"Diário dos Infiéis" (Excerto: A Infidelidade e o Tempo)

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Excerto‌

A infidelidade e o tempo


A infidelidade da Luísa

(Diana) - Algueé m que promete amar algueé m, nesse momento, pega na ponta de um novelo que tem de desenrolar dia a dia sem parar. No amor, a ué nica traiçaã o eé a indiferença, o baixar dos braços de quem se esquece de puxar o fio, de o manter tenso, firme, com o novelo sempre a rodar sobre si mesmo – como um coraçaã o latente. O sexo pode ser apenas pele transpirada, como numa partida de teé nis. Sexo pode nem chegar a ser uma traiçaã o. Soé traíémos quando fechamos a alma para algueé m e a deixamos no lado de fora. Um dia, a Luíésa prometeu amar o Leonel. Talvez tenha confundido o verbo «amar» com o verbo «lavar» ou com o verbo «cozinhar». Ou talvez seja essa a ué nica forma que lhe ensinaram de amar algueé m. Luíésa eé uma Cinderela, que, depois de casar com o príéncipe, continuou a lavar o chaã o da cozinha, julgando que era isso que os faria felizes para sempre. Talvez naã o seja culpa sua. Talvez ningueé m lhe tenha ensinado que naã o se ama um homem como se arruma um guarda-fatos, ou mesmo como se ama um filho, a quem se daé banho e penteia o cabelo para ir aà missa no domingo. Talvez ningueé m lhe tenha ensinado que as princesas caâ ndidas e puras tambeé m amam na carne os seus príéncipes e saã o cué mplices na vida.


O Leonel acaba por ser um homem traíédo, porque lhe prometeram amor e lhe deram apenas camisas lavadas e pratos de sopa morna sem um míénimo de arrebatamento de alma. A infidelidade da Luíésa naã o passa por entregar o seu corpo a outro – naã o seria capaz –, mas em ser apenas companhia, esquecendo-se de ser companheira. Talvez o ame aà sua maneira. Acontece que o Leonel naã o se sente amado, mas sim traíédo. Afinal, que moral tem a Luíésa na sua infidelidade para falar das traiçoã es dos outros?

O tempo

(Leonel) - No Veraã o, todos os dias me sentava na varanda a ver passar o tempo. E todos os dias o tempo passava. Todos os dias via passar o tempo, e o tempo passava sem me ver. Eram assim os meus dias. Depois descobri que naã o via passar o tempo; o tempo eé que passava por mim, e a vida era apenas um fraé gil passatempo. O tempo eé sempre igual: um compasso ordeiro e metoé dico, que em nada acompanha os desacertos do nosso coraçaã o – calmo num minuto, desvairado noutro. O tempo eé sempre jovem, pois renasce continuamente na cadeâ ncia certa.


Noé s, poreé m, envelhecemos, pois, ao inverso do tempo, somos mateé ria perecíével. EÉ por isso que o tempo naã o tem rugas, cabelos brancos, dores nas articulaçoã es. O tempo relega essas maé culas para o nosso corpo ao passar por ele. Mas tambeé m relega experieâ ncias, sabedorias, memoé rias, assim saibamos colher esse poé len dos dias e transformar a vida em Primaveras. Aprendi que naã o posso ficar na varanda a ver passar o tempo, ou vendo o tempo passar por mim. Tenho de cavalgar a eternidade dos mileé simos de segundo e morrer naã o de desgaste, mas na exaustaã o de uma vida vivida. Ficar na varanda eé naã o tomar decisoã es. E naã o agir eé uma perda de tempo. EÉ esperar que esse mesmo tempo cumpra a profecia bíéblica de nos fazer regressar ao poé . Cabenos naã o morrer em vida. Naã o morrer antes do corpo. E se tivermos de regressar ao poé , este que deixe um rastro luminoso no firmamento da existeâ ncia, que seja um cometa que se perpetue nas memoé rias dos que ficam. Infiel a mim mesmo, haé muito que permaneço aqui na varanda a pensar nisto, tempos e tempos...

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