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O pĂĄssaro dos Segredos
JoĂŁo Morgado
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O Pássaro dos Segredos Texto e Ilustrações: João Morgado © Edição: KREAMUS 1ª Edição 25.Abril.2014 Depósito Legal ISBN: 978-989-98416-2-8
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O pássaro dos Segredos João Morgado
Apoios à edição:
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Dedicado a meu pai, O meu poeta e amigo o meu pรกssaro dos segredos
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Prefácio
Manuel B. Martins Guerreiro *
«Foi com curiosidade e interesse que iniciei a leitura deste conto. Estava longe de imaginar o que iria sentir, de como me sentiria identificado. Estava longe de imaginar o encanto, a força que tem esta celebração de Abril e da liberdade. A primeira leitura causou-me uma forte emoção, semelhante à que experimentei quando, há vinte anos, li pela primeira vez “O Tesouro” do saudoso Manuel António Pina.
Este conto de João Morgado toca-nos, apodera-se da nossa sensibilidade, agarra a subjectividade dos protagonistas do momento da passagem da
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sombra para a luz, dos que durante muitos anos sentiram o peso da sombra, resistiram e lutaram para que fosse possível a alvorada. É um conto que revela a construção da subjectividade e da ideia do mundo de um menino de oito anos por via da sua imaginação e dos sentimentos que o ligam aos que lhe estão mais próximos. As imagens fortes da realidade que exprime são as de muitas terras e aldeias portuguesas daquela época, são as de muitas vidas duras e difíceis. Sentimo-nos identificados como crianças ou como pais, com os sonhos e as imagens desta criança. Revivemos e sentimos o negro do tempo dos silêncios e ouvidos suspeitos.
O país negro não é uma figura de estilo. Sentimos o muro de silêncio e de pedra, sentimos os muros de separação. O “Pássaro dos Segredos” reveloume mais um grande escritor. Enriqueci o meu conhecimento. O 25 de Abril ficou mais belo, o sol nascerá mais vezes radioso e lindo. O universo dos nossos sonhos de um mundo melhor não adormecerá.
Obrigado João Morgado.»
* Contra Almirante Manuel B. Martins Guerreiro participou na preparação do 25 de Abril de 1974, integrou os vários órgãos do MFA, foi membro Conselho de Revolução.
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Prefácio
Joaquim Pessoa * «Recordo que a minha casa era a preto e branco. Preto como a máquina de costura da minha mãe, a minha ardósia da escola, o carvão apagado da braseira. Branca como o lençol da cama, a chávena de leite, a colcha de algodão. Tudo era a preto e branco, mesmo o sol que entrava pela janela ou as rosas que enfeitavam a jarra de vidro coalhado. Até o rosto cheio da minha mãe era negro quando trabalhava na costura e claro quando me abraçava.
Poderia, formalmente ser assim, em jeito de poema, o começo deste admirável conto de João Morgado, "Pássaro dos Segredos". Porque se trata de um conto mas bem poderia ser um poema em verso livre.
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Era mesmo possível transformar todo o texto num long poem, como lhe chamam os ingleses, sem que dele nada se perdesse de tudo o que o João se propôs utilizar na sua construção. Como disse Vadim Kopyl, uma coisa é escrever prosa, outra é escrever em prosa.
É um conto, e pronto! Um conto de amor baseado (lá voltamos nós!) num canto de amor. E que, tal como num canto poético, o autor sabe utilizar os poderes da palavra, recorrendo a técnicas emotivas como a repetição ("recordo que a minha casa era a preto e branco...").
Mas o "Pássaro dos Segredos" é igualmente um hino. Ao amor, sim, como já foi referido, mas também à infância, à figura tutelar do pai, e à família como núcleo que preenchia “o ninho”, a casa carregada de ternura e de uma felicidade como que enclausurada dentro de um ovo que viria, mais tarde, a eclodir.
Essa recordação da vivência com o pai-herói remonta a um tempo psicologicamente cinzento, frio, demorado, atmosfera bafienta de muitos temores interrompidos aqui e ali por algumas gargalhadas sarcásticas, como chicotes a forçar o andamento dessa besta sem cor e sem alma que a todos tolhia e ameaçava, na época em que "as paredes tinham ouvidos".
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A pouco-e-pouco, o texto vai-nos encaminhando para esse bloco rígido do tempo salazarista, parado, frio, duro, onde nada sobressaía senão a miséria, a repressão, a falta de ar e de horizontes, mas onde morava uma vontade enorme de fazer, de abrir, de rasgar os caminhos e os dias do futuro. E para isso havia que ultrapassar silêncios, olhares, vigias, através de reuniões clandestinas de trabalhadores, de democratas, para os quais era irrespirável e castigador o ar de um país “orgulhosamente só”. A oposição ao regime.
E numa madrugada, o mesmo rádio que até aí distribuía alguma alegria clubista através dos relatos de futebol, relatou uma coisa extraordinária: tinham sido derrubados dos seus lugares, que pareciam eternos, "os homens que mandavam", e um outro poder, o do povo e dos seus militares, o substituía, comemorando em festa, com as mãos cheias de cravos vermelhos e o coração mal contendo a alegria. Foi um dia de Abril, a 25, que "a casa a preto e branco" se transformou numa casa a cores". As cores da liberdade, esse bem primeiro que reclama para si e para cada um de nós as cores do arco-íris.
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É um prazer enorme a leitura deste conto de João Morgado, autor que já nos habituou a uma escrita muito segura, muito contida formalmente, mas de um intenso e arrebatador lirismo. Não foi surpresa, por esta razão, a excelência inegável deste texto. Foi apenas a confirmação da excepcional escrita e do talento de um autor que merece, sem nenhuma dúvida, um lugar de destaque na literatura portuguesa contemporânea.»
Joaquim Pessoa * Poeta
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«…Não hei-de morrer sem saber Qual a cor da liberdade…» - Jorge de Sena
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Aldeia do Carvalho Covilhã
O pássaro dos Segredos
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ecordo que a minha casa era a preto e branco. Preto como a máquina de costura de minha mãe, a minha ardósia da escola, o carvão apagado da
braseira. Branca como o lençol da cama, a chávena de leite, a colcha de algodão. Tudo era a preto e branco, mesmo o sol que entrava pela janela ou as rosas que enfeitavam a jarra de vidro coalhado. Até o rosto cheio da minha mãe era negro quando
trabalhava
na
costura
e,
claro,
quando
me
abraçava. Negra era a ausência de meu pai que trabalhava de sol-a-sol, e branco o seu regresso, mesmo que fosse em noite de breu - o regresso das pessoas que amamos tem uma auréola de luz que as torna claras aos nossos olhos.
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Recordo que a minha casa era a preto e branco, não que por ali habitasse alguma tristeza especial, mas simplesmente porque era assim toda a rua onde vivia, a minha aldeia, o meu país. Havia um xaile de viúva que cobria as nossas vidas. Parecíamos um povo velho a pentear os cabelos brancos com os dedos por debaixo do negro lenço de merino. Era um tempo de silêncios e ouvidos suspeitos, coisas do regime, diziam-me. Eu desconhecia o que era isso e vivia feliz, porque o amor não precisa de cores para ser intenso. Para mim o universo era feito de berlindes e o mundo volteava como um pião de madeira. Como os barcos esculpidos em carcocha de pinheiro que eu deixava escorrer pelas águas da ribeira, a vida deslizava-me suavemente pelo rosto. Eu e o Laurindo, quase todos os dias jogávamos às escondidas - eu encobria-me no preto, ele procurava-me no branco. Por vezes corríamos às apanhadas a ver quem corria mais rápido ou partia a cabeça mais depressa. De tempos-atempos apedrejávamos o Nelo que vinha comprar pão ao
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forno do Amílcar – enfim, pequenas travessuras, nada demais. De lancheira na mão e corpo moído, meu pai chegava embrulhado na noite, quando a casa era mais negra, quando o calor do borralho aquecia a sala. Encontrava-me a dormir,
quase
sempre.
Não
dava
conta
dele
entrar,
simplesmente acordava nos seus braços. Ele dizia que sim, mas era capaz de jurar que não, que não entrava pela porta de casa. Eu achava meu pai enorme, imenso. A porta de casa era pequena para um homem tão grande, dizia eu. Por isso, acreditava que ele entrava pela janela - não que fosse maior que a porta, mas, se pela janela entrava o céu, também podia entrar meu pai; para mim ele tinha a grandeza do céu imenso em claros dias de Verão. A cada noite, carregava-me ao colo até à cama e deitava-me ao seu lado. Sentia que ali era um ninho – eu, pássaro pequeno, por dentro dos cobertores, enroscado no pássaro grande.
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O carinho cheirava a lã quando me aconchegava no calor do seu corpo, me perguntava pelo meu dia e me contava pela milésima vez a história de dois irmãos. “O mais velho pegou no cavalo e num leão e foi à procura de fortuna. Cavalgou dias e dias, até que chegou a um castelo…” E eu adormecia, embalava em sonhos no lugar mais seguro do mundo, no entrelaçado dos seus braços, no rochedo meigo do seu peito, com as mãos por dentro da sua camisola sentindo-lhe
interior, o
calor
branca, da
pele.
Nunca voltaria a sentir tamanha segurança
em
nenhum do mundo.
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mais
lugar
Era o sol branco que me despertava a cada manhã e me trazia a esponja de luz com que se apagava noite. Acordava na minha cama. Meu pai era já um calor ausente, mas minha mãe dava-me o sorriso dos bons-dias, o pequenoalmoço e a mão a caminho da escola. Era nas carteiras de madeira que eu aprendia a ler e a contar, juntamente com os outros meninos, meninos tão-somente, só meninos de calções. As saias só habitavam o outro lado da escola, separadas por um muro que nos impedia o olhar, mas não travava o cheiro – e eu gostava do cheiro das meninas, mesmo na distância. Ao fim da tarde, voltava a correr para casa. Perguntava: a que horas chega o pai? Tarde, chegava sempre tarde. Ou na minha ansiedade, mesmo que fosse cedo, sempre me parecia tarde, demasiado tarde. E à noite, enroscados no ninho: “No castelo havia uma mulher linda, de longa cabeleira… arrancou dois cabelos e disse-lhe: prende com eles o teu cavalo e o teu leão! E ele assim fez.” E depois? - perguntava eu. E depois? E depois?
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“Depois a mulher transformou-se numa bruxa. E ele logo clamou: a mim cavalo, a mim leão! E ela soltando uma gargalhada, gritou: …nem cavalo, nem leão, pois os cabelos de
bruxa
em
ferro
se
transformarão!”
Os
cabelos
transformados em correntes de ferro e eu, sem medo da bruxa má, acorrentado nos braços de meu pai, bebendo do seu calor, aconchegado na sua voz, sabendo como sabia, que o irmão mais novo acudiria ao castelo, queimaria os cabelos da bruxa e esta seria despedaçada pelo leão. E depois? E depois? Perguntava na noite seguinte, como se os personagens me fossem estranhos, como se a história fosse nova, agarrado a meu pai como se fosse medo, vendo o brilho dos seus olhos no escuro como se fossem estrelas. E ele, fatigado ao fim de um dia de trabalho, contava pela milésima vez a história de dois irmãos. “O mais velho pegou no cavalo e num leão e foi à procura de fortuna. Cavalgou dias e dias, até que chegou a um castelo…”.
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Não havia enfado na sua voz, apenas encantamento - e eu de olhos fechados, a imaginar o trotar do cavalo, o rugido do leão, os cabelos da mulher linda que eu sabia ser uma bruxa. Meu pai era um livro ilustrado com calor, tinha voz de letras e plantava imagens na minha cabeça a cada abraço forte que me dava no escuro do quarto. Recordo que a minha casa era a preto e branco, não que por ali habitasse alguma tristeza especial, mas simplesmente porque era assim toda a rua onde vivia, a minha aldeia, o meu país. Havia um xaile de viúva que cobria as nossas vidas. Parecíamos um povo velho a pentear os cabelos brancos com os dedos por debaixo do negro lenço de merino. Era um tempo de silêncios e ouvidos suspeitos, coisas do regime, diziam-me. Eu desconhecia o que era isso. Mas, talvez por achar que as minhas asas cresciam, meu pai falava-me em surdina do que se passava nas fábricas, do que diziam as pessoas – falava-me de reuniões às escondidas, de jornais e folhetos que liam por entre os fardos de lã. Falava como se eu fosse
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já um pássaro adulto, falava como se precisasse de falar, de contar os seus segredos, de exorcizar os seus temores. As suas palavras eram cada vez mais escuras como a noite e desatavam uma ramela triste na voz. Não entendia aquelas histórias de gente real, onde não havia nem cavalos nem leões. Mas, apesar de pressentir uma sombra negra nas histórias de meu pai, eu acabava por adormecer na mesma. Adormecia em sonhos no lugar mais seguro do mundo, no entrelaçado dos seus braços, no rochedo meigo do seu peito, com as mãos por dentro da sua camisola interior, branca, sentindo-lhe o calor da pele. Eu dormia no centro do mundo à volta do qual tudo girava em silêncio, porque o universo dormia quando eu dormia. Apenas havia duas excepções em todo o cosmos: a água que corria na ribeira ao lado da nossa casa e o Amílcar que trabalhava no forno noite dentro e nos levava o pão quente à janela, antes do meu pai ir trabalhar de madrugada. Tudo o resto dormia. Todas as estrelas. Até os planetas de berlinde emperravam na sua roda-viva. E se meu pai adormecia o mundo e tudo em seu redor, minha mãe era a primeira a acordar, por isso era ela que acendia a
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luz e despertava o universo. Tinha por meus pais uma admiração imensa, um imenso amor. Amor é tudo o que ainda não foi dito e tudo o que nunca será dito, porque o amor não se diz. De todos os modos, por aquele tempo, eu era apenas um pássaro pequeno, se o amor se dissesse, eu não o saberia dizer - sabia apenas retribuir abraços quentes.
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luz e despertava o universo. Tinha por meus pais uma admiração imensa, um imenso amor. Amor é tudo o que ainda não foi dito e tudo o que nunca será dito, porque o amor não se diz. De todos os modos, por aquele tempo, eu era apenas um pássaro pequeno, se o amor se dissesse, eu não o saberia dizer - sabia apenas retribuir abraços quentes.
Numa daquelas noites negras em que toda a luz se escapulia e só restava o abraço de meu pai, ele contou mais um dos seus segredos. “Isto não se diz a ninguém, a ninguém… se alguém sabe posso ir preso”. E eu dizia que sim, que podia confiar, que da minha boca nada se ouviria. E ele contava o seu dia, as suas raivas, os seus problemas, e depois ouvia os meus – como se fossemos dois amigos a trocar cromos dos jogadores da bola. E a cada noite que passava, a nossa caderneta ficava mais e mais completa, porque
nos
conhecíamos
melhor.
brincava:
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E
depois
meu
pai
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“Houve um tempo, em que o Bocage se escondia na Estátua de D. José, no Terreiro do Paço, em Lisboa… e sempre que Marcelo Caetano passava de carro, gritava-lhe: - Ó Marcelo, traz-me um cavalo novo que este já está velho!” Eu ria-me no escuro, sem saber bem quem era o Marcelo. Meu pai dizia-me só que era o homem que mandava no país. E eu achava graça que o Bocage gritasse assim a um homem tão poderoso – pois, imaginava eu, devia ser até bem mais importante que a minha professora, que mandava nos meninos todos. “Já chateado, o Marcelo disse um dia ao Américo Tomaz: tens que vir comigo ao Terreiro do Paço. És capaz de não acreditar, mas a estátua do D. José grita comigo…!” Ainda não sabia quem era o Tomaz mas, pelos vistos, era um senhor de idade que também mandava no país. E segundo rezava a história de meu pai, um dia meteram-se no carro e lá foram juntos até ao Terreiro do Paço, que era uma praça larga, em Lisboa, junto ao Tejo.
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“O Bocage, escondido na estátua, quando os viu chegar aos dois, olhando para o Américo Tomaz logo gritou: - Ó Marcelo, então pedi-te um cavalo novo e tu… trouxeste-me um burro velho?” Meu pai ria no escuro daquele quarto de uma casa a preto e branco. Como a rua. Como a aldeia. Como o país. E depois dizia logo muito sério: “Não podes contar isto a ninguém, nem mesmo lá na escola, percebes?” Eu dizia que sim, que percebia, mas na verdade, não percebia porque alguém haveria de prender meu pai por contar uma história que só dava que rir… até entrava o Bocage das anedotas, o homem já nem era vivo, toda a gente sabia que era uma brincadeira - até eu sabia isso e não passava de um pássaro pequeno. Mas, explicava-me meu pai, que aquele era um tempo de silêncios e ouvidos suspeitos. Coisas do regime, dizia-me ele. Eu desconhecia o que era isso, mas sabia que não queria o meu pai numa prisão fria, sei lá onde, longe de mim. Depois quem me abraçava? Quem adormecia o mundo e tudo em redor? Quem comia o pão quente que o Amílcar nos trazia à
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janela pela madrugada? Por isso não contava nada a ninguém, nem à minha mãe, pois meu pai dizia que as “paredes tinham ouvidos” naquele mundo a preto e branco em que havia um xaile de viúva que cobria as nossas vidas. Certa manhã de Primavera, junto com os outros meninos de calções, calcorreei o caminho da aldeia até à escola, senteime na habitual carteira de madeira, com o tinteiro em loiça branca – tirei os cadernos, os livros, o estojo com os meus lápis, as minhas canetas de cores brancas e pretas. A lareira estava apagada, o quadro negro estava apagado, estava o sorriso apagado em todos os professores agrupados no pátio em torno de um pequeno rádio a pilhas. E de repente, nós todos de olhos esbugalhados nos vidros das janelas, a tentar perceber pelos rostos deles as notícias que davam na rádio. Não era o relato de um jogo, pois àquela hora da manhã não havia jogos de futebol, nem de hóquei-patins. Nem era dia de Nossa Senhora de Fátima, porque estávamos apenas e ainda… a 25 de Abril. Por certo Amália cantava um fado, mas não era razão para caras tão sombrias. Mas porque a
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cabeça tem horror ao vazio, começamos todos a imaginar mil histórias. E na cabeça de meninos de oito anos, é claro, mil histórias más. Será que os índios tinham invadido Portugal? Será que uma bomba tinha caído em Lisboa? Alheios aos terrores dos alunos, os professores continuavam debaixo da árvore, em torno do sacrossanto rádio – que mais parecia um altar, a fazerem sinais com as mãos, mandandose calar uns aos outros, e aproximando as cabeças do aparelho para ouvirem melhor… Teria sido um terramoto? O mar que entrara terra adentro? Caramba, tínhamos mil perguntas, mil angústias e ninguém nos dizia nada. Onde está minha mãe? E meu pai? – pensava eu atormentado. Pensavam todos os outros meninos. De olhos nas janelas, olhávamos, só olhávamos. Os professores por vezes gritavam “Viva a Liberdade”, por vezes ficavam apreensivos, calados, mas sempre em torno do rádio – só dispersavam um pouco, quando
por
vezes,
para
desespero
de
todos,
era
interrompida a emissão. Diziam palavrões e nós riamos, pondo a mão à frente da boca. Nesse dia, escusado será dizer que não houve aula; não se escreveu sequer o
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sumário. Fui para casa na hora de almoço e não voltei mais. Minha mãe sossegou-me então. Afinal, não havia índios, nem cowboys, nem terramotos, nem maremotos, nem bombas a cair em Lisboa… ao menos isso, graças a Deus, pensei eu. Eram apenas uns soldados com cravos nas espingardas – dizia a rádio -, que tinham ido prender o Marcelo Caetano, o homem que mandava no país, lembramse? Pelos vistos já não mandava mais. “E o burro velho?” - perguntei eu. E minha mãe a olhar-me de alto-abaixo. “Que conversa vem a ser essa?”. E eu a explicar-lhe, caso ela não soubesse, que ainda havia um outro homem que também mandava no país, um tal Américo Tomaz, já velhote. “Esse também foi preso”, disse-me ela sem disfarçar a surpresa pela minha pergunta, e sobretudo, pela minha
expressão.
Preso?
Estavam
os
dois
presos?
Interrogava-me eu. Então, já não tinha mais que temer o facto de as “paredes terem ouvidos”. Agora tinha a certeza que meu pai já não seria preso. “Mãe, queres que te conte uma história?”
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Meu pai chegou tarde, porque sempre me parecia tarde a hora a que chegava. Não vi, mas sei que entrou pela janela por onde costumava entrar a vastidão do céu e veio sentarse a meu lado – eu estava ainda acordado, ao lado da rádio, segurando com a ponta dos dedos o fio estreito da antena para melhor captar o sinal. “Sabes que prenderam os homens que mandavam no país?”, perguntei. Sim, meu pai sabia. “Até o burro velho!”, exclamei eu. Meu pai sorriu e passou-me a mão pela cabeça. Vinha vazio de palavras, mas era todo ouvidos. Minha mãe colocou um pano na mesa da sala e serviu-lhe um jantar tardio, mas farto. Havia entre eles um silêncio estranho, um misto de alegria e apreensão. Falavam pelos olhos - eu acompanhava-os no silêncio. Só a rádio falava a muitas vozes. Parecia o teatro que ouvia nas noites de domingo, só que agora era uma peça sem ensaios que tinha saído às ruas. Ouvia gritar: “O povo é quem mais ordena…!”
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Eram muitas as vozes, e uma enorme multidão povoava a imaginação na minha cabeça. Mas lá longe, havia homens que ainda resistiam, havia tiros, havia o sinal da cruz no peito da minha mãe, o sobressalto de meu pai que logo tratou de pôr de lado o prato da comida e o vinho no copo. E eu, com toda a força, a apertar o fio da antena na ponta dos dedos pequenos sempre que falhava a emissão, sempre que se perdia o sinal, sempre que se perdiam os sons que de longe nos traziam as novidades daquilo a que meu pai chamava “a revolução!” Ouviam-se músicas pelo meio e de novo voltavam as palavras e as ruas cheias de gente e o grito de um povo que estava com o MFA. Com os soldados - explicava meu pai -, com aqueles que tinham prendido os homens que já não mandavam no país. “Agora já não precisamos de ter segredos, pois não?”, perguntava eu. “Não. Agora podemos falar de tudo, acho que podemos falar de tudo…”, respondeu-me com um sorriso.
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Quando nos recolhemos no ninho, eu, pássaro pequeno, por dentro dos cobertores, enroscado no pássaro grande, adormeci a ouvir explicações sobre a palavra Liberdade. Mas nessa noite não houve silêncio e o universo não adormeceu comigo – até as estrelas e os planetas de berlinde se recusaram a fechar os olhos. Havia pelas ruas um povo acordado como a água da
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Quando nos recolhemos no ninho, eu, pássaro pequeno, por dentro dos cobertores, enroscado no pássaro grande, adormeci a ouvir explicações sobre a palavra Liberdade. Mas nessa noite não houve silêncio e o universo não adormeceu comigo – até as estrelas e os planetas de berlinde se recusaram a fechar os olhos. Havia pelas ruas um povo acordado como as águas ribeira que corria ao lado da nossa casa, como acordado estava o Amílcar que misturava a massa e o fermento, e deitava lenha no forno para que o pão quente da esperança chegasse à minha janela pela aurora. E quando meu pai acordou para ir trabalhar, chegou à rua e emudeceu de espanto. Veio de novo ao quarto, tirou-me da cama, carregou-me nos braços e veio comigo para fora de casa… ”Olha, olha para tudo à tua volta!”, gritava ele com lágrimas nos olhos. Nessa madrugada, recordo que a minha casa era a cores. As paredes continuavam brancas, mas tinha um lindo telhado rubro, persianas da cor das telhas e um alpendre cor de sangue.
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A minha casa era finalmente a cores – tinha a cor dos cravos -, não que por ali habitasse alguma alegria especial, mas simplesmente porque agora, era assim toda a rua onde vivia, a minha aldeia, o meu país. Havia um manto de esperança que cobria as nossas vidas.
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A minha casa era finalmente a cores – tinha a cor dos cravos -, não que por ali habitasse alguma alegria especial, mas simplesmente porque agora, era assim toda a rua onde vivia, a minha aldeia, o meu país. Havia um manto de esperança que cobria as nossas vidas. Parecíamos um povo renascido a despentear os cabelos aos renovados ventos que sopravam. Eu, pássaro pequeno, aninhado nos braços de meu pai, pássaro grande, via nascer o sol – era de um amarelo radioso, lindo como nunca, mas... “Sabes, pai, gosto desta coisa da ‘Liberdade’, mas vou ter saudades de que me contes os teus segredos, só a mim e a mais ninguém…” … e ali fiquei com os meus pais, a olhar para o futuro, na esperança de que o meu país não desbotasse, não perdesse a cor.
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João Morgado nasceu em Aldeia do Carvalho, Covilhã. Trabalhou na indústria têxtil e mais tarde foi jornalista. Colaborou na imprensa local, no diário «Público» e mais tarde no semanário «Sol». Formado em Comunicação pela Universidade da Beira Interior, tirou um mestrado em Estudos Europeus e Direitos Humanos na Universidad Pontifícia de Salamanca (Espanha) Tem desenvolvido atividade de consultoria política e empresarial. Atualmente é chefe de Gabinete do Presidente da Câmara Municipal de Belmonte. Além de poesia dispersa, editou o livro de contos «Meio-Rico» e os romances «Diário dos Infiéis» e «Diário dos Imperfeitos» (Prémio Literário Vergílio Ferreira).
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Apoio à edição: Câmara Municipal de Belmonte Câmara Municipal da Covilhã Câmara Municipal do Fundão Outros apoios: Junta de Freguesia de Cantar-Galo e Vila do Carvalho Associação 25 de Abril www.joaomorgado.net www.facebook.com/JoaoMorgadoOficial
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