Publicação "Para Memória Futura"

Natureza / Humano

AT-1

Natureza / Humano

Covid-19 Antes / Durante / Depois (Agora)

“Cities are vacant like they’ve never been Everyone’s scared of what blows in the wind The plans we all had have all gone down the drain Our lives were postponed, but I know in the end we’ll be Alright We stand together as one” Flávio Cristóvam. Andrà Tutto Bene

Sociedade Como está a Covid-19 a afetar psicologicamente o ser humano?

Como tem a sociedade lidado com súbitos avanços e recuos nas suas liberdades?

Covid-19

Antes / Durante / Depois (Agora)

E

m março último, o mundo parou. Tudo parou. Fomos confinados. E confinámo-nos.

Vimos os nossos direitos, garantias e liberdades, de certa forma, limitados.

De um dia para outro, saltámos para o famoso tríptico de Bosch, “O Jardim das Delícias Terrenas”, e passamos a andar em constantes avanços e recuos, da esquerda para a direita, e da direita para a esquerda, nos seus patamares.

De um dia para outro, fechámo-nos em casa, sem sequer nos despedirmos das pessoas que, habitualmente, nos rode-

“Sinto muitas saudades deles todos, e dos meus netos”. Rui Caria. 19/04/2020. Lar D. Pedro V, Praia da Vitória. SIC Notícias

avam: dos nossos familiares, amigos e colegas. Foi tudo tão rápido. Pediam-nos apenas dois ou três meses. Era o que veiculavam os meios de comunicação, com a promessa de, em breve, estarmos livres. E nós acatámos. E os meses foram passando.

Os gestos, os afetos, as datas, as celebrações, foram ganhando outro sentido, outro alento. Lidámos com eles de uma maneira totalmente diferente. O jantar de Páscoa com a família foi feito à distância, as celebrações religiosas foram proibidas nos moldes habituais, a despedida dos entes queridos não acon-

teceu e até o aniversário da avó, que estava no lar, foi celebrado de forma solitária. Parabéns a você... só deveria ser cantado para cronometrar a lavagem das mãos. E duas vezes! Uma barreira, muitas vezes injustificada, que nos separou. Que foi reflexo de olhares tristes, sorrisos mascarados, que nem a chama de uma vela solitária num simples bolo conseguiu, alguma vez, quebrar.

A incoerência, fruto do medo do desconhecido, imperou. As máscaras. Sim ou não? A aplicação. Sim ou não? Quem sofreu? E ainda sofre? Como nos está a afetar psicologicamente? Se, neste mo-

mento, a liberdade se vendesse numa bola de oxigénio de um dos dispensadores de Yoko Ono, por apenas cinquenta cêntimos, talvez estivéssemos muito mais felizes… Mas tudo isto vai-nos custar muito mais.

Natureza / Humano

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Política Se não fosse um vírus, mas uma mensagem/palavra/grito?

A sociedade vai continuar a ignorar os sinais de esgotamento do planeta?

“Esvaziado de qualquer referência, de memória, de autoria, é, no entanto, um monumento, o ponto de partida para uma questão.”

Alberto Manguel. Ler Imagens, A Imagem como Memória, p. 320

Covid-19

Antes / Durante / Depois (Agora)

O

surto da Covid-19 atingiu o ser humano por culpa do próprio ser humano. É um facto aparentemente evidente. E são os cientistas que o dizem. Temos de uma vez por todas perceber que somos parte integrante da natureza e que, ao adotar comportamentos lesivos para o planeta, somos nós próprios, também, os principais prejudicados. Temos de ver o planeta como uma casa comum, como pede o Papa Francisco. Entendê-lo como casa-mãe de todos os seres vivos.

Estamos a destruir o nosso lar. A sobrelotação das cidades e o consumismo

nosso planeta e dos seus ecossistemas.

Mais um sinal do seu esgotamento.

Um grito que fez parar os carros e os aviões, a indústria, as fábricas e a poluição, e deixou o ar mais limpo e respirável, as águas translúcidas e mais diversificadas, e que deu liberdade aos animais e a outras formas de vida por todo o mundo. Um grito que, neste momento, parece trazer no horizonte um novo êxodo rural, com a população a abandonar as cidades e a valorizar o campo. Um grito que às preocupações já existentes em termos políticos, quer manifestadas pelas greves climáticas que têm saído

às ruas, quer pelos diversos acordos e compromissos internacionais que têm sido firmados, juntou novas ideias para adiar o fim do mundo, tal como explica Ailton Krenak. Agora, importa não desistir. É agir. Ou não agir.

“Manila City Jail”. Hannah Morales. 2018. Manila, Filipinas. New York Times

desenfreado são as principais causas de destruição. A densidade populacional em certas cidades do mundo é assustadora e incomportável. Onde, por exemplo, 518 pessoas vivem no espaço que seria para apenas 170, como em Manila, uma das cidades com mais habitantes por metro quadrado. É o verdadeiro confronto Humano/Natureza a acontecer à nossa frente. E somos nós os protagonistas.

Não olhemos o vírus como um vírus, mas como uma mensagem, uma palavra, um grito. O vírus como uma linguagem.

Mais um dos tantos e evidentes gritos do

Natureza / Humano

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“Barcelona’s Opera House”. Emilio Morenatti. 22/06/2020. The Gran Teatre del Liceu, Barcelona. Associated Press News

Cultura O que projetar para o período pós-crise? A sociedade quer um novo normal que traga de volta o mesmo velho regime climático que tem tentado combater?

Covid-19

Antes / Durante / Depois (Agora)

J

á convivemos com o vírus há mais de meio ano. Vimos tudo aquilo que achávamos inabalável, ser abalado. Um regime económico que achávamos impossível de parar, ser travado.

Perdemos tudo. Quase tudo. Tivemos nas nossas mãos a enorme oportunidade e a enorme responsabilidade de mudar. De romper com vícios, rotinas e hábitos que reconhecemos como prejudiciais e causadores de uma crise mundial sem precedentes. O que deixar para trás? O que trazer para um período pós-crise? Podemos construir um mundo

diferente daqui em diante. Queremos efetivamente agarrar esta oportunidade? Estamos a fazer por isso?

Ignoramos tudo, mais uma vez, e seguimos uma busca desenfreada de um “novo normal” que traz de volta exatamente o mesmo regime climático que antecedeu todo este período. E o que tem de novo? A máscara e o álcool gel.

Talvez estejamos pior agora, a consumir muitos mais recursos e a provocar consequências danosas aos ecossistemas. A cultura foi dos primeiros setores de atividade a encerrar e, a olhos vistos, será dos últimos a reabrir, em pleno. Tal-

“Quando, por vezes, me falam em imaginar outro mundo possível, é no sentido de reordenamento das relações e dos espaços, de novos entendimentos sobre como podemos nos relacionar com aquilo que se admite ser a natureza, como se a gente não fosse natureza.”

Ailton Krenak. Ideias para Adiar o Fim do Mundo, p. 34

vez quando isso acontecer já ninguém se lembre do que é a cultura e do seu efeito na sua vida. Encaremos a cultura como algo essencial à nossa existência e fundamental para superar todo este período. Precisamos das exposições, do teatro, do cinema, da música, fundamentais não só à consciencialização e culpabilização do ser humano, mas também à difusão de uma clara mensagem de esperança. Deixemos a natureza apropriar-se do planeta, avançar para ocupar aquilo que não podemos ocupar, num cenário quase apocalíptico. A cultura é segura, é uma prioridade, tem de

acontecer. Nem que a plateia se encha de plantas e as palmas se traduzam no restolhar das folhas, tal como se sucedeu na ópera de Barcelona, ao som da obra “Crisantemi”, de Pucinni.

Natureza / Humano

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Covid-19

Antes / Durante / Depois (Agora)

Alberto Manguel. Ler Imagens, A Imagem como Testemunho, p. 103

“Ao contrário de uma fotografia, o mundo não tem enquadramento: o olho vagueia e pode acolher o que fica fora dos limites.”

Espaรงo / Tempo

AT-9

Espaรงo / Tempo

Covid-19 Antes / Durante / Depois (Agora)

“(...) o pior, porque é irremediável definitivamente, é o gesto que não fiz, a palavra que não disse, aquilo que teria dado sentido ao feito e ao dito, Se um morto se inquieta tanto, a morte não é sossego, Não há sossego no mundo, nem para os mortos nem para os vivos, Então onde está a diferença entre uns e outros, A diferença é uma só, os vivos ainda têm tempo, mas o mesmo tempo lho vai acabando, para dizerem a palavra, para fazerem o gesto, Que gesto, que palavra, Não sei, morre-se de a não ter dito, morre-se de não o ter feito, é disso que se morre, não de doença, e é por isso que a um morto custa tanto aceitar a sua morte (...)”

José Saramago. O Ano da Morte de Ricardo Reis

Covid-19

Antes / Durante / Depois (Agora)

Giorgio Agamben.

Homo Sacer: Sovereign Power and Bare Life

Ballad of Today

“Pois a bare life não é a vida natural per se mas sim, é a forma politizada de vida natural.

Não sendo bios nem zoe, então, a bare life emerge dessa distinção e pode ser definida como a “vida exposta à morte”, especialmente na forma de violência soberana.”

Para Memória Futura

A

exposição “Ballad of Today” leva-nos numa viagem por Lisboa pelo olhar característico de André Cepeda, que a mostra dos mais diferentes ângulos e nas mais inusitadas situações e condições. É um trabalho que retrata o inquietante sistema urbano atual, o espaço público da sociedade moderna. Aborda a relação produtiva com a vida do poder moderno através da investigação da figura humana e dos seus percursos, que vê claramente a sua própria vida biológica ser operada pelo regime.

Há um discurso convergente na noção de “bare life” que Agamben desenvolve a partir da distinção grega antiga entre vida natural e a especificidade da boa vida característica da participação na polis. Indicando, assim, o facto de que a política ocidental é fundada sobre o que exclui da política—a vida natural que é simultaneamente colocada fora do domínio do político, mas, no entanto, implicada inbios politicos. A “bare life” emerge desta forma, de uma relação de abandono.

Ballad of Today

Avenida Calouste Gulbenkian, e onde já tinha vindo a constatar o recorrente cruzamento de caminhos, percursos, atalhos e trilhos conduzindo-nos para cima, para baixo, direcionando-nos e proibindo-nos, de particular interesse para este trabalho.

Em termos tecnológicos, a reprodução da obra resulta de uma produção fotográfica de grande formato, em que o fotógrafo se faz acompanhar com

“(Sem Título)”. João Pedro Costa. 18/11/2020. Avenida Calouste Gulbenkian

A

obra selecionada onde um senhor idoso, vestido com um fato, a carregar uma pasta, desce, serpenteando, um atalho de uma encosta relvada em frente ao edifício de escritórios do banco Santander Totta, vincando no plano uma clara linha diagonal descendente, despoletou-me particular interesse por ser um espaço por onde passo regularmente em Lisboa, junto à

Para Memória Futura

uma caixa, o tripé e o negativo de 4x5 polegadas, que quase parece contraproducente para o tipo de detalhe e representação que obtém pela distância escolhida ao motivo que fotografa. A exposição é acompanhada de duas instalações sonoras que procuram expressar aquilo que é visto, vivido, experienciado, explorado, sentido, cheirado e saboreado.

“Em plena luz do dia, ao anoitecer, na escuridão, na sombra da noite, ao longo de muitos caminhos diferentes que se cruzam, que nos conduzem ao tão sedutor quanto repelente brilho do centro financeiro e nos fazem descer à sombria sucção dos esgotos.”

“(Sem Título)”. André Cepeda. Urs Stahel. Pierre von Kleist Editions

Urs Stahel. Reality’s Wake Up Call a Way of Reading

Ballad of Today

1984

O

fantasma de Fernando Pessoa faz uma série de aparições no quarto de Ricardo Reis (seu heterónimo) onde, durante cerca de nove meses após a sua morte, assemelhando-os aos nove meses da gravidez, ambos se perdem em reflexões sobre a vida, o país e o mundo.

Um tempo múltiplo. Labiríntico. As histórias das sociedades humanas. Ricardo Reis chega a Lisboa em finais de dezembro de 1935. Fica até setembro de 1936.

Uma personagem vinda de uma outra ficção, a da heteronímia de Fernando Pessoa. E um movimento inverso, logo a começar: «Aqui onde o mar se acaba e a terra principia». Em Camões, o movimento é da terra para o mar; no livro de Saramago temos Ricardo Reis a regressar a Portugal por mar. É substituído o movimento épico da partida. Mais uma vez, a história na escrita de Saramago.

E as relações entre a vida e a morte. Ricardo Reis chega a Lisboa em finais de dezembro e Fernando Pessoa morreu a 30 de novembro. Ricardo Reis visita-o ao cemitério. Um tempo complexo. O fascismo consolida-se em Portugal.

“O Ano da Morte de Ricardo Reis”. José Saramago. 02/2019. Porto Editora. Porto

O Ano da Morte de Ricardo Reis José Saramago

Espaço / Tempo

10-11

“R Number”. Giles Price. 19/10/2020. L’Ecole de Battersea, Londres. National Geographic

O tempo como recordação A normalidade pré-pandemia não volta mais, mas é presente. Pelo menos nos primeiros nove meses após o confinamento, a memória vai estar em constante diálogo com o novo normal que se está a construir.

Covid-19

Antes / Durante / Depois (Agora)

O

novo coronavírus. O SARS-CoV-2. A Covid-19. Quer seja o nome que lhe dermos, a verdade é que desde a primeira vez que o ouvimos, numa completa novidade para todo o mundo e, aparentemente, ainda numa realidade muito distante, rapidamente nos assolou e marcou, claramente, uma linha indelével que separa o antes e o depois da pandemia. Uma linha que, de um momento para outro, declarou a morte da realidade como até então a conhecíamos. Muito mais do que qualquer outra crise haveria alguma vez feito. Uma linha que trouxe um novo sufixo às nossas vidas. O tempo de Covid. O amor em tempo de Covid. A morte em tempo de Covid. O nascimento em tempo de Covid. Tudo em tempo de Covid.

Um tempo novo, diferente, com outra perceção, mais incerto, quase suspenso, mas também muito imediato. Um tempo confuso, desconhecido, difuso, indefinido. Um tempo que, à semelhança de Fernando Pessoa e o seu heterónimo, entra em constante diálogo, pelo menos nos seus primeiros nove meses, com um passado bastante recente, mas, ao mesmo tempo, aparentemente irrecuperável.

Listen Ana Rocha de Sousa 2020

A

temática retratada no filme levanta sérias questões e interpela o espetador acerca de certos temas políticos e sociais, como este associado especificamente ao sistema social e judicial britânicos. A narrativa acompanha os esforços da família em provar que as suspeitas são infundadas, perante autoridades democráticas que, aparentemente, em certos casos funcionam de forma implacável e irreversível e, para outros não se mostram eficazes e são extremamente lentas, evidenciando uma clara inversão de prioridades.

Nos subúrbios de Londres, Bela e Jota, emigrantes portugueses, enfrentam sérias dificuldades quando os serviços sociais levantam suspeitas sobre a segurança dos seus três filhos. A surdez da filha de 7 anos desencadeia um processo no sistema que parece não ter fim e ocorre a uma velocidade impressionante. Tudo se complica com o passar do tempo.

Um tempo que rompeu por completo?

Um novo tempo pós-morte? Uma nova realidade? Ou apenas uma nova realidade encapotada? Um desejo incalculável de um regresso ao passado? Uma enorme vontade de o reviver? Uma prova da irreversibilidade do tempo?

Olhemos este novo tempo como uma nova vida. À qual assistimos acontecer à nossa frente, com os nossos olhos.

Tal como no filme de Pedro Costa, assistimos à destruição das velhas barracas e, durante este tempo, estamos nós próprios a realojarmo-nos no novo bairro. Restam-nos as memórias de um passado real. Restam-nos as fotografias para reviver todos esses momentos. Agora são diferentes. Ignorando a máscara, o gel e o termómetro, a vontade e a alegria da criança ao entrar na escola é ainda maior.

Espaço / Tempo 12-13

“Listen”. Ana Rocha de Sousa. 10/2020. Bando à Parte. Pinball London

“A primeira lição do coronavírus é também a mais espantosa.

De fato, ficou provado que é possível, em questão de semanas, suspender, em todo o mundo e ao mesmo tempo, um sistema econômico que até agora nos diziam ser impossível desacelerar ou redirecionar.”

Bruno Latour. Imaginar Gestos que Barrem o Retorno da Produção Pré-Crise, p. 2

Covid-19

Antes / Durante / Depois (Agora)

A democracia em suspenso A velocidade estonteante a que tudo acontece, no imediato, quase não nos permite ter um olhar crítico sobre a gestão da pandemia. Estão a tirarnos das mãos o que tínhamos como conquistado, numa clara distopia de valores.

“The World to Come”. Giles Price. 26/08/2020. Royal Exchange, Londres. New Stattesman

A

dezoito de março, a frase “Portugueses, acabei de decretar o Estado de Emergência.”, proferida por Marcelo Rebelo de Sousa, fez soar alarmes em Portugal, que nunca antes haviam soado. Sob o pretexto de um tempo excecional, têm vindo a ser tomadas, ao longo do tempo, medidas elas também excecionais. A uma velocidade estonteante, os modos e as ferramentas de atuação e gestão da pandemia dos diferentes governos por todo o mundo têm-se vindo a adaptar, alterar e até contradizer de um momento para outro. O recurso ao discurso do medo tornou-se habitual.

Legisla-se sobre terrenos pantanosos.

Nenhum sistema político está, de todo, preparado para responder às necessidades dos cidadãos. É certo que, como qualquer outro modelo, a democracia e as instituições democráticas têm falhas, erros e problemas evidentes.

Surgem novos conceitos, um novo ou renovado léxico acompanha as necessidades do momento. As proibições disparam. As limitações estão por todo o lado. A vigilância e o controlo aumentam. As mensagens e os alertas quase parecem uma visão tão real do Big Brother, na ficção de Orwell 1984.

Espaço / Tempo 14-15

“Dadas as circunstâncias Mantenha as distâncias Respeite os espaços Controle essas ânsias De beijos e abraços Refreie as audácias e as inobservâncias” Sérgio Godinho. O Novo Normal

Impõe-nos um distanciamento social, na crueza do próprio termo. Um distanciamento social que não se coaduna com a democracia.

Estará a democracia em risco? Serão estes sinais totalitários? Uma realidade distópica? Deixamos tudo nas mãos dos políticos e dos Estados e confiámo-los as nossas vidas. Cada vez mais devemos agir na esfera individual, e isso exige uma nova de fazer política e de participar no espaço público. O voto já não é suficiente. Nunca o foi.

Não podemos seguir em frente, alheados da democracia e da cidadania, numa metáfora à imagem de Giles Price. Não podemos deixar que esta, que como os nossos filhos, achámos que nos pertence e está conquistada, nos seja retirada dos braços com a mesma brutalidade e irreversibilidade que retiram os filhos aos emigrantes portugueses em Listen, de Ana Rocha de Sousa, numa clara inversão de prioridades.

Covid-19

Antes / Durante / Depois (Agora)

2020

O

espaço público tem novas medidas, novas preocupações, novas janelas e novas dimensões que, inevitavelmente, ficarão gravadas na nossa memória.

Um momento de reunião, encontro e partilha. Uma sala comum, agora a céu aberto. Pretendemos a experiência da terra e o desenho do recorte do céu, um limite. Este limite desenha-se num quadrado, com quatro entradas, que se constrói com uma matéria vulcânica invisível, o fogo. Dentro, uma estrutura de madeira impõe o ritmo e a grelha desenha uma medida. Numa altura de (re)encontro social, evocamos esta nova medida. Uma grelha que imprime o texto das pedras, que define um recinto, um novo espaço de uso. Aqui, estamos dentro, mas fora, numa relação que oculta a sua envolvente e desenha o céu.

O texto das pedras é o que permanecerá, tal como em toda a nossa história.

Neste território, a presença dos muros de pedra, permitem ler a matriz da sociedade de um tempo. É este texto que perdura e nos dá os dados de uma leitura do passado.

“Inbetween”. Ponto Atelier. 07/2020. 15 x 15 m, criptómeria, bagacina. Ponta Delgada, Açores

Inbetween Ponto Atelier

Espaço / Tempo 16-17

“I’m Starting to Feel the Pain”. Antoine d’Agata. 11/05/2020. Paris. Magnum Photos

O espaço que perdura A cidadania não se cumpre apenas no voto pessoal, cumpre-se essencialmente na sala comum. Para além do onsite, com novas medidas, é preciso repensar o online, como plataforma de encontro e partilha.

Covid-19

Antes / Durante / Depois (Agora)

A

nossa casa. De um mundo globalizado para o nosso país. Fechamos fronteiras.

Do nosso país para o nosso distrito ou região. Impusemos cercos.

Da nossa rua para a nossa casa. Obrigamo-nos a ficar em casa. O mapa do jogo reduziu-se, e muito. O jogo é o espaço público e este tem novas medidas, novas preocupações e novas janelas que, inevitavelmente, ficarão gravadas na nossa memória.

Tudo o que antes foi físico, passou a ser digital. O online é, efetivamente, uma dimensão mais democrática e mais acessível a todos. Proliferam-se links, vídeos, webinars, aulas, conferências e sessões vindas de todas as partes do globo. Há agora a telescola e o teletrabalho. É o mundo dividido em dois. Ou um misto deles. Por um lado, um mundo presencial totalmente confinado. Por outro, um mundo virtual cada vez mais globalizado. E cada vez mais polarizado. É preciso repensar o espaço público tendo em conta estas novas dimensões. É importante construir um espaço público plural, democrático, que integre a participação de todos e onde todos tenham oportunidades. Onde todos tenham voz. Onde todos possam falar

e ser ouvidos, sem preconceitos. Um espaço que não alimente divisões, mas que una. Um espaço de encontro, de partilha. Um espaço aberto, respirável.

Um espaço comum.

Há uma alteração de fluxos. Novas funções que obrigam, necessariamente, a uma maior aceitação da efemeridade do espaço e da sua dimensão cíclica, tal como faz o coletivo SO-IL. É urgente organizar o espaço. Arrumar o espaço.

Não um espaço que coloque todos numa fila, separados pelo vazio dos dois metros, de costas para o outro, todos com o mesmo destino, todos com a mesma visão. Mas um espaço que fomente o espírito crítico, a discussão, o confronto, a proliferação de ideias e de conhecimento. Um espaço que perdure e seja testemunho da sociedade deste tempo.

É pior ainda: é a economia ou a vida. A bolsa ou a vida.

Voltámos a essa velha máxima dos salteadores de estrada. É ignóbil. Porque a economia também é a vida. É a vida contra a vida.

Sabemos bem que se pararmos a economia durante demasiado tempo isso leva ao desemprego, que o desemprego leva à miséria, e que a miséria leva à morte.

Portanto, não é a economia ou a vida. É a vida contra a vida.

Bernard-Henri Lévy. É preciso acabar com o discurso do medo

Espaço / Tempo 18-19

Covid-19

Antes / Durante / Depois (Agora)

Teresa Sá. Lugares e Não-Lugares em Marc Augé, p. 180

“O que acontece, é que na sobremodernidade as vivências pressupõem uma relação meio/ fim, pressupõe a consecução de objectivos, ideia que se conjuga perfeitamente com a “acção-racional em relação a um objectivo” weberiana, onde o que está em causa não é o espaço “entre”, mas o “fim” a atingir.”

Lugar / Não-Lugar AT-21

Lugar / Não-Lugar

Covid-19 Antes / Durante / Depois (Agora)

Sobremodernidade

“(Sem Título)”. João Pedro Costa. 18/11/2020. Avenida Calouste Gulbenkian, Lisboa.

Imagens produzidas em ambientes urbanos, característicos da sobremodernidade, onde se procurou evidenciar os efeitos de arrastamento e movimento da luz, provocado pelo rápido movimento dos elementos, como metáfora para a aceleração e velocidade; em locais de trânsito, como aeroportos, durante o período de imposição de restrições, onde se procurou explorar as noções de escala no enquadramento, em que, ao contrário do que é normal, os espaços retratados parecem excessivamente grandes e inúteis; e em lugares caracterizados pelo excesso de mensagens e informação, como são exemplo a sinalização e comunicação das regras impostas pela pandemia em transportes públicos, centros comerciais e autoestradas, onde se procurou explorar a organização compositiva dos espaços.

Covid-19

Antes / Durante / Depois (Agora)

“Quando somos confrontados com uma obra de arte, esta pode ser a nossa única resposta (...)”

Alberto Manguel. Ler Imagens, A Imagem como Ausência, p. 61

Excesso de tempo Não como aceleração da história pelo excesso de informação e de factos, mas como passividade, uniformização e simplificação de percursos, dependências e alocações, perante a superabundância factual da urbe.

A

pandemia está a reforçar a necessidade de organizar o tempo e o espaço, um dos efeitos da sobremodernidade e que está descrito, em pleno, n’O Sentimento de Um Ocidental, de Cesário Verde. Já se lida com o vírus há um ano e tenta-se de tudo para controlar a sua evolução, por vezes até com estratégias que se contradizem. Aparenta um certo desnorte, descontrolo e desorganização vindos dos governos e mesmo das organizações científicas de todo o mundo. Vivemos, neste momento, aquela que dizem ser a sua segunda vaga e estamos já a ser confrontados com a realidade de uma terceira. Com plena consciência do fator repetição, tal como explica José Tolentino Mendonça, e do desgaste que existe por todo o mundo, aos mais diversos níveis, vemo-nos diante de um novo estado de emergência do qual renasce um confinamento, embora parcial, aos fins-de-semana.

Urge, assim, a adaptação de rotinas perante esta nova exigência. Urge, desta forma, a simplificação e uniformização de percursos, dependências e alocações naquele intervalo de tempo, perante a superabundância factual da cidade. Será eficaz? Ou contraproducente?

Que consequências tem? Quem afeta?

Surgem novos horários e novas prioriLugar / Não-Lugar 22-23

“(Sem Título)”. João Pedro Costa. 16/11/2020. Aeroporto Humberto Delgado, Lisboa.

dades, nos mais diversos setores, que transformam, cada vez mais e de forma mais evidente, a casa como o único, ou pelo menos principal lugar verdadeiramente antropológico, perante a passividade de todos os outros.

A imagem, produzida em ambiente urbano, onde se provocou um efeito de arrastamento e movimento da luz, conseguido por uma exposição maior e pelo rápido movimento dos elementos, como metáfora para a aceleração e velocidade, representa cruzamentos de diferentes percursos, com diferentes funções e que, assentes em linhas oblí-

Covid-19

Antes / Durante / Depois (Agora)

quas e orgânicas, dirigem o olhar para o ponto de interesse em movimento. Esta perceção existe por se ter recorrido a um plano picado que permite que todos os elementos estejam em foco e que se entenda a dimensão da figura humana como princípio organizador.

Mercedes Alves.

Informação Hoje

A Collision Between a Stream of Light and An Obstacle

“Os factos são necessários. Sem factos, as sociedades podem tornar-se lugares obscuros.

Factos são essenciais para o debate, para a justiça, para a coerência e o progresso.”

Para Memória Futura

N

a era digital, o jornalismo e a informação estarão ameaçados por um scroll infinito que potencia a difusão de dados rápidos e superficiais? Afinal, onde está a verdade quando mais precisamos dela?

A forma como recebemos informação alterou-se. Antes da era digital, os jornais eram soberanos: a informação era sinónimo de jornais, os jornais eram a informação. Na validação e transmissão dos factos, a profissão de jornalista era soberana. Agora “the news on Facebook is what Facebook says it is”. O jornalismo e a informação parecem ameaçados pelas potências corporativas do Facebook, Twitter, WhatsApp e Instagram e as fake news são só um dos muitos fenómenos a que estamos expostos enquanto utilizadores.

Em 2017, já havia redes sociais há uma década. Não foi preciso muito tempo para se alterar o paradigma da comunicação, mas foi o tempo suficiente para uma geração não conhecer outro formato. Entre aqueles que cresceram a ler jornais instalou-se uma espécie de pânico ao confrontarem-se com um novo sistema que pareceu emergir do nada. A informação democratizou-se com as redes sociais: um acontecimento libertador e inovador, mas igualmente perigoso. A partir do

momento em que qualquer um pode ser jornalista e transmitir as suas ideias para uma plateia global, o jornalismo revela dificuldades em adaptar-se a este novo paradigma.

Mercedes Alves estudou Design de Comunicação na Faculdade de Belas-Artes da Universidade de Lisboa, terminou a licenciatura em 2020 e expõe na Mostra de Finalistas de Design de Comunicação. Está a fazer um estágio Erasmus, em Berlim, de agosto até janeiro próximo, na startup Formation GmbH, onde é responsável pelo branding. Quer ganhar experiência no mercado de trabalho até decidir o que estudar no Mestrado.

A Collision Between a Stream of Light and an Obstacle

“Na era digital o jornal e a informação estão ameaçados pelo formato do scroll infinito e da informação rápida e superficial.

Onde está a verdade quando mais precisamos dela?

Mercedes Alves.

Informação Hoje

O

trabalho em questão debruça-se sobre a crise da realidade e do jornalismo. Foi o primeiro trabalho do quinto semestre, em resposta a um briefing intitulado “I Read the News Today, Oh Boy – Modos de ver a dualidade velho/novo mundo”, em torno de conceitos como a informação, as fake news e a forma como ela é manipulada. Em torno da forma como hoje recebemos a informação através das redes sociais (news feed) e do digital, em oposição à forma como os nossos pais e avós recebiam a informação através dos meios mais tradicionais (notícias).

Com o crescimento do digital, cada vez mais gente ganhou voz e espaço mediático.

E se, por um lado, isso é extremamente democrático, ao mesmo tempo não há um filtro que crive o que é verdade

no seu conjunto. O escândalo da Cambridge Analytica é um desses exemplos. Os media sempre influenciaram, claramente, o nosso modo de pensar e a nossa opinião sobre os diversos assuntos da sociedade. Hoje, os algoritmos personalizados moldam o nosso percurso e a nossa liberdade no espaço digital. Por estarmos a viver tempos tão estranhos, a realidade quase parece ficção. Os dois conceitos quase parecem coexistir entre uma linha muito ténue, sendo que a ficção é aquilo que imaginamos e não existe, mas que amanhã pode existir.

“Informação Hoje” serve-se do tema das alterações climáticas, captado pela artista a partir do gráfico do consumo de carne e da dieta vegetariana que ocupa as páginas centrais, para exemplificar e comunicar a mensagem pretendida.

Para Memória Futura

“(Sem Título)”. João Pedro Costa e Maria Inês Martins. Teaser. 1920x1080, 02:11, Stereo

A própria artista confessa que “não havia pandemia, e este era o tema da altura”.

O booklet procura mostrar a facilidade com que qualquer pessoa, nos dias que correm, se torna um influencer e tem poder de manipulação sobre a informação. É uma obra que nos coloca questões como: “O que é verdade? Onde é que ela está? Onde posso encontrar informação legítima, hoje em dia?”, numa era em que tudo é questionável, até mesmo a própria verdade, mesmo o próprio jornalismo.

Em termos formais, a obra resulta num booklet em tamanho A5, na opção pelo registo do velho paradigma de publicação, ao invés de um formado digital.

A sua organização faz-se em retângulos, como metáfora aos pop-ups das redes sociais e dos seus diversos feeds. A própria capa é uma simplificação disso mesmo. Outra componente técnica foi a necessidade de intervenção pública, que consistiu na distribuição de 10 cópias por uma audiência do primeiro ano e na recolha de feedback, num objetivo idêntico ao deste File.

A Collision Between a Stream of Light and an Obstacle

“O papel das heterotopias é criar um outro espaço, um outro espaço real, tão perfeito, tão meticuloso, tão bem arranjado quanto o nosso é desordenado, mal disposto e bagunçado.”

Michel Foucault. Other Spaces, p. 120

Excesso de espaço Não como encolhimento do mundo, concentrações urbanas, migrações de pessoas e bens, mas como paradoxal alteração de escalas e superabundância espacial de não-lugares agora vazios como os aeroportos.

F

ruto da inevitabilidade da simplificação de percursos e redução do cruzamento de alocações, desde março que se assiste à brutal queda da atividade turística um pouco por todo o globo.

Os aeroportos, como ícones deste setor, representativos da sua dimensão, estão praticamente vazios, fruto do cancelamento de rotas consideradas desnecessárias e pouco viáveis. São cada vez mais comuns as imagens de frotas inteiras de aviões em terra, tripulações completas no desemprego e toda a cadeia a elas associada a bater no fundo.

Entrar num aeroporto em 2020 é estranhamente assustador. Diria mesmo chocante, para quem conheceu a realidade pré-pandemia, sinónimo de concentração e migração populacional e de bens. A ausência de pessoas é evidente. No vazio circulam silhuetas em branco, como as de Ana Vieira, e o aeroporto como lugar da nossa memória, tal como o descreve Carlos Guilherme Riley, daqui em diante, será completamente diferente. Os aeroportos, que antes nos abriam as portas do mundo, são espaços que hoje nos remetem paradoxalmente ao seu encolhimento, perante a sua superabundância espacial. Os aeroportos surgem hoje como espaços sobredimensionados para a sua função.

Lugar / Não-Lugar 24-25

Há uma evidente ambiguidade ao nível da alteração de escalas, que não se coaduna com o progresso e a noção de sobremodernidade apresentados por Augé.

A imagem, produzida num aeroporto, procura explorar, precisamente, as diferentes noções de escala no enquadramento, em que, ao contrário do que é normal, os espaços retratados parecem excessivamente grandes e inúteis.

Os pontos centrados na cabeça dos elementos humanos, que formam uma linha diagonal descendente, apontam para essa decadência. O plano, dividido em duas porções verticais, evidencia o contraste entre o espaço ocupado e o espaço vazio. As portas entreabertas, enquandram a realidade e reforçam a inatingibilidade do lugar. A figura humana, sem identidade e distante, é sinónimo da ausência e do distanciamento emotivo do espetador num cenário como este.

“O negacionismo não é só dos outros e tem múltiplas linguagens e faces dentro de nós.”

José Tolentino Mendonça.

Lidar com a Repetição

Excesso da figura do humano Não como medida da tradução individual do mundo e da individualização das referências, mas como preocupação do cumprimento de mensagens com implicações coletivas na organização dos espaços.

Covid-19

Antes / Durante / Depois (Agora)

O

excesso da figura do humano na tradução individual do mundo e na individualização das suas referências é outra das características da sobremodernidade, tal como é apresentada por Marc Augé. Deparamo-nos hoje com espaços que já não se demarcam uns dos outros e onde a uniformização dos seus elementos impera. Um desses elementos são, precisamente, as mensagens e a publicidade, que se têm vindo a mostrar um veículo fundamental de informação relacionada com a Covid-19 e dos procedimentos a adotar na sua contenção.

“(Sem Título)”. João Pedro Costa. 12/11/2020. Estação de Metro do Jardim Zoológico, Lisboa.

Foram também, inquestionavelmente, responsáveis pela rápida e generalizada literacia pandémica que nos ocupa nos últimos meses.

Com o Sars-Cov-2, prolifera-se um vasto leque de novas mensagens necessárias e fundamentais ao cumprimento das regras impostas, numa comunicação que, na maioria das vezes, se alia à já existente. No entanto, ao contrário da restante, o processo comunicativo associado à crise que vivemos parece contradizer a individualização das referências defendida por Augé, e convergir numa noção de heterotipia como a ado-

tada por Foucault, em que a preocupação com o coletivo e um certo apelo à identidade de grupo surgem como fim último da sua aplicação. O recolhimento obrigatório no período noturno que nos está a ser imposto é um desses casos. Em nome de um interesse coletivo, o de voltar ao lugar mal possamos, e numa perspetiva de organização e regramento da sociedade, quase se pode ouvir o toque do sino para o recolher às onze horas, num claro paralelismo com o exemplo das colónias jesuítas no texto Other Spaces, responsável pelo seu sucesso no século XVII.

A imagem, produzida num lugar caracterizado pelo excesso de mensagens e informação como o metropolitano procura explorar a organização compositiva dos espaços, claramente marcada por linhas horizontais que acentuam o ritmo provocado pelo distanciamento da figura humana, orientado pela mensagem em primeiro plano.

Lugar / Não-Lugar 26-27

Covid-19

Antes / Durante / Depois (Agora)

Susan Sontag. Ensaios sobre Fotografia, O Heroísmo da Visão, p. 87.

“Nunca ninguém, através de fotografias, descobriu a fealdade. Mas houve muito quem, através de fotografias, tenha descoberto a beleza. O que leva as pessoas a fotografar, com exceção das situações em que a câmera é utilizada para documentar ou para registar ritos sociais, é a procura da beleza.”

Emoções / Pensamentos AT-29

Emoções / Pensamentos

Covid-19 Antes / Durante / Depois (Agora)

Covid-19

Antes / Durante / Depois (Agora)

“Decameron”. Giovanni Boccaccio. 2011. Mel Editores.

“D

Excerto A obra “Decameron” representa uma realidade muito próxima ao contexto atual, ao aproximar em diferentes aspetos a Peste Negra à pandemia associada à Covid-19, desde a sua transmissibilidade pelo ar, a sua origem asiática, a violência com que se manifestaram em países como Itália, aos milhões de vida que ceifaram e, sobretudo, ao facto de o isolamento ser, nas duas situações, a nossa melhor arma.

ois habitantes de Siena amam a mesma dama, comadre de um deles. O compadre morre e vem encontrar-se com o amigo, segurado uma promessa que lhe fizera, e contar-lhe o que se passa no outro mundo.

Houve outrora em Siena dois rapazes de origem plebeia, chamados, um Tingoccio Mini e outro Mencio di Tura. Moravam perto da porta Salajem, estavam quase sempre juntos e pareciam verdadeiramente amigos. Frequentando como é costume dos homens, as igrejas e os sermões, tinham por várias vezes ouvido falar da glória, ou das torturas que, segundo os seus méritos, eram concedidas no outro mundo às almas dos mortos. Desejando ser informados amplamente a respeito disto, e não sabendo como, prometeram um ao outro que aquele dos dois que morresse primeiro, voltaria, se fosse possível, a procurar O que sobrevivesse, para lhe dar notícias do que tanto desejava saber, e comprometeram-se a isto por um juramento solene. Feita esta promessa e continuando os dois amigos a viver em estreitas relações, como acabei de dizer, sucedeu tornar- se Tingoccio compadre de um tal Ambruogio Anselmini que vivia em Campareggi, e tinha tido um filho de sua mulher chamada Mita.

Tingoccio foi algumas vezes visitar em companhia de Mencio a referida comadre, que era uma bela e apetitosa mulher, e enamorou-se dela não obstante o compadrio. Pela sua parte, Mencio, ou porque ela lhe agradasse também, ou porque a ouvisse gabar muito a Tingoccio, tornou-se igualmente enamorado. Ambos se abstinham de contar um ao outro este amor, mas não pelo mesmo motivo. Tingoccio não o descobria a Mencio, porque lhe parecia praticar uma acção má, amando sua comadre, e por isso envergonhava-se de que alguém o soubesse; Mencio ocultava o seu amor, porque descobrira que a dama agradava muito a Tingoccio. E a este respeito fazia o seguinte raciocínio: «Se lhe descubro este amor, ele terá ciúmes de mim, e como pode, com toda a facilidade, falar à dama, na sua qualidade de compadre, tornar-me-á odioso o mais que puder, e nunca obterei coisa alguma dessa mulher.»

Enquanto os dois mancebos estavam assim apaixonados, decorreu tempo e sucedeu que Tingoccio, ao qual mais fácil era manifestar o seu desejo à dama, de tal modo soube fazê-lo pelos seus

actos e palavras, que obteve dela tudo quanto quis. Não tardou Mencio a dar por isto, e embora a coisa lhe desagradasse bastante, como no entanto esperava conseguir um dia o seu fim, fingiu que não sabia de nada para que Tingoccio não tivesse o menor pretexto de lhe prejudicar os seus projectos.

Continuando as coisas assim, sucedeu que Tingoccio, vendo o terreno doce e propício nos domínios da comadre, tanto cavou e lavrou, que apanhou uma doença, a qual aumentando em pouco tempo o levou desta para melhor vida.

Três dias depois da sua morte, provavelmente por não poder ser mais cedo, veio de noite, segundo a promessa feita, ao quarto de Meneio, que dormia profundamente, e chamou-o em voz alta.

Mencio, acordando de súbito, disse-lhe: - Quem és tu?

- Sou Tingoccio - respondeu o defunto e segundo a promessa que te fiz, venho dar-te notícias do outro mundo.

Mencio ficou, a princípio, um pouco apavorado de o ver; todavia, tranquilizando-se, disse-lhe: - Olá! Bem-vindo sejas!

Em seguida perguntou-lhe se estava perdido, e Tingoccio respondeu logo: - As coisas perdidas são as que não se encontram; como estaria eu aqui se estivesse perdi do?

- Oh! - disse Mencio. - Não quero dizer isso; o que te pergunto é se estás entre as almas condenadas ao fogo vingador do Inferno.

- Não - respondeu Tingoccio - mas pelos pecados que cometi, estou em grande pena e aflição.

Mencio perguntou então circunstanciadamente a Tingoccio, que pena se infligia no outro mundo por cada pecado que se cometia neste, e Tingoccio disse-lhas todas. E em seguida, Mencio perguntou se queria que fizesse alguma coisa por ele cá neste mundo, ao que Tingoccio respondeu que sim, isto é, que mandasse dizer por sua intenção missas e sufrágios, e que desse algumas esmolas, porque essas coisas são muito salutares aos que estão em pena no outro mundo.”

Emoções / Pensamentos 30-31

Storyline Duas figuras humanas, de género indiferente, vestidas com cores neutras, de pouca importância.

Máscaras de proteção e equipamentos tecnológicos.

Narrativa cíclica e circular.

Introdução e conflito (1.º plano); confronto (2.º plano); desfecho (3.º plano).

Covid-19

Antes / Durante / Depois (Agora)

I

ntrodução: Representação da normal relação dos elementos humanos pré-pandemia (sem máscaras e distanciamento físico). Prevalência de sentimentos como o belo e a alegria. (Antes).

Conflito: Contraste da alteração súbita das relações, de uma perspetiva sequencial, desde os sentimentos de fragilidade e impotência, ao terror e desespero face ao carácter da doença.

Quebra das relações (distanciamento físico). Recurso último à tecnologia.

Desaparecimento de um dos elementos.

Confronto: Registo das reações contraditórias à situação, “da clausura à fuga”.

Um elemento que se adapta, usa máscara e evita contactos. Fantasma (elemento que desapareceu) que regressa inconformado, tira a máscara, numa transgressão e destruição das normas e valores, representando a utopia, o sonho e a passagem para um mundo de

fantasia. Traz, com ele, boas notícias do futuro, do outro mundo. Há uma despedida final (não aparece mais no tríptico). (Durante) Desfecho: Alteração futura do modo de pensar do ser humano. Fusão com a natureza perante “o grande grito da natureza” e a esperança no futuro, fruto das boas notícias que surgem. Elemento liberta-se da máscara e esta funde-se com o ambiente. (Depois / Agora)

NotĂ­cias do Outro Mundo

Notícias do Outro Mundo

“Notícias do Outro Mundo”. João Pedro Costa. 23/12/2020. 1260x594, Jato de tinta s/ papel fotográfico, Caldeira Guilherme Moniz, Ilha Terceira, Açores

D

o Belo ao Sublime. Da alegria à violência das emoções.Da dicotomia de sentimentos. Do vazio. Do desejo. Da obra universal “Decameron”, escrita por Giovanni Boccaccio, surge a imagem para o tríptico “Notícias do Outro Mundo”. Uma obra de particular interesse e pertinência, desde logo pelo contexto em que foi escrita, por representar uma realidade muito próxima ao contexto atual, ao aproximar em diferentes aspetos a Peste Negra à pandemia associada à Covid-19, desde a sua transmissibilidade pelo ar, a sua origem, a violência com que se manifestaram em países como Itália, aos milhões de vida que ceifaram e, sobretudo, ao facto de o isolamento ser, nas duas situações, a nossa melhor arma. Da sua última novela do sétimo dia, em que, do futuro, surgem notícias animadoras.

O tríptico, com uma composição formal clássica, num cenário agregador, tal como os trípticos de Jheronymus Bosch e as pinturas de Brueghel, procura, de forma cronológica e sequencial, fazer o retrato das diferentes emoções provocadas pelas diferentes fases da pandemia e onde se explora, principalmente, de camada em camada, a oposição conformismo/inconformismo perante o sacrifício que é exigido, de uma perspetiva gradual de fusão com a Natureza, como a que é abordada na obra de Pedro Mexia. É um trabalho que olha para o ser humano como o principal responsável pelo seu próprio destino. A análise do fenómeno pandémico como momento de transgressão de normas e valores, como momento de reações antagónicas, da clausura à fuga, numa fase em que começa a haver alguma esperança no “outro mundo”, no futuro pós-Covid, do sentido em que surgem notícias de vacinas no horizonte que já começam a ser inoculadas e de que estes últimos esforços poderão vir a ser compensados.

A imagem, na esperança e na liberdade, suplanta a fragilidade e a impotência, o terror e o desespero.

Para Memória Futura

“A imagem, na esperança e na liberdade, suplanta a fragilidade e a impotência, o terror e o desespero.”

João Pedro Costa. Notícias do Outro Mundo

Notícias do Outro Mundo

“Decameron”. Paolo Pasolini. 11971. Alberto Grimaldi.

Storyboard Narrativa sequencial que, de camada em camada, se vai fundindo com a natureza, e procurado transmitir os sentimentos e emoções em destaque: da clausura à fuga.

“Como pode a dor ser representada?”

Alberto Manguel. Ler Imagens, A Imagem como Violência, p. 246

Emoções / Pensamentos 32-33

“Tentações de S. Antão”. Jheronymus Bosch. c. 1500.

Ensaio fotográfico Justaposição de planos pela manipulação da sua opacidade.

“Agora cada um procura sempre o outro sinal de si.”

Platão. O Banquete, p. 102

Covid-19

Antes / Durante / Depois (Agora)

Moodboard Multiplicação e repetição pelos planos à semelhança das referências formais.

Espaço natural, floresta endémica dos Açores. Cenário transversal a todo o suporte.

“(...) eu fiquei para trás – a tremer de pavor – e senti o grande grito da natureza.”

Pedro Mexia. Imagens Imaginadas, Línguas de Fogo, p. 58

Emoções / Pensamentos 34-35

Natureza / Humano Sociedade Política Cultura

Espaço / Tempo O tempo como recordação A democracia em suspenso O espaço que perdura

1 3 5 6 9 12 15 18

Lugar / Não-Lugar Excesso de tempo Excesso de espaço Excesso da figura do humano

21 23 25 26

Emoções / Pensamentos Excerto Storyline Moodboard Storyboard Ensaio fotográfico

29 31 33 34 35 35

Edição e Design João Pedro Costa Tipografia Circular, Laurenz Brunner, Georgia, Matthew Carter.

Papel Inapa Imagine Silk 170g/m² Design de Comunicação I Professores Cândida Ruivo e Victor Almeida Faculdade de Belas-Artes da Universidade de Lisboa Ano Letivo 2020-2021

Covid-19

Antes / Durante / Depois (Agora)