ENTREVISTAS vol. II & PERFIS
(t magazine)
Tiago “Saca” Pires Equipa “Manhãs da Comercial” Tiago Monteiro Carlos Sousa Miguel Câncio Martins Telma Monteiro Joana Vasconcelos Michelle Larcher de Brito Zé Diogo Quintela André Carrilho Malú Magalhães Edgar Martins Armindo Araújo Colectivo G.A.N.A. Nuno Ribeiro Lopes Bárbara Coutinho João Garcia
directo
I surf I
TIAGO PIRES
DOIS DEDOS DE CONVERSA COM O MELHOR SURFISTA PORTUGUÊS DE SEMPRE.
EM
OLHAR FRENTE 14
2007
F
ala pausadamente, pensando metodicamente cada resposta que dá – como se estivesse a escolher a onda perfeita para surfar. Nascido em Lisboa, em 1980, Tiago Pires – também conhecido como “Saca”, alcunha de infância que se recusa a desvendar – é o pri meiro português a conseguir um lugar no ASP World Tour, a divisão de elite do surf mundial. Encontrámo-lo na praia de Ribeira d’Ilhas, Ericeira, num curto intervalo entre provas do circuito de qualificação (World Qualifying Series), que continua a disputar, até ao final de Novembro, sempre de olhos postos no primeiro lugar.
NOVE MBRO , DE ZE MBRO
NOVE MBRO , DE ZE MBRO
2007
TEXTO JOÃO MESTRE FOTOGRAFIAS PEDRO LOUREIRO
15
directo
I surf I
TIAGO PIRES
DOIS DEDOS DE CONVERSA COM O MELHOR SURFISTA PORTUGUÊS DE SEMPRE.
EM
OLHAR FRENTE 14
2007
F
ala pausadamente, pensando metodicamente cada resposta que dá – como se estivesse a escolher a onda perfeita para surfar. Nascido em Lisboa, em 1980, Tiago Pires – também conhecido como “Saca”, alcunha de infância que se recusa a desvendar – é o pri meiro português a conseguir um lugar no ASP World Tour, a divisão de elite do surf mundial. Encontrámo-lo na praia de Ribeira d’Ilhas, Ericeira, num curto intervalo entre provas do circuito de qualificação (World Qualifying Series), que continua a disputar, até ao final de Novembro, sempre de olhos postos no primeiro lugar.
NOVE MBRO , DE ZE MBRO
NOVE MBRO , DE ZE MBRO
2007
TEXTO JOÃO MESTRE FOTOGRAFIAS PEDRO LOUREIRO
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directo I surf I
1993. Estreou-se em competição, no Circuito Nacional de Esperanças. Terminou o ano em 3º lugar – e com vontade de mais. No ano seguinte, venceu todas as provas e sagrou-se campeão nacional de sub-14. Em 1995, venceu nos sub-16.
1996. Pede, em busca de maior desafio, que o deixem mudar para um escalão acima do seu. Na sequência da resposta negativa ao pedido, resolve abandonar a competição nacional e dar o primeiro passo da sua carreira internacional, integrando o Circuito Europeu Open.
1998. Sagra-se duplamente vice-campeão de juniores: no campeonato europeu de “Prós" e no campeonato mundial.
1999. Após concluir o
MIND SURF “[ANTES DE ENTRAR EM PROVA] MANTENHO-ME MUITO CONCENTRADO NAS CONDIÇÕES DO MAR E VISUALIZO O QUE VOU FAZER NA PROVA. FAÇO O CHAMADO ‘MIND SURF’, OU SEJA: SURFAR COM A MENTE.”
12º ano, abdica da ida para a universidade para se tornar surfista profissional. Vence o campeonato profissional europeu de juniores. E surge na 75ª posição do ranking mundial WQS, circuito de acesso à divisão de elite.
Como e quando é que te iniciaste na prática do surf?
Iniciei-me aos onze anos, como uma brincadeira de Verão, aqui na Ericeira. Comecei por fazer body-board. Mas fui «obrigado» a mudar para o surf, pelo meu irmão mais velho e por alguns amigos. E foi assim que tudo começou. Na escola primária, quando o professor
pedia
uma
com-
posição sobre «o que quero ser quando for grande», já escrevias «surfista profissional»?
Não, na primária ainda nem sonhava com o surf. Em pequeno, queria ser arquitecto, adorava desenhar casas. Entretanto, com o passar dos anos, fiquei mais interessado em tornar-me jornalista. Mas acabei por não ir para a universidade: terminei o 12º ano e, entretanto, profissionalizei-me. Apesar das praias, do Sol, das ondas e de cenários como o Havai, a Austrália, as Maldivas: ser surfista profissional é um trabalho duro?
É, claro. É um desporto de alta competição como todos os outros. E é particularmente duro para mim, vindo de Portugal, onde não há uma grande tradição de surf. Tenho, por isso, de passar muito tempo no exterior, para estar junto dos maiores atletas do mundo e daí tentar «puxar» um bocado o meu nível. De resto, é um desporto muito exigente, como qualquer outro de alta competição. Temos de abdi car de muitas coisas, e estar ao máximo da nossa forma e das nossas capacidades. Quando vais de férias também levas a prancha, ou preferes não misturar trabalho com lazer?
Acho que o conceito de férias não
2007
Costumava passar férias, com os pais, na praia de S. Lourenço. A ligação ao mar começou pelo bodyboard – que, aos 11 anos, foi substituído pelo surf.
NOVE MBRO , DE ZE MBRO
1980. Nasce, em Lisboa.
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directo I surf I
1993. Estreou-se em competição, no Circuito Nacional de Esperanças. Terminou o ano em 3º lugar – e com vontade de mais. No ano seguinte, venceu todas as provas e sagrou-se campeão nacional de sub-14. Em 1995, venceu nos sub-16.
1996. Pede, em busca de maior desafio, que o deixem mudar para um escalão acima do seu. Na sequência da resposta negativa ao pedido, resolve abandonar a competição nacional e dar o primeiro passo da sua carreira internacional, integrando o Circuito Europeu Open.
1998. Sagra-se duplamente vice-campeão de juniores: no campeonato europeu de “Prós" e no campeonato mundial.
1999. Após concluir o
MIND SURF “[ANTES DE ENTRAR EM PROVA] MANTENHO-ME MUITO CONCENTRADO NAS CONDIÇÕES DO MAR E VISUALIZO O QUE VOU FAZER NA PROVA. FAÇO O CHAMADO ‘MIND SURF’, OU SEJA: SURFAR COM A MENTE.”
12º ano, abdica da ida para a universidade para se tornar surfista profissional. Vence o campeonato profissional europeu de juniores. E surge na 75ª posição do ranking mundial WQS, circuito de acesso à divisão de elite.
Como e quando é que te iniciaste na prática do surf?
Iniciei-me aos onze anos, como uma brincadeira de Verão, aqui na Ericeira. Comecei por fazer body-board. Mas fui «obrigado» a mudar para o surf, pelo meu irmão mais velho e por alguns amigos. E foi assim que tudo começou. Na escola primária, quando o professor
pedia
uma
com-
posição sobre «o que quero ser quando for grande», já escrevias «surfista profissional»?
Não, na primária ainda nem sonhava com o surf. Em pequeno, queria ser arquitecto, adorava desenhar casas. Entretanto, com o passar dos anos, fiquei mais interessado em tornar-me jornalista. Mas acabei por não ir para a universidade: terminei o 12º ano e, entretanto, profissionalizei-me. Apesar das praias, do Sol, das ondas e de cenários como o Havai, a Austrália, as Maldivas: ser surfista profissional é um trabalho duro?
É, claro. É um desporto de alta competição como todos os outros. E é particularmente duro para mim, vindo de Portugal, onde não há uma grande tradição de surf. Tenho, por isso, de passar muito tempo no exterior, para estar junto dos maiores atletas do mundo e daí tentar «puxar» um bocado o meu nível. De resto, é um desporto muito exigente, como qualquer outro de alta competição. Temos de abdi car de muitas coisas, e estar ao máximo da nossa forma e das nossas capacidades. Quando vais de férias também levas a prancha, ou preferes não misturar trabalho com lazer?
Acho que o conceito de férias não
2007
Costumava passar férias, com os pais, na praia de S. Lourenço. A ligação ao mar começou pelo bodyboard – que, aos 11 anos, foi substituído pelo surf.
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1980. Nasce, em Lisboa.
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directo I surf I
SURF CAMP. Tiago Pires foi a figura central da iniciativa “TMN Saca Tour”, uma série de “surf camps” destinados aos jovens dos 10 aos 16 anos – que tiveram, assim, a oportunidade de se aperfeiçoar na modalidade, aprendendo com alguns dos melhores surfistas portugueses da actualidade. O TOUR. A digressão, que decorreu entre 26 de Maio e 1 de Julho, passou por São Torpes (Sines), Espinho e Ericeira. No total dos três “surf camps”, participaram duas centenas de jovens surfistas.
se aplica muito ao meu caso. Férias é quando estou em casa a relaxar, sem pensar em campeonatos – aí é que eu posso dizer que estou de férias. De
resto,
estás
sempre
a
trabal har…
NOVE MBRO , DE ZE MBRO
2007
Exacto.
18
Enquanto lutavas por um lugar no ASP World Tour, alguma vez tiveste um “feeling” de «este ano é que vai ser»?
Sim, no início deste ano tive um sentimento de que iria ser desta.
Porque comecei bastante bem, ao contrário daquilo que aconteceu nos anos anteriores. Tenho vindo a trabalhar com um psicólogo, que tem solidificado muito a minha parte psíquica e me tem ajudado bastante. Tenho tido mais confiança em mim mesmo e conseguido momentos mais regulares ao longo do ano (que era exactamente o que me faltava nos anos anteriores).
A NOSSA «SELECÇÃO». Para além de Tiago Pires, a equipa do TMN Saca Tour contou também com César Rocha (18 anos; vice-campeão europeu juniores / colectivo 2006), David Raimundo (28; 4º lugar no ranking do Surf Open 2006), Francisca Pereira dos Santos (17; 6ª classificada do Circuito Pro-Junior Europeu 2006), Frederico Morais (14; campeão nacional pro-júnior sub-21 2006), João Guedes (22; vice-campeão luso-galaico 2006), Joana Rocha (28; vice-campeã nacional open 2006), Miguel Ximenez (20; vice-campeão do Circuito Nacional Pro-Júnior 2006) e Vasco Ribeiro (12; campeão nacional sub-12 2006).
primeiro lugar do World Quali fying Series (WQS) ou já estás com
a
cabeça
na
próxima
época?
Continuo, sim, continuo a pensar no primeiro lugar. Mas o ano já se está a aproximar do fim, e, aos poucos, também tenho de ir programando o ano que se segue. Mas, acima de tudo, a prioridade é ficar o mais alto que consiga no “ranking” do WQS. Se possível, em primeiro lugar; mas se ficar no top 3 ou no top 5, também será muito bom. Como esperas que seja o ambiente e a vivência do World Tour?
Bem, suponho que se pareça um pouco com aquilo que tenho vivido nos últimos anos. Porém, com um grupo mais restrito de pessoas. Os campeonatos são maiores, com estruturas maiores e períodos de espera mais longos, o que faz com que seja diferente da realidade que vivi este ano. Mas o meu espírito vai ser basicamente o mesmo: manter-me focado na minha tarefa, naquilo que tenho a fazer, e não me preocupar demasiado com o que está à minha volta. Dos participantes do World Tour, há algum em particular com quem sonhes «encontrar-te» nas ondas?
Acho que o Kelly Slater é aquele a quem todos sonham ganhar, enfrentar numa final. Os outros são todos mais novos, e são surfistas com os quais já competi algumas vezes. O Kelly Slater é mesmo «o alvo». No início do ano, uma revista
Conquistado o teu objectivo
portuguesa de surf dizia que
número um – a entrada para a
não é suposto Portugal ou a
2007
TIAGO PIRES EM DIGRESSÃO NACIONAL.
nuas apostado no assalto ao
NOVE MBRO , DE ZE MBRO
TMN SACA TOUR
elite do surf mundial –, conti -
19
directo I surf I
SURF CAMP. Tiago Pires foi a figura central da iniciativa “TMN Saca Tour”, uma série de “surf camps” destinados aos jovens dos 10 aos 16 anos – que tiveram, assim, a oportunidade de se aperfeiçoar na modalidade, aprendendo com alguns dos melhores surfistas portugueses da actualidade. O TOUR. A digressão, que decorreu entre 26 de Maio e 1 de Julho, passou por São Torpes (Sines), Espinho e Ericeira. No total dos três “surf camps”, participaram duas centenas de jovens surfistas.
se aplica muito ao meu caso. Férias é quando estou em casa a relaxar, sem pensar em campeonatos – aí é que eu posso dizer que estou de férias. De
resto,
estás
sempre
a
trabal har…
NOVE MBRO , DE ZE MBRO
2007
Exacto.
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Enquanto lutavas por um lugar no ASP World Tour, alguma vez tiveste um “feeling” de «este ano é que vai ser»?
Sim, no início deste ano tive um sentimento de que iria ser desta.
Porque comecei bastante bem, ao contrário daquilo que aconteceu nos anos anteriores. Tenho vindo a trabalhar com um psicólogo, que tem solidificado muito a minha parte psíquica e me tem ajudado bastante. Tenho tido mais confiança em mim mesmo e conseguido momentos mais regulares ao longo do ano (que era exactamente o que me faltava nos anos anteriores).
A NOSSA «SELECÇÃO». Para além de Tiago Pires, a equipa do TMN Saca Tour contou também com César Rocha (18 anos; vice-campeão europeu juniores / colectivo 2006), David Raimundo (28; 4º lugar no ranking do Surf Open 2006), Francisca Pereira dos Santos (17; 6ª classificada do Circuito Pro-Junior Europeu 2006), Frederico Morais (14; campeão nacional pro-júnior sub-21 2006), João Guedes (22; vice-campeão luso-galaico 2006), Joana Rocha (28; vice-campeã nacional open 2006), Miguel Ximenez (20; vice-campeão do Circuito Nacional Pro-Júnior 2006) e Vasco Ribeiro (12; campeão nacional sub-12 2006).
primeiro lugar do World Quali fying Series (WQS) ou já estás com
a
cabeça
na
próxima
época?
Continuo, sim, continuo a pensar no primeiro lugar. Mas o ano já se está a aproximar do fim, e, aos poucos, também tenho de ir programando o ano que se segue. Mas, acima de tudo, a prioridade é ficar o mais alto que consiga no “ranking” do WQS. Se possível, em primeiro lugar; mas se ficar no top 3 ou no top 5, também será muito bom. Como esperas que seja o ambiente e a vivência do World Tour?
Bem, suponho que se pareça um pouco com aquilo que tenho vivido nos últimos anos. Porém, com um grupo mais restrito de pessoas. Os campeonatos são maiores, com estruturas maiores e períodos de espera mais longos, o que faz com que seja diferente da realidade que vivi este ano. Mas o meu espírito vai ser basicamente o mesmo: manter-me focado na minha tarefa, naquilo que tenho a fazer, e não me preocupar demasiado com o que está à minha volta. Dos participantes do World Tour, há algum em particular com quem sonhes «encontrar-te» nas ondas?
Acho que o Kelly Slater é aquele a quem todos sonham ganhar, enfrentar numa final. Os outros são todos mais novos, e são surfistas com os quais já competi algumas vezes. O Kelly Slater é mesmo «o alvo». No início do ano, uma revista
Conquistado o teu objectivo
portuguesa de surf dizia que
número um – a entrada para a
não é suposto Portugal ou a
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TIAGO PIRES EM DIGRESSÃO NACIONAL.
nuas apostado no assalto ao
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TMN SACA TOUR
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directo I surf I
Europa produzir um surfista como tu. E, de facto, tirando o Jeremy Flores (França), és o europeu mais bem classificado a nível mundial. Sentes-te como
NOVE MBRO , DE ZE MBRO
2007
um representante, não só de
22
Portugal, mas de toda a Europa?
Sem dúvida. Sobretudo de Por tu gal, porque foi onde eu cresci, e foi o país que me viu iniciar-me nesta odisseia, nesta ca mi nha da. E porque é o país que
mais apoio me dá, apesar de, hoje em dia, a Europa estar também a apoiar-me bastante. É, obviamente, uma grande honra representar o país e levar as cores nacionais ao principal circui to mundial de surf. E é também uma responsabilidade enorme. Mas é algo que me dá vontade, dá-me energia, não me desvia do meu objectivo. Sentes-te apoiado e respeitado
como atleta, em Portugal?
Sim. No início, não tinha todo este apoio, mas agora sinto que o país me está a dar uma força mui to boa, mais do que eu alguma vez esperei ter. As pessoas acreditam cada vez mais, e isso dá-me muito orgulho. É bom saber que posso ser alguém em quem as pessoas apostam. Por isso, tenho de continuar a dar o meu melhor.
Porque é que há tão poucos surfistas europeus bem classificados? Achas que a Europa tem falta de condições para produzir bons surfistas?
Acho que é uma questão de tradi ção. Somos ainda um continente com pouca tradição no surf. O desporto começou há poucos anos e as coisas vão evoluindo normalmente. Mas, de futuro, creio que haverá
cada vez mai s europeus no World Tour. E, com a entrada de atletas europeus no Tour, as coi sas vão acabar por se tornar mais fáceis: há exemplos e caminhos a seguir. Momentos antes de começares uma prova, o que é que te passa pela cabeça?
Mantenho-me muito concentrado nas condições do mar e visualizo o que vou fazer na prova. Faço aquilo
2005. Realiza um sonho de criança, ao vencer a etapa do WQS de Ribeira d’Ilhas (Ericeira), nas mesmas ondas em que aprendeu a surfar. Termina a época entre os 20 primeiros do ranking do WQS.
2006. Torna a vencer a etapa da Ericeira para o WQS. E termina o ano na 33ª posição do ranking do WQS.
2007. Ao atingir a pontuação mínima de 11.000 pontos, classifica-se, finalmente, para o ASP World Tour. Torna-se no primeiro português a figurar entre os 47 melhores surfistas do mundo – e o quinto europeu a conseguir um lugar nesta divisão de elite do surf mundial.
2008. Estreia-se, em Fevereiro, no ASP World Tour. Com o ambicioso objectivo de chegar a campeão do mundo.
a que se chama “mind surf” – que é, basicamente, surfar com a mente. De resto, pouco me passa pela cabeça, nessas alturas: um pouco de nervosismo, é claro; e alguma ansiedade, também. Mas tenho conseguido controlar isso cada vez melhor. Tens alguma superstição ou ritual antes de entrar em prova?
Superstições, não tenho. Mas tenho uma rotina pré-competitiva, que consiste numa série de movimentos de alongamento e respiração que me relaxam e me ajudam a focar na minha tarefa. Faço-o sempre, antes de entrar para o mar, portanto acaba por ser um ritual. E já te cruzaste com algum tubarão em plena surfada?
Não me cruzei, mas já testemunhei a presença de um tubarão-tigre, na ilha de Oahu, no Havai. Foi em 1998, tinha eu 18 anos. Mas, felizmente, ainda estava na areia e não tive de me cruzar com ele. Portanto, perdeste a parte «radical» do encontro…
Exacto. De todas as ondas que já surfaste, qual é o teu “spot” favorito?
Acho que é a Praia dos Coxos, na Ericeira, aqui a dois quilómetros de casa… …apesar de já teres surfado algumas das ondas mais cobi çadas do planeta…
Sim… já surfei ondas espectaculares; talvez até de qualidade superior. Mas os Coxos já me proporcionaram momentos que nenhuma outra onda proporcionou. E a parte «sentimental» também conta, não é?
Sim, claro que conta.
2007
“SINTO QUE PORTUGAL ME ESTÁ A DAR UMA FORÇA MUITO BOA, MAIS DO QUE EU ALGUMA VEZ ESPEREI TER. AS PESSOAS ACREDITAM CADA VEZ MAIS, E ISSO DÁ-ME MUITO ORGULHO.”
portuguesa do WQS, em Vila Nova de Gaia, tornando-se no primeiro português a triunfar no circuito mundial, conseguindo ainda um segundo lugar na etapa de Sunset Beach (Havai). Sagra-se vice-campeão mundial de juniores.
NOVE MBRO , DE ZE MBRO
HERÓI NACIONAL
2000. Vence a etapa
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Europa produzir um surfista como tu. E, de facto, tirando o Jeremy Flores (França), és o europeu mais bem classificado a nível mundial. Sentes-te como
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um representante, não só de
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Portugal, mas de toda a Europa?
Sem dúvida. Sobretudo de Por tu gal, porque foi onde eu cresci, e foi o país que me viu iniciar-me nesta odisseia, nesta ca mi nha da. E porque é o país que
mais apoio me dá, apesar de, hoje em dia, a Europa estar também a apoiar-me bastante. É, obviamente, uma grande honra representar o país e levar as cores nacionais ao principal circui to mundial de surf. E é também uma responsabilidade enorme. Mas é algo que me dá vontade, dá-me energia, não me desvia do meu objectivo. Sentes-te apoiado e respeitado
como atleta, em Portugal?
Sim. No início, não tinha todo este apoio, mas agora sinto que o país me está a dar uma força mui to boa, mais do que eu alguma vez esperei ter. As pessoas acreditam cada vez mais, e isso dá-me muito orgulho. É bom saber que posso ser alguém em quem as pessoas apostam. Por isso, tenho de continuar a dar o meu melhor.
Porque é que há tão poucos surfistas europeus bem classificados? Achas que a Europa tem falta de condições para produzir bons surfistas?
Acho que é uma questão de tradi ção. Somos ainda um continente com pouca tradição no surf. O desporto começou há poucos anos e as coisas vão evoluindo normalmente. Mas, de futuro, creio que haverá
cada vez mai s europeus no World Tour. E, com a entrada de atletas europeus no Tour, as coi sas vão acabar por se tornar mais fáceis: há exemplos e caminhos a seguir. Momentos antes de começares uma prova, o que é que te passa pela cabeça?
Mantenho-me muito concentrado nas condições do mar e visualizo o que vou fazer na prova. Faço aquilo
2005. Realiza um sonho de criança, ao vencer a etapa do WQS de Ribeira d’Ilhas (Ericeira), nas mesmas ondas em que aprendeu a surfar. Termina a época entre os 20 primeiros do ranking do WQS.
2006. Torna a vencer a etapa da Ericeira para o WQS. E termina o ano na 33ª posição do ranking do WQS.
2007. Ao atingir a pontuação mínima de 11.000 pontos, classifica-se, finalmente, para o ASP World Tour. Torna-se no primeiro português a figurar entre os 47 melhores surfistas do mundo – e o quinto europeu a conseguir um lugar nesta divisão de elite do surf mundial.
2008. Estreia-se, em Fevereiro, no ASP World Tour. Com o ambicioso objectivo de chegar a campeão do mundo.
a que se chama “mind surf” – que é, basicamente, surfar com a mente. De resto, pouco me passa pela cabeça, nessas alturas: um pouco de nervosismo, é claro; e alguma ansiedade, também. Mas tenho conseguido controlar isso cada vez melhor. Tens alguma superstição ou ritual antes de entrar em prova?
Superstições, não tenho. Mas tenho uma rotina pré-competitiva, que consiste numa série de movimentos de alongamento e respiração que me relaxam e me ajudam a focar na minha tarefa. Faço-o sempre, antes de entrar para o mar, portanto acaba por ser um ritual. E já te cruzaste com algum tubarão em plena surfada?
Não me cruzei, mas já testemunhei a presença de um tubarão-tigre, na ilha de Oahu, no Havai. Foi em 1998, tinha eu 18 anos. Mas, felizmente, ainda estava na areia e não tive de me cruzar com ele. Portanto, perdeste a parte «radical» do encontro…
Exacto. De todas as ondas que já surfaste, qual é o teu “spot” favorito?
Acho que é a Praia dos Coxos, na Ericeira, aqui a dois quilómetros de casa… …apesar de já teres surfado algumas das ondas mais cobi çadas do planeta…
Sim… já surfei ondas espectaculares; talvez até de qualidade superior. Mas os Coxos já me proporcionaram momentos que nenhuma outra onda proporcionou. E a parte «sentimental» também conta, não é?
Sim, claro que conta.
2007
“SINTO QUE PORTUGAL ME ESTÁ A DAR UMA FORÇA MUITO BOA, MAIS DO QUE EU ALGUMA VEZ ESPEREI TER. AS PESSOAS ACREDITAM CADA VEZ MAIS, E ISSO DÁ-ME MUITO ORGULHO.”
portuguesa do WQS, em Vila Nova de Gaia, tornando-se no primeiro português a triunfar no circuito mundial, conseguindo ainda um segundo lugar na etapa de Sunset Beach (Havai). Sagra-se vice-campeão mundial de juniores.
NOVE MBRO , DE ZE MBRO
HERÓI NACIONAL
2000. Vence a etapa
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o outro lado
ACORDAM SEMPRE DE MADRUGADA E TÊM COMO MISSÃO ANIMAR QUEM ESTÁ A COMEÇAR MAIS UM DIA DE TRABALHO. PELO MEIO, TENTAM ARRANJAR TEMPO PARA UMA VIDA PRÓPRIA – O QUE NEM SEMPRE É POSSÍVEL. NO ENTANTO, TODOS OS DIAS VANDA MIRANDA, PEDRO RIBEIRO, VASCO PALMEIRIM E NUNO MARKL REGRESSAM À ANTENA DA RÁDIO COMERCIAL COM A MESMA BOA DISPOSIÇÃO.
HÁ VIDA PARA ALÉM DAS MANHÃS
JANEIRO, FEVEREIRO
2011
PEDRO RIBEIRO
VASCO PALMEIRIM
40
VANDA MIRANDA
JANEIRO, FEVEREIRO
2011
NUNO MARKL
TEXTO JOÃO MESTRE FOTOGRAFIA PEDRO LOUREIRO
41
o outro lado
ACORDAM SEMPRE DE MADRUGADA E TÊM COMO MISSÃO ANIMAR QUEM ESTÁ A COMEÇAR MAIS UM DIA DE TRABALHO. PELO MEIO, TENTAM ARRANJAR TEMPO PARA UMA VIDA PRÓPRIA – O QUE NEM SEMPRE É POSSÍVEL. NO ENTANTO, TODOS OS DIAS VANDA MIRANDA, PEDRO RIBEIRO, VASCO PALMEIRIM E NUNO MARKL REGRESSAM À ANTENA DA RÁDIO COMERCIAL COM A MESMA BOA DISPOSIÇÃO.
HÁ VIDA PARA ALÉM DAS MANHÃS
JANEIRO, FEVEREIRO
2011
PEDRO RIBEIRO
VASCO PALMEIRIM
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VANDA MIRANDA
JANEIRO, FEVEREIRO
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NUNO MARKL
TEXTO JOÃO MESTRE FOTOGRAFIA PEDRO LOUREIRO
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I manhãs da comercial I o outro lado
Tímida, “ridiculamente natalícia”, consumidora compulsiva de rock, leitora ávida, turista de cidade e adepta do «Vá para fora cá dentro». Este é o outro lado de VANDA MIRANDA, a voz que dá música e animação aos ouvintes da Rádio Comercial
LIVROS, VIAGENS & ROCK N’ROLL
de experiência, Vanda Miranda admite que, por vezes, ainda sente um certo «nervoso miudinho» na hora de ir para o ar, em particular se tiver de fazer algo fora da sua zona de conforto. Diz que é um problema de timidez – um traço de personalidade que os ouvintes terão alguma dificuldade em associar à pessoa que lhes dá música e boa disposição na antena da Comercial há 13 anos. «A rádio é isso mesmo: permite-nos falar com milhares de pessoas, mas estamos ali escondidinhos no nosso mundo. Acho que não sou a única: há muita gente tímida neste meio.» Quando soube que a digressão de promoção da rubrica “Caderneta de Cromos” iria passar pelos coliseus de Lisboa e Porto caiu o Carmo e a Trindade: «Eu ia morrendo, só dizia ao Markl “Nãããão! Eu não vou subir ao palco com mais de três mil pessoas a olhar para mim! Eu não quero! Eu não quero!!”», recorda em jeito de birra. «Andei a stressar, perdi peso e tudo.» A verdade é que tudo correu bem e a “Caderneta de Cromos” está a ter um sucesso imparável. Já lá vamos. Vanda estreou-se na rádio aos 17 anos. «Estávamos na fase de legalização das emissoras locais, que andavam a angariar pessoal novo.» Foi parar à Rádio Clube da Moita a convite de um colega, mais por andar entusiasmada com
a disciplina de jornalismo do que pelo chamado «bichinho da rádio». Brincar aos locutores nunca foi o seu tipo de coisa. Muito menos idolatrar este programa ou aquele apresentador. «Não sei como me contrataram», conta, fazendo voz de criança: «Eu ainda falava assiiim… ainda por cima para ler as notícias!» A verdade é que adorou. «Não sei se é o tal “bichinho”, mas gostei tanto que não fiz mais nada na vida.» Como não tinha referências, não se dedicou a tentar copiar um estilo. «Só sabia que não queria ser uma locutora como a maior parte daquelas que ouvia, a fazer “voz de cama”. Queria ter a energia dos homens.» É aí que surgem no seu percurso rádios como a Super FM e a Energia, onde pôde ser exactamente quem queria ser no ar. Seguiu-se a Comercial, no final dos anos 90, altura em que a estação se estava a reposicionar como “Rádio Rock”. «Foi ouro sobre azul: uma rádio à minha medida.» Embora goste muito do que faz hoje em dia – «o retorno do público tem sido fantástico, as pessoas dizem-nos coisas maravilhosas e isso compensa ter de acordar às 5h30» –, não tem problema em confessar as saudades desses tempos. Ela que é uma “rocker” inveterada, não perde um concerto de Metallica (à excepção da actuação no Optimus Alive 2009, «estava de licença de
maternidade e o meu filho, de três meses, não achou piada nenhuma») nem de Pearl Jam, as suas bandas favoritas, e já viu praticamente todos os artistas que queria ver ao vivo – excepto os U2, cujas passagens por solo português coincidiram sempre com algo inadiável, e os Kings of Leon, que só lhe cativaram a atenção com o álbum “Only By the Night”, quatro anos depois da única visita do quarteto de Nashville a Lisboa. Contrariando o estereótipo, apesar da sua inclinação “rockeira” Vanda Miranda não é muito dada a noitadas. A não ser para ler: «Quando estou a gostar de um livro, não consigo parar. A dada altura, olho para o relógio e penso “eh pá, vou ter de acordar daqui a pouco!”. Mas não consigo pôr o livro de parte.» Aconteceu-lhe, por exemplo, com “A Sombra do Vento”, de Carlos Ruiz Zafón, que leu há dois anos. «Estava em casa e aproveitei a licença de maternidade para pôr a leitura em dia – coisa que actualmente, com uma criança pequena, é praticamente impossível.» Em lista de espera está “O Jogo do Anjo”, outro romance de Ruiz Zafón, que ainda não começou a ler por um misto de falta de tempo e receio da desilusão: «“A Sombra do Vento” roçou a perfeição, está no meu “top 3”. Tenho medo que este fique aquém.» Continua na mesa-de-cabeceira, junto a “Um Conto
de Natal”, de Charles Dickens, o único livro que não se importa reler. «Sou ridiculamente natalícia, uma “natalo-pirosa”, daquelas que decoram a casa toda.» E não tem nada que ver com receber presentes. «É o espírito, é alguma coisa que anda no ar e eu fico quentinha por dentro.» Portanto, não é de admirar que, quando a conversa vai parar às viagens, lance de imediato como dois dos seus sítios favoritos Viena e Zurique. «Visitei-as de Inverno, adoro aquele cenário de cidade toda branquinha, coisa que aqui não temos.» À lista acrescenta Londres, onde já foi «uma catrefada de vezes, mais de dez», a última acompanhada da filha Sofia, «que já é crescidinha e uma óptima companheira de viagem». E Sydney – foi lá em trabalho para fazer a cobertura de um concerto de Green Day, e voltou maravilhada «com a cidade, o clima, o espírito dos australianos». A próxima partida será rumo a Dublin, uma das grandes cidades europeias que ainda lhe falta conhecer. «Mas geralmente passo férias em Portugal, temos um país lindíssimo.» Cá dentro ou lá fora, o certo é que rapidamente fica cheia de saudades da rádio. «É a prova máxima de que gostamos muito do que fazemos.» E disso ninguém pode duvidar: Vanda Miranda gosta mesmo daquilo que faz.
JANEIRO, FEVEREIRO
MESMO COM MAIS de duas décadas
2011
desde 1997.
43
A “t magazine” agradece à livraria Ler Devagar (Lisboa) a colaboração na execução deste trabalho.
I manhãs da comercial I o outro lado
Tímida, “ridiculamente natalícia”, consumidora compulsiva de rock, leitora ávida, turista de cidade e adepta do «Vá para fora cá dentro». Este é o outro lado de VANDA MIRANDA, a voz que dá música e animação aos ouvintes da Rádio Comercial
LIVROS, VIAGENS & ROCK N’ROLL
de experiência, Vanda Miranda admite que, por vezes, ainda sente um certo «nervoso miudinho» na hora de ir para o ar, em particular se tiver de fazer algo fora da sua zona de conforto. Diz que é um problema de timidez – um traço de personalidade que os ouvintes terão alguma dificuldade em associar à pessoa que lhes dá música e boa disposição na antena da Comercial há 13 anos. «A rádio é isso mesmo: permite-nos falar com milhares de pessoas, mas estamos ali escondidinhos no nosso mundo. Acho que não sou a única: há muita gente tímida neste meio.» Quando soube que a digressão de promoção da rubrica “Caderneta de Cromos” iria passar pelos coliseus de Lisboa e Porto caiu o Carmo e a Trindade: «Eu ia morrendo, só dizia ao Markl “Nãããão! Eu não vou subir ao palco com mais de três mil pessoas a olhar para mim! Eu não quero! Eu não quero!!”», recorda em jeito de birra. «Andei a stressar, perdi peso e tudo.» A verdade é que tudo correu bem e a “Caderneta de Cromos” está a ter um sucesso imparável. Já lá vamos. Vanda estreou-se na rádio aos 17 anos. «Estávamos na fase de legalização das emissoras locais, que andavam a angariar pessoal novo.» Foi parar à Rádio Clube da Moita a convite de um colega, mais por andar entusiasmada com
a disciplina de jornalismo do que pelo chamado «bichinho da rádio». Brincar aos locutores nunca foi o seu tipo de coisa. Muito menos idolatrar este programa ou aquele apresentador. «Não sei como me contrataram», conta, fazendo voz de criança: «Eu ainda falava assiiim… ainda por cima para ler as notícias!» A verdade é que adorou. «Não sei se é o tal “bichinho”, mas gostei tanto que não fiz mais nada na vida.» Como não tinha referências, não se dedicou a tentar copiar um estilo. «Só sabia que não queria ser uma locutora como a maior parte daquelas que ouvia, a fazer “voz de cama”. Queria ter a energia dos homens.» É aí que surgem no seu percurso rádios como a Super FM e a Energia, onde pôde ser exactamente quem queria ser no ar. Seguiu-se a Comercial, no final dos anos 90, altura em que a estação se estava a reposicionar como “Rádio Rock”. «Foi ouro sobre azul: uma rádio à minha medida.» Embora goste muito do que faz hoje em dia – «o retorno do público tem sido fantástico, as pessoas dizem-nos coisas maravilhosas e isso compensa ter de acordar às 5h30» –, não tem problema em confessar as saudades desses tempos. Ela que é uma “rocker” inveterada, não perde um concerto de Metallica (à excepção da actuação no Optimus Alive 2009, «estava de licença de
maternidade e o meu filho, de três meses, não achou piada nenhuma») nem de Pearl Jam, as suas bandas favoritas, e já viu praticamente todos os artistas que queria ver ao vivo – excepto os U2, cujas passagens por solo português coincidiram sempre com algo inadiável, e os Kings of Leon, que só lhe cativaram a atenção com o álbum “Only By the Night”, quatro anos depois da única visita do quarteto de Nashville a Lisboa. Contrariando o estereótipo, apesar da sua inclinação “rockeira” Vanda Miranda não é muito dada a noitadas. A não ser para ler: «Quando estou a gostar de um livro, não consigo parar. A dada altura, olho para o relógio e penso “eh pá, vou ter de acordar daqui a pouco!”. Mas não consigo pôr o livro de parte.» Aconteceu-lhe, por exemplo, com “A Sombra do Vento”, de Carlos Ruiz Zafón, que leu há dois anos. «Estava em casa e aproveitei a licença de maternidade para pôr a leitura em dia – coisa que actualmente, com uma criança pequena, é praticamente impossível.» Em lista de espera está “O Jogo do Anjo”, outro romance de Ruiz Zafón, que ainda não começou a ler por um misto de falta de tempo e receio da desilusão: «“A Sombra do Vento” roçou a perfeição, está no meu “top 3”. Tenho medo que este fique aquém.» Continua na mesa-de-cabeceira, junto a “Um Conto
de Natal”, de Charles Dickens, o único livro que não se importa reler. «Sou ridiculamente natalícia, uma “natalo-pirosa”, daquelas que decoram a casa toda.» E não tem nada que ver com receber presentes. «É o espírito, é alguma coisa que anda no ar e eu fico quentinha por dentro.» Portanto, não é de admirar que, quando a conversa vai parar às viagens, lance de imediato como dois dos seus sítios favoritos Viena e Zurique. «Visitei-as de Inverno, adoro aquele cenário de cidade toda branquinha, coisa que aqui não temos.» À lista acrescenta Londres, onde já foi «uma catrefada de vezes, mais de dez», a última acompanhada da filha Sofia, «que já é crescidinha e uma óptima companheira de viagem». E Sydney – foi lá em trabalho para fazer a cobertura de um concerto de Green Day, e voltou maravilhada «com a cidade, o clima, o espírito dos australianos». A próxima partida será rumo a Dublin, uma das grandes cidades europeias que ainda lhe falta conhecer. «Mas geralmente passo férias em Portugal, temos um país lindíssimo.» Cá dentro ou lá fora, o certo é que rapidamente fica cheia de saudades da rádio. «É a prova máxima de que gostamos muito do que fazemos.» E disso ninguém pode duvidar: Vanda Miranda gosta mesmo daquilo que faz.
JANEIRO, FEVEREIRO
MESMO COM MAIS de duas décadas
2011
desde 1997.
43
A “t magazine” agradece à livraria Ler Devagar (Lisboa) a colaboração na execução deste trabalho.
o outro lado I manhãs da comercial I
O director da Rádio Comercial fala de futebol, de viagens, de outros desportos e de… mais futebol. É este o outro lado de
PEDRO RIBEIRO – um grande comunicador que poderia ter sido um grande jogador de águia ao peito. Ou talvez não…
JANEIRO, FEVEREIRO
2011
PEDRO RIBEIRO sofre do mesmo
44
«mal» que Vanda Miranda. «Férias são férias, mas ao fim de duas semanas já estou em pulgas para chegar ao estúdio e dizer “bom dia!” aos ouvintes.» Isto apesar de os seus dias de trabalho arrancarem às sete da manhã, com a tarefa de animar quem está a começar o dia, e se prolongarem bem para além do final do programa. É então que o timoneiro das Manhãs da Comercial se senta na secretária de director da estação. «É a parte mais chata: a terapia diária está naquelas quatro horas matinais.» Foi em 1990, na Correio da Manhã Rádio, que se estreou no ofício. Começou como jornalista e depois editor de informação. Fez muito trabalho de reportagem, o último em 1996, com a cobertura das eleições presidenciais. Nesse mesmo ano, passou para a área de entretenimento e nunca mais olhou para trás. «Às vezes tenho saudades da informação», confessa. «Mas quando são certos e determinados acontecimentos, não me refiro às notícias do dia-a-dia, como a conferência de imprensa da UGT e esse tipo de coisas.» De qualquer forma, está muito satisfeito com o que faz. «É algo de inexplicável: quando se carrega no botão e aparece o sinal “on air” cria-se uma energia muito difícil
de descrever… é como uma vertigem», tenta explicar com um entusiasmo que não se espera de alguém que trabalha no meio há tantos anos. O lado menos bom será, porventura, a falta de tempo. Para viajar, por exemplo, um dos seus maiores prazeres na vida. Austrália, Patagónia e Alaska são os destinos de sonho. «Para mim, o conceito de “limpeza de espírito” passa muito por horizontes largos, fascina-me a noção de vastidão, de espaço, de ausência de rotina.» As oportunidades para lá ir é que não abundam. «Há momentos para tudo: férias de praia de não fazer nenhum, férias na Disney com os putos, férias de cidade.» Nova Iorque e Rio de Janeiro são duas das suas «cidades especiais». A terceira, e possivelmente a mais «especial» de todas, é Barcelona, «um sítio fascinante, cheio de vida de cultural, de diversidade, de respeito pela diferença, de tolerância, de vanguardismo, de modernidade… não conheço outra assim, pelo menos na Europa». E repete: «Adoro Barcelona!», referindo-se quer à capital da Catalunha quer ao clube de futebol onde alinham Messi, Iniesta e Villa, do qual já foi sócio. «Há uns meses tive uma alegria enorme», acrescenta, a propósito da estrondosa vitória sobre o Real Madrid, a 29
de Novembro. «Algum dos 5-0 desta época havia de me dar alegria, não podia ser só tristeza.» Refere-se a uma outra goleada, a que o Benfica sofreu do Porto três semanas antes, no Estádio do Dragão. O facto de ser um benfiquista ultra-ferrenho não é incompatível com um pouco de “fair-play” para «brincar com coisas sérias». Pedro Ribeiro vibra, acima de tudo, com desporto. «Gosto de ver os resultados do basquetebol, do andebol, do hóquei em patins, do futsal, gosto de ver a Vanessa Fernandes a ganhar, a Telma Monteiro, o Nelson Évora.» (Note-se que continua a falar do Benfica.) Contudo, o futebol é mais forte. «Foi o que me puxou para o Benfica: fui à bola pela primeira vez no final dos anos 70, o clube tinha a hegemonia completa, não havia outra opção.» Além de adepto encartado, com “red pass” e lugar marcado no Estádio da Luz, Pedro Ribeiro esteve quase para preencher as fileiras do «glorioso». Um longo «quase»: «Quando eu era puto, tinha uns dez ou onze anos, fui aos treinos de captação e passei na primeira fase.» Chegou à escola a gabar-se de que jogava no Benfica. Mal sabia que o processo de avaliação tinha mais fases. «No segundo treino, mandaram-me
para casa.» Como evitou a humilhação dos colegas? «Disse-lhes que fui eu que não quis, não tinha tempo», conta. E a pergunta «Para se ganhar um grande animador de rádio perdeu-se um grande avançado?» tem resposta imediata: «Perdeu-se um avançado que achava que tinha jeito. Farei melhor rádio do que jogaria à bola.» O gosto pelo jogo mantém-se. Todos os sábados de manhã junta-se com um grupo de pais cujos filhos estudam no mesmo colégio que os seus para uma descomprometida peladinha. «Somos todos pernas-de-pau e barrigudos. É uma coisa “light”, só para a gente se rir – ontem perdi por mais de dez e estava todo contente.» Além de jogador de fim-de-semana e de treinador de bancada, não se importaria de um dia vir a trabalhar no mundo do futebol profissional. Uma vez mais, no Benfica, entenda-se. «No fundo, o que eu gostava – e é o sonho de todo o benfiquista – era de ser presidente do clube, director desportivo, treinador e jogador, para estar em todas as áreas», graceja, antes de evocar as maiores alegrias que o clube lhe deu: «As vitórias mais recentes nos campeonatos, a passagem às finais da Taça dos Campeões e, claro, um 6-3 [contra o Sporting, em 1994] é sempre inesquecível.»
BENFIQUISTA ENCARTADO
o outro lado I manhãs da comercial I
O director da Rádio Comercial fala de futebol, de viagens, de outros desportos e de… mais futebol. É este o outro lado de
PEDRO RIBEIRO – um grande comunicador que poderia ter sido um grande jogador de águia ao peito. Ou talvez não…
JANEIRO, FEVEREIRO
2011
PEDRO RIBEIRO sofre do mesmo
44
«mal» que Vanda Miranda. «Férias são férias, mas ao fim de duas semanas já estou em pulgas para chegar ao estúdio e dizer “bom dia!” aos ouvintes.» Isto apesar de os seus dias de trabalho arrancarem às sete da manhã, com a tarefa de animar quem está a começar o dia, e se prolongarem bem para além do final do programa. É então que o timoneiro das Manhãs da Comercial se senta na secretária de director da estação. «É a parte mais chata: a terapia diária está naquelas quatro horas matinais.» Foi em 1990, na Correio da Manhã Rádio, que se estreou no ofício. Começou como jornalista e depois editor de informação. Fez muito trabalho de reportagem, o último em 1996, com a cobertura das eleições presidenciais. Nesse mesmo ano, passou para a área de entretenimento e nunca mais olhou para trás. «Às vezes tenho saudades da informação», confessa. «Mas quando são certos e determinados acontecimentos, não me refiro às notícias do dia-a-dia, como a conferência de imprensa da UGT e esse tipo de coisas.» De qualquer forma, está muito satisfeito com o que faz. «É algo de inexplicável: quando se carrega no botão e aparece o sinal “on air” cria-se uma energia muito difícil
de descrever… é como uma vertigem», tenta explicar com um entusiasmo que não se espera de alguém que trabalha no meio há tantos anos. O lado menos bom será, porventura, a falta de tempo. Para viajar, por exemplo, um dos seus maiores prazeres na vida. Austrália, Patagónia e Alaska são os destinos de sonho. «Para mim, o conceito de “limpeza de espírito” passa muito por horizontes largos, fascina-me a noção de vastidão, de espaço, de ausência de rotina.» As oportunidades para lá ir é que não abundam. «Há momentos para tudo: férias de praia de não fazer nenhum, férias na Disney com os putos, férias de cidade.» Nova Iorque e Rio de Janeiro são duas das suas «cidades especiais». A terceira, e possivelmente a mais «especial» de todas, é Barcelona, «um sítio fascinante, cheio de vida de cultural, de diversidade, de respeito pela diferença, de tolerância, de vanguardismo, de modernidade… não conheço outra assim, pelo menos na Europa». E repete: «Adoro Barcelona!», referindo-se quer à capital da Catalunha quer ao clube de futebol onde alinham Messi, Iniesta e Villa, do qual já foi sócio. «Há uns meses tive uma alegria enorme», acrescenta, a propósito da estrondosa vitória sobre o Real Madrid, a 29
de Novembro. «Algum dos 5-0 desta época havia de me dar alegria, não podia ser só tristeza.» Refere-se a uma outra goleada, a que o Benfica sofreu do Porto três semanas antes, no Estádio do Dragão. O facto de ser um benfiquista ultra-ferrenho não é incompatível com um pouco de “fair-play” para «brincar com coisas sérias». Pedro Ribeiro vibra, acima de tudo, com desporto. «Gosto de ver os resultados do basquetebol, do andebol, do hóquei em patins, do futsal, gosto de ver a Vanessa Fernandes a ganhar, a Telma Monteiro, o Nelson Évora.» (Note-se que continua a falar do Benfica.) Contudo, o futebol é mais forte. «Foi o que me puxou para o Benfica: fui à bola pela primeira vez no final dos anos 70, o clube tinha a hegemonia completa, não havia outra opção.» Além de adepto encartado, com “red pass” e lugar marcado no Estádio da Luz, Pedro Ribeiro esteve quase para preencher as fileiras do «glorioso». Um longo «quase»: «Quando eu era puto, tinha uns dez ou onze anos, fui aos treinos de captação e passei na primeira fase.» Chegou à escola a gabar-se de que jogava no Benfica. Mal sabia que o processo de avaliação tinha mais fases. «No segundo treino, mandaram-me
para casa.» Como evitou a humilhação dos colegas? «Disse-lhes que fui eu que não quis, não tinha tempo», conta. E a pergunta «Para se ganhar um grande animador de rádio perdeu-se um grande avançado?» tem resposta imediata: «Perdeu-se um avançado que achava que tinha jeito. Farei melhor rádio do que jogaria à bola.» O gosto pelo jogo mantém-se. Todos os sábados de manhã junta-se com um grupo de pais cujos filhos estudam no mesmo colégio que os seus para uma descomprometida peladinha. «Somos todos pernas-de-pau e barrigudos. É uma coisa “light”, só para a gente se rir – ontem perdi por mais de dez e estava todo contente.» Além de jogador de fim-de-semana e de treinador de bancada, não se importaria de um dia vir a trabalhar no mundo do futebol profissional. Uma vez mais, no Benfica, entenda-se. «No fundo, o que eu gostava – e é o sonho de todo o benfiquista – era de ser presidente do clube, director desportivo, treinador e jogador, para estar em todas as áreas», graceja, antes de evocar as maiores alegrias que o clube lhe deu: «As vitórias mais recentes nos campeonatos, a passagem às finais da Taça dos Campeões e, claro, um 6-3 [contra o Sporting, em 1994] é sempre inesquecível.»
BENFIQUISTA ENCARTADO
I manhãs da comercial I o outro lado
Se não está ao microfone da Comercial nem a apresentar “A Rede”, no Canal Q, o mais é que VASCO PALMEIRIM esteja à frente
provável
da televisão, «rentabilizando» o seu investimento na SportTV, ou a andar de metro, de bloco de notas na mão. Sempre com
FUTEBOL A METRO
também recorda o expressivo 6-3. Mas por motivos diferentes: «Custou muito. Muito, muito, muito, muito.» É sportinguista. «Não fomos campeões com aquela equipa: o Figo, o Peixe, o Paulo Sousa, o Balakov, o Juskowiak. Não ganhávamos o campeonato há não sei quantos anos e eu estava convencidíssimo de que naquele ano é que era. E tínhamos o Carlos Queiroz… é isso! Tínhamos o Queiroz!» Mas nem tudo são más recordações. «Ser campeão 18 anos depois (2000) foi memorável. Lembro-me tão bem do último jogo, com o Salgueiros, ganhámos 4-0. O primeiro golo, de livre, do André Cruz… estava a ver o jogo de “boxers” e fui para a varanda gritar. E a minha mãe a gritar atrás de mim “Vasco! Estás de cuecas!”.» Durante vários anos foi “habitué” em Alvalade. Até à época em que tudo correu mal (2004-2005). «O Sporting perdeu tudo numa semana: o campeonato, com o Benfica, na Luz; a Taça UEFA em casa, contra o CSKA, e eu estava junto à baliza onde tudo se passou; e depois vi o Nacional ir lá “espetar” quatro golos num jogo do qual – isto é oficial! – os jogadores não se lembram, tal era o estado em que a cabeça deles estava!» Desde então, passou a investir em algo mais seguro: «O meu dinheirinho vai para a SportTV.» Actualmente vive com
a namorada, pelo que já não o «rentabiliza» tanto. Mas enquanto morava sozinho era o seu programa de fim-de-semana: «Ao sábado acordava às dez, tomava o pequeno-almoço e depois entrava numa sessão “non-stop”: futebol inglês, com jogos ao meio-dia, às três e às cinco, depois liga espanhola, às sete, e às nove o campeonato português.» Bem como tudo o resto, além do futebol: «NBA, sou fã dos Lakers. E, admito, gosto de “wrestling”.» “Wrestling”!? «Sim, eu sei que aquilo é tudo a fingir. Mas é uma novela, a dada altura os gajos que eram bons passam a ser maus e os vilões passam a ser os maiores. É um grande trabalho, em termos criativos!» Foi em 2002, ano em que o Sporting se sagrou campeão pela última vez, que Vasco Palmeirim teve o primeiro contacto com a rádio, na Mega FM (actualmente Mega Hits), era ainda um estudante de Comunicação Social. «Sempre tive o sonho de fazer televisão mas a universidade só arranjava estágios em informação.» É aí que surge a cadeira de Comunicação Radiofónica. «Aquilo era ideal para mim, uma forma de extravasar todo o meu lado mais parvo.» O professor, Nelson Ribeiro, director da Mega FM, viu nele o perfil ideal para uma vaga em escrita criativa. Vasco começou como estagiário, foi ficando e
acabou por apresentar o “Programa da Manhã”, ao lado de Sónia Santos. «Sentia-me muito bem a fazer aquilo. E pelos vistos havia um tipo na Comercial que também gostava muito.» Esse «tipo» era Pedro Ribeiro, que lhe lançou o convite em 2007. «Fazendo a analogia futebolística – e sem qualquer desprimor para a Mega, que foi uma grande escola –, foi como saltar de uma equipa que luta pela Europa para uma que luta pelo título.» A televisão lá acabou por lhe aparecer pelo caminho: actualmente, apresenta o programa “A Rede”, no Canal Q. Mas prefere a rádio. «Adoro isto. Acima de tudo, sou um animador de rádio.» Com uma forte veia humorística: «É mais forte do que eu, a cabeça está sempre a borbulhar e a disparar piadas.» De tal modo que nem de férias consegue meter folga da graçola improvisada. «Ouço muito a frase “Vasco, pára! Estás de férias!”. Eu próprio o digo: “Menos, menos… Descansa a cabeça!”. Mas desligar o botão não é fácil.» Por vezes, são as próprias situações que o «provocam». Como, por exemplo, a «tradição» portuguesa de aplaudir o piloto quando o avião aterra. «O homem está a fazer o que tem de fazer! Tem de aterrar aquilo senão morre. Mas a gente vai aplaudir», aponta, num tom trocista, enquanto bate palmas entusiasticamente. «Era engraçado aplicar isso a outras
coisas: o taxista deu-me o troco muito bem. Espectacular! [aplaude] Ou no metro: a forma como ele parou aquilo, espectacular! [aplaude de novo]» É, aliás, ao metro que vai buscar boa parte do seu material para as “Manhãs da Comercial”. «Adoro ouvir as conversas, as duas velhinhas na cavaqueira, o gajo que vai a discutir com a namorada por telemóvel, aos gritos, como se estivesse em casa. É bom demais. São aquelas coisinhas com que as pessoas se identificam, se eu as mencionar no programa.» O metro é o seu meio de transporte preferido. «Adoro andar de metro. Vou para todo o lado.» E defende-o com unhas e dentes. «Faz-me confusão quando dizem que o de Lisboa é mau, confuso, sujo… não é! Vão lá fora e vejam redes de 15 linhas, comboios a cair de podres, é preciso mudar oito vezes de linha para ir daqui ali. O nosso é super-simples.» Vasco nasceu, cresceu, estudou e trabalhou sempre em Lisboa, os pais nunca tiveram carro e ele próprio não tem carta de condução. «Estou a tirá-la agora, mas parei nas aulas de código há uns meses…» Há oito meses, para ser mais exacto: «Tinha quatro lições e parei por causa do Mundial da África do Sul, que entretanto acabou e ainda não retomei.» É uma questão de prioridades: o futebol, sempre o futebol.
JANEIRO, FEVEREIRO
CURIOSAMENTE, Vasco Palmeirim
2011
uma piada pronta da disparar.
47
I manhãs da comercial I o outro lado
Se não está ao microfone da Comercial nem a apresentar “A Rede”, no Canal Q, o mais é que VASCO PALMEIRIM esteja à frente
provável
da televisão, «rentabilizando» o seu investimento na SportTV, ou a andar de metro, de bloco de notas na mão. Sempre com
FUTEBOL A METRO
também recorda o expressivo 6-3. Mas por motivos diferentes: «Custou muito. Muito, muito, muito, muito.» É sportinguista. «Não fomos campeões com aquela equipa: o Figo, o Peixe, o Paulo Sousa, o Balakov, o Juskowiak. Não ganhávamos o campeonato há não sei quantos anos e eu estava convencidíssimo de que naquele ano é que era. E tínhamos o Carlos Queiroz… é isso! Tínhamos o Queiroz!» Mas nem tudo são más recordações. «Ser campeão 18 anos depois (2000) foi memorável. Lembro-me tão bem do último jogo, com o Salgueiros, ganhámos 4-0. O primeiro golo, de livre, do André Cruz… estava a ver o jogo de “boxers” e fui para a varanda gritar. E a minha mãe a gritar atrás de mim “Vasco! Estás de cuecas!”.» Durante vários anos foi “habitué” em Alvalade. Até à época em que tudo correu mal (2004-2005). «O Sporting perdeu tudo numa semana: o campeonato, com o Benfica, na Luz; a Taça UEFA em casa, contra o CSKA, e eu estava junto à baliza onde tudo se passou; e depois vi o Nacional ir lá “espetar” quatro golos num jogo do qual – isto é oficial! – os jogadores não se lembram, tal era o estado em que a cabeça deles estava!» Desde então, passou a investir em algo mais seguro: «O meu dinheirinho vai para a SportTV.» Actualmente vive com
a namorada, pelo que já não o «rentabiliza» tanto. Mas enquanto morava sozinho era o seu programa de fim-de-semana: «Ao sábado acordava às dez, tomava o pequeno-almoço e depois entrava numa sessão “non-stop”: futebol inglês, com jogos ao meio-dia, às três e às cinco, depois liga espanhola, às sete, e às nove o campeonato português.» Bem como tudo o resto, além do futebol: «NBA, sou fã dos Lakers. E, admito, gosto de “wrestling”.» “Wrestling”!? «Sim, eu sei que aquilo é tudo a fingir. Mas é uma novela, a dada altura os gajos que eram bons passam a ser maus e os vilões passam a ser os maiores. É um grande trabalho, em termos criativos!» Foi em 2002, ano em que o Sporting se sagrou campeão pela última vez, que Vasco Palmeirim teve o primeiro contacto com a rádio, na Mega FM (actualmente Mega Hits), era ainda um estudante de Comunicação Social. «Sempre tive o sonho de fazer televisão mas a universidade só arranjava estágios em informação.» É aí que surge a cadeira de Comunicação Radiofónica. «Aquilo era ideal para mim, uma forma de extravasar todo o meu lado mais parvo.» O professor, Nelson Ribeiro, director da Mega FM, viu nele o perfil ideal para uma vaga em escrita criativa. Vasco começou como estagiário, foi ficando e
acabou por apresentar o “Programa da Manhã”, ao lado de Sónia Santos. «Sentia-me muito bem a fazer aquilo. E pelos vistos havia um tipo na Comercial que também gostava muito.» Esse «tipo» era Pedro Ribeiro, que lhe lançou o convite em 2007. «Fazendo a analogia futebolística – e sem qualquer desprimor para a Mega, que foi uma grande escola –, foi como saltar de uma equipa que luta pela Europa para uma que luta pelo título.» A televisão lá acabou por lhe aparecer pelo caminho: actualmente, apresenta o programa “A Rede”, no Canal Q. Mas prefere a rádio. «Adoro isto. Acima de tudo, sou um animador de rádio.» Com uma forte veia humorística: «É mais forte do que eu, a cabeça está sempre a borbulhar e a disparar piadas.» De tal modo que nem de férias consegue meter folga da graçola improvisada. «Ouço muito a frase “Vasco, pára! Estás de férias!”. Eu próprio o digo: “Menos, menos… Descansa a cabeça!”. Mas desligar o botão não é fácil.» Por vezes, são as próprias situações que o «provocam». Como, por exemplo, a «tradição» portuguesa de aplaudir o piloto quando o avião aterra. «O homem está a fazer o que tem de fazer! Tem de aterrar aquilo senão morre. Mas a gente vai aplaudir», aponta, num tom trocista, enquanto bate palmas entusiasticamente. «Era engraçado aplicar isso a outras
coisas: o taxista deu-me o troco muito bem. Espectacular! [aplaude] Ou no metro: a forma como ele parou aquilo, espectacular! [aplaude de novo]» É, aliás, ao metro que vai buscar boa parte do seu material para as “Manhãs da Comercial”. «Adoro ouvir as conversas, as duas velhinhas na cavaqueira, o gajo que vai a discutir com a namorada por telemóvel, aos gritos, como se estivesse em casa. É bom demais. São aquelas coisinhas com que as pessoas se identificam, se eu as mencionar no programa.» O metro é o seu meio de transporte preferido. «Adoro andar de metro. Vou para todo o lado.» E defende-o com unhas e dentes. «Faz-me confusão quando dizem que o de Lisboa é mau, confuso, sujo… não é! Vão lá fora e vejam redes de 15 linhas, comboios a cair de podres, é preciso mudar oito vezes de linha para ir daqui ali. O nosso é super-simples.» Vasco nasceu, cresceu, estudou e trabalhou sempre em Lisboa, os pais nunca tiveram carro e ele próprio não tem carta de condução. «Estou a tirá-la agora, mas parei nas aulas de código há uns meses…» Há oito meses, para ser mais exacto: «Tinha quatro lições e parei por causa do Mundial da África do Sul, que entretanto acabou e ainda não retomei.» É uma questão de prioridades: o futebol, sempre o futebol.
JANEIRO, FEVEREIRO
CURIOSAMENTE, Vasco Palmeirim
2011
uma piada pronta da disparar.
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o outro lado I manhãs da comercial I
Quando NUNO MARKL não está a trabalhar, muito possivelmente estará a «viajar no tempo» em busca de material para a sua “Caderneta de Cromos”.
Nos
entretantos,
investe o seu tempo em acabar de tirar a carta de condução.
JANEIRO, FEVEREIRO
2011
NUNO MARKL também está a tirar a
48
carta, mas não se distrai com futebóis. Aliás, é coisa de que nem percebe patavina. De futebol, isto é; na condução até se ajeita. «De início, parece um bicho-de-sete-cabeças, mas às tantas começam-se a criar os tais automatismos e há coisas que já faço sem pensar: meto mudanças, converso com o instrutor sobre a vida.» Resistiu durante muitos anos, «por um misto de preguiça e de me achar demasiado distraído, um perigo para mim e para os outros». Era até visto por muitos não-condutores como um porta-estandarte da «causa». «Têm aparecido no Facebook depoimentos do género “Ora bolas! Agora já não posso dizer à minha mulher ‘Mas o Markl também não tem!’”; deitei por terra tudo o que estas pessoas pensavam de mim», brinca, no seu característico tom de auto-crítica. O principal impulsionador para a decisão de tirar a carta aos 39 anos foi o nascimento do filho. «Comecei a ficar com um incrível sentimento de culpa por a minha mulher ser a única pessoa que conduz e, se é preciso um medicamento às tantas da noite, é a senhora que vai à rua enquanto o senhor fica em casa. Estava na altura de me deixar de tretas.» É certo que a quantidade de trabalho nem sempre é compatível com a rotina das lições de condução. «Às vezes passam-se duas ou três semanas sem ir às aulas. Tem sido um processo longuíssimo, mas agora estou na recta final e parece-me que mais meia dúzia de aulas e estou pronto.»
Aprender a andar de bicicleta é o item que se segue na sua «Lista de Coisas A Fazer». «É algo que um pai tem de ensinar a um filho e preciso de aprender antes de chegar a altura – posso ensiná-lo a nadar, que isso sei e orgulho-me muito, mas a história da bicicleta é uma falha horrível, um peso que carrego toda a vida.» Será talvez reflexo de ter passado parte da sua juventude enfiado no estúdio da Rádio Voz de Benfica, onde tudo começou. «Descobri que havia uma rádio pirata a funcionar nas traseiras de minha casa – aliás, havia uma nas traseiras da casa de toda a gente.» Visitou-a por curiosidade e saiu de lá com uma oferta de trabalho. «O dono disse logo “Queres trabalhar aqui? Podes começar já hoje?”» Aceitou de imediato. «De repente, sem saber como, estava a fazer uma emissão inteira com dois “Top Jackpot ‘86”.» Nuno ainda ri, algures entre o embaraçado e o deliciado, ao recordar o episódio. «Foi uma experiência do outro mundo ter pertencido a uma rádio tão pirata como aquela.» Seguiu-se a Correio da Manhã Rádio (CMR), onde foi jornalista. «De cada vez que ia à antena tremia por todos os lados. Mas depois começa a ser natural, como estar numa repartição de finanças a carimbar impressos.» Com o tempo passou a dedicar-se mais a programas de humor e, após o fecho da CMR, em 1993, mudou-se para a Rádio Comercial – onde, quatro anos depois, iniciou a rubrica de histórias bizarras “O Homem Que Mordeu O Cão”, o seu primeiro “blockbuster”
radiofónico, que deu a conhecer ao público «talentos» como Zé Cabra (feito pelo qual não tem especial orgulho) e se desdobrou em três livros, um programa televisivo e uma digressão nacional de espectáculos ao vivo. Nessa altura, dizia na brincadeira ser «uma pessoa muito poderosa no meio audiovisual português». E a verdade é que, de certo modo, até era – e é, cada vez mais (embora se ria em jeito de recusa quando o tema vem à conversa). Veja-se o célebre caso do Fizz Limão: em 2010, o gelado há muito desaparecido regressou às cartas da Olá, na sequência de um apelo lançado por si e da petição “online” iniciada pelo ouvinte assíduo Ricardo Augusto. «Foi o momento em que percebi a força da comunidade da “Caderneta de Cromos”.» Actualmente a rubrica – «uma verdadeira enciclopédia radiofónica humorística de tudo o que nos fez espernear de prazer quando tínhamos genuíno vigor nas pernas para as fazer espernear», segundo a descrição oficial – conta já com mais de 163 mil adeptos no Facebook. E o sucesso poderá até superar o de “O Homem Que Mordeu O Cão”. De momento, tem já um livro e uma mini-digressão no currículo. Bem como uma edição especial do clássico de tabuleiro da Majora “Jogo da Glória”. E Nuno Markl caminha a passos largos para se tornar, quem sabe?, uma respeitada autoridade na matéria, espécie de José Hermano Saraiva da História da cultura pop dos anos 80 em Portugal. A insinuação fá-lo soltar uma garga-
lhada. «Quando fiz o “Há Vida Em Markl”, na Antena 3, onde ia buscar algumas coisas do passado, apercebi-me de que é uma época tão insólita que é óptima como material de comédia.» E contorna o epíteto de nostálgico profissional: «Sim, é uma rubrica nostálgica, mas nunca saudosista – não é saudável estar agarrado ao passado, pensar “ah… aquilo é que era bom…” A ideia é ser uma coisa divertida, metemo-nos numa máquina do tempo, vamos lá visitar aquilo e depois voltamos.» Curiosamente, da primeira vez que um trabalho escrito por si deu que falar também havia uma máquina do tempo envolvida: Maria Rueff, no papel de repórter do programa de Herman José “Parabéns” (1996), viajava até ao ano 33 para fazer uma reportagem sobre a última ceia de Cristo. Foi um dos “sketches” mais polémicos da história do humor em Portugal. Na altura, Nuno era argumentista nas Produções Fictícias e, perante o escândalo nacional que a rábula despoletou, sentiu-se tão orgulhoso como assustado. «Num editorial na Renascença, o editor dizia que era inconcebível como é que mentes depravadas tinham criado aquilo. E eu, com 25 anos, a pensar “Meu Deus! Eu estava na Rádio Voz de Benfica a escrever as minhas próprias piadas… Que é isto?!”.» Herman defendeu o “sketch” e enfrentou as críticas com o habitual à-vontade, até que tudo se esfumou. «Depois disto, apercebi-me do poder que a comédia tem.» n
UM TIPO RELATIVAMENTE PODEROSO
o outro lado I manhãs da comercial I
Quando NUNO MARKL não está a trabalhar, muito possivelmente estará a «viajar no tempo» em busca de material para a sua “Caderneta de Cromos”.
Nos
entretantos,
investe o seu tempo em acabar de tirar a carta de condução.
JANEIRO, FEVEREIRO
2011
NUNO MARKL também está a tirar a
48
carta, mas não se distrai com futebóis. Aliás, é coisa de que nem percebe patavina. De futebol, isto é; na condução até se ajeita. «De início, parece um bicho-de-sete-cabeças, mas às tantas começam-se a criar os tais automatismos e há coisas que já faço sem pensar: meto mudanças, converso com o instrutor sobre a vida.» Resistiu durante muitos anos, «por um misto de preguiça e de me achar demasiado distraído, um perigo para mim e para os outros». Era até visto por muitos não-condutores como um porta-estandarte da «causa». «Têm aparecido no Facebook depoimentos do género “Ora bolas! Agora já não posso dizer à minha mulher ‘Mas o Markl também não tem!’”; deitei por terra tudo o que estas pessoas pensavam de mim», brinca, no seu característico tom de auto-crítica. O principal impulsionador para a decisão de tirar a carta aos 39 anos foi o nascimento do filho. «Comecei a ficar com um incrível sentimento de culpa por a minha mulher ser a única pessoa que conduz e, se é preciso um medicamento às tantas da noite, é a senhora que vai à rua enquanto o senhor fica em casa. Estava na altura de me deixar de tretas.» É certo que a quantidade de trabalho nem sempre é compatível com a rotina das lições de condução. «Às vezes passam-se duas ou três semanas sem ir às aulas. Tem sido um processo longuíssimo, mas agora estou na recta final e parece-me que mais meia dúzia de aulas e estou pronto.»
Aprender a andar de bicicleta é o item que se segue na sua «Lista de Coisas A Fazer». «É algo que um pai tem de ensinar a um filho e preciso de aprender antes de chegar a altura – posso ensiná-lo a nadar, que isso sei e orgulho-me muito, mas a história da bicicleta é uma falha horrível, um peso que carrego toda a vida.» Será talvez reflexo de ter passado parte da sua juventude enfiado no estúdio da Rádio Voz de Benfica, onde tudo começou. «Descobri que havia uma rádio pirata a funcionar nas traseiras de minha casa – aliás, havia uma nas traseiras da casa de toda a gente.» Visitou-a por curiosidade e saiu de lá com uma oferta de trabalho. «O dono disse logo “Queres trabalhar aqui? Podes começar já hoje?”» Aceitou de imediato. «De repente, sem saber como, estava a fazer uma emissão inteira com dois “Top Jackpot ‘86”.» Nuno ainda ri, algures entre o embaraçado e o deliciado, ao recordar o episódio. «Foi uma experiência do outro mundo ter pertencido a uma rádio tão pirata como aquela.» Seguiu-se a Correio da Manhã Rádio (CMR), onde foi jornalista. «De cada vez que ia à antena tremia por todos os lados. Mas depois começa a ser natural, como estar numa repartição de finanças a carimbar impressos.» Com o tempo passou a dedicar-se mais a programas de humor e, após o fecho da CMR, em 1993, mudou-se para a Rádio Comercial – onde, quatro anos depois, iniciou a rubrica de histórias bizarras “O Homem Que Mordeu O Cão”, o seu primeiro “blockbuster”
radiofónico, que deu a conhecer ao público «talentos» como Zé Cabra (feito pelo qual não tem especial orgulho) e se desdobrou em três livros, um programa televisivo e uma digressão nacional de espectáculos ao vivo. Nessa altura, dizia na brincadeira ser «uma pessoa muito poderosa no meio audiovisual português». E a verdade é que, de certo modo, até era – e é, cada vez mais (embora se ria em jeito de recusa quando o tema vem à conversa). Veja-se o célebre caso do Fizz Limão: em 2010, o gelado há muito desaparecido regressou às cartas da Olá, na sequência de um apelo lançado por si e da petição “online” iniciada pelo ouvinte assíduo Ricardo Augusto. «Foi o momento em que percebi a força da comunidade da “Caderneta de Cromos”.» Actualmente a rubrica – «uma verdadeira enciclopédia radiofónica humorística de tudo o que nos fez espernear de prazer quando tínhamos genuíno vigor nas pernas para as fazer espernear», segundo a descrição oficial – conta já com mais de 163 mil adeptos no Facebook. E o sucesso poderá até superar o de “O Homem Que Mordeu O Cão”. De momento, tem já um livro e uma mini-digressão no currículo. Bem como uma edição especial do clássico de tabuleiro da Majora “Jogo da Glória”. E Nuno Markl caminha a passos largos para se tornar, quem sabe?, uma respeitada autoridade na matéria, espécie de José Hermano Saraiva da História da cultura pop dos anos 80 em Portugal. A insinuação fá-lo soltar uma garga-
lhada. «Quando fiz o “Há Vida Em Markl”, na Antena 3, onde ia buscar algumas coisas do passado, apercebi-me de que é uma época tão insólita que é óptima como material de comédia.» E contorna o epíteto de nostálgico profissional: «Sim, é uma rubrica nostálgica, mas nunca saudosista – não é saudável estar agarrado ao passado, pensar “ah… aquilo é que era bom…” A ideia é ser uma coisa divertida, metemo-nos numa máquina do tempo, vamos lá visitar aquilo e depois voltamos.» Curiosamente, da primeira vez que um trabalho escrito por si deu que falar também havia uma máquina do tempo envolvida: Maria Rueff, no papel de repórter do programa de Herman José “Parabéns” (1996), viajava até ao ano 33 para fazer uma reportagem sobre a última ceia de Cristo. Foi um dos “sketches” mais polémicos da história do humor em Portugal. Na altura, Nuno era argumentista nas Produções Fictícias e, perante o escândalo nacional que a rábula despoletou, sentiu-se tão orgulhoso como assustado. «Num editorial na Renascença, o editor dizia que era inconcebível como é que mentes depravadas tinham criado aquilo. E eu, com 25 anos, a pensar “Meu Deus! Eu estava na Rádio Voz de Benfica a escrever as minhas próprias piadas… Que é isto?!”.» Herman defendeu o “sketch” e enfrentou as críticas com o habitual à-vontade, até que tudo se esfumou. «Depois disto, apercebi-me do poder que a comédia tem.» n
UM TIPO RELATIVAMENTE PODEROSO
directo
I automobilismo I
TIAGO
MONTEIRO
PASSADO, PRESENTE E FUTURO DE UM PILOTO QUE INSISTE EM FAZER HISTÓRIA.
IDAS E VOLTAS TEXTO JOÃO MESTRE FOTOGRAFIAS JORDI BURCH
MARÇO, ABRIL
2008
N
14
asceu no Porto há 31 anos. Primeiro, formou-se em Gestão Hoteleira, na Suiça. Tinha já 20 anos quando pediu ao pai, Edmar, piloto da Porsche Cup francesa, para dar umas voltas no seu bólide. A condução foi tão elogiada que se convenceu a enveredar pelo desporto automóvel. Nove anos depois, chegava à Fórmula 1, tornando-se no primeiro piloto português a subir ao pódio num Grande Prémio. E terminou a época como “rookie do ano”. Em vésperas de iniciar mais uma época competitiva, Tiago Vagaroso da Costa Monteiro fala-nos da passagem pela Fórmula 1 (e sobre o iminente regresso), dos momentos altos da carreira e das expectativas para 2008, novamente ao serviço da Seat, no Campeonato Mundial de Turismo da FIA (WTCC).
directo
I automobilismo I
TIAGO
MONTEIRO
PASSADO, PRESENTE E FUTURO DE UM PILOTO QUE INSISTE EM FAZER HISTÓRIA.
IDAS E VOLTAS TEXTO JOÃO MESTRE FOTOGRAFIAS JORDI BURCH
MARÇO, ABRIL
2008
N
14
asceu no Porto há 31 anos. Primeiro, formou-se em Gestão Hoteleira, na Suiça. Tinha já 20 anos quando pediu ao pai, Edmar, piloto da Porsche Cup francesa, para dar umas voltas no seu bólide. A condução foi tão elogiada que se convenceu a enveredar pelo desporto automóvel. Nove anos depois, chegava à Fórmula 1, tornando-se no primeiro piloto português a subir ao pódio num Grande Prémio. E terminou a época como “rookie do ano”. Em vésperas de iniciar mais uma época competitiva, Tiago Vagaroso da Costa Monteiro fala-nos da passagem pela Fórmula 1 (e sobre o iminente regresso), dos momentos altos da carreira e das expectativas para 2008, novamente ao serviço da Seat, no Campeonato Mundial de Turismo da FIA (WTCC).
directo I automobilismo I
No dia-a-dia, como é que se desloca?
Na estrada, prefiro a mota. Detesto engarrafamentos, não tenho mesmo paciência. Sempre fui apaixonado por motas… No entanto, em competição, pre-
MARÇO, ABRIL
2008
fere os carros…
16
Em competição, sim. Apesar de nunca ter experimentado a competição de motas. A minha paixão, em competição, é mesmo os automóveis. Tem de ter um volante e quatro rodas.
1997. Descobre, aos 20 anos, o seu talento para o automobilismo. Estreia-se na Porsche Carrera Cup – Categoria B, sagrando-se campeão de França, com cinco “pole-positions” consecutivas e outras tantas vitórias. Acaba a época, sem surpresa, como “rookie do ano”. 1999. Corre no campeonato francês de Fórmula 3. Termina a época em 12º lugar, com mais uma distinção como “rookie do ano”. Vence o seu primeiro GP de Fórmula 3, em Albi.
2000. Sagra-se vice-campeão de Fórmula 3, quer no campeonato francês, quer no europeu. No ano seguinte, repete o título de Campeão de França.
Em que é que pensa ao entrar no carro antes de uma prova?
2002. Entra para o (entre-
As coisas evoluíram muito. No início da minha carreira, conheci o Jacques Villeneuve e ele falava-me muito da agressividade: «Quando vais para uma competição, tens de pensar em coisas que te vão motivar mais». E eu pensava muito nisso. Pouco a pouco, fui percebendo que, sim, a agressividade é importante, mas o principal é estar bem preparado. Saber exactamente o que vais
tanto extinto) Campeonato Internacional de Fórmula 3000, que termina em 12º lugar. Integra o Renault F1 Drivers Development Project, o seu primeiro contacto com a Fórmula 1.
fazer em cada curva, antecipar tudo. Quando estou dentro do carro, antes de arrancar, visualizo mais uma vez a pista e tento verme a guiar, a virar, a travar, onde é que são os meus pontos de referência, qual é a minha distância de travagem. «Saio» para fora do carro, e vejo-me a fazer o circuito. Sente-se mais respeitado como piloto depois da passagem pela Fórmula 1?
A Fórmula 1 deu o meu nome a conhecer ao público em geral, mesmo a quem não gosta ou não segue o desporto automóvel. Mas, dentro do meio, a minha carreira já tinha os resultados e as vitórias que tinha, por isso o respeito já eu o tinha ganho. De qualquer forma, como piloto aprendi muito naqueles dois anos. Aliás, qualquer piloto está sempre a aprender. Não há ninguém que chegue ao ponto de dizer «já está, já sei tudo e não vou andar mais rápido do que isto». Isso não existe. Está-se sempre a evoluir, a descobrir novas situações, novos estilos, novas evoluções. E temos de nos adaptar – aos carros, à tecnologia. Que balanço faz desta primeira época no WTCC?
Um balanço muito positivo! Chegar a um campeonato do Mundo, tão competitivo como este, lutando com pilotos tão rápidos e experientes como estes não ia ser tarefa fácil. Mas, com três pódios, uma “pole position” e o título de “rookie do ano”, foi uma excelente estreia! Como é que foi adaptação ao Campeonato de Turismo?
Foi um choque, de início. Sobretudo a nível da potência – estamos a falar de três vezes menos potência para o dobro do peso, com pouco apoio aerodinâmico. Embora seja um carro extremamente com-
petitivo, depois da Fórmula 1 qualquer outra categoria será um choque a nível de velocidade. Para quem vem dos monolugares, a grande dificuldade é não ter o apoio aerodinâmico a esmagar o carro no chão. E também a tracção à frente: foi a primeira vez, em toda a minha carreira, que guiei um carro de tracção à frente. E aí, o estilo de pilotagem é muito
diferente. Essa foi, talvez, a minha maior dificuldade, porque o modo como se entra nas curvas, como se trava para as curvas, como se acelera, é completamente diferente de um tracção atrás. Mas adaptei-me bem, porque é um verdadeiro carro de competição. Tem um chassis muito eficaz, trava que é uma coisa louca (apesar de pesar 1000 kg, contra os 600 kg
de um Fórmula 1) e curva muito bem. A adaptação foi mais rápida do que eu e a maioria das pessoas no mundo do automobilismo esperávamos. Tenho recebido muitos e-mails de parabéns dos entendidos na matéria. Há muita diferença entre o ambiente da Fórmula 1 e o do Campeonato de Turismo?
Há, claro. São ambos campeona-
2008
“COMO NÃO É TÃO MEDIÁTICO COMO A FÓRMULA1, NÃO HÁ TANTAS GUERRAS. APESAR DE TODA A GENTE TRABALHAR DE FORMA MUITO RIGOROSA, HÁ UMA ÓPTIMA RELAÇÃO ENTRE PILOTOS E COM OS PATROCINADORES.”
24 de Julho de 1976. Aos cinco anos, a sua família muda-se para Paris. Após terminar a escolaridade, vai para Glion (Suiça) estudar Gestão Hoteleira.
MARÇO, ABRIL
CAMPEONATO MUNDIAL DE TURISMO
1976. Nasce, no Porto, a
17
directo I automobilismo I
No dia-a-dia, como é que se desloca?
Na estrada, prefiro a mota. Detesto engarrafamentos, não tenho mesmo paciência. Sempre fui apaixonado por motas… No entanto, em competição, pre-
MARÇO, ABRIL
2008
fere os carros…
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Em competição, sim. Apesar de nunca ter experimentado a competição de motas. A minha paixão, em competição, é mesmo os automóveis. Tem de ter um volante e quatro rodas.
1997. Descobre, aos 20 anos, o seu talento para o automobilismo. Estreia-se na Porsche Carrera Cup – Categoria B, sagrando-se campeão de França, com cinco “pole-positions” consecutivas e outras tantas vitórias. Acaba a época, sem surpresa, como “rookie do ano”. 1999. Corre no campeonato francês de Fórmula 3. Termina a época em 12º lugar, com mais uma distinção como “rookie do ano”. Vence o seu primeiro GP de Fórmula 3, em Albi.
2000. Sagra-se vice-campeão de Fórmula 3, quer no campeonato francês, quer no europeu. No ano seguinte, repete o título de Campeão de França.
Em que é que pensa ao entrar no carro antes de uma prova?
2002. Entra para o (entre-
As coisas evoluíram muito. No início da minha carreira, conheci o Jacques Villeneuve e ele falava-me muito da agressividade: «Quando vais para uma competição, tens de pensar em coisas que te vão motivar mais». E eu pensava muito nisso. Pouco a pouco, fui percebendo que, sim, a agressividade é importante, mas o principal é estar bem preparado. Saber exactamente o que vais
tanto extinto) Campeonato Internacional de Fórmula 3000, que termina em 12º lugar. Integra o Renault F1 Drivers Development Project, o seu primeiro contacto com a Fórmula 1.
fazer em cada curva, antecipar tudo. Quando estou dentro do carro, antes de arrancar, visualizo mais uma vez a pista e tento verme a guiar, a virar, a travar, onde é que são os meus pontos de referência, qual é a minha distância de travagem. «Saio» para fora do carro, e vejo-me a fazer o circuito. Sente-se mais respeitado como piloto depois da passagem pela Fórmula 1?
A Fórmula 1 deu o meu nome a conhecer ao público em geral, mesmo a quem não gosta ou não segue o desporto automóvel. Mas, dentro do meio, a minha carreira já tinha os resultados e as vitórias que tinha, por isso o respeito já eu o tinha ganho. De qualquer forma, como piloto aprendi muito naqueles dois anos. Aliás, qualquer piloto está sempre a aprender. Não há ninguém que chegue ao ponto de dizer «já está, já sei tudo e não vou andar mais rápido do que isto». Isso não existe. Está-se sempre a evoluir, a descobrir novas situações, novos estilos, novas evoluções. E temos de nos adaptar – aos carros, à tecnologia. Que balanço faz desta primeira época no WTCC?
Um balanço muito positivo! Chegar a um campeonato do Mundo, tão competitivo como este, lutando com pilotos tão rápidos e experientes como estes não ia ser tarefa fácil. Mas, com três pódios, uma “pole position” e o título de “rookie do ano”, foi uma excelente estreia! Como é que foi adaptação ao Campeonato de Turismo?
Foi um choque, de início. Sobretudo a nível da potência – estamos a falar de três vezes menos potência para o dobro do peso, com pouco apoio aerodinâmico. Embora seja um carro extremamente com-
petitivo, depois da Fórmula 1 qualquer outra categoria será um choque a nível de velocidade. Para quem vem dos monolugares, a grande dificuldade é não ter o apoio aerodinâmico a esmagar o carro no chão. E também a tracção à frente: foi a primeira vez, em toda a minha carreira, que guiei um carro de tracção à frente. E aí, o estilo de pilotagem é muito
diferente. Essa foi, talvez, a minha maior dificuldade, porque o modo como se entra nas curvas, como se trava para as curvas, como se acelera, é completamente diferente de um tracção atrás. Mas adaptei-me bem, porque é um verdadeiro carro de competição. Tem um chassis muito eficaz, trava que é uma coisa louca (apesar de pesar 1000 kg, contra os 600 kg
de um Fórmula 1) e curva muito bem. A adaptação foi mais rápida do que eu e a maioria das pessoas no mundo do automobilismo esperávamos. Tenho recebido muitos e-mails de parabéns dos entendidos na matéria. Há muita diferença entre o ambiente da Fórmula 1 e o do Campeonato de Turismo?
Há, claro. São ambos campeona-
2008
“COMO NÃO É TÃO MEDIÁTICO COMO A FÓRMULA1, NÃO HÁ TANTAS GUERRAS. APESAR DE TODA A GENTE TRABALHAR DE FORMA MUITO RIGOROSA, HÁ UMA ÓPTIMA RELAÇÃO ENTRE PILOTOS E COM OS PATROCINADORES.”
24 de Julho de 1976. Aos cinco anos, a sua família muda-se para Paris. Após terminar a escolaridade, vai para Glion (Suiça) estudar Gestão Hoteleira.
MARÇO, ABRIL
CAMPEONATO MUNDIAL DE TURISMO
1976. Nasce, no Porto, a
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directo I automobilismo I
MARÇO, ABRIL
18
tos mundiais e não há dúvida de que, a nível de competitividade, são muito similares, porque apesar de estarmos a falar de carros, de estilos de pilotagem e de filosofias completamente diferentes, estão lá os melhores pilotos da modalidade. A grande diferença é que, como o Mundial de Turismo não é tão mediático como a Fórmula1, não há tanta pressão, nem tantas «politiquices» e guerras. Apesar de toda a gente trabalhar de uma forma muito rigorosa, acaba por ser um ambiente muito mais relaxado. Na Fórmula 1, só se está mesmo bem quando se está dentro do carro. Aqui, embora os fins-de-
gresso à Formula 1?
Continua possível! É essa a loucura da F1: tudo pode acontecer a qualquer momento. E enquanto houver interesse e contacto da parte das equipas, pela boa imagem que deixei lá, então continua a haver possibilidades. Mas é tão difícil regressar à F1 como lá entrar. É também por isso que é tão excitante! Mas só regresso se for em condições competitivas e como eu quero. Não quero regressar só por ser a Fórmula 1. Tive a oportunidade de lá estar dois anos e, não havendo a possibilidade de passar para uma equipa mais competitiva, preferi sair. Quero regressar em boas condições e numa equipa mais competitiva. Se não for o caso, estou muito feliz onde estou e prefiro continuar noutra categoria mas a lutar pela vitória.
Series by Nissan, terminando a época como vice-campeão e, uma vez mais, “rookie do ano”. Totaliza cinco vitórias e quatro “pole-positions”. Realiza mais dois testes na Fórmula 1, com a Minardi.
2005. Estreia-se no Campeonato do Mundo de Fórmula 1, ao volante de um Jordan-Toyota. Termina a época em 16º lugar, conseguindo pontuar por duas vezes: no GP dos Estados Unidos, que termina em 3º lugar, e no GP da Bélgica, que conclui na 8ª posição e lhe valeu o troféu de “Homem da Corrida”. Termina a época com um número recorde de corridas concluídas – em 19 provas, houve apenas uma em que não conseguiu terminar, feito nunca antes conseguido por um estreante.
Estão a ser feitos contactos
2007. Após uma
com alguma equipa de Fór-
infrutífera época na equipa Midland F1 Racing (que, entretanto, muda de nome para Spyker F1), coloca uma pausa na sua carreira de piloto de Fórmula 1, assinando com a Seat Sport para o Campeonato Mundial de Turismos da FIA. Alcança o seu primeiro pódio no Circuito de Pau (França), acabando em 3º lugar. Termina a época no 11º posto, com 38 pontos, e acumula mais um título de “rookie do ano”.
mula 1?
Bem, os contactos nunca acabaram. Porém, estou muito concentrado no campeonato do WTCC e não estou a prestar muita atenção às negociações. Quem trata disso é a minha equipa de “management”, em Inglaterra. Observando os maus resultados da sua antiga equipa de Fórmula 1 (a Spyker) na época de 2007, sente-se ainda mais confortável com a decisão de ter saído?
Não fico satisfeito com isso, obviamente. Tenho pena, porque sei
2008
2008
“NUM CAMPEONATO TÃO COMPETITIVO, NÃO IA SER FÁCIL. MAS, COM TRÊS PÓDIOS, UMA “POLE POSITION” E O TÍTULO DE “ROOKIE DO ANO”, FOI UMA EXCELENTE ESTREIA!”
Mas continua iminente um re-
2004. Compete na World
MARÇO, ABRIL
BALANÇO DA PRIMEIRA ÉPOCA WTCC
-semana sejam mais ocupados do que eu imaginava, há uma óptima relação entre pilotos e com os próprios patrocinadores. E quem viveu a Fórmula 1 aprecia ainda mais estas vantagens.
19
directo I automobilismo I
MARÇO, ABRIL
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tos mundiais e não há dúvida de que, a nível de competitividade, são muito similares, porque apesar de estarmos a falar de carros, de estilos de pilotagem e de filosofias completamente diferentes, estão lá os melhores pilotos da modalidade. A grande diferença é que, como o Mundial de Turismo não é tão mediático como a Fórmula1, não há tanta pressão, nem tantas «politiquices» e guerras. Apesar de toda a gente trabalhar de uma forma muito rigorosa, acaba por ser um ambiente muito mais relaxado. Na Fórmula 1, só se está mesmo bem quando se está dentro do carro. Aqui, embora os fins-de-
gresso à Formula 1?
Continua possível! É essa a loucura da F1: tudo pode acontecer a qualquer momento. E enquanto houver interesse e contacto da parte das equipas, pela boa imagem que deixei lá, então continua a haver possibilidades. Mas é tão difícil regressar à F1 como lá entrar. É também por isso que é tão excitante! Mas só regresso se for em condições competitivas e como eu quero. Não quero regressar só por ser a Fórmula 1. Tive a oportunidade de lá estar dois anos e, não havendo a possibilidade de passar para uma equipa mais competitiva, preferi sair. Quero regressar em boas condições e numa equipa mais competitiva. Se não for o caso, estou muito feliz onde estou e prefiro continuar noutra categoria mas a lutar pela vitória.
Series by Nissan, terminando a época como vice-campeão e, uma vez mais, “rookie do ano”. Totaliza cinco vitórias e quatro “pole-positions”. Realiza mais dois testes na Fórmula 1, com a Minardi.
2005. Estreia-se no Campeonato do Mundo de Fórmula 1, ao volante de um Jordan-Toyota. Termina a época em 16º lugar, conseguindo pontuar por duas vezes: no GP dos Estados Unidos, que termina em 3º lugar, e no GP da Bélgica, que conclui na 8ª posição e lhe valeu o troféu de “Homem da Corrida”. Termina a época com um número recorde de corridas concluídas – em 19 provas, houve apenas uma em que não conseguiu terminar, feito nunca antes conseguido por um estreante.
Estão a ser feitos contactos
2007. Após uma
com alguma equipa de Fór-
infrutífera época na equipa Midland F1 Racing (que, entretanto, muda de nome para Spyker F1), coloca uma pausa na sua carreira de piloto de Fórmula 1, assinando com a Seat Sport para o Campeonato Mundial de Turismos da FIA. Alcança o seu primeiro pódio no Circuito de Pau (França), acabando em 3º lugar. Termina a época no 11º posto, com 38 pontos, e acumula mais um título de “rookie do ano”.
mula 1?
Bem, os contactos nunca acabaram. Porém, estou muito concentrado no campeonato do WTCC e não estou a prestar muita atenção às negociações. Quem trata disso é a minha equipa de “management”, em Inglaterra. Observando os maus resultados da sua antiga equipa de Fórmula 1 (a Spyker) na época de 2007, sente-se ainda mais confortável com a decisão de ter saído?
Não fico satisfeito com isso, obviamente. Tenho pena, porque sei
2008
2008
“NUM CAMPEONATO TÃO COMPETITIVO, NÃO IA SER FÁCIL. MAS, COM TRÊS PÓDIOS, UMA “POLE POSITION” E O TÍTULO DE “ROOKIE DO ANO”, FOI UMA EXCELENTE ESTREIA!”
Mas continua iminente um re-
2004. Compete na World
MARÇO, ABRIL
BALANÇO DA PRIMEIRA ÉPOCA WTCC
-semana sejam mais ocupados do que eu imaginava, há uma óptima relação entre pilotos e com os próprios patrocinadores. E quem viveu a Fórmula 1 aprecia ainda mais estas vantagens.
19
directo I automobilismo I mas é difícil prever. De qualquer forma, no curto prazo não, e eu preciso de um aumento de competitividade da equipa já! Para a época de 2008, qual é o seu objectivo?
Lutar pelo título e ganhar corridas, claro! No Mundial de Turismos de 2007, teve a oportunidade de correr o Circuito da Boavista. Apesar dos resultados, que balanço retira da experiência de correr na sua cidade natal?
Realmente foi a corrida mais complicada do ano. Apesar de estar a correr muito bem nos treinos livres, cometi um erro e toquei nas qualificações. Isso comprometeu o fim-de-semana todo. Agora o evento foi incrível para mim, com tanta gente a apoiar-me. Que sensação incrível! Já tinha corrido em Portugal, e é sempre especial. Mas correr na minha cidade natal é ainda mais impressionante! Adorei a experiência. Acho que foi a primeira vez que fui dormir a casa na véspera de uma corrida… Este ano, porém, já não vai haver Circuito da Boavista…
MARÇO, ABRIL
2008
que há pessoas com muito talento e muita qualidade naquela equipa e a única razão de não conseguirem evoluir mais é financeira. São equipas privadas, à luta com construtores que têm orçamentos 10 a 20 vezes mais altos. No entanto, isso confirma que a minha decisão terá sido acertada, porque se eu tivesse lá ficado, no terceiro ano, a lutar só pelos últimos lugares, não me sentiria bem.
20
Acha que agora, como Force India, a equipa poderá ir mais longe?
Talvez possam melhorar um pouco,
A Câmara tem um acordo com a organização para a realização da prova de dois em dois anos. Então alterna-se com o Estoril. É pena, realmente. Circuitos citadinos são sempre melhores para o público!
OS LOCAIS FAVORITOS DE TIAGO MONTEIRO, NO SEU PORTO NATAL Restaurante favorito. Don Juan (Rua Helena Vieira da Silva, 320, Paço da Boa Nova - Leça da Palmeira). Come-se muito bem, somos bem servidos, é perto de casa e é muito variado. Esplanada para um copo ao pôr-do-Sol. Casa de Chá da Boa Nova (Rua da Boa Nova, Leça da Palmeira). No meio das rochas, com as ondas a bater e um dos melhores sítios para o pôr-do-Sol. Sair à noite. Não tenho particularmente nenhum preferido. Talvez o Bazaar (Cais das Pedras, 13). Gosto do sítio, porque é bem diferente. E com espaço cá fora, no Verão.
Qual é o seu circuito favorito, no calendário do WTCC?
O Porto. E Macau, também – tive lá grandes corridas e grandes memórias em F3, em 2000. É uma corrida de loucos – e o circuito citadino mais perigoso que já vi, com rectas enormes, mau piso e sítios onde cabem 5-6 carros lado-a-lado seguidos de outros onde quase não passa um. É preciso ser um bocado maluco para poder andar àquela velocidade naquele circuito. Comparado com Macau, o Mónaco é uma brincadeira.
Local favorito. O Palácio de Cristal (Rua D. Manuel II, actual Pavilhão Rosa Mota). Faz-me lembrar da minha infância. Ou a livraria Lello & Irmão (Rua das Carmelitas, 144): incrível, parece saída de um filme. Bairro favorito. A Baixa, a Ribeira. Também parece surreal, às vezes, com algumas luzes do dia. Comer uma francesinha. Restaurante Gambamar (Rua do Campo Alegre, 110). Loja favorita. A Fnac (Rua de Santa Catarina, 73). Há de tudo o que eu gosto: DVD’s, música, electrónica, fotografia!
directo I automobilismo I mas é difícil prever. De qualquer forma, no curto prazo não, e eu preciso de um aumento de competitividade da equipa já! Para a época de 2008, qual é o seu objectivo?
Lutar pelo título e ganhar corridas, claro! No Mundial de Turismos de 2007, teve a oportunidade de correr o Circuito da Boavista. Apesar dos resultados, que balanço retira da experiência de correr na sua cidade natal?
Realmente foi a corrida mais complicada do ano. Apesar de estar a correr muito bem nos treinos livres, cometi um erro e toquei nas qualificações. Isso comprometeu o fim-de-semana todo. Agora o evento foi incrível para mim, com tanta gente a apoiar-me. Que sensação incrível! Já tinha corrido em Portugal, e é sempre especial. Mas correr na minha cidade natal é ainda mais impressionante! Adorei a experiência. Acho que foi a primeira vez que fui dormir a casa na véspera de uma corrida… Este ano, porém, já não vai haver Circuito da Boavista…
MARÇO, ABRIL
2008
que há pessoas com muito talento e muita qualidade naquela equipa e a única razão de não conseguirem evoluir mais é financeira. São equipas privadas, à luta com construtores que têm orçamentos 10 a 20 vezes mais altos. No entanto, isso confirma que a minha decisão terá sido acertada, porque se eu tivesse lá ficado, no terceiro ano, a lutar só pelos últimos lugares, não me sentiria bem.
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Acha que agora, como Force India, a equipa poderá ir mais longe?
Talvez possam melhorar um pouco,
A Câmara tem um acordo com a organização para a realização da prova de dois em dois anos. Então alterna-se com o Estoril. É pena, realmente. Circuitos citadinos são sempre melhores para o público!
OS LOCAIS FAVORITOS DE TIAGO MONTEIRO, NO SEU PORTO NATAL Restaurante favorito. Don Juan (Rua Helena Vieira da Silva, 320, Paço da Boa Nova - Leça da Palmeira). Come-se muito bem, somos bem servidos, é perto de casa e é muito variado. Esplanada para um copo ao pôr-do-Sol. Casa de Chá da Boa Nova (Rua da Boa Nova, Leça da Palmeira). No meio das rochas, com as ondas a bater e um dos melhores sítios para o pôr-do-Sol. Sair à noite. Não tenho particularmente nenhum preferido. Talvez o Bazaar (Cais das Pedras, 13). Gosto do sítio, porque é bem diferente. E com espaço cá fora, no Verão.
Qual é o seu circuito favorito, no calendário do WTCC?
O Porto. E Macau, também – tive lá grandes corridas e grandes memórias em F3, em 2000. É uma corrida de loucos – e o circuito citadino mais perigoso que já vi, com rectas enormes, mau piso e sítios onde cabem 5-6 carros lado-a-lado seguidos de outros onde quase não passa um. É preciso ser um bocado maluco para poder andar àquela velocidade naquele circuito. Comparado com Macau, o Mónaco é uma brincadeira.
Local favorito. O Palácio de Cristal (Rua D. Manuel II, actual Pavilhão Rosa Mota). Faz-me lembrar da minha infância. Ou a livraria Lello & Irmão (Rua das Carmelitas, 144): incrível, parece saída de um filme. Bairro favorito. A Baixa, a Ribeira. Também parece surreal, às vezes, com algumas luzes do dia. Comer uma francesinha. Restaurante Gambamar (Rua do Campo Alegre, 110). Loja favorita. A Fnac (Rua de Santa Catarina, 73). Há de tudo o que eu gosto: DVD’s, música, electrónica, fotografia!
o outro lado
TEXTO JOÃO MESTRE FOTOGRAFIA RICARDO BENTO
DE CRUZEIRO
MARÇO, ABRIL
CARLOS S O U S A VELOCIDADE
2008
Automóveis, barcos e bicicletas todo-o-terreno – o outro lado de um homem cujo único vício é estar em movimento.
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o outro lado
TEXTO JOÃO MESTRE FOTOGRAFIA RICARDO BENTO
DE CRUZEIRO
MARÇO, ABRIL
CARLOS S O U S A VELOCIDADE
2008
Automóveis, barcos e bicicletas todo-o-terreno – o outro lado de um homem cujo único vício é estar em movimento.
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o outro lado I carlos sousa I
MARÇO, ABRIL
2008
até
36
2000, Carlos Sousa não pensou senão em ralis: «dediquei a minha vida profissional a 100% à competição automóvel». A sua carreira, inicia da em 1989, começou a tornar-se séria em 1993. Foi acumulando honras e troféus, entre eles dois títulos de campeão nacional absoluto de todo-o-terreno e várias presenças no topo da tabela classificativa do Rali Dakar. Até ao ingrato dia 18 de Janeiro de 2000. O piloto corria, pela quinta vez na sua carreira, o Dakar. Na bagagem, levava já o primeiro lugar em duas especiais e atacava de perto a liderança da prova. Porém, no decurso da 13ª etapa, um aparatoso acidente forçou-o à sua única desistência: voou do alto de uma duna e despenhou-se umas dezenas de metros abaixo. Passou doze dias no hospital. Doze longos dias, ensombrados pela dúvida: «não sabia se ia voltar a correr». Seria o momento de pensar numa alternativa. «Não se é piloto para toda a vida; não se ganha para se pensar numa vida de reforma», explica. «Precisava de algo com que me identificasse, de onde também pudesse tirar prazer, mas que não tivesse nada que ver com a competição; o natural era ligar-me ao sector automóvel». Porém, a convite de alguns amigos, a sua aposta voltou-se para o mar; ou, mais exactamente, para a náutica de recreio - «eu tinha um barco pequeno e sempre me fascinou muito o mar». Hoje em dia, reparte o seu tempo entre a competição e um negócio de importação de iates, com escritórios em Lisboa e Vilamoura (e, em breve, na Madeira, também).
É nas ondas do mar que investe o tempo, quando não está a galgar a ondulação do deserto. Até compara uma coisa com a outra, «é o mesmo sentimento: a solidão, o silêncio… é fantástico!». Mesmo quando o tópico muda para as viagens, o mar continua em primeiro plano. «Um barco tem todas as condições de uma casa; e posso levá-la para onde quiser». Diz que não tem jeito nenhum para vendedor, mas o modo como fala deixa qualquer um com vontade de comprar um iate e soltar amarras. «Consegue-se chegar a recantos únicos onde não se chegaria de outra maneira», continua. «E é melhor do que estar na praia, na toalha, a apanhar areia dos outros». Assume-se alérgico a aviões «e, de carro, já tenho quilómetros suficientes». A sua «carta de marear» é dominada pelo Mediterrâneo: adora as ilhas Eólias, ao largo da Sicília, e sonha cruzar os arquipélagos da Croácia (que, apesar de nunca ter visitado, recomenda vivamente a clientes e amigos). Porém, o seu porto favorito é Vilamoura, «uma das melhores marinas em termos de condições». Aliás, Portugal é o seu destino favorito. Embora deseje conhecer o Japão, os Estados Unidos, a Austrália. Ou atravessar o deserto meramente como turista. Esse dia há-de vir, quando terminarem as competições. Retomando Portugal: «país favorito é o meu: vou, mas volto sempre.» Porquê? «Temos uma boa qualidade de vida», compara, tomando por bitola a África que tão bem conhece: «temos um país socialmente tranquilo, boas pessoas, o povo português é humilde e gosta de receber…»
Não raramente, nessas saídas de barco, leva consigo clientes, com quem acaba por criar uma forte relação de amizade (continua, porém, a insistir: «sou um péssimo vendedor»). Do mesmo modo que adora contar histórias e peripécias, Carlos Sousa procura o contacto pessoal com os clientes, ouvir as suas histórias, experiências, vidas. É, aliás, um excelente ouvinte. Mesmo quando está a ser entrevistado, gosta de contra-interrogar o entrevistador, e colher a sua opinião sobre este ou aquele tema. Lamenta que a compra de uma embarcação esteja fora do alcance da maioria dos portugueses. «Sou um consumidor impulsivo. E acho que toda a gente tem direito aos seus pequenos luxos.» A esta argumentação, soma a herança náutica nacional e as magníficas condições costeiras de que dispomos. Não há dúvidas: Carlos Sousa fala de barcos com a mesma paixão com que recorda as peripécias dos onze ralis Dakar em que participou; esco lheu mesmo o «plano B» certo. «A vida é curta. Realizar-me profissionalmente mais do que uma vez é muito gratificante.» SÃO DEZ DA MANHÃ. Carlos Sousa
recebe-nos de t-shirt e calções. Acabara de fazer o seu treino matinal, rotina que repete diariamente nos períodos de competição. Junto ao portão da garagem, encontram-se, perfiladas, quatro bicicletas. «São para os meus convidados», conta. «As bicicletas da família estão lá dentro. Todos os Domingos temos um grupo de amigos que vem cá ter, e damos uns passeios». Tirando os automóveis e os barcos,
CARLOS SOUSA NÃO LIGA A FUTEBOL.
NÃO FUMA. NÃO É APRECIADOR DE CAFÉ. NEM É CONSUMIDOR DE BEBIDAS ALCOÓLICAS. PERGUNTO-LHE SE NÃO TEM VÍCIOS – «TENHO, O DOS AUTOMÓVEIS.»
o outro lado I carlos sousa I
MARÇO, ABRIL
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2000, Carlos Sousa não pensou senão em ralis: «dediquei a minha vida profissional a 100% à competição automóvel». A sua carreira, inicia da em 1989, começou a tornar-se séria em 1993. Foi acumulando honras e troféus, entre eles dois títulos de campeão nacional absoluto de todo-o-terreno e várias presenças no topo da tabela classificativa do Rali Dakar. Até ao ingrato dia 18 de Janeiro de 2000. O piloto corria, pela quinta vez na sua carreira, o Dakar. Na bagagem, levava já o primeiro lugar em duas especiais e atacava de perto a liderança da prova. Porém, no decurso da 13ª etapa, um aparatoso acidente forçou-o à sua única desistência: voou do alto de uma duna e despenhou-se umas dezenas de metros abaixo. Passou doze dias no hospital. Doze longos dias, ensombrados pela dúvida: «não sabia se ia voltar a correr». Seria o momento de pensar numa alternativa. «Não se é piloto para toda a vida; não se ganha para se pensar numa vida de reforma», explica. «Precisava de algo com que me identificasse, de onde também pudesse tirar prazer, mas que não tivesse nada que ver com a competição; o natural era ligar-me ao sector automóvel». Porém, a convite de alguns amigos, a sua aposta voltou-se para o mar; ou, mais exactamente, para a náutica de recreio - «eu tinha um barco pequeno e sempre me fascinou muito o mar». Hoje em dia, reparte o seu tempo entre a competição e um negócio de importação de iates, com escritórios em Lisboa e Vilamoura (e, em breve, na Madeira, também).
É nas ondas do mar que investe o tempo, quando não está a galgar a ondulação do deserto. Até compara uma coisa com a outra, «é o mesmo sentimento: a solidão, o silêncio… é fantástico!». Mesmo quando o tópico muda para as viagens, o mar continua em primeiro plano. «Um barco tem todas as condições de uma casa; e posso levá-la para onde quiser». Diz que não tem jeito nenhum para vendedor, mas o modo como fala deixa qualquer um com vontade de comprar um iate e soltar amarras. «Consegue-se chegar a recantos únicos onde não se chegaria de outra maneira», continua. «E é melhor do que estar na praia, na toalha, a apanhar areia dos outros». Assume-se alérgico a aviões «e, de carro, já tenho quilómetros suficientes». A sua «carta de marear» é dominada pelo Mediterrâneo: adora as ilhas Eólias, ao largo da Sicília, e sonha cruzar os arquipélagos da Croácia (que, apesar de nunca ter visitado, recomenda vivamente a clientes e amigos). Porém, o seu porto favorito é Vilamoura, «uma das melhores marinas em termos de condições». Aliás, Portugal é o seu destino favorito. Embora deseje conhecer o Japão, os Estados Unidos, a Austrália. Ou atravessar o deserto meramente como turista. Esse dia há-de vir, quando terminarem as competições. Retomando Portugal: «país favorito é o meu: vou, mas volto sempre.» Porquê? «Temos uma boa qualidade de vida», compara, tomando por bitola a África que tão bem conhece: «temos um país socialmente tranquilo, boas pessoas, o povo português é humilde e gosta de receber…»
Não raramente, nessas saídas de barco, leva consigo clientes, com quem acaba por criar uma forte relação de amizade (continua, porém, a insistir: «sou um péssimo vendedor»). Do mesmo modo que adora contar histórias e peripécias, Carlos Sousa procura o contacto pessoal com os clientes, ouvir as suas histórias, experiências, vidas. É, aliás, um excelente ouvinte. Mesmo quando está a ser entrevistado, gosta de contra-interrogar o entrevistador, e colher a sua opinião sobre este ou aquele tema. Lamenta que a compra de uma embarcação esteja fora do alcance da maioria dos portugueses. «Sou um consumidor impulsivo. E acho que toda a gente tem direito aos seus pequenos luxos.» A esta argumentação, soma a herança náutica nacional e as magníficas condições costeiras de que dispomos. Não há dúvidas: Carlos Sousa fala de barcos com a mesma paixão com que recorda as peripécias dos onze ralis Dakar em que participou; esco lheu mesmo o «plano B» certo. «A vida é curta. Realizar-me profissionalmente mais do que uma vez é muito gratificante.» SÃO DEZ DA MANHÃ. Carlos Sousa
recebe-nos de t-shirt e calções. Acabara de fazer o seu treino matinal, rotina que repete diariamente nos períodos de competição. Junto ao portão da garagem, encontram-se, perfiladas, quatro bicicletas. «São para os meus convidados», conta. «As bicicletas da família estão lá dentro. Todos os Domingos temos um grupo de amigos que vem cá ter, e damos uns passeios». Tirando os automóveis e os barcos,
CARLOS SOUSA NÃO LIGA A FUTEBOL.
NÃO FUMA. NÃO É APRECIADOR DE CAFÉ. NEM É CONSUMIDOR DE BEBIDAS ALCOÓLICAS. PERGUNTO-LHE SE NÃO TEM VÍCIOS – «TENHO, O DOS AUTOMÓVEIS.»
o outro lado I carlos sousa I
A PROPÓSITO... Disse que «é o fim do Dakar como o conhecemos».
a bicicleta será, porventura, o seu único “hobby”. Tanto sozinho, como em família ou com amigos. «Tem de haver sempre movimento, portanto?», pergunto. Acena que sim. «Hobbies estáticos é que não». Carlos Sousa não liga a futebol. Não fuma. Não é apreciador de café. Nem é consumidor de bebidas alcoólicas. Pergunto-lhe se não tem vícios – «tenho, o dos automóveis.» E lá voltamos nós a falar de «trabalho». Os seus carros de sonho «são comuns a toda a gen te»: o Ferrari 599, o Porsche, o Maseratti. «Qualquer um deles me caía bem na garagem.» Porém, desde que tenham quatro lugares: «nunca me despertou por um desportivo de dois lugares». No seu dia-a-dia, desloca-se num BMW Série 6. Prefere as mudanças automáticas, já que «em cidade, não faz sentido usar caixa manual». Conduz no limite, mas sempre com atenção ao carro do lado. «As pessoas são extremamente agressivas umas com as outras. Alguém faz uma manobra mal, e buzinamos logo; passado um bocado, somos nós que cometemos essa aselhice e não toleramos que nos apitem. Esse egoísmo tem de acabar. Não me lembro de quantas vezes apitei. Uma vez ou outra. Mas fico arrependido, depois.»
Achar alternativas para chegar a Dakar é complicado. O rali, como o conhecemos, por Marrocos, está condenado. Porém, houve a reunião do Grupo dos 5+5 [países do Mediterrâneo Ocidental: Portugal, Espanha, França, Itália, Malta, Argélia, Líbia, Marrocos, Tunísia e Mauritânia], e garantiram que a prova deixou de ser um problema desportivo para ser um problema político e de segurança. Se estes países garantirem uma força de segurança para proteger a prova… E o que acha da realização na prova na Argentina e no Chile?
Para o todo-o-terreno, uma só prova de impacto como o Dakar, por ano, é pouco. O investimento é muito grande para uma só prova. Defende a realização das duas provas?
Há lugar para ambas. O investimento é grande, principalmente ao nível do desenvolvimento do carro, da tecnologia. Mas não é por haver dois “Dakars” que o investimento dobra. E começa a ser mais seguro: podemos falhar numa prova, que na outra recuperamos. Para um piloto, é muito duro falhar e ter de esperar um ano pela «vingança». É a parte mais ingrata. E qual é a parte melhor?
Adoro carros, adoro fazer competição. E, quando se está em cima, o gosto e a ambição pela vitória dormem connosco. Temos o objectivo de ganhar, de melhorar a nossa prestação. Se não fosse piloto de ralis, o que seria? Vendedor de barcos?
É uma pergunta à qual não sei responder. Ainda não sei imaginar a minha vida sem corridas. Acredito que ainda tenho muito para dar, e não estou conformado com os resultados que tive. Consigo fazer mais e melhor!
38
2008
seu discurso e pela naturalidade das suas maneiras, ninguém diria que faltam menos de 24 horas para o nascimento da pequena Sofia, a sua segunda criança. Por dentro, estará tão ansioso como qualquer pai à espera de bebé. No exterior, nada transparece. Citando o “Diário de Notícias”, «ansiedade é um termo que, habitualmente, não faz parte do
MARÇO, ABRIL
MARÇO, ABRIL
2008
A AVALIAR PELA TRANQUILIDADE do
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o outro lado I carlos sousa I
A PROPÓSITO... Disse que «é o fim do Dakar como o conhecemos».
a bicicleta será, porventura, o seu único “hobby”. Tanto sozinho, como em família ou com amigos. «Tem de haver sempre movimento, portanto?», pergunto. Acena que sim. «Hobbies estáticos é que não». Carlos Sousa não liga a futebol. Não fuma. Não é apreciador de café. Nem é consumidor de bebidas alcoólicas. Pergunto-lhe se não tem vícios – «tenho, o dos automóveis.» E lá voltamos nós a falar de «trabalho». Os seus carros de sonho «são comuns a toda a gen te»: o Ferrari 599, o Porsche, o Maseratti. «Qualquer um deles me caía bem na garagem.» Porém, desde que tenham quatro lugares: «nunca me despertou por um desportivo de dois lugares». No seu dia-a-dia, desloca-se num BMW Série 6. Prefere as mudanças automáticas, já que «em cidade, não faz sentido usar caixa manual». Conduz no limite, mas sempre com atenção ao carro do lado. «As pessoas são extremamente agressivas umas com as outras. Alguém faz uma manobra mal, e buzinamos logo; passado um bocado, somos nós que cometemos essa aselhice e não toleramos que nos apitem. Esse egoísmo tem de acabar. Não me lembro de quantas vezes apitei. Uma vez ou outra. Mas fico arrependido, depois.»
Achar alternativas para chegar a Dakar é complicado. O rali, como o conhecemos, por Marrocos, está condenado. Porém, houve a reunião do Grupo dos 5+5 [países do Mediterrâneo Ocidental: Portugal, Espanha, França, Itália, Malta, Argélia, Líbia, Marrocos, Tunísia e Mauritânia], e garantiram que a prova deixou de ser um problema desportivo para ser um problema político e de segurança. Se estes países garantirem uma força de segurança para proteger a prova… E o que acha da realização na prova na Argentina e no Chile?
Para o todo-o-terreno, uma só prova de impacto como o Dakar, por ano, é pouco. O investimento é muito grande para uma só prova. Defende a realização das duas provas?
Há lugar para ambas. O investimento é grande, principalmente ao nível do desenvolvimento do carro, da tecnologia. Mas não é por haver dois “Dakars” que o investimento dobra. E começa a ser mais seguro: podemos falhar numa prova, que na outra recuperamos. Para um piloto, é muito duro falhar e ter de esperar um ano pela «vingança». É a parte mais ingrata. E qual é a parte melhor?
Adoro carros, adoro fazer competição. E, quando se está em cima, o gosto e a ambição pela vitória dormem connosco. Temos o objectivo de ganhar, de melhorar a nossa prestação. Se não fosse piloto de ralis, o que seria? Vendedor de barcos?
É uma pergunta à qual não sei responder. Ainda não sei imaginar a minha vida sem corridas. Acredito que ainda tenho muito para dar, e não estou conformado com os resultados que tive. Consigo fazer mais e melhor!
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seu discurso e pela naturalidade das suas maneiras, ninguém diria que faltam menos de 24 horas para o nascimento da pequena Sofia, a sua segunda criança. Por dentro, estará tão ansioso como qualquer pai à espera de bebé. No exterior, nada transparece. Citando o “Diário de Notícias”, «ansiedade é um termo que, habitualmente, não faz parte do
MARÇO, ABRIL
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2008
A AVALIAR PELA TRANQUILIDADE do
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o outro lado I carlos sousa I
PUB
FALA DE BARCOS
MARÇO, ABRIL
2008
COM A PAIXÃO MESMA COM QUE RECORDA AS PERIPÉCIAS DOS ONZE RALIS DAKAR EM QUE PARTICIPOU. NÃO HÁ DÚVIDAS: ESCOLHEU O «PLANO B» CERTO.
40
[seu] vocabulário». Carlos confirma-o. «Nos primeiros Dakar, cansava-me muito mais do que aquilo que me canso agora.» Em determinada prova, em 1999, «a ansiedade era tanta que não consegui dormir; fui para lá completamente desgastado». Com o tempo, aprendeu: «fui vencendo essa necessidade, os nervos, a ansiedade… aprendi pela pior maneira. Hoje, chego às competições e sou capaz de desligar-me
do meu maior problema e concentrar-me. É uma questão de objectivos.» Carlos Sousa admite que não é uma pessoa muito efusiva, quando se trata de celebrar. «Ganhámos a Taça do Mundo, em 2003, no Dubai, e eu mantive-me calmo; se ganhámos, ganhámos», diz, com neutralidade. «Tinha elementos da minha equipa agarrados a mim, a chorar que nem uns perdidos.»
O mesmo se aplica aos maus momentos: «é muito difícil ver de mim uma emoção mais negativa.» Nessas alturas, a receita é «ginásio, bicicleta e solidão. Gosto de estar sozinho.» É também assim que encara as vitórias: «gosto de estar a ouvir a minha música; pegar no carro e fazer uns quilómetros; às vezes, passo um dia inteiro no barco, sem fazer nada… e passo um dia fabuloso naquilo.» A impressão que dá, aliás, é que, mais do que o resultado final, aquilo que o motiva a sério é a corrida em si, o desafio de ir na frente. «Entre vencer sem concorrência ou ficar num 2º ou 3º lugar a competir com os melhores do mundo, prefiro a segunda opção.»
o outro lado I carlos sousa I
PUB
FALA DE BARCOS
MARÇO, ABRIL
2008
COM A PAIXÃO MESMA COM QUE RECORDA AS PERIPÉCIAS DOS ONZE RALIS DAKAR EM QUE PARTICIPOU. NÃO HÁ DÚVIDAS: ESCOLHEU O «PLANO B» CERTO.
40
[seu] vocabulário». Carlos confirma-o. «Nos primeiros Dakar, cansava-me muito mais do que aquilo que me canso agora.» Em determinada prova, em 1999, «a ansiedade era tanta que não consegui dormir; fui para lá completamente desgastado». Com o tempo, aprendeu: «fui vencendo essa necessidade, os nervos, a ansiedade… aprendi pela pior maneira. Hoje, chego às competições e sou capaz de desligar-me
do meu maior problema e concentrar-me. É uma questão de objectivos.» Carlos Sousa admite que não é uma pessoa muito efusiva, quando se trata de celebrar. «Ganhámos a Taça do Mundo, em 2003, no Dubai, e eu mantive-me calmo; se ganhámos, ganhámos», diz, com neutralidade. «Tinha elementos da minha equipa agarrados a mim, a chorar que nem uns perdidos.»
O mesmo se aplica aos maus momentos: «é muito difícil ver de mim uma emoção mais negativa.» Nessas alturas, a receita é «ginásio, bicicleta e solidão. Gosto de estar sozinho.» É também assim que encara as vitórias: «gosto de estar a ouvir a minha música; pegar no carro e fazer uns quilómetros; às vezes, passo um dia inteiro no barco, sem fazer nada… e passo um dia fabuloso naquilo.» A impressão que dá, aliás, é que, mais do que o resultado final, aquilo que o motiva a sério é a corrida em si, o desafio de ir na frente. «Entre vencer sem concorrência ou ficar num 2º ou 3º lugar a competir com os melhores do mundo, prefiro a segunda opção.»
traço
I design I
MIGUEL CÂNCIO MARTINS
INTERNACIONAL PORTUGUÊS
O percurso, os projectos e os desafios de um arquitecto/designer português que dita bom-gosto nos quatro cantos do mundo. TEXTO JOÃO MESTRE I FOTOGRAFIA PEDRO LOUREIRO
82
tenha sido a influência paterna que o puxou para o ofício. Aliás, o seu pai, Guilherme, havia deixado o “métier” para se dedicar à vida diplomática, trocando o estirador por um lugar na embaixada portuguesa junto da OCDE, em Paris. E, mais tarde, junto da Comunidade Europeia, em Bruxelas. Miguel tinha 15 anos, quando a família se mudou para a capital francesa. Para trás, deixava a sua Lisboa natal. A ambientação não lhe custou «porque estava na Escola Alemã e era o mesmo sistema que em Lisboa», onde estudara até
então. «Eu chego a qualquer lado e tento sempre aproveitar, ver o lado positivo das coisas e adaptar-me. Conheci logo bastantes pessoas.» que se interessou pela Arquitectura. A meio do percurso, começou a virar-se para a Arqueologia – «gostava muito das descobertas e da História», explica. Seguiu-se a paixão pela Fotografia. «Depois, voltei às origens.» À Arquitectura, isto é. Terminado o curso, e perante a escassez de emprego em Bruxelas, arvorava-se a possibilidade de DESDE PEQUENO
2008
tudo mudou. Antes do conflito, o jovem estudante de arquitectura Miguel Câncio Martins tinha tantos convites para trabalhar que «nem sabia por onde escolher». Frequentava, então, o curso do Instituto Superior de Arquitectura de Bruxelas, e, à parte, ia fazendo projectos para diversos ateliers. «Quando acabei os estudos, logo a seguir à guerra, fecharam-se as portas todas e não houve uma única oportunidade», acrescenta. Embora seja filho de um arquitecto, não se pode dizer que
MARÇO, ABRIL
MARÇO, ABRIL
2008
COM A GUERRA DO GOLFO,
83
traço
I design I
MIGUEL CÂNCIO MARTINS
INTERNACIONAL PORTUGUÊS
O percurso, os projectos e os desafios de um arquitecto/designer português que dita bom-gosto nos quatro cantos do mundo. TEXTO JOÃO MESTRE I FOTOGRAFIA PEDRO LOUREIRO
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tenha sido a influência paterna que o puxou para o ofício. Aliás, o seu pai, Guilherme, havia deixado o “métier” para se dedicar à vida diplomática, trocando o estirador por um lugar na embaixada portuguesa junto da OCDE, em Paris. E, mais tarde, junto da Comunidade Europeia, em Bruxelas. Miguel tinha 15 anos, quando a família se mudou para a capital francesa. Para trás, deixava a sua Lisboa natal. A ambientação não lhe custou «porque estava na Escola Alemã e era o mesmo sistema que em Lisboa», onde estudara até
então. «Eu chego a qualquer lado e tento sempre aproveitar, ver o lado positivo das coisas e adaptar-me. Conheci logo bastantes pessoas.» que se interessou pela Arquitectura. A meio do percurso, começou a virar-se para a Arqueologia – «gostava muito das descobertas e da História», explica. Seguiu-se a paixão pela Fotografia. «Depois, voltei às origens.» À Arquitectura, isto é. Terminado o curso, e perante a escassez de emprego em Bruxelas, arvorava-se a possibilidade de DESDE PEQUENO
2008
tudo mudou. Antes do conflito, o jovem estudante de arquitectura Miguel Câncio Martins tinha tantos convites para trabalhar que «nem sabia por onde escolher». Frequentava, então, o curso do Instituto Superior de Arquitectura de Bruxelas, e, à parte, ia fazendo projectos para diversos ateliers. «Quando acabei os estudos, logo a seguir à guerra, fecharam-se as portas todas e não houve uma única oportunidade», acrescenta. Embora seja filho de um arquitecto, não se pode dizer que
MARÇO, ABRIL
MARÇO, ABRIL
2008
COM A GUERRA DO GOLFO,
83
regressar a Portugal, uma vez que o seu pai «conhecia todos os arquitectos da sua geração» e teria sido bastante fácil «ser aceite no gabinete de um qualquer arquitecto conhecido hoje em dia». Porém, não era isso que Miguel pretendia: «quis fazer o meu caminho, queria fazer à minha maneira e não queria estar dependente dos meus pais». Tanto é que os seus progenitores regressaram a Lisboa e o jovem Miguel, de canudo na mão, rumou de volta a Paris. «Comecei a minha vida sozinho.»
Miguel Câncio Martins divide o seu trabalho entre o atelier de Paris, o de Bruxelas e um terceiro, que abriu recentemente, em Lisboa, onde conta com
cada projecto como um desafio. Aliás, a palavra «desafio» vem frequentemente à conversa quando se fala de trabalho. Por exemplo, pergunto-lhe se prefere criar espaços públicos ou residências privadas. A resposta, sem demora: «espaços públicos». A razão: «é um desafio – meter-me no papel dos clientes, dos utilizadores». Depois, questiono-o se pensa no prazo de vida de um projecto enquanto o cria – «o grande desafio são os olhos das pessoas; são as críticas que vão fazer com que o produto possa durar ou não».
“INSPIRAÇÃO É A ACUMULAÇÃO DO QUE TEMOS CÁ DENTRO, DE TUDO O QUE SE VÊ, DAS EXPERIÊNCIAS TODAS QUE UMA PESSOA TEM. QUANDO CHEGA A ALTURA CERTA E SE COMEÇA A COMPOR, ESTAS COISAS COMEÇAM A JOGAR UMAS COM AS OUTRAS.” Em conjunto com um grupo de amigos, entre eles o tenista Yannick Noah, abriu um bar, o Doobie’s, o seu primeiro projecto em nome próprio. Com os parcos recursos que tinha à mão – e muita imaginação e capacidade de improviso à mistura –, criaram aquele que viria a ser um dos locais mais badalados da noite parisiense. Na altura, não pensou em criar um projecto para durar muitos anos – «aquilo era, mais ou menos, o bar dos amigos». Pois bem, o sítio continua na moda e, apesar de ter já passado por vários donos, pouca coisa mudou. «Às vezes passo por lá; o tampo da mesa, que na altura
a colaboração de seu pai, já reformado das lides da diplomacia – «foi ao contrário; foi o pai que veio trabalhar com o filho», graceja. Pergunto-lhe como é que alguém licenciado em Arquitectura resolve dedicar-se aos interiores: «era um mercado ainda muito por explorar». Porém, as considerações não foram meramente estratégicas: «gosto mais da “micro” do que da “macro-arquitectura”». «Então e como é que se define?», questiono-o. Demora um pouco a responder; o suficiente para dar a entender que não perde muito tempo a pensar no assunto: «arquitecto, designer… “designer” porque uma pessoa é capaz de
sobre o seu estilo: «tenho uma abordagem dos materiais, das cores, gosto de misturar o antigo e o moderno, gosto de formas, mas gosto das coisas simples». Não se considera minimalista, mas também não aprecia «ambientes carregados»: «gosto de coisas sóbrias e “less is more”». A inspiração vem de «tudo e mais alguma coisa»: «acho que a inspiração é a acumulação do que temos cá dentro, de tudo o que se vê, das experiências todas que uma pessoa tem; quando chega a altura certa e se começa a compor, estas coisas começam a jogar umas com as outras.» Miguel Câncio Martins encara
Vejamos como é que isto funciona na prática: o Budha Bar, o seu primeiro grande projecto (inaugurado em 1996), continua a ser uma referência do roteiro parisiense. Quem diria que, no seu essencial, o conceito foi criado em apenas cinco minutos? «Eu poderia dizer que foi o projecto mais rentável; deve ter sido a minha ideia mais rápida em grandes projectos». Foi talvez com o Budha Bar que a sua carreira ganhou projecção internacional. No ano seguinte, assinou mais quatro projectos em Paris, dois hotéis em Portugal, um "night-club" em Marbella, dois restaurantes em Los Angeles. Depressa se incendiou o rastilho, e os convites foram
2008
WUNDERBAR, HOTEL W, MONTREAL
ACTUALMENTE,
desenhar de tudo, de um objecto a um prédio». Pára por momentos e reformula: «“designer” é, talvez, a designação mais apropriada; mas pode chamar-me os nomes que quiser, não faz mal». A definição do seu estilo leva um tempo de resposta semelhante. É outra coisa sobre a qual não pensa muito. Começa por explicar a importância de ouvir o cliente: «há arquitectos que fazem projectos para si próprios; é um grande erro; o projecto é para os clientes; o projecto é deles, nós somos apenas um instrumento». Agora
MARÇO, ABRIL
HOTEL W, MONTREAL
escolhemos porque era o que havia – eu até nem gostava muito – continua o mesmo». Diz isto com um sorriso comprometido, que descodifica logo de seguida: «há coisas que eu mudaria… os “abajures”…», diz, como quem pensa alto. No entanto, admite: «dá prazer ver que, ainda hoje, faz parte do circuito.»
85
BOUTIQUE PLEIN SUD, NOVA IORQUE
DISCOTECA PACHA, MARRAQUEXE
regressar a Portugal, uma vez que o seu pai «conhecia todos os arquitectos da sua geração» e teria sido bastante fácil «ser aceite no gabinete de um qualquer arquitecto conhecido hoje em dia». Porém, não era isso que Miguel pretendia: «quis fazer o meu caminho, queria fazer à minha maneira e não queria estar dependente dos meus pais». Tanto é que os seus progenitores regressaram a Lisboa e o jovem Miguel, de canudo na mão, rumou de volta a Paris. «Comecei a minha vida sozinho.»
Miguel Câncio Martins divide o seu trabalho entre o atelier de Paris, o de Bruxelas e um terceiro, que abriu recentemente, em Lisboa, onde conta com
cada projecto como um desafio. Aliás, a palavra «desafio» vem frequentemente à conversa quando se fala de trabalho. Por exemplo, pergunto-lhe se prefere criar espaços públicos ou residências privadas. A resposta, sem demora: «espaços públicos». A razão: «é um desafio – meter-me no papel dos clientes, dos utilizadores». Depois, questiono-o se pensa no prazo de vida de um projecto enquanto o cria – «o grande desafio são os olhos das pessoas; são as críticas que vão fazer com que o produto possa durar ou não».
“INSPIRAÇÃO É A ACUMULAÇÃO DO QUE TEMOS CÁ DENTRO, DE TUDO O QUE SE VÊ, DAS EXPERIÊNCIAS TODAS QUE UMA PESSOA TEM. QUANDO CHEGA A ALTURA CERTA E SE COMEÇA A COMPOR, ESTAS COISAS COMEÇAM A JOGAR UMAS COM AS OUTRAS.” Em conjunto com um grupo de amigos, entre eles o tenista Yannick Noah, abriu um bar, o Doobie’s, o seu primeiro projecto em nome próprio. Com os parcos recursos que tinha à mão – e muita imaginação e capacidade de improviso à mistura –, criaram aquele que viria a ser um dos locais mais badalados da noite parisiense. Na altura, não pensou em criar um projecto para durar muitos anos – «aquilo era, mais ou menos, o bar dos amigos». Pois bem, o sítio continua na moda e, apesar de ter já passado por vários donos, pouca coisa mudou. «Às vezes passo por lá; o tampo da mesa, que na altura
a colaboração de seu pai, já reformado das lides da diplomacia – «foi ao contrário; foi o pai que veio trabalhar com o filho», graceja. Pergunto-lhe como é que alguém licenciado em Arquitectura resolve dedicar-se aos interiores: «era um mercado ainda muito por explorar». Porém, as considerações não foram meramente estratégicas: «gosto mais da “micro” do que da “macro-arquitectura”». «Então e como é que se define?», questiono-o. Demora um pouco a responder; o suficiente para dar a entender que não perde muito tempo a pensar no assunto: «arquitecto, designer… “designer” porque uma pessoa é capaz de
sobre o seu estilo: «tenho uma abordagem dos materiais, das cores, gosto de misturar o antigo e o moderno, gosto de formas, mas gosto das coisas simples». Não se considera minimalista, mas também não aprecia «ambientes carregados»: «gosto de coisas sóbrias e “less is more”». A inspiração vem de «tudo e mais alguma coisa»: «acho que a inspiração é a acumulação do que temos cá dentro, de tudo o que se vê, das experiências todas que uma pessoa tem; quando chega a altura certa e se começa a compor, estas coisas começam a jogar umas com as outras.» Miguel Câncio Martins encara
Vejamos como é que isto funciona na prática: o Budha Bar, o seu primeiro grande projecto (inaugurado em 1996), continua a ser uma referência do roteiro parisiense. Quem diria que, no seu essencial, o conceito foi criado em apenas cinco minutos? «Eu poderia dizer que foi o projecto mais rentável; deve ter sido a minha ideia mais rápida em grandes projectos». Foi talvez com o Budha Bar que a sua carreira ganhou projecção internacional. No ano seguinte, assinou mais quatro projectos em Paris, dois hotéis em Portugal, um "night-club" em Marbella, dois restaurantes em Los Angeles. Depressa se incendiou o rastilho, e os convites foram
2008
WUNDERBAR, HOTEL W, MONTREAL
ACTUALMENTE,
desenhar de tudo, de um objecto a um prédio». Pára por momentos e reformula: «“designer” é, talvez, a designação mais apropriada; mas pode chamar-me os nomes que quiser, não faz mal». A definição do seu estilo leva um tempo de resposta semelhante. É outra coisa sobre a qual não pensa muito. Começa por explicar a importância de ouvir o cliente: «há arquitectos que fazem projectos para si próprios; é um grande erro; o projecto é para os clientes; o projecto é deles, nós somos apenas um instrumento». Agora
MARÇO, ABRIL
HOTEL W, MONTREAL
escolhemos porque era o que havia – eu até nem gostava muito – continua o mesmo». Diz isto com um sorriso comprometido, que descodifica logo de seguida: «há coisas que eu mudaria… os “abajures”…», diz, como quem pensa alto. No entanto, admite: «dá prazer ver que, ainda hoje, faz parte do circuito.»
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BOUTIQUE PLEIN SUD, NOVA IORQUE
DISCOTECA PACHA, MARRAQUEXE
traço I design I surgindo, nos quatro cantos do mundo: Montreal, Nova Iorque, Singapura, Marraquexe, Moscovo, São Paulo. E, claro, Lisboa. de chegar de uma reunião. Em causa, está o projecto de um hotel, em curso, em Portugal. Não revela, para já, onde. Nem o conceito. Apenas revela que está «semipensado». Justifica: «só gosto de gastar energia a sério quando sei que é uma coisa para ser realizada; projectos só por fazer projectos não me interessam muito; se me empenho é para ir até ao fim.» Será por isso que a revista “Tendances” o apelidou de «inimigo do meio-termo». Na calha, tem ainda a renovação do hotel Tivoli Porto, a criação de um “resort” no Algarve, um hotel na Comporta, um restaurante no Chiado. Entre outros esboços que ainda não são sequer projectos. O seu primeiro grande trabalho em Portugal foi o Hotel Heritage, de portas abertas desde 2006. Foi também a primeira vez que idealizou um hotel a partir do zero. «Fizemos tudo; tratámos da parte técnica, da parte de arquitectura, da decoração; fazer um hotel é ir ao pormenor.» A cereja no topo do bolo: «aqui, tivemos carta branca». Percebe-se que este é o tipo de trabalho que mais gosto lhe dá fazer. «É um prazer uma pessoa poder fazer tudo do princípio ao fim e depois olhar para o seu trabalho e dizer “isto está como eu imaginava”.» Como bónus, este projecto implicou também a recuperação de um edifício antigo: «gosto da renovação, do compromisso de já ter uns tantos parâmetros». É o tal desafio, talvez. E será, também, o tal gosto pela arqueologia, que não terá morrido por completo.
ESTUDOS. A sua formação escolar foi feita na Escola Alemã – primeiro na de Lisboa, depois na de Paris. Em 1985, ingressa na Escola de Arquitectura de Versalhes. Em 1986, passa para o Instituto Superior de Arquitectura de Bruxelas. Obtém o seu diploma em 1991. PROJECTOS. Em 1992, assina o seu primeiro projecto em nome próprio, o bar Doobie’s, em Paris. Quatro anos depois, cria um dos seus trabalhos mais aplaudidos, o Budha Bar, também em Paris. Em 2000, abre o seu primeiro atelier, a Agence CM&P, em Bruxelas. Dois anos depois, abre a MCMDesign, em Paris.
DISTINÇÕES. Em 2006, é agraciado pelo Governo Francês como Comendador da Ordem de Mérito. O ministro Philippe Douste-Blazy elogia a sua «imaginação por vezes desmedida». Em 2007, integra o lote de notáveis eleitos pelo Governo Português para dar a cara pela nova campanha de promoção externa do país.
86
2008
Agradecemos ao Hotel Heritage Av. Liberdade (Lisboa) a colaboração na execução deste artigo.
MARÇO, ABRIL
MARÇO, ABRIL
2008
MIGUEL ACABA
MORADAS. Miguel Luís Quintas Câncio Martins nasceu em Lisboa, a 15 de Maio de 1965. Aí viveu, até aos 15 anos. Entretanto, muda-se para Paris, quando o seu pai integra a embaixada portuguesa junto da OCDE. Em 1986, a colocação num novo posto diplomático leva a família a mudar-se de novo, agora para Bruxelas. Actualmente, Miguel Câncio Martins vive entre a capital belga e Paris.
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traço I design I surgindo, nos quatro cantos do mundo: Montreal, Nova Iorque, Singapura, Marraquexe, Moscovo, São Paulo. E, claro, Lisboa. de chegar de uma reunião. Em causa, está o projecto de um hotel, em curso, em Portugal. Não revela, para já, onde. Nem o conceito. Apenas revela que está «semipensado». Justifica: «só gosto de gastar energia a sério quando sei que é uma coisa para ser realizada; projectos só por fazer projectos não me interessam muito; se me empenho é para ir até ao fim.» Será por isso que a revista “Tendances” o apelidou de «inimigo do meio-termo». Na calha, tem ainda a renovação do hotel Tivoli Porto, a criação de um “resort” no Algarve, um hotel na Comporta, um restaurante no Chiado. Entre outros esboços que ainda não são sequer projectos. O seu primeiro grande trabalho em Portugal foi o Hotel Heritage, de portas abertas desde 2006. Foi também a primeira vez que idealizou um hotel a partir do zero. «Fizemos tudo; tratámos da parte técnica, da parte de arquitectura, da decoração; fazer um hotel é ir ao pormenor.» A cereja no topo do bolo: «aqui, tivemos carta branca». Percebe-se que este é o tipo de trabalho que mais gosto lhe dá fazer. «É um prazer uma pessoa poder fazer tudo do princípio ao fim e depois olhar para o seu trabalho e dizer “isto está como eu imaginava”.» Como bónus, este projecto implicou também a recuperação de um edifício antigo: «gosto da renovação, do compromisso de já ter uns tantos parâmetros». É o tal desafio, talvez. E será, também, o tal gosto pela arqueologia, que não terá morrido por completo.
ESTUDOS. A sua formação escolar foi feita na Escola Alemã – primeiro na de Lisboa, depois na de Paris. Em 1985, ingressa na Escola de Arquitectura de Versalhes. Em 1986, passa para o Instituto Superior de Arquitectura de Bruxelas. Obtém o seu diploma em 1991. PROJECTOS. Em 1992, assina o seu primeiro projecto em nome próprio, o bar Doobie’s, em Paris. Quatro anos depois, cria um dos seus trabalhos mais aplaudidos, o Budha Bar, também em Paris. Em 2000, abre o seu primeiro atelier, a Agence CM&P, em Bruxelas. Dois anos depois, abre a MCMDesign, em Paris.
DISTINÇÕES. Em 2006, é agraciado pelo Governo Francês como Comendador da Ordem de Mérito. O ministro Philippe Douste-Blazy elogia a sua «imaginação por vezes desmedida». Em 2007, integra o lote de notáveis eleitos pelo Governo Português para dar a cara pela nova campanha de promoção externa do país.
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2008
Agradecemos ao Hotel Heritage Av. Liberdade (Lisboa) a colaboração na execução deste artigo.
MARÇO, ABRIL
MARÇO, ABRIL
2008
MIGUEL ACABA
MORADAS. Miguel Luís Quintas Câncio Martins nasceu em Lisboa, a 15 de Maio de 1965. Aí viveu, até aos 15 anos. Entretanto, muda-se para Paris, quando o seu pai integra a embaixada portuguesa junto da OCDE. Em 1986, a colocação num novo posto diplomático leva a família a mudar-se de novo, agora para Bruxelas. Actualmente, Miguel Câncio Martins vive entre a capital belga e Paris.
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directo
I judo I
TELMA
MONTEIRO FOCADA ´ NA VITORIA UM DOS MAIORES VALORES DO JUDO MUNDIAL, EM DISCURSO DIRECTO.
TEXTO JOÃO MESTRE FOTOGRAFIAS JORDI BURCH
JUNHO, JULHO
2008
N
14
o seu estado natural, Telma Monteiro guarda a postura imperturbável de quem estuda compenetradamente os seus triunfos futuros. Até que lhe dirijo a primeira pergunta, e essa serenidade rapidamente dá lugar a um sorriso contagiante que me faz esquecer que estou a entrevistar uma campeã de artes marciais dona de um palmarés invejável. Telma Alexandra Pinto Monteiro é, aos 22 anos, bicampeã europeia e vice-campeã mundial de Judo, e ocupa a segunda posição do “ranking” mundial da categoria -52kg. Entre a chegada de um estágio no Brasil e a partida para uma Taça do Mundo, em Bucareste (que, entretanto, venceu), marcou encontro com a “T Magazine” no Miradouro da Senhora do Monte (Lisboa). E falou sobre a sua segunda presença nas Olimpíadas, sobre os bons e os maus momentos da sua carreira, e sobre as suas expectativas para o futuro.
directo
I judo I
TELMA
MONTEIRO FOCADA ´ NA VITORIA UM DOS MAIORES VALORES DO JUDO MUNDIAL, EM DISCURSO DIRECTO.
TEXTO JOÃO MESTRE FOTOGRAFIAS JORDI BURCH
JUNHO, JULHO
2008
N
14
o seu estado natural, Telma Monteiro guarda a postura imperturbável de quem estuda compenetradamente os seus triunfos futuros. Até que lhe dirijo a primeira pergunta, e essa serenidade rapidamente dá lugar a um sorriso contagiante que me faz esquecer que estou a entrevistar uma campeã de artes marciais dona de um palmarés invejável. Telma Alexandra Pinto Monteiro é, aos 22 anos, bicampeã europeia e vice-campeã mundial de Judo, e ocupa a segunda posição do “ranking” mundial da categoria -52kg. Entre a chegada de um estágio no Brasil e a partida para uma Taça do Mundo, em Bucareste (que, entretanto, venceu), marcou encontro com a “T Magazine” no Miradouro da Senhora do Monte (Lisboa). E falou sobre a sua segunda presença nas Olimpíadas, sobre os bons e os maus momentos da sua carreira, e sobre as suas expectativas para o futuro.
directo I judo I
Ainda se lembra do seu primeiro campeonato?
Lembro-me do meu primeiro campeonato, na segunda vez que entrei para o Judo. Era um campeonato do escalão de “esperanças”. Que tal foi?
JUNHO, JULHO
2008
Eu fazia judo havia menos de um ano, era pouco graduada e estava a ganhar a pessoas que eram cinto preto. Eu era tão nova, e estava a ganhar àqueles que tinham mais experiência do que eu. Fiquei muito contente.
16
competir – pelo menos, por enquanto, enquanto tenho capacidade. Gosto mesmo muito de competir, sempre gostei. A única coisa que mudou é que vou mais tranquila. Com a experiência, uma pessoa consegue ficar mais calma. É só isso. De resto, tenho o mesmo gosto de sempre. É uma pessoa muito competitiva…
Sou. Sempre gostei de competir em tudo. Mesmo nas coisas mais simples. Consta até que não gosta de perder nem a feijões. Vê o segundo
O sentimento continua a ser o
lugar como o primeiro dos últimos?
mesmo? Ou já não há espaço
Por acaso, prefiro ficar em terceiro do que em segundo. Porque, no judo, quem fica em segundo é quem perdeu o último combate. E
para isso?
Gosto muito de competir. Não me consigo imaginar a fazer judo sem
1998. Inicia-se na modalidade, por influência da irmã Ana Carina. Um mês depois, troca o judo pelo futebol.
em terceiro, não – já perdemos um combate, mas sempre estamos a festejar alguma coisa. Bem, como resultado, prefiro o segundo. Mas, naquele momento, não sabe nada bem perder o último combate, depois de ter chegado à final. Cria-se uma expectativa acrescida…
2000. Por insistência da irmã, regressa ao judo. Desta feita, apanha o gosto pela modalidade e evolui muito rapidamente.
Sim, uma pessoa vai para ganhar, e depois… Acaba por não festejar. Eu gosto de ganhar. Às vezes também faço coisas por brincadeira – mas não no judo! Uma derrota demora muito
2002. Conquista o
tempo a digerir?
título de campeã nacional de juniores, tanto a nível individual como por equipas. No ano seguinte, repete a proeza, acrescentando o título de seniores.
Não. Penso um bocado nisso, mas não deixo que me afecte no futuro. Tiro sempre algo de positivo das derrotas, aprendo alguma coisa que não devo fazer no futuro.
2003. Repete a proeza
Hmmm… das atletas que vão aos Jogos, há umas quantas que me podem ganhar. São todas muito fortes, e eu gostava de vencer a qualquer uma delas. Mas tinha assim um prazer especial em ganhar a uma chinesa – por nada em particular, apenas por ser na China.
Tem alguma adversária a quem lhe soubesse especialmente bem vencer em competição?
do ano anterior, acrescentando ao seu curriculum o título de seniores. Bem como um 3º lugar no Campeonato Europeu de Juniores.
2004. Vence o
Bem, e foi uma chinesa que lhe
Campeonato Europeu de Juniores, acumulando ainda o bronze no Mundial de Juniores e no Europeu de Seniores. Participa, pela primeira vez, nos Jogos Olímpicos, terminando em 9º lugar. E acumula duas Taças do Mundo ao seu palmarés.
«roubou» a vitória no Campeonato do Mundo de 2007…
Sim, fiquei em segundo. E perdi com uma chinesa. Mas ela não é a única que me pode ganhar. Existem outras atletas «perigosas». É verdade que vai mudar de categoria de peso para estes Olímpicos?
Não, só vou mudar a seguir. Após os Jogos Olímpicos mudo para a categoria -57kg. E as provas que entretanto vou fazer já são em -57kg, para não estar a perder peso, que é um desgaste enorme para o organismo. Vou perdê-lo só para os Jogos. Há muita diferença?
Quando se sobe de peso, não se tem
ainda força suficiente para aquela categoria. É um judo mais parado, é um bocado diferente. Mas eu vou adaptar-me bem, com o tempo. É necessário um grande esforço para manter a categoria de peso?
É muito difícil. Praticamente toda a gente no judo tem problemas de peso, porque tem uns quilos a mais para a sua categoria. Com os treinos, ganhamos muita massa muscular – se aumentarmos um quilo de gordura, esse quilo é logo transformado em músculo. Depois é muito mais difícil perdê-lo. É necessário muito sacrifício para se ser judoca profissional?
É. Temos treino de manhã e de
tarde. E o descanso é importante. Por isso, não dá para ter uma vida normal. Não dá para andar em noitadas. Nem em jantaradas, por causa do peso. É um sacrifício muito grande. Mas também, quem corre por gosto não cansa. E férias? Um judoca tem direito a férias?
Tem, mas poucas. Por cada quatro anos, só há um ano em que, após o Campeonato da Europa, em Maio, podemos descansar um pouco porque não temos competições grandes em Setembro. Mas, nos restantes anos, temos, após o Europeu, o Campeonato do Mundo ou os Jogos Olímpicos. Por isso, acaba por ser complicado
ter férias. Férias, mesmo, só na altura do Natal. Ou a seguir a uma grande competição. Isto se não houver outra grande competição a seguir…
Isto se não tiver uma grande competição a seguir. Agora, antes de Pequim, é sempre a trabalhar. Para mais, estive lesionada, estive algum tempo parada, já parei o que tinha para parar. Não deu para descansar muito, porque tive de fazer fisioterapia. Como está da sua lesão?
Já estou 100% recuperada. E já estou a treinar sem qualquer limitação. E está a 100% para as Olimpíadas?
Ainda tenho duas competições.
DREAM TEAM TMN Telma monteiro, patrocinada pela tmn desde fevereiro de 2008, integra agora a tmn dream team, uma sólida equipa de jovens e promissores atletas portugueses com provas dadas a nível internacional: michelle larcher de brito, no ténis; pedro figueiredo, no golfe; hélder rodrigues e ruben faria, no todo-o-terrreno; armindo araújo, nos ralis; tiago pires, no surf; e as selecções nacionais de sub17 e sub18 de rugby.
2008
“PREFIRO FICAR EM TERCEIRO DO QUE EM SEGUNDO. PORQUE QUEM FICA EM SEGUNDO É QUEM PERDEU O ÚLTIMO COMBATE. NÃO SABE NADA BEM PERDER O ÚLTIMO COMBATE, DEPOIS DE CHEGAR À FINAL.”
a 27 de Dezembro.
JUNHO, JULHO
OBJECTIVO ÚNICO: A VITÓRIA
1985. Nasce, em Almada,
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directo I judo I
Ainda se lembra do seu primeiro campeonato?
Lembro-me do meu primeiro campeonato, na segunda vez que entrei para o Judo. Era um campeonato do escalão de “esperanças”. Que tal foi?
JUNHO, JULHO
2008
Eu fazia judo havia menos de um ano, era pouco graduada e estava a ganhar a pessoas que eram cinto preto. Eu era tão nova, e estava a ganhar àqueles que tinham mais experiência do que eu. Fiquei muito contente.
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competir – pelo menos, por enquanto, enquanto tenho capacidade. Gosto mesmo muito de competir, sempre gostei. A única coisa que mudou é que vou mais tranquila. Com a experiência, uma pessoa consegue ficar mais calma. É só isso. De resto, tenho o mesmo gosto de sempre. É uma pessoa muito competitiva…
Sou. Sempre gostei de competir em tudo. Mesmo nas coisas mais simples. Consta até que não gosta de perder nem a feijões. Vê o segundo
O sentimento continua a ser o
lugar como o primeiro dos últimos?
mesmo? Ou já não há espaço
Por acaso, prefiro ficar em terceiro do que em segundo. Porque, no judo, quem fica em segundo é quem perdeu o último combate. E
para isso?
Gosto muito de competir. Não me consigo imaginar a fazer judo sem
1998. Inicia-se na modalidade, por influência da irmã Ana Carina. Um mês depois, troca o judo pelo futebol.
em terceiro, não – já perdemos um combate, mas sempre estamos a festejar alguma coisa. Bem, como resultado, prefiro o segundo. Mas, naquele momento, não sabe nada bem perder o último combate, depois de ter chegado à final. Cria-se uma expectativa acrescida…
2000. Por insistência da irmã, regressa ao judo. Desta feita, apanha o gosto pela modalidade e evolui muito rapidamente.
Sim, uma pessoa vai para ganhar, e depois… Acaba por não festejar. Eu gosto de ganhar. Às vezes também faço coisas por brincadeira – mas não no judo! Uma derrota demora muito
2002. Conquista o
tempo a digerir?
título de campeã nacional de juniores, tanto a nível individual como por equipas. No ano seguinte, repete a proeza, acrescentando o título de seniores.
Não. Penso um bocado nisso, mas não deixo que me afecte no futuro. Tiro sempre algo de positivo das derrotas, aprendo alguma coisa que não devo fazer no futuro.
2003. Repete a proeza
Hmmm… das atletas que vão aos Jogos, há umas quantas que me podem ganhar. São todas muito fortes, e eu gostava de vencer a qualquer uma delas. Mas tinha assim um prazer especial em ganhar a uma chinesa – por nada em particular, apenas por ser na China.
Tem alguma adversária a quem lhe soubesse especialmente bem vencer em competição?
do ano anterior, acrescentando ao seu curriculum o título de seniores. Bem como um 3º lugar no Campeonato Europeu de Juniores.
2004. Vence o
Bem, e foi uma chinesa que lhe
Campeonato Europeu de Juniores, acumulando ainda o bronze no Mundial de Juniores e no Europeu de Seniores. Participa, pela primeira vez, nos Jogos Olímpicos, terminando em 9º lugar. E acumula duas Taças do Mundo ao seu palmarés.
«roubou» a vitória no Campeonato do Mundo de 2007…
Sim, fiquei em segundo. E perdi com uma chinesa. Mas ela não é a única que me pode ganhar. Existem outras atletas «perigosas». É verdade que vai mudar de categoria de peso para estes Olímpicos?
Não, só vou mudar a seguir. Após os Jogos Olímpicos mudo para a categoria -57kg. E as provas que entretanto vou fazer já são em -57kg, para não estar a perder peso, que é um desgaste enorme para o organismo. Vou perdê-lo só para os Jogos. Há muita diferença?
Quando se sobe de peso, não se tem
ainda força suficiente para aquela categoria. É um judo mais parado, é um bocado diferente. Mas eu vou adaptar-me bem, com o tempo. É necessário um grande esforço para manter a categoria de peso?
É muito difícil. Praticamente toda a gente no judo tem problemas de peso, porque tem uns quilos a mais para a sua categoria. Com os treinos, ganhamos muita massa muscular – se aumentarmos um quilo de gordura, esse quilo é logo transformado em músculo. Depois é muito mais difícil perdê-lo. É necessário muito sacrifício para se ser judoca profissional?
É. Temos treino de manhã e de
tarde. E o descanso é importante. Por isso, não dá para ter uma vida normal. Não dá para andar em noitadas. Nem em jantaradas, por causa do peso. É um sacrifício muito grande. Mas também, quem corre por gosto não cansa. E férias? Um judoca tem direito a férias?
Tem, mas poucas. Por cada quatro anos, só há um ano em que, após o Campeonato da Europa, em Maio, podemos descansar um pouco porque não temos competições grandes em Setembro. Mas, nos restantes anos, temos, após o Europeu, o Campeonato do Mundo ou os Jogos Olímpicos. Por isso, acaba por ser complicado
ter férias. Férias, mesmo, só na altura do Natal. Ou a seguir a uma grande competição. Isto se não houver outra grande competição a seguir…
Isto se não tiver uma grande competição a seguir. Agora, antes de Pequim, é sempre a trabalhar. Para mais, estive lesionada, estive algum tempo parada, já parei o que tinha para parar. Não deu para descansar muito, porque tive de fazer fisioterapia. Como está da sua lesão?
Já estou 100% recuperada. E já estou a treinar sem qualquer limitação. E está a 100% para as Olimpíadas?
Ainda tenho duas competições.
DREAM TEAM TMN Telma monteiro, patrocinada pela tmn desde fevereiro de 2008, integra agora a tmn dream team, uma sólida equipa de jovens e promissores atletas portugueses com provas dadas a nível internacional: michelle larcher de brito, no ténis; pedro figueiredo, no golfe; hélder rodrigues e ruben faria, no todo-o-terrreno; armindo araújo, nos ralis; tiago pires, no surf; e as selecções nacionais de sub17 e sub18 de rugby.
2008
“PREFIRO FICAR EM TERCEIRO DO QUE EM SEGUNDO. PORQUE QUEM FICA EM SEGUNDO É QUEM PERDEU O ÚLTIMO COMBATE. NÃO SABE NADA BEM PERDER O ÚLTIMO COMBATE, DEPOIS DE CHEGAR À FINAL.”
a 27 de Dezembro.
JUNHO, JULHO
OBJECTIVO ÚNICO: A VITÓRIA
1985. Nasce, em Almada,
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directo I judo I
VIVER PARA COMPETIR
“GOSTO MUITO DE COMPETIR. NÃO ME CONSIGO IMAGINAR A FAZER JUDO SEM COMPETIR.”
2005. Vence mais uma Taça do Mundo e sagra-se campeã nacional de seniores, tanto a nível individual, como em equipas. Alcança o bronze, no Europeu e no Mundial de Seniores.
2006. Sagra-se campeã europeia, tanto em sub-23 como em Seniores, E vence uma Taça do Mundo. Alcança, pela primeira vez, o topo do “ranking” mundial, na categoria -52kg. Renova o título nacional (individual).
mostrar às pessoas aquilo que valho, já que não faço muitas competições a nível nacional, porque o calendário internacional não mo permite. Foi uma boa oportunidade de fazer uma competição de grande nível e ter as pessoas todas a apoiarem-me. Foi uma vitória bastante importante. Sentiu, pela primeira, vez o factor casa…
Sim, nunca tinha sentido assim… Uma pessoa sente-se muito melhor se tiver as pessoas de quem gosta por perto. Nesse sentido, contribuiu bastante. Eu estava muito mais descontraída. Alguma vez se magoou a sério em combate?
Não estou totalmente a 100%, mas ainda faltam dois meses e há muito trabalho pela frente: não queria estar a 100% tantos meses antes. Estou a trabalhar para, quando chegar lá, estar a 1000%. Até que idade é que, normalmente, um judoca compete ao mais alto nível?
Há atletas que saem aos 28. E há aqueles que competem até aos 33, 34. Mas, normalmente, é por volta dos 30. E até que idade gostaria de competir?
Também por volta dos 30. Sair no ano em que faço 31 [2016]. Gostava de ainda ir a esses Jogos. Também é preciso que eu tenha capacidade física e mental.
MARÇO, ABRIL
2008
E até lá, onde pretende chegar?
20
A única medalha que me falta é a dos Jogos. Esta é a segunda participação – e é claro que eu vou tentar tirar essa medalha. E depois, um novo desafio: chegar, nos -57kg, até onde cheguei nos -52kg. E é bom, que sendo eu ainda nova, tenho mais desafios pela frente. É como começar de novo. Vê na realização do Euro Judo 2008 em Portugal um maior inter-
esse nacional pela modalidade?
2007. Vence o seu
Acha que ajudou a criar maior
segundo título europeu de seniores e mais duas Taças do Mundo, uma delas em Lisboa. Fica em 2º lugar no Campeonato Mundial. E consegue ainda arranjar tempo para se matricular em Ciências do Desporto, na Faculdade de Motricidade Humana. Segundo uma estimativa da Cision (citada pelo “Jornal de Negócios”), a sua exposição mediática no primeiro semestre do ano foi avaliada em cerca de um milhão de euros.
interesse pelo judo em Portugal?
Como tenho tido resultados regulares, vai-se sempre falando de judo. Sempre que uma pessoa ganha, fala-se. Isso tem dado mais visibilidade ao judo, e daí a ter, talvez, despertado um maior interesse das pessoas. Nesse sentido, acho que sim. Embora já fosse mais conhecido, também, por causa da medalha do Nuno Delgado, em Sydney. Mas, sim, com os resultados que tem havido, o judo tem tido mais mediatismo. Como é que foi para si ter o Europeu no seu país e, por motivo de lesão, não poder participar?
Fiquei muito triste, na altura, porque um sonho que eu tinha era ser campeã da Europa aqui – ou, pelo menos, tentar. Acabei por não conseguir. Mas já superei, e, numa próxima competição que haja cá em Portugal, tentarei ganhar. Perdi o Europeu, mas não perdi os Jogos, que é o mais importante. Já tinha competido em Portugal…
Sim, na Taça do Mundo. Foi muito fixe, porque ganhei perante atletas muito fortes. E porque pude
2008. Impossibilitada de disputar o Europeu (em Lisboa), por motivo de lesão, mantém a sua invencibilidade na prova desde as meias-finais de 2005. Ocupa, a 27 de Maio, o 2º lugar do “ranking” mundial de -52kg. Começa a competir na categoria acima, -57kg, embora dispute ainda as Olimpíadas de Pequim em -52kg.
Magoei-me, em Atenas. Magoei o joelho, e depois, como insisti em treinar porque tinha outras provas à frente, acabei por ter de ser operada. Foi a lesão mais grave que eu tive – estive três meses parada, depois da operação. Considera o judo um desporto violento?
Não, não considero nada. Para quem está de fora, às vezes parece um pouco violento, porque tem aquelas quedas, mas, quando entramos para o judo, começamos por aprender a cair. Mas não, não é violento: não damos socos, não damos pontapés. É só mesmo aquela coisa de nos mandarmos ao chão… mas cai-se num tapete fofinho… O judo sabe-lhe a diversão ou a trabalho?
Não! É mesmo uma diversão – embora com responsabilidade. Mas se eu não me divertisse a fazer judo não fazia sentido. E, quando isso acontecer, eu desisto. Não faz sentido vir para o treino sem ter vontade. Claro que há um dia ou outro em que apetece menos. Mas daí a não me divertir a treinar… Não teria sentido para mim.
directo I judo I
VIVER PARA COMPETIR
“GOSTO MUITO DE COMPETIR. NÃO ME CONSIGO IMAGINAR A FAZER JUDO SEM COMPETIR.”
2005. Vence mais uma Taça do Mundo e sagra-se campeã nacional de seniores, tanto a nível individual, como em equipas. Alcança o bronze, no Europeu e no Mundial de Seniores.
2006. Sagra-se campeã europeia, tanto em sub-23 como em Seniores, E vence uma Taça do Mundo. Alcança, pela primeira vez, o topo do “ranking” mundial, na categoria -52kg. Renova o título nacional (individual).
mostrar às pessoas aquilo que valho, já que não faço muitas competições a nível nacional, porque o calendário internacional não mo permite. Foi uma boa oportunidade de fazer uma competição de grande nível e ter as pessoas todas a apoiarem-me. Foi uma vitória bastante importante. Sentiu, pela primeira, vez o factor casa…
Sim, nunca tinha sentido assim… Uma pessoa sente-se muito melhor se tiver as pessoas de quem gosta por perto. Nesse sentido, contribuiu bastante. Eu estava muito mais descontraída. Alguma vez se magoou a sério em combate?
Não estou totalmente a 100%, mas ainda faltam dois meses e há muito trabalho pela frente: não queria estar a 100% tantos meses antes. Estou a trabalhar para, quando chegar lá, estar a 1000%. Até que idade é que, normalmente, um judoca compete ao mais alto nível?
Há atletas que saem aos 28. E há aqueles que competem até aos 33, 34. Mas, normalmente, é por volta dos 30. E até que idade gostaria de competir?
Também por volta dos 30. Sair no ano em que faço 31 [2016]. Gostava de ainda ir a esses Jogos. Também é preciso que eu tenha capacidade física e mental.
MARÇO, ABRIL
2008
E até lá, onde pretende chegar?
20
A única medalha que me falta é a dos Jogos. Esta é a segunda participação – e é claro que eu vou tentar tirar essa medalha. E depois, um novo desafio: chegar, nos -57kg, até onde cheguei nos -52kg. E é bom, que sendo eu ainda nova, tenho mais desafios pela frente. É como começar de novo. Vê na realização do Euro Judo 2008 em Portugal um maior inter-
esse nacional pela modalidade?
2007. Vence o seu
Acha que ajudou a criar maior
segundo título europeu de seniores e mais duas Taças do Mundo, uma delas em Lisboa. Fica em 2º lugar no Campeonato Mundial. E consegue ainda arranjar tempo para se matricular em Ciências do Desporto, na Faculdade de Motricidade Humana. Segundo uma estimativa da Cision (citada pelo “Jornal de Negócios”), a sua exposição mediática no primeiro semestre do ano foi avaliada em cerca de um milhão de euros.
interesse pelo judo em Portugal?
Como tenho tido resultados regulares, vai-se sempre falando de judo. Sempre que uma pessoa ganha, fala-se. Isso tem dado mais visibilidade ao judo, e daí a ter, talvez, despertado um maior interesse das pessoas. Nesse sentido, acho que sim. Embora já fosse mais conhecido, também, por causa da medalha do Nuno Delgado, em Sydney. Mas, sim, com os resultados que tem havido, o judo tem tido mais mediatismo. Como é que foi para si ter o Europeu no seu país e, por motivo de lesão, não poder participar?
Fiquei muito triste, na altura, porque um sonho que eu tinha era ser campeã da Europa aqui – ou, pelo menos, tentar. Acabei por não conseguir. Mas já superei, e, numa próxima competição que haja cá em Portugal, tentarei ganhar. Perdi o Europeu, mas não perdi os Jogos, que é o mais importante. Já tinha competido em Portugal…
Sim, na Taça do Mundo. Foi muito fixe, porque ganhei perante atletas muito fortes. E porque pude
2008. Impossibilitada de disputar o Europeu (em Lisboa), por motivo de lesão, mantém a sua invencibilidade na prova desde as meias-finais de 2005. Ocupa, a 27 de Maio, o 2º lugar do “ranking” mundial de -52kg. Começa a competir na categoria acima, -57kg, embora dispute ainda as Olimpíadas de Pequim em -52kg.
Magoei-me, em Atenas. Magoei o joelho, e depois, como insisti em treinar porque tinha outras provas à frente, acabei por ter de ser operada. Foi a lesão mais grave que eu tive – estive três meses parada, depois da operação. Considera o judo um desporto violento?
Não, não considero nada. Para quem está de fora, às vezes parece um pouco violento, porque tem aquelas quedas, mas, quando entramos para o judo, começamos por aprender a cair. Mas não, não é violento: não damos socos, não damos pontapés. É só mesmo aquela coisa de nos mandarmos ao chão… mas cai-se num tapete fofinho… O judo sabe-lhe a diversão ou a trabalho?
Não! É mesmo uma diversão – embora com responsabilidade. Mas se eu não me divertisse a fazer judo não fazia sentido. E, quando isso acontecer, eu desisto. Não faz sentido vir para o treino sem ter vontade. Claro que há um dia ou outro em que apetece menos. Mas daí a não me divertir a treinar… Não teria sentido para mim.
traço
I artes plásticas I
JOANA
VASCONCELOS
82
TEXTO JOÃO MESTRE I FOTOGRAFIA PEDRO LOUREIRO
figuras 2008
O plástico, o Manuelino e a honra de representar a nação: perfil falado de uma das mais proeminentes da Arte Contemporânea portuguesa.
JUNHO, JULHO
JUNHO, JULHO
2008
ESCULTORA DE CONCEITOS
83
traço
I artes plásticas I
JOANA
VASCONCELOS
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TEXTO JOÃO MESTRE I FOTOGRAFIA PEDRO LOUREIRO
figuras 2008
O plástico, o Manuelino e a honra de representar a nação: perfil falado de uma das mais proeminentes da Arte Contemporânea portuguesa.
JUNHO, JULHO
JUNHO, JULHO
2008
ESCULTORA DE CONCEITOS
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TOP MODEL, 2005
ser uma embaixadora de Portugal», resume. Contacta frequentemente com coleccionadores, “opinion-makers” e figuras proeminentes da cultura europeia e não só – junto de quem trabalha dedicadamente para honrar a pátria: «falo sempre da minha cultura, levo sempre um CD da Amália ou peças do Bordalo Pinheiro para oferecer». Percebe-se, aliás, pelo clarão no seu olhar, que uma das coisas que mais aprecia na sua exposição internacional é poder representar Portugal. Sente, no entanto, que há pouca «consciência de que as pessoas que andam lá fora são extremamente importantes para a imagem [externa]». O que é que falta? «Maior apoio à internacio na lização das artes, em geral: seja teatro, seja moda, seja música, seja dança.» Contudo, é a primeira a admitir: «não posso dizer que tenho tido azar; tenho conseguido abrir muitas portas que normalmente não são abertas e isso é devido, não só ao meu esforço, mas também ao facto de as pessoas acreditarem me mim». Porém, «se não se procurar soluções, elas não vêm bater à porta». «ESTRELA DA ARTE contemporânea» portuguesa (segundo o jornal francês “Le Figaro”) nasceu em Paris, em 1971. Os seus pais eram exilados políticos e, consumada a Revolução de Abril, regressaram a casa. Joana nunca foi senão portuguesa – «podia ter pedido dupla nacionalidade, mas para quê? Eu sou portuguesa». E di-lo categoricamente, sem espaço para segundas questões. Antes de se centrar, a “full-time”, nas artes plásticas, fez «aquilo que todos os jovens fazem – procurar o teu caminho, implica, às vezes, fazeres coisas de que não
BERÇO. Joana Vasconcelos nasceu em Paris, 1971. Nunca adquiriu, porém, a nacionalidade francesa. Regressou a Portugal em 1974. Começou os estudos no Liceu Francês, onde aprendeu a segunda das 5 línguas em que hoje se exprime com regularidade.
PERCURSO. Em 1989, entrou para o Ar.Co, Lisboa. Tirou o curso básico de Desenho (1994). Depois, o de Joalharia (1995). E um curso avançado de Artes Plásticas (1996). Frequentou Design, no IADE (1991). Só não estudou escultura. Foi professora de karaté e segurança do Lux. E deu aulas no Ar.Co.
A NOIVA. Em 2001, criou, a partir de 25.000 tampões OB, “A Noiva”, um lustre 6m de altura e 3,5m de diâmetro. Já passou por Cascais, Lisboa, Budapeste, A Corunha, Vigo, Paris, Istambul e pela Bienal de Veneza, onde deu muito que falar. Actualmente, pertence à Colecção António Cachola / Museu de Arte Contemporânea de Elvas.
A
AGENDA. Depois de “Donzela”, uma enorme colcha de renda instalada no castelo de Santa Maria da Feira, Joana prepara-se para desvendar, na Ponte D. Luís (Porto), a “Varina”, em Junho. Até ao final do Verão, participará ainda em duas exposições colectivas – em Paris (Le Plateau, 15/06 a 17/08) e em Braga (Galeria Mário Sequeira, 5/07 a 15/10) – e uma em nome individual, em Palma de Maiorca (Galeria Horrach Moyà, 17/07 a 30/08).
gostas muito». Em 1989, ingressou no curso básico de Desenho do Centro de Arte e Comunicação Visual (Ar.Co), em Lisboa. Quando o terminou, em 1994, inscreveu-se num curso avançado de Artes Plásticas, na mesma casa. Pelo meio, foi caloira em Design, no IADE (Lisboa) e estudou Joalharia (Ar.Co). Curiosamente, só não estudou escultura. Quem o fez foi o seu marido, que é arquitecto. Joana também tentou, por três vezes, entrar em Arquitectura. Contudo, nunca conseguiu. E se tivesse conseguido? «Nunca penso nisso», responde, com a sinceridade de quem, de facto, não pensa nisso. «O meu marido – que era namorado, então – entrou em Arquitectura; e eu acompanhei aquele curso do princípio ao fim: vi-o a estudar para os exames, ajudei-o a fazer as maquetas, acompanhei-o nos projectos. Não tirei o curso de Arquitectura mas, curiosamente, até tirei.» A par da sua formação artística, Joana Vasconcelos era “karateka” – chegou ao 3º “dan” (graduação, após a obtenção do cinturão negro). Competia, era juiz de torneios e dava aulas, num ginásio de Linda-a-Velha. Até que uma lesão em combate a afastou dos “dojos”. «Ou era operada e me dedicava muito a essa recuperação, ou fazia uma recuperação menos comprometedora mas que me impediria de continuar um esforço tão radical como o karaté.» Optou pela segunda. Colocava um ponto final em mais de vinte anos de dedicação, o que lhe induziu uma «depressão desportiva». «Não conseguia ver ginásios à frente, passar perto de um ginásio era uma coisa…» – deixa a frase em suspenso, mas depreendo que a palavra que lhe falta é «angustiante». Ainda ten-
2008
CORAÇÃO INDEPENDENTE VERMELHO, 2005
o contacto constante com a Comunicação Social, as perguntas repetidas, não a incomodam nada. Joana tem imenso gosto em responder repetidamente às mesmas questões: «de onde vem a inspiração?», «como define o seu estilo?», «qual é o seu material favorito?». «Há sempre uma pergunta qualquer nova», graceja – «têm de fazer essas perguntas; se não, como é que se vão balizar?». «A isso chama-se “desmistificar o artista”, mostrar que o artista é uma pessoa normal», completa. Joana Vasconcelos é radicalmente contra o conceito do artista enquanto ser especial, metido no seu mundo criativo, que não se pode sequer misturar com a sociedade. Recentemente, vendeu uma peça para uma das maiores e mais prestigiadas colecções privadas de arte contemporânea do mundo - sendo a primeira artista portuguesa a marcar presença no dito acervo. «É como jogar no Manchester United», aponta, com incontido orgulho. Em 2007, Joana foi convidada a integrar o lote de notáveis de uma campanha governamental para a promoção externa do país, ao lado de nomes como Cristiano Ronaldo, Mariza ou José Mourinho. No entanto, já não era nenhuma novata nisto de representar o país fora de portas: entrou para a Galeria Luís Adelantado, em Valencia (2000); expôs no Kennedy Art Center de Washington (2001), na Galeria Casa Triângulo, em São Paulo (2004), no CaixaForum de Barcelona (2006) e na Rena Bransten Gallery, de San Francisco (2007); participou na Trienal de Echigo Tsumari, no Japão (2006); e fez a abertura da Bienal de Veneza (2005). Isto para dar apenas alguns exemplos. «Acabo por
JUNHO, JULHO
AS ENTREVISTAS,
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A JÓIA DO TEJO, 2008 FOTOGRAFIA LUIS VASCONCELOS
POP CHAMPAGNE, 2006
TOP MODEL, 2005
ser uma embaixadora de Portugal», resume. Contacta frequentemente com coleccionadores, “opinion-makers” e figuras proeminentes da cultura europeia e não só – junto de quem trabalha dedicadamente para honrar a pátria: «falo sempre da minha cultura, levo sempre um CD da Amália ou peças do Bordalo Pinheiro para oferecer». Percebe-se, aliás, pelo clarão no seu olhar, que uma das coisas que mais aprecia na sua exposição internacional é poder representar Portugal. Sente, no entanto, que há pouca «consciência de que as pessoas que andam lá fora são extremamente importantes para a imagem [externa]». O que é que falta? «Maior apoio à internacio na lização das artes, em geral: seja teatro, seja moda, seja música, seja dança.» Contudo, é a primeira a admitir: «não posso dizer que tenho tido azar; tenho conseguido abrir muitas portas que normalmente não são abertas e isso é devido, não só ao meu esforço, mas também ao facto de as pessoas acreditarem me mim». Porém, «se não se procurar soluções, elas não vêm bater à porta». «ESTRELA DA ARTE contemporânea» portuguesa (segundo o jornal francês “Le Figaro”) nasceu em Paris, em 1971. Os seus pais eram exilados políticos e, consumada a Revolução de Abril, regressaram a casa. Joana nunca foi senão portuguesa – «podia ter pedido dupla nacionalidade, mas para quê? Eu sou portuguesa». E di-lo categoricamente, sem espaço para segundas questões. Antes de se centrar, a “full-time”, nas artes plásticas, fez «aquilo que todos os jovens fazem – procurar o teu caminho, implica, às vezes, fazeres coisas de que não
BERÇO. Joana Vasconcelos nasceu em Paris, 1971. Nunca adquiriu, porém, a nacionalidade francesa. Regressou a Portugal em 1974. Começou os estudos no Liceu Francês, onde aprendeu a segunda das 5 línguas em que hoje se exprime com regularidade.
PERCURSO. Em 1989, entrou para o Ar.Co, Lisboa. Tirou o curso básico de Desenho (1994). Depois, o de Joalharia (1995). E um curso avançado de Artes Plásticas (1996). Frequentou Design, no IADE (1991). Só não estudou escultura. Foi professora de karaté e segurança do Lux. E deu aulas no Ar.Co.
A NOIVA. Em 2001, criou, a partir de 25.000 tampões OB, “A Noiva”, um lustre 6m de altura e 3,5m de diâmetro. Já passou por Cascais, Lisboa, Budapeste, A Corunha, Vigo, Paris, Istambul e pela Bienal de Veneza, onde deu muito que falar. Actualmente, pertence à Colecção António Cachola / Museu de Arte Contemporânea de Elvas.
A
AGENDA. Depois de “Donzela”, uma enorme colcha de renda instalada no castelo de Santa Maria da Feira, Joana prepara-se para desvendar, na Ponte D. Luís (Porto), a “Varina”, em Junho. Até ao final do Verão, participará ainda em duas exposições colectivas – em Paris (Le Plateau, 15/06 a 17/08) e em Braga (Galeria Mário Sequeira, 5/07 a 15/10) – e uma em nome individual, em Palma de Maiorca (Galeria Horrach Moyà, 17/07 a 30/08).
gostas muito». Em 1989, ingressou no curso básico de Desenho do Centro de Arte e Comunicação Visual (Ar.Co), em Lisboa. Quando o terminou, em 1994, inscreveu-se num curso avançado de Artes Plásticas, na mesma casa. Pelo meio, foi caloira em Design, no IADE (Lisboa) e estudou Joalharia (Ar.Co). Curiosamente, só não estudou escultura. Quem o fez foi o seu marido, que é arquitecto. Joana também tentou, por três vezes, entrar em Arquitectura. Contudo, nunca conseguiu. E se tivesse conseguido? «Nunca penso nisso», responde, com a sinceridade de quem, de facto, não pensa nisso. «O meu marido – que era namorado, então – entrou em Arquitectura; e eu acompanhei aquele curso do princípio ao fim: vi-o a estudar para os exames, ajudei-o a fazer as maquetas, acompanhei-o nos projectos. Não tirei o curso de Arquitectura mas, curiosamente, até tirei.» A par da sua formação artística, Joana Vasconcelos era “karateka” – chegou ao 3º “dan” (graduação, após a obtenção do cinturão negro). Competia, era juiz de torneios e dava aulas, num ginásio de Linda-a-Velha. Até que uma lesão em combate a afastou dos “dojos”. «Ou era operada e me dedicava muito a essa recuperação, ou fazia uma recuperação menos comprometedora mas que me impediria de continuar um esforço tão radical como o karaté.» Optou pela segunda. Colocava um ponto final em mais de vinte anos de dedicação, o que lhe induziu uma «depressão desportiva». «Não conseguia ver ginásios à frente, passar perto de um ginásio era uma coisa…» – deixa a frase em suspenso, mas depreendo que a palavra que lhe falta é «angustiante». Ainda ten-
2008
CORAÇÃO INDEPENDENTE VERMELHO, 2005
o contacto constante com a Comunicação Social, as perguntas repetidas, não a incomodam nada. Joana tem imenso gosto em responder repetidamente às mesmas questões: «de onde vem a inspiração?», «como define o seu estilo?», «qual é o seu material favorito?». «Há sempre uma pergunta qualquer nova», graceja – «têm de fazer essas perguntas; se não, como é que se vão balizar?». «A isso chama-se “desmistificar o artista”, mostrar que o artista é uma pessoa normal», completa. Joana Vasconcelos é radicalmente contra o conceito do artista enquanto ser especial, metido no seu mundo criativo, que não se pode sequer misturar com a sociedade. Recentemente, vendeu uma peça para uma das maiores e mais prestigiadas colecções privadas de arte contemporânea do mundo - sendo a primeira artista portuguesa a marcar presença no dito acervo. «É como jogar no Manchester United», aponta, com incontido orgulho. Em 2007, Joana foi convidada a integrar o lote de notáveis de uma campanha governamental para a promoção externa do país, ao lado de nomes como Cristiano Ronaldo, Mariza ou José Mourinho. No entanto, já não era nenhuma novata nisto de representar o país fora de portas: entrou para a Galeria Luís Adelantado, em Valencia (2000); expôs no Kennedy Art Center de Washington (2001), na Galeria Casa Triângulo, em São Paulo (2004), no CaixaForum de Barcelona (2006) e na Rena Bransten Gallery, de San Francisco (2007); participou na Trienal de Echigo Tsumari, no Japão (2006); e fez a abertura da Bienal de Veneza (2005). Isto para dar apenas alguns exemplos. «Acabo por
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A JÓIA DO TEJO, 2008 FOTOGRAFIA LUIS VASCONCELOS
POP CHAMPAGNE, 2006
traço I artes plásticas I
tou outras modalidades, como o Tai-Chi, «mas era demasiado lento, não acontecia nada». Entretanto, foi convidada para chefiar a equipa de segurança da discoteca Lux, em Lisboa, e, pouco depois, é aliciada a dar aulas de escultura no Ar.Co. Chegou a fazer ambas as coisas em simultâneo. «Não faz sentido nenhum, não é?», ri, enquanto recorda: «era genial; as pessoas viam-me numa exposição e diziam “tu não és segurança do Lux? O que é que estás a fazer aqui?” – respondia-lhes que “aquela” peça era minha e ficavam…» – o riso
Cometi o “erro” de lhe perguntar como define o seu estilo. «Não defino.» Quando parecia que a resposta se ia ficar por aí, desenvolve: «não existe estilo, agora; se eu pertencesse a um grupo artístico, a uma corrente, mas isso é muito próprio de uma época». O crítico de arte Jacinto Lageira aponta, na obra de Joana, «uma espécie de toxicodependência em relação ao mau gosto, ao “kitsch” e ao pechisbeque». «Ele tem razão», atalha, mal é confrontada com a citação, assumindo automaticamente que trabalha «contra o
de algo de bom gosto. É esse o seu estilo?, pergunto-lhe. «Não é estilo; é um conceito - eu trabalho conceitos, e não materiais ou estilos.» Daí que, na Torre de Belém, tenha recorrido às bóias: «fiz um Manuelino de plástico.» Joana não utiliza materiais convencionais, como a pedra. «Nunca calhou», explica. Utiliza antes o croché, as bóias de plástico, os tampões higiénicos, os talheres de plástico, entre outros recursos. Na execução de “Dorothy”, por exemplo – um sapato com 4,3 metros de comprimento e 2,7 de altura – recorreu a tachos de
igualdade, de paridade e essas palavras… acho isso pouco importante, acho que não é por aí», argumenta. Assume-se, antes, como uma artista de causas: «sou mais pelos Direitos Humanos do que pelo feminismo em si». POR ESTES DIAS,
Joana anda atarefada com as mudanças: em breve, deixará o seu “atelier” na Fundição de Oeiras para se instalar num antigo edifício do Porto de Lisboa, contíguo ao recém-inaugurado Museu do Oriente. O “atelier” de Oeiras, cedido pelo município, está marcado para demolição e
PERCEBE-SE, PELO CLARÃO NO SEU OLHAR, QUE UMA DAS COISAS QUE JOANA VASCONCELOS MAIS APRECIA NA SUA EXPOSIÇÃO INTERNACIONAL É PODER REPRESENTAR PORTUGAL.
86
bibelô, contra o pechisbeque, contra o supérfluo», que «representam as ansie dades que a sociedade não consegue preencher e que, mesmo assim, arranja uma forma de o fazer… no fundo, arranja-se uma solução para um problema que não se quer resolver.» Um exemplo? «O “bibelot”, que se tem em casa porque se quer ter escultura mas não se pode.» É desse mau gosto que Joana parte para a criação
alumínio. «Decidi fazer um projecto sobre a vida da mulher contemporânea, como é que ela se divide entre o doméstico e o público; entre a cozinha e os salões.» Deu voltas à cabeça, à procura da panela mais comum, «que fosse identificada como “a” panela». Então lembrou-se: «o tacho do arroz!». O universo feminino emerge frequentemente na sua obra. Porém, Joana não se considera feminista. «A ideia de quotas, de
urgia encontrar uma nova localização para alojar a sede criativa da escultora. O enquadramento junto ao rio tornou-se um requisito elementar para esta busca. «Alguém me sugeriu falar com a Administração do Porto de Lisboa; mandei uma proposta, acabei por ser recebida» e, após dois anos de espera, deram-lhe consentimento para ocupar os pavilhões anteriormente ocupados pelo Museu da Cera.
2008
interrompe a frase, acompanhando um trejeito de espanto. A dada altura, tornou-se impossível conciliar estes dois mundos e optou pelas aulas no Ar.Co. De permeio, continuava a fazer as suas peças e a expô-las. Até que se tornou complicado cumprir o horário lectivo: «comecei a ter de ter disponibilidade para ir às minhas exposições». Ao fim de cinco anos, acabou por deixar as aulas, para se dedicar exclusivamente à criação.
JUNHO, JULHO
JUNHO, JULHO
2008
PANTELMINA 1, 2001
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traço I artes plásticas I
tou outras modalidades, como o Tai-Chi, «mas era demasiado lento, não acontecia nada». Entretanto, foi convidada para chefiar a equipa de segurança da discoteca Lux, em Lisboa, e, pouco depois, é aliciada a dar aulas de escultura no Ar.Co. Chegou a fazer ambas as coisas em simultâneo. «Não faz sentido nenhum, não é?», ri, enquanto recorda: «era genial; as pessoas viam-me numa exposição e diziam “tu não és segurança do Lux? O que é que estás a fazer aqui?” – respondia-lhes que “aquela” peça era minha e ficavam…» – o riso
Cometi o “erro” de lhe perguntar como define o seu estilo. «Não defino.» Quando parecia que a resposta se ia ficar por aí, desenvolve: «não existe estilo, agora; se eu pertencesse a um grupo artístico, a uma corrente, mas isso é muito próprio de uma época». O crítico de arte Jacinto Lageira aponta, na obra de Joana, «uma espécie de toxicodependência em relação ao mau gosto, ao “kitsch” e ao pechisbeque». «Ele tem razão», atalha, mal é confrontada com a citação, assumindo automaticamente que trabalha «contra o
de algo de bom gosto. É esse o seu estilo?, pergunto-lhe. «Não é estilo; é um conceito - eu trabalho conceitos, e não materiais ou estilos.» Daí que, na Torre de Belém, tenha recorrido às bóias: «fiz um Manuelino de plástico.» Joana não utiliza materiais convencionais, como a pedra. «Nunca calhou», explica. Utiliza antes o croché, as bóias de plástico, os tampões higiénicos, os talheres de plástico, entre outros recursos. Na execução de “Dorothy”, por exemplo – um sapato com 4,3 metros de comprimento e 2,7 de altura – recorreu a tachos de
igualdade, de paridade e essas palavras… acho isso pouco importante, acho que não é por aí», argumenta. Assume-se, antes, como uma artista de causas: «sou mais pelos Direitos Humanos do que pelo feminismo em si». POR ESTES DIAS,
Joana anda atarefada com as mudanças: em breve, deixará o seu “atelier” na Fundição de Oeiras para se instalar num antigo edifício do Porto de Lisboa, contíguo ao recém-inaugurado Museu do Oriente. O “atelier” de Oeiras, cedido pelo município, está marcado para demolição e
PERCEBE-SE, PELO CLARÃO NO SEU OLHAR, QUE UMA DAS COISAS QUE JOANA VASCONCELOS MAIS APRECIA NA SUA EXPOSIÇÃO INTERNACIONAL É PODER REPRESENTAR PORTUGAL.
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bibelô, contra o pechisbeque, contra o supérfluo», que «representam as ansie dades que a sociedade não consegue preencher e que, mesmo assim, arranja uma forma de o fazer… no fundo, arranja-se uma solução para um problema que não se quer resolver.» Um exemplo? «O “bibelot”, que se tem em casa porque se quer ter escultura mas não se pode.» É desse mau gosto que Joana parte para a criação
alumínio. «Decidi fazer um projecto sobre a vida da mulher contemporânea, como é que ela se divide entre o doméstico e o público; entre a cozinha e os salões.» Deu voltas à cabeça, à procura da panela mais comum, «que fosse identificada como “a” panela». Então lembrou-se: «o tacho do arroz!». O universo feminino emerge frequentemente na sua obra. Porém, Joana não se considera feminista. «A ideia de quotas, de
urgia encontrar uma nova localização para alojar a sede criativa da escultora. O enquadramento junto ao rio tornou-se um requisito elementar para esta busca. «Alguém me sugeriu falar com a Administração do Porto de Lisboa; mandei uma proposta, acabei por ser recebida» e, após dois anos de espera, deram-lhe consentimento para ocupar os pavilhões anteriormente ocupados pelo Museu da Cera.
2008
interrompe a frase, acompanhando um trejeito de espanto. A dada altura, tornou-se impossível conciliar estes dois mundos e optou pelas aulas no Ar.Co. De permeio, continuava a fazer as suas peças e a expô-las. Até que se tornou complicado cumprir o horário lectivo: «comecei a ter de ter disponibilidade para ir às minhas exposições». Ao fim de cinco anos, acabou por deixar as aulas, para se dedicar exclusivamente à criação.
JUNHO, JULHO
JUNHO, JULHO
2008
PANTELMINA 1, 2001
87
traço I artes plásticas I
86
ME PERGUNTAREM QUAL É A PEÇA QUE MAIS INFLUÊNCIA TEVE NA MINHA CARREIRA, AÍ EU RESPONDO QUE FOI “A NOIVA”».
Joana vive em Algés, a curta distância do rio e de Belém - «gosto imenso desta relação do rio com estes objectos escultóricos: o Padrão dos Descobrimentos, a Torre do [Gonçalo] Byrne, a Torre de Belém». Quando foi convidada, no âmbito de uma iniciativa das 7 Maravilhas de Portugal, a escolher um monumento para fazer uma intervenção artística,
nem pestanejou: pediu a Torre de Belém. Porquê? Porque «é, de todos os monumentos, o mais escultórico; é aquele que é, em si, uma escultura.» Embora se recuse a apontar, de entre a sua obra, uma peça favorita, deixa transparecer que a intervenção no monumento lhe deu uma satisfação inédita: «foi extremamente difícil, desgastante
até à última casa. Nunca tinha tido que me defender tanto e fazer tanta pesquisa, trabalhar tanto um projecto», recorda. Findo o trabalho, disse, de si para si: «nem posso acreditar; eu fiz alguma coisa para a Torre de Belém!». Aquele clarão regressa ao seu olhar, ao completar, sorridente: «foi emocionante ver a Mariza a cantar e a minha peça
lá… há momentos na vida que são impagáveis!». Porém, reforça a sua posição: «não tenho uma peça favorita». E reformula a questão: «se me perguntarem qual é a peça que mais influência teve na minha carreira, aí eu respondo que foi “A Noiva”». Porquê? «É a peça que foi mais longe internacionalmente: Istambul, Veneza… é a peça mais
viajada… e é a mais conhecida.» Retoma, porém, a intervenção na Torre de Belém: «é a coisa mais louca que fiz até hoje. É mais normal fazer a entrada da Bienal de Veneza [referindo-se a “A Noiva”] do que fazer a Torre de Belém. Nunca mais na vida poderei intervir num monumento histórico.» Nunca se sabe, Joana… nunca se sabe…
JUNHO, JULHO
JUNHO, JULHO
2008
«SE
2008
PIANO DENTELLE, 2008
A NOIVA, 2005
87
traço I artes plásticas I
86
ME PERGUNTAREM QUAL É A PEÇA QUE MAIS INFLUÊNCIA TEVE NA MINHA CARREIRA, AÍ EU RESPONDO QUE FOI “A NOIVA”».
Joana vive em Algés, a curta distância do rio e de Belém - «gosto imenso desta relação do rio com estes objectos escultóricos: o Padrão dos Descobrimentos, a Torre do [Gonçalo] Byrne, a Torre de Belém». Quando foi convidada, no âmbito de uma iniciativa das 7 Maravilhas de Portugal, a escolher um monumento para fazer uma intervenção artística,
nem pestanejou: pediu a Torre de Belém. Porquê? Porque «é, de todos os monumentos, o mais escultórico; é aquele que é, em si, uma escultura.» Embora se recuse a apontar, de entre a sua obra, uma peça favorita, deixa transparecer que a intervenção no monumento lhe deu uma satisfação inédita: «foi extremamente difícil, desgastante
até à última casa. Nunca tinha tido que me defender tanto e fazer tanta pesquisa, trabalhar tanto um projecto», recorda. Findo o trabalho, disse, de si para si: «nem posso acreditar; eu fiz alguma coisa para a Torre de Belém!». Aquele clarão regressa ao seu olhar, ao completar, sorridente: «foi emocionante ver a Mariza a cantar e a minha peça
lá… há momentos na vida que são impagáveis!». Porém, reforça a sua posição: «não tenho uma peça favorita». E reformula a questão: «se me perguntarem qual é a peça que mais influência teve na minha carreira, aí eu respondo que foi “A Noiva”». Porquê? «É a peça que foi mais longe internacionalmente: Istambul, Veneza… é a peça mais
viajada… e é a mais conhecida.» Retoma, porém, a intervenção na Torre de Belém: «é a coisa mais louca que fiz até hoje. É mais normal fazer a entrada da Bienal de Veneza [referindo-se a “A Noiva”] do que fazer a Torre de Belém. Nunca mais na vida poderei intervir num monumento histórico.» Nunca se sabe, Joana… nunca se sabe…
JUNHO, JULHO
JUNHO, JULHO
2008
«SE
2008
PIANO DENTELLE, 2008
A NOIVA, 2005
87
directo
I ténis I
MICHELLE LARCHER
BRITO DE
SERVIÇO DE PRIMEIRA PARA QUEM AINDA NÃO A CONHECIA: EIS O FUTURO DO TÉNIS PORTUGUÊS.
TEXTO JOÃO MESTRE FOTOGRAFIA PEDRO LOUREIRO
MARÇO, ABRIL
2008
M
14
ichelle é peremptória em fazer a entrevista em português. Afinal de contas, é a sua língua materna (paterna, aliás: António, pai e treinador, é português; a mãe, Caroline, é sul-africana). De quando em vez, lá lhe sai uma resposta em inglês. Não é de estranhar. Michelle, actualmente com 15 anos, mudou-se aos nove para a Academia Nick Bollettieri, um viveiro de campeões em Miami de onde saiu já uma dezena de números 1 mundiais – entre eles, a actual líder do “ranking” da WTA (Associação Mundial de Ténis Feminino), Jelena Jankovic. A propósito da sua primeira participação no Estoril Open, em Abril deste ano, e nos intervalos da filmagem de um anúncio para a tmn, a tenista portuguesa falou com a “T Magazine”, no Centro de Ténis de Monsanto (Lisboa).
directo
I ténis I
MICHELLE LARCHER
BRITO DE
SERVIÇO DE PRIMEIRA PARA QUEM AINDA NÃO A CONHECIA: EIS O FUTURO DO TÉNIS PORTUGUÊS.
TEXTO JOÃO MESTRE FOTOGRAFIA PEDRO LOUREIRO
MARÇO, ABRIL
2008
M
14
ichelle é peremptória em fazer a entrevista em português. Afinal de contas, é a sua língua materna (paterna, aliás: António, pai e treinador, é português; a mãe, Caroline, é sul-africana). De quando em vez, lá lhe sai uma resposta em inglês. Não é de estranhar. Michelle, actualmente com 15 anos, mudou-se aos nove para a Academia Nick Bollettieri, um viveiro de campeões em Miami de onde saiu já uma dezena de números 1 mundiais – entre eles, a actual líder do “ranking” da WTA (Associação Mundial de Ténis Feminino), Jelena Jankovic. A propósito da sua primeira participação no Estoril Open, em Abril deste ano, e nos intervalos da filmagem de um anúncio para a tmn, a tenista portuguesa falou com a “T Magazine”, no Centro de Ténis de Monsanto (Lisboa).
directo I ténis I
É a primeira vez que filma um
É verdade que, na Academia,
anúncio?
são ensinados não só a ser bons
Sim, vai ser a minha primeira filmagem. Está nervosa?
Não, não estou nervosa. Só… “anxious”… ansiosa! Faz parte da vida de celebrida-
MARÇO, ABRIL
2008
de, não é…?
16
Sim, vai ser parte da minha carreira; tirar fotos, fazer filmagens… Mas tenho de me habituar, agora que estou a melhorar o meu “ranking”. E vou ficar ainda melhor. E a imagem de um tenista é algo muito importante…
Claro. É mesmo muito importante.
1997. Inicia-se no ténis, com apenas quatro anos, nos “courts” do Jamor. 1999. Participa pela primeira vez num torneio, onde sofre a sua primeira derrota. Foge do campo e fecha-se numa sala a chorar. E diz ao seu pai e treinador, António Larcher de Brito, que nunca na vida tornará a perder.
2000. Aos nove anos, muda-se para os Estados Unidos, acompanhada da sua família. Ingressa na Academia Nick Bollettieri, famosa por ter formado diversos campeões da modalidade, entre eles Maria Sharapova, as irmãs Williams e André Agassi.
2005. Torna-se na tenista
com o sucesso?
mais nova a vencer o torneio norte-americano Eddie Herr sub-16. O feito vale-lhe o prémio “Rising Star” (Estrela Emergente) que, em 18 anos de prova, apenas havia sido entregue por duas vezes (a Maria Sharapova, em 2000, e a Alissa Kleybanova, em 2003).
O Ben Crandell, o seu agente, disse que a Michelle já não é uma “local hero”, mas sim uma estrela global. Que diz sobre isso? Já se sente como tal?
De certa forma, acho que sim. Mas não gosto de pensar muito nisso, porque depois isso mete-se na cabeça… Sei que sou, sim, mas
Prefere pensar naquilo que interessa mesmo…
Sim: pensar nos treinos, nos jogos e nos torneios. Como é que foi parar à Academia Nick Bollettieri?
Por acaso começou aqui [no Centro de Ténis de Monsanto]. O vice-presidente da Academia [Gabriel Jaramillo] veio cá a Portugal dar uma «clínica», em busca de bons jogadores para levar para a Academia. E convidou-me para ir lá jogar: ele viu-me a treinar e perguntou se eu queria ir ver a Academia. Eu aceitei, estivemos lá dez dias e gostámos muito. Então, mudámo-nos para lá, eu e a minha família. E se a sua família não tivesse podido acompanhá-la, teria ido na mesma?
Não, acho que nunca poderia fazer isto sozinha. Os meus pais estão sempre comigo, estão sempre a puxar por mim. Quando perco, eles estão lá comigo. Eles estão lá sempre. Acho que não poderia fazer aquilo que faço agora sem eles. Nem o conseguiria sem os meus irmãos. Irmãos mais velhos?
São, sim. Têm 19. São gémeos. Eles já jogavam ténis quando a
profissionais mas também a lidar
Sim, ensinam-nos a falar em frente às câmaras, a dar entrevistas, como responder sem ser só “sim” e “não”, dizer um bocado mais.
não gosto de pensar muito nisso.
Michelle começou?
Sim. Eles ainda jogam e eu treino com eles, porque eles batem muito bem. Vão agora para a Universidade, com uma bolsa de estudo de ténis. E a Michelle, continua a estudar?
Sim, claro, eu estou a estudar. Enquanto estou cá em Portugal, acompanho “on-line”. Mas quando estou lá, vou às aulas. Anda numa escola comum ou é só para atletas da academia?
É uma escola só para desportistas, toda a gente [da Academia] está lá.
2008
“OS MEUS PAIS ESTÃO SEMPRE A PUXAR POR MIM. QUANDO PERCO, ELES ESTÃO LÁ COMIGO. ESTÃO LÁ SEMPRE. ACHO QUE NÃO PODERIA FAZER AQUILO QUE FAÇO SEM ELES. NEM O CONSEGUIRIA SEM OS MEUS IRMÃOS.”
Janeiro, em Lisboa, filha de pai português e mãe sul-africana. Quiseram baptizá-la de Michelle, mas a lei não permitia nomes estrangeiros. Ficou Micaela.
MARÇO, ABRIL
A IMPORTÂNCIA DO FACTOR FAMÍLIA
1993. Nasce, a 29 de
17
directo I ténis I
É a primeira vez que filma um
É verdade que, na Academia,
anúncio?
são ensinados não só a ser bons
Sim, vai ser a minha primeira filmagem. Está nervosa?
Não, não estou nervosa. Só… “anxious”… ansiosa! Faz parte da vida de celebrida-
MARÇO, ABRIL
2008
de, não é…?
16
Sim, vai ser parte da minha carreira; tirar fotos, fazer filmagens… Mas tenho de me habituar, agora que estou a melhorar o meu “ranking”. E vou ficar ainda melhor. E a imagem de um tenista é algo muito importante…
Claro. É mesmo muito importante.
1997. Inicia-se no ténis, com apenas quatro anos, nos “courts” do Jamor. 1999. Participa pela primeira vez num torneio, onde sofre a sua primeira derrota. Foge do campo e fecha-se numa sala a chorar. E diz ao seu pai e treinador, António Larcher de Brito, que nunca na vida tornará a perder.
2000. Aos nove anos, muda-se para os Estados Unidos, acompanhada da sua família. Ingressa na Academia Nick Bollettieri, famosa por ter formado diversos campeões da modalidade, entre eles Maria Sharapova, as irmãs Williams e André Agassi.
2005. Torna-se na tenista
com o sucesso?
mais nova a vencer o torneio norte-americano Eddie Herr sub-16. O feito vale-lhe o prémio “Rising Star” (Estrela Emergente) que, em 18 anos de prova, apenas havia sido entregue por duas vezes (a Maria Sharapova, em 2000, e a Alissa Kleybanova, em 2003).
O Ben Crandell, o seu agente, disse que a Michelle já não é uma “local hero”, mas sim uma estrela global. Que diz sobre isso? Já se sente como tal?
De certa forma, acho que sim. Mas não gosto de pensar muito nisso, porque depois isso mete-se na cabeça… Sei que sou, sim, mas
Prefere pensar naquilo que interessa mesmo…
Sim: pensar nos treinos, nos jogos e nos torneios. Como é que foi parar à Academia Nick Bollettieri?
Por acaso começou aqui [no Centro de Ténis de Monsanto]. O vice-presidente da Academia [Gabriel Jaramillo] veio cá a Portugal dar uma «clínica», em busca de bons jogadores para levar para a Academia. E convidou-me para ir lá jogar: ele viu-me a treinar e perguntou se eu queria ir ver a Academia. Eu aceitei, estivemos lá dez dias e gostámos muito. Então, mudámo-nos para lá, eu e a minha família. E se a sua família não tivesse podido acompanhá-la, teria ido na mesma?
Não, acho que nunca poderia fazer isto sozinha. Os meus pais estão sempre comigo, estão sempre a puxar por mim. Quando perco, eles estão lá comigo. Eles estão lá sempre. Acho que não poderia fazer aquilo que faço agora sem eles. Nem o conseguiria sem os meus irmãos. Irmãos mais velhos?
São, sim. Têm 19. São gémeos. Eles já jogavam ténis quando a
profissionais mas também a lidar
Sim, ensinam-nos a falar em frente às câmaras, a dar entrevistas, como responder sem ser só “sim” e “não”, dizer um bocado mais.
não gosto de pensar muito nisso.
Michelle começou?
Sim. Eles ainda jogam e eu treino com eles, porque eles batem muito bem. Vão agora para a Universidade, com uma bolsa de estudo de ténis. E a Michelle, continua a estudar?
Sim, claro, eu estou a estudar. Enquanto estou cá em Portugal, acompanho “on-line”. Mas quando estou lá, vou às aulas. Anda numa escola comum ou é só para atletas da academia?
É uma escola só para desportistas, toda a gente [da Academia] está lá.
2008
“OS MEUS PAIS ESTÃO SEMPRE A PUXAR POR MIM. QUANDO PERCO, ELES ESTÃO LÁ COMIGO. ESTÃO LÁ SEMPRE. ACHO QUE NÃO PODERIA FAZER AQUILO QUE FAÇO SEM ELES. NEM O CONSEGUIRIA SEM OS MEUS IRMÃOS.”
Janeiro, em Lisboa, filha de pai português e mãe sul-africana. Quiseram baptizá-la de Michelle, mas a lei não permitia nomes estrangeiros. Ficou Micaela.
MARÇO, ABRIL
A IMPORTÂNCIA DO FACTOR FAMÍLIA
1993. Nasce, a 29 de
17
directo I ténis I
de juniores Jerry Simmons, na Carolina do Sul, e o Campeonato Internacional em piso de relva da Associação Norte-Americana de Ténis.
Uma portuguesa. Eu não quero nunca ser americana. Gosto muito de Portugal. Isto é o meu país. Nunca quis ser americana. Quando está fora, de que é que sente mais saudades?
Sinto muita falta da minha famí lia. A família do lado do meu pai está toda aqui em Portugal. Imagina-se a regressar a Portugal?
Para viver? Acho que não. Por agora, é só mesmo nos Estados Unidos, por causa do treino. E é por causa dos meus treinos que lá estou. Não, por enquanto, acho que não. O
que
acha
que
falta
em
Portugal?
Portugal tem condições: há mui tos “courts” de ténis, muitos campos de exercício e isso tudo. Mas acho que não tem jogadores, para poder… Eu acho que Portugal tem muitos e bons jogadores. Mas também acho que eles não acreditam que podem vir a ser profissionais. Acha que não há motivação cá?
Porque se eu for para uma escola normal, não me deixam faltar para ir aos torneios. Por isso, uma escola de desportos é muito mais flexível. Quando vou para torneios, posso… “catch up” o trabalho. Ainda se lembra da primeira vez em que pegou numa raqueta? A primeira vez que experimentou jogar ténis?
Hmmm… não. Eu tinha uns quatro ou cinco anos… Quando é que se apercebeu de
MARÇO, ABRIL
2008
que queria dedicar a sua vida
18
ao ténis?
Quase sempre. Eu sempre quis ser uma grande tenista. Sempre foi o meu sonho.
Com que idade se mudou para os Estados Unidos?
Fui para lá com nove, quase dez. Como foi a sua adaptação a uma nova cidade, outro país, outra língua?
Eu só tinha nove anos, por isso ainda era muito nova quando fui para lá… Não exigiu grande adaptação. Já falava inglês…
Sim, já falava por causa da minha mãe. Já aprendia inglês em casa. Por isso, foi um pouco mais fácil. Fiz logo amigas e gostei muito. Considera-se mais uma adolescente americana que nasceu em Portugal ou uma portuguesa
Sim, não há muito. Mas também, muito dinheiro vai para o futebol, por isso… (risos). Sim, eu acho que há muitos bons jogadores, mas eles não acreditam. Por falar em futebol, disse, em entrevista ao jornal “Record”, que um dos seus ídolos é o Cristiano
Ronaldo.
Também
gosta de futebol?
Gosto muito de ténis, claro. Mas também adoro futebol. Fui ao estádio, assistir ao jogo do Sporting com o Glasgow Rangers. É do Sporting?
Sim. Eles até fizeram uma cami sola com o meu nome nas costas e o presidente [Filipe Soares
2007. Estreia-se, em Fevereiro, no circuito profissional (WTA Tour). Em Março, torna-se na primeira tenista portuguesa a vencer um encontro num evento WTA Tour, ao derrotar Meghann Shaughnessy, nº 43 do “ranking”. Em Setembro, estreia-se no “ranking” WTA, na 364ª posição. Termina o ano em nº 296, ao vencer o Orange Bowl Sub-18 (Miami), um dos mais importantes torneios de juniores no panorama mundial.
2008. Alcança, em Março, a terceira ronda do torneio de Miami, derrotando Ekaterina Makarova e Agnieszka Radwanska (nºs 75 e 16 do “ranking”, respectivamente). Em Julho, derrota Gisela Dulko (nº 34) e alcança os oitavos-de-final do torneio de Stanford (EUA), onde tomba perante a supercampeã Serena Williams (nº 5), a quem ainda consegue vencer o primeiro “set”. Um mês depois, faz a sua quinta «vítima» no top 50, ao derrotar Flavia Penetta (nº 18), em Montreal (Canadá). Ocupa, no início de Agosto, a 131ª posição do “ranking”.
2008
“PORTUGAL TEM CONDIÇÕES: HÁ MUITOS “COURTS” DE TÉNIS E CAMPOS DE EXERCÍCIO. E BONS JOGADORES. MAS ACHO QUE ELES NÃO ACREDITAM QUE PODEM VIR A SER PROFISSIONAIS.”
2006. Vence o torneio
americana?
MARÇO, ABRIL
ESTADO DO TÉNIS NACIONAL
que se ambientou à cultura
19
directo I ténis I
de juniores Jerry Simmons, na Carolina do Sul, e o Campeonato Internacional em piso de relva da Associação Norte-Americana de Ténis.
Uma portuguesa. Eu não quero nunca ser americana. Gosto muito de Portugal. Isto é o meu país. Nunca quis ser americana. Quando está fora, de que é que sente mais saudades?
Sinto muita falta da minha famí lia. A família do lado do meu pai está toda aqui em Portugal. Imagina-se a regressar a Portugal?
Para viver? Acho que não. Por agora, é só mesmo nos Estados Unidos, por causa do treino. E é por causa dos meus treinos que lá estou. Não, por enquanto, acho que não. O
que
acha
que
falta
em
Portugal?
Portugal tem condições: há mui tos “courts” de ténis, muitos campos de exercício e isso tudo. Mas acho que não tem jogadores, para poder… Eu acho que Portugal tem muitos e bons jogadores. Mas também acho que eles não acreditam que podem vir a ser profissionais. Acha que não há motivação cá?
Porque se eu for para uma escola normal, não me deixam faltar para ir aos torneios. Por isso, uma escola de desportos é muito mais flexível. Quando vou para torneios, posso… “catch up” o trabalho. Ainda se lembra da primeira vez em que pegou numa raqueta? A primeira vez que experimentou jogar ténis?
Hmmm… não. Eu tinha uns quatro ou cinco anos… Quando é que se apercebeu de
MARÇO, ABRIL
2008
que queria dedicar a sua vida
18
ao ténis?
Quase sempre. Eu sempre quis ser uma grande tenista. Sempre foi o meu sonho.
Com que idade se mudou para os Estados Unidos?
Fui para lá com nove, quase dez. Como foi a sua adaptação a uma nova cidade, outro país, outra língua?
Eu só tinha nove anos, por isso ainda era muito nova quando fui para lá… Não exigiu grande adaptação. Já falava inglês…
Sim, já falava por causa da minha mãe. Já aprendia inglês em casa. Por isso, foi um pouco mais fácil. Fiz logo amigas e gostei muito. Considera-se mais uma adolescente americana que nasceu em Portugal ou uma portuguesa
Sim, não há muito. Mas também, muito dinheiro vai para o futebol, por isso… (risos). Sim, eu acho que há muitos bons jogadores, mas eles não acreditam. Por falar em futebol, disse, em entrevista ao jornal “Record”, que um dos seus ídolos é o Cristiano
Ronaldo.
Também
gosta de futebol?
Gosto muito de ténis, claro. Mas também adoro futebol. Fui ao estádio, assistir ao jogo do Sporting com o Glasgow Rangers. É do Sporting?
Sim. Eles até fizeram uma cami sola com o meu nome nas costas e o presidente [Filipe Soares
2007. Estreia-se, em Fevereiro, no circuito profissional (WTA Tour). Em Março, torna-se na primeira tenista portuguesa a vencer um encontro num evento WTA Tour, ao derrotar Meghann Shaughnessy, nº 43 do “ranking”. Em Setembro, estreia-se no “ranking” WTA, na 364ª posição. Termina o ano em nº 296, ao vencer o Orange Bowl Sub-18 (Miami), um dos mais importantes torneios de juniores no panorama mundial.
2008. Alcança, em Março, a terceira ronda do torneio de Miami, derrotando Ekaterina Makarova e Agnieszka Radwanska (nºs 75 e 16 do “ranking”, respectivamente). Em Julho, derrota Gisela Dulko (nº 34) e alcança os oitavos-de-final do torneio de Stanford (EUA), onde tomba perante a supercampeã Serena Williams (nº 5), a quem ainda consegue vencer o primeiro “set”. Um mês depois, faz a sua quinta «vítima» no top 50, ao derrotar Flavia Penetta (nº 18), em Montreal (Canadá). Ocupa, no início de Agosto, a 131ª posição do “ranking”.
2008
“PORTUGAL TEM CONDIÇÕES: HÁ MUITOS “COURTS” DE TÉNIS E CAMPOS DE EXERCÍCIO. E BONS JOGADORES. MAS ACHO QUE ELES NÃO ACREDITAM QUE PODEM VIR A SER PROFISSIONAIS.”
2006. Vence o torneio
americana?
MARÇO, ABRIL
ESTADO DO TÉNIS NACIONAL
que se ambientou à cultura
19
directo I ténis I
Franco] vestiu-me a camisola. O “announcer” do estádio disse «nós temos um convidado, a Michelle Larcher de Brito está cá hoje a ver o Sporting, e ela tem duas grandes paixões na vida: o ténis e o futebol e ela é sportinguista, dêem-lhe todos as boas-vindas» e toda a gente aplaudiu. Depois apareci no ecrã do estádio, com o presidente a vestir-me a camisola. Foi incrível!
todas
atletas
da
Ah, sim, toda a gente. E andamos todos na mesma escola. Gosta de estudar?
tar a pronunciação aos ameri-
Planeia seguir para a Universi-
Como é o seu dia típico na Academia?
Acordo às 6:00. Às 7:30 tenho treino de aquecimento, no ginásio. Depois, às 8:00, tenho duas horas de treino de ténis. Das 10:00 às 11:00, tenho treino físico, corrida, agilidade, para os pés e esse tipo de exercícios. Depois vou para a escola, até às 16:30. E depois das aulas tenho treino com o meu pai. A vida na Academia é muito dura?
Sim, claro, é duro. Estão sempre a puxar por nós nos treinos, para fazermos cada vez melhor. Mas também tenho o meu pai comigo. Sempre.
dade?
Não, não planeio ir para a Uni versidade. É claro que quero avançar muito o meu ténis, mas não planeio seguir para a Uni versidade. Se não fosse tenista, o que gostaria de ser?
Adoro animais, por isso gostaria de fazer alguma coisa relacionada, trabalhar com animais. Mas não Veterinária, isso não. Das tenistas que integram o “ranking” WTA, há alguma que sonhe
particularmente
em
defrontar?
Não sei… ainda não pensei muito nisso. Mas gostava muito de jogar contra a Maria Sharapova. É o seu ídolo no ténis?
Não, a minha tenista favorita é a Martina Hingis. E a Monica Selles, também. Que torneio mais gostaria de ganhar?
E como é o ambiente entre os
Gostava muito de ganhar no Grand Slam. Qualquer um.
alunos da Academia? Há soli-
Em termos de carreira, onde
dariedade entre vós ou há muita competitividade para ver quem 2008
são
Academia.
O nome “Michelle” é para facili-
Não. Quando nasci, em Portugal era obrigatório ter nome português, e por isso eu não me podia chamar Michelle. O mais parecido que havia com Michelle era Micaela. E essa era a regra: tinha de ser Micaela. Mas eu não gosto muito de Micaela. Prefiro Michelle.
MARÇO, ABRIL
Mas
Sim, gosto muito. E de ir às aulas, também.
canos?
20
de estar com as minhas amigas – como lá na Academia não há só ténis (também há basquetebol, futebol e outros desportos), as minhas amigas acabam por não ser só do ténis.
é o melhor?
Solidariedade, sim. E competitividade, também. Mas eu só me preocupo com o meu trabalho. Gosto
pensa chegar?
Não sei. Não gosto de pensar muito à frente. Mas gostaria de ser número 1 do mundo. Mas não sei: é muito trabalho, é um caminho muito longo.
IDENTIDADE NACIONAL “EU NÃO QUERO NUNCA SER AMERICANA. GOSTO MUITO DE PORTUGAL. ISTO É O MEU PAÍS. NUNCA QUIS SER AMERICANA.”
directo I ténis I
Franco] vestiu-me a camisola. O “announcer” do estádio disse «nós temos um convidado, a Michelle Larcher de Brito está cá hoje a ver o Sporting, e ela tem duas grandes paixões na vida: o ténis e o futebol e ela é sportinguista, dêem-lhe todos as boas-vindas» e toda a gente aplaudiu. Depois apareci no ecrã do estádio, com o presidente a vestir-me a camisola. Foi incrível!
todas
atletas
da
Ah, sim, toda a gente. E andamos todos na mesma escola. Gosta de estudar?
tar a pronunciação aos ameri-
Planeia seguir para a Universi-
Como é o seu dia típico na Academia?
Acordo às 6:00. Às 7:30 tenho treino de aquecimento, no ginásio. Depois, às 8:00, tenho duas horas de treino de ténis. Das 10:00 às 11:00, tenho treino físico, corrida, agilidade, para os pés e esse tipo de exercícios. Depois vou para a escola, até às 16:30. E depois das aulas tenho treino com o meu pai. A vida na Academia é muito dura?
Sim, claro, é duro. Estão sempre a puxar por nós nos treinos, para fazermos cada vez melhor. Mas também tenho o meu pai comigo. Sempre.
dade?
Não, não planeio ir para a Uni versidade. É claro que quero avançar muito o meu ténis, mas não planeio seguir para a Uni versidade. Se não fosse tenista, o que gostaria de ser?
Adoro animais, por isso gostaria de fazer alguma coisa relacionada, trabalhar com animais. Mas não Veterinária, isso não. Das tenistas que integram o “ranking” WTA, há alguma que sonhe
particularmente
em
defrontar?
Não sei… ainda não pensei muito nisso. Mas gostava muito de jogar contra a Maria Sharapova. É o seu ídolo no ténis?
Não, a minha tenista favorita é a Martina Hingis. E a Monica Selles, também. Que torneio mais gostaria de ganhar?
E como é o ambiente entre os
Gostava muito de ganhar no Grand Slam. Qualquer um.
alunos da Academia? Há soli-
Em termos de carreira, onde
dariedade entre vós ou há muita competitividade para ver quem 2008
são
Academia.
O nome “Michelle” é para facili-
Não. Quando nasci, em Portugal era obrigatório ter nome português, e por isso eu não me podia chamar Michelle. O mais parecido que havia com Michelle era Micaela. E essa era a regra: tinha de ser Micaela. Mas eu não gosto muito de Micaela. Prefiro Michelle.
MARÇO, ABRIL
Mas
Sim, gosto muito. E de ir às aulas, também.
canos?
20
de estar com as minhas amigas – como lá na Academia não há só ténis (também há basquetebol, futebol e outros desportos), as minhas amigas acabam por não ser só do ténis.
é o melhor?
Solidariedade, sim. E competitividade, também. Mas eu só me preocupo com o meu trabalho. Gosto
pensa chegar?
Não sei. Não gosto de pensar muito à frente. Mas gostaria de ser número 1 do mundo. Mas não sei: é muito trabalho, é um caminho muito longo.
IDENTIDADE NACIONAL “EU NÃO QUERO NUNCA SER AMERICANA. GOSTO MUITO DE PORTUGAL. ISTO É O MEU PAÍS. NUNCA QUIS SER AMERICANA.”
o outro lado
Z TEXTO JOÃO MESTRE I FOTOGRAFIA PEDRO LOUREIRO
A MÚSICA DO ACASO
MARÇO, ABRIL
Vimo-lo a passar música no Sudoeste tmn e partimos logo do princípio de que também é DJ. Zé explica ´ é que meter discos porque de vez em quando não faz dele um DJ.
2008
é
35
o outro lado
Z TEXTO JOÃO MESTRE I FOTOGRAFIA PEDRO LOUREIRO
A MÚSICA DO ACASO
MARÇO, ABRIL
Vimo-lo a passar música no Sudoeste tmn e partimos logo do princípio de que também é DJ. Zé explica ´ é que meter discos porque de vez em quando não faz dele um DJ.
2008
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o outro lado I zé diogo quintela I
z
ambujeira do Mar, 2 de Agosto de 2008. No palco principal do festival Sudoeste tmn, Manu Chao «incendiava» a plateia, 37.000 almas ao rubro. Entretanto, e apesar da contagiante actuação do franco-latino, começou a notar-se, ainda o concerto ia a meio, alguma movimentação rumo ao palco secundário. O motivo: acabara de entrar em cena a dupla 2 DJs do C******. Isto é: o jornalista Nuno Miguel Guedes e o humorista Zé Diogo Quintela, que, perante uma audiência convicta de que iria assistir a umas quantas tiradas espirituosas ao bom estilo do Gato Fedorento, «defenderam a ideia do não DJ até à exaustão» – citando o Diário de Notícias de dois dias depois. Questionado sobre a sua carreira de
Foram raras as vezes em que o fez que não puramente por amizade. Porquê a Zambujeira, então? «Pelo irrecusável que é, por exemplo, pôr os Wham!, no Sudoeste», responde. «Irrecusável e irresponsável.»
«FORA
DO GATO FEDORENTO sou
uma pessoa normal, faço o mesmo que toda a gente faz quando não trabalha». Perante o convite para esta entrevista, ficou, ao início, de pé atrás. «Não acho que mereça a atenção do público. É muito maçador», acrescenta. A questão, porém, é que, sem fazer grande esforço, Zé Diogo é capaz de improvisar três ou quatro piadas de situação no curto espaço de tempo que dura esta sessão fotográfica. E a verdade é que, até para uma
Bjorn Lomborg. No que respeita a música, afirma que perde «mais tempo a ler fofocas sobre os músicos do que sobre música propriamente dita». Outro dos seus passatempos favoritos é ver televisão. «É isso que o ajuda a relaxar, a esquecer as preocupações do dia-a-dia?», pergunto. «Ajuda a descansar; não ajuda a esquecer nada, porque eu assento tudo em agendas e telemóvel». Por falar em telemóvel: usa «um Nokia qualquer», que «era o mais barato, dentro dos que tinham as funções de que precisava». O seu «favorito do momento», assegura, como quem diz que essa é a menor das suas preocupações. Viro a agulha para outro lado, indagando se se preocupa muito com o
VINIL, CD, MP3 OU CASSETE? «TANTO FAZ.
CONSIGO SEMPRE RISCAR TUDO. APOSTO QUE TAMBÉM CONSIGO RISCAR UM MP3». DJ («se é uma carreira, foi um “flop”», antecipa), Zé Diogo começa por estabelecer um ponto prévio: «eu não sou DJ; sou, quando muito, um “mete discos”; não misturo, não crio “batidas”, ou lá o que é». Dito isto, avança com uma explicação: «foi a maneira que encontrei para ouvir a música de que gosto à noite. Normalmente, ninguém a punha.» E que música é essa? Talvez Beach Boys, Bee Gees, Beatles, Abba, Jeff Buckley, Weezer, Rufus Wainright, Dave Matthews, alguns dos seus artistas favoritos. Este «metimento de discos» não foi um exclusivo do festival alentejano: «pus música algumas vezes, mas sempre em discotecas de amigos».
pergunta simples (ou talvez não tão simples assim) como «quem é o Zé Diogo Quintela quando não está a fazer ninguém rir?», a resposta vem temperada com o sentido de humor que lhe conhecemos: «o Zé Diogo (eu) é a mesma pessoa quando tenta fazer alguém rir (trabalho) ou quando tenta cozinhar (não é trabalho, mas também faz rir)». Cozinha, portanto, não é o seu forte. «E ninguém gosta que eu cozinhe», adianta. Comer, no entanto, é um dos seus “hobbies”. E ler, também. Philip Roth, Evelyn Waughn e Miguel Esteves Cardoso são os seus autores de eleição. E, de momento, vai a meio de “Calma! (Cool it)”, do «ambientalista céptico» dinamarquês
vestuário do dia-a-dia e se se considera uma “fashion victim”. «Acho que a moda é que é a minha vítima.» Acessório favorito, tem? «Uso algumas t-shirts de que gosto até rasgar». Voltando à música. Se fosse para uma ilha deserta com gira-discos e electricidade, Zé Diogo Quintela levaria “Pet Sounds”, dos Beach Boys, “Crash”, da Dave Matthews Band, “Grace”, de Jeff Buckley”, um “best of” dos a-ha e «o disco com as músicas da claque do Sporting». Seria, sem dúvida, um náufrago com um grande sentido de humor, sentado na sua ilha deserta a ouvir «só eu sei porque não fico em casa». Entre o vinil, o CD, o mp3 ou a obsoleta cassete,
o outro lado I zé diogo quintela I
z
ambujeira do Mar, 2 de Agosto de 2008. No palco principal do festival Sudoeste tmn, Manu Chao «incendiava» a plateia, 37.000 almas ao rubro. Entretanto, e apesar da contagiante actuação do franco-latino, começou a notar-se, ainda o concerto ia a meio, alguma movimentação rumo ao palco secundário. O motivo: acabara de entrar em cena a dupla 2 DJs do C******. Isto é: o jornalista Nuno Miguel Guedes e o humorista Zé Diogo Quintela, que, perante uma audiência convicta de que iria assistir a umas quantas tiradas espirituosas ao bom estilo do Gato Fedorento, «defenderam a ideia do não DJ até à exaustão» – citando o Diário de Notícias de dois dias depois. Questionado sobre a sua carreira de
Foram raras as vezes em que o fez que não puramente por amizade. Porquê a Zambujeira, então? «Pelo irrecusável que é, por exemplo, pôr os Wham!, no Sudoeste», responde. «Irrecusável e irresponsável.»
«FORA
DO GATO FEDORENTO sou
uma pessoa normal, faço o mesmo que toda a gente faz quando não trabalha». Perante o convite para esta entrevista, ficou, ao início, de pé atrás. «Não acho que mereça a atenção do público. É muito maçador», acrescenta. A questão, porém, é que, sem fazer grande esforço, Zé Diogo é capaz de improvisar três ou quatro piadas de situação no curto espaço de tempo que dura esta sessão fotográfica. E a verdade é que, até para uma
Bjorn Lomborg. No que respeita a música, afirma que perde «mais tempo a ler fofocas sobre os músicos do que sobre música propriamente dita». Outro dos seus passatempos favoritos é ver televisão. «É isso que o ajuda a relaxar, a esquecer as preocupações do dia-a-dia?», pergunto. «Ajuda a descansar; não ajuda a esquecer nada, porque eu assento tudo em agendas e telemóvel». Por falar em telemóvel: usa «um Nokia qualquer», que «era o mais barato, dentro dos que tinham as funções de que precisava». O seu «favorito do momento», assegura, como quem diz que essa é a menor das suas preocupações. Viro a agulha para outro lado, indagando se se preocupa muito com o
VINIL, CD, MP3 OU CASSETE? «TANTO FAZ.
CONSIGO SEMPRE RISCAR TUDO. APOSTO QUE TAMBÉM CONSIGO RISCAR UM MP3». DJ («se é uma carreira, foi um “flop”», antecipa), Zé Diogo começa por estabelecer um ponto prévio: «eu não sou DJ; sou, quando muito, um “mete discos”; não misturo, não crio “batidas”, ou lá o que é». Dito isto, avança com uma explicação: «foi a maneira que encontrei para ouvir a música de que gosto à noite. Normalmente, ninguém a punha.» E que música é essa? Talvez Beach Boys, Bee Gees, Beatles, Abba, Jeff Buckley, Weezer, Rufus Wainright, Dave Matthews, alguns dos seus artistas favoritos. Este «metimento de discos» não foi um exclusivo do festival alentejano: «pus música algumas vezes, mas sempre em discotecas de amigos».
pergunta simples (ou talvez não tão simples assim) como «quem é o Zé Diogo Quintela quando não está a fazer ninguém rir?», a resposta vem temperada com o sentido de humor que lhe conhecemos: «o Zé Diogo (eu) é a mesma pessoa quando tenta fazer alguém rir (trabalho) ou quando tenta cozinhar (não é trabalho, mas também faz rir)». Cozinha, portanto, não é o seu forte. «E ninguém gosta que eu cozinhe», adianta. Comer, no entanto, é um dos seus “hobbies”. E ler, também. Philip Roth, Evelyn Waughn e Miguel Esteves Cardoso são os seus autores de eleição. E, de momento, vai a meio de “Calma! (Cool it)”, do «ambientalista céptico» dinamarquês
vestuário do dia-a-dia e se se considera uma “fashion victim”. «Acho que a moda é que é a minha vítima.» Acessório favorito, tem? «Uso algumas t-shirts de que gosto até rasgar». Voltando à música. Se fosse para uma ilha deserta com gira-discos e electricidade, Zé Diogo Quintela levaria “Pet Sounds”, dos Beach Boys, “Crash”, da Dave Matthews Band, “Grace”, de Jeff Buckley”, um “best of” dos a-ha e «o disco com as músicas da claque do Sporting». Seria, sem dúvida, um náufrago com um grande sentido de humor, sentado na sua ilha deserta a ouvir «só eu sei porque não fico em casa». Entre o vinil, o CD, o mp3 ou a obsoleta cassete,
o outro lado I zé diogo quintela I
tanto lhe faz: «consigo sempre riscar tudo». E afirma-o orgulhosamente, como se dominasse uma arte perdida: «aposto até que também consigo riscar um mp3». Quando o seu Sporting joga em Alvalade, Zé Diogo é daqueles que não ficam em casa: «tenho lá lugar cativo». E gosta de, todas as semanas, jogar a sua futebolada. Há seis meses, começou também a aprender ténis, outra das suas modalidades favoritas. Até aos 23 anos, foi ainda jogador federado de rugby. Agora só vê.
Z é
A PROPÓSITO... Que tal foi a experiência do Gato Fedorento ao vivo?
Boa. Mas ainda bem que terminou. Qual de vós os quatro é mais engraçado?
São os três muito engraçados, cada qual à sua maneira. Tem um “sketch” favorito?
Gosto muito do «tsunami de informáticos». E do «javardolas que fala francês». Que frase do Gato Fedorento lhe dizem mais quando o encontram na rua?
«Falam, falam…» Que pergunta já não suporta que lhe façam em entrevistas?
Se é angustiante tentar ter piada e não saber se se vai conseguir. Qual é a sua opinião sobre o estado do humor em Portugal?
Está bom, com muita variedade. Se não fosse humorista, o que seria?
Não faço ideia.
MARÇO, ABRIL
2008
Onde é que não se vê daqui a 20 anos?
38
A trabalhar.
EMBORA NÃO SEJA fã da saga Star
Trek, foi no papel de tripulante intergaláctico, ao serviço das campanhas do Meo, que o público português o viu durante este Verão. Porém, longe da ribalta, preparava-se já o aguardado “Zé Carlos”, programa que marca o regresso da trupe Gato Fedorento à SIC. Nestes dias que correm, os quatro humoristas continuam extremamente ocupados, entre reuniões e gravações. Ainda assim, apesar do ritmo de trabalho, Zé Diogo vai conseguindo tirar uns dias de férias. «Bastantes, felizmente.» Não consegue, contudo, despir por completo a pele de humorista e lá acaba por fazer rir quem estiver consigo. «É a mesma coisa que perguntar ao um jornalista se, no seu tempo livre, não faz perguntas». Mesmo no pouco tempo que estivemos com ele, soltou-se a risota por diversas vezes – nossa, entenda-se; porque Zé Diogo consegue lançar a sua piada cirúrgica e manter a cara séria, como se não fosse nada com ele. Falava-se de férias. Gosta de viajar, desde que «para não muito longe ou muito incivilizado». Londres é a sua cidade de eleição – e é lá que fica o seu museu preferido, a National Gallery. Em termos de países, elege os Estados Unidos. O essencial é
que sejam férias de «não fazer nada». «Na praia», por exemplo. E o hotel pode ser um qualquer, «desde que a cama seja grande».
DESCONVERSAS
SOLTAS [TEATRO] Já foi ver o Ricardo
«TRABALHAR
COM os meus ami-
gos.» É aquilo que mais lhe agrada na vida de humorista. As câmaras não o põem nervoso. O que o incomoda mesmo são as «estreias em palco» – recordando os tempos em que o Gato Fedorento andou a fazer espectáculos ao vivo. Mas tudo tem um lado positivo: «o fim dessas estreias», um alívio que aponta como o melhor momento da sua carreira. O palco, depreendo, não será o seu lugar. Até porque nem se considera actor. Ou melhor: vê-se antes como um argumentista que teve de se tornar actor. Os maus momentos, ultrapassa-os «esperando que acabem». E os bons, comemora-os «com um lauto jantar». Confesso que desconhecia essa palavra. Lauto. «Abundante», fiquei a saber. Está-se sempre a aprender… Aliás: «conhecimento razoável da língua» é, para si, uma das duas características essenciais de um humorista. A outra é «bom poder de observação». Uma espreitadela, ainda que superficial, ao trabalho do Gato Fedorento corrobora a fórmula. Será essa, talvez, a receita para o estrondoso sucesso dos seus “sketches” – que, logo no dia seguinte à sua transmissão televisiva, enriquecem o léxico quotidiano de milhares (milhões, talvez) de portugueses com as suas frases-chave. Exemplo clássico disso é a «tranquilidade» de Paulo Bento. Ou «o homem a quem parece que aconteceu não sei quê», que também trouxe novo protagonismo à palavra «incólume». Lá que falam, falam…, é verdade. Mas, mais que não seja, ensinam-nos umas quantas palavras caras, enquanto vão castigando os costumes e, com isso, nos fazem rir.
Araújo Pereira, em “Como fazer coisas com as palavras”?
Sim. O que achou?
Acho que ele fica muito melhor careca. [ARTE] Tem uma corrente ou um artista favorito?
Não tenho artista favorito. [Gosto de] qualquer corrente, desde que seja gira. Mas em princípio prefiro quadros em que pintam dentro das linhas. [GASTRONOMIA] Que tipo de culinária prefere?
A farta. [AUTOMÓVEIS] Que carro usa no seu dia-a-dia?
O meu. Mas ando pouco. [DESAFIOS] Quais os seus principais desafios para o futuro?
Ter dinheiro suficiente para não me preocupar que a crise afecte a minha família. [MODA] Considera-se uma “fashion victim”?
Acho que a moda é que é minha vítima.
o outro lado I zé diogo quintela I
tanto lhe faz: «consigo sempre riscar tudo». E afirma-o orgulhosamente, como se dominasse uma arte perdida: «aposto até que também consigo riscar um mp3». Quando o seu Sporting joga em Alvalade, Zé Diogo é daqueles que não ficam em casa: «tenho lá lugar cativo». E gosta de, todas as semanas, jogar a sua futebolada. Há seis meses, começou também a aprender ténis, outra das suas modalidades favoritas. Até aos 23 anos, foi ainda jogador federado de rugby. Agora só vê.
Z é
A PROPÓSITO... Que tal foi a experiência do Gato Fedorento ao vivo?
Boa. Mas ainda bem que terminou. Qual de vós os quatro é mais engraçado?
São os três muito engraçados, cada qual à sua maneira. Tem um “sketch” favorito?
Gosto muito do «tsunami de informáticos». E do «javardolas que fala francês». Que frase do Gato Fedorento lhe dizem mais quando o encontram na rua?
«Falam, falam…» Que pergunta já não suporta que lhe façam em entrevistas?
Se é angustiante tentar ter piada e não saber se se vai conseguir. Qual é a sua opinião sobre o estado do humor em Portugal?
Está bom, com muita variedade. Se não fosse humorista, o que seria?
Não faço ideia.
MARÇO, ABRIL
2008
Onde é que não se vê daqui a 20 anos?
38
A trabalhar.
EMBORA NÃO SEJA fã da saga Star
Trek, foi no papel de tripulante intergaláctico, ao serviço das campanhas do Meo, que o público português o viu durante este Verão. Porém, longe da ribalta, preparava-se já o aguardado “Zé Carlos”, programa que marca o regresso da trupe Gato Fedorento à SIC. Nestes dias que correm, os quatro humoristas continuam extremamente ocupados, entre reuniões e gravações. Ainda assim, apesar do ritmo de trabalho, Zé Diogo vai conseguindo tirar uns dias de férias. «Bastantes, felizmente.» Não consegue, contudo, despir por completo a pele de humorista e lá acaba por fazer rir quem estiver consigo. «É a mesma coisa que perguntar ao um jornalista se, no seu tempo livre, não faz perguntas». Mesmo no pouco tempo que estivemos com ele, soltou-se a risota por diversas vezes – nossa, entenda-se; porque Zé Diogo consegue lançar a sua piada cirúrgica e manter a cara séria, como se não fosse nada com ele. Falava-se de férias. Gosta de viajar, desde que «para não muito longe ou muito incivilizado». Londres é a sua cidade de eleição – e é lá que fica o seu museu preferido, a National Gallery. Em termos de países, elege os Estados Unidos. O essencial é
que sejam férias de «não fazer nada». «Na praia», por exemplo. E o hotel pode ser um qualquer, «desde que a cama seja grande».
DESCONVERSAS
SOLTAS [TEATRO] Já foi ver o Ricardo
«TRABALHAR
COM os meus ami-
gos.» É aquilo que mais lhe agrada na vida de humorista. As câmaras não o põem nervoso. O que o incomoda mesmo são as «estreias em palco» – recordando os tempos em que o Gato Fedorento andou a fazer espectáculos ao vivo. Mas tudo tem um lado positivo: «o fim dessas estreias», um alívio que aponta como o melhor momento da sua carreira. O palco, depreendo, não será o seu lugar. Até porque nem se considera actor. Ou melhor: vê-se antes como um argumentista que teve de se tornar actor. Os maus momentos, ultrapassa-os «esperando que acabem». E os bons, comemora-os «com um lauto jantar». Confesso que desconhecia essa palavra. Lauto. «Abundante», fiquei a saber. Está-se sempre a aprender… Aliás: «conhecimento razoável da língua» é, para si, uma das duas características essenciais de um humorista. A outra é «bom poder de observação». Uma espreitadela, ainda que superficial, ao trabalho do Gato Fedorento corrobora a fórmula. Será essa, talvez, a receita para o estrondoso sucesso dos seus “sketches” – que, logo no dia seguinte à sua transmissão televisiva, enriquecem o léxico quotidiano de milhares (milhões, talvez) de portugueses com as suas frases-chave. Exemplo clássico disso é a «tranquilidade» de Paulo Bento. Ou «o homem a quem parece que aconteceu não sei quê», que também trouxe novo protagonismo à palavra «incólume». Lá que falam, falam…, é verdade. Mas, mais que não seja, ensinam-nos umas quantas palavras caras, enquanto vão castigando os costumes e, com isso, nos fazem rir.
Araújo Pereira, em “Como fazer coisas com as palavras”?
Sim. O que achou?
Acho que ele fica muito melhor careca. [ARTE] Tem uma corrente ou um artista favorito?
Não tenho artista favorito. [Gosto de] qualquer corrente, desde que seja gira. Mas em princípio prefiro quadros em que pintam dentro das linhas. [GASTRONOMIA] Que tipo de culinária prefere?
A farta. [AUTOMÓVEIS] Que carro usa no seu dia-a-dia?
O meu. Mas ando pouco. [DESAFIOS] Quais os seus principais desafios para o futuro?
Ter dinheiro suficiente para não me preocupar que a crise afecte a minha família. [MODA] Considera-se uma “fashion victim”?
Acho que a moda é que é minha vítima.
traço
I ilustração I
ANDRÉ CARRILHO A ARTE DE TRABALHAR PARA O BONECO Caricaturista, ilustrador, cartunista, realizador de animação, vj, designer gráfico.
As caras de um “self made man” que não alinha em discursos derrotistas.
80
só queria desenhar. Mas nunca acreditou que isso pudesse vir a ser uma profissão a tempo inteiro. «No meu tempo, devia-se tirar um curso, ter um emprego numa empresa, fazer carreira», explica. Entretanto, pára para se interrogar, rindo: «acho que já posso dizer “no meu tempo”…?» André Carrilho nasceu em 1974, na Amadora. Começou por desenhar apenas para os amigos e
família. Divertia-se a caricaturá-los. A dada altura, a mãe muda-se para Macau e o jovem André acompanha-a. É lá que faz o 12º ano. E é lá que, por influência de colegas de escola, se aventura nos meandros da Comunicação Social. «Como é um meio muito pequeno, toda a gente se conhece. Tive a sorte de me darem algum espaço no jornal “Ponto Final”.» Já não se lembra com
exactidão do primeiro desenho que publicou. Tem, porém, a certeza do primeiro que vendeu: «a caricatura do Rocha Vieira, que era, então, o Governador de Macau». Hoje, aos 34 anos, André Carrilho é o ilustrador português com maior visibilidade fora de portas e um dos mais requisitados a nível internacional. Já publicou no “New York Times”, na “Vanity Fair”, na “Harper’s Magazine”
JANEIRO, FEVEREIRO, MARÇO
JANEIRO, FEVEREIRO, MARÇO
2007
AO PRINCÍPIO,
2007
TEXTO JOÃO MESTRE I FOTOGRAFIA PEDRO LOUREIRO
81
traço
I ilustração I
ANDRÉ CARRILHO A ARTE DE TRABALHAR PARA O BONECO Caricaturista, ilustrador, cartunista, realizador de animação, vj, designer gráfico.
As caras de um “self made man” que não alinha em discursos derrotistas.
80
só queria desenhar. Mas nunca acreditou que isso pudesse vir a ser uma profissão a tempo inteiro. «No meu tempo, devia-se tirar um curso, ter um emprego numa empresa, fazer carreira», explica. Entretanto, pára para se interrogar, rindo: «acho que já posso dizer “no meu tempo”…?» André Carrilho nasceu em 1974, na Amadora. Começou por desenhar apenas para os amigos e
família. Divertia-se a caricaturá-los. A dada altura, a mãe muda-se para Macau e o jovem André acompanha-a. É lá que faz o 12º ano. E é lá que, por influência de colegas de escola, se aventura nos meandros da Comunicação Social. «Como é um meio muito pequeno, toda a gente se conhece. Tive a sorte de me darem algum espaço no jornal “Ponto Final”.» Já não se lembra com
exactidão do primeiro desenho que publicou. Tem, porém, a certeza do primeiro que vendeu: «a caricatura do Rocha Vieira, que era, então, o Governador de Macau». Hoje, aos 34 anos, André Carrilho é o ilustrador português com maior visibilidade fora de portas e um dos mais requisitados a nível internacional. Já publicou no “New York Times”, na “Vanity Fair”, na “Harper’s Magazine”
JANEIRO, FEVEREIRO, MARÇO
JANEIRO, FEVEREIRO, MARÇO
2007
AO PRINCÍPIO,
2007
TEXTO JOÃO MESTRE I FOTOGRAFIA PEDRO LOUREIRO
81
traço I ilustração I
“O
JANEIRO, FEVEREIRO, MARÇO
2007
SEGREDO DO MEU SUCESSO? É UMA MISTURA DE OPORTUNIDADE, CONTEXTO E SORTE... E CAPACIDADE DE VER, BOA INTUIÇÃO.”
82
(EUA); na “Independent on Sunday”, na “Word” (Inglaterra); no “El País”, no “El Mundo” (Espanha); no “Courier International” (França); e no “Neue Zürcher Zeitung” (Suíça). Isto para além do “Diário de Notícias”, do “Independente”, do “Público", do “Diário Económico” e do “Expresso”. E de trabalhos de ilustração para diversas editoras, entre elas a nova-iorquina Random House. Surpreendentemente, André confessa-se pouco empenhado na procura de trabalho. «Como já tenho tanto trabalho e não tenho capacidade para fazer mais, interessa-me muito mais ter duas ou três contas fixas e ter tempo livre para me dedicar ao VJing, à animação e a outras coisas que não me dão tanto dinheiro mas que gosto de ir fazendo.» Entre essas «outras coisas», encontra-se a banda desenhada, a sua «primeira paixão». Houve até (quem diria?) um longo período
da sua vida em que desprezava a ilustração. «Sempre achei mais piada a contar histórias», confessa. A ideia, essa, já anda a germiná-la – «tenho na minha cabeça uns cinco álbuns». Porém, é um trabalho moroso: «para fazer um álbum, preciso, pelo menos, de um ano». Não quer, no entanto, «morrer sem lançar um». SENTAMO-NOS
a conversar numa esplanada do Chiado, interrompidos, de tempo a tempo, pela ruidosa passagem de um eléctrico. Pergunto-lhe pelo segredo do seu sucesso. «O segredo do meu sucesso? É uma mistura de oportunidade, contexto e sorte.» À receita acrescenta, depois de uma breve paragem para pensar, «capacidade de ver… tenho uma boa intuição para apanhar as alturas em que é preciso fazer uma jogada». Comecemos pela sorte: em 2001, André Carrilho é convidado por
HONRAS.
traço I ilustração I
“O
JANEIRO, FEVEREIRO, MARÇO
2007
SEGREDO DO MEU SUCESSO? É UMA MISTURA DE OPORTUNIDADE, CONTEXTO E SORTE... E CAPACIDADE DE VER, BOA INTUIÇÃO.”
82
(EUA); na “Independent on Sunday”, na “Word” (Inglaterra); no “El País”, no “El Mundo” (Espanha); no “Courier International” (França); e no “Neue Zürcher Zeitung” (Suíça). Isto para além do “Diário de Notícias”, do “Independente”, do “Público", do “Diário Económico” e do “Expresso”. E de trabalhos de ilustração para diversas editoras, entre elas a nova-iorquina Random House. Surpreendentemente, André confessa-se pouco empenhado na procura de trabalho. «Como já tenho tanto trabalho e não tenho capacidade para fazer mais, interessa-me muito mais ter duas ou três contas fixas e ter tempo livre para me dedicar ao VJing, à animação e a outras coisas que não me dão tanto dinheiro mas que gosto de ir fazendo.» Entre essas «outras coisas», encontra-se a banda desenhada, a sua «primeira paixão». Houve até (quem diria?) um longo período
da sua vida em que desprezava a ilustração. «Sempre achei mais piada a contar histórias», confessa. A ideia, essa, já anda a germiná-la – «tenho na minha cabeça uns cinco álbuns». Porém, é um trabalho moroso: «para fazer um álbum, preciso, pelo menos, de um ano». Não quer, no entanto, «morrer sem lançar um». SENTAMO-NOS
a conversar numa esplanada do Chiado, interrompidos, de tempo a tempo, pela ruidosa passagem de um eléctrico. Pergunto-lhe pelo segredo do seu sucesso. «O segredo do meu sucesso? É uma mistura de oportunidade, contexto e sorte.» À receita acrescenta, depois de uma breve paragem para pensar, «capacidade de ver… tenho uma boa intuição para apanhar as alturas em que é preciso fazer uma jogada». Comecemos pela sorte: em 2001, André Carrilho é convidado por
HONRAS.
Jorge Silva, director de arte do “Público”, a colaborar no suplemento “Mil Folhas”. Sem o saber, é inscrito pelo próprio Jorge Silva no concurso da Society for News Design. Ganhou o Prémio de Ouro pelo seu portefólio individual. Isso bastou para despoletar a carreira internacional do jovem ilustrador. «Quando o Jorge Silva foi lá para receber o prémio…» Interrompo-o: «o André não foi receber o prémio?». A resposta: «não tinha
suplemento de domingo do “The Independent”, cuja directora gráfica integrava o júri do concurso. Recordo-me de ter lido, numa citação do próprio André, que, se não tivesse começado em Portugal, «nunca teria chegado aos jornais internacionais». Soa quase a contra-senso, já que o discurso habitual é precisamente o inverso. Não resisto a pedir explicações. «Em Portugal, não estamos no centro de nada, estamos equidistantes de tudo o resto».
camente aquilo que já viram.» Essa liberdade teve, porém, de ser conquistada: «ao publicar lá fora, ganhei alguma tolerância cá». Não podia ser só facilidades… era ir para Arquitectura. «Não conseguia arranjar profissões que fossem de desenhar» e a Arquitectura acabava por ser uma espécie de mal menor, «era a coisa mais próxima». Entretanto, repara que alguns dos caricaturistas que mais
A SUA PRIMEIRA
PORTUGAL, HOUVE TRÊS CRIADORES QUE FORAM SEMINAIS E ESTÃO AO MAIS ALTO NÍVEL MUNDIAL: O RAFAEL BORDALO PINHEIRO, O STUART CARVALHAIS E O ABEL MANTA.” Completa, depois da passagem de um eléctrico: «temos referências equidistantes de tudo: dos ingleses, dos franceses, dos americanos, dos japoneses». Nos Estados Unidos, por exemplo, «as pessoas são muito mais formatadas, há especializações para tudo», ao passo que, em Portugal, «somos os “desenrascas”, fazemos de tudo um pouco». E reforça: «acho que, se não fosse português, nunca tinha chegado a trabalhar para os sítios onde trabalho». Mas há mais: como em Portugal «havia pouca gente a fazer isto, uma pessoa tem possibilidade de progressão no próprio meio». Outra vantagem de trabalhar cá: «tenho mais liberdade de movimentos. Lá fora, querem especifi-
admirava trabalhavam em publicidade ou design. Descobriu, então, o Design Gráfico, «um curso relativamente recente» que frequentou, regressado de Macau, no Instituto Superior de Belas Artes de Lisboa. No meio tempo, foi fazendo alguns trabalhos de ilustração. E abriu um “atelier” com o ilustrador/designer Luís Lázaro. Apercebem-se, porém, de que estão «mais talhados para a criação pessoal, pura e dura». E aqui entra a tal boa intuição de que André falava: «comecei a descobrir que o meu talento específico de caricatura não era coisa fácil de encontrar e que era valorizado no mercado». Pergunto-lhe quando é que se apercebeu de que iria ser essa a sua profissão. A resposta,
JANEIRO, FEVEREIRO, MARÇO
dinheiro para ir lá, porque, além da viagem e da estadia em Nova Iorque, tinha de pagar 400 dólares para entrar na cerimónia». Valeu-lhe a ida de Jorge Silva. «Dei-lhe um portefólio para ele entregar a quem achasse mais adequado.» Entregou-o ao “New York Times”. Passados três meses, André é convidado a desenhar para o suplemento “Book Review”, onde acaba por fazer algumas capas. Entrava, assim, para um dos espaços de ilustração mais cobiçados dos Estados Unidos. «A partir do momento em que se publica num sítio desses, há muita gente que repara em nós». E assim aconteceu, de facto. Em simultâneo, Carrilho é exposto ao “Independent on Sunday”,
2007
“EM
83
Jorge Silva, director de arte do “Público”, a colaborar no suplemento “Mil Folhas”. Sem o saber, é inscrito pelo próprio Jorge Silva no concurso da Society for News Design. Ganhou o Prémio de Ouro pelo seu portefólio individual. Isso bastou para despoletar a carreira internacional do jovem ilustrador. «Quando o Jorge Silva foi lá para receber o prémio…» Interrompo-o: «o André não foi receber o prémio?». A resposta: «não tinha
suplemento de domingo do “The Independent”, cuja directora gráfica integrava o júri do concurso. Recordo-me de ter lido, numa citação do próprio André, que, se não tivesse começado em Portugal, «nunca teria chegado aos jornais internacionais». Soa quase a contra-senso, já que o discurso habitual é precisamente o inverso. Não resisto a pedir explicações. «Em Portugal, não estamos no centro de nada, estamos equidistantes de tudo o resto».
camente aquilo que já viram.» Essa liberdade teve, porém, de ser conquistada: «ao publicar lá fora, ganhei alguma tolerância cá». Não podia ser só facilidades… era ir para Arquitectura. «Não conseguia arranjar profissões que fossem de desenhar» e a Arquitectura acabava por ser uma espécie de mal menor, «era a coisa mais próxima». Entretanto, repara que alguns dos caricaturistas que mais
A SUA PRIMEIRA
PORTUGAL, HOUVE TRÊS CRIADORES QUE FORAM SEMINAIS E ESTÃO AO MAIS ALTO NÍVEL MUNDIAL: O RAFAEL BORDALO PINHEIRO, O STUART CARVALHAIS E O ABEL MANTA.” Completa, depois da passagem de um eléctrico: «temos referências equidistantes de tudo: dos ingleses, dos franceses, dos americanos, dos japoneses». Nos Estados Unidos, por exemplo, «as pessoas são muito mais formatadas, há especializações para tudo», ao passo que, em Portugal, «somos os “desenrascas”, fazemos de tudo um pouco». E reforça: «acho que, se não fosse português, nunca tinha chegado a trabalhar para os sítios onde trabalho». Mas há mais: como em Portugal «havia pouca gente a fazer isto, uma pessoa tem possibilidade de progressão no próprio meio». Outra vantagem de trabalhar cá: «tenho mais liberdade de movimentos. Lá fora, querem especifi-
admirava trabalhavam em publicidade ou design. Descobriu, então, o Design Gráfico, «um curso relativamente recente» que frequentou, regressado de Macau, no Instituto Superior de Belas Artes de Lisboa. No meio tempo, foi fazendo alguns trabalhos de ilustração. E abriu um “atelier” com o ilustrador/designer Luís Lázaro. Apercebem-se, porém, de que estão «mais talhados para a criação pessoal, pura e dura». E aqui entra a tal boa intuição de que André falava: «comecei a descobrir que o meu talento específico de caricatura não era coisa fácil de encontrar e que era valorizado no mercado». Pergunto-lhe quando é que se apercebeu de que iria ser essa a sua profissão. A resposta,
JANEIRO, FEVEREIRO, MARÇO
dinheiro para ir lá, porque, além da viagem e da estadia em Nova Iorque, tinha de pagar 400 dólares para entrar na cerimónia». Valeu-lhe a ida de Jorge Silva. «Dei-lhe um portefólio para ele entregar a quem achasse mais adequado.» Entregou-o ao “New York Times”. Passados três meses, André é convidado a desenhar para o suplemento “Book Review”, onde acaba por fazer algumas capas. Entrava, assim, para um dos espaços de ilustração mais cobiçados dos Estados Unidos. «A partir do momento em que se publica num sítio desses, há muita gente que repara em nós». E assim aconteceu, de facto. Em simultâneo, Carrilho é exposto ao “Independent on Sunday”,
2007
“EM
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vem dos próprios temas que lhe são dados. E também do cinema, da literatura, da pintura, de tudo excepto a própria ilustração. «Um mestre de animação russo dizia aos alunos que se deve ir buscar inspiração a todas as outras áreas excepto àquela onde a gente trabalha.» As referências do mundo da ilustração, contudo, são muitas. Os seus ídolos são, em boa parte, portugueses. «Não é nacionalismo bacoco; ter no nosso meio pessoas que fazem coisas que temos em alta conta é muito importante.» Na hora de eleger a sua maior referência, aponta Abel Manta, «porque quando conhecemos alguém com aquela qualidade e vemos que é português, também nos apercebemos de que é possível fazermos qualquer coisa.» Adiantando um pouco mais a conversa, André acaba por apontar uma tríade de “mestres”: «em Portugal, houve três criadores que foram seminais e estão ao mais alto nível mundial: o Rafael Bordalo Pinheiro, o Stuart Carvalhais e o Abel Manta». Depois refere também os contemporâneos (e seus amigos) Nuno Saraiva, Luís Lázaro e Cristina Sampaio. E recorda o tempo em que coleccionava as caricaturas de António (“Expresso”), Vasco (“Público”) e Cid (“Independente”). Acrescenta ainda que «temos muitos mais que também foram muito bons, mas não os conhecemos, porque pouca gente presta atenção a estas coisas». É tudo «uma questão de cultura, de educação, das próprias escolas», advoga. E, aí, assume-se «muito crítico das universidades e do
JANEIRO, FEVEREIRO, MARÇO
2007
A INSPIRAÇÃO
84
ensino das artes em Portugal», que classifica de «um bocado deficiente». Adiante-se que o curso de Design Gráfico nunca chegou a ser terminado. «Desisti… naquela altura, fazer ilustração e usar um computador era sacrilégio», graceja. Peço-lhe, sem sucesso, para definir o seu traço. «Não faço ideia» é a primeira resposta. Passado outro eléctrico, elabora um pouco – «procuro dar alguma noção de fluidez e movimento a desenhos estáticos». Ainda tenta avançar a descrição – «se calhar, procuro fazer um realismo abstracto». Entretanto, recua – «mas não definiria assim» – e ri-se. «Não sei, não sei como definir.» Se lhe perguntarmos quem é a sua «vítima» favorita, responde, com pena, que gostaria que António Guterres ainda estivesse em cena. Salienta, porém, que o que mais gosta é de caricaturar escritores. «Se eu tiver de fazer a caricatura de uma modelo», exemplifica, «só tenho acesso a fotografias normalizadas, onde há um esforço por eliminar defeitos e irregularidades – e é nisso que a gente pega, as especificidades». Houve até uma vez («uma única vez», garante) em que, após sete desenhos, sete tentativas, teve de dizer ao cliente que desistia. «Era uma cara normal», justifica-se - «normalmente, são pessoas bonitas, que não têm nada de assimétrico». É por isso que prefere os escritores, «porque temos acesso a fotografias que são “mais” eles, são mais “as pessoas”». mais alto da sua carreira, aponta em tom jocoso, foi quando um trabalho seu chegou ao Parlamento. «Ainda ontem, estava a arrumar o “atelier” e encontrei O PONTO
MORADAS. André nasceu a 26/07/1974, na Amadora. Aos 10 anos, mudou-se para Lisboa, onde estudou até ao 11º ano. Entretanto, a sua mãe, arquitecta do IGAPHE, é transferida para Macau. É lá que faz o 12º ano. Passado um ano, regressa a Lisboa (onde reside actualmente) e ingressa no curso de Design Gráfico nas Belas Artes. Que não chega a concluir, por descontentamento. EM PAPEL. Para além dos trabalhos para jornais e revistas, publicados em Inglaterra, EUA, Espanha, Suíça e França, ilustrou também diversos livros, tanto em Portugal como no estrangeiro. Em 2007, lançou, em nome próprio, a colectânea “O Rosto do Alpinista” e ilustrou o livro “O Vírus da Vida”, do músico/escritor JP Simões. «Gosto mais do objecto livro, porque o livro fica, enquanto que a ilustração em si é efémera», afirma.
OUTRAS ARTES. Em 2007, estreia-se na animação, com a curta “Jantar em Lisboa”, aplaudida em festivais de todo o mundo. Actualmente, sonha com a realização de uma longa-metragem «capaz de rivalizar com o que de melhor se faz na animação». E sonha também em lançar um álbum de banda desenhada. Não será, porém, a sua primeira aventura na 9ª Arte: em 2003, lançou a colectânea de histórias curtas “Em Lume Brando”.
essa imagem: o Telmo Correia a segurar um desenho meu na Assembleia da República e a dizer que era um escândalo». Que desenho era esse? «Quando o Bagão Félix estava a reformular a Lei do Trabalho, fi-lo no corpo de um cão, aos pés de um patrão», sendo que «o patrão tinha charuto e era gordo». «A grande polémica», conta, claramente divertido com a situação, «foi que os patrões não eram gordos nem fumavam charuto, mas o facto é que perceberam que era um patrão». Passado mais um eléctrico, continua: «quando se faz uma imagem dessas, há que lidar com clichés colectivos». E a censura, André? «Não gosto de falar de censura.» Ou melhor, é mais «uma questão de gosto» do que «uma questão de moral ou ética». «É preciso testar», explica. «Testo os limites daquilo que posso fazer: a experiência está em fazer um desenho que seja aceite mas que seja pertinente e vá ao fundo da questão.» Um «jogo» que acaba por considerar divertido. «Até gosto de trabalhar dentro de um espaço confinado», afirma, sublinhando que isso o obriga a «usar alguma agilidade para fazer um desenho interessante». Enquanto trabalha no seu “atelier”, em Lisboa, André Carrilho convive com dezenas de desenhos de sua autoria, que preenchem as paredes e restantes espaços livres. «São a minha porta, o meu meio de comunicação para o mundo exterior», afirma. «Sou uma pessoa introvertida, um bocado tímida, e assim convivo com a ideia que as pessoas têm de mim e do meu trabalho.» O que, na sua opinião, acaba por ser uma forma de se conhecer melhor a si próprio. André Carrilho, apresento-lhe o André Carrilho.
“ACHO QUE, SE NÃO FOSSE PORTUGUÊS, NUNCA TINHA CHEGADO A TRABALHAR PARA OS SÍTIOS ONDE TRABALHO”
JANEIRO, FEVEREIRO, MARÇO
rida: «quando vi que estava a ganhar mais dinheiro com a ilustração do que com o design».
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vem dos próprios temas que lhe são dados. E também do cinema, da literatura, da pintura, de tudo excepto a própria ilustração. «Um mestre de animação russo dizia aos alunos que se deve ir buscar inspiração a todas as outras áreas excepto àquela onde a gente trabalha.» As referências do mundo da ilustração, contudo, são muitas. Os seus ídolos são, em boa parte, portugueses. «Não é nacionalismo bacoco; ter no nosso meio pessoas que fazem coisas que temos em alta conta é muito importante.» Na hora de eleger a sua maior referência, aponta Abel Manta, «porque quando conhecemos alguém com aquela qualidade e vemos que é português, também nos apercebemos de que é possível fazermos qualquer coisa.» Adiantando um pouco mais a conversa, André acaba por apontar uma tríade de “mestres”: «em Portugal, houve três criadores que foram seminais e estão ao mais alto nível mundial: o Rafael Bordalo Pinheiro, o Stuart Carvalhais e o Abel Manta». Depois refere também os contemporâneos (e seus amigos) Nuno Saraiva, Luís Lázaro e Cristina Sampaio. E recorda o tempo em que coleccionava as caricaturas de António (“Expresso”), Vasco (“Público”) e Cid (“Independente”). Acrescenta ainda que «temos muitos mais que também foram muito bons, mas não os conhecemos, porque pouca gente presta atenção a estas coisas». É tudo «uma questão de cultura, de educação, das próprias escolas», advoga. E, aí, assume-se «muito crítico das universidades e do
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ensino das artes em Portugal», que classifica de «um bocado deficiente». Adiante-se que o curso de Design Gráfico nunca chegou a ser terminado. «Desisti… naquela altura, fazer ilustração e usar um computador era sacrilégio», graceja. Peço-lhe, sem sucesso, para definir o seu traço. «Não faço ideia» é a primeira resposta. Passado outro eléctrico, elabora um pouco – «procuro dar alguma noção de fluidez e movimento a desenhos estáticos». Ainda tenta avançar a descrição – «se calhar, procuro fazer um realismo abstracto». Entretanto, recua – «mas não definiria assim» – e ri-se. «Não sei, não sei como definir.» Se lhe perguntarmos quem é a sua «vítima» favorita, responde, com pena, que gostaria que António Guterres ainda estivesse em cena. Salienta, porém, que o que mais gosta é de caricaturar escritores. «Se eu tiver de fazer a caricatura de uma modelo», exemplifica, «só tenho acesso a fotografias normalizadas, onde há um esforço por eliminar defeitos e irregularidades – e é nisso que a gente pega, as especificidades». Houve até uma vez («uma única vez», garante) em que, após sete desenhos, sete tentativas, teve de dizer ao cliente que desistia. «Era uma cara normal», justifica-se - «normalmente, são pessoas bonitas, que não têm nada de assimétrico». É por isso que prefere os escritores, «porque temos acesso a fotografias que são “mais” eles, são mais “as pessoas”». mais alto da sua carreira, aponta em tom jocoso, foi quando um trabalho seu chegou ao Parlamento. «Ainda ontem, estava a arrumar o “atelier” e encontrei O PONTO
MORADAS. André nasceu a 26/07/1974, na Amadora. Aos 10 anos, mudou-se para Lisboa, onde estudou até ao 11º ano. Entretanto, a sua mãe, arquitecta do IGAPHE, é transferida para Macau. É lá que faz o 12º ano. Passado um ano, regressa a Lisboa (onde reside actualmente) e ingressa no curso de Design Gráfico nas Belas Artes. Que não chega a concluir, por descontentamento. EM PAPEL. Para além dos trabalhos para jornais e revistas, publicados em Inglaterra, EUA, Espanha, Suíça e França, ilustrou também diversos livros, tanto em Portugal como no estrangeiro. Em 2007, lançou, em nome próprio, a colectânea “O Rosto do Alpinista” e ilustrou o livro “O Vírus da Vida”, do músico/escritor JP Simões. «Gosto mais do objecto livro, porque o livro fica, enquanto que a ilustração em si é efémera», afirma.
OUTRAS ARTES. Em 2007, estreia-se na animação, com a curta “Jantar em Lisboa”, aplaudida em festivais de todo o mundo. Actualmente, sonha com a realização de uma longa-metragem «capaz de rivalizar com o que de melhor se faz na animação». E sonha também em lançar um álbum de banda desenhada. Não será, porém, a sua primeira aventura na 9ª Arte: em 2003, lançou a colectânea de histórias curtas “Em Lume Brando”.
essa imagem: o Telmo Correia a segurar um desenho meu na Assembleia da República e a dizer que era um escândalo». Que desenho era esse? «Quando o Bagão Félix estava a reformular a Lei do Trabalho, fi-lo no corpo de um cão, aos pés de um patrão», sendo que «o patrão tinha charuto e era gordo». «A grande polémica», conta, claramente divertido com a situação, «foi que os patrões não eram gordos nem fumavam charuto, mas o facto é que perceberam que era um patrão». Passado mais um eléctrico, continua: «quando se faz uma imagem dessas, há que lidar com clichés colectivos». E a censura, André? «Não gosto de falar de censura.» Ou melhor, é mais «uma questão de gosto» do que «uma questão de moral ou ética». «É preciso testar», explica. «Testo os limites daquilo que posso fazer: a experiência está em fazer um desenho que seja aceite mas que seja pertinente e vá ao fundo da questão.» Um «jogo» que acaba por considerar divertido. «Até gosto de trabalhar dentro de um espaço confinado», afirma, sublinhando que isso o obriga a «usar alguma agilidade para fazer um desenho interessante». Enquanto trabalha no seu “atelier”, em Lisboa, André Carrilho convive com dezenas de desenhos de sua autoria, que preenchem as paredes e restantes espaços livres. «São a minha porta, o meu meio de comunicação para o mundo exterior», afirma. «Sou uma pessoa introvertida, um bocado tímida, e assim convivo com a ideia que as pessoas têm de mim e do meu trabalho.» O que, na sua opinião, acaba por ser uma forma de se conhecer melhor a si próprio. André Carrilho, apresento-lhe o André Carrilho.
“ACHO QUE, SE NÃO FOSSE PORTUGUÊS, NUNCA TINHA CHEGADO A TRABALHAR PARA OS SÍTIOS ONDE TRABALHO”
JANEIRO, FEVEREIRO, MARÇO
rida: «quando vi que estava a ganhar mais dinheiro com a ilustração do que com o design».
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traço I ilustração I
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directo
I música I
MALLU A MENINA DOS 7 INSTRUMENTOS
CHEGOU, VIU E VENCEU: EM MENOS DE UM ANO, PÔS O BRASIL A TRAUTEAR AS SUAS CANÇÕES. EM JANEIRO, ESTREOU-SE EM PORTUGAL.
TEXTO JOÃO MESTRE I FOTOGRAFIA PAULO SOUSA COELHO
16
2008 FEVEREIRO, MARÇO
FEVEREIRO, MARÇO
2008
M
aria Luiza é uma tímida adolescente paulistana. Quando veste a pele de Mallu Magalhães, vence a timidez e pisa o palco com a confiança e a naturalidade de quem o faz há muito tempo. Apesar dos 16 anos, não liga a fenómenos de “teenage pop” e busca inspiração junto de clássicos mais “adultos”, como Bob Dylan, Johnny Cash, Neil Young e Woody Guthrie. Quando fez 15 anos, pediu aos pais e familiares para trocarem a festa e os presentes por dinheiro, que usou para pagar o estúdio onde gravou as primeiras quatro músicas, disponibilizando-as de imediato na Internet, gratuitamente. Menos de um ano depois, a sua página no MySpace contabilizava mais de dois milhões de visitas. A sua voz tomou conta das rádios, das salas de espectáculos e das televisões brasileiras. E a Vivo (operadora telefónica do Grupo PT no Brasil) «adoptou-a» como figura de cartaz das suas campanhas. Agora, pela mão da tmn, prepara-se para tomar Portugal de assalto. Numa chuvosa manhã de Inverno, horas antes da sua estreia em palcos portugueses, recebeu-nos no seu quarto de hotel e falou de música, de sucesso e das chatices da adolescência.
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directo
I música I
MALLU A MENINA DOS 7 INSTRUMENTOS
CHEGOU, VIU E VENCEU: EM MENOS DE UM ANO, PÔS O BRASIL A TRAUTEAR AS SUAS CANÇÕES. EM JANEIRO, ESTREOU-SE EM PORTUGAL.
TEXTO JOÃO MESTRE I FOTOGRAFIA PAULO SOUSA COELHO
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2008 FEVEREIRO, MARÇO
FEVEREIRO, MARÇO
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aria Luiza é uma tímida adolescente paulistana. Quando veste a pele de Mallu Magalhães, vence a timidez e pisa o palco com a confiança e a naturalidade de quem o faz há muito tempo. Apesar dos 16 anos, não liga a fenómenos de “teenage pop” e busca inspiração junto de clássicos mais “adultos”, como Bob Dylan, Johnny Cash, Neil Young e Woody Guthrie. Quando fez 15 anos, pediu aos pais e familiares para trocarem a festa e os presentes por dinheiro, que usou para pagar o estúdio onde gravou as primeiras quatro músicas, disponibilizando-as de imediato na Internet, gratuitamente. Menos de um ano depois, a sua página no MySpace contabilizava mais de dois milhões de visitas. A sua voz tomou conta das rádios, das salas de espectáculos e das televisões brasileiras. E a Vivo (operadora telefónica do Grupo PT no Brasil) «adoptou-a» como figura de cartaz das suas campanhas. Agora, pela mão da tmn, prepara-se para tomar Portugal de assalto. Numa chuvosa manhã de Inverno, horas antes da sua estreia em palcos portugueses, recebeu-nos no seu quarto de hotel e falou de música, de sucesso e das chatices da adolescência.
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directo I música I
ARTISTA POR CONTA PRÓPRIA
“NENHUMA DAS PROPOSTAS [DAS EDITORAS] NOS DAVA LIBERDADE DE MUDAR E UTILIZAR A MÚSICA DO JEITO QUE A GENTE QUERIA. POR ISSO,OPTÁMOS POR UMA INDEPENDENTE.”
to”. Em que é que consistem
FEVEREIRO, MARÇO
2008
esses 5% de chatice?
18
São os desentendimentos que tenho com os meus pais. Se eles fossem uns pais maldosos que odeiam os filhos, aí seria muito mais «fácil». Mas eu tenho muita sorte: tenho uns pais maravilhosos, que querem mesmo o meu bem. E ralham comigo. Então o meu problema são esses desentendimentos. Eu amo muito eles e deixá-los tristes comigo me fere fundo, sabe? E as obrigações chatas, como dar
entrevistas,
não
fazem
parte desses 5%?
Pois é… O chato é você querer sair,
Ajuda a pensar em coisas que não costumas pensar?
Exactamente! Há entrevistas que são todas preparadas. E aí você vai falando, falando e as entrevistas são todas iguais, só as palavras mudam. Que pergunta já não suportas?
Tem umas horríveis. Fora da vida pessoal, namoros e isso, basicamente são as perguntas sobre escola: «como é na escola?», «como você se relaciona com o pessoal da sua idade?».
1992. Maria Luiza de Arruda Botelho Pereira de Magalhães nasce a 29 de Agosto, em São Paulo, filha de um engenheiro apaixonado por rock clássico e de uma paisagista.
Lidar com o sucesso é tão difícil como esperavas?
Eu nunca esperei nada. Portanto, tudo é natural. Não custa, tirando os tais 5% de chatice?
Exacto. Choraste quando te disseram
2001. Recebe a sua
que eras um sucesso passa-
primeira guitarra. Passados dois anos, resolve começar a ter aulas – «tive uma professora incrível, me deu muito carinho», recorda. No ano seguinte, começa a compor as suas primeiras músicas. Tinha 12 anos.
geiro. Tens medo que o sucesso vá embora tal como chegou?
Eu tinha, agora não tenho mais, não. Chorei, mas não passou de uma semana… Música é a coisa que mais quero fazer na vida. O que mais pode acontecer é a gente ter fases que não são tão bem-sucedidas. Mas a gente luta e conquista tudo de novo.
2008
do sucesso é “legal” e 5% é “cha-
viajar… Mas tudo dá para você transformar. Estou aprendendo tanto, com esse tipo de perguntas e já tive várias alegrias. Faz bem, mesmo.
FEVEREIRO, MARÇO
Segundo os teus cálculos, 95%
19
directo I música I
ARTISTA POR CONTA PRÓPRIA
“NENHUMA DAS PROPOSTAS [DAS EDITORAS] NOS DAVA LIBERDADE DE MUDAR E UTILIZAR A MÚSICA DO JEITO QUE A GENTE QUERIA. POR ISSO,OPTÁMOS POR UMA INDEPENDENTE.”
to”. Em que é que consistem
FEVEREIRO, MARÇO
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esses 5% de chatice?
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São os desentendimentos que tenho com os meus pais. Se eles fossem uns pais maldosos que odeiam os filhos, aí seria muito mais «fácil». Mas eu tenho muita sorte: tenho uns pais maravilhosos, que querem mesmo o meu bem. E ralham comigo. Então o meu problema são esses desentendimentos. Eu amo muito eles e deixá-los tristes comigo me fere fundo, sabe? E as obrigações chatas, como dar
entrevistas,
não
fazem
parte desses 5%?
Pois é… O chato é você querer sair,
Ajuda a pensar em coisas que não costumas pensar?
Exactamente! Há entrevistas que são todas preparadas. E aí você vai falando, falando e as entrevistas são todas iguais, só as palavras mudam. Que pergunta já não suportas?
Tem umas horríveis. Fora da vida pessoal, namoros e isso, basicamente são as perguntas sobre escola: «como é na escola?», «como você se relaciona com o pessoal da sua idade?».
1992. Maria Luiza de Arruda Botelho Pereira de Magalhães nasce a 29 de Agosto, em São Paulo, filha de um engenheiro apaixonado por rock clássico e de uma paisagista.
Lidar com o sucesso é tão difícil como esperavas?
Eu nunca esperei nada. Portanto, tudo é natural. Não custa, tirando os tais 5% de chatice?
Exacto. Choraste quando te disseram
2001. Recebe a sua
que eras um sucesso passa-
primeira guitarra. Passados dois anos, resolve começar a ter aulas – «tive uma professora incrível, me deu muito carinho», recorda. No ano seguinte, começa a compor as suas primeiras músicas. Tinha 12 anos.
geiro. Tens medo que o sucesso vá embora tal como chegou?
Eu tinha, agora não tenho mais, não. Chorei, mas não passou de uma semana… Música é a coisa que mais quero fazer na vida. O que mais pode acontecer é a gente ter fases que não são tão bem-sucedidas. Mas a gente luta e conquista tudo de novo.
2008
do sucesso é “legal” e 5% é “cha-
viajar… Mas tudo dá para você transformar. Estou aprendendo tanto, com esse tipo de perguntas e já tive várias alegrias. Faz bem, mesmo.
FEVEREIRO, MARÇO
Segundo os teus cálculos, 95%
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directo I música I
teus instrumentos: a guitarra é o Lobster Lester, o piano chama-se Lorival… De onde vêm os nomes?
Vêm de tudo. Vem da cara, da energia que ele traz. Os instrumentos têm uma cara?
Sim. Eu acho que quando a gente define algo, automaticamente cria uma cara. Qual é a tua canção favorita?
“A Rita” [de Chico Buarque]… ah, não! É “Esse Cara” [de Caetano Veloso]. Tem um disco que é o “Caetano e Chico” – você tem de ouvir, cara, é muito bom. É o Caetano Veloso e o Chico Buarque, num “show” ao vivo. E tem uma parte em que o Caetano canta “A Rita”, junto com “Esse Cara”. São as melhores músicas. No entanto, cantas em inglês. Não é muito comum ver artis-
Neste momento, já tens mais
Disseste numa entrevista que
de 3 milhões de visitas no teu
este disco não é tão bom como
MySpace. Como conseguiste
os próximos. Já tens material
vingar numa rede tão concorrida?
Acho que devo isso às pessoas, mesmo.
A capa do teu disco tem um leãozinho. É um piscar de olho ao
Afinal quantos instrumentos
Entre o MP3, o CD e o LP, qual deles preferes?
O CD ou o LP. O MP3 é um meio muito prático que permite difundir mais facilmente. Mas eu preciso da obra inteira. Eu ouço mais em CD, porque posso pegar, guardar na bolsa, é muito bom. Ou, se tiver a oportunidade, LP.
FEVEREIRO, MARÇO
2008
“Leãozinho” do Caetano Veloso?
20
para um segundo disco?
Sim. Já está pronto, só falta gravar. Penso começar antes de Julho. Estou a pensar nos produtores. O Mário Caldato foi um óptimo produtor e o primeiro disco ficou perfeito em relação àquela época. Agora tenho muitas coisas novas, músicas em português também, músicas em inglês, novos instrumentos, o ukelele, enfim, várias coisas que quero mostrar.
Também. Acho que tudo faz sentido. Porque… está no nosso inconsciente, na nossa cabeça e, enfim, contribui e faz o conceito inteiro. O meu coração, pelo menos, associa claramente.
tocas?
Tocar, tocar, toco só violão, mesmo. O resto, vou brincando: banjo, ukelele, gaita, piano, acordeão, escaleta [instrumento de sopro com teclas semelhantes às de um piano]… E a voz.
anos, manda a tradição (no Brasil) que se faça uma grande festa em honra da aniversariante. Mallu dispensou a pompa da ocasião e pediu os seus presentes em dinheiro. Com a quantia oferecida, alugou um estúdio, onde gravou os seus primeiros quatro temas. Disponibilizou-os na Internet, na sua página do MySpace.
tas brasileiros a fazê-lo…
Eu sempre tive muita fluência com essa língua. O Dylan, o Cash, o Guthrie, o Neil Young, os Beatles… escreveram em inglês. E acho que a gente vai aprendendo a falar ouvindo. É para ti mais fácil cantares em inglês?
[silêncio] Não. Acho que «facilidade», pelo menos para mim, não tem. Essa coisa de escolher a língua não é por ser fácil ou difícil. Vem junto: a letra, a sonoridade. Daí que ela saia em português ou em inglês. Eu não procuro uma média de X músicas em inglês, X em português… Como preferes que qualifiquem a tua música – folk, rock acústico ou MPB?
Amor. É um estilo musical?
É um estilo de vida. Não só musical.
2008. A sua popularidade na Internet dispara: em Janeiro já tem 40 mil visitas. Em Fevereiro, 200 mil. Um mês depois, com as idas à televisão (Globo e MTV incluídas), o número duplica. Em Abril, participa no programa de Jô Soares e deslumbra – tanto a audiência como o anfitrião. A meio do ano, acumulara mais de um milhão de visitas no seu MySpace. O álbum de estreia é lançado em Outubro – inicialmente disponível apenas para telemóvel, em parceria com a operadora Vivo. Em Novembro, chega às lojas. O ano termina com o registo do seu MySpace a ultrapassar os dois milhões de visitas.
2009. Mallu atravessa o Atlântico, pela primeira vez na vida, para a estreia em solo português, com dois “showcases” inseridos nos programas “Sensações t” e “Guest List tmn” – um no Music Box (Lisboa) e outro no palco da bluestore tmn (Porto). A avaliar pela recepção do público, prevê-se um regresso para breve…
2008
“SÓ FALTA GRAVAR. PENSO COMEÇAR ANTES DE JULHO. TENHO MUITAS COISAS NOVAS, NOVOS INSTRUMENTOS, O UKELELE, VÁRIAS COISAS QUE QUERO MOSTRAR.”
Tens o hábito de baptizar os
2007. Ao completar 15
FEVEREIRO, MARÇO
SEGUNDO DISCO JÁ NA FORJA
Qual é o teu favorito?
Não tenho. Acho que eles são complementares.
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teus instrumentos: a guitarra é o Lobster Lester, o piano chama-se Lorival… De onde vêm os nomes?
Vêm de tudo. Vem da cara, da energia que ele traz. Os instrumentos têm uma cara?
Sim. Eu acho que quando a gente define algo, automaticamente cria uma cara. Qual é a tua canção favorita?
“A Rita” [de Chico Buarque]… ah, não! É “Esse Cara” [de Caetano Veloso]. Tem um disco que é o “Caetano e Chico” – você tem de ouvir, cara, é muito bom. É o Caetano Veloso e o Chico Buarque, num “show” ao vivo. E tem uma parte em que o Caetano canta “A Rita”, junto com “Esse Cara”. São as melhores músicas. No entanto, cantas em inglês. Não é muito comum ver artis-
Neste momento, já tens mais
Disseste numa entrevista que
de 3 milhões de visitas no teu
este disco não é tão bom como
MySpace. Como conseguiste
os próximos. Já tens material
vingar numa rede tão concorrida?
Acho que devo isso às pessoas, mesmo.
A capa do teu disco tem um leãozinho. É um piscar de olho ao
Afinal quantos instrumentos
Entre o MP3, o CD e o LP, qual deles preferes?
O CD ou o LP. O MP3 é um meio muito prático que permite difundir mais facilmente. Mas eu preciso da obra inteira. Eu ouço mais em CD, porque posso pegar, guardar na bolsa, é muito bom. Ou, se tiver a oportunidade, LP.
FEVEREIRO, MARÇO
2008
“Leãozinho” do Caetano Veloso?
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para um segundo disco?
Sim. Já está pronto, só falta gravar. Penso começar antes de Julho. Estou a pensar nos produtores. O Mário Caldato foi um óptimo produtor e o primeiro disco ficou perfeito em relação àquela época. Agora tenho muitas coisas novas, músicas em português também, músicas em inglês, novos instrumentos, o ukelele, enfim, várias coisas que quero mostrar.
Também. Acho que tudo faz sentido. Porque… está no nosso inconsciente, na nossa cabeça e, enfim, contribui e faz o conceito inteiro. O meu coração, pelo menos, associa claramente.
tocas?
Tocar, tocar, toco só violão, mesmo. O resto, vou brincando: banjo, ukelele, gaita, piano, acordeão, escaleta [instrumento de sopro com teclas semelhantes às de um piano]… E a voz.
anos, manda a tradição (no Brasil) que se faça uma grande festa em honra da aniversariante. Mallu dispensou a pompa da ocasião e pediu os seus presentes em dinheiro. Com a quantia oferecida, alugou um estúdio, onde gravou os seus primeiros quatro temas. Disponibilizou-os na Internet, na sua página do MySpace.
tas brasileiros a fazê-lo…
Eu sempre tive muita fluência com essa língua. O Dylan, o Cash, o Guthrie, o Neil Young, os Beatles… escreveram em inglês. E acho que a gente vai aprendendo a falar ouvindo. É para ti mais fácil cantares em inglês?
[silêncio] Não. Acho que «facilidade», pelo menos para mim, não tem. Essa coisa de escolher a língua não é por ser fácil ou difícil. Vem junto: a letra, a sonoridade. Daí que ela saia em português ou em inglês. Eu não procuro uma média de X músicas em inglês, X em português… Como preferes que qualifiquem a tua música – folk, rock acústico ou MPB?
Amor. É um estilo musical?
É um estilo de vida. Não só musical.
2008. A sua popularidade na Internet dispara: em Janeiro já tem 40 mil visitas. Em Fevereiro, 200 mil. Um mês depois, com as idas à televisão (Globo e MTV incluídas), o número duplica. Em Abril, participa no programa de Jô Soares e deslumbra – tanto a audiência como o anfitrião. A meio do ano, acumulara mais de um milhão de visitas no seu MySpace. O álbum de estreia é lançado em Outubro – inicialmente disponível apenas para telemóvel, em parceria com a operadora Vivo. Em Novembro, chega às lojas. O ano termina com o registo do seu MySpace a ultrapassar os dois milhões de visitas.
2009. Mallu atravessa o Atlântico, pela primeira vez na vida, para a estreia em solo português, com dois “showcases” inseridos nos programas “Sensações t” e “Guest List tmn” – um no Music Box (Lisboa) e outro no palco da bluestore tmn (Porto). A avaliar pela recepção do público, prevê-se um regresso para breve…
2008
“SÓ FALTA GRAVAR. PENSO COMEÇAR ANTES DE JULHO. TENHO MUITAS COISAS NOVAS, NOVOS INSTRUMENTOS, O UKELELE, VÁRIAS COISAS QUE QUERO MOSTRAR.”
Tens o hábito de baptizar os
2007. Ao completar 15
FEVEREIRO, MARÇO
SEGUNDO DISCO JÁ NA FORJA
Qual é o teu favorito?
Não tenho. Acho que eles são complementares.
21
directo I música I
AMBIÇÃO E PENSAMENTO POSITIVO
“PODE TER FASES QUE NÃO SÃO TÃO BEM-SUCEDIDAS. MAS A GENTE LUTA E CONQUISTA TUDO DE NOVO.”
discográficos até ao lançamento
que seja, você consegue entrar pela dignidade de ter uma música boa. As pessoas estão buscando música, por incrível que pareça [risos].
do teu álbum de estreia. Porquê?
O que fizeste com o teu pri-
E quem é o teu público-alvo?
Acho que é para o ser humano, mesmo.
FEVEREIRO, MARÇO
2008
Recusaste diversos contratos
22
Na verdade, optámos por uma editora independente, por não ter gravadora. Esses contratos, eles privavam a gente de milhares de acções que queria fazer como arte mesmo. Então, a gente – eu, meu empresário e meu pai – concluiu que nenhuma das propostas nos dava liberdade de mudar e utilizar a música do jeito que a gente queria. Por isso, optámos por uma independente. O dinheiro que a gente consegue para pagar os projectos é de trabalho de publicidade, de “show” e da venda de discos. E daí, distribuímos para a Agência de Música. Não precisamos dessa ponte da gravadora: a gente constrói essa ponte. Porque o mundo está proporcionando isso. O mundo, a Internet, está deixando a coisa muito acessível. A gente consegue entrar em todos os meios. Por mais difícil
meiro “cachet”?
O primeiro “cachet” não o ganhei. A contratante me passou a perna [risos]. Não tinha empresário, não tinha ninguém. Fui dar o “show” e daí acabou. Eu também não fui atrás direito... Fiquei sem. Os teus pais acompanham-te no
Precisa fazer escola, não tem jeito: pelo conhecimento e pela convivência social. Eu tento levar numa boa. Mas eu gostaria de largar, ficar um tempo tranquila. E depois voltaria, querendo voltar, entende? E isso de sair de casa é uma vontade forte que eu tive muito subitamente. Achava que aquilo me libertaria de vários problemas de convivência com os meus pais. Ainda bem que eles não deixaram. Porque aprendi muito quando atravessei esses obstáculos. É complicado ser-se menor de idade e andar em “tournée”?
Não é fácil. Você precisa de procuração, de montes de papéis, autorização, «isso pode», «isso não pode». Estar dentro da lei é muito trabalhoso. Meus pais me acompanham, mas tem vezes que eles não vão. Então precisam de uma procuração disto, autorização daquilo, poderes especiais para não-sei-quê. É
verdade
ameaça
que
proibir-te
o
teu de
pai
fazer
“shows” se as coisas correrem mal na escola?
Sim, sim [risos]. Ele me disse que, para continuar carreira, preciso de fazer dignamente a escola. Mas eu passei de ano directo.
sonho musical ou ainda sonham
Até onde é que pretendes ir?
que mudes de ideias e escolhas
O meu projecto básico de vida é viver fazendo o que eu gosto. É isso.
uma profissão convencional?
Nunca foram contra, não. Eles tiveram medo no começo, mas medo de pai e mãe, de gostar e querer cuidar. Mas nunca me proibiram. Tem muitas coisas que eles não deixam fazer, claro: me impedem de me deitar completamente nessa profissão, não me deixam largar a escola, não deixam eu morar sozinha. Querias deixar a escola e morar sozinha?
Esse negócio de escola é complicado.
Qual a diferença entre a tímida Maria Luiza e a Mallu, que pisa o palco e enfrenta o público sem medos?
[silêncio] Ah, sabe o que é, ultimamente ando me transformando tanto em mim mesma que parece até difícil diferenciar. Eu estou tão feliz com tudo, contente comigo mesma, contente com a vida, sabe? Não vejo diferenças no palco e na vida, é tudo a mesma coisa.
directo I música I
AMBIÇÃO E PENSAMENTO POSITIVO
“PODE TER FASES QUE NÃO SÃO TÃO BEM-SUCEDIDAS. MAS A GENTE LUTA E CONQUISTA TUDO DE NOVO.”
discográficos até ao lançamento
que seja, você consegue entrar pela dignidade de ter uma música boa. As pessoas estão buscando música, por incrível que pareça [risos].
do teu álbum de estreia. Porquê?
O que fizeste com o teu pri-
E quem é o teu público-alvo?
Acho que é para o ser humano, mesmo.
FEVEREIRO, MARÇO
2008
Recusaste diversos contratos
22
Na verdade, optámos por uma editora independente, por não ter gravadora. Esses contratos, eles privavam a gente de milhares de acções que queria fazer como arte mesmo. Então, a gente – eu, meu empresário e meu pai – concluiu que nenhuma das propostas nos dava liberdade de mudar e utilizar a música do jeito que a gente queria. Por isso, optámos por uma independente. O dinheiro que a gente consegue para pagar os projectos é de trabalho de publicidade, de “show” e da venda de discos. E daí, distribuímos para a Agência de Música. Não precisamos dessa ponte da gravadora: a gente constrói essa ponte. Porque o mundo está proporcionando isso. O mundo, a Internet, está deixando a coisa muito acessível. A gente consegue entrar em todos os meios. Por mais difícil
meiro “cachet”?
O primeiro “cachet” não o ganhei. A contratante me passou a perna [risos]. Não tinha empresário, não tinha ninguém. Fui dar o “show” e daí acabou. Eu também não fui atrás direito... Fiquei sem. Os teus pais acompanham-te no
Precisa fazer escola, não tem jeito: pelo conhecimento e pela convivência social. Eu tento levar numa boa. Mas eu gostaria de largar, ficar um tempo tranquila. E depois voltaria, querendo voltar, entende? E isso de sair de casa é uma vontade forte que eu tive muito subitamente. Achava que aquilo me libertaria de vários problemas de convivência com os meus pais. Ainda bem que eles não deixaram. Porque aprendi muito quando atravessei esses obstáculos. É complicado ser-se menor de idade e andar em “tournée”?
Não é fácil. Você precisa de procuração, de montes de papéis, autorização, «isso pode», «isso não pode». Estar dentro da lei é muito trabalhoso. Meus pais me acompanham, mas tem vezes que eles não vão. Então precisam de uma procuração disto, autorização daquilo, poderes especiais para não-sei-quê. É
verdade
ameaça
que
proibir-te
o
teu de
pai
fazer
“shows” se as coisas correrem mal na escola?
Sim, sim [risos]. Ele me disse que, para continuar carreira, preciso de fazer dignamente a escola. Mas eu passei de ano directo.
sonho musical ou ainda sonham
Até onde é que pretendes ir?
que mudes de ideias e escolhas
O meu projecto básico de vida é viver fazendo o que eu gosto. É isso.
uma profissão convencional?
Nunca foram contra, não. Eles tiveram medo no começo, mas medo de pai e mãe, de gostar e querer cuidar. Mas nunca me proibiram. Tem muitas coisas que eles não deixam fazer, claro: me impedem de me deitar completamente nessa profissão, não me deixam largar a escola, não deixam eu morar sozinha. Querias deixar a escola e morar sozinha?
Esse negócio de escola é complicado.
Qual a diferença entre a tímida Maria Luiza e a Mallu, que pisa o palco e enfrenta o público sem medos?
[silêncio] Ah, sabe o que é, ultimamente ando me transformando tanto em mim mesma que parece até difícil diferenciar. Eu estou tão feliz com tudo, contente comigo mesma, contente com a vida, sabe? Não vejo diferenças no palco e na vida, é tudo a mesma coisa.
traço
I fotografia I
70
TEXTO JOÃO MESTRE I FOTOGRAFIA PEDRO LOUREIRO
2009
norte-americana apontou como um dos artistas mais importantes da sua geração.
AGOSTO , SETEMBRO
AGOSTO , SETEMBRO
2009
Uma entrevista a dois momentos com o fotógrafo português que a crítica
71
traço
I fotografia I
70
TEXTO JOÃO MESTRE I FOTOGRAFIA PEDRO LOUREIRO
2009
norte-americana apontou como um dos artistas mais importantes da sua geração.
AGOSTO , SETEMBRO
AGOSTO , SETEMBRO
2009
Uma entrevista a dois momentos com o fotógrafo português que a crítica
71
traço I fotografia I
não passa muito tempo em Portugal. Por norma, é o trabalho que o traz ao país onde nasceu – e este regresso deve-se à inauguração de duas exposições em Lisboa: uma no Centro Cultural de Belém, em conjunto com os restantes finalistas do Prémio BES Photo; e outra, em nome individual, intitulada “Topologias”, no Museu do Oriente. É nesta que marcamos o primeiro encontro, meia hora antes da abertura ao público. Edgar não está propriamente nervoso. Há dez anos que expõe individualmente, tendo já passado por cidades tão «intimidantes» como Londres, Nova Iorque ou Rio de Janeiro. Sentados numa mesa ao canto da cafetaria do Museu do Oriente, conversamos sobre fontes de inspiração, o seu método de trabalho, a música dos Queen. Até que a empregada se aproxima e interrompe, reticente: «Desculpe, senhor Martins, mas pediram-me para avisá-lo de que a sua exposição começou sem si.» A conversa terá de ser retomada noutro dia.
EDGAR MARTINS
E também porque lhe agrada a «incapacidade» de não se poder controlar todas as circunstâncias. Tal como lhe agrada «a ideia da falta de controlo, do desconhecido», aliada «ao cosmos, à ideia do espaço» - elementos sempre presentes no seu trabalho. «Estou interessado na “performance” do mundo», acrescenta. E a sua forma de captá-la é «abrandando o tempo». Isto é: através de exposições muito prolongadas, técnica que consiste no prolongamento do tempo de abertura da lente. Essa impossibilidade de controlar todos os passos da fotografia «dá azo a que as pequenas incongruências do mundo» se manifestem. É dessa «acidentalidade» que provém “O Teórico Acidental”, um dos três corpos de trabalho que compõem estas “Topologias”. Não se trata, porém, do «acidental que definia a fotografia de Cartier-Bresson» [francês pioneiro do fotojornalismo], o chamado «instante decisivo». Edgar Martins não se revê aí. «O meu trabalho acaba por ser um “instante indecisivo”, decidido pelo espaço.»
AGOSTO , SETEMBRO
2009
A SUA (ACTUAL) ferramenta de trabalho
72
é uma Toyo, uma «máquina de campo, super-portátil, muito simples». A descrição pode ser enganadora: Edgar Martins só trabalha com grandes formatos, máquinas que requerem filmes de 10 x 12 cm ou 20 x 25 cm (ao passo que as câmaras comuns usam filme de 35mm) e podem pesar 5kg (11kg, se incluirmos tripé, lentes, etc.). É um conceito diferente de «portátil», portanto. «Esta máquina fecha-se toda e posso carregá-la quase como uma bolsa; apesar de ser de grande formato, é muito simples.» O fotógrafo trabalha sempre sozinho - «eu, um tripé e uma máquina». Porque, «para poder comunicar aquela relação de projecção no vazio», tem de passar ele próprio por essa experiência.
nem sempre foi a sua paixão. Primeiro, veio o interesse pela escrita, talvez por influência de seu pai, economista de profissão e cronista regular de diversos jornais macaenses. O próprio Edgar Martins começou pelos jornais. Passou pelo semanário “Comércio de Macau” e pelo diário “Macau Hoje” – onde ficou a trabalhar após o 12º ano. «Eu era tudo, até editor: cheguei a editar o jornal quase sozinho, quando o director estava doente», recorda. Aos 18 anos, publicou, em edição de autor, o livro “Mãe, Deixa-me Fazer o Pino”, uma colectânea de poesia e ensaios filosóficos que descreve como a sua «primeira apropriação do mundo»: ao aperceberse de que «o livro tinha uma relação A FOTOGRAFIA
(PER)CURSOS. Edgar Martins nasceu em Évora, em 1977, filho de um economista e de uma educadora de infância. Aos dois anos, mudou-se para Macau. Começou os estudos pela área das Letras. Colaborou, como redactor, nos jornais “Comércio de Macau” e “Macau Hoje”. Após a publicação do livro de poemas e ensaios filosóficos “Mãe, Deixa-me Fazer o Pino” (edição de autor), começou a sentir-se atraído pelo mundo da fotografia. O primeiro contacto foi no Centro de Artes Visuais de Macau. Em 1996, decidiu mudar-se para Londres, onde fez um bacharelato em Fotografia, no London Institute. Seguiu-se um mestrado em Fotografia e Belas Artes, no Royal College of Art. PRÉMIOS & HONRAS. A sua primeira monografia, “Buracos Negros e Outras Inconsistências”, valeu-lhe o RCA Society + Thames & Hudson ArtBook Prize e o Jerwood Photography Award (2003). Em 2008, foi distinguido pela Association of Photographers, a propósito da série “Aproximações” (comissionada pela ANA – Aeroportos de Portugal), e foi distinguido nos New York Photo Awards pela série “O Teórico Acidental”. Em 2009, venceu o prémio BES Photo, um dos mais importantes galardões de arte contemporâneaem Portugal, e fez, a convite do “New York Times”, a série "Ruins of the Second Gilded Age", sobre a crise da economia americana, publicada pelo jornal nova-iorquino a 4 de Julho.
tão grande com as imagens», entendeu que o que queria mesmo era «estudar a imagem visual». A fotografia, entenda-se. O facto de viver em Macau e a respectiva proximidade de Hong Kong ditaram a escolha de Inglaterra como passo seguinte no seu percurso. Estudou Fotografia no London Institute. Logo de seguida, ingressou no mestrado em Fotografia e Belas Artes do Royal College of Art, cujo primeiro ano passou «à deriva». «Não sabia o que fazer e, por norma, faz-se um mestrado quando se quer desenvolver uma linha específica de trabalho». O seu interesse pelo conceito de cidade moderna acabou, de certa forma, por encarrilar a veia criativa. «Dantes as cidades eram compostas por um núcleo e uma periferia; hoje isso já não existe – há uma multiplicidade de núcleos e as fronteiras tornaram-se fluidas, permeáveis, desconhecidas», teoriza, lançando a questão fulcral: «Se já não somos capazes de definir o que é uma cidade, como é que nos havemos de relacionar com ela?». Edgar Martins nasceu em Évora, em 1977, mas pouco se relacionou com a cidade alentejana. Aos dois anos, mudou-se para Macau, onde cresceu e viveu até à maioridade. «Aquilo é um espaço muito estranho», comenta, com alguma saudade. «É um sítio óptimo e, ao mesmo tempo, super-intenso, como qualquer espaço pequeno.» No meio da vivência bipartida entre portugueses e chineses, começou a explorar um terceiro espaço, aquilo que define como «uma realidade nivelada». Interessou-se, então, pelos “não-lugares” e pela metáfora da cidade moderna enquanto «sítio de partidas e chegadas constantes», o que «acaba por não permitir às pessoas identificar-se com o sítio onde vivem». Isto numa altura em que
SÉRIE
“LANDSCAPES
BEYOND: THE BURDEN OF PROOF”
traço I fotografia I
não passa muito tempo em Portugal. Por norma, é o trabalho que o traz ao país onde nasceu – e este regresso deve-se à inauguração de duas exposições em Lisboa: uma no Centro Cultural de Belém, em conjunto com os restantes finalistas do Prémio BES Photo; e outra, em nome individual, intitulada “Topologias”, no Museu do Oriente. É nesta que marcamos o primeiro encontro, meia hora antes da abertura ao público. Edgar não está propriamente nervoso. Há dez anos que expõe individualmente, tendo já passado por cidades tão «intimidantes» como Londres, Nova Iorque ou Rio de Janeiro. Sentados numa mesa ao canto da cafetaria do Museu do Oriente, conversamos sobre fontes de inspiração, o seu método de trabalho, a música dos Queen. Até que a empregada se aproxima e interrompe, reticente: «Desculpe, senhor Martins, mas pediram-me para avisá-lo de que a sua exposição começou sem si.» A conversa terá de ser retomada noutro dia.
EDGAR MARTINS
E também porque lhe agrada a «incapacidade» de não se poder controlar todas as circunstâncias. Tal como lhe agrada «a ideia da falta de controlo, do desconhecido», aliada «ao cosmos, à ideia do espaço» - elementos sempre presentes no seu trabalho. «Estou interessado na “performance” do mundo», acrescenta. E a sua forma de captá-la é «abrandando o tempo». Isto é: através de exposições muito prolongadas, técnica que consiste no prolongamento do tempo de abertura da lente. Essa impossibilidade de controlar todos os passos da fotografia «dá azo a que as pequenas incongruências do mundo» se manifestem. É dessa «acidentalidade» que provém “O Teórico Acidental”, um dos três corpos de trabalho que compõem estas “Topologias”. Não se trata, porém, do «acidental que definia a fotografia de Cartier-Bresson» [francês pioneiro do fotojornalismo], o chamado «instante decisivo». Edgar Martins não se revê aí. «O meu trabalho acaba por ser um “instante indecisivo”, decidido pelo espaço.»
AGOSTO , SETEMBRO
2009
A SUA (ACTUAL) ferramenta de trabalho
72
é uma Toyo, uma «máquina de campo, super-portátil, muito simples». A descrição pode ser enganadora: Edgar Martins só trabalha com grandes formatos, máquinas que requerem filmes de 10 x 12 cm ou 20 x 25 cm (ao passo que as câmaras comuns usam filme de 35mm) e podem pesar 5kg (11kg, se incluirmos tripé, lentes, etc.). É um conceito diferente de «portátil», portanto. «Esta máquina fecha-se toda e posso carregá-la quase como uma bolsa; apesar de ser de grande formato, é muito simples.» O fotógrafo trabalha sempre sozinho - «eu, um tripé e uma máquina». Porque, «para poder comunicar aquela relação de projecção no vazio», tem de passar ele próprio por essa experiência.
nem sempre foi a sua paixão. Primeiro, veio o interesse pela escrita, talvez por influência de seu pai, economista de profissão e cronista regular de diversos jornais macaenses. O próprio Edgar Martins começou pelos jornais. Passou pelo semanário “Comércio de Macau” e pelo diário “Macau Hoje” – onde ficou a trabalhar após o 12º ano. «Eu era tudo, até editor: cheguei a editar o jornal quase sozinho, quando o director estava doente», recorda. Aos 18 anos, publicou, em edição de autor, o livro “Mãe, Deixa-me Fazer o Pino”, uma colectânea de poesia e ensaios filosóficos que descreve como a sua «primeira apropriação do mundo»: ao aperceberse de que «o livro tinha uma relação A FOTOGRAFIA
(PER)CURSOS. Edgar Martins nasceu em Évora, em 1977, filho de um economista e de uma educadora de infância. Aos dois anos, mudou-se para Macau. Começou os estudos pela área das Letras. Colaborou, como redactor, nos jornais “Comércio de Macau” e “Macau Hoje”. Após a publicação do livro de poemas e ensaios filosóficos “Mãe, Deixa-me Fazer o Pino” (edição de autor), começou a sentir-se atraído pelo mundo da fotografia. O primeiro contacto foi no Centro de Artes Visuais de Macau. Em 1996, decidiu mudar-se para Londres, onde fez um bacharelato em Fotografia, no London Institute. Seguiu-se um mestrado em Fotografia e Belas Artes, no Royal College of Art. PRÉMIOS & HONRAS. A sua primeira monografia, “Buracos Negros e Outras Inconsistências”, valeu-lhe o RCA Society + Thames & Hudson ArtBook Prize e o Jerwood Photography Award (2003). Em 2008, foi distinguido pela Association of Photographers, a propósito da série “Aproximações” (comissionada pela ANA – Aeroportos de Portugal), e foi distinguido nos New York Photo Awards pela série “O Teórico Acidental”. Em 2009, venceu o prémio BES Photo, um dos mais importantes galardões de arte contemporâneaem Portugal, e fez, a convite do “New York Times”, a série "Ruins of the Second Gilded Age", sobre a crise da economia americana, publicada pelo jornal nova-iorquino a 4 de Julho.
tão grande com as imagens», entendeu que o que queria mesmo era «estudar a imagem visual». A fotografia, entenda-se. O facto de viver em Macau e a respectiva proximidade de Hong Kong ditaram a escolha de Inglaterra como passo seguinte no seu percurso. Estudou Fotografia no London Institute. Logo de seguida, ingressou no mestrado em Fotografia e Belas Artes do Royal College of Art, cujo primeiro ano passou «à deriva». «Não sabia o que fazer e, por norma, faz-se um mestrado quando se quer desenvolver uma linha específica de trabalho». O seu interesse pelo conceito de cidade moderna acabou, de certa forma, por encarrilar a veia criativa. «Dantes as cidades eram compostas por um núcleo e uma periferia; hoje isso já não existe – há uma multiplicidade de núcleos e as fronteiras tornaram-se fluidas, permeáveis, desconhecidas», teoriza, lançando a questão fulcral: «Se já não somos capazes de definir o que é uma cidade, como é que nos havemos de relacionar com ela?». Edgar Martins nasceu em Évora, em 1977, mas pouco se relacionou com a cidade alentejana. Aos dois anos, mudou-se para Macau, onde cresceu e viveu até à maioridade. «Aquilo é um espaço muito estranho», comenta, com alguma saudade. «É um sítio óptimo e, ao mesmo tempo, super-intenso, como qualquer espaço pequeno.» No meio da vivência bipartida entre portugueses e chineses, começou a explorar um terceiro espaço, aquilo que define como «uma realidade nivelada». Interessou-se, então, pelos “não-lugares” e pela metáfora da cidade moderna enquanto «sítio de partidas e chegadas constantes», o que «acaba por não permitir às pessoas identificar-se com o sítio onde vivem». Isto numa altura em que
SÉRIE
“LANDSCAPES
BEYOND: THE BURDEN OF PROOF”
traço I fotografia I
«O
MEU TRABALHO ACABA POR SER UM “INSTANTE INDECISIVO”, DECIDIDO PELO ESPAÇO.»
MÚSICA. Em 2008, fez a capa
AGOSTO , SETEMBRO
2009
de dois discos de artistas britânicos e, com isso, o seu nome começou a ser falado fora dos circuitos artísticos. Ambos chegaram aos escaparates praticamente em simultâneo: “Everything Is Borrowed”, de The Streets, com uma imagem inédita da série “The Burden Of Proof”; e “The Cosmos Rocks”, de Queen + Paul Rodgers, uma encomenda inspirada na série “O Teórico Acidental”. «É impossível não gostar de Queen, eles são tão influentes; porém, conhecendo-os pessoalmente, é óbvio que ganhei outro respeito à música deles».
76
ele próprio não se identificava com o espaço onde vivia, Inglaterra. Da sua experiência de vida em espaços diferentes nasceu a abordagem que viria a despoletar boa parte do seu trabalho. Assim nasce a monografia “Buracos Negros e Outras Inconsistências”. E a sua relação com o trabalho muda. «O jogo abriu-se», aponta, de forma entusiasta. «Tinha sempre a sensação de que estava sempre um passo atrás, não de alguém em específico, mas de mim mesmo, e havia sempre uma diferença: isto sou eu, isto é o que eu faço.» Essa fronteira, entretanto, esbateu-se, e passou a sentir o trabalho como «parte integrante» de si próprio. «Comecei a debruçar-me sobre temas que me tocavam – e um artista tem de ter algo para comunicar.» E Edgar Martins comunica-o com tal entusiasmo que a conversa excede o tempo previsto e metade das perguntas ficam por fazer. A exposição, entretanto, acabara de inaugurar sem a presença do artista. A entrevista prossegue dentro de dias. «SEGUNDO ROUND» tem lugar três dias depois, no Centro Cultural de Belém. O fotógrafo parece mais apreensivo. Talvez devido aos preparativos finais para a exposição que inaugurava naquele dia, no âmbito do Prémio BES Photo. Ou então pelo próprio galardão em si: trata-se, afinal, de um dos mais prestigiados prémios de arte atribuídos em Portugal. E o facto de se esperar três semanas pelo resultado inquieta-o. Porém, não havia motivo O
para receios: a 9 de Abril, o veredicto é anunciado e Edgar Martins torna-se o artista mais jovem a receber a distinção. No que respeita ao reconhecimento, o seu trajecto é o inverso do habitual: «comecei no estrangeiro e vim ao encontro de Portugal.» Mas não foi propriamente fácil, garante: «Ninguém me veio bater à porta a dizer “olha, vem expor em Portugal”; foi um processo moroso.» Torna-se, então, inevitável saber a sua opinião sobre o panorama artístico nacional, nomeadamente, no que respeita às instituições. A resposta surpreenderá os mais reivindicativos: «Têm feito um bom trabalho». Elogia as que existem, criticando apenas o facto de serem poucas, e aponta como bons exemplos o CCB, a Fundação Gulbenkian, a Fundação Ilídio Pinho ou o BES Photo. EM FINAIS DE 2008,
a crítica norte-americana já o apontava como um dos artistas mais importantes da sua geração. Em Portugal, contudo, ainda pouco se ouvira falar do seu nome. Por essa altura, é noticiado, a título de curiosidade, que a capa do recém-lançado disco de Queen (“The Cosmos Rocks”, em sociedade com Paul Rodgers) era da autoria de um fotógrafo português. É então que, fora dos meandros do circuito artístico, se começa a falar deste ilustre desconhecido. Tudo começou com a relação de amizade que se cria entre o artista e um comprador das suas peças. Até aqui, não haveria nada de particularmente interessante, não fosse o facto de esse comprador
ser Roger Taylor, baterista da lendária banda britânica. Tornou-se assente que um dia haveriam de colaborar e esse dia veio quando Taylor conseguiu convencer os restantes elementos dos Queen a entregar a comissão ao jovem fotógrafo português. Em simultâneo, o “rapper” Mike Skinner (mais conhecido pelo nome colectivo The Streets) escolhe para capa do seu quarto álbum, “Everything Is Borrowed”, uma fotografia inédita da série “The Burden Of Proof”. Haverá quem olhe estas colaborações como a massificação (no mau sentido) da obra artística. Não é o seu caso: «Sempre achei este campo de trabalho interessante, no sentido em que faz a minha obra chegar a um leque de pessoas que, possivelmente, não frequentam galerias ou museus.» E atira, em jeito de desabafo: «Não há nada pior do que passar meses a organizar uma exposição e depois ser vista só por 100 pessoas.» Será por isso que, quando questionado sobre o seu objectivo mais ambicioso, nem hesita: «Conseguir, nos próximos dois anos, expor no maior número de instituições públicas a nível mundial.» E um exemplo desse desígnio é a exposição que planeia fazer, ainda este ano, na estação de Saint Pancras, uma das mais movimentadas de Londres. «É algo que gostaria de fazer mais vezes: que o trabalho chegasse às pessoas e não o contrário.» E haverá para um artista ambição mais genuína do que desejar que o seu trabalho entre – nem que apenas por meros instantes – na vida das pessoas?
SÉRIE
“WHEN
LIGHT CASTS NO SHADOW”
traço I fotografia I
«O
MEU TRABALHO ACABA POR SER UM “INSTANTE INDECISIVO”, DECIDIDO PELO ESPAÇO.»
MÚSICA. Em 2008, fez a capa
AGOSTO , SETEMBRO
2009
de dois discos de artistas britânicos e, com isso, o seu nome começou a ser falado fora dos circuitos artísticos. Ambos chegaram aos escaparates praticamente em simultâneo: “Everything Is Borrowed”, de The Streets, com uma imagem inédita da série “The Burden Of Proof”; e “The Cosmos Rocks”, de Queen + Paul Rodgers, uma encomenda inspirada na série “O Teórico Acidental”. «É impossível não gostar de Queen, eles são tão influentes; porém, conhecendo-os pessoalmente, é óbvio que ganhei outro respeito à música deles».
76
ele próprio não se identificava com o espaço onde vivia, Inglaterra. Da sua experiência de vida em espaços diferentes nasceu a abordagem que viria a despoletar boa parte do seu trabalho. Assim nasce a monografia “Buracos Negros e Outras Inconsistências”. E a sua relação com o trabalho muda. «O jogo abriu-se», aponta, de forma entusiasta. «Tinha sempre a sensação de que estava sempre um passo atrás, não de alguém em específico, mas de mim mesmo, e havia sempre uma diferença: isto sou eu, isto é o que eu faço.» Essa fronteira, entretanto, esbateu-se, e passou a sentir o trabalho como «parte integrante» de si próprio. «Comecei a debruçar-me sobre temas que me tocavam – e um artista tem de ter algo para comunicar.» E Edgar Martins comunica-o com tal entusiasmo que a conversa excede o tempo previsto e metade das perguntas ficam por fazer. A exposição, entretanto, acabara de inaugurar sem a presença do artista. A entrevista prossegue dentro de dias. «SEGUNDO ROUND» tem lugar três dias depois, no Centro Cultural de Belém. O fotógrafo parece mais apreensivo. Talvez devido aos preparativos finais para a exposição que inaugurava naquele dia, no âmbito do Prémio BES Photo. Ou então pelo próprio galardão em si: trata-se, afinal, de um dos mais prestigiados prémios de arte atribuídos em Portugal. E o facto de se esperar três semanas pelo resultado inquieta-o. Porém, não havia motivo O
para receios: a 9 de Abril, o veredicto é anunciado e Edgar Martins torna-se o artista mais jovem a receber a distinção. No que respeita ao reconhecimento, o seu trajecto é o inverso do habitual: «comecei no estrangeiro e vim ao encontro de Portugal.» Mas não foi propriamente fácil, garante: «Ninguém me veio bater à porta a dizer “olha, vem expor em Portugal”; foi um processo moroso.» Torna-se, então, inevitável saber a sua opinião sobre o panorama artístico nacional, nomeadamente, no que respeita às instituições. A resposta surpreenderá os mais reivindicativos: «Têm feito um bom trabalho». Elogia as que existem, criticando apenas o facto de serem poucas, e aponta como bons exemplos o CCB, a Fundação Gulbenkian, a Fundação Ilídio Pinho ou o BES Photo. EM FINAIS DE 2008,
a crítica norte-americana já o apontava como um dos artistas mais importantes da sua geração. Em Portugal, contudo, ainda pouco se ouvira falar do seu nome. Por essa altura, é noticiado, a título de curiosidade, que a capa do recém-lançado disco de Queen (“The Cosmos Rocks”, em sociedade com Paul Rodgers) era da autoria de um fotógrafo português. É então que, fora dos meandros do circuito artístico, se começa a falar deste ilustre desconhecido. Tudo começou com a relação de amizade que se cria entre o artista e um comprador das suas peças. Até aqui, não haveria nada de particularmente interessante, não fosse o facto de esse comprador
ser Roger Taylor, baterista da lendária banda britânica. Tornou-se assente que um dia haveriam de colaborar e esse dia veio quando Taylor conseguiu convencer os restantes elementos dos Queen a entregar a comissão ao jovem fotógrafo português. Em simultâneo, o “rapper” Mike Skinner (mais conhecido pelo nome colectivo The Streets) escolhe para capa do seu quarto álbum, “Everything Is Borrowed”, uma fotografia inédita da série “The Burden Of Proof”. Haverá quem olhe estas colaborações como a massificação (no mau sentido) da obra artística. Não é o seu caso: «Sempre achei este campo de trabalho interessante, no sentido em que faz a minha obra chegar a um leque de pessoas que, possivelmente, não frequentam galerias ou museus.» E atira, em jeito de desabafo: «Não há nada pior do que passar meses a organizar uma exposição e depois ser vista só por 100 pessoas.» Será por isso que, quando questionado sobre o seu objectivo mais ambicioso, nem hesita: «Conseguir, nos próximos dois anos, expor no maior número de instituições públicas a nível mundial.» E um exemplo desse desígnio é a exposição que planeia fazer, ainda este ano, na estação de Saint Pancras, uma das mais movimentadas de Londres. «É algo que gostaria de fazer mais vezes: que o trabalho chegasse às pessoas e não o contrário.» E haverá para um artista ambição mais genuína do que desejar que o seu trabalho entre – nem que apenas por meros instantes – na vida das pessoas?
SÉRIE
“WHEN
LIGHT CASTS NO SHADOW”
directo
I automobilismo I
ARMINDO
ARAUJO AS CORRIDAS DE UM PILOTO QUE NÃO ESTÁ HABITUADO A PERDER .
O PRIVILEGIO
DE GANHAR TEXTO JOÃO MESTRE FOTOGRAFIA PAULO SOUSA COELHO
AGOSTO, SETEMBRO
2009
F
14
ala sempre no plural, como quem reconhece que não é só a si que deve os bons resultados obtidos. Armindo Araújo começou pelas motos, chegando a vencer o Troféu KTM 250cc (1999). Em 2000, foi assistir ao rali de Santo Tirso e a sua vida mudou: trocou as duas rodas pelos automóveis e, logo no seu primeiro rali, terminou em 2º lugar. Nesse ano de estreia, sagrou-se campeão nacional. Tinha 23 anos. «As coisas até poderiam ter corrido melhor, se eu tivesse começado mais cedo», desabafa o piloto da Dream Team TMN. A verdade é que, desde então, venceu todas as competições nacionais em que participou. Em 2007, subiu a fasquia, ao entrar para o Campeonato Mundial de Ralis, na classe Produção (PWRC). Dias antes do arranque da sua terceira época no PWRC, fomos a Santo Tirso entrevistá-lo no seu «quartel-general». «A qualquer momento podemos ser campeões do mundo», afiança, com serenidade. A uma prova do final da temporada, Armindo está em segundo lugar, numa luta acesa pelo título. Será que é desta?
directo
I automobilismo I
ARMINDO
ARAUJO AS CORRIDAS DE UM PILOTO QUE NÃO ESTÁ HABITUADO A PERDER .
O PRIVILEGIO
DE GANHAR TEXTO JOÃO MESTRE FOTOGRAFIA PAULO SOUSA COELHO
AGOSTO, SETEMBRO
2009
F
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ala sempre no plural, como quem reconhece que não é só a si que deve os bons resultados obtidos. Armindo Araújo começou pelas motos, chegando a vencer o Troféu KTM 250cc (1999). Em 2000, foi assistir ao rali de Santo Tirso e a sua vida mudou: trocou as duas rodas pelos automóveis e, logo no seu primeiro rali, terminou em 2º lugar. Nesse ano de estreia, sagrou-se campeão nacional. Tinha 23 anos. «As coisas até poderiam ter corrido melhor, se eu tivesse começado mais cedo», desabafa o piloto da Dream Team TMN. A verdade é que, desde então, venceu todas as competições nacionais em que participou. Em 2007, subiu a fasquia, ao entrar para o Campeonato Mundial de Ralis, na classe Produção (PWRC). Dias antes do arranque da sua terceira época no PWRC, fomos a Santo Tirso entrevistá-lo no seu «quartel-general». «A qualquer momento podemos ser campeões do mundo», afiança, com serenidade. A uma prova do final da temporada, Armindo está em segundo lugar, numa luta acesa pelo título. Será que é desta?
directo I automobilismo I
Aprendeu primeiro a andar de mota ou a conduzir um carro?
Penso que foi de mota. Tive a primeira [uma Graziella, mini-mota italiana de inícios dos anos 70] aos seis anos. Desde miúdo que gostava de motas, automóveis, bicicletas. Na mesma altura, aprendi a conduzir no carro da minha avó. E o primeiro carro, foi com que idade?
Aos 14 anos. Eu e um amigo comprámos um a meias para fazer umas brincadeiras. Ainda me lembro: era um Mini preto. Já não o tenho, infelizmente. Acho que foi destruído numa das nossas brincadeiras. O que lhe passa pela cabeça quando está quase a começar uma prova?
Com os anos, o nervosismo vai passando. Agora, acima de tudo, temos uma enorme responsabilidade. Temos de nos concentrar. O meu pensamento é conseguir uma boa afinação do carro e dialogar ao máximo com o meu engenheiro para termos um carro o mais “performante” possível. Tem alguma superstição antes de entrar em prova?
Costumo dizer que a minha grande superstição é não ser supersticioso. Nunca quis estar agarrado a nada que, num dia que eu não tivesse esse amuleto ou não fizesse esse determinado ritual, me pusesse a pensar: «não fiz aquilo!»… O que poderia pôr muita coisa em causa. Está com o Miguel Ramalho desde
AGOSTO, SETEMBRO
2009
2001. Não será para dar sorte…
14
O Miguel Ramalho é um navegador muito profissional. Já tinha muita experiência quando começou comigo. No primeiro ano, corri com um amigo de escola. Mas depois, por afazeres profissionais,
1977. Armindo José Salgado da Silva Araújo nasceu, no Porto, a 1 de Setembro. Cedo demonstrou grande interesse pelos desportos motorizados. Aos 6 anos, recebe uma mini-mota de presente e aprende rapidamente a conduzir no Mercedes da avó. Aos 14, compra o seu primeiro carro, a meias com um amigo: um Mini. 1995. Torna-se vice-campeão nacional de motociclismo, na classe 50cc. No ano seguinte, termina em terceiro lugar na Classe Júnior Consagrados, em 125cc. Em 1999, vence o Troféu KTM 250cc. 2000. Depois de assistir ao Rali de Santo Tirso, decide aventurar-se no mundo dos ralis. Estreia-se na prova seguinte, em Fafe, com um segundo lugar. Termina a temporada com cinco vitórias, dois segundos lugares e o título de campeão nacional de Promoção. 2001. Vence o Troféu Citröen Saxo, com quatro vitórias em seis provas. É convidado para a equipa oficial da Citröen. Em 2002, sagra-se campeão nacional de ralis na classe F3 e, nos anos seguintes, torna-se tetra-campeão nacional absoluto de ralis (2003, 2004, 2005 e 2006). Em 2005, passa a ser piloto oficial da Mitsubishi.
SEGUIR EM FRENTE
“SOU APOIADO PELAS MELHORES EMPRESAS NACIONAIS. É SINAL DE RECONHECIMENTO. TODOS OS ELEMENTOS ESTÃO REUNIDOS PARA EU CONTINUAR A CORRER SEM PENSAR SEQUER EM PARAR.”
directo I automobilismo I
Aprendeu primeiro a andar de mota ou a conduzir um carro?
Penso que foi de mota. Tive a primeira [uma Graziella, mini-mota italiana de inícios dos anos 70] aos seis anos. Desde miúdo que gostava de motas, automóveis, bicicletas. Na mesma altura, aprendi a conduzir no carro da minha avó. E o primeiro carro, foi com que idade?
Aos 14 anos. Eu e um amigo comprámos um a meias para fazer umas brincadeiras. Ainda me lembro: era um Mini preto. Já não o tenho, infelizmente. Acho que foi destruído numa das nossas brincadeiras. O que lhe passa pela cabeça quando está quase a começar uma prova?
Com os anos, o nervosismo vai passando. Agora, acima de tudo, temos uma enorme responsabilidade. Temos de nos concentrar. O meu pensamento é conseguir uma boa afinação do carro e dialogar ao máximo com o meu engenheiro para termos um carro o mais “performante” possível. Tem alguma superstição antes de entrar em prova?
Costumo dizer que a minha grande superstição é não ser supersticioso. Nunca quis estar agarrado a nada que, num dia que eu não tivesse esse amuleto ou não fizesse esse determinado ritual, me pusesse a pensar: «não fiz aquilo!»… O que poderia pôr muita coisa em causa. Está com o Miguel Ramalho desde
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O Miguel Ramalho é um navegador muito profissional. Já tinha muita experiência quando começou comigo. No primeiro ano, corri com um amigo de escola. Mas depois, por afazeres profissionais,
1977. Armindo José Salgado da Silva Araújo nasceu, no Porto, a 1 de Setembro. Cedo demonstrou grande interesse pelos desportos motorizados. Aos 6 anos, recebe uma mini-mota de presente e aprende rapidamente a conduzir no Mercedes da avó. Aos 14, compra o seu primeiro carro, a meias com um amigo: um Mini. 1995. Torna-se vice-campeão nacional de motociclismo, na classe 50cc. No ano seguinte, termina em terceiro lugar na Classe Júnior Consagrados, em 125cc. Em 1999, vence o Troféu KTM 250cc. 2000. Depois de assistir ao Rali de Santo Tirso, decide aventurar-se no mundo dos ralis. Estreia-se na prova seguinte, em Fafe, com um segundo lugar. Termina a temporada com cinco vitórias, dois segundos lugares e o título de campeão nacional de Promoção. 2001. Vence o Troféu Citröen Saxo, com quatro vitórias em seis provas. É convidado para a equipa oficial da Citröen. Em 2002, sagra-se campeão nacional de ralis na classe F3 e, nos anos seguintes, torna-se tetra-campeão nacional absoluto de ralis (2003, 2004, 2005 e 2006). Em 2005, passa a ser piloto oficial da Mitsubishi.
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“SOU APOIADO PELAS MELHORES EMPRESAS NACIONAIS. É SINAL DE RECONHECIMENTO. TODOS OS ELEMENTOS ESTÃO REUNIDOS PARA EU CONTINUAR A CORRER SEM PENSAR SEQUER EM PARAR.”
OBJECTIVO FUTURO
“CHEGAR A UMA GRANDE EQUIPA OFICIAL DO MUNDIAL DE RALIS (WRC) E SER CAMPEÃO MUNDIAL ABSOLUTO.”
directo I automobilismo I
ele decidiu parar com esta aventura. Optei por contratar um navegador bem rodado no campeonato nacional. Foi quando conheci o Miguel. Entretanto, construímos uma grande amizade. Espero acabar a minha carreira com ele. Antes de ser piloto profissional, o que é que fazia?
Frequentava o curso de Relações Internacionais, na Universidade Lusíada do Porto, e ajudava os meus pais nas empresas [na área dos têxteis]. No momento em que entrei para uma equipa oficial, vi que tinha de tomar opções e decidi que a prioridade seria os automóveis. Embora eu acompanhe os negócios das empresas, não ocupo cargos de responsabilidade para estar totalmente focado nas minhas corridas, nos meus patrocinadores.
Vê esse negócio de família como uma possibilidade para o final da carreira?
Neste momento, não penso muito no assunto. Mas, no dia em que deixar de correr, será uma forte opção. Até que idade pensa competir?
Enquanto me sentir motivado e com vontade, e enquanto achar que posso dar resultados a quem investe em mim. Em segundo lugar, enquanto tiver apoios e as pessoas acreditarem no meu valor. Sou apoiado pelas melhores empresas nacionais (entre elas, a tmn) e por uma marca. É sinal de reconhecimento, de que estou a trabalhar bem. Todos os elementos estão reunidos para eu continuar a correr sem pensar sequer em parar. Ainda se lembra da sua estreia na competição automóvel?
Lembro-me perfeitamente. Foi no
Rali de Fafe, num carro bastante antigo, alugado a uma pessoa amiga. Cheguei ao último troço empatado à milésima com o piloto que acabou por ganhar. Uma pessoa minha amiga estava tão preocupada que eu tivesse um acidente que, à entrada do último troço, me disse: «Estás em quarto lugar, a 20 e tal segundos do terceiro, e o que está atrás de ti está a 30 e tal segundos, portanto agora é só levar o carro até ao fim». E eu disse ao navegador: «Podemos ir sem notas, já não é preciso atacar». E chegámos ao fim. Perdi o rali por dois ou três segundos. Podia ter vencido. Mas compreendo a posição das pessoas que estavam comigo, porque realmente não tinha apoios. Era mesmo uma aventura. Foi uma experiência fantástica.
2007. Depois de ganhar tudo o que havia para ganhar em competições portuguesas, parte para as provas internacionais, mantendo-se como piloto da Mitsubishi. Estreia-se no Campeonato Mundial de Ralis, classe Produção, com um quarto lugar no gélido Rali da Suécia, dando logo nas vistas como o «melhor piloto não-nórdico». Termina a época na 14ª posição.
2008 Alcança, na sua segunda época no PWRC, o primeiro pódio, com um terceiro lugar no Rali da Acrópole, na Grécia – uma das suas provas favoritas. Termina a temporada no oitavo posto.
18
2009
a temporada com um quarto lugar no trabalhoso Rali da Noruega, alcança um segundo lugar no Rali do Chipre e conquista o seu primeiro triunfo no PWRC no Rali de Portugal. Com isto, atinge o meio da época no topo da classificação geral. Termina as duas provas seguintes (Itália e Grécia) em 3º lugar, caindo para o segundo lugar da tabela, a apenas quatro pontos do líder. A decisão fica adiada para a última prova da temporada, o Rali do País de Gales, disputada entre 23 e 25 de Outubro. Se vencer, será o segundo piloto português a triunfar no PWRC – o primeiro foi Rui Madeira, em 1995.
AGOSTO, SETEMBRO
AGOSTO, SETEMBRO
2009
2009. Depois de começar
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OBJECTIVO FUTURO
“CHEGAR A UMA GRANDE EQUIPA OFICIAL DO MUNDIAL DE RALIS (WRC) E SER CAMPEÃO MUNDIAL ABSOLUTO.”
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ele decidiu parar com esta aventura. Optei por contratar um navegador bem rodado no campeonato nacional. Foi quando conheci o Miguel. Entretanto, construímos uma grande amizade. Espero acabar a minha carreira com ele. Antes de ser piloto profissional, o que é que fazia?
Frequentava o curso de Relações Internacionais, na Universidade Lusíada do Porto, e ajudava os meus pais nas empresas [na área dos têxteis]. No momento em que entrei para uma equipa oficial, vi que tinha de tomar opções e decidi que a prioridade seria os automóveis. Embora eu acompanhe os negócios das empresas, não ocupo cargos de responsabilidade para estar totalmente focado nas minhas corridas, nos meus patrocinadores.
Vê esse negócio de família como uma possibilidade para o final da carreira?
Neste momento, não penso muito no assunto. Mas, no dia em que deixar de correr, será uma forte opção. Até que idade pensa competir?
Enquanto me sentir motivado e com vontade, e enquanto achar que posso dar resultados a quem investe em mim. Em segundo lugar, enquanto tiver apoios e as pessoas acreditarem no meu valor. Sou apoiado pelas melhores empresas nacionais (entre elas, a tmn) e por uma marca. É sinal de reconhecimento, de que estou a trabalhar bem. Todos os elementos estão reunidos para eu continuar a correr sem pensar sequer em parar. Ainda se lembra da sua estreia na competição automóvel?
Lembro-me perfeitamente. Foi no
Rali de Fafe, num carro bastante antigo, alugado a uma pessoa amiga. Cheguei ao último troço empatado à milésima com o piloto que acabou por ganhar. Uma pessoa minha amiga estava tão preocupada que eu tivesse um acidente que, à entrada do último troço, me disse: «Estás em quarto lugar, a 20 e tal segundos do terceiro, e o que está atrás de ti está a 30 e tal segundos, portanto agora é só levar o carro até ao fim». E eu disse ao navegador: «Podemos ir sem notas, já não é preciso atacar». E chegámos ao fim. Perdi o rali por dois ou três segundos. Podia ter vencido. Mas compreendo a posição das pessoas que estavam comigo, porque realmente não tinha apoios. Era mesmo uma aventura. Foi uma experiência fantástica.
2007. Depois de ganhar tudo o que havia para ganhar em competições portuguesas, parte para as provas internacionais, mantendo-se como piloto da Mitsubishi. Estreia-se no Campeonato Mundial de Ralis, classe Produção, com um quarto lugar no gélido Rali da Suécia, dando logo nas vistas como o «melhor piloto não-nórdico». Termina a época na 14ª posição.
2008 Alcança, na sua segunda época no PWRC, o primeiro pódio, com um terceiro lugar no Rali da Acrópole, na Grécia – uma das suas provas favoritas. Termina a temporada no oitavo posto.
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a temporada com um quarto lugar no trabalhoso Rali da Noruega, alcança um segundo lugar no Rali do Chipre e conquista o seu primeiro triunfo no PWRC no Rali de Portugal. Com isto, atinge o meio da época no topo da classificação geral. Termina as duas provas seguintes (Itália e Grécia) em 3º lugar, caindo para o segundo lugar da tabela, a apenas quatro pontos do líder. A decisão fica adiada para a última prova da temporada, o Rali do País de Gales, disputada entre 23 e 25 de Outubro. Se vencer, será o segundo piloto português a triunfar no PWRC – o primeiro foi Rui Madeira, em 1995.
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directo I automobilismo I
Como se sentiu quando con-
AGOSTO, SETEMBRO
2009
quistou a sua primeira vitória?
22
Foi muito saboroso. Foi no segundo rali. Tinha alugado outro carro e, como não o conhecia, experimentei-o uns quilómetros antes de a prova começar. Consegui vencer os pilotos que já estavam habituados ao campeonato, que conheciam bem as corridas. Eu era o novato. Ter ganho fez os patrocinadores olharem para mim de outra maneira. Como foi a adaptação a um evento mundial como o PWRC?
O Mundial de Produção está inserido no Mundial de Ralis, junto com os WRC, que são protótipos, muito resistentes e sofisticados. Nós andamos num “Grupo N”, um carro de série com algumas alterações. O certo é que nós passamos pelos mesmos sítios onde os outros passam e temos três dias de corrida. São provas muito longas e duras, onde este tipo de carro sofre muito. Temos de ter alguma sorte e conhecer bem as corridas, porque estamos a falar dos melhores pilotos do
Em 2008, planeava atacar o título mundial. O que correu mal?
No Campeonato do Mundo, acontecem tantos problemas… Um exemplo: em 2006, o campeão do mundo foi o Nasser Al-Attiyah e, em 2008, com o mesmo tipo de carro, no mesmo grupo, com os mesmos adversários, não conseguiu fazer um ponto sequer. Os resultados são muito voláteis. No grupo dos sete, oito primeiros, qualquer um pode ser campeão. Já tivemos muitos azares, mas estamos com cada vez mais experiência. A qualquer momento podemos ser campeões.
Dakar incluído?
Quem sabe? São provas que exigem outra experiência…
Exactamente. Lá não é a rapidez pura que faz a diferença. Conta a experiência, a equipa onde estamos inseridos. E muito espírito de sacrifício. Se essa hora chegar, teremos de ter outra postura na corrida. Qual é a receita para um bom piloto de ralis?
O rali é mais uma corrida de “sprint”, mais curta, portanto podemos ser muito mais explosivos no tempo que fazemos. Uma prova como o Dakar é mais de “endurance”. Mas, neste momento, ainda estou na fase do “sprint”, da explosão. Quem são os seus ídolos?
Aprendi que devo dizer que vou fazer o meu melhor, que vou trabalhar muito, e o resultado pode ser o primeiro, segundo, quarto, quinto ou o sexto lugar, não sei. Depende dos problemas que tivermos. Mas se me perguntar se tenho velocidade suficiente para ser campeão do mundo, respondo que sim.
O Ayrton Senna e, actualmente, o Sebastien Loeb, que está a fazer uma carreira fantástica no Campeonato do Mundo de Ralis. Contudo, na posição em que estou, comecei a avaliar o porquê de muitas coisas – nunca tirando o mérito a estas duas pessoas, o certo é que tiveram as equipas certas, estavam no sítio certo à hora certa. É preciso criar todo um conjunto de factores para que tudo corra bem.
Em termos de futuro, qual é o
Qual foi o pior momento da sua
É esse o objectivo para este ano?
seu grande objectivo?
Chegar a uma grande equipa oficial do Mundial de Ralis (WRC) e ser campeão mundial absoluto. E fora do rali, ambiciona brilhar em alguma outra disciplina do desporto automóvel?
Mais tarde, não digo não à passagem para o todo-o-terreno. Já lá fiz algumas participações. Quem
carreira?
Ainda não tive um pior momento na minha carreira. Estive sempre com as equipas certas, os patrocinadores certos, nos campeonatos de que mais gosto. Nunca tive nenhum acidente grave. Não posso apontar nada a não ser pequenas desistências. Tenho sido um privilegiado.
Já lhe aconteceu dar por si a conduzir em estrada como se estivesse em competição?
Não. Sou criticado pelos meus amigos por andar excessivamente devagar. Quando tinha 18-19 anos, claro que fiz as minhas «habilidades». Algumas bastante irresponsáveis, até. Mas, hoje em dia, a
minha postura é completamente oposta. A adrenalina de conduzir depressa é no sítio certo: nos ralis. Quando não está a treinar ou a competir, o que é que faz?
Estou com o meu filho, que tem um ano. É ele que me carrega as baterias – embora de noite mas descarregue muitas vezes. n
DREAM TEAM TMN Armindo Araújo, patrocinado pela tmn desde 2007, integra a Dream Team TMN, uma sólida equipa de jovens e promissores atletas portugueses com provas dadas a nível internacional: Bernardo Sousa e Álvaro Parente, no automobilismo; Michelle Larcher de Brito, no ténis; Tiago Pires, no surf; Francisco Lobato, na vela; e Hélder Rodrigues e Ruben Faria, no todo-o-terreno.
2009
“TIVE A PRIMEIRA MOTA AOS SEIS ANOS. DESDE MIÚDO QUE GOSTAVA DE MOTAS, AUTOMÓVEIS, BICICLETAS. NA MESMA ALTURA, APRENDI A CONDUZIR NO CARRO DA MINHA AVÓ.”
sabe se, depois dos ralis, não haverão umas participações ou uma permanência no campeonato de todo-o-terreno?
AGOSTO, SETEMBRO
CEDO SE APRENDE O OFÍCIO
mundo. Temos feito boas corridas, mas, por algum motivo, as coisas não têm corrido como queríamos. Temos rodado dentro dos cinco primeiros lugares e fazemos parte do lote de potenciais vencedores. Estamos a lutar por um lugar na frente do Campeonato do Mundo. A nossa hora vai chegar.
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Como se sentiu quando con-
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quistou a sua primeira vitória?
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Foi muito saboroso. Foi no segundo rali. Tinha alugado outro carro e, como não o conhecia, experimentei-o uns quilómetros antes de a prova começar. Consegui vencer os pilotos que já estavam habituados ao campeonato, que conheciam bem as corridas. Eu era o novato. Ter ganho fez os patrocinadores olharem para mim de outra maneira. Como foi a adaptação a um evento mundial como o PWRC?
O Mundial de Produção está inserido no Mundial de Ralis, junto com os WRC, que são protótipos, muito resistentes e sofisticados. Nós andamos num “Grupo N”, um carro de série com algumas alterações. O certo é que nós passamos pelos mesmos sítios onde os outros passam e temos três dias de corrida. São provas muito longas e duras, onde este tipo de carro sofre muito. Temos de ter alguma sorte e conhecer bem as corridas, porque estamos a falar dos melhores pilotos do
Em 2008, planeava atacar o título mundial. O que correu mal?
No Campeonato do Mundo, acontecem tantos problemas… Um exemplo: em 2006, o campeão do mundo foi o Nasser Al-Attiyah e, em 2008, com o mesmo tipo de carro, no mesmo grupo, com os mesmos adversários, não conseguiu fazer um ponto sequer. Os resultados são muito voláteis. No grupo dos sete, oito primeiros, qualquer um pode ser campeão. Já tivemos muitos azares, mas estamos com cada vez mais experiência. A qualquer momento podemos ser campeões.
Dakar incluído?
Quem sabe? São provas que exigem outra experiência…
Exactamente. Lá não é a rapidez pura que faz a diferença. Conta a experiência, a equipa onde estamos inseridos. E muito espírito de sacrifício. Se essa hora chegar, teremos de ter outra postura na corrida. Qual é a receita para um bom piloto de ralis?
O rali é mais uma corrida de “sprint”, mais curta, portanto podemos ser muito mais explosivos no tempo que fazemos. Uma prova como o Dakar é mais de “endurance”. Mas, neste momento, ainda estou na fase do “sprint”, da explosão. Quem são os seus ídolos?
Aprendi que devo dizer que vou fazer o meu melhor, que vou trabalhar muito, e o resultado pode ser o primeiro, segundo, quarto, quinto ou o sexto lugar, não sei. Depende dos problemas que tivermos. Mas se me perguntar se tenho velocidade suficiente para ser campeão do mundo, respondo que sim.
O Ayrton Senna e, actualmente, o Sebastien Loeb, que está a fazer uma carreira fantástica no Campeonato do Mundo de Ralis. Contudo, na posição em que estou, comecei a avaliar o porquê de muitas coisas – nunca tirando o mérito a estas duas pessoas, o certo é que tiveram as equipas certas, estavam no sítio certo à hora certa. É preciso criar todo um conjunto de factores para que tudo corra bem.
Em termos de futuro, qual é o
Qual foi o pior momento da sua
É esse o objectivo para este ano?
seu grande objectivo?
Chegar a uma grande equipa oficial do Mundial de Ralis (WRC) e ser campeão mundial absoluto. E fora do rali, ambiciona brilhar em alguma outra disciplina do desporto automóvel?
Mais tarde, não digo não à passagem para o todo-o-terreno. Já lá fiz algumas participações. Quem
carreira?
Ainda não tive um pior momento na minha carreira. Estive sempre com as equipas certas, os patrocinadores certos, nos campeonatos de que mais gosto. Nunca tive nenhum acidente grave. Não posso apontar nada a não ser pequenas desistências. Tenho sido um privilegiado.
Já lhe aconteceu dar por si a conduzir em estrada como se estivesse em competição?
Não. Sou criticado pelos meus amigos por andar excessivamente devagar. Quando tinha 18-19 anos, claro que fiz as minhas «habilidades». Algumas bastante irresponsáveis, até. Mas, hoje em dia, a
minha postura é completamente oposta. A adrenalina de conduzir depressa é no sítio certo: nos ralis. Quando não está a treinar ou a competir, o que é que faz?
Estou com o meu filho, que tem um ano. É ele que me carrega as baterias – embora de noite mas descarregue muitas vezes. n
DREAM TEAM TMN Armindo Araújo, patrocinado pela tmn desde 2007, integra a Dream Team TMN, uma sólida equipa de jovens e promissores atletas portugueses com provas dadas a nível internacional: Bernardo Sousa e Álvaro Parente, no automobilismo; Michelle Larcher de Brito, no ténis; Tiago Pires, no surf; Francisco Lobato, na vela; e Hélder Rodrigues e Ruben Faria, no todo-o-terreno.
2009
“TIVE A PRIMEIRA MOTA AOS SEIS ANOS. DESDE MIÚDO QUE GOSTAVA DE MOTAS, AUTOMÓVEIS, BICICLETAS. NA MESMA ALTURA, APRENDI A CONDUZIR NO CARRO DA MINHA AVÓ.”
sabe se, depois dos ralis, não haverão umas participações ou uma permanência no campeonato de todo-o-terreno?
AGOSTO, SETEMBRO
CEDO SE APRENDE O OFÍCIO
mundo. Temos feito boas corridas, mas, por algum motivo, as coisas não têm corrido como queríamos. Temos rodado dentro dos cinco primeiros lugares e fazemos parte do lote de potenciais vencedores. Estamos a lutar por um lugar na frente do Campeonato do Mundo. A nossa hora vai chegar.
23
o outro lado TEXTO JOÃO MESTRE I FOTOGRAFIA PEDRO LOUREIRO
HUMOR BEIRAO Um boneco de ventríloquo caminha pela rua, cruza-se com um desconhecido e desata a falar com ele. «Oh moço!
Oh moço! Deita cá para fora, deita cá para fora!»
MAIO, JUNHO
2009
MAIO, JUNHO
2009
Em poucos segundos, o novo anúncio da TMN conseguiu deixar muita gente confusa e a questionar: «Mas afinal quem é este tipo?» 38
39
o outro lado TEXTO JOÃO MESTRE I FOTOGRAFIA PEDRO LOUREIRO
HUMOR BEIRAO Um boneco de ventríloquo caminha pela rua, cruza-se com um desconhecido e desata a falar com ele. «Oh moço!
Oh moço! Deita cá para fora, deita cá para fora!»
MAIO, JUNHO
2009
MAIO, JUNHO
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Em poucos segundos, o novo anúncio da TMN conseguiu deixar muita gente confusa e a questionar: «Mas afinal quem é este tipo?» 38
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MAIO, JUNHO
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o outro lado I paulito I
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le apresenta-se, num vídeo que circula pela Internet: «Olá, o meu nome é Paulito, tenho 19 anos e ando a estudar Comunicação Social.» Paulito saiu do imaginário do colectivo humorístico GANA (Guionistas e Argumentistas Não-Alinhados). São três as «personagens» por detrás da personagem: João Moreira, argumentista e voz de vários bonecos; Pedro Santo, argumentista; e João Pombeiro, responsável pelas animações e edição de vídeo. À primeira vista – e pela forma como discutem e se interrompem mutuamente – pensar-se-ia que são amigos de longa data, mas não: conheceram-se há apenas dois anos, no programa “Boa Noite, Alvim”, transmitido pela SIC Radical. O mais curioso é a forma como lá foram parar. Pombeiro e Santo abdicam da palavra para Moreira contar a sua história. Tudo começou na Rádio Universitária de Coimbra (RUC), onde tinha um espaço humorístico, a meias com um amigo. Arranjaram o contacto do apresentador Fernando Alvim e resolveram «fazer uma daquelas brincadeiras que se faz só porque
JOAO MOREIRA
sim»: «Ligámos-lhe a dizer que estávamos a fazer um mestrado em Psicologia do Humor e precisávamos de entrevistá-lo». Os outros dois riem-se, como se ouvissem a história pela primeira vez. No decorrer da entrevista, Fernando Alvim e João Moreira descobriram que conheciam uma pessoa em comum – e, através dela, o apresentador acabou por ouvir as tais intervenções na RUC. Gostou do que ouviu. E convidou-os de imediato para colaborarem no programa. «E este cavalheiro estava lá.» Aponta para Pedro Santo. «Quer contar a sua história?» Santo veio por intermédio de Nuno Markl. Já se conheciam das andanças da Internet e o humorista recomendou-o a Alvim – que, interrompe Moreira, «estava a convidar pessoas novas para o programa, quase tudo canalha». «Nem era preciso ter grande mérito», acrescenta Pedro Santo. JOÃO POMBEIRO nasceu em Leiria,
em 1979, e estudou Artes Plásticas, nas Caldas da Rainha – onde vive há 12 anos. Para além dos seus trabalhos como artista plástico, fez design gráfico, webdesign, animação e «trinta-por-uma-linha». Pedro Santo é seu primo, tem menos um ano e também é leiriense. Estudou Sociologia e Planeamento no ISCTE e ficou por Lisboa. Começou por fazer aquilo a que chama «trabalho macaco»: «Estudos de impacto social, tratamento de dados e essas bodegas», diz, com um ar aborrecido. João Moreira também é de 1980. Nasceu em Coimbra e por lá continua a viver. Licenciou-se em Pintura, na Escola Universitária das
Artes de Coimbra, passou pela rádio, pelo teatro e por uma agência de publicidade em Lisboa, onde trabalhou como criativo. Formaram o GANA por uma questão de portefólio: «Se juntássemos aquilo, parecia alguma coisa.» «Um portefólio de pessoa», completa Pedro Santo. Em Março de 2008, surge no YouTube uma bizarra personagem chamada Bruno Aleixo – um sujeito pouco amistoso, com cara de “ewok”, que fala com pronúncia de Coimbra e dá conselhos absurdos. (Um exemplo: «Nunca durmas todo nu; a casa pode arder e depois ficas cá fora, pelado.») Não tinham grande expectativa com o boneco – «planeámos fazer vida disto, mas não necessariamente com aquilo». Pois bem, em menos de um fósforo, Aleixo tornou-se num dos maiores fenómenos de popularidade da Internet em português e acabou por ir parar à televisão, com “O Programa do Aleixo”, um “talk-show” onde a personagem surge com uma nova cara (de cão, já que o “ewok” podia criar problemas legais) e canta clássicos de música «chunga», interage com outros bonecos e entrevista pessoas célebres. «Uma coisa tipo Marretas» – aponta Moreira – em que Aleixo é «uma espécie de Sapo Cocas». Arranjar entrevistados foi complicado. «Muitas pessoas estavam de pé atrás porque não percebiam a dinâmica daquilo», conta João Pombeiro. Ainda assim, conseguiram um interessante naipe de convidados, entre eles o escritor José Luís Peixoto, o actor Miguel Guilherme e o músico Paulo Furtado.
PEDRO SANTO
A primeira série teve sete episódios e terminou com balanço positivo. A segunda temporada está em vias de ser produzida e prevê-se que vá para o ar no último trimestre de 2009. Mas não divulgam se será na SIC Radical. O PRIMEIRO contacto da T Magazine
com os «Não-Alinhados» aconteceu por telefone, com João Moreira. De imediato, aquela voz soou familiar. Era o próprio Bruno Aleixo, se excluirmos o tratamento digital que lhe modifica o tom. «As vozes são divididas irmãmente», graceja Pedro Santo: «eu faço uma [Busto] e o Moreira faz o resto». Pelo meio, há também algumas colaborações de amigos. Os diálogos absurdos entre as personagens são, por vezes, emprestados de histórias da vida real, como no vídeo em que Bruno Aleixo visita a avó e esta lhe oferece arroz doce. Aleixo diz que é alérgico à lactose; ela responde que se esqueceu de juntar leite e fez o arroz só com água. Na vida real, João Moreira é alérgico à lactose e teve um diálogo idêntico com a sua avó, que vive na Anadia. É a ela que vai buscar muitas das expressões utilizadas. «Tive uma infância marcadamente rural», assume. Será essa, talvez, a maior influência do humor do GANA, feito de «referências culturais de toda a zona Centro», segundo afirma Pedro Santo. Definem-se como a «geração pinhal e Internet»: «Crescemos com pinhal perto, fizemos cabanas, e vimos a Internet nascer». O que leva a duas reacções, resumidas por João Pombeiro: «as pessoas que passaram por aquilo e acham piada porque se identificam, e aquelas que não tiveram
JOAO POMBEIRO
O processo criativo é pacífico? JM: Entre nós sim, mas entre estes dois cavalheiros, não. Mas eles são primos, podem. PS: Acho que não há grandes conflitos. JP: O João Moreira foi avisado que eu, se um dia tiver de escolher alguém, vou escolher uma pessoa da família. Não é nada de pessoal. PS: Sendo que eu ainda não me decidi. JM: Eu ando há uns meses a tentar arranjar um primo, também. JP: Se bem que o João Pombeiro gosta mais do cordialismo do João Moreira. Porque este senhor [Santo] é bruto. PS: O elo de ligação sou eu. Nenhum deles tem à-vontade para ser verdadeiro. As pessoas, quando se conhecem há muito tempo, são agressivas umas para as outras. JM: É como o Aleixo e o Busto. PS: Estes senhores nem sequer têm à-vontade, portanto são muito cordiais um com o outro. JM: É só «boa tarde», «boa noite». JP: No entanto, temos chamadas grátis entre nós. Coisa que não acontece aqui com este senhor [Santo]. JM: Já temos Moche. PS: Eu não mudei ainda. JM: O senhor tem um mega-sorriso, não é? Daqueles que é um “smile”? JP: Tem um Pako, daqueles que dá para ganhar dinheiro.
MAIO, JUNHO
2009
o outro lado I paulito I
40
le apresenta-se, num vídeo que circula pela Internet: «Olá, o meu nome é Paulito, tenho 19 anos e ando a estudar Comunicação Social.» Paulito saiu do imaginário do colectivo humorístico GANA (Guionistas e Argumentistas Não-Alinhados). São três as «personagens» por detrás da personagem: João Moreira, argumentista e voz de vários bonecos; Pedro Santo, argumentista; e João Pombeiro, responsável pelas animações e edição de vídeo. À primeira vista – e pela forma como discutem e se interrompem mutuamente – pensar-se-ia que são amigos de longa data, mas não: conheceram-se há apenas dois anos, no programa “Boa Noite, Alvim”, transmitido pela SIC Radical. O mais curioso é a forma como lá foram parar. Pombeiro e Santo abdicam da palavra para Moreira contar a sua história. Tudo começou na Rádio Universitária de Coimbra (RUC), onde tinha um espaço humorístico, a meias com um amigo. Arranjaram o contacto do apresentador Fernando Alvim e resolveram «fazer uma daquelas brincadeiras que se faz só porque
JOAO MOREIRA
sim»: «Ligámos-lhe a dizer que estávamos a fazer um mestrado em Psicologia do Humor e precisávamos de entrevistá-lo». Os outros dois riem-se, como se ouvissem a história pela primeira vez. No decorrer da entrevista, Fernando Alvim e João Moreira descobriram que conheciam uma pessoa em comum – e, através dela, o apresentador acabou por ouvir as tais intervenções na RUC. Gostou do que ouviu. E convidou-os de imediato para colaborarem no programa. «E este cavalheiro estava lá.» Aponta para Pedro Santo. «Quer contar a sua história?» Santo veio por intermédio de Nuno Markl. Já se conheciam das andanças da Internet e o humorista recomendou-o a Alvim – que, interrompe Moreira, «estava a convidar pessoas novas para o programa, quase tudo canalha». «Nem era preciso ter grande mérito», acrescenta Pedro Santo. JOÃO POMBEIRO nasceu em Leiria,
em 1979, e estudou Artes Plásticas, nas Caldas da Rainha – onde vive há 12 anos. Para além dos seus trabalhos como artista plástico, fez design gráfico, webdesign, animação e «trinta-por-uma-linha». Pedro Santo é seu primo, tem menos um ano e também é leiriense. Estudou Sociologia e Planeamento no ISCTE e ficou por Lisboa. Começou por fazer aquilo a que chama «trabalho macaco»: «Estudos de impacto social, tratamento de dados e essas bodegas», diz, com um ar aborrecido. João Moreira também é de 1980. Nasceu em Coimbra e por lá continua a viver. Licenciou-se em Pintura, na Escola Universitária das
Artes de Coimbra, passou pela rádio, pelo teatro e por uma agência de publicidade em Lisboa, onde trabalhou como criativo. Formaram o GANA por uma questão de portefólio: «Se juntássemos aquilo, parecia alguma coisa.» «Um portefólio de pessoa», completa Pedro Santo. Em Março de 2008, surge no YouTube uma bizarra personagem chamada Bruno Aleixo – um sujeito pouco amistoso, com cara de “ewok”, que fala com pronúncia de Coimbra e dá conselhos absurdos. (Um exemplo: «Nunca durmas todo nu; a casa pode arder e depois ficas cá fora, pelado.») Não tinham grande expectativa com o boneco – «planeámos fazer vida disto, mas não necessariamente com aquilo». Pois bem, em menos de um fósforo, Aleixo tornou-se num dos maiores fenómenos de popularidade da Internet em português e acabou por ir parar à televisão, com “O Programa do Aleixo”, um “talk-show” onde a personagem surge com uma nova cara (de cão, já que o “ewok” podia criar problemas legais) e canta clássicos de música «chunga», interage com outros bonecos e entrevista pessoas célebres. «Uma coisa tipo Marretas» – aponta Moreira – em que Aleixo é «uma espécie de Sapo Cocas». Arranjar entrevistados foi complicado. «Muitas pessoas estavam de pé atrás porque não percebiam a dinâmica daquilo», conta João Pombeiro. Ainda assim, conseguiram um interessante naipe de convidados, entre eles o escritor José Luís Peixoto, o actor Miguel Guilherme e o músico Paulo Furtado.
PEDRO SANTO
A primeira série teve sete episódios e terminou com balanço positivo. A segunda temporada está em vias de ser produzida e prevê-se que vá para o ar no último trimestre de 2009. Mas não divulgam se será na SIC Radical. O PRIMEIRO contacto da T Magazine
com os «Não-Alinhados» aconteceu por telefone, com João Moreira. De imediato, aquela voz soou familiar. Era o próprio Bruno Aleixo, se excluirmos o tratamento digital que lhe modifica o tom. «As vozes são divididas irmãmente», graceja Pedro Santo: «eu faço uma [Busto] e o Moreira faz o resto». Pelo meio, há também algumas colaborações de amigos. Os diálogos absurdos entre as personagens são, por vezes, emprestados de histórias da vida real, como no vídeo em que Bruno Aleixo visita a avó e esta lhe oferece arroz doce. Aleixo diz que é alérgico à lactose; ela responde que se esqueceu de juntar leite e fez o arroz só com água. Na vida real, João Moreira é alérgico à lactose e teve um diálogo idêntico com a sua avó, que vive na Anadia. É a ela que vai buscar muitas das expressões utilizadas. «Tive uma infância marcadamente rural», assume. Será essa, talvez, a maior influência do humor do GANA, feito de «referências culturais de toda a zona Centro», segundo afirma Pedro Santo. Definem-se como a «geração pinhal e Internet»: «Crescemos com pinhal perto, fizemos cabanas, e vimos a Internet nascer». O que leva a duas reacções, resumidas por João Pombeiro: «as pessoas que passaram por aquilo e acham piada porque se identificam, e aquelas que não tiveram
JOAO POMBEIRO
O processo criativo é pacífico? JM: Entre nós sim, mas entre estes dois cavalheiros, não. Mas eles são primos, podem. PS: Acho que não há grandes conflitos. JP: O João Moreira foi avisado que eu, se um dia tiver de escolher alguém, vou escolher uma pessoa da família. Não é nada de pessoal. PS: Sendo que eu ainda não me decidi. JM: Eu ando há uns meses a tentar arranjar um primo, também. JP: Se bem que o João Pombeiro gosta mais do cordialismo do João Moreira. Porque este senhor [Santo] é bruto. PS: O elo de ligação sou eu. Nenhum deles tem à-vontade para ser verdadeiro. As pessoas, quando se conhecem há muito tempo, são agressivas umas para as outras. JM: É como o Aleixo e o Busto. PS: Estes senhores nem sequer têm à-vontade, portanto são muito cordiais um com o outro. JM: É só «boa tarde», «boa noite». JP: No entanto, temos chamadas grátis entre nós. Coisa que não acontece aqui com este senhor [Santo]. JM: Já temos Moche. PS: Eu não mudei ainda. JM: O senhor tem um mega-sorriso, não é? Daqueles que é um “smile”? JP: Tem um Pako, daqueles que dá para ganhar dinheiro.
PAULITO esteve para fazer parte de
“O Programa do Aleixo”. João Moreira revela que havia uma personagem «que era uma fusão entre um
BRUNO ALEIXO Tem 52 anos, vive em Coimbra e tem perto de 8.000 amigos no Hi5. Considera-se uma pessoa «com objectivos na vida», é adepto do União de Coimbra e, entre outros interesses, gosta de «jogar às cartas, andar de jipe, carros comerciais, jogar à consola, ir ao café, coleccionismo, ver televisão».
BUSTO O “side-kick” de Aleixo no programa televisivo tem 32 anos e vive em Condeixa. Actualmente, protagoniza a web-série “O Busto no Emprego”, sobre o seu dia-a-dia como operador de “call center”. Segundo Pedro Santo, que lhe dá a voz, Busto está no programa «para levar “porrada”».
PAULITO É um boneco de ventríloquo com corpo de pessoa. Tem 19 anos, estuda Comunicação Social e considera-se «o gajo mais indicado para fazer as campanhas da TMN» porque é «danado para falar e para fazer amigos». A voz é de João Moreira, que o descreve como alguém com «a inocência de não ter noção de que está a incomodar o próximo».
HOMEM DO BUCACO Conta 43 anos, tem aspecto de troglodita, conta histórias chatas e não se percebe quase nada do que diz – pelo que as suas intervenções são sempre legendadas. Ainda assim, é a personagem favorita de Pedro Santo e está no “top 3” de João Moreira e de João Pombeiro.
* Vídeos, notícias e mais personagens em http://videos.sapo.pt/cena
2009
QUE FALAM MUITO E NÃO TÊM NOÇÃO DE QUE ESTÃO A INCOMODAR», DESCREVE JOÃO MOREIRA, QUE DÁ VOZ E CORPO AO BONECO.
boneco de ventríloquo e o corpo do ventríloquo». Contudo, não o conseguiram encaixar. «Sobretudo porque, com a animação estática que usamos, seria só uma cabeça de boneco com corpo de boneco, precisava de um movimento mais orgânico.» Arrumaram-no, então, na gaveta até ao dia em que tivessem meios para dar o efeito pretendido. Com o anúncio, aponta Pombeiro, «esta coisa do Paulito funcionou bem: não havia limitações técnicas e o conceito de cabeça de boneco e corpo humano deu mesmo para passar». Ao contrário do que sucede na série, aqui a parte técnica ficou a cargo da TBWA, agência responsável pelo filme. «O Paulito é um jovem adulto que tem aquela inocência das pessoas que falam muito e não têm noção de que estão a incomodar», descreve João Moreira, que dá voz e corpo ao boneco. Em termos práticos, o argumentista é filmado com um capuz azul – ou, nas suas palavras, «uma meia à Capitão América» - a tapar-lhe a cabeça. Em pós-produção, a cabeça é retirada e substituída pelas imagens animadas da cara do Paulito, feitas a partir de um modelo em esferovite. A voz, essa praticamente não tem alterações: é Moreira no seu melhor, agora em falsete. Desengane-se quem estiver à espera de ver o Paulito em “O Programa do Aleixo”: «O programa teria de ter um orçamento muito grande para ele entrar exactamente como é no anúncio», reforça Pombeiro. De qualquer forma, a avaliar pelo feitio rezingão do anfitrião, muito dificilmente haveria lugar para outro fala-barato na série. «Duvido que o Aleixo tivesse pachorra para o aturar», aponta Moreira, rindo. Aos fãs do Paulito, resta-lhes, então, esperar que a TMN «deite cá para fora» mais anúncios. n
MAIO, JUNHO
O PAULITO TEM AQUELA INOCÊNCIA DAS PESSOAS
contacto com essa realidade mas acham piada pela estranheza». No caso do público brasileiro, onde já angariaram uma considerável legião de fãs, só funciona a segunda opção: «não há identificação, nem no sotaque, mas há a estranheza do sotaque português e do boneco». Se exceptuarmos os objectivos mais ambiciosos e distantes – como o de serem «os primeiros portugueses a ganhar o Óscar de Melhor Filme Estrangeiro» –, uma meta que o GANA gostaria de cortar a curto/médio prazo é a venda do programa para a televisão brasileira. Para já, vão piscando o olho com a série de “webisódios” “Aleixo no Brasil”, baseada nas aventuras do boneco no Rio de Janeiro. Aí, há já personagens brasileiras, como Seu Jaca, dono da pensão onde Aleixo está hospedado. Pensaram até na ideia (que talvez não esteja posta de parte) de «o Seu Jaca ter um “talkshow”, na pensão, com os hóspedes», atira Moreira. «Tipo “A Casa de Irene”», completa João Pombeiro, levantando o véu sobre o fascínio do trio pelo humor brasileiro. Questionados sobre quem mais gostariam de ter como entrevistado no programa, os primeiros nomes vêm do lado de lá do Atlântico: os actores Tarcísio Meira e Tarcísio Filho ou o apresentador Sílvio Santos. Quanto a portugueses, Moreira escolheria o Marquês de Fronteira. Santo gostaria de entrevistar o Director-Geral de Saúde, Francisco George. Já João Pombeiro preferia uma convidada feminina, dado que na primeira série os entrevistados foram todos homens. «E não foi por não tentarmos.»
GALERIA DE PERSONAGENS`*
o outro lado I paulito I
43
PAULITO esteve para fazer parte de
“O Programa do Aleixo”. João Moreira revela que havia uma personagem «que era uma fusão entre um
BRUNO ALEIXO Tem 52 anos, vive em Coimbra e tem perto de 8.000 amigos no Hi5. Considera-se uma pessoa «com objectivos na vida», é adepto do União de Coimbra e, entre outros interesses, gosta de «jogar às cartas, andar de jipe, carros comerciais, jogar à consola, ir ao café, coleccionismo, ver televisão».
BUSTO O “side-kick” de Aleixo no programa televisivo tem 32 anos e vive em Condeixa. Actualmente, protagoniza a web-série “O Busto no Emprego”, sobre o seu dia-a-dia como operador de “call center”. Segundo Pedro Santo, que lhe dá a voz, Busto está no programa «para levar “porrada”».
PAULITO É um boneco de ventríloquo com corpo de pessoa. Tem 19 anos, estuda Comunicação Social e considera-se «o gajo mais indicado para fazer as campanhas da TMN» porque é «danado para falar e para fazer amigos». A voz é de João Moreira, que o descreve como alguém com «a inocência de não ter noção de que está a incomodar o próximo».
HOMEM DO BUCACO Conta 43 anos, tem aspecto de troglodita, conta histórias chatas e não se percebe quase nada do que diz – pelo que as suas intervenções são sempre legendadas. Ainda assim, é a personagem favorita de Pedro Santo e está no “top 3” de João Moreira e de João Pombeiro.
* Vídeos, notícias e mais personagens em http://videos.sapo.pt/cena
2009
QUE FALAM MUITO E NÃO TÊM NOÇÃO DE QUE ESTÃO A INCOMODAR», DESCREVE JOÃO MOREIRA, QUE DÁ VOZ E CORPO AO BONECO.
boneco de ventríloquo e o corpo do ventríloquo». Contudo, não o conseguiram encaixar. «Sobretudo porque, com a animação estática que usamos, seria só uma cabeça de boneco com corpo de boneco, precisava de um movimento mais orgânico.» Arrumaram-no, então, na gaveta até ao dia em que tivessem meios para dar o efeito pretendido. Com o anúncio, aponta Pombeiro, «esta coisa do Paulito funcionou bem: não havia limitações técnicas e o conceito de cabeça de boneco e corpo humano deu mesmo para passar». Ao contrário do que sucede na série, aqui a parte técnica ficou a cargo da TBWA, agência responsável pelo filme. «O Paulito é um jovem adulto que tem aquela inocência das pessoas que falam muito e não têm noção de que estão a incomodar», descreve João Moreira, que dá voz e corpo ao boneco. Em termos práticos, o argumentista é filmado com um capuz azul – ou, nas suas palavras, «uma meia à Capitão América» - a tapar-lhe a cabeça. Em pós-produção, a cabeça é retirada e substituída pelas imagens animadas da cara do Paulito, feitas a partir de um modelo em esferovite. A voz, essa praticamente não tem alterações: é Moreira no seu melhor, agora em falsete. Desengane-se quem estiver à espera de ver o Paulito em “O Programa do Aleixo”: «O programa teria de ter um orçamento muito grande para ele entrar exactamente como é no anúncio», reforça Pombeiro. De qualquer forma, a avaliar pelo feitio rezingão do anfitrião, muito dificilmente haveria lugar para outro fala-barato na série. «Duvido que o Aleixo tivesse pachorra para o aturar», aponta Moreira, rindo. Aos fãs do Paulito, resta-lhes, então, esperar que a TMN «deite cá para fora» mais anúncios. n
MAIO, JUNHO
O PAULITO TEM AQUELA INOCÊNCIA DAS PESSOAS
contacto com essa realidade mas acham piada pela estranheza». No caso do público brasileiro, onde já angariaram uma considerável legião de fãs, só funciona a segunda opção: «não há identificação, nem no sotaque, mas há a estranheza do sotaque português e do boneco». Se exceptuarmos os objectivos mais ambiciosos e distantes – como o de serem «os primeiros portugueses a ganhar o Óscar de Melhor Filme Estrangeiro» –, uma meta que o GANA gostaria de cortar a curto/médio prazo é a venda do programa para a televisão brasileira. Para já, vão piscando o olho com a série de “webisódios” “Aleixo no Brasil”, baseada nas aventuras do boneco no Rio de Janeiro. Aí, há já personagens brasileiras, como Seu Jaca, dono da pensão onde Aleixo está hospedado. Pensaram até na ideia (que talvez não esteja posta de parte) de «o Seu Jaca ter um “talkshow”, na pensão, com os hóspedes», atira Moreira. «Tipo “A Casa de Irene”», completa João Pombeiro, levantando o véu sobre o fascínio do trio pelo humor brasileiro. Questionados sobre quem mais gostariam de ter como entrevistado no programa, os primeiros nomes vêm do lado de lá do Atlântico: os actores Tarcísio Meira e Tarcísio Filho ou o apresentador Sílvio Santos. Quanto a portugueses, Moreira escolheria o Marquês de Fronteira. Santo gostaria de entrevistar o Director-Geral de Saúde, Francisco George. Já João Pombeiro preferia uma convidada feminina, dado que na primeira série os entrevistados foram todos homens. «E não foi por não tentarmos.»
GALERIA DE PERSONAGENS`*
o outro lado I paulito I
43
traço
I arquitectura I
NUNO RIBEIRO LOPES DIÁLOGO DE ESPAÇOS
FEVEREIRO, MARÇO
2009
Paixão, sítio e autenticidade: a trilogia essencial
80
de um
arquitecto que aprendeu com Siza a ser «invisível» quando a realidade assim o exige.
olho para aquilo que faço agora e penso “olha que ingénuo!”». estreou-se no ofício aos 19 anos, ao lado de Álvaro Siza Vieira. Frequentava, então, a Escola de Belas Artes do Porto. A verdadeira sala de aula, porém, seria o atelier de Siza: «Vivia-se o PREC, as escolas praticamente não
NUNO RIBEIRO LOPES
existiam, portanto aprendíamos na rua, com os projectos». Com o mestre aprendeu «uma arquitectura que não é projectada de gabinete e imposta», assente no diálogo. Nascido na Póvoa de Varzim e formado no Porto, Nuno Ribeiro Lopes acabou por ir parar a Évora, em 1979 – onde, passados 30 anos, ainda vive e trabalha.
FEVEREIRO, MARÇO
para avaliar os seus primeiros projectos, responde como qualquer arquitecto responderia: «seguramente não faria da mesma forma; cometi uns quantos erros técnicos». Porém, defende que não se deve corrigir o que já está feito – isso seria «querer mudar o passado, mandar no tempo. Se calhar daqui a dez anos SE LHE PEDIRMOS
2009
TEXTO JOÃO MESTRE I FOTOGRAFIA PEDRO LOUREIRO
75
traço
I arquitectura I
NUNO RIBEIRO LOPES DIÁLOGO DE ESPAÇOS
FEVEREIRO, MARÇO
2009
Paixão, sítio e autenticidade: a trilogia essencial
80
de um
arquitecto que aprendeu com Siza a ser «invisível» quando a realidade assim o exige.
olho para aquilo que faço agora e penso “olha que ingénuo!”». estreou-se no ofício aos 19 anos, ao lado de Álvaro Siza Vieira. Frequentava, então, a Escola de Belas Artes do Porto. A verdadeira sala de aula, porém, seria o atelier de Siza: «Vivia-se o PREC, as escolas praticamente não
NUNO RIBEIRO LOPES
existiam, portanto aprendíamos na rua, com os projectos». Com o mestre aprendeu «uma arquitectura que não é projectada de gabinete e imposta», assente no diálogo. Nascido na Póvoa de Varzim e formado no Porto, Nuno Ribeiro Lopes acabou por ir parar a Évora, em 1979 – onde, passados 30 anos, ainda vive e trabalha.
FEVEREIRO, MARÇO
para avaliar os seus primeiros projectos, responde como qualquer arquitecto responderia: «seguramente não faria da mesma forma; cometi uns quantos erros técnicos». Porém, defende que não se deve corrigir o que já está feito – isso seria «querer mudar o passado, mandar no tempo. Se calhar daqui a dez anos SE LHE PEDIRMOS
2009
TEXTO JOÃO MESTRE I FOTOGRAFIA PEDRO LOUREIRO
75
traço I arquitectura I
FEVEREIRO, MARÇO
2009
“SE
76
A MODA SE ENCONTRAR CONNOSCO, ÓPTIMO. MAS NÃO PODE SER UMA PREOCUPAÇÃO, NUNCA. UM PROJECTO TEM FORÇA SE FOR SENTIDO”
SETEMBRO
A ARQUITECTURA,
segundo os princípios elementares da disciplina, assenta na trilogia «programa, sítio, cliente». Todos estes elementos têm importância, mas no discurso sereno e confiante de Nuno Ribeiro Lopes denota-se uma preferência pelo segundo. «A arquitectura tradicional tem uma lógica do sítio: as condições, os materiais, a mão-de-obra», explica, enquanto demonstra, rabiscando no seu bloco de esquiço, o método de construção dos vãos das portas e janelas na ilha do Pico. «Não vale a pena copiar do livro e fazer igual; é preciso perceber a lógica das coisas. Os materiais locais, aparentemente mais pobres, são mais expressivos do que um caixote rigorosamente desenhado e pré-formatado». Entramos naquilo que define como «comércio de arquitectura». «É como eu dizer “só faço projectos de vidro com pilares metálicos e agora exporto isso para todo o lado”», afirma sorridente. É uma questão de moda, talvez. No entanto, «é muito mais difícil fazer uma arquitectura que não esteja na moda». «Eu gosto de ser marginal», diz com alguma ironia.
“O EGO NÃO TEM DE SER SUPERIOR AO SÍTIO. MUITAS VEZES, A NÃO-VISIBILIDADE É MUITO MAIS ATRACTIVA”
2009
de 1957 e Outubro de 1958, a terra tremeu repetida e violentamente. Do mar furioso erguia-se uma coluna de vapor com quatro quilómetros de altura, projectando lava, cinza e blocos de pedra. Ainda a preto e branco, a RTP noticiava o espectáculo natural, simultaneamente belo e horrível. De olhos colados na televisão, Nuno, então com «três, quatro anos», assistia a algo que o iria marcar para o resto ENTRE
da vida. «É uma imagem mágica», recorda. «É uma coincidência espantosa, como é que uma memória de infância prevalece e acaba por se transformar numa capacidade de intervenção.» O entusiasmo com que fala do Centro de Interpretação do Vulcão dos Capelinhos (na ilha do Faial) não deixa margem para dúvidas: Nuno Ribeiro Lopes sente um orgulho especial por esta obra. Mesmo que contorne a resposta quando se lhe pergunta qual é o seu projecto favorito: «é sempre o que estou a fazer e o próximo», lote que inclui, actualmente, o Centro de Interpretação da Furna do Enxofre, na Graciosa. A ideia principal, neste projecto ainda em fase de construção, foi tentar ser invisível, «fazer uma coisa transparente», de forma a perturbar o menos possível a paisagem. Criou aquilo que descreve como «uma caixa de vidro em cima de um precipício». «Um projecto pode ser apaixonante por duas razões: pela parte poética, a magia do local, ou pelo desafio construtivo de se arriscar tudo o que se sabe».
FEVEREIRO, MARÇO
Chegou inicialmente por três meses, para trabalhar na implementação do plano da Malagueira, mas a construção do bairro foi-se prolongando, entre mudanças de Governo e de financiamento. Nuno acabou por ir ficando. Apesar de viver actualmente numa casa arrendada, vontade de projectar o seu próprio espaço não lhe falta. «É o objectivo de qualquer arquitecto.» O único problema é o preço dos terrenos em Évora. Porque, no que toca à casa, não se considera muito exigente, desde que exista espaço aberto – «não gosto de edifícios muito compartimentados».
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traço I arquitectura I
FEVEREIRO, MARÇO
2009
“SE
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A MODA SE ENCONTRAR CONNOSCO, ÓPTIMO. MAS NÃO PODE SER UMA PREOCUPAÇÃO, NUNCA. UM PROJECTO TEM FORÇA SE FOR SENTIDO”
SETEMBRO
A ARQUITECTURA,
segundo os princípios elementares da disciplina, assenta na trilogia «programa, sítio, cliente». Todos estes elementos têm importância, mas no discurso sereno e confiante de Nuno Ribeiro Lopes denota-se uma preferência pelo segundo. «A arquitectura tradicional tem uma lógica do sítio: as condições, os materiais, a mão-de-obra», explica, enquanto demonstra, rabiscando no seu bloco de esquiço, o método de construção dos vãos das portas e janelas na ilha do Pico. «Não vale a pena copiar do livro e fazer igual; é preciso perceber a lógica das coisas. Os materiais locais, aparentemente mais pobres, são mais expressivos do que um caixote rigorosamente desenhado e pré-formatado». Entramos naquilo que define como «comércio de arquitectura». «É como eu dizer “só faço projectos de vidro com pilares metálicos e agora exporto isso para todo o lado”», afirma sorridente. É uma questão de moda, talvez. No entanto, «é muito mais difícil fazer uma arquitectura que não esteja na moda». «Eu gosto de ser marginal», diz com alguma ironia.
“O EGO NÃO TEM DE SER SUPERIOR AO SÍTIO. MUITAS VEZES, A NÃO-VISIBILIDADE É MUITO MAIS ATRACTIVA”
2009
de 1957 e Outubro de 1958, a terra tremeu repetida e violentamente. Do mar furioso erguia-se uma coluna de vapor com quatro quilómetros de altura, projectando lava, cinza e blocos de pedra. Ainda a preto e branco, a RTP noticiava o espectáculo natural, simultaneamente belo e horrível. De olhos colados na televisão, Nuno, então com «três, quatro anos», assistia a algo que o iria marcar para o resto ENTRE
da vida. «É uma imagem mágica», recorda. «É uma coincidência espantosa, como é que uma memória de infância prevalece e acaba por se transformar numa capacidade de intervenção.» O entusiasmo com que fala do Centro de Interpretação do Vulcão dos Capelinhos (na ilha do Faial) não deixa margem para dúvidas: Nuno Ribeiro Lopes sente um orgulho especial por esta obra. Mesmo que contorne a resposta quando se lhe pergunta qual é o seu projecto favorito: «é sempre o que estou a fazer e o próximo», lote que inclui, actualmente, o Centro de Interpretação da Furna do Enxofre, na Graciosa. A ideia principal, neste projecto ainda em fase de construção, foi tentar ser invisível, «fazer uma coisa transparente», de forma a perturbar o menos possível a paisagem. Criou aquilo que descreve como «uma caixa de vidro em cima de um precipício». «Um projecto pode ser apaixonante por duas razões: pela parte poética, a magia do local, ou pelo desafio construtivo de se arriscar tudo o que se sabe».
FEVEREIRO, MARÇO
Chegou inicialmente por três meses, para trabalhar na implementação do plano da Malagueira, mas a construção do bairro foi-se prolongando, entre mudanças de Governo e de financiamento. Nuno acabou por ir ficando. Apesar de viver actualmente numa casa arrendada, vontade de projectar o seu próprio espaço não lhe falta. «É o objectivo de qualquer arquitecto.» O único problema é o preço dos terrenos em Évora. Porque, no que toca à casa, não se considera muito exigente, desde que exista espaço aberto – «não gosto de edifícios muito compartimentados».
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“ARQUITECTURA
PERCURSO. Nuno
«Faço os projectos direitos», começa, em tom de graça, «mas a realidade é torta e eu tenho de entortá-los todos». A adequação ao sítio, uma vez mais, sempre o sítio. «Forço-me a ser mais minimalista do que o que sou», acrescenta. E aqui entra uma definição mais metafórica de Arquitectura: «é como uma cidade medieval – entra-se por um beco, que desemboca numa praça, depois segue-se uma viela que faz uma curva e, de repente, descobre-se uns edifícios; Arquitectura é isso: vive da forma, dos volumes, da luz, dos contrastes, da surpresa», explica. «É pegar nos sítios e tentar não os estragar, acrescentar um pouco mais de paixão, de sedução, de emoção!» A par da questão da moda, aflige-o também o excesso de individualismo do arquitecto. «O ego não tem de ser superior ao sítio; muitas vezes, a não-visibilidade é muito mais atractiva», responde, a propósito da intervenção nos Capelinhos. A ideia original passava por recuperar o farol arruinado pela erupção. Nuno achou uma
péssima ideia. «Aquela ruína é a memória do que aconteceu», defende. A sua preocupação foi criar sustentação para manter o farol em ruínas, de forma a deixar a «ferida» aberta e a memória viva. Optou por construir a secção museológica debaixo da cinza, respeitando a cota de altitude do local antes da erupção. Concluída a obra, a cinza foi reposta e o Centro de Interpretação ficou «escondido», causando, nas palavras do arquitecto Victor Mestre, «um impacto tremendo, ao percebermos que ele está lá, sem o vermos». Não se vê, mas pressente-se. AOS SEUS OLHOS,
os Açores «têm uma capacidade mágica» que a totalidade do território continental não consegue ter. Nuno Ribeiro Lopes assina uma série de projectos no arquipélago. Alguns concluídos, outros em execução, outros ainda em fase de projecto. Esta «ligação atlântica» nasceu em 2002. Após a sua experiência à frente do Centro Histórico de Évora (entre 1996 e 2002), chegou o
convite para coordenar o Gabinete Técnico da Paisagem Protegida da Vinha do Pico. Devia pegar no projecto de candidatura a Património da Humanidade, entretanto devolvido para reformulação, e adaptá-lo às exigências da UNESCO. E foi o que fez. Entre os diversos trabalhos para levar a candidatura a bom porto, Nuno trocou o estirador por um par de galochas. «Tive de aprender agricultura», conta. Discutia-se a substituição do cultivo tradicional de vinha em quadrículas pelo cultivo em extensão, que implicaria a eliminação dos típicos muros de pedra (motivo central da candidatura), por ocuparem um terço da superfície cultivável. Era urgente convencer os viticultores a manter o tradicional: «comparámos o lucro de um sistema com o do outro e o Estado pagaria a diferença». «A cultura paga-se», frisa. «Porque é que há--de ser o cidadão a sustentar a cultura para serem os outros a desfrutá-la?». A verdade é que conseguiu. «O mais difícil foi tirar a política do meio de isto tudo: era
FEVEREIRO, MARÇO
2009
Ribeiro Lopes nasceu a 9 de Maio de 1954, na Póvoa de Varzim. Formou-se em Arquitectura em 1977, na Escola Superior de Belas Artes do Porto. Foi aprendiz no atelier de Álvaro Siza Vieira, entre 1973 e 1979. Entretanto, muda-se para Évora, para acompanhar a implementação do projecto do bairro da Malagueira. Acabou por ficar ligado ao urbanismo do município alentejano até 1996. Em paralelo, desenvolveu a sua actividade como arquitecto, docente universitário (ainda hoje se mantém ligado à Universidade de Évora), curador de exposições e orador em conferências. Em 2008, constituiu, com a arquitecta Sara Moncaixa Potes, o gabinete Nuno Ribeiro Lopes, Arquitectos Lda, em Évora.
É PEGAR NOS SÍTIOS E TENTAR NÃO OS ESTRAGAR, ACRESCENTAR UM POUCO MAIS DE PAIXÃO, DE SEDUÇÃO, DE EMOÇÃO”
“AS
OBRAS DE UM ARQUITECTO COMEÇAM A SER MADURAS A PARTIR DOS 50-60 ANOS. COM A IDADE, UM TIPO JÁ EXPERIMENTOU, JÁ BATEU COM A CABEÇA NA PAREDE.”
82
CENTRO DE INTERPRETAÇÃO DO VULCÃO DOS CAPELINHOS IMAGENS GENTILMENTE CEDIDAS PELO ARQ. FILIPE JORGE.
“ARQUITECTURA
PERCURSO. Nuno
«Faço os projectos direitos», começa, em tom de graça, «mas a realidade é torta e eu tenho de entortá-los todos». A adequação ao sítio, uma vez mais, sempre o sítio. «Forço-me a ser mais minimalista do que o que sou», acrescenta. E aqui entra uma definição mais metafórica de Arquitectura: «é como uma cidade medieval – entra-se por um beco, que desemboca numa praça, depois segue-se uma viela que faz uma curva e, de repente, descobre-se uns edifícios; Arquitectura é isso: vive da forma, dos volumes, da luz, dos contrastes, da surpresa», explica. «É pegar nos sítios e tentar não os estragar, acrescentar um pouco mais de paixão, de sedução, de emoção!» A par da questão da moda, aflige-o também o excesso de individualismo do arquitecto. «O ego não tem de ser superior ao sítio; muitas vezes, a não-visibilidade é muito mais atractiva», responde, a propósito da intervenção nos Capelinhos. A ideia original passava por recuperar o farol arruinado pela erupção. Nuno achou uma
péssima ideia. «Aquela ruína é a memória do que aconteceu», defende. A sua preocupação foi criar sustentação para manter o farol em ruínas, de forma a deixar a «ferida» aberta e a memória viva. Optou por construir a secção museológica debaixo da cinza, respeitando a cota de altitude do local antes da erupção. Concluída a obra, a cinza foi reposta e o Centro de Interpretação ficou «escondido», causando, nas palavras do arquitecto Victor Mestre, «um impacto tremendo, ao percebermos que ele está lá, sem o vermos». Não se vê, mas pressente-se. AOS SEUS OLHOS,
os Açores «têm uma capacidade mágica» que a totalidade do território continental não consegue ter. Nuno Ribeiro Lopes assina uma série de projectos no arquipélago. Alguns concluídos, outros em execução, outros ainda em fase de projecto. Esta «ligação atlântica» nasceu em 2002. Após a sua experiência à frente do Centro Histórico de Évora (entre 1996 e 2002), chegou o
convite para coordenar o Gabinete Técnico da Paisagem Protegida da Vinha do Pico. Devia pegar no projecto de candidatura a Património da Humanidade, entretanto devolvido para reformulação, e adaptá-lo às exigências da UNESCO. E foi o que fez. Entre os diversos trabalhos para levar a candidatura a bom porto, Nuno trocou o estirador por um par de galochas. «Tive de aprender agricultura», conta. Discutia-se a substituição do cultivo tradicional de vinha em quadrículas pelo cultivo em extensão, que implicaria a eliminação dos típicos muros de pedra (motivo central da candidatura), por ocuparem um terço da superfície cultivável. Era urgente convencer os viticultores a manter o tradicional: «comparámos o lucro de um sistema com o do outro e o Estado pagaria a diferença». «A cultura paga-se», frisa. «Porque é que há--de ser o cidadão a sustentar a cultura para serem os outros a desfrutá-la?». A verdade é que conseguiu. «O mais difícil foi tirar a política do meio de isto tudo: era
FEVEREIRO, MARÇO
2009
Ribeiro Lopes nasceu a 9 de Maio de 1954, na Póvoa de Varzim. Formou-se em Arquitectura em 1977, na Escola Superior de Belas Artes do Porto. Foi aprendiz no atelier de Álvaro Siza Vieira, entre 1973 e 1979. Entretanto, muda-se para Évora, para acompanhar a implementação do projecto do bairro da Malagueira. Acabou por ficar ligado ao urbanismo do município alentejano até 1996. Em paralelo, desenvolveu a sua actividade como arquitecto, docente universitário (ainda hoje se mantém ligado à Universidade de Évora), curador de exposições e orador em conferências. Em 2008, constituiu, com a arquitecta Sara Moncaixa Potes, o gabinete Nuno Ribeiro Lopes, Arquitectos Lda, em Évora.
É PEGAR NOS SÍTIOS E TENTAR NÃO OS ESTRAGAR, ACRESCENTAR UM POUCO MAIS DE PAIXÃO, DE SEDUÇÃO, DE EMOÇÃO”
“AS
OBRAS DE UM ARQUITECTO COMEÇAM A SER MADURAS A PARTIR DOS 50-60 ANOS. COM A IDADE, UM TIPO JÁ EXPERIMENTOU, JÁ BATEU COM A CABEÇA NA PAREDE.”
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CENTRO DE INTERPRETAÇÃO DO VULCÃO DOS CAPELINHOS IMAGENS GENTILMENTE CEDIDAS PELO ARQ. FILIPE JORGE.
1º
DE MAIO, ÉVORA
DAS LAJES TEATRO MUNICIPAL
HABITAÇÃO UNIFAMILIAR , EM ÉVORA
HABITAÇÃO UNIFAMILIAR , EM ÉVORA
MERCA DO DE VENDA S NOV AS
PATRIMÓNIO. Dirigiu o Centro Histórico de Évora, entre 1996 e 2002. Nos dois anos seguintes, esteve ligado à Paisagem Protegida da Cultura da Vinha do Pico e à respectiva candidatura a Património da Humanidade. Após o parecer positivo da UNESCO (em 2004), dedicou-se a outra candidatura, a da Universidade de Coimbra, ainda em curso. É membro da Comissão Nacional do ICOMOS – International Council on Monuments and Sites. E está ligado à criação da rede WHPO – World Heritage of Portuguese Origin. OBRA. Entre os seus
CENTRO DE O INTERPRETAÇÃ DA FURNA DO ENXOFRE
trabalhos mais emblemáticos, contam-se a Casa de Abrigo da Montanha do Pico (2008), o Mercado Municipal de Vendas Novas (2008), o Teatro da Rainha, nas Caldas da Rainha (em curso), o Centro de Interpretação do Vulcão dos Capelinhos, no Faial (2008), o Centro de Interpretação da Furna do Enxofre, na Graciosa (em curso), e o plano de intervenção de Porto Pim, no Faial (em curso).
um trabalho meramente técnico». Resultado: «as pessoas começaram a acreditar». E sem as pessoas, garante, nada se faz: «o sucesso da iniciativa foi fazê-las compreender que é preciso desenvolvimento económico sustentado». Volvidos dois anos de trabalho intenso, veio o parecer positivo da UNESCO e a paisagem vinhateira do Pico tornava-se o 13º bem português inscrito na cobiçada lista. Nuno tomou-lhe o gosto: passados poucos meses, embarcou noutra candidatura, a Universidade de Coimbra. Tento interrogá-lo sobre o assunto. «Coimbra?», interrompe, antecipando a questão - «estamos a acabar o dossier». Há ainda muito para fazer, aponta: «temos de devolver o espaço público ao peão, é preciso ser de novo cidade: quem não é aluno, professor ou funcionário, não vai lá». Contudo, acredita que a ambição de ser Património da Humanidade irá colocar todas as instituições de Coimbra «a remar na mesma direcção». «Esta candidatura não se faz contra o
cidadão», diz com inabalável certeza, recorrendo ao exemplo do Pico. experiência na «função pública», Nuno afirma que já teve a sua «dose». «Com muito gosto, aceitei, mas eu gosto mesmo é de ser arquitecto». E a Arquitectura sempre foi a sua inclinação? «Sim, sempre, Arquitectura e Futebol Clube do Porto», brinca, assumindo-se como um «adepto fervoroso» e um «arquitecto fervoroso». Pergunta-se também pelo seu primeiro projecto. O ataque de riso que antecede a resposta denuncia o que aí vem. Nuno teria os seus 15 anos quando um vizinho lhe encomendou o projecto de uma casa: «Desenhei aquilo a lápis, nas minhas férias no Gerês, em papel de almaço», recorda. «Afinal, a Câmara precisava de duas cópias… lá tive de desenhar outro.» Até hoje, todo este percurso deu-lhe bagagem mental e técnica. «Agora quero fazer experiências diferentes, aplicar os conhecimentos que fui adquirindo. As obras de um arquiAPÓS UMA LONGA
tecto começam a ser maduras a partir dos 50-60 anos. Com a idade, um tipo já experimentou, já bateu com a cabeça na parede». Veja-se o caso da Fundação Iberê Camargo, em Porto Alegre, a sua obra favorita, que «denota, por parte do arquitecto, uma capacidade de renovação contínua, de experimentação, de segurança absoluta no seu desenho»: Álvaro Siza Vieira concebeu este edifício magnífico com quase 70 anos. Foi com ele, seu mestre e referência máxima, que Nuno aprendeu a importância de saber começar de novo, «esvaziar a cabeça, esquecer os tiques», um exercício importante para combater o comodismo e a tentação de ir simplesmente atrás de modas. «Se a moda se encontrar connosco, óptimo – mas não pode ser uma preocupação, nunca.» O que importa é a autenticidade – «um projecto tem força se for sentido». Mais do que estilo, geometria, proporções, «a Arquitectura precisa de sedução, precisa de paixão!». Palavra de homem apaixonado.
2009
MERCADO
FEVEREIRO, MARÇO
CASA DE ABRIGO DA MONTANHA DO PICO
79
PONTÃO SOBRE A RIBEIRA DA TORREGELA
1º
DE MAIO, ÉVORA
DAS LAJES TEATRO MUNICIPAL
HABITAÇÃO UNIFAMILIAR , EM ÉVORA
HABITAÇÃO UNIFAMILIAR , EM ÉVORA
MERCA DO DE VENDA S NOV AS
PATRIMÓNIO. Dirigiu o Centro Histórico de Évora, entre 1996 e 2002. Nos dois anos seguintes, esteve ligado à Paisagem Protegida da Cultura da Vinha do Pico e à respectiva candidatura a Património da Humanidade. Após o parecer positivo da UNESCO (em 2004), dedicou-se a outra candidatura, a da Universidade de Coimbra, ainda em curso. É membro da Comissão Nacional do ICOMOS – International Council on Monuments and Sites. E está ligado à criação da rede WHPO – World Heritage of Portuguese Origin. OBRA. Entre os seus
CENTRO DE O INTERPRETAÇÃ DA FURNA DO ENXOFRE
trabalhos mais emblemáticos, contam-se a Casa de Abrigo da Montanha do Pico (2008), o Mercado Municipal de Vendas Novas (2008), o Teatro da Rainha, nas Caldas da Rainha (em curso), o Centro de Interpretação do Vulcão dos Capelinhos, no Faial (2008), o Centro de Interpretação da Furna do Enxofre, na Graciosa (em curso), e o plano de intervenção de Porto Pim, no Faial (em curso).
um trabalho meramente técnico». Resultado: «as pessoas começaram a acreditar». E sem as pessoas, garante, nada se faz: «o sucesso da iniciativa foi fazê-las compreender que é preciso desenvolvimento económico sustentado». Volvidos dois anos de trabalho intenso, veio o parecer positivo da UNESCO e a paisagem vinhateira do Pico tornava-se o 13º bem português inscrito na cobiçada lista. Nuno tomou-lhe o gosto: passados poucos meses, embarcou noutra candidatura, a Universidade de Coimbra. Tento interrogá-lo sobre o assunto. «Coimbra?», interrompe, antecipando a questão - «estamos a acabar o dossier». Há ainda muito para fazer, aponta: «temos de devolver o espaço público ao peão, é preciso ser de novo cidade: quem não é aluno, professor ou funcionário, não vai lá». Contudo, acredita que a ambição de ser Património da Humanidade irá colocar todas as instituições de Coimbra «a remar na mesma direcção». «Esta candidatura não se faz contra o
cidadão», diz com inabalável certeza, recorrendo ao exemplo do Pico. experiência na «função pública», Nuno afirma que já teve a sua «dose». «Com muito gosto, aceitei, mas eu gosto mesmo é de ser arquitecto». E a Arquitectura sempre foi a sua inclinação? «Sim, sempre, Arquitectura e Futebol Clube do Porto», brinca, assumindo-se como um «adepto fervoroso» e um «arquitecto fervoroso». Pergunta-se também pelo seu primeiro projecto. O ataque de riso que antecede a resposta denuncia o que aí vem. Nuno teria os seus 15 anos quando um vizinho lhe encomendou o projecto de uma casa: «Desenhei aquilo a lápis, nas minhas férias no Gerês, em papel de almaço», recorda. «Afinal, a Câmara precisava de duas cópias… lá tive de desenhar outro.» Até hoje, todo este percurso deu-lhe bagagem mental e técnica. «Agora quero fazer experiências diferentes, aplicar os conhecimentos que fui adquirindo. As obras de um arquiAPÓS UMA LONGA
tecto começam a ser maduras a partir dos 50-60 anos. Com a idade, um tipo já experimentou, já bateu com a cabeça na parede». Veja-se o caso da Fundação Iberê Camargo, em Porto Alegre, a sua obra favorita, que «denota, por parte do arquitecto, uma capacidade de renovação contínua, de experimentação, de segurança absoluta no seu desenho»: Álvaro Siza Vieira concebeu este edifício magnífico com quase 70 anos. Foi com ele, seu mestre e referência máxima, que Nuno aprendeu a importância de saber começar de novo, «esvaziar a cabeça, esquecer os tiques», um exercício importante para combater o comodismo e a tentação de ir simplesmente atrás de modas. «Se a moda se encontrar connosco, óptimo – mas não pode ser uma preocupação, nunca.» O que importa é a autenticidade – «um projecto tem força se for sentido». Mais do que estilo, geometria, proporções, «a Arquitectura precisa de sedução, precisa de paixão!». Palavra de homem apaixonado.
2009
MERCADO
FEVEREIRO, MARÇO
CASA DE ABRIGO DA MONTANHA DO PICO
79
PONTÃO SOBRE A RIBEIRA DA TORREGELA
traço
I design I
BÁRBARA COUTINHO TRAÇO CONTÍNUO Começou por História de Arte, passou
pelo serviço educativo do CCB e, em 2006, recebeu uma proposta irrecusável: conceber, dirigir e pôr em marcha
o novo MUDE – Museu do Design e da Moda. Um trabalho inacabado, por natureza.
2008 NOVEMBRO, DEZEMBRO
80
do CCB. Ficou. E uma das suas funções passava pela coordenação cultural e pedagógica do novo museu. O Design não era propriamente a sua especialidade. «Então fiz o que costumo fazer quando inicio um projecto: estudar, reunir informação, viajar por outras instituições, conhecer outras experiências». Não tardou a apaixonar-se pela disciplina. «Essa paixão tornou-se amor, que por sua vez se tornou uma relação mais presente e contínua.» E a sinceridade com que o diz prova que não é só «uma maneira de falar».
NOVEMBRO, DEZEMBRO
andava tão entretido com a Expo’98 que o Museu do Design acabou por entrar de mansinho pelo outro lado de Lisboa. O Centro Cultural de Belém (CCB) acabava de assinar com o coleccionador Francisco Capelo o protocolo que daria à cidade um novo espaço museológico, inaugurado em 1999. «Uma assinalável panorâmica da criação do século XX», aplaudia, então, o jornal francês “Le Figaro”. Bárbara Coutinho tinha 26 anos quando concorreu ao lugar de coordenadora do serviço educativo
PORTUGAL
2008
TEXTO JOÃO MESTRE I FOTOGRAFIA DORA NOGUEIRA
75
traço
I design I
BÁRBARA COUTINHO TRAÇO CONTÍNUO Começou por História de Arte, passou
pelo serviço educativo do CCB e, em 2006, recebeu uma proposta irrecusável: conceber, dirigir e pôr em marcha
o novo MUDE – Museu do Design e da Moda. Um trabalho inacabado, por natureza.
2008 NOVEMBRO, DEZEMBRO
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do CCB. Ficou. E uma das suas funções passava pela coordenação cultural e pedagógica do novo museu. O Design não era propriamente a sua especialidade. «Então fiz o que costumo fazer quando inicio um projecto: estudar, reunir informação, viajar por outras instituições, conhecer outras experiências». Não tardou a apaixonar-se pela disciplina. «Essa paixão tornou-se amor, que por sua vez se tornou uma relação mais presente e contínua.» E a sinceridade com que o diz prova que não é só «uma maneira de falar».
NOVEMBRO, DEZEMBRO
andava tão entretido com a Expo’98 que o Museu do Design acabou por entrar de mansinho pelo outro lado de Lisboa. O Centro Cultural de Belém (CCB) acabava de assinar com o coleccionador Francisco Capelo o protocolo que daria à cidade um novo espaço museológico, inaugurado em 1999. «Uma assinalável panorâmica da criação do século XX», aplaudia, então, o jornal francês “Le Figaro”. Bárbara Coutinho tinha 26 anos quando concorreu ao lugar de coordenadora do serviço educativo
PORTUGAL
2008
TEXTO JOÃO MESTRE I FOTOGRAFIA DORA NOGUEIRA
75
traço I design I
e, como tal, o MUDE – Museu do Design e da Moda está fechado. O encontro é no interior do espaço onde está
PROJECTOS.
PROIBIDO PERDER. A ideia nasceu das comemorações do 40º aniversário do Maio de 1968: uma exposição centrada na transição entre o final da década de 1960 e o início dos anos 1970 nos campos da Moda e do Design. “É Proibido Proibir” é comissariada e produzida pelo MUDE e estará patente até 31 de Janeiro de 2010 (www.mude.pt).
A COLECÇÃO. O acervo reunido pelo coleccionador Francisco Capelo – adquirido pela Câmara Municipal de Lisboa em 2002 – reúne mais de 1000 objectos de design industrial e 1200 peças de moda, na sua maioria de alta-costura. Alexander McQueen, Frank Gehry e Philippe Starck são alguns dos criadores representados nesta viagem desde os anos 1930 até à actualidade.
2007
2008 NOVEMBRO, DEZEMBRO
76
É SEGUNDA-FEIRA
CAPARICA. Bárbara dos Santos Coutinho nasceu em Lisboa, em 1971, mas só aos «20-e-poucos» foi viver para a capital. Passou a infância e a adolescência na Costa de Caparica, «uma costa feita de grande liberdade e de grande espaço». É daí que vem o seu fascínio pelo mar revolto: «Não gosto de águas paradas – deve ser por ter nascido no Inverno.» Sempre que pode, é lá que «recarrega as baterias».
JANEIRO, FEVEREIRO, MARÇO
aí que o Design entrou na sua vida é uma maneira de ver as coisas. A verdade, porém, é que o «namoro» já havia começado antes. Arredando de vez o sonho de ser cirurgiã, Bárbara Coutinho decidiu cursar História de Arte na Universidade Nova de Lisboa. No primeiro ano de faculdade, interessou-se particularmente pela vertente arqueológica. Aos poucos, porém, apercebeu-se de que o extremo oposto da História a atraía mais. «Dei por mim a perceber que tinha tudo que ver com o século XX e com as Artes Visuais versus o Design e a Arquitectura.» Não voltou a ser a mesma. Quando se inscreveu num mestrado, já estava completamente direccionada para a Arte Contemporânea e, na sua dissertação, debruçou-se sobre a obra e o percurso do «arquitecto, urbanista e pedagogo» Carlos Ramos, «figura importante na edificação da imagem arquitectónica do Estado Novo», segundo explica um texto publicado no website do Instituto Camões (cuja autoria, nem de propósito, é de Bárbara Coutinho). Nesse estudo, relacionava a Arquitectura, o ensino e as Artes Plásticas – «e foi nessa ideia da transversalidade disciplinar do século XX que me fui aproximando do Design», aponta. «É uma área que cada vez me interessa mais, até pela questão da diluição de fronteiras entre as diversas artes.» Nesses pontos de contacto – ou «contaminações», como lhes prefere chamar – entre Arquitectura, Design e Artes Plásticas, descobriu o seu espaço. «Fui percebendo que era aí que me interessava trabalhar.»
DIZER QUE FOI
83
traço I design I
e, como tal, o MUDE – Museu do Design e da Moda está fechado. O encontro é no interior do espaço onde está
PROJECTOS.
PROIBIDO PERDER. A ideia nasceu das comemorações do 40º aniversário do Maio de 1968: uma exposição centrada na transição entre o final da década de 1960 e o início dos anos 1970 nos campos da Moda e do Design. “É Proibido Proibir” é comissariada e produzida pelo MUDE e estará patente até 31 de Janeiro de 2010 (www.mude.pt).
A COLECÇÃO. O acervo reunido pelo coleccionador Francisco Capelo – adquirido pela Câmara Municipal de Lisboa em 2002 – reúne mais de 1000 objectos de design industrial e 1200 peças de moda, na sua maioria de alta-costura. Alexander McQueen, Frank Gehry e Philippe Starck são alguns dos criadores representados nesta viagem desde os anos 1930 até à actualidade.
2007
2008 NOVEMBRO, DEZEMBRO
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É SEGUNDA-FEIRA
CAPARICA. Bárbara dos Santos Coutinho nasceu em Lisboa, em 1971, mas só aos «20-e-poucos» foi viver para a capital. Passou a infância e a adolescência na Costa de Caparica, «uma costa feita de grande liberdade e de grande espaço». É daí que vem o seu fascínio pelo mar revolto: «Não gosto de águas paradas – deve ser por ter nascido no Inverno.» Sempre que pode, é lá que «recarrega as baterias».
JANEIRO, FEVEREIRO, MARÇO
aí que o Design entrou na sua vida é uma maneira de ver as coisas. A verdade, porém, é que o «namoro» já havia começado antes. Arredando de vez o sonho de ser cirurgiã, Bárbara Coutinho decidiu cursar História de Arte na Universidade Nova de Lisboa. No primeiro ano de faculdade, interessou-se particularmente pela vertente arqueológica. Aos poucos, porém, apercebeu-se de que o extremo oposto da História a atraía mais. «Dei por mim a perceber que tinha tudo que ver com o século XX e com as Artes Visuais versus o Design e a Arquitectura.» Não voltou a ser a mesma. Quando se inscreveu num mestrado, já estava completamente direccionada para a Arte Contemporânea e, na sua dissertação, debruçou-se sobre a obra e o percurso do «arquitecto, urbanista e pedagogo» Carlos Ramos, «figura importante na edificação da imagem arquitectónica do Estado Novo», segundo explica um texto publicado no website do Instituto Camões (cuja autoria, nem de propósito, é de Bárbara Coutinho). Nesse estudo, relacionava a Arquitectura, o ensino e as Artes Plásticas – «e foi nessa ideia da transversalidade disciplinar do século XX que me fui aproximando do Design», aponta. «É uma área que cada vez me interessa mais, até pela questão da diluição de fronteiras entre as diversas artes.» Nesses pontos de contacto – ou «contaminações», como lhes prefere chamar – entre Arquitectura, Design e Artes Plásticas, descobriu o seu espaço. «Fui percebendo que era aí que me interessava trabalhar.»
DIZER QUE FOI
83
patente a exposição “Antestreia”. Bárbara recebe-nos com um sorriso que de imediato nos faz sentir bem-vindos nesta sua «casa». Percebe-se que está com o tempo contado ao minuto – é o museu, os ateliers criativos, as reuniões, a actividade lectiva no Instituto Superior Técnico, o doutoramento, a escrita e, algures pelo meio, a vida pessoal - mas nem por um momento nos tenta apressar. Nem mesmo quando ultrapassamos (de forma considerável) a hora previs ta e lhe encurtamos dras-
em pleno e abríamos a porta no dia em que todo o edifício estivesse operacional?» A resposta já se adivinha: «Não, vamos antes fazer um projecto que seja inclusive exemplar dos tempos que estamos a viver. E que espelhe a metamorfose que o Design está a sofrer, a repensar-se a si próprio.» Desta forma, o MUDE acaba por ser um exercício de Design: «Há uma questão, há um problema» e uma solução criativa desenhada à medida. «É Design puro», reforça.
a localização mais privilegiada que a capital tem para oferecer. Bárbara Coutinho nem pestanejou. «A cidade ganhou um espaço único que poderá ser usufruído de diferentes maneiras e contribuir para a revitalização da Baixa», afirmou ao jornal “Público”, na sequência da aprovação da autarquia, em Março de 2009. Nesta sua segunda vida, agora dedicada ao Design e à Moda, o museu abriu as portas em Maio deste ano. Em apenas quatro meses, recebeu 60 mil visitantes.
«NÃO
2002, a Câmara Municipal de Lisboa chega a um acordo com Francisco Capelo para a aquisição da colecção, avaliada em 10 milhões de euros. Ao abandonar o Centro de Exposições do CCB (para dar lugar ao Museu Berardo), em meados de 2006, o Museu do Design recebe duas promessas: a atribuição de instalações definitivas e a reabertura no ano seguinte. Foi até anunciada a nova morada, o Palácio de Santa Catarina, edifício do século XIX situado entre o Chiado e o Bairro Alto. Porém, o município tinha reservado um plano melhor para os destinos da instituição: a compra da antiga sede do Banco Nacional Ultramarino, em plena Baixa Pombalina, com uma área três vezes maior, e
EM
«Acho que há muita gente que voltou à Baixa para ver o museu», aponta Bárbara Coutinho, orgulhosa de fazer parte do esforço de revitalização desta zona histórica da cidade. O trabalho, no entanto, está longe de estar acabado. É, ele próprio, um “work in progress”, mesmo após a conclusão do projecto do MUDE a 100%, prevista para finais de 2011. Aliás, quando questionada sobre qual o seu projecto mais ambicioso por concretizar, Bárbara não perde muito tempo e dá a única resposta curta de toda a entrevista: «O museu!» E conclui, com inabalável certeza: «Mas vai ser concretizado.» O “work”, esse estará infinitamente “in progress”.
NOVEMBRO, DEZEMBRO
ticamente o período de almoço. Faço-lhe a pergunta à qual deve ter respondido várias vezes nos últimos meses: porquê a opção estética de deixar as paredes descarnadas, em bruto, como se as obras não tivessem terminado? «O projecto arquitectónico inicial continua a transformar-se, é um “work in progress”». E isto prende-se com a evolução do próprio conceito de espaço museológico. «Não se pode continuar a querer o mesmo museu que se tinha há 10 ou 20 anos, sobretudo quando o objecto é o Design» – para mais em tempos como estes, de «vacas magras». «O que fazer? Íamos esperar pelas condições ideais para pôr estes 15 mil metros quadrados a funcionar
2008
SE PODE CONTINUAR A QUERER O MESMO MUSEU QUE SE TINHA HÁ 10 OU 20 ANOS. VAMOS ANTES FAZER UM PROJECTO QUE SEJA INCLUSIVE EXEMPLAR DOS TEMPOS QUE ESTAMOS A VIVER.»
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traço I design I
“GOSTAVA
FAVORITISMOS
NOVEMBRO, DEZEMBRO
2008
DE TER UM NÚCLEO MAIS REPRESENTATIVO DE DESIGN NACIONAL E DE ACOMPANHAR A CONTEMPORANEIDADE, PORQUE O OBJECTIVO DO MUDE É SER UM MUSEU DO SÉCULO XX E DO SÉCULO XXI.”
80
n
o outro lado
LOBO
SOLITARIO D o maior alpinista português de sempre faz quando não O que é que
está a conquistar montanhas? Muitas coisas. Todas com um propósito comum:
40
2010
TEXTO JOÃO MESTRE I FOTOGRAFIA LUÍS DE BARROS
AGOSTO , SETEMBRO
AGOSTO , SETEMBRO
2010
vencer os everestes da vida.
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o outro lado
LOBO
SOLITARIO D o maior alpinista português de sempre faz quando não O que é que
está a conquistar montanhas? Muitas coisas. Todas com um propósito comum:
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TEXTO JOÃO MESTRE I FOTOGRAFIA LUÍS DE BARROS
AGOSTO , SETEMBRO
AGOSTO , SETEMBRO
2010
vencer os everestes da vida.
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o outro lado I joão garcia I
PRIMEIRO FOI A NATAÇÃO. Depois o
judo, «para aprender a cair e não partir braços», o atletismo, o voleibol e, «para ser duro», o râguebi. «Entretanto, veio a escalada e o montanhismo.» João Garcia tinha 16 anos quando experimentou o desafio da montanha, na Serra da Estrela, na companhia do Clube de Montanhismo da Guarda, com o qual faria as suas primeiras incursões aos Alpes Franceses. «Vinha de lá maravilhado, mas também frustrado porque, passadas umas seis horas, tinha de “encostar”, enquanto via os outros seguir em frente.» Foi aí que descobriu o triatlo, onde aprendeu a «gerir os recursos: um bocadinho para a natação, rentabilizar na bicicleta e depois, na corrida, no final, dou tudo o que tenho e o que não tenho». É exactamente isso que faz na montanha: «Na subida, nunca dou mais do que 50%, fazemos umas seis a oito horas por dia; mas, no dia de cume, é o que for, sempre por volta das 20 horas de esforço ininterrupto.» No caso do pico Manaslu, no Nepal, o assalto ao cume de 8.163 metros, em Abril de 2009, exigiu algo como 29 horas consecutivas de trabalho árduo. É por isso que, se não está a escalar montanhas, João Garcia está, por norma, a preparar-se para elas. «Quando estou a treinar, estou a angariar energia para, nos momentos de fraqueza, não me ir abaixo.» Levanta-se às sete da manhã para andar de bicicleta, nadar, correr (o que inclui a ocasional maratona), praticar escalada em
NO TOPO DO MUNDO
rocha. Todos os dias, sem excepções. Férias é coisa que não costuma ter. «Sempre que vou para algum lado, acabo por estar em “semi-trabalho”, há sempre uma montanha.» Finalizada, em Abril, a longa jornada de conquista dos 14 picos mais altos do mundo (ver caixa), o alpinista pensa em retomar um antigo projecto: escalar os cumes mais altos de cada um dos sete continentes. Falta-lhe apenas a Pirâmide de Carstensz (Indonésia, 4.884m). «Como a Oceânia não fica já ali ao lado, é preciso tempo e dinheiro», explica. «Espero ir lá dentro em breve, aproveitando para ir à Austrália e à Nova Zelândia e fazer um pouco de turismo – será a minha recompensa por estes cinco anos a trabalhar sem parar.» A PRIMEIRA METADE da conversa
decorre pouco antes da partida para o Annapurna, a montanha que encerrou o projecto “À Conquista dos Picos do Mundo”. João Garcia anda atarefado: treinos, trabalho de secretariado, entrevistas, preparativos e, entre outras solicitações, os frequentes convites para discursar em eventos de empresas. «Os valores do profissional da montanha são os valores do homem de negócios: todos queremos atingir o topo e sabemos que, inevitavelmente, nunca lá ficamos». A actividade de orador tem também uma vertente de responsabilidade social: «Vou gratuitamente às escolas para passar a mensagem aos miúdos, não para se tornarem alpinistas mas para fazerem bem
CRONOLOGIA DA CONQUISTA DAS 14
42
2006. Shisha Pangma (China, 8.013m) 2007. K2 (Paquistão/China, 8.611m) 2008. Makalu (Nepal/China, 8.463m) 2008. Broad Peak (Paquistão/China, 8.047m) 2009. Manaslu (Nepal, 8.163m) 2009. Nanga Parbat (Paquistão, 8.125m) 2010. Annapurna (Nepal, 8.091m)
«A AVENTURA SÓ FAZ SENTIDO QUANDO NÃO SABEMOS O QUE ESTÁ DO OUTRO LADO DA ESQUINA.»
2010
1993. Cho Oyu (Nepal/China, 8.201m) 1994. Dhaulagiri (Nepal, 8.167m) 1999. Evereste (Nepal/China, 8.848m) 2001. Gasherbrum II (Paquistão/China, 8.035m) 2004. Gasherbrum I (Paquistão/China, 8.068m) 2005. Lhotse (Nepal/China, 8.516m) 2006. Kangchenjunga (Nepal/Índia, 8.586m)
AGOSTO , SETEMBRO
AGOSTO , SETEMBRO
2010
MONTANHAS MAIS ALTAS DO PLANETA.
43
o outro lado I joão garcia I
PRIMEIRO FOI A NATAÇÃO. Depois o
judo, «para aprender a cair e não partir braços», o atletismo, o voleibol e, «para ser duro», o râguebi. «Entretanto, veio a escalada e o montanhismo.» João Garcia tinha 16 anos quando experimentou o desafio da montanha, na Serra da Estrela, na companhia do Clube de Montanhismo da Guarda, com o qual faria as suas primeiras incursões aos Alpes Franceses. «Vinha de lá maravilhado, mas também frustrado porque, passadas umas seis horas, tinha de “encostar”, enquanto via os outros seguir em frente.» Foi aí que descobriu o triatlo, onde aprendeu a «gerir os recursos: um bocadinho para a natação, rentabilizar na bicicleta e depois, na corrida, no final, dou tudo o que tenho e o que não tenho». É exactamente isso que faz na montanha: «Na subida, nunca dou mais do que 50%, fazemos umas seis a oito horas por dia; mas, no dia de cume, é o que for, sempre por volta das 20 horas de esforço ininterrupto.» No caso do pico Manaslu, no Nepal, o assalto ao cume de 8.163 metros, em Abril de 2009, exigiu algo como 29 horas consecutivas de trabalho árduo. É por isso que, se não está a escalar montanhas, João Garcia está, por norma, a preparar-se para elas. «Quando estou a treinar, estou a angariar energia para, nos momentos de fraqueza, não me ir abaixo.» Levanta-se às sete da manhã para andar de bicicleta, nadar, correr (o que inclui a ocasional maratona), praticar escalada em
NO TOPO DO MUNDO
rocha. Todos os dias, sem excepções. Férias é coisa que não costuma ter. «Sempre que vou para algum lado, acabo por estar em “semi-trabalho”, há sempre uma montanha.» Finalizada, em Abril, a longa jornada de conquista dos 14 picos mais altos do mundo (ver caixa), o alpinista pensa em retomar um antigo projecto: escalar os cumes mais altos de cada um dos sete continentes. Falta-lhe apenas a Pirâmide de Carstensz (Indonésia, 4.884m). «Como a Oceânia não fica já ali ao lado, é preciso tempo e dinheiro», explica. «Espero ir lá dentro em breve, aproveitando para ir à Austrália e à Nova Zelândia e fazer um pouco de turismo – será a minha recompensa por estes cinco anos a trabalhar sem parar.» A PRIMEIRA METADE da conversa
decorre pouco antes da partida para o Annapurna, a montanha que encerrou o projecto “À Conquista dos Picos do Mundo”. João Garcia anda atarefado: treinos, trabalho de secretariado, entrevistas, preparativos e, entre outras solicitações, os frequentes convites para discursar em eventos de empresas. «Os valores do profissional da montanha são os valores do homem de negócios: todos queremos atingir o topo e sabemos que, inevitavelmente, nunca lá ficamos». A actividade de orador tem também uma vertente de responsabilidade social: «Vou gratuitamente às escolas para passar a mensagem aos miúdos, não para se tornarem alpinistas mas para fazerem bem
CRONOLOGIA DA CONQUISTA DAS 14
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2006. Shisha Pangma (China, 8.013m) 2007. K2 (Paquistão/China, 8.611m) 2008. Makalu (Nepal/China, 8.463m) 2008. Broad Peak (Paquistão/China, 8.047m) 2009. Manaslu (Nepal, 8.163m) 2009. Nanga Parbat (Paquistão, 8.125m) 2010. Annapurna (Nepal, 8.091m)
«A AVENTURA SÓ FAZ SENTIDO QUANDO NÃO SABEMOS O QUE ESTÁ DO OUTRO LADO DA ESQUINA.»
2010
1993. Cho Oyu (Nepal/China, 8.201m) 1994. Dhaulagiri (Nepal, 8.167m) 1999. Evereste (Nepal/China, 8.848m) 2001. Gasherbrum II (Paquistão/China, 8.035m) 2004. Gasherbrum I (Paquistão/China, 8.068m) 2005. Lhotse (Nepal/China, 8.516m) 2006. Kangchenjunga (Nepal/Índia, 8.586m)
AGOSTO , SETEMBRO
AGOSTO , SETEMBRO
2010
MONTANHAS MAIS ALTAS DO PLANETA.
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o outro lado I joão garcia I
JOAO GARCIA PATROCINA OS ESTUDOS A CRIANÇAS
AGOSTO , SETEMBRO
44
a minha experiência é a montanha.» Mesmo antes de se dedicar a tempo inteiro à conquista do topo do mundo, já era com altos e baixos que ganhava a vida: «Era guia de montanha, organizava grupos. Em
REGRESSADO A LISBOA APÓS A CONQUISTA DO ANNAPURNA, JOÃO GARCIA FALA SOBRE OS DESAFIOS ULTRAPASSADOS, OS PROJECTOS NO HORIZONTE E DAS MEDALHAS QUE NÃO PRECISA DE GANHAR.
entendeu que fiz algo de relevante para a moral nacional e me quis condecorar, não recusei. Mas não preciso disso. Tenho ambições de fazer mais e melhor. Só quero ter condições para isso.
Com a subida ao Annapurna (Nepal, 8.091m), a 17 de Abril de 2010, tornou-se o 10º alpinista a conquistar as 14 montanhas acima dos 8.000 metros sem recurso a oxigénio artificial. Porquê esta opção de não usar oxigénio artificial?
Vejo isto como um desporto com a mesma filosofia de todos os outros – queremos ir mais alto e ser mais rápidos, mais fortes, mas, sobretudo, superar-nos. Do acampamento-base para cima, sou eu e os meus companheiros contra a montanha – só assim estou verdadeiramente a superar-me. O oxigénio artificial acaba por ser uma batota.
O que lhe falta fazer?
Neste momento, tenho várias ideias. Mas não vou lançar nenhuma publicamente. São coisas muito difíceis de concretizar, ainda tenho de ver se são exequíveis, ouvir quem sabe, perceber se não estou a sonhar alto e se tenho os devidos apoios. Passará, claro, pela montanha, é esse o meu meio: o frio, o gelo, a altitude. A ida ao Pólo Sul “by fair means” é um dos projectos que eu gostava de fazer, é daquelas coisas de curiosidade de menino. O meu trabalho não é mais do que profissionalizar essa curiosidade, aprendida nos livros de aventuras e aventureiros.
Como foi a escalada? A pressão de ser a última tornou-a mais difícil do que as anteriores?
Não, foi o que eu estava à espera. Por irmos bem preparados, as coisas correram bem. Em primeiro, porque acertámos na estratégia de adaptar o organismo à altitude, começando por escalar uma montanha menos perigosa e só depois atacar o Annapurna. E também tivemos alguma sorte: quando chegámos ao campo-base [aos 4.130 metros de altitude], as condições meteorológicas estavam boas e tive logo a oportunidade de subir. Em cinco dias fiz cume. Qual foi a sensação de atingir o seu grande objectivo?
Decepcionante, talvez: sinto-me o mesmo João de sempre. É aos poucos, com os comentários das pessoas e com a continuação do meu trabalho, que me apercebo daquilo que fiz. E a pergunta que muitos jornalistas me colocam: «Não sente um vazio por não haver nada mais alto para escalar?» Não. Porquê? Há mais coisas para fazer. Sinto-me, acima de tudo, encorajado para fazer mais e melhor. Esta sua conquista foi muito falada em Portugal.
Os avanços da tecnologia vieram facilitar o seu trabalho?
Quando comecei a subir montanhas, ia-se para o cume às cegas. Jogávamos com uma espécie de misticismo: se está Lua Cheia, se está alta pressão, se nos últimos anos o tempo tem estado bom por esta altura... Hoje, com o telefone por satélite, recebo no campo-base, a três dias de distância, a meteorologia com uma fiabilidade de 80%. Se não puder subir, não gasto recursos. Em alta montanha, mesmo que não faça nada, sei que ontem era mais forte do que hoje e amanhã estarei mais fraco. Não regressamos ao fim de 60 dias porque acabou a comida: é porque estamos acabados. E então temos de voltar à forma, são dois meses de treino lento, voltar a «encher» comida. Alguma vez teve de desistir de uma montanha?
Várias. No Evereste, por duas vezes. Em 1997, porque me roubaram coisas no acampamento a 8.200m. E, em 1998, cheguei até aos 8.500 metros, mas estava tanto vento que ia gelar todo. 2010
2010
«A MINHA VIDA, a minha faculdade,
Dezembro e Janeiro ia para o Aconcágua [Argentina]; entre Fevereiro e Março passava os fins-de-semana na Serra da Estrela e na Sierra de Gredos [Espanha]; em Abril e Maio, as idas ao Nepal; os Alpes em Junho e Julho; o Elbrus [Rússia] em Agosto; e o Island Peak, no Nepal, em Outubro e Novembro.» Com tanto trabalho, pouco restava para o treino. Até que, em 2005, consegue o patrocínio do Millennium bcp para um projecto de conquista das 14 montanhas mais altas do mundo, o que lhe permite dedicar-se em exclusivo ao projecto de alpinismo. A partir daí, tem vencido estes gigantes de pedra com aparente facilidade. Atenção: aparente. «As últimas oito montanhas foram todas à primeira tentativa; contudo, a sociedade interpretou isto de forma irónica: “se calhar, se ele não falha, é porque aquilo é fácil”.» Mas João Garcia sabe bem à custa de quanto esforço se conquista uma montanha. Houve momentos em que as coisas não lhe correram tão bem. O que o faz querer voltar, mesmo após as más experiências? «O gosto de me desafiar e de me superar, é essa a sedução da montanha: a aventura só faz sentido quando não sabemos o que está do outro lado da esquina.» Nos momentos menos bons, socorre-se de uma velha máxima chinesa: «O magnífico não está em nunca cairmos, mas em levantarmo-nos sempre que caímos.» É uma das partes pedagógicas das suas palestras. «Há 50 anos, os alpinistas eram vistos como os conquistadores do inútil. Neste momento, acabamos por ser fonte de inspiração, de motivação, para as pessoas atingirem os seus everestes.» n
Surgiu um grande grupo de fãs no Facebook. E foi condecorado com a Ordem de Mérito pelo Presidente da República. Como se sente com esta recepção?
Extraordinário, nunca previ uma coisa assim! Mas eu não escalo montanhas para que me dêem medalhas. Se o País
É uma grande frustração...
É e não é. Neste último, fiquei felicíssimo da vida. Porque percebi que se o tempo estivesse bom, eu chegava lá acima. Quebrei a minha barreira psicológica. n
AGOSTO , SETEMBRO
aquilo que entenderem fazer das suas vidas.» Há 15 anos que assim é: embora não consiga ir a tantas escolas como gostaria, arranja disponibilidade para visitar uma ou duas por mês, «são umas 20 escolas por ano». A preocupação com a educação dos mais novos não se esgota no território nacional. João Garcia patrocina os estudos a crianças de uma aldeia perdida nas montanhas do Paquistão. «A melhor maneira de combater o terrorismo é dar-lhes educação», defende. «É igualmente a maneira mais barata: a escola de um puto custa-me 10 dólares por mês. Não é nada!» O paquistanês Amin Ulal, carregador de altitude e seu companheiro de escalada, tem quatro filhos, dois deles ainda em idade escolar. «Com 400 dólares consigo garantir que esses miúdos saiam da aldeia e vão dois anos para uma escola.» João Garcia explica que prefere entregar o dinheiro directamente, em vez de o canalizar através de uma ONG: «Vejo os putos crescerem, eles vêm-me mostrar os boletins escolares, com as notas», acrescenta com um sorriso de orgulho. Na passagem por estes locais remotos, longe dos confortos do mundo moderno e onde a electricidade é ainda uma miragem, João Garcia leva também fornos solares, para oferecer às famílias.
A PROPOSITO...
DE UMA ALDEIA NO PAQUISTÃO. «A MELHOR MANEIRA DE COMBATER O TERRORISMO É DAR-LHES EDUCAÇÃO. E É IGUALMENTE A MAIS BARATA ».
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JOAO GARCIA PATROCINA OS ESTUDOS A CRIANÇAS
AGOSTO , SETEMBRO
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a minha experiência é a montanha.» Mesmo antes de se dedicar a tempo inteiro à conquista do topo do mundo, já era com altos e baixos que ganhava a vida: «Era guia de montanha, organizava grupos. Em
REGRESSADO A LISBOA APÓS A CONQUISTA DO ANNAPURNA, JOÃO GARCIA FALA SOBRE OS DESAFIOS ULTRAPASSADOS, OS PROJECTOS NO HORIZONTE E DAS MEDALHAS QUE NÃO PRECISA DE GANHAR.
entendeu que fiz algo de relevante para a moral nacional e me quis condecorar, não recusei. Mas não preciso disso. Tenho ambições de fazer mais e melhor. Só quero ter condições para isso.
Com a subida ao Annapurna (Nepal, 8.091m), a 17 de Abril de 2010, tornou-se o 10º alpinista a conquistar as 14 montanhas acima dos 8.000 metros sem recurso a oxigénio artificial. Porquê esta opção de não usar oxigénio artificial?
Vejo isto como um desporto com a mesma filosofia de todos os outros – queremos ir mais alto e ser mais rápidos, mais fortes, mas, sobretudo, superar-nos. Do acampamento-base para cima, sou eu e os meus companheiros contra a montanha – só assim estou verdadeiramente a superar-me. O oxigénio artificial acaba por ser uma batota.
O que lhe falta fazer?
Neste momento, tenho várias ideias. Mas não vou lançar nenhuma publicamente. São coisas muito difíceis de concretizar, ainda tenho de ver se são exequíveis, ouvir quem sabe, perceber se não estou a sonhar alto e se tenho os devidos apoios. Passará, claro, pela montanha, é esse o meu meio: o frio, o gelo, a altitude. A ida ao Pólo Sul “by fair means” é um dos projectos que eu gostava de fazer, é daquelas coisas de curiosidade de menino. O meu trabalho não é mais do que profissionalizar essa curiosidade, aprendida nos livros de aventuras e aventureiros.
Como foi a escalada? A pressão de ser a última tornou-a mais difícil do que as anteriores?
Não, foi o que eu estava à espera. Por irmos bem preparados, as coisas correram bem. Em primeiro, porque acertámos na estratégia de adaptar o organismo à altitude, começando por escalar uma montanha menos perigosa e só depois atacar o Annapurna. E também tivemos alguma sorte: quando chegámos ao campo-base [aos 4.130 metros de altitude], as condições meteorológicas estavam boas e tive logo a oportunidade de subir. Em cinco dias fiz cume. Qual foi a sensação de atingir o seu grande objectivo?
Decepcionante, talvez: sinto-me o mesmo João de sempre. É aos poucos, com os comentários das pessoas e com a continuação do meu trabalho, que me apercebo daquilo que fiz. E a pergunta que muitos jornalistas me colocam: «Não sente um vazio por não haver nada mais alto para escalar?» Não. Porquê? Há mais coisas para fazer. Sinto-me, acima de tudo, encorajado para fazer mais e melhor. Esta sua conquista foi muito falada em Portugal.
Os avanços da tecnologia vieram facilitar o seu trabalho?
Quando comecei a subir montanhas, ia-se para o cume às cegas. Jogávamos com uma espécie de misticismo: se está Lua Cheia, se está alta pressão, se nos últimos anos o tempo tem estado bom por esta altura... Hoje, com o telefone por satélite, recebo no campo-base, a três dias de distância, a meteorologia com uma fiabilidade de 80%. Se não puder subir, não gasto recursos. Em alta montanha, mesmo que não faça nada, sei que ontem era mais forte do que hoje e amanhã estarei mais fraco. Não regressamos ao fim de 60 dias porque acabou a comida: é porque estamos acabados. E então temos de voltar à forma, são dois meses de treino lento, voltar a «encher» comida. Alguma vez teve de desistir de uma montanha?
Várias. No Evereste, por duas vezes. Em 1997, porque me roubaram coisas no acampamento a 8.200m. E, em 1998, cheguei até aos 8.500 metros, mas estava tanto vento que ia gelar todo. 2010
2010
«A MINHA VIDA, a minha faculdade,
Dezembro e Janeiro ia para o Aconcágua [Argentina]; entre Fevereiro e Março passava os fins-de-semana na Serra da Estrela e na Sierra de Gredos [Espanha]; em Abril e Maio, as idas ao Nepal; os Alpes em Junho e Julho; o Elbrus [Rússia] em Agosto; e o Island Peak, no Nepal, em Outubro e Novembro.» Com tanto trabalho, pouco restava para o treino. Até que, em 2005, consegue o patrocínio do Millennium bcp para um projecto de conquista das 14 montanhas mais altas do mundo, o que lhe permite dedicar-se em exclusivo ao projecto de alpinismo. A partir daí, tem vencido estes gigantes de pedra com aparente facilidade. Atenção: aparente. «As últimas oito montanhas foram todas à primeira tentativa; contudo, a sociedade interpretou isto de forma irónica: “se calhar, se ele não falha, é porque aquilo é fácil”.» Mas João Garcia sabe bem à custa de quanto esforço se conquista uma montanha. Houve momentos em que as coisas não lhe correram tão bem. O que o faz querer voltar, mesmo após as más experiências? «O gosto de me desafiar e de me superar, é essa a sedução da montanha: a aventura só faz sentido quando não sabemos o que está do outro lado da esquina.» Nos momentos menos bons, socorre-se de uma velha máxima chinesa: «O magnífico não está em nunca cairmos, mas em levantarmo-nos sempre que caímos.» É uma das partes pedagógicas das suas palestras. «Há 50 anos, os alpinistas eram vistos como os conquistadores do inútil. Neste momento, acabamos por ser fonte de inspiração, de motivação, para as pessoas atingirem os seus everestes.» n
Surgiu um grande grupo de fãs no Facebook. E foi condecorado com a Ordem de Mérito pelo Presidente da República. Como se sente com esta recepção?
Extraordinário, nunca previ uma coisa assim! Mas eu não escalo montanhas para que me dêem medalhas. Se o País
É uma grande frustração...
É e não é. Neste último, fiquei felicíssimo da vida. Porque percebi que se o tempo estivesse bom, eu chegava lá acima. Quebrei a minha barreira psicológica. n
AGOSTO , SETEMBRO
aquilo que entenderem fazer das suas vidas.» Há 15 anos que assim é: embora não consiga ir a tantas escolas como gostaria, arranja disponibilidade para visitar uma ou duas por mês, «são umas 20 escolas por ano». A preocupação com a educação dos mais novos não se esgota no território nacional. João Garcia patrocina os estudos a crianças de uma aldeia perdida nas montanhas do Paquistão. «A melhor maneira de combater o terrorismo é dar-lhes educação», defende. «É igualmente a maneira mais barata: a escola de um puto custa-me 10 dólares por mês. Não é nada!» O paquistanês Amin Ulal, carregador de altitude e seu companheiro de escalada, tem quatro filhos, dois deles ainda em idade escolar. «Com 400 dólares consigo garantir que esses miúdos saiam da aldeia e vão dois anos para uma escola.» João Garcia explica que prefere entregar o dinheiro directamente, em vez de o canalizar através de uma ONG: «Vejo os putos crescerem, eles vêm-me mostrar os boletins escolares, com as notas», acrescenta com um sorriso de orgulho. Na passagem por estes locais remotos, longe dos confortos do mundo moderno e onde a electricidade é ainda uma miragem, João Garcia leva também fornos solares, para oferecer às famílias.
A PROPOSITO...
DE UMA ALDEIA NO PAQUISTÃO. «A MELHOR MANEIRA DE COMBATER O TERRORISMO É DAR-LHES EDUCAÇÃO. E É IGUALMENTE A MAIS BARATA ».
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ENTREVISTAS vol. II & PERFIS
(t magazine)
Tiago “Saca” Pires Equipa “Manhãs da Comercial” Tiago Monteiro Carlos Sousa Miguel Câncio Martins Telma Monteiro Joana Vasconcelos Michelle Larcher de Brito Zé Diogo Quintela André Carrilho Malú Magalhães Edgar Martins Armindo Araújo Colectivo G.A.N.A. Nuno Ribeiro Lopes Bárbara Coutinho João Garcia