renatanassif@joaogrando

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Acordei com o ruído daquela velha vitrola, o som mecânico do braço, dois estalos, silêncio, antecipo a música, arrepio na pele. A agulha pousa suavemente no vinil preto, a música antes da música, anúncio de prazer, meus pêlos eriçados, a noite é espessa, quente e úmida. O primeiro chiado rasga, rouco e suave, o disco — e a música se espalha e dança pelas paredes azuladas, as sombras de nós dois ainda em valsa. E se for sonho? Tua pele arrepiada, teus pêlos macios, tua barba, a boca úmida. Outro estalo, o vinil sussura, a agulha viaja em círculos, penso em espirais, teu corpo e o meu; e se foi sonho? Gelado o metal que adivinho enferrujado, busco a luz — o tato se engana, teu calor me encanta; um puxão brusco dos meus dedos, a lâmpada amarela o quarto em estalo uníssono ao da agulha na vitrola. Vejo e não me engano, vejo e me encanto: são teus olhos, é teu corpo e é sonho. Abro os olhos e sonho.



Try this trick and spin(*PIXIES)31 AGO-08FÊNIX

Tantas faces espectadoras de uma primeira perda — oh!, a primeira desilusão… Quando perdi a inocência? nada me lembro senão de já não contar com ela, mas do um amargor incômodo que impregna a boca. Sei dos sucessivos ataques que se condensam em um só golpe: abrupto e preciso, uma chicotada no ar, o assovio de um gume inclemente — o rasgo vermelho agudo na pele. E não há consolo, não há reparo, só a perda, a perda, a latejante perda, só a perda que nunca sara, nunca pára. Acompanhamme espectadores que são restos dos meus sonhos, são outros mortos, são solidários, são solitários, indiferentes. Adulta, acumulo tantas mortes que já não conto com mãos estendidas, nem com flores, só com dentes afiados, com presas, com olhos a cobiçar minha carne e o que escoa das minhas feridas. E às vezes, a vida dói tanto que eu inventei um choro em vertigem, quando eu lamento em espiral, em giro e respiro, abro os braços em redemoinho e rodopio até que vocês todos, meus restos e meus amores, sejam nada além de canto e vento, uivo e soluço. [txt: Renata Nassif]


renatanassif@joaogrando

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Asas. Em meus sonhos, sempre asas — já não me importava a vida, o cativeiro; só o vôo, o trajeto da alma. E depois de tantos dias escuros, tanto sofrimento seco e silencioso, eis que endureceram-se minhas penas, eis que se fez pesado o corpo que levitava. Então, você chegou com um par de sapatos. Vermelho, disse — e, assim, com esta única palavra, eu entendi que eram mágicos. Esperei, em vão, que me alçassem aos céus; esperei que me devolvessem o vôo. Mas de mágicos não têm nada esses sapatos, atirando-os ao longe, olhos ardendo: sal de lágrimas desesperançadas; estes inúteis sapatos vermelhos, rouca, desafinada, engasgada: voz de desilusão.

Fechou os olhos? Não! Veja este meu corpo!, é agora que tomo consciência do meu peso, da minha falta de jeito; veja este meu corpo sólido e triste! Fechou os olhos? Não me lembrei de fechar os olhos, nem sei mais sonhar… Calcei os sapatos, são vermelhos, eles brilham, tenho medo; ah!, que serei apenas uma mulher patética, com seu corpo grande e maltratado, de olhos fechados e ridículos reluzentes sapatos vermelhos? E os sonhos todos vãos? Os olhos, feche os olhos.

De olhos fechados não me vêm as asas — e é estranho sentir um movimento dos meus pés, meu corpo oscila; parece que anda instável o chão? E é música isso que vem pelo ar, a enfeitar o vento, atavios de fitas de cetim e um quê de seda azul e rosa, fluida, leve, asa de borboleta, libélula, pássaro? Ah, mas que é música e meus pés se agitam, meu corpo desliza, aperto os olhos, liberto os braços como antes estendia as asas; ah!, é música, os sapatos vermelhos que não me devolveram o vôo me deram a terra! Meus pés agora querem o chão, este solo avermelhado e quente, em rodopios, em piruetas, em ligeiros e cadenciados passos. E é em primavera e valsa que a mim se apresenta o caminho — do céu ao chão, das nuvens à terra; há ali uma estrada, não!, há ali um caminho que se abre em dádiva, folhas em branco que se desdobram em oferta — e por ele vou valsando, com sapatos vermelhos e sonhos coloridos de arco-íris

VERMELHO12-OUT-2008FÊNIX

em 13, Outubro, 2008 às 4:59 pm | joao~grando Há uma mudança de ritmo. Como compreender a escrita certa por uma linha torta. Da asa para o pé. É um movimento de teoria para prática, de sonho para realidade (realização de sonho), de idéia para materialização – do céu para a terra. Outra bela simbologia: o sapato vermelho: calçá-lo pode ser mágico, dizem que é, mas é antes de tudo um sapato vermelho, que pode ser ridículo, que é no mínimo estranho. É como encarar a arte, encarar a vida na arte: pode ser e dizem ser mágico, mas se pensarmos conscientemente (e com medo) é tão estranho. E a terra: um detalhe no desenho: o vermelho do sapato é também uma mancha de sangue: o sacrifício, pois (na lenda original) a menina d’Os Sapatinhos Vermelhos não conseguia parar de dançar, era como uma maldição. E é esta a abstração que captaste, de modo muito sutil: há uma atmosfera do texto se situa entre prazer e o compulsório da inspiração, da paradoxal inspiração, como conversamos, como busquei no poema anotar alivia. E esta atmosfera dúbia está no desenho – há um ar de dúvida no desenho – ele flutua, não está no chão – há muitas interrogações no texto – este diálogo é riquíssimo. Está belíssimo este texto. Especialmente no modo como se reporta à imagem. Eu entendo que possa estar insatisfeita, pois têm coisas que só o dono percebe. E talvez uma palavra ou outra tu queiras mudar. Dê um tempo e veja-o novamente, porque tu podes até mudar algumas coisas que não diferenciem a essência, mas a cor dele é esta já. E depois do tempo, olhe com carinho, porque ele já me parece redondo: a tríplice em seqüência: folhas em BRANCO, sapatos VERMELHOS e sonhos COLORIDOS ficou belíssima. Aliás, “enfeitar o vento”: belíssimo.



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