2012, 21/12

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21 12 20 12 19 12 18 12 17 12 16 12 15 12 14 12 (...) 3 12 2 12 1 12 boooooooomm

UM CARRO QUE EU ACHO BONITO é a quarta geração (20052011) do Hyundai Azera. Ele sintetiza o shape de carro presente no nosso inconsciente (que atende desde o VW Santana até o Ford Maverick), com o ritmo do volume das limusines, daquela caidinha na traseira que os Rolls-royce atuais têm. É interessante esta aplicação prática do design, ou seja, quando ele dá forma a um produto para uso possível, com limites financeiros e conceituais impostos para seus criadores traduzirem tendências e as disponibilizarem aos consumidores comuns –até hoje sinto saudades da relação estética que tinha com meu Trovão Azul, um Renault Clio geração 2003-2005 (um primor visual de fechamento indefectível). Claro que nada que um Jaguar S-Type de 2004 não tenha, mas aí já sai da categoria comum. Pois que vi um Azera usando seu motor V6 para contornar o shopping Canoas e o fitei com admiração burocrática, daqueles olhares já acostumados, como os lançados aos nossos animais de estimação diariamente. A surpresa que já não estava na forma veio do conteúdo: do interior da querida peça de design projetou-se um punho cerrado pela janela recém aberta, que curiosamente iniciou seu protesto ao descerrar-se, insurgindo-se contra todos os preconceitos envolvendo a relação diretamente proporcional entre educação formal, educação pura e capacidade financeira: precipitou-se da mão aberta uma bolinha de papel.


Imediatamente tratei de imaginar a mão adornada de dourados – a última a tocar o papel, protagonista da ação, portanto – presa à bolinha, puxada por ela qual o Pequeno Príncipe e seu cometa, espatifando na sarjeta e, ainda se recuperando do joelho ralado (o sapato de salto foi parar lá no bueiro, assustando um rato – aliás, atrapalhando sua labuta diária de limpar a cidade), ver uma sombra crescente a cobrindo, de uma bola de papel com três vezes o tamanho da madame, o fracasso crescente da queda evoluindo para o grand finale em estrépito do encontro, a bola de papel repentinamente substituindo a sombra, como nos movimentos ilusórios dos GIF. animados, onde um quadro vazio seguido de outro cheio dão a sensação de surgimento abrupto (só não a imaginei levantando um cartaz escrito “help!” à Willie E. Coyote pois era de tom sério o episódio produzido). Excedendo a hipótese de se tratar de um exame positivo que era para ser negativo, motivadora de um desabafo gestual, ou outra exceção de mesma qualidade emocional, como uma carta da amante do marido, ou uma carta do próprio amante, motivadora então de uma eliminação urgente, não há ignorância ou preguiça que justifique (embora explique) fazer com o que não se quer mais que se pertença pertencer sem conssentimento ao passeio público. Enquanto ponderava se fosse o caso, excluí a lançada possibilidade de exceção: a mesma mão do mesmo braço do mesmo cérebro retornara para dentro do carro, donde, carregada de papéis maiores e nem amassados, um catálogo de folders recebidos nos sinais vermelhos, fez uma chuva de folhas A4 e o caralho a quatro. Desta vez os panfletos laminavam cortes em toda a estrutura revestida de trade marks seletivas da madame, e os maiores, aqueles de comprar na planta umas suítes miraculosamente transformadas em apartamentos de três quartos pelos exemplares decorados e paredes de gesso cartonado, certeiramente causavam-lhe algumas mutilações, até a derradeira decepada extrair do pescoço a cabeça, que rolou para junto do rato, que lambeu o sangue da abertura no local da degola. Mas saí do concreto imaginário para o concreto real, e o braço continuou lá, não mutilado, anônimo, fechou o vidro da porta para não perder seu ar uns quinze graus abaixo da temperatura pública e seguiu seu caminho.


O ouro no braço dela certamente ficou de cara: ele sabe de onde veio. NO REPERTÓRIO DE SONS NO DICIONÁRIO DE STRESS o canto da cigarra significa “ainda não fui às compras natalinas” e “mormaço”. O Dicionário de Sensações entanto nos diz que há uma tarde extra, que vem depois da tarde de trabalho, que há luzes piscando nas casas: vem um verão, virá um Natal e virão férias – embora dure o verão inteiro, o canto é notável no início de dezembro pela falta de costume de ouvi-lo. Enfim, trata-se do vindouro solstício de dezembro, que marca, em termos meteorológicos, o meiodia do ano no hemisfério sul. Semana passada 37 graus centígrados à sombra; mas realmente sob a sombra a longa distância entre os trinta e sete risquinhos e o zero torna-se uma vibração suportável, até interessante na medida em que nos nivela com a atmosfera do sangue. Venta até uma brisa. O calor era para deixar nosso corpo feliz (se fôssemos aves voaríamos para cá), mas uma moralista calça nos oprime a expressão líquida e a sudorese, que como um óleo de defesa nos deixaria mais lisos para escapar das garras do oponente e brilhantes para os rituais de acasalamento, rebaixa-se a uma indesejada goma entre a camisa e as costas; estas sofrem, aquela diz, para os outros ouvirem, “tu és civilizado, não sues” (o moralismo age assim: esconde o que inexoravelmente existe para parecer que poderia não existir). Provavelmente nossos antepassados respeitavam o sol a pino (é o momento dEle brilhar, embora brilhar seja, mas que sua rotina, sua respiração), não sabiam o que era meio-dia, então se submetiam a Ele como um leão a outro, alfa, ou seja, deixando que banhasse os personagens imóveis da natureza enquanto descansavam à sombra; à medida que Ele se enturmava, passando a esquentar mais coisas que não pedras e terra, concomitantemente ao Seu aparente denunciado pela aproximação do horizonte (para os antepassados de que falo era o Sol que se movia no nosso céu bidimensional, era o nosso ponto de vista a verdade, numa vitória da imagem sobre seu conceito), eles o recebiam felizmente até a chegada da confortável noite de verão (que nem sabiam ser verão até determinado ponto). As sociedades evoluíram, e as zonas frias cada vez mais souberam se proteger do


frio, alcançando tamanha eficácia a ponto de se permitirem investir esforços nas superfluidades (em nível de sobrevivência, porque para vivência o belo é tão ou mais importante que o útil, como diria Victor Hugo). Porém a zona tropical importou as tradições subtropicais, que por sua vez foram importadas em relevante porção da Inglaterra, que está mais para Ártico do que para Amazônia: fizemos uma chapinha topográfica, cobrimos nossa exuberância com pisos primeiro de pedra e depois também de asfalto, e passamos nalgum momento a vestir terno e gravata às quatorze horas, revestindo-nos nós mesmos de pisos esquemáticos. Pensemos no ano 1.000 (a.C ou d.C., não importa), no ano 5.000 d.C.: sempre que suspendemos nossa existência da atualidade e de seus costumes e a deixamos num ponto possível de se observar centenas, milhares de anos, alguns absurdos se tornam claros: deveríamos resgatar parte de nossa essência indígena e instituir trajes seminus formais. Uma vez esta nova cultura assentada, certamente não precisaríamos de tantos condicionadores de ar (e consequentemente de tantas indústrias, de tantos itinerários coincidentes – inclusive no horário –, de tantas hidrelétricas etc.) se usássemos o que a Terra nos fornece desde que a invadimos nos infinitesimais lotes expelidos pelas estrelas – porque a Terra sempre que pode quer se esfriar, com a lama, a água, a terra, com seu carbono, é de sua natureza racional (porque esconde um inconsciente incandescente) equilibrar o duelo com o Sol. De minha parte, devo começar providenciando uma tela tipo mosquiteiro para a janela a fim de poupar o split durante o sono ordinário, usando o resfriamento fornecido gratuitamente pela madrugada. Não reclamaria do calor, não reclamaria vinte graus se vivesse num brasil civilizado à sua maneira, utopicamente presente tanto no vazio do poderia-ter-sido quanto na lacuna do poderá-ser; neste país, haveria(rá?), numa síntese da pureza rural com a funcionalidade urbana, árvores frutíferas fornecendo merendas no caminho entre a casa e o trabalho, com quilos de grama para pisarmos, poças para refrescarmos os pés descalços, sombras para checarmos nossas mensagens eletrônicas.


A sociedade tem a importante missão de impedir que as pessoas sejam realmente quem são. Ou quem realmente poderiam ser. Ou ao menos permitir que se fosse. Ou, numa visão mais favorável ao trabalho eficaz desta complexa trama a que chamamos sociedade, fornecer modelos, uns dois desvios-padrão para confortavelmente adequar quem não quer observar (embora em vasta medida ele seja aceito conscientemente, ou seja, após observação aprovada); cria-se então uma série de novos hábitos, quase elevados a instintos, congruentes numa teia de necessidades (banho diário, escova de dentes, tinturas, roupas, escrita, definição de refeições, não matar, mentir para a verdade parecer boa etc.) que se demandam mutuamente. Dentre as exigências mais recentes, temos este aparelho nos acompanhando diariamente, dizendo onde se está, computando nossa localização geográfica, servindo de meio de chamado mesmo quando se está sozinho e em lugar nenhum, entre lugares – e muito maior do que um chaveiro, dispensando mais um obrigatório bolso, gaveta, ou mesmo a mão para carregá-lo ao abrigo da chuva, algo mais para não se esquecer, para não perder, para monitorar a posse. Há dez anos eu já era um dinossauro causando inquéritos por não possuir um deles. Mas chegou a minha hora: cansei de anotar coisas em papéis para passar a limpo em casa, ou de descrever cenas que poderia ter filmado, ou de perder a oportunidade (timing melhor que tempo aqui) da publicação, ou, e principalmente, de depender dos telefones públicos, antes pontos que nos forçavam a conhecer a cidade na busca de comunicação, hoje quase extintos (onde o Clark Kent trocaria de roupa hoje em dia?). Não raro tive de dar toque a cobrar do orelhão para então atendê-lo, ou ter de parar em casa para telefonar, ou avisar minha chegada através de uma invasiva campainha, sem agenda. Há pouco, agorinha, efetuei meu primeiro histórico telefonema através de um deles (foi filmado por outro deles). Não mais anotar o número no papel; não mais segurar o telefone entre o ombro e a bochecha enquanto se procura um nome na agenda; não mais desenrolar o fio cacheado que liga a base à parte que fala e ouve, enquanto se repleta de felicidade com um chamado querido, tantas vezes utopicamente previsto e desapontados e enfim atendido; não mais discar com o polegar da mão esquerda enquanto o da mão direita enumera as possibilidades de combinações numéricas de um contato conhecido; não mais debruçarse sob a sombra do orelhão assistindo o movimento: a tecnologia nos


leva considerável parte da graça, da galhardia (a mensagem, o Google, a marcação em vez da palpitante primeira palavra). A história nunca escondi de ninguém: em maio passado comecei os estudos para escolher meu primeiro aparelho; escolhi; passei então duas semanas com um protótipo em papel do exemplar para ver se me adequaria às dimensões; comprei o aparelho; até então ele permaneceu sem chip, configurando-se num câmera menor e mais leve do que a profissional, num despertador, numa agenda e num agregador de aplicativos para se usar dentro de casa. Hoje, aos vinte e um de dezembro de dois mil e doze, quero ver o Mundo segurar essa (Maias, meus amigos, estou fazendo a minha parte para honrar a duração de vosso calendário):

95% dos elefantes de uma reserva na África foram exterminados durante uma guerra civil por soldados que tiveram sua juventude sacrificada para cumprir a ganância de seus soberanos, cuja meta geralmente os levava efetivamente a nada mais do que ostentação. As maiores bestas vivas, os tigres, que em natureza fazem lanche do vilão maior dos contos infantis, o lobo, e do urso um almoço desesperado, são assassinados sem combates sem lógica de mérito (como explicar uma arma de fogo a um animal?) para extraírem de seus dentes viagras placebianos. Enquanto isso as livrarias seguem cheias; as bibliotecas, vazias. O progresso fatalmente consumirá toda a natureza, colocando amostragens delas em escaninhos para visitação e comprovação de que um dia houve um mundo com duelos pela vida, por comida,


houve um mundo em que uns comiam os outros, e era belíssimo, era puro, era inexplicável por dispensar explicação. Os céticos e os crentes em sua maioria defendem suas respectivas teses com parcialidade, como se o conhecimento tese É o de querer mais do que a rotina, a ganância, ou a ambição A evolução da sociedade não deixa de ser a aceitação do que era considerado covardia e estabelecimento de novos e mais sutis pundonores e sublimação das iras. A entropia do método fabrica um mar de ansiedade, uma massa homogênea com o que eram nossas vontades, talentos, instintos etc. misturados e dispensados pelos nossos dínamos, desperdiçando mais e mais seu trabalho enquanto as ações, os lugares, as vontades, os deveres, as pessoas, a violência, a contrição, a calma, a urgência, a aceitação, o levante etc. estão descompassados. Como os adjetivos, que manipulam os significados conforme convém à manutenção da normalidade, da continuidade preguiçosa e covarde: o corajoso vira ridículo, a covardia ora vira selvageria, ora civilidade. Civilidade e selvageria têm suas potências mal canalizadas em usos estéreis: somos selvagens ao falarmos de nossos semelhantes e civilizados com nossos desejos. A maioria prefere maldizer, distorcer, acreditar no distorcido, rir do que riem, chorar do que choram, apontar para o que apontam, deslumbrar-se conforme o sensacionalismo lhes orienta; suas intuições e até experiências (ainda que as intuições sejam experiências a priori) sucumbem aos resultados de amostragens, questionam a si, mas seguem fielmente o que ouvem de entidades estabelecidas por pilares rarefeitos, mas volumosos, e não observam algo se já foi descrita sua observação etc. (e vós sabeis o contido nestes cætera). O sujeito plural que conjuga isso tudo é ela, a mesma maioria. E quando é para liderar, forjam cenários (guerras, governos, notícias etc.) para predarem os semelhantes sem a coragem de uma luta explicável. Compreendo que talvez se trate de um sistema de contraste para fomentar as exceções, alavancadas pela sua minoria, mas esta proporção poderia seguir mesmo com a parte maior mudando para o que hoje me parece mérito e deveria ser obrigação. A força da


natureza através de seus vulcões, mares, movimentos, ventos e mesmo de suas ferramentas não domésticas, como asteroides e cometas, minaria este processo. Eu sigo prostituindo meu cérebro cobrando impostos, Na nona onda ao ritmo da nona sinfonia talvez o fim do fim do mundo seja a exigência de se viver ineditamente. Este mundo acabou. Até amanhã.

Atenciosamente, João Grando (Qualquer coisa, telefonem.) 8018**87


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