casa, lavar a louça, tomar banho, colocar a roupa na máquina de lavar. Só então, limpos e vitoriosos, brindávamos a chegada do ano novo. - Kampai! Kampai! Akemashite omedetou!” (“Viva! Viva! Feliz Ano Novo!) E, com um sabor de conquista, sorríamos ao contemplar nossa casa limpa, pronta para mais um ano de luta. Essa mesma cena, esse mesmo roteiro, era cumprido ano após ano, sem grandes alterações, até que, como sói acontecer, os filhos (eu e meus irmãos), crescem e saem de casa. Entretanto, mesmo morando longe, todo ano ainda volto para casa de meus pais nessa época para, agora voluntariamente, participar do Oosouji. O engraçado é que agora, como sou “visita” em casa, meus pais tentam me dissuadir da idéia da limpeza – mas sempre

Ilustração: Simonia Fukue

Por Lina Saheki

explico que eu, todo ano, aguardo ansiosamente por esse momento e que sinto genuíno prazer em passar essas férias limpando. Na verdade, não sei quando aconteceu, mas em algum momento nesses últimos 10 anos, desde que saí da casa de meus pais, percebi que a grande limpeza de fim de ano era mais metafórica do que real, era mais interna do que externa. E que a faxina na nossa casa era só um pretexto para nos fazer lembrar do pó que acumulamos em nossas vidas ao longo do ano, dos rincões sujos que devemos limpar em nossa alma, das peças preciosas que precisam ser melhor cuidadas, de vidros que estavam embaçados e de quartos que necessitavam de maior cuidado. Um momento, enfim, que alia a percepção simbólica da necessidade de renovação ao empenho pessoal para que as transformações aconteçam. Demorei a perceber, mas hoje, recordando-me daquela criança que sofria um bocado com o Oosouji, digo, com todo orgulho e com um imenso sorriso para as pessoas: - Vou passar as férias fazendo faxina!

Lina Saheki é diretora do Centro Cultural Tomodachi, professora de japonês e mestre em Direitos Humanos.


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フ ィ ク シ ョ ン

MEMAI

FICÇÃO

Se congelaron las aguas / del canal de agua al pie de la ventana, las hordas de indigentes bajaron a mirar el frío. Una costra la tierra, / las cosechas perdidas, comarcas (cercanas, cada vez más cercanas) donde el hambre aprieta: Oh this is so exciting, said my neighbor, fuck her. Al agua patos, / que el mundo no se acaba porque el precio del tomate y la naranja se ponga por las nubes, se congelen las aguas dos semanas, tiriten un poco en los trópicos, y baje Dios disfrazado (como guste) de quien no es: esta vez de Santiclós, todo de rojo (como buen promotor, siempre lo fue, del comunismo) a recriminarnos por nuestros pecados de los últimos lustros, y son: haber elegido a Bush, no haber fusilado a unos cuantos banqueros, a un hato de wallstriteros,

a seguir comprándoles a los chinos sus porquerías: del Imperio del acero descendimos al Imperio del arroz frito, Ay América Latina, cuándo llegará la hora del Imperio del cuchifrito, la cachaza, el pisco y la banana, palta, mate, la poesía neobarroca. El día (lacayo) es largo,/ el tiempo corto, / antes disputaba, por una nimiedad me peleaba con medio mundo, he enmudecido, apenas salgo, en casa hay dos pasarelas de aire, una me lleva cada media hora al servicio (prostatitis galopante) en la otra me encuentro al final de un camino añadiendo capas y capas de ropa a un cuerpo, ahí debajo, para combatir el frío. Fin de mes, fin pronto de todas (tantas) cosas. Malvendí mis libros, las dos biblias, iconos y tablillas votivas, el molinillo de las plegarias, tres carcomidos diccionarios, faltan palabras a quienes como a mí les sobran ya las palabras: se curva el aire, cruje (vidrio o madera

podrida) la pasarela, a la vista un estanque (entrañas malolientes de carpas: restos en mi cabeza de un haikú de Basho): el río subterráneo, el propio cadáver entre remeros y perros tricéfalos de cien ojos, ni frío ni calor, no todo está perdido: me anima pensar me aguarda un jardín japonés, el monje rastrillando guijarros, monólogo monocromo (monocorde) de su flauta, quiebre y rotura, ahí donde se haga mil pedazos crecerá el bambú. José Kozer nasceu em Havana (Cuba), em 1940. Entre 1960 e 1997 viveu em Nova York, onde lecionou língua e literatura espanhola. Atualmente vive em Miami, EUA. Entre as principais coletâneas poéticas estão Y así tomaron posesión en las ciudades (1979), Jarrón de las abreviaturas (1980), La rueca de los semblantes (1980), Bajo este cien (1983), La garza sin sombras (1985), Prójimos. Intimitates (1990), et mutabile (1996) ,Farándula (2000) e Rosa cúbica (2002), entre outras.

DIVERTIMENTO José Kozer Tradução Adriana Zapparoli

Ilustração: Eliége Jachini

Congelaram-se as águas do canal de água ao pé da janela, as hordas de indigentes desceram para olhar o frio. Uma crosta a terra, as colheitas perdidas comarcas (próximas, cada vez mais próximas) onde a fome oprime: Oh, this is so exciting, said my neighbor, fuck her. Para a água patos, que o mundo não se acabe

porque o preço do tomate e da laranja sobe até as nuvens, congelam-se as águas duas semanas, tiritem um pouco nos trópicos, e desça Deus disfarçado (como queira) de quem não é: esta vez de Santa Claus todo de vermelho (como bom advogado que sempre foi do comunismo) a recriminar-nos por nossos pecados dos últimos lustros e são: ter votado em Bush, não ter fuzilado a uns tantos banqueiros, para um grupo de wallstriteiros, e continuar comprando porcarias dos chineses do Império do brio decaímos ao Império do arroz frito, Ai América Latina, quando chegará a hora do Império do refogado de cabrito, da cachaça, do pisco e da banana, do abacate, mate, a poesia neobarroca. O dia (lacaio) é longo, o tempo curto, antes discutia, por uma ninharia brigava com meio mundo, eis emudecido, apenas saio de casa entre duas passarelas de brisa, uma me leva cada meia hora para o serviço

(prostatite galopante) numa outra me encontro ao final de um caminho vestindo camadas e camadas de roupa no corpo, aí debaixo, para combater o frio. Fim de mês, fim pronto de todas (tantas) coisas. Mal vendi meus livros, as duas biblias, registros e listas votivas, o cata-vento dos pedidos, três carcomidos dicionários, faltam palavras a quem, como eu, já sobram as palavras: curva-se a brisa, conjuga (vidro ou madeira apodrecida) a passarela à vista um tanque (entranhas malcheirosas de carpas: restos em minha cabeça de um haiku de Bashô): o rio subterrâneo, o próprio cadáver entre remadores e defuntos tricéfalos de cem olhos, nem frio nem calor, nem tudo está perdido: me anima pensar me aguarda um jardim japonês, o monge rastreando seixos monólogo monocromo (monocorde) de sua flauta quebra e ruptura, aqui onde se faz mil pedaços crescerá o bambu.

Adriana Zapparoli é escritora, poeta e tradutora. Lançou a edição bilíngüe de seu livro “A Flor da abissínia” (2007), “Cocatriz” (2008) e “Violeta de Sofia” (2010) todos pela Lumme Editor SP


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