Covid-19 Antes / Durante / Depois (Agora)
Dossier de Pesquisa
Para Memória Futura
Inoculação da vacina nos Açores. Rui Caria Dossier de Pesquisa
AT-1
Natureza / Humano 3 Contexto 4 Metáfora 7 Campo 8 Tema 26 Espaço / Tempo 39 Contexto 40 Metáfora 42 Campo 45 Tema 48 Ballad of Today 59 Lugar / Não-Lugar Contexto Metáfora Campo Tema
73 74 76 88 108
A Collision Between a Stream of Light and an Obstacle 119 Emoções / Pensamentos 123 Contexto 124 Metáfora 126 Campo 136 Tema 158 173 Caderno de Exercícios Contexto 174 Metáfora 176 Campo 187 Tema 192
Covid-19
Antes / Durante / Depois (Agora)
Jardim da Aprendizagem da Liberdade. Yoko Ono
Natureza / Humano A Imagem como Memรณria
Dossier de Pesquisa
2-3
Contexto Para a formulação dos critérios do meu trabalho e consequente definição de imagens a trabalhar, selecionei algumas referências mais específicas no sentido de conseguir construir uma espécie de narrativa sequencial e coerente entre os três textos, não obstante as restantes referências.
1. Andrà Tutto Bene. Cristovám
2. Lisboa Ainda. Manuel Alegre
Covid-19
Antes / Durante / Depois (Agora)
3. Music for Hope. Andrea Bocelli
4. Diário da Peste. Gonçalo M. Tavares
Diário da Peste, 1 de abril de 2020 Quase todas as lojas fechadas, menos alimentação, farmácia e outras vendas básicas. Estado de emergência. Em certos países, lojas de flores abertas. As emergências precisam de flores. Mas zero de beleza: as flores são para os mortos. Os que já não vêem nem cheiram. Os mortos já não podem ser contagiados pelo amor dos vivos, diz alguém. Não te esqueças da beleza, nunca - diz outro amigo, de barba descalabrada, camisa torta. Nos funerais as flores não são estéticas, mas úteis. Não são bonitas, funcionam. Eu sou um humano, diziam cartazes que alguns negros nos anos 60 do século XX traziam pendurados ao pescoço. Imaginar milhares de pessoas na rua com esse cartaz em 2020. Eu sou um humano. “Estados Unidos atingem um novo recorde de vítimas mortais. Mortos ultrapassam os provocados pelo 11 de setembro.” Do outro lado da janela, contam-me que um vizinho tem a Bíblia na mão ou a Bíblia tem na mão o vizinho. Porque ele diz, esse vizinho, falando para a bíblia: estou na tua mão! Por vezes lê alto. “Jerusalém, tem coragem. Aquele que te deu um nome, consolar-te-á.” “Crianças vítimas de maus tratos deixaram de receber visitas de rotina da segurança social “ “Risco de fuga ou abuso aumenta nas casas de acolhimento.” “Compra de carros caiu mais de 50% em março.” Uma expressão síntese para a morte: acabaram-se os trabalhos. “A paixão pelos objectos de consumo deve ser substituída pela paixão pelos assuntos comuns.” Dossier de Pesquisa
4-5
Cornelius Castoriadis, entrevista antiga. Assuntos comuns. Pela primeira vez, no mapa do mundo: de baixo acima, da esquerda à direita, um assunto comum. A informação como objecto de famintos. Um consumo ansioso, quantos mortos? O que fazer? Cuidados com os pés, com os sapatos, com as calças, com a camisa, com a saia, com a roupa, com as meias, com as luvas, com as mãos, com a boca, com os olhos e o cabelo. O crocodilo pode estar muitos meses sem comer. “Rússia enviou carregamento médico para os Estados Unidos.” De repente, a consciência das mãos. Elas existem muito mais desde há umas semanas. Somos todos artesãos. O cuidado com as mãos a tocar nas coisas. Um artesão diante de legumes, lavá-los, desinfectá-los. Atenção dirigida às coisas. Todas as coisas brilham, por vezes com um brilho perigoso. Tudo está a existir com mais força. Os alimentos e os objectos. A higiene em relação às coisas e ao próprio corpo. O corpo tornado sagrado de novo. Aquilo que tem de ser protegido. Tenho uma colecção a que chamo cidade do mundo. Miniaturas de casas e edifícios de diferentes cidades. Está empacotada. Imaginar que se pudesse empacotar o mundo, como nas mudanças de casa. Guardar no armazém. Para grande parte das pessoas, o exterior está guardado num armazém Um verso: “Aguardo Deus com gula”. Rimbaud e a sífilis em redor. As doenças mudam de nome, talvez seja um disfarce. Um amigo de Espanha, tradutor, diz-me que tem um amigo nos cuidados intensivos. Tem 51 anos e nenhuma doença associada. Os discursos, pôr as mãos nos ouvidos. “Certos espíritos são comboios tão rápidos que não temos tempo de ver que estão vazios.” É preciso fazer parar o comboio. Com uma meia na boca, aparece a Roma. Pastora de objetos perdidos. A Jeri vê, maravilhada, aquilo que há cinco minutos viu, maravilhada. Está fascinada com as sombras. Aperto o casaco, chove demasiado. Por vezes, mesmo o exército cercado fica feliz por não poder sair. Aprender a perder, um dia e depois outro.
5. Language is a Virus. Laurie Anderson
Covid-19
Antes / Durante / Depois (Agora)
Metáfora Contarei com referências específicas como o estímulo do tríptico “O Jardim das Delícias Terrenas”, de Hieronymus Bosch, presente nos frames iniciais do documentário “Before The Flood”, a escrita do “Diário da Peste”, de Gonçalo M. Tavares, o retrato do poema “Lisboa Ainda”, de Manuel Alegre, e a forma como é trabalhado o conceito de liberdade na exposição “O Jardim da Aprendizagem da Liberdade”, de Yoko Ono, patente em Serralves.
6. A Imagem como Memória. Ler Imagens. Alberto Manguel
Manguel reflete sobre a utilidade do monumento de memória do Holocausto, de Peter Eisenman, em Berlim. Critica o facto de não haver ligação do monumento com a história e com as pessoas. É uma interpretação conceptual e estéril sem relação com a sociedade, concretizada numa biblioteca de livros inacessíveis. Entende que uma biblioteca onde as pessoas possam ter acesso a livros sobre o Holocausto e onde a memória não se perca cumpriria muito melhor a sua função. Podemos ler um quadro da mesma forma que lemos um livro? Existe algum vocabulário que possamos de aprender para nos ajudar a deslindar os seus significados? Quererá ele ser descodificado, decifrado e compreendido? Em Ler Imagens, livro profusamente ilustrado, Alberto Manguel oferece uma instigante meditação sobre as questões que nos colocamos quando estamos diante de uma obra de arte.
Alberto Manguel (1948, Buenos Aires) cresceu em Telavive e na Argentina. Aos 16 anos, trabalhava na livraria Pygmalion, em Buenos Aires, quando Jorge Luis Borges lhe pediu que lesse para ele em sua casa. Foi leitor de Borges entre 1964 e 1968. Em 1968, mudou-se para a Europa. Viveu em Espanha, França, Itália e Inglaterra, ganhando a vida como leitor e tradutor para várias editoras. Editou cerca de uma dezena de antologias de contos sobre temas tão díspares como o fantástico ou a literatura erótica. É ensaísta, romancista premiado e autor de vários best-sellers internacionais, como Dicionário de Lugares Imaginários, Uma História da Curiosidade, A Biblioteca à Noite e Embalando a Minha Biblioteca (Tintada-china, 2013, 2015, 2016 e 2018, respetivamente). É atualmente cidadão canadiano e foi diretor da Biblioteca Nacional da Argentina entre 2016 e 2018. Foi galardoado com o Prémio Formentor das Letras em 2017.
Dossier de Pesquisa
6-7
Campo Neste conceito, claramente inspirado no inverso do seu título, pela música “Language is a Virus”, de Laurie Anderson, e no retrato do planeta como o que é feito no documentário “A vida no nosso planeta”, de Davida Attenborough, procurarei explorar as atitudes da sociedade perante as críticas ao modelo económico vigente, como as que se fazem no texto “Ideias para adiar o fim do mundo”, de um líder indígena brasileiro, Ailton Krenak, ou até mesmo na conhecida encíclica do Papa Francisco, “Laudato Si”, nomeadamente o grave problema da sobrelotação.
7. A Vida no Nosso Planeta. David Attenborough
8. Before The Flood. Leonardo Di Caprio
Covid-19
Antes / Durante / Depois (Agora)
9. Francesco. Documentary 2020
10. O que separa o ser humano da natureza. Peter Sloterdijk
11. Botticelli. Inferno
Dossier de Pesquisa
8-9
Covid-19
Antes / Durante / Depois (Agora)
12. La Carte de l’Enfer. Sandro Botticelli Dossier de Pesquisa
10-11
13. Ideias para Adiar o Fim do Mundo. Ailton Krenak
Covid-19
Antes / Durante / Depois (Agora)
Dossier de Pesquisa
12-13
A primeira vez que desembarquei no aeroporto de Lisboa, tive uma sensação estranha. Por mais de cinquenta anos, evitei atravessar o oceano por razões afetivas e históricas. Eu achava que não tinha muita coisa para conversar com os portugueses — não que isso fosse uma grande questão, mas era algo que eu evitava. Quando se completaram quinhentos anos da travessia de Cabral e companhia, recusei um convite para vir a Portugal. Eu disse: “Essa é uma típica festa portuguesa, vocês vão celebrar a invasão do meu canto do mundo. Não vou, não”. Porém, não transformei isso numa rixa e pensei: “Vamos ver o que acontece no futuro”. Em 2017, ano em que Lisboa foi capital ibero-americana de cultura, ocorreu um ciclo de eventos muito interessante, com performances de teatro, mostra de cinema e palestras. De novo, fui convidado a participar, e, dessa vez, nosso amigo Eduardo Viveiros de Castro faria uma conferência no teatro Maria Matos, chamada “Os involuntários da pátria”. Então, pensei: “Esse assunto me interessa, vou também”. No dia seguinte ao da fala do Eduardo, tive a oportunidade de encontrar muita gente que se interessou pela estreia do documentário Ailton Krenak e o sonho da pedra, dirigido por Marco Altberg. O filme é uma boa introdução ao tema que quero tratar: como é que, ao longo dos últimos 2 mil ou 3 mil anos, nós construímos a ideia de humanidade? Será que
Covid-19
Antes / Durante / Depois (Agora)
ela não está na base de muitas das escolhas erradas que fizemos, justificando o uso da violência? A ideia de que os brancos europeus podiam sair colonizando o resto do mundo estava sustentada na premissa de que havia uma humanidade esclarecida que precisava ir ao encontro da humanidade obscurecida, trazendoa para essa luz incrível. Esse chamado para o seio da civilização sempre foi justificado pela noção de que existe um jeito de estar aqui na Terra, uma certa verdade, ou uma concepção de verdade, que guiou muitas das escolhas feitas em diferentes períodos da história. Agora, no começo do século XXI, algumas colaborações entre pensadores com visões distintas originadas em diferentes culturas possibilitam uma crítica dessa ideia. Somos mesmo uma humanidade? Pensemos nas nossas instituições mais bem consolidadas, como universidades ou organismos multilaterais, que surgiram no século XX: Banco Mundial, Organização dos Estados Americanos (OEA), Organização das Nações Unidas (ONU), Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (Unesco). Quando a gente quis criar uma reserva da biosfera em uma região do Brasil, foi preciso justificar para a Unesco por que era importante que o planeta não fosse devorado pela mineração. Para essa instituição, é como se bastasse manter apenas alguns lugares como amostra grátis da Terra. Se sobrevivermos, vamos brigar pelos pedaços de planeta que a gente não comeu, e os nossos netos ou tataranetos — ou os netos de nossos tataranetos — vão poder passear para ver como era a Terra no passado. Essas agências e instituições foram configuradas e mantidas como estruturas dessa humanidade. E nós legitimamos sua perpetuação, aceitamos suas decisões, que muitas vezes são ruins e nos causam perdas, porque estão a serviço da humanidade que pensamos ser. As andanças que fiz por diferentes culturas e lugares do mundo me permitiram avaliar as garantias dadas ao integrar esse clube da humanidade. E fiquei pensando: “Por que insistimos tanto e durante tanto tempo em participar desse clube, que na maioria das vezes só limita a nossa capacidade de invenção,
Dossier de Pesquisa
14-15
criação, existência e liberdade?”. Será que não estamos sempre atualizando aquela nossa velha disposição para a servidão voluntária? Quando a gente vai entender que os Estados nacionais já se desmancharam, que a velha ideia dessas agências já estava falida na origem? Em vez disso, seguimos arrumando um jeito de projetar outras iguais a elas, que também poderiam manter a nossa coesão como humanidade. Como justificar que somos uma humanidade se mais de 70% estão totalmente alienados do mínimo exercício de ser? A modernização jogou essa gente do campo e da floresta para viver em favelas e em periferias, para virar mão de obra em centros urbanos. Essas pessoas foram arrancadas de seus coletivos, de seus lugares de origem, e jogadas nesse liquidificador chamado humanidade. Se as pessoas não tiverem vínculos profundos com sua memória ancestral, com as referências que dão sustentação a uma identidade, vão ficar loucas neste mundo maluco que compartilhamos. “Ideias para adiar o fim do mundo” — esse título é uma provocação. Eu estava no quintal de casa quando me trouxeram o telefone, dizendo: “Estão te chamando lá da Universidade de Brasília, para você participar de um encontro sobre desenvolvimento sustentável”. (A UnB tem um centro de desenvolvimento sustentável, com programa de mestrado.) Eu fiquei muito feliz com o convite e o aceitei, então me disseram: “Você precisa dar um título para a sua palestra”. Eu estava tão envolvido com as minhas atividades no quintal que respondi: “Ideias para adiar o fim do mundo”. A pessoa levou a sério e colocou isso no programa. Depois de uns três meses, me ligaram: “É amanhã, você está com a sua passagem de avião para Brasília?”. “Amanhã?” “É, amanhã você vai fazer aquela palestra sobre as ideias para adiar o fim do mundo.” No dia seguinte estava chovendo, e eu pensei: “Que ótimo, não vai aparecer ninguém”. Mas, para minha surpresa, o auditório estava lotado. Perguntei: “Mas todo esse pessoal está no mestrado?”. Meus amigos disseram: “Que nada, alunos do campus todo estão aqui querendo saber essa história de adiar o fim do mundo”. Eu respondi: “Eu também”.
Covid-19
Antes / Durante / Depois (Agora)
Estar com aquela turma me fez refletir sobre o mito da sustentabilidade, inventado pelas corporações para justificar o assalto que fazem à nossa ideia de natureza. Fomos, durante muito tempo, embalados com a história de que somos a humanidade. Enquanto isso — enquanto seu lobo não vem —, fomos nos alienando desse organismo de que somos parte, a Terra, e passamos a pensar que ele é uma coisa e nós, outra: a Terra e a humanidade. Eu não percebo onde tem alguma coisa que não seja natureza. Tudo é natureza. O cosmos é natureza. Tudo em que eu consigo pensar é natureza. Li uma história de um pesquisador europeu do começo do século XX que estava nos Estados Unidos e chegou a um território dos Hopi. Ele tinha pedido que alguém daquela aldeia facilitasse o encontro dele com uma anciã que ele queria entrevistar. Quando foi encontrá-la, ela estava parada perto de uma rocha. O pesquisador ficou esperando, até que falou: “Ela não vai conversar comigo, não?”. Ao que seu facilitador respondeu: “Ela está conversando com a irmã dela”. “Mas é uma pedra.” E o camarada disse: “Qual é o problema?”. Tem uma montanha rochosa na região onde o rio Doce foi atingido pela lama da mineração. A aldeia Krenak fica na margem esquerda do rio, na direita tem uma serra. Aprendi que aquela serra tem nome, Takukrak, e personalidade. De manhã cedo, de lá do terreiro da aldeia, as pessoas olham para ela e sabem se o dia vai ser bom ou se é melhor ficar quieto. Quando ela está com uma cara do tipo “não estou para conversa hoje”, as pessoas já ficam atentas. Quando ela amanhece esplêndida, bonita, com nuvens claras sobrevoando a sua cabeça, toda enfeitada, o pessoal fala: “Pode fazer festa, dançar, pescar, pode fazer o que quiser”. Assim como aquela senhora hopi que conversava com a pedra, sua irmã, tem um monte de gente que fala com montanhas. No Equador, na Colômbia, em algumas dessas regiões dos Andes, você encontra lugares onde as montanhas formam casais. Tem mãe, pai, filho, tem uma família de montanhas que troca afeto, faz trocas. E as pessoas que vivem nesses vales fazem festas para essas montanhas, dão comida, dão presentes, ganham presentes das montanhas. Por
Dossier de Pesquisa
16-17
que essas narrativas não nos entusiasmam? Por que elas vão sendo esquecidas e apagadas em favor de uma narrativa globalizante, superficial, que quer contar a mesma história para a gente? Os Massai, no Quênia, tiveram um conflito com a administração colonial porque os ingleses queriam que a montanha deles virasse um parque. Eles se revoltaram contra a ideia banal, comum em muitos lugares do mundo, de transformar um sítio sagrado num parque. Eu acho que começa como parque e termina como parking. Porque tem que estacionar esse tanto de carro que fazem por aí afora. É um abuso do que chamam de razão. Enquanto a humanidade está se distanciando do seu lugar, um monte de corporações espertalhonas vai tomando conta da Terra. Nós, a humanidade, vamos viver em ambientes artificiais produzidos pelas mesmas corporações que devoram florestas, montanhas e rios. Eles inventam kits superinteressantes para nos manter nesse local, alienados de tudo, e se possível tomando muito remédio. Porque, afinal, é preciso fazer alguma coisa com o que sobra do lixo que produzem, e eles vão fazer remédio e um monte de parafernálias para nos entreter. Para que não fiquem pensando que estou inventando mais um mito, o do monstro corporativo, ele tem nome, endereço e até conta bancária. E que conta! São os donos da grana do planeta, e ganham mais a cada minuto, espalhando shoppings pelo mundo. Espalham quase que o mesmo modelo de progresso que somos incentivados a entender como bem-estar no mundo todo. Os grandes centros, as grandes metrópoles do mundo são uma reprodução uns dos outros. Se você for para Tóquio, Berlim, Nova York, Lisboa ou São Paulo, verá o mesmo entusiasmo em fazer torres incríveis, elevadores espiroquetas, veículos espaciais… Parece que você está numa viagem com o Flash Gordon. Enquanto isso, a humanidade vai sendo descolada de uma maneira tão absoluta desse organismo que é a terra. Os únicos núcleos que ainda consideram que precisam ficar agarrados nessa terra são aqueles que ficaram
Covid-19
Antes / Durante / Depois (Agora)
meio esquecidos pelas bordas do planeta, nas margens dos rios, nas beiras dos oceanos, na África, na Ásia ou na América Latina. São caiçaras, índios, quilombolas, aborígenes — a sub-humanidade. Porque tem uma humanidade, vamos dizer, bacana. E tem uma camada mais bruta, rústica, orgânica, uma sub-humanidade, uma gente que fica agarrada na terra. Parece que eles querem comer terra, mamar na terra, dormir deitados sobre a terra, envoltos na terra. A organicidade dessa gente é uma coisa que incomoda, tanto que as corporações têm criado cada vez mais mecanismos para separar esses filhotes da terra de sua mãe. “Vamos separar esse negócio aí, gente e terra, essa bagunça. É melhor colocar um trator, um extrator na terra. Gente não, gente é uma confusão. E, principalmente, gente não está treinada para dominar esse recurso natural que é a terra.” Recurso natural para quem? Desenvolvimento sustentável para quê? O que é preciso sustentar? A ideia de nós, os humanos, nos descolarmos da terra, vivendo numa abstração civilizatória, é absurda. Ela suprime a diversidade, nega a pluralidade das formas de vida, de existência e de hábitos. Oferece o mesmo cardápio, o mesmo figurino e, se possível, a mesma língua para todo mundo. Para a Unesco, 2019 é o ano internacional das línguas indígenas. Todos nós sabemos que a cada ano ou a cada semestre uma dessas línguas maternas, um desses idiomas originais de pequenos grupos que estão na periferia da humanidade, é deletada. Sobram algumas, de preferência aquelas que interessam às corporações para administrar a coisa toda, o desenvolvimento sustentável. O que é feito de nossos rios, nossas florestas, nossas paisagens? Nós ficamos tão perturbados com o desarranjo regional que vivemos, ficamos tão fora do sério com a falta de perspectiva política, que não conseguimos nos erguer e respirar, ver o que importa mesmo para as pessoas, os coletivos e as comunidades nas suas ecologias. Para citar o Boaventura de Sousa Santos, a ecologia dos saberes deveria também integrar nossa experiência cotidiana, inspirar nossas escolhas sobre o lugar em que queremos viver, nossa experiência
Dossier de Pesquisa
18-19
como comunidade. Precisamos ser críticos a essa ideia plasmada de humanidade homogênea na qual há muito tempo o consumo tomou o lugar daquilo que antes era cidadania. José Mujica disse que transformamos as pessoas em consumidores, e não em cidadãos. E nossas crianças, desde a mais tenra idade, são ensinadas a serem clientes. Não tem gente mais adulada do que um consumidor. São adulados até o ponto de ficarem imbecis, babando. Então para que ser cidadão? Para que ter cidadania, alteridade, estar no mundo de uma maneira crítica e consciente, se você pode ser um consumidor? Essa ideia dispensa a experiência de viver numa terra cheia de sentido, numa plataforma para diferentes cosmovisões. Davi Kopenawa ficou vinte anos conversando com o antropólogo francês Bruce Albert para produzir uma obra fantástica, chamada A queda do céu: Palavras de um xamã yanomami. O livro tem a potência de mostrar para a gente, que está nessa espécie de fim dos mundos, como é possível que um conjunto de culturas e de povos ainda seja capaz de habitar uma cosmovisão, habitar um lugar neste planeta que compartilhamos de uma maneira tão especial, em que tudo ganha um sentido. As pessoas podem viver com o espírito da floresta, viver com a floresta, estar na floresta. Não estou falando do filme Avatar, mas da vida de vinte e tantas mil pessoas — e conheço algumas delas — que habitam o território yanomami, na fronteira do Brasil com a Venezuela. Esse território está sendo assolado pelo garimpo, ameaçado pela mineração, pelas mesmas corporações perversas que já mencionei e que não toleram esse tipo de cosmos, o tipo de capacidade imaginativa e de existência que um povo originário como os Yanomami é capaz de produzir. Nosso tempo é especialista em criar ausências: do sentido de viver em sociedade, do próprio sentido da experiência da vida. Isso gera uma intolerância muito grande com relação a quem ainda é capaz de experimentar o prazer de estar vivo, de dançar, de cantar. E está cheio de pequenas constelações de gente espalhada pelo mundo que dança, canta, faz chover. O tipo de humanidade zumbi que estamos sendo convocados a integrar não tolera tanto prazer, tanta
Covid-19
Antes / Durante / Depois (Agora)
fruição de vida. Então, pregam o fim do mundo como uma possibilidade de fazer a gente desistir dos nossos próprios sonhos. E a minha provocação sobre adiar o fim do mundo é exatamente sempre poder contar mais uma história. Se pudermos fazer isso, estaremos adiando o fim. É importante viver a experiência da nossa própria circulação pelo mundo, não como uma metáfora, mas como fricção, poder contar uns com os outros. Poder ter um encontro como este, aqui em Portugal, e ter uma audiência tão essencial como vocês é um presente para mim. Vocês podem ter certeza de que isso me dá o maior gás para esticar um pouco mais o início do fim do mundo que se me apresenta. E os provoco a pensar na possibilidade de fazer o mesmo exercício. É uma espécie de tai chi chuan. Quando você sentir que o céu está ficando muito baixo, é só empurrá-lo e respirar. Como os povos originários do Brasil lidaram com a colonização, que queria acabar com o seu mundo? Quais estratégias esses povos utilizaram para cruzar esse pesadelo e chegar ao século XXI ainda esperneando, reivindicando e desafinando o coro dos contentes? Vi as diferentes manobras que os nossos antepassados fizeram e me alimentei delas, da criatividade e da poesia que inspirou a resistência desses povos. A civilização chamava aquela gente de bárbaros e imprimiu uma guerra sem fim contra eles, com o objetivo de transformá-los em civilizados que poderiam integrar o clube da humanidade. Muitas dessas pessoas não são indivíduos, mas “pessoas coletivas”, células que conseguem transmitir através do tempo suas visões sobre o mundo. Às vezes, os antropólogos limitam a compreensão dessa experiência, que não é só cultural. Eu sei que tem alguns antropólogos aqui na sala, não fiquem nervosos. Quantos perceberam que essas estratégias só tinham como propósito adiar o fim do mundo? Eu não inventei isso, mas me alimento da resistência continuada desses povos, que guardam a memória profunda da terra, aquilo que Eduardo Galeano chamou de Memória do fogo. Nesse livro e em As veias abertas da América Latina, ele mostra como os povos do Caribe, da América Central, da Guatemala, dos Andes e do resto da América do Sul tinham
Dossier de Pesquisa
20-21
convicção do equívoco que era a civilização. Eles não se renderam porque o programa proposto era um erro: “A gente não quer essa roubada”. E os caras: “Não, toma essa roubada. Toma a Bíblia, toma a cruz, toma o colégio, toma a universidade, toma a estrada, toma a ferrovia, toma a mineradora, toma a porrada”. Ao que os povos responderam: “O que é isso? Que programa esquisito! Não tem outro, não?”. Por que nos causa desconforto a sensação de estar caindo? A gente não fez outra coisa nos últimos tempos senão despencar. Cair, cair, cair. Então por que estamos grilados agora com a queda? Vamos aproveitar toda a nossa capacidade crítica e criativa para construir paraquedas coloridos. Vamos pensar no espaço não como um lugar confinado, mas como o cosmos onde a gente pode despencar em paraquedas coloridos. Há centenas de narrativas de povos que estão vivos, contam histórias, cantam, viajam, conversam e nos ensinam mais do que aprendemos nessa humanidade. Nós não somos as únicas pessoas interessantes no mundo, somos parte do todo. Isso talvez tire um pouco da vaidade dessa humanidade que nós pensamos ser, além de diminuir a falta de reverência que temos o tempo todo com as outras companhias que fazem essa viagem cósmica com a gente. Em 2018, quando estávamos na iminência de ser assaltados por uma situação nova no Brasil, me perguntaram: “Como os índios vão fazer diante disso tudo?”. Eu falei: “Tem quinhentos anos que os índios estão resistindo, eu estou preocupado é com os brancos, como que vão fazer para escapar dessa”. A gente resistiu expandindo a nossa subjetividade, não aceitando essa ideia de que nós somos todos iguais. Ainda existem aproximadamente 250 etnias que querem ser diferentes umas das outras no Brasil, que falam mais de 150 línguas e dialetos. Nosso amigo Eduardo Viveiros de Castro gosta de provocar as pessoas com o perspectivismo amazônico, chamando a atenção exatamente para isto: os humanos não são os únicos seres interessantes e que têm uma perspectiva sobre a existência. Muitos outros também têm. Cantar, dançar e viver a experiência mágica de suspender o céu é comum em
Covid-19
Antes / Durante / Depois (Agora)
muitas tradições. Suspender o céu é ampliar o nosso horizonte; não o horizonte prospectivo, mas um existencial. É enriquecer as nossas subjetividades, que é a matéria que este tempo que nós vivemos quer consumir. Se existe uma ânsia por consumir a natureza, existe também uma por consumir subjetividades — as nossas subjetividades. Então vamos vivê-las com a liberdade que formos capazes de inventar, não botar ela no mercado. Já que a natureza está sendo assaltada de uma maneira tão indefensável, vamos, pelo menos, ser capazes de manter nossas subjetividades, nossas visões, nossas poéticas sobre a existência. Definitivamente não somos iguais, e é maravilhoso saber que cada um de nós que está aqui é diferente do outro, como constelações. O fato de podermos compartilhar esse espaço, de estarmos juntos viajando não significa que somos iguais; significa exatamente que somos capazes de atrair uns aos outros pelas nossas diferenças, que deveriam guiar o nosso roteiro de vida. Ter diversidade, não isso de uma humanidade com o mesmo protocolo. Porque isso até agora foi só uma maneira de homogeneizar e tirar nossa alegria de estar vivos.
Dossier de Pesquisa
22-23
Covid-19
Antes / Durante / Depois (Agora)
14. The Garden of Earthly Delights. Hieronymus Bosch
Dossier de Pesquisa
24-25
Tema Para estas questões tenho, sobretudo, por base um texto de um filósofo françês, Bruno Latour, “Imaginar gestos que barrem o retorno da produção pré-crise”, e procuro olhar a cultura como uma das atividades essenciais à condição humana e à consciencialização e culpabilização do ser humano. Em suma, sequencialmente, o meu trabalho partiria de um ponto inicial em que é explorado o individualismo da artificialidade do comportamento e da ação humana, indo culminar no seu oposto, em que é evidente a assunção e a apropriação do espaço cultural e humanizado pela própria natureza, no seu significado mais original e restritivo.
15. Crisantemi. Puccini
16. O Jardim da Aprendizagem da Liberdade. Yoko Ono
Covid-19
Antes / Durante / Depois (Agora)
17. Beyond The Plastic. Antonieta Martinho HOJE NO CASINO
!
BEYOND THE PLASTIC A Galeria de Arte recebe de 23 de Setembro a 13 de Dezembro uma mostra individual de trabalhos de Pintura Bi e Tridimensionais, da autoria de Antonieta Martinho.
"A vida como a conhecemos é impossível sem a existência da água, seja ela salgada, doce, potável. As primeiras formas de vida no planeta surgem no oceano que disponibiliza importantes recursos para a sociedade humana. A exploração oceânica aumentou consideravelmente, assim como, a poluição com os materiais não biodegradáveis como o plástico", sublinha a autora Antonieta Martinho.
Dossier de Pesquisa
26-27
E prossegue: "Onde factos e números perdem inIuência, as obras de arte podem causar impacto, isto pode explicar o Porquê de uma proliferação de arte de resíduos plásticos nos últimos anos. São necessárias campanhas contínuas sobre o consumo que sensibilizem as pessoas a respeito do impacto do plástico descartável no Oceano dado que é um material acumulado da utilização diária das pessoas".
"Para a realização desta exposição recolhi e utilizei garrafas e garrafões. Procurei aproveitá-los e mostrá-los numa linguagem plástica diferente. Para além dos plásticos referidos, utilizei também um derivado de plástico reciclável que é o copoliester, pode substituir os itens de plástico ou de vidro em produtos de utilidade doméstica dado que oferece transparência e é resistente ao calor e a diversas substâncias químicas, o que garante a manutenção das cores e do brilho dos utensílios mesmo após diversas lavagens. Além disso, é considerado ecofriendly, ou seja, reduz os impactos negativos e os danos ao meio ambiente devido à sua maior durabilidade. Manuseio este material desde 2016, sendo actualmente o suporte das minhas peças", explica a autora.
Covid-19
Antes / Durante / Depois (Agora)
A Instalação "The Ocean", patente na exposição "Beyond The Plastic" é essencialmente uma composição de vários trabalhos de Pintura bidimensionais e tridimensionais que interagem entre si, que estabelecem um diálogo e que tentam integrar-se no espaço expositivo, sendo o tema o Oceano. "A água pela sua Iuidez, transparência e leveza apela e cativa para além de permitir a sobrevivência dos seres da vida marinha. A cor azul foi escolhida pela analogia com um oceano azul, profundo, calmo. A monocromia da cor é rica em intenção, permite mostrar a textura, as subtis variações da cor num suporte transparente, em que os vazios, translúcidos e opacos se sobrepõem", revela Antonieta Martinho. Antonieta Martinho: Antonieta Martinho é natural de Kalima, então Reino da Bélgica. Licenciou-se em Medicina pela FMUL, em 1975. Ingressou na licenciatura em Pintura, da FBAUL de 2009 a 2014. Fez o Curso Prático de Pintura da SNBA, 2012 a 2014. Membro dos órgãos sociais da SNBABiénio 2015/16. Realizou a primeira exposição individual em 2016, assumindo uma escolha, em que a componente abstratizante tem um signidcado próprio na linguagem que utiliza. Entrada Livre
Dossier de Pesquisa
28-29
18. How to shift your mindset and choose your future. Tom RivettCarnac
19. A global movement to solve global problems. Colombe CahenSalvador
Covid-19
Antes / Durante / Depois (Agora)
20. Imaginar gestos que barrem o retorno da produção pré-crise. Bruno Latour
Dossier de Pesquisa
30-31
(008)
Covid-19
Antes / Durante / Depois (Agora)
06/07/2020, 15*02
Dossier de Pesquisa
32-33
- (008)
Covid-19
Antes / Durante / Depois (Agora)
06/07/2020, 15*02
Dossier de Pesquisa
34-35
- (008)
Covid-19
Antes / Durante / Depois (Agora)
06/07/2020, 15*02
Dossier de Pesquisa
36-37
Covid-19
Antes / Durante / Depois (Agora)
Currents Arquiteturas Temporรกrias de SO - IL. MAAT
Espaรงo / Tempo A Imagem como Testemunho
Dossier de Pesquisa
38-39
Contexto Comecei por explorar algumas das referências do briefing, nomeadamente por ver o episódio da construção do sino de Tarkovsky e por ler o capítulo da metáfora de Alberto Manguel, cuja ficha de leitura já coloquei na drive. A partir daí, fui explorando outras referências mais pessoais e procurando recuperar aquilo que poderia ser interessante ver explorado no âmbito do exercício.
1. Mural Hospital São João. Vhils
Covid-19
Antes / Durante / Depois (Agora)
2. O Novo Normal. SĂŠrgio Godinho
3. Coronavirus, Explained. Netflix
4. Pandemic. Netflix
Dossier de Pesquisa
40-41
Metáfora Fruto também da pesquisa para o File#2, encontrei alguns trabalhos interessantes sobre temas coincidentes. Para o livro, proponho-me a trabalhar sobre “O Ano da Morte de Ricardo Reis”, de José Saramago, com enfoque na perspetiva do tempo pósmorte de Fernando Pessoa, transpondo-o para a realidade da pandemia. Ou seja, encarar todo o período pré-Covid como uma recordação ainda bastante presente e em diálogo permanente com o “novo normal”.
5. A Imagem como Testemunho. Ler Imagens. Alberto Manguel
Neste capítulo, Manguel reflete no papel da fotografia como possibilidade de reviver e testemunhar, segundo Paul Valéry. Desde a sua descoberta, a fotografia veio mostrar, em muitos casos, que a sociedade havia sido iludida. Acredita que uma simples fotografia pode oferecer uma verdade mais profunda e mudar o curso de muitas proposições. Ao mesmo tempo, com base em Berger, alerta para o facto de o seu enquadramento, os seus limites, a própria luz/sombra, a manipulação seletiva e digital, entre outros, poderem vir a interpretar erradamente a realidade, de forma propositada, mostrandose como restrições e suprimindo informação pertinente à sua leitura. Podemos ler um quadro da mesma forma que lemos um livro? Existe algum vocabulário que possamos de aprender para nos ajudar a deslindar os seus significados? Quererá ele ser descodificado, decifrado e compreendido? Em Ler Imagens, livro profusamente ilustrado, Alberto Manguel oferece uma instigante meditação sobre as questões que nos colocamos quando estamos diante de uma obra de arte.
Covid-19
Antes / Durante / Depois (Agora)
Alberto Manguel (1948, Buenos Aires) cresceu em Telavive e na Argentina. Aos 16 anos, trabalhava na livraria Pygmalion, em Buenos Aires, quando Jorge Luis Borges lhe pediu que lesse para ele em sua casa. Foi leitor de Borges entre 1964 e 1968. Em 1968, mudou-se para a Europa. Viveu em Espanha, França, Itália e Inglaterra, ganhando a vida como leitor e tradutor para várias editoras. Editou cerca de uma dezena de antologias de contos sobre temas tão díspares como o fantástico ou a literatura erótica. É ensaísta, romancista premiado e autor de vários best-sellers internacionais, como Dicionário de Lugares Imaginários, Uma História da Curiosidade, A Biblioteca à Noite e Embalando a Minha Biblioteca (Tintada-china, 2013, 2015, 2016 e 2018, respetivamente). É atualmente cidadão canadiano e foi diretor da Biblioteca Nacional da Argentina entre 2016 e 2018. Foi galardoado com o Prémio Formentor das Letras em 2017.
6. Festa. Fúria. Femina. MAAT
7. Abstract The Art of Design Platon. Netflix
Dossier de Pesquisa
42-43
8. Modos de Ver. John Berger
A série de televisão surge numa clara reação ao documentário Civilization de Kenneth Clark, em que o seu autor tem uma visão muito mais tradicional e conservadora sobre a arte. Neste primeiro episódio, Berger baseia-se em Walter Benjamin e tem como tese fundamental “A Obra de Arte na Era da Reprodutibilidade Técnica”. Procura explicar como que, com a invenção da fotografia, a perceção do mundo mudou por completo e tornou a reprodução e a cópia de obras originais de tal forma acessíveis que fez aumentar o valor de mercado das mesmas e quase que criar uma aura em redor das obras genuínas. Ways of Seeing é uma série de televisão de 1972 de filmes de 30 minutos, criada principalmente pelo escritor John Berger e pelo produtor Mike Dibb. Foi transmitido pela BBC Two em janeiro de 1972 e adaptado para um livro de mesmo nome.
Covid-19
Antes / Durante / Depois (Agora)
Berger e sua equipa recorrem à tradição da pintura europeia para nos fazer questionar sobre a maneira como vemos e lemos as imagens. John Berger (1926-2017), crítico de arte, pintor e escritor inglês, ícone da contracultura e um dos pensadores mais influentes dos nossos dias, avançou contra a corrente num tempo de especialistas e especializações. Em quadros, ensaios, poemas ou textos para cinema ou televisão, foi plural também nas suas inspirações, tomando interesse nas franjas da sociedade (presos, camponeses, migrantes) como exemplos de resistência à ignomínia de governos e mercados. Ganhou o Prémio Booker em 1972 com o romance feminista G., e o seu ensaio mais famoso, Modos de Ver, é uma referência na crítica de arte ainda hoje a ser redescoberta.
Campo Para o filme, a minha proposta recai sobre o filme “Listen”, de Ana Rocha de Sousa, que aborda um tema que nos coloca, precisamente, a questionar os valores das instituições democráticas que têm erros, problemas e falhas evidentes, muitas vezes evidenciando uma clara inversão de prioridades, como tem sido o caso da gestão da pandemia e da própria sociedade.
9. 4’33. John Cage
10. Andrei Rublev. Andrei Tarkovsky
Dossier de Pesquisa 44-45
11. Juventude em Marcha. Pedro Costa
12. Currents Arquiteturas Temporรกriasi de SO - IL. MAAT
13. Onsite e Online. Ana Cachola e Rodrigo Saturnino
Covid-19
Antes / Durante / Depois (Agora)
14. O Ano da Morte de Rcardo Reis. JoĂŁo Botelho
15. Hold My Hand. Nessi Gomes
16. Listen. Ana Rocha de Sousa
Dossier de Pesquisa
46-47
Tema Para a obra de natureza artística, proponho uma instalação produzida no âmbito do Walk&Talk, um festival de artes contemporâneas que acontece anualmente nos Açores e que este ano se debruçou, precisamente, sobre os impactos da Covid-19. A obra em questão, “Inbetween” é resultado de uma nova visão do espaço público, das novas medidas e dimensões, pelo coletivo de arquitetos Ponto Atelier.
17. A Nova Normalidade. Reportagem Especial
18. Social Dilemma. Netflix
Covid-19
Antes / Durante / Depois (Agora)
19. Espaço Público. Ana Lua Caiano
20. The Great Dictator. Charlie Chaplin
Dossier de Pesquisa 48-49
21. É preciso acabar com o discurso do medo. BernardHenri Lévy
+E #2491— 25-07-2020
Bernard-Henri Lévy “É preciso acabar com o discurso do medo”
O filósofo francês esteve na redação do Expresso onde foi entrevistado por Pedro Mexia a propósito do seu último livro. “Confinamento é uma palavra fascista”, disse Entrevista Bernard-Henri Lévy
“A democracia é o desfazer do distanciamento social” O famoso filósofo francês esteve na redacção do Expresso para falar do seu mais recente livro “Este Vírus Que Nos Enlouquece” que acaba de ser publicado em Portugal. É um ensaio sobre estes tempos estranhos em que vivemos e uma crítica exasperada à maneira como enfrentamos a pandemia POR PEDRO MEXIA (TEXTO) E JOSÉ FERNANDES (FOTOGRAFIAS) Apertar a mão ou não apertar, eis a questão. Numa das suas colunas da revista “Le Point”, Bernard-Henri Lévy tinha-se insurgido contra o fim do aperto de mão, mesmo em tempos de pandemia. Como cumprimentá-lo agora? A questão resolve-se quando B.H.L., como é conhecido, estende a mão a todos os que o vieram receber à entrada do Expresso. Improvável septuagenário, elegante e descontraído, Lévy esteve em Portugal para promover a tradução do recentíssimo “Este Vírus Que Nos Enlouquece” (edição Guerra & Paz), breve ensaio bastante mais “libertário” do que “securitário”. É um texto belicosamente hostil à linguagem da “guerra”, do medo, do distanciamento, formas de servidão voluntária que estão no extremo oposto da imagem de um B.H.L. cosmopolita, viajado, mediático, polémico. E é também um acto de indignação contra os indignados, contra os que viram na covid uma intenção, um castigo, uma mensagem. De modo que nada escapa a esta crítica exasperada à maneira como enfrentamos a pandemia: nem os aplausos à varanda nem os diários do confinamento, nem Fauci nem o Papa. Covid-19
Antes / Durante / Depois (Agora)
Este livro não é sobre o vírus mas sobre o discurso acerca do vírus, o “vírus discursivo”. O que mais o impressionou nesse discurso? Isso é importante porque não se trata do livro de um médico, mas do livro de um filósofo. É um livro que parte do princípio de que uma epidemia é um fenómeno social tanto quanto um fenómeno médico. E uso mesmo aquela fórmula do grande anatomo-patologista Rudolf Virchow que disse que o vírus é um fenómeno social que comporta alguns aspectos sanitários. São os aspectos sociais que me interessam, é um livro de um semiótico, de um analista do discurso. O que me interessa é o que se diz, é a maneira como as sociedades foram governadas nos últimos meses, é o modo de governamentalidade que apareceu por causa da pandemia. O meu tema é esse. Não é o vírus, até porque os médicos não sabem muito sobre o vírus e porque não sou médico. Em contrapartida, sobre a linguagem totalitária e democrática, sobre a semiótica e a análise do discurso, aí tenho algum ouvido. E foi com esse ouvido que escrevi este livro.
O vírus não é um inimigo nem um inimigo invisível, é um vírus. Há qualquer coisa de medieval nessa maneira de pensar nas coisas em termos de guerra Há desde logo questões de linguagem, como o uso do termo “guerra”... Isso já me exaspera. Começámos logo mal. Faço parte das pessoas que conhecem um pouco o que é a guerra. E não é isto. O vírus não é um inimigo invisível, os médicos e os enfermeiros não são combatentes da frente de batalha, as pessoas que ficaram em casa não são reservistas nem tropas de rectaguarda. Essa militarização do discurso sobre o vírus foi uma falsa pista que conduziu inevitavelmente a um mau resultado. Bem sei que o Presidente francês foi um dos primeiros a usarem esse termo, mas eu discordo da palavra. O vírus não é um inimigo nem um inimigo invisível, é um vírus. Há qualquer coisa de medieval nessa maneira de pensar nas coisas em termos de guerra... Mas não é uma linguagem, digamos, aproximativa, como quando se diz “a guerra contra a droga”?
A guerra contra a droga é diferente, porque os cartéis da droga estão organizados como exércitos. Mas detrás de um vírus não há uma vontade, não há uma estratégia nem um exército. E como para mim o grande erro face a esta pandemia foi justamente o de emprestar ao vírus uma intenção, uma vontade, como se ele estivesse a dar-nos uma mensagem, um aviso, julgo que o que está na raiz de todas esses erros é ver o vírus como um inimigo. O discurso da guerra, como dizia o meu camarada André Glucksmann, é particularmente “mal-vindo”. Muita gente criticou o discurso do medo. Mas não é normal termos medo de uma doença potencialmente mortal e ainda desconhecida?
Dossier de Pesquisa
50-51
Eu não critico o medo. Constato-o. E constato também que contrariamente à ansiedade, para falar de forma freudiana, que é um alarme e que ajuda a agir, o medo é paralisante, impede a acção. É normal ter medo desta doença? É. Mas não mais do que de outras doenças mortais. O vírus é mortal em poucos casos, menos do que outros vírus, menos do que doença terríveis e incuráveis como o cancro. Portanto, o medo foi excessivo, havia uma parte desse medo irracional, insensata. E ao medo irracional chama-se pânico, cujos efeitos sociais não são bons. Uma das causas do medo tem que ver com não sabermos como se comporta a doença. Fomos recebendo informações muito diferentes sobre usar ou não usar máscara, sobre a forma de contágio… Não é um vírus que já conhecemos, como a sida. Mas levámos dez ou 20 anos a conhecer. Nos anos 80 não sabíamos nada. Diziam-se muitos disparates sobre a sida, como agora sobre a pandemia. Que era uma doença que afectava apenas uma categoria de pessoas. E não era verdade. Até à geração dos meus pais, também se sabia muito pouco sobre o cancro. E mesmo hoje uma parte da lógica do cancro continua opaca. Este vírus não é mais opaco nem mais enigmático do que o cancro. Nesta pandemia muita gente tem atribuído “intenções” à natureza…
Acho que estamos numa época particularmente moralista, que faz de tudo uma questão moral, que culpabiliza tudo e todos. E esse espírito do tempo apropriouse deste vírus. O espírito do tempo tem uma vontade, mas o vírus não tem. E esse espírito investiu o vírus de uma energia punitiva. Estamos num momento em que, à direita como à esquerda, há um clima a que Nietzsche chamava “moralina”. É um regresso a uma linguagem e a um pensamento religiosos? Em Portugal, no tempo do terramoto de 1755, houve quem falasse de castigo divino. É a mesma coisa. Conheço a literatura do terramoto de Lisboa, conheço as prédicas e a literatura popular do tempo da peste negra, é o mesmo discurso. Podemos ser muito sábios, ter laboratórios com tecnologias de ponta, óptimos hospitais, mas na nossa cabeça estamos ainda no tempo do terramoto de Lisboa ou da peste negra. Pensamento mágico, vingança da natureza, os deuses estão zangados, os homens pecaram e estão a ser castigados. O modelo de confinamento tem duas fontes. A fonte moderna é a China, é Wuhan. A fonte antiga vem das cidades do século XIV no tempo da peste negra. É o que escreveu Michel Foucault quando distinguiu o modelo das leprosarias (excomungam-se os doentes, metem-se numa ilha, fecha-se a ilha) e o modelo do confinamento para a peste (pede-se a todos que se fechem em casa e às famílias que vigiem os sintomas). É o regresso disso. Estamos no século XIV. Estamos no “Decameron”, de Bocaccio, nas casas secundárias de Sintra ou de Deauville, como os jovens que iam para as colinas de Fiesole enquanto se morria em Florença. Os conservadores podem ficar reconfortados, mas os optimistas, como eu, acham Covid-19
Antes / Durante / Depois (Agora)
isso inquietante. Com todos os especialistas que temos e a cultura das liberdades podíamos ter encontrado uma resposta mais inteligente. Os antigos pecados eram a heresia ou a imoralidade, os novos pecados são a globalização e o capitalismo. É uma forma moral de falar de política?
É uma forma moral e sobretudo idiota, absurda. Quando houve epidemias de cólera, de varíola, não havia globalização, que eu saiba. Mas agora, se acabarmos por reagir de forma mais inteligente é por causa de vacinas e de medicamentos, e se os tivermos mais rapidamente será por causa da globalização. A globalização do conhecimento, dos laboratórios, a troca de informação, até a competição. O ritmo de descoberta das vacinas é em geral de dez anos, mas é provável que desta vez seja mais rápido, graças à globalização. Se temos máscaras, como as que nos deram à entrada deste edifício, foi graças à globalização. A máscara é um pedaço de pano que podemos fazer em Lisboa ou em Paris, mas o elástico vem do cauchu africano e asiático. A globalização é o pharmakon grego. Pode contribuir para o mal, mas contribui muito para o remédio.
Esta explosão do número de crianças a estudar em casa vai lançálas depois no mundo verdadeiro que não é um mundo asséptico. E estarão desarmadas Para algumas pessoas a pandemia é como que uma “surpresa divina”. Por isso se diz que agora temos de “mudar tudo”. Como reage a essa injunção?
Acho isso repugnante. Desprezo quem se aproveita da morte, quem tira vantagem de um drama humano para fazer avançar a sua agenda, a sua ideologia, o seu programa. É de uma grande crueldade e de uma enorme violência. Falo no livro da “surpresa divina”, que foi a expressão dos maurrassianos [nacionalistas franceses, adeptos de Charles Maurras] aquando da derrota francesa [em 1940]. Há esta tradição de tirar partido de um desastre. E houve quem o dissesse abertamente. Houve gente da ecologia radical que disse abertamente: vamos “aproveitar” isto. Disseram essa palavra. Não vamos deixar passar a ocasião que este desastre nos oferece... A pandemia levou a que se citasse muito as teses de grandes filósofos e pensadores, do “vigiar e punir” de Foucault ao “estado de excepção” de Carl Schmitt. Usámos demasiado esses conceitos? Acho que isso se fez de menos. Em Portugal, o debate sobre o confinamento era tabu, segundo sei. Aliás, como em França. Quem pretendesse, em nome de Foucault ou do Papa, tanto faz, interrogar o estado de excepção, o risco para as liberdades, era tratado como um mau cidadão. Mas também havia outros problemas, como a virtualização das relações sociais, a ruptura da solidariedade, o triunfo do egoísmo social, o distanciamento social (essa expressão atroz). Um dos principais objectivos da democracia é reduzir o distanciamento social, o distanciamento entre as classes, o distanciamento entre os poderosos e os humildes, entre os governantes e os governados. Não é uma coisa boa, o distanciamento social. Mas havia qualquer coisa nova nessa maneira de a Dossier de Pesquisa
52-53
defender ou de a aceitar sem crítica. Eu tive um pressentimento disso quando ouvi o doutor Fauci, chefe da task force de Trump, dizer que não voltaríamos a apertar a mão uns aos outros.
E por isso escreveu na “Le Point” um artigo zangado contra “o fim do aperto de mão”, o aperto de mão que é símbolo de contrato, de paz... É um símbolo enorme. Um pequeno gesto com grande significado. É um gesto que até há pouco nos parecia quase automático, e que continua a ser para alguns de nós, porque representa tudo o que há de bom no pacto social. Num pacto social há uma parte maldita e há uma parte abençoada. A parte abençoada é a confiança, olharmo-nos no olhos, não nos pormos de joelhos perante o outro. E o aperto de mão. Esses pequenos sinais de alarme preocupam-me.
Quando Trump ou Bolsonaro andam sem máscara dão maus exemplos, porque a mensagem é ‘não há epidemia’. E isso é criminoso
Outras questões não serão tão novas. Há muito que havia pessoas preocupadas com a vigilância e com a privacidade, isso não começou agora. Tem razão.
Mas agora é o Estado... ... é o Estado aliado às grandes empresas tecnológicas. E às famílias. Há muita gente que se aproveita desse levantamento do segredo sobre as nossas vidas. Antes eram os GAFA [acrónimo para Google, Amazon, Facebook, Apple], agora são os GAFA mais o Estado, mais as pessoas que nos rodeiam... Se essas três forças se juntam, acabou-se a nossa liberdade, quer dizer, aquela porção de segredo do qual somos todos depositários. Somos pessoas livres na exacta proporção da quantidade de vida privada e da quantidade de segredo de que somos detentores. Um sujeito livre é um icebergue onde há gestos, responsabilidades, decisões visíveis; mas o que dá à liberdade o seu fundamento e a sua gravidade é essa parte de nós que escapa ao controlo seja de quem for. À Amazon, ao Estado, à nossa família. O clima de pânico fez até com que houvesse pessoas que denunciavam os vizinhos...
Naturalmente. Quando se aplaudiam os profissionais de saúde à varanda era uma bela imagem, e eu também aplaudi, mas não me posso esquecer que da mesma varanda espiavam-se os vizinhos, telefonava-se à polícia para dizer que eles tinham ido duas vezes ao supermercado ou que estavam num ajuntamento ilegal de cinco pessoas no prédio em frente. Eram as mesmas pessoas, a mesma varanda, com dez minutos de intervalo. Houve lampejos de solidariedade mas que não podem fazer esquecer a explosão de egoísmo, de fechamento, de ódio ao outro, de maldade. Covid-19
Antes / Durante / Depois (Agora)
O trabalho à distância é a solidão, o tédio, a mistura do privado com o público, é a espionagem electrónica dos empregados pelos patrões Falou de Foucault e do doutor Fauci e queria ouvi-lo sobre o “poder médico”. Ao mesmo tempo que alguns políticos nos diziam que iam decidir de acordo com os médicos e os cientistas, muitos médicos e cientistas diziam que não sabiam grande coisa. Tratámos os especialistas como se fossem deuses, mas eles são os primeiros a reconhecer que o vírus é novo, que tem mutações que ainda não conhecemos... Tratámo-los como oráculos. O oráculo de Delfos falava pela boca do dr. Fulano. E, tem razão, os melhores de entre eles, os mais probos, não querem desempenhar esse papel, porque sabem bem que não é o seu papel. Sabem bem que se assumirem esse papel praticam um abuso de autoridade. Sabem bem que a ciência avança no nevoeiro, que o nevoeiro é por vezes muito denso, que muitas vezes caímos, sabem isso tudo, os médicos. Sabem que não são os detentores da verdade. E que a verdade é um processo longo, cheio de dificuldades. Embora saibamos isso, quem mais podemos ouvir, perante uma doença, senão os cientistas, os especialistas, os médicos?
Se voltarmos ao princípio desta conversa, à ideia de que a epidemia é um fenómeno social tanto quanto médico, estão era preciso ouvir muito mais gente. Os pedagogos, os professores, os pais, os sindicatos, as associações de vítimas de violência doméstica, psiquiatras, empresários, muita gente. Porquê ouvir apenas os médicos? Porquê essa idolatria da palavra dos médicos quando havia tantas outras opiniões que era preciso ouvir? Sabemos hoje que muita gente morreu de solidão. Sabemos que a violência conjugal disparou. Sabemos que o número de pessoas que vão morrer de fome duplicou ou quadruplicou. Sabemos tudo isso.
E como vê o retorno das ideias de higienismo, de darwinismo social, a ideia de que os velhos podem ser deixados para trás...? Há quem diga isso dos velhos, mas não é só os velhos. Há quem diga que a pandemia foi uma boa ocasião para parar o curso da globalização, para carregar no interruptor. E não podemos ignorar que para os mais fracos isso seria terrível. Carregar no interruptor é deixar morrer milhões de pessoas. Os velhos, os fracos, os desmunidos, os sem-abrigo, as pessoas a quem disseram que fossem para casa e que não têm casa para onde ir. Há um regresso do malthusianismo... Acho bem que se viva com mais sobriedade, que se consuma menos, que se pense duas vezes antes de apanhar um avião. Sou um velho leitor de Ivan Illich e de Carlos Castaneda, tudo isso influenciou a minha juventude. Mas a sobriedade, a frugalidade e o decrescimento organizam-se, não se decretam. Isso é experimentalismo social. Malthus, Darwin, tudo isso veio à baila nesta pandemia. Um pouco por todo o lado discutiu-se a pandemia em termos de uma escolha entre a saúde e a economia.
Dossier de Pesquisa
54-55
Acho isso ignóbil. É pior ainda: é a economia ou a vida. A bolsa ou a vida. Voltámos a essa velha máxima dos salteadores de estrada. É ignóbil. Porque a economia também é a vida. É a vida contra a vida. Sabemos bem que se pararmos a economia durante demasiado tempo isso leva ao desemprego, que o desemprego leva à miséria, e que a miséria leva à morte. Portanto, não é a economia ou a vida. É a vida contra a vida. Aliás, a epidemia não acabou, o torpor e a paralisia da sociedade não acabou. Portugal, tal como a França, decidiu desconfinar, mas Lisboa está desconfinada? Não está, conheço esta cidade, gosto dela, e vejo bem a atmosfera pesada, o clima de tristeza e de medo. As pessoas mais lúcidas, que sabem mais sobre a epidemia, têm de falar, de dizer que a epidemia não terminou mas que está controlada, que o risco de uma segunda vaga é fraco, que há capacidade hospitalar para uma segunda vaga. É preciso acabar com o discurso do medo. Já falou da literatura, do “Decameron”. Durante a pandemia houve uns quantos escritores franceses que publicaram na imprensa diários do confinamento onde falavam sobre o silêncio e os pássaros e onde citavam Pascal e a ideia de que todo o mal vem de sairmos do nosso quarto. É a consolação da literatura ou um abuso da literatura?
Não é uma consolação, é uma provocação. Porque essa história do canto dos pássaros e da natureza que recupera os seus direitos e do céu azul, eu li isso com os olhos de um refugiado de Lesbos ou de um sem-abrigo de Dacar. E perante essas pessoas, esse discurso ‘bobo’ [bourgeois bohême, burguês-boémio] é obsceno. É má literatura. Acho que houve um grande desplante desses escritores que se reclamaram como herdeiros da grande literatura. Algumas pessoas comportavam-se como se o mundo lá fora não existisse, como se a guerra não existisse, como se o sofrimento do mundo não existisse? Absolutamente. O próprio “confinamento”... O que me impressionou foi o modo como as pessoas aceitaram esse termo, confinamento. Para os italianos, “confinamento” é uma palavra fascista. Os antifascistas eram “confinados” em ilhas ou noutros sítios. E no confinamento há a ideia de nos fecharmos numa bolha auto-suficiente, com poucas janelas para o exterior. O exterior pode estoirar que isso não tem importância.
No seu livro fala de Levinas e do pensamento judaico. Muitas pessoas têm notado, com alegria ou com tristeza, que as religiões não tiveram um discurso propriamente religioso face à pandemia, limitaram-se a seguir as indicações da medicina. Como vê essa espécie de afasia da religião? Foi uma das coisas que me surpreenderam. Quando li que o Papa Francisco mandou esvaziar as pias de água benta com medo que estivessem contaminadas pelo vírus, quando vi que os rabinos faziam o elogio do confinamento, pensei que havia alguma coisa errada no que toca à espiritualidade. Do ponto de vista médico, eu também respeitei a disciplina, aceitei-a com extrema dificuldade, Covid-19
Antes / Durante / Depois (Agora)
O telessexo, que julgávamos reservado aos romances de Michel Houellebecq... Se isso for o mundo de depois, eu prefiro o mundo de antes. Este livro ilustra bem as ligações entre a dimensão filosófica e a dimensão jornalística da sua obra. Jornalística porque para falar de um país, mesmo que seja um país distante, gosta de ir lá, de falar do que conhece. Filosófica porque defende que não somos nada quando estamos sozinhos, e que a solidão é o contrário da política, que implica estar com os outros. porque ia contra a minha maneira de ser, mas aceitei. Mas o que me surpreendeu foi a teorização à volta disso. Que nos sujeitemos provisoriamente ao confinamento, sabendo que é um momento em que é preciso alguma firmeza, é uma coisa; mas que nos tentem impingir teorias sobre a espiritualidade do confinamento e sobre Pascal, a isso ninguém os obrigava... A imagem do Papa sozinho numa Praça de São Pedro vazia pareceu-lhe uma boa imagem?
Não, pareceu-me uma imagem que significava um alinhamento da espiritualidade com o higienismo. Acho que não foi um bom exemplo. Contribuiu para o medo. Contribuiu para esse manto de medo que caiu sobre o mundo. É complicado, isso da exemplaridade. Porque funciona nos dois sentidos. Quando Trump ou Bolsonaro andam sem máscara dão maus exemplos, porque a mensagem é “não há epidemia”. E isso é criminoso, porque há uma epidemia. Portanto, não usar máscara dava um sinal negativo; mas termos o Sumo Pontífice sozinho na Praça de São Pedro foi um mau sinal no outro sentido, no sentido do pânico colectivo. Quando vier a próxima epidemia, porque haverá outras, espero que nos lembremos dos excessos, dos erros cometidos, das medidas brutais, da ausência de sabedoria, da demissão dos políticos, da falta de autoridade dos médicos. É preciso que não nos esqueçamos disto. O que é que o distanciamento faz de nós enquanto animais sociais? O teletrabalho, por exemplo. Falámos há pouco de “mudar tudo”, mas há coisas que podem mudar para pior se ficarmos mais distantes uns dos outros...
A democracia é o desfazer do distanciamento social. O trabalho tem aspectos negativos, mas também tem aspectos bons, é assim que nasce a fraternidade, o sentido do que é comum. O trabalho à distância é a solidão, o tédio, a mistura do privado com o público, a ideia de que não há esfera privada fora do imperativo produtivo, é o produtivismo, é a espionagem electrónica dos empregados pelos patrões. Eu acredito muito na escola, na sala de aula. É importante porque contribui para a igualdade, para que as crianças que não vivem num meio privilegiado escapem um pouco a esse infortúnio. A generalização do home schooling não vai no bom sentido. Não é preciso ser um grande freudiano ou lacaniano para saber que o meio mais patogénico que há é o meio familiar. A família é uma árvore da felicidade mas é também um ninho de neuroses. Os portugueses ou franceses de amanhã que forem educados em home schooling vão sofrer de uma epidemia de neuroses, da falta de hábitos sociais, de uma falta de imunidade ao mundo verdadeiramente preocupante. A escola tem o grande mérito de ser uma fábrica de defesas imunitárias face a vírus como a guerra de todos contra todos, a competição, a concorrência. Esta explosão do número de crianças a estudar em casa vai lançá-las depois no mundo verdadeiro que não é um mundo asséptico. E estarão desarmadas. Tudo isso, o teletrabalho, o teleensino... O telessexo?
Filosoficamente, o que eu penso é que é preciso tratar aqueles que estão distantes como próximos. É preciso recusar, na medida do possível, essa distinção entre o distante e o próximo. Jean-Marie Le Pen costumava perguntar “como é possível não me sentir mais próximo dos meus filhos do que dos meus sobrinhos, dos meus sobrinhos do que dos meus vizinhos, dos meus vizinhos do que dos estrangeiros”. Eu creio que é preciso obrigarmo-nos a atenuar o mais possível essa distância. É a mensagem das grandes tradições sapienciais, a grega, a judaica, a cristã: a fraternidade. Acredito nisso, e por isso sempre acompanhei a minha actividade filosófica de uma actividade de reportagem, um pouco à imagem do que fez Michel Foucault (ou até Sartre), que considerava a reportagem um exercício filosófico maior. Eu acredito nisso. Uma parte da minha obra, na qual trabalho com o mesmo empenho com que escrevo os livros de filosofia, são as reportagens que fiz. Tenho orgulho nelas, não são um aspecto circunstancial ou marginal. Quanto à solidão, a solidão pode ser uma conquista do sujeito, mas não pode ser uma coisa que a política programa. Por isso diz que Pascal é em geral mal interpretado quando fala de ficarmos no nosso quarto...
É isso. Porque não é ao Estado que compete organizar a solidão. Se eu quiser a solidão, escolho os momentos em que quero estar sozinho, isso não compete ao Estado. Caso contrário, vivemos numa ditadura. As ditaduras funcionam todas num falso colectivo e numa verdadeira solidão. Cada pessoa atomizada, isolada à força, e a imagem de um colectivo que não existe. A democracia deve organizar o colectivo e deixar aos sujeitos a tarefa de conquistar a sua solidão. Vai voltar às reportagens?
Nunca cheguei a parar. Até ao último minuto, até ao dia em que todos as fronteiras francesas foram fechadas, continuei. A última reportagem que fiz foi no Bangladesh. E a primeira que fiz desde que soube que um aeroporto vizinho, o de Bruxelas, reabriu, foi em Lesbos, uma reportagem num campo de refugiados. Portanto, nunca parei. Pedro Mexia escreve de acordo com a antiga ortografia
Dossier de Pesquisa
56-57
Covid-19
Antes / Durante / Depois (Agora)
Ballad of Today. MAAT
Ballad of Today Bare Life
Dossier de Pesquisa
58-59
1. Bairro de S. Victor. Museu Coleção Berardo
Covid-19
Antes / Durante / Depois (Agora)
2. Music for Ballad of Today. Gabriel Ferrandini e Maria Reis
Dossier de Pesquisa
60-61
Covid-19
Antes / Durante / Depois (Agora)
Dossier de Pesquisa
62-63
Covid-19
Antes / Durante / Depois (Agora)
Dossier de Pesquisa 64-65
Covid-19
Antes / Durante / Depois (Agora)
Dossier de Pesquisa
66-67
Covid-19
Antes / Durante / Depois (Agora)
Dossier de Pesquisa 68-69
Covid-19
Antes / Durante / Depois (Agora)
Dossier de Pesquisa
70-71
Covid-19
Antes / Durante / Depois (Agora)
(Sem Título). Pantónio
Lugar / Não-Lugar A Imagem como Ausência
Dossier de Pesquisa
72-73
BLOG
Contexto Fiz o percurso indicado no briefing, começando por ler o capítulo do livro “Ler Imagens”, sobre o qual redigi um breve comentário, como tenho feito sempre, e a partir do qual fui explorar outras referências, analisando com mais pormenor o segundo episódio da série “Modos de Ver”, e visitando as exposições patentes no MAAT, com destaque para a “Ballad of Today”, do André Cepeda, tal como foi solicitado, mas também, e nomeadamente, a “Festa. Fúria. Femina.“, onde encontrei algumas folhas de sala com questões e ideias pertinentes.
Read more
SHORTLISTED WORDS
Covid-19
Antes / Durante / Depois (Agora)
1. Word of The Year 2020. Collins
2. Lidar com a repetição. José Tolentino Mendonça
Dossier de Pesquisa
74-75
Metáfora A partir da pesquisa do campo proposto e também muito na direção da metáfora da ausência, descobri a obra de Ana Vieira, na exposição “Projecto MAP”, patente no Museu Coleção Berardo, onde André Cepeda também expõe. Encontrei também uma análise da sua obra nas plataformas digitais do museu. No passado fim-de-semana, também tive a oportunidade de ouvir o Coro Gulbenkian com uns colegas, de onde destaco a peça de Eurico Carrapatoso, “Sombras”, que transponho também para o tema deste trabalho.
3. A Imagem como Ausência. Ler Imagens. Alberto Manguel
Manguel debruça-se sobre o abstracionismo, tendo por base a tela “Dois Pianos”, de 1980, da artista norteamericana Joan Mitchell. Anda à volta da questão recorrente de encontrar significado na ausência de algo real num quadro ou mesmo quando não estamos perante algo reconhecível. Será que todas as imagens têm de ser lidas? Será que a tela vai para além das coloridas pinceladas? O autor depara-se com obras que procuram “responder emocionalmente ao mundo, e não o copiar ou melhorar”, sem qualquer mensagem ou sentido, pelo menos da responsabilidade do artista. Podemos ler um quadro da mesma forma que lemos um livro? Existe algum vocabulário que possamos de aprender para nos ajudar a deslindar os seus significados? Quererá ele ser descodificado, decifrado e compreendido? Em Ler Imagens, livro profusamente ilustrado, Alberto Manguel oferece uma instigante meditação sobre as questões que nos colocamos quando estamos diante de uma obra de arte.
Covid-19
Antes / Durante / Depois (Agora)
Alberto Manguel (1948, Buenos Aires) cresceu em Telavive e na Argentina. Aos 16 anos, trabalhava na livraria Pygmalion, em Buenos Aires, quando Jorge Luis Borges lhe pediu que lesse para ele em sua casa. Foi leitor de Borges entre 1964 e 1968. Em 1968, mudou-se para a Europa. Viveu em Espanha, França, Itália e Inglaterra, ganhando a vida como leitor e tradutor para várias editoras. Editou cerca de uma dezena de antologias de contos sobre temas tão díspares como o fantástico ou a literatura erótica. É ensaísta, romancista premiado e autor de vários best-sellers internacionais, como Dicionário de Lugares Imaginários, Uma História da Curiosidade, A Biblioteca à Noite e Embalando a Minha Biblioteca (Tintada-china, 2013, 2015, 2016 e 2018, respetivamente). É atualmente cidadão canadiano e foi diretor da Biblioteca Nacional da Argentina entre 2016 e 2018. Foi galardoado com o Prémio Formentor das Letras em 2017.
4. Dois Pianos. Joan Mitchell
5. Pollock. Ed Harris
Dossier de Pesquisa
76-77
6. Modos de Ver. John Berger
No segundo episódio, Berger discute o conceito de nu feminino, em oposição a Keneth Clark. Procura distinguir os conceitos de “naked” ou despido e de “nude” ou nu. Para ele, estar despido é simplesmente estar sem roupa, ser nós mesmos, sem sermos vistos. Por outro lado, estar nu implica ser visto pelo outro, ser objetificado e existir apenas para prazer do observador. Apoia esta teoria numa série de pinturas de exemplo e procura discutir a forma como as mulheres se veem, em desigualdade com os homens, claramente influenciadas pela sociedade e pela publicidade. Ways of Seeing é uma série de televisão de 1972 de filmes de 30 minutos, criada principalmente pelo escritor John Berger e pelo produtor Mike Dibb. Foi transmitido pela BBC Two em janeiro de 1972 e adaptado para um livro de mesmo nome.
Covid-19
Antes / Durante / Depois (Agora)
Berger e sua equipa recorrem à tradição da pintura europeia para nos fazer questionar sobre a maneira como vemos e lemos as imagens. John Berger (1926-2017), crítico de arte, pintor e escritor inglês, ícone da contracultura e um dos pensadores mais influentes dos nossos dias, avançou contra a corrente num tempo de especialistas e especializações. Em quadros, ensaios, poemas ou textos para cinema ou televisão, foi plural também nas suas inspirações, tomando interesse nas franjas da sociedade (presos, camponeses, migrantes) como exemplos de resistência à ignomínia de governos e mercados. Ganhou o Prémio Booker em 1972 com o romance feminista G., e o seu ensaio mais famoso, Modos de Ver, é uma referência na crítica de arte ainda hoje a ser redescoberta.
8. À Imagem. Imagens Imaginadas. Pedro Mexia
7. Festa. Fúria. Femina. MAAT
Pedro Mexia reflete sobre a efemeridade da fotografia. Recorre às fotografias de família como metáfora para este conceito. Descreve a importância da fotografia para a construção da memória coletiva, através das histórias que estas contam e das pessoas e objetos que retratam. Depois dos filmes e dos livros, as artes plásticas: Novo livro de crónicas «temáticas» de Pedro Mexia, desta vez dedicado à pintura e à fotografia. Para completar uma espécie de trilogia das artes, inaugurada pelos livros Cinemateca e Biblioteca, chega agora Imagens Imaginadas. Do roubo do quadro O Grito à semiótica da atriz Cláudia Vieira; de pintores italianos do século XV à atualidade voyeurista de Julião Sarmento, entre muitas outras estéticas, Pedro Mexia partilha a sua perspetiva sobre artes plásticas ao mesmo tempo que acompanha o leitor num percurso pelos nomes maiores da pintura e da fotografia.
Pedro Mexia nasceu em Lisboa, em 1972. Licenciou-se em Direito pela Universidade Católica. Escreveu crítica literária e crónicas para os jornais Diário de Notícias e Público, sendo atualmente colaborador do semanário Expresso. É um dos membros do Governo Sombra (TSF / TVI24). Foi subdiretor e diretor interino da Cinemateca Portuguesa. Publicou seis livros de poesia e as coletâneas de crónicas Primeira Pessoa (2006), Nada de Melancolia (2008), As Vidas dos Outros (2010), O Mundo dos Vivos (2012), Cinemateca (2013), Biblioteca (2015) e Lá Fora (2018, Grande Prémio de Crónica APE). Organizou um volume de ensaios de Agustina Bessa-Luís, Contemplação Carinhosa da Angústia; a antologia Verbo: Deus como Interrogação na Poesia Portuguesa [com José Tolentino Mendonça]; O Homem Fatal, crónicas escolhidas de Nelson Rodrigues; e Nada Tem já Encanto, antologia poética de Rui Knopfli. Coordena a coleção de poesia da Tintada-China. Em 2015 e 2016 integrou o júri do Prémio Camões.
Dossier de Pesquisa
78-79
9. Inscrição. Valter Vinagre
Covid-19
Antes / Durante / Depois (Agora)
Dossier de Pesquisa
80-81
Covid-19
Antes / Durante / Depois (Agora)
Dossier de Pesquisa
82-83
Covid-19
Antes / Durante / Depois (Agora)
Dossier de Pesquisa
84-85
Campo No Museu Berardo assisti, igualmente, ao “Anemic Cinema”, de Duchamp, estou a ver o filme “The Naked Island”, de Shindô, e estou a aprofundar a minha pesquisa do texto “Não Lugares”, de Marc Augé, uma vez que após ter lido integralmente o texto de Teresa Sá, consegui compreender os conceitos em causa, mas ainda não consegui fazer claramente a distinção entre os três diferentes tipos de excesso identificados e que nos são pedidos para definição dos critérios. Se tiverem outras referências ou explicações mais objetivas destes conceitos, com valor, agradecia que me sugerissem.
10. Anemic Cinema. Marcel Duchamp
11. The Naked Island. Kaneto Shindô
12. L’Ile Nue. Hikaru Shindô
Covid-19
Antes / Durante / Depois (Agora)
13. Lugares e NãoLugares em Marc Augé. Teresa Sá
Dossier de Pesquisa
86-87
Covid-19
Antes / Durante / Depois (Agora)
Dossier de Pesquisa
88-89
Covid-19
Antes / Durante / Depois (Agora)
Dossier de Pesquisa
90-91
Covid-19
Antes / Durante / Depois (Agora)
Dossier de Pesquisa
92-93
Covid-19
Antes / Durante / Depois (Agora)
Dossier de Pesquisa
94-95
Covid-19
Antes / Durante / Depois (Agora)
14. Estrada. Rui Massena
15. Revista Atlântida 2020. Instituto Açoriano de Cultura
uDO CIçãO íIC
uDO CIçãO LIÁI
Inscrição Valter Vinagre
Poesia canária: apontamentos para um agora Javier Hernández Fernández (coord.)
Eduardo Teixeira Coelho um criador de dimensão mundial Carlos Pessoa
Sombras y Luna José Lis Garca Martn
Uma casa na praia 2018/19 Ls Herberto
Abandonar una isla Martn López-Vega
Coleção de Pessoas uma forma de vida aqel ndré
A alma histórica de Antero de Quental reencontrada na ilha Terceira e o autêntico Vasco Vasques Vasqueanes na Maria lmeida Martins
Lugares e Não-lugares Joanna Latka
Antero, a poesia toda ntónio Valdemar
A doença da dança louca de 1518 e a urgência dos corpos com porquê Cladia Galhós
2020 Centenário da Clepsydra de Camillo Pessanha Pedro Barreiros
S/ Título Palo omo Brás
Uma estrela nas mãos de Dias de Melo Nno Costa antos Moby Dick, ou A Baleia, de Herman Melville alvato eles de Menezes Memória (romance) dno de Jess Sentado numa Nuvem dardo Bettencort Pinto A Aurora em Copacabana Fernando Cabral Martins Mal e Porcamente egina Gimares Délivrance (pholdulogie livresque) agenail
Dossier de Pesquisa
96-97
16. Other Spaces. Michel Foucault
De espaços outros1 MICHEL FOUCAULT
A
obsessão do século XIX foi, sabe-se, a história: temas do desenvolvimento e da estagnação, temas da crise e do ciclo, da acumulação do passado, do grande excesso de mortos, do resfriamento ameaçador do mundo. Foi no segundo princípio da termodinâmica que o século XIX encontrou a essência de seus recursos mitológicos. A época atual seria talvez sobretudo a época do espaço. Estamos na época da simultaneidade, estamos na época da justaposição, na época do próximo e do distante, do lado a lado, do disperso. Estamos em um momento em que o mundo é experimentado, creio, menos como uma grande vida que se desenvolveria através do tempo, do que como uma rede que liga pontos e entrecruza seu emaranhado. Talvez seja possível afirmar que alguns dos conflitos ideológicos que animam as polêmicas de hoje em dia se desenrolam entre os devotos descendentes do tempo e os aferrados habitantes do espaço. O estruturalismo, ou ao menos aquilo que é agrupado sob esse nome ligeiramente genérico, é o esforço para estabelecer, entre elementos que podem ter sido distribuídos através do tempo, um conjunto de relações que os faz aparecer como justapostos, opostos, implicados um pelo outro; em resumo, que os faz aparecer como uma espécie de configuração. E, na verdade, não se trata, desse modo, de negar o tempo, mas uma determinada maneira de tratar aquilo que é chamado de tempo e também de história. É preciso, entretanto, notar que o espaço que aparece hoje no horizonte de nossas inquietações, de nossa teoria, de nossos sistemas não é uma inovação; o próprio espaço tem, na experiência ocidental, uma história, e não é possível ignorar esse entrecruzamento fatal do tempo com o espaço. Poder-se-ia dizer, para reconstituir bem grosseiramente essa história do espaço, que, na Idade Média, ele era um conjunto hierarquizado de lugares: lugares sagrados e lugares profanos; lugares protegidos e lugares, ao contrário, abertos e sem defesa; lugares urbanos e lugares rurais (isso para a vida real dos homens); para a teoria cosmológica, havia os lugares supracelestes opostos ao lugar celeste, o qual, por sua vez, opunha-se ao lugar terrestre; havia os lugares onde as coisas se encontravam alocadas,2 por terem sido deslocadas violentamente, e ainda os lugares onde, ao contrário, as coisas encontravam sua alocação3 e sua base naturais. Toda essa hierarquia, essa oposição, esse entrecruzamento de lugares constituíam o que se poderia denominar bem grosseiramente de espaço medieval: espaço de localização.4 Esse espaço de localização se abriu com Galileu, pois o verdadeiro escândalo de sua obra não é tanto o de ter descoberto, ou melhor, redescoberto que a Terra girava em torno do sol, mas de ter constituído um espaço infinito, e infinitamente aberto; de tal modo que o lugar da Idade Média aí se encontrava, de GRANDE
ESTUDOS AVANÇADOS
Covid-19
Antes / Durante / Depois (Agora)
27 (79), 2013
113
certa maneira, dissolvido; o lugar de uma coisa não era mais do que um ponto no interior de seu movimento, assim como o repouso de uma coisa não era senão seu movimento indefinidamente desacelerado. Em outras palavras, a partir de Galileu, a partir do século XVII, a extensão substitui a localização. Atualmente, a alocação substitui a extensão, que, por sua vez, substituiu a localização. A alocação é definida pelas relações de vizinhança entre pontos ou elementos; formalmente, elas podem ser descritas como séries, árvores, grades. Por outro lado, sabe-se da importância dos problemas de alocação na técnica contemporânea: armazenamento da informação ou dos resultados parciais de um cálculo na memória de uma máquina; circulação de elementos discretos, de saída aleatória (como tão simplesmente os automóveis ou, por fim, os sons numa linha telefônica); identificação de elementos, marcados ou codificados, no interior de um conjunto que é seja distribuído ao acaso, seja classificado segundo uma classificação unívoca, seja classificado segundo uma classificação plurívoca etc. De maneira ainda mais concreta, o problema do local ou da alocação se propõe para os homens em termos demográficos. E este último problema da alocação humana não é simplesmente a questão de saber se haverá espaço suficiente para o homem no mundo – problema que é, afinal, bem importante –; mas é também o problema de saber quais relações de vizinhança, qual tipo de armazenamento, de circulação, de identificação, de classificação dos elementos humanos devem ser adotados preferencialmente, nesta ou naquela situação, para atingir este ou aquele fim. Estamos em uma época em que o espaço se apresenta a nós sob a forma de relações entre alocações. Em todo caso, creio que a inquietude de hoje concerne fundamentalmente ao espaço, sem dúvida muito mais do que ao tempo; o tempo aparece provavelmente apenas como uma das operações de distribuição possíveis entre os elementos que se distribuem no espaço. Ora, apesar de todas as técnicas que o cercam, apesar de toda a rede de saber que permite determiná-lo ou formalizá-lo, o espaço contemporâneo talvez não esteja ainda totalmente dessacralizado – à diferença, sem dúvida, do tempo, o qual foi dessacralizado no século XIX. De fato, ocorreu uma certa dessacralização teórica do espaço (aquela sinalizada pela obra de Galileu), mas talvez não tenhamos ainda alcançado uma dessacralização prática do espaço. E, talvez, nossa vida ainda seja comandada por um certo número de oposições nas quais não se pode tocar, e que a instituição e a prática até agora não ousaram atacar: oposições que admitimos como inteiramente dadas – por exemplo, entre o espaço privado e o espaço público, entre o espaço da família e o espaço social, entre o espaço cultural e o espaço útil, entre o espaço de lazeres e o espaço de trabalho; todas elas são animadas ainda por uma surda sacralização. A obra – imensa – de Bachelard,5 as descrições dos fenomenologistas nos ensinaram que não vivemos em um espaço homogêneo e vazio; mas, ao contrário, em um espaço que é todo carregado de qualidades, um espaço que é talvez
114
ESTUDOS AVANÇADOS
27 (79), 2013
Dossier de Pesquisa 98-99
também assombrado por fantasmas. O espaço de nossa percepção primeira, o de nossos devaneios, o de nossas paixões, detém em si qualidades que são como intrínsecas; é um espaço leve, etéreo, transparente ou, então, é um espaço obscuro, caótico, saturado: é um espaço do alto, um espaço dos cimos ou é, ao contrário, um espaço de baixo, um espaço da lama; é um espaço que pode ser corrente como a água viva; é um espaço que pode ser fixado, imobilizado como a pedra ou como o cristal. Essas análises, no entanto, embora fundamentais para a reflexão contemporânea, concernem, sobretudo, ao espaço do dentro. É sobre o espaço do fora que eu gostaria de falar agora. O espaço em que vivemos, pelo qual somos lançados para fora de nós mesmos, no qual se desenrola precisamente a erosão de nossa vida, de nosso tempo e de nossa história, esse espaço que nos corrói e nos erode é também, em si mesmo, um espaço heterogêneo. Em outras palavras, nós não vivemos em uma espécie de vazio, no interior do qual seria possível situar indivíduos e coisas. Nós não vivemos no interior de um vazio que se revestiria de diferentes espelhamentos; nós vivemos no interior de um conjunto de relações que definem alocações irredutíveis umas às outras, e absolutamente não passíveis de sobreposição. Evidentemente, poder-se-ia empreender a descrição dessas diferentes alocações, procurando o conjunto de relações pelo qual se pode defini-las. Por exemplo: descrever o conjunto das relações que definem as alocações de passagem, as ruas, os trens (um trem é um extraordinário feixe de relações, pois é algo através do qual se passa, é também algo pelo qual se pode passar de um ponto a outro, e, ainda, algo que igualmente passa). Poder-se-ia descrever, pelo feixe das relações que permitem defini-las, essas alocações de parada transitória que são os cafés, os cinemas, as praias. Poder-se-ia igualmente definir, por sua rede de relações, a alocação de descanso, aberta ou semiaberta, que constituem a casa, o quarto, a cama etc. Mas o que me interessa, dentre todas essas alocações, são algumas que têm a curiosa propriedade de estar em relação com todas as demais alocações; mas, de um modo tal, que elas suspendem, neutralizam, ou invertem o conjunto das relações que são por elas designadas, refletidas ou reflexionadas. Esses espaços que, de alguma forma, estão ligados a todos os outros, e que, no entanto, contradizem todas as outras alocações, são de dois grandes tipos. Primeiramente, há as utopias. Essas são as alocações sem lugar real. São as alocações que mantêm com o espaço real da sociedade uma relação geral de analogia direta ou invertida. É a própria sociedade aperfeiçoada, ou é o inverso da sociedade; mas, de toda forma, essas utopias são espaços fundamentalmente, essencialmente, irreais. Há igualmente – e isso provavelmente em toda cultura, em toda civilização – lugares reais, lugares efetivos, lugares que são desenhados na própria instituição da sociedade e que são espécies de contra-alocações, espécies de utopias efetivamente realizadas, nas quais as alocações reais, todas as outras alocações
ESTUDOS AVANÇADOS
Covid-19
Antes / Durante / Depois (Agora)
27 (79), 2013
115
reais que podem ser encontradas no interior da cultura, são simultaneamente representadas, contestadas e invertidas; espécies de lugares que estão fora de todos os lugares, embora sejam efetivamente localizáveis. Por serem absolutamente outros quanto a todas as alocações que eles refletem e sobre as quais falam, denominarei tais lugares, por oposição às utopias, de heterotopias. E creio que entre as utopias e essas alocações absolutamente outras, essas heterotopias, haveria, sem dúvida, uma espécie de experiência mista, conjugada, que seria o espelho. O espelho, afinal de contas, é uma utopia, pois é um lugar sem lugar. No espelho, eu me vejo onde não estou, em um espaço irreal que se abre virtualmente atrás da superfície; estou ali onde não estou; uma espécie de sombra que me confere minha própria visibilidade, que me permite olhar-me ali onde sou ausente: utopia do espelho. Mas é igualmente uma heterotopia, na medida em que o espelho existe realmente e tem, no local que eu ocupo, uma espécie de efeito de retorno; é a partir do espelho que me descubro ausente do local onde estou, já que me vejo ali. A partir desse olhar, que de certa forma se dirige a mim, do fundo desse espaço virtual do outro lado do vidro, eu retorno a mim e recomeço a dirigir meus olhos a mim mesmo e a me reconstituir ali onde estou. O espelho funciona como uma heterotopia, no sentido de que ele torna esse local, que eu ocupo no momento em que me olho no vidro, ao mesmo tempo absolutamente real, em ligação com todo o espaço que o cerca, e absolutamente irreal, já que tal local precisa, para ser percebido, passar por esse ponto virtual que está ali. Quanto às heterotopias propriamente ditas, como se poderia descrevê-las, qual sentido elas têm? Poder-se-ia supor não digo uma ciência, pois é um termo demasiado desgastado, atualmente, mas uma espécie de descrição sistemática que teria por objeto, em uma sociedade determinada, o estudo, a análise, a descrição, a “leitura” – como se gosta de dizer hoje – desses espaços diferentes, esses outros lugares, uma espécie de contestação simultaneamente mítica e real do espaço onde vivemos: tal descrição poderia ser chamada de heterotopologia. O primeiro princípio é que, provavelmente, não existe uma só cultura no mundo que não constitua heterotopias. Eis aí uma constante de todo grupo humano. Contudo, as heterotopias assumem evidentemente formas muito variadas, e talvez não se encontre uma única forma de heterotopia que seja absolutamente universal. Entretanto, elas podem ser classificadas em dois grandes tipos. Nas sociedades ditas “primitivas”, existe uma determinada forma de heterotopia que eu chamaria de heterotopia de crise; ou seja, que há lugares privilegiados, ou sagrados, ou proibidos, reservados aos indivíduos que, em relação à sociedade e ao meio humano no interior do qual vivem, se encontram em estado de crise: os adolescentes, as mulheres na época dos ciclos menstruais, as parturientes, os idosos etc. Em nossa sociedade, essas heterotopias de crise não cessam de desaparecer, embora se encontrem ainda alguns resíduos delas. Por exemplo, o colégio em sua forma do século XIX ou o serviço militar para os rapazes desempenharam
116
ESTUDOS AVANÇADOS
27 (79), 2013
Dossier de Pesquisa 100-101
certamente tal papel, com as primeiras manifestações da sexualidade viril devendo ter lugar precisamente “alhures”, e não na família. Para as moças existia, até a metade do século XX, uma tradição chamada de “viagem de núpcias”, que era um tema ancestral. A defloração da moça tinha de ocorrer “nenhures”, e, nesse momento, o trem, o hotel da viagem de núpcias eram exatamente esse lugar de nenhuma parte, essa heterotopia sem referências geográficas. Mas hoje essas heterotopias de crise vêm desaparecendo, e sendo substituídas, creio, por heterotopias que poderíamos chamar de desvio: aquele em que se alocam os indivíduos cujo comportamento é desviante em relação à média, ou à norma exigida. São as casas de repouso, as clínicas psiquiátricas; e são, certamente também, as prisões. E seria preciso aí incluir, sem dúvida, os asilos para aposentados, que, de certo modo, estão no limite entre a heterotopia de crise e a heterotopia de desvio; pois, afinal, a velhice é uma crise, mas igualmente um desvio, já que em nossa sociedade, onde o lazer é a regra, a ociosidade constitui uma espécie de desvio. O segundo princípio dessa descrição das heterotopias é que, ao longo de sua história, uma sociedade pode fazer funcionar de um modo muito diferente uma heterotopia que existe e que não deixou de existir. Com efeito, cada heterotopia tem um funcionamento preciso e determinado no interior da sociedade, e a mesma heterotopia pode, segundo a sincronia da cultura em que se encontra, ter um funcionamento ou outro. Tomarei como exemplo a curiosa heterotopia do cemitério. O cemitério é certamente um lugar outro, comparativamente aos espaços culturais comuns; é um espaço que está, no entanto, ligado ao conjunto de todas as alocações da cidade ou da sociedade ou do vilarejo, já que cada indivíduo, cada família se vê tendo familiares no cemitério. Na cultura ocidental, o cemitério praticamente sempre existiu. Mas ele sofreu transformações importantes. Até o final do século XVIII, o cemitério era alocado no coração mesmo da cidade, ao lado da igreja. Ali existia toda uma hierarquia de sepulturas possíveis. Havia a vala comum, na qual os cadáveres perdiam até o último traço de individualidade, havia algumas tumbas individuais, e ainda havia aquelas no interior da igreja. Essas tumbas eram de dois tipos: ou simplesmente lápides com uma inscrição, ou mausoléus com estátuas. Esse cemitério, que se alojava no espaço sagrado da igreja, adquiriu nas civilizações modernas um aspecto totalmente diverso; e, curiosamente, foi na época em que a civilização se tornou, como se diz muito grosseiramente, “ateia” que a cultura ocidental inaugurou o que se denomina de culto dos mortos. No fundo, era bem natural que, na época em que se acreditava efetivamente na ressurreição dos corpos e na imortalidade da alma, não se conferisse uma importância capital aos restos mortais. Ao contrário, a partir do momento em que não mais se tem tanta certeza de se possuir uma alma, de que o corpo ressuscitará, seja talvez necessário dar muito mais atenção a esses restos mortais, que são, afinal, o único traço de nossa existência no mundo e nas palavras.
ESTUDOS AVANÇADOS
Covid-19
Antes / Durante / Depois (Agora)
27 (79), 2013
117
Em todo caso, é a partir do século XIX que cada indivíduo teve direito à sua caixinha para sua pequena decomposição pessoal; mas, de outro lado, é somente a partir do século XIX que se passou a colocar os cemitérios no limite exterior das cidades. Correlativamente a essa individualização da morte e à apropriação burguesa do cemitério, nasceu a obsessão da morte como “doença”. São os mortos, supõe-se, que trazem as doenças aos vivos, e é a presença e a proximidade dos mortos bem ao lado das casas, bem ao lado da igreja, quase no meio da rua, é essa proximidade que propaga a própria morte. Esse grande tema da doença difundida pelo contágio dos cemitérios persistiu no final do século XVIII; e é somente no decorrer do século XIX que os cemitérios começam a ser deslocados para os arrabaldes. Os cemitérios não mais constituem, assim, o vento sagrado e imortal da cidade, mas a “outra cidade”, onde cada família possui sua morada escura. Terceiro princípio: a heterotopia tem o poder de justapor em um único lugar real vários espaços, várias alocações que são em si mesmas incompatíveis. É assim que o teatro faz suceder, sobre o retângulo do palco, toda uma série de lugares que são estranhos uns aos outros; e é assim que o cinema é uma sala retangular bem curiosa, no fundo da qual, sobre uma tela de duas dimensões, se vê projetar-se um espaço de três dimensões; mas, talvez, o exemplo mais antigo dessas heterotopias na forma de alocações contraditórias seja o jardim. Não se deve esquecer de que o jardim, espantosa criação agora milenar, tinha, no Oriente, significações muito profundas e como que superpostas. O tradicional jardim dos persas era um espaço sagrado que, dentro de seu retângulo, devia reunir quatro partes representando os quatro cantos do mundo, tendo no meio um espaço mais sagrado ainda que os demais, que era como o centro, o umbigo do mundo (onde ficavam a fonte e o jato d’água); e toda a vegetação do jardim devia distribuir-se nesse espaço, dentro dessa espécie de microcosmo. Já os tapetes, eles eram, originalmente, reproduções de jardins. O jardim é um tapete em que o mundo inteiro vem realizar sua perfeição simbólica; e o tapete é uma espécie de jardim móvel através do espaço. O jardim, essa é a menor parcela do mundo, e, então, essa é a totalidade do mundo. O jardim é, desde o início da Antiguidade, uma espécie de heterotopia feliz e universalizante (daí os nossos jardins zoológicos). Quarto princípio: as heterotopias estão associadas, muito frequentemente, a recortes do tempo; isto é, elas se abrem para o que se poderia chamar, por pura simetria, de heterocronias. A heterotopia se põe a funcionar plenamente quando os homens se encontram em uma espécie de ruptura absoluta com o seu tempo tradicional. Vê-se, assim, que o cemitério é mesmo um lugar altamente heterotópico, pois ele tem início com essa estranha heterocronia que é, para um indivíduo, a perda da vida, e essa quase eternidade em que ele não cessa de se dissolver e de desaparecer. De modo geral, em uma sociedade como a nossa, heterotopia e heterocronia se organizam e se arranjam de um modo relativamente complexo. Há,
118
ESTUDOS AVANÇADOS
27 (79), 2013
Dossier de Pesquisa 102-103
primeiramente, as heterotopias do tempo que se acumula indefinidamente: por exemplo, os museus, as bibliotecas; museus e bibliotecas são heterotopias nas quais o tempo não cessa de se amontoar e de se sobrepor a si mesmo, embora no século XVII, e até ainda no seu final, os museus e as bibliotecas fossem a expressão de uma escolha individual. Em contrapartida, a ideia de tudo acumular, a ideia de constituir uma espécie de arquivo geral, a vontade de encerrar em um lugar todos os tempos, todas as épocas, todas as formas, todos os gostos; a ideia de constituir um lugar de todos os tempos, que seja ele mesmo fora do tempo, e inacessível a sua corrosão; o projeto de organizar, assim, uma espécie de acumulação perpétua e indefinida do tempo em um lugar que não se moveria: enfim, tudo isso pertence a nossa modernidade. O museu e a biblioteca são heterotopias próprias da cultura ocidental do século XIX. Diante dessas heterotopias que estão associadas à acumulação do tempo, há heterotopias que estão ligadas, ao contrário, ao tempo no que ele tem de mais fútil, de mais passageiro, de mais precário, e isso no modo de festa. São heterotopias não mais eternitárias,6 mas absolutamente crônicas. Assim são as feiras, essas maravilhosas alocações vazias nos limites das cidades, que se povoam, uma ou duas vezes por ano, de barracas, de estandes, de objetos heteróclitos, de lutadores, de mulheres-serpente, de videntes. Bem recentemente também, inventou-se uma nova heterotopia crônica, que são as estâncias de férias; essas aldeias polinésias que oferecem três semaninhas de uma nudez primitiva e eternal aos habitantes das cidades. E vocês observam, aliás, que, pelas duas formas de heterotopias, se juntam aquela da festa e a da eternidade do tempo que se acumula; as cabanas de Djerba são, em certo sentido, semelhantes a bibliotecas e museus, pois, ao se encontrar a vida polinésia, abole-se o tempo, mas é, da mesma maneira, o tempo que se reencontra; é toda a história da humanidade que remonta à sua origem, como uma espécie de grande saber imediato. Quinto princípio: as heterotopias pressupõem sempre um sistema de abertura e de fechamento que simultaneamente as isola e as torna penetráveis. Em geral, não se acede a uma alocação heterotópica como a um local onde é possível entrar e sair sem restrições.7 Ou bem se é para lá coagido – como no caso da caserna, da prisão –, ou bem é preciso submeter-se a ritos e purificações. Só se pode entrar nela com uma certa permissão e desde que se tenha feito uma determinada quantidade de gestos. Há mesmo, aliás, heterotopias que são inteiramente consagradas a tais atividades de purificação, purificação semirreligiosa, semi-higiênica, como nas termas dos muçulmanos; ou, então, purificação de aparência puramente higiênica, como nas saunas escandinavas. Há outras, ao contrário, que parecem puras e simples aberturas, mas que, geralmente, escondem curiosas exclusões. Todo o mundo pode entrar nessas alocações heterotópicas, mas, a bem da verdade, isso é apenas uma ilusão: crê-se adentrar e se está, pelo próprio fato de entrar, excluído. Penso, por exemplo, nesses famosos quartos que existiam nas grandes fazendas do Brasil e, em geral,
ESTUDOS AVANÇADOS
Covid-19
Antes / Durante / Depois (Agora)
27 (79), 2013
119
da América do Sul. A porta para neles entrar não dava para o cômodo central onde vivia a família, e todo indivíduo que passava, todo viajante tinha o direito de empurrar essa porta, entrar no quarto e então ali dormir por uma noite. Ora, esses quartos eram tais que o indivíduo que por aí passava não tinha jamais acesso ao seio mesmo da família; ele era simplesmente o hóspede de passagem, ele não era verdadeiramente o convidado. Esse tipo de heterotopia, agora praticamente desaparecido em nossas civilizações, talvez possa ser reencontrado nos famosos quartos dos motéis americanos, onde se entra com o carro e a amante, e onde a sexualidade ilegal está absolutamente garantida e escondida, mantida a distância, sem ser, entretanto, consentida. Enfim, o último traço das heterotopias é que elas têm, em relação ao espaço restante, uma função. Esta se desenvolve entre dois pólos extremos. Ou bem elas têm o papel de criar um espaço de ilusão, que denuncia como mais ilusório ainda todo o espaço real, todas as alocações no interior das quais a vida humana é compartimentada (talvez seja esse o papel que, por muito tempo, tiveram os famosos bordéis, dos quais estamos agora privados). Ou então, ao contrário, o papel das heterotopias é criar um outro espaço, um outro espaço real, tão perfeito, tão meticuloso, tão bem arranjado quanto o nosso é desordenado, mal disposto e bagunçado. Isso seria a heterotopia não de ilusão, mas de compensação, e eu me pergunto se não é um pouco dessa maneira que algumas colônias funcionaram. Em alguns casos essas desempenharam, ao nível da organização geral do espaço terrestre, o papel de heterotopias. Penso, por exemplo, na época da primeira leva de colonização, no século XVII, nessas sociedades puritanas que os ingleses fundaram na América, e que eram outros lugares absolutamente perfeitos. Penso também nessas extraordinárias colônias de jesuítas fundadas na América do Sul: colônias maravilhosas, absolutamente regradas, nas quais a perfeição humana estava efetivamente cumprida. Os jesuítas do Paraguai tinham fundado colônias nas quais a existência era regulada em cada um de seus aspectos. A aldeia era distribuída segundo uma disposição rigorosa em torno de uma praça retangular, no fundo da qual havia a igreja; de um lado o colégio, de outro o cemitério, e ainda, diante da igreja, abria-se uma avenida cruzada por outra em ângulo reto. As famílias tinham cada qual a sua pequena cabana ao longo desses dois eixos, reproduzindo-se assim, exatamente, o signo do Cristo. A cristandade marcava assim, com seu signo fundamental, o espaço e a geografia do mundo americano. A vida cotidiana dos indivíduos era regrada não pelo apito, mas pelo sino. O despertar era fixado para todo mundo na mesma hora; o trabalho começava para todo mundo na mesma hora; as refeições, ao meio-dia e às cinco horas da tarde; depois se dormia, e à meia-noite havia o que se chamava de despertar conjugal, significando que, ao toque do sino do convento, cada um cumpria seu dever.
120
ESTUDOS AVANÇADOS
27 (79), 2013
Dossier de Pesquisa 104-105
Bordéis e colônias, esses são dois tipos extremos de heterotopia. E se se imagina, enfim, que o barco é um pedaço flutuante de espaço, um lugar sem lugar, que vive por si mesmo, que é fechado sobre si e é entregue, ao mesmo tempo, ao infinito do mar, e que, de porto em porto, de bordo em bordo, de bordel em bordel, vai até as colônias buscar o que elas guardam de mais precioso em seus jardins, vocês compreenderão por que o barco foi para a nossa civilização, desde o século XVI até nossos dias, ao mesmo tempo não só, evidentemente, o maior instrumento de desenvolvimento econômico (não é disso que eu falo hoje), mas a maior reserva de imaginação. O navio, essa é a heterotopia por excelência. Nas civilizações sem barcos os sonhos definham, a espionagem substitui a aventura, e a polícia, os corsários.
Notas 1 Conferência proferida no Cercle d’Études Architecturales em 14 de março de 1967, e publicada originalmente em Architecture, Mouvement, Continuité, n.5, outubro 1984, p.46-9. Foucault somente autorizou a publicação deste texto, escrito na Tunísia em 1967, na primavera de 1984 [Nota do Editor do Original]. A Organizadora do dossiê “O espaço na vida social” agradece a Sérgio Adorno, Marcio Alves da Fonseca, Armand Ajzenberg, Dario Luis Borelli e Alfredo Bosi o incentivo e apoio durante o processo de viabilização da cessão dos direitos de reprodução deste texto, e em especial ao editor Francisco Bilac Pinto Filho, da Editorial Forense e Forense Universitária, que gentilmente autorizou a tradução e a publicação do texto em Estudos Avançados. Mas agradece em particular também a Rainer Domschke por cruciais sugestões de revisão linguística. (N.O.) 2 No original, “placées”. Para além das várias acepções de “place” e seus derivados em português (“placer”, “emplacement”), optou-se por “local” e seus derivados (“alocar”, “alocação”) no intuito de evidenciar a distinção explícita que Foucault faz entre “place” e “position”, e que também aparece em Bourdieu. (N.R.) 3 No original, “emplacement”. (N.R.) 4 No original, “localisation”. (N. R.). 5 Cf. a respeito em especial Gaston Bachelard, La poétique de l’espace, Paris: PUF, 1957. (N.R.) 6 No original, “éternitaires”, um neologismo. Na tradução para o inglês (“Of Other Spaces”, de Jay Miskowiec, em Diacritics, v.16, n.1, 1986, p.26), a formulação é “oriented toward the eternal”. (N.R.) 7 No original, “comme dans un moulin”, expressão idiomática que conota um local de acesso social irrestrito. (N.R.)
– Nesta conferência, proferida durante o período em que foi professor visitante na Tunísia e publicada quase vinte anos mais tarde, Michel Foucault parte de sua seminal tese sobre o fato de o século XX ser o século do espaço, a fim de alertar para a importância de uma história do espaço, na experiência ocidental. Diferenciando entre
RESUMO
ESTUDOS AVANÇADOS
Covid-19
Antes / Durante / Depois (Agora)
27 (79), 2013
121
espaço de localização (medieval), de extensão (evidenciado por Galileu) e de alocação (contemporâneo), cabe problematizar em particular a heterogeneidade deste último por referência ao “espaço do fora”, conjunto de relações que definem alocações irredutíveis umas às outras. Nesse âmbito, que conta com dois grandes tipos de alocações – utopias e heterotopias –, interessam em especial essas últimas, utopias efetivamente realizadas que o autor “descreve” – em sua “heterotopologia” – como marcadas por seis princípios, explicitados um a um com o auxílio de exemplos inspiradores. PALAVRAS-CHAVE:
Espaço, Tempo, História (espaço), Utopia, Heterotopia.
ABSTRACT – The starting point of this lecture, which was conceived during Michel Foucault’s stay in Tunisia as a visiting professor and published almost twenty years later, is this author’s seminal thesis on the fact that the 20th century was the century of space. The aim is to emphasize the importance of a history of space in the Western experience By distinguishing between the (medieval) space of localization, the space of extension (evidenced by Galileo) and the (contemporary) space of emplacement, Foucault particularly tackles the latter’s heterogeneity with reference to the “space of the outside”, i.e. a set of relations which define emplacements that are irreducible to one another. Even though this realm comprises two major types of emplacements – utopias and heterotopias –, the author is especially interested in the latter ones, which he conceives as effectively enacted utopias. In his “heterotopology” he “describes” them by means of six principles which are explained one by one with the aid of inspiring examples. KEYWORDS:
Space, Time, Society, History, Utopia, Heterotopia.
Michel Foucault (1926-1984), filósofo francês, foi professor de Filosofia na Universidade Clermond-Ferrand entre 1962 e 1966, professor visitante de Filosofia em Túnis entre 1966 e 1968, e titular da cátedra de História dos Sistemas de Pensamento no Collège de France a partir de 1970. Tradução de Ana Cristina Arantes Nasser. Revisão técnica de Fraya Frehse. O original em francês – “Des espaces autres”, publicado em Dits et écrits (v.5, Paris: Gallimard, 1994, p.752-62) – encontra-se à disposição do leitor no IEA-USP para eventual consulta. Recebido em 23.9.2013 e aceito em 5.10.2013.
122
ESTUDOS AVANÇADOS
27 (79), 2013
Dossier de Pesquisa 106-107
Tema Procurei algumas referências ao nível fotográfico e deparei-me com o trabalho de Valter Vinagre, que já tinha sido mencionado em aula e que integra a Revista Atlântida, uma revista anual do Instituto Açoriano de Cultura que este ano aborda, precisamente, o campo do Lugar/Não-Lugar, e que incluí no meu dossier de pesquisa, a par de outros artigos de interesse.
17. Dia Mau. Tomás Adrião
18. A Escolha dos Críticos Ana Vieira por Luísa Soares de Oliveira. Museu Coleção Berardo
Covid-19
Antes / Durante / Depois (Agora)
19. Projecto MAP. Museu Coleção Berardo
Dossier de Pesquisa 108-109
Covid-19
Antes / Durante / Depois (Agora)
20. Untitled. Ana Vieira Dossier de Pesquisa 110-111
21. Sombras. Eurico Carrapatoso
22. O Sentimento de um Ocidental. Cesรกrio Verde
Covid-19
Antes / Durante / Depois (Agora)
23. Os Aeroportos da Minha Meninice. Carlos Guilherme Riley
Dossier de Pesquisa 112-113
Covid-19
Antes / Durante / Depois (Agora)
Dossier de Pesquisa 114-115
Covid-19
Antes / Durante / Depois (Agora)
Dossier de Pesquisa 116-117
Covid-19
Antes / Durante / Depois (Agora)
The Public Shaming Pandemic. The New Yorker
A Collision Between a Stream of Light and an Obstacle Crise da Realidade
Dossier de Pesquisa 118-119
1. The Daily Post-Truth. FBAUL e MAAT
2. Dois meses de Covid-19. O filme da pandemia em Portugal. Renascenรงa
Covid-19
Antes / Durante / Depois (Agora)
1. Teaser. Maria Inês Martins e João Pedro Costa
Dossier de Pesquisa 120-121
Covid-19
Antes / Durante / Depois (Agora)
Amor Fati. Cláudia Varejão
Emoções / Pensamentos A Imagem como Violência
Dossier de Pesquisa 122-123
Contexto Comecei por fazer a habitual leitura do capítulo da metáfora, comentei o terceiro episódio da série “Modos de Ver”, analisei a crónica “Línguas de Fogo” de Pedro Mexia. Visitei, igualmente, o Museu Nacional de Arte Antiga, onde está o tríptico de Jheronymus Bosch, com interesse formal para a fase da experimentação, e pretendo ainda ver o filme “Blow Up”.
1. Year in Research 2020. Google
2. Vacinação no Reino Unido. Diário de Notícias
Covid-19
Antes / Durante / Depois (Agora)
3. O Natal, se falasse, não queria ser excepção. Gustavo Carona
Eu sou ateu, mas adoro o Natal. Acredite-se ou não no seu significado original, o que é que é o Natal para além de um grande golpe comercial e consumista? O Natal é carinho, é contacto, é união, é confraternização à volta de uma mesa, é cuidarmos das almas uns dos outros, são os abraços sentidos de quem celebra a vida que passou e a que há-de vir... E por isso tudo é que, este ano, o Natal não deve existir. Ou pelo menos não com as excepções anunciadas, como uma saída precária de fim-de-semana, de uma pena de prisão, onde vale tudo menos arrancar olhos. Eu espero que os mais ligados ao simbolismo da vida de Jesus não me levem a mal, porque as minhas palavras em nada são um ataque à instituição Igreja e suas pessoas. Aliás, considero até que a Igreja Católica tem tido um papel exemplar perante este desafio inédito. Esteve, está e sei que estará de parabéns pela posição pedagógica e sensata ao não questionar os dogmas da ciência que, curiosamente, quase sempre interceptaram os dogmas da fé. Mas a Igreja foi exemplarmente respeitadora da ciência e da vida, ao fechar de imediato as igrejas, como também se fecharam mesquitas, templos e sinagogas em todo o mundo, materializando a mensagem que é comum a todas as religiões, que é a defesa de valores e comportamentos pelo bem comum. “Acalmou”, dizem os dados, as curvas e os especialistas. Permitam-me tentar explicar o que é este “acalmar”. Imaginem que o nosso Serviço Nacional de Saúde é um carro que permite transportar cinco pessoas em segurança. De repente, este carro é obrigado a meter mais cinco e vão todos ao molhe lá para dentro. Agora metam mais dez. Uns vão para a mala sem ar, outros para cima do capô, que começa a amolgar, alguns tentam, mas não conseguem entrar e até há uns que empurram outros borda fora. Quando o carro está todo espatifado com as suspensões rebentadas, e os que vão lá dentro quase não respiram, o dono do carro diz orgulhosamente: “Vês, como aguenta?” E ninguém o pode acusar de estar a mentir. “Acalmou”, com cuidados intensivos improvisados, áreas da saúde “congeladas” pela avalanche de doentes com covid e interrupção de tratamentos e cirur-
gias que estarão comprometidos sempre à dimensão do descontrolo da pandemia. “Acalmou” num limite em que o carro se está a desfazer e os que vão lá dentro não estão a gostar da viagem. É assim que estamos agora. Estabilizar no péssimo continua a ser péssimo. Dar uma carta verde ao Natal é uma enorme falta de respeito pelo seu simbolismo. É promover mais mortes, num dia/época que pretende, mais do que tudo, celebrar a vida. É deixar a ideia no ar de que assim umas excepçõezinhas de almoços e jantares de 20, 30 ou 40 pessoas no 24 e 25 de Dezembro e, já agora, porque não uns dias antes e uns dias depois, como sempre foi, é só uma gordurinha natalícia que depois compensamos após as falsas promessas habituais da passagem de ano. Eu estou a morrer de saudades do Natal e precisava do Natal mais do que nunca. Morro de saudades dos meus amigos, daqueles abraços que apertam os ossos com tanta força que até sai uma lágrima do olho. Queria muito ver a minha família toda, seja às prestações, seja toda de uma vez. Mas obrigaram-nos a não tirar férias e até a não nos demitirmos, nem que estejamos a cair para o lado, e eu compreendo e aceito esse sacrifício de não dar descanso aos que mais precisavam de descanso, e aos que mais precisavam do Natal. O que eu não compreendo e não aceito é que promovam e legitimem a maior fonte de contacto entre pessoas do ano, e que indubitavelmente vai catapultar o número de infectados e, acredite-se ou não, vai levar à morte de muitas pessoas que não precisavam de morrer. Digam-me, por favor, se estou a dizer alguma mentira... Celebrar o Natal é aumentar o número de pais e avós que para o ano vão ser um lugar vazio na mesa. É duro? É triste? É. Mas para mentiras e demagogias já temos muitos. O Natal, se falasse, não queria ser excepção.
Dossier de Pesquisa 124-125
Metáfora Para além disso, tive a oportunidade de participar numa visita guiada à exposição “Dar Corpo ao Vazio”, de Cristina Ataíde, com a artista e o curador Sérgio Fazenda Rodrigues. Nesta, são abordados conceitos, dicotomias e percursos interessantes, muitos deles de inspiração oriental, sobre os quais a artista desenvolve o seu trabalho. Desta exposição, faço um paralelo para uma obra da mesma artista, patente na exposição “Dissonâncias” do Museu Nacional de Arte Contemporânea do Chiado, que visitei anteriormente.
4. A Imagem como Violência. Ler Imagens. Alberto Manguel
Manguel analisa, neste capítulo, o trabalho de Pablo Picasso. O trabalho do pintor é explicado tendo em conta a sua relação com os modelos que retrata, tendo em vista uma certa ficção das suas obras, um certo reflexo da sua própria personalidade nas mesmas. John Berger comentou mesmo a possibilidade de Picasso usar os seus modelos como telas, preparadas por meio de medo, de relações sexuais, de dinheiro ou amizade, levando a que brotassem nos modelos as emoções que ele próprio desejava experienciar. É ainda, também, questionado o papel do espetador, na apropriação das obras e são retratados alguns episódios, como o caso que envolve a sua amante Dora Maar que, ao contrário da sua esposa Olga Koklova e do romance com Marie-Thérèse Walter, era pintada sempre num rosto dilacerado, dorido, distorcido e pintado com cores frias. Finalmente, é apresentado o caso da obra “Guernica”. Podemos ler um quadro da mesma forma que lemos um livro? Existe algum vocabulário que possamos de aprender para nos ajudar a deslindar os seus significados? Quererá ele ser descodificado, decifrado e compreendido? Em Ler Imagens, livro profusamente ilustrado, Alberto Manguel
Covid-19
Antes / Durante / Depois (Agora)
oferece uma instigante meditação sobre as questões que nos colocamos quando estamos diante de uma obra de arte. Alberto Manguel (1948, Buenos Aires) cresceu em Telavive e na Argentina. Aos 16 anos, trabalhava na livraria Pygmalion, em Buenos Aires, quando Jorge Luis Borges lhe pediu que lesse para ele em sua casa. Foi leitor de Borges entre 1964 e 1968. Em 1968, mudou-se para a Europa. Viveu em Espanha, França, Itália e Inglaterra, ganhando a vida como leitor e tradutor para várias editoras. Editou cerca de uma dezena de antologias de contos sobre temas tão díspares como o fantástico ou a literatura erótica. É ensaísta, romancista premiado e autor de vários best-sellers internacionais, como Dicionário de Lugares Imaginários, Uma História da Curiosidade, A Biblioteca à Noite e Embalando a Minha Biblioteca (Tintada-china, 2013, 2015, 2016 e 2018, respetivamente). É atualmente cidadão canadiano e foi diretor da Biblioteca Nacional da Argentina entre 2016 e 2018. Foi galardoado com o Prémio Formentor das Letras em 2017.
5. A Mulher que Chora. Pablo Picasso Dossier de Pesquisa 126-127
6. Blow-Up. Michelangelo Antonioni
7. Caravaggio. A Alma e o Sangue
Covid-19
Antes / Durante / Depois (Agora)
8. Línguas de Fogo. Imagens Imaginadas. Pedro Mexia
Pedro Mexia aborda a conhecida obra “O Grito”, do pintor Edvard Munch, não só como mais uma das suas cenas e confissões sobre os seus sofrimentos públicos e íntimos, mas como algo que as transcende. É associada também à ideia de “sublime”, ligada às manifestações esmagadoras da natureza. Depois dos filmes e dos livros, as artes plásticas: Novo livro de crónicas «temáticas» de Pedro Mexia, desta vez dedicado à pintura e à fotografia. Para completar uma espécie de trilogia das artes, inaugurada pelos livros Cinemateca e Biblioteca, chega agora Imagens Imaginadas. Do roubo do quadro O Grito à semiótica da atriz Cláudia Vieira; de pintores italianos do século XV à atualidade voyeurista de Julião Sarmento, entre muitas outras estéticas, Pedro Mexia partilha a sua perspetiva sobre artes plásticas ao mesmo tempo que acompanha o leitor num percurso pelos nomes maiores da pintura e da fotografia.
Pedro Mexia nasceu em Lisboa, em 1972. Licenciou-se em Direito pela Universidade Católica. Escreveu crítica literária e crónicas para os jornais Diário de Notícias e Público, sendo atualmente colaborador do semanário Expresso. É um dos membros do Governo Sombra (TSF / TVI24). Foi subdiretor e diretor interino da Cinemateca Portuguesa. Publicou seis livros de poesia e as coletâneas de crónicas Primeira Pessoa (2006), Nada de Melancolia (2008), As Vidas dos Outros (2010), O Mundo dos Vivos (2012), Cinemateca (2013), Biblioteca (2015) e Lá Fora (2018, Grande Prémio de Crónica APE). Organizou um volume de ensaios de Agustina Bessa-Luís, Contemplação Carinhosa da Angústia; a antologia Verbo: Deus como Interrogação na Poesia Portuguesa [com José Tolentino Mendonça]; O Homem Fatal, crónicas escolhidas de Nelson Rodrigues; e Nada Tem já Encanto, antologia poética de Rui Knopfli. Coordena a coleção de poesia da Tintada-China. Em 2015 e 2016 integrou o júri do Prémio Camões.
9. O Grito. Edvard Munch
Dossier de Pesquisa 128-129
Covid-19
Antes / Durante / Depois (Agora)
10. Minamata. W. Eugene Smith Dossier de Pesquisa 130-131
11. Modos de Ver. John Berger
No terceiro episódio, Berger discute a relação da tradição da pintura a óleo europeia e do retrato com a noção de riqueza e propriedade do dono. Berger argumenta que a pintura a óleo existe, principalmente, para retratar a riqueza do seu proprietário. O seu assunto não é necessariamente a arte, mas os bens e o poder de compra. É apresentada como uma tradição materialista, em si. Para além disso, Berger também aborda a temática do autorretrato, explorando-o a partir dos autorretratos de Rembrandt. Ways of Seeing é uma série de televisão de 1972 de filmes de 30 minutos, criada principalmente pelo escritor John Berger e pelo produtor Mike Dibb. Foi transmitido pela BBC Two em janeiro de 1972 e adaptado para um livro de mesmo nome.
Covid-19
Antes / Durante / Depois (Agora)
Berger e sua equipa recorrem à tradição da pintura europeia para nos fazer questionar sobre a maneira como vemos e lemos as imagens. John Berger (1926-2017), crítico de arte, pintor e escritor inglês, ícone da contracultura e um dos pensadores mais influentes dos nossos dias, avançou contra a corrente num tempo de especialistas e especializações. Em quadros, ensaios, poemas ou textos para cinema ou televisão, foi plural também nas suas inspirações, tomando interesse nas franjas da sociedade (presos, camponeses, migrantes) como exemplos de resistência à ignomínia de governos e mercados. Ganhou o Prémio Booker em 1972 com o romance feminista G., e o seu ensaio mais famoso, Modos de Ver, é uma referência na crítica de arte ainda hoje a ser redescoberta.
13. O Heroísmo da Visão. Ensaios sobre Fotografia. Susan Sontag
12. Festa. Fúria. Femina. MAAT
Neste capítulo, Susan Sontag olha para a fotografia como padrão de beleza, uma vez que o objetivo pessoal do fotógrafo nunca é fotografar o que considera feio, no seu entender. Aborda também o temor pessoal pela desaprovação da câmara uma vez que queremos estar sempre com o melhor aspeto possível. Com o surgimento da possibilidade de retocar o negativo, apresentada na Exposição Universal de Paris de 1855, espalha-se o conhecimento de que a câmara podia mentir, em oposição à sua característica de veracidade, de grande importância, ao contrário da pintura. Passa, assim, a falsificar a realidade. Aborda, no final, a relação entre a pintura e a fotografia, a dicotomia câmara/ olho humano, a ordem, estrutura, forma e perfeição da natureza, entendendo a fotografia como um registo “natural” da natureza, uma imagem impessoal e objetiva. O pintor constrói. O fotógrafo revela.
Ensaios sobre Fotografia é um conjunto de ensaios em que Sontag examina uma série de problemas - a um só tempo estéticos e morais - levantados pela presença e autoridade da imagem fotografada nas nossas vidas. Uma obra de referência na discussão sobre o papel da fotografia entre a experiência e a realidade, Ensaios sobre Fotografia valeu a Susan Sontag a atribuição do prestigiado prémio do National Book Critics Circle.
Susan Sontag nasceu em 1933, em Nova Iorque, cidade onde morreu, em 2004 — e foi uma das mais importantes e influentes intelectuais norte americanas da segunda metade do século XX. Professora, ativista na defesa dos direitos das mulheres e dos direitos humanos em geral, ficcionista e ensaísta frequentemente premiada e amplamente traduzida. A sua escrita foi presença assídua em publicações como The New Yorker, The New York Review of Books, The New York Times, The Times Literary Supplement, entre muitas outras. Susan Sontag teve um filho, David Rieff – editor dos seus diários inéditos, publicados pela Quetzal com o título Renascer –, e viveu os últimos anos da sua vida com a fotógrafa Annie Leibovitz.
Dossier de Pesquisa 132-133
Covid-19
Antes / Durante / Depois (Agora)
14. Tentações de Santo Antão. Jheronymus Bosch
Dossier de Pesquisa 134-135
Campo Tive, igualmente, a oportunidade de assistir no cinema Ideal a uma sessão, comentada pela realizadora, do documentário português “Amor Fati”, que aborda temas como o belo, as emoções e sentimentos, iniciando-se precisamente com uma citação do discurso de Aristófanes no “Banquete” de Platão, que também estou a terminar a sua leitura, no âmbito da UC de Estética I e acerca do qual irei alojar uma análise no meu dossier.
15. Amor Fati. Cláudia Varejão.
16. Cláudia Varejão. Era o que Faltava.
17. Cello Suite No. 1 in G Major BWV 1007. Bach.
Covid-19
Antes / Durante / Depois (Agora)
18. O Sublime e o Belo. Helena Barbas
O Sublime e o Belo – de Longino a Edmund Burke
1
Helena Barbas
CENTRIA e DEP/FCSH Universidade Nova de Lisboa, Av. de Berna, 26-C, 1069-061 Lisboa, Portugal, +3517933519 – hebarbas@fcsh.unl.pt
Abstract: Historial da evolução do conceito de Sublime e sua oposição ao Belo. As tentativas de preenchimento do seu significado são lidas sintoma da transformação de um paradigma científico, de uma mudança estética e epistemológica no séc. XVIII. É feita a análise de An Inquiry into the Origin of Our Ideas of the Sublime and the Beautiful, de Edmund Burke (nas suas duas edições, 1756 e 1757). Procura-se estabelecer a base que irá concorrer para a revisão dos fundamentos da estética e renovação a ser operada pelo transcendentalismo kantiano. History of the evolution of the idea of the Sublime in its opposition to the Beautiful. The several attempts to fill up the meaning of the word are read as symptoms of the conversion of a scientific paradigm, an aesthetic and epistemological transformation in the XVIIIth. century. It focuses on the analysis of An Inquiry into the Origin of Our Ideas of the Sublime and the Beautiful, by Edmund Burke (both 1757 and 1758 editions), as it proposes the basis for the future revision of aesthetical fundaments, and the renovation to be operated by Kant’s transcendentalism. Keywords: Sublime; Belo; Teoria da literatura; História das ideias estéticas; Sublime; Beautiful; Literary theory; History of aesthetical ideas;
INTRODUÇÃO A antítese clássica entre o Belo e o Sublime pertence ao domínio das filosofias. Porém, Sublime é um termo literário associado ao êxtase e à criação poética pelos Antigos, o primeiro deles o Pseudo-Longino. Na linguagem corrente é entendido como um sinónimo ou superlativo do Belo, um pouco fora de moda. O texto que melhor trata a problemática da mudança de sentido que o conceito sofre é o estudo de Edmund Burke, An Inquiry into the Origin of Our Ideas of the Sublime and the Beautiful, de 1756-1757, trabalho que irá inspirar Kant – dedica-lhe uma parte na sua Crítica da Faculdade do Juízo. Em Burke encontra-se uma súmula das inquietações teóricas sobre a arte, em particular a literária, que atravessam o Empirismo inglês. Procura-se aqui acompanhar a evolução do conceito do Sublime, historiar as várias tentativas de preenchimento do seu significado, que são sintoma da transformação de um paradigma científico, de uma mudança estética e epistemológica.
1
Artigo publicado on-line em 7 de Novembro de 2002, revisto em 11 de Junho de 2006;
Dossier de Pesquisa 136-137
O Sublime e o Belo – de Longino a Edmund Burke – Helena Barbas
1
DAS ORIGENS DO TERMO SUBLIME
O termo sublime tem as suas raízes na Antiguidade. Etimologicamente vem do latim sublimis, composto de sub-limen: «o que está suspenso na arquitrave da porta» (lat. limes), o lintel entre duas colunas (O.E.D.). É pois um termo que, nas suas origens, se encontra directamente ligado à arquitectura, tendo o sentido imediato de elevado, de algo que está acima da cabeça do homem. Será a tradução latina do termo To Hupsos, o elevado, que se define por oposição a Tapelinotes (humilia oratio) [1] enquanto um dos géneros do discurso. Assim, o Sublime surge directamente relacionado com a terminologia da retórica, é o genus grande, grave ou... sublime, que se caracteriza pelo tipo de linguagem elaborada, de ornato vigoroso, patético. A sua função é comover: é o local onde domina o pathos – o grau mais violento dos afectos, mais indicado para promover o impulso que conduz à acção: o que está violentamente agitado excita nos outros a mesma agitação, e o irado a mesma ira (eis porque poetar é conforme a seres bem dotados ou a temperamentos exaltados, uns porque plasmável é a sua natureza, outros por virtude do entusiasmo que os arrebata). [2]
Usado de modo ambivalente, o termo é aplicado tanto à retórica quanto à literatura – é o estilo próprio dos géneros mais nobres – epopeia e tragédia – e define-se por oposição a outros menos nobres: o genus medium e o genus humile como nos diz Cícero: há uma elocução plena, abundante, e ao mesmo tempo polida; uma outra muito simples, à qual no entanto não falta nem energia nem força, e uma terceira que participa das outras duas e que, ao mesmo tempo, ocupa o lugar intermédio entre elas. [3]
Cícero sistematiza e renomeia a divisão dos estilos para a grande oratória romana. Mantendo-lhes os mesmos atributos que os seus antecessores, como eles, não esquece as características emocionais ou persuasivas associadas a cada um: cada paixão, cada afeição tem a sua expressão natural, a sua fisionomia, a sua entoação, o seu gesto; todo o corpo humano, todo o exterior, todos os sons da voz reagem como as cordas de um instrumento à paixão que as toca e põe em movimento. [4]
Embora devesse já ser de uso corrente entre filósofos e rectors, é com este autor que se assume o significado estilístico do Sublime. Por volta de 50 a.C., Cecílio de Calate escreve um tratado com o título de Peri Hupsos. Nele pretende explicar o conceito ao público, polemizando acremente contra o enfático (o sublime inautêntico, ou o bombástico) da retórica asiática, e dando preferência – em nome do despojado aticismo – a uma mediocridade refinada e perfeita em detrimento de uma grandeza defeituosa. [5] É contra este autor que se insurge o texto do Pseudo-Longino, um possível contemporâneo de Horácio: Aparece com o título Sobre o Sublime, e o seu autor sob o nome de Longino. Ambos estão errados. Não sabemos quem é o autor, e a palavra Hupsos significa
2 Covid-19
Antes / Durante / Depois (Agora)
O Sublime e o Belo – de Longino a Edmund Burke – Helena Barbas
altura, e não sublimidade. Literatura elevada, grande poesia e prosa – é esse o tema. [6]
Porém é sob o nome de O Sublime que este tratado chega até nós. Embora para o seu autor o conceito pareça não implicar uma distinção clara relativamente ao Belo (razão pela qual irá ser criticado posteriormente), poder-se-á considerar que aquela estará implícita pelo confronto com os géneros complementares da retórica: o Belo corresponderá ao genus medium, de ornato leve, com intenção de deleitar, e cujo grau de afectos se liga ao ethos. Ou então, porque a diferença seja apenas um caso de gradação. O elo entre retórica e literatura vai ser quebrado. O estilo grandioso ou elevado demarca-se da sua contraparte oratória por um valor não lógico que exalta e causa admiração, mas que não tem intento persuasivo. Em Longino, o Sublime é o Belo poético na sua expressividade genuína: a sublimidade consiste numa certa excelência e distinção de expressão, e é a partir desta fonte apenas que os grandes poetas e historiadores alcançaram a sua preeminência e conquistaram para si próprios a eternidade da fama. Porque o efeito da linguagem elevada é, não o persuadir os ouvintes, mas exaltá-los; e sempre, e de todos os modos, o que nos arrebata com admiração diz mais do que o que apenas nos persuade ou gratifica. [7]
A sua condição primeira vai ser procurada, não nos valores estilísticos e de expressividade em que pode resolver-se, mas sim numa faculdade originária de conceber pensamentos elevados, numa riqueza espiritual interior que ultrapassa os limites do usual, directamente relacionada com o êxtase: nada contribui tão decisivamente para o estilo grandioso como uma emoção nobre no cenário certo, quando força o seu caminho até à superfície numa irrupção de furor, e infunde uma espécie de inspiração divina às palavras do orador. [8]
Por outro lado, a condição primária da criação poética dependerá do carácter, da personalidade moral do seu autor: «A sublimidade é o eco de uma mente nobre» [9]. A ligação autor-obra não será nova. Em Aristóteles – na Retórica – o carácter não é a personalidade moral do orador, mas a impressão que, pelo seu discurso, este causa no público. Em Cícero a posição já é diferente: Porque a abundância das ideias produz a abundância das expressões; e se existe elevação e nobreza nos pensamentos, essas mesmas qualidades serão encontradas nas palavras. [10]
Apesar de uma aparente semelhança, a relação autor-obra adquire, em Longino, uma conotação diferente das anteriores (em que o discurso é eco da probidade do orador), uma vez que o texto em causa é literário, ou seja, não é produzido para uma instância pragmática, nem tem intenções persuasivas. Embora seja também um rector, e aconselhe a imitação dos antigos, Longino não prescreve regras para atingir o Sublime, já que: «O Génio, dizem, é inato; não é uma coisa que possa ser
3 Dossier de Pesquisa 138-139
O Sublime e o Belo – de Longino a Edmund Burke – Helena Barbas
aprendida, e a natureza é a única arte que o gera.» [11]. A ideia inspiradora desta, onde o acto de criação «genial» surge equacionado com a loucura, é platónica: Existe uma terceira forma de possessão, ou loucura, da qual as Musas são a fonte. Apodera-se de uma alma tenra e virgem e estimula-a até à expressão apaixonada do êxtase, especialmente na poesia lírica, glorificando os incontáveis e poderosos feitos dos tempos antigos para a instrução da posteridade. Mas se qualquer homem se aproximar dos portões da poesia sem a loucura das Musas, convencido de que a habilidade apenas o tornará um bom poeta, então ele, e as suas obras de sanidade consigo, serão reduzidos a nada pela poesia da loucura e, cuidado, porque não serão encontrados em lado algum.[12]
No entanto, este autor terá o mérito de reconduzir o problema nos seus termos essenciais, puramente literários. Tal como irá acontecer no século XVIII inglês, a questão do Sublime levanta-se no momento em que se sente a necessidade de pôr em evidência as fontes interiores da poesia contra um excesso de formalismo e de preceitos. Terá sido esta a sua função primeira na História da Estética. O Tratado sobre o Sublime, redescoberto e publicado por Robortello em 1554, não consegue, durante o Renascimento, recolocar o problema da arte em termos especulativos, com maior autonomia relativamente à Poética (de resto mal compreendida, ou re-interpretada) de Aristóteles. Traduzido e utilizado por Boileau (1674, 1693), a sua dimensão parece não ter sido correctamente abarcada: Porque as Reflexões sobre Longino de Boileau (1693) ficam aquém do seu título. São um panfleto, igualmente desprovido de espírito e de ideias, contra Perrault – um catálogo pedante dos seus erros filológicos, estilísticos e ortográficos. E isto em nome de Longino, que tão deliberadamente rejeitou a confusão entre «correcção» e «perfeição». A grandeza nunca é correcta. Boileau parece não ter lido o Capítulo 33 do Peri Hupsos, ou não o ter compreendido. [13]
Inicialmente Boileau considera que o Sublime descrito por Longino consiste numa grandeza de concepção – e não na beleza dos termos – grandeza essa que terá que ser expressa com intensidade e em breves palavras. Porém, em Réfléxions... dá-se um retrocesso no seu pensamento, modifica a sua posição e mantém que o Sublime poderia ser apenas uma mistura das cinco fontes longinianas: grandeza de pensamento e paixão – mas com o sentido técnico ou retórico; palavras; figuras e composição harmoniosas; embora no seu prefácio à tradução assegure o aspecto emotivo do Sublime com os termos extraordinário, surpreendente, maravilhoso. No entanto, em Boileau, o Sublime é ainda um termo de crítica literária. Os seus contemporâneos franceses aplicavam-no a uma forma de dicção, com o sentido de preciosidade, ou de uma afectação metafísica relacionada com o bonito [14]. Apesar dos seus possíveis defeitos e confusões, talvez motivados pela influência cartesiana e a sua preocupação com o decorum clássico na versão da bienséance, Boileau terá o crédito de ter contribuído para a alteração da carga semântica do termo e, principalmente, de ter provocado o aumento do interesse pelo texto de Longino em Inglaterra.
4 Covid-19
Antes / Durante / Depois (Agora)
O Sublime e o Belo – de Longino a Edmund Burke – Helena Barbas
A primeira tradução inglesa do Peri Hupsos foi feita por John Hall e data de 1652. É esta a edição utilizada e referida por Dryden. No entanto, só a partir de 1689 – após a versão de Boileau – o termo Sublime passa a intitular a obra de Longinus. 2
O SUBLIME E OS NOVOS MODELOS DA MIMESIS
É especialmente na primeira metade do século XVIII que se começam a fazer sentir os efeitos da New Philosophy da revolução científica, tanto a nível da epistemologia, quanto da teoria literária. Estes efeitos terão, como causa primeira, a alteração do conceito de real provocada por Bacon, fonte da visão empírica e sensacionista. O empirismo pretende que todo o conhecimento é adquirido através da experiência dos sentidos. Deste modo, todos os indivíduos terão acesso ao conhecimento que deixa de ser pertença de alguns poucos, inspirados ou filósofos. Esta forma do conhecer implica a individualidade, está sujeita à idiossincrasia de cada um (associação de ideias), é plural. Com a alteração epistemológica uma série de conceitos vacilam, mudam de sentido ou hesitam entre dois significados incompatíveis. Presente a nível da teorização artística em geral, o desfasamento entre significante e significado é mais claro na crítica literária, e será consequência do uso de uma terminologia própria ainda da Velha Retórica, no momento em que os conceitos subjacentes já estão minados pela Nova Filosofia. Por outras palavras, encontra-se o uso de termos directamente ligados a uma arte baseada na ideia de modelo, no momento em que esse modelo deixou de existir. Sem modelo – arquetípico, ou outro – as artes, e em especial a poesia, terão que procurar um substituto para os valores morais, políticos ou religiosos que as suas antigas defesas (nomeadamente a de Sir Philip Sidney) usavam como base. Reduzida ao campo do quotidiano, a arte perde os restos da sua já degradada relação com o sagrado e, com ela, a sua função didáctica passa a ser meramente lúdica, ou sem responsabilidades nem obrigações. A situação será tanto mais paradoxal quanto se mantém ainda a ideia (confusa) de que a arte é Mimesis – como em The Advancement and Reformation of Poetry, um texto de John Dennis (1710): Mas antes que continuemos, deixem-nos definir Poesia; pois é a primeira vez que uma definição é dada dessa nobre Arte: Porque nem os Críticos Antigos nem os Modernos definiram a Poesia em geral. A Poesia então é uma imitação da Natureza, por um Discurso abundante e patético. Deixem-nos explicar. Dado que a Poesia é uma Arte, tem que ser uma Imitação da Natureza. Que o Instrumento com o qual ela faz a sua Imitação é o Discurso, não precisa de ser discutido. [...] Que o Discurso, pelo qual a poesia faz a sua Imitação, tem que ser patético é evidente; porque a Paixão é-lhe ainda mais necessária que a Harmonia. Porque a Harmonia só distingue os seus instrumentos dos da Prosa, mas a Paixão distingue a sua verdadeira Natureza e Carácter. Porque, portanto, a Poesia é Poesia porque é mais Apaixonada e Sensual que a Prosa. [15]
5 Dossier de Pesquisa 140-141
O Sublime e o Belo – de Longino a Edmund Burke – Helena Barbas
Apesar de tantas certezas e evidências, esta é a mimesis de uma natureza que mudou de sentido – já não é o reflexo de um ideal arquetípico, nem da natureza tal qual deveria ser – e se transformou na natureza do próprio homem. No entanto, a transformação nem sempre está clara, hesita-se ainda entre natureza e arte, que se pressentem divididas – como enuncia Joseph Addison, nos seus Essays on Taste: 3. Se os produtos da natureza aumentam de valor segundo se assemelham mais ou menos aos da arte, podemos ter a certeza de que as obras artificiais ganham mais vantagens pela sua semelhança com as que são naturais; porque aqui a similitude é não só agradável, como o padrão mais perfeito. [16]
A natureza circundante – o modelo da mimesis – poderá ser melhorada. O homem, pela sua acção, pode dar-lhe uma ordem e regularidade que ela não possui: o Belo relativiza-se. Sendo possível acrescentar-lhe algo que até aí não possuía, algo de não visível, passa a conter em si o elemento de novidade. Daí que sejam possíveis dois tipos de mimesis. A primeira, a «verdadeira» (a que nunca foi feita), que a par da ideia de imitação possui a do novo, e que vai instituir o conceito de originalidade (Joseph Addison; Edward Young). A segunda, a imitação do que já foi feito, a cópia dos modelos dos antigos que, por melhor que seja, enquanto cópia não tem valor de original (Edward Young; Adam Smith). Como uma primeira consequência, os antigos perdem o seu estatuto semi-divino, de habitantes de uma Idade de Ouro, e tornam-se simples seres humanos que, devido à sua situação histórica, tiveram a oportunidade de ser originais: Eles, embora não o sejam de facto, são acidentalmente Originais; as obras que imitaram, à excepção de poucas, perderam-se: Eles, pela morte dos seus Pais, recebem, como Herdeiros legais, as suas propriedades de Fama: [...] Apesar de tudo, os primeiros Antigos não tinham Mérito em serem Originais; Não podiam ser Imitadores.[17]
Como segunda consequência, sem modelo, a arte passa a existir por si. Autónoma face a um ideal, não possui outro termo de comparação para além do que lhe é oferecido pelo mundo circundante – nem superior, nem exterior ao próprio homem. Buscará assim medir-se face às outras artes – o mais semelhante a si dentro do mundo sensível (Joseph Addison, Essays... III, VII). Alternativamente, terá que se medir contra as sensações que despoleta, pelo seu efeito no interior de cada indivíduo, ou pela manifestação exterior (no público) da emoção interior individual. Se o indivíduo é constituído pelas suas experiências e percepções, a obra de arte será uma outra (ou idêntica) forma de experiência. A questão dos géneros artísticos transforma-se numa questão de comportamento estético. Põe-se o problema da criatividade e do gosto. Surge aqui um duplo dilema: todos os homens têm sensações, mas nem todos são artistas; todos os homens têm gosto, mas este apresenta variantes. Daí que, existindo diferenças nas capacidades de cada indivíduo, se procure justificar a situação, seja pelo recorrer à disparidade dos elementos físicos da própria constituição humana (maior ou menor sensibilidade sensorial ou passional), seja pela influência de elementos exteriores (deficiências de educação e hábitos). Sugere-se a possibilidade
6 Covid-19
Antes / Durante / Depois (Agora)
O Sublime e o Belo – de Longino a Edmund Burke – Helena Barbas
do génio, inato (em E. Young), ou educado (o virtuoso do Conde de Shaftesbury), mas sempre como aquele cujo funcionamento sensorial é superior, mais afinado do que o do homem comum (aquele cuja capacidade de despertar «simpatia» é mais elevada). Assim, o artista será o homem capaz de associar as suas experiências de modo particular, dando uma voz diferente à emoção comum: Quando olhamos para qualquer objecto, a nossa ideia dele é, talvez, feita a partir de duas ou três ideias simples; mas quando o poeta a representa, ele pode ou darnos uma ideia mais complexa da coisa, ou apenas suscitar em nós aquelas ideias que são mais aptas para afectar a imaginação. [18]
Por outro lado, o crítico será o indivíduo cujos conhecimentos lhe permitem distinguir o que há de novo nessa voz por comparação com as anteriores, aquele cujo gosto foi educado para esse fim particular (em quem a capacidade de experimentar «simpatia» é superior): …os Estudiosos. É mérito deles, e ambição, lançar luz sobre as obras do Génio, e apontar-nos os seus encantos. Nós, muito justamente, reverenciamos a vastidão dos seus conhecimentos pelo favor que nos fazem. [19]
No entanto, como esta medida é fundada no gosto individual, particular, e portanto, variável, tornase necessário estabelecer uma norma comum que possibilite uma certa uniformidade no julgamento de valor sobre a arte. Evidencia-se a preocupação com a busca de um «standard», um padrão de gosto que permita estabelecer uma classificação, encontrar um sentido comum a todos os homens, capaz de dar a razão da existência e compreensão da própria arte. Sumarizando, encontram-se grandes interrogações, formuladas de um modo peculiar, durante o século XVIII. Em primeiro lugar, o que é a arte? Sendo todo o conhecimento resultado de sensações, de que modo particular funciona a paixão que suscita o sentimento estético, seja na sua expressão (o que é a originalidade?), seja no reconhecimento dessa expressão (o que é o gosto?). Seguidamente, como se pode medir a arte? Sendo o gosto o instrumento que permite avaliar a obra, qual a regra que orienta essa medida (qual o padrão do gosto?) Qual o objecto a medir (o que é o belo, e relativamente a que se define?). Sem modelo, desligada do ideal e reduzida ao homem e suas sensações, a arte não pode invocar a busca do verdadeiro. Recua para a área do sentimento e da emoção concebidos como puros, ou separados dos objectos de conhecimento, que anteriormente eram pertença do seu campo. Os conceitos vacilam: inspiração, génio, invenção, belo, sublime, catarse, e a própria noção da arte, do seu fim e utilidade, exigem uma redefinição de acordo com as novas perspectivas. A ideia que fica, é que esta necessidade é pressentida mas não consciente, e vai revelar-se por uma inquietação latente, tanto nos filósofos, como em críticos e nos próprios criadores, que os leva a uma preocupação particular com os problemas da arte.
7 Dossier de Pesquisa 142-143
O Sublime e o Belo – de Longino a Edmund Burke – Helena Barbas
3 FRAGMENTAÇÃO E RECONSTRUÇÃO DO CONCEITO DE SUBLIME O conceito de Sublime vai ser construído gradualmente. Para além da influência das traduções de Longino, o seu sentido demarca-se nos textos de outros autores, e está já presente nos moldes em que mais tarde virá a ser retomado tão cedo como 1684. Thomas Burnet, no seu livro The Theory of the Earth, um texto sem intenções críticas – pretende apenas historiar a criação a partir de ideia de um ovo primordial cuja casca se quebra para dar origem ao mundo presente – faz uma descrição da natureza e da impressão que esta provoca no espírito do homem: Os maiores objectos da Natureza são, penso eu, os mais agradáveis de observar; e a seguir ao grande Côncavo dos Céus, e daquelas regiões ilimitadas onde habitam as estrelas, não há nada que eu olhe com maior prazer do que o vasto Mar e as Montanhas da Terra. Há qualquer coisa de augusto e majestoso no Ar dessas coisas, que inspira a mente com pensamentos e paixões grandiosos; Naturalmente, nessas ocasiões, pensamos em Deus e na sua grandeza; e o que quer que tenha nem que seja a sombra e aparência do INFINITO, como têm todas as coisas que são demasiado grandes para a nossa compreensão, elas enchem e esmagam a mente com o seu Excesso, e lançam-na numa espécie muito agradável de assombro e admiração. [20]
O excesso do entusiasmo, a impressão na mente que é uma excitação das paixões, será um dos pontos fundamentais para John Dennis: Tem que existir uma Paixão, então, que seja distinta da Paixão vulgar, e isso tem que ser o Entusiasmo. [...] O Entusiasmo que se encontra na Poesia não é mais do que as seguintes Paixões: Admiração, Alegria, Terror, Espanto, decorrendo dos pensamentos que naturalmente os produzem. Porque a Admiração junto com aquele Orgulho, que exalta a Alma ao conceber um grande Indício, dá Elevação; a Alegria, se é grande, dá Êxtase, e o Espanto dá Veemência. [21]
Ultrapassando Longino e Boileau, antecipa já Burke no salientar da emoção violenta, e na relação que estabelece entre o terror e a ideia religiosa. Através do discurso, a poesia é ligada à paixão e ao entusiasmo (en-theos), fontes do Sublime: há ainda uma coisa mais essencial para a arte, uma coisa que eleva e espanta a fantasia, e dá uma grandeza de mente ao leitor, que poucos críticos além de Longino consideraram.[22]
Addison promove o avanço da especulação sobre as teorias literárias ao transpor os conceitos empíricos para a crítica. Seguidor de Hobbes e Locke, introduz uma alteração fundamental nas filosofias daqueles ao valorizar semanticamente o conceito de imaginação. Por um lado, considera (contra Locke) que os prazeres da imaginação (secundários) são superiores aos dos sentidos (primários); por outro, (contra Hobbes) dá predominância à imaginação no acto de conhecer. A sua tese, de que os prazeres da imaginação são puramente estéticos, torna-se clássica. É básica para as consequentes teorias do gosto e do Sublime, para a distinção entre obras da natureza e obras de arte, ajudando ainda à propagação da ideia dos sentimentos mistos (dor/prazer). No que respeita ao
8 Covid-19
Antes / Durante / Depois (Agora)
O Sublime e o Belo – de Longino a Edmund Burke – Helena Barbas
problema do Sublime, estabelece a divisão entre este e o Belo, assunto que se vai perpetuar polemicamente pela exigência de novas discriminações e precisão de termos: considera que os prazeres da imaginação nascem da observação de três qualidades específicas dos objectos, que devido a elas impressionam favoravelmente o olhar – o belo, o grande e o incomum (Essays... III). Serão estas três qualidades, externas, fixas e observáveis de grosso modo, que estão na base das justificações estéticas dos críticos ingleses posteriores. O Belo, relacionado com o decorum, a adequação, descortinado pela simpatia, e produzindo prazer; o grande, caracterizado pelo excesso, vastidão, ilimitado e magnífico, que produz terror, e fundamentará o Sublime; o incomum, a nova ideia que satisfaz a curiosidade, quebra a rotina, surpreende, e acaba por se instituir como o pitoresco. Mas em Addison o Sublime é uma qualidade externa. Com Young o termo adquire uma outra conotação de interioridade – mais próxima do original – como característica peculiar ao génio: Tinha ele uma forte Imaginação e o verdadeiro Sublime? Com isso garantido, poderíamos ter tido dois Homeros em vez de um. [23]
David Hume vai contribuir para o tratamento psicológico do tema, uma vez que equaciona quatro noções em cadeia: imaginação, simpatia, utilidade e beleza. O Belo é afectivo, indefinível, e opõe-se ao disforme numa relação de prazer/dor. Utiliza, no entanto, o termo grande por Sublime. Em 1744, John Baillie escreve um tratado, Essay on the Sublime, em que o conceito surge como uma qualidade estética. A sua é uma interpretação sensorialista, pois vai preocupar-se com a experiência dos sentidos desencadeada pelos objectos. Embora atribua ao Sublime as qualidades de vastidão e uniformidade na variedade, nega que aquele seja acompanhado por uma emoção violenta. No momento em que é publicado o texto de Edmund Burke – A Critical Enquiry into the Origin of Our Ideas of the Sublime and the Beautiful, 1757 – o sentido do termo Sublime sofreu já várias alterações desde Boileau. De estilo passou a ser uma qualidade rígida, específica de um determinado objecto passível de excitar uma experiência estética, seja na literatura, seja fora dela. Interioriza-se, seguidamente, mas não é mais a possessão do daimón, é a voz de uma sensação interna, tema próprio para um estudo psicológico a ser levado a cabo por filósofos que se interessem pela relação entre a emoção humana e o seu objecto.
4
O BELO E O SUBLIME EM EDMUND BURKE
A Critical Enquiry into the Origin of Our Ideas of the Sublime and the Beautiful (1757) de Edmund Burke poderá ser considerado como uma súmula das questões que atravessam as obras dos seus antecessores. Burke vai procurar sintetizar ordenadamente todos os problemas que se levantam em torno da percepção da arte e (embora condicionado pela filosofia que adopta) discutir o Sublime,
9 Dossier de Pesquisa 144-145
O Sublime e o Belo – de Longino a Edmund Burke – Helena Barbas
não só enquanto experiência interna, mas também a partir das qualidades exteriores, pertença dos objectos que suscitam essa emoção nos indivíduos. No prefácio à primeira edição, o autor propõese – como o termo Enquiry o indica – investigar a possibilidade de existência de uma teoria exacta das paixões humanas a partir da descoberta das suas fontes genuínas. O motivo que o conduz a tal busca é a confusão entre as noções de Belo e Sublime que impede a acuidade de um entendimento racional conclusivo. Declara, então, ser seu objectivo – a partir de uma metodologia indutiva – examinar o seguinte: 1. As paixões no próprio indivíduo; 2. A propriedade das coisas que, pela experiência, se sabe que influenciam as paixões; 3. As leis da natureza através das quais essas propriedades das coisas podem afectar os corpos e, consequentemente, excitar as paixões; Com o objectivo de encontrar regras que possam ser aplicadas às artes imitativas. Mesmo na ausência do ano de impressão (que não é o caso) este texto seria facilmente datável tanto pelos pressupostos filosóficos que o instituem, quanto pelas preocupações que lhe estão subjacentes, como exemplo acabado da inquietação teórico-literária que perpassa todo o século XVIII. A abordagem estética de Burke fundamenta-se nos modos de conhecer associacionistas. Invoca de modo claro Locke, e implicitamente Hartley. Todas as sensações têm como base uma relação de dor/prazer, que em Burke corresponde a uma contracção/descontracção muscular e dos feixes nervosos. Este autor vai, no entanto, complexificar esta posição quando advoga a existência de uma possibilidade intermédia, um grau zero do prazer ou dor: a indiferença. Critica, assim, a noção de que o prazer é a ausência de dor e vice-versa, pela introdução da ideia de prazer e dor positivos, diferentes do sentimento resultante do seu cessar ou da sua diminuição. Daqui decorre a existência de dois tipos de prazer. Um, simples, o prazer propriamente dito, ligado à ideia do Belo e de adequação; outro, mais complexo, que se define por antítese à dor, e a que chama deleite (alterando premeditadamente a respectiva carga semântica): «a sensação que acompanha a remoção da dor ou do perigo;» [24]. Este sentimento nasce da modificação da dor – é o regresso à indiferença mas com consternação, uma paixão mista de terror e surpresa; sólido, forte, de natureza severa, vai constituir a base da experiência do Sublime. Seguidamente Burke distingue as ideias básicas a todas as paixões. As primeiras, relacionadas com a causa inicial (o indivíduo), correspondem à necessidade de auto-preservação, e tem por base a dor e o perigo; são dolorosas, quando a causa afecta directamente (primárias); são deleitosas, quando existe apenas a ideia de dor e perigo (secundárias), correspondendo assim à excitação que fundamenta o Sublime. Em segundo lugar, considera as relacionadas com a causa final (a sociedade), que divide em dois grupos: as paixões do sexo (misto de amor e luxúria) cujo objecto é o Belo na mulher, e tem por fim a procriação; as da sociedade em geral, que originam o
10 Covid-19
Antes / Durante / Depois (Agora)
O Sublime e o Belo – de Longino a Edmund Burke – Helena Barbas
amor enquanto sentimento puro (desinteressado), resultante da experiência do Belo (prazer). Em terceiro lugar surge um grupo que permite a relação entre o indivíduo e o social. À cabeça vem a simpatia, a capacidade de identificação com os outros, o descentramento; ligada ao prazer, está na base das artes: É mormente por este princípio que a poesia, a pintura e as outras artes que nos afectam, fazem a transfusão das suas paixões de um peito para outro, e são muitas vezes capazes de enxertar um deleite na malvadez, na desgraça e mesmo na própria morte. [25]
Relacionada com a dor, provoca o deleite, está na base individual do Sublime, e colectiva da Catarse: pela simpatia somos afectados pela tragédia, no real, porque implica terror à distância; no fictício, porque esse terror é aumentado pelo prazer da imitação. Logo a seguir à simpatia, vem a imitação enquanto elemento que promove a aprendizagem e proporciona poder às artes. Por fim, a ambição, fonte da evolução humana, é o que permite ao homem partilhar da dignidade e importância das coisas que contempla, lhe dá a ideia de exaltação e triunfo própria do Sublime. Termina com o motivo que o levou ao estudo das paixões: Só posso julgar pobremente qualquer coisa quando a tenho que medir por nenhum outro padrão a não ser ela própria. O verdadeiro padrão das artes está ao alcance de qualquer homem; e uma observação simples das coisas mais comuns da natureza, às vezes das mais pequenas, pode lançar a luz mais verdadeira... [26]
Colocam-se aqui os problemas referidos no ponto 2, e que atravessam a obra de Edmund Burke: 1. A impossibilidade de medir algo sem um termo de comparação exterior a si; 2. A ausência de um verdadeiro padrão para as artes, logo, a falta de modelo; 3. A possibilidade de acesso a um determinado tipo de padrão por cada indivíduo: o gosto; 4. A formação do gosto a partir de uma «educação» que é observação e, logo, aumento do conhecimento pela experiência; 5. Implícita ao ponto anterior, a possibilidade de existência de um termo de comparação discernível no real; O primeiro ponto justifica que o texto de Burke seja, a seu modo, um tratado sobre as paixões: são a medida possível ao homem devido ao efeito que a arte provoca nos sentidos. A ausência de um verdadeiro padrão irá levar o autor a incluir (posteriormente, na 2ª. edição, de 1757) um capítulo introdutório sobre o gosto: essa faculdade, ou essas faculdades da mente que são afectadas com, ou que formam um julgamento sobre as obras da imaginação e as artes elegantes. [27]
Acredita que, devido à configuração comum de todos os órgãos humanos – que permite pressupor uma certa identidade entre os indivíduos quanto à percepção dos objectos externos – existe um
11 Dossier de Pesquisa 146-147
O Sublime e o Belo – de Longino a Edmund Burke – Helena Barbas
princípio básico do gosto para além das suas diversidades superficiais (qualitativas ou quantitativas) que o tornam indeterminado: Existe em todos os homens recordação suficiente das causas naturais originais do prazer, para lhes permitir medir por esse padrão todas as coisas que lhes são oferecidas aos sentidos, e por ele regulamentar os seus sentimentos e opiniões. [28]
Mesmo o gosto viciado, ou alterado pelo hábito ou pela educação, em presença de um produto novo recorre a esse padrão natural. Assim, em indivíduos saudáveis, as diferenças de gosto brotarão dos diferentes graus de conhecimento (experiências) já que, sendo natural, o gosto é comum a todos. Este gosto originário nasce do prazer proporcionado por um objecto natural, seja na satisfação de um determinado sentido (primário), seja pela percepção da semelhança que é agradável à imaginação (secundário). O gosto estético será, deste modo, uma ideia complexa que se vai constituir a partir de duas ideias simples – a resultante dos prazeres primários; a resultante dos prazeres secundários – que, pela acção da faculdade do entendimento, não só vão ser associadas entre si, mas também na sua interacção com as paixões, modos e comportamentos humanos. Este gosto será exercitado em função das suas relações com o mundo exterior. Daí que Burke procure sistematizar quais serão as qualidades dos objectos que têm em si a possibilidade de desencadear a emoção estética: «Nas partes que se seguem farei a inquirição sobre que coisas existem que causam em nós as afeições do sublime e do belo...» [29]. Começando com o Sublime, considera-se que a emoção básica a ser excitada é o espanto – a paixão que enche a mente e impede o raciocínio – mas que existirão outras de carácter secundário (talvez porque contenham já em si um elemento racional) a admiração, a reverência e o respeito. Procura, seguidamente, os modos como esse espanto pode ser suscitado nos diversos sentidos do homem. Principia com o seu aspecto visual, e afirma que o espanto resulta do terror experimentado face a um objecto (grande ou pequeno) que contenha em si a possibilidade de infligir dor ou morte. Pode, assim, ser provocado por uma alteração súbita na relação de poder, seja quando o homem descobre a sua impotência face a uma força superior que o sujeita; ou quando este experimenta a sua ignorância frente a um objecto que ultrapassa os limites da sua capacidade de entendimento, pela sugestão do ilimitado ou do infinito (obscuridade, privação, infinitude, magnificência, ou transição repentina da luz à escuridão e vice-versa). Ou seja, quando o homem é ameaçado por um objecto que o excede (em qualidade ou quantidade) e/ou a sua posição transita inesperadamente de uma situação de segurança para uma de insegurança. Tal como a vista, os outros sentidos poderão ser afectados de acordo com as suas características particulares (sons para o ouvido, etc.). Decorre que o Sublime é uma qualidade dos objectos (grandeza, vastidão, excesso) que provoca uma emoção particular e individual (terror/espanto). Porém, quando procura destrinçar o Belo do Sublime, depara-se com um problema – talvez motivado pelo facto de o Sublime ter sido por muito tempo um sinónimo de Belo: terá que discutir
12 Covid-19
Antes / Durante / Depois (Agora)
O Sublime e o Belo – de Longino a Edmund Burke – Helena Barbas
as anteriores concepções de beleza, as suas qualidades, e demarcar a sua posição relativamente a elas. Burke vai então definir o Belo: essa qualidade, ou qualidades dos corpos pelas quais eles provocam amor, ou alguma paixão idêntica. Confino esta definição às meras qualidades sensíveis das coisas. [30]
O Belo estará assim associado a um amor proveniente do material (uma situação em que o sujeito é passivo, recebe uma emoção que lhe dá prazer): Da mesma maneira distingo o amor, pelo qual quero dizer a satisfação que nasce na mente quando se contempla qualquer coisa bela, qualquer que seja a sua natureza... [31]
Um amor que, em circulo vicioso, se define pelo belo, distinto e independente da luxúria ou do desejo – a actividade do sujeito que busca uma satisfação dos sentidos: uma energia da mente que nos impulsiona para a posse de certos objectos, que não nos afectam por serem belos, mas por meios completamente diferentes.[32]
O conceito platónico em que Belo, Sublime, amor e eros se encontram de tal forma intrincados que constituem meras facetas de uma mesma unidade (Fedro, 250-253) é totalmente estilhaçado. Fragmentação tanto maior quanto o próprio amor é separado de eros, perdendo assim a sua função iniciática (recorde-se o discurso de Diotima em O Banquete, 211). Mas Burke vai mais longe ainda. A proporção, considerada como compartilhando um todo cujas componentes para além de si eram o belo e o verdadeiro (Filebo, 65a) é analisada como entidade independente, e a sua função desvirtuada por implicar um elemento de racionalidade: a ordem, que Burke considera própria da matemática, mas alheia à sensação e emoção. Porém, o alvo mais directo do último ataque não é Platão, mas Aristóteles: o belo – ser vivente ou o que quer que se componha de partes –, não só deve ter estas partes ordenadas, mas também uma grandeza que obedeça a certas condições. Porque o belo consiste na grandeza e na ordem, e portanto um organismo vivente, pequeníssimo, não poderia ser belo [...]; e também não seria belo grandíssmo... [33]
Partindo do princípio que o interesse pela proporção nasce da ideia – errada – resultante da oposição do belo e da deformidade, condena essa posição: de acordo com este princípio concluiu-se que, onde as causas da deformidade fossem removidas, a beleza deveria natural e necessariamente ser introduzida. Isto segundo creio é um erro. Porque a deformidade opõe-se, não à beleza, mas à forma comum completa. [34]
Prefere, assim, a oposição Belo/Feio sem suspeitar que o seu raciocínio – correcto – é idêntico ao dos antigos, e que a única diferença que os separa (neste ponto) é a transformação de um modelo que, de idealmente belo, passou a ser a norma-padrão de uma espécie: e como foi demonstrado quando ao humano, assim pode ser demonstrado quanto às espécies brutas, que a beleza se encontra indiferentemente em todas as
13 Dossier de Pesquisa 148-149
O Sublime e o Belo – de Longino a Edmund Burke – Helena Barbas
proporções que cada espécie pode admitir sem abandonar a sua forma comum; e é esta ideia de uma forma comum que torna necessário considerar a proporção das partes, e não a operação de qualquer causa natural. [35]
Os arquétipos são algo de remoto ao humano. Tendo perdido a sua função modelar, confundem as ideias (agora associadas por sensações) do momento, e o seu discurso acaba por induzir em erro. Talvez sem alcançar a dimensão total ou aprofundar as implicações das suas palavras, Burke sintetiza claramente o problema sem lhe descortinar a verdadeira causa: a aplicação geral desta qualidade [a beleza] à virtude alimenta uma forte tendência para confundir as nossas ideias das coisas; e tem dado origem a uma quantidade infinita de teorias excêntricas; como o atribuir o nome de beleza à proporção, congruência e perfeição, bem como a qualidades das coisas ainda mais remotas das nossas ideias delas, e umas das outras; tenderam para confundir as nossas ideias de beleza, e deixaram-nos sem padrão ou regra pela qual julgar, que não fosse ainda mais incerta e falaciosa que as nossas próprias fantasias. Portanto, esta forma de falar livre e pouco acurada tem-nos conduzido por um caminho errado tanto na teoria do gosto, quanto na moral; e induziu-nos a remover a ciência dos nossos deveres da sua base própria, (a nossa razão, as nossas relações, e as nossas necessidades,) para a deixar repousar sobre fundações completamente visionárias e não substanciais. [36]
Os antigos são acusados de se terem servido das analogias como um truque estratégico de autojustificação: O que estou capaz de suspeitar é isto: que estas analogias foram inventadas para dar crédito às obras de arte, mostrando a conformidade entre elas e as mais nobres obras da natureza, e não que as últimas tivessem servido de alguma maneira para suprir pistas para a perfeição das primeiras. E estou ainda mais convencido que os patronos da proporção transferiram as suas ideias artificiais para a natureza, e não pediram emprestado à natureza as proporções que usam na obra de arte. [37]
Uma medida ideal, abstracta (matemática e geométrica na sua origem) surge como absurda face ao real – a natureza exterior (as qualidades dos objectos) ou a natureza interior (as emoções que os objectos suscitam no indivíduo). Deste modo: A beleza é, em grande parte, uma qualidade nos corpos agindo mecanicamente sobre a mente humana pela intervenção dos sentidos. [38]
As qualidades das coisas que, a partir da experiência, excitam o amor: a pequenez, a suavidade, a delicadeza e fragilidade. Esta redução do belo a causas mecânicas vai esvaziar ainda mais o conceito. Relativizado até à sua última instância, o Belo vai também ser desligado de qualquer função de utilidade. Para Burke, o útil, a adaptação proporcional dos meios aos fins, não tem obrigatoriamente que ser belo: «há muitas coisas são muito belas nas quais é impossível discernir qualquer ideia de uso.» [39]. Por outro lado, mantém a ideia de uma adequação proporcional – um decorum – para a arte: Quando excluí a proporção e adequação de quota-parte da beleza, de modo algum pretendi dizer que não tinham qualquer valor, ou que não deveriam ser
14 Covid-19
Antes / Durante / Depois (Agora)
O Sublime e o Belo – de Longino a Edmund Burke – Helena Barbas
tidas em conta nas obras de arte. As obras de arte são a esfera do poder delas; e é aqui que adquirem o seu efeito total. [40]
Para além da diferença entre uma beleza natural, e outra artificial, Burke concebe ainda dois outros tipos de beleza. Uma, racional, resultante de um mecanismo ou estrutura coerentes, que não excita a emoção, é proporcionada e útil; a outra, emocional, resulta da aparência das superfícies, excita a paixão, tem proporção variável e é inútil. Apenas o segundo tipo se identifica com o belo artístico. Será paralelamente a este segundo género que considera a «perfeição» humana: o belo material que contem em si – à medida do seu modelo – sinais de fraqueza: tão longe está a perfeição, considerada como tal, de ser a causa da beleza; que esta qualidade, aparecendo na sua forma mais elevada no sexo feminino, quase sempre acarreta consigo uma ideia de fraqueza e imperfeição. [...] a beleza em perigo é em muito a forma de beleza mais comovente. [41]
Uma perfeição «imperfeita», a única susceptível de provocar a sensação de amor, já que a perfeição propriamente dita, enquanto supra-humana, é algo de imposto. Daí que sejam também possíveis dois tipos de virtudes: as «belas», menos dignas, menos úteis à sociedade, meramente gratificantes, incitando ao amor; e as «sublimes», que causam admiração, são correctoras e úteis ao social. A grande diferença entre Belo e Sublime decorrerá da incompatibilidade da sua presença em simultâneo no mesmo objecto, e das sensações que este possa provocar no indivíduo (dor/prazer). Esquematizando: SUBLIME
BELO Sensação Deleite (terror e prazer por perigo à distância) Prazer simples Manifestação física Tensão dos nervos e dos músculos mais forte que Descontracção muscular e nervosa o natural, alternando com contracções e Languidez descontracções convulsivas Emoção Espanto/terror (admiração, reverência e respeito) Amor (sem luxúria), desinteressado Qualidades nos objectos Grandeza (ou pequenez, com a possibilidade de Pequenez infligir dor ou morte), vastidão, ilimitado Rugosidade, negligência Macieza e polidez Linhas rectas com desvios angulares Linhas suaves, ondulatórias Obscuridade Clareza Magnificência Delicadeza Potência e solidez Fragilidade Virtudes no homem Perfeição Imperfeição, fraqueza Dignas (Justiça, sabedoria, etc.) Menos dignas (compaixão, bondade, liberalidade, etc.) Correctoras Gratificantes Úteis à sociedade Úteis ao indivíduo, «inúteis» à sociedade Oposições Odioso, medíocre, belo Feio, medíocre, sublime
15 Dossier de Pesquisa 150-151
O Sublime e o Belo – de Longino a Edmund Burke – Helena Barbas
Burke chega assim a uma sistematização das condições básicas para o suscitar da emoção estética; estabelece as diversas qualidades determináveis nos objectos, distingue o belo do sublime. Mas a sua intenção primeira é a de encontrar regras que possam ser aplicadas às artes imitativas. Edmund Burke assume explicitamente a mimesis. A partir do conceito aristotélico, declara ser a imitação o fundamento do poder de arte [42]. Na linha de Joseph Addison, interpreta este poder como um segundo prazer da imaginação, o que resulta do reconhecimento da semelhança entre o original e a cópia (entre a ideia e a coisa). Porém, quando discute a tragédia, este poder é posto em causa, suplantado pelo poder do real (dos prazeres primários) quando da hipótese de um enforcamento público: «num momento, o teatro vazio teria demonstrado a comparativa fraqueza das artes imitativas, e proclamado o triunfo da simpatia real.» [43]. Esta limitação da mimesis resultará do facto de a arte ser uma experiência dos sentidos, mas uma experiência enganosa: «Nenhuma obra de arte pode ser grande se não enganar; ser de outra maneira é apenas prerrogativa da natureza.» [44]. E a sua finalidade, criar imagens na mente, nem sempre é conseguida: De facto, a poesia, para obter o seu efeito depende tão pouco do poder de suscitar imagens sensíveis, que estou convencido que perderia considerável parte da sua energia se este fosse o resultado necessário de cada descrição. [45]
Assim, existe uma diferença entre as sensações provocadas pelas artes – umas que criam imagens das coisas na mente, outras que suscitam uma emoção sem imagem associada: todas as artes são miméticas, mas haverá umas mais (ou menos) miméticas que as outras: Na realidade a poesia e a retórica não conseguem ter tanto êxito na descrição quanto a pintura; a tarefa delas é afectar mais pela simpatia do que pela imitação; mostrar antes o efeito das coisas na mente do orador, ou dos outros, do que apresentar uma ideia clara das coisas em si. É esta a sua mais extensa província, e aquilo onde maior sucesso alcançam. [46]
Existirão, pois, e implicitamente, dois tipos de arte a par de dois tipos de natureza, interna ou externa: 1ª. SUBLIME – afecta directamente o sujeito e age nas emoções sem passar pela imaginação. Causa espanto, deleite – pelo seu excesso e obscuridade (poesia); pela sua variação na uniformidade, pelo infinito artificial (arquitectura). Relaciona-se com uma natureza grandiosa, vasta, ilimitada (mar/montanhas); 2ª. BELA – afecta o sujeito «indirectamente», resulta dos prazeres secundários da imaginação, pelo reconhecimento da semelhança que suscita o amor (pintura, escultura). Relaciona-se com uma natureza limitada e trabalhada (jardins);
16 Covid-19
Antes / Durante / Depois (Agora)
O Sublime e o Belo – de Longino a Edmund Burke – Helena Barbas
CONCLUSÃO A análise de Burke, compilada em nome da necessidade de uma regra empírica para avaliar as artes, vem a contribuir para enfermar um dos requisitos essenciais à estética empirista, o hedonístico, uma vez que acaba por recolocar tanto o problema do Belo quanto o do Sublime fora do plano mimético e naturalista. A natureza, obtendo direito de cidadania no âmbito do Sublime, virá a solicitar uma reflexão filosófica que estabeleça a mediação entre os dois valores, o que acabará por concorrer para a revisão dos fundamentos da própria estética. Lessing irá debruçar-se sobre alguns dos pontos relacionados com a interdisciplinaridade artística; Kant conhece todos os elementos da fenomenologia de Burke, e irá «corrigi-lo» e completá-lo, renovando e reorganizando as distinções deste empirista inglês dentro das coordenadas do seu transcendentalismo. Não se falou aqui de Portugal, porque fica alheio e alheado a toda esta problemática – conservam-se em vigor as regras da antiguidade, mantém-se a tradição escolástica servindo sob o inabalável pontificado de Horácio. Dom Francisco Xavier de Meneses (1673-1743), 4º. Conde da Ericeira, traduz a Arte Poética de Boileau, em verso [47], numa edição bilingue por volta de 1697, elogiada pelo próprio Boileau (que não sabia português), e que vai ser editada em livro em 1818. Cândido Lusitano, aliás o Padre Francisco José Freire (1719-1773), tradutor da Epístola de Horácio (1758), escreve uma Arte Poética (1748) em três volumes com segunda edição em 1759 [48], decididamente clássica. O Padre Custódio José de Oliveira (?-1812) publica a primeira tradução portuguesa de Longino com o título O Tratado do Sublime [49] tão tarde quanto 1771, com a curiosidade de utilizar a terminologia da velha retórica, o vocabulário da medida, da proporção e do decorum para dizer um excesso que ultrapassa o seu entendimento. H.B., 7 de Novembro de 2002, revisto em 11 de Junho de 2006
17 Dossier de Pesquisa 152-153
19. Fases de Isolamento. JoĂŁo Carlos Covid-19
Antes / Durante / Depois (Agora)
Fases de Isolamento por João Carlos O surto de Covid-19 mudou a vida de todos nós. Abandonámos as ruas, saímos das lojas e começámos a trabalhar a partir de casa. Os aviões foram obrigados a ficar em terra, os restaurantes e as lojas foram fechados e os governos ordenaram aos seus cidadãos que ficassem em casa, em quarentena e com distanciamento social para abrandar a propagação do vírus. Isto foi muito claro. O que não ficou claro foi o profundo impacto que isto teria na saúde mental. O corte maciço e repentino das interações pessoais deu início a emoções significativas e intensas ao longo das semanas e meses que se seguiram. Esta exposição é a interpretação de João Carlos sobre as várias fases de isolamento e respetivas emoções. Semana Um: Ajuste e ansiedade. Um período de adaptação ao ficar e trabalhar em casa 24 horas por dia, 7 dias por semana. O medo é evidente e a incerteza é abundante, os quais levam ao aumento dos níveis de ansiedade. Semana Dois: Tédio e frustração. À medida que as pessoas lidam com um mundo totalmente alterado, sentimentos de desespero, perda, frustração e até mesmo tédio podem se instalar. A vida voltará ao normal? Semana Três e Quatro: Raiva e paranóia. À medida que a curva se torna mais plana a realidade de um cenário pior torna-se distante. As pessoas começam a questionar se a pandemia é uma farsa, se as medidas foram demasiado drásticas e criticam os seus líderes políticos. As pessoas começam a manifestar exteriormente a sua raiva, exigindo os seus direitos e saem às ruas para marchar pacificamente ou destruir propriedades. Semana Cinco: Aceitação e adaptação. As pessoas começam a aceitar o seu "novo" modo de vida, que agora inclui máscaras, desinfetante de mãos, distanciamento de 2 metros e que exclui grandes encontros, abraços e beijos. Embora alguns possam achar fácil gerir as suas emoções e adaptar-se, outros ainda podem sofrer silenciosamente sob uma imagem externa de aceitação. Série de fotografias premiada por: IPA – Internacional Photography Awards e PX3 – The Prix de La Photography, Paris. Impresso por Koy Lab
Dossier de Pesquisa 154-155
20. O Banquete. Platão
Este clássico de Platão, composto por volta do ano 384 a.C., constitui-se como a primeira obra literáriofilosófica de um conjunto onde se pensa e discute em torno da mesa, entre amigos, organizado inicialmente para celebrar uma vitória de Ágaton, o anfitrião, nas festas Leneias. Sócrates, Xenofonte, Aristodemo, Erixímaco e outros conversam sobre assuntos corriqueiros, mas sobretudo, o amor e o Belo. «O enredo da discussão sobre Eros no Banquete é um dos fundamentos da cultura ocidental, que, mesmo temperada pelo elemento judaico‑cristão, em muitos aspectos mais oriental, permanece assente no solo greco‑latino. A intervenção de Sócrates (e, sejamos justos, de todos os outros convivas) interpretando Eros como uma relação, uma carência, um desejo, entrou no discurso sobre o amor, que é um dos discursos com maior continuidade da nossa história cultural e filosófica, e chegou mesmo à mais vulgar conversação e escrita. Hoje, dir‑se‑ia ser viral, se esta expressão não retratasse mais a ignorância do que o saber, embora talvez Sócrates, que gostava da fama, não se importasse. O modo como o diálogo nos chega na tradução de Maria Mafalda Viana justifica a
Covid-19
Antes / Durante / Depois (Agora)
frase proverbial ‘primeiro estranha‑se e depois entranha‑se’, porque se percebe que esta tradução do original nos dá um Banquete muito diferente daquele que conhecia. Mais estranho, mais complexo, mais grego. E, por isso, novo.» — Prefácio, José Pacheco Pereira Platão terá nascido em 428 a.C., em Atenas, cidade onde também morreu, provavelmente em 348 a.C. Uma das mais relevantes figuras do período clássico da Grécia Antiga, foi filósofo e matemático, autor de diversos diálogos filosóficos e fundador da Academia, em Atenas, a primeira instituição de educação superior do mundo ocidental. Juntamente com o seu mentor, Sócrates, e o seu discípulo, Aristóteles, Platão lançou os alicerces da filosofia ocidental. Entre as suas obras mais relevantes, além de O Banquete, contam-se República, Fédon, Górgias, Íon ou Apologia de Sócrates.
21. Os sonhos da razĂŁo. Alberto Manguel
Dossier de Pesquisa 156-157
Tema Visitei, também, uma exposição de fotografia patente na galeria de arte do Campo Pequeno, intitulada “Fases de Isolamento”, e onde são retratadas de forma muito clara as diferentes emoções provocadas pelas diferentes fases da pandemia, de forma cronológica e organizada, e uma exposição do Centro Português de Serigrafia, patente na Biblioteca Nacional, “O Tempo das Imagens”. Em termos de leitura, acerca do campo em questão, fiz a leitura do artigo “Os Sonhos da Razão”, de Alberto Manguel e do texto acerca do sublime e do belo, de Helena Barbas, entre outros.
22. Botticelli - Inferno. Ralph Loop
23. O Triunfo da Morte. Pieter Bruegel
Covid-19
Antes / Durante / Depois (Agora)
24. Dar Corpo ao Vazio. Cristina AtaĂde Dossier de Pesquisa 158-159
25. A Minha Obra e Eu - Cristina Ataíde. Museu Coleção Berardo
Covid-19
Antes / Durante / Depois (Agora)
26. Dissonâncias. Museu Nacional de Arte Contemporânea do Chiado
27. The Decameron. Paolo Pasolini
Dossier de Pesquisa 160-161
ANUÁRIO DE LITERATURA UMBRAL De peste e literatura: imagens do Decameron de Giovanni Boccaccio Karine Simoni[1]
RESUMO: O século XIV conheceu uma das maiores tragédias já vividas pela humanidade: a Peste Negra, que assolou a Europa a partir de 1348 com uma intensidade jamais vista e deixou profundas marcas que influenciaram os séculos posteriores. Esse acontecimento foi narrado por Giovanni Boccaccio na sua obra Decameron. O presente estudo pretende fazer algumas considerações a respeito da relação entre a peste e o texto de Boccaccio. PALAVRAS-CHAVE: Peste Negra, Decameron, grotesco e sublime. ABSTRACT: The XIV century knew one of the biggest tragedies that the humanity already lived: the Black Pest, that haunted the whole Europe after 1348 with an intensity that had not sight yet and leaved deep signs that influenced the subsequent centuries. That happening was narrated by Giovanni Boccaccio in his Decameron production. This study intends to make some considerations about the relation between the Pest and Boccaccio’s text. KEYWORDS: Black Pest, Decameron, grotesque and sublime. O período conhecido como Idade Média tem recebido uma atenção cada vez maior nos campos de conhecimento da História e da Literatura. O fértil diálogo que há algumas décadas ocupa os historiadores da Idade Média e os historiadores da literatura medieval tem desvelado, acima de tudo, que não existe o medievo, mas sim um período caracterizado pela pluralidade, alternado por ciclos de crescimento e decadência econômica, com conseqüentes variações sociais e culturais[2]. Assim, ao invés de sociedade medieval, é mais condizente falar de sociedades que se seguiram no tempo. Elemento comum a essas sociedades era a busca pelo sagrado. De fato, para o homem medieval, o mundo, a natureza e o corpo humano eram vistos como tal, e tudo o que dizia respeito ao sobrenatural e ao extraordinário causava fascínio. Esse fenômeno psicossocial é típico das sociedades agrárias, pré-industriais, muito dependentes da natureza e, portanto, à mercê de forças desconhecidas e incontroláveis. Com efeito, não por acaso o homem medieval viveu sob a égide da fragilidade. Para a grande maioria, as condições de sobrevivência eram precárias, submetidas aos imprevistos do meio ambiente. Assim, uma única catástrofe poderia ser superada, mas a junção de várias calamidades desencadeava o fim de um equilíbrio que dificilmente seria restabelecido. É o que observamos no início do século XIV. Em oposição ao crescimento econômico e à tranqüilidade do século XIII, já na aurora do século XIV as más colheitas, provocadas principalmente pelos constantes períodos de chuva, não foram suficientes para alimentar a população, que havia crescido em relação ao século anterior. A baixa produtividade, a queda nos preços agrícolas, as epidemias, a miséria, as guerras e os
Anuário de Literatura, ISSN 1414-5235, Florianópolis p. 31-40 , 2007
Covid-19
Antes / Durante / Depois (Agora)
31
conflitos sociais fizeram do período entre 1320 e 1450 uma “idade de chumbo”[3]. Agravando essa situação, registrou-se também a chegada de uma terrificante epidemia — a Peste Negra —, que não apenas provocou com a sua passagem milhares de vítimas, mas permaneceu endêmica, reaparecendo periodicamente por todo o século seguinte. O flagelo serviu também como pano de fundo para uma das mais importantes obras da literatura italiana e universal: o Decameron, de Giovanni Boccaccio (1313–1375). Pode-se adiantar que essa obra é considerada pela crítica um dos exemplos mais representativos do choque e da síntese de valores morais e sociais ocorridos no “outono” da Idade Média, quando os últimos vestígios das concepções teocráticas e feudalistas se viram suplantados pelo Humanismo e pelo apogeu da burguesia mercantilista. O objetivo deste estudo é fazer algumas considerações sobre a peste no Decameron. A primeira parte do artigo delineará uma breve contextualização do surgimento e do desenvolvimento da Peste Negra, para em seguida analisar como o flagelo foi apresentado por Boccaccio, ao passo que a segunda parte apresentará a quarta e a quinta jornada do Decameron, com o objetivo de tecer algumas discussões sobre o grotesco e o sublime. Do trágico 1348 ao nascimento do Decameron A Peste Negra, ou Morte Negra, era assim chamada porque no seu desenvolvimento provocava hemorragias subcutâneas, que assumiam uma coloração escura no momento terminal da doença. A morte dava-se entre três e sete dias, depois de contraída a patologia, e levava de 75 a 100% dos acometidos. O bacilo causador da peste era transmitido pelo ar e pelo rato, por meio das pulgas. A penetração do bacilo na pele humana causava uma adenite aguda, que recebia o nome de “bubão”, principal sintoma da doença. Daí também o nome de peste bubônica. A epidemia que começou a devastar a Europa por volta de 1340 surgiu na Ásia Central e se difundiu a partir de uma feitoria genovesa na Criméia, quando um navio contaminado passou por esse porto. No inverno de 1347-1348, a peste assolou a Toscana e a Provença; atingiu Bordeaux, os portos ingleses, Londres e Paris, progredindo de 30 a 130 km por mês. Depois de acometer as regiões germânicas e escandinavas, desapareceu nas tundras da Rússia Central, em 1352. É impossível determinar quantos foram os mortos, mas acreditase que em quatro anos a doença tenha ceifado cerca de 25 milhões de vidas humanas, quase um quarto da população do mundo ocidental. A Itália foi o país onde a peste se manifestou com maior violência, deixando sinais e conseqüências que fizeram sentir o seu peso também nos séculos sucessivos, tanto que alguns historiadores lançaram a proposta de fixar o ano de 1348 como a data simbólica do final do medievo[4]. Mesmo que não tenha atingido uniforme e simultaneamente os países europeus, a peste de 1348 encontrou a Europa enfraquecida pela desnutrição que um excesso de chuvas e más colheitas sucessivas haviam causado. Instalou-se o caos: sem distinção social, todos se tornaram vulneráveis aos efeitos da epidemia. A verdadeira causa da doença era ignorada, o que tornava impossível a prevenção e a cura, e continuaria a ser até 1894, quando o bacilo da peste foi isolado pelo francês Alexandre Yersin[5]. Os governos procuraram remediar a expansão do problema, mas as medidas eram dificultadas pela falta de higiene, população desnutrida e medicina pouco desenvolvida. As casas dos acometidos eram trancadas, mas freqüentemente eram deixadas no mesmo espaço pessoas sadias e doentes. Muitos procuraram parar o avanço da morte queimando louro, pinus, folhas de limoeiro e outras, para vencer o odor dos cadáveres deixados ao longo das estradas. Alguns se propunham a queimar os pertences dos mortos, e talvez fosse essa a única medida verdadeiramente eficaz para combater a difusão da peste. Claramente, para os
Anuário de Literatura, ISSN 1414-5235, Florianópolis p. 31-40 , 2007
32
Dossier de Pesquisa 162-163
vivos, o isolamento era a melhor arma. Os mais abastados deixavam as cidades e se dirigiam para o campo para evitar o contágio. A peste era conhecida desde a Antigüidade. Segundo os médicos daquele período, para evitar o contágio era preciso praticar a castidade, manter a sobriedade e a alegria, não dormir durante o dia, não permanecer excessivamente em lugares abertos, evitar a fadiga, manter as casas limpas e perfumadas com ervas aromáticas, comer alimentos substanciosos e de fácil digestão, beber vinhos brancos e claros. Na Idade Média, a medicina, seguindo a tradição hipocrática, atribuía a origem das epidemias às condições climáticas, à influência dos astros e aos castigos de Deus[6]. As narrativas, sobretudo eclesiásticas, utilizavam o flagelo para indicar que o poder divino não vacilava em castigar os pecados humanos por meio de acontecimentos como catástrofes e doenças, instigando assim a penitência. Daí a importância, para a prevenção da doença, de seguir à risca os ensinamentos da Igreja. Mas quando o infortúnio da peste chegou, qual foi a reação, ou melhor, as reações dos homens? As respostas tenderiam a se multiplicar, mas em primeiro lugar é possível notar um sentimento de impotência. No século XIV, essa sensação se mostrou ainda mais forte porque aos flagelos somaram-se intensas mudanças econômicas e sociais, como o aumento da população e a crise econômica, a fortificação das monarquias e a desestruturação das antigas estruturas feudais[7]. Surgiram novos valores, quebraram-se velhas referências, hábitos antigos desapareceram e trouxeram um profundo desalento. Não raras vezes as pessoas encontravam na fuga o meio para driblar o medo e a aflição. No caso da Peste Negra, surgiram reações visivelmente contraditórias, “da clausura à fuga, passando pela ruptura das estruturas comuns de sociabilidade e pelo apetite de prazeres imediatos, extravasados na devassidão ou numa rápida progressão da nupcialidade[8]”. Era freqüente também a busca por bodes expiatórios, como foi o caso da matança de judeus em Toulon, a partir de 1348. Antes disso, na Itália de 1260, explodiu um movimento milenarista, impulsionado pela culpabilidade coletiva de um erro que deveria ser punido em massa[9]. Mais tarde, em toda a Europa, a revolta manifestou-se contra supostos feiticeiros e bruxas. Sem dúvida, a realidade da peste patrocinou uma mudança de comportamento levada por uma “cultura da morte”, que pode ser percebida no sentimento da igualdade de todos diante da morte, na reprodução artística de corpos em estado de putrefação, na propagação de imagens de mártires como Santa Catarina e Santa Ágata[10]. As mostras de penitência, como o grande e repetitivo número de missas, seguramente são indícios de toda a angústia vivida. O medo, o sofrimento e a dramaticidade emergiram também nas narrativas dos cronistas da época. Assim, pode-se afirmar que o fatídico 1348 não apenas determinou mudanças radicais no aspecto das cidades ou no patrimônio dos sobreviventes, mas mudou também o modo de pensar do ser humano. O medo e a incerteza do amanhã, justificados pelo caráter imprevisível e letal da doença, determinaram um embrutecimento dos costumes: sentimentos como o respeito e a compaixão foram sendo substituídos pelo egoísmo e pelo temor. Mas, por outro lado, difundiu-se também o gosto pelo luxo e pelo divertimento, nascido pelo fato de que a peste evidenciara de modo dramático a incerteza do amanhã. No lugar da preocupação com o futuro, com novas atividades produtivas ou com a educação dos filhos, o patrimônio passou a ser utilizado essencialmente para a satisfação do prazer pessoal. A nova realidade que se apresentava possibilitou também uma maior reflexão sobre a posição de Deus frente ao homem e a do homem frente a Deus e à sociedade. Ou seja, diante de sua crítica realidade de fome e peste, o homem passou a contestar o que a Igreja
Anuário de Literatura, ISSN 1414-5235, Florianópolis p. 31-40 , 2007
Covid-19
Antes / Durante / Depois (Agora)
33
legitimava como status quo — a idéia de que a sociedade havia sido organizada por Deus — desencadeando, então, uma crise na instituição. A idéia do poder infinito de Deus e de sua capacidade de operar milagres começou a enfraquecer na medida em que as preces não eram atendidas e que muitos piedosos eram atingidos da mesma forma que os menos religiosos. Outro fator que colaborou para a oposição à Igreja foi a postura desta contra o lucro. A propósito, foi justamente o mercantilismo, presente principalmente na Itália, que permitiu o desenvolvimento da classe burguesa, grande financiadora dos movimentos artísticos e literários. Nesse contexto, o próprio Boccaccio consolidou-se como um representante dessa nova classe. Filho de um mercador, ele chegou a trabalhar como banqueiro na companhia do seu pai, percorrendo ainda na juventude as principais vias do trânsito europeu, entre Florença, Nápoles e Paris. E foi justamente a partir dessas experiências que Boccaccio aderiu plenamente à vida terrena e construiu a vasta galeria de personagens da sua obraprima: o rico e o pobre, o nobre e o plebeu, o sábio e o ignorante, o esperto e o tolo. Todos fazem parte do mundo e por isso são dignos do respeito do artista. O Decameron: estrutura, temas e personagens Boccaccio escreveu a sua obra prima Decameron (do grego: dez dias), entre 1348 e 1353, no auge da Peste Negra em Florença[11]. O Decameron constitui-se numa coleção de novelas, relatadas por um grupo de dez jovens - três rapazes e sete moças — fugitivos da peste. Isolados em um castelo, os jovens passam dias de divertimentos campestres, conversas, jogos, jantares e danças. Todos os dias da semana (com exceção de sexta e do sábado, por respeito às conveniências religiosas), cada um conta uma história, com tema livre, decidido na véspera. Assim, em dez dias narram-se 100 histórias com variados temas, que atendem a uma progressão. O narrador de Boccaccio institui a composição interna; a sua função é apresentar o narrador-protagonista de cada dia, a ordem de apresentação das novelas, o cenário. Cada relato é concluído com uma balada. A língua se aproxima ao florentino vulgar, segundo as intenções do autor, que recorre também a latinismos, provincianismos e neologismos. Os personagens do Decameron têm nomes alusivos: Panfilo é o amante fortunado, Lauretta é a ciumenta, Filostrato é o homem que sofre por amor, e assim por diante. Os assuntos são de caráter diverso: por exemplo, na segunda jornada são relatadas aventuras com um final feliz, na quarta são tratados os amores infelizes, a quinta é dedicada à felicidade que premia os amantes depois de superarem algumas dificuldades. Mas os temas não são apenas sentimentais, como se pode observar na oitava jornada, em que são narradas brincadeiras e blefes. Nesses contos se alternam numerosos personagens de variada extração social — aristocratas, comerciantes, camponeses, pessoas do povo, leigos ou religiosos de todas as idades, nobres e desonestos, amantes engenhosos e homens pobres de espírito, mulheres perfeitas e figuras femininas suspeitas, personagens históricos e de invenção. É um universo inspirado principalmente na realidade toscana e florentina, ainda que alguns episódios sejam ambientados em Nápoles ou em outros países. O Decameron teve uma difusão imediata em toda a Europa, como se pode observar pelo grande número de traduções e imitações que surgiram ainda no período[12]. Gramáticos do século XVI louvaram a obra como modelo de estilo; suspeita e censura vieram dos ambientes católicos. No século XIX, a crítica romântica reivindicou o valor humano e a variedade de motivos presentes na obra; em particular é notável a leitura de De Sanctis que comparou a “comédia humana” de Boccaccio à “comédia divina” de Dante Alighieri. Para De Sanctis, o Decameron “parece responder a alguma coisa que queria, por
Anuário de Literatura, ISSN 1414-5235, Florianópolis p. 31-40 , 2007
34
Dossier de Pesquisa 164-165
longo tempo, sair fora das almas, parece dizer em voz alta aquilo que todos diziam em segredo... Boccaccio foi, portanto, a voz literária de um mundo, o qual já estava confusamente advertido pela consciência”[13]. Na commedia umana, os personagens e os acontecimentos estão radicados na terra, e nela o transcendente, motivo caro ao medievo e a Dante, não consegue adentrar. De fato, o Decameron apresenta uma nova idéia da condição humana, não mais guiado exclusivamente pela graça divina, mas responsável pelo próprio destino, uma idéia que antecipa a concepção antropocêntrica que seria melhor elaborada pelos humanistas. A Introdução da obra compõe a moldura que envolve as novelas – a peste em Florença no ano de 1348. Logo no início, o autor explica que é necessário relatar a situação em que aconteceram os fatos que se prontifica a narrar, porque apenas aqueles que superarem a leitura desagradável sobre a peste terão como recompensa a leitura capaz de trazer o deleite. Assim, ele começa a sua narrativa: Digo portanto que já eram os anos da frutífera Encarnação do Filho de Deus ao número de 1348, quando, na ilustre cidade de Florença, cuja nobreza supera a de qualquer outra da Itália, sobreveio a mortífera pestilência, a qual, ou por obra de corpos superiores ou por obra das nossas iniqüidades pela justa ira divina mandada à nossa correção sobre os mortais, alguns anos antes nas partes orientais começada (...), e pelo Ocidente miseravelmente se tinha ampliado. (...) Os homens se evitavam (...) parentes se distanciavam, irmão era esquecido por irmão, muitas vezes o marido pela mulher; ah, e o que é pior e difícil de acreditar, houve pais e mães que abandonaram os filhos à sua sorte, sem cuidar deles e visitá-los, como se fossem estranhos.[14] No relato de Boccaccio, ainda hoje uma das principais fontes para o estudo da peste de 1348, a exposição da morbidez se alterna entre momentos de maior tensão e crueldade e momentos mais maliciosos, nos quais surge uma impressão de desgosto pelo senso de putrefação da vida, pelo desmoronamento das leis sociais, pela dissolução de toda possibilidade de bem-estar e de felicidade humana. Com extrema habilidade — de escritor a descrição mistura tanto acontecimentos realísticos como sugestões literárias — o autor (re)cria uma atmosfera opressora, um espetáculo de desolação. Mas ele também mostra que, diante de um cenário apocalíptico como aquele criado pela peste, a reação de grande parte das pessoas, paradoxalmente, não foi deprimir-se e rezar pretendendo expiar os próprios pecados. Pelo contrário, depois de uma primeira fase de desespero e desordem, enquanto alguns procuravam seguir uma existência de bons costumes e evitar o contato com outras pessoas para fugir da doença, outros de opinião contrária, afirmavam o beber e o gozar, e o caminhar cantando e procurando satisfazer o apetite com cada coisa que se pudesse rir e blefar, e assim como diziam colocavam em ação o seu poder, o dia e a noite indo de uma taverna a outra, bebendo sem modos e sem medida (...), somente coisas que lhes fossem em grado ou lhes dessem prazer[15]. Uma e outra situação, a do horror e a do prazer, têm em comum o fato de que duas estarem fora da normalidade. Analisando de um modo mais preciso, é possível destacar que, historicamente, a degeneração dos costumes já tinha sido iniciada antes da epidemia, mas foi esse evento que provocou o crescimento do gosto pelo luxo[16]. Depois do grande medo, reinava o desejo de se divertir, devido também à possibilidade de desfrutar dos bens deixados por aqueles cujas vidas haviam sido ceifadas pela doença. A peste, segundo Boccaccio, apaga qualquer ordem social e civil, anula os freios morais e abate a autoridade
Anuário de Literatura, ISSN 1414-5235, Florianópolis p. 31-40 , 2007
Covid-19
Antes / Durante / Depois (Agora)
35
das leis humanas e divinas[17]. O autor analisa o fenômeno como um momento de transgressão e destruição das normas e dos valores sobre os quais se dava a convivência social. A peste deixa em crise a regra do trabalho, pois os camponeses consomem ao invés de produzir; o senso de propriedade, uma vez que os homens abandonam os cuidados dos seus próprios bens e se sentem todos autorizados a usar os dos outros; a autoridade das leis, pois voltam a valer as relações baseadas na força e no poder individual; a família, porque muitas vezes, diante do medo da morte, as obrigações determinadas pelas ligações de parentesco não são mais vistas como vínculo; a moralidade, no seu aspecto exterior de “decência”, pois mulheres jovens, belas e nobres estão dispostas a se deixarem aos cuidados de homens de qualquer idade e condição social. Por outro lado, é justamente a desorganização do mundo que aproxima os jovens protagonistas e os impulsiona à solidariedade. Dessa forma, o relato da peste não tem um fim em si mesmo, mas é complementar a um projeto de vida no qual seja possível vencer o problema. A tal situação de destruição e morte, os protagonistas contrapõem uma existência fundada sobre o princípio do prazer. Sobre essa relação de complementaridade, onde estão as duas situações, Boccaccio insiste nas linhas iniciais: um lugar “belíssimo e muito agradável” não poderia ser atingido se não atravessando uma “montanha áspera e íngreme”; à “desolação” seguiriam “a doçura e o prazer”[18]. Em outras palavras, Boccaccio afirma que não teria sido possível imaginar a prazerosa convivência dos personagens-narradores, nem transgredir as convenções sociais e morais comumente aceitas, sem essa passagem do mundo horrendo e grotesco da realidade para o mundo sublime da fantasia, que poderia ser atingido através da fuga simbólica daquela sociedade. É também a pestilenta mortalidade que legitima a irreverência dos motivos cômicos e grotescos, largamente presentes em todas as novelas, apresentados como reações naturais e meios essenciais para vencer o medo da morte. O grupo de jovens que se encontra na Igreja de Santa Maria Novella, em Florença, é assim caracterizado: as mulheres são definidas como de sangue nobre, bonitas de forma e ornamentadas com belos vestidos, enquanto os jovens, ligados às mulheres por relações de amor ou de parentesco, são agradáveis, têm servos em bom número e ricas propriedades no campo, símbolos de status na época. Trata-se de personagens criados segundo a convenção cortês: de boa condição econômico-social e de educação exemplar. A proposta de vida do grupo é o abandono da cidade e a adoção de novas regras, que compreendem a festa, a alegria e o prazer. Assim, Pampinea expõe o projeto de uma nova sociedade, que não é, porém, a representação daquela existente em circunstâncias normais – daí porque essa sociedade não pode ser mais que provisória, pois durará até que se veja “que final o céu reserva a essas coisas”[19]. Também é um lugar separado, porque subsiste apenas em um espaço isolado do mundo externo. Por fim, é preciso destacar que o Decameron constitui-se numa grande pintura da sociedade italiana, e particularmente florentina, do século. XIV. Na obra, é significativa a constatação de que a humanidade se destaca cada vez mais da idéia do além e é orientada a valorizar a vida terrena e a obra do homem, para a qual reivindica a autonomia de toda interferência de natureza celeste. A qualidade humana mais relevante e exaltada é a inteligência, como a novela de Sir Ciappelletto, que, após ter sido um grande bandido durante toda a vida, na hora da morte convence o confessor de que é um santo (e como tal será venerado em toda a cidade). Ao narrar essa história, Boccaccio se diverte e se compadece com o protagonista; não se escandaliza, porque o mundo caminha nesse sentido. O amor é o outro aspecto dominante da vida do ser humano, qualquer que seja a sua
Anuário de Literatura, ISSN 1414-5235, Florianópolis p. 31-40 , 2007
36
Dossier de Pesquisa 166-167
natureza, platônico e sensual, sereno e agitado, marcado por uma trágica fidelidade ou por uma infidelidade comicamente desgostosa. Esses e outros aspectos da existência humana são abordados por Boccaccio em acontecimentos e personagens concretos, descritos com análises minuciosas ou simplesmente esboçados, mas sempre com uma excepcional esperteza psicológica. Para ilustrar melhor essa questão, passemos à análise de duas jornadas. Amores infelizes e amores venturosos: um olhar sobre o grotesco e o sublime na quarta e a quinta jornada Victor Hugo, no seu conhecido Prefácio de Cromwell, aponta a obra romântica como sendo aquela na qual coexistem os antagônicos grotesco e sublime. Não é uma simples oposição — a existência de ambos em uma única obra não indica um binômio, já que eles não podem ser separados em dois universos estáticos. Segundo Victor Hugo, é justamente a união entre o grotesco e o sublime que permite uma infinidade de formas e possibilidades de criação artística, em contraposição ao simplismo dos Antigos[20]. Mas, antes de examinar o grotesco e o sublime no Decameron, é preciso destacar que as categorias criadas pelo pensador e poeta francês em 1827 serão utilizadas com as devidas restrições, respeitando a distância temporal e geográfica entre os dois autores. A quarta jornada, presidida pelo rei Filostrato, apresenta em vários momentos um cenário de horror e violência. É o dia em que se contam histórias de amor que não tiveram um final feliz, mas algumas cenas, extremamente grotescas, poderiam lembrar as tragédias gregas As bacantes ou Medéia. Como exemplo, pode-se destacar a narrativa de Fiammetta: Tancredo, príncipe de Salerno, que mata o amante da filha e envia a ela o coração dele, numa taça de ouro. A moça coloca água envenenada na taça, bebe e morre. Elisa, a quarta a apresentar a sua história, conta que, contrariando a fé jurada pelo Rei Guilherme, Gerbino combate contra um navio do rei da Tunísia, para retirar a filha dele. A moça é assassinada pelos marujos do navio, os quais, por sua vez, são mortos por Gerbino, que depois é decapitado. Filomena narra como os irmãos de Lisabetta mataram o seu amante. O morto surge-lhe em sonho e indica-lhe o lugar onde está enterrado. A jovem desenterra a cabeça do amante, coloca-a num vaso e sobre esse passa a chorar diariamente. Mas os irmãos retiram-lhe o vaso e ela morre de pesar. Na nona novela, Filostrato conta a história de Guilherme Rossilhão, que oferece à sua esposa, como alimento, o coração de Guardastagno, por ele morto e por ela amado. A mulher toma conhecimento do fato e jogase de uma alta janela, sendo em seguida enterrada com o seu amante. Conforme os exemplos citados, na quarta jornada versam sobre um conteúdo por vezes horrendo e tenebroso que suscita piedade pelo infeliz desfecho dos acontecimentos. São amores desafortunados, embora nem sempre o final das novelas dessa jornada seja trágico: é o caso da segunda e da décima novelas, que são estruturadas de modo cômico e aliviam as mórbidas histórias. Essa mistura de trágico e cômico dá a adaptação ao realismo burguês presente na obra. Já na quinta jornada, regida por Fiammetta, as narrativas felizes aproximam-se ao sublime. As cenas grotescas, asquerosas e violentas da jornada precedente são substituídas pela leveza das histórias de amor com final feliz. Podemos dar como exemplo duas novelas. Na segunda, Emília narra a história de Constança. Martuccio Gomito, rapaz pobre, ama a jovem, mas não pode desposá-la. Tenta, então enriquecer, mas perde tudo num assalto. Acreditando-o morto, Constança lança-se ao mar, indo parar na Tunísia, onde reencontra o amado, que ali fizera fortuna aconselhando o rei. Casam-se e, ricos, voltam para a terra natal, Lípari.
Anuário de Literatura, ISSN 1414-5235, Florianópolis p. 31-40 , 2007
Covid-19
Antes / Durante / Depois (Agora)
37
Outra novela, destacada aleatoriamente, é a sexta. Narrada por Pampinea, é a história de Gianni di Procida, que ama a jovem Restituta, raptada por sicilianos e levada como presente ao rei Frederico. Gianni sai para procurá-la e a encontra num dos jardins do rei. Entregam-se ardentemente, adormecendo. O rei flagra os jovens e ordena que os dois, nus, fossem amarrados um de costas para o outro, na praça pública de Palermo, para serem queimados. Por intermédio de um almirante, que reconhece Gianni, o rei volta atrás e não apenas liberta os dois, como os compensa pela humilhação. Nas novelas da quinta jornada, podemos claramente perceber o objeto da paixão de Boccaccio: a condição humana. Dele representa os dotes e a capacidade de saber viver em confronto com as principais forças que movem a humanidade: o amor, a esperteza, a sorte. Em uma dimensão terrena e laica, os homens e as mulheres ignoram o drama do pecado e se transformam em artífices responsáveis pela própria vida apenas diante de si mesmos, não mais defronte a Deus. Agem impulsionados pelo amor que, seja como pura e simples paixão carnal, seja como elevado sentimento, é legitimado, e não mais demonizado, por ser força natural e terrena. A sua guia é a inteligência, entendida como sábia, pronta, enérgica e sagaz capacidade e vontade de dominar a si mesmo e a realidade, de agir e reagir, ainda que apenas com palavras, em qualquer imprevisível ou casual circunstância que surpreende a vida. As histórias se configuram terrenas e humanas em relação à celeste, sobrenatural e providencial, próprias da tradição cultural medieval e dantesca. Quando Vitor Hugo propôs a abolição dos limites entre a tragédia e a comédia, uma responsável pelas “abstrações de crime, de heroísmo e de virtude”, outra pelas “abstrações de vícios, de ridículos”[21], acentuou também que apenas a mistura entre esses dois gêneros poderia representar o Homem moderno em toda a sua plenitude. Não teria Boccaccio, com a mistura entre a tragédia e a comédia nas suas novelas, proposto já uma abolição dessas regras? Certamente não será possível, no espaço de um simples artigo que primou mais pela forma descritiva do que pelas envergaduras da teoria, apontar conclusões, que certamente seriam precipitadas. Somente um estudo mais aprofundado permitirá que essas possíveis hipóteses sejam ou não confirmadas. Palavras finais Boccaccio descreve uma situação realmente ocorrida — a peste — para representar um modelo de vida específico, ainda que durasse um curto espaço de tempo. Assim, observando a dramática realidade, ele procura a verossimilhança, para ao mesmo tempo representar uma sociedade ideal, que poderia existir apenas na ficção. Na introdução do Decameron, os dois temas — peste e vida de festa e de alegria — estão presentes e sugerem comportamentos estilísticos diversos: Boccaccio fala da peste nos modelos adequados à narração de acontecimentos recentes, ligados a um ambiente específico — a cidade de Florença, representando, ao invés disso, a “festa” como uma utopia ou um modelo estilizado, que retoma as características da literatura cortês. O desenho dessa utopia revela também o pensamento de Boccaccio e a sua cautela: a liberdade da festa é provisória, pode ser imaginada apenas em um lugar não-real e é limitada a um grupo social privilegiado.o Decameron “a vida sobe até a superfície e se alisa e se embeleza. O mundo do espírito vai: vem o mundo da natureza”[22]. A inteira vida, a inteira “humana comédia”, sem exclusões, vem acolhida nessa obra que aparece única, sem precedentes na narrativa italiana e européia. Boccaccio não propõe qualquer finalidade moral, como sucedia na tradição narrativa do exemplum ou no poema de Dante, mas com constante comportamento realístico restitui, recria, faz ver e faz sentir sobre as páginas a existência humana, possível, em toda a sua multiforme e concreta
Anuário de Literatura, ISSN 1414-5235, Florianópolis p. 31-40 , 2007
38
Dossier de Pesquisa 168-169
realidade. Sem se perder e sem chorar pelo velho mundo perdido, junto com sua alegre brigada, Boccaccio foge metaforicamente da peste e da morte do medievo. A sua existência se configura como mais um exemplo para ajudar a derrubar a crença de que a Idade Média foi a “idade das trevas”. Não podemos esquecer que, justamente nesses períodos de maiores crises, o homem aprendeu a compreender e se organizar diante das tragédias. Assim, conservar um olhar pessimista sobre o período é negar a possibilidade de uma outra história: a história do desejo de sobreviver e as tentativas diárias de superar os infortúnios, que por muito tempo não foram notadas pelos historiadores pouco críticos para com seus documentos. É o caso de Boccaccio: diante da morte negra, escreveu e apresentou através do riso uma tentativa de superar e vencer a realidade. REFERÊNCIAS ALLODOLI, Ettore, BUTI, Giovani. Storia della letteratura italiana. 2.ed. Firenze: Edizioni Sandron, 1964. BERLIOZ, Jacques. Flagelos. In: LE GOFF, Jacques, SCHMITT, Jean-Claude (Orgs.). Dicionário temático do Ocidente Medieval. Vol. I (Coordenado e traduzido por Hilário Franco Júnior). São Paulo: EDUSC, Imprensa Oficial do Estado, 2002. BOCCACCIO, Giovanni. Decameron. (a cura di Romualdo Marrone). 4.ed. Roma: Tascabili Economici Newton, 2001. CAPITANI, Ovidio. Morire di peste: testimonianze antiche e interpretazioni moderne della peste nera dei 1348. Ed. Patron: Bologna, 1995. DUBY, Georges. A Europa da Idade Média. São Paulo: Martins Fontes, 1988. HUGO, Victor. Do grotesco e do sublime: tradução do Prefácio de Cromwell. 23.ed. (Tradução de Célia Berrettini). São Paulo: Perspectiva, 2004. JÚNIOR, Hilário F. A Idade Média: nascimento do Ocidente. 5ª ed. São Paulo: Brasiliense, 1996. LE GOFF. A civilização do Ocidente medieval. Vol. I e II. Lisboa: Editorial Estampa, 1987. LE GOFF, Jacques. Para um novo conceito de Idade Média. Lisboa: Editorial Estampa, 1980. SCLIAR, Moacyr. Saturno nos trópicos – a melancolia européia chega ao Brasil. São Paulo: Cia das Letras, 2003. Sites Pesquisados: http://www.classicitaliani.it/desan/desan09a.htm http://www.pasteur.fr/infosci/archives/yer0.html. [1] Historiadora, doutoranda em Teoria Literária pela Pós-Graduação em Literatura da UFSC. [2] Hoje se aceita a idéia de que a “Idade Média” não existe, pois foi criada a posteriori, no século XVI. O termo medium aevum foi empregado pela primeira vez por humanistas italianos para designar o período entre a Antigüidade Clássica e o Renascimento. Tais humanistas se viam como responsáveis pela retomada da cultura greco-latina e afirmavam ser o medievo um período de tenebrae, marcado pela suspensão do progresso iniciado pelos gregos e romanos: estava criado o mito historiográfico da idade das trevas, um período intermediário, caracterizado pela barbárie, ignorância e superstição. Naturalmente, neste estudo será utilizado o termo Idade Média não no seu sentido original, dado pelos renascentistas, mas como um período próprio, que propiciou, entre outros elementos, o nascimento das línguas neolatinas e das literaturas, o surgimento das cidades, das
Anuário de Literatura, ISSN 1414-5235, Florianópolis p. 31-40 , 2007
Covid-19
Antes / Durante / Depois (Agora)
39
universidades e das instituições bancárias, assim como de uma arte com características específicas. Veja-se LE GOFF, Jacques. Para um novo conceito de Idade Média. Lisboa: Editorial Estampa, 1980; DUBY, Georges. A Europa da Idade Média. São Paulo: Martins Fontes, 1988. [3] BERLIOZ, Jacques. Flagelos. In: LE GOFF, Jacques, SCHMITT, Jean-Claude (Orgs.). Dicionário temático do Ocidente Medieval. Vol. I. (Coordenado e. traduzido por Hilário Franco Júnior). São Paulo: EDUSC, Imprensa Oficial do Estado, 2002, p. 462. [4] Conferir: CAPITANI, Ovidio. Morire di peste: testimonianze antiche e interpretazioni moderne della peste nera dei 1348. Ed. Patron: Bologna, 1995. [5] Consultar estudo de Alexandre Yersin, disponível em:<http://www.pasteur.fr/infosci/archives/yer0.html>. Acesso em: 12/11/2006. [6] BERLIOZ, Jacques. Op.cit., p. 464. [7] Para melhor compreender essas transformações veja-se JÚNIOR, Hilário F. A Idade Média: nascimento do Ocidente. 5.ed. São Paulo: Brasiliense, 1996. [8] BERLIOZ, Jacques. Op.cit., p. 466. [9] SCLIAR, Moacyr. Saturno nos trópicos — a melancolia européia chega ao Brasil. São Paulo: Cia das Letras, 2003, p. 27-28. O autor busca no passado europeu algumas causas para explicar a melancolia do brasileiro, e na primeira parte do livro traça um panorama histórico das doenças européias na Idade Média e no Renascimento. [10] BERLIOZ, Jacques. Op.cit. [11] Boccaccio não foi o primeiro a usar a literatura para descrever a desolação provocada pelas epidemias. Desde a Antigüidade registravam-se epidemias e catástrofes, vistas como punição divina. Como exemplo, veja-se o Êxodo (7-11), no qual são descritas as pragas mandadas por Deus ao povo egípcio. Da mesma forma, o historiador grego Tucídides descreve, de maneira precisa e rica em efeitos dramáticos, a espaventosa epidemia que atingiu Atenas durante a Guerra do Peloponeso em 430 a.C. Virgílio narra uma peste no seu poema Geórgias. Petrarca, em algumas de suas cartas, também descreve a epidemia de 1348. A peste de Londres de 1665 é narrada por Defoe e Samuel Pepys, da mesma forma que Alessandro Manzoni dedica algumas páginas para descrever a peste de Milano em 1630, no seu clássico I Promessi sposi. [12] ALLODOLI, Ettore, BUTI, Giovani. Boccaccio. In: Storia della letteratura italiana. 2.ed. Firenze: Edizioni Sandron, 1964. p. 73. [13] DE SANCTIS, Francesco. Il Decameron.. In: Storia della letteratura italiana. Disponível em: http://www.classicitaliani.it/desan/desan09a.htm. Acesso em 27/05/2007. (Tradução minha). [14] BOCCACCIO, Giovanni. Decameron. (a cura di Romualdo Marrone). 4.ed. Roma: Tascabili economici. Newton, 2001, p. 17 e 20. Nesta edição, Boccaccio descreve a peste nas páginas 17 a 30. (Tradução minha). [15] Idem, p. 19. [16] BERLIOZ, Jacques. Op.cit. [17] BOCCACCIO, Giovanni. Op.cit., p. 22. [18] Idem, p. 17. [19] BOCCACCIO, Giovanni. Op.cit., p. 26. [20] HUGO, Victor. Do grotesco e do sublime: tradução do Prefácio de Cromwell. 23.ed. (Tradução de Célia Berrettini). São Paulo: Perspectiva, 2004, p. 38 e seguintes. [21] HUGO, Victor. Op.cit., p. 48. [22] ALLODOLl, Ettore, BUTI, Giovanni. Op.cit., p. 121.
Anuário de Literatura, ISSN 1414-5235, Florianópolis p. 31-40 , 2007
40
Dossier de Pesquisa 170-171
Covid-19
Antes / Durante / Depois (Agora)
Wrapped Entities. Paulo Ávila Sousa
Caderno de Exercícios A Imagem como História
Dossier de Pesquisa 172-173
Contexto Iniciei o processo de pesquisa para o último exercício pela análise do capítulo “A Imagem como História” do “Ler Imagens”, visitando a “Exposição Invisível”, exclusivamente sonora, patente na Culturgest e visionando o filme “American Utopia” de David Byrne.
1. Death to 2020. Netflix
2. Evolução do Vírus Do Ébola à Covid-19. National Geographic
Covid-19
Antes / Durante / Depois (Agora)
3. Saudade. The Community Project
4. Primeira vacina administrada em Portugal. Lusa
Dossier de Pesquisa 174-175
Metáfora Alojei uma ficha de leitura do capítulo “O Mundo das Imagens” da obra “Ensaios sobre Fotografia”, da crónica “Quanto dura uma polaróide” do livro de Pedro Mexia, e do quarto e último episódio da série “Modos de Ver”, de John Berger, bem como algumas referências paralelas a estas leituras, sobretudo da obra de Vincent Van Gogh.
5. A Imagem como História. Ler Imagens. Alberto Manguel
Neste capítulo, Manguel entende que a leitura que fazemos das imagens é limitada pelas nossas capacidades. Com o tempo, podemos ver mais ou menos numa imagem, ver certos detalhes, associar outras imagens, ou emprestar-lhe palavras para dizer o que observamos. Acrescenta ainda que a própria imagem existe no espaço que ocupa, num ponto fixo no espaço por onde começamos o processo de leitura. Quando lemos imagens emprestamoslhes a qualidade temporal da narrativa, vincada por uma moldura que define o seu antes e o seu depois. Termina, refletindo acerca das inúmeras camadas de leitura, que se acumulam, e cujo nosso fim-último é o de chegar a uma última (verdadeiramente primeira) leitura em que o fazemos realmente sozinhos. Podemos ler um quadro da mesma forma que lemos um livro? Existe algum vocabulário que possamos de aprender para nos ajudar a deslindar os seus significados? Quererá ele ser descodificado, decifrado e compreendido? Em Ler Imagens, livro profusamente ilustrado, Alberto Manguel oferece uma instigante meditação sobre as questões que nos colocamos quando estamos diante de uma obra de arte.
Covid-19
Antes / Durante / Depois (Agora)
Alberto Manguel (1948, Buenos Aires) cresceu em Telavive e na Argentina. Aos 16 anos, trabalhava na livraria Pygmalion, em Buenos Aires, quando Jorge Luis Borges lhe pediu que lesse para ele em sua casa. Foi leitor de Borges entre 1964 e 1968. Em 1968, mudou-se para a Europa. Viveu em Espanha, França, Itália e Inglaterra, ganhando a vida como leitor e tradutor para várias editoras. Editou cerca de uma dezena de antologias de contos sobre temas tão díspares como o fantástico ou a literatura erótica. É ensaísta, romancista premiado e autor de vários best-sellers internacionais, como Dicionário de Lugares Imaginários, Uma História da Curiosidade, A Biblioteca à Noite e Embalando a Minha Biblioteca (Tintada-china, 2013, 2015, 2016 e 2018, respetivamente). É atualmente cidadão canadiano e foi diretor da Biblioteca Nacional da Argentina entre 2016 e 2018. Foi galardoado com o Prémio Formentor das Letras em 2017.
6. Fishing Boats on the Beach at Les SaintesMariesde-la-Mer. Vincent Van Gogh
7. PaixĂŁo de Van Gogh. Hugh Welchman
8. Van Gogh - Entre o Trigo e o CĂŠu. Giovanni Piscaglia
Dossier de Pesquisa 176-177
9. Modos de Ver. John Berger
No último episódio, Berger analisa as imagens publicitárias, como os anúncios na sociedade atual, e compara-as às pinturas a óleo tradicionais. Compara os seus contextos, poses e configurações. Berger examina os conceitos atuais de glamour, publicidade e propaganda, em contraposição ao que representavam na época das pinturas tradicionais. Berger analisa também a incoerência desses anúncios publicitários em revistas para explorar mais a fundo a inconsistência que difere a nossa cultura contemporânea daquela que existia durante a época das pinturas a óleo tradicionais. Ways of Seeing é uma série de televisão de 1972 de filmes de 30 minutos, criada principalmente pelo escritor John Berger e pelo produtor Mike Dibb. Foi transmitido pela BBC Two em janeiro de 1972 e adaptado para um livro de mesmo nome.
Covid-19
Antes / Durante / Depois (Agora)
Berger e sua equipa recorrem à tradição da pintura europeia para nos fazer questionar sobre a maneira como vemos e lemos as imagens. John Berger (1926-2017), crítico de arte, pintor e escritor inglês, ícone da contracultura e um dos pensadores mais influentes dos nossos dias, avançou contra a corrente num tempo de especialistas e especializações. Em quadros, ensaios, poemas ou textos para cinema ou televisão, foi plural também nas suas inspirações, tomando interesse nas franjas da sociedade (presos, camponeses, migrantes) como exemplos de resistência à ignomínia de governos e mercados. Ganhou o Prémio Booker em 1972 com o romance feminista G., e o seu ensaio mais famoso, Modos de Ver, é uma referência na crítica de arte ainda hoje a ser redescoberta.
11. Quanto Dura uma Polaróide. Imagens Imaginadas. Pedro Mexia
10. Festa. Fúria. Femina. MAAT
Pedro Mexia escreve, nesta crónica, um pouco da história da fotografia Polaroid fazendo, alegoricamente, referência ao tempo, à dualidade instante/ eternidade, e ao seu papel na construção da nossa própria história. Depois dos filmes e dos livros, as artes plásticas: Novo livro de crónicas «temáticas» de Pedro Mexia, desta vez dedicado à pintura e à fotografia. Para completar uma espécie de trilogia das artes, inaugurada pelos livros Cinemateca e Biblioteca, chega agora Imagens Imaginadas. Do roubo do quadro O Grito à semiótica da atriz Cláudia Vieira; de pintores italianos do século XV à atualidade voyeurista de Julião Sarmento, entre muitas outras estéticas, Pedro Mexia partilha a sua perspetiva sobre artes plásticas ao mesmo tempo que acompanha o leitor num percurso pelos nomes maiores da pintura e da fotografia.
Pedro Mexia nasceu em Lisboa, em 1972. Licenciou-se em Direito pela Universidade Católica. Escreveu crítica literária e crónicas para os jornais Diário de Notícias e Público, sendo atualmente colaborador do semanário Expresso. É um dos membros do Governo Sombra (TSF / TVI24). Foi subdiretor e diretor interino da Cinemateca Portuguesa. Publicou seis livros de poesia e as coletâneas de crónicas Primeira Pessoa (2006), Nada de Melancolia (2008), As Vidas dos Outros (2010), O Mundo dos Vivos (2012), Cinemateca (2013), Biblioteca (2015) e Lá Fora (2018, Grande Prémio de Crónica APE). Organizou um volume de ensaios de Agustina Bessa-Luís, Contemplação Carinhosa da Angústia; a antologia Verbo: Deus como Interrogação na Poesia Portuguesa [com José Tolentino Mendonça]; O Homem Fatal, crónicas escolhidas de Nelson Rodrigues; e Nada Tem já Encanto, antologia poética de Rui Knopfli. Coordena a coleção de poesia da Tintada-China. Em 2015 e 2016 integrou o júri do Prémio Camões.
Dossier de Pesquisa 178-179
12. A Exposição Invisível. Culturgest Covid-19
Antes / Durante / Depois (Agora)
13. A Exposição Invisível. Delfim Sardo
Dossier de Pesquisa 180-181
14. O Mundo das Imagens. Ensaios sobre Fotografia. Susan Sontag
Neste capítulo, Susan Sontag analisa a sociedade atual como um mundo de imagens, onde impera uma submissão às imagens derivada da descrença e que tem como principal atividade produzir e consumir imagens. Questiona o contraste entre a imagem e a coisa representada, entre a cópia e o original, entre as noções de imagem e realidade e a relação de consumo com os acontecimentos, que permite produzir conhecimento dissociado e independente da experiência. Aborda ainda o facto de as fotografias estarem, cada vez mais, assentes numa ideia de artificialidade, longe do real, em que é a própria realidade que cada vez mais se parece com o que a câmara nos mostra. Descreve as fotografias como forma de imobilizar e aprisionar a realidade, ou ampliar uma que sentimos retraída, esvaziada, perecível ou remota, como forma de evocar memórias e imaginação.
Covid-19
Antes / Durante / Depois (Agora)
Ensaios sobre Fotografia é um conjunto de ensaios em que Sontag examina uma série de problemas - a um só tempo estéticos e morais - levantados pela presença e autoridade da imagem fotografada nas nossas vidas. Uma obra de referência na discussão sobre o papel da fotografia entre a experiência e a realidade, Ensaios sobre Fotografia valeu a Susan Sontag a atribuição do prestigiado prémio do National Book Critics Circle.
Susan Sontag nasceu em 1933, em Nova Iorque, cidade onde morreu, em 2004 — e foi uma das mais importantes e influentes intelectuais norte americanas da segunda metade do século XX. Professora, ativista na defesa dos direitos das mulheres e dos direitos humanos em geral, ficcionista e ensaísta frequentemente premiada e amplamente traduzida. A sua escrita foi presença assídua em publicações como The New Yorker, The New York Review of Books, The New York Times, The Times Literary Supplement, entre muitas outras. Susan Sontag teve um filho, David Rieff – editor dos seus diários inéditos, publicados pela Quetzal com o título Renascer –, e viveu os últimos anos da sua vida com a fotógrafa Annie Leibovitz.
15. Wrapped Entities. Paulo Ă vila Sousa Dossier de Pesquisa 182-183
Covid-19
Antes / Durante / Depois (Agora)
Dossier de Pesquisa 184-185
Covid-19
Antes / Durante / Depois (Agora)
Campo Visionei ainda um documentário sobre a evolução do vírus, da National Geographic, no âmbito do contexto do projeto, e o documentário “2077 - 10 segundos para o Futuro”, no âmbito do campo do último exercício.
16. 2077 - 10 Segundos para o Futuro. RTP
17. Art in the age of machine intelligence. Refik Anadol
Dossier de Pesquisa 186-187
18. Orquestra Metropolitana de Lisboa. Centro Cultural de BelĂŠm Covid-19
Antes / Durante / Depois (Agora)
ORQ METROPOLITANA LISBOA
PATROCINADORES
PATROCINADOR PRINCIPAL
GRANDE AUDITÓRIO DO CENTRO CULTURAL DE BELÉM DOMINGO 13 DEZEMBRO - 11H00
João Pedro Costa
IVA Incluído 6%
12,80
M06
A-14
Jovens <25 anos e Séniores >65 ano
13-dez-2020 11:00 Domingo
1ª Balcão
Termos e condições
CCB - Grande Auditório
FUNDAÇÃO CENTRO CULTURAL DE BELÉM - 502857145
1. A Página de Confirmação / Bilhete Electrónico é pessoal e intransmissível, pelo que qualquer uso indevido do mesmo é da total responsabilidade do cliente. A duplicação ou revenda da(o) Página de Confirmação / Bilhete Electrónico impedem o livre acesso ao recinto, facto que a TICKETLINE é alheia e isenta de qualquer responsabilidade. É da responsabilidade do cliente confirmar sempre os dados constantes na(o) Página de Confirmação / Bilhete Electrónico e manter o bilhete. 2. O bilhete electrónico é válido mediante a apresentação do documento de identificação, caso seja solicitado pelos assistentes de sala. 3. Sobre o valor total da transacção acresce 6% mais IVA à taxa legal em vigor. Estes custos de operação aplicam-se a todas as compras efectuadas em www.ticketline.pt. 4. Não se efectuam trocas e/ou devoluções de compras feitas online, excepto no caso de o evento sofrer alguma alteração ao previsto ou ser cancelado. A resolução ao disposto é da responsabilidade do promotor. A empresa emissora do bilhete não assume, em qualquer caso, as obrigações e responsabilidades do promotor. 5. O cancelamento e/ou alteração de um evento que se realize ao ar livre ou que esteja dependente das condições climatéricas, não obriga o promotor a devolver o valor do bilhete. 6. No caso de o evento ser cancelado, adiado ou seja solicitada a devolução do valor da compra efectuada por motivos de força maior, a Ticketline não procede ao reembolso dos custos de operação e dos custos de envio da compra. 7. É obrigatória a apresentação do documento comprovativo de desconto na entrada do recinto. 8. Salvo indicação em contrário, não é permitido entrar no recinto enquanto o evento está a decorrer; não é permitido fumar no recinto; não é permitida a entrada de animais, máquinas fotográficas e/ou de vídeo e de gravadores de áudio, bem como de objectos perigosos. 9. Ao adquirir este bilhete estará a aceitar todas as condições acima descritas.
071
UM AMERICANO EM PARIS
FUNDADORES
© Luís Vieira
2020 | 2021
TEMPORADA
UM AMERICANO EM PARIS
19. Um Americano em Paris. Orquestra Metropolitana de Lisboa
ORQUESTRA METROPOLITANA DE LISBOA
João Pedro Silva Saxofone Sylvain Gasançon Maestro
George Gershwin Suíte da ópera Porgy and Bess (Catfish Row)
Luís Tinoco Kokyuu, Concerto para Saxofone Alto e Orquestra (estreia absoluta)
George Gershwin Um Americano em Paris
Dossier de Pesquisa 188-189
20. American Utopia. David Byrne
Covid-19
Antes / Durante / Depois (Agora)
Dossier de Pesquisa 190-191
Tema Em relação ao Exercício #5, no âmbito do processo de pesquisa, em relação ao contexto tenho vindo, essencialmente, a acumular informação relativa aos mais recentes avanços relacionados com a inoculação da vacina.
21. It Takes Several Minutes for The Eyes to Adjust to the Dark. FBAUL
Covid-19
Antes / Durante / Depois (Agora)
Dossier de Pesquisa 192-193
Covid-19
Antes / Durante / Depois (Agora)
Dossier de Pesquisa 194-195
Covid-19
Antes / Durante / Depois (Agora)
Dossier de Pesquisa 196-197
Covid-19
Antes / Durante / Depois (Agora)
Dossier de Pesquisa 198-199
Edição e Design João Pedro Costa Tipografia Circular, Laurenz Brunner, Georgia, Matthew Carter. Design de Comunicação I Professores Cândida Ruivo e Victor Almeida Faculdade de Belas-Artes da Universidade de Lisboa Ano Letivo 2020-2021
Covid-19
Antes / Durante / Depois (Agora)