ENTREVISTAS vol. I & PERFIS
(m magazine)
Ljubomir Stanisic Jorge Silva Sofia Escobar João Salaviza Malcolm Gladwell Gonçalo Cadilhe Guta Moura Guedes Roberta e Roberto Medina Ricardo Pereira Isabel Jonet António Victorino d’Almeida Aurea João Garcia Fátima Lopes
PERFIL FALADO
LJUBOMIR STANISIC NAS BOCAS DO MUNDO DA COZINHA DE SOBREVIVÊNCIA DA MÃE À ALTA GASTRONOMIA DAS ESTRELAS MICHELIN VAI UM MUNDO DE DISTÂNCIA. LJUBOMIR STANISIC VIAJOU, EXPERIMENTOU, ERROU, APRENDEU E DESCOBRIU UM MEIO-TERMO. COM O CONCEITO 100 MANEIRAS PROVOU QUE É POSSÍVEL CRESCER EM MOMENTOS DE CRISE. HOJE QUER APROVEITAR O SEU MAIOR MEDIATISMO — IMPULSIONADO PELA PARTICIPAÇÃO NO “MASTERCHEF” — PARA AJUDAR PORTUGAL A DESCOBRIR-SE A SI PRÓPRIO.
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TEXTO JOテグ MESTRE FOTOGRAFIA KENTON THATCHER
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ontreal, Fevereiro de 2010. Uma noite como
qualquer outra no restaurante Au Pied de Cochon. Sala praticamente cheia, comensais felizes e ambiente livre de formalismos e complicações. De repente, um grito: «Uau! É mesmo isto!» O jugoslavo de metro e noventa que acabara de entrar não contém o entusiasmo. Abraça uma empregada de mesa, beija-a e exclama: «É mesmo isto que eu sou!». Ao fim de treze anos a trabalhar em restaurantes, seis deles por conta própria, Ljubomir Stanisic descobria finalmente o «seu lugar». «Percebi que estava no caminho errado, o caminho das estrelas Michelin, onde tudo é um processo de cerimónia, o talher não pode bater no prato, não podes ter o telemóvel na mesa.» Hoje, afirma-se como um anti-estrela Michelin. Por uma questão de mercado: «Em Portugal não há lugar para isso. Os portugueses gostam de migas, de sopa de cação.» Mas também pela forma de estar na vida. «Não vou jantar fora para ter de me comportar como a “lei” manda – quero estar à vontade para ter o telemóvel ligado, deixar cair o talher, dar uma gargalhada do caraças.» Cascais, 2004. Lá diz o ditado, «a fruta não cai longe da árvore». Depois da pas-
sagem pelo Hotel Albatroz como chefe de partida e pelo Fortaleza do Guincho (já então com uma estrela Michelin) como chefe de turno, Ljubomir lança-se no desafio de abrir o seu próprio restaurante sem sair de Cascais. Em sociedade com um José Avillez em início de carreira abre, no primeiro piso da Estalagem Villa Albatroz, o 100 Maneiras. A primeira safra de prémios vem no ano seguinte: melhor chefe de cozinha para a revista “Néctar”, e restaurante revelação para a “Revista de Vinhos”. A parte gastronómica foi um sucesso. O negócio, nem tanto. «Não tenho jeito para tomar conta de dinheiros.» O próprio conceito, de certa forma, colocava a fasquia demasiado alto, com o menu de degustação a rondar os 68 euros. «Mandava vir batata do Peru, um quilo custa 70 euros, e quando a primeira crise caiu, levei com ela – Cascais é um deserto, trabalhava seis meses para estar seis meses parado.» Em 2008, o 100 Maneiras declarou falência. Ficou sem saber o que fazer da vida e pensou em emigrar. Encontrou na casa do amigo Fausto Lopes, mais tarde seu sócio, porto seguro para a depressão de perder tudo. «Não tinha um tusto. Estive um mês fechado em casa dele.» Cozinhava 24 horas por dia. «Deu-me dois mil euros para gastar.» Desse mês de experimentação nasceu o projecto de um novo 100 Maneiras, agora bem no centro de Lisboa (Bairro Alto), com a equipa reduzida ao essencial, a carta dedicada à cozinha de mercado, simplificada a um só menu de degustação, e preços cortados para metade. O novo conceito de alta gastronomia pegou. Passados três anos, os 30 lugares disponíveis continuam a ser poucos para a procura. Mas crescer não faz parte dos planos. Já a expansão do negócio… Lisboa, Setembro de 2010. Ljubomir não perdeu tempo. Meio ano após a «epifania» em solo canadiano, abriu no Chiado o Bistro 100 Maneiras, pautado pela informalidade, com uma carta a condizer, tanto a nível de preços como de arrojo e criatividade, privilegiando sempre a «nobreza» dos ingredientes, mesmo os mais banais. O público provou que Stanisic tinha razão – à semelhança do «mano velho» do Bairro Alto, o Bistro tornou-se um dos restaurantes mais badalados do roteiro da boa mesa de Lisboa. A equipa 100 Maneiras não ficou de braços cruzados. Depois de recusarem vários pedidos de 22.magazine
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marcação para grupos grandes – tanto por falta de lugar como pelo conceito do espaço –, perceberam que uma boa fatia de negócio ficava por explorar. Problema resolvido em Setembro último, com a abertura do Nacional 100 Maneiras, em parceria com o Clube de Música, Vinhos e Petiscos. À mesa há lugar para 120 pessoas. A porta, essa só abre por marcação. E a avaliar pelo sorriso de Ljubomir e de César Branco, outro dos seus sócios, o negócio corre de feição. Dois meses após o arranque, a sala recebe uma média de três a quatro eventos por semana. Pode não ser bom a «tomar conta de dinheiros», mas de negócios percebe o chefe jugoslavo à mão cheia. Como se não bastasse o facto de em três anos, na crista de uma onda gigante de pessimismo, ter aberto três restaurantes de sucesso e facturar dois milhões de euros anuais, Ljubomir já está de «antenas no ar». «Está a chegar a crise, então vamos vender refeições baratas, a quatro ou cinco euros.» Junto ao Bistro irá abrir a Pekaria 100 Maneiras, com sandes, “bureks” (pastéis de massa filo) e «tudo o que cabe dentro do pão». Pão esse de fabrico próprio, como é tradição da casa, ou não tivesse o patrão começado o seu percurso de cozinha numa padaria de Belgrado, tinha então 15 anos, uma casa para sustentar e a pátria em guerra. Sarajevo, 8 de Junho de 1978.
Ljubomir Stanisic nasceu na Jugoslávia do Marechal Tito, na capital da então República Socialista da Bósnia e Herzegovina. Volvidos 33 anos, continua a considerar-se jugoslavo e não suporta que lhe tentem «ensinar» que o país já não existe. «Quando saí de lá, aquilo ainda se chamava Jugoslávia.» Ponto final. “Ljubo” cresceu numa Sarajevo multicultural, «era uma cidade onde conviviam três religiões diferentes». Lembra-se bem – quem poderia esquecer? – do dia em que a guerra chegou, em Abril de 1992. «Ainda sinto à flor da pele o cheiro dos primeiros tiros.» Refugiou-se numa aldeia nos arredores de Sarajevo, onde aprendeu a desmontar, limpar e
ENERVA-ME VER PORTUGUESES A DIZER MAL DE PORTUGAL E UNS DOS OUTROS SOU CONTRA ISSO voltar a montar vários tipos de armas. «Estava com um grupo de 40 pessoas e era o único homem.» Daí foi levado para o aeroporto da cidade, de onde seguiu para norte, com a mãe, Rosa, e a irmã, Nataša. Viveram primeiro em Bjeljina. «Estive um ano a comer batatas, que a minha mãe roubava da quinta dos outros», recorda. «Passei muito mal», começa por dizer, mas de imediato corrige: «Bem, não passei mal, comi até muito bem, eram sempre os mesmos ingredientes mas, durante um ano, não comi um prato igual». O espírito inventivo da mãe ensinou-lhe a importância da criatividade. Mudaram-se para a aldeia Sremska Rača, dentro do perímetro sérvio, onde ficou um ano, em casa do seu tio Miloš. Com ele descobriu, sem se aperceber, o gosto pela cozinha. «Era o melhor cozinheiro do mundo, ensinou-me a fazer a matança do porco. Com ele matei e depenei galinhas e pombos, fiz caldeiradas e sopas de peixe do caraças.» Mas a vida no campo não era para si. «Não me identificava, era um miúdo da cidade.» Foram para Belgrado. De dia estudava, de noite trabalhava numa padaria. «Não gostava nada daquilo que estava a fazer, mas teve de ser, para sustentar a família.» Belgrado, Verão de 1997. Num bar algures na cidade, um grupo de amigos con-
versa sobre os temas que tomaram conta do quotidiano: violência, criminalidade, assaltos. Repentina e inesperadamente, um deles levanta-se e, exaltado, atira: «Estou farto de
vocês, estou farto disto, vou-me embora!» E foi. No dia seguinte apanhou o autocarro e rumou à Hungria. Seguiram-se Itália, Holanda, Alemanha, França, Espanha. Por fim, Portugal, onde vivia a sua irmã Nataša. A 2200 quilómetros de casa, o jovem Ljubomir encontrava o sítio certo para ganhar raízes. Apaixona-se pela comida, pelo país, pelas pessoas. Aprende a língua – hoje não só fala fluidamente como pensa em português – e a ser «portuga». Só não apanha o hábito nacional de se queixar de tudo. «Enerva-me ver portugueses a dizer mal de Portugal e uns dos outros. Sou contra isso.» Traço do carácter jugoslavo? «Não, é sinal de gratidão ao sítio onde estou.» E aqui entramos na sua «cruzada» pelos produtos nacionais: «Os portugueses não valorizam aquilo que têm. Temos produtos geniais mas mandamo-los vir de fora e pagamos balúrdios.» Um exemplo: «Importamos caril da Índia, quando as ilhas da Culatra e do Farol são abundantes em flor de caril, nem os próprios habitantes sabem.» Outro: «Importamos zimbro francês, a 70 euros o quilo, e a Serra da Estrela está cheia! É de borla! Vamos pôr os agricultores a apanhá-lo, pô-lo em pacotinhos e vendê-los a dois ou três euros.» A lista é extensa e, em parte, ajudou a alimentar o seu livro “Papa-Quilómetros”, uma viagem pelos sabores tradicionais e pelos sabores esquecidos de Portugal. Na lista de ingredientes há também carqueja, túbaras, funcho-do-mar, coxas de rã e muitos outros. «Sabes o que são camarinhas?» Confesso a minha ignorância. «Ninguém conhece! São bagas selvagens maravilhosas que há na Costa Vicentina! Tens de provar!» Levanta-se e vai à cozinha buscar uma taça de geleia de camarinha. «Isto é fabuloso!» É, de facto. Os seus olhos iluminam-se. «É uma coisa que me revolta. Não aproveitamos o que temos. Precisamos de abrir a pestana e ver o que nos rodeia.» Ljubomir, por seu lado, anda bem atento. E empenhado. «Com o mediatismo que tenho, posso falar. O meu tempo não vai durar muito, mas enquanto puder vou falar de boca cheia.» novembro/dezembro 2011
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OS PORTUGUESES NAO VALORIZAM O QUE TEM TEMOS PRODUTOS GENIAIS MAS MANDAMO-LOS VIR DE FORA E PAGAMOS BALURDIOS
embra-se da primeira vez que foi a um bom restaurante?
Como bem desde sempre. Em miúdo, o meu pai levava-me a restaurantes de peixe em Sarajevo, onde se comia muito bem, nabiças com batatas cozidas, um peixe de rio muito bem confeccionado, acho que foram as minhas primeiras experiências. O meu pai só se alimentava em restaurantes, tinha dinheiro e um bom sentido gastronómico. De que sabores mais gosta?
É mais fácil perguntar de que é que não gosto. Como de tudo. Até gafanhotos. Ainda não descobri uma coisa que não goste de comer. Difícil é dizer que sabores prefiro. Durante o Verão sou fanático por marisco e peixe, faço caça submarina, só quero comer percebes, bruxas, cavacas. No Inverno sou um carnívoro do caraças, adoro comer caça, pombo é a melhor carne do mundo. A seguir é o porco. Nos peixes, sardinha e salmonetes. E a batata é o vegetal de que mais gosto. É apreciador de cozinha portuguesa?
Amo-a, sem dúvida. Adoro a cozinha do Alentejo, é muito criativa, de poucos produtos, lembra-me a fase que passei na Jugoslávia durante a guerra. O Alentejo é pobre mas isso reflectiu-se na cultura alimentar. Sopa de cação é das melhores sopas do mundo. A de tomate com ovo escalfado também, e leva quatro ingredientes. São produtos geniais. Cresceu através da necessidade de novos paladares e aí é que está a riqueza da cozinha portuguesa. Vê nela potencial como uma cozinha internacional?
Sem dúvida! Pode representar o País sem vergonha em qualquer lugar do mundo. Temos muito a mania de confeccionar as cozinhas do mundo. Em Montreal, o restaurante mais frequentado é o Café Ferreira, que tem filas à porta. Cozinha excelente, ligada ao marisco, cozinha de Sesimbra, um pouco de Alentejo, bochechas, porco preto. Os canadianos passam-se. E eu compreendo-os. Teria interesse em abrir um restaurante de cozinha portuguesa?
Os meus restaurantes são todos de cozinha portuguesa! Uso produtos portugueses, influencia-me muito a cozinha portuguesa, em todas as minhas cartas há alguma coisa portuguesa. Se é conhecida? Talvez não. O cuscuz transmontano – diferente do marroquino, que é pequenino – perdeu-se na alimentação há 300 anos e encontrei-o num livro de História. Encontrei, recuperei, estou a fazê-lo. É cozinha portuguesa? É. Mas não é conhecida. Investe muito do seu tempo nessa pesquisa?
Sim, muito mesmo. Agora estou numa fase de pesquisar os produtos que a natureza tem. Compramos cogumelos “porcini” de Itália, por exemplo, quando eles são de cá – os italianos vêm apanhá-los, exportam-nos para lá, põem a etiqueta do país deles e depois nós compramos, «Ah, é bom porque é italiano!» Não é! É nosso! E as algas, o nosso mar é abundante em “lechuga de mar”, “kombu”, tudo. Mas vamos comprá-las a 12 euros o pacote. É isso que pretende dar a conhecer com o livro “Papa-Quilómetros”?
Bem, não espero que o livro faça nada. Vou continuar com esta minha luta e não
vou desistir. Se espero que o livro mude alguma coisa? Espero que mude naquelas pessoas que encontrei na serra, com quem falei, a quem mostrei onde está o caril, o zimbro, os cogumelos que os outros nos roubam. Passei a comprar-lhes os produtos: «Olhe, apanhe o zimbro e mande-mo todos os meses.» Gasto seis quilos por mês. É também um grande defensor do Mercado da Ribeira.
Sou o «filho» do mercado. Fui eu que dei trabalho à maior parte deles. Durante dois anos só dei entrevistas no Mercado da Ribeira. Queriam fechá-lo e assim mostrei a minha revolta. Agora eles amam-me. Dei cento e tal entrevistas lá. Para falar da Rosa, do Carlos, da Isabel – das pessoas que estão lá, que me conseguiram arranjar os produtos. Amo aquela gente. Não vou ao El Corte Inglés comprar produto espanhol. Têm parmesão? E eu tenho queijo da Ilha no mercado. É a mesma coisa. Até é melhor, é português. Tenho esta postura muito “en garde”. Espero que esta crise mande toda a gente para os mercados. Disse numa entrevista que os seus planos para o futuro passam por abrir uma cabana de grelhados na praia.
Quando me fartar disto tudo é, possivelmente, o que vai acontecer. Vou montar uma cabana na Costa Vicentina. Imagina-se a fazer só isso, grelhar peixe?
Claro! Imagino-me a fazer tudo. Sou cozinheiro. Só não me imagino a fazer esferificações de 1001 coisas. Gosto de fazer coisas para comer. Sólidas, com sabor, cheiro, aroma, terra. Sou assim. No meu livro há douradas grelhadas, costeletas de borrego grelhadas, coisas simples. Tudo é cozinha. Fazer simples não é fácil. Quando abrir um tasco na praia, vai ter a melhor sandes, a melhor marinada de atum do mundo. E não tenho dúvidas: vai mesmo. novembro/dezembro 2011
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DISCURSO DIRECTO.
Nem bósnio, nem sérvio. Sou jugoslavo. Quando saí de lá aquilo ainda se chamava Jugoslávia. É assim que vejo as coisas e vou morrer assim. Garanto que até à minha morte eles ainda se vão voltar a juntar e a chamar Jugoslávia. Há quem diga que nasceu para ser cozinheiro. Eu nasci para ser um malandro… sei lá para que é que nasci! Foi uma coisa que se cruzou na minha vida pela necessidade de sobrevivência. Não gostava nada daquilo que fazia, mas teve de ser, para sustentar a família. Com essa necessidade encontrei um meio de viver. E encontrei depois uma paixão, que foi crescendo. Aos 21 anos, já em Portugal, disse: «É isto que eu quero! Vou ser um grande cozinheiro!». Juntei todo o dinheiro que tinha e fui viajar pela Europa para comer. Dormia em pensões com ratos e lençóis sujos. Mas ia aos restaurantes bons. Gastei todo o dinheiro mas comi muito bem. É assim que aprendemos. É verdade que o meu início em Portugal não foi fácil. Mas nem agora é fácil. Tenho três restaurantes, facturo 2 milhões de euros por ano, é fácil? É fácil ter 70 empregados, ter de pagar despesas? Tenho uma vida difícil. No entanto, não vou andar sempre em baixo e a queixar-me de tudo. Claro que é difícil, mas viver é difícil, nascemos para isso, para deixar uma marca naquilo que fazemos. E para isso temos de lutar. Quando trabalhei com o Michel Cabran, em França, cheguei a ficar três horas a esfregar a cozinha. Era muito bom cozinheiro, chefe de partida, e o sacana, depois de eu já ter trabalhado 12 horas, ainda me punha a esfregar a cozinha. «É para amares a tua bancada.» Com os meus empregados sou igual. Fora daqui, não há um que não tenha dormido em minha casa ou apanhado uma bebedeira comigo. Mas lá dentro quero continência. Sou bruto como o caraças, mas não sou agressivo. Há cozinheiros que falham. E quando falham, dou-lhes um estalo nas costas. Se me queimam o peixe, aquilo custa dinheiro! Mas todos eles estão cá desde o primeiro dia. Se lhes perguntarem: o chefe é bruto? É. Gostam dele? Gostamos. Quando assinei contrato para o “Masterchef ”, queriam que fosse mais brando. A directora da Endemol disse: «De cozinha percebes tu mas de televisão percebo eu». E eu respondi-lhe: «Você convidou-me para fazer este trabalho, não convidou? Então deixe-se de tretas porque não quero ser seu amigo. Estou aqui para fazer o meu trabalho. Se não gosta, vou-me embora.» Fiquei. E limitei-me a ser eu mesmo. A guerra foi uma coisa que me educou, sou um filho da mãe, um guerreiro, venho com a espada à frente. A falência do 100 Maneiras Cascais teve o mesmo efeito: nunca mais ninguém me rouba. Aprendi o suficiente para hoje ter três restaurantes, todos de pé e cheios. l
100 MANEIRAS. Rua do Teixeira, 35 (Bairro Alto), Lisboa I 100 MANEIRAS BISTRO. Largo da Trindade, 9 (Chiado), Lisboa NACIONAL 100 MANEIRAS. Clube Nacional de Natação, Rua de São Bento, 209, Lisboa I restaurante100maneiras.com
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Ljubomir Stanisic é vestido pela Double Black/As Coisas Pelo Nome e calçado pela Bunker I Assistente de fotografia: Hugo Moura
A GUERRA FOI UMA COISA QUE ME EDUCOU SOU UM FILHO DA MAE UM GUERREIRO VENHO COM A ESPADA A FRENTE
DATAS. 1978. Nasce a 8 de Junho, em Sarajevo. Em 1992, chegada a guerra, foge da cidade com a mãe e a irmã. 1993. A família Stanisic muda-se para Belgrado. Aos 15 anos, Ljubomir frequenta a escola de dia e trabalha à noite numa padaria. Estuda depois Pastelaria Fina (1995) e Cozinha Internacional (1997) na Universidade Popular Božidar Adžija. 1997. Farto do ambiente no seu país, decide sair. Viaja pela Europa e acaba por ir parar a Portugal. 1998. Convence Vítor Sobral a dar-lhe trabalho, primeiro na Cervejeira Lusitana (Carnaxide), depois no Açoreana (Lisboa).
2002. Entra para a equipa do Hotel Albatroz (Cascais). Estuda Cozinha Italiana e Cozinha do Mar na Escola de Hotelaria do Estoril. Um ano depois é chefe de turno na Fortaleza do Guincho, onde se interessa pelas técnicas francesas e pela excelência do produto.
2004. Depois de estagiar com Fernando Bárcena, no restaurante Aldebaran (1* Michelin), em Badajoz, regressa a Cascais para abrir o primeiro 100 Maneiras, que lhe vale o prémio de melhor chefe de cozinha (revista “Néctar”, 2005) e uma medalha de mérito da Câmara de Cascais (2007). No entanto, problemas de gestão levam ao fecho do restaurante em 2008. 2009. Repensa o conceito e abre um novo 100 Maneiras, no Bairro Alto (Lisboa). Em 2010, inspirado pela experiência no Festival Lumière (Montreal), expande a marca 100 Maneiras com o Bistro, no Chiado.
2011. Integra o júri do programa da RTP “Masterchef” e descobre que gosta de fazer televisão. Abre o Nacional 100 Maneiras, em São Bento. Lança o livro “Papa-Quilómetros”.
ENTREVISTA
JORGE SILVA FUNDADOR E DIRECTOR DE ARTE DO ATELIÊ SILVADESIGNERS
PORTUGAL ILUSTRADO
TEXTO JOÃO MESTRE FOTOGRAFIA NUNO PALHA
NOS ANOS 80 E 90, REVOLUCIONOU O PANORAMA NACIONAL DA ILUSTRAÇÃO EDITORIAL. EM 2003, REINVENTOU A ICONOGRAFIA DE LISBOA COM UMA SARDINHA DIGITALIZADA. HOJE, O DIRECTOR DO ATELIÊ QUE CRIOU AS FITAS DO ORGULHO INQUIETA-SE COM A RECUPERAÇÃO DA HISTÓRIA DA ILUSTRAÇÃO PORTUGUESA PARA MEMÓRIA FUTURA. E CONTINUA A DEFENDER QUE «UMA PALAVRA VALE MIL IMAGENS».
V
ejo que já tem a sua fita do orgulho português.
Ando com ela há algum tempo. Apanhámos umas fitas antes do lançamento e pus logo esta. Isto tira-me uns 10 ou 15 anos de idade. Sinto-me mais novo. Quais são os seus grandes motivos de orgulho em ser português?
Para já, esta teimosia em tentarmos livrar-nos destas crises endémicas e sucessivas. Acreditar que temos a capacidade de ultrapassar isto. Esta dificuldade, tal como tudo na minha vida, é um estímulo para resolver o problema. Obviamente não fico contente de estar na penúria – e o meu trabalho é conveniente com um certo desafogo económico, estou numa área que parece ser um luxo. É um desafio, um acicate fantástico para resolver as coisas e, pelo menos na minha esfera de acção, poder ultrapassar vícios, taras, problemas que consideramos resilientes na sociedade portuguesa. Com energia, com vontade. Não baixo os braços, não desanimo, continuo a trabalhar muito e é isso que me dá vontade de não mudar de nacionalidade. Incomoda-o ser conhecido como «o designer das sardinhas»?
Não. Em 2004 fui entrevistado pela Ana Sousa Dias. Era o segundo ano das sardinhas e ela perguntou o que pensava eu do assunto. Disse-lhe uma coisa inacreditável: que não me via a fazer sardinhas durante muitos mais anos. Não parecia bem repetir. Hoje penso exactamente o contrário. A formação dos designers em Portugal é feita ao arrepio daquilo que é uma política de marcas, a criação de uma consistência, de uma imagem. As sardinhas são um “work in progress”. Aprendi que, de facto, se pode fazer diferente todos os anos mantendo uma identidade-base que pode criar uma mais-valia emocional e cultural – e é isso que as sardinhas hoje são. Um património adquirido, construído ao longo dos anos. Nada foi congeminado no laboratório, nem com estudos de mercado, nada! Foi uma apropriação daquilo que é uma das linhas mestras do “atelier”: trabalhar com coisas simples. O mais simples é o mais interessante. Gosto de trabalhar essa vulgaridade, e a sardinha é a coisa mais vulgar das festas de Lisboa. É um bicho inexpressivo mas tem uma qualidade plástica e gráfica, a forma muito compacta, é uma espécie de contentor simples do ponto de vista geométrico, perfeito para se inscreverem referências gráficas,
em materiais diversos. A exposição [“A Sardinha É Minha”] nas instalações do Millennium bcp mostrava isso. A sardinha funcionou melhor por não ter sido uma coisa pensada?
Sem dúvida. Trabalho com uma grande dose de improvisação. Juntamente com isso, tenho uma qualidade: a tenacidade. Preocupo-me sempre em dar mais qualquer coisa, gosto de trabalhar em séries. Uma das razões pelas quais gostava de trabalhar nos jornais era porque se me enganasse naquela semana, corrigia na seguinte. Aplico isso em todo o trabalho que faço. Há uma dose de acaso, gosto de tirar partido disso. Nos jornais e nas revistas isso é frequente – a pressão do tempo obriga a improvisar. Trago essa metodologia – ou falta dela – para todo o meu trabalho. O fundamental, no caso da sardinha, é que se criou uma raiz da iconografia da cidade. Sardinhas à parte, o uso da tipografia é um dos aspectos mais presentes no seu trabalho. Considera-se um curioso, um estudioso da matéria?
Um curioso. Não sou um erudito da tipografia, trabalho-a de forma muito emocional, com alguma tendência para o pastiche e a utilização de tipografia “rétro”, dando por vezes guinadas e saltos inexplicáveis. Um exemplo: recebi o desafio para fazer o grafismo da exposição novembro/dezembro 2011
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ENTREVISTA
“Morte ao Design, Viva o Design”, no MUDE, comissariada pela [directora do museu] Bárbara Coutinho, que queria uma ruptura na comunicação gráfica. Geralmente, as exposições têm painéis de entrada com títulos grandes e legendas minúsculas penduradas pelos cantos das peças – onde não chateiam as peças mas também não chateiam as pessoas. O pressuposto aqui foi o oposto. Temos placas de acetato transparente, do chão ao tecto, onde se inscrevem frases, citações e as legendas das peças. A Bárbara Coutinho estava preocupada que o grafismo se parecesse demasiado a algumas fórmulas que o ateliê tem praticado. Aceitei: «OK, não vai ser uma coisa à Silva, mas vai ser à Silva na mesma.» Pensei no que seria o contrário disso: o Helvetica Bold, um tipo de letra aborrecido, tão banal que os designers o consideram uma impossibilidade de criação gráfica, e foi com isso que fiz o trabalho, que manteve a espectacularidade, marca gráfica do ateliê. Há uns tempos dei uma palestra intitulada “Uma palavra vale mil imagens” – ganhei isso nas capas de jornal mas também na Bedeteca de Lisboa, onde procurei criar um «antídoto» contra a vulgarização da imagem fotográfica ou da ilustração. A tipografia tem qualidades de imagem. E de criar uma emoção através de uma palavra, de uma letra. Apaixono-me facilmente pela tipografia e já tive muitos amores nessa matéria. Agora, por exemplo, apetece-me imenso fazer mais coisas com a Helvetica. Tenho esse arrebatamento pela tipografia. E pela ilustração…
Isso começou no jornal “Combate”, órgão oficial do partido de extrema-esquerda PSR, do Francisco Louçã. Fui director de arte do “Combate” e mais tarde, em simultâneo, do “O Independente”. A direita do “O Independente” estava encantada de ter «corrompido» um esquerdista, mas os camaradas do PSR não acharam tanta graça. A verdade é que transplantei a acumulação de “know-how” no “Combate” em matéria de ilustração para “O Independente”. Seguiu-se o “Público”, com a criação dos suplementos “Mil Folhas”, “Y” e “Pública”, e uma série de revistas. Em todas estas publicações tive vontade – e possibilidade – de desenvolver a área da ilustração editorial. Comecei a desenvolver também uma inclinação pela historiografia da coisa. Tenho as paredes cobertas de ilustração que fui comprando, em alguns casos encomendada por mim – para “O Independente”, revista “Ler”, “Mil Folhas”, “Y”, “Pública”. Tenho registos bastante interessantes daquela geração de ilustradores. E algumas miudezas mais antigas que vou comprando, bem como cerca de 7 mil livros com ilustrações e 5 mil jornais e revistas. Como trabalho e vivo aqui no Chiado, faço uma razia sistemática dos alfarrabistas da zona. E vou à Feira da Ladra todos os sábados. Não tenho nenhum livro que valha milhares de euros. Mas tenho colecções completas difíceis de encontrar. É uma espécie de caderneta de cromos gigante. Um dos seus grandes projectos é compilar a história da ilustração portuguesa.
Comecei há dois anos. Sou designer, nada mais fácil de começar do que paginando directamente o livro. Passado um ano, percebi por que motivo ainda ninguém tinha feito aquilo. Ao contrário da banda desenhada e do “cartoon”, que têm estudiosos há largas dezenas de anos, a ilustração é muito complicada, tem vários elos perdidos, foi sempre feita por figuras maiores das artes plásticas numa perspectiva menorizada em relação às suas outras áreas de trabalho. Por exemplo, o Victor Palla, vulto extraordinário das artes visuais, é conhecido pelo trabalho como fotógrafo. Mas foi arquitecto 82.magazine
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e designer. E foi ilustrador, fez capas espantosas nos anos 40 a 60. Não há um conhecimento profundo. Propus então à Imprensa-Nacional Casa da Moeda a colecção D, uma série acessível, continuada no tempo, sobre grandes designers de várias especialidades, incluindo ilustração, com características pedagógicas e de síntese claramente viradas para as escolas. Já saíram dois volumes [Victor Palla e Ateliê R2] e vamos fazer mais quatro este ano. Não há nada do género. Cada geração parece que tem de se reinventar do zero – é um mal muito português. Nada parece ter acontecido antes, nada se sabe sobre os anos 20, 30, 40, 50, 60, mesmo os anos 80. Nas minhas aulas pergunto «Quem foi o Luís Miguel Castro?» Ninguém sabe. E o Luís Miguel Castro, que continua activo, foi um grande designer gráfico dos anos 80 e teve um papel fundamental na reinvenção de um design gráfico português. Mesmo o Sebastião Rodrigues, fundador do design português, pouca gente lhe conhece a obra. O único livro que saiu sobre ele, uma edição belíssima da Gulbenkian há muitos anos, desapareceu e só pode ser encontrada em alfarrabistas. Um estudante que queira conhecer a sua obra não tem maneira. Esta colecção pretende ajudar a quebrar esse isolamento, essa ignorância. Voltando à ilustração e à história: em Janeiro iniciei o blogue Almanaque Silva. Não é mais do que uma história da ilustração portuguesa em fragmentos. Faço-o com a ingenuidade de que, se continuar com fôlego, daqui a ano e meio tenho um mapa geral desde o século XVII ou XVIII até hoje. Depois, é preciso atar os fios. E tenho uma editora interessada. Escrevi no blogue que é para publicar em 2012. Digo aquilo para me convencer a mim próprio – como se, falando publicamente nisso, tenha o compromisso de o fazer. l almanaquesilva.wordpress.com
PERCURSO DE VIDA EM 60 SEGUNDOS. Jorge Silva nasceu em Lisboa, há 53 anos. Iniciou-se na direcção de arte no “Combate”, jornal do Partido Socialista Revolucionário (1978-2003), onde descobriu também a paixão pela ilustração. Foi ilustrador entre meados dos anos 80 e 1992, tendo publicado nos jornais “Expresso”, “O Jornal”, “Combate” e “O Independente” — até descobrir que gostava mais de encomendar e discutir trabalhos com outros ilustradores. «Sou um adversário temível para os ilustradores, não me enganam facilmente.» Em simultâneo com o “Combate”, foi também director de arte do semanário “O Independente” (1991-2000). Seguiu-se o jornal “Público” — para o qual desenvolveu os suplementos “Mil Folhas”, “Y” e “Única” — e as revistas “20 Anos”, ”Ícon” e “Ler”. Em 2001, fundou o ateliê Silvadesigners, cujo portefólio inclui a imagem das Festas de Lisboa (a famosa sardinha “warholiana” que, entretanto, se tornou um ícone da cidade), a comunicação gráfica do Teatro São Luiz e a revista cultural “Adufe”. Entre outros prémios, viu o seu trabalho no “Y” e no “Mil Folhas” reconhecido 26 vezes na edição de 2002 dos Society for News Design Awards — façanha repetida no ano seguinte, acrescendo ainda à contagem outros dez galardões pela revista “LX Metrópole”.
APOSTA MILLENNIUM.
NÃO BAIXO OS BRAÇOS, NÃO DESANIMO, CONTINUO A TRABALHAR MUITO E É ISSO QUE ME DÁ VONTADE DE NÃO MUDAR DE NACIONALIDADE.
Para a concepção das Fitas do Orgulho, peça central da nova campanha institucional do Millennium bcp, o Banco escolheu o ateliê Silvadesigners, que criou cinco modelos distintos, evocativos daquilo que Portugal foi, é e poderá vir a ser. Com esta iniciativa, o Millennium bcp procura sublinhar e fazer ressurgir o sentimento de portugalidade inerente a todos nós — tal como José Mourinho o faz no filme publicitário da campanha, salientando que «Somos gente preparada, cheia de talento e de garra.» Foram distribuídos 1,5 milhões de fitas pelas sucursais Millennium bcp de todo o País, tendo-se registado uma grande adesão do público (tanto clientes como não-clientes) à iniciativa, com alguns balcões a acusarem ruptura de “stock”. A fita da Cruz de Cristo, idêntica à que José Mourinho coloca no pulso no anúncio, foi a mais procurada. A estratégia de comunicação da campanha foi desenvolvida pela Bassat Ogilvy Barcelona (director criativo: Camil Roca) e o filme produzido pela Krypton, com a realização a cargo de Augusto Fraga. Procure as Fitas do Orgulho nas sucursais Millennium bcp.
novembro/dezembro 2011
magazine.83
PERFIL FALADO
TEXTO JOÃO MESTRE FOTOGRAFIA LUIS DE BARRROS
PARTIU PARA LONDRES CONVENCIDA DE QUE CERTOS SONHOS NÃO PASSAM DISSO MESMO. SÓ QUE O DESTINO (E O TALENTO, SOBRETUDO) LHE MOSTROU QUE ESTAVA ERRADA. HOJE É UMA ACTRIZ DE PRIMEIRA LINHA NUM DOS MAIORES CENTROS MUNDIAIS DO “SHOWBIZZ”. E NÃO DEIXOU DE SONHAR.
ESCOBAR NA TERRA DOS SONHOS
20.magazine
setembro/outubro 2011
setembro/outubro 2011
magazine.21
PERFIL FALADO
TEXTO JOÃO MESTRE FOTOGRAFIA LUIS DE BARRROS
PARTIU PARA LONDRES CONVENCIDA DE QUE CERTOS SONHOS NÃO PASSAM DISSO MESMO. SÓ QUE O DESTINO (E O TALENTO, SOBRETUDO) LHE MOSTROU QUE ESTAVA ERRADA. HOJE É UMA ACTRIZ DE PRIMEIRA LINHA NUM DOS MAIORES CENTROS MUNDIAIS DO “SHOWBIZZ”. E NÃO DEIXOU DE SONHAR.
ESCOBAR NA TERRA DOS SONHOS
20.magazine
setembro/outubro 2011
setembro/outubro 2011
magazine.21
PERFIL FALADO
SOFIA ESCOBAR
É uma história clássica: a miúda que tem o sonho de ser actriz e troca o conforto da casa dos pais, num meio pequeno (Portugal, neste caso), pelo desafio da cidade grande, onde arranja um “part-time” a servir à mesa para pagar a renda enquanto o sucesso não bate à porta. Todavia, o caso de Sofia Escobar é tudo menos um cliché: chegada a Londres, passou as provas de acesso de uma das mais reputadas escolas de música e teatro do Reino Unido, ganhou uma bolsa para pagar as avultadas propinas e, passados dois anos, conseguiu um lugar de destaque num grande musical do West End londrino. Tudo à primeira tentativa.
TINHA 13 ANOS QUANDO O PAI A PÔSNUMGRUPO DE TEATRO PARA PERDER A TIMIDEZ. FOI AÍ QUE TUDO COMEÇOU.
Quando terminou o curso do Conservatório de Música do Porto, em 2005, Sofia enfrentava um dilema: ser actriz ou cantora? «Sempre que fazia teatro sentia falta da música, sempre que fazia só música sentia falta do teatro. E em Portugal sempre senti que tinha de optar entre uma coisa e outra.» Pesquisou, aconselhou-se junto dos professores e concluiu que o melhor seria rumar a Inglaterra. Tinha 23 anos, um sonho muito ambicioso – tão ambicioso que se chegou a questionar se não seria mais sensato tirar um curso com melhores perspectivas de emprego e enveredar por uma «vida normal» – e uma rara combinação de talento e determinação. Não tinha pais ricos mas tinha uns ricos pais, que desde o primeiro minuto a apoiaram. «Sempre viram que tinha potencial e, acima de tudo, que era aquilo que me iria fazer feliz.» Mesmo que a sua felicidade implicasse um empréstimo para cobrir despesas de alojamento e do curso. Ao prestar provas na Guildhall School of Music and Drama não só garantiu um lugar na prestigiosa academia londrina – por onde passaram Orlando Bloom, Daniel Craig e Ewan McGreggor, por exemplo –, como acabou por obter uma preciosa bolsa de estudo, que a aliviou das quatro mil libras anuais de propinas (cerca de seis mil euros). Para compor o seu orçamento mensal, arranjou emprego num restaurante, a servir às mesas por cinco libras à hora. Entrava ao serviço depois das aulas e por lá se aguentava até altas horas da noite – não raras vezes, duas da manhã –, levantando-se às sete da manhã seguinte para mais uma jornada. «Foram tempos difíceis e não tenho grandes saudades. Mas sabia que ia valer a pena.» Entretanto, viu um anúncio no jornal – e nada voltou a ser como era. O regulamento da Guildhall é claro: os alunos só podem prestar provas para trabalhos depois de concluído o terceiro ano do curso ou com uma autorização especial da instituição. «É a reputação da escola que está em jogo e eles vivem disso.» No entanto, apesar do seu ar de menina inocente, Sofia mandou a regra às urtigas quando viu anunciada no jornal a abertura de audições para o papel principal do musical de Andrew Lloyd Webber “O Fantasma da Ópera”. «Não é uma coisa que aconteça todos os anos!», conta, entusiasmada. Resolveu tentar, em segredo, mais pela experiência do que pelo resultado – até porque não acreditava ter grandes hipóteses. Puro engano. O processo de selecção foi longo e doloroso, com quase uma dezena de audições ao longo de oito ansiosos meses. «Sempre que me ligavam a dizer “O júri gostou muito de a ouvir, volte cá daqui a três semanas para cantar ‘isto’ e ‘aquilo’”, eu só pensava “Decidam-se lá de uma vez!”.» E decidiram: no meio de duas mil candidatas, Sofia foi a escolhida para o lugar. Em apenas dois anos na capital inglesa, chegava à «primeira liga» mundial do teatro musical. O curso ficava a meio, mas após o percurso da actriz/cantora nos anos que se seguiram, a escola concedeu-lhe o diploma de mérito. Os estudos, esses nunca terminaram: «Não se pode parar nunca, continuo a ter aulas particulares. Tenho de investir na minha formação.» Em “O Fantasma da Ópera” coube-lhe 22.magazine
setembro/outubro 2011
a responsabilidade de vestir a pele de Christine Daaé – a jovem por quem Erik, o dito fantasma, se apaixona – sempre que a actriz principal estivesse ausente. Nas restantes noites, integrava o “ensemble” de actores secundários. Um mês após a estreia no Her Majesty’s Theatre, com as férias da colega, chega a altura de ser Christine. «A pressão era muita, mas foi mais a alegria de fazer aquele papel no West End, o entusiasmo de “Finalmente consegui!”, do que nervosismo propriamente dito.» Depois dos aplausos, das vénias, da ovação de pé, depois de limpa a maquilhagem e arrumado o aparatoso figurino de Christine, saiu pela porta pequena e apanhou o autocarro para casa. Concretizado o sonho de menina, Sofia voltava à realidade. Foi em Guimarães, cidade onde nasceu, que descobriu a paixão pelo mundo do espectáculo. Tinha 13 anos e era pouco dada a conversas. O pai, convencido de que o teatro poderia ser bom para ajudá-la a lidar com a timidez, inscreve-a no Círculo das Artes e Recreio de Guimarães. Estreou-se no palco com o papel principal da “Farsa de Inês Pereira”, de Gil Vicente. Amor à primeira vista. Passou depois pelo Teatro Oficina e, em simultâneo, pela Academia Valentim Moreira de Sá, onde começou os estudos musicais. Com o ensino secundário terminado, e já com a perfeita noção de que era em cima do palco que se sentia realmente bem, decidiu prosseguir a formação artística, no Conservatório de Música do Porto. Pelo meio, cantava em casamentos, onde além de ganhar o seu próprio dinheiro se divertia imenso. A timidez, essa nunca a perdeu por completo. «Se estiver no palco e tiver uma personagem, é diferente, mas ser eu mesma…» A frase fica em suspenso, por entre um sorriso discreto e um tímido rolar de olhos. Sofia voltou a ser Christine em 2010, desta vez como intérprete principal. Entre a ida e o regresso, foi Maria, protagonista de outro clássico do West End, “West Side Story”. Nem chegou a terminar o primeiro contrato com “O Fantasma da Ópera”. «Viram-me a fazer de Christine e negociaram
com o Her Majesty’s Theatre para eu poder sair dois meses mais cedo.» Seguiu-se ano e meio de digressão (primeiro pelo Reino Unido, depois França, Itália e Malásia), com oito espectáculos por semana e uma nova cidade a cada 15 dias. O ritmo de trabalho era de tal forma consumidor que, a dada altura, já respondia mais pelo nome Maria do que por Sofia. No entanto, foi muito compensador: a crítica teceu-lhe rasgados elogios; o público elegeu-a “Melhor Actriz em Musical” na votação “online” “Theatregoers’ Choice Awards” promovida pelo portal Whatsonstage.com; e foi o único membro do elenco de “West Side Story” com uma nomeação para os prestigiados prémios Laurence Olivier (o equivalente britânico dos “Tony Awards”), cuja lista de vencedores inclui Judi Dench, Kevin Spacey e Ian McKellen. «Tenho recordações incríveis, mas foi um ano e meio muito cansativo.» Mal acabou a digressão, convidaram-na para outra, a de “Os Miseráveis” (que viria a incluir no seu elenco outra actriz portuguesa, Madalena Alberto), mas recusa de imediato. «A última coisa que me apetecia era pegar outra vez na mala e andar por aí às voltas.» Por opção própria, ficou uns tempos parada, aproveitando para fazer uma participação especial na série juvenil “Morangos com Açúcar”, pelo desafio de experimentar a televisão. A pausa não dura muito: passados três meses, voltava ao Her Majesty’s Theatre, com os ensaios para a sua segunda encarnação de Christine, que durará até Setembro de 2012. Depois disso, outros desafios virão: «Nunca se sabe o que vem a seguir e é uma sorte saber que tenho trabalho até 2012. Mas não sei se assinaria um terceiro contrato – ficar no mesmo papel é quase como ficar dentro de uma caixa, as pessoas depois olham para mim e só conseguem ver aquela personagem.» Até porque Sofia ainda tem uns quantos sonhos por realizar: «Clássicos do teatro musical, como “Música no Coração”, “My Fair Lady”, “Os Miseráveis”, “Miss Saigon”, “Bombay Dreams”, etc.» Há muito caminho para trilhar. E, como facilmente se percebe, são os sonhos que a movem. l
setembro/outubro 2011
magazine.23
PERFIL FALADO
SOFIA ESCOBAR
É uma história clássica: a miúda que tem o sonho de ser actriz e troca o conforto da casa dos pais, num meio pequeno (Portugal, neste caso), pelo desafio da cidade grande, onde arranja um “part-time” a servir à mesa para pagar a renda enquanto o sucesso não bate à porta. Todavia, o caso de Sofia Escobar é tudo menos um cliché: chegada a Londres, passou as provas de acesso de uma das mais reputadas escolas de música e teatro do Reino Unido, ganhou uma bolsa para pagar as avultadas propinas e, passados dois anos, conseguiu um lugar de destaque num grande musical do West End londrino. Tudo à primeira tentativa.
TINHA 13 ANOS QUANDO O PAI A PÔSNUMGRUPO DE TEATRO PARA PERDER A TIMIDEZ. FOI AÍ QUE TUDO COMEÇOU.
Quando terminou o curso do Conservatório de Música do Porto, em 2005, Sofia enfrentava um dilema: ser actriz ou cantora? «Sempre que fazia teatro sentia falta da música, sempre que fazia só música sentia falta do teatro. E em Portugal sempre senti que tinha de optar entre uma coisa e outra.» Pesquisou, aconselhou-se junto dos professores e concluiu que o melhor seria rumar a Inglaterra. Tinha 23 anos, um sonho muito ambicioso – tão ambicioso que se chegou a questionar se não seria mais sensato tirar um curso com melhores perspectivas de emprego e enveredar por uma «vida normal» – e uma rara combinação de talento e determinação. Não tinha pais ricos mas tinha uns ricos pais, que desde o primeiro minuto a apoiaram. «Sempre viram que tinha potencial e, acima de tudo, que era aquilo que me iria fazer feliz.» Mesmo que a sua felicidade implicasse um empréstimo para cobrir despesas de alojamento e do curso. Ao prestar provas na Guildhall School of Music and Drama não só garantiu um lugar na prestigiosa academia londrina – por onde passaram Orlando Bloom, Daniel Craig e Ewan McGreggor, por exemplo –, como acabou por obter uma preciosa bolsa de estudo, que a aliviou das quatro mil libras anuais de propinas (cerca de seis mil euros). Para compor o seu orçamento mensal, arranjou emprego num restaurante, a servir às mesas por cinco libras à hora. Entrava ao serviço depois das aulas e por lá se aguentava até altas horas da noite – não raras vezes, duas da manhã –, levantando-se às sete da manhã seguinte para mais uma jornada. «Foram tempos difíceis e não tenho grandes saudades. Mas sabia que ia valer a pena.» Entretanto, viu um anúncio no jornal – e nada voltou a ser como era. O regulamento da Guildhall é claro: os alunos só podem prestar provas para trabalhos depois de concluído o terceiro ano do curso ou com uma autorização especial da instituição. «É a reputação da escola que está em jogo e eles vivem disso.» No entanto, apesar do seu ar de menina inocente, Sofia mandou a regra às urtigas quando viu anunciada no jornal a abertura de audições para o papel principal do musical de Andrew Lloyd Webber “O Fantasma da Ópera”. «Não é uma coisa que aconteça todos os anos!», conta, entusiasmada. Resolveu tentar, em segredo, mais pela experiência do que pelo resultado – até porque não acreditava ter grandes hipóteses. Puro engano. O processo de selecção foi longo e doloroso, com quase uma dezena de audições ao longo de oito ansiosos meses. «Sempre que me ligavam a dizer “O júri gostou muito de a ouvir, volte cá daqui a três semanas para cantar ‘isto’ e ‘aquilo’”, eu só pensava “Decidam-se lá de uma vez!”.» E decidiram: no meio de duas mil candidatas, Sofia foi a escolhida para o lugar. Em apenas dois anos na capital inglesa, chegava à «primeira liga» mundial do teatro musical. O curso ficava a meio, mas após o percurso da actriz/cantora nos anos que se seguiram, a escola concedeu-lhe o diploma de mérito. Os estudos, esses nunca terminaram: «Não se pode parar nunca, continuo a ter aulas particulares. Tenho de investir na minha formação.» Em “O Fantasma da Ópera” coube-lhe 22.magazine
setembro/outubro 2011
a responsabilidade de vestir a pele de Christine Daaé – a jovem por quem Erik, o dito fantasma, se apaixona – sempre que a actriz principal estivesse ausente. Nas restantes noites, integrava o “ensemble” de actores secundários. Um mês após a estreia no Her Majesty’s Theatre, com as férias da colega, chega a altura de ser Christine. «A pressão era muita, mas foi mais a alegria de fazer aquele papel no West End, o entusiasmo de “Finalmente consegui!”, do que nervosismo propriamente dito.» Depois dos aplausos, das vénias, da ovação de pé, depois de limpa a maquilhagem e arrumado o aparatoso figurino de Christine, saiu pela porta pequena e apanhou o autocarro para casa. Concretizado o sonho de menina, Sofia voltava à realidade. Foi em Guimarães, cidade onde nasceu, que descobriu a paixão pelo mundo do espectáculo. Tinha 13 anos e era pouco dada a conversas. O pai, convencido de que o teatro poderia ser bom para ajudá-la a lidar com a timidez, inscreve-a no Círculo das Artes e Recreio de Guimarães. Estreou-se no palco com o papel principal da “Farsa de Inês Pereira”, de Gil Vicente. Amor à primeira vista. Passou depois pelo Teatro Oficina e, em simultâneo, pela Academia Valentim Moreira de Sá, onde começou os estudos musicais. Com o ensino secundário terminado, e já com a perfeita noção de que era em cima do palco que se sentia realmente bem, decidiu prosseguir a formação artística, no Conservatório de Música do Porto. Pelo meio, cantava em casamentos, onde além de ganhar o seu próprio dinheiro se divertia imenso. A timidez, essa nunca a perdeu por completo. «Se estiver no palco e tiver uma personagem, é diferente, mas ser eu mesma…» A frase fica em suspenso, por entre um sorriso discreto e um tímido rolar de olhos. Sofia voltou a ser Christine em 2010, desta vez como intérprete principal. Entre a ida e o regresso, foi Maria, protagonista de outro clássico do West End, “West Side Story”. Nem chegou a terminar o primeiro contrato com “O Fantasma da Ópera”. «Viram-me a fazer de Christine e negociaram
com o Her Majesty’s Theatre para eu poder sair dois meses mais cedo.» Seguiu-se ano e meio de digressão (primeiro pelo Reino Unido, depois França, Itália e Malásia), com oito espectáculos por semana e uma nova cidade a cada 15 dias. O ritmo de trabalho era de tal forma consumidor que, a dada altura, já respondia mais pelo nome Maria do que por Sofia. No entanto, foi muito compensador: a crítica teceu-lhe rasgados elogios; o público elegeu-a “Melhor Actriz em Musical” na votação “online” “Theatregoers’ Choice Awards” promovida pelo portal Whatsonstage.com; e foi o único membro do elenco de “West Side Story” com uma nomeação para os prestigiados prémios Laurence Olivier (o equivalente britânico dos “Tony Awards”), cuja lista de vencedores inclui Judi Dench, Kevin Spacey e Ian McKellen. «Tenho recordações incríveis, mas foi um ano e meio muito cansativo.» Mal acabou a digressão, convidaram-na para outra, a de “Os Miseráveis” (que viria a incluir no seu elenco outra actriz portuguesa, Madalena Alberto), mas recusa de imediato. «A última coisa que me apetecia era pegar outra vez na mala e andar por aí às voltas.» Por opção própria, ficou uns tempos parada, aproveitando para fazer uma participação especial na série juvenil “Morangos com Açúcar”, pelo desafio de experimentar a televisão. A pausa não dura muito: passados três meses, voltava ao Her Majesty’s Theatre, com os ensaios para a sua segunda encarnação de Christine, que durará até Setembro de 2012. Depois disso, outros desafios virão: «Nunca se sabe o que vem a seguir e é uma sorte saber que tenho trabalho até 2012. Mas não sei se assinaria um terceiro contrato – ficar no mesmo papel é quase como ficar dentro de uma caixa, as pessoas depois olham para mim e só conseguem ver aquela personagem.» Até porque Sofia ainda tem uns quantos sonhos por realizar: «Clássicos do teatro musical, como “Música no Coração”, “My Fair Lady”, “Os Miseráveis”, “Miss Saigon”, “Bombay Dreams”, etc.» Há muito caminho para trilhar. E, como facilmente se percebe, são os sonhos que a movem. l
setembro/outubro 2011
magazine.23
PERFIL FALADO
SOFIA ESCOBAR
uando lhe perguntam a profissão, o que diz primeiro: cantora ou actriz?
É sempre actriz/cantora. Portanto, a actriz leva uma ligeira vantagem…
as cordas vocais. É melhor ficar em casa a beber chá e voltar quando estiver completamente bem. Mas sim, há uma pressão muito grande. Tenho de ter muito cuidado com tudo o que faço.
Talvez. Acho que sim. Imagina voltar a fazer só teatro ou só música?
Não ponho de parte. Mas tenho de ter tempo de fazer as duas coisas. Com o tempo e a experiência tornou-se mais fácil ou mais difícil representar, por saber que a fasquia está mais alta?
As duas coisas. A pressão cresce cada vez mais. Sabendo que já estou num nível bastante elevado, quero sempre subir. É por isso que continuo a investir na minha formação. Mas é normal ter altos e baixos, faz parte da carreira – e estou preparada para isso. Até agora tenho tido muita sorte, mas quem diz que não faço um papel para o qual não sou tão adequada ou onde não consigo dar tanto de mim? Já teve algum dia menos bom?
Acontece, acontece… E acha que o público consegue notar?
O público, provavelmente não. Mas eu noto e fico muito frustrada, porque sou uma perfeccionista. O director assiste a vários espectáculos e temos “notes” – todas as semanas ele vem falar connosco, por vezes para dizer coisas mínimas como «tens de dar um passo mais para a direita porque não estás na luz certa», mas tudo quanto é da minha representação, dou-lhe eu as minhas notas primeiro. «Pois, eu sei, fiz isto “assim” e devia ter feito “assim”.» Sou a minha pior crítica. Por um lado é bom, por outro é mau: nunca se é perfeito. Quantas horas trabalha por semana?
Faço seis espectáculos – com duas horas e meia de duração – e estou no teatro hora e meia antes. E quantas horas ensaiam por dia?
Já não há ensaios. Só nas seis semanas antes do arranque do espectáculo. Cada espectáculo serve de ensaio para o seguinte…
Sim, e temos essas “notes” do director. Não somos chamados para ensaios, a não ser que haja alguma coisa que precise mesmo de ser mudada. Ou então se houver novo elenco, como agora [Agosto], que vou ter de fazer ensaios, além de continuar a fazer o espectáculo à noite com o elenco antigo… E como funcionam as coisas ao nível de horas extra?
São pagas. E eles respeitam-nos muito – sabem que não podem abusar porque não posso chegar ao espectáculo com a voz cansada e 1300 pessoas a assistir. Já aconteceu ter de actuar sem estar a 100 por cento?
Não. Nem convém. A Christine é vocalmente muito exigente e basta estar com uma ligeira inflamação para não conseguir fazer o espectáculo. É até perigoso – posso danificar 24.magazine
setembro/outubro 2011
Sente que a personagem influencia a sua vida pessoal? Dá por si a reagir como ela?
Quando fiz o “West Side Story”, sim. Talvez pelo facto de andar em digressão – não tinha a minha casa, os meus amigos, estava sempre nos teatros, rodeada dos outros actores do espectáculo. Chegou a um ponto em que nos tratávamos pelo nome das personagens. Se estivesse num restaurante e alguém chamasse “Maria!”, eu olhava. É estranhíssimo. Eu era muito mais Maria do que Sofia. Agora não sinto isso, porque estou num teatro fixo, tenho a minha vida à parte. Para mim, neste momento, é muito melhor um pouco de estabilidade. Fazer a personagem de Christine obrigou-a a corrigir o seu inglês? Tal como qualquer outro povo, temos o nosso próprio sotaque…
Pois temos. E não é pouco. Eu não dava conta disso. Tive um “dialect coach” durante algum tempo. Mas acho que para pessoas com ouvido musical é mais fácil. Ouvia falar e conseguia distinguir as diferenças. Foi fascinante aprender. Senti-me como uma Eliza Doolittle dos tempos modernos. “The rain in Spain stays mainly in the plain.” [risos] Tive de aprender a falar o inglês correcto.
De que tem mais saudades quando lá está?
Família, amigos, sol, mar, comida. Do café já não tanto, agora tenho uma Nespresso, que dá para safar. E qual é a melhor parte de viver em Londres?
Todo o ambiente cultural é fenomenal. Mesmo quando não se tem dinheiro, como foi o meu caso durante muito tempo, há sempre muito para ver e fazer, nomeadamente entradas gratuitas em tudo quanto é museu e concertos abertos. Ou, mais que não seja, dar um passeio à beira do Tamisa, ver o Globe Theatre, o London Eye… E gosto imenso de ver tanta gente de lugares completamente diferentes. O que faz quando não está a trabalhar?
Cinema, jantares, almoços com amigos, ginásio. Agora o tempo está óptimo em
Londres e eu moro perto de Hyde Park. Vou para lá andar de bicicleta muitas vezes. O que gostaria de fazerquandoterminar o contrato com “O Fantasma da Ópera”?
Tenho o sonho de gravar um CD. Mas teria deserumacoisamuitobempensada.Equeria continuar a investir, a fazer mais teatro, fazer outrospapéisemteatromusical.Éummundo depossibilidades.Quemsabe,umdia,cinema? Gostava de me aventurar nesses campos. Que musical mais gostaria de fazer?
Sim. Músicos, cantores, há muitos. Cada vez mais, nas escolas, a trabalhar e a estudar. Especialmente na parte de canto clássico.
Já estou a concretizar um dos meus grandes sonhos. E fiz outro dos meus papéis favoritos, a Maria [“West Side Story”]. Sou muito privilegiada, sem dúvida. Além destes, “Música no Coração”, “My Fair Lady”, etc., mais os clássicos do que esta nova geração de teatro musical, que não me diz tanto.
Costumam juntar-se para matar saudades?
De que parte da sua profissão mais gosta?
Sim. Fazemos “barbecues” portugueses. Assamos umas febras, ouvimos Quim Barreiros [risos].
Poder viver contos de fadas, histórias fantásticas. Tenho a possibilidade de viver várias vidas numa só e isso é extraordinário.
Tem contacto com outros portugueses em Londres?
setembro/outubro 2011
magazine.25
PERFIL FALADO
SOFIA ESCOBAR
uando lhe perguntam a profissão, o que diz primeiro: cantora ou actriz?
É sempre actriz/cantora. Portanto, a actriz leva uma ligeira vantagem…
as cordas vocais. É melhor ficar em casa a beber chá e voltar quando estiver completamente bem. Mas sim, há uma pressão muito grande. Tenho de ter muito cuidado com tudo o que faço.
Talvez. Acho que sim. Imagina voltar a fazer só teatro ou só música?
Não ponho de parte. Mas tenho de ter tempo de fazer as duas coisas. Com o tempo e a experiência tornou-se mais fácil ou mais difícil representar, por saber que a fasquia está mais alta?
As duas coisas. A pressão cresce cada vez mais. Sabendo que já estou num nível bastante elevado, quero sempre subir. É por isso que continuo a investir na minha formação. Mas é normal ter altos e baixos, faz parte da carreira – e estou preparada para isso. Até agora tenho tido muita sorte, mas quem diz que não faço um papel para o qual não sou tão adequada ou onde não consigo dar tanto de mim? Já teve algum dia menos bom?
Acontece, acontece… E acha que o público consegue notar?
O público, provavelmente não. Mas eu noto e fico muito frustrada, porque sou uma perfeccionista. O director assiste a vários espectáculos e temos “notes” – todas as semanas ele vem falar connosco, por vezes para dizer coisas mínimas como «tens de dar um passo mais para a direita porque não estás na luz certa», mas tudo quanto é da minha representação, dou-lhe eu as minhas notas primeiro. «Pois, eu sei, fiz isto “assim” e devia ter feito “assim”.» Sou a minha pior crítica. Por um lado é bom, por outro é mau: nunca se é perfeito. Quantas horas trabalha por semana?
Faço seis espectáculos – com duas horas e meia de duração – e estou no teatro hora e meia antes. E quantas horas ensaiam por dia?
Já não há ensaios. Só nas seis semanas antes do arranque do espectáculo. Cada espectáculo serve de ensaio para o seguinte…
Sim, e temos essas “notes” do director. Não somos chamados para ensaios, a não ser que haja alguma coisa que precise mesmo de ser mudada. Ou então se houver novo elenco, como agora [Agosto], que vou ter de fazer ensaios, além de continuar a fazer o espectáculo à noite com o elenco antigo… E como funcionam as coisas ao nível de horas extra?
São pagas. E eles respeitam-nos muito – sabem que não podem abusar porque não posso chegar ao espectáculo com a voz cansada e 1300 pessoas a assistir. Já aconteceu ter de actuar sem estar a 100 por cento?
Não. Nem convém. A Christine é vocalmente muito exigente e basta estar com uma ligeira inflamação para não conseguir fazer o espectáculo. É até perigoso – posso danificar 24.magazine
setembro/outubro 2011
Sente que a personagem influencia a sua vida pessoal? Dá por si a reagir como ela?
Quando fiz o “West Side Story”, sim. Talvez pelo facto de andar em digressão – não tinha a minha casa, os meus amigos, estava sempre nos teatros, rodeada dos outros actores do espectáculo. Chegou a um ponto em que nos tratávamos pelo nome das personagens. Se estivesse num restaurante e alguém chamasse “Maria!”, eu olhava. É estranhíssimo. Eu era muito mais Maria do que Sofia. Agora não sinto isso, porque estou num teatro fixo, tenho a minha vida à parte. Para mim, neste momento, é muito melhor um pouco de estabilidade. Fazer a personagem de Christine obrigou-a a corrigir o seu inglês? Tal como qualquer outro povo, temos o nosso próprio sotaque…
Pois temos. E não é pouco. Eu não dava conta disso. Tive um “dialect coach” durante algum tempo. Mas acho que para pessoas com ouvido musical é mais fácil. Ouvia falar e conseguia distinguir as diferenças. Foi fascinante aprender. Senti-me como uma Eliza Doolittle dos tempos modernos. “The rain in Spain stays mainly in the plain.” [risos] Tive de aprender a falar o inglês correcto.
De que tem mais saudades quando lá está?
Família, amigos, sol, mar, comida. Do café já não tanto, agora tenho uma Nespresso, que dá para safar. E qual é a melhor parte de viver em Londres?
Todo o ambiente cultural é fenomenal. Mesmo quando não se tem dinheiro, como foi o meu caso durante muito tempo, há sempre muito para ver e fazer, nomeadamente entradas gratuitas em tudo quanto é museu e concertos abertos. Ou, mais que não seja, dar um passeio à beira do Tamisa, ver o Globe Theatre, o London Eye… E gosto imenso de ver tanta gente de lugares completamente diferentes. O que faz quando não está a trabalhar?
Cinema, jantares, almoços com amigos, ginásio. Agora o tempo está óptimo em
Londres e eu moro perto de Hyde Park. Vou para lá andar de bicicleta muitas vezes. O que gostaria de fazerquandoterminar o contrato com “O Fantasma da Ópera”?
Tenho o sonho de gravar um CD. Mas teria deserumacoisamuitobempensada.Equeria continuar a investir, a fazer mais teatro, fazer outrospapéisemteatromusical.Éummundo depossibilidades.Quemsabe,umdia,cinema? Gostava de me aventurar nesses campos. Que musical mais gostaria de fazer?
Sim. Músicos, cantores, há muitos. Cada vez mais, nas escolas, a trabalhar e a estudar. Especialmente na parte de canto clássico.
Já estou a concretizar um dos meus grandes sonhos. E fiz outro dos meus papéis favoritos, a Maria [“West Side Story”]. Sou muito privilegiada, sem dúvida. Além destes, “Música no Coração”, “My Fair Lady”, etc., mais os clássicos do que esta nova geração de teatro musical, que não me diz tanto.
Costumam juntar-se para matar saudades?
De que parte da sua profissão mais gosta?
Sim. Fazemos “barbecues” portugueses. Assamos umas febras, ouvimos Quim Barreiros [risos].
Poder viver contos de fadas, histórias fantásticas. Tenho a possibilidade de viver várias vidas numa só e isso é extraordinário.
Tem contacto com outros portugueses em Londres?
setembro/outubro 2011
magazine.25
PERFIL FALADO
DATAS. DISCURSO DIRECTO.
O DESLUMBRAMENTO PODE SER UM GRANDE ERRO. Enquanto estive em Portugal foi completamente impossível. Sempre quis fazer teatro, sempre quis cantar, representar, e nunca consegui abrir as portas certas. Só posso falar pela minha experiência, mas estou em Londres há apenas cinco anos e já consegui o que consegui. Infelizmente, em vez do “X Factor”, cá ainda existe muito o «Factor C». Quando cheguei a Londres trabalhei num restaurante. Por vezes trabalhava até às duas da manhã, e acordava às sete para ir à escola. Foram tempos difíceis, não vou mentir: não tenho grandes saudades. Mas sabia que ia valer a pena. Tinha uma convicção muito forte. Li num jornal o anúncio de uma vaga para o papel de Christine em “O Fantasma da Ópera”. Não é coisa que aconteça todos os anos. Decidi ir para ver como era, mas nunca pensei que ficasse com o trabalho. Pensei «Vou fazer as provas para ficar com a experiência, e ninguém precisa de saber». Depois acabaram por ter de saber… A dança é o meu grande ponto fraco. Nunca fiz dança na vida. É suposto a Christine ser uma bailarina que, afinal, também canta; eu sou uma cantora que, afinal, também dança… mal. Só escapa porque ela é um pouco distraída e eu aproveito-me disso para lhe pôr as culpas em cima. Faço seis espectáculos por semana, mas não me canso daquilo. Cada espectáculo é único, é sempre diferente. Nunca estamos exactamente com o mesmo estado de espírito. Se o actor tiver vontade de descobrir coisas novas todos os dias, em vez de carregar no piloto automático, acaba por desenvolver cada vez mais a personagem. É muito bom sentir essa evolução. O sucesso não me assusta. Assustar-me-ia pensar que poderia mudar. Mas sei que isso não vai acontecer. A forma como os meus pais me educaram não mo permite, felizmente. Ter sucesso é bom. Especialmente, quando se luta tanto para chegar a algum lado. Assusta-me mais o insucesso: tenho sempre medo porque isto é muito instável. Nunca se sabe o que vem a seguir. O deslumbramento pode ser um grande erro. Toda a vida admirei pessoas muito talentosas com as quais se podia conversar no final do espectáculo. A fama pode subir à cabeça de uma pessoa, mas não vem acrescentar nada ao seu talento. Quem tem talento – seja humilde ou não – tem-no sempre. O facto de eu representar ou gostar de cantar não faz de mim diferente de quem tem talento noutra área qualquer. No fundo, é um trabalho. Isto é quase como ser atleta de alta competição: fumar, nem pensar; beber, nem pensar; sair à noite, nem pensar.
Mas sempre soube que eram essas as regras. Dormir é muito importante, bebo cinco litros de água por dia e não posso engordar – está escrito no meu contrato, junto das minhas medidas e do peso – por causa dos figurinos, que são caríssimos e, se apertar é sempre possível, alargar é mais complicado. Tentar a sorte em Nova Iorque? Claro que gostava, mas é muito complicado por causa dos vistos de trabalho. Houve uma altura em que quiseram que fosse fazer audições para a Maria, no “West Side Story” da Broadway. Recuaram mal souberam que eu não tinha visto. Na altura, foi chato, porque estava entusiasmada com a ideia. Mas acredito que as coisas acontecem por um motivo: se tem de ser, é; se não tem de ser, não é. l www.sofiaescobar.com Assistente de fotografia: Filipe Serralheiro I Pós-produção: Álvaro Teixeira I Maquilhadora: Sónia Pessoa I Cabelos: Ana Fernandes para griffe I Sofia Escobar vestida por Ana Sousa I Agradecimentos: Gil Sousa Jewellers e Gioia — Relógios e Jóias 26.magazine
setembro/outubro 2011
1981. Nasce a 29 de Novembro, em Guimarães. Em criança brincava aos palcos e cantava para as bonecas (mas nunca em público). Tinha um problema de timidez, que o pai resolveu inscrevendo-a num grupo local de teatro amador aos 13 anos. Rapidamente se entusiasma com a ideia de estar em cima de um palco. Começa depois a estudar música e entra para o Teatro Oficina, onde faz a sua primeira peça «a sério», “Estórias do Arco da Velha” (1999). 2000. Concluído o 12º ano, hesita entre um curso «normal» e a via artística. A paixão fala mais alto: muda-se para o Porto para estudar música no Conservatório. A veia teatral é exercitada no Rivoli, onde participa na ópera “Os Zoocratas” e no musical “Scents of Light” (2003). 2005. Com o diploma do Conservatório na mão, o caminho volta a bifurcar-se: continuar a tentar uma carreira em Portugal ou sonhar mais alto? Ganhou o verbo «ousar»: viaja para Londres, passa nas provas da prestigiada Guildhall School of Music and Drama e consegue uma bolsa de estudo. 2007. Abre a vaga de “understudy” (substituta) da actriz principal no musical “O Fantasma da Ópera”. Apesar de não ter autorização da escola, Sofia teima em fazer as provas. É a escolhida, entre duas mil candidatas.
2008. Dá nas vistas em “O Fantasma da Ópera”, convencendo os produtores de “West Side Story” a contratarem-na para o papel principal de uma nova produção do clássico de Leonard Bernstein e Arthur Laurents. O seu desempenho é elogiado pela crítica, premiado pelo público e vale-lhe a nomeação para o prestigioso “Laurence Olivier Award”.
2010. Regressa a “O Fantasma da Ópera”, agora como actriz principal, onde ficará até Setembro de 2012.
setembro/outubro 2011
magazine.27
PERFIL FALADO
DATAS. DISCURSO DIRECTO.
O DESLUMBRAMENTO PODE SER UM GRANDE ERRO. Enquanto estive em Portugal foi completamente impossível. Sempre quis fazer teatro, sempre quis cantar, representar, e nunca consegui abrir as portas certas. Só posso falar pela minha experiência, mas estou em Londres há apenas cinco anos e já consegui o que consegui. Infelizmente, em vez do “X Factor”, cá ainda existe muito o «Factor C». Quando cheguei a Londres trabalhei num restaurante. Por vezes trabalhava até às duas da manhã, e acordava às sete para ir à escola. Foram tempos difíceis, não vou mentir: não tenho grandes saudades. Mas sabia que ia valer a pena. Tinha uma convicção muito forte. Li num jornal o anúncio de uma vaga para o papel de Christine em “O Fantasma da Ópera”. Não é coisa que aconteça todos os anos. Decidi ir para ver como era, mas nunca pensei que ficasse com o trabalho. Pensei «Vou fazer as provas para ficar com a experiência, e ninguém precisa de saber». Depois acabaram por ter de saber… A dança é o meu grande ponto fraco. Nunca fiz dança na vida. É suposto a Christine ser uma bailarina que, afinal, também canta; eu sou uma cantora que, afinal, também dança… mal. Só escapa porque ela é um pouco distraída e eu aproveito-me disso para lhe pôr as culpas em cima. Faço seis espectáculos por semana, mas não me canso daquilo. Cada espectáculo é único, é sempre diferente. Nunca estamos exactamente com o mesmo estado de espírito. Se o actor tiver vontade de descobrir coisas novas todos os dias, em vez de carregar no piloto automático, acaba por desenvolver cada vez mais a personagem. É muito bom sentir essa evolução. O sucesso não me assusta. Assustar-me-ia pensar que poderia mudar. Mas sei que isso não vai acontecer. A forma como os meus pais me educaram não mo permite, felizmente. Ter sucesso é bom. Especialmente, quando se luta tanto para chegar a algum lado. Assusta-me mais o insucesso: tenho sempre medo porque isto é muito instável. Nunca se sabe o que vem a seguir. O deslumbramento pode ser um grande erro. Toda a vida admirei pessoas muito talentosas com as quais se podia conversar no final do espectáculo. A fama pode subir à cabeça de uma pessoa, mas não vem acrescentar nada ao seu talento. Quem tem talento – seja humilde ou não – tem-no sempre. O facto de eu representar ou gostar de cantar não faz de mim diferente de quem tem talento noutra área qualquer. No fundo, é um trabalho. Isto é quase como ser atleta de alta competição: fumar, nem pensar; beber, nem pensar; sair à noite, nem pensar.
Mas sempre soube que eram essas as regras. Dormir é muito importante, bebo cinco litros de água por dia e não posso engordar – está escrito no meu contrato, junto das minhas medidas e do peso – por causa dos figurinos, que são caríssimos e, se apertar é sempre possível, alargar é mais complicado. Tentar a sorte em Nova Iorque? Claro que gostava, mas é muito complicado por causa dos vistos de trabalho. Houve uma altura em que quiseram que fosse fazer audições para a Maria, no “West Side Story” da Broadway. Recuaram mal souberam que eu não tinha visto. Na altura, foi chato, porque estava entusiasmada com a ideia. Mas acredito que as coisas acontecem por um motivo: se tem de ser, é; se não tem de ser, não é. l www.sofiaescobar.com Assistente de fotografia: Filipe Serralheiro I Pós-produção: Álvaro Teixeira I Maquilhadora: Sónia Pessoa I Cabelos: Ana Fernandes para griffe I Sofia Escobar vestida por Ana Sousa I Agradecimentos: Gil Sousa Jewellers e Gioia — Relógios e Jóias 26.magazine
setembro/outubro 2011
1981. Nasce a 29 de Novembro, em Guimarães. Em criança brincava aos palcos e cantava para as bonecas (mas nunca em público). Tinha um problema de timidez, que o pai resolveu inscrevendo-a num grupo local de teatro amador aos 13 anos. Rapidamente se entusiasma com a ideia de estar em cima de um palco. Começa depois a estudar música e entra para o Teatro Oficina, onde faz a sua primeira peça «a sério», “Estórias do Arco da Velha” (1999). 2000. Concluído o 12º ano, hesita entre um curso «normal» e a via artística. A paixão fala mais alto: muda-se para o Porto para estudar música no Conservatório. A veia teatral é exercitada no Rivoli, onde participa na ópera “Os Zoocratas” e no musical “Scents of Light” (2003). 2005. Com o diploma do Conservatório na mão, o caminho volta a bifurcar-se: continuar a tentar uma carreira em Portugal ou sonhar mais alto? Ganhou o verbo «ousar»: viaja para Londres, passa nas provas da prestigiada Guildhall School of Music and Drama e consegue uma bolsa de estudo. 2007. Abre a vaga de “understudy” (substituta) da actriz principal no musical “O Fantasma da Ópera”. Apesar de não ter autorização da escola, Sofia teima em fazer as provas. É a escolhida, entre duas mil candidatas.
2008. Dá nas vistas em “O Fantasma da Ópera”, convencendo os produtores de “West Side Story” a contratarem-na para o papel principal de uma nova produção do clássico de Leonard Bernstein e Arthur Laurents. O seu desempenho é elogiado pela crítica, premiado pelo público e vale-lhe a nomeação para o prestigioso “Laurence Olivier Award”.
2010. Regressa a “O Fantasma da Ópera”, agora como actriz principal, onde ficará até Setembro de 2012.
setembro/outubro 2011
magazine.27
PERFIL FALADO
TEXTO JOÃO MESTRE FOTOGRAFIA PEDRO LOUREIRO
JOÃO SALAVIZA
CURTAS AMBIGUIDADES TEM NO CURRÍCULO UM DOS PRÉMIOS MAIS COBIÇADOS DO MUNDO DO CINEMA E É VISTO POR MUITOS COMO FIGURA DE PROA DE UMA NOVA GERAÇÃO DE REALIZADORES PORTUGUESES. MAS JOÃO SALAVIZA NÃO SE DESLUMBRA FACILMENTE. «DEPOIS DE CANNES, ATÉ PODIA TER AVANÇADO CEGAMENTE PARA UMA LONGA-METRAGEM, MAS PREFIRO ASSIM. ISTO AJUDA-ME A DESCOBRIR O MEU CAMINHO. TENHO DE FAZER BEM AS COISAS PARA CONTINUAR A TER PESSOAS INTERESSADAS EM APOIAR-ME.»
16.magazine
julho/agosto 2010
julho/agosto 2010
magazine.17
PERFIL FALADO
TEXTO JOÃO MESTRE FOTOGRAFIA PEDRO LOUREIRO
JOÃO SALAVIZA
CURTAS AMBIGUIDADES TEM NO CURRÍCULO UM DOS PRÉMIOS MAIS COBIÇADOS DO MUNDO DO CINEMA E É VISTO POR MUITOS COMO FIGURA DE PROA DE UMA NOVA GERAÇÃO DE REALIZADORES PORTUGUESES. MAS JOÃO SALAVIZA NÃO SE DESLUMBRA FACILMENTE. «DEPOIS DE CANNES, ATÉ PODIA TER AVANÇADO CEGAMENTE PARA UMA LONGA-METRAGEM, MAS PREFIRO ASSIM. ISTO AJUDA-ME A DESCOBRIR O MEU CAMINHO. TENHO DE FAZER BEM AS COISAS PARA CONTINUAR A TER PESSOAS INTERESSADAS EM APOIAR-ME.»
16.magazine
julho/agosto 2010
julho/agosto 2010
magazine.17
PERFIL FALADO
JOÃO SALAVIZA
“TENHO UMA VIDA BANAL PARA UM TIPO DE 26 ANOS: LEIO, JOGO FUTEBOL COM OS MEUS AMIGOS, VEJO MUITO CINEMA.”
Dura apenas 15 minutos. Os mesmos que Andy Warhol reservou de fama ao comum dos mortais. “Arena”, a história de um jovem em prisão domiciliária num bairro proble mático, garantiu a João Salaviza, aos 25 anos, a primeira Palma de Ouro ganha por um filme português, no Festival de Cannes 2009. Já antes havia ganho o prémio de “Melhor Curta-Metragem Portuguesa” no IndieLisboa, mas Cannes é Cannes. «Isto é um pouco perverso, porque o filme – bom ou mau – já era o que era antes da Palma de Ouro; mas os festivais, no fundo, são mecanismos de legitimação», explica o realizador, sentado numa esplanada a dois passos do Teatro São Luiz, onde acabara de apresentar a sua nova curta-metragem, “Hotel Müller”, «um filme muito híbrido, muito próximo da dança e do teatro». Encomendado pelo teatro municipal de Lisboa para assinalar o primeiro aniversário da morte de Pina Bausch – em regime de co-produção com a RTP, o Centro Cultural de Belém, a Fundação Gulbenkian e o Goethe Institut –, “Hotel Müller” tem como ponto de partida o espectáculo “Caffé Müller”, com o qual a coreógrafa alemã pisou pela última vez um palco, o do São Luiz. «Foi a minha primeira encomenda e, ao contrário do que poderia pensar, até foi bastante libertador – pude fazer um filme quase sem narrativa, pegar em elementos de dança e do teatro e introduzi-los sem que isso fosse chocante para ninguém.» A estreia aconteceu a 30 de Junho, alguns dias após a conversa com a “M Magazine”, no âmbito da homenagem a Pina Bausch. O percurso pelas salas de cinema, porém, não estava ainda definido. «É um filme muito específico, não sei se vai estrear em sala ou não.» João Salaviza nasceu em Lisboa, em 1984. O cinema não foi logo uma opção de carreira, apesar de ser filho do cineasta Edgar Feldman. «Estava tudo tão próximo – o meu pai tinha um pequeno estúdio de montagem em casa – que, talvez por isso, nunca levei muito a sério essa possibilidade.» Na altura, estaria mais interessado em tornar-se futebolista, tendo inclusive feito testes para o Sporting; ou em chegar mais longe no xadrez, onde ainda conquistou um título de campeão nacional. O cinema só viria depois. «Não tenho uma história romântica para contar, daquelas do tipo “Tinha três anos quando vi um filme do [Andrei] Tarkovsky e fez-se uma luz na minha cabeça”.» Descobriu, primeiro, que era divertido «brincar» aos actores. «Fiz algumas participações em telefilmes franceses, fiz uma “perna” num filme do Manuel Mozos [“Quando Troveja”, 2000], noutro do Jorge Silva Melo [“Coitado do Jorge”, 1993], e entrei num filme do meu pai [“Querença”, 2004].» Essa foi a última vez que trabalhou à frente da câmara. «Algures, aos 16, 17 anos, começo a descobrir outro cinema, a perceber que há outras coisas.» Por intermédio do pai, tem acesso à filmografia do iraniano Abbas Kiarostami – actualmente, o seu «realizador de referência entre os vivos» – e apercebe-se de que «o cinema pode ser algo com uma vitalidade que os filmes “mainstream” nem sempre tinham». Salaviza perde então por completo a vontade de ser actor – «se bem que nunca tive ambição de 18.magazine
julho/agosto 2010
sê-lo nem me considerei especialmente talentoso nessa área» – mas começa a pensar na hipótese de fazer da sétima arte profissão. Por isso, não foi difícil escolher o curso. «Hoje não me imagino a fazer outra coisa.» É do cinema que vive, «embora não com muita margem de manobra», sublinha. «Trabalhei como montador, em televisão, publicidade, filmes institucionais; fiz de tudo um pouco para pagar a renda da casa.» O sucesso de Cannes acabou por ter um efeito algo surpreendente: «Há uma espécie de preconceito ao contrário, algumas pessoas que me chamavam para montar os seus filmes deixaram de fazê-lo.» Talvez levados pela ideia de que João Salaviza se sinta desmasiado importante para esses «trabalhos menores». «De todo!», esclarece. De facto, nestes 60 minutos de conversa, nunca o seu discurso pendeu para a auto-adoração. Até se perdoaria um pouco de vaidade a alguém que, tão novo, já chegou onde chegou. «Tenho uma vida absolutamente banal para um tipo de 26 anos: leio, jogo futebol duas ou três vezes por semana com amigos, vejo muito cinema.» As longas-metragens ficam para mais tarde. «Tenho algumas curtas para fazer até lá. Depois de Cannes, até podia ter avançado cegamente para uma longa-metragem, mas prefiro assim. Isto ajuda-me a descobrir o meu caminho. Tenho de fazer bem as coisas para continuar a ter pessoas interessadas em apoiar-me.» Formou-se na Escola Superior de Cinema e Teatro de Lisboa. Contudo, diplomou-se primeiro em Cannes: «Quando recebi o prémio, tinha ainda uma ou duas cadeiras “penduradas”. Como fiz o primeiro semestre do 4º ano na Argentina, algumas disciplinas não eram compatíveis com o curso em Portugal.»
Porquê a Argentina? «Eu tinha ficado fascinado com uma retrospectiva do IndieLisboa sobre cinema argentino, que é hoje um dos mais activos e criativos do mundo», explicou numa entrevista ao “Expresso”. «Há ali um entusiasmo imenso em fazer. Às vezes, sem quaisquer meios: o mais importante é experimentar.» Contudo, não chegou a filmar na pátria de Fernando Solanas. «Seria meramente o ponto de vista exótico de um estrangeiro deslumbrado com Buenos Aires.» Isto não significa que para João Salaviza um pouco de deslumbramento não seja necessário: «Há sempre um impulso de, num dado espaço, nos seduzirmos de alguma maneira, com alguma história, com as pessoas.» Foi isso que aconteceu em “Arena”, cujo elenco era formado na sua maioria por não-actores, «miúdos de outros bairros suburbanos de Lisboa». «Curiosamente, não foi difícil dirigi-los, eles compreendiam bem os códigos da violência que estava a ser filmada e havia uma espécie de fascínio de minha parte em perceber algumas coisas que, para eles, são o dia-a-dia.» Daí resultou que o filme tivesse saído com o realismo pretendido. «Os meus diálogos foram directamente para
o lixo, os deles eram muito mais interessantes, genuínos e justos. Eu podia teimosamente dizer “Tens de dizer esta linda frase que eu escrevi, com a vírgula no sítio certo”, mas depois é uma aldrabice, não se acredita naquilo.» Se há algo que define o trabalho de João Salaviza, será talvez a sua preocupação em filmar espaços e personagens «que normalmente não são representados no cinema», «pessoas e espaços únicos que a câmara teve o privilégio de captar». Acredita no cinema «como um veículo para nos aproximarmos das coisas que queremos conhecer», seja filmando num palácio ou num bairro social «para tentar perceber como é a vida nesse lugar». O importante, para este jovem realizador, é «o filme ser feito a partir de dentro» – tal como aconteceu em “Arena”, rodado no Bairro da Flamenga (na freguesia de Marvila, Lisboa), onde passou cerca de dois meses. «É como quando nos mudamos para um prédio novo, vamos conhecendo os vizinhos, cruzamo-nos com eles na escada, ficamos amigos da velhinha que mora por cima.» A cumplicidade criada com os moradores ajudou a integração da equipa de filmagem e tirou as dúvidas aos mais cépticos: eles não estavam ali por oportunismo. Até porque a ideia nunca foi passar uma mensagem ou representar determinada realidade: «Não sou representante de ninguém, filmo o meu ponto de vista sobre aquela pessoa, sobre aquela casa, e é tão válido como qualquer outro ponto de vista. Não é uma coisa do género: “A vida neste bairro é assim, dois pontos”, até porque é um pouco pretensioso achar que já sei tudo sobre...» A conversa é interrompida pela passagem de um eléctrico. «Se eu já sei tudo, para que vou fazer um filme? Mais vale escrever uma tese...» julho/agosto 2010
magazine.19
PERFIL FALADO
JOÃO SALAVIZA
“TENHO UMA VIDA BANAL PARA UM TIPO DE 26 ANOS: LEIO, JOGO FUTEBOL COM OS MEUS AMIGOS, VEJO MUITO CINEMA.”
Dura apenas 15 minutos. Os mesmos que Andy Warhol reservou de fama ao comum dos mortais. “Arena”, a história de um jovem em prisão domiciliária num bairro proble mático, garantiu a João Salaviza, aos 25 anos, a primeira Palma de Ouro ganha por um filme português, no Festival de Cannes 2009. Já antes havia ganho o prémio de “Melhor Curta-Metragem Portuguesa” no IndieLisboa, mas Cannes é Cannes. «Isto é um pouco perverso, porque o filme – bom ou mau – já era o que era antes da Palma de Ouro; mas os festivais, no fundo, são mecanismos de legitimação», explica o realizador, sentado numa esplanada a dois passos do Teatro São Luiz, onde acabara de apresentar a sua nova curta-metragem, “Hotel Müller”, «um filme muito híbrido, muito próximo da dança e do teatro». Encomendado pelo teatro municipal de Lisboa para assinalar o primeiro aniversário da morte de Pina Bausch – em regime de co-produção com a RTP, o Centro Cultural de Belém, a Fundação Gulbenkian e o Goethe Institut –, “Hotel Müller” tem como ponto de partida o espectáculo “Caffé Müller”, com o qual a coreógrafa alemã pisou pela última vez um palco, o do São Luiz. «Foi a minha primeira encomenda e, ao contrário do que poderia pensar, até foi bastante libertador – pude fazer um filme quase sem narrativa, pegar em elementos de dança e do teatro e introduzi-los sem que isso fosse chocante para ninguém.» A estreia aconteceu a 30 de Junho, alguns dias após a conversa com a “M Magazine”, no âmbito da homenagem a Pina Bausch. O percurso pelas salas de cinema, porém, não estava ainda definido. «É um filme muito específico, não sei se vai estrear em sala ou não.» João Salaviza nasceu em Lisboa, em 1984. O cinema não foi logo uma opção de carreira, apesar de ser filho do cineasta Edgar Feldman. «Estava tudo tão próximo – o meu pai tinha um pequeno estúdio de montagem em casa – que, talvez por isso, nunca levei muito a sério essa possibilidade.» Na altura, estaria mais interessado em tornar-se futebolista, tendo inclusive feito testes para o Sporting; ou em chegar mais longe no xadrez, onde ainda conquistou um título de campeão nacional. O cinema só viria depois. «Não tenho uma história romântica para contar, daquelas do tipo “Tinha três anos quando vi um filme do [Andrei] Tarkovsky e fez-se uma luz na minha cabeça”.» Descobriu, primeiro, que era divertido «brincar» aos actores. «Fiz algumas participações em telefilmes franceses, fiz uma “perna” num filme do Manuel Mozos [“Quando Troveja”, 2000], noutro do Jorge Silva Melo [“Coitado do Jorge”, 1993], e entrei num filme do meu pai [“Querença”, 2004].» Essa foi a última vez que trabalhou à frente da câmara. «Algures, aos 16, 17 anos, começo a descobrir outro cinema, a perceber que há outras coisas.» Por intermédio do pai, tem acesso à filmografia do iraniano Abbas Kiarostami – actualmente, o seu «realizador de referência entre os vivos» – e apercebe-se de que «o cinema pode ser algo com uma vitalidade que os filmes “mainstream” nem sempre tinham». Salaviza perde então por completo a vontade de ser actor – «se bem que nunca tive ambição de 18.magazine
julho/agosto 2010
sê-lo nem me considerei especialmente talentoso nessa área» – mas começa a pensar na hipótese de fazer da sétima arte profissão. Por isso, não foi difícil escolher o curso. «Hoje não me imagino a fazer outra coisa.» É do cinema que vive, «embora não com muita margem de manobra», sublinha. «Trabalhei como montador, em televisão, publicidade, filmes institucionais; fiz de tudo um pouco para pagar a renda da casa.» O sucesso de Cannes acabou por ter um efeito algo surpreendente: «Há uma espécie de preconceito ao contrário, algumas pessoas que me chamavam para montar os seus filmes deixaram de fazê-lo.» Talvez levados pela ideia de que João Salaviza se sinta desmasiado importante para esses «trabalhos menores». «De todo!», esclarece. De facto, nestes 60 minutos de conversa, nunca o seu discurso pendeu para a auto-adoração. Até se perdoaria um pouco de vaidade a alguém que, tão novo, já chegou onde chegou. «Tenho uma vida absolutamente banal para um tipo de 26 anos: leio, jogo futebol duas ou três vezes por semana com amigos, vejo muito cinema.» As longas-metragens ficam para mais tarde. «Tenho algumas curtas para fazer até lá. Depois de Cannes, até podia ter avançado cegamente para uma longa-metragem, mas prefiro assim. Isto ajuda-me a descobrir o meu caminho. Tenho de fazer bem as coisas para continuar a ter pessoas interessadas em apoiar-me.» Formou-se na Escola Superior de Cinema e Teatro de Lisboa. Contudo, diplomou-se primeiro em Cannes: «Quando recebi o prémio, tinha ainda uma ou duas cadeiras “penduradas”. Como fiz o primeiro semestre do 4º ano na Argentina, algumas disciplinas não eram compatíveis com o curso em Portugal.»
Porquê a Argentina? «Eu tinha ficado fascinado com uma retrospectiva do IndieLisboa sobre cinema argentino, que é hoje um dos mais activos e criativos do mundo», explicou numa entrevista ao “Expresso”. «Há ali um entusiasmo imenso em fazer. Às vezes, sem quaisquer meios: o mais importante é experimentar.» Contudo, não chegou a filmar na pátria de Fernando Solanas. «Seria meramente o ponto de vista exótico de um estrangeiro deslumbrado com Buenos Aires.» Isto não significa que para João Salaviza um pouco de deslumbramento não seja necessário: «Há sempre um impulso de, num dado espaço, nos seduzirmos de alguma maneira, com alguma história, com as pessoas.» Foi isso que aconteceu em “Arena”, cujo elenco era formado na sua maioria por não-actores, «miúdos de outros bairros suburbanos de Lisboa». «Curiosamente, não foi difícil dirigi-los, eles compreendiam bem os códigos da violência que estava a ser filmada e havia uma espécie de fascínio de minha parte em perceber algumas coisas que, para eles, são o dia-a-dia.» Daí resultou que o filme tivesse saído com o realismo pretendido. «Os meus diálogos foram directamente para
o lixo, os deles eram muito mais interessantes, genuínos e justos. Eu podia teimosamente dizer “Tens de dizer esta linda frase que eu escrevi, com a vírgula no sítio certo”, mas depois é uma aldrabice, não se acredita naquilo.» Se há algo que define o trabalho de João Salaviza, será talvez a sua preocupação em filmar espaços e personagens «que normalmente não são representados no cinema», «pessoas e espaços únicos que a câmara teve o privilégio de captar». Acredita no cinema «como um veículo para nos aproximarmos das coisas que queremos conhecer», seja filmando num palácio ou num bairro social «para tentar perceber como é a vida nesse lugar». O importante, para este jovem realizador, é «o filme ser feito a partir de dentro» – tal como aconteceu em “Arena”, rodado no Bairro da Flamenga (na freguesia de Marvila, Lisboa), onde passou cerca de dois meses. «É como quando nos mudamos para um prédio novo, vamos conhecendo os vizinhos, cruzamo-nos com eles na escada, ficamos amigos da velhinha que mora por cima.» A cumplicidade criada com os moradores ajudou a integração da equipa de filmagem e tirou as dúvidas aos mais cépticos: eles não estavam ali por oportunismo. Até porque a ideia nunca foi passar uma mensagem ou representar determinada realidade: «Não sou representante de ninguém, filmo o meu ponto de vista sobre aquela pessoa, sobre aquela casa, e é tão válido como qualquer outro ponto de vista. Não é uma coisa do género: “A vida neste bairro é assim, dois pontos”, até porque é um pouco pretensioso achar que já sei tudo sobre...» A conversa é interrompida pela passagem de um eléctrico. «Se eu já sei tudo, para que vou fazer um filme? Mais vale escrever uma tese...» julho/agosto 2010
magazine.19
PERFIL FALADO
JOÃO SALAVIZA
DATAS.
icou intimidado ao ver o seu filme em Cannes?
Sim. Ou melhor: é aquele nervoso de ver o filme e sentir que falhei ali qualquer coisa. O que acontece a um filme depois de concluído é imprevisível. É por isso que acho um pouco desonesta essa coisa de fazê-lo a pensar no público. O compromisso é sempre comigo em primeiro lugar: tenho de dar às pessoas algo de honesto. Podem interessar-se ou não, mas sei o que fiz e sei que o fiz para mim. E não se trata de fazer um cinema hermético, que ninguém compreende.
com um projector de 35mm, numa tela de oito metros que pendurámos por baixo daquelas pontes entre os prédios. Foi um momento de metacinema: ver o filme no local onde ele foi feito. O bairro inteiro aderiu. Houve muita gente que nunca tinha ido ao cinema...
1984. Nasce, em Lisboa, filho de um cineasta e de uma produtora de televisão. . 1990. Com seis anos, entra como actor num “videoclip”. Dois anos depois, estreia-se no cinema com um pequeno papel em “Belle Époque”, de Fernando Trueba, vencedor do Óscar de “Melhor Filme Estrangeiro”.
Sente que, com isso, fechou um ciclo?
Foi extremamente gratificante ter ali 500 pessoas na rua a assistir. Este encontro quase transcende o próprio filme. As pessoas viram o trabalho finalizado antes das outras e no seu próprio espaço. No fundo, devolvi-lhes algo...
2000. Através do pai, descobre a obra do realizador iraniano Abbas Kiarostami, um cinema que lhe veio mostrar «uma vitalidade que os filmes “mainstream” nem sempre tinham».
Acabei agora a curta “Hotel Müller” e há outras preparadas e financiadas. Tenho o guião da longa à espera de saber se tenho apoio. À partida, começo dentro de ano e meio, para estar pronto em 2012.
Faz questão de deixar bem claro que, com “Arena”, não pretendeu passar nenhuma mensagem. Não acredita no cinema político, de causas?
2002. Entra para a Escola Supe-
Critica o cinema comercial, americanizado, que se faz em Portugal. Seria incapaz de fazer um “blockbuster” se isso lhe permitisse ter financiamento para os seus projectos?
Todas as nossas acções têm um conteúdo moral, emocional e político, mas não acredito na ideia de se veicular mensagens dogmáticas e políticas através de um filme. Acho isso perigoso. Os filmes têm de chegar a quem os vê de forma suficientemente aberta. Se servem para mostrar uma determinada mensagem, o espectador é obrigado a vê-los dentro desse limite. E eu posso não acreditar na mensagem. Os filmes americanos têm as “taglines”, como, por exemplo, «O amor é perfeito». E o filme vai provar que o amor é perfeito. Eu posso achar que não, não é perfeito, e, por isso, prefiro ver um que fala só sobre o amor – se é perfeito ou não, é comigo. Os filmes têm de ter ambiguidade, multiplicidade de sentidos e ideias. Espero que os meus tenham imensas mensagens – e não uma só.
É muito fácil cair nisso...
Sim, muito fácil. Não se pode perder a noção de que há outras pessoas que vão ver o filme. A minha expectativa é que, fazendo as coisas da maneira que acredito, haverá quem se interesse. A sua primeira longa-metragem está para breve?
Não sei... O John Cassavetes, considerado o pai do cinema independente americano, trabalhava como actor em “blockbusters” e com esse dinheiro fazia os seus filmes. Claro que há sempre um limite que eu não aceitaria – há uma responsabilidade moral em fazer um filme. Se for algo que veicule ideias nas quais não acredito, nunca conseguirei fazê-lo. Seria até desonesto da minha parte. É um frequentador assíduo das salas de cinema, suponho...
Vejo muito cinema. Tenho a sorte de viver perto da Cinemateca. Mas devia haver muito mais do que uma só Cinemateca. Há um défice democrático: os filmes que vemos nas salas são 90% americanos. Isto sem preconceitos: gosto do Clint Eastwood como gosto do Tarkovsky. Não tenho aquele discurso anti-cinema-americano. Mas, como cidadão, tenho o direito de exigir outros pontos de vista. É como se os únicos livros à venda fossem aqueles que vemos nas bombas de gasolina. Depois do mediatismo de “Arena”, voltou a contactar com as pessoas do bairro onde foi filmado?
Antes da antestreia em sala, fizemos uma projecção no próprio bairro – à antiga, 20.magazine
julho/agosto 2010
rior de Cinema e Teatro de Lisboa.
2004. Realiza, como trabalho escolar, a curta-metragem “Duas Pessoas”, adaptada de um texto de Herberto Helder, com interpretação de Julie Sergeant e Rui Morrison, e premiada nos festivais de curtas-metragens de Vila do Conde e Oeiras (2005) e em Budapeste (2006). 2009. Escreve, realiza e monta o seu primeiro filme profissional, “Arena”, galardoado com o prémio de “Melhor Curta-Metragem Portuguesa” no IndieLisboa e com a Palma de Ouro para “Melhor Curta-Metragem” no Festival de Cannes.
2010. Termina a primeira encomenda, “Hotel Müller”, uma homenagem a Pina Bausch.
julho/agosto 2010
magazine.21
PERFIL FALADO
JOÃO SALAVIZA
DATAS.
icou intimidado ao ver o seu filme em Cannes?
Sim. Ou melhor: é aquele nervoso de ver o filme e sentir que falhei ali qualquer coisa. O que acontece a um filme depois de concluído é imprevisível. É por isso que acho um pouco desonesta essa coisa de fazê-lo a pensar no público. O compromisso é sempre comigo em primeiro lugar: tenho de dar às pessoas algo de honesto. Podem interessar-se ou não, mas sei o que fiz e sei que o fiz para mim. E não se trata de fazer um cinema hermético, que ninguém compreende.
com um projector de 35mm, numa tela de oito metros que pendurámos por baixo daquelas pontes entre os prédios. Foi um momento de metacinema: ver o filme no local onde ele foi feito. O bairro inteiro aderiu. Houve muita gente que nunca tinha ido ao cinema...
1984. Nasce, em Lisboa, filho de um cineasta e de uma produtora de televisão. . 1990. Com seis anos, entra como actor num “videoclip”. Dois anos depois, estreia-se no cinema com um pequeno papel em “Belle Époque”, de Fernando Trueba, vencedor do Óscar de “Melhor Filme Estrangeiro”.
Sente que, com isso, fechou um ciclo?
Foi extremamente gratificante ter ali 500 pessoas na rua a assistir. Este encontro quase transcende o próprio filme. As pessoas viram o trabalho finalizado antes das outras e no seu próprio espaço. No fundo, devolvi-lhes algo...
2000. Através do pai, descobre a obra do realizador iraniano Abbas Kiarostami, um cinema que lhe veio mostrar «uma vitalidade que os filmes “mainstream” nem sempre tinham».
Acabei agora a curta “Hotel Müller” e há outras preparadas e financiadas. Tenho o guião da longa à espera de saber se tenho apoio. À partida, começo dentro de ano e meio, para estar pronto em 2012.
Faz questão de deixar bem claro que, com “Arena”, não pretendeu passar nenhuma mensagem. Não acredita no cinema político, de causas?
2002. Entra para a Escola Supe-
Critica o cinema comercial, americanizado, que se faz em Portugal. Seria incapaz de fazer um “blockbuster” se isso lhe permitisse ter financiamento para os seus projectos?
Todas as nossas acções têm um conteúdo moral, emocional e político, mas não acredito na ideia de se veicular mensagens dogmáticas e políticas através de um filme. Acho isso perigoso. Os filmes têm de chegar a quem os vê de forma suficientemente aberta. Se servem para mostrar uma determinada mensagem, o espectador é obrigado a vê-los dentro desse limite. E eu posso não acreditar na mensagem. Os filmes americanos têm as “taglines”, como, por exemplo, «O amor é perfeito». E o filme vai provar que o amor é perfeito. Eu posso achar que não, não é perfeito, e, por isso, prefiro ver um que fala só sobre o amor – se é perfeito ou não, é comigo. Os filmes têm de ter ambiguidade, multiplicidade de sentidos e ideias. Espero que os meus tenham imensas mensagens – e não uma só.
É muito fácil cair nisso...
Sim, muito fácil. Não se pode perder a noção de que há outras pessoas que vão ver o filme. A minha expectativa é que, fazendo as coisas da maneira que acredito, haverá quem se interesse. A sua primeira longa-metragem está para breve?
Não sei... O John Cassavetes, considerado o pai do cinema independente americano, trabalhava como actor em “blockbusters” e com esse dinheiro fazia os seus filmes. Claro que há sempre um limite que eu não aceitaria – há uma responsabilidade moral em fazer um filme. Se for algo que veicule ideias nas quais não acredito, nunca conseguirei fazê-lo. Seria até desonesto da minha parte. É um frequentador assíduo das salas de cinema, suponho...
Vejo muito cinema. Tenho a sorte de viver perto da Cinemateca. Mas devia haver muito mais do que uma só Cinemateca. Há um défice democrático: os filmes que vemos nas salas são 90% americanos. Isto sem preconceitos: gosto do Clint Eastwood como gosto do Tarkovsky. Não tenho aquele discurso anti-cinema-americano. Mas, como cidadão, tenho o direito de exigir outros pontos de vista. É como se os únicos livros à venda fossem aqueles que vemos nas bombas de gasolina. Depois do mediatismo de “Arena”, voltou a contactar com as pessoas do bairro onde foi filmado?
Antes da antestreia em sala, fizemos uma projecção no próprio bairro – à antiga, 20.magazine
julho/agosto 2010
rior de Cinema e Teatro de Lisboa.
2004. Realiza, como trabalho escolar, a curta-metragem “Duas Pessoas”, adaptada de um texto de Herberto Helder, com interpretação de Julie Sergeant e Rui Morrison, e premiada nos festivais de curtas-metragens de Vila do Conde e Oeiras (2005) e em Budapeste (2006). 2009. Escreve, realiza e monta o seu primeiro filme profissional, “Arena”, galardoado com o prémio de “Melhor Curta-Metragem Portuguesa” no IndieLisboa e com a Palma de Ouro para “Melhor Curta-Metragem” no Festival de Cannes.
2010. Termina a primeira encomenda, “Hotel Müller”, uma homenagem a Pina Bausch.
julho/agosto 2010
magazine.21
PERFIL FALADO
JOÃO SALAVIZA
DISCURSO DIRECTO.
UM PAÍS QUE NÃO PENSA E NÃO OLHA PARA O SEU CINEMA TEM UMA LACUNA ENORME: O CINEMA PERMITE-NOS OLHAR PARA NÓS PRÓPRIOS. E ISSO FAZ-NOS FALTA. O cinema é a montagem, mais do que tudo. Sendo uma arte que «vampiriza» as outras – a imagem vem da pintura, os actores do teatro, os guiões da literatura –, a única coisa que lhe é verdadeiramente específica é a montagem. Quando montamos um filme, mesmo que seja para outra pessoa, estamos a reescrevê-lo. Ver o “Arena” em Cannes foi um pouco estranho. Fazemos um filme, ainda não sabemos nada disto, e, de repente, estamos ali, naquele espaço algo mítico, a projectá-lo... É quase uma heresia. É óbvio que a Palma de Ouro abriu algumas portas. Talvez não directamente, mas se, por exemplo, agora enviar um guião a um produtor francês para tentar uma co-produção, pelo menos ele vai responder ao meu e-mail. Convém esclarecer que não fui realizador dos tempos de antena do Bloco de Esquerda, embora tenha surgido por aí essa grande treta. Apenas montei dois blocos
de um minuto para um amigo. Claro que se fosse para um partido de extrema-direita não o teria feito. Sou um tipo de esquerda, assumo-o, mas não tenho filiação partidária. Há cada vez menos dinheiro para filmar. Esta ideia generalizada de que fazer um filme é uma espécie de esmola é asfixiante. Adoraria trabalhar com dinheiro privado, mas duvido que haja investidores interessados em apostar num objecto provavelmente inviável do ponto de vista económico.
A primeira vez que disse «acção» na vida foi na frente de Julie Sergeant e Rui
Morrison, que sabiam muito mais de teatro e de cinema do que eu. Estava nervosíssimo. Tinha uns 19 anos. Não fiz direcção de actores porque não sabia o que lhes dizer. Eles foram de uma generosidade tremenda: deram o seu corpo, a sua voz, o seu tempo para um filme de uns miúdos da escola de cinema. Os ganhos são outros quando se constrói património cultural. Por exem-
plo, não é lucrativo ter uma rede de bibliotecas públicas: estamos a «dar» os livros às pessoas, mas graças a isso um pobre pode ler aquilo que lhe interessa. E ainda bem que assim é. Não há nada de perverso quando o Estado investe na Cultura: já investe na pesca, na agricultura, na indústria, na bolsa. l
VANTAGEM BILHETES DE CINEMA .
Sempre que for ao cinema, escolha uma das salas ZON Lusomundo, apresente o seu cartão Prestige Security Mastercard e, na compra de 22.magazine
julho/agosto 2010
um bilhete a preço normal, recebe outro grátis (máximo de um bilhete por dia e por cartão; oferta não-acumulável com outros descontos). Nas sessões infantis aos domingos de manhã,
a compra de um bilhete normal dá direito a dois grátis, um de adulto e outro de criança. Esta oferta exclui taxas VIP e de reserva, bem como “upgrade” 3D e digital. TAEG de 26,5% e
TAN de 19,000% para crédito de 2.500€ pago em 12 prestações mensais iguais no valor de 228,03€. Montante total imputado ao Cliente: 2.821,33€, incluindo anuidade e impostos. julho/agosto 2010
magazine.23
PERFIL FALADO
JOÃO SALAVIZA
DISCURSO DIRECTO.
UM PAÍS QUE NÃO PENSA E NÃO OLHA PARA O SEU CINEMA TEM UMA LACUNA ENORME: O CINEMA PERMITE-NOS OLHAR PARA NÓS PRÓPRIOS. E ISSO FAZ-NOS FALTA. O cinema é a montagem, mais do que tudo. Sendo uma arte que «vampiriza» as outras – a imagem vem da pintura, os actores do teatro, os guiões da literatura –, a única coisa que lhe é verdadeiramente específica é a montagem. Quando montamos um filme, mesmo que seja para outra pessoa, estamos a reescrevê-lo. Ver o “Arena” em Cannes foi um pouco estranho. Fazemos um filme, ainda não sabemos nada disto, e, de repente, estamos ali, naquele espaço algo mítico, a projectá-lo... É quase uma heresia. É óbvio que a Palma de Ouro abriu algumas portas. Talvez não directamente, mas se, por exemplo, agora enviar um guião a um produtor francês para tentar uma co-produção, pelo menos ele vai responder ao meu e-mail. Convém esclarecer que não fui realizador dos tempos de antena do Bloco de Esquerda, embora tenha surgido por aí essa grande treta. Apenas montei dois blocos
de um minuto para um amigo. Claro que se fosse para um partido de extrema-direita não o teria feito. Sou um tipo de esquerda, assumo-o, mas não tenho filiação partidária. Há cada vez menos dinheiro para filmar. Esta ideia generalizada de que fazer um filme é uma espécie de esmola é asfixiante. Adoraria trabalhar com dinheiro privado, mas duvido que haja investidores interessados em apostar num objecto provavelmente inviável do ponto de vista económico.
A primeira vez que disse «acção» na vida foi na frente de Julie Sergeant e Rui
Morrison, que sabiam muito mais de teatro e de cinema do que eu. Estava nervosíssimo. Tinha uns 19 anos. Não fiz direcção de actores porque não sabia o que lhes dizer. Eles foram de uma generosidade tremenda: deram o seu corpo, a sua voz, o seu tempo para um filme de uns miúdos da escola de cinema. Os ganhos são outros quando se constrói património cultural. Por exem-
plo, não é lucrativo ter uma rede de bibliotecas públicas: estamos a «dar» os livros às pessoas, mas graças a isso um pobre pode ler aquilo que lhe interessa. E ainda bem que assim é. Não há nada de perverso quando o Estado investe na Cultura: já investe na pesca, na agricultura, na indústria, na bolsa. l
VANTAGEM BILHETES DE CINEMA .
Sempre que for ao cinema, escolha uma das salas ZON Lusomundo, apresente o seu cartão Prestige Security Mastercard e, na compra de 22.magazine
julho/agosto 2010
um bilhete a preço normal, recebe outro grátis (máximo de um bilhete por dia e por cartão; oferta não-acumulável com outros descontos). Nas sessões infantis aos domingos de manhã,
a compra de um bilhete normal dá direito a dois grátis, um de adulto e outro de criança. Esta oferta exclui taxas VIP e de reserva, bem como “upgrade” 3D e digital. TAEG de 26,5% e
TAN de 19,000% para crédito de 2.500€ pago em 12 prestações mensais iguais no valor de 228,03€. Montante total imputado ao Cliente: 2.821,33€, incluindo anuidade e impostos. julho/agosto 2010
magazine.23
LINHA DA FRENTE
TEXTO JOÃO MESTRE FOTOGRAFIA NEVILLE ELDER
/
CORBIS
MALCOLM GLADWELL DIRECTO AO ASSUNTO ESCREVE SOBRE COISAS DO DIA-A-DIA, OS SEUS LIVROS VENDEM-SE AOS MILHÕES EM TODO O MUNDO E É A REFERÊNCIA MAIOR DA “SOCIOLOGIA POP” NOS EUA. COM UMA RARA COMBINAÇÃO DE RIGOR E CLAREZA, CONTA HISTÓRIAS ENVOLVENTES A PARTIR DE TEXTOS CIENTÍFICOS, UTILIZANDO A SUA FALTA DE FORMAÇÃO NA MATÉRIA COMO VANTAGEM: «SEI QUE PERGUNTAS ÓBVIAS DEVO COLOCAR.»
62.magazine
março/abril 2011
março/abril 2011
magazine.63
LINHA DA FRENTE
TEXTO JOÃO MESTRE FOTOGRAFIA NEVILLE ELDER
/
CORBIS
MALCOLM GLADWELL DIRECTO AO ASSUNTO ESCREVE SOBRE COISAS DO DIA-A-DIA, OS SEUS LIVROS VENDEM-SE AOS MILHÕES EM TODO O MUNDO E É A REFERÊNCIA MAIOR DA “SOCIOLOGIA POP” NOS EUA. COM UMA RARA COMBINAÇÃO DE RIGOR E CLAREZA, CONTA HISTÓRIAS ENVOLVENTES A PARTIR DE TEXTOS CIENTÍFICOS, UTILIZANDO A SUA FALTA DE FORMAÇÃO NA MATÉRIA COMO VANTAGEM: «SEI QUE PERGUNTAS ÓBVIAS DEVO COLOCAR.»
62.magazine
março/abril 2011
março/abril 2011
magazine.63
LINHA DA FRENTE MALCOLM GLADWELL
escontando a rebelde cabeleira encaracolada, Malcolm Gladwell tem uma figura discreta, de corpo franzino e modos serenos, acompanhados de um sorriso que transmite desde logo acessibilidade. À primeira impressão, não se imagina que é uma espécie de “rock star” da não-ficção, com mais de dez milhões de livros vendidos, e uma das pessoas mais influentes do mundo segundo a revista “Time”. Mas as primeiras impressões, por vezes, enganam-nos. E ele sabe disso: há seis anos, publicou um livro sobre o assunto, “Blink! – The Power of Thinking Without Thinking”, onde analisa, com base num extenso rol de estudos científicos, vários casos em que as decisões instantâneas podem ser mais acertadas do que as cuidadosamente ponderadas. Com o devido enfoque no «podem ser»: «É um livro que tanto nos alerta para os perigos de confiar na intuição como tenta identificar as situações em que podemos realmente fazê-lo», esclarece, acrescentando que depois de escrever “Blink!” passou a seguir menos os seus instintos. O “Pepsi Challenge” e a «guerra das colas», o modo como o treinador de ténis Vic Braden consegue inexplicavelmente antever se um jogador vai cometer dupla falta, ou a meteórica ascensão de Warren Harding, um dos piores presidentes da História dos EUA, eleito apenas pela sua aparência física, são alguns dos casos de que se socorre, intercalando com outras histórias e provas científicas para desenhar a «narrativa» deste “best-seller” cujos direitos chegaram a ser comprados pela Universal para uma adaptação cinematográfica – com argumento do oscarizado Stephen Gaghan (“Traffic – Ninguém Sai Ileso”) e Leonardo DiCaprio no papel principal – que nunca chegou a sair do papel. «Achei a ideia hilariante e excitante», recorda. «Não foi a lado nenhum mas foi divertido enquanto durou.» Malcolm Gladwell, 47 anos, vive em Nova Iorque e é cronista da revista “The New Yorker” desde 1996. Quando muda de «chapéu» (a metáfora é sua, explicada no “website” gladwell.com), é escritor de “best-sellers” internacionais e um orador exímio, com uma agenda repleta de palestras em universidades, empresas e onde mais lhe pedirem para falar. De pena ou microfone na mão, o seu poder de comunicação mantém-se em alta, articulando com destreza e clareza toda uma série de episódios e factos científicos para ilustrar uma determinada ideia – simples e brilhante, quase sempre. «Gosto de analisar à lupa questões mundanas, não tenho interesse no exótico.» Quando lhe pediram um artigo sobre moda, no seu primeiro trabalho para a “The New Yorker”, escolheu escrever sobre “t-shirts”. «É muito 64.magazine
março/abril 2011
mais interessante escrever algo sobre alguém que faz “t-shirts” por oito dólares do que sobre um vestido que custa 100 mil. Qualquer pessoa pode fazer um vestido por 100 mil dólares – o difícil é fazer uma t-shirt por oito dólares.» Em 2008, procurou desenterrar as raízes do sucesso – dissecando casos exemplares como os Beatles ou Bill Gates – no livro “Outliers – The Story of Success”, onde contraria a ideia de meritocracia perfeita, colocando o enfoque em coisas tão elementares como família, herança cultural ou oportunidades excepcionais. «Temos o hábito de olhar para as árvores altas, mas acho que devíamos olhar antes para a floresta», afirma, sublinhando que o talento, a ambição e a determinação, embora essenciais, precisam do devido estímulo. «Pode-se aprender muito mais sobre o sucesso observando o contexto da pessoa bem-sucedida: a que cultura pertence, que profissão tinham os seus pais», disse em entrevista à “Forbes”. «Pessoas de sucesso são pessoas que tiraram máximo partido de uma série de dádivas que lhes foram proporcionadas.» Veja-se o caso de Bill Gates: estudou numa escola privada (que não teria frequentado se não fosse de uma família abastada) onde havia uma sala de computadores, coisa rara nos anos 1960 (90% das universidades americanas ainda não tinha este tipo de equipamento). Começou a programar aos 13 anos; aos 15 descobre que o “mainframe” da Universidade de Washington estava livre entre as duas e as seis da manhã, oportunidade que agarra com unhas e dentes. Todos os dias foge pela janela do quarto, às escondidas dos pais, para aproveitar essas valiosas
“GOSTO DE ANALISAR À LUPA AS QUESTÕES MUNDANAS. NÃO TENHO INTERESSE NO EXÓTICO.”
LINHA DA FRENTE MALCOLM GLADWELL
escontando a rebelde cabeleira encaracolada, Malcolm Gladwell tem uma figura discreta, de corpo franzino e modos serenos, acompanhados de um sorriso que transmite desde logo acessibilidade. À primeira impressão, não se imagina que é uma espécie de “rock star” da não-ficção, com mais de dez milhões de livros vendidos, e uma das pessoas mais influentes do mundo segundo a revista “Time”. Mas as primeiras impressões, por vezes, enganam-nos. E ele sabe disso: há seis anos, publicou um livro sobre o assunto, “Blink! – The Power of Thinking Without Thinking”, onde analisa, com base num extenso rol de estudos científicos, vários casos em que as decisões instantâneas podem ser mais acertadas do que as cuidadosamente ponderadas. Com o devido enfoque no «podem ser»: «É um livro que tanto nos alerta para os perigos de confiar na intuição como tenta identificar as situações em que podemos realmente fazê-lo», esclarece, acrescentando que depois de escrever “Blink!” passou a seguir menos os seus instintos. O “Pepsi Challenge” e a «guerra das colas», o modo como o treinador de ténis Vic Braden consegue inexplicavelmente antever se um jogador vai cometer dupla falta, ou a meteórica ascensão de Warren Harding, um dos piores presidentes da História dos EUA, eleito apenas pela sua aparência física, são alguns dos casos de que se socorre, intercalando com outras histórias e provas científicas para desenhar a «narrativa» deste “best-seller” cujos direitos chegaram a ser comprados pela Universal para uma adaptação cinematográfica – com argumento do oscarizado Stephen Gaghan (“Traffic – Ninguém Sai Ileso”) e Leonardo DiCaprio no papel principal – que nunca chegou a sair do papel. «Achei a ideia hilariante e excitante», recorda. «Não foi a lado nenhum mas foi divertido enquanto durou.» Malcolm Gladwell, 47 anos, vive em Nova Iorque e é cronista da revista “The New Yorker” desde 1996. Quando muda de «chapéu» (a metáfora é sua, explicada no “website” gladwell.com), é escritor de “best-sellers” internacionais e um orador exímio, com uma agenda repleta de palestras em universidades, empresas e onde mais lhe pedirem para falar. De pena ou microfone na mão, o seu poder de comunicação mantém-se em alta, articulando com destreza e clareza toda uma série de episódios e factos científicos para ilustrar uma determinada ideia – simples e brilhante, quase sempre. «Gosto de analisar à lupa questões mundanas, não tenho interesse no exótico.» Quando lhe pediram um artigo sobre moda, no seu primeiro trabalho para a “The New Yorker”, escolheu escrever sobre “t-shirts”. «É muito 64.magazine
março/abril 2011
mais interessante escrever algo sobre alguém que faz “t-shirts” por oito dólares do que sobre um vestido que custa 100 mil. Qualquer pessoa pode fazer um vestido por 100 mil dólares – o difícil é fazer uma t-shirt por oito dólares.» Em 2008, procurou desenterrar as raízes do sucesso – dissecando casos exemplares como os Beatles ou Bill Gates – no livro “Outliers – The Story of Success”, onde contraria a ideia de meritocracia perfeita, colocando o enfoque em coisas tão elementares como família, herança cultural ou oportunidades excepcionais. «Temos o hábito de olhar para as árvores altas, mas acho que devíamos olhar antes para a floresta», afirma, sublinhando que o talento, a ambição e a determinação, embora essenciais, precisam do devido estímulo. «Pode-se aprender muito mais sobre o sucesso observando o contexto da pessoa bem-sucedida: a que cultura pertence, que profissão tinham os seus pais», disse em entrevista à “Forbes”. «Pessoas de sucesso são pessoas que tiraram máximo partido de uma série de dádivas que lhes foram proporcionadas.» Veja-se o caso de Bill Gates: estudou numa escola privada (que não teria frequentado se não fosse de uma família abastada) onde havia uma sala de computadores, coisa rara nos anos 1960 (90% das universidades americanas ainda não tinha este tipo de equipamento). Começou a programar aos 13 anos; aos 15 descobre que o “mainframe” da Universidade de Washington estava livre entre as duas e as seis da manhã, oportunidade que agarra com unhas e dentes. Todos os dias foge pela janela do quarto, às escondidas dos pais, para aproveitar essas valiosas
“GOSTO DE ANALISAR À LUPA AS QUESTÕES MUNDANAS. NÃO TENHO INTERESSE NO EXÓTICO.”
LINHA DA FRENTE MALCOLM GLADWELL
Malcolm nasceu em Inglaterra, em 1963, filho de uma psicoterapeuta jamaicana e de um matemático inglês. Cedo se começou a ambientar ao meio académico, deambulando pelos corredores da Universidade de Waterloo, onde o pai era professor. «Toda a gente era amistosa, as portas estavam sempre abertas. Foi nessa altura que me apaixonei por bibliotecas», contou à “Time”. Pelo lado da mãe, também escritora, aprendeu os rudimentos da comunicação, pela via da Psicologia e
pela da Literatura. «Ela sempre foi o meu exemplo no que respeita à escrita», afirmou no “talkshow” do decano jornalista Charlie Rose. Além da influência positiva dos pais, outros elementos se conjugaram para ter chegado onde está hoje. À “Time” revela alguns: «Pertenço a uma das últimas gerações a entrar para os quadros de um jornal quando os jornais ainda contratavam muita gente nova. E tenho a sorte de ser um “outsider” na América – ainda sinto que não compreendo completamente este país.» Apesar de viver nos EUA há mais de duas décadas, manteve a cidadania canadiana – tinha seis anos quando a família se mudou para a pequena cidade de Elmira, na província de Ontario. Desde muito novo se deixou deslumbrar pelos livros de História. «Fiquei fascinado com a ideia de podermos fazer alguém interessar-se por ler algo sobre coisas que aconteceram séculos antes de termos nascido. Achava extraordinária a capacidade dos historiadores para tecer uma intrincada narrativa a partir de algo muito antigo – e era esse o
FOTOGRAFIA PAULO SOUSA COELHO
“NÃO INVENTEI NADA. LIMITO-ME A FAZER O QUE AS PESSOAS NESTA PROFISSÃO TÊM FEITO DESDE QUE SE ESCREVEM LIVROS.”
quatro horas à frente do supercomputador. Aos 20 anos, Gates tinha mais experiência em programação do que muitos veteranos na matéria. O talento, devidamente estimulado pelas circunstâncias, fez o resto. Bill Gates é um “outlier”, assim como os Beatles ou o cientista nuclear Robert Oppenheimer. O termo, usado em estatística, significa algo (ou, neste caso, alguém) que excede a norma. De certo modo, também se aplica a Gladwell, pela sua excepcional capacidade para pegar em artigos científicos, descodificar o seu fraseado hermético e devolvê-los sob a forma de histórias interessantes e surpreendentemente fáceis de ler. «O facto de não ser cientista acaba por ser uma vantagem quando pretendo explicar ideias muito complicadas», afirma, tentando convencer-me de que não faz nada de extraordinário: «Abordo estes assuntos sob a perspectiva dos meus leitores: sei que perguntas óbvias devo colocar. Só assim se pode escrever com clareza sobre um tema complexo – começando pelo princípio.» Mas este dom não veio do nada.
DIRECTO AO ASSUNTO
LEITURA OBRIGATÓRIA.
Todos estes títulos estão publicados em Portugal pela D. Quixote (www.dquixote.pt).
66.magazine
março/abril 2011
THE TIPPING POINT (2000) A chave do sucesso
BLINK! (2005) Decidir num piscar de olhos
O subtítulo original explica tudo: “Como pequenas coisas podem fazer uma grande diferença”. No seu primeiro livro, Gladwell investiga a vertente «epidémica» das mudanças sociais e o momento em que atingem o «ponto de viragem», dissecando casos tão diversos como a queda da criminalidade em Nova Iorque, a marca de sapatos que se tornou moda ou o tabagismo entre os adolescentes norte-americanos.
Motivado pelo episódio em que foi confundido com um violador procurado pela polícia (cuja única semelhança era o cabelo), o jornalista mergulhou fundo nos mistérios das primeiras impressões e outras decisões inconscientes, cruzando experiências científicas, acontecimentos históricos, recortes de jornal e histórias do dia-a-dia. A “Time” não teve dúvidas e escolheu-o uma das personalidades mais influentes desse ano de 2005.
270 páginas . Preço: 17,92€
266 páginas . Preço: 17,92€
OUTLIERS (2008) Os melhores, os mais inteligentes, os mais bem sucedidos
tipo de contador de histórias que eu queria ser.» Formou-se em História, na Universidade de Toronto. Emigrou para os EUA e, depois de alguns trabalhos menos relevantes, entra para a redacção do “Washington Post”, onde dá os seus primeiros passos sérios no jornalismo. E foi através do jornalismo que se tornou o contador de histórias que sempre sonhara ser. A “Time” aponta-o como o maior “sociólogo pop” norte-americano e fundador do género literário “economia pop”. «Isso parece palavreado do meu agente», brinca, refutando a «acusação» com uma careta. «Faço aquilo que muita gente faz. O papel do jornalista é ser um tradutor, todos o fazemos, de diferentes maneiras. Posso ter a minha forma de abordar as coisas, mas não inventei nada – limito-me a fazer o que as pessoas nesta profissão têm feito desde que se escrevem livros.» Não é uma mera primeira impressão: apesar do estatuto e do impressionante currículo, Malcolm Gladwell mantém-se uma pessoa humilde. Porque só assim consegue fazer as perguntas certas. l
O QUE O CÃO VIU e outras histórias (2009)
Gladwell volta a cruzar factos curiosos, dados científicos e um aguçado sentido de observação para explicar por que motivo ser génio não basta para ter sucesso. Envolvente sociocultural, oportunidades extraordinárias ou detalhes aparentemente tão insignificantes como a data de nascimento são alguns dos factores que validam a tese.
Desta vez, não há «um» fio condutor. O autor seleccionou 19 dos artigos que regularmente publica na “The New Yorker” e agrupou-os por temas: pessoas realmente boas naquilo que fazem (entre elas, o «encantador de cães» Cesar Millan), falhanços baseados na previsão estatística (como o escândalo da Enron) e a forma como avaliamos pessoas (as entrevistas de emprego são um dos exemplos).
306 páginas . Preço: 17,92€
469 páginas . Preço: 22,71€
março/abril 2011
magazine.67
LINHA DA FRENTE MALCOLM GLADWELL
Malcolm nasceu em Inglaterra, em 1963, filho de uma psicoterapeuta jamaicana e de um matemático inglês. Cedo se começou a ambientar ao meio académico, deambulando pelos corredores da Universidade de Waterloo, onde o pai era professor. «Toda a gente era amistosa, as portas estavam sempre abertas. Foi nessa altura que me apaixonei por bibliotecas», contou à “Time”. Pelo lado da mãe, também escritora, aprendeu os rudimentos da comunicação, pela via da Psicologia e
pela da Literatura. «Ela sempre foi o meu exemplo no que respeita à escrita», afirmou no “talkshow” do decano jornalista Charlie Rose. Além da influência positiva dos pais, outros elementos se conjugaram para ter chegado onde está hoje. À “Time” revela alguns: «Pertenço a uma das últimas gerações a entrar para os quadros de um jornal quando os jornais ainda contratavam muita gente nova. E tenho a sorte de ser um “outsider” na América – ainda sinto que não compreendo completamente este país.» Apesar de viver nos EUA há mais de duas décadas, manteve a cidadania canadiana – tinha seis anos quando a família se mudou para a pequena cidade de Elmira, na província de Ontario. Desde muito novo se deixou deslumbrar pelos livros de História. «Fiquei fascinado com a ideia de podermos fazer alguém interessar-se por ler algo sobre coisas que aconteceram séculos antes de termos nascido. Achava extraordinária a capacidade dos historiadores para tecer uma intrincada narrativa a partir de algo muito antigo – e era esse o
FOTOGRAFIA PAULO SOUSA COELHO
“NÃO INVENTEI NADA. LIMITO-ME A FAZER O QUE AS PESSOAS NESTA PROFISSÃO TÊM FEITO DESDE QUE SE ESCREVEM LIVROS.”
quatro horas à frente do supercomputador. Aos 20 anos, Gates tinha mais experiência em programação do que muitos veteranos na matéria. O talento, devidamente estimulado pelas circunstâncias, fez o resto. Bill Gates é um “outlier”, assim como os Beatles ou o cientista nuclear Robert Oppenheimer. O termo, usado em estatística, significa algo (ou, neste caso, alguém) que excede a norma. De certo modo, também se aplica a Gladwell, pela sua excepcional capacidade para pegar em artigos científicos, descodificar o seu fraseado hermético e devolvê-los sob a forma de histórias interessantes e surpreendentemente fáceis de ler. «O facto de não ser cientista acaba por ser uma vantagem quando pretendo explicar ideias muito complicadas», afirma, tentando convencer-me de que não faz nada de extraordinário: «Abordo estes assuntos sob a perspectiva dos meus leitores: sei que perguntas óbvias devo colocar. Só assim se pode escrever com clareza sobre um tema complexo – começando pelo princípio.» Mas este dom não veio do nada.
DIRECTO AO ASSUNTO
LEITURA OBRIGATÓRIA.
Todos estes títulos estão publicados em Portugal pela D. Quixote (www.dquixote.pt).
66.magazine
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THE TIPPING POINT (2000) A chave do sucesso
BLINK! (2005) Decidir num piscar de olhos
O subtítulo original explica tudo: “Como pequenas coisas podem fazer uma grande diferença”. No seu primeiro livro, Gladwell investiga a vertente «epidémica» das mudanças sociais e o momento em que atingem o «ponto de viragem», dissecando casos tão diversos como a queda da criminalidade em Nova Iorque, a marca de sapatos que se tornou moda ou o tabagismo entre os adolescentes norte-americanos.
Motivado pelo episódio em que foi confundido com um violador procurado pela polícia (cuja única semelhança era o cabelo), o jornalista mergulhou fundo nos mistérios das primeiras impressões e outras decisões inconscientes, cruzando experiências científicas, acontecimentos históricos, recortes de jornal e histórias do dia-a-dia. A “Time” não teve dúvidas e escolheu-o uma das personalidades mais influentes desse ano de 2005.
270 páginas . Preço: 17,92€
266 páginas . Preço: 17,92€
OUTLIERS (2008) Os melhores, os mais inteligentes, os mais bem sucedidos
tipo de contador de histórias que eu queria ser.» Formou-se em História, na Universidade de Toronto. Emigrou para os EUA e, depois de alguns trabalhos menos relevantes, entra para a redacção do “Washington Post”, onde dá os seus primeiros passos sérios no jornalismo. E foi através do jornalismo que se tornou o contador de histórias que sempre sonhara ser. A “Time” aponta-o como o maior “sociólogo pop” norte-americano e fundador do género literário “economia pop”. «Isso parece palavreado do meu agente», brinca, refutando a «acusação» com uma careta. «Faço aquilo que muita gente faz. O papel do jornalista é ser um tradutor, todos o fazemos, de diferentes maneiras. Posso ter a minha forma de abordar as coisas, mas não inventei nada – limito-me a fazer o que as pessoas nesta profissão têm feito desde que se escrevem livros.» Não é uma mera primeira impressão: apesar do estatuto e do impressionante currículo, Malcolm Gladwell mantém-se uma pessoa humilde. Porque só assim consegue fazer as perguntas certas. l
O QUE O CÃO VIU e outras histórias (2009)
Gladwell volta a cruzar factos curiosos, dados científicos e um aguçado sentido de observação para explicar por que motivo ser génio não basta para ter sucesso. Envolvente sociocultural, oportunidades extraordinárias ou detalhes aparentemente tão insignificantes como a data de nascimento são alguns dos factores que validam a tese.
Desta vez, não há «um» fio condutor. O autor seleccionou 19 dos artigos que regularmente publica na “The New Yorker” e agrupou-os por temas: pessoas realmente boas naquilo que fazem (entre elas, o «encantador de cães» Cesar Millan), falhanços baseados na previsão estatística (como o escândalo da Enron) e a forma como avaliamos pessoas (as entrevistas de emprego são um dos exemplos).
306 páginas . Preço: 17,92€
469 páginas . Preço: 22,71€
março/abril 2011
magazine.67
PERFIL FALADO
TEXTO JOÃO MESTRE FOTOGRAFIA LUÍS DE BARROS
TEVE UMA ARMA APONTADA À CARA, PASSOU TRÊS DIAS À ESPERA DE BOLEIA NUM CRUZAMENTO PERDIDO NO MEIO DO CONGO E LEVOU UMA BOFETADA DE UM GUARDA FRONTEIRIÇO. APESAR DISSO, GONÇALO CADILHE, VIAJANTE PROFISSIONAL HÁ QUASE DUAS DÉCADAS, GARANTE: O MUNDO É FÁCIL.
GONÇALO CADILHE VIAGEM DE VIDA E VOLTA Coleccionar países nunca foi o seu objectivo. E se lhe perguntamos quantos já
visitou, depois de apresentar uma série de motivos pelos quais essa forma de pôr as coisas não lhe faz sentido, apenas responde que não tem como propósito carimbar o passaporte nos que lhe faltam. Contas feitas por alto, Gonçalo Cadilhe já esteve em cerca de cem países – meio mundo, se puxarmos pelos números. Da restante metade, alguns dificilmente entrarão nessa lista. «Não é, definitivamente, uma preocupação minha ir ao Dubai, por exemplo. Prefiro, com o mesmo dinheiro, ir cinco vezes a Veneza.» Haverá algum país ao qual não queira regressar? «Não, mas há coisas que não tornaria a fazer, mais pelos projectos do que por lugares específicos.» Como a travessia do continente africano por terra, que originou o livro “África Acima” (2007, Oficina do Livro). «Apanhava boleia em camiões sem faróis e, quando anoitecia, tínhamos de dormir na berma. Depois, o pó: tenho uma fotografia em que estou completamente preto, ao fim de oito horas a viajar nas traseiras de um camião por aquelas estradas de terra batida. E na fronteira do Níger levei um estalo do polícia por estar a olhar para o lado. Ele ainda gritou comigo “Olha para a frente!”. E é isso que fazes: calas-te e olhas para a frente.» Ainda que se ria destas situações, não pretende voltar a passar por elas. «Já não tenho fôlego para isto», desabafa. E junta a essa série de peripécias a ocasião em que esteve três dias num cruzamento na cidade de Dolisie (Congo) à espera de boleia. «O camião já lá estava, mas não havia passageiros nem carga suficientes para pagar a viagem. Só arrancou quando encheu. Todos os dias às oito da manhã fazia o “briefing” da situação, “Ainda não é hoje…”. Claro que no dia em que chego às 8h30 ele já tinha partido. Foi um taxista que me ajudou: “Eu levo-o, ele pára ali para meter gasolina, depois passa por casa da mulher para ir buscar comida”. E lá o apanhámos.» Na gaveta dos projectos por concretizar cabe muita coisa. A travessia da Ásia Central por terra é um dos sonhos em fila de espera. «Geórgia, Arménia, Uzbequistão e todas essas 14.magazine
janeiro/fevereiro 2011
PERFIL FALADO
TEXTO JOÃO MESTRE FOTOGRAFIA LUÍS DE BARROS
TEVE UMA ARMA APONTADA À CARA, PASSOU TRÊS DIAS À ESPERA DE BOLEIA NUM CRUZAMENTO PERDIDO NO MEIO DO CONGO E LEVOU UMA BOFETADA DE UM GUARDA FRONTEIRIÇO. APESAR DISSO, GONÇALO CADILHE, VIAJANTE PROFISSIONAL HÁ QUASE DUAS DÉCADAS, GARANTE: O MUNDO É FÁCIL.
GONÇALO CADILHE VIAGEM DE VIDA E VOLTA Coleccionar países nunca foi o seu objectivo. E se lhe perguntamos quantos já
visitou, depois de apresentar uma série de motivos pelos quais essa forma de pôr as coisas não lhe faz sentido, apenas responde que não tem como propósito carimbar o passaporte nos que lhe faltam. Contas feitas por alto, Gonçalo Cadilhe já esteve em cerca de cem países – meio mundo, se puxarmos pelos números. Da restante metade, alguns dificilmente entrarão nessa lista. «Não é, definitivamente, uma preocupação minha ir ao Dubai, por exemplo. Prefiro, com o mesmo dinheiro, ir cinco vezes a Veneza.» Haverá algum país ao qual não queira regressar? «Não, mas há coisas que não tornaria a fazer, mais pelos projectos do que por lugares específicos.» Como a travessia do continente africano por terra, que originou o livro “África Acima” (2007, Oficina do Livro). «Apanhava boleia em camiões sem faróis e, quando anoitecia, tínhamos de dormir na berma. Depois, o pó: tenho uma fotografia em que estou completamente preto, ao fim de oito horas a viajar nas traseiras de um camião por aquelas estradas de terra batida. E na fronteira do Níger levei um estalo do polícia por estar a olhar para o lado. Ele ainda gritou comigo “Olha para a frente!”. E é isso que fazes: calas-te e olhas para a frente.» Ainda que se ria destas situações, não pretende voltar a passar por elas. «Já não tenho fôlego para isto», desabafa. E junta a essa série de peripécias a ocasião em que esteve três dias num cruzamento na cidade de Dolisie (Congo) à espera de boleia. «O camião já lá estava, mas não havia passageiros nem carga suficientes para pagar a viagem. Só arrancou quando encheu. Todos os dias às oito da manhã fazia o “briefing” da situação, “Ainda não é hoje…”. Claro que no dia em que chego às 8h30 ele já tinha partido. Foi um taxista que me ajudou: “Eu levo-o, ele pára ali para meter gasolina, depois passa por casa da mulher para ir buscar comida”. E lá o apanhámos.» Na gaveta dos projectos por concretizar cabe muita coisa. A travessia da Ásia Central por terra é um dos sonhos em fila de espera. «Geórgia, Arménia, Uzbequistão e todas essas 14.magazine
janeiro/fevereiro 2011
PERFIL FALADO
GONÇALO CADILHE
antigas repúblicas soviéticas… Imagino como serão os guardas de fronteira, talvez leve uma bofetada por ter o atacador da sapatilha desapertado», brinca. Mas não é isso que o demove. É mesmo o «como» e «quando»: «Já não viajo tanto para “onde o vento me leva” ou para onde me apetece no momento, mas por projectos: se o Fernão de Magalhães nunca andou pela Ásia Central, não tenho razão para lá ir quando estou a fazer a biografia dele.» Falta, portanto, um projecto que o justifique. «Ou então, um dia, se calhar, meto férias e faço a viagem» – ainda que a prioridade quando está de folga seja organizar memórias e fotografias ou pôr os e-mails em dia.
“GOSTAVA QUE ESTE LIVRO DESPOLETASSE AQUILO A QUE CHAMO VIAJAR COM OLHAR CRÍTICO – PARA O MUNDO E PARA NÓS.”
Combinámos a entrevista no restaurante de um hotel de Lisboa. Gonçalo Cadilhe
olha com um ar desiludido para a chávena que a empregada lhe pôs na mesa. «É um café absolutamente banal, aguado», suspira. «Eu gosto da bica forte.» Hábito adquirido, talvez, nos dez anos que viveu em Itália. Ou no café do senhor Pinto, em Buarcos, onde volta sempre. «É um dos melhores sítios do mundo onde já tomei café: ele vê a pressão atmosférica para ajustar a máquina, está sempre a limpar os filtros, etc. E é junto ao mar, gosto de me sentar lá a olhar o infinito.» Foi no mar de Buarcos que Gonçalo Cadilhe aprendeu a surfar, teria os seus doze anos. Nascido na Figueira da Foz, em 1968, o jornalista-viajante cresceu na contígua vila piscatória, onde ainda hoje vive – ou melhor, tem a sua base. Saudade é um sentimento que aprendeu a controlar ao longo de quase duas décadas em constante movimento. «Só são boas quando podemos “matá-las”, portanto só tenho saudades quando cá estou.» Cedo começou a partir para outras paragens. Acabado de se formar em Gestão de Empresas pela Universidade Católica do Porto, em 1992, tentou um emprego convencional: gestor de marketing na Sogrape. Bastaram-lhe sete meses para perceber que não era isso que queria. Partiu para Itália, onde trabalhou como guitarrista na banda da cantautora Claudia Pastorino. Fez vindimas na região de Bordéus, foi operário num estaleiro naval em Lavagna (Génova), funcionário da estância de esqui de Madonna di Campiglio (Trento) e empregado de mesa num restaurante de Portofino. «Eram empregos de temporada. Estava três meses a ganhar dinheiro num país rico para depois passar oito meses a gastá-lo num país pobre.» Isto a par com a actividade de cronista. Até que chegou a altura de mudar de novo. «Se eu realmente queria investir na escrita, tinha de parar de perder tempo.» É então que se dedica aos relatos de viagem a tempo inteiro em jornais e revistas como o “Independente” ou a “Grande Reportagem”. Torna-se viajante profissional. Em Dezembro de 2010 lançou “O Mundo É Fácil”, o seu oitavo livro, agora com uma
filosofia diferente: em vez de partilhar as suas vivências, Cadilhe resolveu espicaçar o leitor para partir à descoberta do mundo, fornecendo-lhe dicas e ferramentas de quem já deu várias voltas ao globo. «Gostava que este livro despoletasse aquilo a que chamo viajar com olhar crítico – para o resto do mundo e para nós, porque a mais-valia de viajar é regressarmos melhores, com mais capacidade de contribuir, mais criatividade, mais discernimento sobre o País.» Neste verdadeiro «manual de aventuras», Cadilhe demonstra que «nunca foi tão fácil viajar como agora», abordando todos os aspectos envolvidos numa viagem: dos vistos e burocracias aos cuidados com alimentação e saúde, ou ainda 16.magazine
janeiro/fevereiro 2011
as regras de ouro para uma jornada sem percalços – como nunca ir comprar bilhete (ou saber horários) a uma estação de comboios ou autocarros com toda a bagagem atrás. «O melhor é ir no dia anterior, sem nada, para conhecer o sítio, saber onde se embarca, evitar estar no meio de toda aquela gente, com carteiristas à mistura.» E exemplifica com o dia em acabara de chegar a Trujillo, no Peru, em trânsito para o Equador. «Como não sabia quando partia o autocarro, não tinha ido a um hotel deixar as coisas. Trazia tudo comigo.» «Tudo» incluía máquina fotográfica, computador, cartão de crédito, passaporte e cerca de mil dólares em dinheiro. Apanhou um táxi e foi directamente para o terminal. «No momento em que entrei, aquilo começou a ser assaltado.» O taxista ficou no carro à espera, «com a prancha de surf e as coisas mais volumosas, mas a mochila (de que nunca me separo, outra regra básica) foi comigo» – a tal com «tudo». «Chega um dos assaltantes e dá um estalo a uma miúda que estava na bilheteira. Pensei tratar-se de uma cena entre um casal e fiquei a pensar se intervinha ou não.» É aí que o segundo assaltante o vê. «Topou-me a olhar e veio ter comigo, de pistola apontada e a berrar repetidamente “Não te armes em herói!”. Fui recuando em direcção à porta, a dizer que não, não me ia armar em herói, até que, às tantas, estava perto da rua. Ao aperceber-se disso, deixou-me.» Mal se apanhou do lado de fora, Gonçalo correu para o táxi, em pânico. «Eu só gritava “Eles têm uma arma!”. Nem percebi o que se tinha passado. Li no jornal no dia seguinte: foi um assalto ao cofre com o salário dos empregados, uns dois mil dólares…» Mal sabiam que o viajante português transportava consigo um «saque» bem mais valioso. Em situações como esta, aplicase a velha máxima do senso comum: não perder a calma. Gonçalo Cadilhe acrescenta-lhe um sorriso, outra das suas regras de ouro: «Estás lá porque quiseste, ninguém te mandou. O mínimo que podes fazer, por respeito próprio, é sorrir e pensar que, quando voltares, são mais histórias para contar.» janeiro/fevereiro 2011
magazine.17
PERFIL FALADO
GONÇALO CADILHE
antigas repúblicas soviéticas… Imagino como serão os guardas de fronteira, talvez leve uma bofetada por ter o atacador da sapatilha desapertado», brinca. Mas não é isso que o demove. É mesmo o «como» e «quando»: «Já não viajo tanto para “onde o vento me leva” ou para onde me apetece no momento, mas por projectos: se o Fernão de Magalhães nunca andou pela Ásia Central, não tenho razão para lá ir quando estou a fazer a biografia dele.» Falta, portanto, um projecto que o justifique. «Ou então, um dia, se calhar, meto férias e faço a viagem» – ainda que a prioridade quando está de folga seja organizar memórias e fotografias ou pôr os e-mails em dia.
“GOSTAVA QUE ESTE LIVRO DESPOLETASSE AQUILO A QUE CHAMO VIAJAR COM OLHAR CRÍTICO – PARA O MUNDO E PARA NÓS.”
Combinámos a entrevista no restaurante de um hotel de Lisboa. Gonçalo Cadilhe
olha com um ar desiludido para a chávena que a empregada lhe pôs na mesa. «É um café absolutamente banal, aguado», suspira. «Eu gosto da bica forte.» Hábito adquirido, talvez, nos dez anos que viveu em Itália. Ou no café do senhor Pinto, em Buarcos, onde volta sempre. «É um dos melhores sítios do mundo onde já tomei café: ele vê a pressão atmosférica para ajustar a máquina, está sempre a limpar os filtros, etc. E é junto ao mar, gosto de me sentar lá a olhar o infinito.» Foi no mar de Buarcos que Gonçalo Cadilhe aprendeu a surfar, teria os seus doze anos. Nascido na Figueira da Foz, em 1968, o jornalista-viajante cresceu na contígua vila piscatória, onde ainda hoje vive – ou melhor, tem a sua base. Saudade é um sentimento que aprendeu a controlar ao longo de quase duas décadas em constante movimento. «Só são boas quando podemos “matá-las”, portanto só tenho saudades quando cá estou.» Cedo começou a partir para outras paragens. Acabado de se formar em Gestão de Empresas pela Universidade Católica do Porto, em 1992, tentou um emprego convencional: gestor de marketing na Sogrape. Bastaram-lhe sete meses para perceber que não era isso que queria. Partiu para Itália, onde trabalhou como guitarrista na banda da cantautora Claudia Pastorino. Fez vindimas na região de Bordéus, foi operário num estaleiro naval em Lavagna (Génova), funcionário da estância de esqui de Madonna di Campiglio (Trento) e empregado de mesa num restaurante de Portofino. «Eram empregos de temporada. Estava três meses a ganhar dinheiro num país rico para depois passar oito meses a gastá-lo num país pobre.» Isto a par com a actividade de cronista. Até que chegou a altura de mudar de novo. «Se eu realmente queria investir na escrita, tinha de parar de perder tempo.» É então que se dedica aos relatos de viagem a tempo inteiro em jornais e revistas como o “Independente” ou a “Grande Reportagem”. Torna-se viajante profissional. Em Dezembro de 2010 lançou “O Mundo É Fácil”, o seu oitavo livro, agora com uma
filosofia diferente: em vez de partilhar as suas vivências, Cadilhe resolveu espicaçar o leitor para partir à descoberta do mundo, fornecendo-lhe dicas e ferramentas de quem já deu várias voltas ao globo. «Gostava que este livro despoletasse aquilo a que chamo viajar com olhar crítico – para o resto do mundo e para nós, porque a mais-valia de viajar é regressarmos melhores, com mais capacidade de contribuir, mais criatividade, mais discernimento sobre o País.» Neste verdadeiro «manual de aventuras», Cadilhe demonstra que «nunca foi tão fácil viajar como agora», abordando todos os aspectos envolvidos numa viagem: dos vistos e burocracias aos cuidados com alimentação e saúde, ou ainda 16.magazine
janeiro/fevereiro 2011
as regras de ouro para uma jornada sem percalços – como nunca ir comprar bilhete (ou saber horários) a uma estação de comboios ou autocarros com toda a bagagem atrás. «O melhor é ir no dia anterior, sem nada, para conhecer o sítio, saber onde se embarca, evitar estar no meio de toda aquela gente, com carteiristas à mistura.» E exemplifica com o dia em acabara de chegar a Trujillo, no Peru, em trânsito para o Equador. «Como não sabia quando partia o autocarro, não tinha ido a um hotel deixar as coisas. Trazia tudo comigo.» «Tudo» incluía máquina fotográfica, computador, cartão de crédito, passaporte e cerca de mil dólares em dinheiro. Apanhou um táxi e foi directamente para o terminal. «No momento em que entrei, aquilo começou a ser assaltado.» O taxista ficou no carro à espera, «com a prancha de surf e as coisas mais volumosas, mas a mochila (de que nunca me separo, outra regra básica) foi comigo» – a tal com «tudo». «Chega um dos assaltantes e dá um estalo a uma miúda que estava na bilheteira. Pensei tratar-se de uma cena entre um casal e fiquei a pensar se intervinha ou não.» É aí que o segundo assaltante o vê. «Topou-me a olhar e veio ter comigo, de pistola apontada e a berrar repetidamente “Não te armes em herói!”. Fui recuando em direcção à porta, a dizer que não, não me ia armar em herói, até que, às tantas, estava perto da rua. Ao aperceber-se disso, deixou-me.» Mal se apanhou do lado de fora, Gonçalo correu para o táxi, em pânico. «Eu só gritava “Eles têm uma arma!”. Nem percebi o que se tinha passado. Li no jornal no dia seguinte: foi um assalto ao cofre com o salário dos empregados, uns dois mil dólares…» Mal sabiam que o viajante português transportava consigo um «saque» bem mais valioso. Em situações como esta, aplicase a velha máxima do senso comum: não perder a calma. Gonçalo Cadilhe acrescenta-lhe um sorriso, outra das suas regras de ouro: «Estás lá porque quiseste, ninguém te mandou. O mínimo que podes fazer, por respeito próprio, é sorrir e pensar que, quando voltares, são mais histórias para contar.» janeiro/fevereiro 2011
magazine.17
PERFIL FALADO
GONÇALO CADILHE
DATAS.
O
1968. Gonçalo Luís Vergueiro Ribeiro Cadilhe nasce a 24 de Maio, na Figueira da Foz. s portugueses ainda viajam pouco?
Viajam pouco com um olhar curioso. Mas é uma questão de tempo: os anglo-saxónicos já o fazem há 60 anos, os franceses há 30, os espanhóis há 15. E agora estamos nós a começar a fazê-lo. Com “O Mundo É Fácil” não estou a inventar a roda. A curiosidade pelo mundo está a chegar a Portugal e o meu livro aproveita essa constatação.
O mercado livreiro é dos poucos que ainda crescem. Sente isso nas vendas dos seus livros?
Sim, mas no meu caso relaciona-se com toda uma bola de neve à volta daquilo que faço: aparecer na televisão puxa a venda dos livros, que cria apetência para comprar uma revista que tem um artigo meu. E as viagens com a agência Nomad fomentam um interesse paralelo. Se me pergunta o que isso significa a nível financeiro, o meu editor costuma dizer que se eu fosse americano já tinha, pelo menos, três iates. Bem, não tenho iates, mas tenho três pranchas de surf… [risos] Menos mal: longe vai o tempo em que teria de vender uma para comprar outra…
É verdade. Um dos grandes arrependimentos da minha vida é ter vendido a prancha em que aprendi a fazer surf. Mas se não a vendesse não conseguia comprar a segunda. Além de surfista, é músico. Quando tem de optar entre a guitarra ou a prancha, qual costuma levar?
Depende do transporte. Se vou andar à boleia, nem uma nem outra. A questão não é a escolha mas cada vez mais o tempo. Na viagem do Fernão de Magalhães, com os dias contados, as crónicas para o “Expresso” e a “Blitz”, a marcação de hotéis, entrevistas, etc., não tive tempo para tocar nem para fazer surf. No entanto, quando fiz 40 anos parei um ano e meio para surfar. Mas não esteve propriamente parado…
Pensei: «40 anos! Isto merece ser festejado.» Com uma viagem só para fazer surf, tocar guitarra, pensar na vida. Orientei tudo para estar doze meses em doze ondas, um mês para cada uma. Chegava ao sítio onde a onda quebra, alugava um quarto aos pescadores, ficava umas três semanas até ser altura de partir para a próxima, com a guitarra e a prancha. 18.magazine
janeiro/fevereiro 2011
“O MEU EDITOR DIZ QUE SE EU FOSSE AMERICANO JÁ TINHA TRÊS IATES. BEM, TENHO TRÊS PRANCHAS DE SURF...”
Tem ideia de quantos países já visitou?
Essa pergunta é um pouco ingrata, por dois motivos: em primeiro, há lugares que merecem figurar na lista e não são países independentes. Vais à Ilha da Páscoa, mas se já foste ao Chile não conta. Ir ao Tahiti é como ir a Paris – é França, não conta. E o Havai também não, se já tiveres os Estados Unidos na «lista». Por outro lado, gosto de respeitar a perspectiva da idade: se estiveste em Veneza com 20 anos, tens de visitá-la aos 40 para compreenderes o que mudou em ti (porque Veneza pouco mudou). Só assim podes realmente estabelecer uma relação construtiva com a opção de viajar pela vida fora: reposicionando a tua perspectiva. Além disso, viajo para conhecer pessoas. Vou uma vez ao Coliseu de Roma e está visto. Interessam-me mais as amizades que se constroem do que a “checklist”. Regresso muito aos lugares onde tenho amigos.
1992. Termina o curso de Gestão de Empresas na Universidade Católica do Porto. Começa a trabalhar como gestor de marketing.
1993. Despede-se e começa a viajar, aceitando trabalhos temporários para juntar dinheiro: músico, vindimador, operário de estaleiro naval, funcionário numa estância de esqui, empregado de mesa. Pelo meio, publica relatos de viagem em revistas portuguesas.
1996. Dedica-se em exclusivo à escrita, colaborando em títulos como “Grande Reportagem”, “Independente” e “Elle”. 2002. Inicia uma volta ao mundo por terra e mar, contada em crónicas semanais no “Expresso” e depois no livro “Planisfério Pessoal” (2005). Seguem-se “No Princípio Estava o Mar”, “A Lua Pode Esperar” (2006) e “África Acima” (2007).
Que planos tem para 2011?
Fazer um ano de pausa dos grandes projectos. Não vou fazer nenhuma viagem longa. Tenho as viagens com a agência Nomad, um ou outro livro, várias crónicas. Mas em 2012 quero avançar com um grande projecto, desses que englobam tudo: livro, crónicas, televisão. Preciso de prepará-lo, é um projecto tão bom que pode ser muito bem aproveitado. Quando faço um programa para a RTP2, o nível de esforço e responsabilidade é enorme. No entanto, fico com a sensação de que é inglório a nível financeiro, de audiências, etc. Tenho de pensar se não quero dar um passo mais consistente.
2007. Com “Nos Passos de Magalhães”, volta a «circum-navegar» o globo, narrando a vida e as viagens do navegador português num livro e num documentário para a RTP2. Um ano depois, nova volta ao mundo, desta vez para celebrar o seu 40º aniversário: «doze meses, doze ondas» é o mote para uma “surf trip” contada no livro “1 Km de Cada Vez” (2009).
2010. Dupla colaboração com a RTP2 (“Nos Passos de Fernão Mendes Pinto” e “Geografia das Amizades”) e novo livro, “O Mundo É Fácil”, apostado em seduzir o leitor a partir à aventura.
janeiro/fevereiro 2011
magazine.19
PERFIL FALADO
GONÇALO CADILHE
DATAS.
O
1968. Gonçalo Luís Vergueiro Ribeiro Cadilhe nasce a 24 de Maio, na Figueira da Foz. s portugueses ainda viajam pouco?
Viajam pouco com um olhar curioso. Mas é uma questão de tempo: os anglo-saxónicos já o fazem há 60 anos, os franceses há 30, os espanhóis há 15. E agora estamos nós a começar a fazê-lo. Com “O Mundo É Fácil” não estou a inventar a roda. A curiosidade pelo mundo está a chegar a Portugal e o meu livro aproveita essa constatação.
O mercado livreiro é dos poucos que ainda crescem. Sente isso nas vendas dos seus livros?
Sim, mas no meu caso relaciona-se com toda uma bola de neve à volta daquilo que faço: aparecer na televisão puxa a venda dos livros, que cria apetência para comprar uma revista que tem um artigo meu. E as viagens com a agência Nomad fomentam um interesse paralelo. Se me pergunta o que isso significa a nível financeiro, o meu editor costuma dizer que se eu fosse americano já tinha, pelo menos, três iates. Bem, não tenho iates, mas tenho três pranchas de surf… [risos] Menos mal: longe vai o tempo em que teria de vender uma para comprar outra…
É verdade. Um dos grandes arrependimentos da minha vida é ter vendido a prancha em que aprendi a fazer surf. Mas se não a vendesse não conseguia comprar a segunda. Além de surfista, é músico. Quando tem de optar entre a guitarra ou a prancha, qual costuma levar?
Depende do transporte. Se vou andar à boleia, nem uma nem outra. A questão não é a escolha mas cada vez mais o tempo. Na viagem do Fernão de Magalhães, com os dias contados, as crónicas para o “Expresso” e a “Blitz”, a marcação de hotéis, entrevistas, etc., não tive tempo para tocar nem para fazer surf. No entanto, quando fiz 40 anos parei um ano e meio para surfar. Mas não esteve propriamente parado…
Pensei: «40 anos! Isto merece ser festejado.» Com uma viagem só para fazer surf, tocar guitarra, pensar na vida. Orientei tudo para estar doze meses em doze ondas, um mês para cada uma. Chegava ao sítio onde a onda quebra, alugava um quarto aos pescadores, ficava umas três semanas até ser altura de partir para a próxima, com a guitarra e a prancha. 18.magazine
janeiro/fevereiro 2011
“O MEU EDITOR DIZ QUE SE EU FOSSE AMERICANO JÁ TINHA TRÊS IATES. BEM, TENHO TRÊS PRANCHAS DE SURF...”
Tem ideia de quantos países já visitou?
Essa pergunta é um pouco ingrata, por dois motivos: em primeiro, há lugares que merecem figurar na lista e não são países independentes. Vais à Ilha da Páscoa, mas se já foste ao Chile não conta. Ir ao Tahiti é como ir a Paris – é França, não conta. E o Havai também não, se já tiveres os Estados Unidos na «lista». Por outro lado, gosto de respeitar a perspectiva da idade: se estiveste em Veneza com 20 anos, tens de visitá-la aos 40 para compreenderes o que mudou em ti (porque Veneza pouco mudou). Só assim podes realmente estabelecer uma relação construtiva com a opção de viajar pela vida fora: reposicionando a tua perspectiva. Além disso, viajo para conhecer pessoas. Vou uma vez ao Coliseu de Roma e está visto. Interessam-me mais as amizades que se constroem do que a “checklist”. Regresso muito aos lugares onde tenho amigos.
1992. Termina o curso de Gestão de Empresas na Universidade Católica do Porto. Começa a trabalhar como gestor de marketing.
1993. Despede-se e começa a viajar, aceitando trabalhos temporários para juntar dinheiro: músico, vindimador, operário de estaleiro naval, funcionário numa estância de esqui, empregado de mesa. Pelo meio, publica relatos de viagem em revistas portuguesas.
1996. Dedica-se em exclusivo à escrita, colaborando em títulos como “Grande Reportagem”, “Independente” e “Elle”. 2002. Inicia uma volta ao mundo por terra e mar, contada em crónicas semanais no “Expresso” e depois no livro “Planisfério Pessoal” (2005). Seguem-se “No Princípio Estava o Mar”, “A Lua Pode Esperar” (2006) e “África Acima” (2007).
Que planos tem para 2011?
Fazer um ano de pausa dos grandes projectos. Não vou fazer nenhuma viagem longa. Tenho as viagens com a agência Nomad, um ou outro livro, várias crónicas. Mas em 2012 quero avançar com um grande projecto, desses que englobam tudo: livro, crónicas, televisão. Preciso de prepará-lo, é um projecto tão bom que pode ser muito bem aproveitado. Quando faço um programa para a RTP2, o nível de esforço e responsabilidade é enorme. No entanto, fico com a sensação de que é inglório a nível financeiro, de audiências, etc. Tenho de pensar se não quero dar um passo mais consistente.
2007. Com “Nos Passos de Magalhães”, volta a «circum-navegar» o globo, narrando a vida e as viagens do navegador português num livro e num documentário para a RTP2. Um ano depois, nova volta ao mundo, desta vez para celebrar o seu 40º aniversário: «doze meses, doze ondas» é o mote para uma “surf trip” contada no livro “1 Km de Cada Vez” (2009).
2010. Dupla colaboração com a RTP2 (“Nos Passos de Fernão Mendes Pinto” e “Geografia das Amizades”) e novo livro, “O Mundo É Fácil”, apostado em seduzir o leitor a partir à aventura.
janeiro/fevereiro 2011
magazine.19
PERFIL FALADO
GONÇALO CADILHE
SE JÁ FIZ A VIAGEM DA MINHA VIDA? A VIAGEM É A VIDA.
EM DISCURSO DIRECTO.
chida: sempre com prazos de entrega, responsabilidades, compromissos. Às vezes gostava de ser o comandante do cargueiro, que vai do Panamá à Nova Zelândia e, durante aqueles 28 dias, contemplar o mar, pensar, escrever romances, beber copos, olhar o pôr-do-sol… Continuamos a achar que a melhor comida do mundo é portuguesa. Será
para um português, mas não para um chinês. Estas afirmações categóricas têm de ser desconstruídas. O português tem de viajar e saber realmente de que está a falar. Quando comecei não tinha a ideia de coleccionar países Apenas pensava:
«Tenho dinheiro, tempo livre, vou fazer esta viagem». Nem ia com a certeza de que podia fazer vida disto. Vinte anos depois, posso dizer que «o mundo é fácil», excepto nos sítios
onde é difícil. Não aconselho ninguém a ir para o Iraque. O título mais correcto deste meu novo livro seria “Viajar Pelo 20.magazine
janeiro/fevereiro 2011
Mundo É Fácil”. Depende essencialmente de uma regra básica: «Onde estiveres, faz como vês fazer». Se andares por onde as outras pessoas andam e fizeres como elas fazem, sim, o mundo é fácil. Quando regresso, há uma conti nuidade. Uma viagem só se conclui, só
ganha o seu significado quando volto a casa e a publico – em livro, em revista ou na televisão. É aí que atinge o seu propósito. As saudades só são boas quando podemos «matá-las». Portanto, só te-
nho saudades quando cá estou. Se não, ando a viajar e parte de mim fica atrás, estou dividido. Quando digo que não é apenas viajantes nascemos não um bilhete de comprar e mochila a fazer Ao longo isso. com bem lidar É avião. desprogrameiviajante, de anos 20 destes -me e reprogramei-me várias vezes. Viajar aprende-se.
A vida é curta e é-nos dado um certo número de experiências para viver e
outras que ficarão de fora. Há muitos sítios
onde gostaria de ir e não sei se alguma vez irei. Mas esqueçamos a minha profissão: ponhamo-nos no papel do cidadão normal, que gostaria de ir a muitos sítios, no entanto é pouco provável que consiga visitá-los todos. Não tenho a pretensão de ser jovem para sempre. A idade vai avan-
çando e vou ajustando as expectativas. Não estou num emprego de carreira. Nem espero chegar a lado nenhum. Uma vida que deve ser muito bonita
– num sentido romântico – é a de músico de rua, tocar pela Europa fora. Não me importaria de um dia ter feito essa experiência. Mas acho que se perdeu um mediano músico de rua e ganhou-se um cronista de viagem… com algum valor. De um modo geral, não me sinto nada jovem. Quando faço surf com-
preendo como estou a envelhecer, mas ainda sinto que tenho tudo em aberto. Continuo a ser um homem muito livre, tal como quando tinha 25 anos. Ainda tenho poder de decisão sobre 90% daquilo que um dia poderei vir a ser. l
Assistente de fotografia: Filipe Serralheiro I Pós-Produçaõ: Álvaro Teixeira
Pode parecer estranho, mas tenho uma vida muito stressante e preen-
setembro/outubro 2009
magazine.21
PERFIL FALADO
GONÇALO CADILHE
SE JÁ FIZ A VIAGEM DA MINHA VIDA? A VIAGEM É A VIDA.
EM DISCURSO DIRECTO.
chida: sempre com prazos de entrega, responsabilidades, compromissos. Às vezes gostava de ser o comandante do cargueiro, que vai do Panamá à Nova Zelândia e, durante aqueles 28 dias, contemplar o mar, pensar, escrever romances, beber copos, olhar o pôr-do-sol… Continuamos a achar que a melhor comida do mundo é portuguesa. Será
para um português, mas não para um chinês. Estas afirmações categóricas têm de ser desconstruídas. O português tem de viajar e saber realmente de que está a falar. Quando comecei não tinha a ideia de coleccionar países Apenas pensava:
«Tenho dinheiro, tempo livre, vou fazer esta viagem». Nem ia com a certeza de que podia fazer vida disto. Vinte anos depois, posso dizer que «o mundo é fácil», excepto nos sítios
onde é difícil. Não aconselho ninguém a ir para o Iraque. O título mais correcto deste meu novo livro seria “Viajar Pelo 20.magazine
janeiro/fevereiro 2011
Mundo É Fácil”. Depende essencialmente de uma regra básica: «Onde estiveres, faz como vês fazer». Se andares por onde as outras pessoas andam e fizeres como elas fazem, sim, o mundo é fácil. Quando regresso, há uma conti nuidade. Uma viagem só se conclui, só
ganha o seu significado quando volto a casa e a publico – em livro, em revista ou na televisão. É aí que atinge o seu propósito. As saudades só são boas quando podemos «matá-las». Portanto, só te-
nho saudades quando cá estou. Se não, ando a viajar e parte de mim fica atrás, estou dividido. Quando digo que não é apenas viajantes nascemos não um bilhete de comprar e mochila a fazer Ao longo isso. com bem lidar É avião. desprogrameiviajante, de anos 20 destes -me e reprogramei-me várias vezes. Viajar aprende-se.
A vida é curta e é-nos dado um certo número de experiências para viver e
outras que ficarão de fora. Há muitos sítios
onde gostaria de ir e não sei se alguma vez irei. Mas esqueçamos a minha profissão: ponhamo-nos no papel do cidadão normal, que gostaria de ir a muitos sítios, no entanto é pouco provável que consiga visitá-los todos. Não tenho a pretensão de ser jovem para sempre. A idade vai avan-
çando e vou ajustando as expectativas. Não estou num emprego de carreira. Nem espero chegar a lado nenhum. Uma vida que deve ser muito bonita
– num sentido romântico – é a de músico de rua, tocar pela Europa fora. Não me importaria de um dia ter feito essa experiência. Mas acho que se perdeu um mediano músico de rua e ganhou-se um cronista de viagem… com algum valor. De um modo geral, não me sinto nada jovem. Quando faço surf com-
preendo como estou a envelhecer, mas ainda sinto que tenho tudo em aberto. Continuo a ser um homem muito livre, tal como quando tinha 25 anos. Ainda tenho poder de decisão sobre 90% daquilo que um dia poderei vir a ser. l
Assistente de fotografia: Filipe Serralheiro I Pós-Produçaõ: Álvaro Teixeira
Pode parecer estranho, mas tenho uma vida muito stressante e preen-
setembro/outubro 2009
magazine.21
TEXTO JOÃO MESTRE FOTOGRAFIA LUIS DE BARROS
ENTREVISTA
PRESIDENTE DA EXPERIMENTA DESIGN
NA VÉSPERA DO ARRANQUE DE MAIS UMA EDIÇÃO DA BIENAL EM LISBOA, A FUNDADORA, PORTA-VOZ E INCANSÁVEL IMPULSIONADORA DA EXPERIMENTA DESIGN FALA SOBRE A IMPORTÂNCIA DA ECONOMIA CRIATIVA NO MOMENTO QUE PORTUGAL ATRAVESSA, A CUMPLICIDADE COM A CIDADE E COM AS SUAS INSTITUIÇÕES, E A UTILIDADE DA INUTILIDADE NO PROCESSO CRIATIVO.
16.magazine
setembro/outubro 2011
setembro/outubro 2011
magazine.17
TEXTO JOÃO MESTRE FOTOGRAFIA LUIS DE BARROS
ENTREVISTA
PRESIDENTE DA EXPERIMENTA DESIGN
NA VÉSPERA DO ARRANQUE DE MAIS UMA EDIÇÃO DA BIENAL EM LISBOA, A FUNDADORA, PORTA-VOZ E INCANSÁVEL IMPULSIONADORA DA EXPERIMENTA DESIGN FALA SOBRE A IMPORTÂNCIA DA ECONOMIA CRIATIVA NO MOMENTO QUE PORTUGAL ATRAVESSA, A CUMPLICIDADE COM A CIDADE E COM AS SUAS INSTITUIÇÕES, E A UTILIDADE DA INUTILIDADE NO PROCESSO CRIATIVO.
16.magazine
setembro/outubro 2011
setembro/outubro 2011
magazine.17
GUTA MOURA GUEDES
F
oi muito crítica quando foi retirado o apoio à Experimenta Design, em 2007. Volvidos estes quatro anos, como estão as coisas?
Serei sempre crítica com pessoas que assumem compromissos e não os cumprem. Na altura, o então presidente da Câmara de Lisboa falhou um compromisso. E só assumiu que ia falhar num momento que já tornava as coisas inviáveis. Tirando isso, aquilo que encontrei desde 1999 até agora foi um entendimento muito claro do projecto e da importância da bienal para Lisboa e para Portugal. A nossa relação com o Estado e o poder local começou tímida mas logo bastante empenhada e foi sempre crescendo. Costumo dizer que [a retirada do apoio] é um acidente de percurso. E em 2008, ao firmar- -se o protocolo com os ministérios da Cultura e da Economia e a Câmara Municipal de Lisboa, houve uma clarificação absoluta quanto ao interesse de fazer a Experimenta Design – e penso que não foi só em relação à Experimenta, mas também noutras frentes ligadas à criatividade. Houve um processo de aprendizagem e, nesse sentido, a Experimenta pode sentir-se orgulhosa por ter aberto portas que permitiram ajudar esse entendimento essencial no nosso país.
Foi difícil retomar a bienal após este hiato, nomeadamente recuperar a confiança dos intervenientes?
Foi um grande teste. Dois meses após a interrupção, fomos contactados pela Câmara Municipal de Amesterdão para levar a bienal para lá. E recebemos e-mails do mundo inteiro, da comunidade criativa – de directores de instituições a criadores como Philippe Starck – e das empresas que nos apoiaram, a dizer «Não desistam, estamos convosco!». Houve até uma carta, escrita por Max Bruinsma e assinada por uma multidão de gente, a demonstrar o apoio ao projecto. O nosso trabalho tem mostrado sempre uma grande dimensão de profissionalismo e isso permitiu-nos conquistar parceiros que se mantiveram ao longo do tempo. Obviamente que sermos convidados por Amesterdão foi também uma espécie de bofetada de luva branca para quem causou a interrupção em Lisboa. Houve sempre interesse internacional no projecto. Mas sempre defendemos que a bienal e a nossa estrutura são portuguesas, mesmo tendo um percurso internacional e uma série de projectos lá fora. No entanto, é um projecto que não se faz sem a cidade o querer, só é possível com um trabalho inteligente e cúmplice de quem a dirige. O trabalho com o António Costa tem sido muitíssimo bom nesse sentido. Mas não é só com ele – é interessantíssimo ver o grupo de amigos e apoiantes da Experimenta que temos na Câmara desde 1999. Eles fazem tudo por tudo, colaboram de uma forma absolutamente determinante para que cada edição corra bem. Tinha noção de a Experimenta ter tamanho impacto internacional antes de ter lido essa carta e recebido esses e-mails?
Tinha, muito francamente. Porque tem a bienal sido tão bem sucedida? Por ser muito importante em Portugal, obviamente – mas também por ser importante no circuito internacional. Soubemo-lo na primeira edição: o “feedback” imediato foi muito expressivo. Por
uma série de circunstâncias, conseguimos desenhar o projecto certo, na cidade certa, no momento certo. Nacional e internacionalmente. Se tivesse sido três ou quatro anos mais tarde já teria sido complicado. A ideia foi totalmente inovadora, não havia nenhum evento no mundo que tratasse o design de uma perspectiva cultural, não ligada ao mercado. O que viemos acrescentar foi realmente diferente. E é isso que tenho defendido desde o princípio: Portugal deve lançar-se em projectos fortes mas inovadores, diferenciadores. Não podem ser miméticos porque não vale a pena, não temos escala para isso. Temos de marcar a diferença – e temos de marcá-la no plano internacional. Quando começou a Experimenta, vivia-se o optimismo do pós-Expo’98 mas ninguém a conhecia. Hoje tem uma credibilidade inquestionável mas vive-se um período de enorme pessimismo. Quando foi mais difícil montar a Experimenta – no início ou agora?
Nunca foi tão difícil como da primeira vez e nunca foi tão difícil como agora. 1998 foi um momento bom a vários níveis, mas na área da cultura havia muito para desbravar. Tínhamos de abrir caminho em todas as frentes, foi um ano de conquista. E de muita dificuldade: ninguém nos conhecia, estávamos a dizer que íamos fazer uma coisa mas não havia nenhuma referência. E eu estava longe de quaisquer circuitos, sempre vivi em Torres Vedras, não tinha nada – para além de uma grande determinação, uma boa equipa e um belíssimo projecto. Agora é completamente diferente: conquistámos uma posição muito forte e não há empresa ou entidade que diga que não quer estar connosco. Porém, confrontamo-nos com uma grande crise económica e as crises setembro/outubro 2009
magazine.19
GUTA MOURA GUEDES
F
oi muito crítica quando foi retirado o apoio à Experimenta Design, em 2007. Volvidos estes quatro anos, como estão as coisas?
Serei sempre crítica com pessoas que assumem compromissos e não os cumprem. Na altura, o então presidente da Câmara de Lisboa falhou um compromisso. E só assumiu que ia falhar num momento que já tornava as coisas inviáveis. Tirando isso, aquilo que encontrei desde 1999 até agora foi um entendimento muito claro do projecto e da importância da bienal para Lisboa e para Portugal. A nossa relação com o Estado e o poder local começou tímida mas logo bastante empenhada e foi sempre crescendo. Costumo dizer que [a retirada do apoio] é um acidente de percurso. E em 2008, ao firmar- -se o protocolo com os ministérios da Cultura e da Economia e a Câmara Municipal de Lisboa, houve uma clarificação absoluta quanto ao interesse de fazer a Experimenta Design – e penso que não foi só em relação à Experimenta, mas também noutras frentes ligadas à criatividade. Houve um processo de aprendizagem e, nesse sentido, a Experimenta pode sentir-se orgulhosa por ter aberto portas que permitiram ajudar esse entendimento essencial no nosso país.
Foi difícil retomar a bienal após este hiato, nomeadamente recuperar a confiança dos intervenientes?
Foi um grande teste. Dois meses após a interrupção, fomos contactados pela Câmara Municipal de Amesterdão para levar a bienal para lá. E recebemos e-mails do mundo inteiro, da comunidade criativa – de directores de instituições a criadores como Philippe Starck – e das empresas que nos apoiaram, a dizer «Não desistam, estamos convosco!». Houve até uma carta, escrita por Max Bruinsma e assinada por uma multidão de gente, a demonstrar o apoio ao projecto. O nosso trabalho tem mostrado sempre uma grande dimensão de profissionalismo e isso permitiu-nos conquistar parceiros que se mantiveram ao longo do tempo. Obviamente que sermos convidados por Amesterdão foi também uma espécie de bofetada de luva branca para quem causou a interrupção em Lisboa. Houve sempre interesse internacional no projecto. Mas sempre defendemos que a bienal e a nossa estrutura são portuguesas, mesmo tendo um percurso internacional e uma série de projectos lá fora. No entanto, é um projecto que não se faz sem a cidade o querer, só é possível com um trabalho inteligente e cúmplice de quem a dirige. O trabalho com o António Costa tem sido muitíssimo bom nesse sentido. Mas não é só com ele – é interessantíssimo ver o grupo de amigos e apoiantes da Experimenta que temos na Câmara desde 1999. Eles fazem tudo por tudo, colaboram de uma forma absolutamente determinante para que cada edição corra bem. Tinha noção de a Experimenta ter tamanho impacto internacional antes de ter lido essa carta e recebido esses e-mails?
Tinha, muito francamente. Porque tem a bienal sido tão bem sucedida? Por ser muito importante em Portugal, obviamente – mas também por ser importante no circuito internacional. Soubemo-lo na primeira edição: o “feedback” imediato foi muito expressivo. Por
uma série de circunstâncias, conseguimos desenhar o projecto certo, na cidade certa, no momento certo. Nacional e internacionalmente. Se tivesse sido três ou quatro anos mais tarde já teria sido complicado. A ideia foi totalmente inovadora, não havia nenhum evento no mundo que tratasse o design de uma perspectiva cultural, não ligada ao mercado. O que viemos acrescentar foi realmente diferente. E é isso que tenho defendido desde o princípio: Portugal deve lançar-se em projectos fortes mas inovadores, diferenciadores. Não podem ser miméticos porque não vale a pena, não temos escala para isso. Temos de marcar a diferença – e temos de marcá-la no plano internacional. Quando começou a Experimenta, vivia-se o optimismo do pós-Expo’98 mas ninguém a conhecia. Hoje tem uma credibilidade inquestionável mas vive-se um período de enorme pessimismo. Quando foi mais difícil montar a Experimenta – no início ou agora?
Nunca foi tão difícil como da primeira vez e nunca foi tão difícil como agora. 1998 foi um momento bom a vários níveis, mas na área da cultura havia muito para desbravar. Tínhamos de abrir caminho em todas as frentes, foi um ano de conquista. E de muita dificuldade: ninguém nos conhecia, estávamos a dizer que íamos fazer uma coisa mas não havia nenhuma referência. E eu estava longe de quaisquer circuitos, sempre vivi em Torres Vedras, não tinha nada – para além de uma grande determinação, uma boa equipa e um belíssimo projecto. Agora é completamente diferente: conquistámos uma posição muito forte e não há empresa ou entidade que diga que não quer estar connosco. Porém, confrontamo-nos com uma grande crise económica e as crises setembro/outubro 2009
magazine.19
ENTREVISTA
O DESIGN SITUA-SE NUM PONTO DE CHARNEIRA ENTRE A CULTURA E A ECONOMIA. É ESSE O NOSSO TERRITÓRIO.
económicas têm esse «detalhe»: há menos meios financeiros disponíveis e a cultura é sempre uma das frentes mais penalizadas. A grande vantagem é que se tornou completamente claro algo de que há doze anos não se falava: a economia criativa. Há um entendimento económico da criatividade e da cultura. E o design situa-se nesse ponto de charneira entre a cultura e a economia. É esse o nosso território, e isso tem imenso valor para os nossos parceiros. Temos na nossa mão coisas utilíssimas para aquilo que será a nova sociedade, a nova economia, quando sairmos desta crise. É muito entusiasmante porque não temos «nãos», apenas «vamos ver como reorganizamos a relação convosco e de que forma rentabilizamos aquilo que estão a fazer sem ser só uma relação mecenática». É um grande desafio. O problema é a questão do “timing”. Porque estas estruturas são frágeis e o tempo pode ser fatal. Desde há dois anos começámos a antecipar este cenário e a redesenhar a estrutura da associação, rentabilizando aquilo que fazemos de forma diferente, para entrarmos na área da prestação de serviços e da consultoria – mantendo a bienal como projecto principal, obviamente. Sente uma maior receptividade no tecido empresarial português ao design?
Sem dúvida. A crise obriga as empresas a rever as suas estratégias. Ficou claro que temos de apostar na inovação para sermos competitivos. Isso significa que as nossas empresas precisam de design. Como não podemos imitar, é preciso trazer os criadores para dentro da indústria. Segundo factor: as gerações mais novas de CEO são muito cosmopolitas, com um entendimento global do mundo, e é impensável em qualquer ponto do mundo não introduzir design e criatividade numa empresa. No entanto, há que deixar claro que o design não é solução para tudo. E a nossa indústria padece de problemas estruturais sérios que não se solucionam só com a adição de design. Há uma série de frentes que devem ser revistas – muito concretamente, nas áreas de planeamento estratégico, comunicação e gestão – e articuladas com a introdução do design. Outra coisa importante: o design não é algo que entre a meio do processo, deve estar presente desde o início. E não é panaceia para todos os males, é parte de um sistema que tem de ser redesenhado e sei que há muitas empresas em Portugal que já o estão a fazer com bons resultados. Vamos falar sobre isso num simpósio sobre economia criativa, a 13 e 14 de Outubro, que irá marcar a nossa entrada no tema. Falando da edição de 2011: o tema é “Useless” («Inútil»). É possível o design ser inútil?
É uma das grandes questões. É talvez um dos temas mais provocadores e estimulantes a nível intelectual que a Experimenta alguma vez teve. Quisemos um tema que levantasse, acima de tudo, muitas questões. Há coisas óbvias: são muitas as estruturas que fazemos com um determinado propósito e que depois, por um ou outro motivo, não cumprem esse objectivo e se tornam aparentemente sem uso durante algum tempo. E o facto é que, não sendo nenhum designer «briefado» para produzir algo inútil, uma grande quantidade de produtos que nos rodeiam têm pouco uso e poderão ser substituídos ou reduzidos – o tema também está ligado à utilização de recursos e à questão de estarmos a responder a necessidades consumistas num momento em que devíamos estar focados na sustentabilidade. Outra dimensão, na minha opinião, é que para se ser verdadeiramente 20.magazine
setembro/outubro 2011
inovador, há que criar momentos de aparente inutilidade. Há um uso fundamental da inutilidade – desligarmos, deixarmos as coisas em “stand-by”, assumirmos que não estamos a fazer nada. Esses momentos são essenciais para, a seguir, se poder fazer coisas novas. E depois há dimensões tão mais poéticas, como a existência da beleza: Qual é o papel da beleza? Será que ela tem uso? É um tema que, no fundo, tem imensas hipóteses de leitura – umas mais filosóficas, outras mais pragmáticas, umas mais ligadas a questões de sustentabilidade, outras à indústria. Tem sido fascinante fazer este programa. E não sei o que vamos ver quando abrirmos a 28 de Setembro – os curadores, conferencistas e “hosts” das “Open Talks” têm total liberdade para trabalharem, portanto estamos sempre na expectativa. Somos parte do público. Foi recentemente anunciado que a Experimenta chegará a São Paulo em breve. Quando será a edição inaugural?
Não posso falar muito sobre isso. Ainda não falei com o presidente da Câmara de Lisboa, só divulgarei depois de articulado com ele – não fazemos nada sem articular com Lisboa e com os nossos parceiros institucionais. Apenas posso dizer que o processo está a ser preparado há uns anos e que está a correr muito bem. Lisboa tem aí uma certa «primazia». A Experimenta também pertence a Lisboa?
Pertence. Sem dúvida. É uma marca inter nacional de Lisboa e de Portugal – é disso que eu gosto na Experimenta Design. Acima de tudo, é uma marca internacional portuguesa e isso dá-lhe um posicionamento e um valor acrescentado muito interessantes.
PERCURSO DE VIDA EM 60 SEGUNDOS. Augusta Regina Moura Guedes nasceu em Torres Vedras, cidade onde ainda reside, em 1965. Estudou piano (fez o 4º ano do Conservatório), experimentou Biologia e acabou por licenciar-se em Gestão Hoteleira, em 1987. Frequentou depois o curso de Design da Faculdade de Arquitectura de Lisboa, onde, em boa parte graças ao contacto com o «mestre» Daciano Costa, descobriu, por fim, o seu território: o design. Em 1998, voltou fascinada do Salão do Móvel de Milão e, em conversa com Marco Sousa Santos, decidiram criar «algo dentro desse território» em Portugal. Nascia a Experimenta — Associação para a Promoção do Design e Cultura de Projecto e, um ano depois, a primeira edição da bienal, que regressaria a Lisboa a cada ano ímpar (exceptuando 2007, por recuo de um dos principais parceiros). Em 2008, o conceito foi «exportado» para Amesterdão. Entre responsabilidades da Experimenta, Guta fez programas de televisão, foi administradora da Fundação Centro Cultural de Belém (2004-2005) e assessora da Fundação Casa da Música (2006-2008), integrou o Comité Científico da Capital Mundial do Design 2008, em Turim (onde comissariou também uma exposição), e tem embarcado numa infinidade de projectos nacionais e internacionais até que, há coisa de seis meses, se apercebeu de que o seu principal projecto precisava de mais atenção. «O passo que vamos dar é muito grande, ambicioso, exigente. Profissionalmente tenho de estar — e quero estar — completamente focada na Experimenta.»
ENTREVISTA
O DESIGN SITUA-SE NUM PONTO DE CHARNEIRA ENTRE A CULTURA E A ECONOMIA. É ESSE O NOSSO TERRITÓRIO.
económicas têm esse «detalhe»: há menos meios financeiros disponíveis e a cultura é sempre uma das frentes mais penalizadas. A grande vantagem é que se tornou completamente claro algo de que há doze anos não se falava: a economia criativa. Há um entendimento económico da criatividade e da cultura. E o design situa-se nesse ponto de charneira entre a cultura e a economia. É esse o nosso território, e isso tem imenso valor para os nossos parceiros. Temos na nossa mão coisas utilíssimas para aquilo que será a nova sociedade, a nova economia, quando sairmos desta crise. É muito entusiasmante porque não temos «nãos», apenas «vamos ver como reorganizamos a relação convosco e de que forma rentabilizamos aquilo que estão a fazer sem ser só uma relação mecenática». É um grande desafio. O problema é a questão do “timing”. Porque estas estruturas são frágeis e o tempo pode ser fatal. Desde há dois anos começámos a antecipar este cenário e a redesenhar a estrutura da associação, rentabilizando aquilo que fazemos de forma diferente, para entrarmos na área da prestação de serviços e da consultoria – mantendo a bienal como projecto principal, obviamente. Sente uma maior receptividade no tecido empresarial português ao design?
Sem dúvida. A crise obriga as empresas a rever as suas estratégias. Ficou claro que temos de apostar na inovação para sermos competitivos. Isso significa que as nossas empresas precisam de design. Como não podemos imitar, é preciso trazer os criadores para dentro da indústria. Segundo factor: as gerações mais novas de CEO são muito cosmopolitas, com um entendimento global do mundo, e é impensável em qualquer ponto do mundo não introduzir design e criatividade numa empresa. No entanto, há que deixar claro que o design não é solução para tudo. E a nossa indústria padece de problemas estruturais sérios que não se solucionam só com a adição de design. Há uma série de frentes que devem ser revistas – muito concretamente, nas áreas de planeamento estratégico, comunicação e gestão – e articuladas com a introdução do design. Outra coisa importante: o design não é algo que entre a meio do processo, deve estar presente desde o início. E não é panaceia para todos os males, é parte de um sistema que tem de ser redesenhado e sei que há muitas empresas em Portugal que já o estão a fazer com bons resultados. Vamos falar sobre isso num simpósio sobre economia criativa, a 13 e 14 de Outubro, que irá marcar a nossa entrada no tema. Falando da edição de 2011: o tema é “Useless” («Inútil»). É possível o design ser inútil?
É uma das grandes questões. É talvez um dos temas mais provocadores e estimulantes a nível intelectual que a Experimenta alguma vez teve. Quisemos um tema que levantasse, acima de tudo, muitas questões. Há coisas óbvias: são muitas as estruturas que fazemos com um determinado propósito e que depois, por um ou outro motivo, não cumprem esse objectivo e se tornam aparentemente sem uso durante algum tempo. E o facto é que, não sendo nenhum designer «briefado» para produzir algo inútil, uma grande quantidade de produtos que nos rodeiam têm pouco uso e poderão ser substituídos ou reduzidos – o tema também está ligado à utilização de recursos e à questão de estarmos a responder a necessidades consumistas num momento em que devíamos estar focados na sustentabilidade. Outra dimensão, na minha opinião, é que para se ser verdadeiramente 20.magazine
setembro/outubro 2011
inovador, há que criar momentos de aparente inutilidade. Há um uso fundamental da inutilidade – desligarmos, deixarmos as coisas em “stand-by”, assumirmos que não estamos a fazer nada. Esses momentos são essenciais para, a seguir, se poder fazer coisas novas. E depois há dimensões tão mais poéticas, como a existência da beleza: Qual é o papel da beleza? Será que ela tem uso? É um tema que, no fundo, tem imensas hipóteses de leitura – umas mais filosóficas, outras mais pragmáticas, umas mais ligadas a questões de sustentabilidade, outras à indústria. Tem sido fascinante fazer este programa. E não sei o que vamos ver quando abrirmos a 28 de Setembro – os curadores, conferencistas e “hosts” das “Open Talks” têm total liberdade para trabalharem, portanto estamos sempre na expectativa. Somos parte do público. Foi recentemente anunciado que a Experimenta chegará a São Paulo em breve. Quando será a edição inaugural?
Não posso falar muito sobre isso. Ainda não falei com o presidente da Câmara de Lisboa, só divulgarei depois de articulado com ele – não fazemos nada sem articular com Lisboa e com os nossos parceiros institucionais. Apenas posso dizer que o processo está a ser preparado há uns anos e que está a correr muito bem. Lisboa tem aí uma certa «primazia». A Experimenta também pertence a Lisboa?
Pertence. Sem dúvida. É uma marca inter nacional de Lisboa e de Portugal – é disso que eu gosto na Experimenta Design. Acima de tudo, é uma marca internacional portuguesa e isso dá-lhe um posicionamento e um valor acrescentado muito interessantes.
PERCURSO DE VIDA EM 60 SEGUNDOS. Augusta Regina Moura Guedes nasceu em Torres Vedras, cidade onde ainda reside, em 1965. Estudou piano (fez o 4º ano do Conservatório), experimentou Biologia e acabou por licenciar-se em Gestão Hoteleira, em 1987. Frequentou depois o curso de Design da Faculdade de Arquitectura de Lisboa, onde, em boa parte graças ao contacto com o «mestre» Daciano Costa, descobriu, por fim, o seu território: o design. Em 1998, voltou fascinada do Salão do Móvel de Milão e, em conversa com Marco Sousa Santos, decidiram criar «algo dentro desse território» em Portugal. Nascia a Experimenta — Associação para a Promoção do Design e Cultura de Projecto e, um ano depois, a primeira edição da bienal, que regressaria a Lisboa a cada ano ímpar (exceptuando 2007, por recuo de um dos principais parceiros). Em 2008, o conceito foi «exportado» para Amesterdão. Entre responsabilidades da Experimenta, Guta fez programas de televisão, foi administradora da Fundação Centro Cultural de Belém (2004-2005) e assessora da Fundação Casa da Música (2006-2008), integrou o Comité Científico da Capital Mundial do Design 2008, em Turim (onde comissariou também uma exposição), e tem embarcado numa infinidade de projectos nacionais e internacionais até que, há coisa de seis meses, se apercebeu de que o seu principal projecto precisava de mais atenção. «O passo que vamos dar é muito grande, ambicioso, exigente. Profissionalmente tenho de estar — e quero estar — completamente focada na Experimenta.»
ENTREVISTA
EXPERIMENTA DESIGN 2011. Guta Moura Guedes resume os pontos altos da 6ª edição da bienal de Lisboa, dedicada ao tema “Useless” («Inútil»): «A Semana Inaugural [28 de Setembro a 2 de Outubro], quando acontecem as conferências e as “Open Talks”, é sempre um “must”. É um momento único em Lisboa porque se podem ouvir todas as discussões teóricas sobre o tema, ouvir grandes pensadores e criadores do mundo inteiro que estão cá para falar sobre o seu trabalho. Destaco também o Tribunal da Boa Hora, que vai ser transformado num grande “hub” criativo durante estes dois meses, com programação contínua de “workshops”, seminários, conferências, um ciclo de cinema, projecções, intervenções ligadas ao design, à arquitectura, à cultura de projecto. Por último, tenho muito gosto em ter conseguido uma Experimenta para quem gosta de andar: pode-se começar no Jardim das Amoreiras e ir fazendo o circuito das exposições a pé, sem ter de usar carro, sem ter de consumir recursos, uma bienal “carbono zero”.» l
PUB
A Experimenta Design 2011 decorre entre 28 de Setembro e 27 de Novembro Locais, horários e programação detalhada em experimentadesign.pt/2011
22.
Assistente de fotografia: Hugo José Pós-produção: Álvaro Teixeira Maquilhadora: Sónia Pessoa Cabelos: Sofia Gonçalves para griffe Sessão realizada nos estúdios da Southwest
setembro/outubro 2009
magazine.23
ENTREVISTA
EXPERIMENTA DESIGN 2011. Guta Moura Guedes resume os pontos altos da 6ª edição da bienal de Lisboa, dedicada ao tema “Useless” («Inútil»): «A Semana Inaugural [28 de Setembro a 2 de Outubro], quando acontecem as conferências e as “Open Talks”, é sempre um “must”. É um momento único em Lisboa porque se podem ouvir todas as discussões teóricas sobre o tema, ouvir grandes pensadores e criadores do mundo inteiro que estão cá para falar sobre o seu trabalho. Destaco também o Tribunal da Boa Hora, que vai ser transformado num grande “hub” criativo durante estes dois meses, com programação contínua de “workshops”, seminários, conferências, um ciclo de cinema, projecções, intervenções ligadas ao design, à arquitectura, à cultura de projecto. Por último, tenho muito gosto em ter conseguido uma Experimenta para quem gosta de andar: pode-se começar no Jardim das Amoreiras e ir fazendo o circuito das exposições a pé, sem ter de usar carro, sem ter de consumir recursos, uma bienal “carbono zero”.» l
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A Experimenta Design 2011 decorre entre 28 de Setembro e 27 de Novembro Locais, horários e programação detalhada em experimentadesign.pt/2011
22.
Assistente de fotografia: Hugo José Pós-produção: Álvaro Teixeira Maquilhadora: Sónia Pessoa Cabelos: Sofia Gonçalves para griffe Sessão realizada nos estúdios da Southwest
setembro/outubro 2009
magazine.23
PERFIL FALADO
TEXTO JOÃO MESTRE FOTOGRAFIA LUÍS DE BARROS
A DOIS MESES DA QUARTA EDIÇÃO DO «MAIOR FESTIVAL DE ENTRETENIMENTO DO MUNDO» EM LISBOA, ROBERTA MEDINAFALA DAS SUAS ORIGENS, DA PAIXÃO POR PORTUGAL, DA FAMA INESPERADA E DOS MOTIVOS POR QUE FAZ AQUILO QUE FAZ — SEMPRE COM UM SORRISO CONTAGIANTE.
18.magazine
março/abril 2010
PERFIL FALADO
TEXTO JOÃO MESTRE FOTOGRAFIA LUÍS DE BARROS
A DOIS MESES DA QUARTA EDIÇÃO DO «MAIOR FESTIVAL DE ENTRETENIMENTO DO MUNDO» EM LISBOA, ROBERTA MEDINAFALA DAS SUAS ORIGENS, DA PAIXÃO POR PORTUGAL, DA FAMA INESPERADA E DOS MOTIVOS POR QUE FAZ AQUILO QUE FAZ — SEMPRE COM UM SORRISO CONTAGIANTE.
18.magazine
março/abril 2010
PERFIL FALADO
AR DE ROCK
A música é uma linguagem universal.» Roberta cresceu a
“GOSTO DE REALIZAR COISAS, TIRAR IDEIAS DO PAPEL, TRABALHAR COM COISAS QUE MEXAM COM A EMOÇÃO DAS PESSOAS.”
ouvir esta expressão, repetindo-a sem conhecer o seu verdadeiro significado. Até ao dia em que, sozinha num concerto de U2 em Los Angeles, mas rodeada por uma multidão, sentiu algo de inédito: «Quando a banda começou, estávamos todos cantando num único idioma, o da emoção.» Tinha 19 anos e, dentro de si, qualquer coisa acabara de mudar. Dois anos antes, ao passar com o pai pelo Barra Shopping, no Rio de Janeiro, deu sem saber o primeiro passo do seu percurso profissional: «A gente encontrou o gerente de marketing do “shopping” e eles dois começaram a falar da promoção dos “shows” da Disney para o Natal.» Roberta meteu-se na conversa dos adultos. «Eu adoro Disney, então comecei a dar palpites.» O gerente achou-lhe piada e convidou-a para trabalhar. «Acabei fazendo a ligação entre a equipa do marketing e a de promoção do evento e, desde esse dia, a minha função sempre foi a de ligação de peças.» Até conquistar o seu próprio espaço, não foi fácil viver à sombra de Roberto Medina. «Você fica pensando se existe, se as pessoas são simpáticas porque é filha ou porque é boa profissional.» Passou a ir para as reuniões de “tailleur” e óculos e a tratar o pai pelo nome. «Com a cara de criança que tinha não dava para levar a sério, eu precisava de credibilidade, de separar as coisas, de me sentir mais forte.» Hoje ainda o trata por Roberto, mas apenas para se perceber se está «falando do pai ou do profissional». «Não é a mesma coisa e é bom que as pessoas percebam.» Aos 32 anos, Roberta Medina é directora geral da Better World, o braço internacional da Dream Factory, empresa de eventos sediada no Brasil. Para o público português, é a figura de proa da edição lisboeta do Rock in Rio e, desde Agosto do ano passado, a jurada «boazinha» do “talent show” “Ídolos”. «Me diverti imenso», recorda. «Aquilo correu bem porque eu me ponho do lado das pessoas, eu sou público; quando o Laurent [Filipe] dizia “está um tom para cá, um tom para lá”, eu dava uma risada.» Com a presença regular na televisão, a sua vida passou a ser motivo de atenção pública. De repente, sem saber bem como, começava a dar autógrafos na rua. «É estranhíssimo, às primeiras vezes você fica assim “Autógrafo?! Mas para quê?!”.» Entretanto, aprendeu a lidar com a fama. «No fundo, é muito querido da parte das pessoas – o que eu faço é devolver esse carinho.» Durante o festival, e ao contrário do que se possa julgar, Roberta tira pouco proveito dos concertos. «A direcção fica disponível para resolver assuntos, entrevista aqui, entrevista ali, a gente está sempre andando.» A tarefa, este ano, poderá ser dificultada, agora que se tornou uma cara conhecida. «Vou ter de parar algumas vezes, mas o público é muito bacana, acho que não vão interferir.» Este é o sexto Rock in Rio que organiza, mas nem por isso as coisas se tornaram mais fáceis. «Tem sido cada vez mais gostoso, a equipe vai ficando junta, está mais afinado, o stress é menor, mas a gente tem um desafio muito grande: se você tem uma posição de liderança, tem de estar na frente, não pode ficar sossegado.» O seu «baptismo» aconteceu em 2001, na terceira edição brasileira do evento. «Roberto tinha juntado as pessoas para uma reunião e, no final, falou: “Roberta vai ser 20.magazine
março/abril 2010
DATAS. a coordenadora de produção”. Era uma loucura da cabeça dele, eu não tinha nenhuma ideia de o que era ser coordenador de produção.» Perante a insistência do pai, aceitou. «Pulei muitas etapas, por ser filha, e porque ele provocou, sempre me botou para coordenar coisas.» No entanto, aprendeu e depressa justificou a confiança. «Para mim, foi uma “surra” de muita informação, muito aprendizado, muita responsabilidade: assinar contratos, controlar o orçamento, tomar decisões em cima de coisas que eu não tinha conhecimento.» E é a primeira a reconhecer que «a equipa era brilhante». Com essa prova de fogo, ganhou bagagem para o desafio que se seguia: a expansão para Portugal. «Foi uma tensão muito grande. Era como fazer uma grande festa para pessoas que você não conhece; chegou a me dar uma sensação de estar deslocada. Mas depois do “show” dos Xutos e de ver a reacção do público, sentimos que realmente tínhamos chegado a uma nova casa.» No Brasil, dizem-lhe que está «meio portuguesa». Cá, é «meio brasileira»: o seu português já não é bem aquele que se usa do lado de lá do Atlântico, mas ainda não perdeu o jeito açucarado de falar. Roberta chegou a Portugal em 2004, à boleia da primeira edição do Rock in Rio fora do Rio. Nunca cá tinha vindo. «Nem lembrava que existia», admite. Mesmo sendo neta de um portuense de gema. «Meu avô foi muito cedo para o Brasil, não tem sotaque, e minha mãe nunca trouxe para mim essa história.» Agora, tenta recuperar o tempo perdido: tem nacionalidade portuguesa, vive na Linha de Cascais, é uma apaixonada por Lisboa e declara-se angustiada por «ver que os brasileiros não têm uma noção real de o que é o Portugal moderno». E, sem papas na língua, aponta o problema: «A imagem do país é má para valer, é antiga, se promove os Jerónimos e Fátima... cadê os restaurantes incríveis, a gente bonita, as festas?» Percebe-se, no entusiasmo com que fala do
1978. Nasce, no Rio de Janeiro, a 15 de Março, filha do publicitário Roberto Medina e de Maria Alice Cordeiro Couto. 1980. Para a campanha de uma marca de whisky, Roberto Medina organiza um concerto de Frank Sinatra no Maracanã, com uma audiência de 170.000 pessoas. Roberta cresceu «ouvindo histórias desse show»: «Se tenho pena de alguma coisa é de não o ter visto.» 1992. Sete anos após a primeira edição, o Rock in Rio regressa. Ao acompanhar o processo de montagem e desmontagem do evento, Roberta apercebe-se do que quer ser quando for grande. 1995. Mete-se numa conversa entre o pai e um cliente e, com isso, consegue o seu primeiro emprego: assistente de marketing num centro comercial.
assunto, que há também vontade de fazer. «Me encanta pensar a cidade; estamos trabalhando em algumas ideias e espero que, em breve, possa botar em prática algumas coisas.» Quanto ao seu Rio de Janeiro natal, tem também alguns projectos na cabeça. Se tiver a oportunidade de colaborar nos Jogos Olímpicos de 2016, nem pensa duas vezes: «Gostava de fazer toda a logística, polícia, público, limpeza, transportes, acho isso incrível.» No fundo, e ao contrário do que se possa pensar, aquilo que mais a entusiasma na organização de um evento como o Rock in Rio nem é a música. «Gosto de realizar coisas; quando eu descobri que as ideias podiam sair do papel...» A frase fica pendurada, embora se perceba a conclusão pelo seu sorriso. «Eu achava que ia ser directora de arte da agência do meu pai, mas quando vi palco ser construído, desmontado, luz, etc., para mim foi encantador: pensar a logística toda, a dinâmica do evento. Nunca mais quis fazer outra coisa.» A música, claro, também é importante. Os nomes, as discografias, o conhecimento enciclopédico sobre artistas e estilos é que não são «a sua praia», como gosta de dizer. «Eu ouço muito rádio, gosto da música mas não sou fanática de ficar buscando, comprando: toca na rádio, fico contente.» Não é fã de muita coisa. Mas adora Frank Sinatra e Rod Stewart. Bem como Xutos & Pontapés e Rui Veloso, que descobriu já em Portugal. E sonha um dia trazer Robbie Williams e Coldplay, «mas eles estão sempre em tournée em ano ímpar e nós somos sempre em ano par.» O importante, contudo, é agradar ao público. «Na hora em que o público está feliz, as pessoas estão vibrando, está funcionando bem. Se você não pára para olhar aquilo, perde o momento e parece que nada valeu a pena. Gosto de trabalhar em coisas que mexem com a emoção das pessoas.» Essa, sim, é a verdadeira linguagem universal.
2000. Aos 22 anos, estreia-se na «primeira divisão» do “showbiz”, como coordenadora de produção do terceiro Rock in Rio, que teria lugar daí a um ano. 2004. Começa o desafio da expansão internacional. Roberta aterra pela primeira vez em Portugal para montar o Rock in Rio - Lisboa. E descobre uma nova casa, para onde se muda de armas e bagagens. 2008. No ano da terceira edição portuguesa, o Rock in Rio conquista um novo território: Espanha. 2009. Ao surgir — ao lado de Manuel Moura dos Santos, Laurent Filipe e Pedro Boucherie Mendes — no júri do programa televisivo “Ídolos”, deixa de ser apenas uma figura de bastidores: surgem clubes de fãs, os pedidos de amizade no Facebook multiplicam-se e passa a ter de dar autógrafos na rua.
março/abril 2010
magazine.21
PERFIL FALADO
AR DE ROCK
A música é uma linguagem universal.» Roberta cresceu a
“GOSTO DE REALIZAR COISAS, TIRAR IDEIAS DO PAPEL, TRABALHAR COM COISAS QUE MEXAM COM A EMOÇÃO DAS PESSOAS.”
ouvir esta expressão, repetindo-a sem conhecer o seu verdadeiro significado. Até ao dia em que, sozinha num concerto de U2 em Los Angeles, mas rodeada por uma multidão, sentiu algo de inédito: «Quando a banda começou, estávamos todos cantando num único idioma, o da emoção.» Tinha 19 anos e, dentro de si, qualquer coisa acabara de mudar. Dois anos antes, ao passar com o pai pelo Barra Shopping, no Rio de Janeiro, deu sem saber o primeiro passo do seu percurso profissional: «A gente encontrou o gerente de marketing do “shopping” e eles dois começaram a falar da promoção dos “shows” da Disney para o Natal.» Roberta meteu-se na conversa dos adultos. «Eu adoro Disney, então comecei a dar palpites.» O gerente achou-lhe piada e convidou-a para trabalhar. «Acabei fazendo a ligação entre a equipa do marketing e a de promoção do evento e, desde esse dia, a minha função sempre foi a de ligação de peças.» Até conquistar o seu próprio espaço, não foi fácil viver à sombra de Roberto Medina. «Você fica pensando se existe, se as pessoas são simpáticas porque é filha ou porque é boa profissional.» Passou a ir para as reuniões de “tailleur” e óculos e a tratar o pai pelo nome. «Com a cara de criança que tinha não dava para levar a sério, eu precisava de credibilidade, de separar as coisas, de me sentir mais forte.» Hoje ainda o trata por Roberto, mas apenas para se perceber se está «falando do pai ou do profissional». «Não é a mesma coisa e é bom que as pessoas percebam.» Aos 32 anos, Roberta Medina é directora geral da Better World, o braço internacional da Dream Factory, empresa de eventos sediada no Brasil. Para o público português, é a figura de proa da edição lisboeta do Rock in Rio e, desde Agosto do ano passado, a jurada «boazinha» do “talent show” “Ídolos”. «Me diverti imenso», recorda. «Aquilo correu bem porque eu me ponho do lado das pessoas, eu sou público; quando o Laurent [Filipe] dizia “está um tom para cá, um tom para lá”, eu dava uma risada.» Com a presença regular na televisão, a sua vida passou a ser motivo de atenção pública. De repente, sem saber bem como, começava a dar autógrafos na rua. «É estranhíssimo, às primeiras vezes você fica assim “Autógrafo?! Mas para quê?!”.» Entretanto, aprendeu a lidar com a fama. «No fundo, é muito querido da parte das pessoas – o que eu faço é devolver esse carinho.» Durante o festival, e ao contrário do que se possa julgar, Roberta tira pouco proveito dos concertos. «A direcção fica disponível para resolver assuntos, entrevista aqui, entrevista ali, a gente está sempre andando.» A tarefa, este ano, poderá ser dificultada, agora que se tornou uma cara conhecida. «Vou ter de parar algumas vezes, mas o público é muito bacana, acho que não vão interferir.» Este é o sexto Rock in Rio que organiza, mas nem por isso as coisas se tornaram mais fáceis. «Tem sido cada vez mais gostoso, a equipe vai ficando junta, está mais afinado, o stress é menor, mas a gente tem um desafio muito grande: se você tem uma posição de liderança, tem de estar na frente, não pode ficar sossegado.» O seu «baptismo» aconteceu em 2001, na terceira edição brasileira do evento. «Roberto tinha juntado as pessoas para uma reunião e, no final, falou: “Roberta vai ser 20.magazine
março/abril 2010
DATAS. a coordenadora de produção”. Era uma loucura da cabeça dele, eu não tinha nenhuma ideia de o que era ser coordenador de produção.» Perante a insistência do pai, aceitou. «Pulei muitas etapas, por ser filha, e porque ele provocou, sempre me botou para coordenar coisas.» No entanto, aprendeu e depressa justificou a confiança. «Para mim, foi uma “surra” de muita informação, muito aprendizado, muita responsabilidade: assinar contratos, controlar o orçamento, tomar decisões em cima de coisas que eu não tinha conhecimento.» E é a primeira a reconhecer que «a equipa era brilhante». Com essa prova de fogo, ganhou bagagem para o desafio que se seguia: a expansão para Portugal. «Foi uma tensão muito grande. Era como fazer uma grande festa para pessoas que você não conhece; chegou a me dar uma sensação de estar deslocada. Mas depois do “show” dos Xutos e de ver a reacção do público, sentimos que realmente tínhamos chegado a uma nova casa.» No Brasil, dizem-lhe que está «meio portuguesa». Cá, é «meio brasileira»: o seu português já não é bem aquele que se usa do lado de lá do Atlântico, mas ainda não perdeu o jeito açucarado de falar. Roberta chegou a Portugal em 2004, à boleia da primeira edição do Rock in Rio fora do Rio. Nunca cá tinha vindo. «Nem lembrava que existia», admite. Mesmo sendo neta de um portuense de gema. «Meu avô foi muito cedo para o Brasil, não tem sotaque, e minha mãe nunca trouxe para mim essa história.» Agora, tenta recuperar o tempo perdido: tem nacionalidade portuguesa, vive na Linha de Cascais, é uma apaixonada por Lisboa e declara-se angustiada por «ver que os brasileiros não têm uma noção real de o que é o Portugal moderno». E, sem papas na língua, aponta o problema: «A imagem do país é má para valer, é antiga, se promove os Jerónimos e Fátima... cadê os restaurantes incríveis, a gente bonita, as festas?» Percebe-se, no entusiasmo com que fala do
1978. Nasce, no Rio de Janeiro, a 15 de Março, filha do publicitário Roberto Medina e de Maria Alice Cordeiro Couto. 1980. Para a campanha de uma marca de whisky, Roberto Medina organiza um concerto de Frank Sinatra no Maracanã, com uma audiência de 170.000 pessoas. Roberta cresceu «ouvindo histórias desse show»: «Se tenho pena de alguma coisa é de não o ter visto.» 1992. Sete anos após a primeira edição, o Rock in Rio regressa. Ao acompanhar o processo de montagem e desmontagem do evento, Roberta apercebe-se do que quer ser quando for grande. 1995. Mete-se numa conversa entre o pai e um cliente e, com isso, consegue o seu primeiro emprego: assistente de marketing num centro comercial.
assunto, que há também vontade de fazer. «Me encanta pensar a cidade; estamos trabalhando em algumas ideias e espero que, em breve, possa botar em prática algumas coisas.» Quanto ao seu Rio de Janeiro natal, tem também alguns projectos na cabeça. Se tiver a oportunidade de colaborar nos Jogos Olímpicos de 2016, nem pensa duas vezes: «Gostava de fazer toda a logística, polícia, público, limpeza, transportes, acho isso incrível.» No fundo, e ao contrário do que se possa pensar, aquilo que mais a entusiasma na organização de um evento como o Rock in Rio nem é a música. «Gosto de realizar coisas; quando eu descobri que as ideias podiam sair do papel...» A frase fica pendurada, embora se perceba a conclusão pelo seu sorriso. «Eu achava que ia ser directora de arte da agência do meu pai, mas quando vi palco ser construído, desmontado, luz, etc., para mim foi encantador: pensar a logística toda, a dinâmica do evento. Nunca mais quis fazer outra coisa.» A música, claro, também é importante. Os nomes, as discografias, o conhecimento enciclopédico sobre artistas e estilos é que não são «a sua praia», como gosta de dizer. «Eu ouço muito rádio, gosto da música mas não sou fanática de ficar buscando, comprando: toca na rádio, fico contente.» Não é fã de muita coisa. Mas adora Frank Sinatra e Rod Stewart. Bem como Xutos & Pontapés e Rui Veloso, que descobriu já em Portugal. E sonha um dia trazer Robbie Williams e Coldplay, «mas eles estão sempre em tournée em ano ímpar e nós somos sempre em ano par.» O importante, contudo, é agradar ao público. «Na hora em que o público está feliz, as pessoas estão vibrando, está funcionando bem. Se você não pára para olhar aquilo, perde o momento e parece que nada valeu a pena. Gosto de trabalhar em coisas que mexem com a emoção das pessoas.» Essa, sim, é a verdadeira linguagem universal.
2000. Aos 22 anos, estreia-se na «primeira divisão» do “showbiz”, como coordenadora de produção do terceiro Rock in Rio, que teria lugar daí a um ano. 2004. Começa o desafio da expansão internacional. Roberta aterra pela primeira vez em Portugal para montar o Rock in Rio - Lisboa. E descobre uma nova casa, para onde se muda de armas e bagagens. 2008. No ano da terceira edição portuguesa, o Rock in Rio conquista um novo território: Espanha. 2009. Ao surgir — ao lado de Manuel Moura dos Santos, Laurent Filipe e Pedro Boucherie Mendes — no júri do programa televisivo “Ídolos”, deixa de ser apenas uma figura de bastidores: surgem clubes de fãs, os pedidos de amizade no Facebook multiplicam-se e passa a ter de dar autógrafos na rua.
março/abril 2010
magazine.21
PERFIL FALADO
AR DE ROCK
CONVERSA DE BASTIDORES.
Foi um prejuízo, porque você não pode dar continuidade. Por isso, o evento não aconteceu a cada dois anos no Brasil.
R) Outro pedido curioso: no primeiro Rock in Rio, contratei o Ozzy Osbourne. E tinha uma história que ele comia morcego no meio do “show”. Aí a Sociedade Protectora dos Animais do Brasil – vê que coisa maluca! – mandou um expediente dizendo que não aceitava o Ozzy no Brasil se ele não se comprometesse a não comer morcego. No contrato dele, está escrito: «Não comer morcego, pintinhos e congéneres»!
Tem algum artista favorito? R) No Rock in Rio, em 1985, adorei o James
Que artista não voltariam a contratar? R) Tem um que se portou mal, mas eu
Taylor. E o Freddie Mercury [Queen]. Em Portugal, Bon Jovi [em 2008] foi o melhor. E acho que o Elton John vai ser muito bacana. R) E fã? Você é fã de quem? R) Roberto Carlos. R) Saiu diferente. Achei que era do Sinatra... R) Ah não, Sinatra é outra coisa. Ele era de um carisma que não tem nada para comparar com banda nenhuma de rock nem nada. Ele entrava, parava o ambiente. Da primeira vez que eu vi ele, estava no Waldorf Astoria, em Nova Iorque. Ele me recebeu e eu falei «Hoje em dia você já entra em palco brincando, não?». E ele respondeu «As minhas pernas sempre tremem antes de entrar». Foi por isso, talvez, que encantou tantas pessoas.
contrataria de novo: quando Queens of the Stone Age tocou, em 2001, o baixista tocou pelado. Mas pronto, não quer dizer que a gente não contrataria. R) Ou contrataria com uma cláusula dizendo que tem de tocar com roupa.
NUMA CURTA PASSAGEM POR LISBOA, ROBERTO MEDINA RECEBEU-NOS NO SEU GABINETE — CHEIO DE GUITARRAS ASSINADAS E RECORDAÇÕES DE SETE EDIÇÕES DE ROCK IN RIO — PARA UM BEM-HUMORADO DIÁLOGO A TRÊS.
O que sentem quando, por fim, está tudo montado, o público está diante do palco e o espectáculo vai começar? Roberta) Não é esse o momento. Para a gente é a hora que se abre as portas e as pes-
soas entram na Cidade do Rock. Roberto) Quando abre o portão, as pessoas entram na tua fantasia. Até aí é uma coisa irreal, que está na tua cabeça. Quando as pessoas passam a habitar a tua fantasia é uma emoção muito grande. Hoje você até tem uma visão mais clara do que vai acontecer. Mas imagina em 1985! Estava fazendo uma coisa completamente anormal para o país. Quando as pessoas chegaram, eu disse «Caramba, meu sonho virou realidade!». Em que momento podem respirar fundo? R) Quando acaba. R) São dois anos de trabalho para funcionar
tudo no primeiro minuto. E são 12 horas de primeiros minutos, vezes cinco dias. Tem de dar certo sempre, não tem tempo de consertar nada. E o dia seguinte, como é? R) Um grande vazio. Nos dois primeiros meses, você não sabe o que fazer. R) E aqui ainda se nota mais. Em Julho, a gente está «desproduzindo», mas
em Agosto o país desliga. Não se consegue falar com ninguém. Você não se consegue distrair com outro assunto. Qual foi o erro mais grave que se lembram de ter cometido? R) Desde que me lembro, a gente não tem tido grandes erros: nunca
teve um aci-
dente nem nada de complicado. R) Eu não gostei quando o Rock in Rio saiu da Cidade do Rock para o estádio do Maracanã, em 1991. Perdeu a circulação, ficou confinado a um palco. Foi o melhor cartaz de sempre: Prince, George Michael, INXS, Guns n’ Roses. Só que não tinha o espírito. Foi legal – ou «giro», como vocês costumam dizer –, as pessoas gostaram, mas se sentiu falta da Cidade do Rock. R) Tem algo muito bacana nessa história, que poderia ser visto como um grande erro, mas como aquele senhor é um bocado desprogramado do mundo real, não foi erro e virou o que a gente tem hoje: A primeira edição foi muito difícil, a nível financeiro foi complicado, com muitos desafios, conflitos políticos... Qualquer pessoa minimamente normal não teria continuado. É esse o mérito: encarar a vida pelo lado positivo, pelo que pode ser construído, e acreditar num sonho. A primeira edição deu prejuízo? R) Naquela época, o governador do
Rio de Janeiro entendia que eu – que, sem querer, fiquei muito conhecido – podia ser candidato a governador ou coisa semelhante. E aí, ele começou uma guerra política gigantesca e derrubou a Cidade do Rock. 22.magazine
março/abril 2010
Ainda recebem pedidos estranhos de parte dos artistas? R) Cada vez menos. Era surreal. O
Prince pediu 700 toalhas brancas. Não queria entrar sem as toalhas. Usou três. R) O Paul McCartney [2001] não queria carne na Cidade do Rock. A gente conseguiu convencer que era só no “catering” dele. R) Não era só na Cidade do Rock: num determinado raio, não podia ter nenhum restaurante servindo carne! R) Mas o Brasil não estava aberto para produtos importados. Um cara pedia uma Evian e era coisa para se suicidar. Hoje em dia, se pede japonês você vai na esquina e pega. A globalização facilita. Acabaram os pedidos esdrúxulos.
Estão em vias de implantar o Rock in Rio na Polónia... R) Sim, para 2011. Mas não sabemos se
vamos conseguir a tempo porque não chegámos a um acordo com a câmara de Poznan em termos de Cidade do Rock. Mas a volta para o Brasil é muito possível para finais de 2011. O Roberto chegou a falar em expandir a marcar para os EUA e para a China... R) Era um exemplo. Mas, por acaso, a
China mandou cá uma comitiva e a Roberta foi lá. O modelo do Rock in Rio vai evoluir para outras praças. EUA e China são dois desafios complexos. R) As discussões na China até foram bastante concretas, mas pegámos o momento em que a crise explode. E acho que, culturalmente, ainda precisa de alguns anos. Eles são muito fechados, estão muito preocupados em controlar o que os artistas dizem. De qualquer forma, somos uma empresa pequena, temos de ir pautando bem os mercados a que vamos. Mas a China é uma loucura: tem dimensão para um Rock in Rio a cada três meses numa cidade diferente! l março/abril 2010
magazine.23
PERFIL FALADO
AR DE ROCK
CONVERSA DE BASTIDORES.
Foi um prejuízo, porque você não pode dar continuidade. Por isso, o evento não aconteceu a cada dois anos no Brasil.
R) Outro pedido curioso: no primeiro Rock in Rio, contratei o Ozzy Osbourne. E tinha uma história que ele comia morcego no meio do “show”. Aí a Sociedade Protectora dos Animais do Brasil – vê que coisa maluca! – mandou um expediente dizendo que não aceitava o Ozzy no Brasil se ele não se comprometesse a não comer morcego. No contrato dele, está escrito: «Não comer morcego, pintinhos e congéneres»!
Tem algum artista favorito? R) No Rock in Rio, em 1985, adorei o James
Que artista não voltariam a contratar? R) Tem um que se portou mal, mas eu
Taylor. E o Freddie Mercury [Queen]. Em Portugal, Bon Jovi [em 2008] foi o melhor. E acho que o Elton John vai ser muito bacana. R) E fã? Você é fã de quem? R) Roberto Carlos. R) Saiu diferente. Achei que era do Sinatra... R) Ah não, Sinatra é outra coisa. Ele era de um carisma que não tem nada para comparar com banda nenhuma de rock nem nada. Ele entrava, parava o ambiente. Da primeira vez que eu vi ele, estava no Waldorf Astoria, em Nova Iorque. Ele me recebeu e eu falei «Hoje em dia você já entra em palco brincando, não?». E ele respondeu «As minhas pernas sempre tremem antes de entrar». Foi por isso, talvez, que encantou tantas pessoas.
contrataria de novo: quando Queens of the Stone Age tocou, em 2001, o baixista tocou pelado. Mas pronto, não quer dizer que a gente não contrataria. R) Ou contrataria com uma cláusula dizendo que tem de tocar com roupa.
NUMA CURTA PASSAGEM POR LISBOA, ROBERTO MEDINA RECEBEU-NOS NO SEU GABINETE — CHEIO DE GUITARRAS ASSINADAS E RECORDAÇÕES DE SETE EDIÇÕES DE ROCK IN RIO — PARA UM BEM-HUMORADO DIÁLOGO A TRÊS.
O que sentem quando, por fim, está tudo montado, o público está diante do palco e o espectáculo vai começar? Roberta) Não é esse o momento. Para a gente é a hora que se abre as portas e as pes-
soas entram na Cidade do Rock. Roberto) Quando abre o portão, as pessoas entram na tua fantasia. Até aí é uma coisa irreal, que está na tua cabeça. Quando as pessoas passam a habitar a tua fantasia é uma emoção muito grande. Hoje você até tem uma visão mais clara do que vai acontecer. Mas imagina em 1985! Estava fazendo uma coisa completamente anormal para o país. Quando as pessoas chegaram, eu disse «Caramba, meu sonho virou realidade!». Em que momento podem respirar fundo? R) Quando acaba. R) São dois anos de trabalho para funcionar
tudo no primeiro minuto. E são 12 horas de primeiros minutos, vezes cinco dias. Tem de dar certo sempre, não tem tempo de consertar nada. E o dia seguinte, como é? R) Um grande vazio. Nos dois primeiros meses, você não sabe o que fazer. R) E aqui ainda se nota mais. Em Julho, a gente está «desproduzindo», mas
em Agosto o país desliga. Não se consegue falar com ninguém. Você não se consegue distrair com outro assunto. Qual foi o erro mais grave que se lembram de ter cometido? R) Desde que me lembro, a gente não tem tido grandes erros: nunca
teve um aci-
dente nem nada de complicado. R) Eu não gostei quando o Rock in Rio saiu da Cidade do Rock para o estádio do Maracanã, em 1991. Perdeu a circulação, ficou confinado a um palco. Foi o melhor cartaz de sempre: Prince, George Michael, INXS, Guns n’ Roses. Só que não tinha o espírito. Foi legal – ou «giro», como vocês costumam dizer –, as pessoas gostaram, mas se sentiu falta da Cidade do Rock. R) Tem algo muito bacana nessa história, que poderia ser visto como um grande erro, mas como aquele senhor é um bocado desprogramado do mundo real, não foi erro e virou o que a gente tem hoje: A primeira edição foi muito difícil, a nível financeiro foi complicado, com muitos desafios, conflitos políticos... Qualquer pessoa minimamente normal não teria continuado. É esse o mérito: encarar a vida pelo lado positivo, pelo que pode ser construído, e acreditar num sonho. A primeira edição deu prejuízo? R) Naquela época, o governador do
Rio de Janeiro entendia que eu – que, sem querer, fiquei muito conhecido – podia ser candidato a governador ou coisa semelhante. E aí, ele começou uma guerra política gigantesca e derrubou a Cidade do Rock. 22.magazine
março/abril 2010
Ainda recebem pedidos estranhos de parte dos artistas? R) Cada vez menos. Era surreal. O
Prince pediu 700 toalhas brancas. Não queria entrar sem as toalhas. Usou três. R) O Paul McCartney [2001] não queria carne na Cidade do Rock. A gente conseguiu convencer que era só no “catering” dele. R) Não era só na Cidade do Rock: num determinado raio, não podia ter nenhum restaurante servindo carne! R) Mas o Brasil não estava aberto para produtos importados. Um cara pedia uma Evian e era coisa para se suicidar. Hoje em dia, se pede japonês você vai na esquina e pega. A globalização facilita. Acabaram os pedidos esdrúxulos.
Estão em vias de implantar o Rock in Rio na Polónia... R) Sim, para 2011. Mas não sabemos se
vamos conseguir a tempo porque não chegámos a um acordo com a câmara de Poznan em termos de Cidade do Rock. Mas a volta para o Brasil é muito possível para finais de 2011. O Roberto chegou a falar em expandir a marcar para os EUA e para a China... R) Era um exemplo. Mas, por acaso, a
China mandou cá uma comitiva e a Roberta foi lá. O modelo do Rock in Rio vai evoluir para outras praças. EUA e China são dois desafios complexos. R) As discussões na China até foram bastante concretas, mas pegámos o momento em que a crise explode. E acho que, culturalmente, ainda precisa de alguns anos. Eles são muito fechados, estão muito preocupados em controlar o que os artistas dizem. De qualquer forma, somos uma empresa pequena, temos de ir pautando bem os mercados a que vamos. Mas a China é uma loucura: tem dimensão para um Rock in Rio a cada três meses numa cidade diferente! l março/abril 2010
magazine.23
PERFIL FALADO
AR DE ROCK
EM DISCURSO DIRECTO. QUANDO ME ENCONTREI COM FRANK SINATRA EM NOVA IORQUE, FALEI «HOJE EM DIA VOCÊ JÁ ENTRA EM PALCO BRINCANDO, NÃO?». E ELE RESPONDEU «AS MINHAS PERNAS SEMPRE TREMEM ANTES DE ENTRAR». FOI POR ISSO, TALVEZ, QUE ENCANTOU TANTAS PESSOAS. QUANDO VOCÊ PERDE A HUMILDADE, É O INÍCIO DO FIM. TEM DE ESTAR SEMPRE SE TESTANDO.
O Rock in Rio não é um festival de rock na comum acepção da palavra. É mais uma atitude rock – inconformismo, liberdade –, e dentro dela você tem várias tribos: o heavy metal, o pop, o jovem rockeiro... É pegar o espectro da família como um todo. E esse sempre foi o espírito: o primeiro Rock in Rio tinha música popular brasileira, jazz, pop, rock, heavy. Tinha tudo. Por isso teve 1.380.000 pessoas. A marca Rock in Rio nasceu, num dia de insónia, 25 anos atrás. Eu não tinha experiência de projecto de rock, de captar patrocínios. Cada patrocinador principal era um investimento de 20 milhões de dólares. Como é que faz isso? Eu não sabia, mas tinha convicção de como ia fazer. Foi fruto de uma intuição: eu, como publicitário, achava que era uma experiência importante para o patrocinador estar com 1,5 milhões de pessoas. Eu não sou, originalmente, um promotor de concertos: sou um homem de comunicação. Nesse mundo de concertos, só se contrata artistas e vende bilhetes. Isso não é a parte maior daquilo que a gente faz. É um detalhe. Quando você pensa em festival, pensa em lama, falta de estrutura, absoluta desorganização. O mundo evoluiu mas os grandes eventos de música não: a parte do público é a mesma confusão. Então, a gente fez uma coisa que me parece um passo além. Mesmo no princípio, o Rock in Rio era mais sofisticado do que é hoje o melhor evento no mundo. Comida extremamente bem preparada, preços controlados, etc. Tinha ofertas diversas para o público poder usufruir. E o sistema de tráfego da cidade foi todo estudado e combinado para isso.
com 380 mil pessoas. Como é que sai de 380 mil para um milhão de pessoas? Não tenho ideia de como essa história se montou. Foi um pouco de falta de conhecimento. Que é sadio, em determinado momento. Porque se me tivessem explicado que não podia, talvez não fizesse. Como ninguém me explicou... O maior evento, até então, era Woodstock,
Assistente de fotografia: Filipe Serralheiro Maquilhadora: Sónia Pessoa I Pós-Produção: Álvaro Teixeira
Tudo foi feito em função de necessidade. O evento não se pagaria com
dinheiro do público – nem com cinco milhões de pessoas. O bilhete era muito barato. Então tinha de ter as marcas. E a dimensão também não é à toa: para ajudar a pagar a conta, precisava ter muita gente. O modelo do Rock in Rio vai evoluir
que estava envelhecendo sua marca queria qualquer coisa jovem. Por outro lado, tinha essa ideia de fazer um evento de multidão. Em determinado momento, juntei as duas peças. Quando formatei o conceito do Rock in Rio, imediatamente tive a ideia do patrocínio, que era o que esse cliente estava precisando fazer. Nasceu assim o Rock in Rio. Uma companhia de cerveja
24.magazine
março/abril 2010
para outras praças. EUA e China são dois desafios complexos, mas são mercados que me fascinam. Ainda não há nada concreto em relação a esses países. Mas o projecto vai acabar aí. Não tenha dúvida. março/abril 2010
magazine.25
PERFIL FALADO
AR DE ROCK
EM DISCURSO DIRECTO. QUANDO ME ENCONTREI COM FRANK SINATRA EM NOVA IORQUE, FALEI «HOJE EM DIA VOCÊ JÁ ENTRA EM PALCO BRINCANDO, NÃO?». E ELE RESPONDEU «AS MINHAS PERNAS SEMPRE TREMEM ANTES DE ENTRAR». FOI POR ISSO, TALVEZ, QUE ENCANTOU TANTAS PESSOAS. QUANDO VOCÊ PERDE A HUMILDADE, É O INÍCIO DO FIM. TEM DE ESTAR SEMPRE SE TESTANDO.
O Rock in Rio não é um festival de rock na comum acepção da palavra. É mais uma atitude rock – inconformismo, liberdade –, e dentro dela você tem várias tribos: o heavy metal, o pop, o jovem rockeiro... É pegar o espectro da família como um todo. E esse sempre foi o espírito: o primeiro Rock in Rio tinha música popular brasileira, jazz, pop, rock, heavy. Tinha tudo. Por isso teve 1.380.000 pessoas. A marca Rock in Rio nasceu, num dia de insónia, 25 anos atrás. Eu não tinha experiência de projecto de rock, de captar patrocínios. Cada patrocinador principal era um investimento de 20 milhões de dólares. Como é que faz isso? Eu não sabia, mas tinha convicção de como ia fazer. Foi fruto de uma intuição: eu, como publicitário, achava que era uma experiência importante para o patrocinador estar com 1,5 milhões de pessoas. Eu não sou, originalmente, um promotor de concertos: sou um homem de comunicação. Nesse mundo de concertos, só se contrata artistas e vende bilhetes. Isso não é a parte maior daquilo que a gente faz. É um detalhe. Quando você pensa em festival, pensa em lama, falta de estrutura, absoluta desorganização. O mundo evoluiu mas os grandes eventos de música não: a parte do público é a mesma confusão. Então, a gente fez uma coisa que me parece um passo além. Mesmo no princípio, o Rock in Rio era mais sofisticado do que é hoje o melhor evento no mundo. Comida extremamente bem preparada, preços controlados, etc. Tinha ofertas diversas para o público poder usufruir. E o sistema de tráfego da cidade foi todo estudado e combinado para isso.
com 380 mil pessoas. Como é que sai de 380 mil para um milhão de pessoas? Não tenho ideia de como essa história se montou. Foi um pouco de falta de conhecimento. Que é sadio, em determinado momento. Porque se me tivessem explicado que não podia, talvez não fizesse. Como ninguém me explicou... O maior evento, até então, era Woodstock,
Assistente de fotografia: Filipe Serralheiro Maquilhadora: Sónia Pessoa I Pós-Produção: Álvaro Teixeira
Tudo foi feito em função de necessidade. O evento não se pagaria com
dinheiro do público – nem com cinco milhões de pessoas. O bilhete era muito barato. Então tinha de ter as marcas. E a dimensão também não é à toa: para ajudar a pagar a conta, precisava ter muita gente. O modelo do Rock in Rio vai evoluir
que estava envelhecendo sua marca queria qualquer coisa jovem. Por outro lado, tinha essa ideia de fazer um evento de multidão. Em determinado momento, juntei as duas peças. Quando formatei o conceito do Rock in Rio, imediatamente tive a ideia do patrocínio, que era o que esse cliente estava precisando fazer. Nasceu assim o Rock in Rio. Uma companhia de cerveja
24.magazine
março/abril 2010
para outras praças. EUA e China são dois desafios complexos, mas são mercados que me fascinam. Ainda não há nada concreto em relação a esses países. Mas o projecto vai acabar aí. Não tenha dúvida. março/abril 2010
magazine.25
PERFIL FALADO
TEXTO JOÃO MESTRE FOTOGRAFIA LUIS DE BARROS
RICARDO PEREIRA O BOM, O MAU E O GALÃ RECÉM-CHEGADO DO RIO DE JANEIRO E JÁ DE PARTIDA PARA O FESTIVAL DE CINEMA DE TORONTO, O «MAIS BRASILEIRO» DOS ACTORES PORTUGUESES FALA DE SONHOS E AMBIÇÕES, DE GALÃS E MAUS-DA-FITA, E DE COMO ENCONTROU UMA NOVA CASA NA REDE GLOBO.
setembro/outubro 2010
magazine.17
PERFIL FALADO
TEXTO JOÃO MESTRE FOTOGRAFIA LUIS DE BARROS
RICARDO PEREIRA O BOM, O MAU E O GALÃ RECÉM-CHEGADO DO RIO DE JANEIRO E JÁ DE PARTIDA PARA O FESTIVAL DE CINEMA DE TORONTO, O «MAIS BRASILEIRO» DOS ACTORES PORTUGUESES FALA DE SONHOS E AMBIÇÕES, DE GALÃS E MAUS-DA-FITA, E DE COMO ENCONTROU UMA NOVA CASA NA REDE GLOBO.
setembro/outubro 2010
magazine.17
PERFIL FALADO
RICARDO PEREIRA
“ADORO FAZER GALÃS, É UM PRIVILÉGIO ENORME SERMOS VISTOS COMO PESSOAS EXEMPLARES, CAPAZES DE APAIXONAR O ESPECTADOR.”
No labirinto de ruas de faz-de-conta criado dentro dos estúdios da NBP, em Bucelas, a azáfama é grande: figurantes, pessoal técnico e actores apressam-se para começar a gravação de mais um episódio da série “Bairro da Fonte”. Entre eles, um jovem estudante de Psicologia com a ambição de fazer carreira na representação, quase a estrear-se no seu primeiro papel televisivo. «Estava completamente perdido, era tudo novo», recorda Ricardo Pereira, nove anos depois desse momento mágico. «Andava de olhos e ouvidos bem abertos, a tentar registar o maior número de percepções por minuto, para poder evoluir, crescer rapidamente.» Ricardo Pereira não era propriamente um novato. Para além de uns quantos filmes publicitários e aparições fugazes em outras séries, trazia no currículo a peça “A Real Caçada ao Sol”, de Peter Shaffer, que o Teatro Nacional D. Maria II levou à cena em 2000. O elenco incluía «pesos-pesados» como Ruy de Carvalho ou Guilherme Filipe. «Foi aí que aprendi o rigor, a disciplina, a responsabilidade de o que é ser actor. Foi a minha “licenciatura”.» Não era a primeira vez que pisava um palco. «Esta profissão foi-me conquistando», acrescenta, com o sorriso que se tornou a sua imagem de marca. Começou a apaixonar-se pela arte da representação no grupo de teatro amador do Liceu Camões, em Lisboa. Seguiram-se as oficinas de expressão dramática, vários cursos e “workshops”, em Portugal e depois no estrangeiro, até que, quando deu conta, os papéis se tinham invertido: «De repente, eu é que estava a tentar conquistá-la, diariamente, trabalhando para me tornar um melhor actor.»
Em criança, sonhava ser atleta profissional. Primeiro no judo, onde chegou a cinturão verde; depois, aos 12, no basquetebol; anos mais tarde, no ténis. Por esta altura, eram vários os convites de fotógrafos amigos da sua mãe a desafiá-la para que os deixasse fazer um portefólio do rapaz. A mãe, na verdade, nunca se opôs. Era o próprio Ricardo que não tinha interesse. «Queria dedicar-me ao desporto, queria lá saber de fotografias.» Até ao dia em que se deixou convencer a ser fotografado por Luís Magone. Sem saber, dava o primeiro passo no caminho que acabaria por orientar a sua vida: a «brincadeira» abriu a porta da agência Look Elite, que lhe garantiu os primeiros trabalhos como modelo. Fez desfiles, catálogos e filmes publicitários. Começava assim a sua grande viagem. Literalmente. Passou longas temporadas em Milão, Paris, Barcelona, Madrid e Munique, o que cedo o habituou a viver sozinho. E acabou por ter uma influência decisiva no seu futuro: descobriu em si o espírito de viajante. «Nunca estranho nada, nem o sítio onde fico, nem a comida, muito menos as pessoas – adoro conhecer pessoas diferentes.» Em 2004, estreou-se na televisão brasileira com a telenovela “Como Uma Onda”, no papel do português Daniel Cascaes, um fugitivo que se vê envolvido num complicado triângulo amoroso. E logo conquistou os telespectadores. «Tive a felicidade de, na minha primeira telenovela, ser protagonista», responsabilidade que nunca tinha sido entregue a um actor estrangeiro. «Além disso, apaixonei-me pelo Rio de Janeiro e pelo país, fui muito bem recebido e criei sólidos laços de amizade.» A partir daí, os convites sucederam-se: telenovelas, séries, programas de entretenimento. Tanto lá, como cá. E as milhas foram-se acumulando no seu cartão de passageiro frequente: «A ponte aérea Lisboa/Rio tornou-se muito curta. Faço-a umas 30 vezes por ano.» Nos próximos anos, passará ainda mais tempo 18.magazine
setembro/outubro 2010
PERCURSO. na «Cidade Maravilhosa»: em Abril, assinou contrato com a Globo até 2014. «Era um convite irrecusável. É a quarta maior televisão a nível mundial, as possibilidades são imensas.» Em breve, terão início as gravações de “Insensato Coração”, a sua quarta telenovela brasileira, sobre a qual pouco revela. «Nem sequer podemos falar sobre as personagens.» Apenas garante que a sua será «diferente» das que tem interpretado. E que, pela primeira vez, não fará o papel de um português, mas sim de um brasileiro – outra façanha inédita para um actor estrangeiro. No dia em que nos encontramos, Ricardo Pereira está de partida para o Festival de Cinema de Toronto, a propósito da apresentação do filme “Mistérios de Lisboa”, realizado pelo chileno Raoul Ruiz a partir do romance de Camilo Castelo Branco. «É um filme de culto, dirigido por alguém com uma forma bastante diferente de olhar o cinema. Já o vi duas vezes e adorei!», afirma, entusiasmado. Em parte, pela personagem que lhe foi entregue, algo diferente das que costuma encarnar no pequeno ecrã: «É um tipo execrável, muito irónico, muito jogador. Soube-me bem fazer este papel. Os “maus” são personagens muito agradáveis de fazer, podemos exorcizar todas as nossas raivas.» Aliás, se lhe dessem a escolher um papel numa grande produção de Hollywood, escolheria um vilão. E o “Joker” – seja o de Jack Nicholson (1989) ou o de Heath Ledger (2008) – está entre as suas personagens favoritas de sempre. Não se pense, contudo, que está farto dos papéis de «bonzinho»: «Adoro fazer galãs, é um privilégio enorme sermos vistos como pessoas exemplares, capazes de apaixonar o telespectador.» Além disso, garante, «o papel de galã é muito difícil de fazer, são personagens extremamente densas e muito diferentes entre si, não têm de ser uma coisa já estipulada». Vilão ou galã, Ricardo Pereira quer continuar a gozar o prazer de ser actor: «fingir que não sou eu, criar outras realidades, viver vidas que não a minha.»
1979. Ricardo da Silva Tavares Pereira nasce a 14 de Setembro, em Lisboa. 1995. Começa a trabalhar como modelo em desfiles, catálogos e publicidade. Descobre o interesse pela representação no grupo de teatro amador do Liceu Camões (Lisboa). 2000. Entra para a companhia de teatro infantil Magia e Fantasia. Mais tarde, integra o elenco de “A Real Caçada ao Sol”, encenada por Carlos Avilez, no Teatro Nacional D. Maria II. 2001. Primeiro papel televisivo, na série “Bairro da Fonte”. Seguem-se as telenovelas “Sonhos Traídos”, “Amanhecer” (2002), “Saber Amar” e “Queridas Feras” (2003).
2004. Aventura-se no Brasil como protagonista da telenovela da Globo “Como Uma Onda”. Filma “O Milagre Segundo Salomé”, de Mário Barroso. 2005. Replica a «fórmula» telenovela brasileira/filme português com “Prova de Amor”, na Rede Record, e “O Crime do Padre Amaro”, de Carlos Coelho da Silva, repetindo no ano seguinte: “Pé na Jaca”, na Globo, e “Viúva Rica Solteira Não Fica”, de José Fonseca e Costa. 2008. Volta a filmar com Coelho da Silva, agora no aclamado “Amália”. Na Globo, faz “Negócio da China”. 2010. Depois de encarnar um vampiro na série juvenil “Lua Vermelha”, assina um contrato de quatro anos com a Globo e começa as filmagens da sua quarta telenovela brasileira, “Insensato Coração”. Estreia o filme “Mistérios de Lisboa”, de Raoul Ruiz. setembro/outubro 2010
magazine.19
PERFIL FALADO
RICARDO PEREIRA
“ADORO FAZER GALÃS, É UM PRIVILÉGIO ENORME SERMOS VISTOS COMO PESSOAS EXEMPLARES, CAPAZES DE APAIXONAR O ESPECTADOR.”
No labirinto de ruas de faz-de-conta criado dentro dos estúdios da NBP, em Bucelas, a azáfama é grande: figurantes, pessoal técnico e actores apressam-se para começar a gravação de mais um episódio da série “Bairro da Fonte”. Entre eles, um jovem estudante de Psicologia com a ambição de fazer carreira na representação, quase a estrear-se no seu primeiro papel televisivo. «Estava completamente perdido, era tudo novo», recorda Ricardo Pereira, nove anos depois desse momento mágico. «Andava de olhos e ouvidos bem abertos, a tentar registar o maior número de percepções por minuto, para poder evoluir, crescer rapidamente.» Ricardo Pereira não era propriamente um novato. Para além de uns quantos filmes publicitários e aparições fugazes em outras séries, trazia no currículo a peça “A Real Caçada ao Sol”, de Peter Shaffer, que o Teatro Nacional D. Maria II levou à cena em 2000. O elenco incluía «pesos-pesados» como Ruy de Carvalho ou Guilherme Filipe. «Foi aí que aprendi o rigor, a disciplina, a responsabilidade de o que é ser actor. Foi a minha “licenciatura”.» Não era a primeira vez que pisava um palco. «Esta profissão foi-me conquistando», acrescenta, com o sorriso que se tornou a sua imagem de marca. Começou a apaixonar-se pela arte da representação no grupo de teatro amador do Liceu Camões, em Lisboa. Seguiram-se as oficinas de expressão dramática, vários cursos e “workshops”, em Portugal e depois no estrangeiro, até que, quando deu conta, os papéis se tinham invertido: «De repente, eu é que estava a tentar conquistá-la, diariamente, trabalhando para me tornar um melhor actor.»
Em criança, sonhava ser atleta profissional. Primeiro no judo, onde chegou a cinturão verde; depois, aos 12, no basquetebol; anos mais tarde, no ténis. Por esta altura, eram vários os convites de fotógrafos amigos da sua mãe a desafiá-la para que os deixasse fazer um portefólio do rapaz. A mãe, na verdade, nunca se opôs. Era o próprio Ricardo que não tinha interesse. «Queria dedicar-me ao desporto, queria lá saber de fotografias.» Até ao dia em que se deixou convencer a ser fotografado por Luís Magone. Sem saber, dava o primeiro passo no caminho que acabaria por orientar a sua vida: a «brincadeira» abriu a porta da agência Look Elite, que lhe garantiu os primeiros trabalhos como modelo. Fez desfiles, catálogos e filmes publicitários. Começava assim a sua grande viagem. Literalmente. Passou longas temporadas em Milão, Paris, Barcelona, Madrid e Munique, o que cedo o habituou a viver sozinho. E acabou por ter uma influência decisiva no seu futuro: descobriu em si o espírito de viajante. «Nunca estranho nada, nem o sítio onde fico, nem a comida, muito menos as pessoas – adoro conhecer pessoas diferentes.» Em 2004, estreou-se na televisão brasileira com a telenovela “Como Uma Onda”, no papel do português Daniel Cascaes, um fugitivo que se vê envolvido num complicado triângulo amoroso. E logo conquistou os telespectadores. «Tive a felicidade de, na minha primeira telenovela, ser protagonista», responsabilidade que nunca tinha sido entregue a um actor estrangeiro. «Além disso, apaixonei-me pelo Rio de Janeiro e pelo país, fui muito bem recebido e criei sólidos laços de amizade.» A partir daí, os convites sucederam-se: telenovelas, séries, programas de entretenimento. Tanto lá, como cá. E as milhas foram-se acumulando no seu cartão de passageiro frequente: «A ponte aérea Lisboa/Rio tornou-se muito curta. Faço-a umas 30 vezes por ano.» Nos próximos anos, passará ainda mais tempo 18.magazine
setembro/outubro 2010
PERCURSO. na «Cidade Maravilhosa»: em Abril, assinou contrato com a Globo até 2014. «Era um convite irrecusável. É a quarta maior televisão a nível mundial, as possibilidades são imensas.» Em breve, terão início as gravações de “Insensato Coração”, a sua quarta telenovela brasileira, sobre a qual pouco revela. «Nem sequer podemos falar sobre as personagens.» Apenas garante que a sua será «diferente» das que tem interpretado. E que, pela primeira vez, não fará o papel de um português, mas sim de um brasileiro – outra façanha inédita para um actor estrangeiro. No dia em que nos encontramos, Ricardo Pereira está de partida para o Festival de Cinema de Toronto, a propósito da apresentação do filme “Mistérios de Lisboa”, realizado pelo chileno Raoul Ruiz a partir do romance de Camilo Castelo Branco. «É um filme de culto, dirigido por alguém com uma forma bastante diferente de olhar o cinema. Já o vi duas vezes e adorei!», afirma, entusiasmado. Em parte, pela personagem que lhe foi entregue, algo diferente das que costuma encarnar no pequeno ecrã: «É um tipo execrável, muito irónico, muito jogador. Soube-me bem fazer este papel. Os “maus” são personagens muito agradáveis de fazer, podemos exorcizar todas as nossas raivas.» Aliás, se lhe dessem a escolher um papel numa grande produção de Hollywood, escolheria um vilão. E o “Joker” – seja o de Jack Nicholson (1989) ou o de Heath Ledger (2008) – está entre as suas personagens favoritas de sempre. Não se pense, contudo, que está farto dos papéis de «bonzinho»: «Adoro fazer galãs, é um privilégio enorme sermos vistos como pessoas exemplares, capazes de apaixonar o telespectador.» Além disso, garante, «o papel de galã é muito difícil de fazer, são personagens extremamente densas e muito diferentes entre si, não têm de ser uma coisa já estipulada». Vilão ou galã, Ricardo Pereira quer continuar a gozar o prazer de ser actor: «fingir que não sou eu, criar outras realidades, viver vidas que não a minha.»
1979. Ricardo da Silva Tavares Pereira nasce a 14 de Setembro, em Lisboa. 1995. Começa a trabalhar como modelo em desfiles, catálogos e publicidade. Descobre o interesse pela representação no grupo de teatro amador do Liceu Camões (Lisboa). 2000. Entra para a companhia de teatro infantil Magia e Fantasia. Mais tarde, integra o elenco de “A Real Caçada ao Sol”, encenada por Carlos Avilez, no Teatro Nacional D. Maria II. 2001. Primeiro papel televisivo, na série “Bairro da Fonte”. Seguem-se as telenovelas “Sonhos Traídos”, “Amanhecer” (2002), “Saber Amar” e “Queridas Feras” (2003).
2004. Aventura-se no Brasil como protagonista da telenovela da Globo “Como Uma Onda”. Filma “O Milagre Segundo Salomé”, de Mário Barroso. 2005. Replica a «fórmula» telenovela brasileira/filme português com “Prova de Amor”, na Rede Record, e “O Crime do Padre Amaro”, de Carlos Coelho da Silva, repetindo no ano seguinte: “Pé na Jaca”, na Globo, e “Viúva Rica Solteira Não Fica”, de José Fonseca e Costa. 2008. Volta a filmar com Coelho da Silva, agora no aclamado “Amália”. Na Globo, faz “Negócio da China”. 2010. Depois de encarnar um vampiro na série juvenil “Lua Vermelha”, assina um contrato de quatro anos com a Globo e começa as filmagens da sua quarta telenovela brasileira, “Insensato Coração”. Estreia o filme “Mistérios de Lisboa”, de Raoul Ruiz. setembro/outubro 2010
magazine.19
PERFIL FALADO
RICARDO PEREIRA
omo conseguiu entrar num mercado tão concorrido como o brasileiro?
Antes de mim, tinham lá estado outros actores que fizeram um belíssimo trabalho: a Maria João Bastos, o Paulo Pires, o Nuno Lopes, o Duarte Guimarães, a Anabela Teixeira, entre outros. Tive a felicidade de ser protagonista na minha primeira novela: isso credibilizou-me como actor, criou raízes mais sólidas e fez-me querer investir numa carreira no Brasil. Ainda há muitos preconceitos em relação Portugal?
Acho que não. Muitos brasileiros já viajaram, não só para Portugal como para a Europa, e percebem que hoje temos um país supermoderno, cosmopolita. Sou muito patriota, promovo Portugal tanto quanto posso. No entanto, a sua personagem em “Negócio da China” é um padeiro, um velho cliché acerca de nós…
Não é nem pode ser uma generalização de Portugal. O Miguel Fallabela, que é um grande autor e conhece muito bem o País, tentou retratar um outro Portugal que ele também conhece. Quando se cria uma obra ficcionada, não se pode pensar «meu Deus, isto pode causar algum problema em alguém». Seria censura criativa. Se virmos um filme de “cowboys”, não ficamos a pensar que nos Estados Unidos as pessoas ainda andam aos tiros. A novela “Negócio da China” [actualmente em exibição na SIC] teve um grande sucesso e o núcleo português foi dos mais aplaudidos. Era um grupo muito cómico, com excelentes actores: a Maria Vieira, que é a minha mãe, toda vestida de preto, o Joaquim Monchique, um padeiro que já lá vive há muito tempo, e a Carla Andrino, a mulher dele. Eles fizeram um trabalho excelente. Tendo em conta a dimensão das produções brasileiras, sente-se limitado quando trabalha em Portugal?
Em Portugal fazemos muito bem aquilo que fazemos. Sim, precisaríamos de mais de orçamento. Porém, isso vem da publicidade. E no Brasil, um mercado com 200 milhões de pessoas, a publicidade movimenta valores bem diferentes. O que influencia (e muito) a forma de trabalhar. E quando digo isto não estou a condenar: ou é assim, ou não se produz. Então, é melhor produzir assim. No Brasil, fala com sotaque brasileiro. Está a aprender com um «treinador»?
Tenho feito um trabalho muito interessante com uma terapeuta da fala, ao nível de sonoridades, sílabas, respirações, formas de colocar a língua. E ajuda-me muito ler livros e jornais brasileiros em voz alta. É uma questão de prática. O problema é quando, à noite, em casa falo com a minha mulher, ou com os meus pais através do Skype, e esse trabalho me é meio «roubado». Se houvesse um “remake” de uma telenovela brasileira, qual gostaria de fazer?
O “Roque Santeiro” [1985]. Se pudesse, faria a personagem do José Wilker, o “playboyzão”. Mas o Sinhozinho Malta [Lima Duarte] também era fantástico. “Roque 20.magazine
maio/junho 2010
Santeiro” foi a novela que mais me cativou. Ainda tenho o último episódio, gravado numa cassete beta. Quando decidiu que queria ser actor, foi fácil convencer os seus pais?
Sempre tive uma relação muito boa com eles: faço o que quiser, mas tenho de assumir as consequências. É a primeira lição de responsabilidade. Acima de tudo, eles incutiram-me valores, noções, direcções, caminhos, para que tomasse as minhas decisões. E estão, estiveram e estarão sempre ao meu lado. São dois grandes amigos, dois grandes companheiros. Na universidade, estudou Psicologia…
Estou no último ano do curso desde 2004. Faltam-me quatro cadeiras, o estágio e a monografia. Não tive tempo de terminar porque foi sempre trabalhar, trabalhar, trabalhar. Fiz o terceiro e o quarto ano à noite – durante o dia estava a gravar novelas. E no quinto fui para o Brasil. Estou agora a ponderar concluí-lo lá, tenho uma faculdade de Psicologia perto de casa. Que papel mais gostou de representar?
Há, sem dúvida, um carinho especial pelo primeiro. Foi na série “Bairro da Fonte” [SIC, 2001], em que o meu pai era o Virgílio Castelo e a minha mãe a Helena Isabel, que entretanto se casava com o Vítor Norte. E entrava também o António Feio. Estava muito bem rodeado… Ambiciona chegar a Hollywood?
Sim. E ambiciono outros locais. Tenho trabalhado com Espanha, Holanda, França. Ainda não me estabeleci como no Brasil ou em Portugal, mas tenho esse sonho. É tudo uma questão de encarar um desafio noutras paragens a seguir às aventuras no Brasil. l setembro/outubro 2010
magazine.21
PERFIL FALADO
RICARDO PEREIRA
omo conseguiu entrar num mercado tão concorrido como o brasileiro?
Antes de mim, tinham lá estado outros actores que fizeram um belíssimo trabalho: a Maria João Bastos, o Paulo Pires, o Nuno Lopes, o Duarte Guimarães, a Anabela Teixeira, entre outros. Tive a felicidade de ser protagonista na minha primeira novela: isso credibilizou-me como actor, criou raízes mais sólidas e fez-me querer investir numa carreira no Brasil. Ainda há muitos preconceitos em relação Portugal?
Acho que não. Muitos brasileiros já viajaram, não só para Portugal como para a Europa, e percebem que hoje temos um país supermoderno, cosmopolita. Sou muito patriota, promovo Portugal tanto quanto posso. No entanto, a sua personagem em “Negócio da China” é um padeiro, um velho cliché acerca de nós…
Não é nem pode ser uma generalização de Portugal. O Miguel Fallabela, que é um grande autor e conhece muito bem o País, tentou retratar um outro Portugal que ele também conhece. Quando se cria uma obra ficcionada, não se pode pensar «meu Deus, isto pode causar algum problema em alguém». Seria censura criativa. Se virmos um filme de “cowboys”, não ficamos a pensar que nos Estados Unidos as pessoas ainda andam aos tiros. A novela “Negócio da China” [actualmente em exibição na SIC] teve um grande sucesso e o núcleo português foi dos mais aplaudidos. Era um grupo muito cómico, com excelentes actores: a Maria Vieira, que é a minha mãe, toda vestida de preto, o Joaquim Monchique, um padeiro que já lá vive há muito tempo, e a Carla Andrino, a mulher dele. Eles fizeram um trabalho excelente. Tendo em conta a dimensão das produções brasileiras, sente-se limitado quando trabalha em Portugal?
Em Portugal fazemos muito bem aquilo que fazemos. Sim, precisaríamos de mais de orçamento. Porém, isso vem da publicidade. E no Brasil, um mercado com 200 milhões de pessoas, a publicidade movimenta valores bem diferentes. O que influencia (e muito) a forma de trabalhar. E quando digo isto não estou a condenar: ou é assim, ou não se produz. Então, é melhor produzir assim. No Brasil, fala com sotaque brasileiro. Está a aprender com um «treinador»?
Tenho feito um trabalho muito interessante com uma terapeuta da fala, ao nível de sonoridades, sílabas, respirações, formas de colocar a língua. E ajuda-me muito ler livros e jornais brasileiros em voz alta. É uma questão de prática. O problema é quando, à noite, em casa falo com a minha mulher, ou com os meus pais através do Skype, e esse trabalho me é meio «roubado». Se houvesse um “remake” de uma telenovela brasileira, qual gostaria de fazer?
O “Roque Santeiro” [1985]. Se pudesse, faria a personagem do José Wilker, o “playboyzão”. Mas o Sinhozinho Malta [Lima Duarte] também era fantástico. “Roque 20.magazine
maio/junho 2010
Santeiro” foi a novela que mais me cativou. Ainda tenho o último episódio, gravado numa cassete beta. Quando decidiu que queria ser actor, foi fácil convencer os seus pais?
Sempre tive uma relação muito boa com eles: faço o que quiser, mas tenho de assumir as consequências. É a primeira lição de responsabilidade. Acima de tudo, eles incutiram-me valores, noções, direcções, caminhos, para que tomasse as minhas decisões. E estão, estiveram e estarão sempre ao meu lado. São dois grandes amigos, dois grandes companheiros. Na universidade, estudou Psicologia…
Estou no último ano do curso desde 2004. Faltam-me quatro cadeiras, o estágio e a monografia. Não tive tempo de terminar porque foi sempre trabalhar, trabalhar, trabalhar. Fiz o terceiro e o quarto ano à noite – durante o dia estava a gravar novelas. E no quinto fui para o Brasil. Estou agora a ponderar concluí-lo lá, tenho uma faculdade de Psicologia perto de casa. Que papel mais gostou de representar?
Há, sem dúvida, um carinho especial pelo primeiro. Foi na série “Bairro da Fonte” [SIC, 2001], em que o meu pai era o Virgílio Castelo e a minha mãe a Helena Isabel, que entretanto se casava com o Vítor Norte. E entrava também o António Feio. Estava muito bem rodeado… Ambiciona chegar a Hollywood?
Sim. E ambiciono outros locais. Tenho trabalhado com Espanha, Holanda, França. Ainda não me estabeleci como no Brasil ou em Portugal, mas tenho esse sonho. É tudo uma questão de encarar um desafio noutras paragens a seguir às aventuras no Brasil. l setembro/outubro 2010
magazine.21
PERFIL FALADO
JOAQUIM DE ALMEIDA
EM DISCURSO DIRECTO.
NEM ACTOR NEM MODELO: O MEU SONHO SEMPRE FOI, E AINDA É, SER FELIZ. SER ACTOR OCUPA UMA GRANDE PARTE DA MINHA PAIXÃO PELA VIDA.
No início da minha carreira como modelo fiz uma série de anúncios que não tinham nada que ver comigo. Adorava e adoro fazer publicidade. Não houve nenhum trabalho que não tenha gostado de fazer. Houve, isso sim, alguns em que me questionei: «Porque é que eu estou a vender isto?» Procuro ser sempre muito profissional por onde passo. Gosto de deixar portas abertas. Estou nesta área há uns 15 anos e não só por ser o meu «amor» – é também o meu ganha-pão. É importante ser realista a este ponto. Nunca falei nem nunca me vão ouvir falar mal daquilo que se faz no meu país – seja em teatro, em cinema ou em televisão. Há que ser positivo. Em Portugal, os artistas enfrentam sempre muitas adversidades para instituir a sua arte. Por vezes quem manda esquece-se de que a arte forma as pessoas, ensina-as, educa-as. Mas mesmo com essas dificuldades, conseguimos fazer coisas muito boas.
logo aparecem três ou quatro propostas. É sempre assim. Fico danado quando tenho de recusar projectos que me interessam por falta de disponibilidade. É importante termos os ouvidos e os olhos bem abertos para captarmos
aquilo que as pessoas nos podem trazer. Essa é a maior das aprendizagens. Por vezes, esquecemo-nos disso. Tenho tido bons encontros profissionais ao longo do meu percurso,
com actores, realizadores, encenadores e produtores que apostaram em mim, que me ensinaram, que me endireitaram. O que aprecio num actor? Gosto de sentir no olhar a representação. Há actores formidáveis, cujo olhar, só o olhar, nos diz tudo antes de abrirem a boca.
A grande questão – bato sempre na mesma tecla – é o orçamento. E quando digo isto, não estou a condenar: ou é assim, ou não se produz. É melhor produzir assim.
Ser actor é uma profissão muito séria.
Esta profissão é muito instável: quando estou a terminar uma coisa, começo logo a pensar «O que vou fazer a seguir?». No entanto, se estamos cheios de trabalho,
Temos o dever de transmitir uma verdade encenada de forma credível e não podemos defraudar, de forma alguma, o público.
APOSTA Com uma carreira de sucesso em Portugal e no Brasil, Ricardo Pereira é um dos mais bem cotados jovens actores portugueses da actualidade, e recolhe sem dificuldade e de 22.magazine
forma transversal a simpatia e o reconhecimento do público. No final de 2007, o Millennium bcp convidou-o a integrar o grupo de personalidades envolvidas na comunicação do
setembro/outubro 2010
Banco e, em Janeiro de 2008, apareceu pela primeira vez numa campanha publicitária da Solução “Cliente Frequente”. Desde então, Ricardo Pereira já deu a cara em inúmeras
campanhas publicitárias do Millennium bcp, promovendo produtos como Vantagem Ordenado, Crédito Habitação, PPR e o Depósito Taxa Crescente.
Produção: Bárbara Santos I Assistente de fotografia: Filipe Serralheiro I Maquilhadora: Sónia Pessoa
Quando era miúdo, tínhamos uma ludoteca na escola Marquesa de Alorna, onde nos mascarávamos e fazíamos peças de teatro. Essa fantasia de poder ser alguém que não era sempre me fascinou. Não tinha qualquer tipo de vergonha.
PERFIL FALADO
JOAQUIM DE ALMEIDA
EM DISCURSO DIRECTO.
NEM ACTOR NEM MODELO: O MEU SONHO SEMPRE FOI, E AINDA É, SER FELIZ. SER ACTOR OCUPA UMA GRANDE PARTE DA MINHA PAIXÃO PELA VIDA.
No início da minha carreira como modelo fiz uma série de anúncios que não tinham nada que ver comigo. Adorava e adoro fazer publicidade. Não houve nenhum trabalho que não tenha gostado de fazer. Houve, isso sim, alguns em que me questionei: «Porque é que eu estou a vender isto?» Procuro ser sempre muito profissional por onde passo. Gosto de deixar portas abertas. Estou nesta área há uns 15 anos e não só por ser o meu «amor» – é também o meu ganha-pão. É importante ser realista a este ponto. Nunca falei nem nunca me vão ouvir falar mal daquilo que se faz no meu país – seja em teatro, em cinema ou em televisão. Há que ser positivo. Em Portugal, os artistas enfrentam sempre muitas adversidades para instituir a sua arte. Por vezes quem manda esquece-se de que a arte forma as pessoas, ensina-as, educa-as. Mas mesmo com essas dificuldades, conseguimos fazer coisas muito boas.
logo aparecem três ou quatro propostas. É sempre assim. Fico danado quando tenho de recusar projectos que me interessam por falta de disponibilidade. É importante termos os ouvidos e os olhos bem abertos para captarmos
aquilo que as pessoas nos podem trazer. Essa é a maior das aprendizagens. Por vezes, esquecemo-nos disso. Tenho tido bons encontros profissionais ao longo do meu percurso,
com actores, realizadores, encenadores e produtores que apostaram em mim, que me ensinaram, que me endireitaram. O que aprecio num actor? Gosto de sentir no olhar a representação. Há actores formidáveis, cujo olhar, só o olhar, nos diz tudo antes de abrirem a boca.
A grande questão – bato sempre na mesma tecla – é o orçamento. E quando digo isto, não estou a condenar: ou é assim, ou não se produz. É melhor produzir assim.
Ser actor é uma profissão muito séria.
Esta profissão é muito instável: quando estou a terminar uma coisa, começo logo a pensar «O que vou fazer a seguir?». No entanto, se estamos cheios de trabalho,
Temos o dever de transmitir uma verdade encenada de forma credível e não podemos defraudar, de forma alguma, o público.
APOSTA Com uma carreira de sucesso em Portugal e no Brasil, Ricardo Pereira é um dos mais bem cotados jovens actores portugueses da actualidade, e recolhe sem dificuldade e de 22.magazine
forma transversal a simpatia e o reconhecimento do público. No final de 2007, o Millennium bcp convidou-o a integrar o grupo de personalidades envolvidas na comunicação do
setembro/outubro 2010
Banco e, em Janeiro de 2008, apareceu pela primeira vez numa campanha publicitária da Solução “Cliente Frequente”. Desde então, Ricardo Pereira já deu a cara em inúmeras
campanhas publicitárias do Millennium bcp, promovendo produtos como Vantagem Ordenado, Crédito Habitação, PPR e o Depósito Taxa Crescente.
Produção: Bárbara Santos I Assistente de fotografia: Filipe Serralheiro I Maquilhadora: Sónia Pessoa
Quando era miúdo, tínhamos uma ludoteca na escola Marquesa de Alorna, onde nos mascarávamos e fazíamos peças de teatro. Essa fantasia de poder ser alguém que não era sempre me fascinou. Não tinha qualquer tipo de vergonha.
TEXTO JOÃO MESTRE FOTOGRAFIA PEDRO LOUREIRO
ENTREVISTA
A AZÁFAMA É GRANDE: ENTRAM PALETES, SAEM CAIXOTES, VOLUNTÁRIOS APRESSAM-SE A RESPONDER AOS PEDIDOS DAS INSTITUIÇÕES APOIADAS. UMA MANHÃ NORMAL NO BANCO ALIMENTAR DE LISBOA. POR BREVES MOMENTOS, ISABEL JONET FAZ UMA PAUSA NO TRABALHO QUE TANTO A APAIXONA PARA FALAR DE VOLUNTARIADO, DE COMBATE À POBREZA E DA SUA FALTA DE AMBIÇÃO POLÍTICA.
O
Banco Alimentar, como o nome indica, é um banco, um depósito. O que acontece aos alimentos a partir daí?
Nós recolhemos onde sobra para entregar onde falta. Vamos à procura de excedentes na origem: indústria agro-alimentar, agricultura, distribuição. E interpelamos o público com duas campanhas anuais em supermercados. Os Bancos Alimentares não entregam directamente às pessoas carenciadas, recorrem às instituições de solidariedade social que seleccionam, acompanham e ajudam (com outros apoios, além da alimentação, através da rede Entrajuda e do Banco de Bens Doados), instituições essas que estão próximas das famílias e podem levar o alimento à mesa de quem precisa de modo mais eficiente. Apoiamos mais de 1700 instituições que levam alimentos a 280 mil pessoas. Ou seja, mais de 2,5% da população, quando se senta à mesa, tem no prato algo vindo do Banco Alimentar. É impressionante que haja tanta gente a precisar desta ajuda. O número de pessoas que recorrem ao Banco Alimentar tem aumentado?
GESTORA DE BOAS CAUSAS 74.magazine
maio/junho 2010
ISABEL JONET PRESIDENTE DA FEDERAÇÃO PORTUGUESA DE BANCOS ALIMENTARES CONTRA A FOME
Tanto o número de pessoas como o de pedidos de instituições. Foi um ano difícil. Quando as famílias têm necessidades, cortam onde acham que não faz mossa. E cortaram muito nas mensalidades de instituições de solidariedade como creches, lares, etc. – muitas dessas instituições ficaram sufocadas. E isto se a família não tiver perdido o trabalho, porque há também o flagelo do desemprego. E há outra situação terrível: pessoas com baixas qualificações que tinham dois empregos e perderam um. Não contam para a taxa de desemprego, mas não têm rendimentos para fazer face às despesas do agregado familiar. E há os biscates, que davam a muitas destas populações um melhor nível de rendimento além do salário. São, na sua maioria, pessoas sem qualificações. Os empregos a que poderiam ter acesso – “call-centres”, por exemplo – são ocupados por pessoas mais qualificadas. E estas deveriam estar em lugares a que não têm acesso, porque o mercado mudou e não há lugar para toda a gente como se pensava que havia. Tem de haver em cada um de nós a certeza de que somos responsáveis pela nossa própria vida e não podemos esperar que o mercado, o Estado ou o sistema crie as oportunidades. Quanto representa, em números, um Banco Alimentar como o de Lisboa?
Dele saem, todos os dias úteis, 35 toneladas de alimentos. Do conjunto dos 17 Bancos Alimentares portugueses saem 87 toneladas por dia. Em 2009, recolhemos 22 mil
toneladas de alimentos, 20% provenientes de campanhas. Os outros 80% são produtos recuperados que provavelmente teriam como destino a destruição por razões comerciais: porque estão prestes a atingir o prazo de validade, porque a marca mudou, porque foram retirados para não baixar o preço, etc. São 22 mil toneladas de alimentos que pudemos angariar e distribuir. O que, contudo, significa que há muito desperdício...
Em todos os países civilizados há muito desperdício. Pela perecibilidade dos bens. E porque as empresas não podem produzir exactamente aquilo que consumimos. E isto não significa que haja má gestão. O Banco Alimentar propõe a essas empresas uma relação vantajosa para ambas as partes: elas dão-nos os seus excedentes e nós fazemo-los chegar a quem mais precisa, ajudando-as a exercer a sua responsabilidade social, a evitar custos de destruição e armazenamento, e a obter benefícios fiscais. Uma das vossas exigências é a não-reinserção dos produtos no mercado. Como controlam isso?
Temos equipas de visitadores que, diariamente, vão às instituições para ver se precisam de ajuda noutras áreas (que não a alimentar) e se respeitam aquilo a que se comprometeram connosco. Todas as instituições beneficiárias celebram com o Banco Alimentar um protocolo jurídico maio/junho 2010
magazine.75
TEXTO JOÃO MESTRE FOTOGRAFIA PEDRO LOUREIRO
ENTREVISTA
A AZÁFAMA É GRANDE: ENTRAM PALETES, SAEM CAIXOTES, VOLUNTÁRIOS APRESSAM-SE A RESPONDER AOS PEDIDOS DAS INSTITUIÇÕES APOIADAS. UMA MANHÃ NORMAL NO BANCO ALIMENTAR DE LISBOA. POR BREVES MOMENTOS, ISABEL JONET FAZ UMA PAUSA NO TRABALHO QUE TANTO A APAIXONA PARA FALAR DE VOLUNTARIADO, DE COMBATE À POBREZA E DA SUA FALTA DE AMBIÇÃO POLÍTICA.
O
Banco Alimentar, como o nome indica, é um banco, um depósito. O que acontece aos alimentos a partir daí?
Nós recolhemos onde sobra para entregar onde falta. Vamos à procura de excedentes na origem: indústria agro-alimentar, agricultura, distribuição. E interpelamos o público com duas campanhas anuais em supermercados. Os Bancos Alimentares não entregam directamente às pessoas carenciadas, recorrem às instituições de solidariedade social que seleccionam, acompanham e ajudam (com outros apoios, além da alimentação, através da rede Entrajuda e do Banco de Bens Doados), instituições essas que estão próximas das famílias e podem levar o alimento à mesa de quem precisa de modo mais eficiente. Apoiamos mais de 1700 instituições que levam alimentos a 280 mil pessoas. Ou seja, mais de 2,5% da população, quando se senta à mesa, tem no prato algo vindo do Banco Alimentar. É impressionante que haja tanta gente a precisar desta ajuda. O número de pessoas que recorrem ao Banco Alimentar tem aumentado?
GESTORA DE BOAS CAUSAS 74.magazine
maio/junho 2010
ISABEL JONET PRESIDENTE DA FEDERAÇÃO PORTUGUESA DE BANCOS ALIMENTARES CONTRA A FOME
Tanto o número de pessoas como o de pedidos de instituições. Foi um ano difícil. Quando as famílias têm necessidades, cortam onde acham que não faz mossa. E cortaram muito nas mensalidades de instituições de solidariedade como creches, lares, etc. – muitas dessas instituições ficaram sufocadas. E isto se a família não tiver perdido o trabalho, porque há também o flagelo do desemprego. E há outra situação terrível: pessoas com baixas qualificações que tinham dois empregos e perderam um. Não contam para a taxa de desemprego, mas não têm rendimentos para fazer face às despesas do agregado familiar. E há os biscates, que davam a muitas destas populações um melhor nível de rendimento além do salário. São, na sua maioria, pessoas sem qualificações. Os empregos a que poderiam ter acesso – “call-centres”, por exemplo – são ocupados por pessoas mais qualificadas. E estas deveriam estar em lugares a que não têm acesso, porque o mercado mudou e não há lugar para toda a gente como se pensava que havia. Tem de haver em cada um de nós a certeza de que somos responsáveis pela nossa própria vida e não podemos esperar que o mercado, o Estado ou o sistema crie as oportunidades. Quanto representa, em números, um Banco Alimentar como o de Lisboa?
Dele saem, todos os dias úteis, 35 toneladas de alimentos. Do conjunto dos 17 Bancos Alimentares portugueses saem 87 toneladas por dia. Em 2009, recolhemos 22 mil
toneladas de alimentos, 20% provenientes de campanhas. Os outros 80% são produtos recuperados que provavelmente teriam como destino a destruição por razões comerciais: porque estão prestes a atingir o prazo de validade, porque a marca mudou, porque foram retirados para não baixar o preço, etc. São 22 mil toneladas de alimentos que pudemos angariar e distribuir. O que, contudo, significa que há muito desperdício...
Em todos os países civilizados há muito desperdício. Pela perecibilidade dos bens. E porque as empresas não podem produzir exactamente aquilo que consumimos. E isto não significa que haja má gestão. O Banco Alimentar propõe a essas empresas uma relação vantajosa para ambas as partes: elas dão-nos os seus excedentes e nós fazemo-los chegar a quem mais precisa, ajudando-as a exercer a sua responsabilidade social, a evitar custos de destruição e armazenamento, e a obter benefícios fiscais. Uma das vossas exigências é a não-reinserção dos produtos no mercado. Como controlam isso?
Temos equipas de visitadores que, diariamente, vão às instituições para ver se precisam de ajuda noutras áreas (que não a alimentar) e se respeitam aquilo a que se comprometeram connosco. Todas as instituições beneficiárias celebram com o Banco Alimentar um protocolo jurídico maio/junho 2010
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ENTREVISTA
ENTREVISTA
ISABEL JONET
O BANCO ALIMENTAR É UMA INSTITUIÇÃO FORTE PORQUE TEM UM CONJUNTO DE VOLUNTÁRIOS QUE LHE DÃO CORPO. EU TENHO A SORTE DE SER UMA DESSAS VOLUNTÁRIAS.
em que há direitos e deveres. E um deles é precisamente não reintroduzir os produtos no mercado, porque não podemos alterar regras do mercado: se as empresas não venderam é porque não houve quem comprasse. Esses visitadores são voluntários?
Sim. Muitos deles são ex-quadros superiores que ainda têm tempo e vontade de trabalhar. É um trabalho muito gratificante porque, para além da supervisão, permite [no âmbito da Entrajuda] dar às instituições “inputs” na área da gestão. Na maioria das vezes, estas instituições têm à sua frente pessoas que são «santas» mas não têm conhecimentos de gestão. Já houve casos de instituições que tentassem vender os alimentos doados?
Já. E não necessariamente para ganhar dinheiro. Havia umas freiras que achavam que podiam pagar com alimentos a quem lhes fazia o transporte. Não é esse o valor dos produtos: só valem como alimento na mesa de quem precisa, não podem servir de moeda de troca. Já tivemos de rescindir acordos com instituições. Se se comprometem a determinadas regras e não cumprem, não podemos continuar a jogar com elas um jogo franco. Como é que o Banco Alimentar conseguiu a credibilidade que tem junto do público?
Há dois factores fundamentais. Primeiro, a transparência: quem quiser ver como é o Banco Alimentar pode cá vir. E as nossas contas, auditadas pela KPMG, estão publicadas. Além disso, o Banco Alimentar pede alimentos e não dinheiro – pedimo-lo apenas a um grupo restrito de pessoas. E depois, há a questão do voluntariado: colaboram diariamente neste Banco Alimentar 80 voluntários e apenas 11 assalariados, é uma estrutura tão leve quanto possível. O apoio que recebemos das pessoas, seja em produtos, dinheiro ou trabalho, é fundamental, tal como o é o apoio das empresas. O Millennium bcp, por exemplo, assegurará os sacos de plástico desta campanha. Além disso, sem publicidade, dá-nos todos os meses uma tonelada de atum. O Banco Alimentar não podia ser o que é sem o apoio das empresas, que nos oferecem os seguros, a publicidade, a contabilidade, a segurança alimentar (não há produto fora de prazo que saia daqui sem ser certificado por uma empresa de controlo sanitário), etc. São imensos apoios não-visíveis, de empresas que não precisam de mostrá-lo porque são verdadeiros mecenas. Rejeita o protagonismo. Mas não concorda que é necessário um rosto humano para credibilizar a instituição?
Na minha opinião, não. Todas as instituições têm um rosto. E eu sou o do Banco Alimentar, corra bem ou mal. No entanto, o protagonismo deve ser dado apenas ao Banco Alimentar. Aquilo que nós mais temos como certo na nossa vida é... o fim da 76.magazine
maio/junho 2010
PERCURSO DE VIDA EM 60 SEGUNDOS.
nossa vida. Portanto, para qualquer pessoa sensata, [o importante] é que a obra se prolongue para além da sua vida. Não se deve confundir a própria vida com a das instituições. Esta instituição é forte porque tem um conjunto de voluntários que lhe dão corpo. Eu tenho a sorte de ser uma dessas voluntárias. Se fosse ministra da Solidariedade Social por um dia, por onde começava?
Eu nunca seria ministra da Solidariedade Social. Nem por um dia. Mas não acha que poderia fazer muita diferença?
Temos feito o que é possível fazer. Neste Ano Europeu de Luta Contra a Pobreza e a Exclusão Social, decidimos fazer um grande inquérito – o maior alguma vez feito em Portugal – às instituições de solidariedade social e aos pobres, em parceria com o Centro de Estudos e Sondagens da Universidade Católica. O nosso objectivo é criar um observatório da pobreza em Portugal: não se pode aprovar políticas adequadas sem se conhecer a realidade. Na verdade, são dois inquéritos. Por um lado, quem são as instituições de solidariedade, quem são as pessoas que apoiam e quais as suas ideias para combater a pobreza. O segundo inquérito abrange 60 mil pessoas apoiadas por estas instituições e visa saber quem são os pobres e como vivem, para podermos cruzar a informação e apresentar a quem decide. Portanto, quanto à questão de ser ministra, aquilo que procuro é dar, a quem tem essa ambição política, ferramentas que permitam decidir correctamente.l
TOME NOTA. A 26 DE MAIO DESTE ANO EUROPEU DA LUTA CONTRA A POBREZA E A EXCLUSÃO SOCIAL, A IMPRENSA-NACIONAL CASA DA MOEDA LANÇA "UMA MOEDA CONTRA A FOME", EM QUE PARTE DAS VENDAS REVERTE PARA A FEDERAÇÃO PORTUGUESA DE BANCOS
Nasceu em Lisboa, em 1960. Aos 22 anos, concluiu o curso de Economia na Universidade Católica. Trabalhou primeiro na Sociedade Portuguesa de Seguros, depois na Assurances Général de France, em Bruxelas. Em 1987, integra o Comité Económico e Social das Comunidades Europeias, no qual permanece até 1993, altura em que regressa a Portugal. Para ajudar os filhos a integrar-se na sua «nova pátria», põe a sua carreira profissional em pausa. Com o tempo livre de que dispõe, decide colaborar com o Banco Alimentar. Apaixonou-se pelo projecto, foi ficando e acabou por se tornar voluntária a tempo inteiro — até hoje. «Vejo isto como uma missão de vida, como dedicação ao serviço», explica, sorridente. «E todos os dias essa missão é cumprida.» Actualmente, é membro do Conselho de Administração da Federação Europeia de Bancos Alimentares e presidente da Federação Portuguesa dos Bancos Alimentares Contra a Fome e do Banco Alimentar de Lisboa. Em acumulação, preside também à Entrajuda (www.entrajuda.pt), que fundou em 2004 com o propósito de apoiar as instituições de solidariedade social nos campos da gestão e da organização. Além de tudo isto, é casada e mãe de cinco filhos e, mesmo com tanto com que se preocupar, não abdica do tempo para a sua família: «Com organização, tudo na vida se faz», garante. «Gerindo bem, temos tempo para tudo.»
ALIMENTARES. NO ÚLTIMO FIM-DE-SEMANA DE MAIO (29-30), TEM LUGAR A HABITUAL CAMPANHA DE RECOLHA DE ALIMENTOS NOS SUPERMERCADOS PORTUGUESES. COMO VEM SENDO COSTUME, O MILLENNIUM BCP ASSOCIA-SE A ESTA INICIATIVA, PATROCINANDO OS SACOS DE PLÁSTICO ENTREGUES A QUEM PRETENDE COLABORAR. EM PARALELO, DECORRERÁ ATÉ 6 DE JUNHO A CAMPANHA “AJUDA VALE”, EM QUE OS BENS SÃO DOADOS ATRAVÉS DE VALES ADQUIRIDOS NAS CAIXAS DOS SUPERMERCADOS ADERENTES. SAIBA MAIS EM WWW.BANCOALIMENTAR.PT.
maio/junho 2010
magazine.77
ENTREVISTA
ENTREVISTA
ISABEL JONET
O BANCO ALIMENTAR É UMA INSTITUIÇÃO FORTE PORQUE TEM UM CONJUNTO DE VOLUNTÁRIOS QUE LHE DÃO CORPO. EU TENHO A SORTE DE SER UMA DESSAS VOLUNTÁRIAS.
em que há direitos e deveres. E um deles é precisamente não reintroduzir os produtos no mercado, porque não podemos alterar regras do mercado: se as empresas não venderam é porque não houve quem comprasse. Esses visitadores são voluntários?
Sim. Muitos deles são ex-quadros superiores que ainda têm tempo e vontade de trabalhar. É um trabalho muito gratificante porque, para além da supervisão, permite [no âmbito da Entrajuda] dar às instituições “inputs” na área da gestão. Na maioria das vezes, estas instituições têm à sua frente pessoas que são «santas» mas não têm conhecimentos de gestão. Já houve casos de instituições que tentassem vender os alimentos doados?
Já. E não necessariamente para ganhar dinheiro. Havia umas freiras que achavam que podiam pagar com alimentos a quem lhes fazia o transporte. Não é esse o valor dos produtos: só valem como alimento na mesa de quem precisa, não podem servir de moeda de troca. Já tivemos de rescindir acordos com instituições. Se se comprometem a determinadas regras e não cumprem, não podemos continuar a jogar com elas um jogo franco. Como é que o Banco Alimentar conseguiu a credibilidade que tem junto do público?
Há dois factores fundamentais. Primeiro, a transparência: quem quiser ver como é o Banco Alimentar pode cá vir. E as nossas contas, auditadas pela KPMG, estão publicadas. Além disso, o Banco Alimentar pede alimentos e não dinheiro – pedimo-lo apenas a um grupo restrito de pessoas. E depois, há a questão do voluntariado: colaboram diariamente neste Banco Alimentar 80 voluntários e apenas 11 assalariados, é uma estrutura tão leve quanto possível. O apoio que recebemos das pessoas, seja em produtos, dinheiro ou trabalho, é fundamental, tal como o é o apoio das empresas. O Millennium bcp, por exemplo, assegurará os sacos de plástico desta campanha. Além disso, sem publicidade, dá-nos todos os meses uma tonelada de atum. O Banco Alimentar não podia ser o que é sem o apoio das empresas, que nos oferecem os seguros, a publicidade, a contabilidade, a segurança alimentar (não há produto fora de prazo que saia daqui sem ser certificado por uma empresa de controlo sanitário), etc. São imensos apoios não-visíveis, de empresas que não precisam de mostrá-lo porque são verdadeiros mecenas. Rejeita o protagonismo. Mas não concorda que é necessário um rosto humano para credibilizar a instituição?
Na minha opinião, não. Todas as instituições têm um rosto. E eu sou o do Banco Alimentar, corra bem ou mal. No entanto, o protagonismo deve ser dado apenas ao Banco Alimentar. Aquilo que nós mais temos como certo na nossa vida é... o fim da 76.magazine
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nossa vida. Portanto, para qualquer pessoa sensata, [o importante] é que a obra se prolongue para além da sua vida. Não se deve confundir a própria vida com a das instituições. Esta instituição é forte porque tem um conjunto de voluntários que lhe dão corpo. Eu tenho a sorte de ser uma dessas voluntárias. Se fosse ministra da Solidariedade Social por um dia, por onde começava?
Eu nunca seria ministra da Solidariedade Social. Nem por um dia. Mas não acha que poderia fazer muita diferença?
Temos feito o que é possível fazer. Neste Ano Europeu de Luta Contra a Pobreza e a Exclusão Social, decidimos fazer um grande inquérito – o maior alguma vez feito em Portugal – às instituições de solidariedade social e aos pobres, em parceria com o Centro de Estudos e Sondagens da Universidade Católica. O nosso objectivo é criar um observatório da pobreza em Portugal: não se pode aprovar políticas adequadas sem se conhecer a realidade. Na verdade, são dois inquéritos. Por um lado, quem são as instituições de solidariedade, quem são as pessoas que apoiam e quais as suas ideias para combater a pobreza. O segundo inquérito abrange 60 mil pessoas apoiadas por estas instituições e visa saber quem são os pobres e como vivem, para podermos cruzar a informação e apresentar a quem decide. Portanto, quanto à questão de ser ministra, aquilo que procuro é dar, a quem tem essa ambição política, ferramentas que permitam decidir correctamente.l
TOME NOTA. A 26 DE MAIO DESTE ANO EUROPEU DA LUTA CONTRA A POBREZA E A EXCLUSÃO SOCIAL, A IMPRENSA-NACIONAL CASA DA MOEDA LANÇA "UMA MOEDA CONTRA A FOME", EM QUE PARTE DAS VENDAS REVERTE PARA A FEDERAÇÃO PORTUGUESA DE BANCOS
Nasceu em Lisboa, em 1960. Aos 22 anos, concluiu o curso de Economia na Universidade Católica. Trabalhou primeiro na Sociedade Portuguesa de Seguros, depois na Assurances Général de France, em Bruxelas. Em 1987, integra o Comité Económico e Social das Comunidades Europeias, no qual permanece até 1993, altura em que regressa a Portugal. Para ajudar os filhos a integrar-se na sua «nova pátria», põe a sua carreira profissional em pausa. Com o tempo livre de que dispõe, decide colaborar com o Banco Alimentar. Apaixonou-se pelo projecto, foi ficando e acabou por se tornar voluntária a tempo inteiro — até hoje. «Vejo isto como uma missão de vida, como dedicação ao serviço», explica, sorridente. «E todos os dias essa missão é cumprida.» Actualmente, é membro do Conselho de Administração da Federação Europeia de Bancos Alimentares e presidente da Federação Portuguesa dos Bancos Alimentares Contra a Fome e do Banco Alimentar de Lisboa. Em acumulação, preside também à Entrajuda (www.entrajuda.pt), que fundou em 2004 com o propósito de apoiar as instituições de solidariedade social nos campos da gestão e da organização. Além de tudo isto, é casada e mãe de cinco filhos e, mesmo com tanto com que se preocupar, não abdica do tempo para a sua família: «Com organização, tudo na vida se faz», garante. «Gerindo bem, temos tempo para tudo.»
ALIMENTARES. NO ÚLTIMO FIM-DE-SEMANA DE MAIO (29-30), TEM LUGAR A HABITUAL CAMPANHA DE RECOLHA DE ALIMENTOS NOS SUPERMERCADOS PORTUGUESES. COMO VEM SENDO COSTUME, O MILLENNIUM BCP ASSOCIA-SE A ESTA INICIATIVA, PATROCINANDO OS SACOS DE PLÁSTICO ENTREGUES A QUEM PRETENDE COLABORAR. EM PARALELO, DECORRERÁ ATÉ 6 DE JUNHO A CAMPANHA “AJUDA VALE”, EM QUE OS BENS SÃO DOADOS ATRAVÉS DE VALES ADQUIRIDOS NAS CAIXAS DOS SUPERMERCADOS ADERENTES. SAIBA MAIS EM WWW.BANCOALIMENTAR.PT.
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magazine.77
DISCURSO DIRECTO
TEXTO JOÃO MESTRE FOTOGRAFIA LUÍS DE BARROS
ANTÓNIO VICTORINO D’ALMEIDA MAESTRO D’OBRAS
arcamos encontro num restaurante junto à Sé de Lisboa. Quando ligo para reservar mesa, a resposta é automática: «Ah... o sr. maestro tem sempre mesa reservada aqui.» É um acanhado compartimento, ao canto da sala, a que chama de seu escritório. António Victorino D’Almeida chega rente à hora marcada, afável e sorridente. Um sorriso que frequentemente se solta em gargalhada – ri-se do cómico, do caricato, do adverso. Até daquilo que o entristece. Traz a postura de quem acredita (ou sabe) que o melhor está ainda para vir. Mesmo com uma carreira de mais de meio século que o coloca entre os compositores portugueses com mais obra feita. Segundo o seu “website” (www.antoniovictorinodalmeida.org), compôs, entre 1951 e 2003, 131 “opus”, incluindo inúmeras peças para cinema, televisão, teatro e ópera. Porém, não podemos retratá-lo apenas como compositor: fora dessas funções, é também pianista (com três discos lançados e longa carreira de concertista), realizador (de duas longas-metragens e um documentário), guionista (em televisão e cinema), encenador, escritor (com nove livros, não só sobre música, mas também de ficção e reportagem) e, embora não
M 56.magazine
novembro/dezembro 2009
novembro/dezembro 2009
magazine.57
DISCURSO DIRECTO
TEXTO JOÃO MESTRE FOTOGRAFIA LUÍS DE BARROS
ANTÓNIO VICTORINO D’ALMEIDA MAESTRO D’OBRAS
arcamos encontro num restaurante junto à Sé de Lisboa. Quando ligo para reservar mesa, a resposta é automática: «Ah... o sr. maestro tem sempre mesa reservada aqui.» É um acanhado compartimento, ao canto da sala, a que chama de seu escritório. António Victorino D’Almeida chega rente à hora marcada, afável e sorridente. Um sorriso que frequentemente se solta em gargalhada – ri-se do cómico, do caricato, do adverso. Até daquilo que o entristece. Traz a postura de quem acredita (ou sabe) que o melhor está ainda para vir. Mesmo com uma carreira de mais de meio século que o coloca entre os compositores portugueses com mais obra feita. Segundo o seu “website” (www.antoniovictorinodalmeida.org), compôs, entre 1951 e 2003, 131 “opus”, incluindo inúmeras peças para cinema, televisão, teatro e ópera. Porém, não podemos retratá-lo apenas como compositor: fora dessas funções, é também pianista (com três discos lançados e longa carreira de concertista), realizador (de duas longas-metragens e um documentário), guionista (em televisão e cinema), encenador, escritor (com nove livros, não só sobre música, mas também de ficção e reportagem) e, embora não
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novembro/dezembro 2009
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magazine.57
ANTÓNIO VICTORINO D’ALMEIDA
PERFIL FALADO
se veja como tal, actor. «Fiz só de conta, não se pode confundir um actor com alguém que ganhou um “casting”», desvaloriza. Curiosamente, embora seja muitas vezes referido como «maestro», não o é na comum designação de «chefe de orquestra» – já o fez várias vezes, mas não acha que seja a sua vocação. No entanto, «a palavra vem do italiano e equivale a “mestre”», logo não o incomoda que o tratem assim.
“AINDA ESTÃO POR ESCREVER AS MINHAS MELHORES OBRAS, OS MEUS MELHORES LIVROS, OS MEUS MELHORES FILMES.”
A bengala acompanha-o desde os 14 anos, embora não precise nem saiba bem como usá-la. «Há pouco tempo tive um problema num joelho, mas não sei como se coxeia com uma bengala.» A que traz foi-lhe oferecida pelo pai no seu 30º aniversário, conforme atesta o «21 de Maio de 1970» gravado na pega prateada. António Victorino Goulartt de Medeiros e Almeida nasceu em Lisboa, em 1940. Contudo, não se considera lisboeta. Ao concluir o curso de Piano do Conservatório Nacional com 19 valores, conseguiu uma bolsa para estudar Composição em Viena. Tinha então 20 anos. Por lá ficou outros 23. «O meu país é Portugal, mas a minha cidade é Viena.» A bolsa não chegava para tudo, pelo que teve de se «ir aguentando». Ganhava a vida como concertista, «o pianista de casaca, que toca Beethoven e Mozart». Até que, em 1974, é convidado para o posto de adido cultural na embaixada portuguesa. Nesses sete anos, abrandou a actividade de pianista mas não a de compositor. E embora a embaixada fosse «um sítio onde não se faz nada», acabou por fazer muita coisa: «Levei lá o Carlos Paredes, o Carlos do Carmo, um festival de cinema português, uma peça do Luís Francisco Rebello – foi a primeira vez que se fez teatro português na Áustria.» Pelos seus serviços em prol das relações culturais entre Portugal e a Áustria, a pátria de Mozart condecorou-o com a Grande Insígnia de Prata e a Cruz de Honra das Ciências e das Artes. O regresso a Portugal, em 1981, acabou por ser uma dura chamada à realidade. «A minha mãe morreu e o meu pai ficaria sozinho.» Mas é algo que recorda com orgulho: «Dei uns 20 anos de vida ao meu pai e durmo muito feliz por sabê-lo.» Custou-lhe também a readaptação a Lisboa. «Adoro o País, gosto de ser português, mas, à excepção da minha própria casa e destas quatro paredes [as do restaurante a que chama escritório], viver aqui é um pesadelo. Lisboa representa tudo o que há de saloio, de ignorante, de arrogante na sua ignorância.» Vem-lhe à memória um espectáculo que fez com Carlos do Carmo, no Castelo de São Jorge: «Ali no alto, olhei para a cidade, que é linda, linda, e disse ao Carlos, “Que pena ser aqui”.» Se hoje lhe oferecessem de novo o posto na embaixada, aceitava, «se fosse em Viena ou em Paris [onde vivem as filhas Maria e Inês]». «Se não, e se pudesse, vivia em Moledo.» O único motivo que o prende à capital é a família: «Tenho cá a minha filha mais nova e três netas.» É de Ana Victorino d’Almeida que fala, «uma excelente compositora e violinista que nunca quis ser solista», postura que garantiu um enorme respeito junto do pai-músico. Das três descendentes, é a única que seguiu as pisadas do pai, apesar de Maria 58.magazine
novembro/dezembro 2009
de Medeiros, a mais velha, também já ter gravado um disco: «A Maria é uma actriz (e realizadora) e, como tal, engendrou um espectáculo comovente em que actua como actriz que canta; ela não é uma cantora.» A filha do meio, Inês de Medeiros, para além de ser actriz e realizadora, acaba de ser eleita deputada – facto que António Victorino D’Almeida se recusa a comentar, ao receber o telefonema de um jornal que tenta em vão uma declaração. «Não estou contente nem descontente; tenho orgulho nela sim, pelo filme “Cartas a uma Ditadura”, por exemplo, que é maravilhoso», responde. «Olhe, e escreva o que eu disse!». Ao deixar a embaixada, ainda em Viena, formou um trio com o búlgaro Peter Marinoff e a austríaca Erika Pluhar, «também ela uma actriz que canta». Após a morte do guitarrista, continuou a actuar com Pluhar, agora em duo. Entre estes dois “ensembles” fez mais de 700 concertos, passando por algumas das principais salas europeias. Nenhuma outra colaboração – concretizada ou imaginária – o podia ter satisfeito mais: «A Erika é musicalmente genial e, contudo, não conhece uma nota de música. É de longe com quem tive a ligação musical mais fantástica.» Com ela gravou, entre outros, o disco “For Ever” (1996), uma colectânea de clássicos da Broadway. «Se fizesse um duo com o Frank Sinatra não seria melhor.» O seu trabalho está ainda longe de estar terminado. «Ainda me falta fazer o principal» sublinha. «Temos de pensar sempre que o principal está por fazer: ainda estão por escrever as minhas melhores obras, os meus melhores livros, os meus melhores filmes.» Ao responder, termina a conversa como a começou: a rir-se, às gargalhadas, até da adversidade. «Sinto-me feliz por ter a sorte de, apesar de todas as dificuldades – e tenho tido uma vida mesmo muito difícil –, só ter feito aquilo de que gosto.»
PERFIL FALADO
DATAS. 1940. Nasce em Lisboa, filho de António Victorino de Almeida e de Maria Amélia Goulartt de Medeiros Victorino de Almeida. 1946. Inicia-se no estudo da música. Em 1951,compõe os seus primeiros “opus”: “Tema e Variações” e “10 Peças Curtas”, ambos para piano. Dois anos depois, estreia-se como concertista. 1960. Termina o curso de Piano e recebe uma bolsa para estudar em Viena, onde se diploma (com classificação máxima) em Composição. 1965. Nasce a primeira filha, Maria, em Lisboa. Três anos depois, nasce Inês, em Viena. Ana, a mais nova, nasce em Poissy, em 1978.
1974. É convidado para o posto de adido cultural na embaixada portuguesa em Viena. 1980. “A Culpa”, o seu primeiro filme, é premiado no Festival de Huelva. 1981. Deixa a embaixada e inicia uma fértil colaboração com Erika Pluhar, com quem fez mais de 700 concertos e gravou vários discos. 1992. É eleito “o músico mais popular do País” pelos leitores da “TV Guia”. 2009. Lança o seu nono livro, “Tubarão 2000”. Com o apoio do Millennium bcp, grava três discos representativos da sua obra.
novembro/dezembro 2009
magazine.59
ANTÓNIO VICTORINO D’ALMEIDA
PERFIL FALADO
se veja como tal, actor. «Fiz só de conta, não se pode confundir um actor com alguém que ganhou um “casting”», desvaloriza. Curiosamente, embora seja muitas vezes referido como «maestro», não o é na comum designação de «chefe de orquestra» – já o fez várias vezes, mas não acha que seja a sua vocação. No entanto, «a palavra vem do italiano e equivale a “mestre”», logo não o incomoda que o tratem assim.
“AINDA ESTÃO POR ESCREVER AS MINHAS MELHORES OBRAS, OS MEUS MELHORES LIVROS, OS MEUS MELHORES FILMES.”
A bengala acompanha-o desde os 14 anos, embora não precise nem saiba bem como usá-la. «Há pouco tempo tive um problema num joelho, mas não sei como se coxeia com uma bengala.» A que traz foi-lhe oferecida pelo pai no seu 30º aniversário, conforme atesta o «21 de Maio de 1970» gravado na pega prateada. António Victorino Goulartt de Medeiros e Almeida nasceu em Lisboa, em 1940. Contudo, não se considera lisboeta. Ao concluir o curso de Piano do Conservatório Nacional com 19 valores, conseguiu uma bolsa para estudar Composição em Viena. Tinha então 20 anos. Por lá ficou outros 23. «O meu país é Portugal, mas a minha cidade é Viena.» A bolsa não chegava para tudo, pelo que teve de se «ir aguentando». Ganhava a vida como concertista, «o pianista de casaca, que toca Beethoven e Mozart». Até que, em 1974, é convidado para o posto de adido cultural na embaixada portuguesa. Nesses sete anos, abrandou a actividade de pianista mas não a de compositor. E embora a embaixada fosse «um sítio onde não se faz nada», acabou por fazer muita coisa: «Levei lá o Carlos Paredes, o Carlos do Carmo, um festival de cinema português, uma peça do Luís Francisco Rebello – foi a primeira vez que se fez teatro português na Áustria.» Pelos seus serviços em prol das relações culturais entre Portugal e a Áustria, a pátria de Mozart condecorou-o com a Grande Insígnia de Prata e a Cruz de Honra das Ciências e das Artes. O regresso a Portugal, em 1981, acabou por ser uma dura chamada à realidade. «A minha mãe morreu e o meu pai ficaria sozinho.» Mas é algo que recorda com orgulho: «Dei uns 20 anos de vida ao meu pai e durmo muito feliz por sabê-lo.» Custou-lhe também a readaptação a Lisboa. «Adoro o País, gosto de ser português, mas, à excepção da minha própria casa e destas quatro paredes [as do restaurante a que chama escritório], viver aqui é um pesadelo. Lisboa representa tudo o que há de saloio, de ignorante, de arrogante na sua ignorância.» Vem-lhe à memória um espectáculo que fez com Carlos do Carmo, no Castelo de São Jorge: «Ali no alto, olhei para a cidade, que é linda, linda, e disse ao Carlos, “Que pena ser aqui”.» Se hoje lhe oferecessem de novo o posto na embaixada, aceitava, «se fosse em Viena ou em Paris [onde vivem as filhas Maria e Inês]». «Se não, e se pudesse, vivia em Moledo.» O único motivo que o prende à capital é a família: «Tenho cá a minha filha mais nova e três netas.» É de Ana Victorino d’Almeida que fala, «uma excelente compositora e violinista que nunca quis ser solista», postura que garantiu um enorme respeito junto do pai-músico. Das três descendentes, é a única que seguiu as pisadas do pai, apesar de Maria 58.magazine
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de Medeiros, a mais velha, também já ter gravado um disco: «A Maria é uma actriz (e realizadora) e, como tal, engendrou um espectáculo comovente em que actua como actriz que canta; ela não é uma cantora.» A filha do meio, Inês de Medeiros, para além de ser actriz e realizadora, acaba de ser eleita deputada – facto que António Victorino D’Almeida se recusa a comentar, ao receber o telefonema de um jornal que tenta em vão uma declaração. «Não estou contente nem descontente; tenho orgulho nela sim, pelo filme “Cartas a uma Ditadura”, por exemplo, que é maravilhoso», responde. «Olhe, e escreva o que eu disse!». Ao deixar a embaixada, ainda em Viena, formou um trio com o búlgaro Peter Marinoff e a austríaca Erika Pluhar, «também ela uma actriz que canta». Após a morte do guitarrista, continuou a actuar com Pluhar, agora em duo. Entre estes dois “ensembles” fez mais de 700 concertos, passando por algumas das principais salas europeias. Nenhuma outra colaboração – concretizada ou imaginária – o podia ter satisfeito mais: «A Erika é musicalmente genial e, contudo, não conhece uma nota de música. É de longe com quem tive a ligação musical mais fantástica.» Com ela gravou, entre outros, o disco “For Ever” (1996), uma colectânea de clássicos da Broadway. «Se fizesse um duo com o Frank Sinatra não seria melhor.» O seu trabalho está ainda longe de estar terminado. «Ainda me falta fazer o principal» sublinha. «Temos de pensar sempre que o principal está por fazer: ainda estão por escrever as minhas melhores obras, os meus melhores livros, os meus melhores filmes.» Ao responder, termina a conversa como a começou: a rir-se, às gargalhadas, até da adversidade. «Sinto-me feliz por ter a sorte de, apesar de todas as dificuldades – e tenho tido uma vida mesmo muito difícil –, só ter feito aquilo de que gosto.»
PERFIL FALADO
DATAS. 1940. Nasce em Lisboa, filho de António Victorino de Almeida e de Maria Amélia Goulartt de Medeiros Victorino de Almeida. 1946. Inicia-se no estudo da música. Em 1951,compõe os seus primeiros “opus”: “Tema e Variações” e “10 Peças Curtas”, ambos para piano. Dois anos depois, estreia-se como concertista. 1960. Termina o curso de Piano e recebe uma bolsa para estudar em Viena, onde se diploma (com classificação máxima) em Composição. 1965. Nasce a primeira filha, Maria, em Lisboa. Três anos depois, nasce Inês, em Viena. Ana, a mais nova, nasce em Poissy, em 1978.
1974. É convidado para o posto de adido cultural na embaixada portuguesa em Viena. 1980. “A Culpa”, o seu primeiro filme, é premiado no Festival de Huelva. 1981. Deixa a embaixada e inicia uma fértil colaboração com Erika Pluhar, com quem fez mais de 700 concertos e gravou vários discos. 1992. É eleito “o músico mais popular do País” pelos leitores da “TV Guia”. 2009. Lança o seu nono livro, “Tubarão 2000”. Com o apoio do Millennium bcp, grava três discos representativos da sua obra.
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PERFIL FALADO
ANTÓNIO VICTORINO D’ALMEIDA
A
música sempre foi a sua grande paixão?
O meu segredo é que eu não considero a música uma paixão. A música é a minha profissão. Quando está de férias afasta-se da música?
De férias nunca estou, de facto. Mas também não me faz falta. No entanto, quando estou a escrever, sou um escritor. Quando estou a fazer televisão, estou a fazer televisão. Nesse período, não sou músico. A música é a minha profissão – essa história de «paixão»... os amadores é que são muito apaixonados.
PERFIL FALADO
compositores que nunca ouviram. Dizem que um é bom, que o outro é mau, mas se for a perguntar o que é que ouviram, a resposta é «nada»! Garanto-lhe que não estou a exagerar. Eu não exagero, o mundo à minha volta é que é exagerado. [risos]
“NÃO CONSIDERO A MÚSICA UMA PAIXÃO; É A MINHA PROFISSÃO. OS AMADORES É QUE SÃO APAIXONADOS.”
Em que se vai traduzir esse apoio do Millennium bcp?
São três discos. Tudo farei para conseguir – não é fácil – três discos verdadeiramente representativos do meu trabalho, incluindo várias peças sinfónicas. Costuma encontrar facilmente os seus discos à venda em Portugal?
A editora Numérica tem feito um belo trabalho. Produziu já mais de 100 discos de música portuguesa – no entanto, não os vemos em parte nenhuma. Não é a Numérica a culpada da má distribuição: são as lojas, que não querem receber porque não têm espaço físico. Continua a haver boas lojas de música clássica?
Lá está, são amadores, «amam»...
Claro, de certeza que sim. Bem, não há maior prova de amor por uma causa do que dedicar-lhe a sua vida profissionalmente. O maior «amador» é o profissional, nesse caso [risos]. Com o apoio do Millennium bcp, vai poder registar em disco algumas das suas obras...
Sim, o Millennium acedeu em patrocinar-me uma gravação de discos. Hoje em dia, a música que não está gravada não existe. Tenho 34 peças compostas; 29 já foram tocadas, algumas por várias vezes. É uma média fantástica para qualquer compositor, não tenho direito a queixar-me. A verdade é que isso é igual a zero: a «esmagadoríssima» maioria das pessoas nunca ouviu nada meu. Algumas só foram tocadas no estrangeiro. O que nós, músicos, queremos é que nossa música seja conhecida. E esta história de dizerem bem de nós – ou mal, tanto faz – sem terem ouvido nada, o que acontece com frequência... Por parte da crítica especializada?
Em Portugal, numa estranha musicologia que por aí existe, dão opiniões sobre
Não. Não vamos fazer propaganda, mas quando uma determinada cadeia internacional apareceu, matou tudo. Acabou a Strauss, que era uma excelente loja de música, a Roma, a livraria Buchholz. Essa cadeia absorveu tudo, como um eucalipto. Vende mais como escritor ou como músico?
Os meus livros já publicados estão todos esgotados excepto um – mas esse, «A Música Que Eu Conheço», são dois volumes, que perfazem umas mil páginas. Mesmo assim, tem-se vendido brutalmente. E as pessoas até me conhecem mais como escritor. Porque têm acesso aos livros, compram-nos. Como está a correr o lançamento do livro “Tubarão 2000”?
Ainda não foi lançado. Está à venda, mas ainda não foi oficialmente lançado. Acho que, depois das eleições [a entrevista decorreu em Setembro], se vai fazer o lançamento, com entrevistas, uma sessão de lançamento, etc. E vai haver um terceiro volume das aventuras de Marcelino Bandeira [protagonista de “Coca-Cola Killer” e “Tubarão 2000”]?
Do Marcelino? [risos] Há uma pessoa muito minha amiga que insiste nisso. Às vezes apetece-me voltar à personagem. Mas ela é cada vez menos importante – o mundo que a rodeia é muito mais sórdido do que a própria personagem. Acho que aquilo ainda daria um terceiro livro, mas não sei... Se fosse ministro da Cultura por um dia, o que gostaria de mudar?
[Risos] Obviamente, nunca me candidatei a tal lugar. Mas se me perguntar: «Era capaz de ser um bom ministro da Cultura?», eu seria hipócrita se dissesse que não. Claro que era! CLARO que era! E claro que melhorava muitas coisas. Mas não seria o único: há por aí muita gente capaz de melhorar as coisas. Só que não são os que lá têm estado. [risos]
O que é que vai mal?
Não vou dizer números porque não estou autorizado a fazê-lo, mas sei que as coisas são muito mais baratas do que se pensa. Se falar de uma política cultural em relação à música, comece por tirar três zeros: são acrescentados três zeros que vão não se sabe para onde. Mas não é para os músicos. Eu fiz um disco onde dei trabalho a 41 músicos de câmara – e todos eles ganharam bem. Um só disco do Ministério da Cultura, com três músicos, custou para aí [conta pelos dedos] quatro vezes mais dinheiro. E garanto-lhe que os músicos não ganharam mais, porque dois deles tinham já trabalhado comigo – e ganharam mais do que com o Ministério [risos]. Se fosse ministro, era por aí que pegava?
Um ministro da Cultura tem de ter ideias. As ideias não custam dinheiro. Dou-lhe um exemplo fantástico de política cultural inteligente: Viena tem várias igrejas famosas; uma delas é a Karlskirche, que teve de ser renovada. O tecto dessa igreja é uma espécie de «mini Capela Sistina». Mas não há qualquer acesso lá a cima; qualquer pessoa ligada a Viena lamenta a «fatalidade» de termos de ver aquilo a 60 metros de distância. Uma vez que estava tudo transformado em andaime, construíram um elevador para se poder chegar ao tecto, vê-lo de perto. Criaram uma oportunidade única na vida! Com o dinheiro das entradas pagaram as obras. A isto se chama inteligência. Essa história de dizer «sendo ministro da Cultura, o que é que ia fazer sem dinheiro?»: o zero não se multiplica, mas com pouco dinheiro e uma boa ideia pode-se fazer coisas. E é claro que eu era capaz de ser um bom ministro da Cultura. [risos] E é-me indiferente o [partido no] governo: numa democracia, a cultura é uma coisa suprapartidária.l novembro/dezembro 2009
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ANTÓNIO VICTORINO D’ALMEIDA
A
música sempre foi a sua grande paixão?
O meu segredo é que eu não considero a música uma paixão. A música é a minha profissão. Quando está de férias afasta-se da música?
De férias nunca estou, de facto. Mas também não me faz falta. No entanto, quando estou a escrever, sou um escritor. Quando estou a fazer televisão, estou a fazer televisão. Nesse período, não sou músico. A música é a minha profissão – essa história de «paixão»... os amadores é que são muito apaixonados.
PERFIL FALADO
compositores que nunca ouviram. Dizem que um é bom, que o outro é mau, mas se for a perguntar o que é que ouviram, a resposta é «nada»! Garanto-lhe que não estou a exagerar. Eu não exagero, o mundo à minha volta é que é exagerado. [risos]
“NÃO CONSIDERO A MÚSICA UMA PAIXÃO; É A MINHA PROFISSÃO. OS AMADORES É QUE SÃO APAIXONADOS.”
Em que se vai traduzir esse apoio do Millennium bcp?
São três discos. Tudo farei para conseguir – não é fácil – três discos verdadeiramente representativos do meu trabalho, incluindo várias peças sinfónicas. Costuma encontrar facilmente os seus discos à venda em Portugal?
A editora Numérica tem feito um belo trabalho. Produziu já mais de 100 discos de música portuguesa – no entanto, não os vemos em parte nenhuma. Não é a Numérica a culpada da má distribuição: são as lojas, que não querem receber porque não têm espaço físico. Continua a haver boas lojas de música clássica?
Lá está, são amadores, «amam»...
Claro, de certeza que sim. Bem, não há maior prova de amor por uma causa do que dedicar-lhe a sua vida profissionalmente. O maior «amador» é o profissional, nesse caso [risos]. Com o apoio do Millennium bcp, vai poder registar em disco algumas das suas obras...
Sim, o Millennium acedeu em patrocinar-me uma gravação de discos. Hoje em dia, a música que não está gravada não existe. Tenho 34 peças compostas; 29 já foram tocadas, algumas por várias vezes. É uma média fantástica para qualquer compositor, não tenho direito a queixar-me. A verdade é que isso é igual a zero: a «esmagadoríssima» maioria das pessoas nunca ouviu nada meu. Algumas só foram tocadas no estrangeiro. O que nós, músicos, queremos é que nossa música seja conhecida. E esta história de dizerem bem de nós – ou mal, tanto faz – sem terem ouvido nada, o que acontece com frequência... Por parte da crítica especializada?
Em Portugal, numa estranha musicologia que por aí existe, dão opiniões sobre
Não. Não vamos fazer propaganda, mas quando uma determinada cadeia internacional apareceu, matou tudo. Acabou a Strauss, que era uma excelente loja de música, a Roma, a livraria Buchholz. Essa cadeia absorveu tudo, como um eucalipto. Vende mais como escritor ou como músico?
Os meus livros já publicados estão todos esgotados excepto um – mas esse, «A Música Que Eu Conheço», são dois volumes, que perfazem umas mil páginas. Mesmo assim, tem-se vendido brutalmente. E as pessoas até me conhecem mais como escritor. Porque têm acesso aos livros, compram-nos. Como está a correr o lançamento do livro “Tubarão 2000”?
Ainda não foi lançado. Está à venda, mas ainda não foi oficialmente lançado. Acho que, depois das eleições [a entrevista decorreu em Setembro], se vai fazer o lançamento, com entrevistas, uma sessão de lançamento, etc. E vai haver um terceiro volume das aventuras de Marcelino Bandeira [protagonista de “Coca-Cola Killer” e “Tubarão 2000”]?
Do Marcelino? [risos] Há uma pessoa muito minha amiga que insiste nisso. Às vezes apetece-me voltar à personagem. Mas ela é cada vez menos importante – o mundo que a rodeia é muito mais sórdido do que a própria personagem. Acho que aquilo ainda daria um terceiro livro, mas não sei... Se fosse ministro da Cultura por um dia, o que gostaria de mudar?
[Risos] Obviamente, nunca me candidatei a tal lugar. Mas se me perguntar: «Era capaz de ser um bom ministro da Cultura?», eu seria hipócrita se dissesse que não. Claro que era! CLARO que era! E claro que melhorava muitas coisas. Mas não seria o único: há por aí muita gente capaz de melhorar as coisas. Só que não são os que lá têm estado. [risos]
O que é que vai mal?
Não vou dizer números porque não estou autorizado a fazê-lo, mas sei que as coisas são muito mais baratas do que se pensa. Se falar de uma política cultural em relação à música, comece por tirar três zeros: são acrescentados três zeros que vão não se sabe para onde. Mas não é para os músicos. Eu fiz um disco onde dei trabalho a 41 músicos de câmara – e todos eles ganharam bem. Um só disco do Ministério da Cultura, com três músicos, custou para aí [conta pelos dedos] quatro vezes mais dinheiro. E garanto-lhe que os músicos não ganharam mais, porque dois deles tinham já trabalhado comigo – e ganharam mais do que com o Ministério [risos]. Se fosse ministro, era por aí que pegava?
Um ministro da Cultura tem de ter ideias. As ideias não custam dinheiro. Dou-lhe um exemplo fantástico de política cultural inteligente: Viena tem várias igrejas famosas; uma delas é a Karlskirche, que teve de ser renovada. O tecto dessa igreja é uma espécie de «mini Capela Sistina». Mas não há qualquer acesso lá a cima; qualquer pessoa ligada a Viena lamenta a «fatalidade» de termos de ver aquilo a 60 metros de distância. Uma vez que estava tudo transformado em andaime, construíram um elevador para se poder chegar ao tecto, vê-lo de perto. Criaram uma oportunidade única na vida! Com o dinheiro das entradas pagaram as obras. A isto se chama inteligência. Essa história de dizer «sendo ministro da Cultura, o que é que ia fazer sem dinheiro?»: o zero não se multiplica, mas com pouco dinheiro e uma boa ideia pode-se fazer coisas. E é claro que eu era capaz de ser um bom ministro da Cultura. [risos] E é-me indiferente o [partido no] governo: numa democracia, a cultura é uma coisa suprapartidária.l novembro/dezembro 2009
magazine.61
PERFIL FALADO
EM DISCURSO DIRECTO. Não gosto de falar em «música clássica»,
porque «clássica» é dos tempos do Mozart. É «música».
A música ligeira não tem de ser comparada à música, são duas artes diferentes. E isto não é nenhum insulto. Há aquela teoria de que isto é elitismo, mas é o mesmo que o Rockfeller chamar elitista ao mendigo: Nós somos uns pindéricos, não temos onde cair mortos! Foi-me explicado pelo empregado de uma loja – de longe, a maior – que só pediam três exemplares de cada vez porque não tinham espaço físico para mais. Ou seja: é bom sinal quando o compositor não está representado na estante. Se lá estiver, pensa-se logo: «Este desgraçado está aqui porque ninguém compra.» Há uns 10 anos, fiz um trabalho na televisão. A Maria do Céu Guerra pediu-me que fizesse uma brincadeira a
fingir que era actor. Quando me falaram em fazer 40 episódios, pensei: «Vou ganhar dinheiro! Mas vou aplicá-lo em música, para não me auto-acusar de me estar a dispersar.» Gravei cinco discos com o dinheiro que ganhei nessa coisa. Sou totalmente contra o conceito do fundo perdido. As coisas devem ser feitas com o intuito de serem remuneradas e de não onerarem (ou onerarem o menos possível) quem as patrocina, seja o Estado, seja o privado. A cultura deve ser um investimento. Para mim há três ministérios que deviam ser prioritários: Educação, Saúde e Cultura. Sendo que há um que é barato, o da Cultura – ao contrário do que dizem. É possível fazer cultura com pouco dinheiro. Se não o fosse, eu não estava aqui a fazer o meu melhor: sou a prova viva de que é possível fazer coisas boas com pouco dinheiro. Em 1989, concorri ao Parlamento Europeu. O MDP/CDE convidou-me como independente, por considerar que em Estrasburgo não está – que eu saiba, continua a não estar – ninguém para defender os problemas da cultura portuguesa. Perdi por 300 e tal votos.
EU NÃO EXAGERO, O MUNDO À MINHA VOLTA É QUE É EXAGERADO.
APOSTA MILLENNIUM.
.Os três CD de António Victorino D’Almeida patrocinados pelo Millennium bcp constituem uma selecção já representativa da obra do compositor, que irá perfazer em 2010 os 70 anos de vida e 55 de carreira. O primeiro desses discos apresenta duas obras sinfónicas concebidas para grandes orquestras: a Sinfonia nº2 e o Concertino para Orquestra, ambas peças de assinalável riqueza instrumental.
.O segundo disc peças do compositor: a Sinfonia nº3, dedicada a Viana do Castelo, e a Sinfonia nº 4, dedicada à cidade do Funchal. São também duas obras de iniludíveis características sinfónicas, embora escritas para orquestras de tamanho mais reduzido. Trata-se da primeira gravação, especialmente feita para publicação em CD, pela Filarmónica das Beiras.
.O terceiro disco inclui algumas obras ainda praticamente desconhecidas de António Victorino D’Almeida nos terrenos da música de câmara: “Dinis e Isabel”, sobre o magnífico texto de António Patrício; duas evocações de figuras já desaparecidas e ligadas à vida do compositor; dois decatetos executados pela Orquestra Utópica, dirigida pelo jovem compositor Nuno Côrte-Real; e ainda uma peça de câmara que o autor elege como uma das suas preferidas, “O Pássaro que salvou o mundo”.
O meu primeiro instrumento foi a bateria, aos 5 anos. É evidente que na minha música a percussão desempenha um papel preponderante. Os organizadores dos concertos ficam furiosos comigo porque sabem que têm de pagar percussionistas a mais. Quando eu era pequeno, havia um piano em minha casa. Ao contrário do que é comum com as criancinhas – que chegam aos pianos e... [faz o gesto de tamborilar nas teclas com os dedos] –, eu nunca brinquei com o piano. Só me interessei a partir do momento em que me ensinaram a tocar nele. Percebi imediatamente que a música seria a minha vida. E com desgosto, porque o que eu queria era ser zoólogo - e ainda hoje estou frustrado por isso. Mas percebi que estava tramado: a coisa começou a sair demasiado bem na música. Não, não estou ligado ao Festival Vilar de Mouros. Isso é uma história que anunciaram. Não tenho nada que ver com aquilo. É um crime destruir uma aldeia para fazer um festival – nem que fosse um festival de Wagner. Sim, estive ligado à primeira edição [1971]. Mas aí havia uma aldeia. No ano passado, vieram-me falar que eu deveria regressar. Mas o café requentado... 62.magazine
novembro/dezembro 2009
* Cada um dos novos CD estará à venda no final de 2009. A caixa com a colecção completa é uma edição limitada do Millennium bcp.
novembro/dezembro 2009
magazine.63
PERFIL FALADO
EM DISCURSO DIRECTO. Não gosto de falar em «música clássica»,
porque «clássica» é dos tempos do Mozart. É «música».
A música ligeira não tem de ser comparada à música, são duas artes diferentes. E isto não é nenhum insulto. Há aquela teoria de que isto é elitismo, mas é o mesmo que o Rockfeller chamar elitista ao mendigo: Nós somos uns pindéricos, não temos onde cair mortos! Foi-me explicado pelo empregado de uma loja – de longe, a maior – que só pediam três exemplares de cada vez porque não tinham espaço físico para mais. Ou seja: é bom sinal quando o compositor não está representado na estante. Se lá estiver, pensa-se logo: «Este desgraçado está aqui porque ninguém compra.» Há uns 10 anos, fiz um trabalho na televisão. A Maria do Céu Guerra pediu-me que fizesse uma brincadeira a
fingir que era actor. Quando me falaram em fazer 40 episódios, pensei: «Vou ganhar dinheiro! Mas vou aplicá-lo em música, para não me auto-acusar de me estar a dispersar.» Gravei cinco discos com o dinheiro que ganhei nessa coisa. Sou totalmente contra o conceito do fundo perdido. As coisas devem ser feitas com o intuito de serem remuneradas e de não onerarem (ou onerarem o menos possível) quem as patrocina, seja o Estado, seja o privado. A cultura deve ser um investimento. Para mim há três ministérios que deviam ser prioritários: Educação, Saúde e Cultura. Sendo que há um que é barato, o da Cultura – ao contrário do que dizem. É possível fazer cultura com pouco dinheiro. Se não o fosse, eu não estava aqui a fazer o meu melhor: sou a prova viva de que é possível fazer coisas boas com pouco dinheiro. Em 1989, concorri ao Parlamento Europeu. O MDP/CDE convidou-me como independente, por considerar que em Estrasburgo não está – que eu saiba, continua a não estar – ninguém para defender os problemas da cultura portuguesa. Perdi por 300 e tal votos.
EU NÃO EXAGERO, O MUNDO À MINHA VOLTA É QUE É EXAGERADO.
APOSTA MILLENNIUM.
.Os três CD de António Victorino D’Almeida patrocinados pelo Millennium bcp constituem uma selecção já representativa da obra do compositor, que irá perfazer em 2010 os 70 anos de vida e 55 de carreira. O primeiro desses discos apresenta duas obras sinfónicas concebidas para grandes orquestras: a Sinfonia nº2 e o Concertino para Orquestra, ambas peças de assinalável riqueza instrumental.
.O segundo disc peças do compositor: a Sinfonia nº3, dedicada a Viana do Castelo, e a Sinfonia nº 4, dedicada à cidade do Funchal. São também duas obras de iniludíveis características sinfónicas, embora escritas para orquestras de tamanho mais reduzido. Trata-se da primeira gravação, especialmente feita para publicação em CD, pela Filarmónica das Beiras.
.O terceiro disco inclui algumas obras ainda praticamente desconhecidas de António Victorino D’Almeida nos terrenos da música de câmara: “Dinis e Isabel”, sobre o magnífico texto de António Patrício; duas evocações de figuras já desaparecidas e ligadas à vida do compositor; dois decatetos executados pela Orquestra Utópica, dirigida pelo jovem compositor Nuno Côrte-Real; e ainda uma peça de câmara que o autor elege como uma das suas preferidas, “O Pássaro que salvou o mundo”.
O meu primeiro instrumento foi a bateria, aos 5 anos. É evidente que na minha música a percussão desempenha um papel preponderante. Os organizadores dos concertos ficam furiosos comigo porque sabem que têm de pagar percussionistas a mais. Quando eu era pequeno, havia um piano em minha casa. Ao contrário do que é comum com as criancinhas – que chegam aos pianos e... [faz o gesto de tamborilar nas teclas com os dedos] –, eu nunca brinquei com o piano. Só me interessei a partir do momento em que me ensinaram a tocar nele. Percebi imediatamente que a música seria a minha vida. E com desgosto, porque o que eu queria era ser zoólogo - e ainda hoje estou frustrado por isso. Mas percebi que estava tramado: a coisa começou a sair demasiado bem na música. Não, não estou ligado ao Festival Vilar de Mouros. Isso é uma história que anunciaram. Não tenho nada que ver com aquilo. É um crime destruir uma aldeia para fazer um festival – nem que fosse um festival de Wagner. Sim, estive ligado à primeira edição [1971]. Mas aí havia uma aldeia. No ano passado, vieram-me falar que eu deveria regressar. Mas o café requentado... 62.magazine
novembro/dezembro 2009
* Cada um dos novos CD estará à venda no final de 2009. A caixa com a colecção completa é uma edição limitada do Millennium bcp.
novembro/dezembro 2009
magazine.63
PERFIL FALADO
TEXTO JOÃO MESTRE FOTOGRAFIA LUIS DE BARROS
Do fundo da alma O SUCESSO CAIU-LHE EM CIMA AOS 23 ANOS. O SEU DISCO DE ESTREIA ALCANÇOU A MARCA DE PLATINA, TEM AGENDADA UMA DIGRESSÃO NACIONAL E ESTÁ NOMEADA PARA TRÊS GLOBOS DE OURO. MAS A REVELAÇÃO DA “SOUL” “MADE IN PORTUGAL” NÃO ESQUECE O MAIS IMPORTANTE: MANTER OS PÉS BEM ASSENTES NO CHÃO. 20.magazine
maio/junho 2011
maio/junho 2011
magazine.21
PERFIL FALADO
TEXTO JOÃO MESTRE FOTOGRAFIA LUIS DE BARROS
Do fundo da alma O SUCESSO CAIU-LHE EM CIMA AOS 23 ANOS. O SEU DISCO DE ESTREIA ALCANÇOU A MARCA DE PLATINA, TEM AGENDADA UMA DIGRESSÃO NACIONAL E ESTÁ NOMEADA PARA TRÊS GLOBOS DE OURO. MAS A REVELAÇÃO DA “SOUL” “MADE IN PORTUGAL” NÃO ESQUECE O MAIS IMPORTANTE: MANTER OS PÉS BEM ASSENTES NO CHÃO. 20.magazine
maio/junho 2011
maio/junho 2011
magazine.21
PERFIL FALADO
Há planos para a internacionalização?» Em todas as entrevistas, a pergunta repete-se. A resposta pouco varia: «Não penso muito nisso.» O importante, garante, é viver o presente, um dia de cada vez, até porque a magnífica recepção que o seu álbum de estreia tem tido – atingiu já a marca de platina, por vendas superiores a 20 mil cópias – é coisa que nem em sonhos ousou imaginar. «Talvez um dia», deixa no ar, como que lembrando que qualquer artista que se leve minimamente a sério tem o desejo (mesmo que secreto) de exportar a sua música. E não haja dúvidas: Aurea leva o seu trabalho muito a sério. Depois de ouvir o epónimo disco de estreia, custa acreditar que uma voz tão corpulenta e matura saia desta delicada menina de riso solto e 24 anos por cumprir. Uma voz que não precisou de lições nem truques de algibeira, apenas o devido encorajamento familiar. «A minha mãe diz que em pequenina, ainda mal falava, já cantarolava.» Claro que crescer numa casa cheia de música – um pai que toca e canta fado, uma mãe «envergonhada mas com uma voz lindíssima» e um irmão guitarrista – ajudou muito. O mais curioso é que só muito recentemente encarou a hipótese de ganhar a vida a cantar. Quis ser parteira, depois psicóloga e, na hora de escolher um curso, acabou por ir para Teatro, na Universidade de Évora. Até que o seu amigo Rui Ribeiro, estudante de música na mesma escola, a ouviu cantar e tudo começou a acontecer: compôs uma música à medida da sua voz, gravaram-na e Rui apresentou a “demo” à Blim Records. A resposta da produtora de Mem Martins foi quase imediata. «Vamos gravar um disco?» Gravaram. As prioridades inverteram-se, com o curso relegado para segundo (ou terceiro) plano. «Faltam-me só algumas cadeiras do último ano, mas não sei se vou querer terminar.» Pelo sim, pelo não, congelou a matrícula. No fundo, cantar e representar são dois talentos que se complementam. «Há o exemplo da Lúcia Moniz, que faz muito bem as duas coisas», afirma, reconhecendo que «talvez mais tarde sinta a necessidade de retomar a paixão pela representação». Percebe-se que o futuro, no sentido de horizonte temporal longínquo e difuso, não é um dos seus temas de conversa preferidos. E esquiva-se a respostas demasiado sonhadoras ou idealistas. «Se pudesse escolher, quem gostaria de ter a compor para si?», pergunto. «Neste momento, não consigo pensar noutra pessoa que não o Rui Ribeiro» – o tal amigo que a «empurrou» para o “showbizz”, co-autor de nove dos doze temas do disco, responsável também pelos arranjos, pelas linhas de piano e pela direcção musical. Aurea não compõe. Ainda. «Não tenho maturidade para isso.» Mas está já a pensar num segundo disco, no qual espera estar a trabalhar daqui a um ano. «Gostaria de fazer algo mais “rough”, mais “old school”.» O que não é de estranhar: uma das suas principais forças inspiradoras está na “soul” clássica de Aretha Franklin, Otis Redding e tantos outros – com uma óbvia piscadela de olho às vozes da nova vaga, com Joss Stone à cabeça.
“NÃO GOSTO DE INVENTAR PERSONAGENS NEM DE ASSUMIR PAPÉIS: QUANDO VOU PARA O PALCO SOU EU.”
No ano em que Aretha Franklin, Marvin Gaye e Smokey Robinson viram os seus nomes inscritos no mítico Rock n’ Roll Hall of Fame, nascia, em Santiago do Cacém, Áurea Sousa (o acento só viria a cair muito mais tarde, na hora de trocar o teatro pela música). Em pequena, mudou-se com a família para Silves, onde cresceu e estudou até à altura de ir para a universidade – e regressar ao seu Alentejo natal. Daí que se considere 22.magazine
maio/junho 2011
tão algarvia quanto alentejana. À excepção de alguns pormenores quase imperceptíveis, nenhuma das proveniências se faz notar na sua forma de falar. «Aqui em Lisboa o meu sotaque fica mais neutro. Quando volto ao Algarve e começo a falar com os meus pais e amigos, começa logo a agravar.» Cantar sempre foi algo natural – quer em casa, quer na escola, acompanhada por amigas que tocavam guitarra. Isto se descontarmos a sua primeira actuação em público, na festa de Natal do infantário: «Assim que subi ao palco e me vi com tanta gente à frente, desatei a chorar», conta, entre risos. Falando de palcos a sério, teve o baptismo de fogo no Pavilhão Atlântico, num espectáculo da série televisiva “Morangos com Açúcar”, em 2008. Uma vez mais, diante da plateia, sentiu um aperto. No entanto, no momento de soltar a primeira nota deixou-se levar, «saiu tudo automaticamente». «Descobri uma força interior que nunca pensei que tivesse cá dentro.» Hoje, com um disco que teima em não sair do topo da tabela nacional de vendas, três nomeações para os Globos de Ouro (Revelação do ano, Melhor intérprete individual e Melhor música) e uma concorrida digressão de Verão em agenda – com passagem pelo Casino de Tróia (17/6) e pelos festivais Delta Tejo (2/7) e Marés Vivas (16/7) –, ainda se mantém o nervosismo pré-concerto. «Mas passa mal entro em cena e começo a cantar.» Invariavelmente, Aurea sobe ao palco descalça. Um pormenor que não tem qualquer significado especial nem a intenção de forçar uma imagem de marca; é apenas uma questão de conforto, garante. «Não gosto de inventar personagens nem de assumir outros papéis: quando vou para o palco sou eu.» Embora tenha sido, de certa forma, apanhada de surpresa pelo sucesso que a sua estreia está a ter, Aurea não demonstra quaisquer sinais de deslumbramento. «Gosto muito de ser quem sou e é algo que defendo desde o princípio: não vou deixar de ser eu por nada.» Assim seja. É com os pés no chão que se trilha o caminho do sucesso. maio/junho 2011
magazine.23
PERFIL FALADO
Há planos para a internacionalização?» Em todas as entrevistas, a pergunta repete-se. A resposta pouco varia: «Não penso muito nisso.» O importante, garante, é viver o presente, um dia de cada vez, até porque a magnífica recepção que o seu álbum de estreia tem tido – atingiu já a marca de platina, por vendas superiores a 20 mil cópias – é coisa que nem em sonhos ousou imaginar. «Talvez um dia», deixa no ar, como que lembrando que qualquer artista que se leve minimamente a sério tem o desejo (mesmo que secreto) de exportar a sua música. E não haja dúvidas: Aurea leva o seu trabalho muito a sério. Depois de ouvir o epónimo disco de estreia, custa acreditar que uma voz tão corpulenta e matura saia desta delicada menina de riso solto e 24 anos por cumprir. Uma voz que não precisou de lições nem truques de algibeira, apenas o devido encorajamento familiar. «A minha mãe diz que em pequenina, ainda mal falava, já cantarolava.» Claro que crescer numa casa cheia de música – um pai que toca e canta fado, uma mãe «envergonhada mas com uma voz lindíssima» e um irmão guitarrista – ajudou muito. O mais curioso é que só muito recentemente encarou a hipótese de ganhar a vida a cantar. Quis ser parteira, depois psicóloga e, na hora de escolher um curso, acabou por ir para Teatro, na Universidade de Évora. Até que o seu amigo Rui Ribeiro, estudante de música na mesma escola, a ouviu cantar e tudo começou a acontecer: compôs uma música à medida da sua voz, gravaram-na e Rui apresentou a “demo” à Blim Records. A resposta da produtora de Mem Martins foi quase imediata. «Vamos gravar um disco?» Gravaram. As prioridades inverteram-se, com o curso relegado para segundo (ou terceiro) plano. «Faltam-me só algumas cadeiras do último ano, mas não sei se vou querer terminar.» Pelo sim, pelo não, congelou a matrícula. No fundo, cantar e representar são dois talentos que se complementam. «Há o exemplo da Lúcia Moniz, que faz muito bem as duas coisas», afirma, reconhecendo que «talvez mais tarde sinta a necessidade de retomar a paixão pela representação». Percebe-se que o futuro, no sentido de horizonte temporal longínquo e difuso, não é um dos seus temas de conversa preferidos. E esquiva-se a respostas demasiado sonhadoras ou idealistas. «Se pudesse escolher, quem gostaria de ter a compor para si?», pergunto. «Neste momento, não consigo pensar noutra pessoa que não o Rui Ribeiro» – o tal amigo que a «empurrou» para o “showbizz”, co-autor de nove dos doze temas do disco, responsável também pelos arranjos, pelas linhas de piano e pela direcção musical. Aurea não compõe. Ainda. «Não tenho maturidade para isso.» Mas está já a pensar num segundo disco, no qual espera estar a trabalhar daqui a um ano. «Gostaria de fazer algo mais “rough”, mais “old school”.» O que não é de estranhar: uma das suas principais forças inspiradoras está na “soul” clássica de Aretha Franklin, Otis Redding e tantos outros – com uma óbvia piscadela de olho às vozes da nova vaga, com Joss Stone à cabeça.
“NÃO GOSTO DE INVENTAR PERSONAGENS NEM DE ASSUMIR PAPÉIS: QUANDO VOU PARA O PALCO SOU EU.”
No ano em que Aretha Franklin, Marvin Gaye e Smokey Robinson viram os seus nomes inscritos no mítico Rock n’ Roll Hall of Fame, nascia, em Santiago do Cacém, Áurea Sousa (o acento só viria a cair muito mais tarde, na hora de trocar o teatro pela música). Em pequena, mudou-se com a família para Silves, onde cresceu e estudou até à altura de ir para a universidade – e regressar ao seu Alentejo natal. Daí que se considere 22.magazine
maio/junho 2011
tão algarvia quanto alentejana. À excepção de alguns pormenores quase imperceptíveis, nenhuma das proveniências se faz notar na sua forma de falar. «Aqui em Lisboa o meu sotaque fica mais neutro. Quando volto ao Algarve e começo a falar com os meus pais e amigos, começa logo a agravar.» Cantar sempre foi algo natural – quer em casa, quer na escola, acompanhada por amigas que tocavam guitarra. Isto se descontarmos a sua primeira actuação em público, na festa de Natal do infantário: «Assim que subi ao palco e me vi com tanta gente à frente, desatei a chorar», conta, entre risos. Falando de palcos a sério, teve o baptismo de fogo no Pavilhão Atlântico, num espectáculo da série televisiva “Morangos com Açúcar”, em 2008. Uma vez mais, diante da plateia, sentiu um aperto. No entanto, no momento de soltar a primeira nota deixou-se levar, «saiu tudo automaticamente». «Descobri uma força interior que nunca pensei que tivesse cá dentro.» Hoje, com um disco que teima em não sair do topo da tabela nacional de vendas, três nomeações para os Globos de Ouro (Revelação do ano, Melhor intérprete individual e Melhor música) e uma concorrida digressão de Verão em agenda – com passagem pelo Casino de Tróia (17/6) e pelos festivais Delta Tejo (2/7) e Marés Vivas (16/7) –, ainda se mantém o nervosismo pré-concerto. «Mas passa mal entro em cena e começo a cantar.» Invariavelmente, Aurea sobe ao palco descalça. Um pormenor que não tem qualquer significado especial nem a intenção de forçar uma imagem de marca; é apenas uma questão de conforto, garante. «Não gosto de inventar personagens nem de assumir outros papéis: quando vou para o palco sou eu.» Embora tenha sido, de certa forma, apanhada de surpresa pelo sucesso que a sua estreia está a ter, Aurea não demonstra quaisquer sinais de deslumbramento. «Gosto muito de ser quem sou e é algo que defendo desde o princípio: não vou deixar de ser eu por nada.» Assim seja. É com os pés no chão que se trilha o caminho do sucesso. maio/junho 2011
magazine.23
AUREA
orquê Aurea sem acento?
É mais simples. Não foi uma coisa muito pensada. É só para não ter aquele acento ali a «sujar». Assim é mais directo. Faz sentido chamar “soul” àquilo que canta? Ou dá-lhe outro nome?
É uma mistura muito grande. O disco tem vários estilos e eu não gosto de etiquetá-lo com um só. Pode-se dizer que na maioria será “soul”. Mas estão lá muito mais coisas. Prefiro que as pessoas ouçam e julguem por si. Revê-se mais na “soul” clássica ou na nova?
Eu gosto muito da “soul” clássica. E gostaria de fazer um próximo trabalho mais “rough”, mais “old school”, mas também gosto muito da “neo soul”. A Joss Stone, por exemplo. Adoro o trabalho dela, é uma das minhas maiores influências. Que músicas não poderiam faltar num disco de versões gravado pela Aurea?
Um disco de versões? [pausa] Adoro o “A Natural Woman”, da Aretha Franklin. “Try Me”, do James Brown. [nova pausa] “It’s a Man’s World”, também do James Brown… Há tantos temas, é complicado escolher. Imagina-se noutros territórios musicais, nomeadamente o fado, pela sua «tradição» familiar?
Adoro fado. E adoro ouvir cantar fado. Mas não sou uma cantora de fado: prefiro ouvi-lo por quem o sabe fazer, com todo o seu esplendor.
mesmo dentro do espectáculo. Embora eu não tenha nada que me queixar de nenhum público, o do São Jorge marcou-me muito. Manter a voz em forma exige muitos sacrifícios?
Hmm… não! [risos] Não tenho de ter cuidados exagerados, como aquela história de não se poder beber bebidas frias, por exemplo. Posso bebê-las de vez em quando, até porque sabe bem. Mas se tiver um concerto amanhã ou depois de amanhã, evito ir para um ambiente com muito fumo, para me resguardar. E tenho de ter as horas de sono todas em dia – aquelas oito horinhas têm de ser escrupulosamente cumpridas. De resto, não tenho grandes cuidados. O segredo é não exagerar. Que faz quando não está a cantar?
Dou entrevistas, ensaio. Gosto de estar em casa, a ver filmes e comer pipocas. Gosto de beber o meu “cappuccino”, ir ao cinema, passear pela praia. E de estar com a minha família. Tenho uma vida calma. O que mais a assusta no sucesso?
Como foi a primeira vez que pisou um grande palco?
Nunca tinha cantado para tanta gente. Foi num concerto dos “Morangos com Açúcar”, no Pavilhão Atlântico. Fiz dois duetos e cantei o “Ok, Alright”. Foi uma prova de fogo. Estava tão nervosa… Mas correu muito bem. Imaginava que seria mais difícil?
Muito mais difícil. Antes de pisar o palco, sim, foi realmente complicado. A primeira música foi o “No One” [original de Alicia Keys], um dueto com o Paulo Vintém. Eu não cantava na primeira parte, então fiquei a olhar para o público e a pensar «O que vou fazer? Vais conseguir, Aurea? Está aqui tanta gente…» Certo é que, quando chegou a vez de entrar, não pensei em nada. Saiu tudo automaticamente. Adorei, foi uma experiência brutal. Antes disso, teve uma banda de “covers”. Foi uma boa escola de palco?
Sim, tocámos durante um ano num bar em Lisboa. Foi muito bom para ganhar cumplicidade com os músicos – muitos deles são os que me acompanham agora –, experiência com o público, à-vontade e resistência física. Nunca tinha cantado a sério duas horas seguidas. Foi uma experiência muito valiosa. Dos seus espectáculos até à data, qual foi o mais memorável?
O de Portimão, em Abril, foi muito emotivo. Tinha lá os meus pais, avós e amigos do Algarve. Mas o do São Jorge [Lisboa] também foi muito bom, muito forte. Vai ficar para sempre na minha memória. O público começou a levantar-se e a aplaudir, estavam 24.magazine
maio/junho 2011
Ainda é um pouco cedo para falar desse tipo de coisas… Talvez a parte da vida privada, que gosto muito de manter reservada. Até ao momento não tive problemas: as pessoas lidam bem com a diferença Aurea-cantora / Aurea-pessoa. Mas gosto de manter a minha família e os amigos num cantinho. E tenho algum medo que isso se perca. Como é o contacto com as pessoas na rua?
São mesmo muito queridas. Gostam do trabalho e fazem questão de dizê-lo, dão-me força. Até agora só tenho coisas boas. Não posso apontar nada de mau. Espero continuar assim. Que parte desta vida mais lhe agrada?
Fazer aquilo de que gosto. Sem dúvida. Deram-me essa oportunidade. E mais uma vez agradeço muito. maio/junho 2011
magazine.25
AUREA
orquê Aurea sem acento?
É mais simples. Não foi uma coisa muito pensada. É só para não ter aquele acento ali a «sujar». Assim é mais directo. Faz sentido chamar “soul” àquilo que canta? Ou dá-lhe outro nome?
É uma mistura muito grande. O disco tem vários estilos e eu não gosto de etiquetá-lo com um só. Pode-se dizer que na maioria será “soul”. Mas estão lá muito mais coisas. Prefiro que as pessoas ouçam e julguem por si. Revê-se mais na “soul” clássica ou na nova?
Eu gosto muito da “soul” clássica. E gostaria de fazer um próximo trabalho mais “rough”, mais “old school”, mas também gosto muito da “neo soul”. A Joss Stone, por exemplo. Adoro o trabalho dela, é uma das minhas maiores influências. Que músicas não poderiam faltar num disco de versões gravado pela Aurea?
Um disco de versões? [pausa] Adoro o “A Natural Woman”, da Aretha Franklin. “Try Me”, do James Brown. [nova pausa] “It’s a Man’s World”, também do James Brown… Há tantos temas, é complicado escolher. Imagina-se noutros territórios musicais, nomeadamente o fado, pela sua «tradição» familiar?
Adoro fado. E adoro ouvir cantar fado. Mas não sou uma cantora de fado: prefiro ouvi-lo por quem o sabe fazer, com todo o seu esplendor.
mesmo dentro do espectáculo. Embora eu não tenha nada que me queixar de nenhum público, o do São Jorge marcou-me muito. Manter a voz em forma exige muitos sacrifícios?
Hmm… não! [risos] Não tenho de ter cuidados exagerados, como aquela história de não se poder beber bebidas frias, por exemplo. Posso bebê-las de vez em quando, até porque sabe bem. Mas se tiver um concerto amanhã ou depois de amanhã, evito ir para um ambiente com muito fumo, para me resguardar. E tenho de ter as horas de sono todas em dia – aquelas oito horinhas têm de ser escrupulosamente cumpridas. De resto, não tenho grandes cuidados. O segredo é não exagerar. Que faz quando não está a cantar?
Dou entrevistas, ensaio. Gosto de estar em casa, a ver filmes e comer pipocas. Gosto de beber o meu “cappuccino”, ir ao cinema, passear pela praia. E de estar com a minha família. Tenho uma vida calma. O que mais a assusta no sucesso?
Como foi a primeira vez que pisou um grande palco?
Nunca tinha cantado para tanta gente. Foi num concerto dos “Morangos com Açúcar”, no Pavilhão Atlântico. Fiz dois duetos e cantei o “Ok, Alright”. Foi uma prova de fogo. Estava tão nervosa… Mas correu muito bem. Imaginava que seria mais difícil?
Muito mais difícil. Antes de pisar o palco, sim, foi realmente complicado. A primeira música foi o “No One” [original de Alicia Keys], um dueto com o Paulo Vintém. Eu não cantava na primeira parte, então fiquei a olhar para o público e a pensar «O que vou fazer? Vais conseguir, Aurea? Está aqui tanta gente…» Certo é que, quando chegou a vez de entrar, não pensei em nada. Saiu tudo automaticamente. Adorei, foi uma experiência brutal. Antes disso, teve uma banda de “covers”. Foi uma boa escola de palco?
Sim, tocámos durante um ano num bar em Lisboa. Foi muito bom para ganhar cumplicidade com os músicos – muitos deles são os que me acompanham agora –, experiência com o público, à-vontade e resistência física. Nunca tinha cantado a sério duas horas seguidas. Foi uma experiência muito valiosa. Dos seus espectáculos até à data, qual foi o mais memorável?
O de Portimão, em Abril, foi muito emotivo. Tinha lá os meus pais, avós e amigos do Algarve. Mas o do São Jorge [Lisboa] também foi muito bom, muito forte. Vai ficar para sempre na minha memória. O público começou a levantar-se e a aplaudir, estavam 24.magazine
maio/junho 2011
Ainda é um pouco cedo para falar desse tipo de coisas… Talvez a parte da vida privada, que gosto muito de manter reservada. Até ao momento não tive problemas: as pessoas lidam bem com a diferença Aurea-cantora / Aurea-pessoa. Mas gosto de manter a minha família e os amigos num cantinho. E tenho algum medo que isso se perca. Como é o contacto com as pessoas na rua?
São mesmo muito queridas. Gostam do trabalho e fazem questão de dizê-lo, dão-me força. Até agora só tenho coisas boas. Não posso apontar nada de mau. Espero continuar assim. Que parte desta vida mais lhe agrada?
Fazer aquilo de que gosto. Sem dúvida. Deram-me essa oportunidade. E mais uma vez agradeço muito. maio/junho 2011
magazine.25
PERFIL FALADO
AUREA
DISCURSO DIRECTO.
CRONOLOGIA.
NO MOMENTO EM QUE ESTOU A INTERPRETAR UMA MÚSICA ELA É MINHA.
1987. Nasce, a 27 de Setembro, em Santiago do Cacém. Ainda muito nova, muda-se para Silves. 2003. Aos 15 anos, tenta a sorte no concurso televisivo “Ídolos” mas não passa da ronda inicial.
Sempre gostei de cantar mas nunca imaginei que o meu futuro passasse por ser cantora. Lembro-me de estar num concerto da Mariza e pensar «Como será estar ali em cima? E ter todas estas pessoas a cantar as nossas músicas?». Mas pensar a sério na possibilidade de fazê-lo profissionalmente? Nunca.
2006. Entra para o curso de Estudos Teatrais na Universidade de Évora. Dois anos mais tarde, Rui Ribeiro, aluno da mesma universidade, fica tão impressionado com a sua voz que lhe compõe uma música. Gravam-na e enviam-na para a produtora Blim Records, que de imediato se apercebe do potencial que tem em mãos.
na banda sonora de “Morangos com Açúcar”. E Aurea é a convidada a cantar no concerto “Morangos ao Vivo”, no Pavilhão Atlântico.
2009. Em simultâneo com a gravação do álbum, canta com uma banda de “covers” para ganhar experiência de palco. 2010. “Aurea”, o disco de estreia, é lançado a 27 de Setembro. Grava “Love Me Tender” para a edição portuguesa da banda sonora do espectáculo do Cirque du Soleil “Viva Elvis”. 2011. Quatro meses após o lançamento, “Aurea” ascende ao topo da tabela de vendas e recebe o galardão de ouro. Um mês mais tarde, atinge a marca de platina. A revista “Lux” elege-a “Personalidade Feminina de 2010” na área de música, prémio que acumula com três nomeações para os Globos de Ouro.
26.magazine
maio/junho 2011
Assistente de fotografia: Filipe Serralheiro I Maquilhadora: Sónia Pessoa I Pós-Produçaõ: Álvaro Teixeira
2008. O tema “Okay Alright” é incluído
Quando tinha 15 anos, os meus amigos convenceram-me a concorrer ao “Ídolos”. Fui a um “casting”, a Beja, sem pretensões nenhumas. Acabei por não passar, o júri não gostou. Era muito miudinha, não tinha aqueles requisitos necessários para ser o «ídolo nacional». Mas não guardo ressentimentos: adorei a experiência, havia muito bom ambiente entre os concorrentes. Guardo boas recordações desse dia. Não me incomoda que me comparem com esta ou aquela artista. Isto que eu faço não é uma coisa nova – talvez o seja apenas em Portugal. É normal as pessoas compararem com algo que já exista para se situarem. E, de qualquer forma, essas comparações até acabam por ser lisonjeiras. No momento em que estou a interpretar uma música ela é minha. Não foi composta por mim, mas acabo por me identificar com ela. Com o máximo respeito pelo autor e pelo intérprete original, tento dar o máximo para interpretá-la à minha maneira. Um disco nunca fica exactamente como nós queremos. Quando o ouvi pela primeira vez, foi uma sensação de realização com 43 minutos de duração. Uma semana depois de ter saído, já pensava «Agora teria gravado isto de uma maneira completamente diferente. E aqui tinha feito de outra forma.» Vamos sempre acrescentando qualquer coisinha, corrigindo pequenos defeitos. Por vezes, até é bom trabalhar com prazos rigorosos. Mas o primeiro disco foi todo feito sem pressas: fomos trabalhando naturalmente, sem pressão, com tempo para fazer o que pretendíamos, gravando como queríamos. E isso foi muito bom. Provavelmente, no segundo disco tudo será diferente… Tudo tem sido uma grande surpresa, desde a forma como fui descoberta, até me perguntarem se queria gravar o disco ou dizerem-me «Aurea, vais cantar no Pavilhão Atlântico». Tenho uma equipa brutal atrás de mim, que me tem apoiado muito, muito mesmo, e preparado para tudo o que vai acontecendo. As coisas vão acabando por decorrer naturalmente. Um concerto para esquecer? Ainda não tive. Cada concerto é um concerto, com coisas boas e outras menos boas. Mas são todos bons. Adoro aquilo que faço. E aquilo que faço com os músicos em cima do palco. É um dar e receber tão bom. Recordo todos os concertos com muito carinho. l
* A “M Magazine” agradece ao Hotel Ritz Four Seasons Lisboa o apoio na realização deste artigo.
maio/junho 2011
magazine.27
PERFIL FALADO
AUREA
DISCURSO DIRECTO.
CRONOLOGIA.
NO MOMENTO EM QUE ESTOU A INTERPRETAR UMA MÚSICA ELA É MINHA.
1987. Nasce, a 27 de Setembro, em Santiago do Cacém. Ainda muito nova, muda-se para Silves. 2003. Aos 15 anos, tenta a sorte no concurso televisivo “Ídolos” mas não passa da ronda inicial.
Sempre gostei de cantar mas nunca imaginei que o meu futuro passasse por ser cantora. Lembro-me de estar num concerto da Mariza e pensar «Como será estar ali em cima? E ter todas estas pessoas a cantar as nossas músicas?». Mas pensar a sério na possibilidade de fazê-lo profissionalmente? Nunca.
2006. Entra para o curso de Estudos Teatrais na Universidade de Évora. Dois anos mais tarde, Rui Ribeiro, aluno da mesma universidade, fica tão impressionado com a sua voz que lhe compõe uma música. Gravam-na e enviam-na para a produtora Blim Records, que de imediato se apercebe do potencial que tem em mãos.
na banda sonora de “Morangos com Açúcar”. E Aurea é a convidada a cantar no concerto “Morangos ao Vivo”, no Pavilhão Atlântico.
2009. Em simultâneo com a gravação do álbum, canta com uma banda de “covers” para ganhar experiência de palco. 2010. “Aurea”, o disco de estreia, é lançado a 27 de Setembro. Grava “Love Me Tender” para a edição portuguesa da banda sonora do espectáculo do Cirque du Soleil “Viva Elvis”. 2011. Quatro meses após o lançamento, “Aurea” ascende ao topo da tabela de vendas e recebe o galardão de ouro. Um mês mais tarde, atinge a marca de platina. A revista “Lux” elege-a “Personalidade Feminina de 2010” na área de música, prémio que acumula com três nomeações para os Globos de Ouro.
26.magazine
maio/junho 2011
Assistente de fotografia: Filipe Serralheiro I Maquilhadora: Sónia Pessoa I Pós-Produçaõ: Álvaro Teixeira
2008. O tema “Okay Alright” é incluído
Quando tinha 15 anos, os meus amigos convenceram-me a concorrer ao “Ídolos”. Fui a um “casting”, a Beja, sem pretensões nenhumas. Acabei por não passar, o júri não gostou. Era muito miudinha, não tinha aqueles requisitos necessários para ser o «ídolo nacional». Mas não guardo ressentimentos: adorei a experiência, havia muito bom ambiente entre os concorrentes. Guardo boas recordações desse dia. Não me incomoda que me comparem com esta ou aquela artista. Isto que eu faço não é uma coisa nova – talvez o seja apenas em Portugal. É normal as pessoas compararem com algo que já exista para se situarem. E, de qualquer forma, essas comparações até acabam por ser lisonjeiras. No momento em que estou a interpretar uma música ela é minha. Não foi composta por mim, mas acabo por me identificar com ela. Com o máximo respeito pelo autor e pelo intérprete original, tento dar o máximo para interpretá-la à minha maneira. Um disco nunca fica exactamente como nós queremos. Quando o ouvi pela primeira vez, foi uma sensação de realização com 43 minutos de duração. Uma semana depois de ter saído, já pensava «Agora teria gravado isto de uma maneira completamente diferente. E aqui tinha feito de outra forma.» Vamos sempre acrescentando qualquer coisinha, corrigindo pequenos defeitos. Por vezes, até é bom trabalhar com prazos rigorosos. Mas o primeiro disco foi todo feito sem pressas: fomos trabalhando naturalmente, sem pressão, com tempo para fazer o que pretendíamos, gravando como queríamos. E isso foi muito bom. Provavelmente, no segundo disco tudo será diferente… Tudo tem sido uma grande surpresa, desde a forma como fui descoberta, até me perguntarem se queria gravar o disco ou dizerem-me «Aurea, vais cantar no Pavilhão Atlântico». Tenho uma equipa brutal atrás de mim, que me tem apoiado muito, muito mesmo, e preparado para tudo o que vai acontecendo. As coisas vão acabando por decorrer naturalmente. Um concerto para esquecer? Ainda não tive. Cada concerto é um concerto, com coisas boas e outras menos boas. Mas são todos bons. Adoro aquilo que faço. E aquilo que faço com os músicos em cima do palco. É um dar e receber tão bom. Recordo todos os concertos com muito carinho. l
* A “M Magazine” agradece ao Hotel Ritz Four Seasons Lisboa o apoio na realização deste artigo.
maio/junho 2011
magazine.27
PERFIL FALADO
ra concluir a t n e t e d n o is ra o Nepal,ista dos 14 cumes maoa p a id t r a p Antes da aprojecto de conqu rtificial – tornand o seu meg undo sem oxigenio a cimo alpinista da His altos do meiro portugues e o deoeza –, Joao Garcia -se o prim lcançar tamanha pr fios futuros, como a toria a a e e de outros desa falou dest a Antarctida a pe. travessia d
s l e e v v e a n r i s m a Ad omem d H 16.magazine
janeiro/fevereiro 2010
TRE
FOT
ROS
o Dias Ilustração: Pedr
MES OÃO TO J TEX
AR DE B UÍS L A AFI OGR
PERFIL FALADO
ra concluir a t n e t e d n o is ra o Nepal,ista dos 14 cumes maoa p a id t r a p Antes da aprojecto de conqu rtificial – tornand o seu meg undo sem oxigenio a cimo alpinista da His altos do meiro portugues e o deoeza –, Joao Garcia -se o prim lcançar tamanha pr fios futuros, como a toria a a e e de outros desa falou dest a Antarctida a pe. travessia d
s l e e v v e a n r i s m a Ad omem d H 16.magazine
janeiro/fevereiro 2010
TRE
FOT
ROS
o Dias Ilustração: Pedr
MES OÃO TO J TEX
AR DE B UÍS L A AFI OGR
PERFIL FALADO
PERFIL FALADO
JOÃO GARCIA
“COM O ANNAPURNA FECHO UM CICLO DA MINHA VIDA. É MUITA PRESSÃO MAS É BOM PARA NÃO DESCURAR O TREINO E OS DETALHES.”
O expresso vindo de Lisboa chegava à Covilhã à meia-noite de sexta-feira. Mal desembarcava, João metia a mochila às costas e seguia, serra acima, rumo ao Covão d’Ametade – onde, ao fim de sete horas de caminhada, se encontraria com o Clube de Montanhismo da Guarda. Estávamos em 1984. João Garcia tinha 16 anos. Ainda no Verão desse ano, já com os 17 completos, o aspirante a alpinista juntou-se a uma expedição aos Alpes Franceses para escalar o Monte Branco (4.810 metros). «Foi um dos momentos da minha vida em que aquilo fez clique – olhar à volta e não ver nada mais alto», recorda. «Percebi que só atinge o cume quem se esforça, não quem é mais velho, mais bonito ou tem mais dinheiro.» João José Silva Abranches Garcia nasceu em Lisboa, a 11 de Junho de 1967. Viveu a infância nos Olivais e a bicicleta cedo se tornou um fiel companheiro de aventuras. O gosto pela montanha e pelos grandes espaços começou a germinar nos escuteiros. Coincidência ou não, chega-lhe aos ouvidos a notícia da realização de um encontro de alpinistas na Serra da Estrela, em 1983. A oportunidade não podia ser desperdiçada: convenceu os pais a deixarem-no ir (a troco de boas notas e de um plano de viagem muito bem organizado), preparou-se fisicamente e adaptou o seu veículo para a longa viagem: «Ia à Feira da Ladra comprar mochilas militares e adaptava-as às grelhas da bicicleta», conta no livro “10 Passos Para Chegar Ao Topo” (ed. Caderno, 2009). Aliás, o primeiro equipamento foi feito por si: o saco-cama, as polainas, o arnês, a própria tenda. A viagem correu como previsto – em quatro dias, rodou os 300 quilómetros –, não fosse o facto de se ter enganado na data e chegado ao local um mês antes. O caminho de regresso, fê-lo em metade do tempo. Num só dia, pedalou 260 quilómetros. Percebeu que o grande prazer não era só a viagem: «Começava logo nos meses anteriores, a preparar-me fisicamente, a preparar a bicicleta…». Por outros meios, lá regressou, agora na data marcada. É por esses dias que ouve falar numa expedição ao Monte Branco. A expedição que mudaria a sua vida. Passados 25 anos sobre a sua primeira grande montanha, João Garcia está muito
perto de entrar para a história do alpinismo mundial como o décimo homem (e o primeiro português) a conseguir escalar as 14 montanhas mais altas do mundo – todas acima dos 8.000 metros – sem oxigénio artificial. Só lhe falta o Annapurna (8.091m, Nepal), cuja conquista começará em Março. Bem, «só» é uma maneira de escrever: «O Annapurna é muito perigoso», avisa repetidas vezes, como um “mantra” de respeito por este último adversário. «A seguir ao K2 (8.611m, Paquistão), é a montanha que mata mais pessoas, em relação ao número de alpinistas que atinge o cume.» Já lá vai o tempo em que a ansiedade lhe tirava o sono. No entanto, em vésperas da partida para o Annapurna, a tensão é maior do que o habitual: «Por ser a última, fecho um ciclo muito importante da minha vida, é a recta final... É muita pressão, mas é bom para não descurar o treino e todos os detalhes.» O mediatismo do projecto rouba-lhe o precioso tempo de treino: palestras em empresas e escolas, entrevistas, preparativos, 18.magazine
janeiro/fevereiro 2010
trabalho de secretariado. João Garcia tem o tempo contado. Para lhe facilitar as coisas, proponho que a conversa tenha lugar à mesa. Escolho, sem ponta de acaso, um simpático restaurante nepalês em Algés. João traz consigo todo o material utilizado na sessão fotográfica, em duas volumosas mochilas. «Nunca deixo nada no carro», explica. «É o único fato [de himalaísmo] que tenho; se mo roubam...». Ao vê-lo entrar carregado, os empregados, todos nepaleses, ficam curiosos. «Namaste!», cumprimenta-os João Garcia. Um deles aproxima-se e começam a falar – o rapaz fica tão entusiasmado que nem se lembra de trazer o menu ou os costumeiros “papadums”. «Fala nepalês?», pergunta, espantado, na sua língua materna. «Ali, ali», responde Garcia. «Um pouco, um pouco», traduz para mim. «Falo um bocadinho nepalês, mas percebo um pouco mais. No Nepal não o demonstro: falo com eles em inglês e ouço-os falar entre eles; assim percebo perfeitamente se me estão a enganar». Não é estranho que um alpinista experiente como João Garcia domine os rudimentos da língua: esteve no Nepal em cerca de 30 expedições. «Se calcularmos a um mês por viagem, já lá passei dois anos e meio da minha vida.» Antes da partida para o Annapurna, o treino de montanha tem lugar no Atlas (Marrocos), dez dias em Janeiro e outros tantos em Fevereiro. Quando está em Lisboa, João Garcia treina como pode: levanta-se todos os dias (sem descanso ao fim-de-semana) às sete da manhã para correr, andar de bicicleta, nadar, escalar em rocha e o que mais lhe sirva para trabalhar a resistência física. O desporto sempre fez parte da sua vida. Primeiro a natação. Depois o judo, «para aprender a cair e não partir braços». Pelo meio, o indispensável «desporto de rua»: as janeiro/fevereiro 2010
magazine.19
PERFIL FALADO
PERFIL FALADO
JOÃO GARCIA
“COM O ANNAPURNA FECHO UM CICLO DA MINHA VIDA. É MUITA PRESSÃO MAS É BOM PARA NÃO DESCURAR O TREINO E OS DETALHES.”
O expresso vindo de Lisboa chegava à Covilhã à meia-noite de sexta-feira. Mal desembarcava, João metia a mochila às costas e seguia, serra acima, rumo ao Covão d’Ametade – onde, ao fim de sete horas de caminhada, se encontraria com o Clube de Montanhismo da Guarda. Estávamos em 1984. João Garcia tinha 16 anos. Ainda no Verão desse ano, já com os 17 completos, o aspirante a alpinista juntou-se a uma expedição aos Alpes Franceses para escalar o Monte Branco (4.810 metros). «Foi um dos momentos da minha vida em que aquilo fez clique – olhar à volta e não ver nada mais alto», recorda. «Percebi que só atinge o cume quem se esforça, não quem é mais velho, mais bonito ou tem mais dinheiro.» João José Silva Abranches Garcia nasceu em Lisboa, a 11 de Junho de 1967. Viveu a infância nos Olivais e a bicicleta cedo se tornou um fiel companheiro de aventuras. O gosto pela montanha e pelos grandes espaços começou a germinar nos escuteiros. Coincidência ou não, chega-lhe aos ouvidos a notícia da realização de um encontro de alpinistas na Serra da Estrela, em 1983. A oportunidade não podia ser desperdiçada: convenceu os pais a deixarem-no ir (a troco de boas notas e de um plano de viagem muito bem organizado), preparou-se fisicamente e adaptou o seu veículo para a longa viagem: «Ia à Feira da Ladra comprar mochilas militares e adaptava-as às grelhas da bicicleta», conta no livro “10 Passos Para Chegar Ao Topo” (ed. Caderno, 2009). Aliás, o primeiro equipamento foi feito por si: o saco-cama, as polainas, o arnês, a própria tenda. A viagem correu como previsto – em quatro dias, rodou os 300 quilómetros –, não fosse o facto de se ter enganado na data e chegado ao local um mês antes. O caminho de regresso, fê-lo em metade do tempo. Num só dia, pedalou 260 quilómetros. Percebeu que o grande prazer não era só a viagem: «Começava logo nos meses anteriores, a preparar-me fisicamente, a preparar a bicicleta…». Por outros meios, lá regressou, agora na data marcada. É por esses dias que ouve falar numa expedição ao Monte Branco. A expedição que mudaria a sua vida. Passados 25 anos sobre a sua primeira grande montanha, João Garcia está muito
perto de entrar para a história do alpinismo mundial como o décimo homem (e o primeiro português) a conseguir escalar as 14 montanhas mais altas do mundo – todas acima dos 8.000 metros – sem oxigénio artificial. Só lhe falta o Annapurna (8.091m, Nepal), cuja conquista começará em Março. Bem, «só» é uma maneira de escrever: «O Annapurna é muito perigoso», avisa repetidas vezes, como um “mantra” de respeito por este último adversário. «A seguir ao K2 (8.611m, Paquistão), é a montanha que mata mais pessoas, em relação ao número de alpinistas que atinge o cume.» Já lá vai o tempo em que a ansiedade lhe tirava o sono. No entanto, em vésperas da partida para o Annapurna, a tensão é maior do que o habitual: «Por ser a última, fecho um ciclo muito importante da minha vida, é a recta final... É muita pressão, mas é bom para não descurar o treino e todos os detalhes.» O mediatismo do projecto rouba-lhe o precioso tempo de treino: palestras em empresas e escolas, entrevistas, preparativos, 18.magazine
janeiro/fevereiro 2010
trabalho de secretariado. João Garcia tem o tempo contado. Para lhe facilitar as coisas, proponho que a conversa tenha lugar à mesa. Escolho, sem ponta de acaso, um simpático restaurante nepalês em Algés. João traz consigo todo o material utilizado na sessão fotográfica, em duas volumosas mochilas. «Nunca deixo nada no carro», explica. «É o único fato [de himalaísmo] que tenho; se mo roubam...». Ao vê-lo entrar carregado, os empregados, todos nepaleses, ficam curiosos. «Namaste!», cumprimenta-os João Garcia. Um deles aproxima-se e começam a falar – o rapaz fica tão entusiasmado que nem se lembra de trazer o menu ou os costumeiros “papadums”. «Fala nepalês?», pergunta, espantado, na sua língua materna. «Ali, ali», responde Garcia. «Um pouco, um pouco», traduz para mim. «Falo um bocadinho nepalês, mas percebo um pouco mais. No Nepal não o demonstro: falo com eles em inglês e ouço-os falar entre eles; assim percebo perfeitamente se me estão a enganar». Não é estranho que um alpinista experiente como João Garcia domine os rudimentos da língua: esteve no Nepal em cerca de 30 expedições. «Se calcularmos a um mês por viagem, já lá passei dois anos e meio da minha vida.» Antes da partida para o Annapurna, o treino de montanha tem lugar no Atlas (Marrocos), dez dias em Janeiro e outros tantos em Fevereiro. Quando está em Lisboa, João Garcia treina como pode: levanta-se todos os dias (sem descanso ao fim-de-semana) às sete da manhã para correr, andar de bicicleta, nadar, escalar em rocha e o que mais lhe sirva para trabalhar a resistência física. O desporto sempre fez parte da sua vida. Primeiro a natação. Depois o judo, «para aprender a cair e não partir braços». Pelo meio, o indispensável «desporto de rua»: as janeiro/fevereiro 2010
magazine.19
PERFIL FALADO
PERFIL FALADO
JOÃO GARCIA
“UMA COISA QUE ACTUALMENTE ME ALICIA É IR AO PÓLO SUL ‘BY FAIR MEANS’. FASCINA-ME PELO INACESSÍVEL.”
corridas, a subida às árvores, as brincadeiras com a fisga. No liceu, fez parte de uma equipa de voleibol. «Houve uma altura em que, para ser duro, joguei râguebi, até que veio a escalada e o montanhismo.» Com isto, começam as digressões frequentes aos Alpes, de onde vinha «maravilhado mas também frustrado porque ao fim de sete horas tinha de encostar, enquanto via os suíços, os espanhóis a continuar e pensava “o que é que eles têm que eu não tenho?”». Faltava-lhe o trabalho físico. É aí que descobre o triatlo. «Os meus irmãos desafiaram-me: “oh puto, não eras capaz”; eu, só para lhes mostrar, fui mesmo para o triatlo». Com a modalidade aprendeu a gerir os seus recursos: «Um bocadinho para a natação, rentabilizar na bicicleta e dar tudo o que tenho e o que não tenho na corrida.» Tal e qual como faz na montanha: «Quando vou a subir, nunca dou mais do que 50%. Quando subimos para o último acampamento, fazemos umas seis a oito horas por dia; mas no dia de cume é o que for – sempre por volta das 20 horas de esforço ininterrupto». Ao esforço sobre-humano acrescente-se a elevada altitude, que traz três grandes complicações: a temperatura, que atinge os -40ºC, a rarefacção do oxigénio e a humidade relativa próxima de zero. «Lá em cima estamos tão atordoados que só pensamos em respirar. Muito cansados, temos consciência de que estamos a meio da prova: falta a outra metade, descer.» Por opção, João Garcia nunca recorre ao oxigénio artificial – que tornaria a escalada menos árdua. «É uma batota. É como a Rosa Mota dizer que vai correr meia maratona e fazer a outra metade de lambreta.» Começou sem oxigénio artificial e assim pretende continuar. «Vejo isto como um desporto com a mesma filosofia de todos os outros: queremos, sobretudo, superar-nos a nós próprios.» Vencido o desafio dos 14 cumes, outros se perfilam no horizonte. «Uma coisa
que me intriga e alicia actualmente é ir ao Pólo Sul “by fair means”», conta, entusiasmado. Isto é: ir de barco até à orla do continente antárctico e caminhar cerca de 1.500 quilómetros até ao ponto mais meridional da Terra, puxando uma “pulka”, trenó com a logística para 100 dias (1kg por dia). «Fascina-me pelo inacessível e por ser uma tecnologia e uma logística diferentes.» «Na altura estarei com 44/45 anos, idade em que perdemos força explosiva mas ganhamos muito em “endurance”, não só física mas também mental.» Outro objectivo é escalar as montanhas de 7.000 metros mais técnicas, com vertentes mais difíceis. Ou então «baptizar» uma das muitas montanhas que ainda ninguém escalou, onde não há qualquer informação ou estrutura logística e a aventura ainda é, literalmente, o que era. Quem sabe se um dia não teremos, algures no Paquistão, um Pico João Garcia. «Não está escrito em lado nenhum que vou ter de fazer estas coisas: para mim, têm de fazer sentido.» E o que é que faz sentido? «Desafios aliciantes – as tarefas fáceis não me seduzem.»
PICOS DE CARREIRA. 1984. Depois das primeiras experiências de escalada na Serra da Estrela, chega ao topo do Monte Branco (Alpes). 1990. Começa uma comissão de serviço no Quartel Supremo das Forças Aliadas, na Bélgica. Aproveita a proximidade dos Alpes para evoluir tecnicamente.
1993. Conquista o seu primeiro cume de 8.000 metros, o Cho Oyu. Em 1994, conquista o Dhaulagiri.
1999. Conquista o Evereste. É o primeiro português a fazê-lo. Sofre graves queimaduras causadas pelo gelo (que levam à amputação de parte do nariz e de alguns dedos dos pés e das mãos) e perde o companheiro de expedição Pascal Debrouwer.
2001. Regressa à alta montanha, com a conquista do Gasherbrum II e, três anos depois, do Gasherbrum I. 2005. Atinge o pico do Lhotse. Assina com o Millennium bcp um acordo de patrocínio, propondo-se escalar os 14 cumes mais altos do planeta. Em 2006, escala o Kangchenjunga e o Shisha Pangma. Um ano depois, alcança o cume do K2. 2008. Com a subida do Makalu, em Maio, acrescenta ao seu currículo a conquista dos “Big Five”. Dois meses depois, é a vez do Broad Peak. 2009. Sobe o Manaslu e o Nanga Parbat, fechando o ano com uma só montanha a separá-lo do seu objectivo: o Annapurna, com expedição marcada para a Primavera de 2010.
janeiro/fevereiro 2010
magazine.21
PERFIL FALADO
PERFIL FALADO
JOÃO GARCIA
“UMA COISA QUE ACTUALMENTE ME ALICIA É IR AO PÓLO SUL ‘BY FAIR MEANS’. FASCINA-ME PELO INACESSÍVEL.”
corridas, a subida às árvores, as brincadeiras com a fisga. No liceu, fez parte de uma equipa de voleibol. «Houve uma altura em que, para ser duro, joguei râguebi, até que veio a escalada e o montanhismo.» Com isto, começam as digressões frequentes aos Alpes, de onde vinha «maravilhado mas também frustrado porque ao fim de sete horas tinha de encostar, enquanto via os suíços, os espanhóis a continuar e pensava “o que é que eles têm que eu não tenho?”». Faltava-lhe o trabalho físico. É aí que descobre o triatlo. «Os meus irmãos desafiaram-me: “oh puto, não eras capaz”; eu, só para lhes mostrar, fui mesmo para o triatlo». Com a modalidade aprendeu a gerir os seus recursos: «Um bocadinho para a natação, rentabilizar na bicicleta e dar tudo o que tenho e o que não tenho na corrida.» Tal e qual como faz na montanha: «Quando vou a subir, nunca dou mais do que 50%. Quando subimos para o último acampamento, fazemos umas seis a oito horas por dia; mas no dia de cume é o que for – sempre por volta das 20 horas de esforço ininterrupto». Ao esforço sobre-humano acrescente-se a elevada altitude, que traz três grandes complicações: a temperatura, que atinge os -40ºC, a rarefacção do oxigénio e a humidade relativa próxima de zero. «Lá em cima estamos tão atordoados que só pensamos em respirar. Muito cansados, temos consciência de que estamos a meio da prova: falta a outra metade, descer.» Por opção, João Garcia nunca recorre ao oxigénio artificial – que tornaria a escalada menos árdua. «É uma batota. É como a Rosa Mota dizer que vai correr meia maratona e fazer a outra metade de lambreta.» Começou sem oxigénio artificial e assim pretende continuar. «Vejo isto como um desporto com a mesma filosofia de todos os outros: queremos, sobretudo, superar-nos a nós próprios.» Vencido o desafio dos 14 cumes, outros se perfilam no horizonte. «Uma coisa
que me intriga e alicia actualmente é ir ao Pólo Sul “by fair means”», conta, entusiasmado. Isto é: ir de barco até à orla do continente antárctico e caminhar cerca de 1.500 quilómetros até ao ponto mais meridional da Terra, puxando uma “pulka”, trenó com a logística para 100 dias (1kg por dia). «Fascina-me pelo inacessível e por ser uma tecnologia e uma logística diferentes.» «Na altura estarei com 44/45 anos, idade em que perdemos força explosiva mas ganhamos muito em “endurance”, não só física mas também mental.» Outro objectivo é escalar as montanhas de 7.000 metros mais técnicas, com vertentes mais difíceis. Ou então «baptizar» uma das muitas montanhas que ainda ninguém escalou, onde não há qualquer informação ou estrutura logística e a aventura ainda é, literalmente, o que era. Quem sabe se um dia não teremos, algures no Paquistão, um Pico João Garcia. «Não está escrito em lado nenhum que vou ter de fazer estas coisas: para mim, têm de fazer sentido.» E o que é que faz sentido? «Desafios aliciantes – as tarefas fáceis não me seduzem.»
PICOS DE CARREIRA. 1984. Depois das primeiras experiências de escalada na Serra da Estrela, chega ao topo do Monte Branco (Alpes). 1990. Começa uma comissão de serviço no Quartel Supremo das Forças Aliadas, na Bélgica. Aproveita a proximidade dos Alpes para evoluir tecnicamente.
1993. Conquista o seu primeiro cume de 8.000 metros, o Cho Oyu. Em 1994, conquista o Dhaulagiri.
1999. Conquista o Evereste. É o primeiro português a fazê-lo. Sofre graves queimaduras causadas pelo gelo (que levam à amputação de parte do nariz e de alguns dedos dos pés e das mãos) e perde o companheiro de expedição Pascal Debrouwer.
2001. Regressa à alta montanha, com a conquista do Gasherbrum II e, três anos depois, do Gasherbrum I. 2005. Atinge o pico do Lhotse. Assina com o Millennium bcp um acordo de patrocínio, propondo-se escalar os 14 cumes mais altos do planeta. Em 2006, escala o Kangchenjunga e o Shisha Pangma. Um ano depois, alcança o cume do K2. 2008. Com a subida do Makalu, em Maio, acrescenta ao seu currículo a conquista dos “Big Five”. Dois meses depois, é a vez do Broad Peak. 2009. Sobe o Manaslu e o Nanga Parbat, fechando o ano com uma só montanha a separá-lo do seu objectivo: o Annapurna, com expedição marcada para a Primavera de 2010.
janeiro/fevereiro 2010
magazine.21
PERFIL FALADO
Produção: Inês B
NO TOPO. A 8.000 metros não há
tente de fotograf Són
janeiro/fevereiro 2010
uilhadora:
22.magazine
eiro I Maq
desce 6ºC por cada mil metros. «Se cá em baixo estiverem 20ºC, nos 8.000 metros estarão -28ºC.» O fato de himalaísmo aguenta até -40ºC e pesa cerca de 1,5kg.
ÚLTIMA MONTANHA. O Annapurna (8.091m) é a 10ª montanha mais alta do mundo. Foi o primeiro cume de 8.000 metros a ser conquistado pelo Homem — feito que pertence ao francês Maurice Herzog (1950). Gonçalo Velez é, até à data, o único português que atingiu o seu cume (1991).
ixeira I
TEMPERATURA. A temperatura
TECNOLOGIA NACIONAL. «Em todas as minhas expedições tento utilizar tecnologia portuguesa.» A Faculdade de Engenharia do Porto está a desenvolver um emissor-receptor de vídeo (que não chega aos 250g) que permitirá o envio de imagens quase em directo: «Após
que tenhamos (nomeadamente a previsão meteorológica), os riscos mantêm-se os mesmos: aquele bloco de gelo vai cair e não se sabe quando ou como». E não é só pela amplitude térmica ou pelas avalanches: os Himalaias estão assentes numa zona de forte intensidade sísmica. No Nanga Parbat são detectados cerca de 60 pequenos tremores de terra por dia.
Álvaro Te
queimar gordura pela falta de oxigénio, o organismo consome a proteína do músculo para criar energia. Perde-se 1kg de massa muscular por semana. «Regresso com uns 5kg de músculo a menos; só recupero após dois meses de treino e de “enchimento” de comida.»
jornadas diárias duram seis a oito horas. No dia de cume, ronda as 20 horas de esforço ininterrupto. «Na conquista do Manaslu fiz 29 horas seguidas para conseguir descer do cume directamente ao acampamento-base e enviar as imagens a tempo de aparecerem no Jornal da Noite.»
RISCOS. «Por mais inovações
roduçaõ:
ENERGIA.Impossibilitado de
JORNADAS. Durante a subida, as
conquistar o cume, volto ao campo 4 [o mais alto] e envio as imagens para o campo-base, que as retransmite via satélite para Portugal.»
ia Pessoa I Pós-P
pressão atmosférica diminui para um terço e o ar tem menos partículas de oxigénio. Com a falta de pressão, os alvéolos pulmonares perdem a capacidade de captar oxigénio. E a humidade relativa é próxima de zero. Ao expirar este ar seco, este leva a humidade das mucosas, responsáveis por libertar o dióxido de carbono. Ao respirar, o corpo desidrata mais depressa.
ÁGUA. «A água é uma das razões por que andamos de acampamento em acampamento. É aí que podemos usar o fogão para derreter a neve em água. Depois guardamo-las em garrafas de plástico estanques e inquebráveis que transportamos dentro do fato — se as metermos na mochila, viram bloco de gelo em duas horas.»
ia: Filipe Serralh
OXIGÉNIO. Em alta montanha, a
riz I Assis
grande oportunidade de desfrutar a vista. «A preocupação é respirar, tirar a fotografia e pensar no caminho de regresso. Se estiver bom tempo, conseguimos aguentar meia hora. Ao fim de 10/20 minutos, o corpo começa a arrefecer.»
PERFIL FALADO
Produção: Inês B
NO TOPO. A 8.000 metros não há
tente de fotograf Són
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eiro I Maq
desce 6ºC por cada mil metros. «Se cá em baixo estiverem 20ºC, nos 8.000 metros estarão -28ºC.» O fato de himalaísmo aguenta até -40ºC e pesa cerca de 1,5kg.
ÚLTIMA MONTANHA. O Annapurna (8.091m) é a 10ª montanha mais alta do mundo. Foi o primeiro cume de 8.000 metros a ser conquistado pelo Homem — feito que pertence ao francês Maurice Herzog (1950). Gonçalo Velez é, até à data, o único português que atingiu o seu cume (1991).
ixeira I
TEMPERATURA. A temperatura
TECNOLOGIA NACIONAL. «Em todas as minhas expedições tento utilizar tecnologia portuguesa.» A Faculdade de Engenharia do Porto está a desenvolver um emissor-receptor de vídeo (que não chega aos 250g) que permitirá o envio de imagens quase em directo: «Após
que tenhamos (nomeadamente a previsão meteorológica), os riscos mantêm-se os mesmos: aquele bloco de gelo vai cair e não se sabe quando ou como». E não é só pela amplitude térmica ou pelas avalanches: os Himalaias estão assentes numa zona de forte intensidade sísmica. No Nanga Parbat são detectados cerca de 60 pequenos tremores de terra por dia.
Álvaro Te
queimar gordura pela falta de oxigénio, o organismo consome a proteína do músculo para criar energia. Perde-se 1kg de massa muscular por semana. «Regresso com uns 5kg de músculo a menos; só recupero após dois meses de treino e de “enchimento” de comida.»
jornadas diárias duram seis a oito horas. No dia de cume, ronda as 20 horas de esforço ininterrupto. «Na conquista do Manaslu fiz 29 horas seguidas para conseguir descer do cume directamente ao acampamento-base e enviar as imagens a tempo de aparecerem no Jornal da Noite.»
RISCOS. «Por mais inovações
roduçaõ:
ENERGIA.Impossibilitado de
JORNADAS. Durante a subida, as
conquistar o cume, volto ao campo 4 [o mais alto] e envio as imagens para o campo-base, que as retransmite via satélite para Portugal.»
ia Pessoa I Pós-P
pressão atmosférica diminui para um terço e o ar tem menos partículas de oxigénio. Com a falta de pressão, os alvéolos pulmonares perdem a capacidade de captar oxigénio. E a humidade relativa é próxima de zero. Ao expirar este ar seco, este leva a humidade das mucosas, responsáveis por libertar o dióxido de carbono. Ao respirar, o corpo desidrata mais depressa.
ÁGUA. «A água é uma das razões por que andamos de acampamento em acampamento. É aí que podemos usar o fogão para derreter a neve em água. Depois guardamo-las em garrafas de plástico estanques e inquebráveis que transportamos dentro do fato — se as metermos na mochila, viram bloco de gelo em duas horas.»
ia: Filipe Serralh
OXIGÉNIO. Em alta montanha, a
riz I Assis
grande oportunidade de desfrutar a vista. «A preocupação é respirar, tirar a fotografia e pensar no caminho de regresso. Se estiver bom tempo, conseguimos aguentar meia hora. Ao fim de 10/20 minutos, o corpo começa a arrefecer.»
PERFIL FALADO
JOÃO GARCIA
com a mesma filosofia de todos os outros: queremos ir mais alto, mais rápido, mais forte. Mas queremos, sobretudo, superar-nos a nós próprios. Do campo-base para cima, sou eu e os meus companheiros contra a montanha. Sem carregadores nem oxigénio artificial. Só assim verdadeiramente me supero a mim próprio. Vejo isto como um desporto
Quando tinha 17 anos, escalei o Monte Branco. Foi um dos momentos em que aquilo fez clique. Percebi que só atinge o topo quem se esforça. Na subida em altitude, a dificuldade não é linear. É exponencial, um ciclo vicioso: estou cada vez mais alto, cada vez mais desidratado, cada vez mais cansado, com cada vez menos oxigénio, cada vez mais lento… Quando chegamos ao cume, estamos muito cansados e temos consciência de que vamos a meio da prova: falta a outra metade, descer. Estamos tão atordoados que só pensamos em respirar. Ali, o Homem não foi feito para viver, apenas para sobreviver.
AS TAREFAS FÁCEIS NÃO ME SEDUZEM. A MONTANHA TEM DE SER DIFÍCIL.
EM DISCURSO DIRECTO.
Nos momentos de fraqueza, quando estou ali, cansado e só, sei que desistir é a maneira mais fácil de resolver o problema. E penso: «Ando a treinar para isto há oito meses, estão aqui investidos milhares de euros, há grande expectativa. Se falho, tenho de voltar a fazer o “trekking”, fazer as aclimatações e carregar o material todo para chegar a este ponto e acontecer-me o mesmo... Não, eu vou continuar.» Tive a felicidade e a determinação
de não desistir. É uma grande ajuda, nos momentos menos bons, saber que faço aquilo de que gosto. É a parte melhor de escalar a montanha.
Já me aconteceu ter de desistir. No Evereste, desisti em 1997, porque me roubaram coisas do acampamento, a 8.200 metros. E em 1998, porque ao passar os 8.500 metros havia tanto vento que eu ia gelar. Mas fiquei felicíssimo, porque percebi que, se o tempo estivesse bom, eu chegava lá acima. Quebrei a barreira psicológica. A pior expedição da minha vida foi o Evereste, em 1999.Venci a montanha, mas perdi um amigo e fiquei numa posição muito fragilizada. Foi o momento mais angustiante da minha vida. Porém, recuperei: o magnífico não está em nunca cairmos mas em levantarmo-nos sempre que caímos.
As minhas sete últimas expedições
Há 50 anos, os alpinistas eram vistos
foram todas concretizadas à primeira tentativa.No entanto, a sociedade começou a interpretar isso de forma irónica: «Se ele não falha é porque aquilo é fácil».
como os conquistadores do inútil. Neste momento, acabamos por ser uma fonte de inspiração, de motivação para as pessoas atingirem os seus «everestes».
«EU E O MILLENNIUM BCP NÃO DESISTIMOS» O “slogan” de boas-vindas no seu “website” oficial (www.joaogarcia.com) é inequívoco: «Escalar montanhas é a empresa da minha vida.» Questionado, numa entrevista recente, sobre o impacto negativo da crise financeira internacional na sua actividade, o alpinista português aponta no sentido inverso: «A minha imagem tornou-se mais importante para mostrar ao público que eu e o Millennium bcp não desistimos – com organização, trabalho árduo e paixão, podemos escalar até as montanhas mais altas.» Firmado o acordo de patrocínio com o Millennium bcp em 2005, o alpinista abandona a sua actividade como guia de montanha para se dedicar a cem por cento à aventura “À Conquista dos Picos do Mundo”, com o objectivo de escalar a última montanha em 2010. «O Millennium bcp deu-me condições de trabalho como nunca tive na vida», reconhece. Ao mesmo tempo, a perseverança, coragem e determinação de João Garcia permitiram estabelecer um paralelismo com as capacidades exigidas para o desenvolvimento de um projecto empresarial bem sucedido e sustentável a longo prazo. Mesmo antes de partir para a primeira expedição aos Himalaias, no âmbito deste projecto, João Garcia tornou-se no rosto das campanhas do Millennium bcp para o segmento Negócios. Afinal, «os valores do profissional da montanha são os valores do homem de negócios: todos queremos atingir o topo e sabemos que, inevitavelmente, nunca ficamos no topo».
24.magazine
janeiro/fevereiro 2010
setembro/outubro 2009
magazine.25
PERFIL FALADO
JOÃO GARCIA
com a mesma filosofia de todos os outros: queremos ir mais alto, mais rápido, mais forte. Mas queremos, sobretudo, superar-nos a nós próprios. Do campo-base para cima, sou eu e os meus companheiros contra a montanha. Sem carregadores nem oxigénio artificial. Só assim verdadeiramente me supero a mim próprio. Vejo isto como um desporto
Quando tinha 17 anos, escalei o Monte Branco. Foi um dos momentos em que aquilo fez clique. Percebi que só atinge o topo quem se esforça. Na subida em altitude, a dificuldade não é linear. É exponencial, um ciclo vicioso: estou cada vez mais alto, cada vez mais desidratado, cada vez mais cansado, com cada vez menos oxigénio, cada vez mais lento… Quando chegamos ao cume, estamos muito cansados e temos consciência de que vamos a meio da prova: falta a outra metade, descer. Estamos tão atordoados que só pensamos em respirar. Ali, o Homem não foi feito para viver, apenas para sobreviver.
AS TAREFAS FÁCEIS NÃO ME SEDUZEM. A MONTANHA TEM DE SER DIFÍCIL.
EM DISCURSO DIRECTO.
Nos momentos de fraqueza, quando estou ali, cansado e só, sei que desistir é a maneira mais fácil de resolver o problema. E penso: «Ando a treinar para isto há oito meses, estão aqui investidos milhares de euros, há grande expectativa. Se falho, tenho de voltar a fazer o “trekking”, fazer as aclimatações e carregar o material todo para chegar a este ponto e acontecer-me o mesmo... Não, eu vou continuar.» Tive a felicidade e a determinação
de não desistir. É uma grande ajuda, nos momentos menos bons, saber que faço aquilo de que gosto. É a parte melhor de escalar a montanha.
Já me aconteceu ter de desistir. No Evereste, desisti em 1997, porque me roubaram coisas do acampamento, a 8.200 metros. E em 1998, porque ao passar os 8.500 metros havia tanto vento que eu ia gelar. Mas fiquei felicíssimo, porque percebi que, se o tempo estivesse bom, eu chegava lá acima. Quebrei a barreira psicológica. A pior expedição da minha vida foi o Evereste, em 1999.Venci a montanha, mas perdi um amigo e fiquei numa posição muito fragilizada. Foi o momento mais angustiante da minha vida. Porém, recuperei: o magnífico não está em nunca cairmos mas em levantarmo-nos sempre que caímos.
As minhas sete últimas expedições
Há 50 anos, os alpinistas eram vistos
foram todas concretizadas à primeira tentativa.No entanto, a sociedade começou a interpretar isso de forma irónica: «Se ele não falha é porque aquilo é fácil».
como os conquistadores do inútil. Neste momento, acabamos por ser uma fonte de inspiração, de motivação para as pessoas atingirem os seus «everestes».
«EU E O MILLENNIUM BCP NÃO DESISTIMOS» O “slogan” de boas-vindas no seu “website” oficial (www.joaogarcia.com) é inequívoco: «Escalar montanhas é a empresa da minha vida.» Questionado, numa entrevista recente, sobre o impacto negativo da crise financeira internacional na sua actividade, o alpinista português aponta no sentido inverso: «A minha imagem tornou-se mais importante para mostrar ao público que eu e o Millennium bcp não desistimos – com organização, trabalho árduo e paixão, podemos escalar até as montanhas mais altas.» Firmado o acordo de patrocínio com o Millennium bcp em 2005, o alpinista abandona a sua actividade como guia de montanha para se dedicar a cem por cento à aventura “À Conquista dos Picos do Mundo”, com o objectivo de escalar a última montanha em 2010. «O Millennium bcp deu-me condições de trabalho como nunca tive na vida», reconhece. Ao mesmo tempo, a perseverança, coragem e determinação de João Garcia permitiram estabelecer um paralelismo com as capacidades exigidas para o desenvolvimento de um projecto empresarial bem sucedido e sustentável a longo prazo. Mesmo antes de partir para a primeira expedição aos Himalaias, no âmbito deste projecto, João Garcia tornou-se no rosto das campanhas do Millennium bcp para o segmento Negócios. Afinal, «os valores do profissional da montanha são os valores do homem de negócios: todos queremos atingir o topo e sabemos que, inevitavelmente, nunca ficamos no topo».
24.magazine
janeiro/fevereiro 2010
setembro/outubro 2009
magazine.25
PERFIL FALADO
TEXTO JOÃO MESTRE FOTOGRAFIA LUIS DE BARROS
TROCOU 16 ANOS DE SIC PELOS NOVOS DESAFIOS DA TVI, O PRIMEIRO DELES “AGORA É QUE CONTA”, ONDE SE SENTE MUITO CONFORTÁVEL. E É SÓ O COMEÇO. «PRECISAVA DE MOSTRAR UMA OUTRA FÁTIMA, ANIMADA, DIVERTIDA, QUE GOSTA DE DAR UMA BOA GARGALHADA.»
GRANDES EXPECTATIVAS Fátima abre a porta com o sorriso radiante que lhe conhecemos da televisão. O seu camarim, no estúdio 3 da Valentim de Carvalho, em Paço de Arcos, é um espaço pequeno, sem grande aparato. Alinhadas sobre a mesa, junto à janela, várias garrafas de água, que bebe regularmente. Importa cuidar da voz, em especial agora que trabalha num registo diferente daquele a que está habituada. «Isto é muito diferente de um “talk show”, tenho de estar sempre “lá em cima”, a puxar pelas pessoas.» Para se defender, passou a fazer exercícios de tonificação e relaxamento vocal. «Chego ao fim do programa com a voz cansadíssima.» Passados dois meses de emissões diárias em directo, “Agora É Que Conta”, o seu primeiro programa na TVI, navega em velocidade de cruzeiro. A meros segundos de começar mais uma transmissão, pouco ou nenhum nervosismo se denota na 16.magazine
novembro/dezembro 2010
PERFIL FALADO
TEXTO JOÃO MESTRE FOTOGRAFIA LUIS DE BARROS
TROCOU 16 ANOS DE SIC PELOS NOVOS DESAFIOS DA TVI, O PRIMEIRO DELES “AGORA É QUE CONTA”, ONDE SE SENTE MUITO CONFORTÁVEL. E É SÓ O COMEÇO. «PRECISAVA DE MOSTRAR UMA OUTRA FÁTIMA, ANIMADA, DIVERTIDA, QUE GOSTA DE DAR UMA BOA GARGALHADA.»
GRANDES EXPECTATIVAS Fátima abre a porta com o sorriso radiante que lhe conhecemos da televisão. O seu camarim, no estúdio 3 da Valentim de Carvalho, em Paço de Arcos, é um espaço pequeno, sem grande aparato. Alinhadas sobre a mesa, junto à janela, várias garrafas de água, que bebe regularmente. Importa cuidar da voz, em especial agora que trabalha num registo diferente daquele a que está habituada. «Isto é muito diferente de um “talk show”, tenho de estar sempre “lá em cima”, a puxar pelas pessoas.» Para se defender, passou a fazer exercícios de tonificação e relaxamento vocal. «Chego ao fim do programa com a voz cansadíssima.» Passados dois meses de emissões diárias em directo, “Agora É Que Conta”, o seu primeiro programa na TVI, navega em velocidade de cruzeiro. A meros segundos de começar mais uma transmissão, pouco ou nenhum nervosismo se denota na 16.magazine
novembro/dezembro 2010
PERFIL FALADO
FÁTIMA LOPES
‘ORGULHO-ME DE TODOS OS FORMATOS QUE FIZ. TIVE SEMPRE A SORTE DE TRABALHAR COM GRANDES PROFISSIONAIS.’
apresentadora. «Mas quando estreio um formato novo ainda fico nervosa, com a respiração acelerada», admite. «Só percebe quem me conhece bem – é uma coisa que se vai aprendendo a disfarçar.» Afinal, são 16 anos de experiência, passados na quase totalidade ao serviço da SIC. Fátima Lopes percorreu um longo caminho desde o dia em que, sem saber bem como nem porquê, se viu diante de uma câmara a apresentar o “reality show” “Perdoa-me” (1994). Para dificultar as coisas, alguém decidiu à última hora que não haveria teleponto. «Foi-se o chão! Na minha cabeça, aquilo era fundamental!», recorda agora. A estreia esgotou-a: «Fiquei fisicamente abaladíssima. Foi tal a concentração de adrenalina que estive uma semana sem conseguir sorrir, de tão doridos que estavam os meus músculos do rosto.» Hoje em dia, tudo lhe sai com uma naturalidade desarmante, seja a entrevistar um convidado, a dirigir-se ao telespectador ou mesmo enquanto se levanta do chão depois de uma queda em directo – aconteceu-lhe na estreia de “Agora É Que Conta”. «Há sempre uma primeira vez», desdramatizou de imediato, sem perder a compostura. O seu jeito amigável de lidar com pessoas valeu-lhe o título de “Oprah portuguesa”, que encara como um elogio. «A Oprah Winfrey é a melhor naquele género, sabe tratar qualquer tema no registo certo. Vejo o programa como uma aluna, a escutar a lição do mestre.» No entanto, não afina só por esse diapasão. «Não trabalho por comparação, mas sim para ser boa naquilo que faço, no meu estilo, para surpreender o público em primeiro lugar – e, se possível, surpreender-me também a mim.» Curiosamente, passa tanto tempo a trabalhar em televisão (ou, quando está em casa, a cuidar dos filhos) que não lhe sobra muito para ser telespectadora. Ainda assim, gosta de se manter a par do que se faz nos outros canais, sejam estrangeiros ou portugueses. «É particularmente importante saber o que está a ser feito pelos meus colegas», mesmo os que trabalham na concorrência. «Tenho uma relação de amizade com muitos deles e gostamos de trocar ideias quando estamos juntos.» Em Julho passado, decidiu colocar um ponto final na sua ligação à SIC. «Estava há muitos anos a fazer o mesmo género de formatos, precisava de sentir que havia desafios novos para mim.» Que tipo de desafios? «Coisas mais leves, mais bem-dispostas. Fiz programas com uma grande intensidade emocional e dramática, o que, ano após ano, acaba por nos deixar um pouco fragilizados.» Programas como “Fátima Lopes” (1998), “SIC 10 Horas” (2002-2005) ou “Fátima” (2006-2008) – com os quais ainda se identifica. «Queria um pouco de oxigénio, mostrar uma outra Fátima, animada, divertida, que gosta de dar uma boa gargalhada.» É essa «outra Fátima» que aparece quando está longe das câmaras. Uma pessoa de pés bem assentes no chão e de um optimismo contagiante. O estatuto de celebridade não a deslumbra, nem tão-pouco a incomoda. Numa entrevista recente ao “Correio da Manhã”, recordava as palavras da mãe quando
começou a trabalhar na televisão: «Não te deslumbres. Nunca tires os pés da terra. Lembra-te sempre de quem és.» Seguiu à risca o conselho. «Percebi desde o primeiro minuto o que é deixar de ser anónima e como lidar com isso.» Na rua é constantemente abordada por admiradores. «O facto de ter feito tantos programas em que procurei ajudar pessoas fez com que me vissem como uma amiga, uma confidente. As pessoas são carinhosas comigo, são afectuosas, dirigem-se a mim com a confiança que normalmente só temos com o nosso melhor amigo.» Além do público – que, em 1999, a elegeu “Apresentadora Mais Popular” nos prémios da revista “TV Guia”, e “Melhor Apresentadora de Entretenimento” nos Troféus Nova Gente –, também a Casa da Imprensa lhe reconheceu o mérito profissional, atribuindo-lhe o galardão de “Melhor Apresentadora de Entretenimento”, em 2004. Acredite-se ou não, Fátima Lopes nunca achou que tivesse talento para a televisão. Foi Emídio Rangel – com quem contactava regularmente, no âmbito das suas funções como responsável pela área comercial da Interinfo, empresa de audiotexto com contrato de exclusividade com a SIC – que a descobriu. Sem o seu conhecimento, o então director de programas da estação de Carnaxide inscreveu-a para um “casting” e convocou-a como se de uma reunião rotineira se tratasse. A responsabilidade era grande: substituir Alexandra Lencastre na condução de “Perdoa-me”. O risco de falhar, enorme. Tão grande quanto o desafio. Fátima Lopes não se deixou intimidar pela «armadilha» de Rangel. Arriscou. E, passados 16 anos, não se arrepende da opção. Caso contrário, não estaria onde está agora. E, em televisão, o «agora» é sempre o que mais conta. novembro/dezembro 2010
magazine.19
PERFIL FALADO
FÁTIMA LOPES
‘ORGULHO-ME DE TODOS OS FORMATOS QUE FIZ. TIVE SEMPRE A SORTE DE TRABALHAR COM GRANDES PROFISSIONAIS.’
apresentadora. «Mas quando estreio um formato novo ainda fico nervosa, com a respiração acelerada», admite. «Só percebe quem me conhece bem – é uma coisa que se vai aprendendo a disfarçar.» Afinal, são 16 anos de experiência, passados na quase totalidade ao serviço da SIC. Fátima Lopes percorreu um longo caminho desde o dia em que, sem saber bem como nem porquê, se viu diante de uma câmara a apresentar o “reality show” “Perdoa-me” (1994). Para dificultar as coisas, alguém decidiu à última hora que não haveria teleponto. «Foi-se o chão! Na minha cabeça, aquilo era fundamental!», recorda agora. A estreia esgotou-a: «Fiquei fisicamente abaladíssima. Foi tal a concentração de adrenalina que estive uma semana sem conseguir sorrir, de tão doridos que estavam os meus músculos do rosto.» Hoje em dia, tudo lhe sai com uma naturalidade desarmante, seja a entrevistar um convidado, a dirigir-se ao telespectador ou mesmo enquanto se levanta do chão depois de uma queda em directo – aconteceu-lhe na estreia de “Agora É Que Conta”. «Há sempre uma primeira vez», desdramatizou de imediato, sem perder a compostura. O seu jeito amigável de lidar com pessoas valeu-lhe o título de “Oprah portuguesa”, que encara como um elogio. «A Oprah Winfrey é a melhor naquele género, sabe tratar qualquer tema no registo certo. Vejo o programa como uma aluna, a escutar a lição do mestre.» No entanto, não afina só por esse diapasão. «Não trabalho por comparação, mas sim para ser boa naquilo que faço, no meu estilo, para surpreender o público em primeiro lugar – e, se possível, surpreender-me também a mim.» Curiosamente, passa tanto tempo a trabalhar em televisão (ou, quando está em casa, a cuidar dos filhos) que não lhe sobra muito para ser telespectadora. Ainda assim, gosta de se manter a par do que se faz nos outros canais, sejam estrangeiros ou portugueses. «É particularmente importante saber o que está a ser feito pelos meus colegas», mesmo os que trabalham na concorrência. «Tenho uma relação de amizade com muitos deles e gostamos de trocar ideias quando estamos juntos.» Em Julho passado, decidiu colocar um ponto final na sua ligação à SIC. «Estava há muitos anos a fazer o mesmo género de formatos, precisava de sentir que havia desafios novos para mim.» Que tipo de desafios? «Coisas mais leves, mais bem-dispostas. Fiz programas com uma grande intensidade emocional e dramática, o que, ano após ano, acaba por nos deixar um pouco fragilizados.» Programas como “Fátima Lopes” (1998), “SIC 10 Horas” (2002-2005) ou “Fátima” (2006-2008) – com os quais ainda se identifica. «Queria um pouco de oxigénio, mostrar uma outra Fátima, animada, divertida, que gosta de dar uma boa gargalhada.» É essa «outra Fátima» que aparece quando está longe das câmaras. Uma pessoa de pés bem assentes no chão e de um optimismo contagiante. O estatuto de celebridade não a deslumbra, nem tão-pouco a incomoda. Numa entrevista recente ao “Correio da Manhã”, recordava as palavras da mãe quando
começou a trabalhar na televisão: «Não te deslumbres. Nunca tires os pés da terra. Lembra-te sempre de quem és.» Seguiu à risca o conselho. «Percebi desde o primeiro minuto o que é deixar de ser anónima e como lidar com isso.» Na rua é constantemente abordada por admiradores. «O facto de ter feito tantos programas em que procurei ajudar pessoas fez com que me vissem como uma amiga, uma confidente. As pessoas são carinhosas comigo, são afectuosas, dirigem-se a mim com a confiança que normalmente só temos com o nosso melhor amigo.» Além do público – que, em 1999, a elegeu “Apresentadora Mais Popular” nos prémios da revista “TV Guia”, e “Melhor Apresentadora de Entretenimento” nos Troféus Nova Gente –, também a Casa da Imprensa lhe reconheceu o mérito profissional, atribuindo-lhe o galardão de “Melhor Apresentadora de Entretenimento”, em 2004. Acredite-se ou não, Fátima Lopes nunca achou que tivesse talento para a televisão. Foi Emídio Rangel – com quem contactava regularmente, no âmbito das suas funções como responsável pela área comercial da Interinfo, empresa de audiotexto com contrato de exclusividade com a SIC – que a descobriu. Sem o seu conhecimento, o então director de programas da estação de Carnaxide inscreveu-a para um “casting” e convocou-a como se de uma reunião rotineira se tratasse. A responsabilidade era grande: substituir Alexandra Lencastre na condução de “Perdoa-me”. O risco de falhar, enorme. Tão grande quanto o desafio. Fátima Lopes não se deixou intimidar pela «armadilha» de Rangel. Arriscou. E, passados 16 anos, não se arrepende da opção. Caso contrário, não estaria onde está agora. E, em televisão, o «agora» é sempre o que mais conta. novembro/dezembro 2010
magazine.19
PERFIL FALADO
FÁTIMA LOPES
DATAS. 1969. A 13 de Maio nasce, no Barreiro, Maria de Fátima Eleutério Lopes. gora É Que Conta” é para durar até quando?
Não sabemos. É um programa muito «reciclável», não tem de ser igual todos os dias. Podemos introduzir jogos novos. Será o percurso do programa a ditar a sua longevidade: pode durar uns meses, pode durar anos. Ao mudar para a TVI, ficaram ressentimentos com a SIC? A porta fechou-se?
A minha relação com o dr. Balsemão sempre foi muito próxima. É uma pessoa de quem gosto mesmo muito, ele sabe disso. Não sei se a SIC é uma porta fechada: não faço futurologia. O que interessa é que saí. Mas mantenho contacto próximo com os amigos que lá tinha – curiosamente, até nos vemos com mais regularidade agora. Não há ressentimentos, pelo menos da minha parte. E acho que quem lá está tem de aceitar a minha saída com compreensão, respeito e, como foi dito na altura, com votos de que as coisas me corram bem. Que outros projectos podem vir desta nova ligação à TVI?
Não posso revelar. Só posso dizer que há muito para fazer. E o que gostaria de fazer?
Tanta coisa! Está a ser uma descoberta fazer este tipo de formatos puramente de entretenimento. Percebi que me divirto imenso e que posso brincar com as pessoas. Não sabia que me iria sentir tão à vontade. Portanto, posso vir a fazer mais coisas de entretenimento. Também surgirá a oportunidade de fazer programas mais centrados em conversas. Quem sabe algo de carácter solidário? Tenho a certeza de que a TVI me dará essa possibilidade. Que programa que mais gostou de fazer? Não vale dizer «aquele que estou a fazer agora».
Nunca digo isso. Nem consigo eleger um. Cada programa tem a sua particularidade. Se me perguntar com quais me diverti mais, adorei o “Surprise Show”, era só coisas positivas, fazer pessoas felizes. Nos programas de conversa, não consigo escolher entre o “Fátima Lopes”, o “Fátima”, o “SIC 10 Horas” e o “Vida Nova”. Qualquer um deles representava formatos de entrevista muito bons, muito estou-sentada-na-minha-sala-a-conversar-com-amigos. Há algum de que hoje não se orgulhe tanto de ter participado?
Orgulho-me de tudo. Não tenho complexos em relação aos formatos que fiz. Comecei por aquilo a que na altura se chamava “reality show”. Orgulho-me de ter começado por aí: aprendi a fazer entretenimento. Depois vieram os “talk shows”, onde desenvolvi a técnica de entrevista. Todos contribuíram, à sua maneira, para o meu crescimento. Tive sempre a sorte de trabalhar com grandes profissionais. Só tenho de estar agradecida e nunca renegar aquilo que me permitiu fazer escola. Qual foi o momento menos bom destes últimos 16 anos?
Eventualmente quando fiz a “Roda dos Milhões”. Foi a única vez que trabalhei com o Jorge Gabriel, um óptimo apresentador, de quem gosto muito. Ele já fazia o programa 20.magazine
novembro/dezembro 2010
havia muito tempo, tinha imenso à-vontade, e procurou facilitar-me a vida ao máximo, cativar-me. Mas eu não me identificava com a mecânica daquilo, a forma como se processava no “plateau”. Além da televisão, tem também carreira como romancista.
Não é uma carreira... [risos] Enquanto não se atinge uma mão-cheia, ainda não é uma carreira. Continua entusiasmada com a escrita?
Sim, quero voltar a escrever. Deixei de fazê-lo quando nasceu o meu filho, por razões óbvias. Escrevi o meu terceiro livro durante a gravidez e publiquei-o 15 dias antes de o Filipe nascer. Há mulheres que ficam sonolentas, com pouca energia durante a gravidez. Comigo é o contrário, as minhas baterias duplicam. Entretanto, a minha prioridade passou a ser o bebé e escrever exige disponibilidade, tempo, maturação de ideias. Por isso, deixei a escrita em “standby”, mas retomarei assim que for possível. Também já fez algumas experiências como actriz.
Diria antes que fiz umas participações especiais. Chamar-me actriz é ofender as actrizes e os actores que muito trabalham para fazer o que fazem. Mas ainda fez umas quantas participações especiais…
Fiz um filme, um telefilme e algumas séries da SIC. Mas repito: não sou actriz, não tenho pretensões de o ser e acho que o convite foi exactamente nesse sentido, pôr a Fátima Lopes num papel que não o de Fátima Lopes, introduzir um factor inesperado para surpreender o espectador. É dessa forma que encaro os convites – não será pelo talento, sejamos realistas.
1991. Licenciou-se em comunicação social, na Universidade Nova de Lisboa, na vertente de marketing e publicidade. Foi responsável de marketing da revista “Em Forma”, de comunicação e imagem do Grupo Semanário Económico e novamente de marketing na Bausch & Lomb. 1994. Trabalhava na empresa de audiotexto Interinfo quando Emídio Rangel, director de programas, a convoca para um “casting”. É escolhida para apresentar “Perdoa-me”. Sucedem-se “All You Need Is Love” e “Surprise Show” (1995). 1998. Estreia-se nos “talk shows” em nome próprio com “Fátima Lopes”. Seguem-se “SIC 10 Horas” (2002-2005), “Fátima” (2006-2008) e “Vida Nova” (2009-2010). 1999. Os leitores da “TV Guia” escolhem-na como “Apresentadora Mais Popular” e recebe o troféu Nova Gente de “Melhor Apresentadora de Entretenimento” — distinção que a Casa da Imprensa reforça em 2004.
2006. Lança o seu primeiro livro, “Amar-te Depois de Amar-te” (Esfera dos Livros). Publica depois “Um Pequeno Grande Amor” (2007) e “A Viagem de Luz e Quim” (2009). 2009. Depois da participação em séries como “Médico de Família” e “Floribella”, estreia-se no cinema como mulher de Paulo Pires, em “Second Life”, de Miguel Gaudêncio.
2010. Deixa a SIC. “Agora É Que Conta” é o primeiro projecto na TVI. novembro/dezembro 2010
magazine.21
PERFIL FALADO
FÁTIMA LOPES
DATAS. 1969. A 13 de Maio nasce, no Barreiro, Maria de Fátima Eleutério Lopes. gora É Que Conta” é para durar até quando?
Não sabemos. É um programa muito «reciclável», não tem de ser igual todos os dias. Podemos introduzir jogos novos. Será o percurso do programa a ditar a sua longevidade: pode durar uns meses, pode durar anos. Ao mudar para a TVI, ficaram ressentimentos com a SIC? A porta fechou-se?
A minha relação com o dr. Balsemão sempre foi muito próxima. É uma pessoa de quem gosto mesmo muito, ele sabe disso. Não sei se a SIC é uma porta fechada: não faço futurologia. O que interessa é que saí. Mas mantenho contacto próximo com os amigos que lá tinha – curiosamente, até nos vemos com mais regularidade agora. Não há ressentimentos, pelo menos da minha parte. E acho que quem lá está tem de aceitar a minha saída com compreensão, respeito e, como foi dito na altura, com votos de que as coisas me corram bem. Que outros projectos podem vir desta nova ligação à TVI?
Não posso revelar. Só posso dizer que há muito para fazer. E o que gostaria de fazer?
Tanta coisa! Está a ser uma descoberta fazer este tipo de formatos puramente de entretenimento. Percebi que me divirto imenso e que posso brincar com as pessoas. Não sabia que me iria sentir tão à vontade. Portanto, posso vir a fazer mais coisas de entretenimento. Também surgirá a oportunidade de fazer programas mais centrados em conversas. Quem sabe algo de carácter solidário? Tenho a certeza de que a TVI me dará essa possibilidade. Que programa que mais gostou de fazer? Não vale dizer «aquele que estou a fazer agora».
Nunca digo isso. Nem consigo eleger um. Cada programa tem a sua particularidade. Se me perguntar com quais me diverti mais, adorei o “Surprise Show”, era só coisas positivas, fazer pessoas felizes. Nos programas de conversa, não consigo escolher entre o “Fátima Lopes”, o “Fátima”, o “SIC 10 Horas” e o “Vida Nova”. Qualquer um deles representava formatos de entrevista muito bons, muito estou-sentada-na-minha-sala-a-conversar-com-amigos. Há algum de que hoje não se orgulhe tanto de ter participado?
Orgulho-me de tudo. Não tenho complexos em relação aos formatos que fiz. Comecei por aquilo a que na altura se chamava “reality show”. Orgulho-me de ter começado por aí: aprendi a fazer entretenimento. Depois vieram os “talk shows”, onde desenvolvi a técnica de entrevista. Todos contribuíram, à sua maneira, para o meu crescimento. Tive sempre a sorte de trabalhar com grandes profissionais. Só tenho de estar agradecida e nunca renegar aquilo que me permitiu fazer escola. Qual foi o momento menos bom destes últimos 16 anos?
Eventualmente quando fiz a “Roda dos Milhões”. Foi a única vez que trabalhei com o Jorge Gabriel, um óptimo apresentador, de quem gosto muito. Ele já fazia o programa 20.magazine
novembro/dezembro 2010
havia muito tempo, tinha imenso à-vontade, e procurou facilitar-me a vida ao máximo, cativar-me. Mas eu não me identificava com a mecânica daquilo, a forma como se processava no “plateau”. Além da televisão, tem também carreira como romancista.
Não é uma carreira... [risos] Enquanto não se atinge uma mão-cheia, ainda não é uma carreira. Continua entusiasmada com a escrita?
Sim, quero voltar a escrever. Deixei de fazê-lo quando nasceu o meu filho, por razões óbvias. Escrevi o meu terceiro livro durante a gravidez e publiquei-o 15 dias antes de o Filipe nascer. Há mulheres que ficam sonolentas, com pouca energia durante a gravidez. Comigo é o contrário, as minhas baterias duplicam. Entretanto, a minha prioridade passou a ser o bebé e escrever exige disponibilidade, tempo, maturação de ideias. Por isso, deixei a escrita em “standby”, mas retomarei assim que for possível. Também já fez algumas experiências como actriz.
Diria antes que fiz umas participações especiais. Chamar-me actriz é ofender as actrizes e os actores que muito trabalham para fazer o que fazem. Mas ainda fez umas quantas participações especiais…
Fiz um filme, um telefilme e algumas séries da SIC. Mas repito: não sou actriz, não tenho pretensões de o ser e acho que o convite foi exactamente nesse sentido, pôr a Fátima Lopes num papel que não o de Fátima Lopes, introduzir um factor inesperado para surpreender o espectador. É dessa forma que encaro os convites – não será pelo talento, sejamos realistas.
1991. Licenciou-se em comunicação social, na Universidade Nova de Lisboa, na vertente de marketing e publicidade. Foi responsável de marketing da revista “Em Forma”, de comunicação e imagem do Grupo Semanário Económico e novamente de marketing na Bausch & Lomb. 1994. Trabalhava na empresa de audiotexto Interinfo quando Emídio Rangel, director de programas, a convoca para um “casting”. É escolhida para apresentar “Perdoa-me”. Sucedem-se “All You Need Is Love” e “Surprise Show” (1995). 1998. Estreia-se nos “talk shows” em nome próprio com “Fátima Lopes”. Seguem-se “SIC 10 Horas” (2002-2005), “Fátima” (2006-2008) e “Vida Nova” (2009-2010). 1999. Os leitores da “TV Guia” escolhem-na como “Apresentadora Mais Popular” e recebe o troféu Nova Gente de “Melhor Apresentadora de Entretenimento” — distinção que a Casa da Imprensa reforça em 2004.
2006. Lança o seu primeiro livro, “Amar-te Depois de Amar-te” (Esfera dos Livros). Publica depois “Um Pequeno Grande Amor” (2007) e “A Viagem de Luz e Quim” (2009). 2009. Depois da participação em séries como “Médico de Família” e “Floribella”, estreia-se no cinema como mulher de Paulo Pires, em “Second Life”, de Miguel Gaudêncio.
2010. Deixa a SIC. “Agora É Que Conta” é o primeiro projecto na TVI. novembro/dezembro 2010
magazine.21
PERFIL FALADO
FÁTIMA LOPES
DISCURSO DIRECTO.
NUNCA PENSEI FAZER TELEVISÃO. ACHAVA QUE NÃO TINHA VOCAÇÃO. QUANDO ENTREI PARA A UNIVERSIDADE, QUERIA SEGUIR JORNALISMO ESCRITO. ACHAVA QUE, EM TELEVISÃO, A PIADA ERA ESTAR À FRENTE DA CÂMARA – E EU NÃO TINHA ATRIBUTOS FÍSICOS NEM QUALIDADES PARA ISSO. A primeira vez que enfrentei uma câmara foi horrível. Foi tal a concentração de adrenalina que estive uma semana sem conseguir sorrir, de tão doridos que estavam os meus músculos do rosto. Fiquei fisicamente abaladíssima. Só com o tempo fui aprendendo a relaxar.
ao longo dos anos fui ganhando tarimba a perceber as pessoas. Claro que é elogioso se me compararem à Oprah Winfrey. Mas não tra-
Orgulho-me de tudo o que fiz. Comecei por aquilo a que na altura se chamava “reality show” e que hoje não é nada – o que era o “Perdoa-me” ou o “Surprise Show” comparado com os actuais “reality shows”? Uma brincadeira. Na altura foi muito polémico.
balho para que me comparem a ninguém. Sempre achei as imitações piores do que os originais.
Ainda hoje, quando estreio um formato novo, fico nervosa. Acho que é sinal de responsabilidade. Fico com a respiração acelerada, quem me conhece bem percebe – mas é uma coisa que se vai aprendendo a disfarçar.
Percebi desde o primeiro minuto o que é deixar de ser anónima. O trabalho
Gosto de entrevistar todo o tipo de pessoas. É esse o desafio: falar tanto com alguém de elevado nível cultural como com uma pessoa que é analfabeta mas tem uma experiência de vida enorme. As maiores lições, aprendi-as com essas pessoas de quem, à partida, não se esperaria nada. As pessoas falam-me muito na rua, são carinhosas comigo. O facto de ter feito, durante tantos anos, programas em que procurei ajudar pessoas fez com que sentissem em mim, mais do que uma apresentadora, uma amiga, uma confidente. Mas noto quando vão pela via do choradinho: quando querem que eu me sensibilize com a sua história, há quem seja capaz de fazer de uma pedrinha uma rocha. Eu sinto quando não é «bem» verdade, já aconteceu várias vezes. No entanto,
que faço é igual a ter exposição pública, a ser reconhecida em qualquer lado que vá e faça o que fizer. Aceite esta condição, temos de aprender a lidar com ela sem que nos faça mal. E eu aceitei-a de forma pacífica, pelo que não ando à guerra com isso. A melhor parte desta vida? O reconhecimento das pessoas e a ajuda que este trabalho permite dar: a melhor recompensa é quando nós, graças àquilo que fazemos, conseguimos mudar a vida de uma pessoa, de uma família, de uma instituição. Vale a pena ser figura pública por isso. l
TOME NOTA. Com uma carreira de sucesso na televisão e amplo reconhecimento do seu profissionalismo pelo público, Fátima Lopes é o rosto das campanhas da Médis desde 2008. Na mais recente, sob o tema “Junte-se à Família Médis”, a apresentadora
revela o verdadeiro segredo da Médis: Faz bem à Saúde. Esta campanha traz a novidade de oferecer a 12ª mensalidade no 1º ano para novas subscrições do Seguro de Saúde efectuadas até 31/12/2010, aplicável a todas as Opções Individuais e de Empresas. A Médis conta com 6000
médicos, 90 hospitais, 600 clínicas, 1500 centros de meios complementares de diagnóstico e a Linha Médis de Atendimento Especializado disponível 24h por dia. São já 450 mil portugueses a subscrever este Seguro de Saúde. Não dispensa a consulta da informação pré-contratual e
contratual legalmente exigida. Médis - Companhia Portuguesa de Seguros de Saúde, SA | Sede: Av. José Malhoa, 27, Lisboa | Pessoa Colectiva 503496944 matriculada sob esse número na Conservatória do Registo Comercial de Lisboa | Capital Social: 12.000.000€
I Assistente de fotografia: Filipe Serralheiro e Hugo José I Pós produção: Álvaro Teixeira novembro/dezembro 2010
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PERFIL FALADO
FÁTIMA LOPES
DISCURSO DIRECTO.
NUNCA PENSEI FAZER TELEVISÃO. ACHAVA QUE NÃO TINHA VOCAÇÃO. QUANDO ENTREI PARA A UNIVERSIDADE, QUERIA SEGUIR JORNALISMO ESCRITO. ACHAVA QUE, EM TELEVISÃO, A PIADA ERA ESTAR À FRENTE DA CÂMARA – E EU NÃO TINHA ATRIBUTOS FÍSICOS NEM QUALIDADES PARA ISSO. A primeira vez que enfrentei uma câmara foi horrível. Foi tal a concentração de adrenalina que estive uma semana sem conseguir sorrir, de tão doridos que estavam os meus músculos do rosto. Fiquei fisicamente abaladíssima. Só com o tempo fui aprendendo a relaxar.
ao longo dos anos fui ganhando tarimba a perceber as pessoas. Claro que é elogioso se me compararem à Oprah Winfrey. Mas não tra-
Orgulho-me de tudo o que fiz. Comecei por aquilo a que na altura se chamava “reality show” e que hoje não é nada – o que era o “Perdoa-me” ou o “Surprise Show” comparado com os actuais “reality shows”? Uma brincadeira. Na altura foi muito polémico.
balho para que me comparem a ninguém. Sempre achei as imitações piores do que os originais.
Ainda hoje, quando estreio um formato novo, fico nervosa. Acho que é sinal de responsabilidade. Fico com a respiração acelerada, quem me conhece bem percebe – mas é uma coisa que se vai aprendendo a disfarçar.
Percebi desde o primeiro minuto o que é deixar de ser anónima. O trabalho
Gosto de entrevistar todo o tipo de pessoas. É esse o desafio: falar tanto com alguém de elevado nível cultural como com uma pessoa que é analfabeta mas tem uma experiência de vida enorme. As maiores lições, aprendi-as com essas pessoas de quem, à partida, não se esperaria nada. As pessoas falam-me muito na rua, são carinhosas comigo. O facto de ter feito, durante tantos anos, programas em que procurei ajudar pessoas fez com que sentissem em mim, mais do que uma apresentadora, uma amiga, uma confidente. Mas noto quando vão pela via do choradinho: quando querem que eu me sensibilize com a sua história, há quem seja capaz de fazer de uma pedrinha uma rocha. Eu sinto quando não é «bem» verdade, já aconteceu várias vezes. No entanto,
que faço é igual a ter exposição pública, a ser reconhecida em qualquer lado que vá e faça o que fizer. Aceite esta condição, temos de aprender a lidar com ela sem que nos faça mal. E eu aceitei-a de forma pacífica, pelo que não ando à guerra com isso. A melhor parte desta vida? O reconhecimento das pessoas e a ajuda que este trabalho permite dar: a melhor recompensa é quando nós, graças àquilo que fazemos, conseguimos mudar a vida de uma pessoa, de uma família, de uma instituição. Vale a pena ser figura pública por isso. l
TOME NOTA. Com uma carreira de sucesso na televisão e amplo reconhecimento do seu profissionalismo pelo público, Fátima Lopes é o rosto das campanhas da Médis desde 2008. Na mais recente, sob o tema “Junte-se à Família Médis”, a apresentadora
revela o verdadeiro segredo da Médis: Faz bem à Saúde. Esta campanha traz a novidade de oferecer a 12ª mensalidade no 1º ano para novas subscrições do Seguro de Saúde efectuadas até 31/12/2010, aplicável a todas as Opções Individuais e de Empresas. A Médis conta com 6000
médicos, 90 hospitais, 600 clínicas, 1500 centros de meios complementares de diagnóstico e a Linha Médis de Atendimento Especializado disponível 24h por dia. São já 450 mil portugueses a subscrever este Seguro de Saúde. Não dispensa a consulta da informação pré-contratual e
contratual legalmente exigida. Médis - Companhia Portuguesa de Seguros de Saúde, SA | Sede: Av. José Malhoa, 27, Lisboa | Pessoa Colectiva 503496944 matriculada sob esse número na Conservatória do Registo Comercial de Lisboa | Capital Social: 12.000.000€
I Assistente de fotografia: Filipe Serralheiro e Hugo José I Pós produção: Álvaro Teixeira novembro/dezembro 2010
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ENTREVISTAS vol. I & PERFIS
(m magazine)
Ljubomir Stanisic Jorge Silva Sofia Escobar João Salaviza Malcolm Gladwell Gonçalo Cadilhe Guta Moura Guedes Roberta e Roberto Medina Ricardo Pereira Isabel Jonet António Victorino d’Almeida Aurea João Garcia Fátima Lopes