Anais do II Congresso Internacional de Estudos Linguísticos e Literários na Amazônia - Volume 1

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Edição eletrônica

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP) Biblioteca do ILC/UFPA-Belém-PA Congresso Internacional de Estudos Linguísticos e Literários na Amazônia (2.: 2009: Belém, PA) Anais [do] II Congresso Internacional de Estudos Linguísticos e Literários na Amazônia [recurso eletrônico] / Congresso Internacional de Estudos Linguísticos e Literários na Amazônia ; organização, Myriam Crestian Chaves da Cunha, Jorge Domingues Lopes. –– Belém: Programa de Pós-Graduação em Letras da UFPA; Curitiba: CRV, 2010. 3v. : il. Conteúdo: v. 1, 2 e 3 – Línguas e Literaturas – Diversidade e Adversidades na América Latina. Modo de acesso: Word Wide Web: <http://www.ufpa.br/ciella/> Congresso realizado na Cidade Universitária Professor José da Silveira Netto da Universidade Federal do Pará, no período de 6 a 8 de abril de 2009. ISBN 978-85-8042-640-3 1. Lingüística – Discursos, ensaios e conferências. 2. Literatura – Discursos, ensaios e conferências. 3. Estudos Culturais – Discursos, ensaios e conferências. I. Cunha, Myriam Crestian Chaves da (Org.). II. Lopes, Jorge Domingues, (Org.). III. Título. I. Título. CDD-20.ed. 410



UNIVERSIDADE FEDERAL DO PARÁ Carlos Edilson de Almeida Maneschy Reitor Horácio Schneider Vice-Reitor Marlene Rodrigues Medeiros Freitas Pró-Reitora de Ensino de Graduação Emmanuel Zagury Tourinho Pró-Reitor de Pesquisa e Pós-Graduação Fernando Arthur de Freitas Neves Pró-Reitor de Extensão Edson Ortiz de Matos Pró-Reitor de Administração João Cauby de Almeida Júnior Pró-Reitor de Desenvolvimento e Gestão de Pessoal Erick Nelo Pedreira Pró-Reitor de Planejamento Flávio Sidrim Nassar Pró-Reitor de Relações Internacionais

INSTITUTO DE LETRAS E COMUNICAÇÃO Luiz Roberto Vieira de Jesus Diretor Geral Rosa Maria de Sousa Brasil Diretora Adjunta PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM LETRAS Sílvio Augusto de Oliveira Holanda Coordenador Marília de Nazaré de Oliveira Ferreira Vice-Coordenadora



COMISSÃO ORGANIZADORA DO EVENTO Dr. José Guilherme dos Santos Fernandes Presidente da comissão organizadora Docente do Programa de Pós-Graduação em Letras

Dra. Myriam Crestian Cunha Coordenadora do Programa de Pós-Graduação em Letras

Dra. Carmen Reis Rodrigues Docente do Programa de Pós-Graduação em Letras

Dra. Gessiane Lobato Picanço Bolsista de Desenvolvimento Científico Regional (FAPESPA/CNPq), afiliada ao Programa de Pós-Graduação em Letras

Dra. Valéria Augusti Bolsista de Desenvolvimento Científico Regional (FAPESPA/CNPq), afiliada ao Programa de Pós-Graduação em Letras

ORGANIZAÇÃO DOS ANAIS Myriam Crestian Cunha Jorge Domingues Lopes Secretaria do PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM LETRAS Eduardo Antonio Ribeiro de Brito (Secretário) Amanda Faustino de Pinho (Bolsista)

UFPA / Instituto de Letras e Comunicação Programa de Pós-Graduação em Letras Cidade Universitária Professor José da Silveira Netto Rua Augusto Corrêa, 01, Guamá CEP 66.075-900, Belém - PA Fone-Fax: (91) 3201-7499 E-mail: mletras@ufpa.br Site: www.ufpa.br/mletras


Apresentação

O

Congresso Internacional de Estudos Linguísticos e Literários na Amazônia (CIELLA) é um evento bianual que resultou do bom desenvolvimento e projeção de um tradicional encontro intitulado Jornada de Estudos Linguísticos e Literários (JELL), promovido pelo Programa de Pós-Graduação em Letras da Universidade Federal do Pará (UFPA) durante 10 anos consecutivos. O II CIELLA tem como tema principal “Línguas e Literaturas: diversidade e adversidades na América latina”. O objetivo do encontro é integrar os pesquisadores da área de estudos linguísticos, literários e culturais implicados na discussão de problemas característicos do contexto latinoamericano e na busca de soluções diferenciadas, oportunizando o diálogo com os demais atores sociais envolvidos, de modo a favorecer a elaboração de propostas político-educacionais diversificadas. Como evento acadêmico, o II CIELLA volta-se para professores universitários, pesquisadores, estudantes de Graduação e Pós-Graduação de instituições locais, nacionais e internacionais. Assinalamos que o evento caracterizase também por estabelecer um diálogo com profissionais e gestores interessados nas repercussões econômicas, políticas e sócio-culturais dessas pesquisas. Além disso, abre-se, de forma pioneira, na Região Norte, para estudantes de Ensino Médio, participantes do Programa Institucional de Bolsas de Iniciação Científica Júnior da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado do Pará. Essa dinâmica, congregando vários atores sociais, pretende estabelecer intercâmbio efetivo entre a academia e as comunidades envolvidas, garantindo maior circulação dos resultados de pesquisas. Comissão Organizadora do II CIELLA


© 2010 Programa de Pós-Graduação em Letras da UFPA A reprodução parcial ou total desta obra é permitida, desde que a fonte seja citada. COMISSÃO CIENTÍFICA Abdelhak Razky, UFPA Ana Carla dos Santos Bruno, INPA Andrea Ciacchi, UFPB Christophe Golder, UFPA Daniel dos Santos Fernandes, IDEPA / Faculdade Ipiranga Germana Maria Araújo Sales, UFPA Heraldo Maués, UFPA Joel Cardoso da Silva, UFPA José Carlos Chaves da Cunha, UFPA José Carlos Paes de Almeida Filho, UnB Lindinalva Messias do Nascimento Chaves, UFAC Luís Heleno Montoril del Castilo, UFPA Maria Aparecida Lopes Rossi, UNITAU Maria do Socorro Galvão Simões, UFPA Maria Risolêta da Silva Julião, UFPA Mário César Leite, UFMT Marcello Moreira, UESB Marília de N. de Oliveira Ferreira, UFPA Marilúcia Barros de Oliveira, UFPA Marli Tereza Furtado, UFPA Sidney da Silva Facundes, UFPA Sílvio Augusto de Oliveira Holanda, UFPA Simone Cristina Mendonça de Souza, UF de Viçosa Thomas Massao Fairchild, UFPA

COMISSÃO DE APOIO Coordenação: Thayana Albuquerque. Adriana Oliveira, Adrielson Barbosa, Alex Moreira, Alice Oliveira, Aline Silva, Aline Souza, Ana Maria de Jesus, Ana Paula Silva, Anny Linhares, Brenda Lima, Bruna Pimentel, Carla Guedes, Crystian Alfaia, Daniele Chaves, Edimara Santos, Eduardo Lopes, Elma Lima, Eveline Nascimento, Fabiana Silva, Gézika Ferreira, Glaciane Serrão, Jonatas Silva, Josemare da Silva, Joyce Costa, Jucineide Ribeiro, Kelly Souza, Layse Oliveira, Maria Elisabete Blanco, Maria Iracema Lima, Marla de Abreu, Martha Luz, Maxwell Maciel, Mayara Rocque, Michela Garcia, Natália Magno, Nathalia Carvalho, Nilsineia Simões, Ordilene Souza, Patrícia Martins, Patrick Pimenta, Paulo Alberto dos Santos, Phillippe Souza, Priscila Castro, Rafaela Margalho, Raicya Coutinho,Samara Queiroz, Sara Costa, Shirlene Ribeiro, Shirley Silva, Tayana Barbosa, Thiago Nascimento, Thiago Souza, Wladimilson Mota.

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PROJETO GRÁFICO, EDITORAÇÃO ELETRÔNICA E CAPA Jorge Domingues Lopes (jdlopes@ufpa.br)

Todas as informações contidas e apresentadas nos artigos deste livro são de inteira responsabilidade de seus respectivos autores, bem como as opiniões neles expressas, que não refletem necessariamente as do Programa de Pós-Graduação em Letras ou da Comissão Organizadora do II CIELLA.


Sumário 15

O despertar para o si mesmo e para o outro no conto Amor, de Clarice Lispector Adriana Gerlandia FERREIRA Antonia Marly Moura da SILVA

23

Macunaíma: A obra fílmica e seu caráter parodístico em relação à obra literária Alcir de Vasconcelos Alvarez RODRIGUES

33

O pioneirismo crítico de Tereza Fite na leitura de O recado do morro Aldo José BARBOSA Sílvio Augusto de Oliveira HOLANDA

41

Revista Amazônica: A concretização de um projeto periodístico Alessandra Greyce Gaia PAMPLONA

51

Bibliotecas privadas das elites paraenses (1870-1890) Alessandra Pantoja PAES

57

“Caminhos do romance”: O valor dos romances brasileiros do século XIX na internet Alexandre RANIERI

67

Mercado editorial e efeméride: Machado de Assis para jovens leitores Alice Áurea Penteado MARTHA

77

Culturas periféricas: Repetição e diferença Aline de Souza MUNIZ

85

Crônicas portuguesas em jornais paraenses na segunda metade do século XIX (1860-1870) Almir Pantoja RODRIGUES

99

O imaginário do poder na narrativa de Alina Paim Ana Leal CARDOSO

107

A construção da identidade no gênero fórum de discussão de curso on line Ana Lygia Almeida CUNHA

115

Vozes diferenciadoras em poéticas afro-femininas Ana Rita Santiago da SILVA

127

Notas sobre a presença da teoria de Antonio Candido nos estudos de literaturas africanas de língua portuguesa Anita Martins Rodrigues de MORAES

135

Musas e moscas nos repentes urbanos de Lucy Brandão: Contracultura, modernidade e performance Antônio José Rodrigues XAVIER

149

Maíra - Tradição e identidades Assunção de Maria SOUSA E SILVA


159

A volta do marido pródigo e as narrativas greco-romana e judaico-cristã Brenda de Sena MAUÉS Sílvio Augusto de Oliveira HOLANDA

167

Uma análise semântica, discursiva e de gênero da ambiguidade em anúncios publicitários Bruno Diego de Resende CASTRO Leila Rachel Barbosa ALEXANDRE

179

A crítica biográfica na berlinda: Conflitos entre o biografismo e teorias sobre a figura do leitor Carolina Duarte DAMASCENO

187

Blog: Instrumento de aprendizagem interativa de formadores de alfabetizadores Cilene Maria Valente da SILVA Lorena Bischoff TRESCASTRO

195

Práticas de produção escrita na escola Cilene Maria Valente da SILVA Vânia Maria Batista FERREIRA

203 Tecnologia da documentação: Um suporte para a descrição da língua parkatêjê Cinthia de Lima NEVES Marília FERREIRA 209

As relações de poder em A sombra do patriarca, de Alina Paim Daniele Barbosa de Souza ALMEIDA

223

Entre cultura popular e indústria cultural: Práticas do boi de máscaras “Veludinho”, em Belém-PA Danielle dos Reis BLANCO

233

A crítica diletante e militante de Raul Pompéia Danilo de Oliveira NASCIMENTO

245

Nas trilhas do Ritornelo em Rosa Davina MARQUES

255 Da palavra de Humbert à imagem de Lolita: O cinema como mitificador da obra de Nabokov Denize Helena LAZARIN 265

Escola-educação: Ações e reações na linguagem dos amazônidas Doriedson do Socorro RODRIGUES Giussany Socorro Campos dos REIS Maria Isabel Batista RODRIGUES

277

Memória e oralidade no Romanceiro de Dona Militana Edilberto Cleutom dos SANTOS

287

Literatura no Pará oitocentista: Os romances-folhetins como “riquezas” da Belle-Époque Edimara Ferreira SANTOS Germana Maria Araújo SALES

295

A presença da oralidade no romance Três casas e um rio, de Dalcídio Jurandir Elaine Pastana VALÉRIO


305

Artur Azevedo e a defesa da nacionalidade: A caminho do teatro brasileiro moderno Elen de MEDEIROS

315

Guiana, Guianas: Centro Cultural da América Latina Elisabeth BALDWIN

323

Franklin de Oliveira: Uma contribuição para análise crítica do simbolismo epigráfico em Sagarana Elizandra Fernandes REIS

331

O Satã de Milton e o Guesa de Sousândrade: A emergência do anti-herói moderno? Enéias Farias TAVARES

345

O texto como atividade humana interativa: A mobilização das capacidades de ação, enunciativas e linguístico-textuais na escrita do aluno Eneida Lúcia Garcia KLAUTAU Suely Claudia Lobato MACIEL

355

O cânone de José Veríssimo e a ausência da literatura da Amazônia Érika Guiomar Martins de AQUINO

367

Usos linguísticos como elementos construtores da identidade social de bamburristas de gema de opala no município de Pedro II - PI Ernâni Getirana de LIMA

377

As relações interacionais na elaboração do conhecimento Estevão Domingos Soares OLIVEIRA

387

História e ficção: O diálogo crítico de Memórias de um sargento de milícias com seu tempo Evaneide Araújo da SILVA

397

O marcador yadï em Xipaya (Tupi) Fabiana Almeida dos SANTOS Carmen Lúcia Reis RODRIGUES

407

A vida como ela é...: [Obs]cenas urbanas de Nelson Rodrigues Fernanda Beatriz do Nascimento ROSÁRIO

419

Devaneio e embriaguez duma rapariga: Uma análise da figura feminina no conto de Clarice Lispector Flávia Rodrigues de MELO Antonia Marly Moura da SILVA

427

Aqueles dois: A representação da identidade cindida Francisco Aedson de Souza OLIVEIRA Antonia Marly Moura da SILVA

435

Colagem, subversão e antropofagia no romance Galvez Imperador do Acre, de Márcio Souza Francisco Ewerton Almeida dos SANTOS

445

O processo tradutório: As traduções de Orlando para o português Francisco Rafael Silva BARROS

453

SOBRE O II CIELLA




Ir para o Sumรกrio


O DESPERTAR PARA O SI MESMO E PARA O OUTRO NO CONTO AMOR, DE CLARICE LISPECTOR

Adriana Gerlandia FERREIRA Antonia Marly Moura da SILVA (Universidade do Estado do Rio Grande do Norte)

RESUMO: O objetivo deste trabalho é analisar a construção da identidade feminina no conto “Amor”, integrante de Laços de Família de Clarice Lispector, destacando o processo de conhecimento de si mesmo e do outro experimentados por Ana, a personagem central da história. No conto, a personagem encena um momento de êxtase decorrente de seu despertar para si mesma e para a vida. Nessa perspectiva, com a finalidade de perceber o caráter dual que marca a caracterização da mulher na obra clariciana, bem como o modo de configuração desse despertar, é que esse estudo se lança à análise da ação da personagem e do espaço - a casa e a rua - por entendermos que esses elementos funcionam como eixos condutores para a compreensão do conteúdo narrado. Tomaremos como referência os conceitos de narcisismo e de estranhamento formulados por Freud, além da significação contida na metáfora do duplo. PALAVRAS-CHAVE: Clarice Lispector; “Amor”; duplo; estranhamento; identidade.

ABSTRACT: The aim of this article is analyze the construction of the feminine identity in the sort story “ Amor “, which is integrant of Laços de Família, by Clarice Lispector, pointing out the process of knowledge of herself and of the other experienced by Ana, the main character of sort story. In the sort story, the character lives a moment of ecstasy resulting from her awakening for herself and for the life. In this perspective, aiming at realizing the dual character that marks the characterization of the woman in the clariciana work, as well as the way of configuration of this awakening, this study is put to analyzes the action of the character and the space - the house and the street - since we understand that this elements function as leader axels for the understanding of the narrated content. We will take as reference the concepts of narcissism and strangeness formulated by Freud, besides the signification contained into the metaphor of the dual. KEY WORDS: Clarice Lispector; “Amor”; dual; strangeness; identity.


Anais do II Congresso Internacional de Estudos Linguísticos e Literários na Amazônia (CIELLA)

1. Introdução A obra clariciana é marcada pela subjetividade. Considerada por muitos uma profunda reveladora da alma feminina, Clarice Lispector sempre procurou retratar em suas narrativas os dramas e os conflitos interiores vivenciados pelas suas personagens. A relação eu - outro constitui um eixo temático tão recorrente em Clarice, que é bastante perceptível em sua literatura os elementos metafóricos que retratam questões ligadas ao tema do narcisismo; como o duplo, o estranhamento e a identidade. As personagens centrais das narrativas claricianas geralmente vivenciam um momento epifânico em suas vidas. Esse momento é marcado por uma profunda viagem introspectiva na qual essas personagens, de forma mágica, como quem atravessam um rito de passagem, acabam por se descobrirem a si mesmas, suas verdadeiras identidades. Após esse momento de revelação, as protagonistas de Clarice sentem-se incomodadas por um profundo sentimento de estranheza. Na verdade elas se deparam com o estranho a partir do instante que encaram a própria desordem íntima e desabrocham para a vida. As coisas que antes lhes eram familiares passam a ser totalmente estranhas, como se nunca as tivessem visto. Essa sensação de desconhecimento diante de algo íntimo e familiar é explicada por Freud em sua teoria do estranhamento: “[...] esse estranho não é nada novo ou alheio, porém algo que é familiar e há muito estabelecido na mente, e que somente se alienou desta através do processo de repressão.” (FREUD, 1996, p. 258) Para a Psicanálise freudiana, a repressão sempre estará por trás do sentimento de estranheza vivenciado por qualquer indivíduo. No conto “Amor” a personagem Ana oculta o seu próprio si mesmo para viver o outro - que precisa estar sempre disposto a cumprir rotineiramente todas as funções domésticas que lhe são exigidas. Ela vivencia esse sentimento de estranheza quando acontece o desabrochar para o autoconhecimento; o despertar para o eu que inicialmente lhe parece desconhecido mas que na verdade sempre esteve reprimido dentro dela. Na produção ficcional de Clarice Lispector, o agente que contribui para desencadear esse processo é sempre um acontecimento aparentemente banal e corriqueiro que ocorre na estrutura narrativa, como o cego, no conto “Amor”, que propicia o despertar da figura feminina para sua condição de vida, restando a ela a busca de sua própria sublimação no manejo de seu drama existencial: Que mulher sou eu? Nessa perspectiva, tomando como objeto de investigação esse viés temático – a compreensão do eu/outro, este trabalho é uma análise do conto “Amor”, de Clarice Lispector, fundamentado na concepção do duplo, do narcisismo e do conceito de estranho à luz dos postulados de Freud (1996), Brunel (1998), Eco (1989) e Cavalcanti (1992), entre outros. O que se procura destacar é que o processo de caracterização da personagem feminina central põe em foco sua cegueira e estranhamento em relação a sua própria vida, focalizando o modo de configuração da desilusão e do olhar crítico da mulher sobre sua realidade circundante. 2. A personagem Ana e o seu conflito interior A protagonista do conto “Amor” é uma simples dona-de-casa, Ana, uma mulher que como muitas outras personagens de Clarice Lispector, dedica-se inteiramente à vida doméstica e está sempre ocupada com os filhos, com o marido, com a casa; ou seja, as ocupações do lar estão sempre a tomar todo o seu tempo. E assim, com um cotidiano preenchido por responsabilidades domésticas, Ana não tem oportunidade para pensar em si mesma, conforme podemos verificar na leitura do fragmento abaixo: Os filhos de Ana eram bons, uma coisa verdadeira e sumarenta. Cresciam, tomavam banho, exigiam para si, malcriados, instantes cada vez mais completos. A cozinha era enfim espaçosa, o fogão enguiçado dava estouros. O calor era forte no apartamento que estavam aos poucos pagando. Mas o vento batendo nas cortinas que ela mesma cortara lembrava-lhe que se quisesse podia parar e enxugar a testa, olhando o calmo horizonte. (LISPECTOR, 1983, p.19)

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Tema geral: Línguas e Literaturas: Diversidade e Adversidades na América Latina

Mesmo em meio a tantas atividades domésticas, Ana vive em uma constante inquietude interior, pois ao concluir todas as tarefas surge o medo de confrontar sua desordem íntima, seu drama existencial - um drama que a persegue e a incomoda profundamente. É esse medo que motiva a procura permanente por outras ocupações que a mantenham longe de si mesma, que impeçam a introspecção e a reflexão sobre si. Todo o seu desejo vagamente artístico encaminhara-se há muito no sentido de tornar os dias realizados e belos; com o tempo, seu gosto pelo decorativo se desenvolvera e suplantara a íntima desordem. Parecia ter descoberto que tudo era passível de aperfeiçoamento, a cada coisa se emprestaria uma aparência harmoniosa; a vida podia ser feita pela mão do homem. (LISPECTOR, 1983, p.20)

Essa “íntima desordem” de que trata o narrador já demonstra a vertigem da cegueira temporária que parece ceder ao autoconhecimento. Porém, sozinha e em contato com o seu íntimo, Ana compreende que a sua vida agora é outra; realmente é preciso esquecer o que sucedera antes para viver o outro, uma vida de adulto. O que sucedera a Ana antes de ter o lar estava para sempre fora de seu alcance: uma exaltação perturbada que tantas vezes se confundira com felicidade insuportável. Criara em troca algo enfim compreensível, uma vida de adulto. Assim ela o quisera e o escolhera. (LISPECTOR, 1983, p.20)

No espaço familiar, Ana vive como um autômato, sufocando a sua verdadeira identidade. No ambiente doméstico – o apartamento – não era permitido a ela despir-se do seu outro para encarnar o seu eu. Ali, ela exerce os papeis que lhe cabem - de mãe, esposa e dona-de-casa; todas as suas ações são ligadas ao cotidiano doméstico, sempre em função do bem estar da família. Em conseqüência disso, observa-se o conflito da personagem, figurativizado na imagem de negação de si mesma e na dedicação com o conforto e equilíbrio do outro, o que serve para revelar a duplicidade da mulher: a estranheza contida na polaridade eu/outro e a aceitação/negação com as referências do universo feminino. Sua precaução reduzia-se a tomar cuidado na hora perigosa da tarde, quando a casa estava vazia sem precisar mais dela, o sol alto, cada membro da família distribuído nas suas funções. Olhando os móveis limpos, seu coração se apertava um pouco em espanto. [...]. Saía então para fazer compras ou levar objetos para consertar, cuidando do lar e da família à revelia deles. Quando voltasse era o fim da tarde e as crianças vindas do colégio exigiam-na. Assim chegaria a noite, com sua tranqüila vibração. (LISPECTOR, 1983, p. 21)

De certa forma Ana sentia-se até confortável pelo fato de estar sempre ocupada com os seus afazeres domésticos, pois estes garantem o afastamento de si mesma. A vida de seus entes queridos, os outros, consome a personagem em seu dia a dia, sufocando-a, que ela nem lembra de sua própria vida. Os filhos, a casa, o marido, o ambiente familiar funcionam como uma espécie de refúgio, sua zona de aparente conforto, ao qual ela se sente profundamente apegada. 3. O despertar para o si mesmo e para o outro Apesar de ter consciência da sua desordem íntima, Ana não quer que as coisas escapem de seu controle. Ela planeja a vida minuciosamente para que nada de diferente aconteça. O medo de encarar-se a si mesma é tão comum na existência dessa personagem, que ela sempre procura fazer dos seus dias uma seqüência ordenada e controlada de acontecimentos, como podemos observar nesse pequeno trecho: Mantinha tudo em serena compreensão, separava uma pessoa das outras, as roupas eram claramente feitas para serem usadas e podia-se escolher pelo jornal o filme da noite - tudo feito de modo a que um dia se seguisse ao outro. (LISPECTOR, 1983, p. 24)

Ao deixar o espaço da casa, mesmo que para cumprir uma responsabilidade cotidiana - fazer as compras - Ana pode, por um instante, ser ela mesma, pois, o espaço da rua permite o acesso ao mundo da liberdade, da desordem e também do perigo. E é justamente o contato com esse mundo perigoso que fará toda a diferença na vida dela.

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Anais do II Congresso Internacional de Estudos Linguísticos e Literários na Amazônia (CIELLA)

Após essa saída, ao voltar das compras, Ana vivencia uma experiência inesquecível e mágica, capaz de mudar toda a sua vida. Só que ela não tinha consciência disso... “Foi então que olhou para o homem parado no ponto” (CLARICE, 1983, p. 21) Na cena em que a personagem atinge outro estágio da existência, verifica-se uma alternância de sentimento experimentado pela mulher, decorrente da atitude de reflexão de um eu em total falta de sintonia com o mundo. Então Ana reconhece que vive realmente um momento de crise em sua vida e olha tudo ao seu redor com estranheza e espanto. O que chamava de crise viera afinal. E sua marca era o prazer intenso com que olhava agora as coisas, sofrendo espantada. O calor se tornara mais abafado, tudo tinha ganho uma força e vozes mais altas. Na Rua Voluntários da Pátria parecia prestes a rebentar uma revolução, as grades dos esgotos estavam secas, o ar empoeirado. Um cego mascando chicles mergulhara o mundo em escura sofreguidão. (LISPECTOR, 1983, p. 23)

No decorrer da viagem de Ana, viagem que é ao mesmo tempo deslocamento físico e diálogo introspectivo, dentre todos os elementos que passam diante do olhar da personagem, uma delas chama sua atenção: a figura imóvel de um homem. “Foi então que olhou para o homem parado no ponto” (CLARICE, 1983, p. 21) O homem para o qual Ana olha é um cego. Mesmo sendo um indivíduo extremante comum, ele desperta na personagem uma sensação de profunda intranqüilidade e estranheza. Esse sujeito cego representa o agente epifânico tão característico da obra clariciana, ele é o elemento que propicia o despertar de Ana para a existência de seu caráter dual - o eu diante do seu outro. O olhar de Ana para o cego é na realidade um olhar para ela mesma, para as suas limitações, para o que há de mais íntimo e profundo no seu ser. É um olhar contemplativo como alguém diante do espelho, diante de seu próprio reflexo. Porém, na tentativa de perpetuar sua cegueira narcísica, ela ainda tenta fugir desse encontro consigo mesma, porém em vão, porque “os ovos se haviam quebrado no embrulho de jornal.” (LISPECTOR, 1983, p.22) A imagem do ato de quebrar os ovos retrata o rompimento do mundo em que Ana vivera até agora, a passagem para uma nova vida. A simbologia do ovo traz à tona a idéia de nascimento, o possível nascimento de Ana para uma vida em que ela possa assumir seu verdadeiro self. O momento epifânico experimentado pela protagonista traz à tona uma sensação de estranhamento. Uma estranheza que está relacionada ao despertar da sua verdadeira identidade. O si mesmo que começa a desabrochar e que parece estranho a Ana é na verdade algo que ela já conhece bem, como explica Freud: “O estranho é aquela categoria do assustador que remete ao que é conhecido, de velho, e há muito familiar.” (FREUD, 1996, p. 238). Essa sensação de desconhecimento diante de algo que é bem conhecido faz com que Ana estranhe até os utensílios que ela própria havia confeccionado: A rede de tricô era áspera entre os dedos, não íntima como quando a tricotara. A rede perdera o sentido e estar num bonde era um fio partido; não sabia o que fazer com as compras no colo. E como uma estranha música, o mundo recomeçava ao redor. O mal estava feito. (LISPECTOR, 1983, p. 23)

Ana sente-se tão impactada por esse acontecimento, por essa revelação, que até passa do seu ponto de parada. Ao saltar do bonde, no meio da noite, e ainda meio desorientada, ela atravessa os portões do Jardim Botânico – a representação metafórica do novo mundo que salta aos olhos de Ana, o mundo que ela está agora a conhecer, pois o contato com o Jardim Botânico é na verdade o encontro consigo mesma: Andava pesadamente pela alameda central, entre os coqueiros. Não havia ninguém no Jardim. Depositou os embrulhos na terra, sentou-se no banco de um atalho e ali ficou muito tempo. A vastidão parecia acalmá-la, o silêncio regulava sua respiração. Ela adormecia dentro de si. (LISPECTOR, 1983, p.25)

Ao encontrar-se com o seu verdadeiro eu, Ana, enfim, reconhece que o seu mundo há muito havia se rompido; agora tudo se configura como passagem e novidade. Deliciando-se no silêncio daquele paraíso, a personagem ordena suas idéias e pensamentos para penetrar numa realidade onírica e imaginária. Assim, nesse estágio de encantamento, é possível perceber essa nova vida tão bonita quanto o Jardim Botânico.

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Tema geral: Línguas e Literaturas: Diversidade e Adversidades na América Latina

Como a personagem portuguesa do conto “Devaneio e embriaguez duma rapariga”, da mesma coletânea de contos, Ana leva seu devaneio às últimas conseqüências, a ponto de compor uma realidade que só cabe no sonho e na imaginação ou sob o efeito do álcool, como acontece com a portuguesa. E é esse devaneio que suscita na protagonista do conto “Amor”, um desejo de ruptura com sua atual condição e, assim, o estabelecimento de sua verdadeira identidade. Pois, conforme podemos verificar na narrativa, de volta ao apartamento, Ana ainda experimenta uma sensação de estranhamento diante daquele “novo” ambiente familiar, categoria que emblematiza sua nova morada. Em outras palavras, vale afirmar, ainda, que ela achava estranho não só o apartamento, mas também a própria vida que vivera até ali. Abriu a porta de casa. A sala era grande, quadrada, as maçanetas brilhavam limpas, os vidros da janela brilhavam, a lâmpada brilhava - que nova terra era essa? E por um instante a vida sadia que levara até agora pareceu-lhe um modo moralmente louco de viver. (LISPECTOR, 1983, p.27)

Então Ana reconhece que definitivamente não havia como escapar à verdade. Os dias que ela havia inventado fugiram-lhe completamente ao controle. Era necessário compreender que finalmente acontecera o afloramento para a nova existência. Dentro dela não havia mais espaço para que o seu verdadeiro eu pudesse se esconder. Ana já havia desabrochado assim como uma borboleta deixa o casulo; e desse acontecimento não era mais possível fugir: Deixou-se cair numa cadeira com os dedos ainda presos na rede. De que tinha vergonha? Não havia como fugir. Os dias que ela forjara haviam-se rompido na crosta e a água escapava. Estava diante da ostra. E não havia como não olhá-la. De que tinha vergonha? É que já não era mais piedade, não era só piedade: seu coração se enchera com a pior vontade de viver. (LISPECTOR, 1983, p.28)

Agora que o cego conduzira Ana ao conhecimento dela mesma, era preciso encarar a realidade. Assim ela assume a sua nova identidade e passa a ter uma outra relação com o mundo. Essa “pior vontade de viver” representa a vida que Ana havia reprimido até agora, mas que permaneceu ofuscada e oculta em seu interior. O cego era o responsável por todo o despertar de Ana. “Depois, quando todos foram embora e as crianças já estavam deitadas, ela era uma mulher bruta que olhava pela janela. A cidade estava adormecida e quente. O que o cego desencadeara caberia nos seus dias? Quantos anos levaria até envelhecer de novo?” (LISPECTOR, 1983, p.30) Depois de viver esse despertar para o autoconhecimento, Ana apresenta-se diante da família como um rosto estranho. Isso porque agora ela é uma nova Ana, uma nova mulher que desabrochou para viver o seu verdadeiro eu. Ao chegar o final do dia ela encontra-se diante do espelho: “E, se atravessara o amor e o seu inferno, penteava-se agora diante do espelho, por um instante sem nenhum mundo no coração. Antes de se deitar, como se apagasse uma vela, soprou a pequena flama do dia”. (LISPECTOR, 1983, p.31) Na verdade, esse ato de pentear-se diante do espelho tem um significado bem mais profundo do que pode aparentar. É na verdade um momento de expressão do narcisismo de Ana. Nesta cena, o ato contemplativo diante do espelho reflete uma imagem que permite a continuidade do devaneio, e como Narciso diante da fonte, a tentativa de compreensão do reflexo e reconhecimento do seu próprio interior, o seu eu. Vale salientar que o reflexo é a materialização do duplo, pois o eu se efetiva na imagem do outro. Porém, conforme evidencia Brunel, O duplo é uma ilusão “aquele que se desdobrou (duplicou) cria para si à ilusão de agir sobre o exterior, quando na verdade não faz mais que objetivar seu drama interior” (1998, p.267). A ilusão necessária para o despertar de Ana para sua nova/outra existência, para sua condição de Narciso esfacelado. O que nos faz lembrar a oportuna declaração de Cavalcanti sobre o mito de Narciso: Narciso busca a si mesmo no outro. Esta presença objetiva do outro que atesta a sua existência. Este outro que o reflete e no qual se vê refletido. Narciso brinca com a imagem de si mesmo no outro e do outro em si mesmo buscando sua própria identidade, sua condição de ser no mundo. Procura na relação dos contrários à natureza do seu existir, a possibilidade de ser, e de deixar de ser do outro. (1992, p.208).

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Vale dizer que o ato reflexivo e contemplativo de Ana diante do espelho é a revelação, por si só, de seu desejo de autoconhecimento, pois, conforme declara Cavalcanti: “O olhar de Narciso para si mesmo é a metáfora do impulso do homem para o conhecimento, da sede de conhecer. Narciso se viu porque tinha sede.” (1992, p.210). É a busca do autoconhecimento que materializa, no conto, o drama da figura feminina, ou seja, a dificuldade de lidar com sua duplicidade, seja através da negação de uma das partes – eu ou outro – ou da incapacidade de compreender tal paradoxo. Na verdade, a ação de Ana demonstra que ela parece ter vencido a desordem interior que se instaura nas primeiras páginas da narrativa até o desfecho, o momento em que o cego se coloca em seu caminho para acordá-la. Agora não há mais o sentimento de medo de estar diante de si mesma. Ana cresceu, enxergou a luz que se colocava para além da caverna e assim torna-se consciente dessa outra dimensão de sua realidade. Desperta para a vida, Ana, como uma lagarta, já pode deixar o casulo e metamorfosear-se em borboleta. 4. Considerações finais A narrativa clariciana é rica em metáforas que evocam o narcisismo. Os conflitos interiores vivenciados pelas suas personagens retratam, na verdade, a condição em que vive o homem contemporâneo, esse homem esfacelado e descentrado, de identidade mutável, que muitas vezes, condicionado pelas agruras da vida, é obrigado a reprimir seu verdadeiro self em função dos papeis sociais que desempenha. Contudo, mesmo em meio ao esfacelamento, esse homem sempre está à procura de seu próprio conhecimento; ou seja, ele também quer conhecer-se a si mesmo. A autocontemplação narcísica e a busca pela verdadeira individualidade também estão presentes nesse homem contemporâneo, embora que de maneira sufocada e estilhaçada. Como diz Cavalcanti, o ser humano já nasce destinado a isso: “O homem é um ser destinado ao conhecimento. Este é o seu destino e esse foi o destino de Narciso”. (1992, p.14). Ana, a personagem central do conto, é uma mulher simples que experimenta uma nova história de vida. Ela vive um momento mágico e necessário para o despertar de si mesma, como uma mulher que vive, que existe, que tem vontades, que tem desejos, o pior desejo de viver. O que acontece, na verdade, é o despertar para o autoconhecimento. Mesmo tendo que vencer seus conflitos e impedimentos individuais, a personagem clariciana realmente (re)encontra a sua verdadeira identidade; e isso acontece após vivenciar a experiência mágica desencadeada pela contemplação do cego, que simboliza na verdade a sua autocontemplação. A sensação de estranhamento contido na estrutura narrativa e na ação da personagem é parte integrante do processo de (re)conhecimento e autoconhecimento. A sensação de estranheza diante de algo que verdadeiramente não é estranho, mas sim, familiar, configura-se como um processo que faz parte da vida humana. Ana, ao confrontar-se com o seu verdadeiro eu, experimenta esta sensação por não se dar conta de que essa “nova” identidade não é realmente nova; pelo contrário, sempre esteve oculta em seu interior para dar lugar ao seu outro. Ao contemplar-se diante do espelho, Ana contempla uma realidade que é a de verdade sobre si mesma, pois o espelho reflete a realidade como ela realmente é, sem subterfúgios, uma vez que, conforme Umberto Eco, o espelho não mente. Desse modo, podemos dizer, a partir da simbologia contida no espelho, que é num diálogo com o outro refletido que Ana consegue enxergar, nitidamente, essa nova mulher, o ser que ressurge para uma nova existência. Referências BRUNEL, P (Org.). Dicionário de mitos literários. 2. ed. Trad. Carlos Sussekind et. al. Rio de Janeiro: José Olympio, 1998.

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Tema geral: Línguas e Literaturas: Diversidade e Adversidades na América Latina CAVALCANTI, R. O mito de narciso: o herói da consciência. São Paulo: Cultrix, 1992. CHEVALIER, J. e GHEERBRANT, A. Dicionário de Símbolos: mitos, sonhos, costumes, gestos, formas, figuras, cores, números. 6 ed. Tradução V. da C. Silva. et al. Rio de Janeiro: José Olympio, 1992. ECO, U. Sobre os espelhos e outros ensaios. Tradução de Beatriz Borges. Rio de Janeiro: Nova Fronteira. 1989. FREUD, S. Sobre o Narcisismo: uma Introdução. Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud. Traduzido do Alemão e do Inglês sob a direção geral de Jayme Salomão. Rio de Janeiro. Imago, 1996. p.81-107. _____. O estranho. Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud. Traduzido sob a direção geral de Jayme Salomão. Rio de Janeiro: Imago, 1990. v. 18. p. 12-85. _____. O futuro de uma ilusão, o mal estar na civilização e outros trabalhos (1927-1931). Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud. Traduzido sob a direção geral de Jayme Salomão. Rio de Janeiro: Imago, 1996. V. XXI. GRIMAL, P. Dicionário da mitologia grega e romana. 2. ed. Tradução V. Jabouille. Rio de Janeiro: BERTRAND, 1993. LISPECTOR. C. Laços de Família. 18 ed. Rio de Janeiro. Editora Nova Fronteira, 1983. MATTA, R. A casa e a rua: espaço, cidadania, mulher e morte no Brasil. Rio de Janeiro: Rocco, 1997.

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Macunaíma: a obra fílmica e seu caráter parodístico em relação à obra literária Alcir de Vasconcelos Alvarez Rodrigues (Universidade Federal do Pará)

Resumo: Este artigo compara dois corpora – Macunaíma, herói sem nenhum caráter (1928), romance de Mário de Andrade, e o filme Macunaíma (1969), de Joaquim Pedro de Andrade –, considerando a relação entre ambos de forma não hierárquica. A película é uma paródia do romance-rapsódia, uma tradução intersemiótica, e não é uma obra menor que o livro, cuja linguagem híbrida permite incorporar valores de outras artes. Nesse caso, a música: o Tropicalismo – um movimento musical brasileiro dos anos de 1960, que inclusive muito influenciou o cinema do país. A ‘intertextualidade das diferenças’ é um conceito útil usado por nós nesta análise. O livro modernista e o filme tropicalista mantêm um diálogo harmônico, principalmente quando pintam com cores carnavalescas um Brasil de diversidades como percurso literário de Macunaíma, herói malandro, mas do povo, sem caráter por não ter caráter distintivo, não por ser um mau caráter. Palavras-chave: Macunaíma; paródia; Modernismo; Tropicalismo.

Abstract: This article compares two corpora – the novel Macunaíma, herói sem nenhum caráter (1928), by Mário de Andrade, and the movie Macunaíma (1969), by Joaquim Pedro de Andrade – considering between both a non-hierarchy of relations. The cinematographic work is a parody of the novel-rhapsody, an intersemiotic translation and not a work minor than book, whose hybrid language permits to incorporate values of others Arts. In this case, Music: Tropicalismo – a musical Brazilian 1960’s movement that influenced including the movies in the country. The ‘intertextuality of the differences’ is a practical concept used for us to this analysis. The modernist book and the tropicalist film keep a harmonic dialogue, principally when paint with merrymaker colors a Brazil of diversities as a literary course of Macunaima, a tricker hero, but a people hero, without characteristic trait, not an unprincipled. Key words: Macunaíma; parody; Modernism; Tropicalism.


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Introdução Se não é mais possível compartimentações estanques ou delimitadoras entre as artes, no emaranhado de signos e códigos que precariamente nos representam, de há muito já se desfez o mito da fidelidade no processo da tradução, no processo de transmutação de uma linguagem para outra, de um código para outro. Celebramos, agora, a criatividade, a invenção. As transposições, as traduções, nas instâncias, são, antes de mais nada, processos de (re)criação, de adaptação, de (re)ajustes,em suma, de invenção plena. (Cardoso, 20081)

O multifacetado intelectual e artista brasileiro Mário Raul de Morais Andrade (professor, ensaísta, crítico literário, músico e musicólogo, poeta, romancista, estudioso da cultura brasileira) nasceu em 1893, em São Paulo, e faleceu nessa cidade, em 1945. Exerceu cargos sempre ligados à área cultural, atuando também como colunista crítico de vários jornais. Porém, notabilizou-se mesmo como escritor, produzindo vasta obra literária e ensaística. Escreveu poesia: Há uma gota de sangue em cada poema (1917), Paulicéia desvairada (1922), Losango cáqui (1926), Clã do jabuti (1927), Remate de males (1930), Poesias (1941) e Lira paulistana seguida d’ O carro da miséria (1946); contos: Primeiro andar (1926), Belazarte (1934) e Contos novos (1946); romances: Amar, verbo intransitivo (1927), Macunaíma (1928); ensaios: A escrava que não é Isaura (1925), Música do Brasil (1941), O movimento modernista (1942) e O empalhador de passarinho (1944). Foi um ativo incentivador da Semana de Arte Moderna (1922), além de teórico da literatura e da cultura brasileiras. Na literatura, foi importante líder da primeira fase do Modernismo, ao lado de Oswald de Andrade. Pautou sua escrita pela busca de renovação da linguagem literária, pesquisando sempre por técnicas originais de invenção lexical, defendendo uma língua literária de tom mais coloquial e próxima da fala popular, assumindo um nacionalismo mais crítico, portanto. Um dos mais significativos escritores brasileiros do século XX. Nasceu o cineasta brasileiro Joaquim Pedro de Andrade no Rio de Janeiro, em 1932, e faleceu em 1988. Cursou graduação em Física (1950-1955), mas acabou por mergulhar no cinema, a partir de 1957. Rodou filmes de natureza documentarista, assim como de natureza ficcional, entre curtas e longas metragens: O mendigo (1953), O mestre de apipucos e O poeta do castelo (ambos de 1959), Couro de gato (1960), Garrincha, alegria do povo (1962), O padre e a moça (1965), Cinema Novo (1965), Brasília, contradições de uma cidade nova (1967), Macunaíma (1969), Os inconfidentes (1972), Guerra conjugal (1975), Vereda tropical (1977) e o Homem do Pau-Brasil (1981), entre outros. É unânime entre os críticos que Macunaíma é a maior de suas obras, marcadas todas pela temática histórica e social, temperadas também pela faceta satírica de um dos mais relevantes cineastas brasileiros, que flutuou entre o Cinema-Novo, o Tropicalismo e mesmo a pornochanchada. Em se tratando do âmago, do esqueleto (por assim dizer), das obras desses dois ilustres Andrades, o filme Macunaíma segue, em seu roteiro, apenas as linhas gerais do enredo do romance de Mário de Andrade. Além do mais, logicamente, o tempo histórico sofre alterações e é esse tempo que é ficcionalizado pelo longa-metragem, a década de 1960, uma nova musculatura que Joaquim Pedro de Andrade sobrepõe ao esqueleto, como se a película fosse um palimpsesto do livro, com todas as peculiaridades que a linguagem híbrida da obra cinematográfica carrega. Dito isso, podemos considerar, para efeito de estudo, que a sinopse apresentada na capa do DVD (2006, cópia restaurada) é bastante satisfatória para complementar o que vimos aqui discutindo: Macunaíma, uma adaptação da rapsódia de Mário de Andrade, é a história de um anti-herói, ou “um herói sem nenhum caráter”, nascido no fundo da mata virgem. De preto vira branco, troca a mata pela cidade onde vive incríveis aventuras acompanhado de seus irmãos. Na cidade, segue um caminho zombeteiro, conhecendo e amando a guerrilheira Ci e enfrentando o vilão milionário, Venceslau Pietro Pietra, para reconquistar o amuleto que herdara de Ci, o muirakitã (sic). Vitorioso, Macunaíma torna à floresta carregado de eletrodomésticos, inúteis troféus da civilização. (Macunaíma, 2006, 1DVD)

A passagem sugere o contexto da guerrilha urbana que se contrapôs ao regime militar instaurado em 1964 e radicalizado a partir de dezembro de 1968, quando da implantação do Ato Institucional nº. 5, o funesto AI-5. Esse contexto vai presidir toda a ambientação escolhida por 1

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Ver referências: Anais da ABRALIC, 2008.

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Tema geral: Línguas e Literaturas: Diversidade e Adversidades na América Latina

Joaquim Pedro de Andrade em sua transposição de uma obra da década de 1920 para a de 1960, uma realização das mais eficazes, no que diz respeito a esse diálogo bastante comum entre o cinema e a literatura brasileira, diálogo sem hierarquia, em que as duas artes saem ganhando, além de o processo de recepção das obras ser redimensionado e enriquecido. 1. Duplo corpus Espero que as aventuras bem brasileiras de Macunaíma, herói de nossa gente, divirtam e dêem o que pensar pra vocês. (Joaquim Pedro de Andrade2)

Na revista Língua portuguesa, nº 14 (2006, p. 32), há um curioso artigo um tanto em forma de trocadilho – “O caráter de Macunaíma no cinema” – com o subtítulo do livro de Mário de Andrade, publicado em 1928, Macunaíma, o herói sem nenhum caráter, obra classificada pelo autor como uma rapsódia 3. O escritor já afirmara certa vez que “em verdade, sempre será conto aquilo que seu autor batizou com o nome de conto” (apud GOTLIB, Nádia Battella, 1985, p.9), ele próprio, como se vê pela frase, avesso a classificações limitadoras, de caráter compartimental. Aproveitando tal deixa dada por Mário, queremos ressaltar o aspecto primordial metodológico deste nosso trabalho analítico, que aqui se quer comparativo, mas não exatamente naquele aspecto consagrado pelo rótulo de dicotômico. Aqui não se trata de considerar nosso duplo corpus de estudo – a obra literária Macunaíma (de 1928) e sua transposição homônima para o cinema (de 1969) – como par antagônico, mas sim, como par complementar. 2. Cinema de caráter parodístico Considerando todos esses fatores, partimos da ideia de que Joaquim Pedro de Andrade (essa homonímia de sobrenomes teria sido ‘mera coincidência’?) produziu uma obra cinematográfica “mostrando”, segundo o artigo já mencionado, “que é possível ser fiel a um original sem necessariamente criar adaptação ao pé da letra” (p. 32-33). O livro, aqui tido como texto-base ou texto original, já recebe um título satírico, até paródico, por ser ‘sem nenhum caráter’, já que, de modo geral, todos querem um herói ‘mocinho’: corajoso, valente, gentil, bondoso – o estereótipo do herói romântico. Contudo, vemos que o filme, aqui tido como texto-produto, texto derivado ou originário, consegue fazer paródia de um texto já tido como parodístico, apresentando um certo ‘heroísmo da malandragem’, muito comum nas letras de samba de compositores cariocas, que exaltam a imagem dos que se dão bem na vida sem esforço, mas não pelo viés, lógico, da corrupção dos políticos, do latrocínio, do seqüestro, do tráfico de drogas, no máximo uma contravenção, tipo jogo do bicho, por exemplo. 3. Intertextualidade das diferenças Aqui é essencial entender a relação entre os dois textos (livro e filme) como intertextual, de diálogo intrínseco não-hierarquizado4, ou seja, a literatura não é melhor que o cinema simplesmente pelo seu caráter de texto original – hipotexto, segundo Genette –, do qual deriva o texto originário – hipertexto, segundo o mesmo autor (GENETTE, 1982, apud KOCH, 2007, p. 119) –, cuja relevância e criatividade surgem do que se pode chamar de intertextualidade das diferenças (MAINGUENAU, apud KOCH, 2007, p. 635), através de um processo de releitura paródica – uma espécie de transgressão, “traição” (conforme Bazin), no bom sentido – a partir de uma tradução intersemiótica (PLAZA, 2003, p. XI), ou seja, neste caso, de uma linguagem verbal para uma de natureza que se convencionou chamar de híbrida. Cf. início do filme em DVD. Segundo FARACO & MOURA (1984, p. 86), Mário de Andrade usa essa palavra para designar “[...] superposição de elementos aproveitados de cantos tradicionais ou populares, [...] uma colagem de diversos componentes da cultura popular brasileira, reunidos em torno da personagem central”. 4 Conferir em < http://fcsh.unl.pt/edtl/verbetes/C/correspondencia_artes.htm >. Acesso em: 22 out. 2007. 5 Pesquisar nessa página “valor de subversão”. 2 3

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No romance (desculpem-nos: quisemos dizer ‘rapsódia’), a narrativa se inicia assim: No fundo do mato-virgem nasceu Macunaíma, herói de nossa gente. Era preto retinto e filho do medo da noite. Houve um momento em que o silêncio foi tão grande escutando o murmurejo do Uraricoera, que a índia tapanhumas pariu uma criança feia. Essa criança é que chamaram de Macunaíma. Já na meninice fez coisas de sarapantar. De primeiro passou mais de sei anos não falando. Si o incitavam a falar exclamava: – Ai! que preguiça!... (ANDRADE, Mário, 1984, p. 9)

O narrador, além de revelar ser o protagonista “preto retinto” e “uma criança feia”, não faz referência a outras características físicas do ‘herói’, como por exemplo, quando este nasceu (estatura, pesagem, etc.), nem ao modo como nasceu, se chorava naquele momento, ou quais as vestimentas da mãe ou dos irmãos, nem tampouco se refere a esse nascimento como um fato cômico, elementos esses observáveis em uma foto extraída do filme de Joaquim Pedro, mostrada logo a seguir (figura 1), o que caracteriza o texto fílmico, neste caso, como preenchedor lacunar de dados que, na linguagem verbal literária, por sua própria natureza, apresentam-se implícitos e, por causa disso, mais que plurissignificativos, só evocados mentalmente pelo horizonte interpretativo do leitor, este fruidor que, tanto na obra literária quanto na cinematográfica, não encontrará referência à paternidade de Macunaíma e de seus irmãos, Maanape, o mais velho, e Jiguê, o do meio, já que o herói é o caçula. Figura 1 (Língua Portuguesa, Dez. 2006, p. 32)

Quem atente ao episódio inicial do filme, ao qual o recorte fotográfico alude, constata a natureza parodística da transposição cinematográfica. Por exemplo, ao trecho “Houve um momento em que o silêncio foi tão grande escutando o murmurejo do Uraricoera...”, corresponde uma cena em que a “indígena” grita estridentemente de tanta dor, já que está parindo um “bebê” de dimensões impensáveis para uma criança recém-nascida, apesar da pouquíssima estatura e corpulência de seu intérprete, o ator Grande Otelo (um adulto, portanto), que, expelido do ventre da genitora, que caminhava dentro de sua palhoça, cai de cabeça no chão (como se vê na foto), logo a chorar bastante, também de forma estridente. E o que faz a mãe, então? Apenas diz para Maanape e Jiguê (irmãos do herói), ao afastar-se da ‘criança’, indiferentemente: “– Pronto. Nasceu.” Daí segue este trecho de ‘conversa familiar’: JIGUÊ – É hômi, mãe! Olha só a cara dele, mãe. Não é bonitinho? MÂE – Oxente! Que menino feio, danado!

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Tema geral: Línguas e Literaturas: Diversidade e Adversidades na América Latina MACUNAÍMA (Chorando) – Uêêêê! Uáááá! MAANAPE – A senhora também não é nenhuma beleza, não. JIGUÊ – Chora não, irmãozinho. Chora não. Feiúra não é documento. (op. citat.)

Na apresentação de sua obra, restaurada em DVD, Joaquim Pedro de Andrade, entre outras informações que dá, sugere ‘pistas’ de seus objetivos, quando diz: “Espero que as aventuras bem brasileiras de Macunaíma, herói de nossa gente, divirtam e dêem o que pensar pra vocês”. Lembra até o princípio horaciano de unir o útil ao agradável (“utile” e “dulci”). Divertir pode parecer ser o mais óbvio, até mesmo na escrachada paródia, na fala acima, de Jiguê, do dito popular “Tamanho não é documento” (transformado em “Feiúra não é documento”). Mas, para além desse objetivo, atinge o de dar o que pensar ao reler a ideia marioandradiana de retrato da cultura popular como espécie de retrato da nação brasileira, emoldurada por uma certa indefinição, já prenunciada no subtítulo, pois ‘sem nenhum caráter’ não significa exatamente que o herói seja um mau-caráter, “[...] ele tem caráter de um pícaro, de um picareta, de um picarus brasiliensis”, conforme Kothe (1987, p. 48-9). 4. Faces modernista & tropicalista Mário de Andrade, assim como Oswald de Andrade, modernistas da primeira e dita heróica fase do Modernismo brasileiro, repensaram nosso paradigma cultural de forma crítica, em busca de realizar uma obra verdadeiramente nacional, encontrando em nossas raízes históricas e nas camadas populares uma direção para as metas estabelecidas por eles. Seus caminhos deveriam não sair da rota que levaria para a criação de uma literatura brasileira por excelência. Mas Joaquim Pedro de Andrade não realizou uma releitura parafrásica da obra modernista. Sua transposição, de caráter parodístico, como já se disse, tem facetas cinema-novistas e, principalmente, tropicalistas. Daí porque o autor adota uma postura bem-humorada, de crítica carnavalizada (SANT’ANNA, 1995, p. 94) 6, a partir de um tipo especial de caótica colagem de elementos em contraposição, díspares mesmo, além do uso crítico dos lugares-comuns, que dão a impressão de um cinema de linguagem experimental que interpreta a realidade do Brasil “[...] num estilo sensual, confuso e profuso” (id., 2004, p. 61-2). Segundo a revista Literatura vestibular 2007 (p. 6): “Filmado 40 anos após o livro ter sido escrito, conseguiu, além de relatar a história de Mário de Andrade, transmitir todos os valores culturais, sociais e políticos do fim da década de 60”. 4.1. O Pai do Mutum A figura 2, exibida em seguida, ‘pinça’ um flash que no romance-rapsódia ocorre no capítulo X-“Pauí-Pódole”: De manhã teve parada na Mooca, ao meio-dia missa campal no Coração de Jesus, às dezessete corso e batalha de confetes na avenida Rangel Pestana e de noite, depois da passeata dos deputados e desocupados pela rua Quinze, iam queimar um fogo-de-artifício no Ipiranga. Então pra espairecer Macunaíma foi no parque ver os fogos”(ANDRADE,1984, p. 70).

Em dado momento, um homem sobe em uma estátua e tenta explicar para o herói o que é o Dia do Cruzeiro, apontando para a constelação do Cruzeiro do Sul. O personagem faz um discurso e é contestado por Macunaíma, que sobe na estátua, dizendo ser mentira tudo o que foi dito no discurso anterior ao dele e explica que as quatro estrelas ele “[...] sabia muito bem serem o Pai do Mutum morando no campo do céu” (ibid., p. 71). Em meio à história narrada, o herói emprega o já famoso dístico: “Pouca saúde e muita saúva, / Os males do Brasil são” (ibid., p. 72). Na seqüência: “Macunaíma parou fatigado. Então se ergueu do povaréu um murmurejo de felicidade [...]” (ibid., p. 73) e o “[...] o povo se retirou comovido, feliz no coração cheio de explicações [...]”, enquanto “Macunaíma parado em riba da estátua ficara sozinho ali” (ibid., loc. citat).

Cf. nessa página a “Teoria da carnavalização”.

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Figura 2 (Língua Portuguesa, dez 2006, p. 33)

4.2. O discurso reacionário Entretanto, como se vê na foto da figura 2, na obra cinematográfica não só Macunaíma subiu na estátua, sobem também Jiguê e Maanape. As roupas de uso quase inverossímil pelo aspecto de mistura carnavalesca de cores berrantes dão o toque tropicalista, fato esse somado aos modos e posturas ‘matutos’ em plena metrópole (São Paulo), a fundir o moderno e o arcaico (RAMOS, 1987, p. 3737) de uma cultura híbrida como a brasileira. E não seria absurdo considerar esta cena como emblemática da representação das matrizes étnicas formadoras de nossa nação. É aí que Macunaíma contesta o discurso (reacionário) de um personagem anônimo, que diz: – Em defesa das nossas propriedades e pequenas economias, em defesa da mortalidade (sic) de nossas crianças; Contra o perigo da penetração em nossa terra de ideologias utópicas (sic), espúrias... Contra o ateísmo ateu (sic), contra o desregramento dos costumes e improbabilidade (sic) administrativa, que no governo passado foram a desgraça do Brasil [...]” (op. citat.)

E, por causa disso, o herói sofre com a acusação de “Subversivo!”, e tem de fugir, enganando com criatividade seus perseguidores desatinados. 4.3. O discurso do Herói e o AI-5 Sabemos que no DVD, restaurado em 2006, esta cena aparece, mas havia sido censurada quando o filme foi lançado no mercado, junto com mais outras seis. Sabemos que foi concluído no início de 1969, quando o diretor também é preso, em decorrência da linha dura da censura que nasce com o AI-5, em 1968. Também pudera, Joaquim Pedro mostra da parte de um defensor do golpe Curiosa é a ideia relacionada a traços de brasilidade a partir de “quadros alegóricos”.

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militar de 1964 um discurso tão incoerente e desinformado (talvez fosse melhor dizer alienado e risível), pecando até pelos erros de impropriedade lexical 8, que é contestado pelo herói e seus irmãos. O caráter parodístico é evidenciado tanto por se falar do Cruzeiro que não se pode ver por ser de dia – segundo fala de Macunaíma – quanto pelo fato inusitado/ridículo de a estátua homenagear um “Pioneiro da ginástica pelo rádio”. É gritante o escárnio, ainda mais quando os irmãos expulsam a dupla de cima do ‘monumento’ e ocupam seu lugar, com o herói fazendo o seguinte discurso (aqui transcrito em síntese): – Aquelas quatro estrelas lá em cima, que ninguém tá vendo mesmo porque agora é de dia, não têm nada a ver com o peixe. Agora, o importante é que as pragas do Brasil é bicho de café, lagarta rosada, futebol, mosquito pium, maruim, muriçoca, borrachudo, vareja e toda essa mosquitada... E também muita vaca braba que tem por aí, porque a vaca mansa dá leite. A vaca braba dá se quiser... E mais tudo que tem de doença, como erisipla, sarampão, espinhela caída, constipação, maleita, dor de barriga, de dente, frieira, inchaço, amarelão... E um gigante muito do mau caráter: Venceslau Pietro Pietra, que roubou meu muiraquitã. Gente: “Muita saúva e pouca saúde os males do Brasil são”. (op. citat.)

Entre uma pausa e outra do discurso, o herói ouve palmas, palavras de elogio e vaias também. Por fim, quando termina o discurso, com o dístico em destaque acima, ouve gritos: “– Subversivo! Subversivo! Comunista!”, “ – Tem que tá na cadeia!” e “ – Chame a polícia aí...” Então, o trio foge em disparada. Percebe-se então nessa passagem referida a crítica ‘corrosiva’ do diretor, como se estivesse emitindo um libelo contra um governo golpista que, para se manter no poder, não permitia críticas feitas à falta de liberdade de expressão, em qualquer setor, inclusive no cinema, daí a maneira figurada de mostrar a faceta obtusa e burra de uma censura da “ditadura escancarada” – como diria mais tarde o jornalista Élio Gaspari –, que perseguia, prendia, torturava e até matava quem produzisse um discurso, para “eles”, ‘do contra’, mesmo de elaboração ingênua, com teor de conhecimento popular e de natureza não-ideológica, como é o caso do de Macunaíma, na película. 5. Conclusão E só o papagaio no silêncio do Uraricoera preservava do esquecimento os casos e a fala desaparecida. Só o papagaio conservava no silêncio as frases e feitos do herói. Tudo ele contou pro homem e depois abriu as asas no rumo de Lisboa. E o homem sou eu, minha gente, e eu fiquei pra vos contar a história. (ANDRADE, op. citat., p. 135)

No percurso do caminho de leitura entre uma narrativa literária e uma cinematográfica, podemos afirmar que o leitor/fruidor sempre ganha em dimensão de releitura das obras, não importa em que cronologia as percorre. A intersemiose é relevantíssima numa época cujas trocas intertextuais, tão freqüentes, irrompem de todas as direções, e não se caracterizam por serem centrífugas ou centrípetas em relação à literatura. Desde muito, essa interdiscursividade é prática bem comum entre as várias modalidades artísticas, apesar de ter se intensificado espetacularmente apenas no século XX, cujos anos finais proporcionaram a eclosão de um mundo midiático antes inimaginável, a possibilitar tal dialogismo sem precedentes. Por isso, ler o romance-rapsódia de Mário de Andrade em confronto com o filme de Joaquim Pedro de Andrade, a partir da perspectiva da intertextualidade das diferenças, sugere que o primeiro serviu de matéria-prima e realidade bruta (BETTON, 1987, p. 119) para uma reelaboração criativa nova, que teve por origem uma transposição paródica para uma outra contextualidade cultural (do Modernismo para o Cinema-novismo/Tropicalismo), o que permitiu um enriquecimento surpreendente do que Genette denominou de hipo/hipertextualidade. E, para finalmente concluir: pode parecer ideia simplista, todavia é sabido que tais adaptações de literatura para cinema “[...] fazem com que o espectador tenha vontade de ler os originais” (ibid., p. 119-20). E atualmente pode-se dizer que uma “[...] nova concepção de leitor e leitura exige uma postura metodológica interdisciplinar, uma interação efetiva das várias modalidades discursivas e a Vide a quantidade de Sic no parágrafo anterior.

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incorporação das novas tecnologias” (PALMA, 2004, p. 8-9). Também podemos afirmar que as artes (e as ciências também, certamente) não são pólos que se repelem; aproximam-se e atraem-se, pelo contrário, seja no ato fruidor ou pesquisador. Nessas permutas, o despertar da sensibilidade estética e seu aperfeiçoamento, assim como o redimensionamento da competência leitora, representam ganhos incalculáveis para o ensino e aprendizagem lato sensu. Para atingir esses ganhos, segundo a semioticista Lucia Santaella, [...] o primeiro passo a ser dado é o de não dividir as linguagens em campos estanques, rígida ou asceticamente separados: a literatura e as formas narrativas numa gaveta, a pintura em outra; o cinema de um lado, a fotografia de outro; o vídeo aqui e a música lá... Ao contrário, quanto mais o tempo passa, mais me convenço de que é só nos currículos escolares que as linguagens estão separadas com nitidez. Na vida, a promiscuidade, ‘a mistura é o espírito’ dos signos. (1999, p. 14)

Então, se quisermos ousar nos processos de leitura, não devemos temer essa ‘promiscuidade’, pelo contrário, devemos nos apavorar contra a censura a esse tipo de leitura, contraposicionando-nos ao compartimental e reducional, que é tão temerosamente focalista. Leitura, de fato, só pode existir em face do ponto de vista interdiscursivo, intertextual e, mais que isso, intercontextual; portanto, holístico: a única e verdadeira leitura. Referências ARTE E CINEMA. In: BRASIL, Assis. Dicionário do conhecimento estético. Rio de Janeiro: Ed. Tecnoprint SA, 1984. ANDRADE, Mário de. Macunaíma: o herói sem nenhum caráter; texto revisto por Telê Porto Arcona Lopez. 20 ed. Belo Horizonte: Ed. Itatiaia; Brasília: INL, Fundação Nacional Pró-Memória, 1984. BARROS, Diana Luz Pessoa de. Teoria semiótica do texto. 4. ed. São Paulo: Ática, 2002. BERNARDET, Jean-Claude. O que é cinema. São Paulo: Nova Cultural: Brasiliense, 1985. BETTON, Gerard. “Teatro e cinema. Literatura e cinema”. In: _____. Estética do cinema. Trad. Marina Appenzeller. São Paulo: Martins fontes, 1987. p. 107-120 BRASIL, Assis. Dicionário prático de literatura brasileira. Rio de Janeiro: Edições de Ouro, 1979. FARACO, Carlos Emílio; MOURA, Francisco Marto de. Língua e literatura. 14.ed. São Paulo: Ática, 1994. v. 3. GENETTE, Gerard. Palimpsestes. Paris: Seuil, 1982. GOTLIB, Nádia Battella. Teoria do conto. 2 ed. São Paulo: Ática, 1985. GUIA DE VIDEO E DVD 2003. São Paulo: Nova Cultural, 2003. KOCH, Ingedore Grunfeld Villaça. O texto e a construção dos sentidos. 9 ed. São Paulo: Contexto, 2007. KOCH, Ingedore Grunfeld Villaça; BENTES, Anna Christina; CAVALCANTE, Mônica Magalhães. Intertextualidade: diálogos possíveis. São Paulo: Cortez, 2007. KOTHE, Flávio R. O herói. 2. ed. São Paulo, SP: Ática, 1987. LÍNGUA PORTUGUESA. São Paulo, SP: Editora Segmento, nº 14, dez. 2006. LITERATURA VESTIBULAR 2007. São Paulo, SP: Editora Abril, nº 1, 2007. MACUNAÍMA. Direção: Joaquim Pedro de Andrade. Produção: Filmes do Serro, Grupo Filmes, Condor Filmes. Intérpretes: Grande Otelo, Paulo José, Jardel Filho, Dina Sfat, Milton Gonçalves, Rodolfo Arena, Joana Fomm. Roteiro: Joaquim Pedro de Andrade, baseado no romance de Mário de Andrade. Manaus: Videofilmes Produções Artísticas Ltda, 2006.1 DVD. MARQUES, Amadeu; DRAPER, Draper. Dicionário inglês/português-português/inglês. 22.ed. São Paulo: Ática, 2000. METZ, Christian. Linguagem e cinema. São Paulo: Perspectiva, 1971.

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Tema geral: Línguas e Literaturas: Diversidade e Adversidades na América Latina PALMA, Glória Maria (org.). Literatura e cinema: a demanda do Santo Graal & Matrix/ Eurico, o presbítero & A máscara do Zorro. Bauru – SP: EDUSC, 2004. PLAZA, Julio. Tradução intersemiótica. São Paulo: Perspectiva, 2003. RAMOS, Fernão Ramos. História do cinema brasileiro. São Paulo, SP: Art Editora, 1987. SANTAELLA, Lucia. Três matrizes da linguagem-pensamento. Cult: revista brasileira de literatura. São Paulo, SP: Lemos Editorial & Gráficos Ltda, nº 29, p. 14-17, dez. 1999. SANT’ANNA, Affonso Romano de. Paródia, paráfrase & cia. 5. ed. São Paulo, SP: Ática, 1995. ____. Música popular e moderna poesia brasileira. São Paulo, SP: Landmark, 2004. SILVA, Joel Cardoso. Possibilidades de leitura do espaço em Noites brancas: os textos literário e fílmico. In: Anais do XI Congresso Internacional da Associação Brasileira de Literatura Comparada, 2008: São Paulo, SP - Tessituras, Interações, Convergências / Sandra Nitrini... et al. São Paulo: ABRALIC, 2008. e-book. Disponível em: <http://www.abralic.org.br/cong2008/AnaisOnline/index.html>. Acesso em 14 abr. 2009.

Referências eletrônicas http://fcsh.unl.pt/edtl/verbetes/C/correspondencia_artes.htm. Acesso em: 22 out. 2007. http://www.abralic.org.br/cong2008/AnaisOnline/simposios/pdf/067/JOEL_SILVA.pdf -. Acesso em: 15 abr. 2009.

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O PIONEIRISMO CRÍTICO DE TEREZA FITE NA LEITURA DE O RECADO DO MORRO Aldo José BARBOSA (Mestrando em Letras – Universidade Federal do Pará) Sílvio Augusto de Oliveira Holanda (Orientador - Universidade Federal do Pará)

RESUMO: Em sua dissertação de Mestrado, intitulada “As articulações do lúdico em ‘O recado do morro’ de João Guimarães Rosa”, de 1973, Tereza Fite debate a respeito do lúdico neste conto. Ela é uma das pioneiras a fazer um trabalho de fôlego sobre a obra. Segundo Fite, a personagem central, Pedro Orósio, tem que juntar os elementos da cantiga, como se fosse um jogo para conseguir decifrar seu destino, e o leitor, fazendo o papel de um jogador, tem que juntar cada peça do recado, como se fosse um enigma ou um quebra-cabeça do tipo “o que é, o que é?”, como é ressaltado no estudo de Maurice Capovilla (1964). A pesquisadora busca relacionar as fases, no decorrer da narrativa, com as etapas de um jogo de cartas chamado truco. PALAVRAS-CHAVE: lúdico; “O recado do morro”; Tereza Fite.

ABSTRACT: In his masters thesis, entitled “The joints of fun in ‘O recado do morro’ from João Guimarães Rosa,” from 1973, Tereza Fite debate about the play in this story. She is one of the pioneers to make a work of breath on the work. According to Fite, the central character, Pedro Orósio, you must add the elements of song, like a game to get decipher your destination, and the reader, making the role of a player, you have to add each piece of scrap, as if a riddle or a puzzle-type “that is, what is it?”, as emphasized in the study of Maurice Capovilla (1964). The researcher seeks to relate the stages in the course of the narrative, with the steps in a card game called truco. KEY WORDS: Fun; “O recado do morro”; Tereza Fite.


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Com sua dissertação de Mestrado, intitulada “As articulações do lúdico em ‘O recado do morro’ de João Guimarães Rosa”, em 1973, Tereza Fite é considerada uma das pioneiras a fazer um trabalho de fôlego sobre a obra. Em seu estudo há referências a quatro ensaios que o antecede: “A busca da poesia” (1961), de Pedro Xisto, “ ‘O recado do morro’ de João Guimarães Rosa, princípio estrutural de uma novela” (1964), de Maurice Capovilla, “O destino cifrado: linguagem e existência em Guimarães Rosa” (1968), de Bento Prado Junior e “Guimarães Rosa e Vico” (1972), de Edoardo Bizzarri. Após abordar a ideia principal de cada texto, a autora opta por aprofundar o aspecto lúdico, tema já proposto por Capovilla em linhas gerais. Além disso, analisam-se os arquétipos bíblicos, míticos e clássicos utilizados pelo escritor mineiro na constituição estrutural do conto e como estes temas ganham uma ressignificação ou renovação na ficção estudada. Todas essas etapas são equiparadas a uma atividade lúdica propiciada pela literatura, o que levou Fite a buscar uma equivalência entre “O recado do morro” e um jogo de cartas chamado truque ou truco. Para comprovar sua afirmação, ela procura inúmeros indícios no texto que culminam neste viés interpretativo. Na progressão da narrativa, cada personagem simboliza um jogador, cada cartada é representada pelos diálogos e ações provenientes destes. Partindo das restrições do baralho, sabe-se que cada naipe (ouros, copas, paus, espadas) possui um valor e, transpondo estas regras aos personagens, consequentemente, terão os mesmos valores atribuídos às cartas. A astúcia dos componentes, ao apreenderem o enunciado da linguagem, poderá determinar o ganho ou perda do jogo, uma vez que este se caracteriza por rodadas de melhor de três, na qual quem conseguir utilizar o melhor discurso, nem que seja por meio do truque ― que é a capacidade dos jogadores blefarem fingindo possuir cartas de maiores valores que os oponentes ― chegará à vitória. O truco pode ser jogado mediante valores pré-estabelecidos para cada carta. Há jogo em que a Dama tem o maior valor, quem estiver de posse desta com naipe de Ouros estará com a Zápede, a carta triunfal. Durante a narrativa há momentos em que o autor diz que “de noite o vermelho das roupas semelhava prêto”1 (ROSA, 1956, v. 2, p. 456), isso levou Fite a desconfiar que os falsos amigos poderiam representar as cartas de Ouros ou Copas no jogo literário. A autora demonstra uma divisão dos jogadores em dois grupos, nos quais eles se distinguem por estarem iniciados à linguagem de nomeação ou não. Esta é determinada pela capacidade dos integrantes da narrativa de compreenderem o discurso do texto composto por meio de metáforas e imagens. Em “O recado do morro”, muitos representantes da comunidade sertaneja não são iniciados neste tipo de linguagem, daí a dificuldade de apreenderem o signo cifrado. O enredo da história se constitui pela mensagem do morro da Garça a Gorgulho, morador de uma “urubuquaquara ― casa dos urubus” (ROSA, 1956, v. 2, p. 397). Este velho “terém-terém” serve de mediador entre a natureza e o homem. Tal acontecimento de mediação se concretizou devido ao fato de existirem pessoas capazes de transcenderem os códigos lógicos da compreensão humana. No decorrer de sete etapas, o recado emitido terá efeito de fazer a personagem principal, Pedro Orósio, transcender a si e ao mundo físico. A PALAVRA surge da gruta, do oco-não-vazio, do interior da montanha. O morro como as montanhas sagradas, ziggurat, ou montanha mágica, é símbolo do transcendente; o ponto de ligação entre a terra, o céu, e o subterrâneo, ele constitui o Centrum Mundi. [...] o lugar funde-se à palavra em força transcendente. Nela, surge a perspectiva de vida, de travessia; resta ao homem conhecê-la. (FITE, 1973, p. 33, itálico da autora)

Desta interação do Homem e da Palavra, nesta obra, é possível refletir acerca da criação literária. Esse processo ocorre porque o compositor Laudelim ― com a sensibilidade aguçada dos poetas ― conseguiu interpretar o discurso do calculista louco Coletor, que na verdade nunca fora coletor de ofício, transformando-as em canção. Apesar de Pedro não dar importância ao discurso de Gorgulho, o pesquisador estrangeiro Alquiste, diferentemente, ao ouvi-lo ― mesmo sem entender a totalidade da língua portuguesa ― compreendeu, antes de todos viajantes, a relevância daquelas palavras. Foi mantida a grafia original da primeira edição de “O recado do morro”, pois alguns acentos gráficos foram utilizados propositalmente por Guimarães Rosa para darem ênfase ao sentido proposto pelo autor.

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Tema geral: Línguas e Literaturas: Diversidade e Adversidades na América Latina Os não iniciados, [...] ao ouvirem a mensagem, nada entendem, perdem sua chance e o jogo fica por isso mesmo. O leitor, na primeira leitura (o não-iniciado), passa pelo mesmo caminho, esbarrando no significante vazio. Na segunda leitura, já conhecendo o resultado final, ele se permite o desvio; na posse de um significado, ele se abre no imaginário, e à apreensão do significante deslocado. (FITE, 1973, p. 38)

No desenvolvimento da dissertação, as duas funções da linguagem são apontadas: a de comunicar, ao contar uma história, e, a de nomear, no como contar. O leitor também participa dessas percepções. Dependendo do grau de iniciação literária do receptor, ficará notório um significado latente nos nomes dos personagens, que não são simples substantivos, pois acrescentam uma carga simbólica aos personagens. Por exemplo, as acepções atribuídas aos apelidos do protagonista são várias: Pedro Orósio, Pedro Chã-Bergo e Pê-boi. Pedro, etimologicamente, refere-se à pedra; na Bíblia, Pedro é a pedra sobre a qual a igreja será construída; Orósio vem do grego OROS, significa montanha; chã é planície, berg é montanha em alemão; Pê-Boi remete a pé de boi, e também pode referir-se à constelação de Touro e representa a força física. Na tese II de A história da literatura como provocação à teoria literária, Jauss defende que [a] análise da experiência literária do leitor escapa ao psicologismo que a ameaça quando descreve a recepção e o efeito de uma obra a partir do sistema de referências que se pode construir em função das expectativas que, no momento histórico do aparecimento de cada obra, resultam do conhecimento prévio do gênero, da forma e da temática de obras já conhecidas, bem como da oposição entre a linguagem poética e a linguagem prática. (JAUSS, 1994, p. 27)

Sob a égide da Estética da Recepção, a interpretação de cada leitor estabelece-se de acordo com as referências ou percepções de mundo que ele traz consigo para estudar uma determinada obra. Quanto maior o contato do indivíduo com a leitura, maior será a capacidade de abstrair as informações recônditas do texto. No caso da novela analisada, a apreensão de Pedro diante da música (Arte) foi mais desenvolvida que as dos outros subalternos da comitiva: “Não, bronco êle não era, como o Ivo” (ROSA, 1956, v. 2, p. 394). O grau de esclarecimento do “capiau forçudo” não era muito, porém, foi o suficiente para salvá-lo da morte. Na concepção do enxadeiro, um aviso importante não viria por meio do velho Gorgulho, do imbecil Qualhacôco, do pueril Joãozezim, nem do bobo da fazenda Guégue, muito menos do louco Nominedômine, do alucinado Coletor e do artista Laudelim. Pedro Chã-Bergo, como a maioria da sociedade, geralmente, não dá importância aos discursos e atitudes das pessoas como estas sete citadas acima, é como se elas não tivessem quase nada para acrescentar as pessoas “sãs”. Voltando a debater o lúdico, segundo Fite, a personagem central tem que juntar os elementos da cantiga, como se fosse um jogo, para conseguir decifrar seu destino, e o leitor, fazendo o papel de um jogador, necessita encaixar cada peça do recado, assim como um enigma ou quebra-cabeça do tipo “o que é, o que é?” ressaltado no estudo de Maurice Capovilla. Para respaldar-se, sobre o elemento lúdico, Fite acata as considerações de Johan Huizinga: [R]econhecer o jogo é, forçosamente, reconhecer o espírito, pois o jogo, seja qual for sua essência, não é material. Ultrapassa, mesmo no mundo animal, os limites da realidade física. [...] a própria existência do jogo é uma confirmação permanente da natureza supralógica da situação humana. Se os animais são capazes de brincar, é porque são alguma coisa mais do que simples seres mecânicos. Se brincamos e jogamos, e temos consciência disso, é porque somos mais do que simples seres racionais, pois o jogo é irracional. (HUIZINGA, 1971, p. 6)

Isso corrobora com o pensamento de Guimarães Rosa (1908-1967), em diálogo com Günter Lorenz ― pois, o autor não gostava da palavra entrevista ― no qual ele expõe que, na língua, muitas ideias do que é racional vêm à tona, mas também do que é irracional, das coisas não compreensíveis com a pura razão. Para a estudiosa, “O recado do morro”, além de carregar as articulações do lúdico, mostra a preocupação de Guimarães Rosa em reconstruir o sentido da palavra, revestindo-a de uma conotação suprema, capaz de expressar a mensagem que o escritor gostaria de transmitir, podendo, esta atividade,

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ser considerada metalinguagem. O autor de Grande sertão: veredas sentia muito prazer em seu trabalho, ressaltava a gratificante sensação de nascimento, a cada novo vocábulo produzido, já que este último, adquiria um significado próprio no enredo e na interação com outros termos em sua volta. “Poeta genuíno. No sentido que expressa T. S. Eliot, Guimarães tira do escuro, do incompreensível, a descoberta de ‘novas variações de sensibilidade’ ― para a purificação da palavra, e da língua” (FITE, 1973, p. 3). Guimarães Rosa, em Tutaméia (1967), confronta o real com o imaginário, mostrando que ao enfocar o último é possível ter uma melhor compreensão da realidade. Fite, após refletir acerca deste assunto, concorda com o escritor e argumenta que o deslocamento ou fuga do real para o imaginário pode ser visto também como uma experiência criativa ou renovadora. A manifestação artística de Rosa pode, muito bem, ser considerada um jogo, todavia, ao lançar mão de uma palavra e designar um sentido diferente do habitual se compara ao ato de brincar de uma criança. Esta, ao desenvolver o mundo das imaginações, se dá o direito de ser um astronauta em determinada brincadeira e um rei em outra, ou seja, a cada circunstância, ela se caracteriza mentalmente e/ou fisicamente com ornamentos que possam expressar o seu desejo. O poder da imaginação abre possibilidades para o indivíduo transportar-se, metaforicamente, a mundos improváveis na vida real, por exemplo, o do personagem principal do conto que “abriu grandes pernas. Mediu o mundo. Por tantas serras, pulando de estrêla em estrêla, até aos seus Gerais” (ROSA, 1956, v. 2, p. 1956). Só adquirindo características mágicas que alguém consegue saltar de astro em astro. É necessário, ao se deparar com o vasto sertão literário, não restringir a mente, buscar novos significados como as crianças em Tutaméia. Os pensamentos e atitudes pueris, muitas vezes, são de uma ingenuidade e liberdade tão abrangente que chegam a nos surpreender. Uma guriazinha, de quatro anos, exclamou do alto do Viaduto do Chá, “Mamãe! Olha! Que buraco lindo!”, e, em outra situação, uma menina, ao ver uma dentadura articulada, falou: — Titia! Titia! Encontrei uma risada!” (ROSA, 1967, p. 8-9). Alguns leitores precisam exercitar o ato de irem além das palavras do texto se quiserem enriquecer sua interpretação. A Literatura Moderna de Guimarães Rosa, como qualquer obra de Arte, precisa do leitor para contemplá-la, se não, ela ficará em um museu, numa biblioteca ou em qualquer outro lugar, sendo apenas, um mero artefato decorativo. O receptor quando interage com a obra, se necessário, precisa preencher lacunas deixadas pelo autor ― o autor de Sagarana é um mestre nesta interação com o leitor ― assim como as que haviam no som ouvido por Gorgulho, causadoras de uma difícil compreensão, por falta de preenchimento do significante. Para mostrar que a significação é um processo, Fite utiliza a terminologia etruturalista de signo, significante, significado, significação abordada por Roland Barthes, no livro Elementos de Semiologia (1996). De acordo com ele, o signo é uma fatia (bifacial) de sonoridade, visualidade, etc. composto de um significante e um significado. O plano dos significantes constitui o plano da expressão e dos significados o plano do conteúdo. [...] O ato que une o significante e o significado, ato cujo produto é o signo. (BARTHES, 1971, p. 43 e 51)

A palavra falada (descontínua) dificultava o entendimento do recado, a partir do momento em que ela adquiriu uma forma musical (contínua) e começou a ser cantada pela comunidade e por Pedro, este conseguiu “pensar continuado” como os patrões e entendeu algumas coisas que lhe eram desconhecidas. O enxadeiro interpretou a cantiga e percebeu que o rei contido nela, com a sina de morrer à traição, estava rodeado de sete cavaleiros como ele também estava cercado por sete companheiros. Então, Pê-Boi refletiu que quem dominava os Gerais era ele, portanto, poderia se considerar um Rei daquela região. A partir deste momento o “capiau forçudo” entrou no jogo da criação poética e se tornou iniciado. Ligado a todos estes acontecimentos observa-se a recorrência de arquétipos míticos, bíblicos e clássicos na composição estrutural da narrativa, o que pode esclarecer do porque ser Pedro Chãbergo o destinatário do recado. O diálogo entre a Natureza e os Deuses se materializa pelos “cacos de português” de Alquiste, o qual não se engana quando chama Pedro de “Sansão”. Guimarães Rosa atribui características de um herói semi-Deus a Pê-Boi: “Um exagero de homem-boi, um homão

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dêsses, tão alto que um morro, [...] inchos de músculos, aquilo era de ferro — se êle estouvava, perigava qualquer sociedade, destruía as certezas”. (ROSA, 1956, v. 2, p. 460). Toda a devoção do “homem-boi” pelas coisas relacionadas à natureza (a gruta, a pedra, a terra), com certeza, foi um dos motivos para a natureza o escolher. A inferência de relacionar Pedrão a um herói mítico é concretizada pela fala do estrangeiro nas últimas páginas de “O recado do morro”, pois ele lança uma comparação entre a cantiga elaborada na história e a saga dinamarquesa do herói Hrolf, o Liberal. Este subiu ao trono da Dinamarca ainda menino, após a morte de seu pai Helgi, e, também, Alquiste lembra de Hrolf Kraki, um valente batalhador de outra saga. A canção de Laudelim relaciona-se a estas obras, provavelmente, por conter, em sua letra, um rei que luta contra vários guerreiros demonstrando sua coragem. Antes de seo Alquiste comentar a respeito das narrativas medievais, seu Jujuca havia ficado [c]omovido, êle pressentia que estava assistindo ao nascimento de uma dessas cantigas migradoras, que pousam no coração do povo: que as violas semeiam e os cegos vendem pelas estradas. Até ao seu Juca, seu pai, ou mesmo a um sujeito rústico braçal, como aquêle Ivo, ali defronte, se embaciavam os olhos, quase de cai lágrimas. (ROSA, 1956, v. 2, p. 456)

Valendo-se mais uma vez do trabalho de Huizinga, no qual é constatado que o jogo, mesmo após o seu término, permanece fixado na memória, tornando-se, assim, tradição, uma cantiga também pode provocar esse efeito e, com isso, fazer parte da tradição de uma cultura, sendo transmitida oralmente ou na escrita, de geração em geração. Utilizando ainda a citação acima, deve-se observar que, por meio de alguns personagens de Guimarães Rosa, a arte tem o poder de tocar qualquer pessoa, do mais velho ao mais novo, do mais rico ao mais pobre, do mais instruído ao de serviços braçais, como o Ivo. Fica perceptível no conto que a música desperta a atenção de Pedro, de tanto ouvi-la e repeti-la diversas vezes, o protagonista internaliza a letra da canção e seu espírito consegue ser tocado pela Arte. Esta, no sentido mais amplo, foi capaz de salvar a vida do geralista, pois, não foi por meio da leitura de um livro, nem pela apreciação de um quadro que ele escapou da traição dos falsos amigos, e sim, pela sonoridade da criação artística. No caso do conto estudado, não foi na vida prática de um leitor que a arte agiu, mas sim, na de um enxadeiro, protagonista no mundo da ficção. O contato com a arte foi capaz de aumentar a percepção de mundo do geralista e “[n]um pingo dum instante” (ROSA, 1956, v. 2, p. 462), Pedro Orósio modificou seu destino. Na hora em que estava caindo em uma emboscada seus pensamentos retroagiram à melodia da canção: “Vieram todos de parelha... O Rei... E em êles tremeram peles... A sina do Rei é avessa... [...] ‘Remeteram com a fortaleza...’ Aí então os Sete matavam o Rei, à traição” (ROSA, 1956, v. 2, p. 462, itálico do autor). Estas lembranças o fizeram mudar de comportamento, de presa embriagada e fácil para a morte, ele despertara, passando a combater heroicamente os traidores. Este acontecimento pode ser pensado à luz da sétima tese de Jauss sobre a relação entre a literatura e vida prática: A tarefa da história da literatura somente se cumpre quando a produção literária é não apenas apresentada sincrônica e diacronicamente na sucessão de seus sistemas, mas vista também como história particular, em sua relação própria com a história geral. Tal relação não se esgota no fato de podermos encontrar na literatura de todas as épocas um quadro tipificado, idealizado, satírico ou utópico da vida social. A função social somente se manifesta na plenitude de suas possibilidades quando a experiência literária do leitor adentra o horizonte de expectativa de sua vida prática, pré-formando seu entendimento do mundo e, assim, retroagindo sobre seu comportamento social. (JAUSS, 1994, p. 50)

Outro trabalho teórico citado por Tereza Fite é “A eficácia simbólica” (1985), de Lévi-Strauss, no qual ele se posiciona estabelecendo que “a função simbólica, [...] se exerce segundo as mesmas leis” (1985, p. 234) para um único homem ou para uma comunidade. Os símbolos são representados em várias esferas do enredo, na presença da recorrência de aspectos míticos, heróicos e clássicos parecem ter um movimento de progressão, como uma caixa chinesa. Essa impressão de caixa chinesa, também pode ser buscada na epígrafe de “O recado do morro”, na qual, Guimarães Rosa por meio

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de uma citação de Plotino diz que “[o] melhor, sem dúvida, é escutar Platão...”2. Outra pesquisadora a publicar um ensaio com enfoque em “O recado do morro” foi Heloísa Araújo, em o “Direito e o avesso” (1985), ela faz uma relação entre alguns aspectos da narrativa analisada e o diálogo de Platão Timeu, no qual, o filósofo explica a formação do universo se baseando em uma narração: Crítias conta estória, que lhe tinha chegado através do avô, atribuída a Solon, um dos Sete Sábios da Grécia. Solon, por sua vez, a ouvira de um sacerdote egípcio. Temos, portanto, uma cadeia de citações sobre citações se partimos da epígrafe de Plotino. João Guimarães Rosa que cita Plotino, que cita Crítias, que cita o avô, que cita Solon, que cita o sacerdote egípcio. (ARAÚJO, 1985, p. 47)

Ainda abordando aspectos míticos da história, o próprio Guimarães Rosa explica em correspondência com Edoardo Bizzarri a relação entre os nomes dos personagens com os planetas, veja-se na tabela abaixo:

A estudiosa enfatizou a concepção do universo que prevalecia até à revolução copernicana, na qual a Terra ficava no centro e os planetas giravam ao seu redor. A tabela utilizada por Fite só faltou acrescentar o planeta Saturno, o companheiro Ivo e o dono da fazenda Juca Saturnino. O simbolismo não vem só desses nomes, a alusão a personagens bíblicos e a mitologia também se presentifica: Gorgulho na narrativa chama-se Malaquias, profeta autor de um livro apocalíptico prevendo a morte, no conto, é o primeiro a trazer o recado, Zaquias, irmão de Gorgulho, é o Catraz, o apelido de Ivo é Crônico equivalente a Cronos (tempo), foi chamado também de Caifaz por Pedro e o próprio nome deste último, já foi comentado que remete a pedra sobre a qual a igreja será construída. Todos estes elementos mostram a liberdade e a qualidade da obra rosiana, o autor não deixaria de poetizar com a mãe natureza, então, ela recebeu fisionomias mágicas: os buritis são “sois verdes ou estrelas de repente” entre “um mar de árvores” (ROSA, 1956, v. 2, p. 412 e 413). A autora sugere uma segunda leitura do conto, pois com esta atividade, o indivíduo poderá perceber os truques e ambiguidades na narrativa, por exemplo, quando Ivo convidou Pedro à festa, de fato, o convite tinha outro fim, a morte do companheiro. A causa desta desavença, dos “seteguerreiros” contra o protagonista nos é mostrada logo no início da história, as moças gostavam mais de Pê-Boi que dos outros, “por abuso disso, [Pedro] vivia tirando as namoradas, atravessava e tomava a que bem quisesse, só por divertimento de indecisão. Tal modo que muitos homens e rapazes lhe tinham ódio, queriam o fim dele” (ROSA, 1956, v. 2, p. 392). De acordo com Fite, “a atividade literária é, então, experiência lúdica tanto para o autor quanto para o leitor; escrever e ler apresentam o desafio e tensão, o divertimento e responsabilidade Epígrafe na íntegra: “O melhor, sem dúvida, é escutar Platão; é preciso ― diz ele ― que haja no universo um sólido que seja resistente; é por isso que a Terra está situada no centro, como uma ponte sobre o abismo; ela oferece um solo firme a quem sobre ela caminha, e os animais que estão em sua superfície dela tiram necessariamente uma solidez semelhante à sua.” (ROSA, 1965). Na 3.ª ed. de Corpo de Baile, ocorreu o desmembramento da obra em três volumes por circunstâncias mercadológicas, entre outras, esta epígrafe ficou designada à abertura do 2.º volume constituído por três narrativas: “O recado do morro”, “Cara-de-bronze” e “A estória de Lélio e Lina”.

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em trabalhar a palavra.” (1973, p. 47). Pode-se, dizer, que a literatura é como um jogo, no qual os autores vão lançando suas cartas (obras), não são todas que carregam a força ou grandeza de um Rei de Espadas ou de Ouros como nos mostra Fite: No jogo da novela, onde virar o avesso representa mudar de preto para o vermelho, Pedro será também o rei de ouros. Enquanto o Rei de espadas podia vencer o sete de espadas, através das cores verdadeiras dos guerreiros, o sete de copas “matava o Rei”. No reconhecimento da traição, Pedro Rei “cresceu” (RM, 69) e “Zape! Pegou o Ivo”, e os outros. Pois, “a sina do Rei é avessa”, e ele é “Rei duelador”, batalhador de dois lados. Num instante ele se torna o Rei de Ouros e vence os sete, no salto para o outro pólo ― um jogo de maior valor no lugar da força criadora. (FITE, 1973, p. 94, itálico da autora)

Se a obra deixou alguns indícios para que o leitor relacionasse sua obra a um jogo de truco ela o fez com sucesso, o que possibilitou a leitura elaborada por Tereza Fite. Suas referências de leitura e percepção de mundo a levaram por este viés interpretativo nas entrelinhas da narrativa. A cada época surgem novos leitores, por conseguinte, vêm à tona diferentes leituras. O vasto sertão literário está aberto àqueles corajosos que se aventuram a garimpar tesouros nas entrelinhas das obras e descobrir que nem tudo é o que parece ser em literatura. Os trabalhos de Roland Barthes, Johan Huizinga, Lévi-Strauss, entre outros, foram suficientes para embasar a dissertação acerca do lúdico, cada posicionamento proposto pela estudiosa está firmado sobre alicerces sólidos como o Morro da Garça. Antes de a pesquisadora constituir sua dissertação já havia quatro trabalhos publicados acerca de “O recado do morro” e nenhum deles perdeu validade ou relevância por não serem tão extensos quanto o dela. A crítica contemporânea tem uma atitude quase unânime de considerar a autonomia da obra de arte em si mesma, depois de vinda a lume e, da interação com o leitor, ela abandona uma única leitura fechada e ganha vida própria. Referências ARAÚJO, Heloísa Vilhena de. O direito e o avesso. Letras de Hoje, Porto Alegre, v. 18, n. 59, p. 43-58, 1. trim. 1985. BARTHES, Roland. Elementos da semiologia. Trad. Izidoro Blikstein. 11. ed. São Paulo: Cultrix, 1996. 116 p. CAPOVILLA, Maurice. O Recado do Morro. Revista do Livro, Rio de Janeiro, n. 25, p. 131-142, mar. 1964. FITE, Tereza Cristina. As articulações do lúdico em “O recado do morro” de João Guimarães Rosa. Rio de Janeiro, 1973. 116 p. Dissertação de Mestrado em Letras, Pontifícia Universidade Católica. HUIZINGA, Johan. Homo Ludens. Trad. João Paulo Monteiro. São Paulo: Perspectiva, 1971. 246 p. JAUSS, Hans Robert. A história da literatura como provocação à teoria literária. Trad. Sérgio Tellaroli. São Paulo: Ática, 1994. 78 p. LÉVI-STRAUSS, Claude. A eficácia simbólica. In: Antropologia estrutural. Trad. Chaim Samuel Katz e Eginardo Pires. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1985. p. 215-236. PRADO JR, Bento. O Destino Cifrado — Linguagem e Existência em Guimarães Rosa. Cavalo Azul, São Paulo, n. 3, p. 5-30, 1968. ROSA, João Guimarães. “O recado do morro”. In: Corpo de Baile: sete novelas. Rio de Janeiro: J. Olympio, 1956. v. 2, p. 387-463. _____ No Urubùquaquá, no Pinhém: Corpo de baile. 3. ed. Rio de Janeiro: J. Olympio, 1965. 204 p.

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REVISTA AMAZÔNICA: A CONCRETIZAÇÃO DE UM PROJETO PERIODÍSTICO Alessandra Greyce Gaia PAMPLONA (Universidade Federal do Pará)

RESUMO: A produção realizada por José Veríssimo, em Belém do Pará, nas décadas de 70 e 80 do século XIX, foi marcada por momentos distintos, a começar pela apresentação de temáticas relacionadas à cultura da sociedade brasileira, de maneira geral. Com esse propósito, esse escritor paraense – conhecido no cenário nacional pela sua atividade crítico-literária, define-se na “Revista Amazônica” – periódico por ele fundado em 1883 – com um novo perfil intelectual, aquele cujo projeto periodístico estava maturado em estudos de ordem amazönida. Qual reseau de homens e de temas estaria montado por trás da então vislumbrada Região de natureza exuberante dos oitocentos é um dos objetivos a que me proponho discutir neste trabalho, resultado de um capítulo de minha dissertação de mestrado apresentada ao programa de Pós-Graduação em Letras da Universidade Federal do Pará. PALAVRAS-CHAVE: Século XIX; José Veríssimo; “Revista Amazônica”.

ABSTRACT: The José Veríssimo’s production in Belém of Pará, in the seventies and eighties of the nineteenth century was characterized by differents moments, starting with the presentation of issues often related to the culture of Brazilian society. With this purpose, that paraense writer - well-known in the national scene for his literary critical activity, defines hinself in the “Revista Amazönica” - journal founded by him in 1883 – with a new intellectual profile, that one whose periodical project was based on Amazönia. What reseau of themes and men was behind that Region known by its exuberant nature is one of the purposes that I would discuss in this work, as a result of one of the chapters of my paper submitted to the Postgraduate Program of the University Federal of Pará. KEY WORDS: Nineteenth century, José Veríssimo; “Revista Amazônica”.


Anais do II Congresso Internacional de Estudos Linguísticos e Literários na Amazônia (CIELLA)

A imprensa paraense de 1883 contava com a inauguração de sete novos periódicos1, entre jornais e revistas, quais fossem: “Revista Familiar”, “Revista Amazônica”, “A vida Paraense”, “O Abolicionista”, “Correio das Verdades”, “Diário da Tarde” e “Sorriso”. Por meio dos frontispícios dos três primeiros periódicos, supõe-se, ao menos em parte, que o que requeria boa parte da sociedade leitora era tratar de literatura, artes e ciências. Dentre essas três revistas – todas impressas pela tipografia do “Livro do Comércio”2, havia uma de temas amenos, dedicada à família, denominada “Revista Familiar”, e outras duas dedicadas a um público envolto com questões de ciências, a “Revista Amazônica” e a “A vida Paraense”. Ter essas duas revistas articulando ideias semelhantes induz a afirmar ou que eram concorrentes ou possuíam os mesmos editores e redatores, afinal não teria sentido que somente uma fosse representante, na Região Amazônica, dos avanços experimentados por toda a imprensa brasileira. A certeza é que todas não passaram de 12 números publicados, demonstrando como era difícil manter tal empresa seja por questões de dissidência política seja por déficit financeiro. Havia quatro anos que “A Lanterna” (1871-1876), a de maior circulação, parara de vir a lume. Até o ano de 1882, conforme os estudos de Manuel Barata, saíram mais três3 revistas, todas no entanto de vida efêmera. Somente em 1883, portanto, o cenário paraense contará com três revistas publicadas simultaneamente, a já citada Revista Familiar, a “Revista Amazônica” e “A Vida Paraense”, indicando, entre os comuns percalços econômicos, um crescimento nesse tipo de publicação no Pará. Conforme Eustáchio de Azevedo, o período de 1870 a 1885 foi fundamental para o estabelecimento de uma nova fase na Literatura Paraense, pois “figuraram como pontífices das sciencias e das lettras”4 homens de letras como Domingos Soares Ferreira Penna, Domingos Raiol, José da Gama Abreu, Tito Franco de Almeida, João Lúcio de Azevedo e outros. De fato, ao se verificar em alguns periódicos da época, como “O Liberal do Pará”, “Diário de Notícias”, “Diário do GramPará”, percebe-se relevante trabalho que cada um prestou à província seja no serviço burocrático, em partidos políticos ou em associações cívicas e científicas. Inserida nesse contexto, a “Revista Amazônica”, que para Eustáchio de Azevedo foi “a melhor e mais bem cuidada publicação litterária e scientifica que até hoje teve o Pará”5, reuniu além de uma vasta matéria disciplinar em seus onze números publicados mensalmente, um seleto grupo de personagens dos mais diversos setores da sociedade paraense daquela época. Por isso, acompanhar a história desse periódico seria perscrutar o símbolo não exatamente de um organismo em formação, mas de uma instituição, conforme os editores a concebiam, representante das letras numa província em que jazia a malquerença para com a civilização. Nesse sentido, a “Revista Amazônica”, impressa por João Batista de Mello Cavalcante, diferenciava-se de “A Vida Paraense”6 por apresentar uma diversidade temática mais prágmatica permitindo maior acesso a quem desejasse para ela escrever. Por meio do frontispício percebe-se que entre as ciências do intelecto, a revista idealizada por José Veríssimo abrangia assuntos de ordem econômica e política: A Vida Paraense. Publicação de crítica, literatura, ciencias e artes. 1883-1884. Pará, Tip. Do Livro do Commercio. Fol. Gr. a 2 col. In-4.º Trimensal. Ilustrada. Desenhos de João Affonso, litografados da oficina de C. Wiegandt. Conferir BARATA, Manoel. Formação Histórica do Pará: obras reunidas. Edição comemorativa do sesquicentenário da adesão do Pará à Independência política do Brasil. Belém: Editora da Universidade Federal do Pará, 1973, passim. 2 Essa casa tipográfica iniciou no cenário da imprensa paraense em 1876, imprimindo os relatórios provinciais do governo Paraense. 3 Conforme BARATA, as revistas são: “O Democrata”, “O Cacete” e a “Revista Lírica”, op.cit., passim. 4 Conferir REGO, Clóvis Moraes. A Mina Literária Nortista de Eustachio de Azevedo e n’ “O Pará Literário”, de Theodoro Rodrigues. Belém-PA: UFPA, 1997, p.12. 5 Ibid. 6 Perdida no tempo, ou ainda não microfilmada, “A Vida Paraense” seria um documento valioso não somente pelo estudo que dela poder-se-ia abstrair, mas como representante de uma revista que ao lado da “Revista Amazônica” agitou as bases do periodismo em Belém do Pará entre os anos de 1883 e 1884. 1

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Tema geral: Línguas e Literaturas: Diversidade e Adversidades na América Latina Revista Amazônica. Ciência, arte, literatura, viagens, filosofia, economia política, indústria, etc. Pará. Tip. Do Livro do Commercio, In-8.º. Mensal.7

Essa variedade disciplinar, ou abertura a quaisquer abordagens, indica que o propósito ideológico da “Revista Amazônica” era atingir esferas intrísicas à Amazônia daquela época, no sentido de vulgarizar um projeto cultural amplo em que a produção intelectual sobre essa Região pudesse ser entendida dentro do contexto de crescimento da empresa gomífera e das relações sociais e culturais dela originadas. Não à toa reunir, aos moldes de revista saídas em outras províncias, “homens que a cidade já comporta[va] entre seus valores culturais”8, mesmo que alguns deles fossem próximos, como Tito Franco de Almeida9, José Gualdino10 e Ferreira Penna11 ao seu fundador, José Veríssimo. O corpo integrante da “Revista” demonstra de modo cabal como a produção escrita estava coeretentemente aliada a uma reseau de homens, muito deles representantes de instituições já consagradas na Província por desenvolverem amplos estudos sobre a flora, fauna e arqueologia amazônida, a exemplo o Museu Paraense, fundado por Ferreira Pena e outros, como Paes de Carvalho, defensor direto da abolição no Pará, instalando em 1886 “O Clube Republicano”, que vinha sendo arquitedado desde 1878 em favor da causa escravista, conforme Barata. Além dessas figuras de vida científica e política intensas, haviam aqueles que já possuiam um vasto currículo nas imprensas do Norte e Nordeste brasileiro à época. “Na Revista Amazônica” trabalhavam como editores, como Clementino José Lisboa12, Joaquim Ignácio Amazonas de Almeida13, José Cardoso da Cunha Coimbra14, o próprio José Paes de Carvalho15 e José Veríssimo.

BARATA, op.cit., p. 252-253. Conferir PRISCO, Francisco. José Veríssimo. Sua vida e suas obras. Rio de Janeiro: Redeschi, 1937, p. 33. 9 Tito Franco de Almeida, paraense nascido em 4 de janeiro de 1829, foi advogado, professor e representante do Partido Liberal no Pará. EM 1869, conforme Borges, publicou “A Igreja e o Estado, sob o pseudônimo Canonista, no ‘Jornal do Amazonas’, de Belém, intervindo na famosa Questão Religiosa sustentada contra a Maçonaria pelos Bispos Dom Vital, de Olinda, e Macedo Costa, do Pará”. Defensor da monarquia da ala Liberal, em 1891 reuniu por ocasião da morte do imperador Pedro II uma comissão de fiéis à Monarquia, dentre os nomes estava o de Clementino José Lisboa, um dos editores da Revista Amazônica. Conferir mais detalhes em BORGES, Ricardo. Vultos Notáveis do Pará. 2ª ed. Belém: CEJUP, 1986, p. 125-129. 10 José Gualdino redigiu e foi proprietário do jornal Gazeta de Notícias de Belém, em 1881, período no qual Veríssimo publicou o estudo sobre Emílio Littré. 11 Domingos Soares Ferreira Penna nasceu em 1818 em Minas Gerais. Transfere-se para o Pará em 1858. Em 1866, depois da passagem de Luiz Agassiz pela província do Pará, decide criar a Associação Filomática, entidade que tinha o objetivo de fundar o Museu Paraense. Em 1870, teve oportunidade de mostrar ao geólogo Charles Hartt seus achados sobre a cultura indígena. Como naturalista publicou diversas obras sobre a Amazônia, dentre elas: “O Tocantis e o Anapú”(?), “A Região Ocidental da Província do Pará”(1869), “Comunicações antigas entre Mato Grosso e Pará”, “Explorações no Amazonas” e “Cenas da Cabanagem no Tocantins”, os três últimos todos publicados na “Revista Amazônica”, em 1883. Conferir a análise de sua vida e obra em Conselho Estadual de Cultura. Obras completas de Domingos Soares Ferreira Penna. Coleção “Cultura Paraense”. Série “Inácio Moura”. Volume 1. Belém Pará, 1973. 12 Conforme HALLWELL, Laurence, Clementino José Lisboa foi um dos primeiros donos de tipografia a se intalar no Maranhão. Sua tipografia, a Typographia Constitucional, foi considerada a melhor dentre as três de propriedade particular naquela província. Depois da 1870, sua presença é marcante na sociedade paraense, como um dos “das ciencias e das letras do Norte”. Conferir HALLWELL, Laurence. O livro no Brasil: sua história. 2 ed. São Paulo: Edusp, 2005,p. (p. 171) e REGO, op.cit., p. 19. 13 Joaquim Ignácio Amazonas de Almeida participou na imprensa pernambucana e na paraense, publicando para a Revista Amazônica o artigo “O elemento servil e sua extincção”. 14 conforme Sacramento Blake, José Cardoso da Cunha foi bacharel em ciências sociais e jurídicas pela faculdade do Recife. No Pará publicou as seguintes obras: “Esboço orphanológico”, “Memorial do escrivão”, “Ajudante jurídico”, as três obras publicadas em 1887 e Traços judiciários, em 1889. 15 Conforme Borges, Paes de Carvalho nasceu em Belém em 1850. Foi médico e esteve envolvido com a proclamação da Republica no Pará. Em 1889, fundou com Gentil Bittencourt, Justo Chermont, Barjona de Miranda o “Clube Republicano”, que tinha por representante o jornal “A República”. Conferir BORGES, op.cit., p. 176-181. 7 8

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Anais do II Congresso Internacional de Estudos Linguísticos e Literários na Amazônia (CIELLA)

O corpo redacional ficou a cargo de Domingos Soares Ferreira Pena, João Affonso16, Tito Franco de Almeida, Augusto Constancio Rockling17, Domingos José Bernardino de Almeida, Emilio Allain18, José Gualdino, João Barbosa Rodrigues19, Vicente Chermont de Miranda20 e o próprio Veríssimo. Os artigos de maneira geral propunham assuntos desde a cotação da borracha para a década de 80 até contos a respeito da vida provinciana brasileira. A divulgação do periódico é um fator preponderante para seu estabelecimento e reconhecimento entre a comunidade letrada. No caso da “Revista Amazônica”, foi um dos fatores que, diga-se, requereu estratégias de marketing amplamente estendidas por seus fundadores. Em Belém, conforme os editores, ela poderia ser encontrada em sua casa tipográfica, a do “Livro do Comércio”, no escritório do jornal “Diário do Gram-Pará” na rua dos Mercadores e “em todas a livrarias e no escriptorio da revista a estrada de S. Jerônimo”21, ou seja, em casas situadas ao centro comercial e cultural de Belém na época. As outras cidades selecionadas para sua circulação mantinham forte comunicação com Belém, em vista de estarem em crescimento econômico significativo e terem, como de praxe, instalados centro de divulgação política e colônias para acolhimento de estrangeiros. Para cada cidade havia um agente responsável por assim dizer pela distribuição e promoção da “Revista”. Foi por Manaus, Óbidos, Santarém, Monte Alegre, Cametá e Vigia que a “Revista Amazônica” circulou e por onde Henrique Ferreira Pena de Azevedo, Antonio Caminha Muniz, Joaquim Maria Machado de Abreu Peixoto, João Valente do Couto Junior, Antonio Joaquim Alves da Silva e Francisco Ferreira de Vilhena Alves, os agentes, buscavam angariar assinantes. Em três outros centros ela poderia ser encontrada para venda: no Rio de Janeiro, em Faro e Lino à Rua do Ouvidor; em Lisboa, em Mattos Moreira & Cardoso a Praça de D. Pedro; e em Paris, em Maisonneuve & Cª Librairie a Quai Voltaire. Assim como esses lugares vulgarizavam a leitura da “Revista Amazônica”, assim esta fazia circular, em quase toda a Região Amazônica, os periódicos editados e/ou vendidos por aqueles espaços, na seção denominada “Publicações Recebidas”, a qual, como o nome indica, recebia publicações de toda ordem, portuguesas ou estrangeiras. Nessa seção, além de vir apresentada uma espécie de resenha sobre cada volume editado ou não por aquelas casas editoras, havia, também, a apresentação dos acontecimentos mais relevantes da vida literária brasileira da época, como a fundação da “Associação dos homens de lettras do Brazil”, que requereu, inclusive, a visita de “dous notáveis escriptores argentinos, os srs. D. Vicente e D. Ernesto Quesada”. Em verdade, o propósito maior de falar a respeito desses dois escritores sul-americanos pareceu ser também agraciar os leitores nortistas com o mais recente número da “Nueva Revista de Buenos Aires” e, assim, colocá-la no patamar das revistas cuja “Amazônica” estaria em comunhão. João Afonso do Nascimento nasceu no maranhão, em 1855. Aos 21 anos radicou-se no Pará. Foi cronista e teatrólogo. Conferir AZEVEDO, Eustáchio de. Literatura Paraense. 3ª ed. Belém: Fundação Cultural do Pará Tancredo Neves; Secretaria de Estado e Cultura Azevedo: 1990, p. 56. 17 Sobre Augusto Constancio Rockling não foi encontrada referência. 18 Emilio Allain reeditou a “Arte de Grammatica da Língua Brasílica”. Conforme a “Revista Amazônica”, traduziu as lendas recolhidas por Couto de Magalhães no O Selvagem. 19 João Barbosa Rodrigues nasceu no Rio de Janeiro em 1842. Foi botânico e engenheiro. Inaugurou em 1883 o Jardim Botânico em Manaus. Publicou as obras: “Exploração e estudo do Valle do Amazonas” (1875), “Idolo amazônico achado no rio Amazonas” (1875), “Lendas, crenças e superstições” (1881) e outras. Conferir referência completa em SILVA, Innocencio Francisco da. Diccionario Bibliograhico Portuguez. Lisboa: Imprensa Nacional, M DCCC LXX, p. 279. 20 Vicente Chermont de Miranda nasceu na Província do Pará. Foi engenheiro industrial e sócio do IHGB. Prestou relevantes serviços ao Pará no setor das ciências naturais, cartografia e linguística. Publicou os livros, “Marajó”, 1864, “Glossário Paraense”, 1905, “Campos de Marajó e sua flora”, 1907. Conferir referência completa em Borges, op.cit., p. 389-393 e Pará. Mensagem do Exmo. Sr. Doutor José Coelho da Gama e Abreu, presidente da Província do Pará, apresentada à Assembléia Legislativa Provincial do Pará, no dia 16 de junho de 1879. Pará: ?, 1879, p. 48. Disponível em: http://www.crl.edu/content/brazil/jain.htm. Acesso em 15 mar 2008. 21 “Revista Amazônica”. Tomo II, 1884. Sumário de janeiro e Fevereiro. 16

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Ao se enfatizar isso, há um propósito explícito dos editores em elevar os periódicos – que entre a efemeridade do jornal e a difícil circulação do livro, provavelmente por seu alto custo – a categoria de produção acordada às diversas e recentes notícias do mundo literário e científico dos países latino-americanos: NUEVA REVISTA DE BUENOS AYRES dirigida por Ernesto Quesada. Tomos VII, VIII, e IX Buenos Ayres, abril de 1883 a fevereiro de 1884. Temos recebido regularmente esta interessantíssima publicação que entendemos recommendar aos poucos – e os haverá, ainda assim? – que, americanos, devemos pensar também em conhecer alguma cousa da América. Qual é de nós, com effeito, que não vive na mais profunda ignorância a respeito do movimento político, litterario, artístico ou scientifico das nações latinas do nosso explendido continente? Ainda os homens mais eminentes dessas nações, os mais justamente illustres, como o poeta boliviano D. Manoel Cortez, os historiadores, poetas e litteratos mexicanos, Alaman e Icazbalceta, Maldonado, Pesado e Carpio, Manoel Payno, o chileno Lastarria, e mesmo, os que estão em maior contacto connosco, os argentinos, os Quesada, os Glavez, os Alcorta, os Gusman, os Lopes, os Mitre são-nos desconhecidos completamente. Nada mais difficil mesmo do que obter um livro publicado em qualquer dos paizes latino-americanos. Para combater este isolamento, estreitar as relações intellectuais entre os differentes povos latino da América fundaram os eminentes publicistas e litteratos argentinos, srs. Quesada, pai e filho, a Nueva Revista de Buenos Ayres que já conta três annos de existencia e novos tomos publicados, collaborada por escriptores de toda a America latina, entre elles alguns do Brazil (Franklin Távora e Sylvio Romero) e constituindo já hoje um excellente repertorio de noticias de alto valor litterario e scientifico sobre a vida intellectual dessas nações.22

Se por um lado prevalece no excerto acima o discurso da carência material e cultural ao redor desse tipo de publicação, por outro não são ausentes as iniciativas para torná-la promissora e símbolo de uma movimentação intelectual incomodada com a “profunda ignorância a respeito do movimento político, litterario, artístico ou scientifico das nações”. Nesse sentido, a “Revista Amazônica”, por meio de um trabalho de José Veríssimo traduzido para a edição Argentina, compõe o cabedal de valores materiais necessários à construção cultural do momento, qual seja, a necessidade de se firmar um intercâmbio entre escritores e instituições: A ‘Revista Amazonica’ não é uma desconhecida para a ‘Nueva Revista’ que no seu numero de Dezembro ultimo traduziu o trabalho do nosso collega José Veríssimo, aqui publicado, sobre o movimento intellectual brazileiro nos últimos dez annos.23

Ultrapassado os limites geográficos, com colaboradores valiosos e aqueles lugares-chave de distribuição e venda, a empresa editora via o eminente risco de a revista deixar de circular devido ao aumento na taxa dos serviços prestados pelo correio, por isso disponibilizou um empregado seu para que não houvesse quaisquer insatisfações por parte dos leitores: Desesperando de obter do correio um serviço siquer regular, na distribuição dessa ‘Revista’, ainda mesmo quando por decisão da Direcção Geral no Rio de Janeiro, foi quadruplicado o porte que pagava, a empreza editora resolveu fazel-a distribuir por um empregado seu. Qualquer falta que por ventura se dê será remmediada, si os srs. assignantes reclamarem por um bilhete deixado ou na loja Chineza, ou na typografia do Livro do Commercio, ou no escriptorio da ‘Revista’, á estrada de S. Jeronymo.

Não fosse, no entanto, o marketing de seu fundador não teria coligido uma série de matérias, reunido um seleto grupo de escritores, muito menos proporcionado o intercâmbio que todos almejavam. Veríssimo, assim como fez Franklin Távora na reinauguração da “Revista Brasileira”, solicitava colaboração de outros escritores. Um dos primeiros foi justamente esse amigo nordestino que em 1881 já havia publicado um artigo seu na supracitada revista de renome nacional. Meu caro amigo, Sr. José Veríssimo: Tenho duas quartas suas a que venho responder. Agradeço-lhe a impressão de mágoa pelo falecimento de minha prezada mulher. Com este golpe, de que ainda não me restabeleci, não vejo remédio, senão no tempo. 22 23

“Revista Amazônica”. Seção Publicações Recebidas. Tomo II, janeiro e fevereiro de 1884. p. 95-96. Ibid..

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Anais do II Congresso Internacional de Estudos Linguísticos e Literários na Amazônia (CIELLA) Agradeço-lhe também o convite para escrever para a ‘Revista do Amazonas’. Hei de mandar-lhe, talvez pelo vapor de 10 de março p. Vindouro, algum escrito para a indicada Revista a cuja redação folgo de pertencer. Aqui, na Secretaria já tenho assinante para ela, o Sr. Joaquim Rodrigues Carneiro, Oficial da aludida Secretaria. Pode portanto fazer a remessa oportunamente. De minha parte conte com tudo o quanto ver que está ao meu alcance e em favor da sua publicação. A minha pena é dos meus amigos, à colaboração destes, de tudo disponha. Pode mandar-me, por ora, 10 números que passarei. Este número há que aumentar. Só o que eu lamento é que as atuais condições do meu espírito sejam tão contrárias a assuntos e ocupação de semelhante natureza [...]24

Essa carta datada de 27 de fevereiro de 1883 é ilustrativa de como acontecia o trânsito de ideias de província para província, entre homens e intelectuais. Em meio a palavras de consolo e desabafo prevalecia o esforço que ambos os escritores faziam para que seus projetos corressem livrarias, de mãos em mãos pelo Brasil. Havia exatamente um ano que a “Revista Brasileira” parara de fazer parte das bibliotecas. A tentativa de ser ela um esboço do projeto de “Literatura do Norte” de Távora havia chegado ao fim em 19 de fevereiro de 1882. Cúmplice de todos esses pesares, Veríssimo tinha consciência do que poderia vir acontecer com sua revista. Todavia, não arrefeceu suas ideias, ao contrário, buscou, no Rio de Janeiro, alguém que pudesse lhe ajudar. Foi, então, que o nome de Machado de Assis lhe veio, convidando-o, em março de 1883, para fazer parte dos redatores da “Revista Amazônica”: Ilmo. Exmo. Sr. Joaquim Maria Machado de Assis. Com esta receberá V. Ex. O primeiro n.º da ‘Revista Amazônica’, da qual sou Diretor. É uma tentativa, talvez utópica, mas, em todo o caso, bem intencionada. Não sei se terá mais, ou, pelo menos, tanta vida como a ‘Brasileira’. Eu por mim o que posso prometer é que farei tudo para que viva. Mas eu só, e no meio de uma sociedade onde os cultores das letras não abundam, nada posso; e se não fosse confiar na proteção daqueles que, como V. Ex., conservam vivo o amor ao estudo, não a publicaria. É, pois, para pedir a sua valiosíssima colaboração que tenho a honra de escrever a V. Ex., de quem, há muito que sou admirador sincero. – José Veríssimo.25

Por essa época, Machado já conhecia o texto de Veríssimo saído em 1881 na “Revista Brasileira”. Sabia da boa receptividade que tivera o paraense na Corte, com “A Religião dos Tupis Guaranis”. Conhecia, o “espírito prático, sabedor das dificuldades, e resoluto”26 de Veríssimo. Bastaria escrever um artigo e ter a certeza de publicação na “Revista Amazônica”. Não o fez. Os motivos ainda não se sabem. Uma suposição seria o que o próprio Machado de Assis afirmaria em carta de 19 de abril de 1883, endereçada a Veríssimo: “Há alguns dias (...) referindo-me à Revista Brasileira, disse esta verdade de La Palissse: –”que não há revistas, sem um público de revistas. Tal é o caso do Brasil. Não temos ainda a massa de leitores necessária para essa espécie de publicações “ Ainda assim, veio a lume, em março de 83, a “Revista Amazônica”, com uma breve apresentação feita pelos editores: Abrir um campo em que venham lavrar quantos se interessam pelo desenvolvimento moral da esplendida região amazonica; tornal-a conhecida, dentro e fora do paiz, pelos estudos dos múltiplos aspectos porque pode ser encarada, aos sábios, letrados, economista e financeiros emprehendedores; estreitar n’uma comunidade de desejos e, até certo ponto, de idéas, as relações entre as duas províncias que formam a Amazônia; propagar o espírito novo que actualmente agita o mundo intellectual; offerecer aos estudiosos de ambas essas províncias um meio menos ephemero do que o jornal, de dar publicidade ao resultado de suas locubrações – tal é o fim desta publicação.27

O eixo norteador dessa empresa foi, definitivamente, propagar os estudos realizados sobre a Região Amazônica por meio da colaboração daqueles que “se interessam pelo desenvolvimento moral da esplendida região”. Era a formatação de um grande projeto que objetiva perscrutá-la em Ibid., p. 420. ASSIS, Machado de. Obras Completas: Correspondências. Rio de Janeiro: W.M. Jackson INC. Editores. 1962, p. 127-128 26 Ibid., p. 129. 27 “Revista Amazônica”, Tomo I, 1883, pp. 5-6. 24 25

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seus diversos estados, tanto que em seus onze números, a matéria selecionada caracterizou-se desde a economia da borracha até a descoberta de civilizações antigas. Continua a introdução: Entendemos que no meio do febril movimento commercial, que a riqueza nativa do Valle do Amazonas entreteu não só n’esta Liverpool dos Trópicos – como já lhe chamaram – mas ainda na futurosa cidade de Manaos, havia lugar para um jornal consagrado a promover directa ou indirectamente, o engrandecimento moral e, portanto, dirigir melhor o material da Amazonia; e que publical-o seria, sinão um serviço que prestávamos, ao menos uma lacuna que cobríamos. Não basta – cremos nós – produzir borracha, cumpre também gerar idéas; não é sufficiente escambar productos, é ainda preciso trocar pensamentos; e um desenvolvimento material que se não appoiasse n’um correlativo progresso moral seria, não somente improficuo, mas funesto, pela extensão irregular que daria aos instinctos - já a esta hora muito exagerados – do mercantilismo. Si uma publicação que se consagre ás lettras, ás artes e ás sciencias, póde concorrer para esse fim, a ‘Revista Amazônica’ quer e espera ser essa publicação, comtanto, - é claro – que não lhe falleçam nem a collaboração de todos os escriptores que para ella queizerem contribuir, nem a protecção do generoso publico das duas províncias a que dedicamos.28

Em detrimento de ações depredadoras do rico material amazônico, é efetivado o investimento em ideias, maior parte delas pragmáticas e já realizadas pelo corpo da redação da revista, seja pela publicação de obras, construção de Museus, criação de associações ou restauração de bibliotecas. Por isso verificar o que cada membro publicou em determinado número da “Revista” é considerar uma história de estudos e relações interpessoais. A título de exemplo, verifica-se a colaboração de Tito Franco de Almeida e Domingos Soares Ferreira Pena, os dois escritores que mais contribuíram com artigos para a revista e exemplos do momento em que Veríssimo é tido como intelectual reconhecido na altura de 1883 de cuja companhia desfrutou em praticamente toda sua estada em Belém. De maneira geral, os outros colaboradores publicaram somente um texto. Comparando o que cada escritor publicou, nota-se o frequente discurso da carência intelectual, caracterizada pela “insipidez do nosso viver provinciano”. Boa parte desses escritores é unânime em afirmar o total desconhecimento sobre a Região Amazônica, talvez, até referenciada sob uma certa fragilidade, uma vez que os próprios brasileiros não dão conta das transformações que ela vem sofrendo nas últimas décadas. De maneira geral, pode-se afirmar que desde a formatação até a seleção de temas, a “Revista Amazônica” atende aos claros propósitos de retirar a Região Amazônica dessa zona de esquecimento, na qual estão, também, inclusos todos os trabalhos de ordem não científica a seu respeito. A pluralidade temática, a seleção de escritores estudiosos no assunto, até as notícias sobre o mundo literário na seção “publicações recebidas” indicam aquele projeto dos editores de “offerecer aos estudiosos de ambas essas províncias um meio menos ephemero do que o jornal, de dar publicidade ao resultado de suas locubrações”.29 Foi, portanto, com o objetivo de estabelecer permanente diálogo entre instituições e cientistas que na cidade de Belém, entre 7 de março de 1883 a abril de 84, a “Revista Amazônica” figurou, apontando para a posteridade desse tipo de publicação, que se efêmera no tempo, no espaço perdurou porque funcionou como instrumento, conforme seus editores, instaurador de um movimento de renovação mental e intelectual que tinha em seu seio se estabelecer como tal. Referências AGUIAR, Cláudio. Franklin Távora e o seu Tempo. 2. ed. Rio de Janeiro: ABL, 2005. ALENCAR, José de. Como e porque sou romancista. 1ª edição 1873. Disponível em <www.virtualbooks.com.br>. Acesso em 24 maio 2008. 28 29

Ibid. “Revista Amazônica”, Tomo I, 1883, p. 5-6.

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Tema geral: Línguas e Literaturas: Diversidade e Adversidades na América Latina VERÍSSIMO, José. Primeiras Páginas. Belém: Gutemberg, 1878, Rio de Janeiro: Imprensa Nacional, 1894. WEINSTEIN, B.: Experiência de pesquisa em uma região periférica: a Amazônia. História, Ciências, Saúde, Manguinhos, Rio de Janeiro, vol. 9(2):261-72, maio-ago. 2002.

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BIBLIOTECAS PRIVADAS DAS ELITES PARAENSES (1870-1890)1 Alessandra Pantoja PAES (Universidade Federal do Pará)

RESUMO: O estudo de bibliotecas privadas tornou-se, no século XX, objeto de interesse de historiadores e críticos literários dedicados ao campo de pesquisa da história do livro e da leitura. Tanto na Europa quanto no Brasil, investigações têm demonstrado que a análise das obras que compõe esse tipo de biblioteca muitas vezes fornece pistas para compreender mentalidades pessoais ou coletivas, bem como ações dos homens no espaço público, já que, via de regra, as leituras são formadoras de crenças, orientando escolhas e tomadas de decisões. Tendo isto em vista, o presente trabalho objetiva apresentar os resultados parciais do projeto de pesquisa Bibliotecas privadas das elites paraenses (1870- 1890), que tem com fontes primárias inventários e testamentos postmortem. PALAVRAS-CHAVE: história do livro e da leitura; bibliotecas privadas; inventários; testamentos post- mortem.

ABSTRACT: The study of the private librarys became, in the XX century, object of interest of the historians and literatury critic appplied on field research of book’s history and reading. Even in Europe as in Brazil, investigations had showed that the analysis of works that compose this kind of library many times provide indiciums to comprehend personal or collective mentalitys, as well men actions in the public space, because on rule the readings are forming beliefs, guiding choices and decision making. In view of this, the present work object to present the partial results of project research the private library’s of the elite of Pará State (18701890), wich posses as primary souces inventories and wills post- mortem. KEY WORDS: book’s history and reading; private library’s; inventories; wills post- mortem. O presente artigo é resultado de trabalho como bolsista PIBIC/UFPA no projeto Bibliotecas privadas das elites paraenses (1870-1890). Tal pesquisa faz parte do projeto Contrafação de romances brasileiros e portugueses em Belém do Pará, coordenado pela profa. Dra. Valéria Augusti e financiado pelo CNPq/FAPESPA.

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Ao longo do século XX, historiadores e críticos literários dedicados à pesquisa sobre o livro e leitura começaram a se perguntar sobre a circulação da produção escrita, bem como sobre as preferências do público leitor. Parcela desses pesquisadores passou a se dedicar ao estudo de bibliotecas, sejam elas públicas ou privadas. Tais pesquisas propunham-se a levantar inúmeras questões acerca da preferência dos leitores por determinadas obras e autores; bem como sobre as diferentes práticas de leitura, muitas vezes, orientadas pelo regulamento das bibliotecas. No que tange às bibliotecas privadas, dentre as inúmeras fontes de pesquisa utilizadas, destacam-se os catálogos, inventários e testamentos post- mortem, visando a descobrir os livros em circulação nos mais diversos lugares sociais, bem como as preferências dos leitores. Conforme observa Tania Maria Bessone “o catálogo de uma biblioteca particular pode servir como perfil de um leitor, pois tem a vantagem de unir ‘o que’ com o ‘quem’ da leitura” (BESSONE, 1999, p. 16 apud DARNTON), ou seja, possibilita compreender o que o proprietário da biblioteca provavelmente lia. A partir do acervo que constitui essas “grandes silenciosas”, apelido criado por Henry Martin2 se tem acesso às preferências do leitor por determinados autores em detrimento de outros, bem como por determinados gêneros, literários ou não. Pode-se também encontrar livros cuja circulação foi proibida em virtude de questões políticas, como se deu no século XVIII na França3. José Antonio Mendonça Pereira de Oliveira acredita que por meio dos livros presentes em uma biblioteca particular é possível compreender o “caráter, a personalidade e, provavelmente a educação, gostos e interesses pessoais de seu detentor bem como descortinar motivações culturais do meio social envolvente e da época vivida” (OLIVEIRA, 1995, p.12). Os pesquisadores que procuram conhecer as bibliotecas privadas do passado por meio de inventários enfrentam, por sua vez, algumas dificuldades, pois geralmente o registro das obras que as constituem é escasso e, quando existem, trazem poucas informações bibliográficas. Em artigo intitulado Bibliotecas privadas e práticas de leitura no Brasil colonial, Luiz Carlos Villalta comenta a reduzida quantidade de inventários nos quais foram encontrados livros em relação ao grande número de documentos pesquisados. Bessone, no livro Palácios de destinos cruzados: Bibliotecas, homens e livros no Rio de Janeiro, 1870-1920, também relata essa dificuldade e afirma ainda que mesmo em casas onde existiam livros era possível que não fossem descritos dentre os bens do inventariado, uma vez que era comum que se privilegiassem, nos registros, a descrição de outros bens tidos como mais valiosos como escravos e objetos de ouro e prata, por exemplo. Ainda que essas fontes não apresentem todas as informações necessárias para uma melhor compreensão da relação dos livros com seu possuidor, tais como: o livro foi lido? com que objetivo? qual a razão da existência dele em determinado acervo?, não resta dúvida de que são fundamentais para a compreensão de panoramas culturais configurados em diferentes épocas. Não somente desvendando preocupações intelectuais características de um determinado grupo social, como também suas diferentes relações nos mais diversos lugares sociais. No Pará quase não há registro de pesquisas que tomem como objeto de estudo bibliotecas privadas. Atualmente esse quadro tende a mudar com o desenvolvimento do projeto Bibliotecas privadas das elites paraenses (1870- 1890), coordenado pela prof. Dra. Valéria Augusti. Seu objetivo consiste em descobrir quais livros compunham as bibliotecas das elites paraenses nas três últimas décadas do século XIX. Pretende também traçar o perfil de leitores a partir da análise da composição de suas bibliotecas, considerando-se os autores, obras, e gêneros que as constituíam. Assim, acredita-se que a presente pesquisa pode auxiliar a compor um panorama da história do livro e da leitura no estado do Pará no século XIX, não somente delineando e caracterizando um espaço social de circulação dos livros, como também traçando certo perfil intelectual de suas elites, passível de ajudar a compreender em que mediada suas leituras podem ou não ter norteado posturas nos espaços privados e públicos, este último decisivo ao futuro da Província. Consultar COSTA, Joaquim- Acção social da bibliotecas. No centenário do Decreto de 9 de julho de 1833 que criou a biblioteca portuense. Porto: Edição do autor, Imprensa portuguesa, 1933, p. 25. 3 Para saber a esse respeito ler: DARNTON, Robert. Os best-sellers proibidos na França pré-revolucionária. São Paulo, Cia das Letras, 1998. 2

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A pouca ou quase nenhuma utilização de inventários e testamentos post- mortem nas pesquisas sobre o livro e leitura no Estado do Pará, também despertou o interesse em recorrer a eles como vias trilháveis na busca ao leitor do passado. Assim sendo, o projeto em questão teve início com a consulta de inventários pertencentes à 11ª vara cível de Belém, disponíveis no Centro de Memória da Amazônia. Da totalidade de inventários que compõe a referida vara cível, foram consultados, até o presente momento, todos aqueles relativos à década de setenta do século XIX, compreendendo um total de 81 inventários. Os documentos consultados não tinham características homogêneas. Ao passo que alguns apresentavam anotações muito detalhadas, outros ficavam inconclusos. Além disso, problemas de conservação impediram que a totalidade de documentos fosse examinada. Dentre os dados coletados dos referidos documentos estão os nomes do inventariado, inventariante e escrivão, que podem ser encontrados na capa do referido documento; início e término do processo, bem como o nome do Juiz responsável, local de residência do inventariado, sua profissão, herdeiros e a lista de bens deixados a esses, verificáveis na parte intitulada Auto do inventário ou ainda em outra denominada descrição e avaliação dos bens. No tocante a esses bens arrolados o interesse desta investigação recai sobre as informações relativas a livros, tais como: gênero, título, autor, ano e data de publicação, edição, volume e preço, caso fossem descritas. Por meio de tais informações se pretende verificar as obras que circulavam no Estado do Pará naquele período, os gêneros mais lidos ou procurados, autores mais requeridos, nacionais ou não. A partir do número da edição verificar se esses autores eram populares na época, constituindo o que hoje se convencionou chamar de best-sellers, e o valor a eles atribuídos. Nesta primeira etapa da pesquisa não foi encontrada nenhuma referência à existência de bibliotecas nos inventários, muito embora se faça necessário frisar que em pelo menos 5% deles foram descritos bens móveis relacionados a práticas de leitura e escrita tais como: conjunto de mesas, cadeiras para escritórios e escrivaninhas. Tais objetos fazem supor a existência de livros ou pelo menos do contato de seus proprietários com o universo da leitura. É possível supor que no caso de os livros terem existido, eles não tenham sido inventariados, já que mesmo em casas onde os havia, era comum que se priorizasse, nos registros, bens de raiz, ou mesmo outros tidos como mais valiosos, como escravos e objetos de ouro e prata. Há que se considerar também a possibilidade de que em virtude do número reduzido de obras possuídas pelo inventariado, não tenha se considerado relevante registrar sua existência. Assim sendo, espera-se que o desenvolvimento da pesquisa possibilite testar essas hipóteses explicativas acima aventadas. A partir da leitura dos inventários pode-se verificar que 15% dos inventariados eram analfabetos, sobretudo os pequenos negociantes da província, sendo muito mais freqüente esse fato entre as mulheres, representantes de 10% dessa totalidade, cabendo aos homens os 5% restantes. Dessa forma, possivelmente, o único meio de acesso ao universo dos livros por essa parcela da população tenha sido a oralidade, modalidade de leitura ainda muito praticada no século XIX, apesar de a leitura silenciosa privada ter se tornado cada vez mais freqüente desde o século XVIII4. Os inventariados em sua maioria eram comerciantes naturais da capital de Belém, Província do Pará. Contudo, havia também um número considerável de negociantes naturais de Portugal. Muitos desses homens eram detentores de grandes propriedades de terras, sítios, tecelagens, madeireiras, casas, Prédios, ações e escravos. Outros tinham pequenos negócios, como lojas de material de construção, pequenos terrenos, padarias etc. E outros ocupavam cargos públicos de natureza militar, desempenhando funções de capitão, major e tenente. Os bens arrolados nos testamentos resumem-se a casas, sobrados, terrenos, móveis, objetos de ouro e prata, roupas, ações, dinheiro e escravos. E os herdeiros dos inventariados geralmente eram integrantes de suas famílias como pais, irmãos, netos e primos. Contudo, grande número desses homens, não tendo herdeiros forçados, legavam seus pertences a afilhados, amigos muito próximos, WITTMANN, Reinhard. “Existe uma revolução da leitura no final do século XIX?”. In: CAVALLO, Guglielmo e CHATIER, Roger. História da leitura no mundo Ocidental 2. São Paulo: ática, 1999.

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a alguma instituição de caridade ou mesmo à igreja. Escravos também se tornaram herdeiros em alguns testamentos, recaindo sua herança na parte da terça. No inventário de Izabel Francisca do Rosario, natural da Província do Pará, a mulata Maria Ignácia da Conceição, sua criada, consta como única e universal herdeira dos poucos bens que deixou: “declaro que não tendo herdeiros forçados ou necessários, instituo por minha única e universal herdeira á mulata Maria Ignacia da Aparição, filha da mulata Luiza Ambrozia”5. Na maioria dos documentos analisados foi possível observar o predomínio da religião católica professada pelos inventariados. No inventário de Lúcio de Sousa Machado, comerciante estabelecido na Província do Pará, natural de Lisboa, Reino de Portugal o escrivão descreve no Auto do inventário a adesão daquele ao cristianismo, bem como sua crença na igreja: “primeiramente como christão, felizmente nascido no grêmio da igreja creio em tudo quanto ella manda crer e ensinar”6. Ambrosio Paulino, também comerciante, natural da Província do Pará não só se preocupou em registrar a religião a qual pertencia e acreditava: “sou catholico, apostólico, romano, e nesta santa e única religião em que verdadeiramente creio espero morrer” 7, como também em deixar uma pequena quantia em dinheiro para a irmandade de nossa senhora da Conceição, uma santa da qual, possivelmente, era devoto. A adesão a tal crença religiosa se expressa também materialmente nos inventários por meio da presença de oratórios, crucifixos, e imagens de santos, arrolados entre os demais bens dos inventariados. Alguns deixavam ainda, como foi mencionado acima, quantias em dinheiro para alguma paróquia ou para algum santo, como a Nossa Senhora da Conceição da freguesia da Campina, que aparece em três testamentos dos inventários pesquisados. Não raro também, os inventários revelam ou fazem supor a existência de uma relação próxima entre senhores e escravos. Alguns inventariados registravam nos documentos a alforria de parte ou de todos aqueles dos quais eram donos. Outros não só concediam-lhes a liberdade, como também faziam de seus escravos herdeiros de parte de seus legados, como já fora mencionado, deixando-lhes determinada quantia em dinheiro, como uma espécie de recompensa pelos diversos serviços prestados ou pela companhia que dedicavam a seus donos, alguns desses, pessoas solitárias e sem família. Em sua maioria esses escravos eram afilhados dos inventariados, os quais lhes deixavam uma pequena renda para o investimento em estudos, quando se tratava de escravos ainda menores. Tais ações são verificáveis principalmente entre as mulheres. Das 34 que compõem o número de documentos analisados 13 realizaram tais ações; em relação aos homens, dos 47 existentes, 9 são aqueles que não fazem de seus escravos mais um dos bens arrolados dentre tantos outros, mas sim herdeiros de uma parte de seus legados. Anna Victor Baymar e Silva, natural da província do Pará, solteira, filha de pequenos comerciantes, sem muitos herdeiros, e com poucos legados faz parte desse grupo que decidiu amparar e reservar um lugar em seu testamento àqueles escravos por quem parece ter estabelecido algum laço de afetividade. Assim, deixa em posse de seu testamenteiro uma determinada quantia em dinheiro para este aplicar na compra de um quarto de casas para sua escrava, a mulata Elisiaria, juntamente com a afilhada desta, Amelia, habitarem após a morte de sua senhora, a referida inventariada: “Declaro que deixo á minha escrava, a mulata Eliziaria, e sua afilhada Amelia Maria Augusta a quantia de três contos de reis, que meu testamenteiro aplicará na compra de um quarto de casas para viverem juntas e por morte de huma dellas succederá a que sobrivever.”8. Anna deixa ainda todos os seus trastes de ouro, alguns móveis e toda sua roupa para referida escrava Elisiaria: Deixo mais a molata Eliziaria todos os meos trastes de ouro, uma dúzia de cadeiras e huma das minhas mesaz da sala de jantar, á sua escolha; e uma [ ]ou guarda-roupa também a sua escolha declaro que meo testamenteiro entregará a dita minha escrava a mulata Eliziaria toda a minha roupa para ella repartir entre si e as outras minhas escravas9. Auto de inventário. Izabel Francisca do Rozario. Caixa 142, 1873. Auto de inventário. Lúcio de Souza Machado. Caixa 145, 1877. 7 Auto de inventário. Ambrozio Paulino. Caixa 145, 1877. 8 Auto de inventário. Anna Victor Baymar e Silva. Caixa 145, 1877. 9 Ibidem. 5 6

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Januario Antonio da Silva, residente em Belém do Pará, mas natural de Portugal é um dos que mais se destacam na lista daqueles que por caridade, afetividade, ou outras razões que os registros não esclarecem, antes de morrer quis deixar a grande maioria de seus escravos não só libertos como também dispondo de um lugar para viverem. A mulata Vicencia, para quem este lega não somente dinheiro, como também dois quartos de casas, parece ser por ele recompensada por todos os serviços que lhe prestou em vida e pela companhia que lhe dedicou: Deixo à mulata Vicencia que existe nessa casa e nela existe sempre fazendo-me muito boa companhia e muitos bons serviços, um quarto de casas, que possuo na travessa Daz mercês numero cento e vinte seis e bem afim lhe deixo outro quartinho de casas na rua da Paciencia numero vinte dois, com a condição de não a poder vender para por sua morte ficarem pertencendo a sua afilhada Maria Melania que também existe nesta casa como liberta e bem afim deixo à mesma mulata Vicencia um conto de réz em moeda corrente no Imperio e deixo outro conto de réz a sua afilhada Maria Melania10.

Aos escravos menores Januario refere-se de uma forma um tanto carinhosa chamando-lhes de “mulatinho” ou de “mulatinha pequenina”, tendo o cuidado de deixar a estes nãos somente bens materiais como também instituir um responsável para administrá-los até atingirem a maioridade. Deixo ao mulatinho Cyrillo que está empregado no engenho como escrivão, um quarto de cazas que possuo na travessa [ ] numero tal, e bem assim lhe deixo um conto de réz em moeda corrente, cujo bens que deixo não será administrado por seu padrinho José Leocádio dos Passos, para com o seu rendimento lhe fornece que precisa e quando chega a sua maioridade lhe entregar. (...) Deixo a uma mulatinha pequenina de nome Patricia um quartinho de cazas na rua das Flores numero cento e cinqüenta e quatro e também lhe deixo um conto de réz em dinheiro a esta creança a quem eu declarei liberta quando se baptisou, é filha da preta Maria Lopes e afilhada da mulata Juliana, digo Julia, e do senhor cônego Bernardino Henrique Diniz e este seu padrinho por tutor lhe peço que a acessore na companhia de sua madrinha e lhe administre o que lhe deixo, para com o seu rendimento ella se manter e lhe entregar quando, e na falta deste senhor cônego, nomeio por seu tutor ao senhor Antonio Joaquim Alvez Bauçás11.

Como se observa no caso da “mulatinha” Patricia alguns escravos pertencentes a Januario já eram livres e se mantinham em sua casa como libertos, talvez apenas prestando-lhes serviços, ou exercendo determinadas funções que os registros não esclarecem. Alguns desses escravos trabalhavam no engenho, a exemplo de Cyrillo, que desempenha a função de escrivão - provavelmente sabendo ler e escrever - e da citada mulata Firmina para quem Januario lega dois quartos de casas com a condição de esta não poder vendê-los, pois ficariam como herança a sua filha. Dessa forma, o referido inventariado demonstra certa preocupação com o futuro dessas pessoas por quem parece sentir uma espécie de estima ou simples vontade de recompensar grandes serviços prestados: Deixo á mulata liberta Firmina que existe no engenho, um quarto de casaz na rua das Flores numero cento e oitenta e oito e também lhe deixo outro quartinho de casaz que possuo na rua do Rosario numero cento e cinqüenta e cinco, com a condição de a não poder vender, para por em falecimento ficarem para sua filha, e também deixo a mesma Firmina um conto de réiz e moeda corrente [ ] deixo aos libertos que existem no engenho, Alberto Julião, Vicencio, Joaquina e Lucia, duzentos mil réiz a cada um, em moeda corrente. Deixo a cada um dos doz escravos do mesmo engenho e da casa da cidade dez mil réiz a cada um.”12.

Os 22 cidadãos brasileiros e portugueses que libertaram e deixaram algum legado a seus escravos se tratavam de pequenos comerciantes, senhoras donas de casa, menos abastados e instruídos em relação aos demais que não realizaram semelhante ação. Januario Antonio da Silva parece ser um dos poucos homens detentores de grandes posses a manter com seus escravos uma relação de proximidade e aparente afetividade a partir do que é descrito em seu inventário. Mesmo não encontrando nenhuma referência a livros nos inventários da década de setenta, e somente trabalhando com sua suposta existência em pouquíssimos deles, a partir das razões já mencionadas, a pesquisa com fontes primárias foi de vital relevância para compreender aspectos relacionados à vida material da população de Belém, a comprovada adesão ao catolicismo por parte Auto de inventário. Januario Antonio da Silva. Caixa 142, 1874. Ibidem 12 Ibidem 10 11

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da população do Estado do Pará em virtude da colonização portuguesa, e a relação de senhores com escravos. Assim sendo, espera-se que o desenvolvimento da pesquisa permita analisar os dados coletados de modo a traçar um panorama do universo sócio-cultural desses inventariados, de modo a compreender melhor como se dava a relação de parcelas da população local com o mundo do livro e da leitura. Referências ABREU, Márcia. Os caminhos dos livros. Campinas, SP: Mercado de letras, 2003.

Auto de inventário. Anna Victor Baymar e Silva. Caixa 145, 1877. Auto de inventário. Ambrozio Paulino. Caixa 145, 1877. Auto de inventário. Izabel Francisca do Rozario. Caixa 142, 1873.

Auto de inventário. Januario Antonio da Silva. Caixa 142, 1874. Auto de inventário. Lúcio de Souza Machado. Caixa 145, 1877. CHARTIER, Roger. O mundo como representação. Estudos avançados. São Paulo: 11 (5), 1991. CHARTIER, Roger. “Comunidades de leitores”. In: A ordem dos livros: leitores, autores e bibliotecas na Europa entre os séculos XVI e XVIII. Brasília: editora da UNB, 1994. DARNTON, Robert. “A leitura rousseauista e um leitor ‘comum’ do século XVIII”. In: CHARTIER, Roger. Práticas da leitura. São Paulo: Estação Liberdade, 1996. DARNTON, Robert. Os best-sellers proibidos na França pré-revolucionária. São Paulo, Cia das Letras, 1998. ENTREVISTA COM ROGER CHARTIER. Acervo. Rio de janeiro, v. 8, n 1-2, p.3-12, jan/dez 1995. FERREIRA, Tania Maria Tavares Bessone da Cruz. Palácios de destinos cruzados: bibliotecas, homens e livros no Rio de Janeiro, 1870-1920. Rio de Janeiro: Arquivo Nacional, 1999. FISCHER, Steven R. “A visão do Pergaminho”. In: História da leitura. SP: Editora UNESP, 2006, p. 129-185. LYONS, Martyn. “Os novos leitores no século XIX: mulheres, crianças, operários”. In: CHATIER, Roger; CAVALLO, Guglielmo. História da leitura no mundo ocidental. São Paulo: Ática, 1999. OLIVEIRA, José Antonio Mendonça Pereira de. A paixão da História na biblioteca de D. João de Magalhães e Avelar. Faculdade de letras da Universidade do Porto: Porto, 1995. VILLALTA, Luiz Carlos. Bibliotecas privadas e práticas de leitura no Brasil colonial. In: Katia de Queirós Mattoso, Idelette Muzart – Fonseca dos Santos et Denis Rolland [org.]. Naissance du Brésil Moderne, Actes Du Colloque “Aux temps Modernes: Naissance Du Brésil”, Sorbonne, Mars 1997. Paris: Presses de l’Universitê de Paris – Sorbonne, 1998. Traduit Du portugais par Maria Lúcia Jacob Dias de Barros. Revu par Gérard Perrot. WITTMANN, Reinhard. “Existe uma revolução da leitura no final do século XIX?”. In: CAVALLO, Guglielmo e CHATIER, Roger. História da leitura no mundo Ocidental 2. São Paulo: ática, 1999.

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“CAMINHOS DO ROMANCE”: O VALOR DOS ROMANCES BRASILEIROS DO SÉCULO XIX NA INTERNET Alexandre RANIERI (Universidade Federal do Pará/ESAMAZ)

RESUMO: O presente estudo procura fazer uma análise, com base em conceitos de valor literário de autores como Peter Burke, Pascoale Casanova e Antone de Compagnon, dos romances do século XIX na Internet, levando em consideração a incidência desses romances em bibliotecas digitais e observando com maior atenção os site do Caminhos do Romance, idealizado pela professora Márcia Abreu da Universidade de Campinas (UNICAMP) cujo acervo se destaca por um juízo de valor diferenciado: romances esquecidos pelo grande público em sua maioria. Com isso, espera-se que outros estudos possam ser realizados em termos produção acadêmica sobre a Internet e o valor das obras literárias nela inseridas. PALAVRAS-CHAVE: Romances; Valor; Bibliotecas Digitais e Internet.

ABSTRACT: This study seeks to analyze, based on concepts of value for literary authors such as Peter Burke, Pascoale Casanova and Antone de Compagnon, the novels of the nineteenth century on the Internet, taking into account the impact of these novels in digital libraries and observed with higher the attention of the Caminhos do Romance website, designed by Professor Márcia Abreu University of Campinas (UNICAMP) whose collection is distinguished by a different judge of value: Novels forgotten by the general public in its majority. Therefore, it is expected that further studies can be conducted in academic production on the Internet and value of literary works included in it. KEY WORDS: Novels; Value; Digital Libraries; Internet


Anais do II Congresso Internacional de Estudos Linguísticos e Literários na Amazônia (CIELLA)

1.Introdução A internet é um ambiente caótico onde a informação trafega de todos os “lugares” para todos os “lugares”. Na verdade, todo o tipo de informação, do mais simples escrito ao mais complexo livro de literatura já escrito. Não apenas informação escrita, áudio, vídeo, imagens, tudo que possa ser transformado em código binário1. Tamanha quantidade de informações diferentes que trafegam na rede mundial de computadores se perdem no seu emaranhado de vias de acesso e sites. Os sites de busca representam um paliativo em relação à organização estrutural da rede mundial de computadores. A figura abaixo, produzida pela Information Architects Japan simula o tráfego de informação nos duzentos sites mais visitados da web, bem como as relações que estabelecem com outros sites como se fossem linhas de metrô. A partir dessa imagem, pode-se ter uma ideia do nível de complexidade da internet e dos caminhos que as informações percorrem para chegar aos seus destinos. Um mapa com todos os sites e links da internet, seria, com toda certeza, infinitamente mais complexo. Figura 01 – 200 sites mais visitados do mundo

Fonte: http://g1.globo.com Pensando dessa forma, a internet parece ser uma “terra de ninguém”. Lugar de publicações sem supervisão, onde a crítica não parece exercer grandes poderes. Por isso, a auto-publicação e as publicações de gosto duvidoso parecem imperar na web. É claro que tal coisa é relativa, uma vez que pó dem existir blog´s com conteúdo tão bom como o de uma biblioteca virtual. Mesmo assim, pessoas e instituições procuram retomar conceitos de valor outrora esquecidos na rede mundial de computadores e aplicá-los às publicações web. O site Caminhos do Romance, por exemplo, se destaca pela publicação de obras raras dos séculos XVIII e XIX, as quais já caíram a tempos em domínio público e que, em sua grande maioria não foram consagradas pelo cânone atual, mas que possuem valor histórico. Por isso escolhemos esse site para analisarmos o conceito de valor na internet. Como se trata de um caso sui generis, a partir dele poderemos ter uma ideia do que é feito habitualmente na web a partir de um caso em particular. Analisando, assim, de forma geral o todo, com base na análise minuciosa da exceção. Todo e qualquer computador efetua operações matemáticas e lógicas. Em seu nível mais básico, a informação é codificada e decodificada por um computador e traduzida ou interpretada em código binário, ou seja, uma sucessão de 0 (zeros) e 1 (um).

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2. O valor de uma obra Mudam-se os tempos, mudam-se as vontades, Muda-se o ser, muda-se a confiança; Todo o Mundo é composto de mudança, Tomando sempre novas qualidades. Luiz Vaz de Camões

As concepções de valor de uma obra variam conforme os gostos das pessoas – em especial dos críticos – e estes gostos se modificam levando-se em consideração os períodos históricos nos quais são gerados. Segundo Compagnon “qualquer comentário sobre um texto literário toma partido em relação ao que seja a história da literatura e ao que seja valor em literatura”. Questões como gosto e qualidade se adaptam às realidades nas quais as obras foram, são ou serão publicadas. Compagnon afirma que “a literatura muda porque a história muda em torno dela. Literaturas diferentes correspondem a momentos históricos diferentes” (2001, p 196). Entretanto, segundo Pascale Casanova (2002, p. 25) existem obras que valem por sua própria produção literária e também “pelas análises vigorosas que fornecem dobre si mesmas e sobre o universo literário no qual se situam”. Esse valor segundo Paul Valéry seria chamado de “espírito”: Digo que há um valor chamado “espírito”, como há um valor chamado petróleo, trigo ou ouro. Disse valor, porque há apreciação, julgamento de importância e também discussão sobre o preço que se está disposto a pagar por esse valor, o espírito. Pode-se fazer um investimento com esse valor; pode-se rastreá-lo, como dizem os homens da Bolsa; pode-se observar suas flutuações em alguma cotação, inscrita em todas as páginas dos jornais, como ela compete aqui e ali com outros valores. Pois há valores concorrentes [...]

Com base nessa afirmação e em outras, Casanova, em seu livro A república Mundial das Letras (2002), faz uma analogia entre a economia de mercado e o valor das obras literárias. Para a autora, haveria um “espaço onde circularia e se permutaria o único valor reconhecido por todos os participantes: o valor literário”, este “mercado” oscilaria tanto quanto as bolsas de valores econômicas da atualidade: A ideia de um “crédito” literário, tal qual Pound a esboça2, permite compreender como, no universo literário, o valor está diretamente ligado à crença. Quando um escritor se torna uma “referência”, quando seu nome se torna um valor no mercado literário, ou seja, quando se acredita que o que faz tem valor literário, ou seja, quando é consagrado escritor, então “dão-lhe crédito”: o crédito, a “referência” de Pound, é o poder e o valor outorgados a um escritor, a uma instância, a um lugar ou a um “nome”, em virtude da crença que lhe concedem; é o que ele julga ter, o que se acredita que tenha e o poder que, acreditando nisso, se lhe credita. (2002, p. 32)

Os críticos, nesse sentido, teriam muita importância no “mercado” das letras pois, segundo Casanova, teriam papel de criadores do valor literário, seriam eles responsáveis por criar as leis do “mercado literário”, os limites para a aceitação ou não das obras e a separação “do joio e do trigo”. Retomando a questão das mudanças em relação ao valor literário, observa-se que o próprio conceito de literatura mudou no decorrer dos tempos. Historiadores, filósofos, cientistas, segundo Márcia Abreu eram todos “homens de letras” porque “pertenceram a um tempo em que o termo literatura designava erudição”, ou conhecimento propriamente dito (exemplo de Portugal), mesmo que a venda de livros como sobrevivência representasse um desprestígio social (2003, p. 12). O prestígio desse grupo dependia dos que a eles apoiavam (mecenato). A separação entre Letras, Ciências e Artes tiveram a colaboração dos salões e academias (em especial a francesa e a Academia Real das Sciemcias - portuguesa), os quais conferiam valor às obras dos autores que não estivessem diretamente ligados às Artes e às Ciências (2003, p. 15). Casanova se refere a esta citação de Pound retirada do ABC de la lecture (1966, p.25): “Qualquer ideia geral assemelha-se a um cheque bancário. Seu valor depende daquele que o (ou a) recebe. Se o senhor Rockefeller assina um cheque de um milhão de dólares, ele é válido. Se eu fizer um cheque de um milhão, é uma brincadeira, uma mistificação, não tem qualquer valor [...]. O mesmo ocorre no que se refere a cheques relativos ao saber [...]. Não se aceitam cheques de um estrangeiro sem referências. Em literatura, a referência é o nome daquele que escreve. Ao final de certo tempo, dão-lhe crédito...”. 2

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Mais tarde, devido ao aumento no número de alfabetizados houve, consequentemente um aumento no número de leitores, o que gerou segundo Abreu (2003, p.16) uma nova instância no critério de seleção da literatura: a opinião pública. Com esta nova instância, um novo conceito de literatura se delineou, passando a designar as obras de “gosto” e de “beleza” (Voltaire, apud: Gengembre e Goldzink; in: Abreu, 2003 p.18) e que segundo Abade Trubet (apud Abreu, 2003 p.189) não coincidiria com o que é tido como belo pela maioria em geral, e sim pelos de “espírito e gosto”. Moritz (apud Abreu 2003, p. 27) acreditava que as obra de arte, diferentes dos objetos de “arte mecânica” – os quais possuiriam um importância pela sua própria utilidade – teriam um valor em si mesmo, uma espécie de “perfeição interna”, sem objetivos práticos. A partir das ideias de Moritz o mercado deixou de ditar o sucesso ou o fracasso de uma obra, ao passo em que se passou a selecionar autores, obras e gêneros e nomeá-los de literatura. Nesse momento da história literária, a literatura já poderia ser vista como status de distinção social. Menezes Vieira (1868) em seus Pontos de retórica e poética segundo o programa do Imperial Collegio Pedro II e doutrinas dos srs, nos diz que nem sempre o povo pode distinguir o que é belo do que não é. Segundo ele, a paixão cega e illude, portanto “um homem que vê claramente, porque é instruído e desapaixonado, sempre tem mais valor do que a de muitos que não vêem porque estão apaixonados” (grifo meu). Tal conceito de crítica – ou pelo menos de boa crítica – parece prevalecer até os nossos dias, uma vez que se o que se observa é que os autores com maior vendagem dificilmente caem no gosto dos críticos mais respeitados. Os Elementos da Poética, tirados de Aristóteles, de Horácio, e dos mais celebres modernos. Organizado por Pedro José da Fonseca que em 1765 selecionou obras poéticas para o seu tratado, mas resolveu deixar de fora as que “encontrava escritos em línguas, que ás taes eraõ incógnitas, ou a não ser assim, huns por extremosamente extensos, e outros pela nimia brevidade me desagradavaõ”. Da mesma forma em que diz que só os que podem determinar a beleza de uma obra, seriam “aquelles, a quem coube em sorte huma educação polida”. Ainda para esse tratadista os modelos Gregos deveriam ser imitados como padrão de excelência, uma vez que, segundo ele, nesta matéria (poética) haveria muito pouco que inovar, portanto, dever-se-ia procurar o melhor e não o menos comum, ou mais sutil. Mais tarde, segundo aponta Pascale Casanova (2002), a língua, a cultura e a literatura francesas exerceriam o mesmo fascínio que outrora os gregos e latinos manifestavam. Na “bolsa de valores literários” Paris seria uma espécie de banco central para os economistas, acumulando capital das letras, ao ponto de autores de outras partes do mundo publicarem em francês. O estudioso francês Ferdinand Denis, em passagem pelo Brasil a propósito de seu Resumo da História Literária do Brasil atesta a influência da literatura francesa sobre os brasileiros, os quais se orgulham de lerem os franceses e conhecerem a quase todos (Apud César 1978, p. 41). Antes da ideia de literatura as letras não possuíam nacionalidade. Após essa distinção, observou-se a importância da literatura como fundamento ideológico da nacionalidade, exemplo disso pode-se constatar nas palavras de Frederico II da Prússia: “Não imitemos portanto os pobres que querem passar por ricos, convenhamos de boa-fé nossa indigência; que isso nos estimule, antes a conquistar por meio de nossos trabalhos os tesouros da Literatura, cuja posse levará a glória nacional ao auge”. (Apud Casanova 2002, p.23)

No século XIX, Ferdinad Denis rejeitaria as ideias vindas das fábulas gregas – não apenas as fábulas, mas o próprio modelo clássico da qual a arcádia tanto se serviu, bem como a religião politeísta embutida em sua estética – a, defendendo a projeção ao passado nacional, à paisagem local e ao elemento indígena como fonte de uma literatura que se quer nacional e efetivamente brasileira, citando como exemplo Santa Rita Durão, o qual, segundo Denis “assinala claramente o objetivo a que deve dirigir-se a poesia americana” (Apud Weber 1997, p. 34). Assim como os antecessores de Denis, que tomavam os gregos como modelo a ser imitado, Weber afirma que os franceses “passaram a alimentar os horizontes ideológicos da nova nação” (1997, p.35). O próprio ensino da língua nacional, na França e na Inglaterra tinha como objetivo a preparação para o estudo das língua clássicas (Abreu 2003, p. 20).

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Os históriografistas literários como Bouterwek e Sismondi, por sua vez, definiam a literatura nacional a partir da formação do Estado Nacional Brasileiro (1988), admitindo seus precedentes como literatura portuguesa. Tal atitude pode ser encarada como um critério de seleção pelo valor nacional ou não da obra, uma vez que, segundo Compagnon (2001, p. 203) “a história literária procede a uma contextualização num domínio delimitado por uma crítica prévia (uma seleção) explícita ou implícita. A questão entre o que é popular e o que é erudito também passa por critérios de valor. Peter Burke trata do movimento de resgate da cultura popular na Idade Moderna – parte de um movimento mais amplo chamado de descoberta do povo – feito pelos intelectuais europeus, tal resgate representa uma inversão de valores, onde, segundo Claude Fauriel: A balada popular... é resgatada das mãos do vulgo para obter um lugar entre as coleções do homem de gosto. Versos que poucos anos atrás eram considerados dignos somente da atenção das crianças são agora admirados por aquela simplicidade natural que outrora recebeu o nome de grosseria e vulgaridade. (Apud, Burke 1989, p. 33)

Segundo Burke, antes de 1812, ano da publicação da coletânea dos Irmãos Grimm, já se haviam publicado diversos contos populares. Para alguns dos intelectuais de então, o povo exercia uma influência pelo seu caráter exótico – tanto quanto a natureza brasileira para Denis – ao ponto destes mesmos intelectuais tentarem imitá-lo devido a sua virtude selvagem, natural e livre das amarras do classicismo. Mas, também, ainda segundo Peter Burke esse movimento indicava uma postura nacionalista, em especial, nas sociedades sob domínio estrangeiro. Como dito de início, as concepções de valor estão sujeitas a mudanças de tempo, espaço, mas principalmente às mudanças de mentalidade. Seja em função da sua nacionalidade ou sua internacionalidade; seja pela sua aproximação aos modelos gregos, latinos ou franceses; seja, devido a aclamação popular ou da crítica (ou de ambos); seja pelo gosto ou pela natureza intrínseca da obra, a única coisa que se pode afirmar é que os critérios de valor mudam, tomando “sempre novas qualidades” se requalificando ou se desqualificando. Até mesmo o valor dos gêneros muda, foi o caso do romance no Brasil. 3. O valor dos romances do século XIX no Brasil Na esteira das oscilações de valor das obras literárias, os romances, hoje consagrados, já foram vistos em outros tempos com desconfiança pelos críticos. Márcia Abreu (2003, p. 200 a 202) afirma que segundo Charles Porée (Chartier 1994 e 1997, Darnton 1996) a leitura de romances deveria ser banida do universo da boa leitura, em especial quando feita sem supervisão. Para Márcia Abreu (2003, p. 203 a 207) a boa leitura segundo os preceptistas deveria ser feita somente dos textos dos melhores autores, os quais seriam obviamente os clássicos da Antiguidade greco-latina e os modernos que deles fizeram uso, como aliás se observa no texto de Pedro José da Fonseca. Produto de uma revolução que converteu o ato de escrever numa profissão mecânica (Goldsmith apud Abreu 2003, p. 24) o romance fora o mais criticado dos gêneros, ao passo que caía no gosto popular com a mesma voracidade que os intelectuais de prestígio o atacavam com seus tratados sobre a correta maneira de ler as obras de belas-letras. No entanto, Márcia Abreu em artigo publicado na revista Moara (2004, p. 14) identifica uma pessoa que fazia caminho contrário aos que criticavam o romance seu nome era João Manuel Pereira da Silva, em texto publicado no Jornal de Debates, de 23 de setembro, advogava em favor dos romances, empregando uma estratégia bastante comum nos escritos europeus: localizar uma ascendência nobre para o gênero. Fazendo remontar sua origem aos textos bíblicos, encontrava ancestrais dos romances entre gregos e os romanos e traçava sua evolução, passando pela Idade Média e chegando à Europa moderna, culminando com os que considerava os mais excelentes autores contemporâneos...

O próprio João Manuel aponta outros motivos que atestam, segundo ele, a excelência dos romances, como, por exemplo, a variedades de públicos leitores:

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Anais do II Congresso Internacional de Estudos Linguísticos e Literários na Amazônia (CIELLA) o belo sexo, tão digno de governar os homens por sua própria fraqueza, e pelos dotes da formosura, com que o mimoseou a natureza, tem toda razão em sentir-se atraído por essa espécie ou gênero de literatura, com que nasce a humanidade e com que morre. Os mancebos e os velhos amam em demasia ler e escutar romances, sentem seus peitos palpitar à menor sensação [...] O romance, gênero de literatura que predominando [...] no gosto do belo sexo, repercute sua influência sobre toda a sociedade, governa os costumes, e dirige as nossas vontades, e desejos (Silva, 2003, p.43-46, apud Abreu, 2004, p. 15)

Todavia, os partidários da crítica ao romance eram em maior número e com argumentos vários. O principal dos argumentos envolvia a moral e os bons costumes. O Padre Lopes Gama, pode-se dizer, era o maior dos críticos ao gênero. Fonte de corrupção moral das filhas e esposas das boas famílias os romances tinham um agravante: o povo brasileiro seria propenso à imoralidade por ser um povo sensual e ignorante (Abreu, 2004, p. 16-17). A história começa a mudar quando do lançamento de A Moreninha obra de Joaquim Manuel de Macedo. Sucesso de público e de crítica, somente no ano de 1845 foi editada oficialmente quatro vezes no Brasil e em Portugal, sem contar as edições piratas. Mesmo que depois os romances, de forma geral, continuassem a ser criticados, pela primeira vez um romance brasileiro caiu nas graças tanto do grande público quanto da crítica especializada. É inegável a importância da imprensa para a valorização do gênero romance junto ao grande público, publicados no formato folhetim – na maioria das vezes, semanalmente – o que parece é que esta foi uma via de mão dupla. Os folhetins ajudavam a vender jornais e os jornais ajudaram posteriormente a vender romances. No mercado das “belas-letras” no Brasil do XIX os valores do romance e do jornal subiram juntos, um na esteira do outro. Hoje em dia, os romances são sucesso de crítica e de público – pelo menos os que se pode dizer bons, segundo nossos critérios de seleção atual –, especialmente os romances do século XIX, não é à toa que são publicados em diversas edições todos os anos. E não é por menos que estão cada vez mais e mais na internet, veículo de divulgação e circulação das obras na modernidades, mesmo que essas obras sejam de séculos antes da invenção desse suporte: o virtual. 4. “Caminhos do romance” Com fomentos da FAPESP (Fundo de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo), do CNPQ (Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico) e da CAPES (Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior) o site “Caminhos do Romance” se autodenomina um projeto interdisciplinar desenvolvido a partir da colaboração de duas professoras da área de Letras (Márcia Abreu – IEL/UNICAMP e Sandra Guardini – FFLCH/USP) e dois professores de História (Nelson Schapochnik - FE/USP e Luiz Carlos Villalta - FAFICH/UFMG) e seus orientandos. Além de seus realizadores, o “Caminhos do Romance” conta com duas pesquisadoras em Pós-Doutorado, nove estudantes de Doutorado, oito estudantes de Mestrado e dez alunos em iniciação científica. Além disso, colaboram com o projeto um licenciado em História, três Mestres (uma em Letras e dois em História) e quatro Doutoras. Possui parceria com as Faculdades de Educação e Letras, Filosofia e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo; com o Instituto de Estudos da Linguagem da Universidade Estadual de Campinas; e com a Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas da Universidade Federal de Minas Gerais. Além de receber o apoio do Real Gabinete Português de Leitura e da Biblioteca da Ajuda de Portugal. Além das muitas obras em formato digital que possui, o diferencial do site está em suas obras raras, as quais dificilmente são encontradas em outras bibliotecas virtuais. As obras mostradas na Tabela 1 não foram encontradas em nenhuma outra Biblioteca Virtual Pesquisada (Biblioteca Virtual do Estudante de Língua Portuguesa e NUPILL), e estão organizadas de acordo com o autor, local e ano de impressão.

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Tema geral: Línguas e Literaturas: Diversidade e Adversidades na América Latina

Tabela 01 – Lista de obras raras do acervo “Caminhos do Romance”

Em relação ao suporte virtual onde as obras se encontram, todo o acervo do site encontrase no formato PDF. Pela forma em que se encontram, é de se notar que as obras foram passadas em scanner, transformadas em figuras e convertidas no formato em que se encontram, permitindo a visualização das obras tal qual se apresentam no original. Infelizmente, o site não fornece, nem disponibilizou material estatístico sobre as visitações ou médias de acesso nos últimos meses, sem os quais, não se tem como analisar o fluxo de pessoas e/ ou perfis de usuários do “Caminhos do Romance”. Com essas informações poderíamos analisar um critério que é bastante relevante no mercado editorial: a aceitação da obra por parte do público. Mas, existem perguntas que não querem calar. Qual o valor das obras acima enumeradas? Talvez a pergunta precise de um complemento: em relação a que? Em relação à internet? Em relação ao século XIX? Qual o critério de seleção? Em artigo publicado nos anais do Curso de Especialização em Letras da UFPA, analisei esta e outras bibliotecas virtuais como a do Estudante de Língua Portuguesa3 e o site do NUPILL4 (Núcleo de Pesquisa em Informática e Literatura). O acervo acima, pertencente ao Caminhos do Romance não foi encontrado em nenhuma das duas e-libraries analisadas. Já entre a BVELP e o NUPILL muitas obras podem ser encontradas em ambos os site. Com isso, pode-se concluir que um dos critérios de seleção das obras seja seu caráter de raridade em relação ao que se tem na internet, ou mesmo no mercado impresso, uma vez que as obras da Tabela 1 também não são encontradas com 3 4

http://www.bibvirt.futuro.usp.br/ http://alecrim.inf.ufsc.br/bdnupill/

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a mesma freqüência como os cânones do século XIX, em edições várias e nos mais variados preços e tamanhos. Seu valor, arrisco dizer, talvez esteja no seu caráter histórico e documental, ou como diria Compagnon (2001, p. 198) numa perspectiva diacrônica da literatura como documento, “não se pode recusar a história como quadro explicativo da literatura, mas não pode ignorar que a literatura tem, fatalmente, uma dimensão histórica”. Essas obras tem uma dimensão histórica, tanto pelo conteúdo dos seus escritos quanto pela sua essência de raridade, o que de certa forma explique o porquê de elas serem scaneadas mantendo-se sua formatação original (a da época em que foram publicadas pela primeira vez) e até mesmo o desgaste do tempo que foi preservado na digitalização. Sobre isso Compagnon nos diz: Em suma, faço filologia ou história literária quando vou ler uma edição rara na Biblioteca Nacional, mas não quando leio uma edição de bolso da mesma obra, em casa junto a lareira. Bastaria ir a biblioteca para fazer história literária? Em certo sentido, sim. Lanson pretendia que se faz história literária a partir do momento em que se manifesta interesse pelo nome do autor estampado na capa do livro, em que com isso se dá ao texto um contexto mínimo, em que se sai, por pouco que seja, to texto para ir ao encontro da história. (2001, p. 201)

Como vimos, o site do Caminhos do Romance possui fundo de órgãos de fomento a pesquisa, além da parceria com universidades e faculdades e da colaboração de doutores e mestres das áreas de letras e história. Portanto, seu valor além de histórico é acadêmico, uma vez que a análise do material publicado no site pode vir a gerar trabalhos como este. 6. Conclusão Como vimos, o valor de uma obra muda no decorrer do tempo. Com a internet, observamos que o valor também se modifica na mudança do suporte. Na rede mundial de computadores, os critérios de seleção tomam importância maior, devido ao fluxo de informações que trafegam de servidores a computadores em todas as partes do mundo. O site do Caminhos do Romance foi posto a análise com vistas a se entender os critérios de seleção e o valor que os romances do século XIX possuem na atualidade. Entendendo o velho (as obras) a partir do novo (o suporte virtual). Referências ABREU, Márcia. Letras, belas letras, boas letras In: BOLOGNINI, Carmen Zink (org). História da literatura: o discurso fundador. Campinas: Mercado das Letras, Associação de leitura do Brasil (ALB); São Paulo: FADESP, 2003. ______. A leitura das Belas-Letras. Os caminhos dos livros. Campinas, São Paulo: Mercado das Letras, ALB; São Paulo: FAPEDP, 2003. ______. O (bom) negócio das letras: livros e leitura no Brasil no século XIX In: SIMÕES, Maria do Socorro (org). Multiletras: literatura e ensino. Belém: EDUFPA, 2006. ______. Rumos da ficção no Brasil oitocentista In: Moara. Belém n. 21 p.7-31 jan./jun., 2004. BOUTERWEK, Friedrich. História da poesia e eloqüência desde o final do século treze. In BOLOGNINI, Carmen Zink (org) História da literatura: o discurso fundador. Campinas: Mercado das Letras, Associação da leitura do Brasil (ALB); São Paulo: FAPESP, 2003. BURKE, Peter. A descoberta do povo. Cultura popular e Idade Moderna: Europa, 1500-1800. São Paulo: Companhia das Letras, 1989. CASANOVA, Pascale. A república mundial das letras. São Paulo: Estação Liberdade, 2002. COMPAGNON, Antoine. O demônio da teoria. Belo Horizonte: Ed. UFMG, 2001.

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Tema geral: Línguas e Literaturas: Diversidade e Adversidades na América Latina DENIS, Ferdinand. Resumo da história literária no Brasil In: CESAR, Guilhermino. Historiadores e críticos do romantismo: a contribuição européia, crítica e história literária. Rio de Janeiro. Livros técnicos e científicos; São Paulo: EDUSP, 1978. SISMONDI, Sismonde de. Literatura do meio-dia da Europa. In: CESAR, Guilhermino. Simonde de Sismondi e a literatura brasileira. Porto Alegre: Lima, 1968. WEBER, João Hernesto. A nação e o paraíso: a construção da nacionalidade na historiografia literária brasileira. Florianópolis: Editora da UFSC, 1997. (capítulo sobre Denis)

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MERCADO EDITORIAL E EFEMÉRIDE: MACHADO DE ASSIS PARA JOVENS LEITORES Alice Áurea Penteado MARTHA (Universidade Estadual de Maringá)

RESUMO: Em 2008, ano do centenário de falecimento de Machado de Assis, o Brasil prestou homenagens ao escritor, um dos maiores expoentes da literatura em língua portuguesa. Se, em vida, o escritor não passou por severas dificuldades para publicação de suas obras, depois da morte e a cada data comemorativa, as edições de suas produções se sucedem em ritmo alucinante e em modalidades e suportes surpreendentes. Neste trabalho, ainda que o levantamento sobre os modos como o mercado prestigiou a efeméride não seja exaustivo, pretendemos apontar peculiaridades de projetos gráfico-editoriais das obras de e sobre Machado, voltadas aos jovens leitores, publicadas durante o ano comemorativo, com o intuito de observar em que medida a realização de tais projetos resultou em alterações no texto do autor e, no que se refere à qualidade estética, como podem ser avaliadas essas interferências. PALAVRAS-CHAVE: Mercado Editorial; Efeméride; Machado de Assis; Jovens Leitores.

ABSTRACT: Literary Brazil gave homage to Machado de Assis, one of the most important writers in the Portuguese language, during the centenary of his death in 2008. In his lifetime the Brazilian writer had no difficulties in publishing his writings. Successive editions of his writings, featuring different modalities and surprising funding, have been produced almost frenetically after his death and on each commemorative date. Although a thorough survey on the several manners the publishers gave homage to this commemorative date has still to be accomplished, current research endeavors to show the special features of the publishing and printing designs of and on Machado de Assis literary works published during 2008, with special reference to those dedicated to young readers. Research tries to show whether the above-mentioned projects produced any text changes and evaluates such interferences with regard to their aesthetic quality. KEY WORDS: Publishing market; Commemoration events; Machado de Assis; Young readers.


Anais do II Congresso Internacional de Estudos Linguísticos e Literários na Amazônia (CIELLA)

O Diário Oficial da União (Brasil) publicou em 19 de dezembro de 2007 a Lei 11.522, oficializando o ano de 2008 como “Ano Nacional de Machado de Assis” e o país prestou, durante todo o período, homenagens ao centenário de falecimento do escritor. Se, em vida, o escritor não passou por severas dificuldades para publicação de suas obras, depois da morte e a cada data comemorativa, as edições de suas produções se sucedem em ritmo alucinante e em modalidades e suportes surpreendentes. Efemérides relativas a acontecimentos sobre a vida e obra de grandes escritores são comuns e costumam dar a medida de sua importância no cenário das letras nacionais. No caso específico de Machado de Assis e em referência ao centenário de sua morte, inúmeras foram as formas de reafirmar seu valor: homenagens oficiais, especialmente, na Academia Brasileira de Letras, em Congressos Universitários, Encontros Científicos, Fóruns, Simpósios, ocorridos por todo país e no exterior, além da cobertura da mídia. Foi também um ano de muitas publicações de e sobre Machado. O mercado editorial colocou em campo toda sua competência para o negócio, com projetos muitas vezes ousados, criativos e diferenciados, para homenagear o escritor, como observaremos neste texto. Ainda que sem um levantamento exaustivo dos modos como o mercado prestigiou a efeméride, procuramos apontar peculiaridades de projetos gráfico-editoriais das obras de e sobre Machado, publicadas em 2008 e voltadas aos jovens leitores. Em alguns casos, os textos machadianos não sofreram qualquer alteração; outros, porém, sofreram diferentes processos de adaptação. O público não possui, normalmente, percepção da influência de aspectos que configuram o projeto gráfico-editorial de um livro, como qualidade do papel, tamanho e formato da letra, encadernação, quantidade de texto e de ilustração em cada página, bem como do conteúdo e realização de paratextos, no processo de leitura de cada leitor. Em razão disso, pretendemos enfatizar neste texto, a partir da apresentação de várias obras, a importância desse olhar para as escolhas que definem o corpo e a alma do livro, como resume Odilon Moraes: [...] o projeto gráfico nos indica uma ideia de ler, isto é, uma ideia de um tempo para se olhar cada página, de um ritmo de leitura por meio do conjunto de páginas, de um balanço entre texto escrito e a imagem, para que, juntos, componham e conduzam a narrativa (In: OLIVEIRA, 2008, p. 49-50).

A editora Ao Livro Técnico lançou dois títulos de Machado de Assis, A agulha e a linha. Um apólogo e o conto Noite de almirante. Os textos das narrativas apresentam-se íntegros, sem cortes ou adaptação de qualquer natureza. O projeto gráfico-editorial, entretanto, visando atrair leitores para um texto pouco adequado ao público pretendido, o infantil, alicerça-se na ilustração e no convencimento, com o auxílio dos paratextos. A capa do volume A agulha e a linha. Um apólogo é ilustrada com grandes imagens dos objetos antropomorfizados do texto machadiano, a agulha e a linha, além de fita métrica, tesoura e tecidos embainhados, em cores fortes e com excesso de detalhes. No miolo do livro, as ilustrações, de traços infantilizados, tomam quase que totalmente o espaço das páginas e têm por objetivo aproximar o texto verbal da faixa etária de leitores pretendida. O verbal praticamente desaparece em meio às cores, balões e círculos vermelhos que contêm explicações de vocábulos e expressões, realizadas no mesmo espaço: “Galgos: raça de cachorros” e “Diana: A deusa da caça na mitologia romana” (p.14). O resultado é uma página cujo campo visual mostra-se entulhado, dificultando a percepção do verbal e a apropriação do senso estético por seus leitores. O papel cetim, o tamanho da fonte e o espaçamento são adequados à leitura dos mais jovens, entretanto, além das ilustrações que tomam toda superfície das páginas, há ainda enormes balões, recurso da linguagem dos quadrinhos, que intentam a interação com os leitores, uma vez que simulam expor suas digressões durante a leitura: – Quem disse que a mentira faz o nariz crescer? (MACHADO, 2008, p.4). – Xiiii! Que agulhada! Também o que se pode esperar de uma agulhada? (IDEM, idem, p.5). – Posso estar enganado, mas essa conversa promete. (IDEM, idem, p.6)

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Os vários paratextos do livro têm por objetivo diminuir a distância entre os jovens e a narrativa machadiana. O prefácio em primeira pessoa, como se o autor o escrevesse, é um desses recursos: “Vivo (perdão, morro!) rabiscando palavras e frases que – dizem os entendidos – traduzem a alma do ser humano, mesmo e, principalmente, quando eu conto histórias de coisas”. (IDEM, idem, p.3). A primeira contracapa contém uma pequena biografia do escritor e outras poucas linhas sobre o organizador; no caso da biografia de Machado, os dados são incapazes de promover a contextualização entre vida e obra do escritor. Um poema de Fagundes Varela (p.23), As Armas, sem qualquer ligação com o texto, a não ser que trata de objetos e, finalmente, A costura das cenas, uma espécie de ensaio sobre os passos da elaboração das ilustrações, são os últimos paratextos. A quarta capa é composta de um texto que, a partir da indagação O que se pode fazer com um novelo e uma linha?, procura instigar a curiosidade dos leitores-alvo. No entanto, inviabiliza a resposta, pois, imediatamente após a questão, ela é dada - “Costurar, é claro”, enfatizando, com a repetição, a função desses elementos: “Sim, costurar os retalhos das experiências [...]”; “Sim, costurar como quem escreve para remendar [...]”; “Sim, costurar como quem se distrai [...]”. Não há indicação da obra em que o texto de Machado foi publicado originalmente. O papel cetim, o tamanho da fonte e o espaçamento são adequados à leitura, entretanto, como as ilustrações tomam toda superfície das páginas, que ainda contêm estranhos balões (recurso da linguagem dos quadrinhos), que buscam, ao que parece, promover a interação dos leitores, expondo suas sensações de leitura – : “Quem disse que a mentira faz o nariz crescer?” (p. 4); “Xiiii! Que agulhada! Também o que se pode esperar de uma agulhada?” (p.5); “Posso estar enganado, mas essa conversa promete.” p.6) -, o texto verbal praticamente desaparece em meio às cores, balões e círculos vermelhos que contêm explicações de vocábulos e expressões, realizadas no mesmo espaço: “Galgos: raça de cachorros” e “Diana: A deusa da caça na mitologia romana” (p.14). O resultado é uma página cujo campo de visão mostra-se entulhado, dificultando a percepção do verbal por seus leitores. No final, um último balão apresenta a moral da história, segundo interpretação do organizador: “Eis a moral da história: linhas ordinárias esperam sempre o plic-plic-plic-plic das agulhas. Leitor (a), você já teve alguma linha ordinária costurando a sua vida?” (p. 22) Com o recurso, tenciona estabelecer um contato mais produtivo com o leitor pretendido, mas sabemos que isso pode caracterizar certo dirigismo da leitura. O poema de Fagundes Varela, logo após o final do texto, está solto na composição da obra, uma vez que não há qualquer explicação sobre as razões de sua inserção nela. A qualidade do texto machadiano é inquestionável tanto no que se refere à exploração dos recursos expressivos quanto à exploração temática, notadamente, a antropomorfização de objetos tão insignificantes para a representação de atitudes, emoções e pequenas misérias humanas: “- Você fura o pano, nada mais; eu é que coso, prendo um pedaço ao outro, dou feição aos babados...” (p.11). A nota negativa é dada pelos “balões” de histórias em quadrinhos que, veiculam as interferências do organizador, pretensamente representativas da voz dos leitores: “Puxa! Que coisa! A agulha só não perdeu a cabeça porque não tem” (p. 10). O gênero literário – apólogo ou fábula – está perfeitamente adequado: objetos inanimados, com sentimentos e atitudes humanas, metaforizam a existência: “Contei esta história a um professor de melancolia, que me disse, abanando a cabeça: - Também eu tenho servido de agulha a muita linha ordinária” (p.22). Ainda que marcadas pela fantasia – agulha e linha que falam e se comportam como seres humanos -, tais criaturas estão distantes da representação do mundo infantil, mas a partir de um trabalho competente de mediadores, o texto pode ampliar as referências estéticas e culturais de seus leitores e contribuir para a reflexão sobre sua atuação no mundo em que se inserem. Para o mesmo público é lançado Falando em versos (Paulus, 2008- Coleção Brasilerinhos), com texto de Lúcia Fidalgo e ilustrações de Robson Araújo, uma narrativa pretensamente biográfica, bastante simplificada, sobre Machado de Assis e endereçada às crianças, como orientação de vida, conforme propõe o texto apresentado na orelha da segunda capa, dirigido principalmente aos pais e professores, responsáveis mais diretos pela compra e indicação de obras aos jovens leitores: “Por isso,

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a coleção BRASILEIRINHOS apresenta algumas dessas personalidades paradigmáticas de nosso país, as quais podem servir de inspiração para nossas crianças construírem seu futuro” (grifos do texto). O projeto editorial é bastante simples, com ilustrações que não comprometem o texto; cada página é tomada por grandes ilustrações e poucas linhas escritas, com fonte adequada aos leitores iniciantes. A linguagem da narrativa é adequada à faixa de leitores pretendida, mas resulta em texto sem muito atrativo para a criança. Com sintaxe simplicada, ordem direta e períodos curtos, por vezes, para acompanhar o título Falando em versos, ganha imagens de apoio e configurações poéticas: “Quando ele caminhava pela cidade, seus ouvidos escutavam as palavras de remorsos e saudades, seu nariz sentia o cheiro de esperança” (FIDALGO, 2008, s/n). Outra publicação dirigida à infância é a do conto Umas férias, da editora Difusão Cultural do Livro – DCL, com ilustrações de Odilon Moraes e texto também integral de Machado de Assis. No caso dessa edição, a qualidade do Projeto gráfico editorial faz toda a diferença em relação ao livro anteriormente comentado. A ilustração em todas as capas – externas e internas -, em aquarela, com tonalidades de amarelo e marrom revela qualidade estética, observada também nas imagens do miolo do livro, e tem, segundo as palavras do ilustrador, uma função: “tentei guardar as cores fortes e alegres de um dia na cidade do Rio de Janeiro no século XIX” (MORAES. In: MACHADO, 2008, p. 39). Aquarelas de página inteira, nos mesmos tons das capas, transformam o discurso textual em visual, ampliam as possibilidades de leitura, abrindo espaços no imaginário dos leitores, com o recurso de sintaxe e semântica próprias. O texto de Machado é a força dinâmica do processo de criação das imagens. Como observa Moraes: Conhecendo o final, introduzi certos elementos visuais que indicam a mudança de clima na história e fazem com que a ilustração desempenhe o papel não só de acompanhar o texto escrito, mas, de maneira sutil, preparar o leitor atento para a evolução da narrativa. (IDEM, idem, p. 39)

Os paratextos, Prefácio, Glossário, O autor e O ilustrador, mostram-se significativos para o encaminhamento da edição a leitores de uma faixa etária menor. O prefácio, de Luiz Antonio Aguiar, escritor conhecido por obras dirigidas ao público infantil e juvenil, O dono da história, além de informações sobre a personagem, um menino de dez anos, traz alguns elementos da história, mas contém, sobretudo, noções sobre sociologia da infância e da presença da criança na história da literatura infantil bem como elementos da estrutura narrativa: narrador, ponto de vista, entre outros: Hoje tem muita história em que o menino ou a menina conta suas aventuras. Temos toda uma Literatura Infantil que põe a criança no centro de tudo, mandando e desmandando. É que às vezes até mesmo dá um jeitinho de expressar a maneira da criança ver o mundo. (AGUIAR, apud MACHADO, 2008, p.5)

Ao finalizar o texto, Aguiar, ao modo de Machado, dirige-se ao leitor pretendido, a partir de comentários explícitos que valorizam a voz narrativa infantil do texto – “Usa truques, mente e engana. [...] Faz isso porque é criança. E faz sendo um cara muito legal. De quem você gostaria de ser amigo” (IDEM, idem, p.5. Grifamos.). Por fim, o chamado mais contundente, enfatizando o apelido de Machado, conquistado por suas “estripulias”, naturalmente de significado diverso daquele entendido pela criança: “E... Garota! Garoto! Acredite: Machado não ganhou esse apelido (Bruxo) à toa” (IDEM, idem, p.5). Tanto o Glossário como os textos com informações sobre o autor e sobre o ilustrador indicam a preferência pelo pré-adolescente como leitor pretendido. Já o paratexto da quarta capa, um recorte do Prefácio, parece endereçado aos mediadores, pais e professores, responsáveis pela compra ou pela indicação de leituras aos jovens e que leem tais informações: Machado de Assis, o maior romancista brasileiro, mais uma vez surpreende seu leitor ao narrar este conto a partir do olhar do menino, algo incomum para a literatura do século XIX, e mostra a entrada das crianças no mundo dos adultos.

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A editora Pinakotheke lança Machado de Assis: o Rio de Janeiro de seus personagens (2008), texto de Henrique Rodrigues, um livro “voltado para o público jovem” e que “serve como introdução àqueles que começam a ler a obra machadiana [...]” (Contracapa). Com projeto gráfico-editorial muito rico, mas de simplicidade produtiva, o autor selecionou trechos, imagens verbais, das diversas obras de Machado, compondo o cenário por onde transitaram algumas das personagens mais fantásticas da Literatura Brasileira, na companhia de seu criador, o Bruxo do Cosme Velho e ilustrou-as com pinturas dos mais respeitados pintores da época. O resultado é uma delicada composição, capaz de aguçar o senso estético dos leitores pretendidos. A Coleção Machado de Assis, da Escala Educacional (2008), composta por quatro contos – Missa do galo, O espelho, Conto de escola, Um apólogo – foi concebida como homenagem ao centenário do escritor, para veicular a riqueza de sua obra. As narrativas não sofreram qualquer tipo de adaptação ou alteração. O leitor jovem deve ser capturado pelo projeto gráfico-editorial. As capas são ricamente ilustradas e os títulos dos contos são grafados em letras douradas, com imagens em tons ocres que, ao mesmo tempo revelam a leitura do artista e possibilitam novas incursões do leitor no texto verbal. O ilustrador, Fernando Vilela, explica, no paratexto O ilustrador e seu processo de criação (s/n), que procurou mostrar um clima de espaços públicos vazios, característica do século XIX e que o tom sépia utilizado resulta da inspiração em fotografias antigas. Vilela relata também como desenvolveu o projeto gráfico em estreita ligação com a época de publicação da obra de Machado de Assis, de modo que o livro ficasse com aparência de antigo, inclusive, com o papel com aparência de infestação de fungos: [...] o fundo de todas as páginas foi tirado de um livro de 1890 e as duas famílias tipográficas utilizadas na coleção – a Monotype Old Style 7, escolhida para o título do livro, e a Old Style 7, empregada no corpo do texto – tiveram sua origem no século 19 e trazem características desse período. (VILELA, In: MACHADO, 2008, s/n)

No miolo, as ilustrações valorizam os espaços vazios já mencionados e ocupam totalmente as páginas e até duas inteiras. O texto é distribuído, predominantemente, em metade das páginas ocupadas pela ilustração, o que favorece e estimula a leitura dos leitores mais jovens. O Glossário e Sobre o projeto e as ilustrações da Coleção Machado de Assis são paratextos que contribuem para a adequação da coleção à faixa etária pretendida, uma vez que fornecem informações a respeito de termos e expressões distantes dos leitores bem como sobre o autor e detalhes das fotografias que motivaram o trabalho do ilustrador. Outro interessante modo de redirecionar a obra Machado de Assis a um público diferenciado – e agora não só ao público juvenil, mas a todos os amantes da HQ – é a quadrinização de contos do escritor. Em 2007, a Agir publicou O alienista, com adaptação dos irmãos Daniel Bá e Flávio Moon, trabalho que recebeu, inclusive, o prêmio Jabuti da categoria. Três editoras, pelo menos, lançaram mão de tal expediente, em 2008. A Difusão Cultural do Livro – DCL publicou a antologia Domínio Público. Literatura em quadrinhos (Vol.1), contendo a adaptação de textos de escritores da literatura brasileira para os quadrinhos: Olavo Bilac, Augusto dos Anjos, Machado de Assis, Medeiros e Albuquerque, Alcântara Machado e Lima Barreto. A Editora Ática produziu O alienista, com adaptação e roteiro de Luiz Antonio Aguiar e arte de Cesar Lobo. A cartomante foi o texto quadrinizado pela Zahar, com desenhos de Flávio Pessoa e adaptação do mesmo Pessoa e Maurício O. Dias. O projeto gráfico-editorial da adaptação de O alienista, da Ática, com roteiro de Luiz Antonio Aguiar e arte de Cesar Lobo, é muito bem realizado, atinge a um público diversificado, mas não escamoteia sua preferência pelo leitor jovem e escolarizado. Além dos paratextos, com informações de ordem mais geral sobre a obra e o autor, há um encarte, o suplemento do professor, que inclui o resumo da narrativa, apoio didático para o trabalho com o HQs, comentários analíticos sobre a HQ e o clássico, sugestões de atividades e exercícios resolvidos. O texto da apresentação, com o título Uma história muito louca, contém informações sobre outros suportes para adaptações da narrativa de Machado de Assis, como cinema e TV, afirma que neste trabalho para quadrinhos, “César Lobo e Luiz Antonio Aguiar produziram uma versão

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autoral, recriaram a história de maneira que as cenas de ação e também o humor corrosivo” do autor ganhassem emoção. Revela também a presença de uma figura criada pelos adaptadores, um duplo de Simão Bacamarte, uma perspectiva diferente na estrutura da narrativa quadrinizada, com traços fortes, branco e preto, contrastando com o colorido das demais imagens, recurso que enfatiza a leitura diferenciada da versão em quadrinhos, como podemos ver nos Segredos da adaptação, nas páginas finais do volume: Repare agora nesta figura que parece estranha à página, na parte inferior. No roteiro ele ganhou um nome: era o Alienista-Alienado (ou AA). Foi uma criação dos autores para melhor interpretar o espírito que entendiam haver na história e no personagem Simão Bacamarte. Ele enfatiza algumas falas do médico e, às vezes, as completa. È um duplo de Simão Bacamarte, o Outro Oculto do alienista. (s/n)

O processo de adaptação é detalhado ao leitor, de modo que ele possa não só compreender o trabalho realizado com a linguagem machadiana, responsável por torná-la acessível, como ter acesso ao diálogo entre o texto original, o roteiro preparado para esse trecho da obra pelo adaptador e o desenho dos quadrinhos: Texto Original: “D. Evarista se não resistia facilmente às comoções de prazer, sabia entestar com os momentos de perigo. Não desmaiou; correu à sala interior onde o marido estudava. Quando ela ali entrou, precipitada, o ilustre médico escrutava um texto de Averróis, os olhos dele empanados pela cogitação, subiam do livro ao teto e baixavam do teto ao livro, cegos para a realidade exterior, videntes para os profundos trabalhos mentais. D. Evarista chamou pelo marido duas vezes, sem que ele lhe desse atenção; à terceira, ouviu e perguntou-lhe o que tinha, se estava doente. _ Você não ouve esses gritos? Perguntou a digna esposa em lágrimas Roteiro de Luiz Antonio Aguiar (para a página 31): Q1: D. Evarista entra no escritório de Bacamarte. Ele, numa poltrona, lendo, permanece impassível, como se não a ouvisse. EVARISTA: Bacamarte! Pelo amor de Deus! Não está ouvindo esses gritos lá fora? Q2: Quadro horizontal estreito, rostos em fúria da multidão comprimidos, os berros soltos no quadro. MORTE! MORTE! MORTE! MORTE! MORTE! Q3: Bacamarte se levanta calmamente da poltrona. (s/n)

Com adaptação de André Dib e desenhos de Kleber Sales, A cartomante foi o conto machadiano escolhido para a versão em quadrinhos, na antologia da DCL. Em preto e branco, a bico de pena, os quadrinhos não são uniformes e se apresentam ora como visão panorâmica de lugares e ambientes ora como close nas personagens ou em objetos, acompanhando o ritmo e as tensões da narrativa, processo similar ao da câmera cinematográfica. A linguagem dos balões, contendo a fala das personagens, também é atualizada, mais leve e oralizada. Em muitos quadrinhos, não há texto verbal, a imagem mostra-se suficiente para compor o narrado (p.57). A voz do narrador, condutora do enredo, entretanto, mantém-se fiel ao texto machadiano, com excertos entre aspas, provocando certa tensão linguística: E consigo, para explicar a demora ao amigo, engenhou qualquer cousa; parece que formou também o plano de aproveitar o incidente para tornar à antiga assiduidade... De volta com os planos, reboavam-lhe na alma as palavras da cartomante. (MACHADO, In: DIB, p.59)

O mesmo conto, A Cartomante (Zahar), com projeto gráfico de Bruno Cruz, desenhos de Flávio Pessoa e adaptação do mesmo Flávio Pessoa e Maurício O. Dias, mostra-se uma produção bastante atraente para o leitor de quadrinhos, de qualquer idade. A capa, com fundo em tons amarelados, traz desenho dos Arcos da Lapa como cenário para as três figuras caricaturizadas que compõem o triângulo amoroso – Vilela, Rita e Camilo – com a visão ameaçadora da Cartomente pairando sobre a imagem, e apresenta uma síntese dos elementos da trama. Neste local, antiga rua dos Barbonos e atual Evaristo da Veiga, se dariam os encontros entre Rita e Camilo. Dessa maneira, o leitor dispõe de noções espaciais e temporais da narrativa bem como indícios sobre os fatos narrados, mesmo antes de abrir o livro.

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Quanto aos paratextos, ao final da narrativa, duas páginas de créditos trazem miniaturas das imagens de época – logradouros do Rio Antigo - utilizadas na elaboração das cenas quadrinizadas, inclusive, com a citação do número da página em que aparece na obra, o que facilita a busca pelo leitor. Na contracapa, além das informações sobre a história e sobre os autores, o texto traz detalhes técnicos: “Os desenhos em aquarela e o inspirado uso de fotografias de época – de Marc Ferrez e Augusto Malta, entre outros – recriam o Rio de janeiro do fim do século XIX e são um convite a mais para o leitor acompanhar de perto essa história surpreendente”. A narrativa principia com a tela Hamlet e Horácio no cemitério, de Eugène Delacroix (1839) como pano de fundo para a primeira interferência do narrador: Hamlet observa a Horácio que há mais cousas no céu e na terra do que sonha a nossa filosofia. Era a mesma explicação que dava a bela Rita ao moço Camilo, numa sexta-feira de novembro de 1869, quando este ria dela, por ter ido na véspera consultar uma cartomante [...] (MACHADO, 2008, p. 5).

A quadrinização da narrativa não é homogênea: ora as imagens tomam a página toda (p. 21, p. 28), ora as imagens se sobrepõem, sem qualquer linha que as delimitem (p. 8, p. 13). Os balões com falas das personagens são poucos e mantêm o registro da linguagem machadiana; o predomínio é do uso de boxes com excertos da voz do narrador, garantido fidelidade ao texto original. Os conflitos das personagens, muitas vezes transmitidos pelo narrador em discurso indireto, nesta adaptação, ganham força na expressão da imagem; mais que palavras, as personagens ganham olhos assustados, contentes, bocas felizes, raivosas, ansiosas, mãos crispadas, enfim, os traços do não-verbal responsabilizam-se pela expressão das emoções e sentimentos dos seres no mundo narrado. Outro modo de ler Machado desperta a atenção dos leitores neste emaranhado de publicações, adaptações e releituras das obras do escritor. Trata-se da cordelização de alguns de seus textos, ou, como explica Chico Salles: de “compreender a grandeza do pequeno, a doçura do azedo e a beleza da simplicidade. É também aprender que em tudo que é erudito tem seu lado popular”. A edição de Cem anos sem Machado, de Chico Salles (Rovelle, 2008), desvenda vida e obra de Machado de Assis em versos cordelistas, ou em versos de feira, como anuncia Crispiniano Neto, na apresentação do livro, que tem ilustrações de Ciro Fernandes. A imagem da capa, retrato de Machado em xilogravura, se repete como fundo, em marca d’ água, de todas as páginas que contêm texto; nas opostas, as ilustrações de página inteira, em marrom escuro sobre o amarelo claro do papel, com traços simples e puros, trazem imagens cotidianas das histórias machadianas. Em estrofes de seis versos, com ritmo agalopado, Salles não faz adaptação de uma obra específica - conto, romance ou poesia. Versifica informações sobre personagens, família e obras mais conhecidas pelos leitores: Criador de personagens Feitos: Quincas, o cachorro Deolinda Venta-Grande, Dona Bárbara, lá do morro Com Jacó e Esaú Bentinho e Capitu, À cultura deu socorro. Ninguém sabe até hoje O segredo de Escobar, No enredo do romance Não dá pra decifrar. Seu triângulo amoroso De final misterioso, Só dá pra imaginar. (SALLES, 2008, p. 13)

Outra natureza têm as publicações em cordel da Editora Nova Alexandria. São adaptações de O alienista, por Rouxinol do Rinaré, com ilustrações de Erivaldo e de Memórias póstumas de Brás Cubas, de Varneci Nascimento e ilustrações de Cristina Carnelós, ambos da Coleção Clássicos em

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Cordel. Com projeto gráfico-editorial diferenciado, os livretos, cadernos em brochura, trazem vários paratextos que encaminham os versos aos leitores jovens. Na Apresentação do volume Memórias póstumas de Brás Cubas, cinco tópicos orientam a leitura: Para começo de conversa, O livro e sua época, Memórias de Brás Cubas em linguagem de cordel, Quem foi Machado de Assis, Quem é Varneci Nascimento; para O alienista, os tópicos se repetem, alterando apenas os títulos referentes ao texto, O alienista em linguagem de cordel, e ao adaptador, Quem é Rouxinol do Rinaré. As informações sobre os textos e sua adaptação para a linguagem do cordel, ambas escritas por Marco Haurélio, muito semelhantes, limitam-se a afirmar que os autores “conservam a essência do original”, tratando brevemente das personagens e de alguns motivos da trama: Nesta adaptação de Memórias póstumas para o cordel, o poeta Vanerci Nascimento conserva a essência do original, primando pela concisão e clareza. Em estrofes de seis versos, a ironia e o humor refinado de Machado de Assis podem ser percebidos por aqueles que conhecem o original. (HAURÉLIO. In: NASCIMENTO, 2008, p. 11) O conto O alienista ganhou uma versão primorosa para o cordel. Rouxinol do Rinaré aproveitou todos os episódios marcantes do original, sem se esquecer de traçar o perfil da personagem principal, Simão Bacamarte, assim definido, logo de início: Era Simão Bacamarte Um grande especialista, Que estudara em Coimbra, Um excêntrico cientista, Famoso por seus estudos Como médico alienista. (RINARÉ, 2008, p. 8)

Os versos, em ambas as adaptações, tratam dos motivos narrativos, contêm noções de tempo e espaço, descrevem atitudes das personagens principais e relatam suas ações, estabelecendo elos entre as criaturas do mundo narrado. Memórias póstumas de Brás Cubas, por Nascimento: Era o século dezenove, Agosto era o mês, O ano sessenta e nove, Idade, sessenta e três. Com mais de um, de onde estou, Escrevo isso a vocês. (p. 20) [...] E na frente de Virgília Comecei a delirar Entre o Éden e Abraão, Para assim poder chegar Ao dia em que nasci, Que foi espetacular. (p. 23) [...] Ela se chamava Eugênia, Dezesseis anos de idade: Era coxa de nascença E bonita de verdade, Tanto que nós namoramos Com muita amorosidade. (p. 33) [...] Não me casei com ninguém, A vida não permitiu. Virgília me abandonou, A doce Eulália partiu. Virgília, que ficou grávida, O meu filho não pariu. (p.56)

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Para finalizar, enfatizamos que tais adaptações, mesmo que apresentem o texto integral de Machado de Assis, transformam-se em textos novos, em razão da disposição na página e do diálogo com as imagens; resultam do processo de construção textual por leitores com variadas competências. Não substituem leituras do texto clássico e de autoria machadiana, mas podem ser, quando bem realizadas, um precioso recurso para a entrada dos jovens leitores nos meandros da produção do escritor. Referências ASSIS, M. de. A agulha e a linha. Um apólogo. Rio de Janeiro: Ao Livro Técnico, 2008. ______. O alienista. Adap. AGUIAR, L. A.; LOBO, C. São Paulo: Ática, 2008. ______. Memórias póstumas de Machado de Assis. Adap. NASCIMENTO, V. São Paulo: Nova Alexandria, 2008. ______. O alienista. Adap. RINARÉ, R. São Paulo: Nova Alexandria, 2008. ______. Umas férias. São Paulo: DCL, 2008. ______. A cartomante. Adap. DIB, André. In: Vários autores. Domínio público. São Paulo: DCL, 2008. ______. Coleção Machado de Assis. São Paulo: Escala Educaional. ______. A cartomante. Adap. PESSOA, F.; DIAS, Maurício O. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2008. FIDALGO, L. Falando em versos. São Paulo: Paulus, 2008. OLIVEIRA, I. O que é qualidade em ilustração no livro infantil e juvenil? São Paulo: DCL, 2008. RODRIGUES, H. Machado de Assis: o Rio de Janeiro de seus personagens. Rio de Janeiro: Pinakotheke, 2008. SALLES, C. Cem anos sem Machado. Rio de Janeiro: Rovelle, 2008.

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CULTURAS PERIFÉRICAS: REPETIÇÃO E DIFERENÇA Aline de Souza MUNIZ (Universidade Federal do Pará)

RESUMO: As descobertas marítimas não serviram apenas para alargar as fronteiras visuais e econômicas, elas também serviram para fazer da história européia, História universal. Assim, nossa história, nossa cultura e nossa literatura serão formadas desde o processo de colonização por assimilação e imposição do europeu, posteriormente, nossa “inteligência” passará a analisar as questões de fonte e influência sobre a produção das áreas periféricas, o que nos faz pensar essa literatura como cópia, portanto, secundária ao original. Nossa dependência é inegável, contudo, em vez de uma simples imitação, a produção latino-americana pode contribuir com algo de original. O diálogo entre as literaturas é necessário e inevitável; assim, deve-se assinalar quais elementos marcam a sua diferença, o que a faz criar um entre-lugar e a torna universal. Dessa forma, este trabalho pretende observar as discussões feitas a respeito da literatura latino-americana apontados pelos trabalhos de Silviano Santiago, Antonio Candido e Roberto Schwarz. Palavras-chave: literatura latino-americana; dependência; diferença.

ABSTRACT: The maritime discoveries only don´t served to widen the visual borders and economic, they also served to make European history, universal history. Thus, our history, our culture and our literature will be formed from the process of colonization and assimilation imposed by the European, later, our “intelligence” will pass to examine the issues of source and influence on the production of peripheral areas, which makes us think that literature as copy, therefore, secondary to the original. Obviously, the dependence is undeniable, however, rather than a mere imitation, the Latin American production could contribute with something original. The dialogue between the literature is necessary and inevitable, therefore, it should be noted that elements mark the difference, which makes it a between-place and makes it universal. Thus, this work aims to observe the discussions made on the Latin American literature identified by the work of Silviano Santiago, Antonio Candido and Roberto Schwarz. KEY WORDS: Latin American literature; dependence; difference


Anais do II Congresso Internacional de Estudos Linguísticos e Literários na Amazônia (CIELLA) “Entre o sacrifício e o jogo, entre a prisão e a transgressão, entre a submissão ao código e a agressão, entre a obediência e a rebelião, entre a assimilação e a expressão, – ali, nesse lugar aparentemente vazio, seu tempo e seu lugar de clandestinidade, ali, se realiza o ritual antropófago da literatura latino-americana.” (SANTIAGO, 2000, p. 28)

A priori é necessário mencionar que o termo culturas periféricas é aqui utilizado para indicar a tão discutida literatura latino-americana, por isso, iniciaremos pensando no que abrange o termo América Latina. Sendo assim, para Jose Luís Martinez “é algo mais complexo do que o simples esquema que subsistia até meados do século [século XX]. Subsiste o conjunto original de vinte e um países (Argentina, Bolívia, Brasil, Colômbia, Costa Rica, Cuba, Chile, República Dominicana, Equador, Guatemala, Haiti, Honduras, México, Nicarágua, Panamá, Paraguai, Peru, Porto Rico, El Salvador, Uruguai e Venezuela). Todavia, Porto Rico é um Estado Livre Associado aos Estados Unidos e porto-riquenhos têm cidadania estadunidense. Depois de 1960 criaram-se quatro novos pises: Jamaica, Barbados, Trinidad e Tobago e Guiana, de língua predominantemente inglesa que formam parte do British Commonwealth of Nations.” (MORENO, 1979, p. 17)

Como pudemos perceber, a América Latina é composta de 21 países, sendo 19 falantes de língua espanhola, o Brasil de língua portuguesa e o Haiti de língua francesa.1 Obviamente a ligação entre eles é muito maior do que simples proximidade geográfica ou um acordo politicamente convencionado, na verdade, eles têm traços peculiares relacionados à suas histórias, raças, línguas, religiões e, principalmente, têm em comum seus processos de colonização feitos, em princípio, durante o século XVI por portugueses e espanhóis. A trajetória desses povos, tão diferentes entre si antes da colonização, será marcada pelo domínio do colonizador, o qual deixará traços indeléveis. Por isso, o que se propõe aqui é identificar de maneira breve o processo inicial de colonização, a mudança ocasionada por conta da independência política desses países e, por fim, a originalidade dos autores modernistas. Nesse sentido, mais do que nunca os estudos têm se voltado a notar a contribuição maior da literatura latino-americana a partir do criativo propósito de alguns de seus escritores em mostrar a originalidade criada por uma escrita que não nega sua formação híbrida, usa-a como uma identidade e cria uma literatura de qualidade, resultado da síntese de seu passado histórico e da influência do europeu, inicialmente seu colonizador. Partamos deste ponto, a cultura latino-americana é mestiça em sua formação e tem sua história marcada pelo período das expansões marítimas, pois conforme Silviano Santiago, elas não serviram apenas para alargar as fronteiras visuais e econômicas, mas também para fazer da história européia, História universal. Em busca de expansão, as guerras santas são deslocadas da Europa para o Novo Mundo e surpreendentemente ele parece ter o melhor a proporcionar, como os outros, Gândavo no Tratado Descritivo do Brasil em 1587 esperava achar muitas riquezas: “como o interesse seja o que mais leva os homens trás de si que outro cousa nenhuma que haja na vida, parece manifesto querer entretê-los na terra com esta riqueza do mar, até chegarem a descobrir aquelas grandes minas que a mesma terra promete, pera que assi desta maneira tragam ainda toda aquela cega e bárbara gente que habita nestas partes, ao lume e conhecimento da nossa Santa Fé Católica, que será descobrir-lhe outras maiores no céu, o qual nosso Senhor permite que assim seja pera glória sua e salvação de tantas almas.” (BOSI, p. 20)

Ao entrar em contato com o novo, o europeu se surpreende com a beleza da terra e espera que a empreitada tenha boa paga, afinal, terra tão boa e vasta deve proporcionar algum lucro. Tomemos outro dado importante fornecido pelo cronista, o habitante da terra descoberta surpreende pela falta de civilidade, “aquela cega e bárbara gente” necessitava conhecer a verdadeira religião. Assim, tem início o processo de colonização e por caridade cristã européia, a motivação de conversão do gentio. Explorar a América passou a ser ocupação do europeu que desejava mais do Além dos supracitados quatro outros países chamados de Caribe ou Antilhas costumam ser relacionados ao grupo latino americano.

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que simplesmente desbravar e conhecer o novo, a justificativa utilizada trazia em seu bojo a religiosa intenção catequética do ameríndio, embora se saiba que a cobiça era o que movia a empreitada. Alguns textos de informação, como o supracitado de Gândavo, relatam o extermínio de muitos dos ameríndios, os que se submeteram ao domínio europeu passaram pela catequese e os jesuítas, nesse momento, exerceram importante função para a concretização desse propósito. Para isso, eles primeiramente se propõem a aprender as línguas indígenas. Não devemos perder de vista que a aprendizagem da língua com intuito catequético é um dos meios de maior eficácia para uma penetração político-cultural. A Coroa Espanhola, por exemplo, seguia essa política de colonização e cristianização, Carlos V (1536) e Filipe II perceberam que os doutrinadores deveriam aprender as línguas indígenas para doutriná-los.2 Somente depois, com Carlos III (1770) houve a determinação de extinção dos demais idiomas para a utilização do espanhol como língua única na colônia, o que certamente não impediu a impregnação de elementos do idioma do colonizado no idioma do colonizador. No Brasil acontece o mesmo processo. Para catequizar, José de Anchieta transpõe para a fala indígena a mensagem a ser ensinada, já que entrar no imaginário do outro é a melhor forma de se aproximar dele, contudo, uma simples transposição da teologia cristã para a crença tupi não seria tão facilmente realizável. Na verdade, o que de fato ocorre é a criação de uma terceira esfera simbólica, uma espécie de mitologia paralela, mescla das duas crenças iniciais, como referido por Bosi (BOSI, 1992). De maneira geral, entram em contato a cultura racionalista do Renascimento e o universo mágico dos índios, isso explica o caráter conflituoso de uma identidade cultural latino-americana, dada a multiplicidade de elementos que compõe essa cultura desde seu início. É perceptível que o problema de uma busca de identidade assola latino-americanos há algum tempo. Ao tratar da literatura brasileira, Roberto Schwarz afirma que desde os tempos da Independência nossa reflexão crítica tem vivido um mal-estar por conta do caráter “postiço, inautêntico, imitado da vida cultural que levamos” (SCHWARZ, 1987, p. 29) resultando em dois equívocos históricos cometidos: anteriormente, feito por uma geração que nega totalmente as influências estrangeiras em prol de uma independência; atualmente, pela consciência do caráter ilusório de uma cultura “genuína” que, no entanto, ao enfatizar uma dimensão internacional da cultura, apenas legitima de maneira conformista o ponto de vista estético da mídia.3 Note-se que a Independência política dos países colonizados é apontado por Schwarz como ponto inicial da procura por uma mudança, o momento vivido traz à tona a necessidade de reconhecimento por uma identidade própria, daí a busca de uma expressão nacional, algo para caracterizar a nação. Essa preocupação será de grande importância durante o século XIX e mola propulsora de muitas produções escritas. Seguindo essa linha, ao falar de um encontro de culturas na literatura latino-americana, Sarguier aponta dois problemas enfrentados: a expressão linguística e a expressão temática. Durante o período colonial a literatura era “de modo geral, idílica, ou desinteressada” (SARGUIER, 1979, p. 17), mostra de simples descrição ou reflexo do pastoralismo europeu. Com os ideais de independência, avulta-se a procura de uma nacionalidade, a busca de uma expressão nacional, mas será que autônoma? Afinal, o uso do castelhano-espanhol ou do português na literatura – língua do colonizador – e mesmo a repetição temática traz à tona a questão de um possível prolongamento da literatura européia. Nesse contexto, o programa dos românticos insere uma proposta de modificação na literatura que deveria acompanhar a modificação política, esses sentimentos surgem em Andrés Bello do lado hispânico e em Gonçalves de Magalhães no Brasil, os quais, inspirados na força de nossa natureza, buscam uma emancipação literária.4 É necessário ressaltar que, em contrapartida, essa estratégia permitiu a sobrevivência do guarani no Paraguai e constitui hoje o único caso de bilinguismo na América hispânica. 3 Os questionamentos de Schwarz quanto ao mal-estar da literatura latino-americana, sobretudo da brasileira, são muito maiores, mas não cabe aqui retomá-los para não estender este trabalho. 4 Sarguier aponta uma primeira fase de admiração da natureza e uma segunda fase de conquista desse espaço que de um lado tenta adaptar a ideologia européia de civilização para a América e de outro, coincide com o surgimento das oligarquias latifundiárias crioulas. 2

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Outro ponto que favorece a proposta de mudança é o romance o qual consegue cumprir o programa de nacionalismo literário tão almejado pelos românticos. Ainda no século XIX surge um caso o qual se destaca e do qual não poderíamos esquecer antes de passarmos adiante, já que não existe caso semelhante na prosa americana em espanhol nesse momento. Nele é feita a síntese entre a “seiva local” e os “enxertos europeus” e se pode perceber a tão esperada mudança na produção literária, logo, Machado de Assis desponta por criar uma identidade brasileira, síntese das duas – de seus antepassados literários e das influências européias –, integradas em sua obra. Outro ponto de vista que desejamos destacar é o de Antonio Candido que ao tratar da produção literária latino-americana, aponta dois momentos históricos: a fase da consciência amena de atraso que corresponde à ideologia de “país novo”, mas que ainda imita as sugestões européias; e a fase da consciência catastrófica de atraso que corresponde à noção de “país subdesenvolvido” (CANDIDO, 2006, p. 172). Ao analisar a primeira fase, ele aponta a ambivalência dessa produção, já que as elites imitavam as sugestões européias, fossem elas boas ou más e simultaneamente afirmavam uma independência espiritual, movimentando-se entre a realidade e a utopia ideológica. Isso ocorre, pelas condições materiais de existência da literatura, daí, ele apontar como um dos maiores fatores o analfabetismo nos países pré-colombianos, bem como a questão da pluralidade linguística. Com efeito, por esses e outros fatores, sobretudo pelo primeiro, não existia um público local suficiente; por isso, o escritor produz como se estivesse na Europa, imaginando seu público ideal, o que distancia sua produção da realidade local, mas agrada os seus parcos leitores com as “formas e valores da moda européia”. Como exemplo desse período, são apontados o “Modernismo” de língua espanhola e os correspondentes brasileiros Parnasianismo e Simbolismo, nos quais, excetuando alguns escritores, despontam exemplos de provincianismo, como o protesto contra o vanguardismo dos modernistas feito por Coelho Neto e o romantismo atrasado de Pires de Almeida já no século XX. Para Candido, as literaturas latino-americanas desse momento são galhos das metropolitanas. Um outro estágio será atingido a partir de um reconhecimento implícito de dependência e passam a ser escolhidos temas novos, mesmo que sob o uso de formas importadas, ocorrendo uma perceptível adaptação das atitudes francesas, nos quais beberam alguns de nossos Parnasianos e Simbolistas. Além deles, como exemplo do “Modernismo” hispânico, Ruben Dario; do lado de cá, Jorge Amado, José Lins do Rego e Graciliano Ramos. Até que se atinja finalmente uma fase de superação da dependência com produções que refletem não apenas modelos estrangeiros imediatos, mas também seus antepassados nacionais. Aparecerão nesse cenário Carlos Drummond de Andrade, Murilo Mendes e João Cabral de Melo Neto, contudo, suas produções não influenciam fora do seu país. Logo, é imprescindível mencionar o interessante caso de Jorge Luis Borges, o qual desponta com incontestável originalidade e é reconhecido pelos considerados países-fontes.5 Nessa segunda fase é considerado o “vínculo placentário” com as literaturas européias não como uma opção, mas como um fato quase que natural. Dessa forma, o teórico marca como ponto inicial os movimentos estéticos de 1920, a partir dos quais os escritores da América Latina atingem uma consciência de unidade na diversidade, favorecendo a produção de obras com teor maduro e original. As vanguardas preparam os espíritos para uma mudança sensível propiciando fatores de autonomia e auto-afirmação. Candido assinala o Criacionismo de Huidobro, bem como o Ultraísmo argentino e o Modernismo brasileiro, a exemplo de Borges, Mario de Andrade, Oswald de Andrade e outros. Surge, então, o sintoma de maturidade, mesmo que aparentemente paradoxal, uma vez que existe o desejo de rejeitar o jugo do imperialismo econômico e político ao mesmo tempo que reconhece seu vínculo. Portanto, da consciência de subdesenvolvimento, há a saída do estado de dependência para a interdependência. Candido ainda afirma: “(...) deu-se no seio da cultura européia uma espécie de experimentação, cujo resultado foram as literaturas nacionais da América Latina no que tem de prolongamento e novidade, cópia e invenção, automatismo e Antonio Candido aponta também o caso de Machado de Assis, tão original e importante quanto Borges, mas desconhecido num país de “língua desconhecida e sem importância”.

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Tema geral: Línguas e Literaturas: Diversidade e Adversidades na América Latina espontaneidade. E elas foram se tornando variantes de tal modo diferenciadas das literaturas matizes que, já nos últimos cem anos, chegaram nalguns casos a influir nelas.” (CANDIDO, 2006, p.199)

A literatura dos países subdesenvolvidos toma por empréstimo os ingredientes das fórmulas literárias e as ajusta para representar os problemas do seu país, compondo sua fórmula não por imitação ou reprodução mecânica e acaba por criar, em alguns casos, uma originalidade tal que passa a influenciar a literatura da qual por tanto tempo foi considerada apenas como cópia. Nesse caso podemos novamente citar o argentino Jorge Luis Borges. Outro belo exemplo quanto à apropriação da técnica de outrem é Vargas Llosa que fecundou e aprofundou a tradição do monólogo interior tornando-o coisa sua também. Entre outros escritores, há que se mencionar ainda a relevante originalidade de Julio Cortázar com a quebra da linearidade temporal e interessante autonomia e profundidade psicológica. Passemos, então, ao momento de maior profusão da literatura latino-americana que já iniciamos pela menção alguns de seus escritores, visto que é no Modernismo que a literatura passa a ter inegavelmente maior unidade e originalidade. Num espaço de apenas quarenta anos todos os países da América Latina passam a fornecer o melhor de seus autores. Conforme José Luis Martinez, a América hispânica tem suas primeiras manifestações no México com José Martí e Manuel Nájerra, até que surge Rubem Darío, quando o modernismo já estava substancialmente formado. Em Havana e em Bogotá passam a ser difundidos os poemas de Juliás del Casal e de José de Asunción. A partir deles e, sobretudo de Darío, passam a surgir outros. Para Martinez, “Em seu conjunto, o modernismo foi um movimento unânime da América Latina, que significou fundamentalmente uma renovação formal e a conquista plena da expressão original e da modernidade.” (MARTINEZ, 1979, p. 74) Ele ainda ressalta uma porção de outros escritores mais contemporâneos que continuam – ou continuaram – o trabalho iniciado pelos primeiros modernistas como: Carlos Fuentes, Guimarães Rosa, Julio Cortazar, Vargas Llosa, Gabriel Garcia Márquez, entre outros. Ao falar da maioridade atingida pela literatura latino-americana, Goelkel afirma que o modernismo trouxe muito de válido e renovador para a literatura, apesar das também inúmeras limitações. Exemplos dessa renovação são: Mallea, Carpentir, Sábato, Arturias, Rulfo e, principalmente, Borges, o qual, segundo Goelkel, é um verdadeiro “demolidor de convenções”. Outro ponto a se considerar é que não há dúvidas de que a originalidade do movimento modernista é marcado pela ruptura da tradição, por isso mesmo é o momento o qual apontamos como ápice na literatura latino-americana. Como analisado no decorrer deste trabalho, a proposta de mudança tem seu embrião engendrado durante o romantismo. É com as idéias de Independência que começam também as de ruptura em literatura, mas é somente com o modernismo que se atinge, enfim, esse intento. Como observado anteriormente, era necessário que se alcançasse uma maturidade, ou melhor, uma maioridade, e o percurso histórico serviu de lição para que a partir dos modernistas tivesse início uma verdadeira inovação da tradição. Para Monegal: “Ruptura e tradição, continuidade e renovação: os termos são antagônicos, mas estão ao mesmo tempo profunda e secretamente ligados. Porque não pode haver ruptura senão de alguma coisa, como só pode haver renovação de alguma coisa, e para criar em direção ao futuro é preciso voltar-se para o passado, para a tradição.” (MONEGAL, 1979, p. 137)

O modernismo brasileiro evidencia de maneira interessante essa ruptura da tradição, a partir de uma renovação dela mesma. É um momento de reflexão de todo caminho percorrido, que segundo Affonso Ávilla, acontece porque a proposta é “utilizar-se da lição das culturas mais amadurecidas, assimilando técnicas e, se possível, reduzindo-as a uma necessidade nossa de expressão, de atualidade de expressão” (ÁVILLA, 1975, p. 34). No Brasil, o modernismo atinge o caráter de originalidade não apenas pela proposta inovadora oferecida pela Semana de 22, mas principalmente porque seus artistas mostraram que sabem assimilar elementos traçados em seu processo literário criativamente mesclados às correntes da época – as vanguardas européias. Essa assimilação dá um verdadeiro sentido às dimensões que Ávilla aponta como atualidade e universalidade. Dessa forma, há que se considerar aqui o caráter universal da “Antropofagia” oswaldiana pelo sentimento agudo da necessidade de se

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“pensar o nacional em relacionamento dialógico e dialético com o universal” (CAMPOS, 1992, p. 234). O canibal devora criticamente o legado cultural universal, seguindo o exemplo indígena, devora os inimigos que considera bravos e se renova de suas forças. Ele recusa a perspectiva submissa do “bom selvagem” seguida pelos românticos brasileiros e assume o caráter do “mau selvagem”, antropófago, criando uma produção original.6 Ouro grande exemplo é Mário de Andrade, em Macunaíma, tem-se a incorporação do projeto cultural modernista de reinventar a história do Brasil numa revisão crítica de nosso passado literário. O herói sem caráter toma o rumo de Caminha e descobre São Paulo em sua busca pela pedra muiraquitã. No entanto, o que chama maior atenção é a diversidade dos elementos construtivos do texto, composto de lendas e mitos indígenas e folclóricos, bem como a desconstrução do paradigma da tradição com uma construção caricatural da cultura brasileira. Gostaríamos de acrescentar aqui também o escritor paraense Haroldo Maranhão, sobretudo no romance pós-moderno O Tetraneto Del-Rei no qual é perceptível a riqueza inventiva constituída pelas confluências textuais de outros escritos literários que compõe o corpo narrativo. No romance, o autor se apropria de escritos do cânone e os resignifica. Além disso, transparece o discurso de um narrador que reconstrói o relato do protagonista Jerônimo D’Albuquerque, contudo, além de contradizê-lo, tal discurso oferece ao leitor um outro viés da história que faz repensar a respeito da veracidade dos documentos coloniais inseridos em nosso cânone. Toda essa riqueza literária se oferece ao olhar dos leitores de maneira sedutora e instigante, seja pela literariedade da obra, seja pela reconstrução de nossa história, ou outros aspectos que a cada leitura se abrem. Como discutido no decorrer desse trabalho, desde o período de Independência política, seguido pelas inovações trazidas pelo período modernista, os escritores latino-americanos perceberam que não podem negar sua dependência cultural; assim, em vez de uma simples imitação, a literatura latino-americana pode contribuir com algo de original. Em vez de atribuir a essa produção o caráter de resultado da influência da cultura européia, deve-se assinalar que elementos marcam sua diferença, o que a faz criar o entre-lugar e a torna universal. Aliás, como afirma Silviano Santiago, nas culturas periféricas “(...) os textos colonizados operam com brio a síntese enciclopédica da cultura, soma generosa em que o próprio ocupado é mero apêndice insignificante e complementar do movimento geral da colonização. Nas culturas periféricas, os textos descolonizados questionam, na própria fatura do produto, o seu estatuto e o estatuto do avanço cultural do colonizador.” (SANTIAGO, 1983, p. 24)

Portanto, a discussão agora se volta para o caráter universal da produção latino-americana. Ao retomar a afirmativa de Borges, Compagnon afirma que o autor é um bricoleur, e como tal, “trabalha com o que encontra, monta com alfinetes, ajusta; é uma costureirinha. Como Robinson perdido, ele toma posse dela, reconstruindo-a com os despojos de um naufrágio ou de uma cultura.” (COMPAGNON, 1996, p. 30). Esse é certamente o grande projeto do escritor latino-americano, se ele repete é para criar o elemento demarcador da diferença, ele relê seus antepassados, vence as fórmulas literárias ao (re)construir; devora a produção da metrópole e cria a diferença, resultado da soma de suas leituras com sua criatividade. Referências ÁVILLA, Affonso. Do Barroco ao Modernismo: O desenvolvimento cíclico do projeto literário brasileiro. In: ÁVILA, Affonso (Org.). O Modernismo. São Paulo, 1975. p. 29-37.

BOSI, Alfredo. História Concisa da Literatura Brasileira. São Paulo: Editora Cultrix. ______. Anchieta ou as flechas opostas do sagrado. In: Dialética da colonização. São Paulo: Companhia das letras, 1992. p. 64-81. A maior de todas as inovações que vimos acontecer é certamente a poesia concretista, a qual quebra a estrutura discursiva e introduz na poesia a inserção de signos não-verbais.

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Tema geral: Línguas e Literaturas: Diversidade e Adversidades na América Latina CAMINHA, Pero Vaz. Carta a El Rei D. Manuel. São Paulo: Dominus, 1963. Disponível em: <http://www. cce.ufsc.br/~nupill/literatura/carta.html> Acesso em: 31 jan. 2009 CAMPOS, Haroldo. Da razão antropofágica: Diálogo e diferença na cultura brasileira. In: Metalinguagem e outras metas. Ensaios de teoria e crítica literária. 4. ed. São Paulo: Editora Perspectiva, 1992. p. 231-255. CANDIDO, Antonio. Crítica e sociologia. In: Literatura e Sociedade: estudos de teoria e história literária. São Paulo: Nacional, 1975. p. 3-15.

______. Literatura e subdesenvolvimento. In: A educação pela noite. 5ª edição. Rio de Janeiro: Ouro sobre azul, 2006. p.169-196.

______. Literatura de dois gumes. In: A educação pela noite. 5ª edição. Rio de Janeiro: Ouro sobre azul, 2006.

p. 197-217.

COMPAGNON, Antoine. O trabalho da citação. Tradução de Cleonice P. B. Mourão. Belo Horizonte: Editora UFMG, 1996. GÂNDAVO, Pero de Magalhães. Tratado da Terra do Brasil; História da Província Santa Cruz. Belo Horizonte: Ed. Itatiaia, 1980. Disponível em: http://www.cce.ufsc.br/~nupill/literatura/ganda1.html> Acesso em: 31 jan. 2009 GOELKEL, Hernando Valencia. In: MORENO, César Fernández (Org.). América Latina em sua literatura. São Paulo, Editora Perspectiva, 1979. p.113-128. HOBSBAWN, Eric. Introdução: A Invenção das Tradições. In: E. Hobsbawm & T. Ranger (orgs.). A invenção das tradições, Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1984. JOZEF, Bella. O lugar da América. In: JOBIM, José Luis et al. (Orgs.). Sentido dos lugares. Rio de Janeiro: ABRALIC, 2005. LIMA. Luiz Costa. Mímesis e modernidade: formas das sombras. Rio de Janeiro: Graal, 1980. MARANHÃO, Haroldo. O Tetraneto Del-Rei: O Torto: Suas idas e venidas. Rio de Janeiro: Francisco Alves Editora, 1982. MARTINEZ, José Luis. Unidade e diversidade. In: MORENO, César Fernández (Org.). América Latina em sua literatura. São Paulo, Editora Perspectiva, 1979. p. 61-81. MONEGAL, Emir Rodríguez. Tradição e renovação. In: MORENO, César Fernández (Org.). América Latina em sua literatura. São Paulo, Editora Perspectiva, 1979. p. 131-159. MORENO, César Fernández. Introdução. In: MORENO, César Fernández (Org.). América Latina em sua literatura. São Paulo, Editora Perspectiva, 1979. p. XV-XXIX. SANTIAGO, Silviano. Apesar de dependente, universal. In: Vale quanto pesa. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1983. p. 13-24.

______. O entre-lugar do discurso latino-americano. In: Uma literatura nos trópicos: ensaios de dependência cultural. Rio de Janeiro: Rocco, 2000. p. 11-28.

______. Por que e para que viaja o europeu? In: SANTIAGO, Silviano. Nas malhas da letra. São Paulo. Editora Companhia das Letras, 1989. p. 189-205 SARGUIER, Rubén Bareiro. Encontro de culturas. In: MORENO, César Fernández (Org.). América Latina em sua literatura. São Paulo, Editora Perspectiva, 1979. SCHWARZ, Roberto. Nacional por subtração. In: Que horas são? Ensaios. São Paulo: Companhia das Letras, 1987. p. 29-48. SOUZA, Eneida Maria de. A pedra mágica do discurso. Belo Horizonte: Editora UFMG, 1999.

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CRÔNICAS PORTUGUESAS EM JORNAIS PARAENSES NA SEGUNDA METADE DO SÉCULO XIX (1860-1870)* Almir Pantoja RODRIGUES1 (Universidade Federal do Pará)

RESUMO: A coluna folhetim foi um espaço privilegiado para a divulgação de variedades nos jornais franceses do século XIX. Dentre essas variedades estavam textos curtos classificados como crônicas que, conquistavam os leitores pelas temáticas abordadas. Esse formato, após alcançar grande sucesso na Europa, não demorou a chegar ao Brasil, sendo divulgado no Rio de Janeiro, inicialmente no Jornal do Comércio. Essa prática se expandiu por todo o país, adquirindo os mesmos efeitos de circulação ocorridos na região européia, e no Pará alcançou maior divulgação a partir de 1850. Assim sendo, este trabalho pretende analisar a publicação de textos de autoria portuguesa, que circularam como crônicas em jornais de Belém, na segunda metade do século XIX, especificamente, nas décadas de 1860, e 1870, objetivando verificar a circulação desse material e, por conseguinte, observar a relevância dos textos para a sociedade do período. PALAVRAS-CHAVE: Crônicas portuguesas; jornais de Belém; século XIX.

RÉSUMÉ: La colonne feuilleton a été un espace propice pour la diffusion de variétés dans les journaux français du XIXe siècle. Parmi ces variétés il y avait des textes courts, les chroniques, qui ont été largement acceptés par les lecteurs, en raison des thèmes abordés. Ce format, après avoir atteint un grand succès en Europe, n’a pas tardé à arriver au Brésil, d’abord à Rio de Janeiro, à travers les pages du Jornal do Commércio. Sans retard, ainsi comme dans l’Europe, cette pratique s’est développée dans tout le pays, et dans l’état du Pará, a obtenu une plus grande divulgation de 1850. En ce sens, ce travail de recherche vise la mise au jour publication de chroniques d’auteurs portugais, qui ont été publiés dans les journaux de Belém, à la deuxième moitié du XIX e siècle, en particulier dans les décennies de 1860 et 1870. Il vise aussi vérifier la circulation de ces matières et, par conséquent, observer l’importance de ces textes pour la société de cette période. MOTS CLÉS: Chroniques portugais ; journaux de Belém ; XIX siècle. Estudo integrado à linha de pesquisa História e Recepção da Literatura no Brasil e ao Projeto Lendo o Pará: publicação do romance-folhetim nos jornais de Belém do Pará na segunda metade do século XIX (1850-1880), coordenado pela Professora Doutora Germana Maria Araújo Sales, com apoio do CNPq. Mestre em Estudos Literários.

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1. Introdução O projeto Crônicas Portuguesas em Jornais Paraenses na Segunda Metade do Século XIX (1860-1870) surgiu a partir do mapeamento de textos publicados em jornais nas décadas de 1860 e 1870, do século XIX, trabalho desenvolvido primeiramente por Brenda de Cássia Farias Cavalcante, bolsista do PIBIC/ UFPA, e por mim ampliado. Nesse mapeamento, que teve como um dos principais objetivos examinar as condições de escrita e leitura das décadas de 1860 e 1870, foi feito um levantamento de todos os textos literários encontrados nos jornais circulantes em Belém naquele período de vinte anos, como a Gazeta Official, o Treze de maio, A Estrela do Norte, Jornal do Pará, o Colombo, Liberal do Pará e Diário de Belém, A Província do Pará, A Constituição e a Boa Nova. De posse dessas informações, identificamos um número representativo de textos que foram publicados nas colunas Folhetim, Variedades, Miscelânea e Litteratura, a exemplo das crônicas de autoria portuguesa que fizeram parte das leituras na Província do Pará, na segunda metade do século XIX. Este trabalho é, portanto, o resultado da pesquisa feita em alguns periódicos paraenses, e serve para mostrar que o veículo jornal foi responsável pela criação e popularização de certos gêneros literários, como, por exemplo, a crônica. Enfim, é um estudo que busca demonstrar a estreita relação entre jornal e literatura na imprensa paraense, assim como objetiva analisar a circulação de um material que contribuiu para o desenvolvimento da História da Leitura e História da Literatura no Brasil. 2. Algumas considerações sobre a Crônica A crônica é um gênero narrativo que circula entre nós há mais de um século. Aparentemente caracterizada pela simplicidade e efemeridade, revela sua complexidade no momento de definí-la e compreendê-la na qualidade de texto literário, em decorrência das discussões provocadas pelo fato de ser ela um texto originado num espaço de jornal, o folhetim. Antes de adentrarmos nas discussões sobre a origem, desenvolvimento, características e estatuto artístico, cabe uma explicação sobre a etimologia da palavra. Para isso, recorremos às conceituações de Massaud Moisés sobre esse gênero. Do grego chronikós, relativo a tempo (chrónos), pelo latim chronica, o vocábulo “crônica” designava, no início da era cristã, uma lista ou relação de acontecimentos ordenados segundo a marcha do tempo, isto é, em seqüência cronológica. Situada entre os anos e a história, limitava-se a registrar os eventos sem aprofundar-lhe as causas ou tentar interpretá-los. Em tal acepção, a crônica atingiu o ápice depois do século XII, graças a Froissart, na França, Geoffrey of Monmouth, na Inglaterra, Fernão Lopes, em Portugal, Afonso X, na Espanha, quando se aproximou estreitamente da historiografia, não sem ostentar traços de ficção literária. A partir da Renascença, o termo “crônica” cedeu a vez a “história”, finalizando, por conseguinte, o seu milenar sincretismo. Não obstante, o vocábulo ainda continuou a ser utilizado, no sentido histórico, ao longo do século XVI, como por exemplo, nas Chronicles of England, Scotland, and Ireland (1577), de Raphael Holinshed, ou nas chronicle plays, peças de teatro calcadas em assunto verídico, como não poucas de Shakespeare.1 A explicação etimológica dada à crônica por esse estudioso da Literatura brasileira mostra que ela adquiriu vários significados no decorrer do tempo, antes de chegar à sua acepção moderna. Num primeiro momento, isso justifica as inúmeras controvérsias a respeito desse tipo de texto que desde o século XIX tem seu espaço físico garantido nas páginas dos jornais brasileiros. Vários estudiosos já se propuseram a desenvolver estudos sobre a possível origem da crônica e sua evolução no Brasil, como Davi Arrigucci Jr, no ensaio Fragmentos sobre a crônica, no qual explica o aparecimento desse gênero narrativo: Quando aparece entre nós, na segunda metade do século XIX, a crônica já lida com uma matéria muito misturada: a matéria do folhetim, pedaço de página por onde a literatura penetrou fundo no jornal, tratando dos temas mais diversos, as com predominância dos aspectos da vida moderna. O cronista é primeiro folhetinista, como o Alencar de Ao correr da pena, colaborador do Correio Mercantil do Rio, em 1

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MOISÉS, Massaud. A Criação Literária. Prosa II. São Paulo: Ed. Cultrix, 1967, p. 101.

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Tema geral: Línguas e Literaturas: Diversidade e Adversidades na América Latina 1854 e 1855. Ali o escritor iniciante já sentia sob o signo de Proteu: a matéria mutável e meio monstruosa obrigava o folhetinista a percorrer todo tipo de acontecimentos, com uma volubilidade de colibri a esvoaçar em ziguezague.2

Além de Arrigucci, outros se dedicaram a pesquisar sobre a história da crônica, a exemplo de Marlyse Meyer3 que contou uma história sobre o lugar de origem, o desenvolvimento e a formação desse gênero narrativo. Para ela, a história da crônica brasileira tem suas origens num espaço dos jornais franceses chamado le feuilleton, um lugar precioso do jornal, o rodapé da primeira página, onde eram publicados textos que teciam comentários sobre os acontecimentos da semana e tinham a finalidade de informar o leitor. Esse modelo popularizado nas páginas dos jornais franceses foi trazido para o Brasil na segunda metade do século XIX e passou a circular nos periódicos brasileiros. Massaud Moisés, como Meyer, também considera a crônica um gênero narrativo que tem suas origens nas páginas dos jornais franceses. Assim entendida, a crônica teria sido inaugurada pelo francês Jean Louis Geoffroy, em 1800, no Journal des Débats, onde periodicamente estampava feuilletons. Seus imitadores entre nós, aparecidos depois de 1836, traduziam o termo “folhetim”, mas já para a derradeira quadra do século a palavra “crônica” principiou seu curso normal.4

O ponto de vista comum desses dois teóricos sobre a origem da crônica mostra a intrínseca relação entre a literatura brasileira e a literatura estrangeira por meio do folhetim. 3. A Crônica no Brasil Já mencionamos que a crônica brasileira tem suas origens nas páginas dos jornais franceses. Para mostrar como se deu a trajetória desse gênero no Brasil, nos faremos acompanhar das obras A Crônica, de Jorge de Sá e A vida ao rés-do-chão, de Antonio Candido.5 Antes, porém, de relatarmos como se desenvolveu o gênero crônica, vale ressaltar que os estudos acima mencionados, assim como os textos aqui analisados nesta pesquisa, foram em grande medida responsáveis e serviram de ensaio e base para a fixação e desenvolvimento da crônica como gênero narrativo na sua acepção moderna, aqui entendidas como as produções escritas publicadas nas páginas dos jornais brasileiros dos anos oitocentos, e que abordavam variados assuntos, como moda, política, religião, cultura, fatos da vida cotidiana. A esse respeito, Jorge de Sá, como Meyer, afirma que a crônica atual teve sua origem a partir da circulação do folhetim, espaço do jornal onde eram publicados contos, pequenos artigos, ensaios breves, poemas em prosa, tudo que tivesse relação com o cotidiano do leitor, com o intuito de informar. Desses textos que apresentavam características informativas é que surge a crônica atual. Jorge de Sá atribuiu a Paulo Barreto6 o processo de modificação da crônica. Esse jornalista percebeu que a modernização do espaço urbano e a evolução da cidade, exigiam mudanças de comportamento daqueles que eram responsáveis por escrever nos jornais sobre os fatos do dia-a-dia do leitor. Essa constatação levou-o a sair da redação do jornal, onde aguardava as informações, e ir até o local em que os fatos ocorriam para melhor investigá-los e dar-lhes mais vida ao transformar a informação em textos. Para isso, foi necessário à imprensa chegar mais perto dos morros, dos lugares refinados, da fina flor da malandragem carioca, isto é, dos lugares onde os fatos aconteciam. ARRIGUCCI JR., Davi. “Fragmentos sobre a crônica.” – Folha de São Paulo, 01/05/1987. MEYER, Marlyse. Voláteis e Versáteis. De Variedades e folhetins. De Variedades e Folhetins se fez a chronica. In: CANDIDO, Antonio. A crônica e suas transformações no Brasil. Campinas. SP: Editora da Unicamp; Rio de Janeiro: Fundação Casa de Rui Barbosa. 1992. 4 MOISÉS, Massaud. Dicionário de Termos Literários. São Paulo: Ed. Cultrix, 1982, p. 132. 5 CANDIDO, Antonio. A vida ao rés-do-chão. In: CANDIDO, Antonio et al. A crônica: o gênero, sua fixação e suas transformações no Brasil. Campinas: Editora da Unicamp; Rio de Janeiro: Fundação Casa de Rui Barbosa, 1992. 6 João Paulo Emílio Cristovão dos Santos Coelho Barreto, jornalista, cronista, contista e teatrólogo, nasceu no Rio de Janeiro em 5 de agosto de 1881 e faleceu em na mesma cidade em 23 de junho de 1921. 2 3

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Assim, João do Rio7 deu aos textos que eram publicados na coluna do jornal chamada de folhetim uma nova feição: construiu uma nova sintaxe, provocando mudanças referentes à linguagem e à própria estrutura dos textos em folhetim, e conseqüentemente conferiu outro estatuto à profissão de jornalista. Jorge de Sá afirma que as modificações atribuídas a Paulo Barreto nos textos que antes eram publicados sob outro enfoque consagraram-no como cronista mundano por excelência, e deram à crônica uma linguagem mais “literária”, que, posteriormente, foi enriquecida por outros cronistas, a exemplo de Rubem Braga. Sobre a crônica, Antonio Candido afirma que esse gênero narrativo não nasceu propriamente com o jornal, mas só quando este se tornou cotidiano, de tiragem relativamente grande e teor acessível, isto é, há uns 150 anos mais ou menos. No Brasil o gênero tem uma boa história e até se poderia dizer que sob vários aspectos pode ser considerado brasileiro, pela naturalidade com que se aclimatou e a originalidade com que aqui se desenvolveu. Antes de ser crônica propriamente dita foi “folhetim”, ou seja, um artigo de rodapé sobre as questões do dia-a-dia – políticas, sociais, artísticas, literárias. Assim eram os da seção “Ao correr da pena”, título significativo em cuja sombra José de Alencar escrevia semanalmente para o Correio Mercantil, de 1854 a 1855. Aos poucos o “folhetim” foi encurtando e ganhando certa gratuidade, certo ar de quem está escrevendo à toa, sem dar muita importância. Depois entrou francamente pelo tom ligeiro e encolheu de tamanho, até chegar ao que é hoje.8 A abordagem de Candido sobre a crônica reforça os estudos de Jorge de Sá, pois ambos discutem o aparecimento desse gênero a partir de um espaço do jornal denominado folhetim. Antonio Candido ressalta ainda que a crônica ajusta-se à sensibilidade de todo dia, por abordar assuntos de composição aparentemente solta, com ares de coisa sem necessidade e serve de caminho não só para a vida, mas para a literatura. No entanto, as reflexões teóricas sobre esse novo gênero caracterizado pela efemeridade, que surgiu para ser publicado nas páginas do jornal, não possuía uma dimensão universal e nem um lugar elevado se comparado, por exemplo, a outros gêneros já consagrados pela crítica literária, conforme observamos no fragmento a seguir: A crônica não é um “gênero maior”. Não se imagina uma literatura feita de grandes cronistas, que lhe dessem o brilho universal dos grandes romancistas, dramaturgos e poetas. Nem se pensaria atribuir o prêmio Nobel a u cronista, por melhor que fosse. Portanto, parece mesmo que a crônica é um gênero menor.9

No entanto, Candido afirma que a classificação dada à crônica a afasta dos textos considerados clássicos pelo fato de ela não possuir uma regra estabelecida de construção e estar mais perto do público, servindo não só de caminho para a vida, mas para a literatura. 4. O vocábulo folhetim ou feuilleton Como neste artigo estamos abordando a circulação de crônicas em jornais brasileiros do século XIX, que têm sua origem associada à coluna folhetim dos jornais franceses, faz-se necessário assinalar os significados atribuídos à palavra folhetim. Além de verificar as diferentes significações dadas ao termo, é importante também referenciar as pesquisas existentes sobre o assunto no Brasil para que possamos ter uma visão mais ampla de como esta temática é abordada por aqui. De acordo com os estudos de Antonio Candido o folhetim, ou feulilleton, em francês, esposa tantos significados quanto são os gêneros ali tratados, desde a crônica noticiosa até a narrativa ficcional. Mas, como já mencionamos, o objeto de pesquisa, deste estudo, é a crônica e, muito especialmente as de autores portugueses, publicadas em jornais paraenses na segunda metade dos anos oitocentos. Pseudônimo de Paulo Barreto. CANDIDO, Antonio. A vida ao rés-do-chão. In: CANDIDO, Antonio et al. A crônica: o gênero, sua fixação e suas transformações no Brasil. Campinas: Editora da Unicamp; Rio de Janeiro: Fundação Casa de Rui Barbosa, 1992, p. 15. 9 Ibidem, p.13. 7 8

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Massaud Moisés nos informa que o vocábulo folhetim, que em espanhol significa folletin, diminutivo de folleto, folheto; em francês feuille, folha, ocorreu pela primeira vez no final do século XVIII, em 1790. A novidade, criada na França pelo Abade Geoffroy no Journal des Débats, era inicialmente um artigo de crítica dramática que logo depois foi copiado por outros escritores franceses. No decorrer do tempo, outros assuntos passaram a ser tratados nele.10 Marlyse Meyer, assim como Massaud Moisés, procura conceituar o termo. Ela nos informa que no começo do século XIX o folhetim designava um espaço físico dos jornais franceses, especificamente o rodapé ou rez-de-chaussé (rés-do-chão), chamado até então de varietés (variedades), mélanges (miscelâneas), ou feuilleton, sendo este último o termo mais geral que englobava todo tipo de publicação, como receitas culinárias, dicas de beleza, piadas, charadas, comentários políticos ou crimes. Era aberto às novidades e considerado um espaço frívolo, sem valor. Aquele espaço vale-tudo suscita todas as formas e modalidades de diversão escrita: nele se contam piadas, se fala de crimes e monstros, se propõe charadas, se oferecem receitas de cozinha ou de beleza; aberto às novidades, nele se criticam as últimas peças, os livros recém saídos, o esboço do caderno B, em suma. E numa época em que a ficção está na crista da onda, é o espaço onde se pode treinar a narrativa, onde se aceitam mestres e noviços no gênero, curtas ou menos curtas – adota-se a moda inglesa de publicação em série se houver mais texto e menos colunas.11

Amparada nos estudos de Marlyse Meyer, Yasmin Jamil Nadaf, na sua obra Rodapé das Miscelâneas, reitera que o folhetim foi originado da imprensa francesa da primeira metade do século XIX e teve uma história de vida, paixão e morte na primeira metade do século XX. Essa estudiosa afirma que ele Nasceu da pura necessidade de gerar prazer e bem-estar aos leitores ou ouvintes de jornais, cansados de verem os enfadonhos reclames oficiais ocuparem as páginas dos periódicos. Isto, em decorrência da autoritária medida de Napoleão I de restabelecer a censura à imprensa e aos livros que se haviam acostumado a respirar livremente durante a Revolução Francesa. 12

Nota-se que o Jornal passou a ser um meio de popularização da leitura, tornando-a mais acessível a uma parcela da população que, seja pela censura, seja por outras dificuldades, não tinha possibilidade de acesso a textos que muitas vezes eram destinados a um público seleto, elitizado. Graças à circulação cotidiana nas páginas dos jornais, esses textos acabaram por entrar na vida e na rotina das pessoas “comuns”. Nadaf13 nos conta ainda que o espaço feuilleton, como era chamado, teve a seu serviço o rodapé da página do jornal, geralmente as primeiras, e se apresentava separado por um fio horizontal, conforme demonstra a ilustração de um importante jornal francês do século XIX. Nesse espaço eram publicados artigos de crítica, crônicas e resenhas de teatro, de literatura, de artes plásticas, comentários de acontecimentos mundanos, piadas, receitas de beleza e de cozinha, boletins de moda, entre outros assuntos de entretenimento. Nadaf informa que devido à miscelânea de assuntos tratados concomitantemente, o folhetim era, a esse tempo, sinônimo de variedades. O Feuilleton começou a se tornar um espaço importante do jornal para os proprietários, autores e leitores, quando nele passou-se a publicar histórias de ficção em série, conforme observa Nadaf: Com esse perfil, a nova modalidade jornalística chegou até a Revolução Burguesa, em 1830, quando o esperto proprietário do jornal francês La Presse, Émile de Girardin, de olhos voltados para a popularidade que o mesmo vinha conquistando junto ao público leitor de jornais, associou-se a um colega, Dutacq, do jornal Le Siècle, para lançar, nesse rodapé, a ficção em partes. Girardin, segundo Marlyse Meyer, foi pirateado logo de saída pelo sócio, que a partir de 5 de agosto de 1836 lançou no folhetim do seu jornal, em fatias seriadas, o primeiro clássico da picaresca espanhola Lazarilho de Tormes, autor anônimo.14 MOISÉS, Massaud. A Criação Literária. Prosa II. São Paulo: Ed. Cultrix, 1967, p. 101. MAYER, Marlyse. Folhetim: uma história. São Paulo: Companhia das Letras, 1996, p.57-58. 12 NADAF, Yasmin Jamil. Rodapé das Miscelâneas. Rio de Janeiro: 7Letras, 2002, p. 17. 13 Ibidem, p. 17. 14 NADAF, Yasmin Jamil. Op. cit. p. 17-18. 10 11

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Estava lançado o romance-folhetim, sucesso garantido no século XIX, inicialmente nas páginas dos jornais franceses e depois em outros lugares onde a imprensa se fez presente. O romance-folhetim foi criado pelo autor folhetinista com o objetivo de circular nas páginas dos jornais e havia preocupação com os cortes de capítulos e a sucessividade da narrativa, como ressalta Jean-Louis Bory, citado por Yamsin Jamil Nadaf. O romance-folhetim é antes de tudo determinado pelas condições de sua existência: ele se destina ao mais vasto público possível, por meio da imprensa, que o publica por blocos. Eis a primeira regra do gênero: ele deve não somente admitir estes cortes, mas se alimentar deles, retirar os efeitos, uma estética – através dos elementos principais: o episódio e a série (...). É preciso que o episódio publicado seja não somente um todo – que satisfaça uma certa expectativa do leitor – mas que renove esta espera, crie o que nós chamamos hoje de “o suspense”. É sobretudo no corte, senhor, que o verdadeiro folhetinista se reconhece. É preciso que cada número caia bem, que se ligue ao seguinte por uma espécie de cordão umbilical, que ele chame a atenção, que desperte o desejo, a impaciência de se ler a continuação. O senhor falava da arte, há pouco; eis a arte. É a arte de fazer desejar, de se fazer esperar. 15

Como vimos, o folhetim possui significados variados que podem representar o espaço físico de um jornal ou histórias de ficção contadas em “picadinhos” nas páginas dos jornais oiocentistas publicadas no espaço folhetim. 5. A Imprensa Paraense Faz-se necessário referenciar a consolidação e desenvolvimento da Imprensa no Pará neste estudo à medida que se observa que há uma relação muito próxima entre Literatura e Imprensa. No caso específico do Pará, observamos a circulação de textos publicados como crônicas, romances, novelas e contos em periódicos do século XIX que reforçam a dívida da Literatura Brasileira com o Jornal, conforme ressalta Regina Zilberman. No Pará, o aparecimento da imprensa foi posterior à sua implantação na Corte em 1808.16 Foi um momento marcado por intensas lutas políticas que envolveram nativos da Região e portugueses. De acordo com Benedicto Monteiro, em 1820, o jornalista Felipe Alberto Patroni17 retornou ao Pará após anos de estudos fora do país para implantar, em favor da província, os ideais de liberdade espalhados na Europa.18 O historiador paraense nos informa que a luta de Patroni, em janeiro de 1821, pelo movimento de mudanças a favor do Grão-Pará e pela autonomia do Brasil em relação a Portugal foi frustrada. Suas reivindicações diante da Corte foram ignoradas, conforme podemos observar no discurso em que ele relata ao Rei de Portugal a situação sócio-política que a província paraense estava submetida: É, porém, infelicidade, não sei se minha, se da Província em que nasci, se da nação a que pertenço, se de Vossa Majestade que a rege, todas as vezes que entro nesta casa, não entro eu para outro fim que não seja acusar o desleixo, e nenhuma energia dos agentes do poder, com quem Vossa Majestade tem repartido a autoridade.19

A frustração de Felipe Patroni levou-o a encontrar um meio de denunciar o parasitismo militar, a violência e o arbítrio do governo local.20 Junto com Domingos Simão da Cunha, José Batista Silva e Daniel Garção Melo, que também lutavam contra os desmandos da coroa portuguesa, BORY, Jean-Louis, apud NADAF,Yasmin Jamil. Rodapé das Miscelâneas – o folhetim nos jornais de Mato Grosso (séculos XIX e XX). Rio de Janeiro: 7Letras, 2002, p. 20. 16 No Brasil, a implantação da imprensa deu-se em 13 de maio de 1808 com a chegada D. João VI, momento que surgiu a necessidade de se fazer imprimir os atos do governo e de divulgar notícias interessantes à Coroa Portuguesa. 17 Nasceu no município de Acará, no Pará, em 1794 e morreu em 1866. Foi jornalista patriota e fundador do jornal O Paraense. 18 MONTEIRO, Benedicto. História do Pará. Belém: Editora Amazônia, 2006, p. 99. 19 ROCQUE, Carlos. História Geral de Belém do Grão-Pará. Belém: Distribel, 2001, p. 31. 20 MONTEIRO, Benedito. Op. Cit., p. 100. 15

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comprou, em Portugal, uma tipografia completa que foi instalada em Belém com o principal objetivo de lançar um jornal que criticasse a administração política do sistema dominante na Região, almejando a separação do Brasil de Portugal. Surgiu, assim, o primeiro jornal da Amazônia, intitulado O Paraense. Esse periódico denunciava a realidade à qual vivia submetida a população do Pará. Por meio dessa folha de notícias foram propagadas críticas severas em relação à política dos portugueses na Amazônia, denunciando as reações violentas vindas dos representantes da Coroa que possuíam o domínio político e econômico da Região. Efetivamente, a imprensa criticava os atos administrativos e paralelamente fazia a divulgação dos ideais de liberdade vindos da Europa. Os primeiros idealistas que conspiravam pela liberdade conheciam muito bem a força e o poder da palavra impressa e tornaram-se os pioneiros nesse processo de informação, denúncia e expressão ideológica. Nesse sentido, podemos afirmar que a imprensa no Pará surgiu como meio de expressão dos ideais liberais em favor dos nativos, pregando a libertação política e abrindo espaço, posteriormente, para a intensificação das lutas políticas na Amazônia, como quer Benedicto Monteiro. O primeiro número d’ O Paraense data de uma quarta-feira, 22 de maio de 1822 e apresentava como matéria principal a Lei da Liberdade de Imprensa, na seção intitulada Notícias Nacionais. As informações sobre o período inicial de circulação do primeiro jornal paraense encontram-se no catálogo dos jornais paroaras21, localizado no setor de microfilmagem da Biblioteca Arthur Viana, no Centur.22 Segundo Nelson Paulo Roberto Ferreira,23 esse jornal deixou de circular em fevereiro de 1823, em sua 70ª edição, seis meses antes da então província do Pará aderir à independência do Brasil. O Paraense era composto de cinco páginas, cada uma dividida em duas colunas. As matérias traziam notícias nacionais, artigos que apresentavam as bases da Constituição, ordens expressas diretamente da Corte, reflexões sobre o Estado do Pará, relatando inclusive a submissão vivida pelo povo nativo da região, divulgação dos preços de gêneros vendidos no país, como por exemplo, o cacau, o algodão ensacado, a farinha d’agoa24, o pirarucu, o cravo, entre outros, além de apresentar, na última página, um de suplemento de notícias. Na parte superior do jornal, na primeira página, encontravam-se informações referentes à data, número da edição e o título do jornal, em caixa alta. O conteúdo apresentava uma linguagem que, de forma direta, atingia aqueles que dominavam a Província, além de externar as opressões pelas quais passava parte da população paraense, como observamos no fragmento a seguir: Tempos luctuosos tempos de desolação. Afastai-vos d’huma vez das doces, e deliciosas Campinas, que regão as agoas do guajará, e amazonas. O dia, que tanto [...] ansioso, o Nobre povo paraense, hum povo digno certamente da maior ventura, chegou em fim despontando a brilhante aurora de onze de Março. Males de toda a natureza opprimindo-nos consideravelmente, adormentarão nosso brio; e as virtudes patrióticas, que fazem o caracter nativo dos habitantes do Monarca dos Rios, servirão de ludibrio ás circunstancias, filhas da falta de garantia, que se deo aos nossos direitos.25

Em 1823, menos de um ano após a fundação, o primeiro jornal impresso na região alcançara o seu objetivo: incomodar a administração portuguesa. No entanto, as conseqüências surgiram sob a forma de pressão e repressão militar, fazendo com que O Paraense saísse de circulação. A pressão lusa deu origem à implantação do segundo jornal impresso no Pará: O Luso paraense que se contrapôs aos ideais expressos pelo seu antecessor, defendendo os interesses administrativos da colônia, sob o comando da coroa portuguesa. Jornais Paroaras: catálogo, Belém, Secdet, Belém, 1985. Fundação Cultural Tancredo Neves. 23 Autor do artigo Mais de 180 anos de imprensa na Amazônia, publicado no site www. redealcar.jornalismo.ufsc.br 24 No século XIX a expressão farinha d’água era grafada d’agoa, conforme registrou o jornal. 25 Fragmento extraído do primeiro jornal impresso no Pará. 21 22

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Esses dois jornais, no Pará, abriram caminho para a consolidação da imprensa, iniciada no momento em que ocorria a transição da Colônia para o Império. Assim, podemos afirmar a importância da imprensa, não só como fonte histórica, mas também como auxílio na compreensão política da Província do Grão-Pará, no período imperial, como atestam as palavras de Benedicto Monteiro: A imprensa sempre teve papel fundamental na vida política da sociedade paraense. Centenas de jornais circulam em Belém, como órgãos de partidos políticos, associações literárias e congregações religiosas.26

Esse novo veículo de comunicação moderna que surgiu no Brasil na primeira metade do século XIX se multiplicou a partir de 1850 e inúmeros jornais noticiosos, políticos, literários e comerciais passaram a circular no período Imperial, em Belém, conforme atesta Carlos Rocque: Mais de duzentas publicações, entre jornais e revistas, circularam por Belém na época do Império, algo surpreendente para uma cidade pequena. Se dermos o número de 250 para a média de jornais, revistas e outras publicações que circularam em Belém no período imperial, muita gente vai ficar surpresa27

Na segunda metade do século XIX, no Brasil e no mundo, foi considerável o crescimento da indústria editorial e das tiragens de jornais que resultaram no crescimento do público-leitor, conforme relata Noelma Brocanelli:28 Nesse período, a indústria editorial no Brasil e no mundo se multiplicou, as tiragens atingiram números inéditos e, graças à queda do analfabetismo no Brasil, cresceu o público-leitor, principalmente de jornais. É o início da presença da classe média na vida intelectual brasileira.29

Essa influência se fez sentir no Pará, principalmente a partir de 1850, período em que foi crescente o aparecimento de jornais e revistas na Província, principalmente nas décadas de 1860 e 1870. Esse fato veio contribuir para inserir o “povo” paraense no universo da leitura, uma vez que a capital provinciana, ainda nessa época, era marcada pela escassez de escolaridade e não possuía qualquer tradição literária. A imprensa paraense se ampliou e os jornais passaram a ser distribuídos em vários lugares da Região. É justamente nesse período que começaram a circular textos em gêneros variados publicados em jornais, como por exemplo: romances, contos, novelas, crônicas, mesmo que, no início, de forma tímida. É o espaço folhetim se manifestando nos jornais paraenses. O aumento no número de jornais intensificou-se ainda mais nas décadas de sessenta e setenta quando ocorreu o aparecimento de periódicos impressos que circularam em Belém, juntando-se a outros já existentes, conforme comprovam os dados disponíveis nos arquivos do Setor de Microfilmes do Centur. Dentre esses vários jornais que apareceram no período, nomeamos os mais importantes, de acordo com Benedito Monteiro, que circularam entre 1860-1870: Diário do Gram-Pará, A Gazeta Official, 13 de Maio, Jornal do Pará, A Estrela do Norte, Diário de Belém, O Liberal do Pará, Colombo, O Futuro, Baixo Amazonas, A Regeneração, A Constituição, A Província do Pará, A Boa Nova, A Luz da Verdade, A Lanterna e A Aurora. A presença do jornal na segunda metade do século XIX, em Belém, se deu de forma regular. Os periódicos circulavam diária ou semanalmente e neles já se manifestava a publicação de textos com características literárias, de autores brasileiros e estrangeiros. É importante mencionar nesse período de intenso desenvolvimento da economia local, decorrente do “boom” da borracha, a acentuada influência européia na Amazônia, conforme observa Maria de Nazaré Sarges: Belém tentou tornar-se bem mais européia do que amazônica, inclusive tornando-se um verdadeiro centro de consumo de produtos importados. Culturalmente, a cidade foi dominada pelo “francesismo” o que se explica pelo hábito que tinham as famílias ricas em mandarem seus filhos aprimorar sua educação MONTEIRO, Benedicto. História do Pará. Belém: Editora Amazônia, 2006, p. 153. ROQUE, Carlos. História Geral de Belém do Grão-Pará. Belém: Distribel, 2001, p. 63. 28 Mestranda da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo. 29 Fragmento extraído do artigo A Crônica no Correio Paulistano na Segunda Metade do Século XIX, de Noelma Brocanelli, publicado no site http://reposcom.portcom.intercom.org.br 26 27

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Tema geral: Línguas e Literaturas: Diversidade e Adversidades na América Latina em escolas francesas. Essa elite intelectual produzida na Europa vai determinar o novo décor urbano, europeizado e aburguesado.30

O ponto de vista apresentado pela historiadora mostra o quanto o estrangeirismo fez-se presente no contexto paraense, assim como o restante do Brasil. Essa influência não se deu somente em relação ao consumo de produtos importados, mas também no plano intelectual, pois é notável a presença de textos de autoria francesa, inglesa e portuguesa, classificados como crônicas, contos, novelas, romances, presentes nas páginas dos jornais paroaras, junto a textos de autores brasileiros. Esse estrangeirismo aponta para a relevância que tiveram as letras européias na formação cultural do Pará, região que nos anos oitocentos tentava evoluir também no campo das letras. Entre os nomes estrangeiros que circularam na imprensa paraense podemos citar Ponson du Terrail, Pietro Castellame, François Vascoller, Camilo Castelo Branco, Armand Carrel, Teixeira de Vasconcelos, Victor Hugo, Bulhão Pato, Pinheiro Chagas, Nemo, Alexandre Herculano, Condessa Dash, Pe. Teodoro de Almeida, dentre outros. Desses, um número é de autores portugueses que circularam nas colunas dos periódicos e fizeram parte das de leituras da comunidade do Grão-Pará. Apresentamos, a seguir, alguns títulos desses textos, o periódico em que foram publicados e a respectiva autoria portuguesa: “O Beijo” (Diário de Belém/1868), de Teixeira de Vasconcelos, “Em Todas as Idades da Religião” (Jornal do Pará/1868), de Pe. Theodoro de Almeida, “Excellencia” (Jornal do Pará/1869), de Manoel Roussado, “O Salto das Sete Quedas” (A Província do Pará/1876), de Nestor Borba, “A Lenda do Jogo” (A Província do Pará/1876), de Maximiliano de Azevedo, “Os Jesuítas d’hoje” e “Noticias do Ceo” (A Província do Pará/1876), “Os dois imperadores” (Jornal do Pará/1867), de Pinheiro Chagas, “Cinco minutos de prosa” (A Província do Pará/1876), de Nemo “Quem não gosta de dinheiro?” e “O que são as mulheres” (Diário de Belém/1869), de José Victorino da Silva, “Dia de Juízo” (Jornal do Pará/1868), do Padre Antônio Vieira, “O amor feminil” (Diário de Belém/1869), de Alexandre Herculano. Os textos eram publicados nas seções de jornais destinadas à veiculação do literário, e assim como na Europa e no restante do Brasil, atraiam o leitor pelas histórias narradas e pela variedade temática, que envolvia amor, ódio, paixão, traição, religiosidade, ambição. Ressaltamos que a prática de publicação de textos com características literárias na imprensa paraense se desenvolveu e se intensificou nos anos compreendidos entre 1860 e 1870 a exemplo do que ocorreu na Europa e no restante do Brasil. Neste período, podemos observar que vários jornais chegaram a publicar mais de um folhetim diariamente. Como exemplo, temos no jornal Diário de Belém, do dia 22 de maio de 1869, a publicação do XXX capítulo do folhetim A Segunda Mocidade de Henrique IV, de Ponson du Terrail, na primeira página do jornal e logo em seguida, na segunda página, na seção Variedade, encontramos o texto de José Victorino da Silva de Azevedo, Quem não gosta de dinheiro?, publicado sob a rubrica crônica. Isso confirma quanto os jornais paraenses investiram na publicação de textos com características literárias assim como ocorreu em outros lugares em que o folhetim percorrera. 6. Crônicas Portuguesas Nos jornais paraenses publicados no período compreendido entre 1860 e 1870, ocorreu a circulação de textos de autores portugueses. Há registro de romances, contos, crônicas, cartas literárias. No caso deste trabalho, vamos nos deter na análise de textos escritos por portugueses e que foram publicados como crônicas, por aparecerem mais recorrentemente nos jornais Diário de Belém, A Província do Pará e Jornal do Pará. Vale mencionar que para fazer a identificação dos autores lusos recorremos ao Diccionário Bibliográphico Portuguez, de Inocccencio Francisco da Silva e ao Dicionário Bibliográphico Brasileiro, de Sacramento Blake. A forte presença dos textos de autoria portuguesa justifica-se por de ter havido entre Brasil e Portugal relações muitos próximas em decorrência do processo da colonização dos europeus na 30

SARGES, Maria de Nazaré. Belém: riquezas produzindo a Belle-Époque (1870-1812). Paka-Tatu, 2002, p.186.

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Anais do II Congresso Internacional de Estudos Linguísticos e Literários na Amazônia (CIELLA)

América. O fato do Brasil ter sido colônia portuguesa sustentou fortes relações, não só no plano econômico e político, entre os colonizadores e colonizados, mas também na cultura letrada, pois os lusos deixaram heranças significativas, como, por exemplo, a presença de textos com características literárias publicados na imprensa brasileira. A seguir apresentaremos dois textos de autores portugueses que foram publicados na imprensa paraense oitocentista para que se possa observar um dos tipos de leituras que circulava na época. O texto Dia de Juízo, do Pe. Antônio Vieira,31 foi publicado sob a rubrica crônica em uma terça-feira, 28 de julho de 1868, no Jornal do Pará, no espaço Variedade, localizado na primeira página e ocupou metade da quinta coluna e a primeira coluna da página seguinte. É um texto que aborda as profecias evangélicas sobre o dia do juízo final. Faz uma descrição dos temores sobre o que ocorrerá no final dos tempos, como por exemplo o desaparecimento da luz sol e o envolvimento da terra numa escuridão causada por um eclipse como nunca nenhum mortal nunca viu antes, enchentes que inundarão a superfície do planeta com ondas que alcançarão as nuvens e a destruição de todos os homens e junto com eles a sua ambição e vaidade. Além disso, reforça a idéia de repovoação da humanidade sobre o planeta. No plano semântico, este texto de Pe. Vieira, que trata do V Império, vaticina o advento de um novo império português. Sua publicação como crônica em páginas de jornal funciona como uma alegoria para se referir ao contexto social, histórico e político da época. Muitas cousas sabemos do brande dia do juízo, todas grandes e temerosas, e só duas ignoramos. Sabemos que antes do dia do juízo, o sol que sabia a fazer o dia, se há de escurecer e esconder totalmente com o mais horrendo e assombroso eclipse, que nunca virão os mortaes. Sabemos, que a lua, não propor interposição da terra, mas contra toda a ordem da natureza, se há de mostrar entre as trevas, medonhamente desfigurada, e toda coberta de sangue. Sabemos, que as estrellas do firmamente desencaxadas dos orbescelestes, hão de cahir, e como no mundo inferior no tem onde caber; hão de estalar a pedaços, com horrível estrondo, e exhalar-se em vapores ardentes. [...] Sabemos, que assim hão de acabar todos os homens, e que assim hade acabar com elles tudo o que a sua ambição com vaidade fabricou em tantas vidas e seculos, e que este hade ser, enfim, o fim do nosso m mundo, lastimosos, mas não lastimável, porque já não haverá quem se lastime delle. Neste vastíssimo deserto e neste profundissimo silencio de tudo o que foi, sabemos, que se ouvira em um e outro emisferio o som de uma trombeta, a cuja voz portentoza se levantarão dequelle (...) universal todos os mortos, vivos mas não virão na mesma, senão em muito diversas figuras, porque cada um trará no semblante o retrato de sua própria fortuna. Tornando a povoara assim o mundo com todos os que hoje são, com todos os que forão, e com todos os que hão de ser, sabemos que derepente se hade abrir no céu uma grande porta, o que a primeira cousa que todos serão sahir por elle, cercada do respiandores bastantes a escurecer o sól, se ainda houvera, será a mesma sagrada da cruz, em que o redemptor, padeceo, reservada só ella do geral incendia é reunida de todas as partes da christandade, onde esteve dividida e adorada.32

O texto O Beijo, de Teixeira de Vasconcelos,33 foi também publicado sob a rubrica crônica em uma segunda-feira, dia 07 de dezembro de 1868, no jornal Diário de Belém, no espaço Variedade, localizado na segunda página e ocupou a terceira e quarta colunas. Nesse texto o autor tece inúmeras reflexões sobre o ato de beijar, apresentando os seus possíveis significados: respeito, ato de religiosidade, expressão de um sentimento amoroso e até traição, não se propondo a discutir o caráter de negatividade atribuído ao beijo e sim enfatizar a nobreza desse sentimento, entendido como sinônimo de juramento e fidelidade. Nasceu em Lisboa, em 1606. Aos seis anos veio com a família para a Bahia, iniciando os estudos no Colégio dos Jesuítas. Em 1640, Vieira voltou para a terra natal. Adquiriu grande prestígio junto à Corte e foi nomeado pregador-régio. Atacado pela inquisição por defender os judeus, voltou ao Brasil em 1652. 32 Fragmento extraído do texto O dia de juízo, de Pe. Antônio Vieira. 33 Nasceu na cidade do Porto (rua escura), em 1º de novembro de 1816. Filho de Antonio Vicente Teixeira de Sampaio e Dona Maria Emília de Sousa Moreira de Barbosa. Depois de entrar na magistratura, matriculou-se em 1839 na Faculdade Jurídica da Universidade de Coimbra, onde se formou Bacharel em Direito em 1844. Escreveu variedades políticas, históricas e críticas literárias; estudos, perfis e apontamentos biográficos, romances e jornais políticos e literários. 31

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Tema geral: Línguas e Literaturas: Diversidade e Adversidades na América Latina Em quasi todos os casos a que alludimos, o beijo, entre pessoas de costumes para e respeitadoras da lealdade das promessas, tem quase a força e inviolabilidade do juramento, o considera-se profanação, culposa trahir a confiança inspirada por um beijo, faltar ás estipulações que por elle se confirmarão, ou emprega-lo como interprete de paixões indiguas. De geração em geração tem passado para exemplo de funesia memória o beijo dado pelo apostolo infiel na face de Jesus Christo. O sentifo attribuido universalmente á expressão: beijo de Judas, revela até que ponto aquella suave entracção dos beiços, advinhada pelo instinto affectuoso dos homens, foi sempre tida na conta de manifestação sincera, dos sentimentos do coração, e quanto a moral condemna a traição que o emprega para os seus perfidos designios. O beijo foi sempre symbolo precioso dos mais santos e puros affectos. O beijo de Judas é symbolo e typo das traições vis e infames. Dos tempos mais remotos nos conta a historia que o beijo servia então quase universalmente para testemunha de fervor: religioso. Entre os pagãos a homenagem mais pabliez que se tributava aos deuses era um beijo que cada qual dava respeitosamente na sua própria mão, e ainda hoje entre christãos, depois de benzer-se, muita gente pondo em cruz o dedo polegar e o indicador os beija em prova de respeito ao symbol, da Redempção. Não é menos antigo o costume de beijar a mão das pessoas que nos merecem respeito e, veneração. Plínio, que lhes quiz indagar a origem, assevera que é de tradição iminnemorial. E de feito encontra-se nos versos de Homero, nas lamentações de Job, e nos costumes da antiga Roma, onde tribunos, consules e dictadores davam a mão a beijar aos seus inferiores. Depois os Imperadores reservavão esta honra aos grandes dignatarios, e o povo contentava-se de lhes tocar no manto ou de os saudar de longe levando a mão á bocca.34

Assim como esses textos de autoria lusa, outros foram publicados nos jornais paraenses servindo como deleite para os leitores dos periódicos. 7. Considerações finais Este trabalho procurou apreender a relação jornal e literatura que se deu de forma efervescente na Província do Pará na segunda metade do século XIX, especificamente nas décadas de sessenta e setenta, reforçando que o espaço Folhetim, Miscelâneas, Variedades e Literatura tornaram-se uma rotina do jornalismo brasileiro, assim como da capital provinciana paraense. A cidade de Belém, seguindo os mesmos caminhos de outros lugares do Brasil, começou a divulgar nos jornais impressos textos em diversos gêneros, como por exemplo, o romance, a novela, o conto, as cartas literárias com o fito de atrair leitores. Foi um sucesso tamanho se considerarmos a capital da província como uma cidade pequena, isolada geograficamente dos grandes centros urbanos e com um número de escolas ainda pequeno. Essa divulgação contribuiu para que as pessoas na Província do Grão-Pará tivessem acesso à leitura de textos com características literárias. É nesse contexto que circularam as crônicas portuguesas que contribuíram com o desenvolvimento da leitura ao serem publicadas em páginas de um veículo de comunicação acessível ao “povo”: o jornal. A presença desses textos portugueses nos periódicos paraenses reforça a influência dos lusos na Amazônia não somente nos aspectos sociais e econômicos, mas também na divulgação da cultura letrada na Região, como heranças significativas que, de certa forma, contribuíram para a formação de uma literatura de expressão amazônica. As crônicas que apareciam nos periódicos, naquele tempo, tinham primeiramente o objetivo de comentar os principais fatos ocorridos na sociedade referentes à moda, política, cultura, economia, religião, etc. – e resultaram no desenvolvimento desse gênero narrativo chegando à sua acepção moderna como é concebida hoje, que trata de acontecimentos cotidianos, valendo-se de uma linguagem leve, envolvida pelo seu caráter poético. Neste sentido, reafirmamos importância do jornal na criação de certos gêneros narrativos, como o conto e a crônica, além dos textos consagrados, escritos por autores ilustres, a exemplo do romance, conforme afirma Socorro de Fátima Pacífico Barbosa (2007). 34

Fragmento extraído do texto O beijo, de Teixeira de Vasconcelos.

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Enfim, os textos que percorreram as páginas dos periódicos paroaras contribuíram para que o hábito de ler se tornasse cotidiano na vida de leitores que pertenciam a uma comunidade que não tinha qualquer tradição literária, além de servirem para analisar a relação jornal literatura, adentrar nos estudos sobre a memória do livro e da leitura no Pará e examinar as condições de leitura e escrita na segunda metade do século XIX. É um estudo que pode contribuir com futuras pesquisas sobre a relação Jornal/Literatura no século XIX. Referências AMMIRATO, Giacomo, Homens e jornais. Rio de Janeiro: Graf. Ed. Amora, 1963. AMORA, Antônio Soares. História da Literatura Brasileira. 8ª ed. São Paulo, Saraiva, 1974. ARRIGUCCI JR., Davi. “Fragmentos sobre a crônica.” – Folha de São Paulo, 01/05/1987. BAHIA, Juarez. Três fases da imprensa brasileira. Santos/São Paulo: Presença, 1960. BERND (Zila), Littérature brésilienne et identité nationale (Dispositifs d’exclusion de l’Autre), Paris, L’Harmattan, 1995. BLAKE, Sacramento. Dicionário Bibliográphico Brazileiro. Rio de Janeiro: Imprensa Nacional, 1899. BARBOSA, Socorro de Fátima Pacífico. Jornal e Literatura: a imprensa brasileira no século XIX. Porto Alegre: Nova Prova, 2007. BOSI, Alfredo. História Concisa da Literatura Brasileira. 34ª. ed. São Paulo: Cultrix, 1994. BROCA Brito. Românticos, Pré-Românticos e Ultra-Românticos. São Paulo: Livraria e Editora Polis Ltda, 1979.

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O IMAGINÁRIO DO PODER NA NARRATIVA DE ALINA PAIM Ana Leal CARDOSO (Universidade Federal de Sergipe)

RESUMO: este trabalho analisa o imaginário do poder expresso tanto nas relações familiares quanto nas relações escolares, envolvendo, principalmente, as personagens professoras nos três primeiros romances da escritora brasileira Alina Paim, a saber: Estrada da liberdade (1944), Simão Dias (1949) e A sombra do patriarca (1950), baseado na crítica feminista defendida por Constancia Duarte, Eliane Campelo, Lucia Zolin, Mary Del Priore, entre outras. Pretende-se mostrar a importância dos discursos das professoras, assim como suas atitudes em relação à vida, pois questionam o velho sistema patriarca. PALAVRAS-CHAVE: literatura, feminismo, professor, Alina Paim.

ABSTRACT: this present paper analyses the imaginary of the power expressed through the family relationship and, also by the females teaches in the universe of the school, showed in the three first novels by Alina Paim: Estrada da liberdade ( 1944), Simão Dias (1949) and A sombra do patriarca (1950), based on the feminist literary criticism defended by Constância Duarte, Eliane Campelo, Lucia Zolin, Mary Del Priore and many others. We intend to show that the discursive practice of the female teaches as well as their attitudes toward life are important, considering that they questioned the old system of patriarchal society. KEY WORDS: literature, feminism, teacher, Alina Paim.


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1. Introdução Este trabalho é parte de uma pesquisa, ainda em andamento, de resgate da obra da escritora sergipana Alina Leite Paim, nascida a 1º de outubro de 1919 na cidade de Estância. Embora tendo produzido mais de dez romances, além de quatro obras dedicadas ao público infantil, Paim é um desses casos de escritoras esquecidas pela crítica literária e pelo público em geral. Só recentemente essa romancista tem sido objeto de estudos no espaço acadêmico da Universidade Federal de Sergipe, graças ao pioneirismo das nossas pesquisas, voltadas para o resgate das obras de escritoras sergipanas do século XX, iniciadas no primeiro semestre de 2007, ocasião em nos deparamos com: Estrada da Liberdade e A sombra do patriarca. Encontra-se apoiado em estudos bibliográficos, e dialoga com a crítica feminista defendida por Constancia Duarte, Eliane Campelo, Lucia Zolin, Mary Del Priore, entre outras, por acharmos que proporcionam uma reflexão sobre a condição da mulher no âmbito sociopolítico. Pretende-se, sobretudo, mostrar que as narrativas de Paim voltadas tanto para o espaço privado, em que prioriza as relações familiares, quanto para o espaço público (a escola) trazem as marcas do poder falocêntrico. Enveredar pela crítica feminista, visando a analisar as questões do poder na obra de Alina Paim é, no mínimo, desafiar o falogocentrismo no campo dos estudos literários. Segundo Lucia Zolin, “já vivemos tempos piores; nossas práticas culturais e discursivas foram, durante séculos, exclusivamente construídas a partir da visão soberana do gênero masculino, sempre a serviço do poder patriarcal” (ZOLIN, 2003, p. 7). A incorporação da ideologia feminista pela Academia, fez surgir grupos de pesquisa voltados para os estudos e resgate das questões sobre a mulher, nos mais variados campos do saber. É neste espaço que situamos o GELIC- Grupo de Estudos de Literatura e Cultura da UFS, que incorpora diferentes linhas de pesquisa, estando uma delas voltada para os estudos da literatura de produção feminina do século XX, no estado de Sergipe. Pesquisas voltadas para a mulher, no mundo ocidental, dão conta de que sua situação não é estática na história e que foram-se processando transformações nas mais diversas esferas da vida social (políticas, religiosas, econômicas e culturais etc.) nas quais as mulheres se notabilizaram como responsáveis diretamente por si mesmas. No entender de Carlos Bauer “tais mudanças desaguaram no que convencionamos chamar de sociedade contemporânea, cujas raízes estão fincadas no solo histórico da Europa” (BAUER, 2001, p. 12). Excluída de uma efetiva participação na sociedade, da possibilidade de ocuparem cargos públicos, de assegurarem com dignidade sua própria sobrevivência e até mesmo impedidas do acesso à educação superior, as mulheres ficavam ‘trancadas’, fechadas dentro de casa, torres e conventos, construídos pelos donatários do poder: pais, maridos, irmãos, etc., de modo que se transformaram em objetos de desejo (e prazer), muitas vezes enredadas e contritas na arte e ficção masculina. Vejamos um pouco sobre a história de luta das mulheres. 2. As história de luta das mulheres através dos tempos Qualquer pessoa que investigue a história das mulheres, por menos observadora que seja, notará, sem grandes dificuldades, as diferenças de padrão entre o homem e a mulher em nossa cultura. Com certeza, nota que o espaço da mulher em relação ao do homem mostra-se bastante restrito, mesmo na atualidade, quando, por meio de um questionamento permanente, as mulheres têm procurado ampliar seu espaço. Não é fácil, porém, para a mulher, mudar tal situação, considerando-se que a maioria dos homens não se encontra disposta a lhe ceder os privilégios que lhes têm pertencido historicamente. Deste modo, as relações entre ambos tornam-se o lugar de luta pelo poder, assumindo, assim, uma dimensão inquestionavelmente política. Porque o feminino, ao longo dos tempos, sempre foi discriminado e, portanto, colocado em segundo plano? Essas questões parecem fundamentais para a compreensão do problema das relações entre o masculino e o feminino. Embora a nossa leitura não esteja pautada nas teorias do mito defendidas por críticos como Joseph Campbell, Mircea Eliade, entre outros, vale mencioná-las, considerando-se que elas servem

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também para alargar as tentativas de dar respostas às questões do poder, ao retomar as bases das sociedades primitivas. Assim, José Carlos Leal − estudioso das mitologias − ao analisar os mitos do feminino em diferentes culturas afirma: “à proporção que a espécie humana foi se destacando dos animais chamados irracionais e, através da cultura, se distanciando da natureza, o sexo masculino teve que enfrentar sérias dificuldades de relacionamento com o feminino” (LEAL, 2004, p.34). Na sua concepção, a fêmea, embora muito parecida com o macho, possuía algumas particularidades que a tornava estranha a ele e profundamente inquietante como, por exemplo, as suas relações com o sangue, através da menstruação e do parto. O receio em relação ao feminino aumentou, consideravelmente, nas sociedades patriarcais na Idade Média, concretizado nos fortes tabus referentes, além do parto e da menstruação já mencionados, à nudez do corpo feminino, o que constitui numa forma para consolidar a reprodução, a educação e o trabalho das mulheres, geralmente voltado para os cuidados de saúde, fossem elas parteiras, curandeiras ou médicas, eram também as farmacêuticas e as cirurgiãs, mas nunca educadoras, a não ser no interior do seu próprio lar. Na Europa desse período, a família caracterizava-se por ser bastante numerosa; o núcleo básico era o casamento. Ao redor deste, agrupavam-se outros membros, como: irmão e irmãs solteiras, tios e tias, sobrinhos, além dos serviçais, todos considerados membros da estrutura familiar. A figura da mulher, principalmente a da mãe, tinha significado diferente do atual; eram entendidas como reprodutoras. Não existia o conceito de amor paterno, tal como é visto na atualidade. A partir do século XVII grandes mudanças se processaram. O culturaista Carlos Bauer (2001, p. 58) assinala que tanto o trabalho remunerado do homem quanto o trabalho domestico da mulher eram reconhecidos como economicamente indispensáveis para suprir as necessidades familiares. É preciso destacar que a noção de trabalho como a concebemos na atualidade, tem suas origens nos séculos XVII e XVII, com o fortalecimento da sociedade capitalista. Segundo Bauer, a partir daquele período a família burguesa passou a ser nuclear, “formada unicamente pelos pais e filhos, o que contribuiu para a transformação do conceito de trabalho domestico, sua significação econômica e a atitude social em relação a este” (BAUER, 2001, p. 59). A burguesia fez surgir diferentes tarefas desenvolvidas pelas mulheres. Apareceu, então, a figura da mãe, do amor materno e da infância; consolidou-se a idéia da mãe responsável e dedicada à sua família, o que repercutiu na vida da condição da mulher de hoje. No século XVIII, com a Revolução Industrial, definiu claramente as funções da mulher (e as do homem), cabendo-lhe o papel de executar as tarefas domésticas, cuidar da prole e educá-la, sem que isso fosse considerado ‘trabalho’, mas um ato de amor em prol da felicidade da família. Assim, cabia à ‘rainha do lar’ o papel de preparar as filhas para o casamento, a vida social e cuidar dos filhos, a única herança que lhe cabia. Todavia, no final deste mesmo século, contaram com a oposição de vozes que protestaram contra esse ‘estado coisa’ a que estava relegada a mulher; dentre elas destacamos a da inglesa Mary Wollstonecraft que escreve artigos manifestando-se contra a sociedade vigente, altamente castradora. Na primeira metade do século XIX, as mulheres intensificaram sua atividade política, passando a reivindicar direitos políticos, tais como o divorcio, e a educação superior. Na segunda metade deste mesmo século, suas idéias foram difundidas em diferentes partes do mundo, o que contribuiu para fortalecer a luta por melhores condições de viva, salários dignos e condições satisfatórias de trabalho, associando-se com o movimento sindicalista internacional, cuja sede era na Europa, vindo mais tarde a criar o movimento feminista. Segundo Eliane Campelo, o feminismo surge como um método crítico apropriado para analisar fenômenos sociais e culturais, incluindo textos literários; a esse respeito ressalta: “Assim, como postulado básico, o feminismo crê que toda escritura está marcada pelo gênero, o que significa dizer que a mulher ou o homem deixam inscritos na linguagem suas visãoe de mundo, suas experiências e circunstancias” (CAMPELO, 1995, p. 100).

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3. Alina Paim e a tradição das narrativas de denuncia Mary Del Priore (2000) destaca que a história das mulheres engloba aspectos diversos como o mundo da família, da criança, do trabalho, da literatura, pois “trata-se da história do seu corpo envolvendo sua sexualidade, a violência que sofrem e que praticam; dos seus sentimentos, derrotas e amores” (DEL PRIORE, 2000, p. 8). Portanto, há que se lançar um olhar atento para as mulheres que escrevem sobre mulheres, pois trazem, muitas vezes, as marcas de si mesmas, de suas ideologias, metaforizadas pela ação das personagens. Baseada nessa perspectiva da escrita que se constrói a partir da ‘angustia’ da denuncia, fomos instigadas a perguntar a escritora Alina Paim − numa recente entrevista em sua casa, no Mato Grosso do Sul, intitulada “Conversa com Alina Paim” (a ser publicada), datada de 13 de fevereiro do corrente ano − se ela se considera uma mulher adiante do seu tempo, uma feminista. De pronto respondeunos: “Se sou feminista não sei, mas sei que sou verdadeira. A verdade é o meu grande compromisso, para com o leitor. Estou sempre ao lado dela, e, se isso é ser feminista, então eu sou”. As obras dessa escritora priorizam as personagens femininas, mostram a problemática da mulher em diferentes situações; além disso, evidenciam uma escrita que se identifica pela consciência de uma tradição de predecessoras, no estabelecimento de um discurso próprio, transgressor, do ponto de vista da sociedade ocidental androcêntrica. Na cidade do Rio de Janeiro, onde morou por mais de 60 anos e, segundo ela própria, amou profundamente, Alina foi Militante do Partido Comunista Brasileiro durante mais de três décadas, tendo escrito artigos para revistas e jornais do Partido. Essa brasileira parece ter ‘incorporado’, ao nascer, o espírito guerreiro da socilaista soviética Rosa de Luxemburgo, revolucionária assassinada em Berlim em 1919, ano do seu nascimento. Sensível às causas humanas, Paim produziu uma literatura que instaura um universo próprio à investigação do feminino, tamanho é o ímpeto das forças sociais e culturais que envolvem o imaginário da mulher moderna. 4. As personagens de Paim e o descentramento do poder A nossa proposta de análise do poder expresso nas obras corpus deste trabalho Estrada da liberdade, Simão Dias e A sombra do patriarca mostram a mulher vivendo em mundos diferentes, porém vitimadas pelas discrepâncias próprias da sociedade patriarcal, que a pune abstendo-a, muitas vezes, até mesmo da instrução. Em Estrada da liberdade, Paim apresenta a história de Mariana, uma jovem de dezoito anos que deixa a cidade de Simão Dias, interior de Sergipe, ainda em criança para morar com a madrinha Dona Edite, num bairro operário denso de problemas, na capital baiana. A narrativa flagra o momento em que a personagem Marina passa a lecionar no internato particular dirigido por freiras da congregação mariana, e onde havia estudado parte da sua vida. O romance inicia-se com a protagonista central prostrada no pátio do colégio, ansiosa por saber o quanto seria o seu ‘ordenado’ de professora, pois ingressara num emprego pouco ‘apropriado’ para jovens da sua idade. A narrativa ressalta que Mariana “durante o tempo todo em que falara com a madre Superiora sobre o emprego, não lhe saia do pensamento o ordenado, mas...quando ia perguntar o ‘quanto’ faltava-lhe coragem” (PAIM, 1944, p. 7). De acordo com o enredo, Mariana esperava receber “Uns trezentos cruzeiros. Se não fosse, menos de duzentos não poderia ser” (PAIM, 1944, p. 11). Porém ao final da tarde recebeu um envelope em que continha apenas “cento e vinte cruzeiros” (PAIM, 1944, p. 11). O que a deixa baste desapontada. A narrativa mostra a institucionalização do poder patriarcal, regido por princípios em que o trabalho da mulher vale menos que o do homem, embora exercendo a mesma função. Considerandose que a narrativa está centrada no nordeste do Brasil da década de 30, entendemos que o interesse da professora em tela, em relação ao salário foge um pouco à realidade daquela época, pois, segundo Del Priore, a ‘boa’ professora estaria muito pouco preocupada com seu salário, considerando-se que “toda a sua energia seria colocada na formação de seus alunos e alunas; esses constituíam sua família; a escola seria seu lar e, como se sabe, as tarefas do lar são gratuitas, apenas por amor” (DEL PRIORE, 2000, p. 466).

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Vale lembrar que para muitas jovens, a exemplo da própria personagem, o trabalho remunerado se colocava como uma exigência para a sua própria sobrevivência, e o magistério apresentava-se como um trabalho ‘digno’ e adequado para as mulheres, contudo, sofriam discriminação por parte da instituição a que serviam, sendo, muitas vezes, entendidas como “ quebra-galhos’, portanto, sem muita importância. A necessidade de trabalhar cercava as mulheres professoras de muitos cuidados e impunha normas no seu modo de agir e de conduzir a vida; ao mesmo tempo, lançava-as num espaço público, contribuindo para a aquisição de autonomia. Entretanto, mesmo possuindo os meios para a sua auto-sustentação, a mulher não podia tomar iniciativas que contrariassem as regras, inclusive não era visto com bons olhos o fato de ela possuir um nível de instrução mais elevado do que o ‘normal’, pois era encarada como uma ameaça aos arranjos sociais e à hierarquia dos gêneros de sua época. Segundo Rose Marie Muraro, a mulher no inicio do século XX é explorada em relação ao homem, “ganha no máximo a metade do que o homem pelo mesmo trabalho” ( MURARO, 2000, p. 187). Assim, entendemos que Alina Paim apresenta um quadro da sociedade do Brasil emergente, em vias da industrialização, em que a condição da mulher, embora um pouco melhor em relação àquela do século anterior, é marcada pela exploração e pela desigualdade de condições de vida. Porém, marina não é conivente com essa ‘falha’ social, ela questiona os direitos de entre ambos os sexos. Como logo mais é aprovada em concurso público para lecionar em uma escola pública, na periferia da capital baiana, pede demissão, e segue em busca de dias melhores. Outro aspecto explorado pela narrativa paimiana é a vida das jovens (futuras professoras) no interior dos conventos. O grupo de internas era obrigado a usar roupas grossas, e quentes, para evitar que vissem as siluetas dos corpos umas das outras. Além disso, ler era uma das poucas formas de ‘vencer’ as normas estabelecidas, “de sentir-se livre e conhecer a vida” (PAIM, 1944, p. 16). Assim, o embate entre o imaginário do pai (com suas severas leis) e as necessidades individuais representam, numa visão mais direta, uma via crusis que se inicia na inadequação das regras que procuram ajustar os relacionamentos mútuos dos seres humanos na família, no Estado e da sociedade. O relato ficcional evidencia o cotidiano das jovens no interior do convento, aproximando-o do cotidiano de qualquer instituição escolar, planejado e controlado. Seus movimentos e ações são distribuídos em espaços e tempos regulados e reguladores. Por isso, tanto Mariana quanto as demais internas estavam sempre ocupadas, envolvidas em atividades produtivas ou em oração. Portanto, no convento, espaço do confinamento (às vezes claustrofóbico), o tempo é disciplinar; como fato cultural precisa ser interiorizado. Portanto, a formação/treinamento das futuras professoras se faz também pela organização e ocupação de seu tempo, pelas permissões e proibições. O romance Simão Dias trata da história da personagem Maria do Carmo, órfã de mãe aos seis anos, e entregue as cuidados das três tias solteironas, logo após a morte desta. Estas, não tendo recebido instrução suficiente, pois o velho Bernardino entendia ser ‘ desnecessário’ para mulheres, entregavam-se tanto ao trabalho na máquina de costura quanto aos mexericos nas calçadas das vizinhas, suas diversões. As duas mais velhas, Iaiá e Naná não dispensavam qualquer carinho para com a pequena recém-chegada, colocando-a, muitas vezes, de castigo, submetendo-a a uma rígida educação, o que demonstra que os ‘laços de família’, elemento estruturante das narrativas de Paim, são atados a partir do poder centralizador do pai, pois as solteironas representam o desdobramento do velho Bernardino. A narrativa mostra ainda que Do Carmo dividia seu tempo entre as tarefas de casa, a escola da professora Otaviana e as aulas particulares da jovem professora Luzia. A primeira representa a tradição, no que diz respeito á educação, pois era ríspida, e indelicada no trato para com as crianças; mesmo assim era admirada por todas as famílias, afinal “trazia os pequeninos na linha” (PAIM, 1949, p. 26). A outra era dócil, educada, sensível e amiga de todas as crianças. A narrativa mostra o engajamento social da romancista através das relações entre professor/aluno. A personagem Luzia é uma mulher que tendo vivido na capital baiana, aprendeu a viver de forma mais aberta, o que a torna capaz de lutar por uma educação mais humana e igualitária. Otaviana, ensimesmada e orgulhosa pelo ‘reconhecimento’ do seu trabalho, se quer dava conta da fome das crianças. O final do romance

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mostra a personagem Do Carmo seguindo com a professora Luzia para a capital sergipana, o que abre espaço para novas possibilidades de vida. Em A sombra do patriarca – romance que apresenta uma elenco de personagens diversificado − delineia-se também o perfil da escritora comprometida com a história, a partir do ponto de vista feminista. Ao dar voz a alguns personagens como Raquel, Leonor e, até mesmo, a professora Gertrudes, uma socialista, leitora de Tolstoi, viabiliza a possibilidade de superação dos padrões sociais e estruturais vigentes, capaz de instalar o caos. Este, porém, não é de todo negativo, um vez que leva a personagem central à reflexão, questionando-se sobre à condição das mulheres da fazenda Fortaleza, propriedade de Ramiro, o algoz das mulheres. A referida professora exerce um papel importante na vida da jovem Leonor, que intentava seguir a carreira médica, porém não tem coragem de contar à família. Seu tio Ramiro, por exemplo, entendia que “nem todas as profissões são próprias para uma moça” (PAIM, 1950, p. 46). Após conhecer a professora que a incentiva, juntamente com a prima Raquel, resolve romper com os grilhões, e segue para o Rio de Janeiro em busca da realização do sonho de ser independente. Segundo Weber (2004, p. 142), a sociedade patriarcal tem na dominação tradicional seu estatuto de legitimidade. Nesse modelo de sociedade, o poder decisório é, geralmente, regulado pela tradição ou depende do arbítrio do Senhor, dessa maneira, o espaço ocupado pela mulher na esfera do poder é praticamente inexistente. Além disso, por pertencer á camada menos favorecida, seu acesso à educação e à propriedade também são limitados, ficando na dependência do marido ou outro homem da família. 5. Considerações finais Não obstante o fato de haver mitos que entenderem a mulher como um ser misterioso, associando-a à imagens demoníacas, que a torna fraca e incapaz, por ocasião das transformações do seu corpo, a autora intenta desmistificar essa fragilidade, ao usar a literatura como o lugar da denuncia contra o poder expresso tanto no seio da família, representado pelo patriarca, quanto aquele institucionalizado ( representado pelos dirigentes das escolas públicas, Otaviana; pelo convento, a madre superiora e algumas das freiras )que prima por entendê-la como uma ‘célula menor’. Conforme vimos, o discurso das professoras parece assumir o caráter do desabafo autoral, considerando-se que Alina Paim fora uma professora comprometida não apenas com as questões das mulheres, mas com a luta por dias melhores para todos. Ao tecer o discurso da ‘denuncia’, a escritora parece convencida da capacidade intelectual e física, além da superioridade moral feminina, pois a ternura e a capacidade de amar – elementos indispensáveis à mulher no imaginário patriarcal – seriam inerentes e inatos a ela. Apenas mostra que não basta a natureza ter-lhe dado esse dons. É preciso uma educação culta e fortalecida na prática do dever e da razão, para que a mulher saiba como utilizar esta ‘superioridade’ moral em benefício do Outro. Finalizando, vale lembrar que os romances analisados propõem um novo modelo de mulher, aquele que se encontra no extremo oposto dos ideais da sociedade patriarcal, revelador da verdadeira natureza feminina capaz de desinfetar sua alma dos falsos discursos teóricos, que atordoavam as mentes femininas com promessas e, ao fim, mantinham-nas submissas aos seus caprichos através de uma educação da futilidade. As personagens professoras, assim como Raquel e Leonor, se inscrevem como uma ruptura da autora com o modelo tradicional, pois trazem, a partir das suas transgressões, a imagem da mulher espiritualizada, companheira, dona de si mesma. Além disso, a ação dessas personagens, em prol de dias melhores, parece coincidir com aquela empreendida por Alina Paim que, assim como suas predecessoras, ajudou a escrever algumas páginas na historia das mulheres, fazendo da sua vida uma mostra da luta contra a marginalização social e legal imposta as mulheres. Buscando, deste modo, uma forma de vida mais completa, uma identidade menos mutilada.

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Referências BAUER, Carlos. Breve história da mulher no mundo ocidental. São Paulo: Edições Pulsar, 2001. CAMPELO, E. A. A escrita-mulher em: Novela negra com argentino, de Luisa Valenzuela. In: Rompendo o silencio. NAVARRO, M. Hope. Porto Alegre: Editora da Universidade/ UFRGS, 1995. CARDOSO, Ana L; GOMES, C. S. (orgs.). Marcas do feminismo em Alina Paim. In: Do imaginário às representações na literatura. São Cristóvão: Editora da UFS, 2007. LEAL, J. C. A maldição de Eva. São Paulo: DPL Editora, 2004. MURARO, Rose M. A mulher no terceiro milênio. Rio de Janeiro: Editora Rosa dos Tempos, 2000. PAIM, A. L. Estrada da liberdade. Rio de janeiro: Editora Leitura, 1944. ______. Simão Dias. Rio de Janeiro: Editora Casa do Estudante, 1949. ______. A sombra do patriarca. Rio de Janeiro: Editora Globo, 1950. PRIORE, M. D. (org.) A história das mulheres no Brasil. São Paulo: Contexto, 2000. WEBER, M. Economia e sociedade. Brasilia, DF: Editora da Universidade de Brasília, 2004. ZOLIN, L. O. Desconstruindo a opressão. Maringá: EDUEM, 2003.

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A CONSTRUÇÃO DA IDENTIDADE NO GÊNERO FÓRUM DE DISCUSSÃO DE CURSO ON LINE Ana Lygia Almeida CUNHA (Universidade Federal do Pará/Pontifícia Universidade Católica de São Paulo)

RESUMO: Observar como participantes de cursos on line se comportam na interação que se dá em fóruns de discussão no sentido de se comprometer com a identidade que querem construir dentro desse domínio particular é o objetivo deste trabalho. Para isso, serão levados em consideração a maneira como se engajam com seus interlocutores, os papéis específicos que assumem nessa interação e os recursos que utilizam para participar das experiências e atividades desse espaço de interação. Assim será possível compreender em que sentido “os gêneros moldam as intenções, os motivos, as expectativas, a atenção, a percepção, o afeto e o quadro interpretativo” (BAZERMAN, In HOFFNAGEL; DIONISIO, 2006, p. 102). Pretende-se, com a pesquisa, evidenciar como o fórum de discussão pode levar os participantes a adotar atitudes de acordo com as possibilidades de ação deste gênero particular. PALAVRAS-CHAVE: Linguística; Análise de Gêneros; Educação On Line.

ABSTRACT: “Observe participants in online courses as they behave in the interaction that occurs in the discussion forums to engage with the identity they want to build within that particular area is the objective of this work. This will take into account the way they engaged with their partners, the specific roles they assume that interaction and the resources they use to participate in experiences and activities of this area of interaction. So it will be possible to understand in what sense “the genres shape the intentions, the motives, expectations, attention, perception, affection and the interpretative framework” (Bazerman, In HOFFNAGEL; DIONISIO, 2006, p. 102). With this research, it’s possible to show how the forum of discussion may lead the participants to take actions in accordance with the possibilities of action of this particular genre. KEY WORDS: Linguistics, Genres Analysis, On Line Education.


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1. Introdução Na realização do presente trabalho, observou-se como alunos de dois cursos on line se comportaram na interação que se deu em fóruns de discussão de tais cursos no sentido de se comprometerem com a identidade que queriam construir dentro desse domínio particular e tornando-se, juntamente com as professoras do curso, mediadores nessa interação – deixando de ser meros participantes para se tornarem líderes. Para isso, levou-se em consideração a maneira como se engajaram com seus interlocutores e os papéis específicos que assumiram nessa interação, além dos recursos que utilizaram para participar das experiências e atividades desse espaço de interação. Na pesquisa, levou-se em consideração, também, a função que o fórum tem em cada um dos cursos. Acredita-se que, dessa forma, é possível verificar como o fórum de discussão pode levar os seus participantes a adotar atitudes de acordo com as possibilidades de ação deste gênero particular. 2. Os gêneros e a identidade Em The Languages of Edison’s Light (1999), Charles Bazerman tenta mostrar como Thomas Edison construiu sua identidade. Para o autor, Edison conseguiu firmar-se como inventor e industrial por meio da produção de textos que faziam parte de sistemas de gêneros que eram comuns em seu tempo e que ocorriam dentro de sistemas de atividades. Na opinião de Bazerman, além das invenções que o celebrizaram e pelas quais até hoje é lembrado, Thomas Edison soube coordenar extremamente bem tais gêneros. O exemplo do inventor serviu para ilustrar a tese de que os gêneros, assim como os sistemas de atividades dos quais fazem parte, são capazes de nos fornecer as formas de vida dentro das quais construímos e seguimos as nossas vidas: “ao percebermos um enunciado como sendo de um certo tipo ou gênero, engajamo-nos numa forma de vida, juntando falantes e ouvintes, escritores e leitores em relações particulares de um tipo familiar ou inteligível” (2006, p. 101).

Após entrar em contato com um novo gênero, o participante das atividades ali desenvolvidas se esforçará para se engajar com os demais participantes – que ocupam papéis específicos –, usando recursos peculiares ao gênero. Para isso, ele “adota um estado mental, fixa suas expectativas, planeja de acordo com esses elementos e começa a agir com essa orientação” (Idem, p. 101-102). No momento em que começar a produzir textos naquele gênero, passará a pensar ativamente e a produzir enunciados que são reconhecidos pelos demais participantes como pertencentes àquela forma de vida, adotando os sentimentos relacionados ao status de participante das atividades ali desenvolvidas. Segundo Bazerman, a extensão particular de sentimentos, impulsos e posições que você adota ao orientar-se para aquele mundo desenvolve-se na interação com as pessoas e atividades dentro daquele mundo. Dessa maneira, os gêneros moldam as intenções, os motivos, as expectativas, a atenção, a percepção, o afeto e o quadro interpretativo. O gênero traz para o momento local as ideias, os conhecimentos, as instituições e as estruturas mais geralmente disponíveis que reconhecemos como centrais à atividade.” (2006, p. 102-103)

O autor trata também do exemplo do contribuinte do Imposto de Renda, que, munido dos sentimentos da cidadania, da responsabilidade e dos interesses econômicos, declara suas transações financeiras produzindo um documento que define a sua identidade de contribuinte. Citando trabalhos de outros autores, Bazerman chama a atenção para o que acontece com o aluno de curso superior ou de pós-graduação, que se esforça, na realização de seus trabalhos acadêmicos, “para localizar sua voz dentro das formas intertextuais profissionais, dentro das quais ele gradualmente desenvolve uma identidade profissional” (p. 104).

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3. O gênero fórum de discussão A ausência de interação, durante muito tempo, serviu de argumento aos desafetos da educação a distância. O advento da Internet, porém, e, mais especificamente, os fóruns de discussão, possibilitaram a interação de professores e alunos dando novo impulso a essa modalidade educacional. A ferramenta passou a ser vista como vital para o processo de ensino-aprendizagem em cursos on line. Porém, é necessária a reflexão sobre as implicações de seu uso com o objetivo de torná-la mais eficaz – e isso implica o estímulo à participação dos alunos nessa interação –, o que certamente contribuirá para a construção de uma metodologia de ensino on line. Por ser não-simultânea (assíncrona), a interação em fóruns de discussão assume grande importância no processo de ensinar e aprender por meio da modalidade a distância, pois, além de se prestar a resolver problemas decorrentes do fato de não haver uma relação em presença entre professor e aluno e entre alunos, deve facilitar a construção do conhecimento por parte destes. Para começar, é importante que se observe, aqui, o perfil dos alunos dos dois cursos cuja participação foi analisada: o Curso On Line de Leitura e Produção de Textos e o Curso de Especialização Ensino-Aprendizagem da Língua Portuguesa, ofertados pela Faculdade de Letras da Universidade Federal do Pará, sendo o primeiro vinculado à Pró-Reitoria de Extensão e o segundo, à Pró-Reitoria de Pesquisa e Pós-Graduação. A clientela do curso de extensão é bastante heterogênea, composta por alguns alunos do ensino médio, que se preparam para os processos seletivos de instituições de ensino superior, e, principalmente, por profissionais que se queixam de dificuldades, em seu dia-a-dia, com as atividades de leitura e produção de textos. Trata-se, portanto, de um grupo de pessoas que estudaram a língua materna ao longo se sua formação escolar, mas não se especializaram no assunto. Diferentemente, o alunado do curso de especialização consiste basicamente de professores de língua portuguesa e de literaturas da língua portuguesa que atuam no ensino fundamental e/ou médio. As exceções são profissionais de áreas afins, como pedagogos – a maioria. Outro aspecto a ser considerado é o fato de os alunos do curso de extensão utilizarem o fórum, principalmente, para a mera interação com professores e colegas. Isso se deve, provavelmente, ao tipo de atividades que constituem o curso. Tais atividades, por terem como objetivo geral levar o aluno a desenvolver as competências e habilidades envolvidas na leitura e na produção de textos (trata-se, portanto, de um abordagem instrumental da língua), são essencialmente práticas. Evita-se, assim, a abordagem teórica dos aspectos a serem tratados. Já no curso de especialização, que tem como principal meta a formação continuada de professores que já atuam na formação de leitores e produtores de textos (seus alunos) e que, logicamente, são iniciados no estudo dos fenômenos linguísticos, graças a sua formação no nível superior, as atividades são teóricas e se dão a partir da leitura de textos científicos. Tais diferenças, naturalmente, levam ao uso diferenciado da ferramenta de interação de que trata este trabalho. Os alunos do curso de extensão tendem a participar do fórum com o intuito, principalmente, de conhecer melhor professores e colegas enquanto, para os alunos do curso de especialização, o fórum se torna um espaço para tirar dúvidas junto a professores e para verificar se a sua compreensão do conteúdo estudado condiz com a dos colegas. Das diferenças referidas decorre a diferença quanto à busca da identidade por parte dos alunos de cada um dos cursos. 4. Tornando-se um participante/mediador Observe-se o trecho da interação de três alunos e uma professora do curso de extensão, transcrito abaixo. Trata-se da discussão acerca do conteúdo da primeira atividade, sobre dificuldades na produção de textos escritos. Para dar início à interação, as professoras postaram a seguinte orientação: “Converse com os outros alunos do curso sobre as principais dificuldades encontradas por você ao produzir um texto escrito.”

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Anais do II Congresso Internacional de Estudos Linguísticos e Literários na Amazônia (CIELLA) ALUNO 1: Alô. Meu nome é G. Minha dificuldade em produzir textos acontece quando crio expectativa de que eu vá produzir algo muito bom. Quando não preciso que isso aconteça e/ou quando tenho pouco tempo, e TENHO que escrever, normalmente produzo sem problemas. Mas depois, quando dou uma olhadela no que saiu, constato que, muitas vezes, não me agradou o resultado. ALUNO 2: G., todas as vezes que leio meus textos, os critico e faço alguma mudança...além do que, algumas vezes, acontece de eu ter mudado de opinião sobre o foco do texto que escrevi. PROFESSORA 1: G., em muitos momentos da vida, quando criamos muita expectativa, parece que as coisas não dão certo. Talvez seja isso o que está acontecendo com você, mas é possível produzir bons textos mesmo quando temos pouco tempo. Não podemos perder de vista que a releitura do texto que escrevemos é muito importante para podermos detectar os seus problemas. Teremos oportunidade de abordar esse assunto em nossas aulas. ALUNO 3: Na verdade G., criar expectativa não é ruim, acontece que cobramos demais de nós mesmos, somos muito severos com a nossa produção ou então relapso demais. ALUNO 1: É isso mesmo, M. Esses são os dois extremos - rigor demasiado e relaxamento demasiado que devemos evitar no ato de escrever. Parece que fiz uma sessão de terapia quando escrevi aqui no Forum sobre essa minha dificuldade em escrever. Ao receber algumas respostas, decidi colocar meu rigor de lado e devo confessar que me sinto melhor em relação a isso. Minha estratégia mental foi dizer pra mim mesmo que este curso é o ambiente apropriado para cometer erros, pois há professoras para consertá-los. Assim, mesmo que ainda não goste de tudo que escreva, pelo menos estou escrevendo mais, (quase) sem me preocupar se os outros vão gostar. Obrigado por me lembrar que criar expectativa não é ruim. E você, qual seu interesse em participar desse curso?

A participação do Aluno 1 é um ótimo exemplo daquilo que Bazerman diz sobre o esforço que faz o participante das atividades desenvolvidas em um determinado gênero para se engajar com os outros participantes, que assumem papéis específicos, usando recursos que ele reconhece como peculiares ao gênero, e, assim, participando efetivamente da interação. Em seu depoimento, o Aluno 1 demonstra que reconhece o papel que têm as professoras do curso (“consertar” os erros que os alunos cometerem), que é diferente daquele desempenhado pelos alunos. Além disso, ele parece perceber, nessa primeira fase da interação, a função que ela terá no desenvolvimento das atividades do curso. Em uma das discussões posteriores a esta, quando o curso já havia passado da metade, o Aluno 1 já se sentia à vontade no ambiente do fórum e, na época da campanha para as eleições municipais e dos preparativos das festividades do Círio de Nazaré, postou a seguinte mensagem, intitulada CDEPT – Meu cunhado e minha sobrinha, que deu início a uma interação interessante: ALUNO 1: Nesta época de patos e maniçobas, não custa nada recomendar cautela aos comensais. Especialmente àqueles que tiveram piriri nesta última quinta-feira, como é o caso deste locutor que vos fala. Estarei comendo só maniçoba neste domingo, pessoal. Nem tanto para seguir a recomendação acima, mas porque não gosto tanto de pato no tucupi para arriscar uma recaída, apesar de que não dispensaria um, caso não houvesse maniçoba disponível. Complicado é quando todas as comidas disponíveis nos desagradam. Uma vez eu tava num jantar de aniversário, com mesa americana, que tinha apenas vatapá e bacalhau. Não gosto de vatapá, nem de bacalhau e tava morrendo de fome. Decidi fazer um exame de consciência para descobrir por que um cara como eu não gosta de vatapá. Imaginei que devia ser algum trauma de infância, pois desde criancinha não lembro de ter nunca ingerido qualquer porção de vatapá, pois acho o cheiro enjoativo. Decidi que, naquele momento, esfomeado, adulto, consciente para resolver traumas de infância, seria uma excelente oportunidade para tornar-me um apreciador de vatapá. Especialmente porque todos estavam elogiando aquele em especial. Tomei coragem, peguei um prato, coloquei um pouco de arroz e um pouco de vatapá. Peguei um pouco de guaraná e fui para um canto isolado fazer minha transformação terapêutica. Misturei o vatapá no arroz até ficar uma papa, me concentrei um pouquinho, coloquei um pouco da comida no garfo, respirei fundo e...coloquei na boca. Dei três mastigadas e senti o gosto invadir meu ser, aquele gosto de vatapá com arroz, que todos dizem ser uma delícia e que eu, naquele momento, esfomeado como estava, após ter decidido livrar-me de meus traumas de infância, passado por minha terapia pessoal, aquele gosto de vatapá com arroz que eu sempre achei ruim, pareceu-me naquele momento...absolutamente intragável. Puxa, que horrível, que decepção. Socorri-me do guaraná, ainda bem

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Tema geral: Línguas e Literaturas: Diversidade e Adversidades na América Latina que fui prevenido. Minha conclusão, sensata, adulta, equilibrada e sem traumas é que não gosto de vatapá. Sou paraense com muito gosto. Adoro maniçoba, açaí, cupuaçu, bacuri, etc, etc, mas não gosto de vatapá. Sorrateiramente peguei o prato e deixei em cima da mesa, sem que ninguém percebesse ou tivesse chance de me perguntar por que eu estava deixando um vatapá tão gostoso de lado. Para minha surpresa, terminei a noite conversando com meu cunhado e minha sobrinha que, como eu, estavam morrendo de fome pois, ambos, como eu, não gostavam de vatapá e nem de bacalhau. Alguém já disse por aí que jejum faz bem, de vez em quando. Nós três sobrevivemos àquela noite e estamos vivos até hoje e com muita saúde, obrigado. Depois da maniçoba vou tomar sorvete de açaí, hoje. Se der algum revertério conto pra vocês depois. PROFESSORA 1: G., que Nossa Senhora de Nazaré te proteja! ALUNO 1: O teclado do meu computador está configurado de tal modo que alguns caracteres transformamse em pontos de interrogação quando aparecem aqui no nosso Forum. Já conheço dois deles: as aspas e o travessão. Tanto faz se escrevo aspas simples ou duplas, o que vejo publicado é um ponto de interrogação. Descobri, entretanto, que no caso do travessão, posso usar o traço simples - a tecla que fica no lado direito do 0 (zero) - que não há a troca pela interrogação. O ponto parágrafo também não é levado em conta, mas isso não é oriundo do teclado, pois não vi separação de linhas nos textos de ninguém, como vi aspas e travessões. A falta deste recurso da escrita (as aspas) limita a expressão. É sutil a diferença, mas, às vezes, preciso usar um termo, por exemplo, em sentido figurado e, quando me lembro que as aspas se tornarão pontos de interrogação, busco produzir aquela mesma ideia de uma outra maneira, não figurada, o que torna a tarefa um pouco mais difícil. Do jeito que está, não quero utilizar as aspas porque, apesar da gente poder entender que aqueles dois pontos de interrogação antes e após uma palavra são aspas que não apareceram por incompatibilidade do teclado com o site, prefiro evitar esse entrave no fluxo de quem está lendo. Entretanto, vou encarar isso como uma dificuldade imposta para fins de exercício e continuarei, com muito gosto, não utilizando palavras com sentido “figurativo”. E mais: depois da maniçoba e da segunda cumbuca de sorvete de açaí, ontem...não deu revertério, não, Profa A. L. ALUNO 2: G., será que o fato de não ter dado “revertério” se deve à sua parcimônia ou à proteção de Nossa Senhora de Nazaré? ALUNO 1: Acho que uma quantidade enorme de pessoas vai nos dizer que é óbvio que foi N.S. de Nazaré quem me protegeu do revertério. Afinal de contas, estamos na quadra nazarena, eu sou um cara bacana, não puxei o cabelo da minha irmã hoje, e a Santa provavelmente atende a um monte de pedidos e faz um monte de milagres nesta época. Mas é bom lembrar que decidi seguir a recomendação do Dalai Lama, um cara de muito bom senso na minha opinião, e ser parcimonioso à mesa. O Dalai Lama diz: tenha fé em Deus, mas tranque a porta.

A partir daí, o Aluno 1 passou a “publicar” seus textos no fórum. Para isso, usava, nos títulos das mensagens, a sigla CDEPT – Crônica Diária para Exercitar a Produção de Texto – seguida de números. Ao final do curso, G. havia postado 33 CDEPT, que eram muito apreciadas e comentadas por outros participantes. Assim, tornou-se um elemento agregador e conseguiu estimular a participação efetiva dos colegas. Da interação que se deu no fórum de discussão de uma das turmas do curso de especialização podemos tirar outro exemplo interessante: o da participação de uma aluna que também assumiu um papel importante nessa interação. ALUNA 1: Oi, P. Concordo contigo quando dizes que a intencionalidade faz parte dos aspectos estudados dentro da Pragmática, pois as escolhas linguisticas do falante revelam, se analisadas, seus objetivos. Quanto ao outro ponto, penso que a pragmática engloba textos orais e escritos, mas vou esperar o comentário da professora A. L. sobre esse aspecto. Um abraço. ALUNA 2: Que bom trocar ideias, crescer... descobrir luzes no fim do tunel. Quando estava lendo o texto também me deparei com o termo fenômenos linguístico e ficou a dúvida a linguagem digital pode ser considerada um fenômeno linguístico? ALUNA 1: P., visite o endereço http://www.icml9.org/program/public/documents/salvadorsantaella141204.pdf, cujo conteúdo traz informações sobre a linguagem digital, e nos ajuda a entender melhor esse assunto. Pergunto, então: Será que a amplitude dessa linguagem a inclui no campo da Semiótica? Ao mesmo tempo pergunto se ela não se enquadra dentro do que Joana Plaza Pinto coloca a respeito da linguagem: “A

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Anais do II Congresso Internacional de Estudos Linguísticos e Literários na Amazônia (CIELLA) linguagem não é, portanto, meio neutro de transmitir ideias, mas sim constitutiva da realidade social”. Será que a linguagem digital é neutra? Ou é “uma prática social indissociável de consequências éticas, sociais, econômicas e culturais”? Sendo assim, podemos estudar a linguagem digital dentro da Pragmática? Por favor, colegas e professora, ajudem-me a esclarecer esse ponto. ALUNA 2: E, certamente, a linguagem digital inclui a intencionalidade dos interactantes, como qualquer outro gênero de interação. Nesse caso também há duas ou mais pessoas interagindo em uma determinada situação e fazendo seleções de elementos linguísticos que se baseiam (as seleções) nas intenções que elas têm. Sendo assim, trata-se de campo para a investigação da Pragmática. PROFESSORA: Bem, P, vamos, em primeiro lugar, decidir do que estamos falando. Não sei se entendo bem o que você está chamando de “linguagem digital”. Explico por quê: fenômeno linguístico é um conceito que abarca tudo o que diz respeito à linguagem verbal humana, e, mais especificamente, às línguas. Se a interação de que você fala acontece a partir do uso dessa linguagem (a verbal humana), e de uma língua, e acontece por meio digital, então, trata-se de interação linguística. E se é assim, nela se pode observar a ocorrência de fenômenos linguísticos, sim. Se isso está bem entendido, vem-nos a pergunta: mas, afinal, o que pode ser considerado um fenômeno linguístico? Repito: tudo o que diz respeito à interação linguística, como a coesão, a coerência, a argumentação, as regras gramaticais, etc. Mas a expressão “linguagem digital” pode, eventualmente, referir-se a outra coisa, como, por exemplo, as características dessa modalidade de interação, que é a que se dá por meio eletrônico, ou virtual. Nesse caso, a expressão estará sendo usada para se referir a tudo aquilo que caracteriza esse gênero específico, como as abreviações comumente observadas em chats e e-mails (vc, rs, etc.), por exemplo. Será que consegui tirar a sua dúvida? PROFESSORA: (...) A intencionalidade é, certamente, um dos aspectos observados pela pragmática. Não estou certa de que sei a que três teorias você se refere, mas certamente a pragmática estuda as relizações orais e a escritas da língua. ALUNA 1: A. L., que bom ser tua aluna novamente! Estou muito feliz mesmo. Bom, quanto ao texto de Joana Plaza Pinto, penso que ele nos ajuda a compreender melhor o quão importante é o papel da Pragmática no processo de ensino-aprendizagem, na medida em que possibilita que se amplie o estudo da Sintaxe e da Semântica para além das fronteiras impostas pela Gramática Tradicional, de base lógica. Privilegiar a análise dos fenômenos linguísticos ligados ao uso é aproximar o aluno da sua própria realidade linguística e fazê-lo perceber que – como bem coloca a autora – “dizer é fazer”, e que “a prática social a que chamamos de linguagem é indissociável de suas consequências éticas, sociais, econômicas e culturais”. Dentro dessa perspectiva, é muito oportuna a abordagem, no texto, sobre os dados linguísticos tratados como exceção. O diálogo (1), na página 3, nos conduz a concordar com a autora quando esta diz que “não é produtivo descrever a linguagem como um sistema delimitável”. Isso me leva a dizer que delimitar linguagem é comprometer a possibilidade de o aluno desenvolver sua competência linguística. Foi também interessante conhecer as correntes da Pragmática e me deparar com nomes já conhecidos, como Austin, e nomes novos, como Jacob L. Mey. Gostaria de deixar registrada aqui a frase que mais me chamou a atenção no texto, e que, para mim, resume toda a importância da Pragmática para os estudos linguísticos: “A linguagem não é, portanto, meio neutro de transmitir ideias, mas sim constitutiva da realidade social”. PROFESSORA: E., para mim é também motivo de muita alegria tê-la novamente como aluna. Não só pelo prazer de sua companhia, sempre tão agradável, mas pela contribuição que você certamente dará às nossas discussões. Como sempre, você demonstra estar alcançando uma ótima compreensão do texto da Atividade 01. ALUNA 3: Nossa! Como você conseguiu colocar em poucas [linhas] todo o texto! Magnífico! Seu texto acabou me lembrando as aulas da professora I que insistia para que todos conseguissem fazer bons resumos. Se não estava bom voltava para refazer. Saudades da professora I. Mas que bom que teremos aulas com ela também! Um abraço e vamos estudar mais!

A Aluna 1 parece aguardar que a professora a autorize a postar no fórum as suas impressões dobre o texto teórico indicado para leitura. Somente após se sentir “autorizada” pela professora, passa a participar efetivamente, assumindo um papel que a maioria dos alunos não assume no fórum: até o fim da interação, a participação de E. foi de suma importância para a compreensão dos conteúdos das disciplinas do curso por parte dos colegas.

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Comumente se considera que cabe ao professor o papel de mediador da interação que se dá em fóruns dos tipos dos que estão sob análise e também é comum se atribuir a este elemento as tarefas de estimular a participação dos alunos, explicar e avaliar o conteúdo das mensagens postadas por estes. Os professores de cursos on line costumam utilizar diferentes recursos – inclusive linguísticos – para exercerem seu papel de mediador. É o caso, por exemplo, do elogio ao que o aluno diz sobre o conteúdo, mesmo que este seja seguido de algum tipo de correção. Dessa forma, o professor avalia o desempenho preocupando-se em preservar a face positiva do aluno, o que costuma garantir que este se sinta estimulado (e não intimidado) a continuar participando da interação, postando suas impressões. A aluna E., do curso de especialização, a partir do conhecimento que tem de que cabe à professora a tarefa de mediar a interação nesse gênero particular, toma muito cuidado ao dar início à postagem de uma série de mensagens que acabaram caracterizando-a também como mediadora, apesar de seu papel de aluna. É interessante observar que ela se sente autorizada a fazer isso não só pela professora (“E., para mim é também motivo de muita alegria tê-la novamente como aluna. Não só pelo prazer de sua companhia, sempre tão agradável, mas pela contribuição que você certamente dará às nossas discussões. Como sempre, você demonstra estar alcançando uma ótima compreensão do texto da Atividade 01”.), mas pelos colegas (no fragmento acima, representados pela Aluna 2: “Nossa! Como você conseguiu colocar em poucas [linhas] todo o texto! Magnífico!”). Se o aluno G., do curso de extensão, não usou esse expediente, é porque o fórum do curso de extensão não costuma ter essa função, como já foi dito. Nesse caso, observe-se que sua participação como mediador foi importante porque teve como efeito o estímulo aos colegas para participar da interação, já que os outros passaram a aguardar ansiosamente a postagem de suas crônicas para comentá-las. É importante mencionar também que isso acabou se tornando um ótimo exercício de leitura e produção de textos, o que, além do material didático, garantiu as práticas de linguagem que eram proposta pelo curso. 5. Considerações finais É comum a consideração de que a relação de professores e alunos é assimétrica, já que o professor detém maior poder, em cursos presenciais ou a distância. O que torna particularmente interessante a observação de comportamentos como os que mencionamos neste trabalho é a constatação de que, apesar de alunos e professores desempenharem papéis específicos na interação que se dá em fóruns educacionais, é possível que alunos líderes dividam com o professor a tarefa de mediar. Mais importante do que se discutir a adequação desse tipo de comportamento por parte dos alunos é refletir sobre maneiras de se aproveitar isso para estimular a sua participação nas discussões em fóruns. E isso certamente poderá contribuir para que se alcance o sucesso no processo de ensinoaprendizagem em cursos on line. Referências ARAÚJO, Júlio César. “A conversa na web: o estudo da transmutação em um gênero textual”. In: MARCUSCHI, Luiz Antônio e XAVIER, Antônio Carlos (org.). Hipertexto e gêneros digitais: novas formas de construção do sentido. Rio de Janeiro: Lucerna, 2004. pp. 91-109. BRAGA, Denise. “A comunicação interativa em ambiente hipermídia: as vantagens da hipermodalidade para o aprendizado no meio digital”. In: MARCUSCHI, Luiz Antônio e XAVIER, Antônio Carlos (org.). Hipertexto e gêneros digitais: novas formas de construção do sentido. Rio de Janeiro: Lucerna, 2004. pp. 144-162. BAZERMAN, Charles. The Languages of Edison’s Light. Cambridge: MIT Press,1999.

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Anais do II Congresso Internacional de Estudos Linguísticos e Literários na Amazônia (CIELLA) ______. “A produção da tecnologia e a produção do significado humano”. In: HOFFNAGEL, Judith Chambliss; DIONISIO, Angela Paiva (org.) Gênero, Agência e escrita. Charles Bazerman. São Paulo: Cortez, 2006, pp. 79-86. ______. “Gênero e identidade: cidadania na era da internet e na era do capitalismo global” In: HOFFNAGEL, Judith Chambliss; DIONISIO, Angela Paiva (org.) Gêneros textuais, tipificação e interação. Charles Bazerman. São Paulo: Cortez, 2006, pp. 101-129. MARCUSCHI, Luiz Antônio. “Gêneros textuais emergentes no contexto da tecnologia digital”. In: MARCUSCHI, Luiz Antônio e XAVIER, Antônio Carlos (org.). Hipertexto e gêneros digitais: novas formas de construção do sentido. Rio de Janeiro: Lucerna, 2004. pp. 13-67.

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VOZES DIFERENCIADORAS EM POÉTICAS AFRO-FEMININAS Ana Rita Santiago da SILVA1 (Universidade Federal da Bahia)

RESUMO: Através da literatura afro-feminina, escritoras negras baianas ficcionalizam suas trajetórias, africanidades e inventam mundos. Neste sentido, se constitui como memórias e escritas de si, não através de um Eu autoral, mas de um Eu ficcional. Entretanto, suas narrativas e poéticas se tecem, não de forma intimista, mas são costuradas em meio à memória coletiva. Diante disso, este texto propõe-se a compreender vozes poéticas femininas negras, ainda silenciadas e ausentes de cenários literários, como outras representações, logo como invenções diferenciadas de identidades negras no Brasil. PALAVRAS-CHAVE: africanidades; vozes poéticas; escritoras negras

ABSTRACT: Through’s literature, African women, black writers and their trajectories ficcionalizam Bahia Africa. In this respect is to be written and memories of themselves, not by an author I, but a fictional I. However, their narratives and poetic are made, not so intimate, but they are sewn together in the midst of collective memory. Thus, this text aims to understand black women’s poetic voice, yet absent from silenced and literary scenes, and other offices as soon as inventions of different identities black in Brazil. KEW WORDS: Africans; poetic voices; black writers Estudante do curso de Doutorado em Letras (UFBA). Desenvolve a pesquisa Escritoras Negras Baianas: Vozes (des) veladas sobre Afro-descendências, orientada pela Profª Drª Florentina Souza. Professora Assistente da Universidade Federal do Recôncavo da Bahia (UFRB).

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1. Algumas palavras iniciais Por ser a literatura uma elaboração humana e, por conseguinte, uma construção sóciocultural, reconhece-se que ela não se constitui como uma imitação das vicissitudes humanas, tampouco como um retrato de realidades individuais e sociais. Entretanto, ela, como estética da linguagem, adquire sentidos e representações, na medida em que se apresenta como construções da imaginação e de formas de estranhamento de realidades e de eventos que circundam os indivíduos e os segmentos a que pertencem. É nesta perspectiva, pois, que se configura a busca de entendimento de poéticas, produzidas por escritoras negras, no que se refere às representações e escritas de si e de seus repertórios culturais. A literatura, também por ser uma prática discursiva1, como assegura o estudioso Roberto Reis (1992), se estabelece em meio a exercícios de poder, que se legitimam através de estratégias de controle e de autorização o estatuto de literatura e de autoria. É dessa realidade que se instituem o seu cânone, bem como a sua tradição, provocando interditos para algumas vozes e o cerceamento de outras. É também desse ritual de eleição que advém o juízo de valor estético em que se garantem a boa e a má literatura. Como veremos neste texto, a produção literária de escritoras se constituem como vozes diferenciadoras dessas práticas de interdição de apagamento de sua escritura, ainda que por vezes idealize as africanidades2. Por conta disso, haveremos ainda de considerar neste texto vozes literárias femininas negras que se apresentam como contraposição a essas estratégias de interdição e se desenham inclusive como vozes diferenciadoras, já que tensionam a representação de personagens negras marcada pela negatividade e subalternidade e desestabilizam a invisibilidade a que são submetidas. 2. Literatura feminina: uma tessitura de (des) silenciamentos Não são poucos os debates em torno das denominadas escritura feminina, literatura de mulheres e literatura feminina/feminista, as quais compõem variadas compreensões e resistem em meio a ambivalências. Embora haja pluralidade de entendimentos, há de se reconhecer que não são poucas as questões, complexidades, ambiguidades e controvérsias que permeiam e abalam os seus sentidos e pertinências, nos circuitos literários, acadêmicos e entre a literatura feminina/feminista. Nessas discussões se evidenciam argumentos favoráveis e contra-argumentos, que, mesmo distantes de essencializações e permeados de indagações, garantem agendas e fóruns acadêmicos e literários, bem como estudos e publicações concernentes às temáticas afins às designações3. Liane Schneider (2007), ao discutir sobre esses conceitos, problematiza-os e reconhece a necessidade do enfrentamento dessas tensões: Assim, se as literaturas produzidas por mulheres que se vinculam a tais projetos emancipatórios e antipatriarcais são definidos como ‘escrita feminina’, deve-se garantir que esse significante (escrita feminina) esteja carregado de todas as tensões que compõem o tecido cultural, não sendo inscrito nem limitado por uma visão binária e naturalizada de mundo. [...] mais uma vez aqui, mesmo denominando-se eventualmente tal produção de ‘escrita feminista’, também não estaríamos seguras quanto a qual dos feminismos (da experiência, da diferença, da desconstrução, marxista, etc.) estaríamos nos referindo. Além disso, haveria (assim como há) autoras que produziriam um texto ‘feminista’, sem, no entanto, aceitarem, de bom grado, tal classificação [...]

As práticas discursivas, para Michel Foucault (2002), estão ligadas às forças de poder, pois aprisionam e ocasionam sujeição, dominação e controle dos discursos e do corpo. Além disso, elas estão submetidas às ordens e aos rituais, dos quais são instrumentos eficientes de ensino, que, segundo Foucault (2003), em A ordem do discurso, se submete aos procedimentos de organização, seleção, controle e de exclusão. 2 Africanidades aqui significa traços culturais que advêm de cosmogonias e culturas africanas ressignificadas no Brasil e em outras diásporas. 3 Ver, dentre outros, estudos sobre Mulher e/na Literatura: BUTLER (1987); CAVALCANTI (2006); DUARTE (2005); FONSECA (2002); MOREIRA (2003); SCHNEIDER (2007); SCHMIDT (2006); SPIVAK (1990), XAVIER (1991). 1

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Em meio a esses questionamentos e outras tensões sobre a validade e pertinência de termos como literatura escrita por mulheres; literatura feminina, que se define, segundo Sara E. Guardia (2007), como um conjunto de textos literários produzidos por mulheres e escritura/escrita feminina, para reiterar a participação de mulheres na produção literária, conforme Schneider (2007), vale reconhecer que a literatura, como uma expressão de arte, produzida em sociedades hierárquicas e patriarcais, tais como as ocidentais e oriundas delas, é, historicamente, uma manifestação artística que se destaca em relação à presença de mulheres. Ainda assim, apenas, a partir do século XIX, começaram a aparecer mulheres escritoras na tradição literária européia até então negadas em “[...] um cânone quase exclusivamente masculino e predominantemente do primeiro mundo, europeu e da classe dominante”, como declara Raquel E. Gutiérrez (2004, p.33). Norma Telles (1992, p. 50) refere a essa realidade histórica como uma prática de censura. Os silêncios cercavam e cercam o patrimônio cultural das mulheres. Cada nova geração precisa refazer os passos e retomar os caminhos. Octavio Paz afirma que autores não lidos são vítimas do pior tipo de censura possível – a indiferença. O silêncio, o não dizer, não é ausência de sentido; ao contrário, o que não se pode dizer é o que atinge ortodoxias, as idéias, o interesses e paixões dos dominantes e suas ordens [...]

Mesmo sendo esse o período em que apareceram algumas mulheres escritoras no cenário literário europeu, há de se estar ciente de que não foi apenas nesse continente e no século XIX que se inaugurou a literatura produzida por elas. Mesmo assim, é importante assinalá-lo, pois é um dos indicativos de conquista do espaço público, contrariando a natureza e o espaço, a elas, respectivamente, destinados: cuidadora de entes e do lar. Como afirma a estudiosa Nadilza Moreira (2005, p. 233): As mulheres ocidentais no início do século XIX ainda eram destinadas, pelo patriarcado, ao império da domesticidade, onde deveriam reinar como guardiães morais dos filhos e provedoras do conforto espiritual dos maridos. A mulher escritora à época, consequentemente, invadiu o espaço público do masculino e desafiou padrões culturais e políticos que confinou a mulher no espaço privado do lar. As escritoras, por sua vez, timidamente, desencadeiam um processo transgressor no que concerne ao papel e ao lugar do feminino da sociedade patriarcal de então.

Para Guardia (2007, p. 4), preocupações em torno da educação feminina, advindas de alguns eventos históricos, tais como a constituição das repúblicas na Europa, as mudanças nas instituições de poder, vividas nos séculos XVII e XVIII, as revoluções francesa e industrial foram eventos históricos que fomentaram a participação feminina na literatura, através de revistas e outras publicações, escritas por elas e a elas destinadas, bem como a formação de organizações literárias. Essa pesquisadora faz ainda referência à ausência de escritoras na literatura latino-americana, que também se institui como uma voz hegemônica masculina, citando alguns de seus nomes e assinalando estratégias, por elas utilizadas, para proporcionar o reconhecimento de sua escrita. [...] não foi fácil romper o silêncio para as escritoras latino-americanas do século XIX, em um clima de intolerância e hegemonia do discurso masculino. Referimo-nos a Gertrudes Gómes de Avellaneda (Cuba 1814-1873), Juana Manuela Gorriti (Argentina 1818-1892), Maria Firmina dos Reis (Brasil 185-1917), Mercedes Cabello de Carbonera(Peru184-1909), Lindaura Anzoátegui (Bolívia 1846-18980), Clorinda Matto de Turner (Peru 1858-1909), e Adélia Zamudio (Bolívia 1854-1928). Excluídas e marginalizadas do sistema de poder, estas escritoras outorgaram voz aos desvalidos excluídos, questionando as relações interraciais e de classe. (2007, p. 4).

Os textos literários, por elas produzidos, pois, fazem críticas a esse silenciamento e questionam a cultura ocidental e tradicional, que se figura como um discurso falocêntrico, pois, como afirma Guardia (2007, p. 2), “[...] Ao longo desta escritura encontraremos eixos temáticos que aparecem de maneira permanente em romances, contos e poesia, que poderíamos sintetizar em um só anseio, a busca de uma voz própria”. Há, por isso, nas vozes literárias femininas, esforços no sentido de afirmarem-se como escritoras, uma de suas identidades, uma vez que suas representações tornam-se múltiplos modos de reconhecimento e redefinição de si mesmas. A literatura feminina, neste ínterim, se destaca pelas enunciadoras, ou seja, por quem escreve: são sujeitos que vivem situações as mais adversas por serem mulheres e vislumbram outros

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mundos, outras vidas e outros homens e mulheres através da estética textual. Lygia Fagundes Telles, em As Meninas (1973), por exemplo, atribuiu a uma de suas personagens femininas o posicionamento diante da escrita do homem sobre a mulher: “[...] Sempre fomos o que os homens disseram que nós éramos. Agora somos nós que vamos dizer o que somos [...]”. Como se percebe, há um sujeito explicitamente que enuncia o que deseja: construir um outro dizer sobre as mulheres. Além disso, o indicativo temporal agora assinala outros capítulos da história literária, que certamente será sempre inacabada, a qual se (re) cria e se (re) inicia por eventos de descobertas e de (des) construções. Com essa experiência, a escrita feminina se afirmara e se dinamizara, no século XX, ao interagir com as trajetórias, os pressupostos, postulados e ideais do movimento feminista. Foi, inclusive, nesse tempo, que a literatura feminina se consolidou, em meio a questionamentos e discussões sobre o binarismo homem x mulher, dominação masculina, gênero, relações de poder, corpo etc. Foi nesse século, sobretudo a partir da década de 70, que ela se afirmou como possibilidade de ser uma voz mediante as vicissitudes e realidades, vividas pelas mulheres, bem como uma resposta resistente aos procedimentos de apagamentos, a que se submeteram, por séculos. Assim, através de narrativas e poéticas, um eu-ficcional, afirmado pelo eu-autoral, tornou-se possível expressar “[...] conflitos travados entre a mulher literária e a mulher estereotipada pela cultura androcêntrica que a definia como a rainha do lar” (MOREIRA, 2005, p. 236), já que, como já se sabe, a arte literária, em muitos momentos, movida pela tradição patriarcal, incumbiu-se de reforçar uma suposta natureza feminina, pautada em domesticidades, fragilidades, submissão, sentimentalismos, emoções e sensibilidades exacerbadas e pouca racionalidade. Desse modo, a escritura feminina se dimensiona ainda pelas narrativas e textos poéticos, com marcas de jogos de resistência, de experiências, afetos e desafetos, sonhos, angústias e histórias de mulheres. Neste sentido, a literatura feminina/ feminista se justifica pelo rompimento da hegemonia e supremacia masculina, já que, por meio dela, podem-se desenhar e reconhecer existências e práticas sociais diferenciadas de um eu feminino, com atributos e papéis distintos do masculino, mas não inferiores e desiguais. Nessa perspectiva, Conceição Evaristo, poetisa e romancista, mineira, publica nos Cadernos Negros4, em Fêmea Fênix, desenha um eu feminino, corajoso, que resiste ao medo e se lança ao enfrentamento, em busca da vivificação do eu-mulher: Navego-me eu–mulher e não temo, sei da falsa maciez das águas e quando o receio me busca, não temo o medo, sei que posso me deslizar nas pedras e me sair ilesa, com o corpo marcado pelo olor da lama. Abraso-me eu-mulher e não temo, sei do inebriante calor da chama e quando o temor me visita, não temo o receio, sei que posso me lançar ao fogo e da fogueira me sair inunda, com o corpo ameigado pelo odor da queima. Deserto-me eu-mulher e não temo, sei do cativante vazio da miragem, e quando o pavor em mim aloja, não temo o medo, sei que posso me fundir ao só, e em solo ressurgir inteira com o corpo banhado pelo suor da faina. Vivifico-me eu-mulher e teimo, na vital carícia de meu cio, na cálida coragem de meu corpo, no infindo laço da vida, que jaz em mim e renasce flor fecunda. Vivifico-me eu-mulher. Fêmea. Fênix. Eu fecundo.

Certamente, vale ressaltar que a literatura feminina não se configura por tentar se sobrepor àquela produzida pelos homens ou pelo seu estilo e forma, ou como expressão de uma possível subjetividade feminina, ou ainda tão somente por ser escrita por mulheres, mas pelas suas temáticas 4

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Uma publicação forjada por escritores (as) negros (as) brasileiros há mais de 30 anos.

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e representações subversivas de personagens femininas, tensionadas e nutridas pelos desejos de autonomias políticas e culturais e pelos anseios por conquistas do espaço público. Desse modo, é uma textualidade que se pretende revolucionária, uma vez que almeja quebrar com as tramas opressivas e de aprisionamentos do pensamento masculino, já postos pela linguagem, por conseguinte pela comunicação, concepções de mundo e pelas relações de poder. 3. Poéticas afro-femininas5: vozes diferenciadoras Mas que mulheres, no Brasil, escrevem, publicam e ainda conseguem forjar uma crítica feminista e um público leitor? Haveremos de afirmar que apenas poucas mulheres usufruem, histórica e satisfatoriamente, desse prestígio e rituais peculiares ao ofício da arte da palavra. Apesar de Maria Firmina dos Reis, descendente de africanos, citada acima por Guardia (2007), ser considerada a primeira romancista abolicionista brasileira e de outras mulheres negras produzirem literatura, por exemplo, do século XVIII aos nossos dias, ainda constatamos uma ausência significativa delas nos espaços culturais e literários. Esse cerceamento do eu autoral dessas mulheres se associa aos outros mecanismos de exclusão e de racismo, por isso não ocorre de forma ingênua, mas se constitui como eco relevante de tramas que envolvem as relações étnico-raciais e de gênero no Brasil. Miriam Alves, poetisa e contista, explica sobre o anonimato que perseguem autores/as negros/as: A produção literária de autores e autoras negras vive em verdadeiros sacos de varas. Primeiro é acusada de essencialismo, depois é punida com o anonimato. Trata-se de um anonimato complexo, que retira a legitimidade do negro como escritor. A esse escritor é reservado um lugar de objeto de estudos no discurso dos pesquisadores, ou seja, alguém que só tem existência através do agenciamento do outro [...] Na verdade, existe a prática de defender o status quo da literatura e a visão de que é um lugar reservado a determinados assuntos, específicos das suas formas de abordagens. (2002, p. 235)

Podemos, a partir disso, também reconhecer que as produções literárias de mulheres negras ainda estão ausentes, consideravelmente, de inventários da literatura feminina, bem como das diversas instâncias acadêmicas, artísticas e culturais em torno da mulher e/na literatura. Podemos inclusive reconhecer, diante disso, que seus postulados e proposições não atendem, satisfatoriamente, às demandas e vicissitudes da constituição de suas vozes literárias femininas negras. Essas constatações nos levam a inferir que práticas de apagamento da escrita feminina atinjam ainda mais as autoras negras e, talvez mais intensamente, já que são agravadas pelas relações desiguais, inclusive do ponto de vista étnico-racial, e não apenas de gênero, muito presentes nas redes literárias e pelas representações estereotipadas de mulheres negras, vigentes na tradição literária brasileira. Neste sentido, haveremos de concordar com Marinete Silva, ao referir-se à presença de algumas escritoras negras nos Cadernos Negros, citada por Aline Costa (2008, p. 37): “[...] Os Cadernos são de grande importância porque eu não conhecia mulher negra que tivesse um trabalho (literário), exceto a Carolina de Jesus. Mas poetisa negra que falasse do nosso amor, da nossa vida, dos nossos filhos, das nossas coisas, não era comum [...]”. Nesse contexto, se inserem as poéticas afro-femininas, uma vez que, por meio desse segmento literário, figuram-se discursos estéticos em que se representam africanidades, homens e mulheres negras longe de subalternidades e atributos depreciativos e forjam uma escrita em que se cantam repertórios e eventos histórico-culturais e se (re) inventam outros, que configuram identidades afro-brasileiras. A escritora Urânia Muzanzu, poetisa negra baiana, em seu poema Encontro, como veremos abaixo, cria um sujeito poético que se (auto) representa e se define a partir dessas marcas discursivas e identitárias. Metade de mim é Nana Agotimé e seus caprichos de rainha, a outra metade é um escravo aguadeiro. Parte de mim é fêmea de curvas bem definidas e cheiro forte de mulher preta, Poéticas afro-femininas aqui são compreendidas como a produção literária de autoria de mulheres negras, em que, através de práticas discursivas, inventam sua cosmovisão, emoções, vivências etc e representam afirmativamente, dentre outras, as suas identidades e seus repertórios culturais afro-brasileiros. 5

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Anais do II Congresso Internacional de Estudos Linguísticos e Literários na Amazônia (CIELLA) a outra parte é um preto cismado, de pouca conversa e muito ciúme. Uma parte de mim é Barijó, é diálogo, acertos e pactos, a outra parte é a introspecção após um baseado e os sentimentos mais nobres guardados bem lá no fundo, para poucos, ou melhor, poucas! Parte de mim é um rio tortuoso, arriscado, que corta a mata com quedas violentas. A outra parte é uma BAÍA! Parte de mim é andação, caminho, estrada, a outra é um sábado em família, com mesa farta e porta fechada. Metade de mim são devaneios certos e sonhos possíveis. A outra parte são cálculos malucos e estratégias sem simétrica. Um pedaço de mim enlouquece até onde o corpo suporta, enquanto o outro é pura matemática... Parte de mim pensa! A outra se vira do avesso, se confunde, se expõe, não tem vergonha, nem rapapés: se arrepende! Um pedaço de mim é harmonia, swing, arranjo. O outro é letra, poesia. Parte de mim é uma boca úmida, que toca com delicadeza o que há de mais íntimo. A outra parte tem vergonha até de beijar em público! Parte de mim é o Rio de Janeiro e suas possibilidades, a outra metade é o Rio Una encontrando o mar da Gambôa... Parte de mim é uma bateria da Mangueira, avisando que vai entrar na passarela, a outra parte é o Mundo Negro cantando a liberdade de Angola nas ruas do Curuzu. Eu sou a raiz mais profunda de Iyá Nassô Oká, Bamboxé e Iyá Biticu, mas sou também os Jeje Mahi e seu sangue Malê. Eu sou metade e sou o tudo! Sou Kinzu e Fomotinha!

As poéticas afro-femininas, neste ínterim, ao enfatizar a construção e afirmação de identidades negras podem ser consideradas como um processo contínuo de (re) definição e de (re) invenção da história de populações negras, com suas religiosidades e afro-descendências. Há nelas um “retorno” dinâmico ao passado, ou seja, há um reconto de memórias ressignificadas aliado às histórias e vivências construídas no presente. Elque Santos, poetisa negra baiana, em Sou um Rio, inventa um eu poético que se personifica em um rio, a ele emprestando sua voz. Mas não é tão somente um rio; é o Rio Osum, nome de uma figura mítica ancestral afro-brasileira. Sou Rio antigo, de águas sublevadas, Por onde não se pode navegar. Sou caminho difícil, águas inexploradas. Meu curso não há quem possa domar. Aos aventureiros, afastem-se, fiquem nas orlas, Porque eu só respeito meu curso e meu destino. O mar. Abundante, espessa e destemperada sou toda correnteza. De minhas águas terá apenas perdas, dor e braveza. Se tu, aventureiro, não quiseres afastar de mim Assina um acordo tácito comigo e a tu cabes, Navegar-me, desbravar-me, conhecer-me... Mas nunca tente me domar, pois a mim cabe: Envolvê-lo desejá-lo e, talvez, afogá-lo. Quero de ti, aventureiro, mais do queres de mim. Tortuosamente, anseio de ti, Sua coragem, sua beleza. O seu talento de navegante. Levará o que queres, Se me der o mais profundo desejo. Há que ter respeito e temor, Senhor Marítimo Mas antes e maior que tudo há que se ter amor.

Podemos ainda vislumbrar que a produção literária de mulheres negras, aqui denominada de poéticas afro-femininas, comprometida com representações afirmativas de personagens negras e de

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africanidades, poderá se incumbir de visibilizar a identidade autoral feminina negra. As poéticas afrofemininas, nesta perspectiva, se contrapõem às estratégias de anonimato, interdição e às práticas de negação de sua textualidade, já que provoca o deslocamento do status de personagens ao de autoras, bem como outras invenções de si e de seus pares étnico-raciais. O enfrentamento dessas práticas de cerceamentos, que circundam o patrimônio cultural e literário de escritoras negras, se dá por meio da reversão, isto é, por meio de estratégias que agenciem a visibilidade de suas vozes literárias. Conceição Evaristo (2005, p. 54 ss) assegura que essas autoras, além de abalar a tradição literária, tornam-se sujeitos de suas representações: Se há uma literatura que nos inviabiliza ou nos ficciona a partir de estereótipos vários, há um outro discurso literário que pretende rasurar modos consagrados de representação da mulher negra na literatura. Assenhorando-se “da pena”, objeto representativo do poder falocêntrico branco, as escritoras negras buscam inscrever no corpus literário brasileiro imagens de auto-representação. Criam, então, uma literatura em que o corpo-mulher-negra deixa de ser o corpo do “outro” como objeto a ser descrito, para se impor como sujeito-mulher-negra que se descreve, a partir de uma subjetividade própria experimentada como mulher negra na sociedade brasileira [...].

Percebe-se, pois, que elas questionam a representação depreciativa de traços e repertórios culturais afro-brasileiros, a criação de personagens negras inferiorizadas e subalternizadas, com um passado de escravização e dominação de seus antepassados, desestabilizando a invisibilidade a que são condicionadas. A marca textual da literatura afro-feminina se destaca, acima de tudo, entre as décadas de setenta e oitenta, quando mulheres negras escritoras tecem poéticas e narrativas, com um tom de protesto e de denúncia, mas também de indicação de resgate das formas de luta e de resistência, de afirmação das histórias do povo negro no Brasil, bem como de suas identidades. Alzira Rufino, em Crioula, paulista e publica nos Cadernos Negros, por exemplo, inventa um eu lírico negro e feminino que se afirma em meio às intempéries, advindas das desigualdades raciais, de viver e sobreviver. Eu sou crioula decente Não sou vil Estou nas cordas em equilíbrio De um Brasil A minha cor apavora Essa raça agride ouvi dizer Não é nos dentes do negro Não é no sexo do negro É na arte do negro de viver Melhor dizendo Sobreviver [...]

Em Boletim de ocorrências também Alzira Rufino inventa uma voz negra feminina que enfrenta, com determinação, a discriminação, convocando outras vozes, para que vejam, se aproximem e falem em prol da sua dignidade e de suas identidades. Mulher negra não pára Por essa coisa bruta Por essa discriminação morna Tua força ainda é segredo Mostra tua fala nos poros O grito ecoará na cidade Capinam mato venenoso A tua dignidade Ferem-te com flechas encomendadas Te fazem alvo de experiências Tua negritude Incomoda Teu redomoinho de forças afoga Não querem a tua presença

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Anais do II Congresso Internacional de Estudos Linguísticos e Literários na Amazônia (CIELLA) Riscam teu nome com ausência Mulher negra, chega, Mulher negra, seja, Mulher negra, veja, Mulher negra, veja, Depois do temporal.

Mas essa voz também lamenta as práticas de apagamento, a que se submete a mulher negra: Não querem tua presença, riscam teu nome com ausência. Em vista da reversão dessa invisibilidade conclama-a: Mostra tua fala nos poros, o grito ecoará na cidade. Essas possíveis proposições poéticas nos permitem afirmar com Conceição Evaristo (2005, p. 206 ss): “[...] os textos femininos negros, para além de um sentido estético, buscam semantizar um outro movimento, aquele que abriga todas as suas lutas. Torna-se o lugar da escrita, como direito, assim como se torna o lugar da vida”. Neste sentido, também se situa a representação do orgulho de pertencimento à categoria de mulher negra, que transparece vigoroso no poema Integridade, de Geni Mariano Guimarães, que também publica nos Cadernos Negros: Ser negra. Na integridade calma e morna dos dias. Ser negra, De negras mãos, De negras mamas, de negra alma. Ser negra, negra. Puro Afro sangue negro, Saindo aos jorros por todos os poros.

Essa voz poética, feminina e negra, por ela inventada, autoriza-se a afirmar-se e a reconstituir (se) como negra, na integridade calma e morna dos dias, ou seja, no cotidiano e não apenas em eventos e cenas espetacularizadas. Percebe-se ainda que não são apenas os traços fenotípicos que garantirão a sua negritude, uma vez que também é negra de alma negra. A voz poética, assim se (re) apresentando, traz à tona o caráter simbólico da identidade, uma entidade abstrata e virtual, como já assinalara Zygmunt Bauman (2001) e o valor cultural que a compõem. Ter alma negra, certamente, também resulta em identificação e adesão a traços culturais negros, por conseguinte, a pertencimento a grupos que também assim procedam. Desse modo, as poéticas afro-femininas não são mais uma etiqueta ou rótulo, atribuídos a uma manifestação literária. Ao contrário, longe de minimizar e/ou confundir um gênero discursivo com a cor da pele, sexo ou gênero são, em verdade, mais uma oportunidade de trazer à baila a necessidade de coalizões e de apoio a uma escritura que se quer imaginária, mas também comprometida com ideais emancipatórios, antipatriarcais e anti-racistas, permeando a produção literária. Por conta disso, escritoras negras cantam sonhos, experiências e visões de mundo, bem como (re) inventam suas identidades e suas conquistas de autonomia. Em A uma guerreir@, de Jocélia Fonseca, poetisa negra baiana, por exemplo, aparece uma voz que anima uma mulher, que se quer guerreir@, para a luta e a consola diante da dor, das injustiças e das amarguras, revigorando as suas forças para continuar a batalha erguidamente e sem corrupção. Que a dor te corroa, Mas não te corrompa. Que o cai e levanta Te sirva de força; Se caiu, te molhe em lágrimas Enxugue-as, erga-se E de novo caminhe. Noutros ventos, Noutros ares.

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Tema geral: Línguas e Literaturas: Diversidade e Adversidades na América Latina Vai guerreir@, Pega tua espada e te lança Ao que te espera. O dar e tomar É também da vida. Não deixe que essa amargura Que te molha a língua Desça em tua garganta Nem atinja teu ser. Um guerreiro tem coração ferido, Mas a alma límpida.

Assim, esses versos permitem-nos compreender que uma escrita literária com marcas denunciativas e, concomitantemente, propositivas também integram os discursos ficcionais e poéticos da literatura afro-feminina. Neste sentido, Rita Santana, poetisa e contista negra baiana, tece seus poemas através de uma via lírica dramática e de invenção da indignação contra as formas de apagamento de suas memórias, histórias e poéticas e a favor do avivamento da autonomia e da liberdade da voz lírica e protagonista feminina, como verificamos no seu poema Armada. As horas vêem minha euforia insana De quem sorri à espera de milagres. Um antídoto digno da minha loucura, Cura pra todos os males do meu dia, Coisas assim. Abandonada em folias de menina Crescida em colo de mãe, Deixo o desespero e o empório pra mais tarde, O aluguel, as casas vazias, chaves pra cópias, Tudo reservo para a eternidade vindoura, legítima. Quem pensa que eu morro se engana: Tenho sangue de senzalas e exalo morros, Meu palácio é feito de arrastares, desprezo de sonhos, Falências, cores velhas, arcaísmos de profeta lilás. jamais amo sempre o meu Senhor. A paz em excesso por vezes me atormenta, Fervo as veias em pensamentos, cozo desejos num tacho grande de caruru. Minha casa é feita de renda inglesa e avencas, O homem que amo me acha boa, bonita, E sabe que sou poeta, arrebanhada entre os malditos, Escassa de verbas, E aventurada de poesia. Os verbos rondam o meu chão como estrelas.

Também Fátima Trinchão, poetisa e contista negra baiana, em Mulheres Negras Mulheres, inventa um eu poético que canta e conta histórias e dissabores, vividos por mulheres negras, embora as representações idealizadas e entremeadas de piedade cristã. A voz poética enfatiza demasiadamente o sofrimento dos africanos escravizados no passado e das mulheres negras, no poema acima, no presente. As correntes não acabaram, apenas mudaram de nome.” Filhas desterradas da África Grande Mãe, Mulheres negras mulheres, mães da humanidade. Mulheres negras mulheres, seus filhos levaram, levaram, ao pelourinho, ao açoite, mulheres negras mulheres.

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Anais do II Congresso Internacional de Estudos Linguísticos e Literários na Amazônia (CIELLA) Nos fornos e nos fogões, das casas grandes e mansões, pobres mulheres negras... Morando nas invasões, com a barriga sem pão, mulheres negras mulheres, colunas grandes e fortes, mulheres bravas mulheres, exiladas para o mundo, baluarte de uma raça... Do alto, Olorun Força e poder lhes investe mulheres bravas mulheres, da cor da noite celeste!

As poéticas afro-femininas não só se estabelecem pelas trilhas ideológicas, mas também se adornam pelo lirismo, amor, afeto, sentimentos e desejos. Mel Adún, poetisa e contista negra baiana, também traz à baila o desafio da primeira pessoa, utilizada comumente pelas poetisas negras, como uma voz ficcional feminina emancipada, revertendo histórias de subalternidade e de negação de si. Em Instante mulher, um eu lírico feminino, caracterizado pela ousadia e autonomia, se quer dona de si, livre para ser e viver os múltiplos instantes, que, rindo de jogos das relações e das afetividades, oportuniza-se viver com alteridade e elaborar vários sentidos de si. Com vontade apenas de boas risadas. Do carinho descarado embaixo. De qualquer lençol que me abrigue. Sem brigas. Não tenho intimidade pra brigar com você. Exijo as boas trepadas seguidas deuteamos falsos. Com prazer dou risada das suas piadas. Se não me agradam não te permito repetir o prato. Estou nesse estágio – posso escolher. Pode falar bobagens, sentir prazer quando te molho, Posso até bater, mas ainda não aprendi a apanhar... E gozar. Naquelas 4 horas tapo o buraco. Com o nascer do dia volto a ser vazia, mas em paz. Esperando de unhas bem feitas o próximo... Não quero ser taxada de santa nem biscate. Quero ser somente o que sou agora. Amanhã sentirei saudades Como senti ontem de mim mesma quando morri. Aprendi a saborear todas as vezes que morro. Morro em cada cama que deito, Mas sou cristo todas as manhãs seguintes.

Poéticas afro-femininas, como vimos, sugerem possibilidades contundentes de representações, em que se evidenciam marcas de autonomia e de identidades. É uma escrita em que, por um lado, múltiplas vozes abalam práticas discursivas literárias que anulam e recalcam o diverso. Por outro, ela autoriza vozes diferenciadoras que, pela esteira da alteridade, imprime uma estética da linguagem, que propicia representações longe de olhares e concepções etnocêntricas e próximas de elaboração de memórias individual e coletiva, em que traços de respeito e valorização das diferenças são evidenciados. 4. Ainda algumas palavras Não obstante a invisibilidade da escritura de mulheres escritoras e, mais especificamente das negras, no cânone literário, há de se reconhecer, como vimos, que práticas de (des) silenciamentos

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de suas vozes desfilam na história de literatura. Elas não são não apenas um contraponto ao já estabelecido, mas se consolidam e se legitimam a partir de reinvenções de identidades. Desse modo, destacar poéticas afro-femininas, indubitavelmente, se torna em um exercício de reconhecimento da diversidade inerente à vida em sociedade, haja vista, embora saibamos de que a literatura não é o espelho de nossa realidade e não tenha a função de retratá-la, podemos admitir que, enquanto prática discursiva, podem-se representar múltiplas dimensões e experiências sociais, culturais, históricas, políticas e existenciais da trajetória humana, em uma linguagem simbólica, conforme os diversos universos imaginários e os postulados da alteridade. Referências ADUN, Mel. Instante de mulher. In: Cadernos Negros. Poemas Afro-Brasileiros. Volume, 29. São Paulo: Quilomboje, 2006. ALVES, Miriam. Cadernos Negros (número 1): estado de alerta no fogo cruzado. In: FONSECA, Maria Nazareth Soares; FIGUEREDO, Maria do Carmo (Org.). Poéticas afro-brasileiras. Belo Horizonte: Mazza: PUC Minas, 2002. BAUMAN, Zygmunt. Modernidade Líquida. Trad Plínio Dentzien. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2001. BUTLER, Judith. Variações sobre sexo e gênero: Beauvoir, Wittig e Foucault. In: Seyla Benhabib & Drucilla Cornell. Feminismo como crítica da modernidade. Rio de Janeiro: Editora Rosa dos Tempos, 1987. CAVALCANTI, Ildney et al. Da mulher às mulheres: dialogando sobre literatura, gênero e identidades. Maceió: UFAL, 2006. COSTA, Aline. Uma história que está apenas começando. In: BARBOSA, Márcio; RIBEIRO, Esmeralda (org.). Cadernos Negros Três Décadas – Ensaios, poemas, contos. São Paulo: Quilombhoje: Secretaria Especial de Políticas de Promoção da Igualdade Racial, 2008. DUARTE, Constância Lima. Literatura e feminismo no Brasil: primeiros apontamentos. In: MOREIRA, Nadilza Martins de Barros; SCHNEIDER, Liane (Orgs.). Mulheres no Mundo. Etnia, Marginalidade e Diáspora. João Pessoa: Ed. Universitária; Idéia, 2005. EVARISTO, Conceição. Da representação à auto-apresentação da mulher negra na literatura brasileira. Brasília: Ministério da Cultura. Revista da Fundação Palmares, 2005, p. 52-57. (Ensaios). ______, Conceição. Gênero e etnia: uma escre(vivência) de dupla face. In: MOREIRA, Nadilza Martins de Barros; SCHNEIDER, Liane (Orgs.). Mulheres no Mundo. Etnia, Marginalidade e Diáspora. João Pessoa: Ed. Universitária; Idéia, 2005. ______, Conceição. Literatura negra: uma voz quilombola na literatura brasileira. Disponível em <http//:www.bibliotecavirtual.clacso.org.ar>. Acesso em 20.01.2007. ______, Conceição. Fêmea-Fênix. Brasília, Jornal Ìrohin, nº 24. FONSECA, Jocélia. A uma guerreir@. Salvador, s/d. In: Importuno Poético. Texto impresso em folheto. FONSECA, Maria Nazareth Soares. Corpo e voz em poemas brasileiros e africanos escritos por mulher. In. ____. (Org) Gênero e representação nas literaturas de Portugal e África. Belo Horizonte: Pós-graduação em Letras: Estudos Literários: UFMG, 2002 FOUCAULT, Michel. Microfísica do poder. 17. ed. Trad. Roberto Machado. Rio de Janeiro: Grall, 2002. ______, Michel. A ordem do discurso. Trad. Marcos José Marcionilo. 9 ed. São Paulo: Edições Loyola, 2003. GUARDIA, Sara Beatriz. Literatura y Escritura femenina en América Latina. Anais do XII Seminário Nacional Mulher e Literatura e do III Seminário Internacional Mulher e Literatura – Gênero, Identidade e Hibridismo Cultural. Disponível em http://www.uesc.br/seminariomulher/anais/index. htm. Acesso em 15/03/2009. GUIMARÃES, Geni. Integridade. In: Poesia Negra – Schwarze Poesie. São Paulo: Diá, ST. Gallen/Köln, 1998

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NOTAS SOBRE A PRESENÇA DA TEORIA DE ANTONIO CANDIDO NOS ESTUDOS DE LITERATURAS AFRICANAS DE LÍNGUA PORTUGUESA Anita Martins Rodrigues de MORAES (Universidade de São Paulo)

RESUMO: Na Formação da literatura brasileira, Antonio Candido propõe o conceito de sistema literário, definindo seu estudo como a investigação do processo de constituição desse sistema no Brasil, sua “formação”. No presente trabalho, trato do aproveitamento da abordagem de Candido no âmbito dos estudos das literaturas africanas de língua portuguesa. Discuto, num primeiro momento, aspectos da proposta de Candido recorrendo a Luiz Costa Lima (Pensando nos trópicos). Descrevo, então, como tem se dado a apropriação do conceito de sistema literário e da ideia de formação nos estudos de literaturas africanas, especialmente nos trabalhos de Rita Chaves (A formação do romance angolano) e Benjamin Abdala Jr. (Literatura, história e política). Com esta estratégia, pretendo tanto notar aspectos comuns na constituição das literaturas de países marcados pelo colonialismo português, como flagrar um momento do percurso da crítica literária nestes países. PALAVRAS-CHAVE: literatura nacional; história literária; Antonio Candido; sistema literário; literaturas africanas de língua portuguesa.

ABSTRACT: In Formação da literatura brasileira, Antonio Candido proposes the concept of literary system,

defining his work as an investigation about the development of this system in Brazil. In the present article, I deal with the appropriation of Candido’s approach in Portuguese-African Literature Studies. At first, I discuss aspects of Candido’s argument and introduce some contributions from Luiz Costa Lima (Pensando nos trópicos). Then, I describe how the appropriation of the literary system concept and the idea of “formation” is taking place in Portuguese African Literature Studies, mainly in Rita Chaves’s (A formação do romance angolano) and Benjamin Abdala Jr.’s (Literatura, história e política) works. This strategy aims to acknowledge common aspects of literatures from countries that experienced colonialism, as well as to denote a specific moment of the literary criticism in these countries. KEY WORDS: National Literature; Literary History; Antonio Candido, Literary System, Portuguese-African Literature.


Anais do II Congresso Internacional de Estudos Linguísticos e Literários na Amazônia (CIELLA)

No presente trabalho, abordo um aspecto relevante dos estudos das literaturas de língua portuguesa desenvolvidos em academias brasileiras: o aproveitamento das teorizações de Antonio Candido, formuladas em torno de nossa literatura, para investigação das literaturas africanas de língua portuguesa. Com esta estratégia, pretendo tanto notar convergências e divergências na constituição das literaturas de países marcados pelo colonialismo português, como flagrar um procedimento teórico que tem se mostrado produtivo para o estudo dessas literaturas. Tratarei, inicialmente, da obra de Antonio Candido, buscando, a partir da abordagem detida de suas teorizações (para o que recorro a Luiz Costa Lima), reunir elementos que me permitam refletir sobre sua presença em dois trabalhos: A formação do romance angolano (1999), de Rita Chaves, e, Literatura, história e política (1989), de Benjamin Abdala Jr.. Interessa-me especialmente a apropriação e reelaboração de duas noções específicas e intimamente relacionadas: a ideia de “formação” e a de “sistema literário”. Nos prefácios (à primeira e à segunda edição) e na introdução à Formação da Literatura Brasileira, Antonio Candido expõe suas premissas. O autor define sua obra como um estudo dos momentos decisivos da formação de nossa literatura (os períodos neoclássico e romântico), ou seja, decisivos para a “formação” de uma “literatura propriamente dita” no Brasil. Candido se antecipa a críticas que, como atesta o prefácio à segunda edição, não deixaram de ocorrer, esclarecendo o que entende por “literatura” e “formação da literatura”. A “literatura propriamente dita” consistiria em um “sistema de obras ligadas por denominadores comuns”. Assim, podemos ter produções isoladas, não constituindo esse sistema, e então estaríamos diante de “manifestações literárias”. Para Candido, até as Academias de Letrados do século XVIII mineiro, teríamos dessas manifestações no Brasil; a partir de então, a configuração de um sistema que se consolidaria ao longo do Romantismo. Temos já que se trata de “sistema de obras ligadas por denominadores comuns”. Quais seriam e como se produziriam estes denominadores? Por um lado, temos elementos internos que concorrem para articular as obras: língua, temas e imagens partilhados. Por outro, temos elementos externos decisivos para esta articulação: 1) conjunto de produtores mais ou menos conscientes de seu papel; 2) conjunto de receptores; 3) mecanismo transmissor (“de modo geral, uma linguagem traduzida em estilos” (p. 25)). A esses três elementos, Candido acrescenta outro: a continuidade. Ou melhor, quando a literatura se constitui como sistema, “ocorre outro elemento decisivo: a formação da continuidade literária” (p. 26). E, de maneira peremptória, acrescenta: “Sem esta tradição não há literatura, como fenômeno de civilização” (p. 26). As obras serão, então, abordadas como “integrando em dado momento um sistema articulado e, ao influir sobre a elaboração de outras, formando no tempo, uma tradição” (p.26). Antes da constituição desse sistema e, então, de uma tradição, podem surgir obras de qualidade, seja por inspiração individual seja por “influência de outras literaturas”, não havendo, porém, “literatura propriamente dita” no Brasil. Luiz Costa Lima, no artigo “A concepção da História Literária na Formação”, ao atentar para a importância do qualificativo “nacional” na configuração do sistema de Candido, analisa de maneira reveladora esse conceito. Costa Lima inicia seu texto sugerindo que “a atividade críticoliterária no século XX se enraíza em três eixos”. Seriam eles: 1) “a questão da especificidade literária”; 2) “a relação da linguagem literária com a sociedade”; 3) “a ideia de literatura nacional”. (p. 149) O estudioso acrescenta que a ideia de literatura nacional remonta ao século XIX, devendo-se ao “privilégio concedido ao estado-nação” (p. 149). “Este absolutismo do nacional tornava as histórias literárias uma sucursal do pathos das histórias políticas, uma e outra movida pela ação de seus heróis e pais da pátria” (p. 150). No século XX, os dois outros eixos em que se funda a atividade crítico-literária teriam se afirmado renegando justamente essa subordinação do literário ao nacional, entendendo que esta abordagem “terminava por excluir a compreensão do próprio objeto literário” (p. 150). Numa primeira leitura da Formação, em particular de sua introdução, somos levados, entende Costa Lima, a pensar que Candido se afasta da questão nacional: “A crítica explícita ao critério determinista mostraria seu afastamento das histórias orientadas pela exclusividade do nacional.” (p. 152) Argumenta, porém, que a continuidade da leitura leva-nos a repensar seu lugar teórico. O estudioso lembra que é corriqueiro entender a proposição de Candido da seguinte maneira: “a ideia de sistema literário implica que só se pode falar em literatura nacional quando as obras aí produzidas

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são também aí recebidas e fecundadas”. (p. 160) O problema que, em sua perspectiva, não costuma ser posto é: “quão extensa deverá ser a recepção atestada para que se lhe tenha como declaradora de um sistema? Bastará uma recepção atestada para que o sistema se afirme em funcionamento?” (p. 160) Se assim fosse, argumenta, não haveria razão para a exclusão de Gregório de Matos. É então que Costa Lima examina a ideia de sistema literário notando a recorrência das atribuições de coerência e organicidade. A partir de considerações do próprio Candido a respeito da influência da antropologia social inglesa em suas teorizações, Costa Lima persegue as convergências entre a noção de “sistema literário” de Candido e a ideia de “sistema social” própria da abordagem funcionalista. Recorrendo a antropólogos como Radcliffe-Brown e Evans-Pritchard, o estudioso nos faz ver como essa vertente da antropologia, partindo de uma analogia com o contexto biológico, “privilegia a ‘harmonia ou consistência do sistema’”. O sistema social dos Nuer, por exemplo, resulta, na abordagem clássica de Evans-Pritchard, “da mais absoluta coerência e a coesão não pouco invejável” (p. 161). O resultado dessa influência na obra de Candido seria, na perspectiva de Costa Lima, “uma interpretação extremamente favorecedora da coesão homogeneizante. Quer-se dizer: ressaltadora de uma produção e de uma circulação literárias que favorecem a coesão nacional.” (p. 161) Costa Lima nos faz notar que, desde que pensado como “nacional”, o sistema literário não se consolida por haver um conjunto mais amplo de receptores (como correntemente se entende); importa que os receptores, como os produtores, estejam comprometidos com a formação/afirmação da nacionalidade. É então que entra em cena a “consciência nacional” como decisiva na consolidação do sistema literário. De certa forma, esta “consciência nacional” impõe aos escritores, irmanados “na vontade de fazer literatura brasileira”, certos temas, imagens e tratamento da linguagem, tornando-se, os elementos internos ao texto literário, mais importantes na configuração do sistema articulado de obras que os elementos externos. Esta prevalência dos elementos internos na configuração do sistema pode ser notada na seguinte passagem: Quatro grandes temas presidem à formação da literatura brasileira como sistema entre 1750 e 1880, em correlação íntima com a elaboração de uma consciência nacional: o conhecimento da realidade local; a valorização das populações aborígenes; o desejo de contribuir com o progresso do país; a incorporação aos padrões europeus. (CANDIDO, 1961, p. 75).

Nesse sentido, Costa Lima sugere que a Formação tende para o eixo da crítica literária que privilegia o nacional, concebendo a história literária como uma sucursal da história política das nações que, por sua vez, integram a grande marcha do progresso da civilização. Parece-me, porém, que a moldura teórica dessa obra comporta os três eixos da crítica literária propostos por Costa Lima, não abandonando os outros dois por aderir a esse. Vale a pena, nesse sentido, recuperar os argumentos que Candido traz para a ênfase que concede ao “nacional”: A literatura do Brasil, como a dos outros países latino-americanos, é marcada por este compromisso com a vida nacional no seu conjunto, circunstância que inexiste nas literaturas dos países da velha cultura. Nelas, os vínculos neste sentido são os que prendem necessariamente as produções do espírito ao conjunto das produções culturais; mas não a consciência, ou a intenção, de estar fazendo um pouco da nação ao fazer literatura. (1961, p. 17).

O peso dado ao qualificativo nacional do sistema literário não seria outra coisa que o reconhecimento de um fenômeno comum a países de extração colonial (como veremos, o mesmo fenômeno pode ser reconhecido em países africanos). Podemos pensar, assim, que o conceito de “sistema literário nacional” aponta para uma especificidade de certas literaturas. Em países cuja identidade nacional é problemática, dada a experiência colonial e seus desdobramentos, a literatura tenderia a adquirir uma função precisa: a de contribuir para a formação dessa identidade. Podemos pensar, nesse sentido, que a Formação, por um lado, atenta para o fenômeno da imbricação entre formação da literatura e formação da nação em países de extração colonial, atentando para as complexas relações entre estrutura social, estrutura mental e estrutura literária1; por outro, seguindo A teorização a respeito das relações entre estas instâncias estruturais desenvolve-se especialmente no ensaio “Estrutura literária e função histórica”, também incluído no volume Literatura e sociedade.

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Costa Lima, que adere a essa imbricação, tratando a literatura nacional como fator de progresso, e, assim, estabelecendo um cânone da literatura brasileira que privilegia obras e autores implicados na formação de nosso caráter nacional. Ou seja: Candido participa do fenômeno que analisa. De certa forma, a Formação atesta o vigor, até ao menos meados do século XX, do fenômeno de que trata. Com esta abordagem inicial da obra de Candido, que se estabeleceu em diálogo com a crítica de Costa Lima, pretendo sugerir que as noções de sistema literário e de formação não são unívocas. Ao nos ocuparmos de como têm se dado suas apropriações nos estudos de literaturas africanas de língua portuguesa produzidos no Brasil, importa termos em mente os diversos aspectos de cada uma dessas noções para que possamos tratar adequadamente de suas reformulações. A noção de sistema tem sido apropriada em sua versão “nacional”, como conjunto coerente de obras articuladas organicamente ocupando-se da construção da nacionalidade, ou como a articulação entre autor-obra-público? A ideia de formação da literatura tem como contraparte a formação de um caráter nacional ou limita-se à formação de grupos mais ou menos organizados de produtores e receptores? Sem a pretensão de responder a essas questões, mas tendo-as em mente, passo à abordagem das contribuições de Rita Chaves e Benjamin Abdala Jr.. N’A formação do romance angolano, Rita Chaves ocupa-se do percurso de um gênero específico, o romance. Este dado já aponta para uma reelaboração da ideia de formação. A questão se torna não propriamente a formação da literatura enquanto sistema de obras articuladas num conjunto coerente, mas a investigação de como o romance integra esse sistema, qual sua contribuição. O romance é tomado pela autora como uma forma européia que sofre transformações em Angola, seu percurso coincidindo com o da formação da “angolanidade”. A escolha dos romances a serem estudados por que decisivos na formação do gênero, em sua “aclimatação” em terras angolanas, segue um critério bastante claro: o romance torna-se nacional por se contrapor à literatura colonial, por desenvolver formas de representação do negro, da sociedade e da paisagem angolanas distintas do exotismo e da estereotipia da literatura envolvida com a ideologia colonial. Na medida em que escapa, num percurso de avanços e recuos, ao paradigma da literatura a serviço do colonizador, o romance participa do fenômeno da construção da identidade nacional que, por sua vez, é decisivo na luta contra o colonialismo. O percurso do romance angolano vê-se, assim, imbricado na trajetória de luta pela independência política do país. A literatura e, de maneira especial, o romance (dadas certas características do gênero) concorrem para a invenção da nação: “a literatura será uma das vias escolhidas para a formação de um mosaico capaz, ao menos, de sugerir alguma noção de unidade”, contribuindo para a construção da “identidade de uma nação que mal começava a ser imaginada” (CHAVES, p. 20). Esta será “sonhada” na literatura antes de ser concretizada pela luta armada; literatura, consciência nacional e movimento de libertação parecem se imbricar no caso angolano: “A nação angolana, imaginada como seria pela literatura, resulta, pois, da urgência de se contrapor algo ao projeto colonialista” (CHAVES, p. 21). Na investigação da “angolanização” do romance, a estudiosa prioriza os elementos internos. O gênero se consolida no sistema literário angolano, concorrendo para a consolidação do próprio sistema, quando alcança uma forma apropriada, capaz de esteticamente responder aos dilemas impostos pela sociedade colonial. N’A formação do romance angolano, a atenção não recai sobre a formação de um conjunto de produtores, sobre o número de leitores, os modos de edição e circulação das obras, índices de letramento, percentagem de falantes de português, etc.; recai sobre a estrutura interna das obras. No que se refere a fatores externos, o recurso a dados biográficos faz-se recorrente na medida em que úteis para comprovar o compromisso dos autores estudados com a causa nacional – causa esta que se confunde com a defesa dos grupos oprimidos no sistema colonial. Na medida em que a literatura, para ser nacional, deve se contrapor à colonial, a tomada de posição dos escritores no sentido da luta contra a opressão torna-se relevante. A estudiosa seleciona romances que, em sua perspectiva, em meio a ambivalências e contradições, paulatinamente se distanciam do paradigma colonial. É certo o diálogo de Rita Chaves, no aproveitamento da ideia de formação, com Antonio Candido. Da mesma maneira que a literatura brasileira teria lidado, nos momentos iniciais de sua formação, com uma “dupla fidelidade” (a adesão

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à cultura erudita européia e um envolvimento afetivo com a terra, gérmen da consciência nacional), produzindo-se um “dilaceramento interno”2, o escritor angolano, nos momentos inaugurais do sistema literário de seu país (que, para a autora, coincidiria com a publicação de O segredo da Morta) parece oscilar entre a valorização dos costumes locais e a adesão aos valores europeus, a uma ideia de civilização legitimadora do colonialismo. Assim, especialmente em Assis Jr. e Óscar Ribas, a estudiosa nota certa duplicidade, certa ambivalência, à maneira da flagrada por Candido nos momentos inaugurais do sistema literário brasileiro. Será por meio da análise da composição de cada uma das obras selecionadas que a autora tratará dessas ambivalências, ou seja, através do estudo da construção do foco narrativo, do espaço, do destinatário (a narrativa prevê apenas o leitor português ou tem em mente o leitor angolano? qual seu leitor implícito?) e de como cada uma delas se vale das potencialidades linguísticas (a autora nota se há o uso da norma do português ou de variantes e de línguas africanas; se as variantes e/ou línguas africanas são faladas apenas pelas personagens ou pelo narrador). As soluções encontradas por Luandino Vieira serão avaliadas como as que efetivamente se distanciam do paradigma colonial, operando a aproximação entre narrador e personagens, a construção de um destinatário angolano (mesmo que virtual), o privilégio do espaço como elemento narrativo (em especial, os musseques) e se apropriando de maneira criativa da língua – abandonando a norma portuguesa e a estratégia de recorrer ao kimbundo ou ao português angolano apenas como registro da fala das personagens (com efeito naturalista, portanto) e, assim, atribuindo estatuto literário a essa variante do português e a línguas africanas. Por seu recorte de gênero, o estudo de Rita Chaves aproveita bastante da abordagem de Candido relativa ao papel do romance na consolidação do sistema literário brasileiro. Nesse movimento, o capítulo “O aparecimento da ficção” (com destaque para o subcapítulo “Instrumento de descoberta e interpretação”) da Formação da literatura brasileira funciona como baliza teórica. Características específicas do gênero apontadas por Candido, como a originalidade, a capacidade de incorporar traços de outros gêneros literários (no caso angolano, os gêneros das tradições orais) e um “senso de historicidade” são recuperados pela autora. Certas tarefas atribuídas ao romance no Brasil encontram paralelo nas atribuídas à ficção angolana: tanto aqui como lá, a ficção teria funcionado como instrumento de exploração e levantamento das coisas da terra, dos costumes locais, contribuindo decisivamente para a formação de uma consciência nacional. Nesse sentido, Rita Chaves considera que “a trajetória do romance em Angola vem deixando nítida a vontade de seus autores de, através da literatura, colocarem em prática um projeto de investigação sobre as realidades do país.” (p. 21). A importância do espaço resulta comum à primeira ficção brasileira e angolana, delatando, em ambos os casos, um desejo de apropriação da terra. No caso brasileiro, o privilégio dado a este elemento da narrativa responde à intenção (mais ou menos consciente) de consolidar, no plano simbólico, a independência política; em Angola, à intenção de, formando uma consciência de nação, dar suporte ideológico à luta pela independência. Nota-se, portanto, que a abordagem de Candido traz ferramentas úteis para estudo do romance em suas relações com a construção de uma nacionalidade literária. A estudiosa está atenta, porém, para o fato de que, se há convergências entre os contextos histórico-sociais brasileiro e angolano de afirmação/invenção da identidade nacional, há diferenças que precisam ser notadas. O aproveitamento da abordagem de Candido relativa à formação da literatura brasileira se dá, assim, sob o signo da reelaboração, tendo em vista lidar com o diverso, não apenas com o comum. Tenho em mente, aqui, a leitura de Candido a respeito da obra de Cláudio Manuel da Costa: “O motivo poético do Soneto XCVIII se alça aqui ao nível telúrico, identificando-se o poeta aos elementos da paisagem nativa.// Esta identificação talvez tenha algo a ver com outra constante da sua obra: o relativo dilaceramento interior, causado pelo contraste entre o rústico berço mineiro e a experiência intelectual e social da Metrópole, onde fez os estudos superiores e se tornou escritor. Intelectualmente propenso a esposar as normas estéticas e os temas líricos sugeridos pela Europa, sentia-se não obstante muito preso o Brasil, cuja realidade devia por vezes fazê-los parecer inadequados, fazendo parecer inadequado ele próprio.” (1961, p. 95).

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O diálogo que Benjamin Abdala Jr. trava com a obra de Candido, em Literatura, história e política, dá-se numa direção um tanto distinta, já que de imediato não limita a noção de sistema literário à ideia literatura nacional. Abdala propõe a existência de um macrossistema literário englobando as diversas literaturas nacionais em língua portuguesa (os sistemas literários nacionais), flagrando, assim, a circulação e fecundação mútua de uma literatura engajada nessa língua. Podemos sugerir uma analogia com o Candido da Formação se tivermos em mente a noção de “sistema da literatura ocidental”, do qual participaria o sistema da literatura brasileira como um dos seus componentes. Contudo, Abdala propõe outro recorte, tanto linguístico como ideológico: seu olhar estará voltado para a articulação de obras e autores que, além do uso comum da língua portuguesa, partilhem uma concepção engajada de literatura. Este recorte conduz a uma maior atenção para os escritores neorealistas, que assumem mais claramente a literatura como instrumento de transformação social. O foco deixa de ser a consciência nacional, se continuarmos notando o diálogo com a obra de Candido, para se tornar a consciência politicamente engajada. A literatura se revela empenhada não no sentido que Candido propõe (a literatura brasileira como empenhada na construção da nação), mas no sentido de um posicionamento político-ideológico claro, à esquerda. No caso das literaturas africanas de língua portuguesa, nacionalismo e crítica ao capitalismo/ imperialismo coincidiram, sendo literaturas empenhadas tanto na construção da nação como do socialismo, o que não se verifica no Brasil ou em Portugal. Sobre essas diferenças, considera: A independência das nações africanas de língua oficial portuguesa é fato recente, assim como o reconhecimento da própria ideia de nação dentro do conjunto do país. No Brasil, essa afirmação de uma perspectiva nacional por sobre o particularismo regionais é mais antiga, como também nossa independência política. Portugal, ao contrário, consolidouse nacionalmente há séculos e foi alienador de suas ex-colônias. Apesar dessas diferenças relativas ao tempo histórico da formação nacional, envolveu-nos a todos uma situação que nos coloca em confronto com as formas alienatórias do imperialismo.” (p. 19).

Sendo a bagagem cultural comum um dos elementos que o autor apontara como favoráveis ao estabelecimento de um macrossistema literário articulando as diversas literaturas em língua portuguesa3, é, aqui, a comum reação a “formas alienatórias do imperialismo” que se torna fator decisivo. De certa forma, os escritores engajados, tendo um mesmo “inimigo”, “o imperialismo e suas formas alienatórias”, precisam somar suas forças. O crítico se inscreve nessa estratégia: Para os objetivos deste trabalho, a conceituação desse macrossistema não é apenas operacional, no sentido de propiciar uma base para os estudos comparativos ou para apontar perspectivas de modelizações do imaginário político das tendências literárias engajadas numa visão de conjunto. É igualmente um critério de estratégia política para somar forças e assim melhor situar as produções literárias de língua portuguesa no contexto internacional. (p. 17)

Abdala parece sugerir que a condição periférica dos países de língua portuguesa e, em consequência, de suas literaturas, convida ao envolvimento de escritores e estudiosos num projeto comum de resistência. O estudioso adere ao engajamento de que se ocupa, propondo uma teoria/ crítica literária também engajada. A ideia de macrossistema literário se aproveita de alguns traços da noção de sistema de Candido. Por um lado, do sistema enquanto articulação entre autor-obra-público, na medida em que flagra a circulação de obras pelo macrossistema (ou seja, entre as literaturas nacionais). Por outro, há traços do sistema como conjunto coerente, orgânico, de obras: Abdala sugere a existência de um conjunto de obras articuladas em torno de um “imaginário político” comum. Este imaginário político, devedor de certa consciência engajada, parece funcionar como “denominador comum”, promovendo certa coesão, coerência no conjunto. Da mesma maneira que Candido aponta “temas [que] presidem à formação da literatura brasileira como sistema”, “em correlação íntima com a “É dentro dessa dinâmica da comunicação em português, que envolveu historicamente constantes semelhantes da série ideológica, que podemos apontar para a existência de um macrossistema marcado como um campo comum de contatos entre os sistemas literários nacionais.” (ABDALA, p. 16)

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elaboração de uma consciência nacional”, Abdala propõe que os escritores engajados aspiram “a um canto plurívoco, coletivo, referindo-se a discursos plurais, próprios de nossa condição mestiça.” (p. 15) Há uma consciência política partilhada que aponta para certas estratégias literárias comuns. Chama-me atenção, nesse sentido, a questão da língua. Os “discursos plurais” demandam registros plurais, numa atribuição de estatuto literário a registros linguísticos comumente depreciados porque populares (como exemplo dessa estratégia, temos o cabo-verdiano Manuel Ferreira). Paralela a esta, há a tendência à simplificação da linguagem, aproveitando-se uma espécie de “variante jornalística”, tanto com finalidade didática (aqui, o caso abordado é a novela Aventuras de Ngunga, de Pepetela) como democratizante (este seria o caso de Graciliano Ramos).4 Certas estratégias de composição parecem caracterizar a literatura engajada, concorrendo para a configuração de um conjunto articulado de obras. Resta notar, e então me encaminho para as considerações finais, o diálogo entre o trabalho de Rita Chaves e o de Benjamin Abdala Jr.. Sabemos que Literatura, história e política é anterior a A formação do romance angolano e, certamente, referência para a autora. A proposição de que os escritores engajados teriam um inimigo comum, as “formas alienatórias do imperialismo”, ressoa na abordagem de Rita Chaves. Estas “formas alienatórias” são, no caso, a literatura colonial, sendo a formação do romance angolano abordada como a construção de uma alternativa literária, como um percurso em direção a estratégias de representação emancipatórias. Nesse movimento, a atribuição de estatuto literário a registros linguísticos, e mesmo a línguas, desvalorizadas pela ideologia colonial, é notada pela estudiosa, novamente em diálogo com a abordagem de Abdala. Talvez possamos pensar que o diálogo de Rita Chaves com a obra de Candido se dá tanto diretamente, a partir da apropriação e reelaboração de noções da Formação da literatura brasileira, como de maneira indireta, através do diálogo que trava com a obra de Abdala. Em jeito de conclusão, gostaria de lembrar que o recorte deste trabalho, necessário para sua viabilidade, não pretende sugerir que o as contribuições de Antonio Candido para os estudos das literaturas africanas de língua portuguesa se esgotam com as abordagens aqui investigadas, de Rita Chaves e Benjamin Abdala Jr.. Não é este o caso: Laura Padilha, Tania Macedo e Vima Lia Martin, entre outros pesquisadores, têm travado diálogos próprios, inclusive para além da apropriação das noções de “sistema” e “formação”. O estudo da presença da obra de Candido nos estudos de outras literaturas de língua portuguesa deve, assim, ser ampliado. Vale notar, ainda, que os mencionados estudiosos são referência inevitável para o estudo das literaturas africanas de língua portuguesa no Brasil, suas contribuições repercutindo em trabalhos de pós-graduação em diversos espaços acadêmicos, para além daqueles de que imediatamente participam como docentes. Nesse sentido, um grande número de trabalhos pode, mesmo sem estabelecer um diálogo direto com a obra de Candido, lidar com suas teorizações já a partir das apropriações e reformulações desses pesquisadores. Atentar para como, em cada abordagem concreta, essas apropriações/reelaborações têm se dado, convida tanto a novos olhares para a obra de Candido, atestando sua produtividade, como pode contribuir para o desenvolvimento teórico dos estudos das literaturas africanas de língua portuguesa. O presente trabalho torna-se, assim, menos o resultado de pesquisa já encerrada que uma proposta metodológica para investigações futuras. Referências Abdala Júnior, Benjamin. Literatura, História e Política. São Paulo: Ática, 1989. Candido, Antonio. Formação da Literatura Brasileira: momentos decisivos (v. I). São Paulo: Martins, 1961. ______. Formação da Literatura Brasileira: momentos decisivos (v. II). Belo Horizonte: Itatiaia, 1993. ______. Literatura e Sociedade. São Paulo: Nacional, 1965. Chaves, Rita de Cássia Natal. A formação do romance angolano. São Paulo: FBLP, Via Atlântica, 1999. Costa Lima, Luiz. Pensando nos trópicos. Rio de Janeiro: Rocco, 1991. 4

Estes apontamentos têm como referência o quarto capítulo do livro de Abdala, “A escrita literária” (p. 72-113).

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MUSAS E MOSCAS NOS REPENTES URBANOS DE LUCY BRANDÃO: CONTRACULTURA, MODERNIDADE E PERFORMANCE Antônio José Rodrigues XAVIER (Universidade Estadual de Alagoas)

RESUMO: Filiado à linha de pesquisa “Literatura, Cultura e Sociedade”, este trabalho investiga os diálogos estabelecidos entre a literatura e a contracultura. Pretende-se compreender como as pulsões contraculturistas das décadas de 60, 70 e 80 marcaram a produção poética da comunidade maceioense a partir da produção poética de Lucy Brandão (repentista urbana e performer). Esta pesquisa, de natureza qualitativa, verificou um processo de desterritorialização das linguagens e, através de entrevistas com artistas e intelectuais da época, verificou a presença estética da existência contraculturista de Lucy Brandão. A partir de Paul Zumthor (2007), que entende a poesia como travessia pela cadeia epistemológica sensação-percepção-conhecimento-domínio do mundo e da afirmação de Néstor Garcia Canclini (2003) de que são quatro os movimentos constituintes da modernidade, a saber; movimento expansionista, movimento emancipador, movimento renovador e movimento democratizador, essa pesquisa verificou a presença de processos dessacralizadores, desterritorializantes e descolecionalizadores como no caso dos repentes urbanos de Lucy Brandão. PALAVRAS-CHAVE: repentes urbanos; contracultura; modernidade; performance; Lucy Brandão.

ABSTRACT: This research, linked to the “Literature, Culture and Society” group of studies, investigates the dialogues between literature and counterculture. We intend to understand how the counterculture was a boost to the poetry of the maceioense community in the 60s, 70s and 80s, using here the Lucy Brandão’s project. This qualitative research has checked a dislocating language process and, by interviewing artists and intellectuals of that moment, we have observed the aesthetic presence of the Lucy Brandão’s existence. Following the Paul Zumthor (2007) theory, we understand poetry as a world’s feeling-realizing-knowledge-domain epistemic chain and; according to the Néstor Garcia Canclini (2008) theory; we understand modernity by its four movements: expansionism, emancipation, renewing and democrat. We verified the presence of an unsacred, dislocated and discollected process such as the Lucy Brandão’s production of repentes urbanos. KEY WORDS: Brazilian oral poetry; counterculture; modernity; performance; Lucy Brandão.


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1. Introdução A produção literária de Lucy Brandão (1961-2000), poeta e performer, que se desenvolveu nos anos 70, 80 e 90, pode ser lida como uma representação tardia da lírica da modernidade negativa e dissonante. Nela, registra-se uma latente tendência pós-moderna, muito inicial, no que se refere a suas aproximações peformanciais contidas em seus “repentes urbanos” e na hibridação formal na última década do século XX. Por buscar o público, fazendo-se sujeito-artífice in presentia, posto que sujeito-empreendedor de uma “atividade-ação” e constituinte de um acontecimento estético, Lucy Brandão finca sua singularidade na poesia alagoana. Ao referir-nos aqui a “repentes urbanos”, registramos o deslocamento da forma secularmente concebida do repente – a da poesia oral da região nordeste – para uma motivação performática em diálogo com uma complexidade citadina mais para o metropolitano do que para o campesino. Maria Lucy Brandão Maia Gomes, nascida em 12 de agosto, na cidade de Maceió, no Parque Gonçalves Ledo, bairro do Farol, filha de Iolanda Albuquerque Brandão e Carlos José Brandão Maia Gomes, era considerada precoce em se tratando dos valores da sociedade e cultura da época. Em sua infância e adolescência já demonstrava inquietude face aos costumes e à moral vigente. Integrava desde sua adolescência, um grupo que marcaria a história e cultura alagoana a partir da década de 70 e 80 por suas transgressões e atitudes libertárias. Tais transformações acompanham, em Maceió, a substituição da repetidora de TV em União dos Palmares (Tupi) pela local TV Gazeta (Rede Globo), a implantação da indústria Salgema por grupos vinculados à ditadura militar, que provocam um forte impacto ecológico e urbano, a substituição dos supermercados CEIA pela então rede Bompreço, renovando e ampliando as ofertas e produtos de consumo e a expansão da rede hoteleira, com o Luxor Hotel e o Beira-mar, por exemplo, já vislumbrando o progresso da indústria do turismo no “Paraíso da Águas”. É justamente na metade desse caminho, entre o final da década de 70 e o início da década de 80, momento histórico ainda sob o Governo Militar, que os filhos da classe média alta da cidade de Maceió, aliados a intelectuais e artistas, optam por atitudes mais libertárias como, por exemplo, morar sozinhos e libertarem-se sexualmente da rigidez das tradições locais, e engajam-se em movimentos culturais de vanguarda do tipo “contracultura”. Esse movimento, segundo Hebert Marcuse (1969), “a grande recusa”, já despontava no hemisfério norte desde a década de 60 e encontra no Tropicalismo sua maior expressão transculturada em nossa comarca. Assim como os salões franceses abrigaram intelectuais inquietos, a contracultura alagoana tinha seus espaços sociais significativos, geralmente bares gays ou ruas escuras, distante da cidade oficial, mais diurna. Em atitudes e linguagem, ocorre o projeto poético-performático de Lucy Brandão, que abriga um eu-lírico capaz de resgatar e atualizar temas muito apreciados pelas tendências contraculturistas, tais como: equilíbrio ecológico, amores libertos de preconceitos, defesas de minorias e contestação de valores morais e éticos de uma sociedade conservadora como a maceioense. Nessa perspectiva, pretendemos com esse trabalho fazer um levante de algumas qualidades estético-formais que a produção poética de Lucy Brandão traz como acontecimento da arte no tecido social maceioense e, nessa medida, como ela mimetiza o fluxo da contracultura pós-60. Tal empreendimento busca contribuir com a ampliação da fortuna crítica sobre os textos literários produzidos em Alagoas, com a compreensão do funcionamento dos imaginários locais e com uma apreciação sobre o elastecimento de seu cânone. 2. Vanguarda contraculturista e performance: “o repente mais real tatuado na mente” De que forma – e “a forma se percebe em performance, mas a cada performance ela se transmuda” (ZUMTHOR, 2007, p. 33) – a contracultura se faz presente na produção poética de Lucy Brandão? Na medida em que estamos tratando de um projeto poético cuja realização dos eventos1 estéticos se 1

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Entende-se por evento todo acontecer vivido da existência que motiva as operações textuais, nelas penetrando como

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dava através da inscrição do corpo in presentia, que qualidades estético-formais esse corpo atribui ao signo poético veiculado pelos repentes produzidos por Lucy Brandão? Na tentativa de encontrar respostas para as indagações aqui colocadas, destacamos a compreensão teórica de Paul Zumthor (2007) acerca do termo performance. Palavra de significado denso, a performance coloca o signo poético a prova. Nessa perspectiva: 1. mais que um meio pelo qual o artista se comunica, ela impõe ao signo poético, através da forma, sua inscrição particular no evento estético; 2. como concretude da recepção, ela faz do evento estético “modo vivo de comunicação poética” (ZUMTHOR, 2007, p. 34); 3. por se tratar de um fenômeno heterogêneo, ela potencializa os processos de hibridação cultural e, por conseguinte, hibridação textual; 4. como práxis, ela inclui o corpo e sua capacidade sensorial e sinergética na materialidade discursiva, sobretudo, quando define sua poeticidade; 5. como capacidade retórica, ela institui a modernidade tentando traduzir vanguardas, apesar de “seus dilaceramentos, suas relações conflitivas com movimentos sociais e políticos, seus fracassos coletivos e pessoais, [poderem] ser lidos como manifestações exasperadas das contradições entre os projetos modernos” (CANCLINI, 2008, p. 43); 6. como ritualidade, ela exige da literatura, “uma das manifestações culturais da existência do homem”, a articulação de “textos identificados como tal, produtores assim identificados, público iniciado” (ZUMTHOR, 2007, p. 47). Nessa medida, não podemos confundir performance e recepção, pois esta última exige uma compreensão histórica, a imprevisibilidade de uma duração e a extensão dinâmica de um texto que percorre uma comunidade de leitores e que produz efeitos. Assim sendo, A performance é outra coisa. Termo antropológico e não histórico, relativo, por um lado, às condições de expressão, e da percepção, por outro, performance designa um ato de comunicação como tal; refere-se a um momento tomado como presente. A palavra significa a presença concreta de participantes implicados nesse ato de maneira imediata. Nesse sentido, não é falso dizer que a performance existe fora da duração. (ZUMTHOR, 2007, p. 50)

Para melhor compreendermos as relações entre performance e contracultura, cabe aqui por em evidência qual o entendimento teórico que estamos delimitando com relação a contracultura. Inicialmente, esse conceito vem marcado por rupturas e inovações, teores culturais transgressivos projetados sobre as manifestações artísticas, científicas, espirituais, filosóficas e de estilo. Em segundo lugar, destacamos um levante de bandeiras em favor da diversidade, da transparência, da autonomia e da densidade nas relações interpessoais. Outrossim, um culto à democratização das condições materiais de sustentação humana (o que implica a generosidade e a partilha de instrumentos), uma resistência à perseguição pela cultura hegemônica e uma certa tendência ao exílio ou fuga. Segundo Goffman e Joy (2007, p. 50), são características fundamentais da contracultura: As contraculturas afirmam a precedência da individualidade acima de convenções sociais e restrições governamentais. As contraculturas desafiam o autoritarismo de forma óbvia, mas também sutilmente. As contraculturas defendem mudanças individuais e sociais.

Na contracultura pós-60, a performance foi utilizada por muitos com o intuito, nos termos de Canclini (2008, p. 31), de emancipação, de expansão, de renovação e de democratização da arte; temporalidade e subjetividade. [...] O evento, aquilo que me sobrevém, a mim e em mim, constitui-se como uma experiência significativa do sujeito, vivência aberta e múltipla, e que a forma só aparentemente encerra nos seus signos e símbolos. [...] A forma estaria para o evento assim como o nome-identidade de um homem está para a existência, plural e fluida, sua vida pessoal. A forma do poema e o nome do sujeito: claro enigma, ambos; ambos aparência e problema. (BOSI, 1988, p. 275-277).

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problematizando as contradições dos projetos da modernidade. Assim sendo, quando o poeta contraculturista opta pela performance, ele: 1. politiza o evento estético desde sua cognição à sua percepção formal a instituir “a tradição da ruptura” nos termos de Octávio Paz; 2. tece aproximações entre a narrativa histórica e a forma poética estetizando existencialmente2 os sujeitos envolvidos pelo acontecimento da arte e desestabilizando a realização mimética; 3. produz transes transculturadores dessacralizando e descolecionando objetos culturais, desterritorializando e reterritorializando linguagens, hibridizando paradigmas socioculturais através da práxis (entendendo essa, no sentido marxista, como intervenção em uma dada realidade); 4. disponibiliza o corpo, individual por natureza, para a construção coletiva dos eventos estéticos; 5. restaura reservas utópicas na constituição do que aqui estamos chamando de vanguarda contraculturista. Assim sendo, a contracultura é presença marcante na produção poética de Lucy Brandão; e uma das portas de entrada e contato com o signo poético que seu projeto abriga é, sobretudo, a performance. Podemos afirmar, categoricamente, que, sem o (re)conhecimento desse caminho, comprometemos significativamente as possíveis leituras sobre seu projeto. No entanto, e cremos que isso se torne fundamental para compreendermos como seu projeto alcança certa particularidade estética, não podemos esquecer de que aliado às performances, devemos destacar a produção de repentes urbanos. Estamos adotando a compreensão de repentes como a atividade da literatura oral herdada pelos poetas, dos colonizadores, que trazem, da idade média, a poesia oral como matriz a reboque em sua cultura política, ressemantizada, posteriormente, no Brasil, como repentes. Tais repentes, hoje, se encontram demarcados com o status de cultura popular, e Lucy Brandão, em seu projeto poético, desterritorializa-o, desarticulando sua natureza mais campesina e reterritorializando-o com os signos da modernidade que teve como porta de entrada os centros urbanos de maior porte. Os antigos significados, pois, pela voz poética e performance de Lucy Brandão, são ressemantizados na Maceió dos anos 70, 80 e 90. O espectro vanguardista do projeto poético de Lucy Brandão traz o fluxo da modernidade carregado por uma negatividade lírica de fundamental importância para jogar com os avessos da tradição conservadora. Emancipando-se das amarras do centro, sua produção poética torna-se acontecimento estético e democratiza, no corpo a corpo com o popular, o acesso a uma lírica mais contrapositiva que enfrentava o contra-fluxo da cultura política da conservadora sociedade local. Buscando e atualizando as energias utópicas acionadas pelos românticos e (re)dimensionadas pelos modernistas no sistema literário brasileiro, a vanguarda contraculturista, na qual Lucy Brandão se inseria, representou uma forma de resistência à hierarquização e, conseqüente, verticalização da circulação dos objetos de arte no tecido social local. Nessa medida Canclini (2003, p. 44-45) observa que A frustração dessas vanguardas foi produzida, em parte, pela derrocada das condições sociais que alentaram seu nascimento. Sabemos também que suas experiências se prolongaram na história da arte e na história social como reserva utópica, na qual movimentos posteriores, sobretudo na década de 60, encontraram estímulo para retomar os projetos emancipadores, renovadores e democráticos da modernidade.

Contemporâneo ao projeto poético de Lucy Brandão, o grupo “Vivarte”, formado por representantes destes “descendentes”, traz, à pauta, discussões tais como as colocadas no manifesto abaixo, construído por uma alagoana que há muito se encontrava fora do cenário das artes na cidade de Maceió e que se uniria a este grupo de representantes da contracultura local: Da Antiguidade ao cristianismo, passa-se de uma moral que era essencialmente a busca de uma ética pessoal para uma moral como obediência a um sistema de regras. Se me interessei pela Antigüidade foi porque, por toda uma série de razões, a idéia de uma moral como obediência a um código de regras está desaparecendo, já desapareceu. E a esta ausência de moral corresponde, deve corresponder uma busca que é aquela que é uma estética da existência. (FOUCAULT, 2006, p. 290).

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Tema geral: Línguas e Literaturas: Diversidade e Adversidades na América Latina MANIFESTO DO GRUPO POR: MARIA AMÉLIA VIEIRA3 O contato, o abstrato se faz a partir de nós, sem amarras... Não somente a sede de pensar em grupo, a fome de todos os frutos-ARTE. Sinto que queremos mais. Queremos o compromisso de fazer do ofício, um instrumento cortante para ataque ou defesa contra o inimigo. Pretendemos combater tudo que ameaça a liberdade de criar. Saciaremos nossa sede decifrando todos os conceitos de arte, assimilando todos os seus movimentos, reconhecendo no nosso tempo, o único espaço capaz de receber nossas obras. Uma obra de arte não está obrigada a ser compreendida e aprovada, por quem quer que seja. A função da obra de Arte não é de passar por portas abertas, mas de abrir portas fechadas. Se conseguirmos nos organizar, seremos muitos, não importa se estamos em Maceió, no comodismo provinciano, no marasmo infame. Se...

Sem amarras ou comprometimento com o establishment, promovendo um “vivartismo”, Lucy Brandão fazia colidir vida e arte estetizando sua existência e realizando seu projeto poético. Um aspecto evidente da contracultura na produção poética de Lucy Brandão, ao adotar estrategicamente os repentes como sistema de produção poética, encontra-se referenciado pela atitude combativa à sociedade tecnocrata, reprodutora da “cidade letrada”4 instituída historicamente pelo processo colonizador. Nessa perspectiva, ela retoma não somente o repente como estratégia, mas também como memória, na medida em que A contracultura ainda não é um movimento tão disciplinado. Ela tem algo da natureza de uma cruzada medieval: uma procissão variegada, constantemente em fluxo, adquirindo e perdendo membros durante todo o percurso da marcha. Com bastante freqüência, encontra sua própria identidade num símbolo nebuloso ou numa canção, que pouco mais parecem proclamar além de que “somos especiais ... somos diferentes ... estamos fugindo das velhas corrupções do mundo”. (ROSZAK, 1972, p. 60)

Lucy Brandão, integrante da vanguarda contraculturista de Maceió, produzia seus repentes in loco e em seguida sentava-se no primeiro lugar disponível, transcrevendo-o em um pedaço de guardanapo, em sua agenda ou em qualquer outro pedaço de papel disponível. Foi assim que conseguimos integrar sua produção poética ao corpora dessa pesquisa, através de seus registros pessoais fornecidos por amigos e familiares. Um desses registros encontra-se abaixo transcrito e entendemos os dois momentos, o da performance e o da leitura, como constituintes do evento estético, pois, de acordo com Zumthor (2007, p. 35), “o que na performance oral pura é realidade experimentada, é, na leitura, da ordem do desejo”. Trata-se de uma transcrição literal e preferimos mantê-la como tal, Esse manifesto, ainda em via de publicação, consta no acervo pessoal do pesquisador Ricardo Maia que, gentilmente, cedeu uma cópia para seu registro em nossa pesquisa. Trata-se de um documento do tipo “diário”, construído por ele e Maria Amélia Vieira, sob o Título “Noitário de uma revolta” (1984/1985), que registra as falas dos artistas plásticos, intelectuais e representantes da cultura alagoana que participaram das reuniões do grupo Vivarte. Cabe aqui salientar que Lucy Brandão nunca foi convidada a participar de nenhuma das discussões do citado grupo. Uma análise mais aprofundada do movimento desse grupo e da existência desse documento pode ser encontrada na dissertação de mestrado de Ricardo Maia (1999). 4 Termo utilizado por Ángel Rama com referência ao colonizador que “para levar adiante o sistema ordenado da monarquia absoluta, para facilitar a hierarquização e concentração do poder, para cumprir sua missão civilizadora, acabou sendo indispensável que as cidades, que eram a sede da delegação dos poderes, dispusessem de um grupo social especializado ao qual encomendar esses encargos”. (RAMA, 1985, p. 41) 3

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pois reconhecemos certo propósito poético de referenciar situações da oralidade, nos desvios da norma culta, como procedimento mimético de uma posição política oposta ao establishment, em uma atitude psicodélica, muito a gosto dos contraculturistas. Esse repente foi produzido, em uma précarnavalesca, na saída do bloco “Os Filhinhos da Mamãe”, cujo aquecimento hoje se dá no Museu Théo Brandão, de quem Lucy Brandão era sobrinha-neta. Vejamos o repente: O Cú do Povo Clássico na Nação Caeté5 Até que meus gritos cortem os oceanos, os punhos e os panos, encharcados do vermelho da vida que se esvai. O cú do povo, foi o repente mais real tatuado na mente; E não ficou só nos manuscritos, descrevi meu chorar.

Depois dos cânticos e sorrisos ... Renasce e acorda o Poeta sã dos goles à mais. Revolta-se com a repressão e liberta a expressão, Com as performances mais ousadas e urgentes, uau o dialeto verdadeiro e baixo, grita: o cú do povo se espreguiça, ao som de Vassourinhas. A Nação é Caeté e os Índios são antropófagos.

Nisso o cú do povo: chiiia. Balançando as ancas e as potrancas nos requebros car navais, na festa da carne e da poesia à fantasia. Os Filinhos da Mamãe, na praça ,no passo ,no pé , No olho:do cu do povo,que se amam,bebem e dançam Nas ilusões dos folclóricos menestréis dos ritmos.

O efeito de “transe”, entre o conceito de clássico e de popular, que confere à forma do poema sua validade híbrida, concentra sua força dissonante no uso retórico da expressão chula “cu do povo” e sua tensão no teor semântico-estilístico do conceito de “perversidade” que esta expressão abriga. O repente, além da forma muito atrelada à cultura política da época, com uma negatividade lírica acentuada, encontra-se fortemente marcado pelas manifestações híbridas; tal hibridização se dá pelo cruzamento da linguagem verbal, da interpretação cênica e do registro escrito. A manifestação lírica, gestada in presentia e constituída como cena, é marca fundamental da produção poética de Lucy Brandão, apontando criticamente para as circunstâncias do momento cultural e político, buscando no evento carnavalesco, na forma de uma pulsão crítica e negativa, uma motivação (est)ética para seu repente urbano. Parte dos companheiros de Lucy Brandão que integrava o bloco também pertencia à classe média alta, o que gerava uma tensão significativa: oporse a uma hegemonia por dentro. O público presente ao evento, em princípio, compartilhava, com os mesmos companheiros libertários de outrora, a atitude poética e performancial por ela posta em cena. Destaque-se o fato de se tratar de uma mulher fazendo uso da estratégia dos repentes, mais atrelada ao universo masculino, e isso implicava, sobretudo, uma contradição aurática com a política cultural daquele momento. Canclini (2003, p.40) analisando a arte nas sociedades modernas pela “ruptura das convenções”, afirma que desta forma é possível que ela se torne um fato social, propondo que: [...] os inovadores corroem essa cumplicidade entre certo desenvolvimento da arte e certos públicos: às vezes, para criar convenções inesperadas que aumentam a distância em relação aos setores não preparados; em outros casos [...] incorporando a linguagem convencional do mundo artístico às formas vulgares de representar o real.

Dentre outras, essa marca dissonante – o uso da expressão chula “o cu do povo” – atravessa o poema como um “projétil” (FRIEDRICH, 1978, p.17), desarmonizando a aura daqueles 5

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Lucy Brandão, 2000.

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neoconservadores através do teor discursivo agressivo que sustenta o transe em destaque. O alto teor dramático que se integra à cena popular, subverte a fantasia e acrescenta-lhe novos signos; estes, cheios de negatividade lírica, no ritual da alegria que representa a cena carnavalesca, muito a gosto da “lucidíssima” Lucy Brandão6, retomam a transgressão como uma qualidade crítica. 3. Contracultura, modernidade e sujeito-artífice: “vulto humano transformando” Lucy Brandão, em sua poesia e performance, subverte a forma dos objetos líricos que constitui seus repentes urbanos, condenando a linguagem a responsabilizar-se por sua própria renovação, para existir criticamente em um mundo conservador. Na contramão dos discursos, ela diz para “desdizer”, para se tornar contra-fluxo da lógica imbuída de sua realização cultural estável. O jogo dos avessos. Uma pulsão mágica exercida pela linguagem e “a magia lingüística pode manifestar-se na força sonora dos versos, mas também no impulso das palavras que dirige a criação poética” (FRIEDRICH, 1978, p.134). O ofício de Lucy Brandão, poetizar a vida; sua profissão, repentista urbana. Nesse sentido, Lucy Brandão entendia o reconhecimento do público – elemento pontual e fundamental pelo caráter interativo de seu poetar ao fazer uso do repente – e da crítica – “ainda que o mercado necessite reinventar muitas vezes as hierarquias para renovar a distinção entre os grupos” (CANCLINI, 2003, p. 353) –, como um valor relativo e transitório, portanto, circunstancial. No entanto, seria destas circunstancialidades que o eu-lírico configuraria esta face “guerreira” e provocante da personalidade poética que comunicava significados libertários em suas performances. Em outro poema seu, publicado na coluna “Domingueiras” de Noaldo Dantas, no Jornal “Opinião”, na página 12 (temos apenas uma cópia onde não nos permitiu verificar o dia e outras informações mais específicas, a não ser, por estar escrito na parte superior, pelo próprio punho, “escrita em meados de 82”), reitera essa tendência de objetos contraditórios, híbridos, como os da representação das metamorfoses culturais: GIRA Gira som Girassol Gira cor Viração giração Vibração de sol a som geração Nas madeiras amarelas das violas Nos quintais e sítios girassol tropicais Roda rola gira Cigarros cachaças pomba gira Gira palcos gira nós Nas noites nos dias Gira mesas girassóis

A linguagem do poema articula, através de seu jogo sonoro, a construção dos signos poéticos que antes mesmos de quererem significar isoladamente, sugerem a unidade. Do título “Gira”, seja como afixo ou como palavra isolada, transparece a metáfora de uma engrenagem em movimento contínuo e a presença da forma circular em movimento que tanto inspira sua dinâmica como sentido. A pluralidade de combinações sígnicas recupera da reserva utópica contraculturista seu evento estético e, nessa medida, o poema assume o ideário contraculturista quando: Assim a chamou Marcos de Farias Costa, registrado no folder da “Cruzada Plástica”, evento produzido por Ricardo Maia, integrante do Grupo Vivarte e pesquisador do campo artístico de Maceió.

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a) metaforicamente, a forma de “engrenagem” (tipo máquina) se faz presente e o eu-lírico promove uma dissonância crítica entre a condição do negro brasileiro como escravo – historicizando sua trajetória – e a do trabalhador contemporâneo; b) se percorrermos todas as palavras associadas a “gira”, elas implicam um valor mundano positivo que a contracultura valoriza (música, show, sol, tropico, ócios, bebidas, natureza); c) o dizer poético em versos curtos, subvertendo a combinação das palavras e feminilizando a sonoridade7 (a letra “g” obriga, de certa forma, uma movimentação na boca que a tradição masculina8 local costuma assim marcar, o “biquinho”) confere à performance a alusão ao discurso gay da década de 70 . Em contrapartida, por entre o teor imagístico-sonoro que evoca engrenagem, incide sobre o acontecimento estético uma acentuada exaltação ao “girassol”, e, nessa perspectiva, imprime ao signo poético uma conotação9: a) natural (a natureza torna-se templo da contracultura ocidental pós-60) quando nos versos “Girassol”, “nas madeiras amarelas” e “girassol tropicais” recupera seus atributos de flor – “pode atingir 3 metros de altura, notável por ‘olhar para o sol’, comportamento vegetal conhecido como heliotropismo – e por serem “originárias das Américas, domesticadas por volta do ano 1000 a.c.”; b) cultural, no sentido estético, evocando uma das obras mais conhecidas do pintor Vincent van Gogh, “Os Girassóis” – pintor holandês, marginalizado por toda a sociedade do século XIX (não nos esqueçamos que esse século é marcado pela Revolução Industrial), e influenciou o expressionismo, o fauvismo e o abstracionismo da arte do século XX, pioneiro na ligação das tendências impressionistas às aspirações modernistas; c) mítica, posto que remete à mitologia grega na associação da paixão feminina de Clytia pelo deus Apolo que, sem poder fazer nada, observava-o cruzar o céu e após nove dias, ela foi transformada em um girassol. Não podemos esquecer ainda que Francisco Pizarro encontrou diversos objetos Incas e imagens moldadas em ouro da planta em que fazem referência aos girassóis como seu deus do Sol. Seguindo essa tendência de apropriar-se das cadeias sonoras para fazer acontecer e modificar o signo poético, Lucy Brandão marca seus repentes como urbanos, incorporando seus sentidos e apreendendo suas dinâmicas. Nessa perspectiva, observemos o ritmo que, através do encadeamento sonoro e semântico, projeta sentidos sobre o poema a seguir, e atentemos para o processo metassemêmico atribuído à urbanidade: Passando Passo passado passando Com passo sem passo Passo ruas rios Rindo passos choros Passarinho passa pégaso Passas uvas murchas De amor orgias gias mangues Pelas esquinas passam passeios Passas peras peles penas finas Passam passeatas pistons “A linguagem humana é pensamento-som, conforme a expressão feliz de Saussure. Mas nem o pensamento nem o som se comunicam por si mesmos: aparecem para o homem em sociedade, já reunidos em articulações que se chamam signos. A rigor, dentro da teoria de Saussure, nada há de verbal aquém da síntese pensamento-som, nem além dela. O som em si e o pensamento em si transcendem a língua. No entanto, a experiência de cada um nos diz que a poesia vive em estado de fronteira. [...] No poema, força-se o signo para o reino do som.” (BOSI, 2000, p. 48-49). 8 “A voz é vibração de um corpo situado no espaço e no tempo. É de supor que tenha ocorrido, em algum momento, uma relação vivida (difícil de precisar em termos de consciência, hoje) entre os movimentos do aparelho vocal e as experiências a que se vem expondo o organismo há milhares e milhares de anos.” (BOSI, 2000, p. 49) 9 http://pt.wikipedia.org/wiki/girassol (acesso dia 25 de maio de 2007) 7

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Tema geral: Línguas e Literaturas: Diversidade e Adversidades na América Latina Pinos de tímpanos Panos velhos dos Passos do passado Foram tantos dias para fecundar estas palavras parábolas Que inspiro e insisto em existir Vulto humano transformando em quilos de carne Em decomposição Desnudo de inspirações ou vontades Andam paralelos as Máquinas e nada vêm Além de vozes e multidões marcadas Passo eu.

O poema estetiza o ritmo cotidiano do espaço urbano e metropolitano, ao lado de imagens da natureza que pouco a pouco se desfazem e murcham. A disposição estratégica das palavras, na primeira estrofe, mimetizando o caos urbano, deliberadamente articulam-se em desordem, desconhecendo uma as outras por entre os versos, assim como fazem as pessoas nas grandes metrópoles. A frequência marcada da letra “P” (aliteração), inicialmente pela significação da palavra “passo”, além de conferir à mímesis o substrato do ritmo das metrópoles, acentua a aura de certa tendência à massificação por meio desse ritmo. As demais palavras incidem diluídas entre essas, no signo poético, como a marca da diferença que, em meio ao turbilhão, promovem a dissonância. O verso “Que inspiro e insisto em existir” marca a divisão entre as duas estrofes, delimitando também a noção de estética da existência de Lucy Brandão. Enquanto a primeira estrofe, imersa numa dinâmica de movimentos, inquieta as palavras como vida urbana intensamente acelerada, a segunda, liricamente densa em sua negatividade, projeta sobre o signo poético a morte em vida, a deteriorização dos desejos e dos sonhos e o sonambulismo existencial. Ainda assim, apesar de tudo “Passo eu”. A harmonia desarticulada dos sentidos, acompanhando a negatividade lírica para (ex) comungar a tradição, abre espaço para que o novo, por mais absurdo que seja, possa inserir-se como prazer estético nas performances da produção poética de Lucy Brandão. Essa (ex-) comunhão se apresenta no caráter da linguagem que, no poema “Gira”, traduz, pelo princípio da continuidade, a manutenção da condição de escravo aproximando-o poeticamente da imagem da máquina, enquanto que no segundo, configurando a imagem espectral do “morto-vivo” por entre a multidão, o eu-lírico impõe ao acontecimento estético uma tensão dissonante. Já associamos, anteriormente, sua produção poética ao veio da modernidade que se estabeleceu em nossa lírica desde o século XIX e, posteriormente, alimentou o acervo utópico das rupturas, nas duas primeiras décadas do século XX e na década de 60. Contrariando a discursividade do establishment, Lucy Brandão resgata liricamente essa reserva utópica presente na memória e, nessa medida, queremos lembrar aqui a Poesia Pantagruélica: A poesia do absurdo teve no Brasil um momento de particular interesse durante o Romantismo, sobretudo entre os estudantes de Direito de São Paulo, que a denominaram “poesia pantagruélica”. Sendo um jogo de grande força burlesca, foi também às vezes tributária de outros registros, mas sob todos os seus aspectos pode ser vista como manifestação de negatividade, que é um traço romântico importante. De fato, ela é um modo de contrariar tanto a ordem quanto as finalidades do discurso, estabelecendo um antidiscurso marcado pela falta de significado “normal” e a criação de significados próprios, aberrantes a seu modo. (CÂNDIDO, 1993, p. 225).

Nessa perspectiva, alçando um vôo psicodélico, muito próprio dos contraculturistas, a produção poética de Lucy Brandão assume a condição de herdeira dessa tendência e se faz presente na literatura maceioense com a lírica negativa da modernidade. Verifiquemos essa herança no poema a seguir:

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Anais do II Congresso Internacional de Estudos Linguísticos e Literários na Amazônia (CIELLA) Mistérios da Noite Nestas terras com coqueiros Mistérios e desesperos com auroras de barras avermelhadas Grande sonho ilumino-me Da obscura força da noite Início do sonho: rosa céu despetalando-se em estrelas Cometas nas mudanças de rumo Indo a outro lugar nos delírios da vida Vozes roucas perdem-se na escuridão Esperando uma lua gorda que veio nas noites dos hemisférios Você estrela de cinco gumes Ofuscante teu brilho que chega a encandear Cego e as tontas entre Naturezas semi-mortas Mordo o medo de te querer nas noites Com minhas presas

4. Contracultura, performance e política cultural: “serei eu sob qualquer ameaça nata” Lucy Brandão desloca o repente para o espaço urbano, construindo uma estética multissígnica que tende a provocar um transe através de performances; o objetivo era desestabilizar a concretude da recepção, acomodada ao cânone poético vigente. Ora, nessa perspectiva, a “cadeia epistemológica sensação-percepção-conhecimento-domínio” encontrava-se contaminada pelos vínculos historicamente constituídos pelas pulsões do hegemônico e isso se evidenciava, sobretudo, pela ditadura militar na época. A presença da voz neste projeto e nas circunstâncias históricas que o sustentam – resíduos comportamentais de poetares pressionados pelo silêncio imposto pelo autoritarismo das ditaduras – tende a provocar na anima dos sujeitos em interação um insustentável desejo de (trans)parecer e compartilhar o “novo”, aliás, o incompreendido “novo” que há muito circunda os espectros distópicos da tradição. Estamos tratando de uma geração que não tinha imprensa, portanto, enfrentava sérias dificuldades de constituir uma massa político-crítica. Através de colocações feitas por Heloisa Buarque de Hollanda na TV SESC/SENAC, essa geração tinha como objetivo o “levar a sério o trabalho de literato”. Lucy Brandão é um exemplo dessa modalidade de sujeito-artífice. Os olhares lançados sobre o “dizer poético” das vozes deste momento histórico no Brasil percebiam o teor lírico dissonante que se energizava e formava lugares de sustentação para discursos contestatórios e libertários. Já havia por parte do establishment a percepção desses grupos contraculturistas como distópicos para a cultura política e (est)ética do centro. Nessa perspectiva, é possível afirmar que estamos num momento de acesso intenso a uma atitude formal sedimentada pela modernidade estética de outros momentos de nossa literatura. Tratava-se uma difusão ampliada da “consciência catastrófica de atraso, correspondente à noção de ‘país subdesenvolvido’”, nos termos de Candido (1972, p. 345). As vozes que ecoam desta sedimentação estão presentes na leitura de mundo destes sujeitos, militantes de uma poética que trazia consigo uma carga temática crítica, e, conseqüentemente, comprometidos socioculturalmente com a projeção e percepção estética dos sujeitos que integravam a concretude da recepção. A importância cultural e estética das performances no projeto poético de Lucy Brandão já confirma essa tendência, como propõe Zumthor (2000, p.102): Tais são os valores exemplares produzidos pelo uso da voz humana e sua escuta. Elas só se manifestam, de maneira fortuita e marginal na cotidianidade dos discursos ou na expressão informativa; a poesia opera aí a extensão da própria linguagem, assim exaltada, promovida ao universal. Pouco importa que ela seja ou não entregue à escrita. A leitura torna-se escuta, apreensão cega dessa transfiguração, enquanto se forma o prazer, sem igual.

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As performances de Lucy Brandão atribuem uma nova roupagem formal à manifestação simbólica do repente, que oscila hibridamente entre o popular e o culto, entre capturar as substâncias poéticas que o contexto sugere e o tecer um novo produto simbólico; este se situa entre a cognição de uma lírica moderna e a tradução formal oral da estrutura dos “repentes”. Ao adotar esse lugar de realização poética, Lucy Brandão recusa o compromisso com a superestrutura hegemônica; onde destacamos, por exemplo, o mass media e os veios de sustentação das tradições poéticas. A poética contraculturista, no seu nível utópico, encontra a vida dentro da poesia e, estetizando sua existência, inscreve sua identidade. Em uma sociedade capitalista, repleta de contradições, tal opção é lida, no mínimo, como insensata, extravagante e excêntrica. Tal leitura se aprofundava em se tratando de uma mulher, bissexual, consumidora assumida de drogas e de origem da classe média alta alagoana, isto é, oriunda de grupos oligárquicos que dominaram, através da cultura da cana-de-açúcar, o poder político e econômico do estado. Nessa perspectiva, sua estética da existência contaminava, através de suas performances, o signo poético, tornando-se uno e múltiplo. Na forma de uma “grande recusa”, seu projeto poético aprofundava a reflexão sobre as contradições ocidentais. Essa poética se realiza como evento estético, fundamentalmente, no espaço marginal, lugar aqui entendido como dissonante e crítico, marcado por um experimentalismo formal conforme expressa Menezes (1994, p.117): A regra da inovação permanente, contida no experimentalismo das vanguardas, busca criar no receptor a mesma inadaptação sentida pelo artista: o estranhamento que a obra de arte procura no seu observador é, em última instância, a sensação de inadaptalidade do artista frente à modernidade de sua época. A obra nega-se enquanto produto de massa e de consumo, refuta os modos representativos de uma realidade em constante mutação e entra em contradição com certos aspectos presentes nas vanguardas que apontam para uma vontade de integração delas no setor da arte industrial, onde [...] seria possível instaurar o futuro no presente.

Enfim, comungando com essa inadaptação – posto que a lírica moderna não se disponha a se justapor aos eventos estéticos cristalizados pelas tradições, mas sim transformá-los, e daí sua negatividade –, o uso da poesia oral na forma de repentes circunscritos por performances, se tornava, naquele momento de nossa história, uma ameaça às hierarquizações e verticalizações da cultura política da Ditadura Militar e dos grupos mais conservadores: “serei o sol que nasce às cinco horas”, afirma Lucy Brandão, poetando psicodelicamente. Como já foi dito, consolidava-se a substituição da repetidora da TV Tupi pelo canal 7, da TV Gazeta, do Grupo Arnon de Mello. Ao mesmo tempo em que se avançava tecnologicamente com a chegada da televisão a cores, abria-se espaço e aproximavase uma discussão para questões da localidade. No entanto, ao contrário do que se podia esperar, como atitude mais democrática, tais questões locais passaram para as mãos dos grupos oligárquicos alagoanos instituídos secularmente pelos colonizadores e, nessa medida, torna-se um balcão de negócios de controle dos movimentos sociopolíticos e culturais da época: “há quintais e muros sob a derrubada ponte da agonia”. Nessa perspectiva, o repente e as performances se tornam, implicitamente, para Lucy Brandão e os contraculturistas locais, a possibilidade de realização utópica de sua emancipação do mercado editorial e de sua expansão enquanto política cultural: seu projeto nega-se como produto de massa e de consumo. Na verdade, mesmo que três de seus poemas tenham sido musicados por Carlos Moura e alguns outros divulgados por jornais locais, o corpo era que, em toda sua capacidade sinergética, veiculava sua poeticidade. Essa atitude, democrática por aproximar intensamente os grupos do dizer poético in loco, desterritorializava o repente do domínio de sua tradição, dessacralizando suas formas de poetar, reterritorializando-o ao lado, por exemplo, de acontecimentos sociopolíticos e culturais de significados mais tensos para o quadro político da época. Nessa medida, Lucy Brandão, como agente da vanguarda contraculturista, transforma sua produção poética em uma utopia libertária e, por outro lado, em uma distopia que realizava publicamente uma ameaça, enquanto atitude, e uma mudança, enquanto lócus de realização poética: “há musas e moscas em cada boca roxa”. Apreciemos:

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Anais do II Congresso Internacional de Estudos Linguísticos e Literários na Amazônia (CIELLA) Quintais10 Os micróbios não estão no subsolo Sim nos chinelos de cada um Há em um pomar uma fruta verde e macia Há em certas terras querubins de barrigas vazias Há musas e moscas em cada boca roxa Há quintais e muros sob a derrubada ponte da agonia Ah, ah eu serei o sol que nasce às cinco horas Serei o mar que enche Leva pra longe O cravo branco que estava na lapela do bêbado Serei eu sob qualquer ameaça nata Paro para ouvir o que o silêncio diz Nos terreiros os atabaques estão a bater As crianças choram pelo que não sabem Mas sentem. O coral de grilos cantam, cantam Eu calo para ouvir a natureza falar.11

5. Conclusão Concluímos, por entre tantas reflexões aqui apresentadas, que a produção poética de Lucy Brandão como vanguarda das literaturas produzidas em Maceió no pós-60, acompanhando todo um fluxo que a literatura marginal brasileira alimentou neste período, constituiu-se moderna na medida em que promoveu um movimento emancipador, um movimento expansionista, um movimento renovador e um movimento democratizador. A nova base (est)ética que fez Lucy Brandão constituir-se como repentista urbana, configurando, às margens, um espaço cultural diferenciado e híbrido, conferiu, à literatura produzida por ela, uma ferramenta de combate intenso às posições neocolonizadoras presentes em nosso cotidiano. Nessa perspectiva, confirmamos a estetização de sua existência que negligenciou toda leitura conservadora e se lançou pelo tecido social maceioense promovendo transes transculturadores com seus repentes urbanos acompanhados de performances. Essa realização poética, marcada pela política de apropriação estética das palavras, mimetizava as pulsões contraculturistas e (re)afirmava o (contra) fluxo às tendências autoritárias, herança do colonizador, por um viés utópico. Ao nos referirmos aqui ao espaço literário alternativo, quisemos marcar um contraponto ao oficial, exercido pelo establishment, em uma perspectiva cartográfica da poesia alagoana do final da segunda metade do século XX, momento histórico-político conturbado, entre a ditadura militar e as tentativas de retorno aos processos democratizadores. Tratamos esse espaço, em que a produção poética de Lucy Brandão se inseriu, como periférico, posto que percebemos sua condição de marginalidade tanto através de sua exclusão do mercado editorial como pelo seu poetar dissonante Lucy Brandão, 1984. Os únicos exemplares que temos deste poema estão datilografadas ou em cópias de página de jornal que podem ser acessadas em anexo. Cabe frisar que a cópia do jornal “Extra” merece uma retificação no primeiro verso: “Os micróbios não estão no subsolo ...”. 10 11

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através dos espaços culturais canônicos do tecido social maceioense. Foi, a nosso ver, uma opção dela como sujeito-artífice, a poeta na pessoa de Lucy Brandão, e um contraponto que sua existência estetizada marcava com relação aos hábitos e costumes da sociedade mais neoconservadora do que moderna. Isso contribuiu substancialmente para sua divulgação in presentia na forma de repentes urbanos e performances. O poetar de Lucy Brandão revigorou in presentia as fronteiras das linguagens que constituíam a cena promovida para seu repente urbano; transcodificou-as e hibridizou-as. Através de suas performances, Lucy Brandão, inscrevendo seu poetar sobre o corpo e estetizando sua existência através da causa contraculturista, fez da expectativa dos sujeitos, que integravam a concretude da recepção in loco, o centro de sua sedução estética. Esse processo de sedução, mais voltado para uma atitude estética subversiva das tradições do que propriamente dócil e envolvente, desterritorializou e reterritorializou os signos poéticos que sua lírica comunicava. Portadora do vírus do HIV, Lucy Brandão faleceu vítima de uma hemorragia estomacal, devido à grande ingestão medicamentosa, e sem o sangue necessário para sobreviver. Referências BOSI, Alfredo. Céu, inferno: ensaios de crítica literária e ideológica. São Paulo: Ática, 1988. Série Temas. Vol. 4, Estudos Literários. ______. O ser e o tempo da poesia. 6ª ed. São Paulo: Companhia das Letras, 2000. CÂNDIDO, Antônio. Literatura e subdesenvolvimento. In.: UNESCO. América Latina em sua Literatura. São Paulo: Editora Perspectiva, 1972. ______. O discurso e a cidade. São Paulo: Duas Cidades, 1993. CANCLINI, Néstor Garcia. Culturas híbridas: estratégias para entrar e sair da modernidade. Tradução de Ana Regina Lessa e Heloísa Pezza Cintrão. Tradução da introdução: Gênese Andrade. 4ª ed. São Paulo: Edusp, 2008. FOUCAULT, Michel. Uma estética da existência. In.: MOTTA, Manoel Barros da (org.). Michel Foucault: ética, sexualidade, política. Tradução de Elisa Monteiro e Inês Autran Dourado Barbosa. 2ª ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2006. Coleção Ditos e Escritos. Vol. 5. FRIEDRICH, Hugo. Estrutura da lírica moderna: da metade do século XIX a meados do século XX. Tradução de Marise M. Curione. São Paulo: Duas Cidades, 1978. GOFFMAN, Ken (R. U. Sirius) & JOY, Dan. A contracultura através dos tempos: do mito de prometeu à cultura digital. Tradução de Alexandre Martins. Rio de Janeiro: Ediouro, 2007. MENEZES, Philadelpho. A crise do passado: modernidade, vanguarda, metamodernidade. São Paulo: Experimento, 1994. MARCUSE, Hebert. O fim da utopia. Rio de Janeiro: Editora Paz e Terra, 1969. ______. Eros e civilização: uma interpretação filosófica do pensamento de Freud. Tradução de Álvaro Cabral. 8ª ed. Rio de Janeiro: Zahar Editores, 1981. RAMA, Ángel. A cidade das letras. Tradução de Emir Sader. São Paulo: Brasiliense, 1985. ROSZAC, Theodore. A contracultura: reflexões sobre a sociedade tecnocrática e a oposição juvenil. Tradução de Donaldson M. Garschagen. 2ª ed.. Petrópolis (RJ): Vozes, 1972. ZUMTHOR, Paul. Performance, recepção, leitura. Tradução de Jerusa Pires Ferreira e Suely Fenerich. 2ª ed.. São Paulo: Cosac Naify, 2007.

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MAÍRA – TRADIÇÃO E IDENTIDADES

Assunção de Maria SOUSA E SILVA (UFPI/UESPI)

RESUMO: O objetivo desta comunicação é apresentar uma leitura de Maíra: um romance dos índios e da Amazônia de Darcy Ribeiro, romance revelador da condição do índio no cenário brasileiro, na tentativa de discutir a questão da identidade nacional. Da aldeia dos índios mairuns, ligados umbilicalmente à tradição e aos riscos e ataques da civilização branca, os personagens indígenas buscam a sobrevivência de si e de sua comunidade, de forma que vão se revelando as contradições, as despersonalizações, como também a tentativa de reapropriação de identidades. Tensões e distensões que resultam em espaço e tempo narrativos que imprimem as relações étnicas construtoras da identidade nacional brasileira. PALAVRAS-CHAVE: Maíra; Tradição; Identidades; Narrativa.

ABSTRACT: The purpose of this communication is to present a reading of Maíra: a novel of indians and the Amazon of Darcy Ribeiro, romance revealing the condition of the Indians in the Brazilian scene, from the discovery and foundation of Brazil, in an attempt to discuss the issue of national identity. The village of Indians mairuns, umbilically linked to the tradition and the risks and attacks of white civilization, the indigenous people seek the survival of themselves and their community, so that will reveal the contradictions, the attempt to reap despersonalizações and identities. Distensions and tensions that result in space and time to print the narrative construction of ethnic relations Brazilian national identity. KEY WORDS: Maíra; Tradition; Identities; Narrativa.


Anais do II Congresso Internacional de Estudos Linguísticos e Literários na Amazônia (CIELLA)

1. Palavras iniciais Maíra de Darcy Ribeiro nos fornece pontos de ancoragem para a compreensão da identidade nacional brasileira. Tomando de empréstimo algumas reflexões situando a literatura e identidade, podemos iniciar este artigo compreendendo aqui a literatura como arte sacralizadora e, ao mesmo tempo, desmitificadora dos processos histórico-sociais e elemento que à medida que expõe uma narrativa possível da história de um povo, preenche, por si mesma, lacunas da memória coletiva e, por isso executa um processo de reconstrução do espírito edificador de uma nacionalidade. Neste artigo, buscaremos discutir a tradição e as identidades no romance Maíra, na perspectiva de perceber de que forma as tensões e distensões contribuem para o processo de identificações dos personagens no espaço e tempo narrativos, tendo em vista que esses personagens são, por tal processo, construtores da identidade nacional. Se por um lado, sua contribuição basila o surgimento e a consolidação da nação brasileira, por outro, não foram reconhecidos como sujeitos capazes de usufruir das garantias de direitos à cidadania. Os índios brasileiros, pelo lugar que tradicionalmente são apresentados no mito fundador, não conseguiram até então conquistar seus direitos como povo e nação, nem tampouco serem respeitados como povos da floresta na preservação de sua cultura. Neste sentido, o romance publicado pela primeira vez em 1976, em que o autor para fazê-lo elaborou três versões, praticamente em períodos de exílio, tem como fio condutor a história de Isaías, índio retirado de sua tribo pelos missionários para fazê-lo sacerdote. Isaías vai para convento, segue a Roma, onde se entrega à missão vocacional, mas entra em um processo conflituoso de questiomento dessa vocação. Teria ele as virtudes convocadas para ser um missionário? Submetido às esperanças das freiras e missionários que queriam fazer valer o trabalho de anos de devoção e sacrifício nas terras selvagens com a missão de salvamento de almas, Isaías rompe com a Igreja e volta à sua tribo em busca de um reencontro com suas raízes, a procura de si mesmo e de assumir o cargo tuxaua, chefe guerreiro, herdado de sua linhagem. Segundo o próprio autor, na introdução da edição de comemoração a vinte (20) anos de vida do romance, Maíra é uma narrativa ficcional baseada na “história verdadeira de Tiago Kegum Apoboreu, índio bororo que os salecianos queriam ordenar” (Ribeiro, 2007) e para compor a narrativa nos apresenta, ao lado do Avá, a jovem carioca Alma, deslocada, envolvida em psicanálise e nas orgias cariocas, que decide salvar as almas dos índios, à beira do rio Iparanã. A estrutura de Maíra é análoga a da missão católica e isso foi intencionalmente construído na terceira versão do romance, visto que a proposta do autor era revelar a morte do Deus dos mairuns, porque seu mundo estava condenado, sem salvação. Para e por isso, Ribeiro (2007) deixa que o próprio Deus se expresse em um dos capítulos para lamentar o destino e desaparecimento de seu povo e revelar, a partir das mitologias do povo indígena, o contraste com a visão cristã do mundo. Por esta perspectiva, temos um livro que procura, conforme autor confesso, apresentar ao leitor suas observações diretas Do gozo e da dor de viver de todos os índios com que convivi por muitos anos. É por um lado, uma predisposição solidária que impede qualquer conflito dentro da tribo e, por outro lado, uma vontade de perfeição e de beleza que se impregna em cada coisa que o índio faz, porque ele sente que está retratado nela. O importante de uma coisa não é a função utilitária qualquer, mas a beleza que ela Expressa. (RIBEIRO, 2007, p.22).

Indicando a voz do autor no ato de contar a história, Maíra compreende um mundo de um Deus inquietante, controlador, mas, ao mesmo tempo, incapaz de salvar o seu povo das imposições da civilização branca, colonizadora, perseguidora do mito salvacionista e da conquista do mundo em nome do progresso. Considerando o aspecto norteador da narrativa, conforme enunciado pelo próprio autor, apropriaremo-nos de duas categorias que justificam a condução dessa comunicação, quais sejam o tópico da tradição e das identidades. Ao que se refere a tradição, pensamo-la segundo Gerd Bornheim, referenciado por Padilha, “conjunto dos valores dentro dos quais estamos estabelecidos” dos quais são reverberados de geração a geração, por seu “caráter de permanência” (Padilha Apud Bornheim, 1985, p.21-22).

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Neste sentido, falar de tradição e seus desdobramentos,significa atentar para a relação que se estabelece entre os interlocutores, pelo princípio da permanência e prevalência dos valores dos antepassados que pressupõe, no processo, a existência da alteridade. Ao contar a história dos índios mairuns, desde sua origem a morte do Deus, realiza-se a ressignificação da tradição, através da memória, no ir e vir de vozes polifônicas, que substancia, por outro lado a presença dos brancos e de sua função para o “descentramento dos sujeitos” (Derrida, 1971). Visto isso não se pode tratar da tradição sem se vivifica o processo de construção ou desconstrução das identificações dos sujeitos narrativos. Numa relação binária, temos, simultaneamente, o índio Isaías em seu regresso à aldeia envolvido por um desencontro consigo mesmo e com suas raízes e, por conseguinte, o desenvolvimento do povo mairum e sua decaída, e na outra face, a intromissão das missões e sua contribuição para a interferência do branco nas aldeias indígenas e o avanço do latifundiário na região para proveito próprio, sob a anuência do governo. Alma, uma carioca branca que vai morar na aldeia para purgar seus tresloucamentos e compulsividade, seria uma tentativa de intercruzamento cultural harmonioso que não vinga, concretizado na cruel morte de seus gêmeos antes de nascer. 2. A repercussão do livro Alfredo Bosi, no artigo “Morte, onde está tua vitória”, ressalta justamente a cena em que Alma “acaba de dar luz dois nasciturnos que ainda estavam envoltos na placenta e ligados à mãe pelos cordões umbilicais” (p. 387). Segundo o ensaísta: “o antropólogo-romancista Darcy Ribeiro sabe surpreender em cada gesto ritual da gente mairum aquela certeza íntima que a razão do branco parece ter perdido: a crença inabalável de que a morte física não interrompe para todo sempre a comunicação entre os vivos e os mortos” (p. 388). O crítico, contudo, indiretamente apresenta um dos traços da tradição mairum: a possibilidade da existência e permanência da cultura além da morte e, portanto, a fundamentação da tradição. Mesmo que essa tradição seja trucidada pela violenta ursurpação da alegria e do gozo do índio pela imposição do trabalho. Neste sentido, é o “mal de fora” daqueles que desejam explorar ou salvar, que corrói as estruturas sociais mairuns. Significativa é a estratégia de Darcy Ribeiro, ao aproximar Isaías de Alma, para revelar a falta de perspectiva de vida e de projeto dos dois, diz o ensaísta: Nos diálogos de Alma e Isaías não há certezas nem um eixo que parta da vontade para um projeto. O pai mairum de Isaías assim descreve o filho: “Voltou vazio, esvaziado. É como se tivesse tirado a pele dele. É como se o tivesse virado ao revés, pondo o de dentro para fora e o de fora para dentro. Mas foi pior o que lhe fizeram. Tiraram o seu espírito. Isso que está aí é o que resta de um homem que perdeu a alma. Ele não é ninguém. Não há ninguém atrás dos olhos dele (p. 389).

Por essa escrita por dentro de Darcy Ribeiro é que Castro reintera e confere ao autor: A posição mais próxima da realidade anímica do índio que tenha sido alcançada por um escritor de ficção entre nós. [até então] Uma visão endógena do quadro. Algo que lhe permitiu captar por dentro aquilo a que deu, como antropólogo, o nome de “processo de transfiguração étnica”, palavras bonitas que encerram um terrível drama de desmoralização, desagregação e extermínio (p. 392).

Por fim Junqueira prenuncia que Darcy Ribeiro poderia ter escrito um romance para que pudesse “registrar com liberdade os diversos matizes da existência indígena”. O fato é que Maíra vem tendo vida longa como romance revelador da condição do índio brasileiro. Começam a ser publicados produções de autoria de índios e indianista, sobretudo, com a consolidação da democracia no Brasil, no entanto até o momento não se tem, por força ainda das circunstâncias e falta de reconhecimento de autoria, outro romance com tanta força temática e estética que tenha o propósito de narrar a história do ponto de vista do índio brasileiro. Maíra, portanto, é um romance inquietante e revelador por carregar em si a força da tradição mairum e os atropelos movediços onde se dão as disputas e as projeções e identificações dos personagens.

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3. As identidades no trânsito movediço Maíra é a narrativa de uma coletividade, dividida em três partes maiores intituladas com vocábulos retirados do discurso religioso, lembrando a estrutura de uma missa: Antífona, Homilia, Canon e Corpus, não linear, desenvolve-se pontuada de episódios aparentemente soltos. No primeiro episódio, da primeira parte, sabemos do caso da morte de Alma, fato motivador da investigação do Estado, após a denúncia do suíço Peter Becker, de ter encontrado morta a jovem branca e seus gêmeos. Para no segundo episódio, por exemplo, ser anunciado a morte de Anacã, por ele mesmo, na presença de toda a aldeia. Tal recurso, porém, é muito vigoroso pelo que Anaçã sentencia: “Preciso morrer para que surja e cresça o tuxaua novo”. Anaçã decide que naquela noite morrerá e este episódio é a linha de salvaguardar da narração da tradição dos índios mairuns. Pelo funeral de Anaçã é que se brotam as raízes mairuns para, a partir daí, entendemos, as identificações dos sujeitos. Na morte de Anaçã não está presente Isaías, o índio que saiu cedo da aldeia para se tornar padre, mas sua introdução da narrativa é logo em seguida com um título homônimo, quando reflete sobre si mesmo num conflito desesperador diante de sua condição de expatriado. Mas gente, eu sou? Não, não sou ninguém. Melhor que seja padre, assim poderei viver quieto e talvez até ajudar o próximo. Isto é, se o próximo deixar que um índio de merda o abençoe, o confesse, o perdoe (Maíra, p. 41).

Para Derrida, “uma identidade nunca é dada, recebida ou atingida, só permanece o processo interminável, indefinidamente fantasmático da identificação” (Tradução Brend, 2003) (Derrida 1996, p. 53), no entanto o processo em que Isaías percorrer é, paradoxalmente, uma desconstrução de sua identificações e a busca desesperada de uma que possa creditar a si mesmo; todavia, não consegue, porque o projeto induzido a ele foi incapaz de lhe favorecer uma possibilidade de afirmação de si mesmo. Diz o personagem no mesmo episódio: Outro dia sonhei comigo: eu era um homem belo, um sacerdote, e tinha o cabelo comprido como o de Cristo e dos hippies. Mas, como mairum, tinha também, nos dois lados da cara, o distintivo tribal. Estava orgulhoso de mim, descansado. Mas não era para viver e lutar. Eu estava pronto era pra morrer por amor de Deus Pai (Maíra, p.42).

A doutrina religiosa que domina o eu de Isaías não lhe permite encontrar o caminho mairum, visto que lhe foi minada pelo destacamento de sua aldeia e pela aculturação européia o legado de suas origens; de tal forma que o personagem não sabe se se aceita como obra de Deus ou ainda como um mairum. Preciso encontrar na fé a confiança e a aceitação de minha estampa e de minha essência. Para isso preciso rezar ainda mais. Mas rezo cada vez menos e com menos fé. Minha fé está minguando. Será de tanto pedir o que ela não me pode dar? Não tenho direito de esperar milagres. Ainda há milagres? Talvez nunca tenha havido. E, afinal, o milagre que peço, qual é? É que Deus mude minha substância, me faça genovês ou congolês ou brasileiro ou um homem qualquer. Isto não é problema para Deus. É problema meu. Tenho é que me aceitar tal qual sou, para mais respeitar em mim sua obra. Obrinha de merda, Deus me perdoe (Maíra, p.43).

Nesse dilema com o altíssimo, Isaías volta para sua aldeia com a certeza de um vazio cujo efeito vai repercutir na maneira como ele olha a si e os mairuns e como os mairuns o olham. Isso está bem retratado nas conversas do índio com Jaguar e quando o deus Maíra entende entrar em seu corpo para percebê-lo. Quem volta não é a forma adulta do menino ignorante que os mairuns, na sua inocência, mandaram, um dia, com os padres aprender a sabedoria dos caraíbas. Quem volta não é também o catecúmeno esforçado de que os missionários quiseram fazer a glória da Ordem. Que volta sou apenas eu. Fui a ovelha do Senhor. Volto tosquiado: sem glória sacerdotal, sem santidade, sem sabedoria, sem nada. Tudo que tenho são duas mãos inábeis e uma cabeça cheia de ladainha. E este coração aflito que me sai pela boca. (Maíra, p. 76)

Essa volta daquele que não é para sua aldeia já é indício do que irá se processar no desterramento dos mairuns. Os índios procuram em Isaías o Avá prometido e não encontram, a

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amiga Alma questiona sua identidade mairum e o despreza. A índia Inimá destinada a ser sua esposa não o ama, e nem tampouco é desejada por ele, aceita-o pelos presentes que recebe. Desta forma, as palavras de Alma refletem o desencontro e o conflito reiterante que fortemente se apresenta na identidade do Avá: O mal de Isaías é ser ambíguo. Ser e não-ser. Não é índio, nem cristão. Não é homem, nem deixa de ser, coitado; Ser dois é não ser nenhum, ninguém. Mas está acima de suas forças. (...) O pobre não pára de escarafunchar a cuca, se aclarando e se confundindo cada vez mais. (Maíra, p. 346).

Neste sentido, a narrativa vai se construindo de negação de eus e, indo ao extremo com a morte dos personagens, elemento condutor da narrativa. Alma é encontrada morta com os dois fetos mortos, o grande Tuxaua Anacã morre, a indiazinha Cori morre de mordida de cascavel e por isso causa a morte de oxim da tribo; o fanático Xisto, em Corrutela, arranca a língua de Perpetinha para livrá-la do demônio; Quinzim é encontrado morto, provalvemente por picado de cobra e há o massacre de seu Juca e do empregado Boca. Isaías representa, portanto, o índio que se acultura, que perde sua “indianidade”, mas não consegue conquistar seu lugar no pretenso mundo “civilizado”. Recebe os ensinamentos da doutrina judaico-cristã, confina-se no convento, mas não se aprofunda, está apenas superficialmente envolvido, todavia também já não é o índio que saíra de sua aldeia em estado de pureza e por isso, ao voltar, não se adapta. É ex-seminarista e ex-mairum. Identidades desconstruídas e, desta forma, concretizam-se as palavras de Alma: “ser dois é não ser nenhum, ninguém.”. 3.1. Em funções sacralizantes e dessacralizando Segundo Paul Ricoeur: Identidade não poderia ter outra forma do que a narrativa, pois definir-se é, em última análise, narrar. Uma coletividade ou um indivíduo se definiria, portanto, através de história que ela narra a si mesma sobre si mesma e, destas narrativas, poder-se-ia extrair a própria essência da definição implícita na qual esta coletividade se encontra. (Ricoeur, 1985, p. 432)

Na perspectiva desta narração de si e de seu povo como sujeitos individuais e coletivos, Isaías tem, portanto, dupla função narrativa: a primeira, é o elemento motivador da história contada, como vimos, no testemunho do próprio autor, como desmonte de uma engrenagem discursiva que põe a nu o efeito devastador do invasor no cenário mairum, por conseguinte, é o elemento conflitivo das inter-relações pessoais, à medida que não realiza o que Deus Maíra preconiza, ou seja, não abraça para si a herança de tuxuaua, de torna-se chefe da sua tribo. Com base nisso, podemos compreender a função “dessacralizadora” que o romance vai apontar na literatura brasileira. Por outro lado, abordar a presença de Isaías na aldeia vai fazer vigorar as narrativas do povo mairum que fundamentam a própria história coletiva desse povo, sua origem, seus costumes, suas crenças, suas preocupações com o que a de vir. Refletindo sobre tal ponto de vista, podemos nos apropriar das idéias de Edouard Glissant (1981) quando aponta as funções sacralizante e dessacralizante que as narrativas poderão ter: Há a função de dessacralização, função de desmontagem das engrenagens de um sistema dado, de pôr a nu os mecanismos escondidos de desmistificar. Há também uma função de sacralização, de união da comunidade em torno de seus mitos, de suas crenças, de seu imaginário ou de sua ideologia. (p.189)

E a função sacralizante: se atribui a missão de articular o projeto nacional, de fazer emergir os mitos fundadores de uma comunidade e de recuperar a memória coletiva, passa a exercer a função sacralizante, unificadora, tendendo ao mesmo, ao monologismo, ou seja a construção de uma identidade do tipo etnocêntrico, que circunscreve a realidade a um único quadro de referência. (Bernd, Zilá, 2003, p. 19)

No entanto, há um momento, segundo a mesma autora, em que a

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Anais do II Congresso Internacional de Estudos Linguísticos e Literários na Amazônia (CIELLA) literatura começa a operar a síntese – ainda inacabada – deste jogo dialético, associando o resgate dos mitos à sua constante desmistificação, o redescobrimento da memória coletiva a um movimentar contínuo dos textos, o que equivale a um perseverante questionamento de si mesma (Bernd, 2003, p. 20)

O romance de Darcy Ribeiro nos parece trazer, enfim, essa síntese que se traduz na retomada dos mitos e dos antepassados mairuns, suas estratégias de permanência na terra e, ao mesmo tempo, o empreendimento de uma morte anunciada de seu Deus que simbolicamente representa a energia vital do povo mairuns e suas projeções sociohistóricas. Neste sentido, é que além da personagem Isaías, podemos perceber que os sujeitos que transitam no cenário mairum estão a mercê da sorte. Suas identidades ou identificações como sujeitos estão fragilizadas. Seus projetos não são desenvolvidos, suas expectativas de vida se atrofiam. Por isso mesmo, os personagens vivem do que o presente lhe oferece, conforme a sua própria natureza. Todavia, esta maneira de viver não está isenta de uma vitalidade estarrecedora, uma das características mais exaltadas pelo metanarrador: o riso. O riso permanente e entranhado, o modo alegre de viver dos mairuns, tão bem demarcados nos vários episódios cotidianos, revela a força desse povo no seu percurso histórico de sobrevivência. Talvez por isso, o fato do próprio autor, ao se referir à obra, dizer que é “um livro de gozo da gente que não herdou a brutalidade, a bossalidade judaica-cristã, coisa que eu nunca poderia ter expressado como antropólogo” (Ribeiro em entrevista “Darcy a utopia do intelectual indignado” à Folha de São Paulo, em 01/10/1983.) É pelo riso e do riso que Maíra se contrapõe ao pai e cria seu povo, mas também é com o fim do riso que se arrepende da disputa com o Deus-Pai, quando quis reformar o mundo criado por este; e no riso, a história dos índios mairum se faz eterna e bem contada. 4. A tradição mairum e a morte do Deus Zilá Brend acentua que em “Utopia selvagem da inocência perdida (uma fábula)”, de Darcy Ribeiro há uma continuidade do “lamento doído de Macunaíma”, de Mário de Andrade, diante da inocência perdida do índio brasileiro, para em seguida, mostrar que a aproximação com o branco foi trágica, visto que a perda da inocência daquele se deu sem o ganho de uma consciência nacional (Brend, 2003), resulta disso as questões as indagações inquietantes de Ribeiro: Quem somos nós? Nós mesmos? Eles? Ninguém? Este é o verdadeiro heróico brado retumbante”: a denúncia de que na origem de nossos males está a perda de nossa identidade cultural: “Quem somos nós, se não somos europeus, nem somos índios, senão uma espécie intermediária entre aborígenes e espanhóis?. (RIBEIRO, 1982)

Em Maíra, temos uma narrativa que também nos leva a indagar quem brasileiros somos, como vemos o outro, que muitas vezes esse outro somos nós mesmos. A civilização branca apartou os primeiros habitantes brasileiros, baniu-os e deixou a própria sorte, deslocou-os para mais distantes da vida “civilizada” e por este intento mesmo os que tinham e têm filiação indígena não se reconhece como tal. Daí ainda serem atuais e pertinentes as indagações de Darcy Ribeiro arroladas acima. Sob essa reflexão, podemos considerar que a narrativa de Maíra, à medida que permite uma discussão sobre as identidades que se deslocam no contato entre o índio e o branco, como tentamos esboçar anteriormente, também nos permite compreender a origem do povo mairum, seus costumes, sua cultura e sua tradição. Para isso, retomamos o conceito de tradição (termo do latim traditio do verbo tradire que significa entregar) aportando-nos nas idéias de Gerb Bohnheim que concebe como “o ato de passar algo a outra pessoa, ou de passar de uma geração a outra geração” e “como conhecimento oral e escrito” (Bohnheim, 1987). Interessa-nos também o que Jorge acrescenta: Um movimento que se dirige para o outro, na confluência de voz e mãos, pra a constituição de sentidos que imergem o indivíduo no tempo da coletividade. É inevitável, contudo, percebermos que, ao lado da permanência instaurada pela tradição, de sua busca por referenciar-se como “a grande segurança”, ainda citando Bornhem, encontra-se um princípio de desorganização que põe em evidência o caráter contornável

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Tema geral: Línguas e Literaturas: Diversidade e Adversidades na América Latina da ruptura – sua contraface -. A demarcar margens para a mudança, para a transformação. No contato com o outro, o que é dito transforma-se de modo irrecorrível, em movimento do qual não se pode escapar. (Jorge, 2006, p. 95)

Maíra é uma prosa sobre tradição, em que o metanarrador articula e deixa florescer os valores, os costumes, as origens do povo mairum. Todavia tais conhecimentos não são parte apenas de uma estratégia discursiva para o desenrolar da trama, mas parece-nos ter, no modo, de contar a trama, o intuito de revelar o legado da herança cultural indígena no solo brasileiro. Os episódios que recuperam a tradição mairum vêm concomitantes à morte de Alma e à chegada de Isaías, à perene tentativa de conversão (civilização) dos índios, à exploração de Juca sobre eles, aos planos do senador para conquistar imensas terras e transformar em pastos para gado. A morte de Anacã, o velho tuxuaua, revela os rituais mairuns. Ele, organizador da aldeia, respeitado e reverenciado por todos, resolve, segundo a sua vontade, morrer aos cem anos. Desde a preparação da morte até a elevação de seu espírito, houve longas e solenes cerimônias. A morte se revela como anúncio de que era chegada hora de o Avá (Isaías) assumir o cargo, mas também o significado do lugar para o chefe (Anacã) que vai deixar seu povo, a dimensão do respeito a ele desempenhado pelos índios e a forma como a linhagem deve ser preservada. Anacã olha em torno, demorando o olhar em cada cara de homem, de mulher, de criança. Começa a andar e dá uma volta inteira dentro do baíto, acompanhando o círculo alongado das paredes, sempre olhando um a um, dentro dos olhos. Despede-se assim, sem palavra, de todos os mairuns, e sai no meio do silêncio pela porta de cima, que ele nunca usou na vida. Todos ficam escutando os seus passos, andando em círculos e círculos cada vez mais pequenos no pátio de dança. É como se ele quisesse por os pés, uma vez mais, em cada lugar que pisou no seu século de vida. (Maíra, p. 38) Todos os mairuns estão aqui, juntinhos, como se procurassem o calor uns dos outros. Só ao redor do oxim, sentando sobre os pés, perto da porta de baixo, há um vazio de reserva, de nojo, de medo. Os mortos esvoaçam pelo ar, entrando uns e saindo outros, todos desejando falar ao mesmo tempo com o aroe. Mas nenhum diz nada. Eles também sabem que aquele zumbido de abelha do maracá pede silêncio. (Idem)

O narrador enuncia que naquele dia assim como o “sol verá Anacã, todos os olhos mairuns estarão com olhos postos em cima dele” para no final da tarde: À luz vermelha do sol crescida no horizonte Remui, o aroe, vem sepultar o tuxaua Anacã. Todos estão aqui, mas só os homens da família oposta e complementar à dos onças, só os carcarás, se ocupam de levantar o cadáver e pousá-lo no fundo da cova. (Maíra, p.41-40) Anacã repousa agora ali, onde há de apodrecer, e o velho aroe tudo revisa criteriosamente. Retifica a pintura manchada num ponto ou brilhante demais em outro. Repõe, como devem ser levados, o arco e as flechas de um lado e o tacape do outro. Arruma, afinal, os adornos da cabeça, do corpo, dos braços, das pernas. Vendo que a ordem está perfeita, afasta-se uns metros, andando de costa, e senta-se na posição cerimonial. Todos os homens se sentam também esperando o pôr-do-sol. Quando o globo vermelho toca o horizonte, é quase com alegria que Remui se levanta e se aproxima, enche as duas mãos de terra fofa e a depõe carinhosamente sobre Anacã. Cada homem se aproxima por sua vez, enche as mãos de terra e vai ajudando a cobrir o corpo morto do tuxaua.(Maíra, p.40) Nesta hora, em que já não é dia e ainda não é noite, nesta hora derradeira do tuxaua Anacã, chegam as mulheres, todas juntas, trazendo na cabeça grandes porongos de água pura, cristalina, da Lagoa Negra. Cada uma delas se aproxima e vai derramando devagar a sua água no monte de terra poeirenta que cobre Anacã. A terra aos poucos se abate, cedendo e se fazendo barro, que nos dias e semanas seguintes será lama de carnes desfeitas. Anacã está sepultado. Logo morrerá. A vida deve, agora, renascer. (Maíra, p. 40)

O ilustrativo episódio da morte de Anacã é, portanto, a forma como o povo mairum entende transmitir e preservar os costumes e os valores de morte e vida que devem ser herdados. Revela-se também o estatuto da autoridade para além da existência humana. Aquele que é predestinado a ser chefe e se dignifica por isso, que assume o lugar na aldeia que lhe é direito e obrigação para a preservação da

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linhagem e de seu povo, concebe uma significação coletiva. Ele é a sua aldeia. De forma que sua carne é sentida por toda a aldeia. Onde quer que estejam o cheiro de Anacã exalta docemente nas narinas de cada um. E por isso mesmo, Anacã “comanda, com a vontade inscrita na tradição, os gestos de todos na realização desta última façanha: seu cerimonhial fúnebre”. (Maíra, p. 99) “Debaixo do cheiro da morte de Anacã, volta o alvoroço da alegria de viver”, Os mais velhos recordam com carinho velhas histórias daqueles bisavós esquecidos que sobreviverão encarnados nas crianças. Contam para que cada um saiba quem foi o último Toí, ou a derradeira Manitzá e os outros. Putir, a onça antiga, era trabalhadeira, muito alegre e caçoísta. Jaru, da casa-dos-pacus, era um homem quieto, caladão, mas quando ria em cascata, como só ele sabia rir, a aldeia inteira retumbava. A garça Tuim era a mais sururuqueira das mairunas. Pudera, era mirixorã e linda. (Maíra, p. 60)

Essa alegria de viver, conforme já mencionada, é uma característica primordial do povo mairum que remete ao seu deus. Maíra e Micura, assim como seu povo, bebem, nas alturas, “cauim, giram e dançam, caem de bêbados, cantam e rolam de rir” (Maíra, p. 100). O Deus que ri. O saber e sabedoria do povo mairum tem sua origem no Deus Maíra, um ser sobrenatural, divindade mairum que cria, protege e deforma o seu povo. De um arroto do Sem-nome, Maíra escolhe Micura para ser seu irmão Micura-Faci, parceiro, o Lua, que colabora em todos os projetos de Maíra. Este Deus que se metamorfosea em árvore, em selva, ver que Mosaingar é a melhor criação de Deus-Pai, usa-a para provar o mundo e ambos, Maíra e Mucura, nascem e vivem entre os mairuns. Maíra, todavia, se enchendo das várias solicitações pelos dons que tinha de transformar tudo e pelo poder que descobrira ter, começa a perceber que o mundo do pai é triste, feio e resolve reformá-lo. Então Maíra entende fazer um mundo de “verdadeiro gozo de viver”, refez os homens e mulheres, estabeleceu normas de convivência, proibiu o incesto, inventou o amor. Na mesma ocasião, ensinou os homens e as mulheres a se elegerem uns aos outros por amor, quer dizer, com desejo e ciúme. (...) Cada par durará o tempo que o desejo e o ciúme o mantiverem juntos. (Maíra, p. 178)

Essa fabulação do mundo mairum e a vigilação com que Maíra lá das alturas observa seu povo, concretiza o mito, mantém-no e o perpetuando. No entanto, o avanço da intromissão e invasão do branco – protestantes americanos, católicos da Missão, representantes políticos - na aldeia, fazem-no desfalecer. A graça de viver é afetada à medida que as identidades dos mairuns vão sendo desconstruída e estes subjugados. O Deus Maíra se distancia desiludido. Sobe em mim um murmúrio sem fim. É meu povo lá embaixo pedindo o milagre: a exceção. Quer ficar. Se o mundo é feito de mudar, porque só estes mairuns hão de ficar? Tanto amor por esta existência sem prestança de povo eleito meu. (...) Eles vêm, assombrados, a onda que cresce. Pressentem que vão ser engolfados. Quem, onde entre ondas, ondeia a seu gosto? Que onda de rio ou de mar guarda no peito a cara, o nome, o jeito? (...) Quer-se assim, com tanta teima, tal qual são, não será seu modo maior de querer-me a mim que os fiz assim? Não. Senão o ser meu povo eleito a mim é que me obrigaria, cativo: um Deus tribal. Contrafeito. (...) Eu não! Não sou só. Não sou único. Nem sou só deles. Eles é que são unicamente meus. Outros há e aí estão querendo ir e vir. Confluir. (...) Sem eles quem me há de lembrar, louvar? Povo meu que refiz quebrando molde de Deus-Pai. Quem o fez meu pai fui eu. Mas que me fez? Um mundo despovoado de mairum-mairuns não estará, coitado, de mim também despojado.? Qual agora o risco maior? Esta guerra ganhar? Esta guerra perder? Tantos querendo fazer sóis pra me apagar. Como ficar? No negror do mundo em que eu estiver apagado, que luz vai esplender? Quem saberá de mim? Mairum nenhum.... Maíra, irá? Não, Mairahú, meu pai, não peço paz. Um trato quisera, talvez. Como evitar o desastre inevitável que a eles e talvez a mim, a nós também, soçobrará? Que Deus sou eu? Um Deus mortal? (Maíra, p. 332)

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Deus em crise, personagens de identidades rarefeitas, liquefeitas, engolfados, impossível de “ondear entre ondas”, Isaías não consegue torna-se o Avá, Jaguar é um substituto temporário da chefia da tribo. O que há-de-vir se perde nasciturnos na barriga de Alma. Seria o novo Avá? Seriam os novos deuses de uma reencarnação mairum perdida. A narrativa finda com a morte. 5. Considerações finais A narração do mito mairum se faz pela elaboração de um discurso sacralizador da história fundadora da existência indígena. Ainda que se centre no percurso de vida e morte do povo, também faz revigorar em reencenações o modo de viver dos mairuns e, por conseqüente, questões como a catequização dos indígenas, a perda gradativa das terras, a expansão pecuária que resulta no “genocídio e etnocídio das propriedades indígenas no território brasileiro”. Desta forma, vê-se ressiginificada a história da nação brasileira sob o ponto de vista do índio envolvido nas relações etnico-sociais. Ao mesmo tempo, a prosa de Darcy Ribeiro traz questões significativas sobre a identidade nacional construída a partir da exclusão do Outro. A aldeia mairum revela um cenário brasileiro em que os traços identitários de seus agentes não são considerados pelo invasor para o projeto de nação que se firmara. Não se pode dizer-se brasileiro sem a paisagem indígena, nem sem as ações e preservação do sujeito indígena e sua cultura, a civilização branca entende subjugá-los em nome do progresso e do desenvolvimento, sobretudo, em nome de uma afirmação e reafirmação da nação. Por esta via, o romance Maíra de Darcy Ribeiro coloca a nu o projeto de nação que ainda vigorara no final do século XX, numa releitura do mito fundador que leva o outro – índio e sua cultura à morte. Referências BENJAMIM, Walter. O narrador considerações sobre a volta de Nikolai Leskow. In. Obras escolhidas Magia e técnica, arte e política. São Paulo: Brasiliense, 1987. V. 1. BERND, Zilá. Literatura e identidade nacional. 2ª ed. Porto Alegre: UFRGS, 2003. (Síntese Universitária) BORNHEIM, Gerd. O coneito de tradição. In. ______ et all Cultura brasileira: tradição e contradição. Rio de janeiro:Jorge Zahar. Ed./Funarte, 1987, p. 13-29. CARIA FILHO, Artur Orlando Mendes. Entre Maíra e a Utopia selvagem: intertextualidade em Darcy Ribeiro. Dissertação de Mestrado. UFBA, Instituto de Letras, 2005. DERRIDA, Jacques. A escritura e a diferença. São Paulo: Perspectiva, 1971. ______. Le monolinguisme de l’autre. Paris: Galilée, 1996. Entrevista Darcy Ribeiro, a utopia do intelectual indignado In. Folha de S. Paulo, 01/10/1983. http://www.pacc. ufrj.br/heloisa/darcy.php. JORGE, Silvio Renato. Olhares sobre a tradição: Camilo Castelo Branco e Miguel Torga. In. VELHO, Gilberto &SANTOS, Gilda. (Org.) Artifício & Artefatos entre o literário e o antropológico. São Paulo: 7 letras, 2006, p. 950-101. PADILHA, Laura Cavalcante. Entre voz e letra o lugar da ancestralidade na ficção angolana do século XX. Niterói: EDUFF, 1995. RIBEIRO, Darcy. Maíra: um romance dos índios e da Amazônia. 21.ed. Rio de Janeiro: Record, 2007. http://books.google.com/books?hl=ptBR&lr=&id=tugL_lkpyoC&oi=fnd&pg=PA95&ots=Eiavop97zK&s ig=hJOhAK75uWzTEnZ7QqFKReax1_s http://www.iande.art.br/boletim016.htm.

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A VOLTA DO MARIDO PRÓDIGO E AS NARRATIVAS GRECO-ROMANA E JUDAICO-CRISTÃ Brenda de Sena MAUÉS (Mestranda em Letras – Universidade Federal do Pará) Sílvio Augusto de Oliveira Holanda (Orientador – Universidade Federal do Pará))

RESUMO: O objetivo desta comunicação é explicitar de que maneira a figura do malandro, encarnada pelo personagem Lalino, é importante na representação burlesca da “Parábola do filho pródigo”, que é efetivada, no conto “A volta do marido pródigo”, pela comicidade que assume o personagem principal em função da sua evidente procedência folclórica. Além disso, pretende-se estabelecer a relação entre o conto mencionado e “A estória do cágado e do sapo”, tendo em vista que Lalino pode ser apontado como correlato do sapo, animal astuto, lembre-se que o protagonista é malandro, sobretudo, pela linguagem, e é por meio dela que a astúcia dele pode ser observada. É pelo uso adequado da linguagem a cada interlocutor que ele é capaz de obter a persuasão das pessoas à sua volta. Desse modo, Rosa absorve a tradição da fábula greco-romana e da parábola judaico-cristã, por meio de hábitos (a conversa) e personagens (Lalino) visceralmente brasileiros. PALAVRAS-CHAVE: Guimarães Rosa; Sagarana; fábula; parábola.

ABSTRACT: This paper aims at explaining the way the “malandro” characteristic, which is personified

by the protagonist Lalino, is important in the parody of the “Parable of the prodigal son”. This parody is brought into effect in the story “The return of the prodigal husband” by the comic quality that assumes the main character, consequence of his obvious folklore origin. This paper also has the purpose of establishing a relation between the Sagarana story and “The story of the turtle and the toad”, considering that Lalino can be seen as the toad correlate, cunning animal, we should remembered that the protagonist is the “malandro”, especially, for the language, and it is through it that his cunning can be observed. By using the language appropriately to each interlocutor Lalino is able to get the persuasion of the people around him. Thus, Rosa absorbs the tradition of the Greco-Roman fable and the Christian-Jewish parable, through a Brazilian habit (the conversation) and a character (Lalino). KEY WORDS: Guimarães Rosa; Sagarana; fable; parable.


Anais do II Congresso Internacional de Estudos Linguísticos e Literários na Amazônia (CIELLA) Antigamente, a Verdade andava nua pela rua. Os homens se afastavam do seu caminho e ninguém a deixava entrar em casa. Até que, um dia, ela se encontrou com o Conto, a quem todos amavam. — Ninguém gosta de mim, disse a Verdade. Sou velha demais! — Eu também sou velho, disse o Conto. E, no entanto, todos me amam. Não é pela sua idade que todos te rejeitam, é porque andas nua por aí. Se vieres comigo, te emprestarei lindas roupas e verás como as pessoas se interessarão por ti. E assim nasceu a Parábola. (Conto Chassídico) Um leão, tendo ouvido coaxar uma rã, voltou-se para a direção do som, pensando tratar-se de algum grande animal. Ele esperou algum tempo, depois, vendo-a sair do tanque, ele se aproximou e a esmagou, dizendo: “Ora vejam só! é com um tamanho desses que dás tais gritos! Esta fábula aplica-se ao tagarela, incapaz de outra coisa que não seja falar. (Esopo)

Livro de estréia do escritor mineiro João Guimarães Rosa no universo literário, Sagarana, escrito em 1937, composto a priori por doze contos, concorreu em 1938, sob o título provisório de Sezão, que foi substituído por Contos, ao prêmio Humberto de Campos, promovido pela livraria José Olympio. A obra ficou em segundo lugar, perdendo por três votos a dois para Maria Perigosa de Luís Jardim. Sobre o momento em que Sagarana foi escrito, Rosa revela: quando chegou a hora de o Sagarana ter de ser escrito, pensei muito. Num barquinho, que viria descendo o rio e passaria ao alcance das minhas mãos, eu ia poder colocar o que quisesse. Principalmente, nele poderia embarcar, inteira, no momento, a minha concepção-do-mundo. [...] Tinha de pensar, igualmente, na palavra “arte”, em tudo o que ela para mim representava, como corpo e como alma; como um daqueles variados caminhos que levam do temporal ao eterno, principalmente. (2001, p. 23-24).

Em 1945, o criador de Riobaldo retoma os originais de Sagarana e refaz o livro suprimindo três histórias: “Questões de família”, “Uma história de amor” e “Bicho mau”, esta última aparecendo, posteriormente, em Estas Estórias. O volume, então com nove contos, é publicado em 1946 pela Editora Universal e foi considerado pela crítica “como uma das mais importantes obras de ficção aparecidas no Brasil contemporâneo” (PEREZ, 1968, p. 31). Antonio Candido, num dos seus trabalhos sobre a obra, conclui seu parecer afirmando: Não penso que Sagarana seja um bloco unido, nem que o Sr. Guimarães Rosa tenha sabido, sempre, escapar a certo pendor verboso, a certa difusão de escrita e composição. Sei, porém, que, construindo em termos brasileiros certas experiências de uma altura encontrada geralmente apenas nas grandes literaturas estrangeiras, criando uma vivência poderosamente nossa e ao mesmo tempo universal, que valoriza e eleva a nossa arte, escrevendo contos como “Duelo”, “Lalino Salãthiel”, “O burrinho pedrês” e [...] “Augusto Matraga” — sei que por tudo isso o Sr. Guimarães Rosa vai reto para a linha dos nossos grandes escritores. (1991, p. 247).

Desde então, tal coletânea de contos vem sendo estudada pela crítica brasileira, sob diversas perspectivas: cultural, filosófica, linguística, entre outras. Estudiosos como Oswaldino Marques, Cavalcanti Proença, Paulo Rónai, Wilson Martin, Antonio Candido e muitos outros, reconheceram a singularidade da arte do autor de Grande sertão: veredas e se dedicaram a desvendar os sertões rosianos. A cultura popular está presente e é valorizada nas obras do autor de Corpo de baile, tal informação pode ser verificada, tanto pela análise da fala dos personagens, típica do homem sertanejo, quanto pela inserção de símbolos e mitos representativos do imaginário popular, conservados e transmitidos oralmente de geração em geração, nesse sentido, é por meio de hábitos e personagens essencialmente brasileiros que o escritor absorve elementos de uma tradição cultural religiosa, é o caso da parábola; e clássica como é o caso da fábula. A parábola, oriunda da palavra grega parabolh, (parabole) (GINGRICH, 2003, p. 155), que significa “aquilo que é jogado ao lado”, trata-se de uma narração alegórica que evoca, por comparação, realidades de ordem superior, sua característica é ser protagonizada por seres humanos e possuir sempre uma razão moral. Bastante presente no texto bíblico, Jesus Cristo a utilizava com o intuito de ensinamento, por ser mais atraente do que um sermão, e, por conseguinte, também mais fácil de ser

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lembrada, a “Parábola do filho pródigo”, encontrada em Lucas 15:10-32 (A BÍBLIA de Jerusalém, 1991, p. 1959), por exemplo, buscava ensinar o arrependimento. Sabemos que o conto rosiano, “Traços biográficos de Lalino Salãthiel”, dialoga com a escritura sagrada, a começar pelo título da narrativa, onde é possível antever uma comparação por meio do vocábulo “pródigo” a parábola supracitada. Ademais, Tanto em um como em outro encontramos um sujeito que abandona a casa, parte para uma terra distante, dissipa todos os seus bens vivendo dissolutamente, resta sem dinheiro, cai em desgraça e retorna, reconciliando-se com sua família, o que causa uma reação da comunidade. Tais semelhanças, entretanto, encontram-se de maneira parodiada no texto rosiano. No âmbito da literatura, há que se entender a paródia como a representação burlesca de uma obra literária, fundada principalmente na mudança de condição dos personagens, segundo o Dicionário de termos literários de Massud Moisés a paródia “designa toda composição literária que imita, cômica ou satiricamente, o tema ou/e a forma de uma obra séria [com o intuito de] ridicularizar uma tendência ou um estilo que, por qualquer motivo, se torna conhecido e dominante” (1982, p. 388). Assim sendo, destaca-se, a priori, a transformação do personagem principal de um filho em um marido pródigo, há ainda a mudança da condição sócio-econômica do protagonista, pois, enquanto Eulálio Salãthiel é um mestiço, típico representante de uma esfera carente e marginalizada da sociedade brasileira, a parábola em questão faz supor um personagem de uma classe privilegiada. A presença do cômico é averiguada tanto na representação do tipo malandro encarnada por Lalino quanto pela comparação do referido personagem ao sapo, tais temáticas serão investigadas mais detalhadamente a posteriori. Aristóteles, em sua Poética (2004, p. 39), afirmou que enquanto Homero imitava homens superiores, Hegêmon de tasos, o primeiro a escrever paródias, imitava os inferiores, assim, enquanto nas parábolas são demonstradas realidades de ordem superior, divinas, em “A volta do marido pródigo” são retratadas realidades de ordem inferior, humanas, portanto, Guimarães Rosa opera a conversão do sacro em profano. Há que se lembrar que Lalino, personagem principal, é mulato, “raça” outrora considerada inferior, Oliveira Vianna, em seu livro Populações meridionais do Brasil, representa o pensamento do Brasil no início do século XX. Os mestiços de branco e negro, os mulatos idiossincráticos, tendem, [...] a voltar ao tipo inferior, aproximando-se dele mais e mais pela índole e pelo físico. O seu caráter, entretanto, não pode atingir nunca a pureza e a integridade da raça primitiva, a que regressam. Tendo de harmonizar as duas tendências étnicas, que colidem na sua natureza, acabam sempre por se revelar uns desorganizados morais, uns desarmônicos psicológicos, uns desequilibrados funcionais. (1938, p. 134).

Nesse sentido, a personagem Lalino confirma boa parte dos estereótipos produzidos sobre o mulato pela literatura naturalista e se aproxima da tríade estabelecida por Taine, sendo condicionado às características da sua “raça”, entretanto, ao contrário de O cortiço, em que a baiana Rita pretere o mulato Firmo em função do português, no conto rosiano Maria Rita, mulher de Lalino, prefere o macho da “raça” inferior ao invés do italiano, de “raça”, assim considerada, superior. Desse modo, ao mesmo tempo em que esses estereótipos são ratificados eles são também contraditos, o que caracteriza um jogo de ideias bastante presente nas obras de Rosa, o paradoxo. O autor de Grande Sertão: veredas segue em diversos de seus escritos uma linha temática de construção paradoxal, tecendo uma malha de contradições em seus textos a fim de afirmar que tudo que é ao mesmo tempo não é, pois as coisas, o mundo, as pessoas estão em constante processo de mudança, e como já dizia Marx “tudo que era estável e sólido desmancha no ar; tudo o que era sagrado é profanado” (2002, p. 29), Rosa, deste modo, alerta que é preciso cuidado com verdades e certezas prontas, pois que o fim não chegou, estamos em travessia e nela tudo pode mudar. Não esqueçamos todas as particularidades atribuídas à “raça” do mulato e tidas como verdade científica no Brasil do século passado, hoje, sabe-se que foram totalmente ultrapassadas, se desmancharam no ar. O protagonista, portanto, na condição de mulato, representa a figura do malandro, qualidade, conforme já mencionado, responsável em parte pelo tom cômico da narrativa. Segundo a pesquisadora paulista Ivone Minaes, Lalino apresenta as seguintes características, ao encarnar a malandragem:

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Anais do II Congresso Internacional de Estudos Linguísticos e Literários na Amazônia (CIELLA) amabilidade e risco [riso] fácil; estreita aderência aos fatos — o que torna o personagem um títere, desprovido aparentemente de lastro psicológico —; vida ao sabor da sorte, sem plano nem reflexão; e a astúcia como ingrediente básico. (1985, p. 26).

Destacamos algumas passagens do conto, objeto de nosso estudo, que demonstram essas características. A cordialidade, amabilidade: “ — Olá, Batista! Bastião, bom dia! Essa fôrça como vai?!/ — Ei, Túlio, cada vez mais, bem?/ — Bom dia, seu Marrinha! Como passou de ontem?” (ROSA, 1946, p. 69); O riso fácil: “Lalino Salãthiel vem bamboleando, sorridente [...] E logo comenta, risonho e burlão” (ROSA, 1946, p. 69-70); a aderência aos fatos é observada, sobretudo, pela capacidade de nosso herói de se adequar aos momentos, ele não reflete, age impulsivamente, guiado pelos desejos mais imediatos, sem ponderar as consequências, simplesmente ajustando-se aos resultados produzidos por suas atitudes, vivendo, desse modo, “ao sabor da sorte”, utilizando a quarta característica, a astúcia, para reverter uma situação adversa a seu favor. No que se refere à cordialidade, Gilberto Freyre no capitulo “Em torno de uma sistemática da miscigenação do Brasil patriarcal e semipatriarcal”, que aparece apenas na segunda edição de Sobrados e mucambos, de 1951, portanto depois da publicação de Sagarana, fala sobre a cordialidade do mulato: A simpatia à brasileira — o homem simpático de que tanto se fala entre nós, o homem “feio, sim, mas simpático” e até “ruim ou safado, é verdade, mas muito simpático”; [...] — essa simpatia e essa cordialidade transbordam principalmente do mulato [...] Ninguém como ele é tão amável; nem tem um riso tão bom [...] O próprio Conde de Gobineau que todo o tempo se sentiu contrafeito ou mal entre os súditos de Pedro II, vendo em todos uns decadentes por efeito da miscegenação, reconheceu no brasileiro, o supremo homem cordial: “très poli, très accueillant, très aimable”. Evidentemente, o brasileiro que tem sua pinta de sangue africano ou alguma coisa de africano na formação de sua pessoa; não o branco ou o “europeu” puro, às vezes cheio de reservas; nem o caboclo, de ordinário, desconfiado e que ri pouco. (p. 1059-60)

Luiz Roncari (2004, p. 33) definiu a cordialidade também como uma característica determinista do mulato, buscando a acepção etimológica do termo, que viria do latim cor, cordis, significando coração, homens movidos pelo coração, como o nosso protagonista, que age muito mais movido pelas particularidades, ou seja, pelas emoções, do que pela universalidade, racionalidade, que lhe permitiria levar em consideração princípios morais, por isso, representa um ser raso em reflexões. Convém ressaltar, ademais, que o nome Salatiel, encontrado no evangelho de São Mateus (Mateus 1.), corresponde a última geração da deportação dos israelitas para a babilônia, punição aplicada aos filhos desobedientes, note-se que o malandro é aquele que transgride os princípios de uma ordem social estabelecida. Além das caracteristicas supracitadas, Ivone Minaes chama a atenção para o fato de que, acima de tudo, Lalino é malandro pela linguagem e não apenas pela verbal, mas também pela gestual. Essa hipótese já vem indicada no nome do personagem principal, tendo em vista que, Eulálio, nome composto que indica dois radicais de origem grega (MOULTON, 1978): eu=, advérbio cujo significado é “bem”, aparece como prefixo de várias outras palavras em português, como eutanásia, euforia etc.; e lale,w (lalein) de “falar”, “dizer”. Eulálio, pois, é aquele que fala bem, que é bom orador. Nesse sentido, nosso herói obtém a persuasão das pessoas à sua volta por meio da comunicação adequada a cada interlocutor, a quarta característica já anteriormente mencionada da malandragem de Lalino, a astúcia, pode ser inclusive evidenciada pela utilização da linguagem que opera o convencimento e faz dominar a situação; a cordialidade e a simpatia de que vem carregada a comunicação do personagem faz com que ele se saia bem dos mais adversos momentos em que se encontra, levando todos, como se diz popularmente, “no bico”. Portanto, ao contrário da fábula citada na epígrafe, a tagarelice de Lalino não lhe põe em más situações, mas sim lhe tira delas. Kathrin Rosenfield afirma que o relato conversacional trata-se de um costume poderoso e o hábito de “puxar conversa”, no meio do trabalho ou no caminho, é tipicamente brasileiro, é importante levar em consideração que a autora dessa afirmação é uma pesquisadora alemã, já vivendo no Brasil há, aproximadamente, oito anos.

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Tema geral: Línguas e Literaturas: Diversidade e Adversidades na América Latina Em intermináveis conversas “conversas fiadas” misturam-se vida privada e pública, curiosidade à toa e interesses, amabilidade espontânea e obrigação social, pois “conversar”, no Brasil, não é apenas um passatempo privado ou um lazer pessoal, é quase uma secreta confirmação de que o laço social está intacto, de que a cordialidade está funcionando. (ROSENFIELD, 2006, p. 38, grifo nosso).

A linguagem gestual, assim como a verbal, tende a assumir uma relativa importância no traçado malandro do protagonista, Minaes esclarece que Salãthiel tem acesso a duas possíveis etimologias. De acordo com primeira, salã seria uma forma aportuguesada do vocábulo árabe salam, cujo significado é cerimônia, gesto, reverência; já thiel procede do termo hebraico Iel ou El, e designa Deus. Na segunda, Salãthiel seria uma forma analógica de Salatiel, de origem acadiana significando “aquilo que pedi a Deus”. A referida pesquisadora, extrai desses dados a interpretação de que o gesto acompanha a reverência ou o pedido a Deus. Diversas passagens no livro contribuem a fim de indicar um destaque desse tipo de comunicação Mas, lá detrás, escorregando dos sacos [...], dependura o corpo para fora, oscila e pula, maneiro, Lalino Salãthiel [...] Lalino Salãthiel vem bamboleando [...] Mas Lalino não sabe sumir-se sem executar o seu sestro, o volta-face gaiato [...]E Lalino fazia um gesto vago [...]Lalino Salãthiel gesticulava e modulava (ROSA, 1946, passim)

Vale ressaltar, ainda, o interesse de nosso protagonista pelo teatro, onde se estabelece uma relação indissociável entre gesto e palavra, ele estava organizando a peça do Visconde sedutor: “eu me alembrei hoje cedo de outro teatrinho [...] é o drama do Visconde sedutor... Êsse é que a gente podia representar” (ROSA, 1946, p. 70). Deste modo, é ratificado o fato de que pela associação da linguagem verbal à mímica é caracterizada a sedução malandra do personagem principal. No que se refere à astúcia, elemento da caracterização do tipo malando em Lalino, observase que pode ser estabelecida uma aproximação do conto ora estudado com a fábula esópica do cágado e do sapo, a qual se apresenta sob a forma de narrativa encaixada. Sílvio Holanda, no texto “No mundo de Esopo” (2006, p. 167-78) pauta sua análise pelo confronto entre a narrativa rosiana e uma das versões de “A festa no céu”. Na primeira o sapo engana até São Pedro, revertendo um castigo a seu favor, na segunda o sapo despenca das alturas e se “esborracha” no chão. Note-se que no conto em questão o narrador afirma que a variante verdadeira da fábula é a apresentada em “Traços biográficos de Lalino Salãthiel”: “E essa é que era a variante verdadeira da estória” (ROSA, 1946, p. 90), o narrador, portanto, desconsidera as outras variantes, afirmando que a que se deve considerar é aquela em que o sapo reverte uma situação desfavorável a seu favor, e não outras versões moralizantes em que o sapo sofre um castigo para aprender alguma lição. Observe-se que, logo no início da narrativa, é levantada a possibilidade de que o atraso de Lalino se devia a sua participação nalguma festa: “— Mulatinho descarado! Vai em festa, dorme quehoras, e, quando chega, ainda é todo enfeitado e salamistrão!...” (ROSA, 1946, p. 69). Ao que, notando a esperteza e astúcia do protagonista, seus próprios companheiros relatam, um pouco ressentidos, que para o nosso personagem principal, tudo dá certo “— Também, tudo p’ra êle sai bom, e no fim dá certo... — diz Correia, suspirando e retomando o enxadão. — “P’ra uns, as vacas morrem... p’ra outros até boi pega a parir...”. (ROSA, 1946, p. 69). Ressalta-se, ademais, que no caso de Lalino a ida ao Rio de Janeiro corresponde à festa no céu. Sabe-se que a fábula, palavra de origem latina que deriva do verbo fabulare, desigando “conversar”, “narrar” — esse vocábulo, aliás, deu origem ao substantivo português “fala” e ao verbo “falar” — é uma narrativa alegórica, em forma de prosa ou verso, cujos personagens são, geralmente, animais que pensam, agem e sentem como seres humanos, as fábulas terminam, invariavelmente, com uma lição moral, muitas dessas lições acabaram se tornando provérbios, o mais famoso deles é “quem desdenha quer comprar”, advindo da fábula de Fedro “Da Raposa e das uvas”. Em “A volta do marido pródigo”, o personagem principal é reiteradamente apontado como correlato do sapo, animal que representa a astúcia, a esperteza: “Ixe, já viu sapo não querer a água?! [...] mas Lalino Salãthiel nem mesmo sabia que era da grei dos sapos” (ROSA, 1946, p.81-90), há também algumas insinuações por parte do narrador como: “Eulalio de Souza Salãthiel, do Em-Pé-na-

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Lagôa, nunca passou além de Congonha [...] Lalino Salãthiel pererecava ali por perto” (ROSA, 1946, p. 74-101), “As aventuras de Lalino Salãthiel na capital [...] talvez mais tarde apareçam, juntamente com a estória daquela rã catacega” (ROSA, 1946, p. 84). Assim, o nosso herói seria tão esperto quanto o sapo que foi a festa no céu e enganou São Pedro. Guimarães Rosa utiliza bastante esse recurso de comparar homens a animais, para conferir a esses características daqueles. Ao longo da narrativa, é possível observar que o personagem Lalino utiliza sua malandragem permeada de astúcia para fugir de possíveis punições e conseguir, exatamente, “o que sapo quer”, ser cabo eleitoral do major Anacleto e ter sua mulher de volta. Sobre isso, Sílvio Holanda afirma que “Lalino, porém, contornando habilmente a punição imposta aos que desafiam a ordem, não é esmagado por um leão irritado ou explode de vaidade. Pelo contrário, o personagem instrumentaliza sua astúcia para burlar as reservas dos representantes da ordem.” (2006, p. 177). Entretanto, se por um lado o personagem principal demonstra a esperteza do sapo, por outro lado ele demonstra falta de caráter, pois é obrigado constantemente a mentir e enganar para justificar seus atrasos, suas faltas no trabalho e conseguir o que deseja, deste modo, o relaxamento moral da personalidade do protagonista, consequência da sua evidente procedência folclórica, é compensado pela amabilidade e cordialidade, fruto de sua condição de híbrido. O narrador, a priori, poderia parecer conivente com o comportamento de Lalino, pois, em nenhum momento da narrativa o censura por suas ações que levaram ao prejuízo de outrem, porém, é importante ressaltar que o protagonista não é meramente um mentiroso, pois, ao mesmo tempo em que enganava seus companheiros ele enganava a si mesmo, era mais um tipo sonhador, que, diante da insatisfação da sua condição, procurava evadirse para outra realidade. Assim, observa-se que Guimarães Rosa parte de duas tradições de narrativas, originalmente, orais, pois que chegaram a nós já sob a forma escrita, uma judaico-cristã e outra greco-romana, é sabido que ambas buscam levar o leitor a fazer uma reflexão acerca de preceitos morais e divinos. Embora o texto rosiano não tenha a pretensão de ensinamento que carregam essas narrativas, tem por escopo, parodiando a parábola e desmoralizando a fábula, levar o leitor a uma meditação a respeito da sociedade. Na parábola, o filho pródigo não foi castigado pelo seu erro, mas perdoado pelo pai, restou recuperando tudo; na fábula, em que, obrigatoriamente, deveria haver uma “moral da estória”, por meio de um castigo aplicado ao transgressor, Rosa descaracteriza essa ideia na narrativa encaixada, levando-nos a pensar, de forma atualíssima, na nossa própria sociedade em que os erros não são punidos e em que uma boa fala é capaz de nos ludibriar. Referências A BÍBLIA de Jerusalém. Trad. Ivo Storniolo et al. 5 ed. São Paulo: Edições Paulinas, 1991. 2366 p. ARISTÓTELES. Poética. Trad. Baby Abrão. São Paulo: Nova Cultural, 2004. p. 34-75. CANDIDO, Antonio. Sagarana. In: COUTINHO, Eduardo F. (org.). Guimarães Rosa. 2. ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1991. p. 243-247. CANDIDO, Dialética da malandragem (caracterização das Memórias de um sargento de milícias). Rev. Inst. Est. Brasileiros, São Paulo, n. 8, p. 67-89, 1970. FREYRE, Gilberto. Sobrados e mucambos. 2 ed. Rio de Janeiro: José Olympio, 1951. 400 p. GINGRICH, F. Wilbur; DANKER, Frederick W. Léxico do N.T. Grego/Português. Trad. Júlio P. T. Zabatiero. 7ed. São Paulo: Vida Nova, 2003. 228 p. HOLANDA, Sílvio Augusto de Oliveira. No mundo de Esopo. In: BERNARDINI, Aurora Fornoni; FERREIRA, Jerusa Pires (Orgs). Mitopoéticas: da Rússia às Américas. São Paulo: Humanitas, 2006. p. 167-178. MARX, Karl; ANGELS, Friedrich. Manifesto do partido comunista. Trad. Sueli Tomazzini Barros. Porto Alegre: L&PM, 2002. 132 p.

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Tema geral: Línguas e Literaturas: Diversidade e Adversidades na América Latina MINAES, Ivone Pereira. A linguagem malandra em Guimarães Rosa. Revista de Letras, São Paulo, n. 25, p. 25-34, 1985. MOULTON, Harold. The analytical greek lexicon revised. 2 ed. Londres: Zodervan, 1978. 448 p. PEREZ, Renard. Perfil de Guimarães Rosa. In: Em memória de João Guimarães Rosa. Rio de Janeiro: J. Olympio, 1968. p. 22-37. RONCARI, Luiz. O Brasil de Rosa: o amor e o poder. São Paulo: UNESP, 2004. 348 p. ROSA, João Guimarães. Carta de João Guimarães Rosa a João Condé revelando segredos de Sagarana. In: Sagarana. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2001. p. 23-28. ROSA, João Guimarães. Sagarana. 2. ed. Rio de Janeiro: Universal, 1946. 336 p. ROSENFIELD, Kathrin Holzermayr. Desenveredando Rosa: a obra de J. G. Rosa. Rio de Janeiro: Topbooks, 2006. 393 p. VIANNA, Oliveira. Populações meridionais do Brasil. 4 ed. São Paulo: Companhia Editora Nacional, 1938. v. 1. 422 p.

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UMA ANÁLISE SEMÂNTICA, DISCURSIVA E DE GÊNERO DA AMBIGUIDADE EM ANÚNCIOS PUBLICITÁRIOS Bruno Diego de Resende CASTRO Leila Rachel Barbosa ALEXANDRE (Universidade Federal do Piauí)

RESUMO: O gênero anúncio recorre a toda expressividade que a língua dispõe para apresentar seus produtos e, por ser uma atividade social muito pautada na linguagem, tornou-se um corpus muito rico para a descrição linguística. O fenômeno linguístico a ser descrito no presente trabalho será a ambiguidade, por exigir tanto do receptor quanto do locutor um maior cuidado na (re)construção do sentido do enunciado. Além de identificar as marcas sintáticas, semânticas, discursivas e lexicais, procurar-se-á apresentar no contexto o que desfaz a ambiguidade criada, isto é, se a ambiguidade pode ser desfeita através de elementos do texto ou do contexto. Desse modo o trabalho poderá nos permitir fazer uma análise do fenômeno linguístico e tentar apresentar as principais funções pragmáticas da ambiguidade tendo como corpus os anúncios publicitários retirados da revista Nova Escola. PALAVRAS-CHAVE: ambiguidade; gênero; discurso; estratégia; clareza.

ABSTRACT: The gender ad uses every expressivity that has the language to display its products and, for being a social activity much based on language, has become a very rich corpus for linguistic description. The linguistic phenomenon to be described in this work is the ambiguity, for requiring the receiver and the announcer a more careful (re)construction of the meaning of the statement. Besides identifying the syntactic, semantic, discursive and lexical marks, it will try to show what undoes the ambiguity created, it means, if this ambiguity can be undone by elements of the text or the context. Thus, this work may enable us to make an analysis of the linguistic phenomenon and try to present the main pragmatic functions of ambiguity having as corpus advertisements from the magazine Nova Escola. KEY WORDS: ambiguity; gender; speech; strategy; clarity.


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1. Introdução A língua, por ser expressiva por excelência, possui inúmeros recursos linguísticos para materializar as idéias dos indivíduos e os anúncios publicitários procuram utilizar essas ferramentas para várias finalidades, principalmente, para “seduzir” o consumidor. Dentre esses recursos temos a ambiguidade que pode ser percebida com frequência nesse gênero. O presente trabalho procura estudar o gênero anúncio por ser uma atividade social-discursiva de grande repercussão social, pois além de evidenciar alguns traços ideológicos das empresas anunciadas, são percebidas características ideológicas, culturais e políticas também dos consumidores ou destinatários. Pretende-se apresentar as marcas linguísticas que identifiquem a ambiguidade na sentença e como ela pode ser desfeita, descrevendo esse fenômeno linguístico baseado em teorias semânticas e discursivas. O objetivo desse trabalho será analisar e apresentar as principais funções pragmáticas (comunicar e argumentar) da ambiguidade tendo como corpus os anúncios publicitários retirados da revista Nova Escola. Para atingir os objetivos propostos serão abordados aspectos lexicais, semânticos, pragmáticos e situacionais (contexto) que envolvem este fenômeno linguístico. O âmbito semântico será a base desse trabalho, pois os elementos linguísticos superficiais do texto vão “denunciar” a ambiguidade nos permitindo, assim, observar a recorrência desse fenômeno linguístico relacionando-os ao discurso. Ao analisar os dados serão apresentados outros fenômenos linguísticos que envolvem a ambiguidade, tais como leis do discurso, vaguidade e o próprio gênero. As leis do discurso irão contribuir para o trabalho no sentido de através da pragmática permitir a descrição do ato enunciativo, ou seja, descrever o envolvimento dos interlocutores na promoção da ambiguidade. Pois “essas ‘leis’ desempenham um papel considerável na interpretação dos enunciados e definem uma espécie de competência pragmática (outros dizem “competência retórica).” (MAINGUENEAU, p. 115, 1996) Já a vaguidade será apresentada com o intuito de esclarecer algumas características da ambiguidade, isto é, o que a sentença precisa ter para que exista uma ambiguidade e o que pode ser considerado ambiguidade, ou seja, opor vaguidade a ambiguidade. O gênero será o “veículo” da ação linguística, ou seja, através dele pretende-se verificar a construção do discurso dentro do gênero para provocar ambiguidade. 2. As Leis do Discurso e o gênero ― a construção da ambiguidade Segundo Maingueneau (1996), as Leis do Discurso são de informatividade, de exaustividade e de modalidade. A primeira consiste em informar ao seu interlocutor o necessário, nada a mais e nada a menos; a segunda diz que se deve dar o máximo possível de informações que sejam pertinentes ao destinatário e a terceira relaciona-se à inteligibilidade entre os sujeitos, através dessa lei “são condenados os múltiplos tipos de obscuridade na expressão (frases complexas demais, ambíguas, elípticas etc.) e a falta de economia nos meios” (Maingueneau, p. 126, 1996). A ambiguidade pode proporcionar quebras nas Leis do Discurso (Ducrot apud Maingueneau, 1996), pois desempenham importantes papéis na interpretação dos enunciados. Para a interpretação dos enunciados pelos interlocutores, os sujeitos devem “seguir” algumas “normas”, as leis do discurso, que nem sempre são seguidas, mas, ainda assim tem-se a construção do sentido. Contudo os interlocutores podem não se entender, por exemplo, Pedro diz a João: “Vi no jornal que o policial prendeu o ladrão em sua casa”, então João diz “hoje em dia nem os policiais têm segurança em sua casa’. E Pedro responde:” Não na casa do policial, mas na casa do ladrão. No entanto, não basta apenas “seguir” tais regras para haver um completo entendimento entre os interlocutores, pois se necessita de um complexo contexto linguístico e extralinguístico (social, político, religioso etc.). Nem sempre os interlocutores cumprem essas regras e do não “cumprimento” de uma dessas leis sentenças ambíguas podem ser originadas. A ambiguidade, por ser um elemento linguístico ou uma expressão que proporciona ao receptor uma (re)construção de dois ou mais sentidos a uma sentença, é de grande utilidade em anúncios publicitários com o intuito de chamar atenção para o texto e para o produto apresentado,

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provocando a curiosidade no receptor. Essa característica da língua quase sempre proporciona humor que colabora para uma maior sedução por parte do anúncio. A ambiguidade pode ser construída de forma intencional, através de implicadores, em virtude das intencionalidades do locutor, porque se ele pretender instigar o receptor a buscar o sentido mais próximo ao proferido pelo locutor terá que levar este a fazer um maior esforço cognitivo, além de compartilhar os mesmos conhecimentos enciclopédicos, quebrando, assim, o princípio da cooperação, que segundo Maingueneau (1996) prevê que os sujeitos falantes se esforcem para fazer a comunicação ter êxito. Mas também pode haver ambiguidade sem intenção, que acarreta o problema de o locutor construir um enunciado que não “atenda” de imediato o próprio propósito do locutor, por exemplo, em notícias de jornal, já que, se elas priorizam o máximo de objetividade e informatividade, não atendendo a lei do discurso da modalidade, não sendo claro, o enunciado está “infringido” essa lei. Segundo Fromkin & Rodman (1993) existem aspectos próprios da língua que podem causar a ambiguidade, que serão apresentados e desenvolvidos neste trabalho, são eles: o próprio léxico, as construções metafóricas e a estrutura. Pode-se perceber no léxico a ambiguidade através da homonímia, como por exemplo, o vocábulo “marca” (retirado do anúncio – “UFLA, uma forte marca em sua carreira”) em que há dois sentidos para esse vocábulo, marca como sinal, traço distintivo e marca tendo a empresa como referência do assunto apresentado. Outro implicador é a estrutura frasal, como na oração “Eu conheço o filho desse homem que é jogador”, pois por causa da posição da oração “que é jogador”, na há clareza quanto à pessoa que é jogador: se é o filho ou o homem. Essa ambiguidade poderia ser desfeita apenas com uma mudança na estrutura da frase, ficando assim: “Eu conheço o filho, que é jogador, desse homem” ou “Eu conheço o filho desse homem jogador”. A metáfora é outro implicador que pode provocar ambiguidade e quase sempre provoca, pois se tem o sentido literal e o sentido metafórico em uma só sentença, como por exemplo, em: “Abrace o planeta.” Se fosse considerado o mero significado das palavras que compõem a frase, a frase teria o sentido de pedir que as pessoas envolvam o planeta com os braços. Se, no entanto, passássemos a enxergar o sentido metafórico seria possível perceber que abraçar está sendo usado no sentido de cuidar do planeta. Dessa forma, por causa da associação entre abraço e proteção a ambiguidade seria construída. Relacionada à noção de ambiguidade, Ruth M Kempson (1980) apresenta a noção de vaguidade. Para essa semanticista deve-se ter cuidado em afirmar se uma sentença é ambígua ou apenas lhe falta especificação, o que levaria à identificação de vaguidade e não de ambiguidade. Para ela, vaguidade Kempson (1980) afirma existir quatro tipos principais de vaguidade. A vaguidade referencial que ocorre quando se conhece o significado do item lexical, mas pode haver indecisões sobre a aplicação desse item a determinados objetos. Como por exemplo, os itens lexicais “município” e “cidade”, pois possuem significados claros, mas em seu uso é difícil de distinguir a qual objeto se aplica, pois município entende-se que é uma área ocupada por muitas casas e administrada por um prefeito, já cidade não necessariamente tem-se a idéia de organização administrativa legada ao seu significado, contudo a aplicação desses dois vocábulos tem significado muito próximos, e por isso existe uma certa vaguidade referencial. O próximo tipo de vaguidade é a indeterminação de significado de um item ou sintagma, em que a interpretação não é suficientemente clara ficando indeterminada, como, por exemplo, em “O ônibus de Pedro”, a interpretação não é clara, porque se pode entender que se trata: do ônibus que Pedro pega para ir ao trabalho, o que ele dirige, o que ele é dono etc. O terceiro tipo de vaguidade é a falta de especificador, ou seja, o significado é de conhecimento, mas por ser amplo há falta de especificação. Expressas por substantivos como pessoa, animal, veiculo etc. e por verbos como ir e fazer, pois podem abranger varias ações, tais como: correr, andar de bicicleta, carro, ônibus etc. e arrumar a cama, concertá-la, limpá-la etc. desse modo tem-se a vaguidade da falta de especificação do significado

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E a vaguidade em que o significado de um item envolve a disjunção de diferentes interpretações. No seguinte exemplo tem-se esse tipo de vaguidade: Os Candidatos devem ter um diploma de primeira classe ou certa experiência de magistério. O elemento “ou” permite que haja uma interpretação para cada disjunção e a sentença seja valida. Pois os candidatos devem ter um diploma de primeira classe, mas nenhuma experiência de ensino, ou experiência de ensino, mas não um diploma de primeira classe, ou ambos, criando, assim, a vaguidade. 3. Materiais e métodos O corpus é composto por quatro anúncios publicitários retirados da revista Nova Escola dos meses agosto, outubro e novembro de 2008. Buscou-se esse material porque os anúncios são de produtos da área educacional, dessa forma através desse pequeno recorte pode-se verificar a forma de abordagem dessas empresas. Com base na teoria de Leis do Discurso de Maingueneau (1996) e nas noções sobre ambiguidade de Fromkin e Rodman (1993) analisou-se as propagandas selecionadas, procurando-se observar a existência de ambiguidade nesses anúncios e como esse fenômeno favorece a quebra de algumas leis do discurso. 4. A ambiguidade nos anúncios publicitários A primeira sentença da propaganda 1 das Tesourinhas Tramontina (anexo1) diz: “As tesourinhas vão levar seus alunos até o espaço. E trazer a turma de volta antes do sinal bater.” A ambiguidade encontrada nesse anúncio é do tipo metafórica (FROMKIN & RODMAN, p.185, 1993), visto que se tem o sentido literal e o sentido figurado. O sentido literal “baseia-se nas propriedades semânticas normais das palavras na frase” (FROMKIN & RODMAN, p.186, 1993), o que na sentença da propaganda seria a idéia de que as tesourinhas vão levar de fato os alunos até o espaço, ao cosmos. Já o sentido metafórico se baseia “nas propriedades semânticas que são inferidas ou que estabelecem alguma relação de semelhança” (FROMKIN & RODMAN, p.186, 1993), o que implica dizer que o espaço de que fala a propaganda está se referindo à imaginação das crianças por uma associação entre os dois significados. O sentido literal é distante da realidade, porque tesouras não levam ninguém ao espaço cósmico literalmente, mas poder-se-á inferir que leva ao espaço físico, a escola ou ao espaço das brincadeiras com recorte. Já o sentido figurado permite inferir que esse produto incentiva a imaginação dos alunos. Por se tratar do gênero anúncio publicitário ter-se-á uma intenção na construção da sentença ambígua e a função pragmática buscada pelo autor é a tentativa de criar uma imagem positiva do produto, fazendo esse “jogo” de sentidos, tornando a propaganda mais sedutora e, consequentemente, mais eficaz. Assim a ambiguidade foi o recurso discursivo que o publicitário encontrou para atribuir dois aspectos positivos ao seu produto com apenas uma sentença. Na segunda sentença, escrita em fonte menor e de cor diferente, tem-se o reforço à imagem que o anúncio pretende alcançar, “Tesourinhas Tramontina. Dão vida à imaginação dos seus alunos.”. Nessas duas orações o autor direciona o pensamento do interlocutor, segundo as Leis do Discurso, ou seja, a cooperação entre os interlocutores, desfazendo a ambiguidade e deixando claro que o anúncio se refere à ida ao espaço através da imaginação. O enunciado, inicialmente, não segue uma das Leis do Discurso, pois não é muito claro em seu discurso, tanto que utiliza outra sentença para reafirmar o que foi dito, no entanto “volta atrás” e segue a lei da modalidade. Assim pode-se perceber que a ambiguidade pode ser desfeita pelo contexto ou pelo próprio texto, nesse caso tem-se a influencia no direcionamento da interpretação. Tem-se na propaganda da revista Recreio (anexo2), a seguinte sentença: “Chegou a nova coleção da RECREIO. Perfeita para ir à escola.”, que pode ser interpretada de duas maneiras diferentes: a primeira é a de que a nova coleção da revista Recreio é perfeita para ser utilizada na escola, ou seja,

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levada para a sala de aula, para que seja um instrumento de auxílio à aprendizagem nas aulas. A segunda interpretação possível é a de que essa coleção leva você até a escola, isto é, a revista fará o papel de construção do conhecimento e ensino, incentivando os alunos a participarem das práticas escolares através dessa nova coleção da revista. A ambiguidade encontrada nessa propaganda é do tipo estrutural (FROMKIN & RODMAN, p.187, 1993), pois “é a estrutura da frase e não as palavras nela existentes, que permite mais do que uma interpretação.” (FROMKIN & RODMAN, p.187, 1993). Nesse caso, o verbo é o elemento estrutural ocasionador de ambiguidade, visto que se a frase fosse modificada por outras expressões a ambiguidade seria desfeita. Para a primeira interpretação, a frase seria mais clara se o verbo “ir” fosse substituído por “ser levada”, ficando “Chegou a nova coleção da RECREIO. Perfeita para ser levada à escola”. No segundo caso, a explicitação do sujeito acabaria com a ambiguidade: “Chegou a nova coleção da RECREIO. Perfeita para o aluno ir à escola. Desse modo o que marca a ambiguidade é a estrutura (“perfeita para ir à escola”), isto é, a composição e escolhas feitas pelo interlocutor na construção do enunciado. Mas o contexto direcionará o interlocutor à segunda interpretação, a de que a nova coleção será um complemento à “vida escolar da garotada”, como o próprio anúncio explicita. Para Kempson (1980) a sentença conterá vaguidade por falta de especificação, pois o verbo “ir” nesse enunciado possui um significado muito geral (que causa ambiguidade) quanto à especificação da ação. Como já foi salientado anteriormente, porem essa sentença é ambígua, pois essa “falta de informação” é proposital para causar ambiguidade, porque os sentidos evocados nessa ambiguidade trazem consigo uma valoração positiva ao produto anunciado. Isto é, a coleção recreio “leva” o aluno até a escola e também pode ser utilizada pelo professor em sala de aula. Dessa forma a diferença entre vaguidade e ambiguidade se concentra na intenção do locutor e na situação semântica provocada pela duplicidade de sentido a vaguidade é uma característica da própria comunicação humana, pois um enunciado dificilmente dirá tudo numa sentença, porque dentre outros fatores a interação entre os falantes acontece através de meios extralinguísticos, como pro exemplo, o contexto a qual o enunciado está inserido. A lei que não é seguida pelo enunciador será, novamente, a de modalidade, porque ao criar a ambiguidade o autor não coopera para a construção do sentido na recepção. Contudo a própria propaganda esclarece essa ambiguidade na sentença que se segue (“A partir do dia 10 de setembro, a RECREIO tem mais um motivo para participar da vida escolar da garotada”). Assim como no anúncio anterior a função pragmática pretendida é a sedução do ouvinte para o produto e valorar positivamente o produto apresentado. A estratégia utilizada para conseguir isso na recepção é a aproximação do produto com a escola, evidenciando um discurso de que a revista RECREIO ajudará na construção do conhecimento pela criança, sendo de grande importância adquiri-lo. No anúncio 3 (anexo 3), da editora Saraiva, é apresentado um portal para ajudar no processo de ensino-aprendizagem em matemática e leitura e para isso o publicitário aproveita-se do próprio nome do portal, Destino, para criar a ambiguidade. Nessa propaganda temos ambiguidade do tipo metafórica, porque ao usar a expressão “Embarque conosco nessa viagem da tecnologia educacional: Série Destino”, o produtor do texto apresenta um sentido literal e um metafórico. Quando se observa o sentido literal o sentido inferido é o de que se trata de uma viagem de fato, em que se embarca num veículo (avião, carro, ônibus). Quando se observa o sentido metafórico entende-se que a frase se refere a uma viagem em sentido figurado, chamando o professor a utilizar a Série Destino, nome do portal apresentado. O próprio nome do portal, Destino, é indicador da ambiguidade associada à palavra “viagem”, podendo ter dois sentidos. O primeiro no sentido de se atingir um objetivo, por exemplo, o destino dos professores é facilitar o aprendizado dos alunos, mais associado ao sentido metafórico de “viagem”; o segundo sentido é o de direção rumo, exemplo: o destino do professor é a Bahia, esse mais claramente associado ao sentido literal da palavra “viagem”. E na sentença no início da página temos “evocados” os dois sentidos (“Embarque conosco nessa viagem da tecnologia educacional:

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Série Destino”) marcados pelas palavras: embarque (sentido literal), tecnologia educacional (sentido metafórico), reforçando ainda mais a ambiguidade da sentença. A lei do discurso de modalidade não é seguida, pois os sentidos estão muito próximos. Nesse caso Kempson (1980) o descreveria como vaguidade referencial, contudo será considerado uma ambiguidade metafórica, pois a sentença não direciona a interpretação para um sentido único como já foi salientado e apenas é esclarecida a ambiguidade através da nota mais abaixo do texto e em fonte menor: “Faça seu cadastro e acesse Destino: Matemática e Destination Reading pelo prazo de 45 dias. É grátis!” que permitirá inferir que o embarque é no portal e não em um veículo. O anúncio publicitário 4 (anexo 4), do Sistema de Ensino Dom Bosco, apresenta a seguinte frase: “Se eu misturar matemática com biologia, será que rola uma química?”. Tem-se aí ambiguidade do tipo lexical, que acontece quando “há frases que se tornam ambíguas por conterem uma ou mais palavras ambíguas.” (FROMKIN & RODMAN, p.184, 1993), pois a palavra “química possui comumente em nossa sociedade duas acepções: uma diz respeito ao nome de uma disciplina de estudo e a outra se refere à expressão popular usada para indicar afinidade. Nesse caso, os dois significados são explorados, pois se for considerada a frase “será que rola uma química” no sentido popular, significando dar certo ter afinidade, interpretar-se-á que a indagação que se faz é sobre a possibilidade de as duas disciplinas (matemática e biologia) terem afinidade, pontos em comum. Já quando se pensa no significado que se refere à disciplina a frase passa a indicar a possibilidade de a junção das disciplinas Biologia e Matemática poder gerar outra disciplina, a Química. Essa ambiguidade é facilmente esclarecida no contexto do anúncio, pois está apresentando a interdisciplinaridade desenvolvida pelo sistema de ensino: “Dom Bosco. Um Sistema de Ensino interdisciplinar e sociointeracionista. Porque ultrapassar as barreiras do conhecimento é potencializar o aprendizado.” Por conseguinte, a interpretação condizente com o anúncio é a de que a união entre as diversas disciplinas de ensino (representadas no anúncio por Química, Matemática e Biologia) dá certo em um sistema de ensino que valorize a interdisciplinaridade, como o desenvolvido pelo Dom Bosco. A intenção da ambiguidade é apresentar de forma bem humorada o tipo de ensino desenvolvido pela empresa e dessa forma “tornar a construção do conhecimento mais inteligente, divertida, e interativa”, conforme dito em letras menores no texto do anúncio, explicitando bem o objetivo dessa ambiguidade. Verifica-se nesse anúncio que se a frase no topo da página fosse descontextualizada, haveria uma quebra na Lei da modalidade, pois não seria possível inferir qual o sentido pretendido pela propaganda. O que deixa claro a intenção dessa frase é o texto que vem abaixo no anúncio, explicando como funciona o sistema de interdisciplinaridade do Dom Bosco. 5. Considerações finais Através das análises feitas descobriu-se que a lei da modalidade, que trata da clareza dos enunciados é a que mais se relaciona com a ambiguidade dos nas propagandas analisadas, ou seja, o não seguimento dessa lei poderá provocar ambiguidade, o que nesse caso é feito de forma proposital. Contudo, para seguir as outras leis de discurso, partindo do principio da cooperação, a ambiguidade é desfeita, pois o próprio texto possibilita o esclarecimento de tais ambiguidades. A ambiguidade nessas propagandas exige um maior esforço mental por parte do receptor para entender os sentidos veiculados e relacioná-los ao produto anunciado. Isso faz com que o texto que fala do produto mais detidamente seja mais esclarecedor e não deixe dúvidas para o receptor. Verificou-se que o produtor do anúncio usa a ambiguidade na chamada da propaganda, na frase de destaque, como forma de chamar a atenção do receptor, mas a desfaz no corpo da propaganda em letras menores, caracterizando o produto anunciado de forma mais clara. Isso demonstra que o uso da ambiguidade nas propagandas é feito de forma intencional, numa procura pela criatividade que destaque o produto anunciado dentre os demais concorrentes, algo que está presente até mesmo entre os produtos educacionais.

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Notou-se também que o recurso linguístico, ambiguidade, funciona como um reforço de atribuições ao ente apresentado no enunciado, ou seja, a duplicidade de sentido causada por esse fenômeno linguístico é uma estratégia de adjetivação usada pelos enunciadores com o intuído esse intuito, o de trazer dois aspectos positivos do produto apresentado com o único enunciado Foi possível perceber que, mesmo a ambiguidade sendo desfeita pelo próprio texto explicativo do produto, nenhum dos sentidos inferidos na chamada de destaque do anúncio é descartado. O que ocorre é uma complementação entre os dois para diferenciar o produto dos demais, fazendo com que ele agregue funções que possivelmente os outros não tem: as Tesourinhas Tramontina não servem só para cortar, mas incentivam a imaginação; a nova coleção da Recreio não só é boa para ser usada na escola, mas é também capaz de fazer com que o aluno se interesse pela escola; o portal Destino não só facilita o ensino dos alunos, mas leva o professor a enriquecer os conhecimentos; o Dom Bosco não só pratica a interdisciplinaridade, mas faz com que ela dê certo de forma prazerosa e divertida. Dessa forma, nesse trabalho foi possível, além de observar os traços linguísticos preponderantes na criação da ambiguidade no gênero anúncio publicitário dessa revista, também fazer uma análise discursiva desse gênero tentando apresentar a ambiguidade como um aspecto linguístico de grande valor comunicativo interacional. Contudo a ênfase do trabalho é na descrição desse fato linguístico. E conclui-se que o discurso sempre é de valoração positiva do produto apresentado, trazendo para o produto uma funcionalidade que através da ambiguidade pode ser percebida (como trazer benefícios aos estudos, promover a utilização da imaginação, ajudar no processo de ensinoaprendizagem etc.), pois se utiliza esse recurso com o intuito de aproximar as características positivas do produto às necessidade do consumidor, tornando-se mais sedutora e persuasiva. Referências BRITTO, L. A.. Breve análise tipológica dos usos da polissemia o texto publicitário na sala de aula. Disponível em: www. filologia.org.br/ixfelin/trabalhos/doc/18.doc FERREIRA, A. H. Ambiguidade em supostas estruturas de passiva. Disponível em: http://www.filologia.org.br/ xcnlf/15/03.htm FROMKIN, V., RODMAN, R. Introdução à linguagem. Tradução de Isabel Casanova. Coimbra: Livraria Almeida, 1993. ILARI, R. Ambiguidade de segmentação. In: Introdução à semântica: brincando com a gramática. São Paulo: Contexto, 2001 KEMPSON, R. M. Teoria semântica. Tradução de Waltensir Dutra. Rio de Janeiro: Zahar editores, 1980 MAINGUENEAU, D. As Leis do discurso. In: Pragmática para o discurso literário. São Paulo: Martins Fontes, 1996.

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Anexo 1 – Propaganda das Tesourinhas Tramontina

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Anexo 2 – Propaganda da Revista Recreio

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Anexo 3 - Propaganda do portal da Editora Saraiva

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Anexo 4 - Propaganda do Sistema Educacional Dom Bosco

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A CRÍTICA BIOGRÁFICA NA BERLINDA: CONFLITOS ENTRE O BIOGRAFISMO E TEORIAS SOBRE A FIGURA DO LEITOR Carolina Duarte DAMASCENO (Universidade Estadual de Campinas)

RESUMO: Embora a crítica biográfica tenha há muito perdido sua posição de destaque, alguns de seus ecos ainda se fazem presentes no âmbito da análise literária, principalmente nas narrativas em primeira pessoa, em que a tendência de aproximar autor e narrador é mais acentuada. O propósito deste trabalho é discutir o conflito entre a interpretação biográfica e teorias recentes sobre a figura do leitor. A reflexão proposta terá como base A rainha dos cárceres da Grécia, de Osman Lins, cujo narrador escreve notas sobre o romance completamente inédito de sua falecida amante, Julia Marquezin Enone. Esse livro do escritor pernambucano coloca em primeiro plano os bastidores da leitura e configura-se, assim, como um interessante campo de reflexão sobre os processos de atribuição de sentido, discutindo inclusive os limites da intencionalidade do autor na interpretação da obra literária. PALAVRAS-CHAVE: Osman Lins; crítica biográfica; papel do leitor.

RÉSUMÉ: Même si la critique biographique ne soit plus en évidence depuis longtemps, ses échos persistent dans le domaine de l’analyse littéraire, surtout dans les narratives en première personne, dans lesquelles la tendance d’approcher auteur et narrateur est plus accentuée. Le propos de cet étude c’est refléchir sur le conflit entre l’interprétation biographique et des théories recentes sur le rôle du lecteur. Cette réflexion se basera sur A rainha dos cárceres da Grécia, livre d`Osman Lins dont le narrateur écrit des notes à propos du roman complétement inédit de sa décédée copine, Julia Marquezin Enone. Le livre de cet écrivain de Pernambuco met en premier plan les coulisses de l’ act de la lecture, ce que le caracterize comme un intéressant champ de réflexion sur les procés d’attibution de sens, en discutant aussi les limites de l’intentionnalité de l’auteur dans l’interprétation de l’oeuvre littéraire. MOTS-CLÉS: Osman Lins; critique biographique; rôle du lecteur.


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O propósito deste artigo1 é empreender uma reflexão sobre alguns problemas das abordagens críticas de cunho biográfico, cujos limites se evidenciam ainda mais diante das teorias sobre o papel do leitor. A reflexão tomará como base “Um mundo sem aspas”, de José Paulo Paes (2004), texto sobre A rainha dos cárceres da Grécia, instigante livro de Osman Lins (1976) que retrata os bastidores da leitura literária. Destacar-se-á como a interpretação biográfica, que tende a ser mais sutil atualmente, entra em conflito com o lugar atribuído ao leitor no processo de significação. A crítica biográfica há muito não ocupa um lugar de destaque no campo das letras2. Com efeito, o cotejo entre a vida do autor e sua obra, que tende a soar anacrônico nos dias atuais, vem sendo questionado, por exemplo, por autores como Abel Barros Baptista (2003), por exemplo, que desvencilha a pessoa do autor da figura por ele assumida em sua escrita ficcional. Em texto relativamente recente, Eneida Maria de Souza (2002) defende essa vertente crítica, mas sob outra perspectiva. Aponta as limitações do que chama de “abordagem biográfica tradicional” (SOUZA, 2002, p.119), que parte da ideia de um sentido oculto no texto, revelado a partir da vida de quem o escreveu. A pesquisadora descarta, com base em Foucault e Derrida, “qualquer ilusão de princípio fundador ou de autenticidade factual” (SOUZA, 2002, p.119). Entretanto, considera que abordar as complexas relações entre autor e obra é uma forma de ampliar o alcance do texto, sob a perspectiva dos estudos culturais. Embora esse tipo de leitura se diferencie da visada romântica, a aproximação sugerida ainda parece um campo repleto de riscos, como se verá ao longo desta análise. A discussão inicia-se com uma breve apresentação de A falácia intencional, de Wimsatt e M.C Beardsley (2002), um dos primeiros textos a se voltarem contra interpretações pautadas na intenção do escritor. Primeiramente, vale ressaltar que os críticos não desmerecem o estudo biográfico em si, em forma de biografia literária, mas são contrários a sua aplicação na análise estilística dos textos. Nesse âmbito, argumentam que: “[...] o desígnio ou intenção do autor não é nem acessível nem desejável como padrão para julgar-se o êxito de uma obra de arte literária [...]” (BEARDSLEY; WINSATT, 2002, p.641). Prosseguindo seu questionamento ao que consideram um movimento romântico da crítica, partem de um poema de Eliot para abordar o problema inerente à pergunta “O que o autor quis dizer com sua obra?”: Nossa opinião é que a resposta para uma tal pergunta nada tem a ver com o poema “Prufrock”; pois esta não seria uma pergunta crítica. As perguntas críticas, contrariamente às apostas, não são respondidas desta maneira. Não são resolvidas pela consulta a um oráculo” (BEARDSLEY; WINSATT, 2002, p.655).

O posicionamento de Wimsatt e Beardsley é marcado, em alguns momentos, por certo exagero, pois desconsideram a importância de qualquer elemento extratextual, como as leituras do escritor e seu contexto histórico, por exemplo. Entretanto, seu texto tem grande mérito, pois questiona, a partir da comparação entre intenção e oráculo (com sua com sua carga mística e muitas vezes inacessível), a posição do autor como autoridade máxima no estudo de sua obra. Nesse sentido, a observação de Paul Ricoeur merece destaque: “O que há a compreender numa narrativa não é, em princípio, aquele que fala por detrás do texto, mas aquilo de que se falou, a coisa do texto, a saber, a espécie de mundo que, de certa forma, a obra revela pelo texto” (RICOEUR, 1989, p.169). Embora o traçado da argumentação do filósofo se diferencie da exposta em A falácia intencional, ele apresenta o mesmo propósito de desvencilhar a interpretação da figura do escritor. Atrela a complexa questão do significado de um texto a elementos linguísticos, ressaltando que o processo da leitura não deve passar por uma “afinidade afetiva com a intenção” de quem escreve (RICOEUR, 1989, p123), mas sim pela estrutura da obra. Outros teóricos dão a esta reflexão uma forma particular, levando em conta especialmente a figura do leitor. Neste ponto, vale apontar um movimento na Teoria Literária sintetizado em linhas gerais por Terry Eagleton (EAGLETON, 1997, p.202). Este artigo é parte de uma pesquisa de doutorado em andamento financiada pelo CNPQ. A situação certamente se diferencia da apontada em A falácia intencional por Wimsatt e Beardsley: “É difícil haver um problema de crítica literária em que a abordagem do crítico não seja qualificada por suas idéias acerca da ‘intenção”. (BEARDSLEY; WINSATT, 2002, p.641).

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Tema geral: Línguas e Literaturas: Diversidade e Adversidades na América Latina De forma muito sumária, poderíamos periodizar a história da moderna teoria literária em três fases: uma preocupação com o autor (romantismo e século XIX); uma preocupação exclusiva com o texto (Nova Crítica) e uma acentuada transferência da atenção para o leitor, nos últimos anos.

Um dos marcos mais importantes dessa última fase é, certamente, “A morte do autor”, de Rolland Barthes (BARTHES, 2004). Nesse célebre artigo, o crítico francês analisa os bastidores da intencionalidade, esclarecendo como a ideia de “Autor” está entrelaçada à necessidade de decifrar uma suposta mensagem secreta do texto. A morte dessa figura, do modo que era tradicionalmente entendida, acarreta, consequentemente, o desaparecimento do sentido único. A obra, assim, passa a ser um “tecido de citações, saídas de mil focos de cultura...” (BARTHES, 2004, p.68). Diante dessa pluralidade, o leitor ganha força e voz. A observação de Terry Eagleton traz interessantes desdobramentos a esta discussão. Segundo ele, “A intenção de um autor é, em si mesma, um ‘texto’ complexo, que pode ser debatido, traduzido e interpretado de várias formas, como qualquer outro” (EAGLETON, 1997, p. 95). Complementa seu raciocínio evidenciando, de forma espirituosa, a arbitrariedade da crítica biográfica: “Em princípio não há mais razão para se preferir o significado pretendido pelo autor do que há para se preferir a leitura sugerida pelo crítico de cabelos mais curtos ou de pés maiores” (EAGLETON, 1997, p.95). O fato de colocar a suposta intenção do escritor, muitas vezes sequer acessível, como um texto a ser decifrado evita reducionismos. Com efeito, a interpretação que dá ênfase à intencionalidade atribui à obra um caráter excessivamente circunstancial. Se esta for lida principalmente como um reflexo daquilo que seu criador quis dizer, essa voz, muitas vezes metáfora do contexto e da trajetória pessoal, tende a ficar mais tênue com o passar dos anos. Entretanto, em uma concepção que associa o sentido aos signos linguísticos e à leitura, os textos literários são constantemente resignificados pelo leitor, que os faz assumir diversas formas ao longo do tempo. Um comentário Jonathan Culler (1999, p.69) corrobora essa opinião: Restringir o sentido de uma obra ao que o autor poderia ter tencionado permanece uma estratégia crítica possível, mas geralmente nos dias de hoje está amarrado não a uma intenção interior mas à análise das circunstâncias pessoais ou históricas do autor: que tipo de ato esse autor estava realizando, dada a situação do momento? Essa estratégia denigre respostas posteriores à obra, sugerindo que a obra responde a preocupações de seu momento de criação e apenas acidentalmente às preocupações de leitores subsequentes.

Feitas essas considerações, a reflexão se volta para A rainha dos cárceres da Grécia, de Osman Lins. Nesse livro, publicado em 1976, o protagonista - um professor de Biologia, cujo nome não é mencionado - se debruça sobre o romance A rainha dos cárceres da Grécia, de Julia Marquezin Enone, sua falecida amante, o qual narra os inglórios esforços da protagonista Maria de França para ser aposentada por invalidez. A partir desse texto, nunca publicado, de que o leitor somente tem acesso a alguns trechos, sob a ótica do narrador, este descreve, em forma de diário, os bastidores de sua leitura, lembrando, embora de forma parcial, os procedimentos empregados por Rolland Barthes em S/Z (1992). Nas primeiras páginas, o narrador hesita sobre qual tema irá discorrer. A princípio, pensava em contar sua convivência com Julia, porém abandona seu projeto inicial, optando por escrever sobre o livro dela. Feita essa decisão, comenta: Somos, à existência do texto, a sua natureza. Os textos: em princípio, doação universal. Se sobre eles opinamos ou se os iluminamos de algum modo – se fazemos com que se ampliem em nós – operamos sobre um patrimônio coletivo (LINS, 2005, p.8).

A passagem transcrita traz à tona dois pontos de especial interesse. O primeiro deles é a opinião de que uma obra, mesmo quando ainda não publicada (do livro de Julia, foram distribuídos apenas 65 exemplares mimeografados), pertence à coletividade. O segundo, por sua vez, vincula-se à ideia de que o leitor ilumina a obra, cuja significação é ampliada a partir de sua experiência pessoal. Assim, já no início desse livro de gênero híbrido, ecoam as discussões sobre o processo de atribuição de sentido à ficção pontuadas anteriormente. Ao colocar o texto como “patrimônio coletivo”, o narrador afasta a concepção de autor como detentor da interpretação mais apropriada sobre a obra.

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É o que está em jogo no trecho seguinte, quando o professor de Biologia tenta desvendar a personalidade de um dos personagens do romance de Julia: “Seria Rônfilo Rivaldo, para sua criadora, mais claro do que para mim? Não afirmaria que sim e nem ser isso indispensável” (LINS, 2005, p.59). Aqui, coloca no mesmo plano a compreensão (e, por tabela, a incompreensão) do leitor e do autor sobre um elemento da narrativa que o último criou. Entretanto, esse nivelamento ainda se dá em forma titubeante, pois parte de uma pergunta cuja resposta ainda não é uma clara tomada de partido. Com efeito, a sombra da supremacia interpretativa do escritor sobre sua obra parece inquietar o narrador em alguns momentos. No entanto, seu posicionamento ganha força ao longo do diário, como quando defende, nas páginas seguintes, que “o artista não abrange todas as significações do que cria” (LINS, 2005, p.65). Em determinado ponto de suas notas, compara Maria de França, protagonista de A rainha dos cárceres da Grécia, com um escritor - pois, entre outros traços em comum, ambos percebem “[...] o real com estranheza” (LINS, 2005, p.91). Questiona-se então: “[a comparação] Terá razão de ser, ou eu a inventei? Não mais me oprime o dilema” (LINS, 2005, p.92). É importante destacar que essa passagem, a qual sucede uma reflexão sobre a importância da imaginação, marca a consciência do narrador sobre o caráter criativo de sua crítica. Além disso, ao afirmar que o autor não detém todas as chaves de sua obra, retira-o do posto de entidade narrativa absoluta, em um movimento apontado por Barthes (2004), que já foi abordado aqui. Assim, fica claro que o leitor também desempenha um papel central na experiência literária. A questão ganha outras matizes quando o professor sugere o tom de simulacro de seu relato: Neste ponto, penso em algo inviável: uma obra que se apresentasse desdobrada, construída em camadas e que fingisse ser a sua própria análise. Por exemplo: como se não houvesse Julia Marquezin Enone e A Rainha dos Cárceres da Grécia, como se o presente escrito é que fosse o romance desse nome e eu próprio tivesse existência fictícia (LINS, 2005, p.55).

É a possibilidade desse cotejo entre leitura crítica e criação que será questionada por José Paulo Paes (2004). Primeiramente, será apresentado, em linhas gerais, seu artigo “O mundo sem aspas”, de grande relevância na fortuna crítica de Osman Lins. O texto inicia-se com uma interessante retomada da concepção especular de romance proposta por Stendhal: Aqui já não se trata, como na ficção verista, de um único espelho a refletir homologicamente as cenas do mundo real para o qual está voltado. Trata-se, mais bem, de um dispositivo de espelhos conjugados em que o jogo de mútuos reflexos põe em xeque não só a noção de homologia como de realidade (PAES, 2004, p.293).

Ainda na mesma página, complementa sua reformulação da imagem do escritor francês, ao afirmar que A rainha dos cárceres da Grécia “[...] instaura um jogo especular de ambiguidades que, ao longo da obra, só fará agravar-se” (PAES, 2004, p.293). Valendo-se da célebre metáfora do espelho, ressalta a ideia de simulacro e o jogo de ambiguidades presentes no livro, que desencadeiam um amplo leque de leituras. As linhas abaixo introduzem um aspecto relevante do ensaio: Aliás, como o romance nunca foi publicado (nem o será), tudo quanto se pode conhecer-se do texto são as breves citações feitas no ensaio. Uma existência vicária, por conseguinte, a apontar para um suposto primado da interpretação sobre a criação. Suposto, sim: na verdade, A rainha dos cárceres da Grécia é, ao fim e ao cabo, uma ilustração e defesa da arte do romance, sem deixar de ser ao mesmo tempo uma sátira a certas pretensões da crítica ou hermenêutica literária. (PAES, 2004, p.294).

Evidencia-se a preocupação de José Carlos Paes em estabelecer uma hierarquia entre a escrita ficcional e a crítica que A rainha dos cárceres da Grécia está longe de sugerir. Como ele busca essa suposta relação de subordinação, interessa-se, por exemplo, em mapear o grau de independência de cada uma e qual tem primazia sobre a outra. A crítica e a criação, ao invés de serem vistas como atividades complementares, são colocadas em competição. Quanto ao final do trecho citado, há de fato, nesse livro de Osman Lins, uma sátira a alguns procedimentos da leitura acadêmica que desconsidera os vínculos do texto literário com seu contexto. Ainda que este debate não seja objeto do presente artigo, convém observar que o narrador volta-se contra certo tipo de crítica, e não contra a crítica em geral, como o ensaísta parece entender. Ele prossegue seu raciocínio:

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Tema geral: Línguas e Literaturas: Diversidade e Adversidades na América Latina Ademais, não deixa de haver algo manhoso e de ambíguo no fato de a linguagem primeira da criação ficcional só aparecer, em A rainha dos cárceres da Grécia, como eco ou reflexo da linguagem segunda da sua exegese crítica. Mais do que representar uma encarecedora equiparação desta àquela, parece antes apontar ironicamente para a mesma superfetação da teoria literária denunciada em Do ideal e da glória como um dos problemas inculturais brasileiros. (PAES, 2004, p. 195)

Mais uma vez, a hierarquia se faz presente, o que transparece, por exemplo, quando fala em linguagem primeira ou segunda. Porém, se na citação anterior o autor se inquietava com a ideia de primado da crítica sobre a criação, vê-se aqui que mesmo uma equiparação entre ambas o incomoda. A menção a Do ideal e da Glória: problemas inculturais brasileiros (LINS, 1977), coletânea de artigos de Osman Lins publicados na imprensa, marca o início da incursão de “Um mundo sem aspas” nos domínios da crítica biográfica. Antes de mostrar como o crítico interpreta A rainha dos cárceres da Grécia a partir da trajetória pessoal do escritor pernambucano, convém frisar que ele também se baseia no texto. Seria descabido negar a presença de certo enfoque textual, ainda que este não prevaleça nesse ponto de sua argumentação. Ao analisar o referido livro, defende que o narrador, o qual não tem pretensão de tornar-se um teórico da Literatura, coloca-se de forma subalterna em relação a Julia Enone. Para José Paulo Paes, o professor de Biologia lança-se à empreitada da escrita para conhecer a autora do livro que analisa e sua postura “[...] diante da obra ficcional é de reverência, não de suficiência” (PAES, 2004, p.296). Apesar de citar um trecho de A rainha dos cárceres da Grécia para embasar seu argumento, que novamente lança mão de elementos ligados a certa hierarquia, apóia-se somente nas primeiras páginas do peculiar diário. Desconsidera que a relação do narrador com a escrita evolui consideravelmente ao longo do livro, a ponto de o professor de Biologia perceber o quanto suas notas de leituras o aproximam da figura do escritor: “Algo novo e grave aconteceu: é um escritor, e com isso assumiu a clausura, o internamento”. (LINS, 2005, 1999). Embora resista a essa ideia logo a seguir, assume que a ficção, “mundo que explora” (LINS, 2005, p.199) é capaz de dominá-lo completamente. Esse tema tem muitos desdobramentos que não cabe aqui explorar, mas sim assinalar o quanto a interpretação de Paes é, de certa forma, simplista. O motivo dessa tendência à simplificação, que não costuma caracterizar o pensamento do autor nem se faz presente em outras passagens de seu ensaio, transparece a seguir: Pois quer se fale de romance-ensaio ou ensaio-romance, a tônica sempre vai recair em “romance”. Essa irônica simbiose de gêneros tem raízes mergulhadas nas peculiaridades de uma circunstância histórica e, mais do que isso, numa peripécia de ordem pessoal. À altura em que escrevia A rainha dos cárceres da Grécia, Osman Lins, desiludido com o ensino universitário, optara por dele se afastar. Demitindo-se do cargo de professor de literatura brasileira numa faculdade do interior de São Paulo, passou a dedicar-se inteiramente ao ofício de escritor [...]. (PAES, 2004, 294).

O gênero literário é o primeiro tópico discutido nesse trecho. Vale, por conseguinte, fazer algumas ponderações sobre seu uso em A rainha dos cárceres da Grécia. Ainda que o narrador chame sua obra de ensaio, questiona sua própria classificação e opta por formalizar suas impressões sobre o romance de Julia em forma de diário. A escolha, extremamente atípica, talvez feita no intuito de equiparar sua experiência de leitura a sua vivência pessoal, é apenas um dos jogos empreendidos com os gêneros textuais. Nesse livro, o personagem narra episódios de sua vida, cita notícias de jornais e escreve crítica literária. Um instigante desafio às classificações habituais de gênero perpassa a obra de Osman Lins. Graciela Cariello, refletindo sobre essa tendência, ressalta que “[...] a separação entre ficção e ensaio é quase impossível, premeditadamente, em Osman Lins” (CARIELLO, 2004, p.358). De fato, o escritor pernambucano cria um enredo e insere os recursos gráficos utilizados em Nove, novena em seu livro de ensaios Uma guerra sem testemunhas (1974). O livro Marinheiro de primeira viagem, por sua vez, também não é um relato de viagem tradicional, pois contempla reflexões sobre movimentos literários e a função da literatura (LINS, 1980, p. 108-110). Diante de esse quadro, nota-se que a “simbiose de gêneros” tem um alcance muito maior do que o apontado por José Carlos Paes. A continuidade de seu raciocínio revela um procedimento ainda mais

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problemático, pois o que chama de “peripécia de ordem pessoal” de Osman Lins (a saber, sua crise com o ensino universitário e seu respectivo desligamento) passa a ocupar um papel central na interpretação de A rainha dos cárceres da Grécia. O ensaísta, ao defender que não há nivelamento entre a escrita ficcional e a crítica no livro em questão, recorre pouco à obra para justificar seu argumento. Ao invés de se basear no texto, põe em lugar de destaque em sua análise os artigos de Osman Lins sobre os problemas dos cursos de Letras e, em seguida, a demissão do escritor da universidade na qual lecionava. Parece traçar um raciocínio desta ordem: não há equiparação entre crítica e criação no livro estudado, pois seu autor estava saturado do meio acadêmico e não aprovava as abordagens estruturalistas. Em sua escrita, portanto, não poderia haver nenhuma valorização da leitura crítica, independentemente da forma que essa última assumisse. Paes desmerece, pois, a complexidade da obra, ressaltada por ele mesmo na reformulação da metáfora do espelho que abre seu estudo. Há, todavia, uma interessante reviravolta no andamento de “Um mundo sem aspas”. No final da análise, relativiza sua tese - até então afirmada de forma muito enfática -, transformando-a em uma hipótese. Tenta ainda defendê-la, mas dá espaço a uma outra vertente interpretativa. Ao frisar como o efeito de simulacro no diário do professor de Biologia “[...] instala, soberanamente, o seu reino de ambiguidades e duplicidades (PAES, 2004, p.299), afirma: A todo momento somos convidados a fazer duplas leituras. O fato de a linguagem da crítica ter sido posta aqui a serviço da linguagem da ficção pode ser visto tanto como um rebaixamento de sua autonomia quanto sua promoção ao mesmo estatuto criativo daquela. (PAES, 2004, p.299).

Apesar de o trecho ainda apresentar elementos questionáveis, como o pressuposto de que a crítica é autônoma em relação à ficção, o ensaísta amplia as opções de leitura. Começa a considerar, sem entretanto se desfazer da noção hierárquica, a possibilidade de a crítica ter sido “promovida”, de modo a ocupar o mesmo patamar que a escrita ficcional em A rainha dos cárceres da Grécia. Mais adiante, defende que, no final do livro estudado, as “duplicidades paradoxais” (PAES, 2004, p.299) entre crítica e ficção desaparecem: “Já não vige mais tampouco a diferença entre a escrita analítica do ensaio e a escrita figurativa do romance: esta invade aquela”. (PAES, 2004, p.299). A constatação de que os dois tipos de escrita se fundem ao longo da obra abala a ideia de hierarquia que percorre sua análise: se ambas vão se justapor, o que ocorre com a suposta autonomia e supremacia de uma diante da outra? Ademais, ao assumir que a equiparação com a qual tanto relutou pode ser verdadeira, evidencia a vulnerabilidade de sua argumentação. Diante do exposto, torna-se mais pertinente defender que o narrador pode voltar-se, em suas notas de leitura, contra certas vertentes da crítica, mas não desmerece essa atividade em si, como supunha Paes, pautando-se da trajetória pessoal de Osman Lins. Há um evidente aumento de qualidade em “Um mundo sem aspas” quando o crítico destitui o biografismo de um lugar central em sua leitura. Á guisa de conclusão, retoma-se aqui, mais uma vez, a bela imagem do espelho que abre seu estudo: com a visada biográfica, A rainha dos cárceres da Grécia, ao invés de provocar um fecundo jogo de reflexos, fornecia uma imagem da vida do escritor pernambucano, condenada a desbotar com o passar do tempo. Felizmente, o enfoque foi relativizado, de modo a trazer à tona a pluralidade de leituras sugeridas pela obra. Ronda a tentação de explicar o apego inicial de José Carlos Paes a esse tipo de abordagem, que se traduzia na dificuldade em reconhecer a proximidade entre crítica e criação, lembrando que ele é, antes de mais nada, um poeta e, portanto, criador. Mas aprofundar uma hipótese de tal ordem seria também incorrer em explicações biográficas, embora de outra ordem. É mais pertinente reforçar o quanto o livro de Osman Lins é uma fonte de significações, como destaca uma de suas passagens sobre o processo de atribuição de sentido às obras de arte: Não há, nesse caso, respostas absolutas, e sim respostas possíveis. Nem mesmo o autor é testemunha incontestável: ele não domina integralmente a sua criação, na qual subsistem componentes obscuros. Isto não nos impede de arriscarmos hipóteses de impossível confirmação. O importante é que elas sejam apreciadas como um testemunho da atuação da obra no espírito do observador, e não como decifração que a reduza a uma mensagem cifrada – limitada, portanto -, contrariando a natureza do objeto artístico, que nunca é detentor de significação, e sim deflagrador de significações. (LINS, 2005, p. 186).

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BLOG: INSTRUMENTO DE APRENDIZAGEM INTERATIVA DE FORMADORES DE ALFABETIZADORES Cilene Maria Valente da SILVA Lorena Bischoff TRESCASTRO (Secretaria Municipal de Educação de Belém)

RESUMO: Este artigo apresenta o blog como instrumento de aprendizagem interativa que favorece a formação de formadores de alfabetizadores. O estudo é decorrente da análise do curso Formação do Formador, destinado aos formadores do ECOAR, que iniciou em 02 de fevereiro de 2009, na perspectiva de dialogar, estudar, refletir e elaborar conjuntamente sobre a problemática da alfabetização nas escolas municipais de Belém - SEMEC, utilizando novas mídias de comunicação. PALAVRAS-CHAVE: blog; interatividade; formação de formadores; alfabetização.

ABSTRACT: The current work presents the blog as an instrument for interactive learning that helps the formation of the professors who work with literacy classes. This study is originated from the analysis of the professor’s improvement course, which was initiated on February, 2nd 2009 and designated to the ECOAR professors with the intention of together discuss, study, consider and develop about the problems of literacy on the municipal schools in Belém – SEMEC, by using new communication medias. KEY WORDS: blog, literacy, interactivity, professor’s improvement


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1. Introdução O presente estudo é decorrente das reflexões do uso do blog, como instrumento de aprendizagem interativa, na formação de formadores de professores alfabetizadores, do Programa ECOAR – Elaborando conhecimento para aprender a reconstruí-lo, da Secretaria Municipal de Educação, em Belém-PA. Optou-se pelo uso desta mídia de comunicação para favorecer o diálogo, o estudo, a reflexão e a elaboração conjunta sobre a problemática da alfabetização nas escolas públicas municipais de Belém. Já que os participantes do blog atuam como formadores de professores alfabetizadores, estes têm nesse ambiente material disponível, postado semanalmente pelas mediadoras, para estudar e dialogar de maneira sistemática e contínua, registrando suas reflexões, dúvidas, experiências e aprendizagens, estabelecendo relações entre a prática vivida como formadores e a teoria sobre formação de professores, disponível no blog, podendo inclusive recorrer aos conteúdos e registros feitos sempre que tiverem necessidade de melhor entender e atuar no Programa ECOAR. Sabe-se que blog é um mecanismo criado no contexto da Internet que vem sendo utilizado para estabelecer relacionamento. O termo blog origina-se da palavra de origem inglesa weblog, que é composta pelas palavras web, que significa página na Internet, e log, que significa diário de bordo. As páginas do blog oferecem modelos autoexplicativos, para o usuário criar seu próprio blog, definindo sua estrutura e estética, conforme as opções oferecidas no site. O uso do blog permite o diálogo em um fórum público envolvendo pessoas reais. As páginas do blog vêm com espaços para que os usuários enviem seus comentários, chamados posts. Os comentários postados ficam registrados, cronologicamente, nas páginas do blog. Os blogs funcionam como ferramentas de comunicação, dando suporte à interação entre as pessoas por meio de um sistema de postagem de materiais e troca de mensagens. Assim, eles favorecem a interatividade e a colaboração entre os usuários. Um blog pode ser utilizado para várias finalidades: entretenimento, profissional, acadêmico ou outros (TERRA, 2008). Para Pérez-Montoro (2006), o blog é um gênero literário que se constitui em um espaço pessoal e interpessoal, criado no ambiente da Internet, onde se pode ir colocando diferentes tipos de informações, tais como: reflexões cotidianas, links que dão acesso a outras páginas, artigos periódicos, fotografias. O blog permite uma espécie de registro público de conteúdos privados, escritos como se fosse um diário, tornando conteúdos individuais de conhecimento coletivo. Na medida em que permite o envio de comentários, o blog possibilita a comunicação entre autor e leitor, criando um espaço intrapessoal. A multiplicação de blogs na Internet e sua potencialidade comunicacional tornam o blog uma ferramenta que supera sua origem de mero registro de acontecimentos pessoais. A prática de blog serve para fins literários, fotográficos, políticos, desportivos e televisivos. No caso, deste estudo, o blog foi utilizado com finalidades educacionais e profissionais, em virtude de ter sido o mecanismo escolhido, pela coordenação do Programa ECOAR, que o criou e atua na sua mediação, para proporcionar um curso de formação continuada a vinte formadores. O curso: Formação do formador, com duração prevista para seis meses, tem por finalidade aprofundar conhecimentos necessários para o exercício profissional como formadores de professores alfabetizadores. Os participantes do blog atuam no contexto de um mesmo Programa, portanto se conhecem, se encontram, realizam atividades presenciais, atuam coletivamente, vivenciam problemas comuns e seguem as mesmas diretrizes de ação. Desse modo, além do estudo individual, o diálogo, estabelecido no blog com os outros, favorece a troca de conteúdos que contribuem na compreensão dos problemas enfrentados, fortalecendo a atuação na formação de professores no âmbito das escolas. O acesso ao conteúdo do blog se dá pela atividade de leitura. O ato de ler na Internet se baseia na interação do usuário que navega em um sistema de hipertexto através de hiperlinks que o conduzem de uma página a outra. O texto do blog não é sempre o mesmo porque é alterado por atualizações constantes, ele chega ao leitor aos poucos, por partes, em capítulos ou partes destes. Nele, há uma troca de papéis: o participante ora atua como leitor, ao ter acesso ao conteúdo, ora como escritor, quando posta comentários próprios. A aprendizagem interativa no blog ocorre pelas

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atividades de leitura e escrita. A experiência, como mediadoras do blog, proporcionou reflexões sobre as diferentes formas de interação ocorridas no curso. Neste sentido, este artigo tem por finalidade analisar as potencialidades do blog como instrumento de aprendizagem interativa que favorece a formação de formadores de professores alfabetizadores. 2. Blog como instrumento de aprendizagem interativa Entende-se que o blog, por ser um instrumento comunicacional de relacionamento interpessoal, favorece a aprendizagem interativa. Por aprendizagem interativa, entende-se a possibilidade de intercambiar saberes e conhecimentos, rompendo com a relação unilateral dos processos comunicacionais, normalmente, estabelecidos em ambiente escolar, na qual cabe ao professor transmitir conhecimento aos estudantes, promovendo um espaço de interação simultânea que amplia o número de participantes e as trocas sociais que favorecem o processo de ensino-aprendizagem. Neste caso, a situação de interatividade permite ao usuário participar ativamente, interferindo no processo comunicacional, tornando-se não apenas receptor, mas também emissor de mensagens. A formação de formadores, mediada pelo blog, é favorecida pela: leitura, reflexão e registro escrito. Atividades de leitura são feitas com os textos e comentários que foram postados. Atividades de reflexão são decorrentes do acréscimo de conteúdos que extrapolam o que foi lido. Registros escritos são os comentários postados. Estas atividades não se dão de maneira isolada, mas estão imbricadas, por exemplo: o conteúdo lido e as reflexões decorrentes do estudo em dialogia com conhecimentos prévios, estudos realizados e práticas vividas, tornando-se visíveis quando os participantes postam seus comentários. Este tipo de curso requer a participação ativa, envolvimento com o tema/grupo e comprometimento com o momento de estudo. Estas atividades são fundamentais na formação por que: “as atividades de leitura e escrita na internet são tentativas de nos reconstituirmos como sujeitos históricos, sociais, ativos, dialógicos, provisórios, numa relação temporal qualitativamente diferente, de mais esperança e memórias de futuros compartilhadas” (SILVESTRI e COVRE, 2008, p. 183).

Postar comentários no blog possibilita a criação de um espaço para que a reflexão sobre a prática ultrapasse a simples constatação. Escrever sobre o tema proposto, em diálogo com outros sujeitos, também aprendentes, faz com que se construa uma experiência de reflexão coletiva, organizada e interativa, proporcionando um conhecimento mais aprofundado sobre a prática da formação de professores, sobre o que escrevemos, o que os outros escreveram e o que nos falta escrever/aprender. Ter que escrever um comentário se constitui em prática formativa, porque exige tempo de estudo, dedicação, interação, organização e reflexão sobre o tema. 3. Caracterização do blog O Blog surgiu da necessidade de se formar formadores no contexto do Programa de Formação Continuada de Professores ECOAR – Elaborando Conhecimento para Aprender a Reconstruí-lo, que vem sendo desenvolvido na Secretaria Municipal de Educação – SEMEC, em Belém, desde 2005. O tema central do curso, mediado pelo blog, é conteúdo da formação de professores alfabetizadores. O estudo proposto é decorrente da diretriz do Programa: pesquisa sobre a prática. Neste, sentido o blog destina-se ao estudo, problematização e elaboração dos Formadores do Programa ECOAR (Elaborando Conhecimento para Aprender a Reconstruí-lo), com vistas a levá-los a ampliar seus conhecimentos sobre a problemática da alfabetização, as competências do formador e as estratégias de formação de professores. O estudo no blog envolve textos teóricos sobre as temáticas estudadas e textos literários para ampliar a discussão focalizada a cada semana. O curso, mediado pelo blog, tem por objetivo estudar sobre a formação de professores alfabetizadores, articulando os conteúdos estudados com a prática de formador. A formação fundamenta-se no estudo, elaboração, vivência, reflexão e pesquisa com a finalidade de refletir sobre

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a prática profissional e o conhecimento dos formadores de professores alfabetizadores. O tempo previsto para a formação foi um semestre letivo, no período de 02 de fevereiro a 26 junho de 2009. Os procedimentos metodológicos utilizados são: interação virtual assíncrona e individual; interação presencial e coletiva; retorno reflexivo sobre as postagens; mediatização e socialização da reflexão; entrecruzamento de resultados. No curso são propostas atividades semanais, mensais e espontâneas. As atividades postadas semanalmente são: texto de estudo, texto literário, postagem de questões, devolutiva dos mediadores. As atividades postadas mensalmente são: atividade interativa presencial, slides de reflexão. As atividades espontâneas e permanentes são: refletir (mensagem curta sobre educação e aprendizagem), o que você está lendo? (espaço para que os participantes divulguem um livro lido). A interface do blog é de fácil compreensão, porque contém conteúdo autoexplicativo. De de maneira intuitiva, usuários da Internet conseguem acessar o material e interagir, por escrito, com os participantes, como se vê na tela de acesso ao blog (Figura 1). Figura 1 – Tela de apresentação do Blog

4. Análise das postagens no blog A realização de um curso, cujos estudos foram mediados pelo blog, favoreceu a interação entre os participantes, destes com o material postado e com as mediadoras. Por entender que a interação favorece a aprendizagem, optou-se por analisar as interações ocorridas no decorrer do curso. A fim de evidenciar a interatividade criada no contexto do blog, no estudo, dentre 8 questões, foram feitas análises quantitativa e qualitativa dos comentários dos participantes do Blog em duas questões. Na questão 1, houve 19 postagens, ocorridas de 5 a 18 fevereiro. Já a questão 5 contou com 14 postagens, registradas de 9 a 30 março.

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Na análise, constataram-se diferentes tipos de interação: com o texto, com o formador, com o colega, com outro texto conhecido, com a questão, com a sua própria prática. Estes diferentes tipos serão usados para analisar a interatividade favorecida no blog, observando-se a predominância de alguns tipos em relação a outros, conforme se vê na tabela 1. Questão 1 – A problemática da formação dos professores alfabetizadores nas escolas municipais de Belém

Questão 2 – Correspondência escrita, por carta ou E-mail, registros e relatórios de estudo são boas estratégias para levar o professor a refletir sobre sua prática, porque com a comunicação as práticas se tornam visíveis. Comente sobre as estratégias, que incluem reflexão por escrito, utilizadas por você na formação dos professores alfabetizadores.

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As 10 respostas da Q 5 indicaram interação com o texto e a prática: O texto lido ressalta a importância do planejamento frente às situações de aprendizagem. Uma dinâmica de trabalho que já utilizo através do projeto “Expertise em alfabetização”, pois as metas traçadas para os encontros mensais e os assessoramentos às escolas estão baseadas nos resultados das avaliações realizadas com os alunos. (I) Observou-se predominância das interações com o texto de estudo e com a própria prática de formador, evidenciando a alcance do objetivo do blog que é “estudar sobre a formação de professores alfabetizadores, articulando os conteúdos estudados com a prática de formador”. No entanto, sabendo-se que as interações favorecem a aprendizagem, estas devem ser ampliadas e diversificadas. O mediador pode provocar isso. Isso porque verificar as interações predominantes permite contatar o tipo de interação ocorrida, para que as interações de menor ocorrência possam ser estimuladas pelo mediador a fim de que sejam criados/intensificados outro(s) tipo(s) de interação, o que proporcionaria uma ampliação nas possibilidades de aprendizagem. Além dos tipos de interação analisadas, embora não predominante nos comentários postados, destacou-se uma ocorrência de:

A reflexão sobre o sentido do alvo, slide do arqueiro, teve o maior número de postagens 23 comentários, de 3 a 26 de fevereiro. O fato do texto, acessado por meio de slides, incluir texto escrito e imagem. Destaca-se a valorização do texto imagético no blog, assim como no contexto da Internet, como um todo. 5. Considerações finais Por favorecer a interatividade entre os participantes, o blog possibilita o intercâmbio de saberes e conhecimentos, promovendo um espaço de interação simultânea e trocas sociais que favorecem o processo de ensino-aprendizagem. Neste caso, a situação de interatividade permite aos participantes dialogar e intervir no processo comunicacional com ações, reações, provocações, intervenções, necessárias à construção de conhecimentos. Além disso, a interatividade ocorrida nos processos de leitura e escrita de comentários, em interlocução com os textos postados favoreceu o estudo e a pesquisa pelos participantes, já que para postar sua mensagem recorriam a uma diversidade textual: teórico, literário, imagético, questão, comentário do colega e outros textos já lidos, bem como revisar anotações feitas no papel, recorrer a sua memória para lembrar o que tinha ocorrido na prática de formação na escola e/ou consultar outros autores para continuar a elaboração textual. Como se vê, o blog facilita, pela pesquisa e a publicação de comentários próprios sobre o tema, aprendizagem interativa.

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Referências DEMO, Pedro. Complexidade e aprendizagem: a dinâmica não linear do conhecimento. São Paulo: Atlas, 2002. PÉREZ-MONTORO, José Antonio. Blog como herramienta para enseñanza y aprendizaje de E/LE. In: FARES, Josebel Akel (org.). Diversidade cultural: temas e enfoques. Belém: UNAMA, 2006. v. 2, p. 293-324. (Linguagens: estudos interdisciplinares e multiculturais) SILVESTRI, Kátia Vanessa Tarantini; COVRE, André Luiz. Diálogo com as 6 teses presentes no capítulo 7 “o computador e o desenvolvimento de novas atividades: uma perspectiva epistemológica” do livro Transgressões convergentes: Vigotsky-Bakhtin-Bateson, de João Wanderley Geraldi, Maria Benites e Bernd Fichtner. In: Arenas de Bakhtin: linguagem e vida. São Carlos: Pedro & João Editores, 2008. p. 173-184. TERRA, Carolina Frazon. Blogs corporativos: modismos ou tendências? São Caetano do Sul, SP: Difusão Editora, 2008.

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PRÁTICAS DE PRODUÇÃO ESCRITA NA ESCOLA: UMA EXPERIÊNCIA DE TRABALHO COM PROFESSORES ALFABETIZADORES NA ILHA DE MOSQUEIRO, BELÉM/PA Cilene Valente da SILVA Vânia Maria Batista FERREIRA (Secretaria Municipal de Educação – Belém)

RESUMO: O artigo trata da problemática da prática da produção escrita na escola. Este é resultado da experiência de formação desenvolvida com professores alfabetizadores. Destaca questões do processo de ensino e aprendizagem da escrita de crianças de 6 anos, na perspectiva da concepção de aprendizagem e estratégias da formação de professores. PALAVRA-CHAVE: alfabetização, formação, produção escrita, prática docente.

ABSTRACT: This work presents a study about the rough spot of written production practices in the school. It is the outcome of the training experience developed with literacy professors. It emphasizes issues on learning and teaching written process of six-year-old children bringing up the teaching and learning on written production, professors’ continuing education programs strategies that intend to qualify children’s learning. KEY WORDS: literacy, written production, teacher-training, teachers, practices


1. Introdução O presente trabalho analisa o processo de ensino e da aprendizagem da escrita das crianças nas classes de alfabetização através da formação de professores desenvolvida a partir da experiência de formação com professores do Ciclo I - 1º ano de sete (7) escolas do município de Belém, mais precisamente na ilha de Mosqueiro/PA a partir de 2007. A experiência proposta de formação se desenvolveu na perspectiva de orientar a prática pedagógica dos professores como forma de garantir alfabetização das crianças ao final do ano letivo. O trabalho teve como público alvo, a saber:

A estratégica metodológica da formação pautou-se em encontros mensais de formação, avaliação e sistematização mensal da aprendizagem dos alunos. Deste modo, busca-se neste artigo explicitar a prática de formação de professores alfabetizadores no sentido de revelar o percurso formador e refletir através do estudo dos conteúdos da alfabetização, análise das condições didáticas de alfabetização e análise coletiva do planejamento docente a prática do professor por meio da produção escrita das crianças e o trabalho com diversos gêneros textuais. Considera-se relevante o artigo, por deslumbrar a prática do professor alfabetizador e a formação em serviço, de modo a favorecer prática que se volte para as necessidades de aprendizagem da criança no processo de alfabetização, a fim de alcançar a compreensão e o funcionamento da língua escrita que a criança possui. 2. Prática do professor e aprendizagem da escrita da criança “Não se desanimar- é o conselho do poeta -, persistir na tentativa, renovar os esforços mais uma vez... Apelas para todas as ferramentas necessárias para tornar realidade um propósito que é difícil alcançar, mas para o qual é imprescindível se encaminhar.” (LERNER, 2005)

A trajetória de formação nos revelou e nos fez pensar sobre como os professores compreendem o processo de aprendizagem da escrita e como se constitui na prática dizer se uma criança está ou não alfabetizada. A prática de formação demonstrou que há um entendimento de que a criança é alfabetizada quando cópia do quadro e tem letra bonita, fato extraído da analise da semana de aula e do relato das condições didáticas propostas na sala de aula. Podemos observar que de 20 professores que participavam do encontro mensal de formação 12 apontaram a cópia como condição didática mais freqüente na sala de aula. Tabela- Análise da semana de aula e o relato das condições didáticas utilizadas pelos professores


Isto nos faz refletir que no entendimento do professor se o aluno copia tem perspectivas de se tornar alfabetizado. Está associação para aprendizagem do ensino da língua pressupõem uma concepção que o que esta em jogo é a capacidade do aluno de reproduzir o que está escrito, valorizando o desenvolvimento motor da criança. Considerando que a criança possui hipóteses de escrita fundamentada pela perspectiva dos estudos de Emília Ferrero & Teberosky,1985, a concepção apresentada anteriormente caminha no sentido contrário à medida que reduz a aprendizagem da língua escrita a atividade mecânica. O estudo da psicogênese certamente deve ser utilizado como instrumento de analise da evolução da escrita da criança ao considerar que a cada nível alcançado existe um conhecimento novo de concepções dos sujeitos que aprendem. Neste sentido, o conteúdo da formação que elegemos como prioridade para o grupo de professores partícipe dessa experiência tem suporte na teoria da psicogênese da escrita quando sinaliza que a didática e as proposta de atividades devem necessariamente acolher a hipótese da criança ora provocar a ruptura. Porém, a ruptura não acontece espontaneamente tem que ser problematizada com condições didáticas para além da mera cópia. Não se trata de desqualificar a cópia como uma atividade de sala de aula, ela é apenas um subproduto da aprendizagem e não deve ser a principal condição didática oferecida as crianças. 3. Tratamento do conteúdo da alfabetização na formação de professor Como orientar as práticas efetivas de ensino-aprendizagem que proporcionem ao professor condições de perceber como as crianças lidam com o sistema da escrita. E bem o diz Perrenoud (1999): “competência em educação é mobilizar um conjunto de saberes para solucionar com eficácia uma série de situações”. Sendo assim, o percurso metodológico adotado na formação diante das questões levantadas foi à avaliação mensal da aprendizagem das crianças e análise do planejamento didático. Avaliação mensal foi o recurso metodológico adotado para orientar a proposta didática do professor. Parece óbvio que é preciso avaliar o desempenho das crianças, mas essa prática não era realizada por muitos professores alfabetizadores. Logo, acompanhar a evolução da escrita da criança no processo inicial de alfabetização por meio de um instrumento que identifique a hipótese de escrita segundo estudo de Emília Ferrero e Ana Teberosky é fundamental e inquestionável, pois demonstra o que a criança sabe sobre o sistema da escrita e o que ainda precisa aprender. Neste percurso nos defrontamos com planejamentos de professores onde as atividades proposta não permitam que os alunos pensassem e elaborassem a partir de suas hipóteses de evolução da escrita. Assim como, verificamos que os instrumentos de avaliação do professor não permitiam que as crianças expressassem seus níveis de hipótese da escrita. Para confrontar o problema e colocá-lo como objeto de analise para o professor propusemos no encontro mensal de formação o estudo dos instrumentos (planejamento e avaliação) entregues mensalmente pelos professores. A atividade foi organizada nas seguintes etapas: 1ª etapa: Os professores em grupos deveriam discutir e registrar suas análises. Eles foram subdivididos em seis grupos: três grupos ficaram com a tarefa de analisar os instrumentos de avaliação e os outros ficaram com a análise do planejamento, sendo que a título de promover o debate e organizar uma seqüência de apresentação foi entregue aos 03 grupos de planejamento e de avaliação, os números de (01 a 03), representando a ordem de apresentação/questionamento.. Quando um grupo se apresentava o outro do tema oposto que possuía o mesmo número fazia o seu questionamento. Grupo 01 Planejamento [a] “Concordo com as atividades são viáveis para o processo de alfabetização.”; “As atividades estão boas para a turma, mas tem muitas atividades, muitas informações é preciso destacar uma e concentrar. Como será feita a leitura pelo professor ou pelo aluno? É preciso especificar no planejamento e adequar com o que a criança consegue fazer no início”.


Grupo questionador 01: [b] “É preciso trabalho com texto, não adianta ser mero copiador”. Grupo 02 Planejamento [c] “O planejamento está sem direcionamento.”; “Planejamento é o conteúdo sem contexto. Está muito fragmentado”. ; “Como sugestão pode se usar o mesmo planejamento, desde que aponte para um contexto”. Grupo questionador 02 [d] “Deve escolher uma história um contexto para trabalhar”. ; “A gente se pega fazendo isso, não consigo trabalhar um texto e tirar os fonemas do texto, de repente deixo o texto de lado”. Grupo 03 Planejamento [e] “A proposta está muito boa, tem um tema, uma seqüência de atividades, leva em consideração as áreas do conhecimento, mas houve um corte na avaliação, não considerou as atividades propostas.”; “O que o professor conseguiu perceber é preciso está retomando as dificuldades mediante aos resultados obtidos”. Grupo 03 questionador [f] “Concorda com as análises, avaliação deve ser feita com a mesma temática, deve decorrer no processo.”; “O que se vai avaliar deve estar de acordo com o planejamento.”; “Definir critérios, avaliação ficou muito vaga”. Análise A atividade proposta foi muita rica, visto que se tratar de uma reflexão sobre a ação no que pese os avanços, as contradições apresentadas e as dificuldades pontuadas. Nesta primeira etapa de apresentação muitos pontos são importantes para nossa reflexão, tais como: planejamento fragmentado dando ênfase no conteúdo, falas [b], [c]; alfabetizar a partir de texto, porém por questões de dificuldades e dúvidas deixa o texto de lado volta a trabalhar com palavras isoladas [d]; conteúdo da avaliação desarticulada do planejamento [e] e [f]. O que se observa ainda são práticas muito pontuais e atividades soltas que dura apenas o tempo de aula [c]. “Nestas condições, é difícil para os alunos estabelecerem relações entre diferentes saberes e reconstruir o sentido que estes conhecimentos têm fora da escola - saber científico a partir do qual se constrói o conteúdo escolar ou na prática social que se toma como referência” (LERNER, 2004). Assim, compreendemos que alfabetizar a partir de texto ganha sentido [b]. Texto entendido como toda unidade comunicativa da linguagem dotada de sentido cujo significado seja compreensível aos outros, cujos elementos essenciais são - alguém que produz o texto - o escritor; a materialidade do texto dotado de sentido; alguém que atribui significado ao texto lido - o leitor. Nesse caso, se o professor deseja que o aluno saiba produzir um texto[d] deve antes definir que tipo de gênero será proposto. Por exemplo, se o professor quer que seu aluno seja capaz de escrever uma carta antes de propor a escrita deve muní-los de um repertório formativo, através de leitura de diversas cartas na tentativa de aproximá-los da linguagem específica, de maneira que adquiram familiaridade com o tipo de texto em questão e suas peculiaridades. Ou seja, saber o que (gênero), para que (finalidade) e para quem (função comunicativa) são condições determinantes para a produção de textos e nem sempre são oferecidas aos alunos, e às vezes nem o professor domina. Daí, a dificuldade de elaborar um texto, pois se as condições não são apresentadas aos alunos à tendência é que saiam de má qualidade, fragmentados e com poucos recursos lingüísticos. Analisando a avaliação Grupo 01 avaliação


[g] “As questões do teste envolvem o nome da criança, a primeira parte é boa, mas a 2ª parte é só mecânica.”; “O instrumento não permite avaliar o desenvolvimento do aluno”. Grupo 01 questionador [h] “Concordou com as análises”. Grupo 02 avaliação [i] “No texto foi pedido para escrever o nome dos desenhos.”; “As questões surgiram de uma história? Pedir também para fazer a reescrita da história”. Grupo 02 questionador [j] “Concordou com as observações.”; Grupo 03 avaliação [k] “A avaliação pedia para escrever as vogais, encontros vocálicos”. ; “Não houve contextualização, o que não possibilitou a construção de hipótese, trabalhou o conteúdo pelo conteúdo, foi um dado aleatório.”; “nós não temos que colocar uma atividade só por colocar.”; “Será que a professora trabalhou com um texto?”. Grupo 03 questionador [l] “Faltou contextualização, o teste tem questões mecânicas, não tem seqüência lógica.”; “É importante trabalhar com o texto é a partir de que a criança compreende a técnica da escrita, desenvolve a oralidade e mostra a seqüência de idéias”; “O aluno precisa entender o que ele vai fazer.”; “Não colocar uma atividade por colocar”. Análise Quanto à análise das falas apresentadas veio à tona a nossa preocupação de que as atividades propostas para o ciclo bem pouco contribuem para que o aluno confronte o que sabe sobre o sistema da escrita e a sua forma de representação. O que é percebido nas falas [g], [h], [k] e [l]. A nossa expectativa é que avancem progressivamente até chegar a compreender o sistema convencional da escrita em situação de comunicação. Fala [i] e [j] traz elementos importantes para a nossa reflexão por apontar a necessidade do aluno escrever todos os dias. Sabemos que uma criança pode construir muitos conhecimentos sobre sua própria língua mesmo antes de saber ler e escrever convencionalmente. Por esse motivo, a leitura diária feita pelo professor é uma das mais importantes situações que sustentam o processo de alfabetização: ela assegura ao aluno que ainda não aprendeu a ler sozinho, o acesso à diversidade de textos. Deste modo, é necessário que o professor tenha clareza da função da avaliação que é cuidar para que o aluno aprenda em que pese o direito do aluno de saber ler e escrever. 4. Aprendizagem no meio do caminho Aprender a lidar na formação com a concepção de alfabetização do professor e confrontar os seus saberes de modo a deslumbrar melhores resultados na aprendizagem das crianças não é tarefa fácil, necessita móvel dois conhecimentos (o conteúdo da formação e o conteúdo da alfabetização) que precisa ser posto em evidência de modo concomitante. Nesse caso, nosso ponto forte foi investir em aspectos que estavam fragilizados e desde assumir uma postura de parceira, colaboração, cooperação, respeito, tolerância, rigor perante o grupo de professores. Além disso, a cada encontro refletir sobre como a criança aprende a ler e escrever, que atividade ajuda avançar de um nível a outro e de que forma o professor deve tratar esse conteúdo na sala de aula. Estamos propondo uma formação que capacite o professor dando-lhe condições para que ao olhar sobre sua prática a luz de um referencial teórico consiga perceber onde estar o problema


da não aprendizagem da criança. Temos, na verdade a perspectiva é que sejam pessoas que saibam comunicar-se por escrito com os demais e com elas mesmas, sejam produtores de língua escrita, conscientes da pertinência e da importância de emitir certo tipo de mensagem em determinado tipo de situação social, em vez de se treinar como “copistas” que reproduzem – sem um objetivo próprio, clara, de quem escreve para se comunicar a alguém. Segundo Lerner (2002, p. 107) o professor pode guiar as práticas de produção escrita da criança quando enfatiza que: “a escrita envolve processos de planejamento, textualização e revisão, de que esses processos são recursivos, de que, ao escrever, é necessário enfrentar e resolver múltiplos problemas: como expressar o que queremos dizer, comunicar de tal modo que consigamos ser entendidos? Como dizê-lo para produzir no interlocutor os efeitos que desejamos e não outros? Como convencê-lo de que temos razão?”

Para que os alunos aprendam a escrever bons textos é necessário um trabalho planejado que deve ser apoiado em determinadas referências: a leitura de textos feita pelo professor mais a leitura feita com fluência natural, sem decifrar o código escrito, sem tropeçar em letras, silabas e palavras, sem “gaguejar” nas frases -, a ler “como quem respira”, segundo Ziraldo; o repertório dos textos precisa ser amplo e diversificado para que os alunos aprendam a produzir diferentes gêneros; as propostas de produção escrita devem ser contextualizadas, funcionais e significativas. Assim, as situações de aprendizagem propostas às crianças na alfabetização devem integrar atividades de leitura e produção de texto. Entende-se que para aprender a ler e a escrever é preciso que o aluno se envolva com uma atividade de textos escritos, seja testemunha dos usos sociais dos diferentes textos e, também, seja capaz de utilizá-los em um espaço de interação, em que as razões para se ler e escrever são realmente vividas através de atos significativos de escrita. Concebe-se com base em estudos feitos, que o papel do professor é de desencadeador do processo, enquanto elemento partícipe das relações estabelecidas em sala de aula. É alguém que ensina, mas também que aprende com seus alunos: re-significa seus saberes, o dizer de sua cultura, sua concepção de mundo, seu processo de aprender, suas formas de pensar e compreender a realidade. Assim, ele apreende aquilo que lhe falta, e, criativamente será capaz de elaborar intervenções que fomentem as aprendizagens das crianças. Deste modo, devemos adotar atitudes formativas priorizando os itens, a saber: Planejar as condições didáticas favoráveis a aprendizagem da escrita; Compartilhar os resultados do planejamento a partir de um gênero; Avaliar o nível de conceitualização da escrita (psicogênese), mensalmente, analisando e comparando resultados, bem como, visualizando que hipótese de escrita da criança reflete a maneira como o professor ensina; Estudar fundamentos teóricos da psicogênese da escrita; Acreditar na capacidade do aluno de aprender ler e escrever; Incentivar a leitura de livros infantis propondo na pauta dos encontros atividades de interação com esses livros; Qualificar o tempo de aula com atividade que desafie a criança a pensar sobre a escrita e não apenas a copiar; Entrada do formador na sala de aula para mostrar que podemos ensinar a leitura e escrita à criança de forma a se tornar autor. 5. Considerações Finais A formação em serviço possibilita refletir a prática do professor a luz de um referencial teórico problematizando a prática do educador na perspectiva de olhar para as dificuldades, socializar as práticas bem sucedidas, refletir sobre a rotina de sala de aula, o planejamento elaborado e o


resultado da avaliação como elementos relevantes para intervenção didática do professor alfabetizador. Percebemos que não basta reconhecer as dificuldades desse processo é necessário confrontar os professores com essas dificuldades, no sentido que possa primeiro reconhecê-las como práticas a ser redimensionada. Esse processo formativo consolidou a metodologia de trabalho; a avaliação formativa impulsiona a intervenção do formador; resignificar a avaliação no processo educativo; Assim como adotamos os princípios básicos para ação: tolerância (com as limitações dos professores), rigor (metodologia), abertura (autoridade para inovar a partir dos saberes de cada um). Neste sentido, destacamos que a experiência permitiu avançar na proposição de estratégias formativas, bem como assegurar que nossas crianças tenham melhores condições de se apropriar da produção escrita como ferramentas essenciais de progresso cognoscitivo e de crescimento pessoal. Referências BAKHTIN, M. Os gêneros do discurso. In: Estética da criação verbal. São Paulo: Martins Fontes, 1992. FERREIRO, Emília e TEBEROSKY, Ana. Psicogênese da língua escrita. Porto Alegre: Artes Médicas, 1985. KLEIMAN, A. (Org.) Os significados do letramento: uma nova perspectiva sobre a prática social da escrita. Campinas: Mercado das Letras, 1995. KLEIMAN, A. B. O processo de aculturação pela escrita: ensino da forma ou aprendizagem da função? In: KLEIMAN, A. B.; SIGNOTRINI, Inês. (Org.). O Ensino e a formação do professor. Porto Alegre: Artes Médicas, 2000, p. 223-243. LERNER, Delia. Ler e escrever na escola: o real, o possível e o necessário. Porto Alegre: Artmed, 2002. SOARES, Magda Becker. Letrar é mais que alfabetizar. Jornal do Brasil, 26 nov. 2000. VYGOTSKY, Lev S. A formação social da mente. 5. ed. São Paulo: Martins Fontes, 1994.


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TECNOLOGIA DA DOCUMENTAÇÃO: UM SUPORTE PARA A DESCRIÇÃO DA LÍNGUA PARKATÊJÊ Cinthia de Lima NEVES1 (PIBIC/CNPq – Universidade Federal do Pará)

Marília FERREIRA2 (Universidade Federal do Pará)

RESUMO: Este trabalho apresenta em linhas gerais os auspícios da realização de documentação e descrição linguística, concernente à língua parkatêjê, utilizando como estratégia a gravação de dados em materiais audiovisuais, os quais pode oferecer um valioso suporte para o trabalho subsequente de análise linguística. PALAVRAS-CHAVE: parkatêjê; línguas indígenas; descrição; audiovisual; coleta de dados.

ABSTRACT: This paper summarizes the auspices of the execution of language documentation and description, concerning to parkatêjê language, using as tatics the recording of data in audiovisual materials, which can offer a valuable support for the further work of linguistic analysis. KEY WORDS: Parkatêjê; indigenous language; description; audiovisual; collecting data. Graduanda em Licenciatura em Letras. Bolsista vinculada ao referido projeto. Professora da Faculdade de Letras do Instituto de Letras e Comunicação da Universidade Federal do Pará. Coordenadora do Projeto “Keeping the Talking Forests Alive: Documenting the Amazonian Oral Traditions” (em execução na mesma instituição, ao qual agradecemos)

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1. Introdução Este trabalho tem como propósito contribuir para a documentação de línguas e culturas indígenas da Amazônia brasileira, por meio do estabelecimento de uma base de dados que contenha materiais áudio-visuais de textos tematicamente centrados em narrativas, que incluam mitos, relatos autobiográficos e descrições de eventos envolvendo a vida moderna, com especial atenção ao contexto indígena dos parkatêjê. Parkatêjê é uma língua indígena que, quanto à descrição linguística, já tem vários aspectos estudados, os quais têm como base o registro de gravações em áudio de palavras, frases, textos. Sobre a descrição linguística tem-se os materiais de Araújo (1977, 1989) e Ferreira (2003 e 2005) e outros trabalhos. Até o momento não há documentação em áudio e vídeo desse tipo de material, mesmo porque havia certa dificuldade de obter consentimento, por parte da comunidade, para a gravação de dados em mídias de áudio e de áudio-visual. Atualmente essa situação mudou, tendo em vista principalmente a conscientização do povo de que sua língua e cultura estão ameaçadas, conforme hipotetiza Ferreira. 2. Situação Linguística A língua parkatêjê1 é falada atualmente por cerca de quatrocentas pessoas remanescentes de grupos timbira que viveram na região do sudeste do estado do Pará, no município de Bom Jesus do Tocantins, a trinta quilômetros de Marabá, os quais, segundo relato dos próprios índios, “eram todos parentes2”. Alguns deles tinham, de fato, parentesco entre si, visto que houve migração de alguns índios de uma aldeia para outra, via casamento, principalmente. De acordo com Ferreira (2003), a atual situação sociolinguística dos parkatêjê, como não poderia deixar de ser, resulta da história deste povo, sua saga, sua sobrevivência em meio às intempéries da vida na floresta, dentre as quais podemos citar as lutas internas entre eles mesmos e as inúmeras epidemias, que quase os dizimaram completamente. A junção desses grupos em uma só aldeia remonta a essa história comum de disputas internas, mas também a certas diferenças entre esses grupos, motivadas, talvez, pelas circunstâncias em que eles viviam (cf. Ferraz 1993). Um dos principais motivos para tantas desavenças era a posse de seu território tradicional, que sempre foi alvo de disputas entre eles mesmos, bem como entre eles e os não-índios que viviam em seu derredor. De acordo com a antrópologa Iara Ferraz, “a aproximação definitiva em relação aos kupẽ - “os cristãos”; “civilizados” ou simplesmente “outros” – havia sido a única possibilidade de sobrevivência física para os componentes do grupo do Cocal3, localizado, então nas cabeceiras do rio Praia Alta, no município de Itupiranga.” (cf. Ferraz, 1993, p. 22) Desse contato desordenado e brusco, pode-se enumerar muitas consequências, dentre as quais, uma perda gradativa da língua e de aspectos da cultura tradicional, que é oral, passada de geração a geração, por meio da língua. Deste modo, parece óbvio que, ao afetar uma dessas grandezas, afeta-se a outra também. Isto é, se há uma substituição da língua tradicional pela língua portuguesa, como consequência direta há uma ‘parada’ ou uma diminuição na realização de festas tradicionais, na narração de histórias míticas, no uso de cantigas em língua indígena, dentre outros. Assim, a atual situação de risco em que a língua parkatêjê se encontra torna imprescindível a investigação, a documentação e descrição de suas tradições orais. Parte dessa cultura cultivada pela oralidade, as histórias da comunidade parkatêjê, também estão passíveis de desaparecimento, necessitando de documentação urgente.

Estamos considerando o kyjkatêjê como uma variedade da língua parkatêjê. Pudemos perceber que na visão dos Parkatêjê ‘ser índio’ é a única exigência para ser considerado “parente”. Portanto, acreditamos que talvez a afirmação de que eles eram todos ‘parentes’ tenha fundamento nessa consideração. 3 O grupo do Cocal é o grupo Rõhõkatêjê. 1 2

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3. Aspectos da Tecnologia da Documentação De acordo com o professor Albert Mehrabian (1971), da Universidade da Califórnia, há três elementos básicos na comunicação: palavras, tom de voz e linguagem corporal, o que já havia sido observado desde a antiguidade clássica. Segundo o professor, estes três elementos, frequentemente abreviados como os “3 Vs” (Verbal, Vocal e Visual), descrevem de diferentes modos as intenções da pessoa que propõe uma mensagem: as palavras esclarecem 7%; o tom de voz é responsável por 38%; e a linguagem corporal, 55% dos propósitos da mensagem. Deste modo, para uma comunicação eficaz e significativa, estas três partes da mensagem devem ajustar-se umas às outras, ou seja, devem ser congruentes. Os elementos exclusivos da linguagem não-verbal como postura, gestos, expressões faciais, independente da cultura, acontecem; e a capacidade de ouvir e compreender o outro inclui não apenas a fala, uma vez que, no processo de comunicação, a linguagem do corpo assume um papel importante na decodificação das mensagens recebidas nas interações. Portanto, é pertinente ter registrado esses elementos, perdidos na gravação exclusiva da voz, por meio do registro em áudio e vídeo das narrativas orais desse povo. Além disso, é necessário, por exemplo, estar convicto da localização de determinadas articulações fonéticas, o que pode ser muito produtivo, por meio de um tipo de arquivo de natureza áudio-visual, que guarda detalhes da produção de um enunciado. Este trabalho pretende descrever a metodologia utilizada na gravação, descrição e análise de uma narrativa parkatêjê. O objetivo final da pesquisa é produzir mídia áudio-visual com as narrativas selecionadas, inserindo títulos de legenda em português (e inglês) e na língua indígena, utilizando a ortografia consolidada por Araújo (1993). 3.1. O Trabalho de Documentação Em geral, toda pesquisa realizada com populações tradicionais, de cunho da linguística antropológica, demanda a realização de trabalho de campo, a fim de que seja feita a coleta de materiais para análise. Assim, a primeira etapa, usual da linguística descritiva, é a coleta de dados em viagem de campo. Para a realização desta pesquisa foi empreendida uma primeira viagem de campo, em outubro de 2008, quando esteve em área indígena, a coordenadora deste projeto e três alunas de graduação, que estavam sendo treinadas para a condução de pesquisa sobre línguas indígenas. Foram gravadas listas de palavras, narrativas tradicionais e narrativas do cotidiano, tanto em língua indígena quanto em língua portuguesa, em uma tradução livre fornecida pelo informante principal, o cacique da área, Capitão Krôhôkrenhum. Desses materiais, apenas as listas de palavras foram transcritas na íntegra, tendo em vista que a elicitação e a transcrição de textos é trabalho muito demorado que demanda a presença de falantes da língua, os quais precisam subsidiar tal atividade. O trabalho foi realizado na casa do auxiliar de pesquisa, seguindo uma rotina de horário em que as gravações ocorriam a partir das três e meia da manhã, quando, segundo o falante mais velho da aldeia, há sossego e silêncio suficientes. De certo modo, ele estava certo. Todavia um dos problemas enfrentados para a gravação dos materiais diz respeito à quantidade de luz. Nesse horário, o motor de óleo ficava desligado e contava-se apenas com uma fogueira acesa, para também, além de luz, fornecer calor e proteção contra insetos e outros bichos. Dentre as narrativas coletadas, está o texto Pyt mẽ kaxêr (O Sol e da Lua), que foi coletado pela Dra. Marília Ferreira, em outubro de 2008, juntamente com as alunas presentes. O trecho a seguir é recorte deste texto – que narra a origem do mundo e cuja análise e edição integral estão em andamento – e será exemplo desta descrição. “mĩti mĩti itorê torê akrãjapap ateti ateti” A análise do texto é apresentada, como usualmente se faz em linguística descritiva, em quatro linhas: a transcrição ortográfica do texto na língua de origem; a transcrição fonética, a fim de que

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sejam observados detalhes relevantes quanto à produção dos sons da língua e alguns fenômenos que nela ocorrem; a transcrição morfológica, em que as palavras são separadas por barras e os morfemas por hífen numa espécie de tradução literal do trecho; e finalmente, a tradução livre como um todo para português e inglês. As transcrições seguem a análise da língua proposta por Ferreira (2003 e 2005). “mĩti mĩti itorê torê akrãjapap ateti ateti” ORTOGRAFIA [mĩ ’ti / mĩ ’ti: / to’re / to’re/ a’krə / ja’pa / pa’teti / ha’teti] FONÉTICA mĩti / mĩti / i-torê / torê / a-krãjapap / ateti / ateti MORFOLÓGICA jacaré / jacaré / 1 - atravessar / atravessar / 2 - nuca / enrugada / enrugada LIVRE Jacaré, jacaré me atravessou, atravessou. A tua nuca é enrugada, enrugada. Alligator, alligator crossed, crossed. Your neck is wrinkled, wrinkled. Após este procedimento de análise e descrição, inicia-se a etapa de editoração, para a qual já se vinha estudando modos de manipulação das gravações feitas em área indígena. Para este procedimento devem ser utilizados softwares que permitem visualizar as cenas e o espectrograma de fala simultaneamente, bem como inserir títulos de legenda, efeitos de transição e os que melhoram a qualidade da imagem (controle de cor e contraste), cortar cenas, aumentar/diminuir zoom, etc. Neste trabalho inicial, para o trecho do exemplo, utilizou-se um programa ofertado pela Microsoft, uma vez que é de fácil manuseio. No entanto, limita-se a tarefas básicas no que tange à edição: aumentar/diminuir brilho e contraste, cortar o filme, inserir títulos. Com o auxílio deste programa, que, para esta fase inicial, em que não se tem a transcrição do texto integral, foi suficiente, e assim isolou-se o trecho desejado. Após tê-lo separado foram inseridos efeitos que aumentam o brilho, já que a qualidade da imagem foi comprometida pela insuficiência de luz, bem como os títulos de legendas em parkatêjê, em português e em inglês4. É importante ressaltar que os títulos foram inseridos aos pares: português e inglês não constam no mesmo filme. Há um com legendas em parkatêjê, traduzidas para o português, e outro com traduções para o inglês, facilitando a visualização em relação à mensagem em si (“do que se fala”) e em relação à finalidade da mensagem (“para que”). Desta forma, no exemplo apresentado de um trecho pequeno do filme há: “mĩti mĩti itorê torê akrãjapap ateti ateti” Jacaré, jacaré me atravessou, atravessou. A tua nuca é enrugada, enrugada. Ao passo que em outro, os títulos são: “mĩti mĩti itorê torê akrãjapap ateti ateti” Alligator, alligator crossed, crossed. Your neck is wrinkled, wrinkled. Os títulos em parkatêjê, nos dois filmes, foram editados em “branco” e em fontes maiores que as utilizadas para as outras línguas, que estão em “amarelo”, para fins de distinção do que se está apresentando. Esta língua foi adotada para tradução devido ao fato de o projeto, ao qual este trabalho está vinculado, “Keeping the Talking Forests Alive: Documenting the Amazonian Oral Traditions”, ter sido aprovado integralmente pela Embaixada dos Estados Unidos.

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Como uma prévia observação dos aspectos linguísticos, pode-se observar que o narrador da história em tela alterna sua fala, em diferentes momentos, entre as línguas parkatêjê e português, em um processo de code-switching, ou alternância de códigos. Em uma parte do trecho isolado e editado, esse fenômeno toma lugar5. O que corresponde ao período completo do trecho tomado para teste é construído do seguinte modo “Mĩti mĩti itorê torê akrãjapap ateti ateti. Aí ele corria trás.” Nesse caso, as palavras ditas em português são colocadas com fontes em tom de amarelo, mais forte que o utilizado para a traduções. O último passo deste tipo de documentação é a produção dos cds, que, dentre as diversas contribuições, são um retorno concreto à comunidade indígena envolvida na pesquisa e que será o último passo deste trabalho. 4. Conclusão A realização de pesquisa na área de linguística descritiva, tendo como suporte materiais em áudio e vídeo, oferece possibilidades bastante consistentes para o trabalho de descrição e análise de uma língua, principalmente uma de língua ainda desconhecida com componentes de sua cultura a serem observados. A iniciativa de preservar a cultura imaterial de povos indígenas da Amazônia por meio da documentação, da descrição e da análise linguística é o principal auspício do presente plano de trabalho, vinculado a um projeto de pesquisa maior, “Keeping the Talking Forests Alive: Documenting the Amazonian Oral Traditions” e é uma parte da responsabilidade social de todos os pesquisadores envolvidos nele. Dentre os inúmeros benefícios que se poderá alcançar com esse tipo de iniciativa tem-se que o material em áudio e vídeo, por ser um estímulo ao seu uso, poderá ser utilizado como recurso para a preservação e revitalização dessa língua. E uma das formas de se ajudar na manutenção da língua é contribuir para que o Parkatêjê seja objeto de estudo na escola da comunidade juntamente com a Língua Portuguesa. Portanto, o material poderá servir como suporte pedagógico para o professor da área indígena. Referências ARAUJO, Leopoldina. Proposta de uma ortografia para a língua gavião-jê. 1977. Manuscrito. ______. (1993). Fonologia e grafia da língua da Comunidade Indígena Parkatêjê. In: Lucy Seki (org.) Lingüística Indígena e Educação na América Latina. 1993. pp. 265-272 FERREIRA, M. Morfossintaxe da Língua Parkatêjê. Munique: Lincom-Europa, 2005. ______. Estudo morfossintático da língua Parkatêjê. Tese de Doutoramento inédita. Campinas, 2003, UNICAMP. MEHRABIAN, Albert. Silent messages. Wadsworth, Belmont, California, 1971.

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As realizações em português foram omitidas no exemplo de análise por não tratarem de um trecho em parkatêjê.

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AS RELAÇÕES DE PODER EM A SOMBRA DO PATRIARCA, DE ALINA PAIM Daniele Barbosa de Souza ALMEIDA (Universidade Federal de Sergipe)

RESUMO: Alina Paim em A sombra do patriarca (1950) problematiza a noção simplista e dicotômica do homem dominante e mulher dominada. Essa obra do realismo social observa que o poder se exerce em várias direções e que os sujeitos dicotômicos são na verdade homens e mulheres de várias classes, raças, religiões e idades. Este artigo tem como objetivo destacar as estratégias utilizadas pela autora para criar novas identidades de gênero não só femininas, mas masculinas também através da protagonista Raquel e da personagem Oliveira, observando que tanto mulheres quanto homens sofrem preconceito ao desviar das condutas privilegiadas pela sociedade enquanto norma. Para tanto, utilizaremos como aportes teóricos escritores que privilegiem questões de identitárias e de gênero como Bourdieu e foucault. PALAVRAS-CHAVE: Alina Paim; gênero; poder; identidade.


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1. Resgatando Alina Paim Este artigo, e proposta de comunicação, parte do interesse de resgatar e divulgar Alina Paim como uma escritora brasileira, nordestina e sergipana que merece ser estudada pela sua qualidade estética e pelas temáticas de suas narrativas. A partir de mulheres fortes, trabalhadores, idosos e pessoas comuns, seus dez romances e quatro contos infantis questionam as relações de poder de uma sociedade capitalista e excludente que se faz perceber não só no nordeste, como no sudeste do país. É importante destacar o papel do GELIC, Grupo de Estudos de Literatura e Cultura, nessa empreitada. Coordenado pelos professores Ana Maria Leal Cardoso e Carlos Magno Gomes, esse grupo de pesquisa da Universidade Federal de Sergipe tem se preocupado desde 2007 em promover encontros e incentivar alunos de graduação, especialização e mestrado à discutir temas que levem em consideração escritores sergipanos que ficaram à margem do cânone literário. Encabeçada pela professora Cardoso, muitos avanços podem ser percebidos nos estudos da obra de Alina Paim. O mais importante deles, tendo em vista que se trata de uma pesquisa de cunho literário, diz respeito ao resgate das obras em sebos e arquivos pessoais de terceiros. Cabe destacar que nem a Biblioteca Nacional situada no estado do Rio de Janeiro, e nem mesmo a família dispõem da sua obra completa, o que infelizmente não nos permitiu ainda ter posse de todos os seus contos infantis. Além disso, vários alunos vinculados ao grupo de pesquisa têm estudado a obra dessa escritora, apresentando os resultados de seus estudos em congressos e seminários nacionais, bem como em livros e periódicos. O primeiro romance de Alina Paim, Estrada da Liberdade (1943), registra a luta de uma comunidade carente do bairro da Liberdade em Salvador e traz consigo características de uma obra a serviço da educação não só por sua temática, a difícil jornada de uma professora que tenta aplicar novas metodologias de ensino em uma comunidade pobre, mas também pela maneira simples e eficaz com a qual a obra dialoga com seus leitores. Simão Dias, segundo livro de Paim publicado em 1949 é considerado uma autobiografia, pois narra as memórias da infância vividas pela autora naquela cidade. Sua publicação é um choque para família e alguns moradores da cidade, pois Paim opta por manter o nome real das personagens causando um certo desconforto entre algumas personalidades citadas. Em 1950 é lançado o romance analisado por nós, A sombra do patriarca. O relato ficcional desta obra está centrado na personagem Raquel, uma jovem progressiva que entra em choque com as idéias do tio Ramiro, um verdadeiro patriarca. Esse romance trabalha com muita maturidade estética a composição dos corpos femininos e é subversivo no que diz respeito à supremacia masculina, como veremos na terceira parte deste artigo. Depois de um intervalo de cinco anos, Alina presenteia a literatura brasileira com o romance A hora próxima. Este romance é considerado sua obra prima socialista e está vinculado à série Romances do Povo, uma coleção de 25 obras organizadas por Jorge Amado e patrocinada pelo Partido Comunista Brasileiro. O cunho comunista do enredo, a vitória de um grupo de operários que lidera uma greve ferroviária, despertou o interesse da Rússia e da China em traduzi-lo para o russo no ano de 1957 e para o chinês em 1959. Neste romance as mulheres têm um papel decisivo, são elas que lideram a revolução vitoriosa dos ferroviários e junto com seus companheiros dirigirão a humanidade ao nascer de um outro dia. Segundo José Ricardo Pietro, “As mulheres ganham um relevo especial em A hora próxima. Não por ser uma obra dirigida a elas, mas porque retrata a maneira como agem as mulheres do povo, identificando o opressor” (PRIETO, 2004). Cabe destacar ainda que essa obra causou problemas judiciais para escritora que foi acusada publicamente de influenciar os operários da rede ferroviária da cidade de Cruzeiro do Sul a entrar em greve. Os quatro romances que dão seqüência a sua trajetória literária recebem prêmios nacionais. A associação Brasileira do Livro concede ao Sol do Meio-Dia (1962) o prêmio Manoel Antônio de

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Almeida e a trilogia de Catarina, composta pelos romances O Sino e a Rosa, A Chave do Mundo e O Círculo conquista em 1965 o prêmio Walmap. Depois de um intervalo maior, Paim escreve em 1979 A correnteza, outro romance marcado por mulheres-sujeito que vivem no subúrbio do Rio de janeiro. Segundo Valdemar Cavalcante esta obra movida por um realismo cru e paralisante tem principalmente as personagens femininas desenhadas com mãos leves e firmes mostrando um quadro psicológico de suas personagens com impressionante nitidez (Apud GILFRANCISCO). Por fim, Alina Paim escreve A sétima vez, romance republicado em 1994 pelo Governo do Estado de Sergipe. Essa é a única obra que não destaca questões femininas, mas mesmo assim não foge do tema central da escritora: a causa dos oprimidos. Nele, Paim narra a história do velho Teodoro que, já aposentado, precisa sobreviver com uma aposentadoria irrisória depois de toda uma vida de trabalho. Como citado anteriormente, além de prosa Alina Paim escreveu O Lenço encantado; A casa da coruja verde, Flocos de algodão e Luzbela vestida de cigana todos contos infantis. Destacaremos a seguir as características do realismo social no terceiro romance desta escritora que, embora tenha sido bastante comentada e premiada a seu tempo, hoje encontra-se praticamente desconhecida, inclusive pela crítica feminista brasileira que tem se preocupado em resgatar vozes femininas que ficaram esquecidas e desprivilegiadas pelo cânone literário. 2. A sombra do patriarca: Uma obra do realismo social Devido a filiação de Alina Paim ao PC do B, sua obra é frequentemente enquadrada na corrente literária do realismo social. Encontramos em A sombra do patriarca muitas características desse estilo de arte. Primeiramente observamos que este romance é escrito a partir de uma linguagem simples que facilita acesso às ideologias partidárias, possibilitando uma leitura crítica do capitalismo bem como das relações de gênero. Isso se deve ao fato de a estética socialista entender que toda manifestação cultural deve ter compromisso com a educação e formação de massas. O realismo socialista está orientado a lutar contra os vestígios do velho mundo e estimular a concepção do mundo socialista revolucionário. Não se trata apenas de utilizar a literatura para conhecer o mundo e a realidade, mas para mudá-la. (Cristaldo, 2000). Outra característica do realismo socialista presente na obra é o cenário escolhido pela autora, o enorme latifúndio do tio Ramiro que compreendia a Usina Fortaleza, a casa grande, o canavial, as terras de Curral Novo e a vila de moradores que tinha até uma avenida, a Avenida de Santa Clara. Além disso, são as idéias de Ramiro, na figura do patriarca e do grande latifundiário que devem ser combatidas. Quem cumpre com a tarefa de questionar autoridade do homem sobre a mulher e do poder do senhor de engenho que escraviza várias vidas ao seu redor é Raquel, protagonista e sobrinha de Ramiro. É através da representação do conflito ideológico dessas personagens que podemos observar as tendências socialistas e feministas desta narrativa. É fato que a personagem central da narrativa não é uma trabalhadora rural como seria de se esperar numa obra desse tipo, porém Raquel juntamente com Leonor, neta de Ramiro e prima da protagonista, se espantam e questionam a conduta e a ganância de Ramiro que não se incomoda em ser o responsável pela vida de miséria de várias personagens da história. É essa característica marcante na obra de Alina Paim de escrever a mulher como um sujeito capaz de pensar e mudar a realidade que destacaremos a seguir, porém do ponto de vista do gênero, tentando mostrar através das personagens Raquel, Oliveira e Teresa que as identidades de gênero em A sombra do patriarca, antes de perpetuarem uma ordem dicotomizada na qual o homem assume sempre uma posição privilegiada, elas são atravessadas por questões outras como as de raça, religião, idade e principalmente de classe.

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3. As relações de gênero em A sombra do patriarca A história de A sombra do patriarca começa com a ida de Raquel às terras de seu tio Ramiro. A viagem é um pedido de Alfredo, pai da protagonista. Para ele era importante que Raquel visitasse o tio, tendo em vista que esse a conhecera ainda criança, e representando o esteio da família, merecia mais atenção por parte da sobrinha. No caminho Alfredo preocupa-se em tecer os detalhes do comportamento da família, lembra a Raquel que é preciso a todo custo agradar, observar as pessoas e medir seus gestos para não desgostar ninguém. Alfredo diz a Raquel que “Tio Ramiro é exigente, repara as menores coisas e não perdoa a mais leve contradição […] gosta de silêncio na mesa, as conversas devem ser guardadas para a hora do descanso” (ASP, p. 12). Alfredo também preocupa-se em prevenir Raquel do apego do tio com os sapos e diz: “É preciso dominar-se quando vir os sapos. Seria a maior falta de consideração mostrar medo ou ficar com nojo” (ASP, p. 13) Já no início da narrativa podemos observar algumas relações de poder importantes de serem ressaltadas. Alfredo, pai de Raquel e representante de uma ideologia patriarcal alerta a filha da necessidade de conter-se. Para caber no patriarcado a mulher precisa disciplinar o corpo, medir os gestos, apenas observar, falar pouco e somente quando autorizada, enfim mostrar sua submissão e docilidade. Alfredo demonstra sua autoridade de pai e homem sobre Raquel à medida que marca, dirige, suplicia e sujeita o corpo dessa personagem obrigando-o a cerimônias somente para que ele possa assumir uma posição de poder privilegiada. Alfredo deseja ser respeitado pela família do tio pelo fato de ter conseguido ser um bom pai, leia-se um pai que ensinou a filha a se comportar de maneira comedida e respeitosa. Logo depois de chegar na Fazenda Fortaleza, Raquel adoece e a estadia prolonga-se. Alfredo precisa ir embora e a nossa heroína se sente uma prisioneira das pessoas da Casa Grande. retida na cama, cercada de solicitude que, em vez de tranqüilizar-me, produzia em mim a sensação angustiante de estar prisioneira entre aquelas pessoas estranhas e de atitudes duvidosas, aprendi a esperar de todos, acontecimentos absurdos e as revelações mais contraditórias (ASP, p. 14).

Nada mais sugestivo que o nome e descrição da fazenda para causar essa impressão: “Atravessamos a cancela e diante de nós surgiu a casa grande, com sua fachada de dois andares cercada pelas janelas de guilhotina” (ASP, p. 80). O conselho que seu pai lhe dera de observar as pessoas fez com que Raquel observasse principalmente o comportamento curioso das mulheres que viviam sob as rédeas de Ramiro, um homem que com vontade de ferro dobra as vidas de todos que o cercam para que nada fuja à sua determinação nem a seus planos. Para Raquel todas elas eram estranhamente subservientes, porém cada uma a seu jeito mostrava um grau de contradição. Destacaremos primeiramente o comportamento da esposa de Ramiro. Depois do jantar, quando este apresentava a todos da família o programa a ser seguido no outro dia, Amélia preocupavase religiosamente em ficar com Raquel no quarto até que ela dormisse. Ambas as personagens encenavam uma farsa diariamente, Raquel fingia que dormia e Amélia fingia que acreditava. A esposa de Ramiro fazia isso por que tinha o hábito de aceitar os atos alheios sem discussão e “procurava uma justificação para retirar-se” (p. 16), não podia demonstrar seu desejo de sair, cabe à mulher cuidar e zelar pelo outro. Por outro lado, a presença de Amélia causa um extremo desconforto em Raquel, que tinha a certeza de estar sendo vigiada pelos seus olhos, “aliás o único vestígio de vida no rosto cheio de sulcos e de rugas” (ASP, p. 16-7). Segundo Raquel, os cabelos brancos esticados, os lábios trêmulos, formavam uma contradição com o brilho inquieto de seus olhos, que envolviam uma pessoa, deixando-lhe a impressão de estar diminuindo o cerco a cada instante, puxando o laço de uma armadilha, prestes a sufocar com um gesto seguro e rápido (ASP, p. 17)

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Raquel fingia dormir para livrar-se do estado de tensão que a vigilância daqueles olhos causavam. Gostava de estar só para pensar nos fatos do dia e tirar suas próprias conclusões sobre as pessoas, sem se deixar levar pela aparência e superficialidade dos atos repetitivos. O incomodo de Raquel face ao olhar de Amélia deve-se ao fato de a vigilância representar uma das armas mais importantes do processo de disciplinarização. A força disciplinadora do olhar se manifesta como um olho que tudo vê, pois ela está “em toda parte e sempre alerta, pois em princípio não deixa nenhuma parte às escuras e controla continuamente os mesmos que estão encarregados de controlar; e absolutamente ‘discreto’, pois funciona permanentemente e em boa parte em silêncio” (FOUCAULT, 2008, p. 148). Esse fato pode ser observado de maneira bem clara na narrativa, Raquel não consegue nem pensar em sua presença, o olhar de Amélia lhe censura silenciosamente, como se pudesse penetrar seus pensamentos. “As atitudes minuciosas, cheias de detalhes insignificantes, a que o cuidado exagerado dava proporções de ritual” (ASP, p. 23) de Teresa (filha de Ramiro) e Anita (filha de Teresa) também incomodam Raquel. Teresa e Anita não perdiam oportunidade de ajeitar uma dobra de lençol, refazer a simetria das cadeiras, dar um sopro para desempoeirar um livro. Depois de um gesto desses, caia o silêncio e ficava no ar a sensação de que aquelas pessoas eram movidas pelo mesmo tipo de molas, de que aquela gente tinha na cabeça engrenagens idênticas (ASP, p. 23).

Raquel estava correta, as mentes dessas mulheres são sim movidas pelo mesmo tipo de engrenagem: o da disciplina. Seus corpos são formados de uma massa uniforme, de um corpo inapto, fez-se a máquina de que se precisa; corrigiram-se aos poucos as posturas; lentamente uma coação calculada percorre cada parte do corpo, se assenhoreia dele, dobra o conjunto, torna-o perpetuamente disponível, e se prolonga em silêncio, no automatismo dos hábitos (FOUCAULT, 2008, p. 117).

Amélia, Teresa e Anita são exemplos de corpos dóceis produzidos a partir da disciplina do detalhe que se associa à mítica do cotidiano. Elas incorporam e aplicam através do olhar e das ações a divisão do trabalho social que demarca para mulher as atividades minuciosas do doméstico como únicas possíveis. Porém das três, a personagem que mais chama a atenção de Raquel é Teresa. Mãe de três filhos e única a dar um herdeiro homem ao pai, já que Amélia não teve filhos homens, Teresa se mostra a personagem mais contraditória de todas. Apesar de afirmar que “cada um tem liberdade de seguir suas tendências [… pois] a vocação deve obedecer à inclinação manifestada desde o berço” (ASP, p. 37), Teresa não mede esforços para fazer com que os filhos sigam o destino traçado pelo grande patriarca. Sua primeira preocupação é a de convencer seu filho Abelardo de que ele será o engenheiro que tomará conta da fazenda depois de seu avô, mesmo com as insistências do menino em perguntar o que aconteceria se ele desejasse ser marinheiro. Nessas ocasiões Teresa não se impacientava em contar histórias, provavelmente criadas por ela mesma, das vezes que quando criança ele havia criado hortas, indícios claros de sua vocação, e incentivá-lo a pedir ao avô que o levasse junto às visitas pela fazenda, inclusive acordando a criança e pedindo-lhe para dizer ao avô que ele havia acordado sozinho porque sonhara ou soubera da intenção do avô de explorar as terras do grande latifúndio. Para as filhas mulher faz questão de mostrar a importância de um bom casamento, de ensinar as artes do lar e de fazê-las entender que a mulher deve ser submissa ao homem. Porém, Teresa sabe que tem filhas diferentes, e que enquanto Anita é para ela “um livro aberto” (ASP, p. 38), Leonor lhe foge completamente. Teresa vê Anita como a filha que fará o casamento perfeito, pois “será uma futura esposa dócil e submissa” (ASP, p. 39), mas se entristece ao perceber que Leonor lhe é estranha, desconhecida. Não demora muito para Raquel esquecer os conselhos do pai e começar a questionar e discordar das idéias dos moradores da Fazenda Fortaleza, começando pelas idéias de Teresa sobre

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a mulher. Numa tarde depois do almoço, ao elogiar Anita por sua docilidade, Teresa afirma que “a mulher sem alguém que a sustente nas dificuldades, sem um punho forte que a domine, não pode ser feliz. A mulher foi feita para obedecer, sua vontade foi talhada para curvar-se diante de outra mais forte” (ASP, p. 39). Raquel revolta-se imediatamente, primeiro por saber que Teresa estava em contradição consigo mesma, pois ela era uma criatura autoritária que tentava dobrar todos a sua volta assim como seu pai, depois por não acreditar que o que Teresa afirmava era verdade. Raquel responde que não concorda com Teresa, e diz: A mulher pode ter personalidade e não precisa apagar-se diante do marido. Se o homem souber que tem ao seu lado uma companheira que possui opinião própria, capaz de agir guiada pelo seu próprio raciocínio e de ter iniciativa diante de uma tarefa difícil, sentirá respeito pela esposa, terá o prazer em consultá-la antes de resolver seus negócios, e, neste caso, além das relações conjugais, existirá um poderoso laço de camaradagem cimentando a união (ASP, p. 39)

Completamente impregnada pelas ideologias patriarcais, Teresa se assusta com a resposta de Raquel e se sente na obrigação de alertá-la de que as suas idéias além de absurdas eram perigosas. Teresa reafirma a fragilidade da mulher e para isso recorre à religião que, segundo ela, explica com clareza que “a mulher tem que viver sob a tutela do homem, primeiro na casa paterna, depois na companhia do marido. Querer agir de outra maneira é procurar inclinar-se às bordas do perigo, é ficar prestes a cair no irremediável” (ASP, p. 40). Não satisfeita com a explicação de Teresa, Raquel defende que a aparente fragilidade da mulher é resultado de uma “educação errada que lhe ensina a curvar-se, a obedecer sempre, sem indagar, às cegas” (ASP, p. 40). Para Raquel “a mulher tem possibilidades iguais às do homem, a educação é que atrofia, dando um valor exagerado a seus sentimentos e neutralizando suas energias intelectuais” (ASP, p. 40). Essas idéias de Raquel ganham apoio na voz de Foucault que afirma que “o normal se estabelece como princípio de coerção no ensino, com a instauração de uma educação estandardizada” (FOUCAULT, 2008, p. 153). A escola contribui para transformar multidões confusas em multiplicidades organizadas, reduzindo singularidades individuais. O normal para mulher é instituído pela escola, religião e família como o frágil, o passivo e o gracioso, e a sociedade não aceita o menor desvio dessa conduta. À noite Raquel discutiria mais uma vez sobre a situação da mulher, mas dessa vez a vítima das suas idéias progressistas é o próprio patriarca. Depois de um diálogo comum, cheio de perguntas e respostas monossilábicas, Raquel afirma que apesar de professora, gostaria de ter estudado advocacia. Ramiro logo responde que “a advocacia não foi feita para mulher […] Nem todas as profissões são próprias para uma moça” (ASP, p. 46). Raquel discorda do tio, para surpresa de todos, e apesar do olhar de reprovação dos que estavam sentados à mesa, continua: “A mulher pode competir com o homem e vencer em qualquer coisa para que tenha vocação. Pode ser médica, advogada e até engenheira, apesar das dúvidas de muitos homens sobre sua aptidão pra matemática” (ASP, p. 46). Ramiro embora não negue que a mulher tem capacidade de seguir qualquer profissão, diz que não cabe ao sexo feminino seguir nenhuma dessas carreiras, pois “a mulher foi feita para tomar conta da casa, cuidar do marido e criar os filhos. Ser professora já é uma concessão de que às vezes muitos homens se arrependem. Quando pode ser aproveitada sob as vistas da família, a contabilidade serve. É tranqüila, não exige estar as voltas na rua em contato com estranhos” (ASP, p. 46). Não é de surpreender que Raquel revidaria mais esse pensamento do tio, e para finalizar a discussão causando um profundo sentimento de desapontamento em Ramiro, Raquel diz que a maneira do tio encarar a situação da mulher está atrasada, “atrasada de muitos anos” (ASP, p. 47). Cabe-nos destacar que os conflitos descritos entre Raquel e as personagens Ramiro e Teresa representam um embate entre as ideologias patriarcais, vistas como norma e as idéias feministas compreendidas como um desvio de conduta.

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Depois da discussão todos demonstram ter desaprovado a atitude de Raquel, menos Leonor que diz querer falar com a prima. Raquel já havia percebido que Leonor era diferente. Ela tinha a impressão correta de que a única mulher que quebrava a monotonia na fazenda era Leonor.. Apesar de retraída, pouco comunicativa e apenas responder às perguntas que lhe eram dirigidas, Leonor não se preocupava em manter as aparências ou cerimônias com Raquel. Às tardes quando fazia companhia à prima, carregava consigo um livro e livrava Raquel da obrigação de manter diálogos sem interesse às duas. Essa característica de Leonor gera uma série de questionamentos na protagonista: Porque Leonor não me dizia amabilidades, porque não vivia naquele quarto durante essas horas em função do meu bem-estar, esforçando-se como Teresa e Anita, para me dar uma lição sobra a maneira de tratar um hóspede, empregando tudo para convencer-me de que eu era um ser diverso dos demais, uma espécie de rainha enquanto permanecesse de passagem naquelas paragens (ASP, p. 24)

Raquel descobriria mais tarde o que se escondia por traz das atitudes diferenciadas de Leonor: o desejo de ser médica, e não contadora como queria o avô. Ramiro não aceitara o fato de a neta fazer um curso superior de medicina, pois como vimos explicitado na fala do patriarca lugar de mulher é em casa, debaixo da vigilância dos seus para que não entre em contato com idéias perigosas, depois ter uma neta contadora lhe seria útil, Leonor poderia tomar conta das finanças da fazenda. A relação do doméstico como sendo espaço característico do feminino é outro aspecto de disciplinarização presente na obra. Segundo Foucault, o principio da clausura se manifesta pela máxima de que há um lugar para cada indivíduo e de que há um indivíduo para cada lugar. Essas localizações funcionais servem dentre outras coisas para satisfazer a necessidade de vigiar, de romper comunicações perigosas e de criar um espaço útil. O que Ramiro deseja é mantê-la sob vigilância e fazer dela mais uma peça lucrativa da fazenda. Nas vozes de Ramiro e Teresa observamos que na ideologia patriarcal cabe à mulher a esfera do doméstico onde terá constantemente a vigilância de seus pais e maridos. Ao discutir essa característica do patriarcado é importante reforçar que ela é vista como norma, mesmo que pareça arbitrária. Isso se deve ao fato de que a força da ordem masculina se evidencia no fato de que ela dispensa justificação: a visão androcêntrica impõe-se como neutra e não tem necessidade de se enunciar em discursos que visem a legitimá-la. A ordem social funciona como uma imensa máquina simbólica que tende a ratificar a dominação masculina sobre a qual se alicerça: é a divisão social do trabalho, distribuição bastante estrita das atividades atribuídas a cada um dos sexos, de seu local, seu momento, seus instrumentos; é a estrutura do espaço, opondo o lugar de assembléia ou de mercado, reservados aos homens, e a casa, reservada às mulheres (Bourdieu, 1999, p. 18).

Somente depois da discussão que tivera à mesa com Ramiro, Raquel descobre a verdadeira identidade da prima. Elas sentem que algo em comum as une: a vontade de vencer as amarras do patriarcado e conseguirem alçar vôos maiores do que aqueles permitidos pela família patriarcal. Leonor confessa a Raquel que embora continue fazendo o curso de contabilidade como era de desejo de seu avô, tem um plano: “Por que não seguir a medicina independente da vontade de vovô?” (ASP, p. 48). Leonor sabe que realizar seu sonho não seria tarefa tão simples. Dois obstáculos se avolumam a sua frente, a condição financeira e o receio de trair a família. Logo Leonor encontra uma saída para dependência financeira: tendo uma fonte de renda para poder se manter seria mais fácil ir em busca do seu destino. Então “só havia um caminho, terminar o curso comercial, para contar com uma profissão e ganhar a vida à minha custa” (ASP, p. 49). Leonor se sente confiante, ao final do ano termina seu curso e completa vinte um anos o que a deixa tranquila em relação a possíveis investidas do avô para trazê-la de volta: “Se vovô quiser trazerme, não encontrará empresa tão fácil como a de alguns anos atrás” (ASP, p. 49). Vencida a dependência financeira, a sensação de estar traindo a família parecia um obstáculo intransponível: “No primeiro momento me pareceu impossível rebelar-me contra família […] que não diriam de meu procedimento?” (ASP, p. 48). Depois de acusar-se de filha má, sem coração “e outras coisas que a gente ouve desde pequena sobre pessoas que não se unem com os parentes” (p.

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52), Leonor chega a conclusão de que não há nada que a ligue aos seus parentes de sangue, a não ser motivos de sofrimento e humilhações. Prefere então ligar-se a pessoas que lhe despertem uma amizade desinteressada, esses sim serão sua família. Podemos observar na fala de Leonor a ação repressora na família patriarcal, que ao mesmo tempo que cria mecanismos protetores, condiciona o sujeito, e em especial a alma feminina ao cerco, ao aprisionamento através do medo, da dependência financeira e da ligação psicológica. Para Raquel, descobrir que Leonor é diferente das outras mulheres da casa, que não obedecia as ordens do avô, mesmo que para quebrar a seqüência de submissão à vontade dele precisasse calar e acender a “chama da revolta”, é bastante significativo. É somente nesse momento que ela além de se perceber uma mulher diferente das demais e semelhante a Leonor, observa no seu íntimo a vontade de “varrer do mundo os homens de seu tipo, para varrer do mundo os homens de seu tipo, para destruir os patriarcas e reduzir sua sombra a poucos palmos além de seus pés” (ASP, p 56). É também através de Leonor que Raquel compreende o verdadeiro Oliveira, marido de Teresa e pai de Leonor. Desde o início da narrativa essa personagem se apresentava a Raquel como uma criatura enigmática, um problema de matemática que merecia solução. A impressão negativa que tivera a primeira vista de um homem fraco, incapaz de manifestar-se à mesa como sujeito aos poucos vai se dissipando. Nas palavras de Leonor Raquel descobre que Oliveira é mais uma vítima de Ramiro. Não era sem motivo que ele se mostrava um homem silencioso que apenas ouve ordens no fim da mesa sem ocupar a cabeceira da mesa vazia, como lhe seria de direito se estivesse sustentando a família e a educação dos filhos. Oliveira é apenas mais uma das pessoas que teve seus sonhos apagados pela força maligna do dinheiro do sogro. Ainda jovem e já bacharel em direito, Oliveira cede as investidas de Ramiro e casa-se com sua filha. Oliveira que sonhara em seguir a advocacia, torna-se à pedido do sogro o responsável pelo alambique da usina, setor financeiramente improdutivo, cujo fracasso é utilizado por Ramiro e Amélia como prova da incapacidade de Oliveira para gerir negócios. Na verdade a opção de Ramiro em colocá-lo nesse posto demonstra a sua vontade de se manter sozinho no controle da fazenda, Ramiro não dividiria seu poder, e traz Oliveira e a filha para fazenda apenas para controlá-los e fazer de Oliveira um mero reprodutor, o homem que fará de Teresa uma mulher respeitada, pois seria uma vergonha para o patriarca ter uma filha solteira apesar do seu poder econômico. Muito observadora, Raquel consegue ver agora “dois Oliveiras”: um que se apresentava diante de Ramiro à mesa, silencioso, de vista baixa que não pronuncia uma palavra e o outro que conversava desenvolto com agregados da fazenda. Chega a conclusão de que seu comportamento diante de Ramiro e da família é fruto de anos de desprezo e humilhações. “A vida de fracassos sucessivos devia ter-lhe impresso na alma a sua marca. Um complexo de inferioridade devia estar sensível, como cicatriz nova que conserva a pele fininha. O roçar, ainda que de leve, pode avivar o sofrimento e abrir a velha ferida” (ASP, p. 60). Ao mesmo tempo que a compaixão pelo tio cresce, o horror e a aversão à Teresa aumentam. No dia após a discussão com Ramiro, Teresa entra no quarto de Raquel sob o pretexto de abrir-lhe os olhos para idéias que lhe poderiam ser prejudiciais no futuro. Questiona a sua ousadia e impertinencia em ir de encontro as idéias do patriarca, invoca a ausência da mãe de Raquel e usa o nome de Alfredo para tentar causar alguma comoção ou arrependimento: “Se Alfredo estivesse presente, como como não teria ficado envergonhado de sua conduta, Raquel, ele que sempre foi respeitador, que acatava as ordens de papai, cumprindo em tudo até o fim suas determinações” (ASP, p. 64). Teresa tenta fazer Raquel entender que o fato de ela ser hóspede e sobrinha de Ramiro pressupõe algumas condutas que não incluem a insubmissão e usa a si mesma como exemplo a ser seguido por Raquel: “Até hoje, mãe de família, casada, nunca repliquei as palavras de papai, ele sabe o que diz e tem razão quando condena muita coisa. Estou a seu lado quando diz que o mundo seria melhor e muita coisa estaria em seu lugar se se falasse menos em liberdade e independência” (ASP, p. 64).

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Raquel compreende que por trás das delicadezas e atenções dispensadas a ela, “havia muitos pares de unhas afiadas fechando um cerco, prontas a agir ao menor sinal de alarme” (ASP, p. 64-5). A intenção de Teresa ao proferir essas palavras a Raquel, era mostrar limites com frieza e sem se alterar, incorporando toda a soberba que o dinheiro da sua família lhe permitia. Teresa continua a conversa dizendo que Raquel não tinha o direito de perturbar a ordem do foi construído por Ramiro e ela ajudava a manter através da educação dos filhos. Ainda despreparada para aquele confronto Raquel apenas responde que se a educação dada por Teresa aos filhos fosse realmente acertada, ela nada precisaria temer. Porém no seu íntimo não pôde deixar de sorrir com a possibilidade de toda uma tradição de servilismo ser jogada por terra por Leonor, neta de Ramiro e mulher, um “ser que tio Ramiro, em seu espírito estreito, julgava incapaz de realizar uma tarefa que exigisse esforço e inteligência. Por esse ser que Teresa, em sua cegueira obstinada, apregoava que nasce para ser dominado, para viver subjugado pelo homem como eterno escravo” (ASP, p. 66). Mesmo do alto da sua soberba, Teresa revela sua fraqueza a Raquel, ela sabe que não tem controle sobre o gênio retraído de Leonor e tenta arrancar de Raquel, humilhando-a, alguma revelação sobre os desejos da filha. Nesse momento Raquel sente-se fortalecida e embebida numa aura de solidariedade pelos anseios da prima, nada fala. Começa a agir como aliada de Leonor na vontade de escapar da sombra do patriarca e do desejo de quebrar uma seqüência de orgulho e submissão. Observamos que embora mulher, Teresa age conforme a lei patriarcal. Isso não se dá por acaso, pois segundo Bourdieu, os oprimidos acabam por assimilar e viver de acordo com as regras dos opressores exigindo de todos o mesmo (1999). Como uma guardiã da ordem do pai, Teresa mostra os limites entre o permitido e o proibido, e justifica seu ponto de vista se utilizando de instituições como a Igreja, a Escola e a Família. O apreço de Raquel por Oliveira cresce. Desejava ouvir a sua voz, tinha ânsia em conhecer aquele homem moço cujos cabelos brancos vencem os fios negros. Sente vontade de tocar-lhe o ombro, dizer-lhe coisas amáveis, demonstrar simpatia, ser sua companheira. Não sabia ainda, mas estava apaixonada. Percebia que o seu sorriso era cheio de vida comunicava-lhe algo, uma chama. Em visita as terras de Santa Clara, vila encravada nas terras de Ramiro, Raquel entra na igreja e ao lembrar que tem direito de fazer um desejo quando entra pela primeira vez numa igreja, pede pela libertação de Oliveira, mesmo sem compreender e sabendo que seria mais lógico pedir por Leonor. No retorno à fazenda, Raquel reflete sobre os momentos passados em companhia de Oliveira. Percebe que gostaria de ouví-lo falar sem convencionalidades, conhecer seu íntimo, perceber a bondade e o carinho de que Leonor lhe falava. Desejava ardentemente que “a chama da revolta o tocasse, iluminasse as trevas de seu servilismo e lhe mostrasse o caminho. Raquel descobriria depois que Leonor tinha razão: “a voz de Oliveira era quente, sua ternura, quando envolvia alguém, comunicava-lhe um calor novo” (ASP, p. 79). Raquel não conseguia escapar a atração que Oliveira exercera sobre ela no caminho para a vila e aquela sensação permaneceria por muitos dias até que eles finalmente se encontrariam e conversariam com o coração na mão, sem cerimônias e com muito sentimento. Antes desse encontro porém, Raquel assistiria mais uma vez Oliveira ser desmoralizado por Teresa em frente à família. Sabendo pelo padre que sua filha preferida, Anita, estava lendo, Ressurreição de Tolstoi, um livro condenado pelo papa sob a influência do pai, Teresa se revolta contra Oliveira e impregnada de seu orgulho e fome de domínio, rasga e queima uma a uma as páginas do livro. Não satisfeita volta os olhos para oliveira e questiona a sua ousadia em intrometer-se na educação de seus filhos, logo ele, “um homem que não dava nada na Usina, não mantinha a família e não tinha recursos para educar os filhos […] ele que era um fracassado, o ultimo da casa – aquele que sentava no fim da mesa, junto da cabeceira vazia, porque era indigno de ocupá-la, frente a frente com o patriarca!” (ASP, p. 107). Para surpresa de Raquel, mesmo depois de tal humilhação, Oliveira não reage. Apenas responde entredentes que isso não se daria indefinidamente. Apesar de um pouco desapontada,

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Raquel não podia deixar de se alegrar com aquela frase que se mostrava no horizonte como a primeira nuvem púrpura de uma aurora que não tardaria. Fica claro que o casamento de Teresa e Oliveira é o casamento patriarcal por excelência, pois longe de pressupor amor, é apenas um contrato social. Observamos também que os corpos dessas personagens são atravessados por fatores outros que os de gênero, como por exemplo as questões de classe que possibilitam que neste casal os pólos da opressão estejam invertidos. É Teresa, a filha do grande latifundiário, que oprime Oliveira, pai de família incapaz de manter sua família. Depois de três semanas de muitos acontecimentos que contribuiu para uma gestação de idéias de liberdade no quarto da Fortaleza e diante da espectativa da visita ao curral novo, Raquel era sacuda pelo desejo de viver: “A proximidade da terra comunicava-me uma ânsia desconhecida, vontade de ver-me envolvida num grande acontecimento que estremecesse minha vida até as raízes” (ASP, p. 100). O que Raquel não sabia era que depois daquela visita ela renasceria para uma vida nova e plena de realizações e não iria sozinha, teria Leonor para sempre como sua aliada. Na véspera de sua viagem ao Curral Novo Raquel sentia que as cinzas do livro queimado por Teresa nada mais eram que a metáfora do que estava por acontecer: o seu renascimento. Ouvia vozes trazidas pelo vento que tinham a missão de dissipar as cinzas que não haviam dissipado de todo. As sementes que apodreceram nas terras da Fortaleza impulsionaram a germinação de uma nova maneira de ver a vida como podemos ver nas palavras da protagonista: “Acompanhando a sinfonia da terra, muita coisa germinou dentro de mim, crescendo como hera viçosa, afogando tudo. Com mais pujança se derramavam em corolas vermelhas, sedosas como veludo, quentes como gotas vivas de sangue” (ASP, p. 115) Depois de três dias no Curral Novo, Raquel se sente em paz. Sentia-se acolhida pela simplicidade do lugar e das pessoas. O estilo espirituoso de tio Olavo, a bondade genuína de tia Celina e o carinho de Alzira por Catita a fizera esquecer da sensação de aprisionamento que vivera na Fortaleza. As mudanças vividas por Raquel desde que chegara a fazenda Fortaleza podem ser percebida nesse trecho: Apenas na véspera deixara a casa de tio Ramiro, e pareceu-me naquele instante que uma distância de meses, talvez de anos, me separava dos fatos vividos sob aquele teto. A usina estava longe no tempo e próxima nas transformações que começavam a operar-se em minhas idéias, na marca que a injustiça e o orgulho daquela gente tinham deixado na minha alma (ASP, p. 125)

Lá Raquel ainda conheceria muita coisa sobre a vida e sobre sua própria história, sempre acompanhada por Leonor que lhe servia de guia..Conheceria o drama de Joana Louceira e Lucrécia, o estado de completo abandono e desolação que a maioria dos trabalhadores das terras de Ramiro viviam, as crianças que perdem a sua infância para cuidar dos irmãos enquanto os pais trabalham para garantir o sustento da família, carregando uma responsabilidade maior do que idade permite, sem direito a educação ou diversão. Saberia também do motivo da dor de Alzira, que perdeu o homem de sua vida pela ganância de Ramiro. Nas palavras de Olavo Raquel descobriria a verdadeira história da sua família. Soube da história próspera do velho Vergueiro, pai de Ramiro e de sua avó. Vergueiro comprou um pedaço pequeno de terra que foi se expandindo até sua primeira esposa morrer, época que a seca não ajudou a superar as dificuldades da perda. Casou-se novamente, mas como era um grande amante da liberdade, sumiu por dois anos, sem dar notícia a mulher e aos filhos. Ramiro, filho mais velho e um rapaz na época cuidara de tudo na ausência do pai. Motivo pelo qual revolta-se quando este volta dizendo que a fazenda estava hipotecada, desentendendo-se com o pai. Depois da morte da segunda mulher, Vergueiro resolve dividir a fazenda entre os filhos e coube a Ramiro, por vontade própria, o engenho hipotecado. Aos poucos Ramiro reconquista toda a propriedade do pai, fazendo com que seus irmãos tenham que trabalhar com ele ou para ele.Ganhou o respeito e a submissão dos irmãos que não perdoavam o pai pelas fugas ocasionais. Dos sete irmãos, apenas uma não seguiu os conselhos dos irmãos mais velhos, Donana, a avó de Raquel.

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O velho costumava dizer que Donana era a única filha que compreendia a sua maneira de pensar e a única que seria capaz de dar uma lição em Ramiro, tendo apenas um defeito: “ter nascido mulher”. Vergueiro estava certo, Donana mesmo viúva e com oito filhos pra criar nunca se deixou dobrar por Ramiro ou por outro homem. Donana “era uma mulher forte, era como um homem” (ASP, p. 134). Raquel identifica-se imediatamente com sua avó, e orgulha-se de ser comparada a ela. “Senti orgulho de ser sua neta e firmei comigo mesma o compromisso de não profanar a sua memória com atos de covardia, precisava aprender a andar firme, com passos miúdos e seguros: eles me conduziriam ao final da jornada” (ASP, p. 246) Teve notícias da vida que seus pais levaram juntos através das histórias da velha Lucrécia. Passou a conhecer os pais a partir daquele momento. Compreendeu que sua mãe era uma mulher muito humana, cheia de fraquezas, supersticiosa e louca por ela. Soube que seu pai antes de casar teve outra mulher, por quem fora realmente apaixonado e manteve um caso mesmo depois de casado, de quem Raquel herdou o nome. Julinda depois de saber da história nunca mais teve saúde e alegria, mesmo assim, não sentiu rancor do pai. Sentia-se mais forte agora. Resolveu ser mais amiga de seu pai, entende que ele já havia sido abandonado muitas vezes e se não fosse tarde protegeria sua mãe. Porém, nos momentos de calmaria, Raquel não conseguia deixar de pensar em Oliveira. Torcia para que Leonor conseguisse arrastar Oliveira para longe da usina, “fora do alcance da autoridade de tio Ramiro e do olhar de desprezo de Teresa” (ASP, p. 138). Alegrava-se com esse pensamento e com a proximidade do domingo, dia que esperavam juntas, ela e Leonor, a sua visita. Raquel, entretanto, tinha receio e vergonha de revelar seus pensamentos a Leonor. Diante da notícia dada por Leonor de que Oliveira não viria, Raquel se entristece por pensar que ele ficaria sozinho na casa onde ninguém lhe respeitava e nesse momento compreendeu que a vontade de tocar o ombro de Oliveira no caminho para Santa Rita não era apenas sinal de simpatia, mas de ternura. Preocupou-se também pelo motivo da ausência. Estaria Oliveira doente? Se oferece para voltar a fortaleza com Leonor, que olhando espantada, não compreende o oferecimento de Raquel. Com medo de Leonor compreender o motivo de sua preocupação, fugiu mas tropeçou e caiu com a testa no chão. Os dias se passam, o relacionamento de cumplicidade e parceria com Leonor aumenta, mas Raquel continua a esperar por Oliveira em segredo. Depois de três dias de chuva, sem que Raquel ou Leonor esperasse, ele aparece e surpreende Raquel em seus pensamentos, a emoção da protagonista é tão grande que seus lábios tremem e ela não consegue dizer nada. Sem Raquel perceber, Leonor observa tudo à distância. Quanto mais o tempo passava, maior era o processo de auto-conhecimento de Raquel que compreendia agora que a mudança que sua vida esperava era viver um grande amor no qual prazer e poder não se anulam. Ela já havia chegado a solução para o problema que Oliveira despertara nela, ele precisava de amor, de compreensão e cumplicidade, não de desprezo e culpa: olhara dentro de mim e o olhar fora muito no fundo. Compreendi de repente que nada me separaria de Oliveira. Ele podia ser um fracasso, um homem covarde e dominado pelos outros, incapaz de se libertar. Com isso aumentava o meu desejo de aproximar-me […] aceitava-o como ele era e não levava em minha aproximação o desejo de julgar e condenar: queria apenas que sua ânsia de amizade e de carinho sempre recalcada acordasse para mim[...] Desejava unicamente que seguíssemos de mãos dadas, os três, Leonor, Oliveira e eu (ASP, p. 198)

Um dia antes de voltar para cidade num processo que encerraria suas férias e levaria para cidade uma mulher completamente diferente da que chegara naquelas terras, Raquel finalmente conversa com Oliveira. Encontraram-se a sós debaixo do cajueiro onde Oliveira lhe diz que seguirá com elas rumo a uma vida nova, deixando bem claro que só o fará por sua causa. Beijam-se na pontezinha, depois de Oliveira estender-lhe a mão em sinal de ajuda. Naquele instante Raquel teve certeza de que não poderia mais viver sem carinho e que o fato de ter escolhido Oliveira para completar a sua jornada faria com que ela recusasse para sempre o sonho de uma vida tranqüila, pois desejava realizar aquele amor que a sacudia com violência e dava ao seu corpo uma sensação aguda de vida.

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Diferentemente do casamento de Teresa e Oliveira onde os pólos da opressão se invertem, no relacionamento de Raquel e Oliveira “prazer e poder não se anulam; não se voltam um contra o outro; seguem-se, entrelaçam-se e se relançam. Encadeiam-se através de mecanismos complexos e positivos, de excitação e de incitação” (FOUCAULT, 1998, p. 47). O final de A sombra do patriarca rompe com uma série de mecanismos de regulamentação e opressão do corpo. Raquel finaliza a sua jornada como uma mulher independente e capaz de lutar pelos seus desejos, mas mais importante do que isso, ela não deseja essa liberdade somente para si, ou para a mulher. Ao se aliar a Leonor e resgatar Oliveira das garras do patriarcado Raquel se torna o símbolo do socialismo que vê todos os homens e mulheres como camaradas sem se preocupar com as questões de gênero, raça, classe ou idade, pois independente de suas diferenças, todos são parte de uma mesma massa, a humanidade. 4. Conclusão Como pôde ser lido, A sombra do patriarca apresenta personagens plurais e sujeitos que antes de serem dicotômicos são atravessados por uma diversidade enorme de vetores de poder. A mulher longe de ser apenas oprimida e submissa, ela é também capaz de oprimir e de humilhar. Da mesma forma os homens não são apenas vilões, mas sofrem repressões para que assumam o papel de provedor estabelecido pela sociedade. Além disso, a obra de Alina Paim pode ser considerada inovadora para época, pois não se limita a denunciar as relações de poder, pois uma vez que suas personagens se encaminham para harmonizar os opostos, um novo caminho é mostrado. A obra dessa escritora muito mais que uma escrita feminista, é uma forma de expressão socialista, um instrumento de luta em prol da igualdade social que se reflete na relação da obra com o patriarcado. A personagem Raquel apesar de defender os interesses da mulher, não rompe com o homem, busca uma aproximação harmoniosa com o masculino. Concluímos, portanto mostrando que o realismo social do qual Paim parte para compor sua obra não se manifesta apenas através do estético, mas também pelo ideal de igualdade que permeia todo o enredo. Ressaltamos, entretanto que existem ainda muitos pontos não tocados pela nossa análise. Sequer citamos a personagem Gertrudes, símbolo da ideologia socialista na obra, não tocamos nas reflexões críticas de Raquel em relação à igreja, ou falamos das personagens subalternas apresentadas na obra. Temos esperança que os leitores-ouvintes dessa comunicaçãotexto se interessem pela obra dessa escritora que está a exigir um estudo detalhado e sintam-se convidados a preencher os espaços de análise deixados nessa comunicação. Referências BOURDIEU, Pierre. A dominação masculina. Trad. Maria Helena Kuhner. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1999. CRISTALDO, Janer. Engenheiros de Alma: o stalinismo na literatura de Jorge Amado e Graciliano Ramos, 2000 FOUCAULT, Michel. A mulher e os rapazes da história da sexualidade. 2ª ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1997. ______. História da sexualidade I: a vontade de saber. Trad. Maria Thereza da Costa Albuquerque e J.A Guilhon Albuquerque.Rio de Janeiro: Graal, 1998. ______.Vigiar e punir. Trad. Raquel Ramalhete. Petrópolis: Vozes, 2008. GILFRANCISCO. A romancista Alina Paim, acessada em março de 2008. Endereço eletrônico : http://www. arquivors.com/gilfrancisco7.htm PAIM, Alina. A Sombra do Patriarca. Rio de Janeiro: Globo, 1950.

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Tema geral: Línguas e Literaturas: Diversidade e Adversidades na América Latina PIETRO, José Ricardo. Realismo socialista no Brasil: A literatura no rumo da hora próxima, 2004. Acessada em março de 2008. Endereço eletrônico: http://www.anovademocracia.com.br/1926.htm XAVIER, Elódia. Declínio do Patriarcado - a família no imaginário feminino. Rio de Janeiro: Rosa dos ventos, 1998.

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ENTRE CULTURA POPULAR E INDÚSTRIA CULTURAL: PRÁTICAS DO BOI DE MÁSCARAS “VELUDINHO”, EM BELÉM-PA Danielle dos Reis BLANCO1 (Universidade Federal do Pará)

RESUMO: Este trabalho apresenta como principal proposta estudar de que maneira a cultura de um determinado grupo passa à democratização de certa forma que vem a contribuir com a identidade cultural de um Estado, através de vários fatores como, a intervenção governamental, o trabalho e a ideia de folclore, perpetuando e difundindo costumes de populações tradicionais e periféricas. Podemos levar em consideração que através dessas ações, em grande parte governamentais, esta cultura, que muitas vezes é proveniente das populações tradicionais, acaba perdendo um pouco de sua dinamicidade e cria a tendência de tornar-se o que teóricos da Escola de Frankfurt nomeiam como indústria cultural, termo proposto por tratar de produção em grande escala, pausterizando determinadas práticas culturais, como em uma grande indústria; tornando dessa maneira parte de um produto que tende a tornar-se comercial. O método utilizado para esta pesquisa é a história oral por meio da análise da narrativa de Seu Nivaldo, participante e guardião do boi de Máscaras “Veludinho” do Bairro do Guamá. O grupo foi criado por um conterrâneo de São Caetano de Odivelas, migrante para a periferia de Belém; neste contexto podemos perceber a dinamicidade de populações tradicionais e populações periféricas, através da observação das ideologias e costumes do grupo, bem como o estudo de conceitos como: cultura popular, indústria cultural e identidade cultural. PALAVRAS-CHAVE: Cultura popular, Indústria Cultural e Identidade Cultural.

ABSTRACT: This research work presents as central purpose the study of how a group’s culture passes to democratization, contributing to the State’s cultural identity, by several reasons like the governmental intervention, the work and the idea of folklore, spreading traditional and periphery populations habits. By these actions, in the most of them, governmentals, this culture, originally organized in the traditional populations, looses it’s dynamics and creates the tendency of becoming that the Frankfurt’s School theorists name by cultural industry, term purposed because of it’s meaning of big scale production, taking as the same thing different cultural practices, like in a big industry; becoming, this way, part of a product that tends to become commercial. The method utilized in this research is the Oral History, by the analysis of Mr. Nivaldo’s narrative, Guama’s district Mask Boi Veludinho’s participant and guardian. The group was created by a São Caetano de Odivelas’ fellow country-man, migrant to the Belem’s periphery; in this context we can note the traditional population’s dynamics and periphery populations, by the observation of ideologies and habits of the group, and by the study of concepts like: popular culture, cultural industry and cultural identity. KEY WORDS: popular culture, cultural industry and cultural identity. 1

Graduanda do curso de Letras - licenciatura em língua portuguesa da UFPA.


Anais do II Congresso Internacional de Estudos Linguísticos e Literários na Amazônia (CIELLA)

A curiosidade é a grande mãe dos avanços das ciências, das artes, da filosofia, das teorias e porque também não dizer do crescimento acadêmico. Durante muito tempo, estive curiosa com uma situação ocorrida há pelo menos uns seis anos atrás, época que ainda nem imaginava estar na universidade muito menos envolvida com algum tipo de pesquisa acadêmica, nem sabia o que significa isso ao certo. O caso que me despertou singular interesse ocorreu durante a festa de inauguração de uma rede de televisão católica que atendia parte do estado do Pará; a Rede Nazaré de Comunicação. Durante a festa houveram várias apresentações musicais, teatrais e “folclóricas”, foi exatamente nesse dia que mantive o primeiro contato, ainda que fosse visual, com o que comumente chamamos de objeto de pesquisa. Já conhecia meu objeto de nome, de uvir falar, de saber que existe, mas foi a primeira vez que vi ali na minha frente ao vivo e a cores. O Boi de Máscaras Veludinho. Porém, nesse momento o que me chamou a atenção não foi a música executada pela banda, nem os bonecos cabeçudos que freneticamente se agitavam ao som de marchinhas, nem mesmo o colorido das roupas, ou as máscaras com seus narizes compridos e finos, ou até o fato de existir um boi de quatro pernas. O que despertou minha curiosidade naquele momento, não estava dentro do grupo e seu espetáculo, era externo, pertencente ao discurso, presente na fala do apresentador da festa. Como todo bom mestre de cerimônias, ele falava das qualidades das atrações que anunciava, antes que as mesmas adentrassem ao palco. Com o Boi Veludinho não foi diferente, o apresentador chamou o espetáculo falando da importância da cultura paraense, em um discurso que em suma pregava a valorização de “nosso folclore” e como tínhamos que dar valor as nossas tradições e em nome dessa tradição estava presente naquele momento, para celebrar a inauguração de uma emissora de televisão, o Boi de Máscaras – o Boi Veludinho - que veio de muito longe, lá do município de São Caetano de Odivelas. E o apresentador repetia esse discurso como se fosse uma espécie de propaganda. Foi nesse momento que nasceu minha grande curiosidade que permeia esse trabalho e que me rendeu muitos frutos e outras grandes indagações. Como pode esse Boi pertencer ao município de São Caetano de Odivelas e vir de tão longe se esse mesmo grupo mora ali a alguns metros de minha casa, no bairro do Guamá? Essa foi a grande indagação daquela noite. Anos mais tarde, já dentro da universidade, e na posição de pesquisadora voluntária de um grupo que discute os estudos culturais, fui convidada a viajar, o destino: São Caetano de Odivelas. Chegando ao município pude conhecer uma manifestação popular de rua chamada de Boi de Máscaras, nesse momento lembrei de que anos atrás vi pela primeira vez a apresentação do Boi de Máscaras, lá em Belém, em uma situação que diferia da que enxergava ali naquele momento, então novamente fui levada à antiga inquietação, Porque o apresentador daquela noite anunciou o Boi de máscaras do Guamá como sendo de São Caetano de Odivelas? Não sabia o porquê de tal atitude. Inquieta o bastante, fui tentar conhecer o motivo que levou essa troca de lugar (São Caetano de Odivelas e Guamá). Como ponto de partida, procurei conhecer de perto o Boi de Máscaras, o do Guamá, o Veludinho; então pude perceber, que o discurso proferido pelo mestre de cerimônias anos atrás se repetia algumas vezes por meio da mídia e do Estado. Este trabalho propõe um estudo da manifestação cultural Boi de Máscaras, no objeto específico do Boi Veludinho, do bairro do Guamá. Procurando perceber as relações existentes nessa prática cultural; e em especial de que forma o Boi veludinho, como manifestação da cultura popular, se realiza em um espaço híbrido, de um lado a lógica de mercado proposto pela indústria cultural, do outro lado, a relação de identidade e tradição popular alimentada por Seu Baixinho, o dono do Boi com a sua terra e consequentemente com sua infância. Para tal estudo apresento como principal metodologia as análises das narrativas orais de Nivaldo Santos, Seu Baixinho, esposo de Socorro Viegas, guardiã do Veludinho, e da observação das apresentações do referido grupo. Antes que se inicie qualquer tipo de análise sobre determinada manifestação da cultura popular ou mesmo da indústria cultural; faz-se necessário entender esses dois termos, é claro que como toda manifestação cultural, seja ela de que natureza for não teremos aqui uma ideia purista, e sim, fenômenos e ações que muitas vezes se confundem e tornam-se contraditórios.

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Segundo o nosso já então tão muitas vezes recorrido, Dicionário da Língua Portuguesa, ou, como é conhecido popularmente, “Pai dos Burros”; o termo Cultura significa Ação, arte, modo ou efeito de cultivar; lavoura. Aplicação às coisas do espírito; estudo; instrução; saber; apuro; perfeição. Popular é tudo que se refere ou pertence ao povo, que é próprio do povo que é agrada o povo; democrático. Logo podemos deduzir que cultura popular é arte do povo, ação do povo, instrução, saber do povo. Claro que a definição aureliana não nos basta para definir cultura popular, se é que conseguiremos ou ainda se é possível obtermos uma definição, por este motivo buscamos delimitar esses termos, apoiados em teóricos e estudiosos sobre os assuntos referidos. Neste sentido temos ao que se refere cultura, várias interpretações. Nas sociedades estratificadas em classes, essas esferas da “cultura” são, na verdade, atividades especializadas que têm como objetivo a produção de um conhecimento e de um gosto que, partindo das universidades e das academias, são difundidos entre as diversas camadas sociais como os mais belos, os mais corretos, os mais adequados, os mais plausíveis, etc. Nesse sentido, “ser culto” é uma condição que engloba vários atributos: ter razão, ter bom gosto ou, numa palavra, como diz nosso dicionário, “saber, ter conhecimento, estar informado”. (ARANTES, 2006, p.9-10)

Segundo Arantes, cultura refere-se também a atividades especializadas e difundidas entre as diversas camadas sociais, como as universidades, em meios acadêmicos; nesse caso a grande inquietação seria então, se cultura é a produção de um conhecimento para difundi-lo, logo não poderíamos diferenciar do que então se denomina de cultura de massa, ou ainda, indústria cultural. Nesse caso, muitas das vezes nos acorre um grande equívoco ao acreditar que as culturas e suas variadas manifestações são fenômenos completamente diferentes e muitas vezes até opostos. Enganam-se os que pensam que a cultura popular está muito distante do que chamamos de indústria cultural, muitas vezes esses dois fenômenos de uma mesma cultura, podem conviver lado a lado. Um exemplo que podemos citar desse hibridismo cultural é o que acontece como o Boi de Máscaras1 veludinho do Bairro do Guamá, situado na região periférica de Belém, capital do estado do Pará. Para que possamos entender este hibridismo é necessário também que se tenha ideia do que é a cultura de massa ou indústria cultural, que de algumas décadas para os dias de hoje está tão usualmente em alta, tudo parece ter indícios dessas manifestações. Falar de cultura de massa tornase um tanto complicado, pois se entende que massa, como o próprio nome já nos aponta, não tem forma, é modelável; então não é adequado pensar em uma cultura nesse sentido, pois como já vimos anteriormente, cultura é produção não apenas aceitação. A indústria cultural só iria aparecer com os primeiros jornais. E a cultura de massa, para existir, além deles exigiu a presença, neles, de produtos como o romance de folhetim – que destilava em episódios, e para amplo público, uma arte fácil que se servia de esquemas simplificadores para traçar um quadro da vida na época (mesma acusação hoje feita às novelas de TV). Esse seria sim, um produto típico da cultura de massa, uma vez que ostentaria outro fato caracterizador desta: o fato de não ser feito por aqueles que o consumiam. (COELHO, 2007, p. 9).

Quanto ao termo indústria cultural, é utilizado para se referir os objetos de cultura e suas manifestações que são sobretudo produzidos em série, como em uma fábrica onde as peças são elaboradas em grande número sem distinção de uma para outra. Nesse quadro, também a cultura – feita em série, industrialmente, para o grande número – passa a ser vista não como instrumento de livre expressão, crítica e conhecimento, mas como produto trocável por dinheiro e que deve ser consumido como se consome qualquer outra coisa. E produto feito de acordo com as normas gerais em vigor: produto padronizado, como uma espécie de kit para montar, um tipo de pré-confecção feito para atender necessidades e gostos médios de um público que não tem tempo de questionar o que consome. (COELHO, 2007, p. 11).

Agora que já delimitamos os termos utilizados nesse artigo, passemos para um segundo momento que é perceber, por meio das narrativas de Seu Baixinho esse hibridismo, essa terceira margem. Boi de Máscaras é uma manifestação da cultura popular do Pará que teve origem na cidade de São Caetano de Odivelas, município localizado no Nordeste do estado, na microrregião do Salgado.

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Na entrevista realizada com seu Nivaldo, mais conhecido no bairro onde vive e tem seu boi, como Baixinho, podemos perceber em momentos diversos esse hibridismo cultural ao que se refere ao Boi Veludinho e suas apresentações. Que na maior parte das vezes se confunde com a história de nosso próprio narrador. Logo quando cheguei a sua residência para gravar suas narrativas, seu Baixinho, demonstrou ter bastante intimidade com a situação, muito provavelmente ele já esteja habituado a falar da manifestação popular da qual participa, por este motivo parecia estar à vontade mesmo que estivesse com o gravador e a caderneta de anotações nas mãos. Minha grande curiosidade naquele instante era o fato ocorrido há anos atrás na inauguração da Rede Nazaré de Comunicação, já citado anteriormente. Detive o impulso e iniciei a entrevista da maneira que achei ser a mais adequada para entender o processo ocorrido com o Boi Veludinho. Perguntei sobre a sua vinda pra Belém. Eu vim pra cá com 11 anos de idade, pra Belém, né? Mais antes disso desde de criancinha eu brincava o boi lá, no caso no município que eu morava, que eu morava em São João do Ramo. Aí foi de lá que que eu tive a ideia e sempre a gente ia pra lá né, quando era quadra junina brincar no boi de lá, aí depois devido as dificuldades né, a gente resolveu reunir o o o os mora...os conhecido parentes conhecidos que morava aqui em Belém né?2

Pelo que podemos observar na narrativa de seu Nivaldo, a vinda do boi de máscaras para Belém não aconteceu em primeiro momento, por interesse de terceiros, por intermédio ou intenção governamental, industrial ou turística; a migração da manifestação cultural se deu, sobretudo por questões de raiz emocional, “recordar a brincadeira da infância” Dessa maneira, por meio da memória da ligação com o passado, da saudade e ainda, por estar de alguma forma, ligado com o município de origem, seu Nivaldo criou então o Boi Rei do Campo, um boi de máscaras que lembra os bois de manifestação cultural lá de São Caetano de Odivelas. A brincadeira agradou tanto aos novos brincantes do boi e as demais pessoas que em pouco tempo surgiu outro Boi, o Veludinho, esse segundo boi e que de fato é o objeto de pesquisa ao qual me propus desenvolver esse trabalho, nasceu da necessidade da brincadeira, se estender e atender também outras pessoas que manifestavam desejo de participar do “boi”, o Veludinho veio então, para que as crianças também pudessem de alguma forma participar da brincadeira. Na entrevista seu baixinho diz claramente que um boi nasceu de outro simplesmente para atender a necessidade das crianças que gostavam do boi e queriam brincar. Foi inspiração já desse aqui, porque no começo o “Rei do Campo” era só adolescentes e adultos, e as crianças não podiam entrar mesmo porque a gente brincava muito... saía hoje em dia a gente não tem coragem de sair assim aqui no bairro, devido a violência. A gente saía, digamos... 5h da tarde, como acontece lá, chegava de manhã, no caso do sábado pro domingo, a gente chegava aqui praticamente de manhã. Observando a narrativa de seu Nivaldo, é possível perceber muito forte a relação de brincadeira com a manifestação cultural, não de maneira pejorativa, mas brincadeira no sentido proposto pela cultura popular. Nesse caso é importante perceber que brincadeira é o termo utilizado par designar uma prática própria da cultura popular que aqui especificamente significa sair no Boi, dançar o Boi. Quando passamos para o campo do folclore, da indústria cultural ou outras manifestações, essa designação brincadeira, “brincar no boi” pode sofrer alteração tanto na nomenclatura, quanto em sua prática. E é nesse momento que podemos perceber a transitoriedade entre as duas práticas culturais. Na própria narrativa de seu Baixinho podemos encontrar esta outra maneira de participar do boi, relacionando agora a manifestação Boi de Máscaras como um evento cultural do Estado, ou até mesmo uma apresentação, espetáculo que inclusive ganha outra dimensão, o que antes era apresentação da quadra junina, brincadeira de são João, hoje apresenta uma maior extensão, tendo o espetáculo do Boi Veludinho não somente ligado a época em que se brinca os folguedos populares, mas sim, ligado a uma condição maior, ao produto tipicamente paraense. Não, a gente se apresentava o ano inteiro, o Boi de Máscaras ele não é é digamos assim vinculado só a quadra junina, não, é o ano inteiro, em qualquer manifestação do estado a gente sempre ta aí... Olha, como dia 20 é é o Boi Veludinho é que vai pra Estação é é amamentação de mil crianças, a gente vai fazer a abertura 8h da manhã a gente vai tá lá; O modelo de transcrição utilizado neste trabalho é o modelo proposto pelo prof. Dr. José Guilherme Fernandes em seu artigo intitulado DO ORAL AO ESCRITO:IMPLICAÇÕES E COMPLICAÇÕES NA TRANSCRIÇÃO DE NARRATIVAS ORAIS, publicado no livro Rotas do Mito: Estudos e pesquisas em Literatura, Oralidade e Cultura.

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Neste trecho da entrevista, nosso narrador deixa claro que seu Boi não está vinculado somente ao mês de junho, quando costumam sair os bois para suas apresentações, além de deixar explícito que está a serviço do estado, ou seja, aqui a manifestação cultural Boi de máscaras, torna-se uma vitrine, um cartão de visita do estado do Pará, podemos até nos referir como uma indústria turística. o Boi de Máscaras ele não é é digamos assim vinculado só a quadra junina, não, é o ano inteiro, em qualquer manifestação do estado a gente sempre ta aí... Claro que precisamos tomar muito cuidado com certas afirmações, pois não podemos tratar o boi veludinho como um produto do Estado do Pará, neste momento, no momento da apresentação do seu espetáculo na Estação das Docas3 ou em qualquer outro local em que se realize num espaço estatal e, portanto turístico, o Boi Veludinho é sim um produto da indústria cultura e da indústria do turismo, porém da mesma maneira a relação primeira que Seu Baixinho tem com o Boi, com essa manifestação cultural é outra. No momento da apresentação do espetáculo, é claro que a manifestação é a vitrine, o cartão de visitas, isto é óbvio, não somente no espaço em que se realiza o espetáculo, mas também no discurso proferido durante o mesmo, quando é apresentado para o público que está assistindo/consumindo aquela apresentação. Durante a brincadeira do Boi de Máscaras, em são Caetano de Odivelas, não há discurso, é apenas a banda e os brincantes do boi que percorrem as ruas da cidade ao som das marchinhas. Quando se trata da apresentação do Boi daqui de Belém, o veludinho é diferente. Antes que se inicie de fato o espetáculo há uma apresentação quase que didática sobre o que é o Boi de Máscaras, quem são seus personagens, todos os personagens têm sua própria música e dança, numa espécie de menu para quem está consumindo o espetáculo. Faz-se importante lembrar que nenhuma manifestação cultural é purista, ou seja, o hibridismo que acontece como boi Veludinho é comum, uma vez que, levemos em consideração a maneira e a situação em que foi gerada tal manifestação, além dos fatores externos que interferem de maneira significativa nas práticas culturais. É dever nosso, de estudiosos das práticas culturais, não enxergar determinadas manifestações com olhos de preconceitos por ser isto ou aquilo, ou ainda se apropriar deste ou daquele elemento, temos que em primeiro momento entender a dinâmica que envolve determinado grupo (caso do Boi Veludinho) e saber que por se tratar de cultura, de prática cultural, esta dinâmica sempre vai sofrer e receber elementos externos que acabam contribuindo de maneira significativa para sua formação. Em outras palavras, é importante tirarmos as vendas dos olhos e perceber que sempre há uma terceira margem. Referências ARANTES, Antônio Augusto. O que é cultura popular. 14 ed. São Paulo: Brasiliense, 2006. AYALA, Maria Ignez Novais; AYALA, Marcos. A cultura popular no Brasil. 2. Ed. São Paulo: Ática, 1995. ADORNO, Theodor. Indústria Cultural e Sociedade. Ed. Paz e Terra. FERNANDES, José Guilherme dos Santos. O boi de máscaras: festa, trabalho e memória na cultura popular do boi Tinga de São Caetano de Odivelas, Pará. Belém: EDUFPA, 2007. FERNANDES, José Guilherme dos Santos (org.) Do Oral ao Escrito: Implicações e Complicações na Transcrição de Narrativas Orais. In:Rotas do Mito: Estudos e Pesquisas em Literatura, Oralidade e Cultura. Belém: EDUFPA./NUMA,2006

Estação das Docas é um dos maiores complexos turísticos do estado do Pará, onde se concentram espaços para música, dança e teatro, além de redes de restaurantes e lojas que vedem souvenirs relacionados à cultura do estado. A Estação das Docas é um dos principais palcos das apresentações do Boi de Máscaras Veludinho, tendo este, fotografias no site oficial da Estação das Docas estampando o layout do mesmo, desta maneira percebendo-se a forte ligação de produto exposto para o consumo, indústria cultural, indústria do turismo.

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ANEXOTranscrição da entrevista com o Seu Baixinho (boi veludinho) Dani: O que fez o senhor vir aqui pra Belém e como foi essa vinda? SEU BAIXINHO: Eu vim pra cá com 11 anos de idade, pra Belém, né? Mais antes disso desde de criancinha eu brincava o boi lá, no caso no município que eu morava, que eu morava em São João do Ramo. Aí foi de lá que que eu tive a ideia e sempre a gente ia pra lá né, quando era quadra junina brincar no boi de lá, aí depois devido as dificuldades né, a gente resolveu reunir o o o os mora...os conhecido parentes conhecidos que morava aqui em Belém né? Erradicado aqui em Belém. Resolvemo reunir e criar uma diretoria para criar o boi né? E assim foi que surgiu né? Em... 89 que nós fundamo a diretoria, compramos o boi e troxemos pra qui; foi daí em 90 ele fez a primeira apresentação aqui no bairro do Guamá, principalmente nas casas dos conhecidos da gente e filhos lá de São Caetano de Odivelas, e o boi trouxemo com os mesmos traços como é lá, né? Lucideia: Lá em... Eu e Seu Baixinho: São Caetano. Seu Baixinho: Apesar de que... a gente pega muita critica deles e eu acho que é dor de cotovelo, porque a gente aqui tem mais DESTAQUE, porque nós estamos aqui pra lá é mais difícil... no caso hoje, hoje o único representante do boi de máscaras foi nós aqui né? Quer dizer veio... o carimbó de Marapanim... da Vigia, veio de cada município veio um representante e nós representamos no caso São Caetano de Odivelas. Lucideia: Ah, vocês representaram São Caetano de Odivelas? Baixinho: Foi... No caso o boi de máscaras, no caso o município inteiro. Dani: O senhor veio pra cá aos 11 anos, lembra o motivo da mudança? Baixinho: Foi os meus pais que vieram trabalhar e... daí surgiu... Dani: Trabalhar em quê? Baixinho: A minha mãe sempre foi costureira, ela veio trabalhar numa alfaiataria em Belém, meu pai era pedreiro também vieram trabalhar pra cá e nós viemo embora. Dani: O senhor sempre morou aqui no Guamá? Baixinho: Aqui em Belém e aqui no Guamá também. Dani: O primeiro boi criado foi esse aqui (Rei do Campo) e o veludinho surgiu como? Baixinho: Foi inspiração já desse aqui, porque no começo o “Rei do Campo” era só adolescente e adultos, e as crianças não podiam entrar mesmo porque a gente brincava muito... saía hoje em dia a gente não tem coragem de sair assim aqui no bairro, devido a violência. A gente saía, digamos... 5h da tarde, como acontece lá, chegava de manhã, no caso do sábado pro domingo, a gente chegava aqui praticamente de manhã, assim como acontece lá em São Caetano, né? A gente saía aqui em Belém também fazendo isso. Lá em são Caetano eles vão fazendo de casa em casa, aqui não, a gente ia fazendo nos bairros, conhecidos, a gente mandava a carta e eles davam a resposta que sim e podia chegar a hora que chegasse, podia chegar de manhã, numa distancia de 50 metros a BANDA começava, tocava, os pessoal da casa levantava e todo mundo vinha pra rua receber o boi, aconteceu assim logo nos primeiros anos, aniversário, comemoração. Lucideia: Época né? Baixinho: Não, a gente se apresentava o ano inteiro, o Boi de Mascaras ele não é é digamos assim vinculado só a quadra junina, não, é o ano inteiro, em qualquer manifestação do estado a gente sempre

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ta aí... Olha, como dia 20 é é o Boi Veludinho é que vai pra Estação é é amamentação de mil crianças, a gente vai fazer a abertura 8h da manhã a gente vai tá lá; Dani: Quem ensinou o senhor a fazer a máscara? Baixinho: Olha, isso aí ele é tecido, esse paneiro é feito para para pessoa que dança né, sob medida, aí o paneiro é feito lá em São Caetano, porque aqui em Belém não tem quem saiba fazer. Agora a pintura, a cobertura, tudo a mão... Dani: E o Boi? Baixinho: É lá também. Dani: Aqui em Belém vocês são o único grupo de Boi de máscaras ou tem outro? Baixinho: Aqui em Belém é... vai completar 19 anos, olha por exemplo o nosso estilo até o pavulagem copiou, porque... era só agente que tinha música assim... do Boi e eles usaram e hoje eles estavam lá com a gente também, a gente se dá bem. Dani: Os músicos fazem parte do grupo? Baixinho: Fazem, o boi de máscaras tem que ter orquestra, se não não vai (pausa) A orquestra faz parte do boi sim. Inclusive até isso a gente incentivou a e os brincantes no caso quando era criança a aprender a música hoje em dia o o músicos nossos eram brincantes...um palhaço ou um vaqueiro hoje em dia tão tocando... meus filhos são todos músicos, eu sou músico, meu genro é músico quer dizer tudo isso era brincante e os outros que participam. Dani: E o seu pai, fazia parte do Boi lá em São Caetano? Baixinho: O pai foi o primeiro compositor desse boi aqui, meu pai, meu irmão, minha mãe era costureira... e todos brincavam. Dani: Qual é a diferença daqui pra São Caetano? Baixinho: Aqui em Belém a gente tem uma organização, a gente é é digamos assim a gente reúne e um tal lugar a gente vai brincar quer dizer... assim com quantos brincantes o boi começa ele termina, lá em S.C a diferença é o seguinte, porque lá, cada um compra a sua roupa, o dono do boi, ele não tem a preocupação de comprar as roupas pros brincantes... cada um compra o seu. Aqui não! A diferença que tem aqui é que TUDO aqui é nosso, desde o capacete ao meião, sapato até o sapato a gente compra... é nosso e... no caso lá em S.C se eles começam com 50 mascarados, quando termina é 2, 3 ás vezes só o boi. É devido... vão cansando, vão embora, a roupa é deles, vão embora não querem nem saber. Aqui se começa com 50...termina com 50. Dani: Vocês são uma associação? Baixinho: Não. Aqui não, não é associação a gente ainda não quis ainda... fazer associação porque? A gente pensa assim, uma associação é... tem que ter uma diretoria, tem que ter um tempo estipulado né... pra... gente não perder uma coisa que foi nós que criamos então a gente não cria associação de jeito nenhum. Dani: Vocês têm CNPJ? Baixinho: Não, não tem. Porque aqui em Belém é só nós e... a gente tem um bom relacionamento com os governos, no caso com a prefeitura, o estado todinho, todas essas gestão que passaram como a gestão passada foi, fechamo um contrato de 4 anos direto com a gestão passada do do Jatene, quer dizer e agora a gente já ta com a Anna Júlia de novo. Deu um tempo depois que o Jatene saiu a Anna Júlia cortou, agora não, agora já voltamos de novo, já tamos aí na ativa, qualquer manifestação nós estamos aí com eles.

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Dani: Da outra vez que eu conversei com o senhor, o senhor falou de uma intriga que o povo de São Caetano de Odivelas tem com o boi daqui de Belém... Baixinho: É, é porque quando eles, eles pegam uma imprensa é... em vez de proucurar mostrar dizer como é o trabalho que é assim, é tal ; eles querem é “meter o pau na gente”, então eu não fico é... bravo com eles como dizem, né? Fico até satisfeito, sinal que a gente ta incomodando eles, é... tá incomodando eles é... então é sinal que está dando certo as coisa aqui em Belém pra gente. Dani: Vocês costumam ir pra lá? Fazer apresentações? Baixinho: Já, já participamo do festival do caranqueijo umas duas vezes, mas teve que... que a policia guardar a gente lá, porque ali o pessoal são fanáticos, eles chegam assim (mostrando na carcaça do boi que estava no local) querendo passar a mão no boi e já vai três ou quatro giletes, segura aqui (mostrando a mão) quando a gente vê ta todo fatiado o boi, cortam o couro. Assim eles fazem lá na cachoeira que é unido, né? Eles não gostam do boi da cachoeira, quando o boi vai pra São Caetano de Odivelas tem muita briga, eles cortam o boi e com a gente eles queriam fazer isso com a gente, só que a gente... não dá, não dá trela pra eles. QUE INCLUSIVE nos primeiros anos, eu trazia vinte ou trinta brincantes lá, eles vinham todos pra cá pra casa, vinha digamos na sexta feira iam embora na segunda feira né aí... vinham todo e até hoje a hora que eu quero buscar lá brincante, porque ta faltando aqui, eu vou lá, trago, não tenho problema nenhum, é alguns que tem tipo de...rivalidade porque lá tem dois bois, é o Faceiro e eles brigam lá... o Tinga e o Faceiro, eles não se unem, quando um vai pra rua o outro não vai, porque senão é briga na certa. Dani: E como os bonecos são feitos lá? Baixinho: Não, o o o artista que faz o o boi, ele faz o Rei do Campo, o Veludinho, o Faceiro, o Tinga e o resto dos bois lá, inclusive ele é até meu parente ainda. Dani: E as roupas são confeccionadas aqui? Baixinho: Daqui é, as máscaras olha aí...(mostrando as máscaras que estavam no local) tudo aí, nós vamos pintar ainda. Dani: Quem ensinou vocês à confecção? Baixinho: Não, a gente sabe que tem que fazer a forma, tipo de sapato, não a gente faz. A mediada é isso aqui (aponta para a testa e para o queijo) e a largura é aqui ó. Aí faz a forma. Dani: E quem são as pessoas que participam do Veludinho? Baixinho: Participam, tem gente aqui...do do Guamá, Marambaia, Tapanã...enfim, quase todos os bairros tem um ou dois. Daqui a gente vai uma turma...quando chega LÁ, a gente se encontra, aí a gente já leva todo o material daqui, as roupas, já leva pra lá. Pois é, é é assim... e lá em S.C tem uma vez que eles copiaram já da gente né, é que as vezes eles não chamam porque eles nos chamam, que nós somos a farsa do boi...de máscaras...que dizer que...que a gente copiou deles né? Mas eles copiaram da gente, porque eles não tinham, hoje eles têm uma pessoa pra cantar, apresentar. Mais isso aqui, isso quem criou tudo foi nós. O capacete lá era feito só com fitilho e o nosso com um, um brilho maior digamos, com aquelas fitas brilhosas e tal, e hoje em dia eles já usam... quer dizer já é uma coisa que a gente criou aqui. Dani: Onde o sr. Consegue esse material? Baixinho; Isso aqui eu consigo lá no... Ver-o-peso, cipó, titica... O público deles é um e o nosso é outro. O público daqui é mais exigente, lá não. Olha lá, por exemplo a percussão, a percussão é uma percussão barroca, eles fazem o curimbó, aqui não, a gente já usa a percussão de de de metal. Essa aqui (mostra a percussão) lá eles não usam essa aqui, porque uma dessa aqui vale por três deles. E

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aqui em Belém tinha várias denominações né? Era boi de máscaras, boi dos cabeção, cordão de boi... Porque lá eles não gostam desses bois daqui de duas pernas, eles chamam de boi galinha... Dani: Vocês têm algum patrocínio? Baixinho: NÃO, é do bolso. Porque é o seguinte, as nossas apresentações todas são cobradas porque ninguém dá nada pra gente e... no caso uma saída, sem sair daqui de casa, só dizer que vai sair, a gente cobra em torno de 300, 400, 500 reais; os músicos também recebem, as crianças, os jovens, o grupo todo, eles lancham tudinho, esse negócio, eles...o transporte. Aí tem miniaturas que que quantos fazem a gente vende, cada apresentação que a gente faz, a gente leva e vende tudo. Inclusive a gente já mandou pra França, pro canadá, o museu de artes do Rio de Janeiro tem. Inclusive a gente recebe pedido aí de fora, o pessoal da globo, a...a...nós gravamos a novela com a Claudia Raia, eles pediram, fizeram o pedido.

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A CRÍTICA DILETANTE E MILITANTE DE RAUL POMPÉIA Danilo de Oliveira NASCIMENTO (Universidade Federal de Mato Grosso – Campus Universitário de Rondonópolis)

RESUMO: Durante os anos de 1893 a 1895, Raul Pompéia (1886-1895), publicou na Pandora Crítica, seção literária do jornal A Gazeta de Notícias e também no Jornal do Comércio, crônicas sobre crítica de arte e literária. Nessas seções de jornal, Raul Pompéia divulgou suas concepções estéticas de seu Caderno de Notas Ìntimas. A partir do exercício crítico, é possível identificar a dupla natureza dessa crítica: uma, reconhecida como diletante e expressão da denominada: impressão sintética em que se valoriza a obra a partir da simpatia ou antipatia do crítico, dos efeitos da leitura, enfim, da recepção da obra e detrimento dela. O outro tipo de crítica exercida por Raul Pompéia é a chamada militante, em que o cronista combate os produtos culturais e artísticos tais como os romances folhetins e o ambiente cultural em torno da imprensa. PALAVRAS-CHAVE: Literatura Brasileira; Imprensa Brasileira; Crítica Literária; Raul Pompéia.

RÉSUMÉ: Pendant les annés de 1893 à 1895, Raul Pompéia (1886-1895) a publié dans la Pandora Critique, la section littéraire du journal A Gazeta de Notícias et aussi dans le Jornal do Comércio, des chroniques sur critique d´art et littéraire. Dans ces sections de journal, Raul Pompéia a divulgué ses conceptions esthétiques de son Cahier de Notes Intimes. À partir de l´exercice critique, c´est possible identifier la double nature de ce critique: une, reconnue comme dilettante et l´expression de la nommée: l´impression synthétique en qui se valorise l´oeuvre à partir de la sympathie ou antipathie du critique, des effets de la lecture, enfin, de la reception de la oeuvre en détriment de lui. L´autre type de critique exercée par Raul Pompéia c´est l´appelé militante en que le chroniqueur combat des produits culturels et artistiques tel que des romans-feuilletons, et aussi, de l´atmosphère culturelle environ de la presse. MOTS-CLÉS: Littérature brésiliene; Presse brésiliene; Critique littéraire; Raul Pompéia.


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A época do jornalismo praticado por Raul Pompéia (1863-1895) é considerado por especialistas como Marcelo Bulhões (2007) como período importante para o desenvolvimento da imprensa jornalística e a sua feição industrial conhecida em nosso tempo. Seu reconhecimento “como atividade lucrativa e aparelho industrial de produção de notícias diárias dá-se apenas no final do século XIX e início do século XX” (BULHÕES, 2007, P. 23-7). A tradução de romances folhetins franceses, a publicação de romances folhetins brasileiros à moda dos franceses e a redação de crônicas podem ser considerados como moedas para os jornalistas nesse mercado de informações, de especulações e de publicidade e “laboratório” para os ficcionistas que necessitavam desse “mercado” para sobreviver. Além de saciar a vontade de escritores jovens e aspirantes às glórias da Letra Nacional, a escritura de crônicas servia como “amparo financeiro” a esses aspirantes, situação pouco nobre e origem de uma série de ressentimentos, mas fundamental para tornar visíveis autores como Machado de Assis e Olavo Bilac, estes, casos atípicos nesse cenário, pois além da notabilidade, recebiam remunerações nada desprezíveis (BULHÕES, 2007, p. 49). Apesar de focalizar sua prática jornalística na cobertura, relato e comentários dos fatos políticos, sobretudo, durante os últimos anos da sua vida, é possível notar que a arte e a literatura, em específico, mantiveram-se, de uma forma ou de outra, presentes naquilo que se convencionou chamar de “jornalismo político” associado, portanto, ao “jornalismo literário”. Se o jornalismo e suas técnicas se fazem presente na ficção pompeiana, esta também se revela naquele de maneira sutil e variada: suas concepções sobre arte e sobre arte literária, suas críticas de arte e de literatura emergem na escritura das crônicas e artigos políticos, na leitura desses textos podemos identificar a aplicação de suas teorias sobre artes encontradas em seu caderno de notas íntimas, arte considerada “embriaguez da vida” ou como “vaidade em perpectiva” (POMPÉIA, 1982, p. 138, IX Vol.) Essa arte que embriaga é contraditoriamente seu veneno diário, se o fazer artístico trapaceia a hora da morte, também corresponde a consciência da sua dependência existencial estética: “O êxtase é uma decepção singular que nos prostra para cima.” (POMPÉIA, 1982, p. 142, IX Vol.) As artes e a arte literária são rastros deixados em toda sua produção não ficcional, assim como crítica e teoria sobre as artes o são em sua produção ficcional, assim ele cumpre o conselho e o segredo de exercer a criação artística como uma boa higiene contra os desgostos da vida e para os que querem cometer suicídio, conforme preceitua, com certa ironia cruel, em crônicas do dia 13 de janeiro de 1890. O exercício do “jornalismo político” denota marcas de estética e do estilo literários de Raul Pompéia, a prática do “jornalismo literário”, por sua vez, destaca o combativismo tendencioso característico do escritor em suas crônicas e artigos políticos. A redação de textos políticos ocorre simultaneamente à escritura de seu principal e fracassado projeto estético: Canções sem Metro. As crônicas sobre arte e literatura, produto imediato do “jornalismo literário” de Raul Pompéia ladeiam a publicação de poesias em prosa de Canções sem metro e apontam em nível de “discurso teórico”, no primeiro caso, e em nível de “discurso estético” no segundo caso, a tendência combativa do autor nutrida de suas frustrações como escritor de ficção em exercício de jornal. O jornalismo literário de Raul Pompéia também criou “condições gerais para a existência de uma vida intelectual intensa” (NETO, 1973, p. 88), além de contribuir para a compreensão de uma série de contradições e ironias referentes à produção e recepção da sua ficção, o que de alguma forma o singulariza como cronista e como ficcionista. Como expressão de prazer e desgosto de Raul Pompéia, a imprensa, como uma das “redes institucionais basilares” (BRANDÃO, 1997, p. 73) possibilita a publicidade das obras do autor e também a publicidade do exercício crítico de Raul Pompéia sobre outros escritores e poetas. A crítica a estes, bem como a publicação da ficção pompeiana, seu percurso e percalços, denotam as concepções e visões do cronista sobre arte e literatura e apontam a existência de um sujeito que se como jornalista lida com o vulgar e o ruim cotidianamente, como escritor de ficção lida com a “impossibilidade” de conexão entre imprensa e arte literária. A imprensa do século XIX possibilita a consolidação do regime democrático, por isso a convivência diária com o ruim e com o vulgar, convivência sempre desgostosa para Raul Pompéia,

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em específico ao se tratar daquilo que ele rotulou de “literatura espontânea” de jornal: comercial ou da moda. O exercício da crítica literária pelo cronista é sempre expressão do horror às letras brasileiras da segunda metade dos oitocentos por que sentimento imediato da constatação de que a imprensa precisa vender jornal que vá ao encontro dos interesses de temas e assuntos dos leitores da época, some-se a isto o fato de que donos de jornais e que Raul Pompéia exercitava com muita seriedade: literatura e crítica. É neste meio excelente de vulgarização, de mercantilidade e de esterilidade que viceja a literatura do cronista, ela, de alguma forma, é também exemplo de “divagações jornalísticas” (VERÍSSIMO, 1936, P. 10), por isso exercício contínuo da imprensa e influência dos produtos dela: romances fancarias e romances naturalistas, essa convivência não deixa de representar certo contágio: Raul Pompéia escreveu O Ateneu em três meses e publicou-o na Gazeta de Notícias, jornal popular e ousado de propriedade de Ferreira de Araújo cujo objetivo era penetrar em todos os lares a um custo de 40 réis, romance, portanto, resposta e submissão ao ritmo mercadológico da imprensa e aos interesses de leituras do público consumidor de jornal. Romance que adota, sob certa perspectiva, a escrita jornalística, mas que afirma a subjetividade de quem lembra como indício de sua radical repulsa “pelas mais diversas formas de publicidade”. (SUSSEKIND, 1987, p. 59) Literatura e crítica de arte e literária publicadas na “cozinha” do jornalismo são produtos marginais e, reflexo da presa da imprensa, por isso, como matéria de jornal “organizada pela impaciência do leitor” (WALTER BENJAMIN, 1987, p. 125). Elas surgem uma da outra e possibilitam a prática uma da outra, espécie de intersecção que, de algum modo, dificulta estabelecer limites de fronteira: a imprensa possibilita a publicação de romances e poesias, delas e nelas é possível identificar o exercício crítico contra as produções literárias publicadas na imprensa e contra a imprensa que as publica: a ficção é crítica e a crítica também se torna, sob certa medida e intenção, ficcional.1 É desse ritmo simultâneo e apressado que encontramos as chamadas “ilhas ensaísticas” sobre teoria da narrativa pompeiana em textos ficcionais e não ficcionais do escritor. Além disso, tal ritmo aponta a existência de um sujeito que não era profissionalizado, mas um autodidata como a maioria dos intelectuais e literatos da época, ou seja, jornalista sem formação específica em jornalismo e romancista sem formação específica para escritor. Nesse contexto, Machado Neto (1976) aponta a inexistência da Universidade como fator determinante de tal situação e indica Sousândrade e Oliveira Lima, “ambos formados em letras no exterior” (NETO, 1973, p. 102) como exemplos de exceção. A falta de especialização, no entanto, não impediu Raul Pompéia de tornar público, de maneira indireta e/ou integral, os apontamentos e rascunhos estéticos de seu caderno de notas íntimas em suas crônicas e em O Ateneu, basicamente. A crítica literária e de arte assim como a ficção de Raul Pompéia ocorre em período da juventude que se amadurece em termos de imprensa e de literatura no país, de alguma forma, seu exercício perpetra as relações entre “literatura e técnica” ou a redefinição da literatura como técnica, por isso “processo embrionário de profissionalização do escritor” (SUSSEKIND, 1987, p. 13). Raul Pompéia publicou suas críticas de arte e literária em vários jornais, mas efetivamente na Pandora Crítica, seção mantida no jornal A Gazeta de Notícias e também em seções do Jornal do Comércio. Suas crônicas sobre artes e literatura seguem a lógica da crítica a nível jornalístico: resume a obra, analisa-a brevemente e emite “uma opinião no sentido de orientar o público leitor”, em miúdos, ela expressa características delineadoras desse tipo de crítica, no geral, baseada em simpatias e desafetos, impressões pessoais, discussões em torno da recepção da obra, e, mesmo que, o cronista não hesite em “desvalorizar” poesias, contos e até livros de crítica literária a partir do reconhecimento de seus produtores, a escolha das obras já é “uma valoração invariavelmente positiva” (LYRA, 1980, p. 91). Substancialmente, o alvo da crítica pompeiana é a mediocridade do ambiente cultural, artístico e literário do Brasil da segunda metade do século XIX evidente não apenas a partir dos produtos culturais e artísticos, mas do comportamento de seus produtores, ambos sob o olhar crítico de Raul Pompéia. O exercício da crítica de jornal é promoção ou não de escritores e artistas assim como identificação da imprensa como canal que os torna visíveis a despeito da qualidade das suas produções. Além do O Ateneu, exemplificam tal linha de raciocínio os romances de Coelho Neto, Fogo Fátuo e A Conquista e o romance de Duque Estrada, Mocidade Morta. 1

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Raul Pompéia caracteriza seu exercício crítico como combate ao amadorismo, à improvisação e à impulsividade, indícios imediatos da péssima literatura de jornal, esta, espécie de “postura” de rapazes “sequiosos de atrair a attenção, ainda por meio escandalosos ou pela solicitação ignóbil do noticiário amigo” (VERÍSSIMO, 1936, p. 10). Ironicamente, o jornal que publica matérias sobre a vida e o meio literário é também alvo de suas críticas no instante em que o cronista aponta a imprensa ou a atividade de jornalista com uma das causas da inconsistência das produções literárias.2 A imprensa como local (não) conveniente para a divulgação de poesias e romances também o é para a sobrevivência e para a promoção social, deste modo, é possível colocar a situação nesses termos: o problema é decorrente de o literato utilizar a imprensa para sobreviver e que nas horas vagas produz sua literatura ou é o jornalista pretender-se à condição de escritor ou de poeta? De uma forma ou de outra, constata-se a impossibilidade de viver de literatura em uma época cujo único meio de produção, recepção e consumo foi o jornal, utilizado, de um modo ou de outro como atestado do nível cultural de seus ‘contribuidores’. Além do calor carioca, Raul Pompéia aponta a atividade jornalística, pelos homens de letras, como meio de sobrevivência e a popularidade proporcionada pela imprensa como dois fatores substanciais para a compreensão dão ritmo das produções literárias e de romances, livros de contos e de poesias de sua época, produtos da “literatice”(NETO, 1973, p. 216). O cronista rotula os literatos que sobrevivem dos trabalhos na imprensa de “operários das letras”, aqueles que também de uma forma ou de outra se empenham em modificar o status quo: Quando em nosso país é tão frequente o caso de cederem os lutadores da atividade intelectual, principalmente nos domínios da literatura quer pelo desfalecimento do cérebro, quer pela livre desistência da vontade, desanimada pelo pouco entusiasmo que despertam os esforços artísticos, é admirável a persistência indefesa de alguns homens, na peregrinação dessas jornadas a que se abalançaram, convidados somente pela miragem das esperanças da mocidade, e pela fé corajosa da inexperiência. Esses homens são como uns privilegiados de juventude pérpetua. E os que começam, mesmo quando aparentam por eles certo pretensioso descuido que vem da informação que possuem de novidades que por acaso os antigos não puderam logo assimilar, surpreendidos na suficiência cristalizada dos seus velhos, os que começam admiram-nos intimamente e os invejam, como triunfadores que são da escolha de fortes que o tempo apura e consagra. Nesse meio dessa exceção de raros ninguém mais notável do que o Sr. Pereira da Silva, o veterano dos veteranos da literatura nacional. Em vão passam-lhe os anos sobre a fronte, fazendo mais alvas as neves do encanecimento. Sob a aparente decadência da vida física, viceja-lhe a pujança jovem do espírito, com todas as chamadas ilusões do credo glorioso das artes, com a disposição perene para o trabalho” (POMPÉIA, 1982, P. 54, VII Vol.)

Ao lado daqueles, poetas, romancistas, que se empenham pela promoção das artes e da literatura estão jornalistas médicos, bacharéis, funcionários públicos e professores na corrida pela auto-promoção sob a “regra de ouro da ajuda mútua” que destaca os amigos como gênios talentosos, bonitos e de rara sensibilidade (NETO, 1973, p. 137) A presença de poetas na administração pública durante o Governo Provisório foi alvo constante das críticas de Raul Pompéia durante os anos de 1880 a 1886. Para o cronista, as repartições públicas eram “refeitório de filhotes”, cuja divisa era “calar e comer” (POMPÉIA, 1982, p. 76, VII Vol.), o governo que absorvia poetas colocava em risco o país (POMPÉIA, 1982, p. 20-1, VII Vol.), a exceção de Júlio Ribeiro que ocupou a cadeira no Instituto Nacional de Instrução Secundária e Aníbal Falcão, uma das glórias da mocidade brasileira e fiscal de um banco da Capital (POMPÉIA, 1982, p. 23 VIII Vol.) Raul não perdoou nem Machado de Assis: O discurso ressentido de Raul Pompéia com respeito à imprensa como espaço de criação e divulgação literárias reproduzse nas entrevistas e desabafos de alguns escritores brasileiros dos séculos XI e XX copiladas por João do Rio no inquérito chamado O momento Literário. No geral, a imprensa é vista como um sofrimento necessário para os escritores e força mal empregada nas sociedades modernas, um problema complexo e um bem relativo; apesar de ‘escola’ onde os literatos exercem a arte da palavra, é também balcão que facilita a propaganda da obra, enche de vento e vaidade escritores e artistas. A imprensa substitui o livro, ajuda a formar o público leitor, prepara este público para a leitura literária, mas torna o escritor sempre dependente desse público que espera notícias leves e ligeiras, comércio de roupas e carne verde; crônicas políticas, comentários sobre assuntos da vida burguesa e conservadora, chalaça pérfida, versos mordazes ao invés de obra forte da intelectualidade, portanto, não é a imprensa a culpada da qualidade de romances, poesias e contos, mas o público que não tem instrução.

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Tema geral: Línguas e Literaturas: Diversidade e Adversidades na América Latina O governo vai absorvendo os poetas. O Sr. Pedro Luiz está Ministro, o Sr. Machado de Assis Oficial de Gabinete.... justamente quando encetou na Revista Brasileira a publicação do seu romance Memórias de Brás Cubas, muito interessante para que todos desejem a sua continuação. É ligeiro, alegre, espirituoso, é mesmo mais alguma cousa: leiam com atenção, com calma; há muita crítica fina, e frases tão bem subscritadas que, mesmo pelo nosso correio, hão de chegar a seu destinatário. É portanto um romance mais nosso, uma resposta talvez e de mestre uma e outra cousa; e será um desastre se o Oficial de Gabinete absorver o literato. Esperemos que não (POMPÉIA, 1982, p. 20-1, VII Vol.)

A vaidade não é, portanto substrato da obra, da qualidade da obra e nem reflexo dela, mas decorrente da publicidade jornalística, uma “perigosa máquina de fazer reputação” (POMPÉIA, 1982, p. 165, VII vol.). Em detrimento da qualidade da crítica, está a popularidade de escritores que publicam romances fancarias ou arremedos da escola de Zola e de críticos que elogiam apenas, estes, na concepção de Raul Pompéia, poeta parvenu e snob, o qual “em questão de modesta pisa, brutalmente em violetas” (POMPÉIA, 1982, p. 101-2, VII Vol.). As críticas sociais de Raul Pompéia atingem também as agremiações literárias ou “corporação de trabalho” (POMPÉIA, 1982, p. 219, VII Vol.) como núcleos em que a literatura é produto de ostentações, de vaidades e de boas relações, menos de talento ou de genialidade. São igrejinhas ou coteries (NETO, 1973, p 126) que protegem seus associados e facilitam certas benesses como a publicação e divulgação de suas obras, é neste contexto de elogios fáceis que se afirma a presença do filho de José de Alencar, Mário3 e, diante do fato, resta ao cronista o anúncio de Lágrimas e sua sutil depreciação: (....) um artista novo ainda, que talvez consiga reproduzir a glória do poeta que foi seu pai.” (POMPÉIA, 1982, p. 108, VI Vol.) O empenho em desenvolver as artes e propagá-las a partir das agremiações literárias soa, no mínimo, como utopia para o cronista. O objetivo real delas é instituir e se auto-instituir uma casta, portanto a afiliação a elas é “privilégio de raros”, situação que incentiva e reforça a exclusão no instante em que facilitam a associação dos pares. Os (não) critérios ou critérios não explícitos de admissão de poetas podem provocar animosidades e apontam para sua tendência natural de se formar panelinhas de “apóstolos de ideias e das formas” cujo passatempo de “mestres do apólogo” e “catedráticos do símbolo” é “debater teses platônicas e contemplar o ideal.” Em suma, para o cronista, a finalidade dos grêmios é proporcionar “as colisões de amor próprio” (POMPÉIA, 1982, VI Vol.) Semelhante ao seu alvo de crítica, o cronista também tinha seus pares e suas preferências. Semelhantes aos outros também fazia parte de uma panelinha chamada Clube Rabelais,4 por isso sua atividade crítica de jornal não é apenas ataque a má literatura – a de moda, a de promoção social e à venda – mas elogio da boa literatura, fruto da sua concepção de arte literária, de acordo com as suas simpatias e reflexo do empenho dos poetas elogiados em renovar às letras brasileiras. A despeito da agitação política de 1891, poetas escritores como Taunay, Pereira da Silva “o incansável literato ancião”, Guimarães Passos, autor “conhecido entres os jovens poetas” e Aleluia, de Raimundo Correa inovam a literatura brasileira com suas publicações inéditas (POMPÉIA, 1982, p. 152, IX Vol.). A inovação do cenário literário brasileiro ao lado da qualidade das produções artísticas e literárias é preocupação de campanha de Raul Pompéia em suas crônicas diárias. Assim como no campo social e político, o cronista considerou a juventude e o aparecimento de jovens talentos como única forma da renovação da poesia e das artes de maneira geral no Brasil. RP defende a juventude Mário de Alencar foi desafeto de muitos escritores do século XIX, pupilo de Machado de Assis, venceu Domingos Olímpio, autor de Luzia-Homem, na Academia de Letras. Machado Neto (1973) apontou tal fato como exemplo do funcionamento do sistema literário caracterizado pela presença de agremiações literárias que atribuíam ‘falso prestígio’ a seus associados. 4 Fundado por Araripe Júnior, O Clube Rabelais consistia na organização de um jantar mensal que reunia homens de letras e artistas, no total 15 membros. Raul Pompéia foi o membro mais entusiasmado ao ponto de inaugurar o clube em 1892 com um jantar organizado por ele no restaurante Stad Munchen, no largo do Rocio. (Vide, Rodrigo Otávio. Minha Memória dos outros, p. 41-4. 1979. Última série. 3

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artisticamente criativa, no entanto a idade artística e intelectual do indivíduo não é, necessariamente, sua idade cronológica, conforme disserta em crônica do dia doze de outubro de 1890, o termo juventude o qual ele faz referência em várias crônicas e em vários momentos significa “maior ou menor lucidez de espírito”. A partir da dissertação apresentada nessa crônica e da comparação com outras, podemos constatar uma série de termos correlacionados à juventude conforme a significação atribuída pelo autor e seu interesse em mencioná-lo, citá-lo e aludi-lo: juventude é ato ousado de romper com o estado constituído, de renová-lo mesmo que a partir do uso da força seja a física ou a intelectual, fundamentalmente. Juventude é não se adequar ao sistema, mas valer-se do conhecimento e dos talentos para modificá-lo; é estado de transição e de euforia, esta última decorrente daquela. Suas reflexões críticas sobre a condição e o papel do jornalista na promoção de literatura, sobre o sistema do qual ele fazia parte e que de um modo ou outro promovia poetas e escritores, perpetraram também a campanha em busca de ‘meninos prodígios’ em nome da renovação do jornalismo literário e das letras brasileiras. Apesar de o próprio Raul Pompéia ter sido considerado pelos seus pares como uma revelação dessa busca, ele reconhecia, assim como Olavo Bilac e José Veríssimo, que a presença da juventude na imprensa e nas letras brasileiras exercia tanto influência positiva quanto negativa. O sonho dos adolescentes brasileiros era publicar livros, um dos sintomas do “vício literário” na percepção bilaquiana: livros para amigos, traças e para embrulhar manteiga (BILAC, 2007,p. 129), constatação ressentida compartilhada com José Veríssimo que via no cenário literário do século XIX, espaço para a literatura como “tarefa só de moços” (VERÍSSIMO, 1936, p. 11). De modo geral, o empenho da juventude no que diz respeito à criação literária é sempre vista como resultado de impulso, de inconsequência e de irresponsabilidade, neste sentido, o cronista entende que “meninos prodígios” podem ser “meninos boêmios”. Menino como Artur Duarte5 senão prodígio pelo menos dotado das extravagâncias boêmias de Teófilo Gautier, Petru Borel, de Murger e de Adrien Lélio, poetas da boêmia francesa de 1830 a 1848. A invasão sacrílega ao cemitério de São João Batista pelo poeta e mais dois amigos com o intuito de beber, rir e filosofar sobre o túmulo de um irmão conota a tendência dos jovens literatos brasileiros de reproduzir o que acontecia nos grandes centros europeus e em Paris particularmente. O herói da extravagância quer não apenas a literatura, repetição das boêmias de Paris, “caravanas de esfaimados”, “agremiados em clubs de indigência”, “grêmios de loucura coletiva”, “ciclosinhos dos birônicos da imensa miséria falsificada”, mas o “viver espetáculo”, a veneração da arte, “cousa vaga, ideal”, o desdém ao burguês, seus costumes, suas preferências. As jovens promessas do cenário literário brasileiro querem a vida à rebours e provocar escândalos como Artur Duarte, um “menino predestinado”, uma “criança-poeta” de destino triste, de cujo “toque de inocência comovedora” escreve Boêmias, livro de poesias que a despeito das suas “estrofes singelas, transparentes, luminosas”, é um livro ruim por que produto de uma boêmia postiça e teatral: “Toda a limpidez de sua alma perdeu-se. Ele comprou esgares afetações no comércio dos conhecimentos da roda literária; inventou uma pilhéria seca, epilética, que parecia sair mordida dos dentes cerrados; inventou a indispensável orgia, para parecer perdido à ausência da família, para parecer necessitado, para ser como os da França: les enfants perdus de La vie, les insociables, rebelles à toute loi d´ordre et de regularité, obstine à rester, quand même, synonimes de froid, de fain, de desoeuvrement at de debraillé. (1) Arranjou um riso postiço de molas perras, um riso molesto, um riso careta, com que modificava o semblante logo depois de alguma cousa à toa, que dizia em tom de revelações de intermundo. “O poeta fácil, o rapaz vivo foi substituído por uma espécie de velhote enfermiço e vieram as crises exageradas de amor. Aquele mesmo amor, tão cândido, tão espontâneo das Boêmias, tomou uma máscara de papelão dura e antipática de cabotino metido a trágico. O primeiro Duarte que era de fundo meigo e melancólico, no tempo das aparências joviais e de bons versos, investiu-se do propósito permanente de fazer a comédia da desventura. Sofria, é certo, e quem lhe ler os versos verá quanto coração havia na sua mágoa. Mas vestiu a caricatura do seu pesar. Era necessário que o boêmio parecesse um grande desgraçado. Artur Duarte é, considerando o sistema de classificação de Machado Neto (1973), exemplo de boêmia doré, do grupo luzidio cujos integrantes são caracterizados pelo mundanismo, pela afetação e pelo dandysmo e do qual Elísio de Carvalho seria um padrão. Ao lado deste, marcou presença o grupo maldito de boêmios marginais, pobres, ébrios e caspentos de um Lima Barreto. 5

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Tema geral: Línguas e Literaturas: Diversidade e Adversidades na América Latina Foi buscar ao armário das dores o mais frio espeto, como fora ao cemitério, de pândega, buscar uma cruz, e o enterrou no próprio flanco, com dous palmos de cabo a mostra, para que se visse que era um cruciado. E quando saía, trôpego e debruçado sobre um bengalão de octagenário, era como se fosse a dizer: Olá! Não passe sem ver: aqui vai um homem que à dor sucumbe!... por fim não tinha mais consciência do artifício. O artifício apoderou-se dele como a parasita que suprime o tronco. E ele passou a sofrer realmente a tortura de seu exagero. Veio e enfermidade. Duarte não se compadeceu do seu próprio mal. Carregava ironia sobre o seu sofrimento. Irritava a morte com todas as temeridades. Injuriava o leito e a medicina. Havia de morrer na rua, como boêmios.” (POMPÉIA, 1982, p. 20-1, X Vol.)

O relato da extravagância de Artur Duarte e seus amigos no periódico A Rua do dia oito de junho de 1890 guarda também as reflexões preliminares de um dos pseudônimos de Raul Pompéia sobre a relação existente entre vida literária, boemia em específico e a produção literária. Caracterizado como “literato isolacionista” (NETO, 1973, p. 51), Raul Pompéia ao lado de Adolfo Caminha foi considerado um dos principais críticos da boemia, embora “tivesse sido um espirituoso boêmio em sua juventude” (NETO, 1973, p. 94), suas críticas constantes à vida boêmia de jovens promissores das letras brasileiras destacam sua visão séria e comprometida com o ofício de escritor: “Todos têm ideia do que são os azares da vida boêmia. O burguês os encara com horror, como a negação da regra pacata de bem viver que é o seu ideal. E tem razão nesta crítica instintiva, apesar do esplendor seducente com que a literatura tentou iluminar esse sistema de existência ao acaso, de vida avulsa, por dias destroncados, por horas a esmo, dispersas no tempo como um punhado de cisco sobre o mar, e que a facilidade humana da ilusão tem suposto ser mesmo existência. Isso não é existência. É antes a negação da existência, é o descalabro da existência, é o desdém de existir, é o suicídio pela inconsequência e pelo descuido, é a morte pela desordem. O boêmio não considera a vida em conjunto, nem para a atividade nem para o caráter. Mal encara o momento presente; e safa-se dele de qualquer maneira sem cogitar de estabelecer a mínima unidade entre a vida que viveu na véspera e a que vai viver no dia seguinte, sem urdir nenhum programa de luta pelo êxito. Tem de acabar miseravelmente, já se sabe, como uma mistura indefesa contra as condições do seu meio, que o envolveram e que ele não tomou jamais em consideração.” (POMPÉIA, 1982, P. 544-5, VIII VOL.)

O cronista entendia que para garantir a qualidade de romances e poesias, o artista ou “espíritos literários” deveria se afastar da vida e nela exercer o que ele denominou de “curiosidade de diletantismo”, para o homem-artista cada minuto ou segundo da existência é apenas um bibelot. Na verdade, o discurso aburguesado de Raul Pompéia contra a vida boêmia sinaliza um processo e projeto de combate as mais diversas manifestações desse estilo de vida iniciado em sua época e radicalmente posto em prática durante a administração de Pereira Passos. Neste projeto, posto em prática nos últimos anos do século XIX e primeira década do século XX, objetivo era “aburguesar” ou civilizar a cidade do Rio de Janeiro, buscou-se combater a serenata, o violão, o carnaval à moda brasileira, as pensões, restaurantes e hotéis baratos; proibiram-se as festas populares e religiosas; promoveram-se a perseguição ao candomblé e a caça aos mendigos, esmolares, pedintes, indigentes, ébrios e prostitutas, assim como os boêmios, todos eram alvos da chamada “Ditadura da Regeneração” (SEVCENKO, 2003, p. 45-8). Apesar de a literatura e as artes de uma maneira geral não terem feito parte direta do tal projeto de “aburguesamento da paisagem carioca”, Brito Broca aponta o “desenvolvimento e a remodelação da cidade e a fundação da Academia Brasileira, em 1896” como dois fatores que contribuíram para a decadência da boemia (BROCA, 1992, p. 7). Diante da mediocridade do cenário literário nacional, qualquer iniciativa para modificá-lo ou inová-lo já é uma atitude de ardência juvenil, mesmo que isso seja deflagrado pelo veterano Pereira da Silva e com a publicação de um livro que não tem em absoluto a ver com a renovação da literatura: Considerações sobre a poesia épica e dramática. Sob “a aparente decadência física” do ex- Senador “vicejalhe a pujança jovem do espírito, com todas as chamadas ilusões do credo glorioso das artes, com a disposição perene do trabalho.” (POMPÉIA, 1982, p. 219, Vol. II). No que pese a questões de crítica literária, também o cronista polemizou os sistemas de Machado de Assis e Pardal Mallet quanto à utilização do critério idade como fato único de competência

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e primazia e assim de organização, por épocas literárias, dos poetas e escritores na busca e identificação de “meninos prodígios” da literatura brasileira. O interesse fundamental dessa classificação a partir da idade cronológica é, portanto, descobrir se em nossa literatura, até-então, houve ou não a existência de talentos literários precoces e significativos. A tentativa de Machado de Assis e Pardal Mallet em organizar a literatura brasileira, segundo o cronista, apenas deixou mais evidente a desordem de nossas letras e a velhice de Machado de Assis, assim como suas próprias ideias a respeito da Geração de Novo e Velhos:6 “Simples como à vista se julga, esta questão tem contudo dado que fazer aos cogitadores de crítica miúda que aqui abundam. Nada mais simples em princípio. Novo é quem está com a nova forma da arte, com a mais virginal e a mais recente descoberta da crítica, e quem festeja as ousadias novas do talento e as caprichosas audácias do merecimento literário. Velho é quem está ainda na teoria de que a arte de agora tem de vazar nos moldes da arte de algum tempo, a qual para servir de molde, é especialmente denominada clássica; velho é quem não lê mais, e cristalizou-se numa erudição bolorenta de há dezenas de anos e pretende impor, de modo birrento e impertinente, esta ciência, ou antes esta ignorância do seu tempo; velho é quem detesta, por esse mesmo atoupeirado instinto clássico, todas as formas imprevistas que o talento, infinito Proteu, com seu ilimitado direito de variedade, capricha em assumir. .................................................................................................................................................................................... “Quem primeiro desnaturou o sentido verdadeiro da expressão novos e velhos em literatura, foi o Sr. Machado de Assis, um velho, dos tais que, há alguns anos, pelas páginas da Revista Brasileira, inventou a chamada Nova Geração, em relação à qual a moderníssima geração dos novos não é mais do que nova consequência dos mesmos princípios. Havia escritores de certa idade, e, depois destes, começaram a aparecer alguns jovens que manejavam a pena. Em um meio literário mais digno desse nome, o agrupamento dos escritores velhos ou jovens para a classificação seria feita por escolas, segundo o gênero ou a filiação espiritual de cada um. Como os escritores que tínhamos e os que iam aparecendo não davam para isso, ou porque não eram numerosos, ou porque não caracterizavam expressamente, nas suas tendências, o Sr. Machado de Assis, querendo classificá-los, classificou-os pela idade: velha e nova geração. A cousa era fácil e ficou feita. Mas também como era confusa, daí nasceu uma balbúrdia, que por uma porção de anos fez da pequena e da grande literatura de nosso país um verdadeiro sarrilho. ....................................................................................................................................................................................

A organização do sistema literário a partir da chamada ‘geração’ caracteriza-se, em princípio, pela identificação das ‘zonas de datas’, períodos ou zonas histórica distribuídos de sete anos antes e sete anos depois. A discussão em torno do conceito ‘geração’ é considerada complexa pela maioria dos estudiosos do assunto, mas útil e necessária, tal discussão se acentuou fortemente na França e Alemanha dos séculos XIX e XX. Vários estudiosos, denominados de ‘geracionistas’, refletiram sobre tal problemática, entre eles Julius Pertesen, Julían Marías, Fidelino de Figueiredo e Ortega y Gasset, este último sempre recorrência de críticos brasileiros que se debruçam sobre o assunto. Para que um indívíduo faça parte de uma ‘geração’ é necessário que, além de nascer nesta ‘zona de datas’, tenha afinidades com outros indivíduos acentuadas pela mesma estrutura, pela mesma conjuntura, experiências ou vivências, deste modo, o conceito ‘geração’ não pode ser reduzido à ideia de ‘grupo de idade’ sobretudo quando se reconhece dois fatores básicos que determinam a Geração: idade e ideologia. A categoria idade, portanto, é elemento que não determina indivíduos como pertencente ou não a uma dada ‘geração’, mas ‘certos caracteres típicos, que lhe emprestam fisionomia comum’ (Massaud Moisés, 1974), sob a verificação de certos eventos, influências, crenças e reinvindicações (Geir Campos, s/d). Ortega y Gasset indica a idade de quinze anos como o desabrochar de uma nova geração, quinze anos como fato histórico e não biológico, ou seja, quinze anos de um indivíduo inserido em um contexto histórico, assim reconhece que as gerações não se sucedem de forma linear no curso da História, mas devem ser consideradas como‘corpo social íntegro, com sua minoria seleta e sua multidão’, espécie de ‘compromisso dinâmico entre massa e indívíduo’, ou uma ‘variedade humana’ (Massaud Moisés, 74:253). A cada quinze anos, ‘índice flexível’, percebe-se o chamado ‘revezamento geracional’ caracterizado pela alteração de comportamento/ pensamento e identificado entre as idades de 30 a 45 anos, é durante esse período que ocorre a luta entre gerações: de um lado aquela que luta pela primazia, pela conservação e defesa das conquistas realizadas, de outro, a geração substituta dos pioneiros, é nesta perspectiva que se define a ‘história como resultante do conflito das gerações mais novas contras as mais velhas’ (Sant´Anna, 2004:116-7) Beatriz Berrini (2003: 58) ao identificar as Gerações de 70 em Portugal e no Brasil, aproxima-se da linha de raciocínio de Ortega y Gasset ao acentuar que faz parte de uma Geração, indivíduos da mesma idade participantes de uma ‘plêiade’. No caso do Brasil, Berrini aponta a ‘ação política’ como elemento caro, assim, a partir desse critério, identifica alguns escritores e poetas da chamada Geração de 70 brasileira, mas exclui Raul Pompéia sob o argumento equivocado de que o autor, apesar de ocupar cargos políticos ( e não públicos!) possuía uma reduzida ‘dimensão política’ no contexto do final do século XIX.

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Tema geral: Línguas e Literaturas: Diversidade e Adversidades na América Latina Isto é mau, não há dúvida. Estes rapazes não querem compreender que a única maneira de ser novo é ter talento, muito talento e.... envelhecer em cima dos livros...” (POMPÉIA, 1982, p. 43-4, Vol. VIII).

As crônicas de RP que anunciam a publicação de romances, livros de contos e poemas mais do que operarem uma crítica detalhada desses livros, averiguam até que ponto seus autores revelam-se jovens, no que diz respeito a comportamentos ousados e às inovações estéticas. A qualidade literária deve ser resultado direto desses fatores, no entanto, a impulsividade de escritores, cronologicamente jovens ou não, produz também muita literatura sem qualidade, fruto de puros devaneios, amadorismo ou simples afetação. Se Martins Júnior, autor de Visões de hoje é jovem tribuno brilhante a concorrer uma cadeira na Faculdade de Direito de Recife, (POMPÉIA, 1982, P. 106-7, VII Vol.) J. Morais e Silva é autor que, apesar da idade, revela uma série de defeitos do livro Santuários decorrente de sua presa em compô-lo e publicá-lo, apesar de o livro honrar o autor, “não parece obra de um homem amadurecido na meditação” (POMPÉIA, 1982, p. 146-7, Vol. VII). De todos os jovens poetas a publicarem livros de poesia e a utilizarem a imprensa como porta que dá acesso à visibilidade pública e à fama, consequentemente, nenhum irritou mais Raul Pompéia do que Heitor Guimarães, autor de Versos e Reversos e objeto da “benevolência dos prefeciadores”, ou seja, do elogio fácil de Augusto de Lima. Raul Pompéia transcreve, integralmente, no suplemento literário A Estação do dia quinze de setembro de 1888, o anúncio do livro de poesias de Heitor Guimarães e desfaz a conjecturas de Artur Duarte: o poeta não tem nada de Baudelaire, nem de Campoamor, pode ser inteligente, mas como poeta é suportável. Ataque de ira ao poeta, ao livro do poeta e aos críticos do poeta: “Os elogios que lhe fez Augusto de Lima e muitos dos outros dos que lhe fizeram os seus benevolentes amigos, esses ainda não os mereceu de nenhuma forma o jovem autor dos Versos e Reversos. Porque o seu livro não passa de um livro medíocre não é outra cousa senão uma coleção de versos, como os que todos os rapazes escrevem aos quinze anos, entre duas fumaças e uma lição de gramática. ....................................................................................................................................................................................Os Versos e Reversos tem frouxos, tem pequenos defeitos de gramática, tem um certo descuido de forma em quase todas as suas páginas, e não tem nenhuma originalidade. Logo, a conclusão: Não valem como amostra de talento; valem muito pouco, encarados como promessa de cousa melhor.” (POMPÉIA, 1982, p. 65, IX Vol.).

No ato da crítica aos romances de livros de poesia, o cronista questiona a vocação de poetas e romancistas para a literatura, caracteriza-a como um sentimento repentino e inconsistente ou moda entre rapazes inexperientes e inconsequentes. Deste modo, se de um lado compreende o impulso e os ardores juvenis como fonte de criação literária, ou a superornamentação como via que delimita o lugar do “artístico e do homem de letras em meio ao espaço jornalístico” (SUSSEKIND, 1987, p. 77), considera-o este último como razão mesma da superficialidade das produções literárias, por isso razão da sua irritação diante de publicações cujos autores, afetados pelo beletrismo, pela helenofilia de um Coelho Neto, pela gramatiquice (NETO, 1973, p. 216), pelo orientalismo e pelas esquisitices parisienses, modificam um sem-número os títulos de seus periódicos e revistas ou do aparecimento e desaparecimento repentino deles: “Espera-se com justificada ansiedade o aparecimento da Vida Moderna, revista literária por Artur S. Oliveira, colaboradora por tudo quanto tem um nome literário entre nós, por tudo quanto é jovem e maneja a pena com imaginação e cultivo de inteligência, no sentido das ideias novas, da vida moderna.... Infelizmente está tardando. Decididamente há um grande impulso para a publicidade. Vamos ter as Novidades ou o Anúncio (o título não está ainda bem assentado) prepara-se o Combate e já veio à luz a Verrina, por Alberto de Carvalho. A Verrina – não se assustem com o título, desta vez o nome não dá precisamente a conhecer a causa – parece, ocupar-se-a exclusivamente de política. O estilo é franco, a linguagem carregada e trop de frases! Por que prejudicar a verdade com o exagero!” (POMPÉIA, 1982, p. 19, Vol. VII).

O anúncio da publicação de romances, livros de contos e poesias sinaliza o status do cronista no cenário literário, suas preferências literárias e estilísticas assim como suas concepções sobre literatura e arte. Revestido do ‘cargo’ de cronista, Raul Pompéia desdenha, irrita-se, menospreza e

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entedeia-se com os livros que chegam as suas mãos e com a obrigação de emitir juízos de valor sobre eles, seu exercício de crítica literária, portanto expressa sua (in) tolerância, sentimento relacionado de alguma forma com seu método impressionista ou, segundo o cronista, a aplicação da chamada “impressão sintética” durante o comentário do que ele considera boa arte ou boa literatura. Na seção do jornal Gazeta de Notícias denominada Pandora Crítica é possível apreender aspectos que definem a atividade crítica de Raul Pompéia e que a justificam, tais como o reconhecimento de que o crítico – de jornal - é um diletante superior cujo objetivo é traduzir, explicar, vulgarizar a obra e descrever os efeitos inteligentes de composição, desconsiderando a moralidade e a pessoa do autor, esta deve desaparecer na “universalidade estética” (POMPÉIA, 1982, p. 49, Vol. X). Em Club Haydn, seção do Jornal do Comércio, criado com o intuito de combater o mau gosto e “a invasão depravadora do enxame de produtos ordinários da baixa arte, que enchem as estantes dos apreciadores fluminenses” (POMPÉIA, 1982, p. 35, Vol. X). Pompéia, ao dissertar sobre a recepção da música clássica, denomina a utilização de métodos críticos de análise como um ato de desencanto e de violência contra o objeto da fruição e também contra o fruidor: “(....) A tecnologia é o escalpelo da linguagem, que macera as cousas delicadas, estuprando com a análise a virgindade das corolas, ou perturbando, com a observação fria, a vibração que nos deixa no espírito uma harmonia fugitiva. .................................................................................................................................................................................... A análise mutila o conjunto e o dispersa. A impressão artística é uma síntese simultânea e chocante, que morre, desde que se queira apreender por partes. Quando se quiser saborear uma impressão sintética de conjunto, a preocupação do estudo deve ser posta de banda. Daí, a inconveniência analítica da tecnologia, que é a classificação, irrompendo na arte.” (POMPÉIA, 1982, p. 34, Vol. X).

Na apresentação de Poesias de Olavo Bilac em Pandora Crítica do dia oito de outubro de 1888, Raul Pompéia, na introdução do texto, aponta o trabalho crítico como uma conspiração contra a própria crítica, espécie de “missão ingrata” ou castigo que torna o crítico um insensível à beleza da arte, assim como o exame da anatomia das flores estraga a primavera, o crítico que perscruta o processo “acaba por perder a sensação do cenário”. Ao rejeitar regras e métodos de leitura e análise de literatura e de arte, Pompéia valoriza a compreensão de ambas como algo inviolável, espécie de palco construído acima da platéia ou uma tribuna acima do público, elas devem ser contempladas à distância e não dissecada na proximidade, o espectador deve admirar a arte como um templo de portas fechadas e o crítico deve conspirar contra os métodos especializados de leitura: “O melhor sistema de apreciar um livro é o do leitor comum, que o sente desprevenido de teorias, aferindo imediatamente pelo gosto e não pelas regras, com o propósito de ver conforme o autor nos mostra, acolhendo o sentimento como o sentimento se desprende, admirando sem discutir a admiração, agradecendo no fim ao escritor o benefício moral da leitura.” (POMPÉIA, 1982, p. 61)

A apresentação de autores e o anúncio da publicação de suas obras indicam a carência de “princípios normativos” 7 e a valorização daquilo que Raul Pompéia denominou de “impressões sintéticas”, o ato crítico valoriza uma linguagem sinestésica e imagética ante a utilização de termos, noções e conceitos de teoria da narrativa. Os contos de Rapsódia são “bolhas de espumas levíssimos e mimosos”, (POMPÉIA, 1982, p. 78, Vol. VII) Versos de um simples é um volume meigo, cuja ternura da linguagem denota “um sabor de intenso pessimismo” (POMPÉIA, 1982, p. 426, VIII Vol.) Dias de Sol, de João Ribeiro, é um “mimoso livrinho” de poesias. (POMPÉIA, 1982, p. 02, VI Vol.) Se os livros que não lhe agradam provocam-lhe tédio, os que lhe agradam são coloridamente significados como as poesias de Guimarães Passo, “vivido pontilhado de ouro sobre azul” (POMPÉIA, 1982, p. 426, VIII Vol.) os contos de Domício da Gama “cores violentas do estilo concreto” ou as poesias de Olavo Bilac: Como crítica de jornal, Raul Pompéia não segue o ritual crítico em que se observa basicamente três etapas consideradas por Luís Alberto Brandão, são elas: autorização, categorização e conclusão. Vide: “Estratégias literárias no discurso crítico. In: Scripta.

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Tema geral: Línguas e Literaturas: Diversidade e Adversidades na América Latina “Tivemos finalmente as Poesias de Olavo Bilac, o esperado volume, um brinde à literatura nacional, que seria recebido no templo das artes como a rosa de ouro na igreja das crenças, se houvesse organizado no mundo a liturgia do Belo.” (POMPÉIA, 1982, p. 83, Vol.VI)

pintura:

O comentário crítico, portanto, revela o “olho pintor” ou o olhar do espectador de uma “(.....) Os Contos a meia tinta colorem-se na névoa dos seus tons esquivos, dos seus matizes transparentes, como a primeira mão de uma aquarela, obtendo o escritor esse gênero de forma que tão bem exprime o título do seu livro por meio de um jogo de termos abstratos, que se auxiliam uns aos outros, que se completam, que se aprofundam, que se cavam por assim dizer uns dentro dos outros como as abóbadas sucessivas de uma galeria fantástica através do pensamento profundo; conseguindo-o mais com o auxílio de imagens de pura o seu colorido senão um rápido traço de observação requintada ou uma perspectiva desmaiada que lhe serve de fundo longínquo a um outro quadro.” (POMPÉIA, 1982, p. 230, Vol. VIII)

Raul Pompéia, quando examina os livros de seus pares e das suas simpatias estéticas, exerce a “crítica da delicadeza” e instiga os sentidos visual, táctil e gustativo. A leitura dos livros de literatura “salivam” a sua imaginação por que têm gosto de morte ou de adolescência: “Ao voltar-se a última página dos Versos de um simples tem-se do conjunto a impressão incerta, entre doce e pungente, de certas representações antigas da Morte em forma de menino – bela criança atraente, que se vai tomar por Cupido, o pequenino deus da vida.... quando se nota que é grave demais seu manso olhar, e está a seu lado, em vez da alegre aljava, um facho voltado para a terra.” (POMPÉIA, 1982, p. 426, Vol. VIII).

Ou sobre Rapsódia: “Ingênuo e simples, temos classificado o livro; diríamos mesmo infantis os sedutores contos, se o qualificativo não estivesse estragado pela ironia e se não fosse o assunto geral do livro um tanto forte para a inocência desse epíteto. É antes um livro de adolescência. Os contos de Coelho Neto transportam-nos para uma Arcádia ideal de jovens pastores, que a gente vê a cada instante, idealizados como sombras e levando rebanhos que desfilam sobre a paisagem vagamente, como se desenovelam névoas. Parece-nos ouvir Filetas através da narrativa, ou a própria voz argentina de Clóe ou de Dafne. Para que o sonho da pastoral seja completo, há ainda quadros bucólicos inspirados na poesia campesina da Bíblia.” (POMPÉIA, 1982, p. 249, Vol. VIII).

A crítica pompeiana atinge não apenas as obras, os poetas, o contexto, os leitores, ela atinge também as tendências da crítica contemporânea como a de cunho biográfico, no entanto, a referência a este método de crítica revela a ironia no que diz respeito à vida literária de RP: a de que sua obra mais visível, O Ateneu foi e continua sendo objeto de “crítica biográfica”, “monografia psicológica” ou do que ele rotulou em Pandora Crítica do dia sete de junho de oitenta e oito de “confusão perturbadora” ou “revista anedótica do escritor.” (POMPÉIA, 1982, p. 48, Vol. X). Raul Pompéia sugere, em crônica do dia cinco de abril de 1891, que Os Contos a meia tinta, de Domício da Gama deveriam ser intitulados de contos psicológicos por que o contista inclina-se “à análise miúda dos fatos espirituais” uma expressão de seu “amor elegante ao bibelot”(POMPÉIA, 1982, p. 229, Vol. VIII), o estilo de Domício da Gama é intensamente psicológico. Alguns aspectos da psicologia e da filosofia são considerados pelo cronista ao menos como reflexão crítica também em comentários sobre Versos de um simples, a tendência ao pessimismo e às dissertações filosóficas reveladas em sua ficção tem relação direta, no comentário sobre o livro de Guimarães Passos, com “ímpetos de erotismo doente”, trata-se de “nirvanismo filosófico” e de “queda para as orgias da vida”. Ao elogiar o poeta por não se perder em dissertações lógicas sobre a dor do mundo, Pompéia destaca o perigo de se utilizar a poesia para exercitar a filosofia o que acaba redundando em “didatismo dissertante e insípido.” (POMPÉIA, 1982, p. 425, Vol. VIII). Ao lado de Versos de um simples estão a crítica de Sílvio Romero às Ondas, de Luís Murat, Padre Belchior de Pontes e A carne, de Júlio Ribeiro e os Dias de Sol, de João Ribeiro, como importantes na identificação do raciocínio estético de RP sobre erudição, inspiração e criação literárias. No geral, os dois últimos autores lhe chamam a atenção ou pelo grau de erudição, pela tendência à investigação

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intelectual no âmbito da linguagem ou grosso modo, pelo cultivo da “literatura didática”: estudo gramatical ou filológico como o que fazia Júlio Ribeiro(POMPÉIA, 1982, p. 24, VIII Vol.). Apesar de Júlio Ribeiro, segundo o cronista-crítico, ter realizado trabalhos de menor importância, sua vocação para colecionar vocábulos, espécie de bibelot não o impediu de escrever os citados romances, um deles, A Carne, seria considerado um dos notáveis monumentos da arte brasileira (POMPÉIA, 1982, p. 23, VIII Vol.). O aparecimento de romances e livros de poesias escritos por filólogos permitem a Raul Pompéia constatar e concluir que a erudição ou a “coleção de bibelot” não necessariamente bloqueia a inspiração ou esteriliza as sensações e sentimentos poéticos por que conforme escreveu em seu caderno de notas íntimas: “As estrofes medem-se pelo fôlego do espírito, não com o polegar da gramática” (POMPÉIA, 1982, p. 140, Vol. X). Ao menos no caso do filólogo em questão: “O caso literário do Sr. João Ribeiro representa a exceção dos superiores, de arte resistente, que se não esterilizam para sentir, na preparação estudiosa dos elementos, que podem eficazmente aprender a escultura dos músculos na desfibração sangrenta de uma mesa de anfiteatro A erudição suprime o artista.... que engano! Esteriliza unicamente o artista de menos fôlego, cuja faculdade criadora tende a extenuar-se por si, mesmo sem o exercício de uma aplicação de espírito diversa da elaboração artística. Se o talento da síntese, primeira condição de toda a arte, existe vigorosamente, que não há tréguas de raciocínio, armistício de entusiasmo que lhe mate o ardor. .................................................................................................................................................................................... O livro todo está cheio de primores, como estes, de descrição, ou de inspiração lírica, porque o talentoso gramático sabe conjugar tão bem os mistérios delicados do coração como o próprio verbo amar.”(POMPÉIA, 1982, p. 227, Vol. VI).

Referências BENJAMIN, Walter. “A obra da arte na era de sua reprodutividade técnica.” In: Magia e técnica, arte e política, 1992. BILAC, Olavo. Melhores crônicas. SP: Global Editora, 2005 BRANDÃO, Luís Alberto. “Estratégias Literárias no discurso crítico”. In: Scripta. Belo Horizonte, vol 1, p. 72-85, 1997 BROCA, Brito. A Vida Literária – 1900. RJ: J. Olympio, 1960. BULHÕES, Marcelo. Jornalismo e literatura em convergência. São Paulo: Ática, 2007. NETO, A.L. Machado. Estrutura social da República das Letras. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 1973. POMPÉIA, RAUL. Crônicas I. In: COUTINHO, Afrânio (org.). RJ:OLAC, 1982. POMPÉIA, RAUL. Crônicas II. In: COUTINHO, Afrânio (org.). RJ:OLAC, 1982. POMPÉIA, RAUL. Crônicas III. In: COUTINHO, Afrânio (org.). RJ:OLAC, 1982. POMPÉIA, RAUL. Crônicas IV. In: COUTINHO, Afrânio (org.). RJ:OLAC, 1982. POMPÉIA, RAUL. Obras. In: COUTINHO, Afrânio (org.). RJ:OLAC, 1982. SEVCENKO, Nicolau. Literatura como missão. 2ª Ed., São Paulo: Companhia das Letras, 2003. SUSSEKIND, Flora. Cinematógrafo de Letras. São Paulo: Companhia das Letras, 1987. VERISSIMO, José. Letras e Literatos. Rio de Janeiro: José Olympio. 1936.

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NAS TRILHAS DO RITORNELO EM ROSA

Davina MARQUES (Universidade de São Paulo)

RESUMO: Reafirmando as potências que existem na filosofia e na literatura, através de encontros entre textos de Gilles Deleuze-Félix Guattari e um dos contos de João Guimarães Rosa, este trabalho discute o funcionamento do conceito de ritornelo em “Campo Geral”. O objetivo é explorar como o autor usa a canção e uma espécie de refrão intensivamente no enredo para, em seguida, buscar de que maneira isto acontece na sua adaptação para o cinema em “Mutum”, de Sandra Kogut (2007). PALAVRAS-CHAVE: Ritornelo; literatura; cinema.

ABSTRACT: Reassuring the potencies of philosophy and literature, through connections between Gilles Deleuze and Félix Guattari’s writings and one of João Guimarães Rosa’s short stories, this paper presents the concept of ritornello in “Campo Geral”. Our aim is to explore how the Brazilian author uses the songs and a refrain intensively in the plot, in order to explore how it works in the movie “Mutum”, by Sandra Kogut (2007). KEY WORDS: Ritornello; literature; cinema.


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1. Nonada Nonada barulho das bombas do centésimo comando explodindo o Cristo Redentor, o senhor mire e acerte essas crianças são as hordas clonadas... Marcelo Ariel Alguém me faz ouvir algo que nunca ouvi antes e de repente toda uma comunidade, todo um povo e sua vida, se abre à minha frente. Silvio Ferraz Lembremo-nos da ideia de Nietzsche: o eterno retorno como pequena cantilena, como ritornelo, mas que captura as forças mudas e impensáveis do Cosmo. Gilles Deleuze e Félix Guattari

Em uma espécie de eterno retorno, encontro e re-encontro a filosofia na arte. A potência de uma se detecta na outra em movimentos que sempre voltam e sempre se diferenciam... O plano de composição da arte e o plano de imanência da filosofia têm a possibilidade de deslizar um pelo outro e criar outras imagens do pensamento. O artista não faz filosofia, o filósofo não faz arte, mas as fronteiras são bastante tênues em alguns deles. Não há síntese dessas potências, mas há autores que são dotados de uma energia híbrida, de uma força que os instala no entre da filosofia e da arte. Na cena contemporânea, mais do que ter a “possibilidade” de uma deslizar na ou pela outra, a arte e a filosofia são exatamente marcadas por esse atravessamento contínuo, por esse malabarismo. Nas discussões sobre a arte na atualidade, tendem a surgir palavras como hibridismo, com--posições, interferências, sobre--posições, itinerâncias, errâncias, conjunções. A perspectiva comparativista, neste sentido, ganha força e mostra-se bastante profícua. Na epígrafe que marca o início deste texto, o poeta paulista, Marcelo Ariel, se detém sobre o seu conceito de nadificação (a filosofia na arte), aproveitando-se de nonada, do escritor João Guimarães Rosa, e nos remete a outro lugar, um lugar de reencontro com um outro povo. Ao invés do universo rosiano do sertão mineiro, povoado por jagunços, uma outra vida surge em nossa frente, a das crianças das favelas de Vila Socó, de Cubatão/SP. Algo “novo” aconteceu: sentimos a emoção da leitura de Rosa encravada em outro espaço, marcada por um outro tempo. Os tiroteios, as armas, as hordas, a periferia, tudo surge escancarado em nossos olhos em um misto de percepção e de sensibilidade aguda que, sabemos, transpassa o texto de Ariel, e que, sabemos, existe na escrita de Rosa. Nonada? 2. Potencialidades Podemos observar facilmente que tanto o artista quanto o filósofo criam em relação intensiva com a Terra e que esta, enquanto território, é também um lugar de passagem, marcado por algo que Deleuze e Guattari (2002) chamam de ritornelo. Este conceito, criado a partir da música (a arte na filosofia), funciona para pensar as conexões e as retomadas que estamos constantemente produzindo. Entre os animais, esses autores citam como exemplo o canto dos pássaros, que marca o território, mas também assume funções de cortejo, de necessidade de alimento, de chamado, de alerta... Por outro lado, lembram que a canção que se repete, que volta, entre os grupos humanos, pode ter características litúrgicas, sociais, profissionais, até cósmicas. Ao se retomá-la, coloca-se algo em movimento. Podemos dizer que o mesmo acontece com uma frase ou uma ideia que ecoa em um texto, ou em um filme. O conceito de ritornelo nos permite pensar a arte e a filosofia como algo que retorna, mas que se repete na diferença. Eterno retorno nietzschiano. Por isso, é possível dizer que o ritornelo

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explora de maneira especial as forças da criação. Há algo nascendo. As palavras estão todas aí, a serem repetidas, exploradas, usadas. As notas musicais, então, tão poucas... Mas a sua combinação, aquilo que faz com que fiquem juntas, o agenciamento que fazem delas os artistas, os filósofos, transforma-as e nos apresenta outra coisa, que não tem a ver simplesmente com uma novidade ou com o surgimento de algo que ainda não existe, como no caso de uma invenção científica. A potência do ritornelo é uma força, uma sensação de ressonância em nós, uma presença que surge e escapa, um salto para fora, um bloqueio daquilo que é o mesmo, a apresentação de um outro quadro de relações. E de repente “vemos” algo antes não visto. Na arte, é como se chegássemos a uma espécie de êxtase, uma alegria, uma sensação que nos movimenta para além do previsto. O ritornelo compõe-se de ritmos. Na arte literária, explora o igual-desigual instalando momentos críticos que servem de liga ou de passagem a personagens. Há uma mudança de direção que o ritmo impõe. O ritmo nos faz aterrissar, ou alçar vôos. A repetição produz o ritmo, mas leva à diferença (passagens, pontes, travessias). Acompanhamos as personagens nesses movimentos. No cinema, o ritmo se faz talvez, ainda mais visível-audível, na combinação imagem-som, película-canção. A ausência ou a presença de sons acompanhando determinada cena produzem efeitos, intensificam uma ideia, causam impressões. O ritornelo é territorializante, ou seja, há um elemento territorial nele. Na arte, este território é formado por elementos expressivos que deixam de ser meramente funcionais e que dão uma certa cor ao texto, ao filme. Uma assinatura. O território organiza, desorganiza, reorganiza. Desterritorialização. Reterritorialização. Na literatura, uma paisagem melódica e/ou um motivo territorial formam rostos e personagens rítmicos, extremamente conectados à terra, e enriquecem as relações internas, dão impulso à ação dramática. Por exemplo, as personagens de Guimarães Rosa são geomórficas: formam-se no meio, surgem nas relações, no entre alegria-tristeza, força-perigo, fé-medo, marcados no território... Seo Aristeu, o médico das boas novas, da canção, em “Campo Geral”, aparece e muda o rumo dos acontecimentos, como se pode ver no texto. Devido às intensividades da terra, temos dificuldade de perceber o que a ela pertence e aquilo que se manifesta através dela. O que é exemplo de ritornelo em “Campo Geral”? A agressividade do Pai? O lirismo da Mãe? Um é bruto, com “osso no coração” (ROSA, 1984, p.116). Ela, por sua vez, é dotada de uma sensibilidade que nos envolve, é a boca da poesia no conto. Podemos fazer a análise do ritornelo em “Campo Geral” em duas partes: observando o uso da canção (que coloca algo em movimento) e de uma frase ou uma ideia que ecoa no texto (que dá consistência a um caminho). Os elementos se articulam em acoplamentos, agrupamentos, passagens, sempre entre, produzindo afrontamentos, partidas, conexões. Proponho pensar, no caso deste conto, que a alegria (ou o par alegria-tristeza) seja esse centro de onde tudo acontece em redes. Na arquitetura de sua obra, Rosa desenvolve, de maneira intensa, o interesse pelo micro, pelo movimento imanente, registrando as forças das populações sertanejas. Essa ótica sobre as menores coisas e as crianças propicia a Rosa a composição de um plano que desterritorializa e reterritorializa o espaço do sertão, preparando uma espécie de mudança de foco, de passagem nas personagens. O olhar, a maneira como se vê o mundo, passa por uma transformação. Travessia. Em “Campo Geral”, há um território que contém e sufoca, mas será ele mesmo o lugar da transformação: o Mutum, que pode ser entendido como o primeiro ritornelo. O narrador se põe a contar sobre um certo Miguilim que ali vivia e recorda seu desejo, na volta de uma viagem para casa, de contar à mãe um segredo, que ele tinha ouvido falar. Queria dizerlhe “que o Mutum era lugar bonito” (ROSA, 1984, p.14), já que Mãe só se referia ao espaço em que viviam com suspiros. Ele gostava do Mutum, mas era um lugar meio esquecido mesmo, distante de tudo. Quando chovia, era “chuva dura entortada, de chicote. Destampava que chovia, de banda de riba. O mato do morro do Mutum em branco morava.” (Ibidem, p.87). O trovão “assustava. O trovão da Serra do Mutum-Mutum, o pior do mundo todo – que fosse como podia estatelar os paus da casa. Cordade-vento entrava pelas gretas das janelas, empurrava água. Molhava o chão.” (Ibidem, p.31). Por

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outro lado, “entre chuva e outra, o arco-da-velha aparecia bonito, bebedor; (...). Estiadas, as agüinhas brincavam nas árvores e no chão, cada um de um jeito os passarinhos desciam para beber nos lagoeiros” (Ibidem, p.47). Assim, apesar de gostar do Mutum, Miguilim lutava com esse sentimento e a sensação de que, às vezes, aquele lugar “era triste, era feio. O morro, mato escuro, com todos os maus bichos esperando (...)” (Ibidem, p.61). A Mãe, olhando o morro, uma vez afirmou: “Estou sempre pensando que lá por detrás dele acontecem outras coisas, que o morro está tapando de mim, e que eu nunca hei de poder ver...” (Ibidem, p.14). Um território-gente agia sobre ela, impedia a sua felicidade. Ele sabia que havia algo errado nisso, havia algo nebuloso, mas ele não era capaz de compreender... “No começo de tudo, tinha um erro – Miguilim conhecia, pouco entendendo” (Ibidem, p.15). Os adultos não se entendiam. Ele não sabia ainda por quê. O Mutum é o plano onde tudo surge. Dele brotam os motivos e os contrapontos do ritornelo. A partir desse lugar se medem as distâncias e as possibilidades, as pequenas coisas, as grandes impressões do desconhecido: “Lua era o lugar mais distanciado que havia, claro impossível de tudo” (Ibidem, p.94)... As coisas bonitas e simples do lugar vão sendo reveladas no contar da história – devoção de mineiro. “Tudo tão caprichado lindo!” (Ibidem, p.47): os passarinhos, cada qual com uma característica diferente; as plantas, flores e ervas, com suas graças e poderes; os tantos tipos de bichos de caçar, de comer, de apreciar, de temer... O Mutum tem a potência de encantar, de assustar, e de estabelecer o ser-estar das personagens: desde trabalhar na roça, cuidar da casa e dos filhos, cozinhar, catar piolho, sofrer as faltas (escola, médico...), punir, rezar, brincar, até a possibilidade de sair dali para viver com parentes e com conhecidos, de fazer justiça com as próprias mãos. No corpo a corpo das energias da terra surge uma estreita relação com elementos da fé: crendices, rezas, promessas. No conto, estas se ligam às forças do caos e desencadeiam novos elementos ou condições entre as personagens. Isso tudo, que podemos chamar de ritornelo territorial, é atravessado pelas canções e pela repetição do refrão da alegria. Analisaremos neste texto a primeira canção do conto, a do Menino Triste, que chorava a perda de sua cuca. “Minha Cuca, cadê minha Cuca? Minha Cuca, cadê minha Cuca?! Ai, minha Cuca que o mato me deu!...” (Ibidem, p.21)

Miguilim estava pensando em Pingo-de-Ouro, uma cachorra “pertencida de ninguém, mas que gostava mais era dele mesmo” (Ibidem, p.20). Ela estava doente e tinha acabado de ter filhotes. Apenas um deles tinha sobrevivido e Pingo-de-Ouro estava feliz com o cachorrinho que se parecia tanto com ela1. Uns tropeiros passaram pelo Mutum e Pai lhes deu os dois: cachorra e filhote. O menino sofreu muito, “cumpriu tristeza” (Ibidem, p.21)... O narrador já havia anunciado um descompasso na relação entre Miguilim e seu pai. O mal-estar tinha sido porque, na ânsia de comentar com Mãe que o Mutum era bonito, Miguilim se esquecera de pedir-lhe a benção. Os costumes. Pai ralhou e queixou-se muito dele. Miguilim estava pensando nessas coisas quando o irmão lhe avisou que os pais estavam brigando. Ele decidiu impedir que Pai batesse em Mãe. Acabou apanhando também e foi colocado de castigo. Distanciava-se do Pai. Aproximava-se da Mãe. Ele era mais parecido com a Mãe. Juntos ficariam mais felizes, como Pingo-de-Ouro e seu filhote.

Miguilim, por sua vez, se parece com a Mãe: “— Dito, eu às vezes tenho uma saudade de uma coisa que eu não sei o que é, nem de donde, me afrontando...” “— Deve de não, Miguilim, descarece. Fica todo olhando para a tristeza não, você parece Mãe.” (Ibidem, p.61).

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Esse exemplo nos mostra como as canções anunciam intensidades, mudanças de rumo na narrativa. Entretanto, existe um motivo que funciona em ritornelo no conto, como um refrão: a alegria. A narrativa começa com um desejo, com o prazer de um segredo: saber, por ouvir falar, da beleza do Mutum. Miguilim pensava que aquilo faria a Mãe feliz. As memórias, no conto, são povoadas por um experimentar de sensações boas, de pequenos êxtases de intensidade pura, que a autora Kathrin H. Rosenfield chama de momento de certeza do ser, da presença, do amor, um momento de possibilidade de concretização do absoluto. Podemos destacar a sua presença na “alegria num jardim”, na felicidade de ter um animal de estimação, no contentamento por ter laços tão estreitos com Dito, seu irmão, no regozijo quando era alvo de atenção dos pais, no alívio pela saúde restabelecida, nos encontros com Seo Aristeu, no gosto pelas histórias que ele aprendeu a contar, nas brincadeiras... A alegria das pequenas coisas passava por Dito. “O Dito era menor mas sabia o sério, pensava ligeiro as coisas, Deus tinha dado a ele todo juízo” (Ibidem, p.21), “(...) a verdade (...) ele já sabia, mas não sabia antes que sabia” (Ibidem, p.122). Na história de Miguilim, de castigos, de desacertos com o Pai, de desavenças com os mais velhos, há um desejo, linhas de condução da narrativa que são atravessadas pela alegria, onde tudo se confunde. “Miguilim queria ver mais coisas, todas, que o olhar dele não dava.” (Ibidem, p.74) O menino se indagava por que tudo acontecia daquela forma e a resposta, que vai ser repetida no conto todo, tem a ver com a alegria. Primeiro, foi o Dito quem disse: “Miguilim, Miguilim, eu vou ensinar o que agorinha eu sei, demais: é que a gente pode ficar sempre alegre, alegre, mesmo com toda coisa ruim que acontece acontecendo. A gente deve de poder ficar então mais alegre, mais alegre, por dentro!...” (Ibidem, p.108). Depois foi o Seo Aristeu: “(...) Miguilim, você carece de ficar alegre. Tristeza é agouria...” (Ibidem, p.136). Era algo difícil de fazer acontecer. Miguilim pensava: “O Dito dizia que o certo era a gente estar sempre brabo de alegre, alegre por dentro, mesmo com tudo de ruim que acontecesse, alegre nas profundezas. Podia? Alegre era a gente viver devagarinho, miudinho, não se importando demais com coisa nenhuma.” (Ibidem, p.138). Vivendo devagarinho, sem parecer se importar muito com as coisas foi que o seu caminho acabou cruzando o do homem que vinha a cavalo. Ele percebeu que o menino tinha problemas de vista. Emprestou-lhe os óculos e, de repente, tudo ganhou nova luz: “(...) Miguilim olhou. Nem não podia acreditar! Tudo era uma claridade, tudo novo e lindo e diferente, as coisas, as árvores, as caras das pessoas. (...) Miguilim ainda apontava, falava, contava tudo como era, como tinha visto. (...) também carecia de usar óculos, dali por diante. (...)” (Ibidem, p.140)

A alegria foi enorme de poder ver, ver melhor! Miguilim poderia partir com o homem no dia seguinte, ir para a cidade, a cavalo, em busca da “luz dos olhos” (Ibidem, p.140) e de estudos. Mas ele não sabia se queria ir, tudo grande demais para ele. Foi Mãe quem o ajudou a decidir: “— Vai, meu filho. É a luz dos teus olhos, que só Deus teve poder para te dar. Vai. Fim do ano, a gente puder, faz a viagem também. Um dia todos se encontram...” (Ibidem, p.140) Tinha chegado o momento de partir. “(...) os galos já cantavam tão cedinho, os passarinhos que cantavam, os bem-te-vis de lá, os passo-pretos: — Que alegre é assim... alegre é assim... Então. Todos estavam em casa. Para um em grandes horas, todos: (...) Todos eram bons para ele, todos do Mutum.” (Ibidem, p.141) Abraçou cada um. Mas, ainda antes de ir, pediu emprestados os óculos do homem, e viu, então, renovadamente, a beleza da Mãe e dos seus e do lugar, do Mutum. “O Mutum era bonito! Agora ele sabia.” (Ibidem, p.142). E ele sentia, intensamente, percebia as composições dos sentimentos... O misto de alegria-tristeza, era tudo junto. O momento de partida era de sorrisos, agrados, e também de lágrimas, de aperto no coração. Ele via os que estavam ali e os que não estavam (Pai, Dito, Patori...). Miguilim estava crescendo e a frase que funciona em ritornelo no texto soa como um último conselho: Sempre alegre, Miguilim. Sempre alegre, Miguilim... Dito tinha razão.

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3. Ritornelo (Cinema) Sandra Kogut, em 2007, apresentou-nos “Mutum”, sua adaptação do conto “Campo Geral” para o cinema. Muito já se escreveu e se discutiu sobre a potência que tem a escrita de Guimarães Rosa de mobilizar forças para produções que, menos do que tentar reproduzir o texto literário, busquem re-criações, criações paralelas, outras artes, para fazer pulsar em nós a obra2. As epígrafes que abrem este trabalho nos colocam um pouco dessa disposição, na articulação que faz o poeta Marcelo Ariel com o início do romance “Grande Sertão: veredas”. Os apaixonados por Guimarães Rosa aproximam-se das adaptações para o cinema divididos entre o desejo de “ver” aquilo que os movimenta na arte literária e o temor de que qualquer desses projetos possa fracassar. Entretanto, quando se fala de arte, mais importante do que considerar a adaptação em relação à obra que a inspirou, deveríamos tentar observar, em ambas, as forças que se articulam, as potências de cada uma. Mais ainda, no caso de uma análise comparativista, discutir as possibilidades que cada uma tem de trazer para o seu respectivo plano de composição afectos e perceptos que ressoem, em nós, em movimentos de abertura a. Este trabalho, apenas um recorte, analisa o conceito de ritornelo nas obras, busca apresentar de que maneira as forças da terra, do caos e do Cosmo se constituem nos planos de composição dos artistas. No caso de “Mutum”, vale chamar a atenção para alguns caminhos escolhidos por Sandra Kogut. Podemos começar pela escolha dos atores: os meninos não são artistas profissionais. Foram escolhidos no interior do estado de Minas Gerais3. São crianças mineiras que vivem em condições físicas parecidas com aquelas em que vive a personagem rosiana, Miguilim. A diretora decidiu manter o nome verdadeiro das crianças no filme. Assim, o lugar da personagem principal do conto é assumido por um jovem sem experiência de atuação e muito menos experiência com cinema chamado Thiago. O que é que tem o menino Thiago então, que nos remete a Miguilim? De que maneira a diretora e o menino fazem ecoar em nós um outro lugar, que se abre a?

2 A Imagem-Tempo Produções realizou uma mostra Cinema: veredas – os filmes a partir de João Guimarães Rosa. Há artigos interessantes de especialistas que discutem a questão literatura-cinema online. Acesse http://imagemtempo.com.br/gr/. 3 Para conhecer o olhar da diretora, duas possibilidades de fácil acesso: ler uma entrevista no site oficial o filme, www. mutumofilme.com.br, ou ver uma entrevista online, feita por Aristeu Araújo e João Paulo Gondim, da Revista Moviola, no endereço http://www.revistamoviola.com/2007/12/20/sandra-kogut/. Arquivo visitado em 13 de março de 2009.

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Eu arriscaria dizer que tudo tem a ver com o olhar, o olhar do menino, o olhar da diretora. Thiago é dono de grandes e profundos olhos que nos encantam e que nos arrastam por sua expressividade, por sua intensividade. Não é fácil ficarmos indiferentes a seu olhar nas telas. Ele nos envolve com sensibilidade, com forças que fazem com que nos identifiquemos com a criança que ali se encontra e que remete a tantas outras em tantos outros lugares. Ressonância um. Além disso, o olhar tem tudo a ver com Miguilim. Miguilim-personagem é a criança que busca perceber, enxergar o universo adulto, mas ainda carece da possibilidade do entendimento, pela falta de maturidade – no ponto de vista das relações sociais. Ressonância dois. O olhar da personagem. Thiago precisa melhorar sua capacidade de ver. Sua sensibilidade lhe diz que há algo errado. Ele olha para cima com seriedade, tenta compreender as pessoas que o cercam. Em silêncio, transita pelo mundo dos adultos, senta-se e olha para cima, como se pedindo ajuda.

Mas a ajuda não vem. Nada é fácil. Tudo é muito complexo. Há um jogo de luz e de sombra que a fotografia captura. Esse jogo faz parte do território em que vive. Há submissão no olhar desse menino, submissão às regras da família, à autoridade do pai, aos castigos, às portas que se trancam a sua frente. E o universo infantil é de entrega. A criança se entrega a seus pais, às regras dos mais velhos, mas precisa aprender a sobreviver, a lidar com as arbitrariedades. Precisa aprender a lidar com seus medos. Entende que não tem o mesmo afeto por todas as pessoas, tem preferências. E imagina que os outros também têm. Essa aprendizagem é tarefa difícil. Nós a chamamos de crescer. Thiago olha na direção da luz, mas carrega em si a sombra, como a imagem acima soube tão bem revelar. Assim, o filme mescla a tensão das relações e a alegria das pequenas coisas. Também é de Thiago o enorme sorriso e a capacidade de nos mostrar seu encantamento com as brincadeiras, com o afeto que recebe da mãe, com os encontros com o tio... Ele, sem dizer muito, nos faz reencontrar a alegria tão presente em “Campo Geral”.

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Entretanto, a alegria, que destacamos como elemento de ritornelo no conto, não parece ser o ritornelo do filme. Neste caso, a captura de certas imagens que a diretora soube fazer é que podemos ver funcionar como refrão, aquilo que se repete de maneira sempre nova: a cena da porta do quarto dos pais. A porta fechada, guardando a mãe, atravessada pela violência do pai, mostrando a angústia de Thiago; ou aberta, mostrando a dor da doença de Felipe, escancarando a dor da perda do filho-neto-irmão, suscitando solidariedade. Ressonância três.

Esta imagem mobiliza em nós a sensação de desamparo. Conhecemos o drama de Miguilim, de Thiago. Gostaríamos de poder ajudá-lo. Sabemos que a vida nos envolve com dificuldades. Gostaríamos de poupar as crianças que conhecemos. Quanta gente, em quantos lugares, não estará enfrentando algo parecido com isso neste momento? Kogut joga com estes e muitos outros sentimentos nas escolhas que faz. A porta que, por princípio, indica saída, abertura, pode estar fechada, impedindonos de agir, de sair, de entrar.

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No jogo de luz e sombra, é essa a imagem que fica registrada em nossa mente e se remete ao drama que aquele grupo de indivíduos sofre e suporta, com dores, alegrias e fé. A porta, que ora se abre ora se fecha, como os inúmeros movimentos de conexão que experimentamos com as personagens. Além da porta, também precisamos fazer referência à fotografia do lugar. O olhar da diretora. Kogut foi feliz ao identificar o elemento intensivo terra, de Rosa, em seu filme. O Mutum é poeticamente aquilo. A sinopse do filme diz bem: “Mutum quer dizer mudo. Mutum é uma ave negra que só canta à noite. E Mutum é também o nome de um lugar isolado no sertão de Minas Gerais, onde vivem Thiago e sua família.” Este lugar, entre morros, que o conto localiza no “(...) meio dos Campos Gerais, (...) em covoão em trecho de matas, terra preta, pé de serra” (ROSA, 1984, p.13), é um lugar bonito, que a luz das câmeras soube destacar bem, e também pobre, como as sombras sabem revelar. As tomadas da casa e de seus arredores têm um tom de fotografia. Uma luz amarelada que explora a claridade. E só não se parecem mesmo uma seqüência de fotos porque a trilha sonora do filme inclui os sons também do lugar. Assim, a imagem parada se coloca em movimento. Algo pulsa continuamente, mesmo quando a ação não aparece na tela. Não há canção que acompanhe as cenas do filme. Há parlendas, brincadeiras das crianças... A única canção é aquela que se ouve no final da história, quando Thiago parte, deixa sua casa. Talvez pudesse ter ficado de fora. A trilha sonora é feita de sons do lugar: aves, ventos, bichos, farfalhar, trovões... Tem a potência de nos conectar ao universo do Mutum, à solidão, à alegria, à tristeza, aos medos, à beleza. A imagem da porta, ora aberta ora fechada, a paisagem do campo, em luzes e sombras, e o nosso olhar, acompanhando tudo, imprimem o movimento no filme e dão ao enredo uma espécie de ritmo, uma cadência do cotidiano. Pequenas coisas chamam a atenção: cutucar a madeira, ouvir o som das moscas... A poesia das imagens é tanta que somos alçados a forças outras, às forcas do Cosmo. Mais do que a uma região geográfica, as imagens do espaço parecem nos remeter a um bloco de sensações, a uma condição de infância, de povo, de memória, de realidade. Esta parece ser a ressonância maior. “Mutum” conta a história de Miguilim, de “Campo Geral”, e a história de muitos outros meninos, brasileiros ou não, vivendo nas mesmas condições sociais e, acima de tudo, experimentando as mesmas dores e alegrias das brincadeiras, dos afetos, das incertezas. Aquilo que é local, forte presença na vida do homem, e salta é o plano de composição de João Guimarães Rosa e o plano de composição de Sandra Kogut, e é neste aspecto que os dois se aproximam. Se o sertão de Rosa é o mundo, as chapadas de Minas onde Kogut filmou são também o mundo. Um mundo onde há tristezas, mas que é bonito, definitivamente bonito. Neste sentido, poderíamos parodiar a frase de Sílvio Ferraz da epígrafe deste artigo: “Alguém me faz ver/ler algo que nunca vi/li antes, e de repente toda uma comunidade, todo um povo e sua vida, se abre à minha frente”. Quanto mais dentro do Mutum, mais nômade, mais fora, mais aberto ao Cosmos. Experimentamos com Rosa e Kogut essas sensações. O um Miguilim-Thiago torna-se o um multidão conectado a cada um de nós. Mas este já é outro texto. Referências DELEUZE, Gilles; GUATARRI, Félix. Mil platôs: capitalismo e esquizofrenia. Volume 4. Tradução de Suely Rolnik. São Paulo: Ed. 34, 1ª reimpressão – 2002. _____. O que é a Filosofia? Tradução de Bento Prado Jr. e Alberto Alonso Muñoz. Rio de Janeiro: Ed. 34, 3ª reimpressão – 2004. KOGUT, Sandra. Mutum. Brasil, 2007. 95 min. ROSA, João Guimarães. Manuelzão e Miguilim. 9ª ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1984. ROSENFIELD, Kathrin H. A alegria: tema rosiano ou princípio estético e filosófico? In: Scripta. v.1, n.1. Belo Horizonte: PUC Minas, 1997. p.171-177.

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DA PALAVRA DE HUMBERT À IMAGEM DE LOLITA: O CINEMA COMO MITIFICADOR DA OBRA DE NABOKOV 1

Denize Helena LAZARIN (Universidade Federal de Santa Maria)

RESUMO: O presente trabalho pretende contrastar as representações da personagem Lolita no livro de Vladmir Nabokov, de 1954, bem como na adaptação cinematográfica produzida por Stanley Kubrick de 1962. As duas construções da personagem serão exploradas objetivando as múltiplas leituras entre a obra de Nabokov e a do texto fílmico. Observa-se no texto literário, por exemplo, uma voz narradora (Humbert) que produz um determinado discurso a respeito da personagem Lolita: uma ninfeta, ou seja, uma criança sedutora e manipuladora; já no texto fílmico, apesar de manter o tom irônico do texto literário, ameniza-se a noção de discurso, ou seja, de construção de sentidos a partir de um determinado ponto de vista (Humbert), criando um efeito de realidade. Desta forma, a imagem assume uma ideia de verdade. PALAVRAS-CHAVE: Lolita; discurso; imagem.

ABSTRACT: The present paper intends to contrast the character’s representations of Lolita in the book of Vladmir Nabokov (1954), as well in the cinematographic adaptation produced by Stanley Kubrick (1962). The character’s two constructions will be explored aiming the multiple readings between the work of Nabokov and the filmic text. It is observed in the literary text, for instance, a narrator voice (Humbert) that produces a certain speech regarding the character Lolita: a nymphette, in other words, a seductive child and manipulator; in the filmic text, in spite of maintaining the ironic tone of the literary text, the speech notion is softened, in other words, the construction of senses starting from a certain point of view (Humbert), creating a reality effect. This way, the image assumes a truth idea. KEY WORDS: Lolita; speech; image. 1

Artigo orientado pela Profa. Dra. Vera Lúcia Lenz Viana (Universidade Federal de Santa Maria).


Anais do II Congresso Internacional de Estudos Linguísticos e Literários na Amazônia (CIELLA) O visual é essencialmente pornográfico, isto é, sua finalidade é a fascinação irracional, o arrebatamento. (Fredric Jameson)

Pense em Lolita: qual é a primeira palavra que nos vem à mente? Provavelmente ninfeta, mas qual mais? Pornografia? Mas de onde vem essa Lolita pornográfica? O termo pornografia, como expresso na epígrafe acima, é empregado para expressar a força da imagem visual. Logo abaixo, na mesma página, Jameson refere-se especificamente ao cinema: “Assim, filmes pornográficos são apenas a potencialização de uma característica comum a todos os filmes, que nos convidam a contemplar o mundo como se fosse um corpo nu” (JAMESON, 1995, p. 1). Nossa hipótese, para seguirmos esse paralelo, é que o cinema perverteu a Lolita de Nabokov. Ao comparar a Lolita de Nabokov e a Lolita de Kubrick, percebemos uma disparidade entre as duas construções. Isto ocorre devido às diferenças entre as linguagens (escrita e fílmica) utilizadas. O texto escrito permite uma variedade maior de interpretações, pois a construção de sentidos se dá no contato com as sutilezas do discurso de um narrador parcial. Já no texto fílmico o veículo é a imagem em toda sua pornografia. Através desta força visual ameniza-se a noção de discurso construído, o que cria um efeito de verdade – que, segundo nossa hipótese, é o responsável pela criação da ninfeta mitificada. Graham Vickers, em Chasing Lolita: how popular culture corrupted Nabokov’s little girl all over again (2008), defende que houve uma mitificação de Lolita pela cultura de massa, todavia sustenta que a criação do mito não teve como ponto de partida o filme, mas sim o pôster de anúncio do filme (Figura 1): Figura 1 – Lolita (Bert Stern, 1962)

Como as imagens se sobrepõem ao discurso, iniciemos nossas observações por elas. O que nos salta aos olhos ao ver a figura acima? As cores? Talvez os óculos? Ou o pirulito? Todas as

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respostas estão corretas, mas principalmente a complementação delas para a transmissão de uma determinada imagem ao espectador. A cor vermelha, que indica sexualidade, está presente em toda a figura, também reforçada pelos óculos de coração vermelho e, sobretudo, pelos lábios vermelhos que chupam um pirulito. A respeito de Lolita chupar um pirulito no cartaz do filme, Vickers afirma: “It was not until a publicity poster appeared for Stanley Kubrick’s 1962 film of Lolita that we first encounter a color photograph of an entirely bogus Lolita wearing a red heart- shaped sunglasses while licking a red lollipop (love and fellatio, get it?)” (VICKERS, 2008, p. 8).2 Para o autor existe uma conotação sexual no ato da garota de lábios vermelhos chupar um pirulito também vermelho. O formato de coração dos óculos, bem como a garrafa de refrigerante com a flor, também são indícios da infantilidade dela. O anúncio publicitário ainda é interpretado como uma espécie de promessa falsa, pois no filme, que é em preto e branco, os óculos de Lolita são em formato regular e em momento algum é apresentada chupando pirulito. Diante dos indícios acima, compreendemos porque, para Vickers, esta Lolita do cartaz é completamente falsa. Logo, para o autor (VICKERS, 2008, p. 8), somente este pôster é responsável pela mitificação da personagem Lolita, enquanto o filme, apesar de não assemelhar-se ao romance de Nabokov, não denota este apelo erótico que notamos no anúncio. Entretanto, acreditamos que o filme também tem sua parcela na mitificação da personagem de Nabokov, principalmente pelo efeito de verdade próprio da linguagem cinematográfica. Contudo, antes de adentrarmos na análise do filme de Kubrick, partiremos de algumas definições de mito e de construção do sentido. Para Barthes, o princípio do mito é a transformação da história em natureza, ou seja, a transmissão de um conceito intencional de um modo que pareça natural ao leitor (BARTHES, 1980, p. 150). Na composição de Lolita, especificamente, tudo ocorre como se a imagem da personagem, ou seja, seu significante, provoque naturalmente o significado de ninfeta, em todas suas conotações. Neste contexto, a criação da imagem, sobretudo cinematográfica, assume papel preponderante na mitificação. O mito existe a partir do momento em que as qualidades atribuídas à imagem dela adquirem um estatuto natural, essencializado. Barthes lembra ainda que o mito é uma fala excessivamente justificada (BARTHES, 1980, p. 150). Mas justificada por quem? Pelo narrador protagonista Humbert, por meio de uma construção discursiva parcial que possibilita a formação de sentidos. Neste sistema mítico, como em todos os outros, a causalidade é artificial, falsa, mas consegue imiscuir-se no domínio da Natureza. Barthes é enfático em afirmar que é por meio da naturalização que o mito é vivido como uma fala inocente, pois se suas intenções estivessem apenas escondidas, não haveria eficácia em sua adoção. Mas como Humbert constrói tais sentidos mitificados? A construção textual do sentido, conforme descrito por Koch (2003), já foi objeto de estudos que envolveram um complexo conjunto de processos que atualmente podem ser resumidos em três passos. Para esta autora a primeira etapa é a motivação, ou seja, a construção de um discurso obedece inicialmente a um interesse, perpassando por uma segunda etapa, uma finalidade onde se incluem o planejamento de metas a serem seguidas. Este processo tem seu fim na realização, sendo que as ações a serem seguidas para tal podem passar por mudanças de acordo com situações produzidas. Um exemplo de discurso realizado e, portanto, motivado para determinada finalidade, é o discurso de Humbert, pois ele encontra-se “escrevendo sob observação”, ou seja, escrevendo para convencer determinado público. Mas que público é esse? Na diegese são os jurados e o juiz, mas também é o leitor de um modo geral. Ao interpretar a seguinte oração – “Oh, my Lolita, I have only words to play with!”3 –, Appel Jr. destaca a construção do discurso como algo a ser considerado pelo leitor: Even if H.H. has only words, the reader must consider the implications of his extraordinary control of them. The interlacements which lead in and out of this veritable nerve center reveal a capacity for design Tradução livre: “Foi no pôster de anúncio para o filme de Stanley Kubrick de 1962 que primeiro encontramos a foto colorida de uma Lolita completamente falsa, usando um óculos de sol vermelho em formato de coração enquanto chupa um pirulito (amor e atividade sexual oral, entende?)”. 3 Tradução de Jorio Dauster: “Ah, minha Lolita, tudo o que me restou para brincar foram as palavras!” (NABOKOV, 2003, p. 34). 2

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Anais do II Congresso Internacional de Estudos Linguísticos e Literários na Amazônia (CIELLA) and order that, given the conditions under which his narrative has allegedly been composed, is only within the reach of the manipulative author above the book. (APPEL JR., 2000, p. 351-352)4

Além da evidenciação do texto como produto de uma construção pelo narrador, Appel Jr. chama atenção para o poder de manipulação no uso das palavras, o que podemos comprovar no excerto: I owe my complete restoration to a discovery I made while being treated at that particular very expensive sanatorium. I discovery there was an endless source of robust enjoyment in trifling with psychiatrists: cunningly leading them on, never letting them see that you know all the tricks of the trade; inventing for them elaborate dreams, pure classics in style (which make them, the dream-extortionists, dream and wake up shrieking); teasing them with fake “primal scenes”; and never allowing them the slightest glimpse of one’s real sexual predicament. (NABOKOV, 2000, p. 34)5

Nesta passagem, Humbert explica como engana os médicos – e os leitores – simulando sintomas e situações, pois conhece os meandros do ofício – e da construção do discurso. Também devemos lembrar que este trecho surge na narrativa após Humbert dedicar algumas páginas a sua infância, citando inclusive clássicos da psiquiatria como os famosos casos de transferência: Did she have a precursor? She did, indeed she did. In point of fact, there might have been no Lolita at all had I not loved, one summer, a certain initial girl-child. In a princedom by the sea. Oh when? About as many years before Lolita was born as my age was that summer. You can always count on a murderer for a fancy prose style. (NABOKOV, 2000, p. 9)6

No início do fragmento acima, percebemos como o narrador explica que talvez não existisse uma Lolita se não houvesse existido antes disso uma outra garota. Em seguida refere-se ao tempo em que isso ocorreu, utilizando-se de um estilo mais elaborado. Ao finalizar o parágrafo, o narrador demonstra ao leitor que este se encontra diante de um discurso construído, ao informá-lo sobre o estilo que escreve. Percebemos até aqui que o texto escrito é uma construção discursiva, o que está explícito nos usos da linguagem empregados pelo narrador de Nabokov. Entretanto, no texto fílmico, esta construção discursiva, pelos menos como a verificamos no texto escrito, se perde devido ao efeito de real próprio da linguagem cinematográfica. Segundo Martin (2003), a imagem fílmica é um complexo produto proveniente de um aparelho capaz de reproduzir exata e objetivamente a realidade, suscitando no espectador um sentimento de realidade. Já Jakobson, ao discutir a diferença entre pintura e cinema, caracteriza o segundo por pautar-se em objetos reais: O cão não reconhece o cão pintado, visto que a pintura é essencialmente signo – a perspectiva pictória é uma convenção, um meio plasmante. O cão late para o cão cinematográfico porque o material do cinema é um objeto real; mas permanece indiferente diante da montagem, diante da correlação sígnica dos objetos que vê na tela. (JAKOBSON, 1970, p. 155; grifo nosso)

Tradução livre: “Mesmo se H. H. tenha somente palavras, o leitor deve considerar as implicações de seu extraordinário controle sobre elas. O entrelaçamento que direciona, dentro e fora da obra, esse autêntico ponto central revela a capacidade para desenhar e ordenar que, considerando as condições subordinadas as quais sua narrativa tem declaradamente sido composta, somente é possível dentro do alcance de um autor manipulador sobre o livro”. 5 Tradução de Jorio Dauster: “Devo minha completa recuperação a uma descoberta que fiz no caríssimo sanatório onde estava sendo tratado. Descobri que existe uma fonte inesgotável de sadio divertimento na tapeação dos psiquiatras. A brincadeira consiste em atraí-los astuciosamente sem nunca revelar que você conhece os truques da profissão; em inventar para eles sonhos intrincados, verdadeiros clássicos no gênero (o que faz com que eles, esses usurpadores de sonhos, tenhamos piores pesadelos e acordem aos gritos); em atormentá-los com recordações simuladas de cenas de infância que envolvam seu pai e sua mãe, em jamais permitir que eles ao menos entrevejam seus verdadeiro problemas sexuais!” (NABOKOV, 2003, p. 36). 6 Tradução de Jorio Dauster: “Será que teve uma precursora? Sim, de fato teve. Na verdade, talvez jamais teria existido uma Lolita se, em um certo verão, eu não houvesse amado uma menina primordial, num principado à beira-mar. Quando foi isso? Cerca de tantos anos antes de Lolita haver nascido quantos eu tinha naquele verão. Ninguém melhor que um assassino para exibir um estilo floreado” (NABOKOV, 2003, p.11). 4

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Por outro lado, Panofski, em suas reflexões sobre as artes em geral, conclui que todas partem de uma ideia a ser trabalhada pelo artista e assim transformar-se em realidade, mas especifica que “o meio do cinema é a realidade física como tal: a realidade física do Versailles do século dezoito – seja ele o original ou um fac-símile de Hollywood, indistinguível dele para todos os sentidos e propósitos estéticos” (PANOFSKI, 1982, p. 339-340; grifo nosso). No filme de Kubrick, a sedimentação do sentido realiza-se a partir de uma série de alterações na narrativa, ou seja, no processo de transposição da obra literária para o roteiro cinematográfico e, posteriormente, para as cenas. Apresenta também acréscimos de cenas que não constam no texto literário. E distingui-se ainda pela retirada de situações encontradas na obra de Nabokov, suscitando no espectador um efeito de verdade e, portanto, principiando a mitificafação da personagem Lolita. Dentre as cenas alteradas, iniciemos pela primeira vez que Humbert observa Lolita: Figura 2 – Lolita (Warner Bros., 1962)

No texto escrito, tomamos conhecimento desta primeira vez que Humbert vê Lolita por meio da descrição que o narrador Humbert oferece para sua chegada à casa de Charlotte Haze, o que evidencia sua condição de discurso construído. Tanto no livro quanto no filme, Lolita o vê por cima dos óculos. Entretanto, no filme, conforme mostra a Figura 2, o que percebemos é uma imagem sedutora de Lolita, a sensualidade da personagem ao realizar o movimento de abaixar os óculos, algo não destacado pelo texto escrito: I was still walking behind Mrs. Haze through the dining room, when, beyond it, there came a sudden burst of greenery – “the piazza,” sang out my leader, and then, without the least warning, a blue sea-wave swelled under my heart and, from a mat in a pool of sun, half-naked, kneeling, turning about on her knees, there was my Riviera love peering at me over dark glasses. (NABOKOV, 2000, p. 39)7 Tradução de Jorio Dauster: “Estava ainda seguindo os passos da Sra. Haze através da sala de visitas quando, de repente, diante de nós se abriu um clarão verdejante – “a piazza”, cantarolou minha guia, e então, sem qualquer aviso prévio, uma onda azul ergueu bem alto meu coração: ajoelhada sobre uma esteira, seminua em meio a uma poça de sol, virando-se para me olhar por cima de seus óculos escuros, lá estava o meu amor da Riviera” (NABOKOV, 2003, p.153).

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Enquanto na citação acima Humbert se seduz pela visão de Lolita tomando sol, no texto fílmico ele é seduzido pela personagem. Passamos de uma intenção, bem clara no texto escrito, para uma submissão. Outra passagem do texto escrito modificada pelo texto fílmico é aquela referente à ameaça que Lolita recebe de Humbert, para que ela continue submissa: ...if we tow are found out, [...] you will dwell, my Lolita will dwell (come here my brown flower) with thirtynine other dopes in a dirty dormitory (no, allow me, please) under the supervision of hideous matrons. This is the situation, this is the choice. Don’t you think that under the circumstances Dolores Haze had better stick to her old man? By rubbing all this in, I succeeded in terrorizing Lo. [...] (NABOKOV, 2000, p. 151)8

No texto fílmico, entretanto, esta passagem recebe um outro tratamento: Lolita pede a Humbert que fique e cuide dela (Figura 3): Figura 3 – Lolita (Warner Bros., 1962)

As ameaças de Humbert no texto escrito transformam-se nas súplicas de Lolita, exemplificando novamente o papel mitificador que o cinema desempenha na adaptação da obra de Nabokov. Tradução de Jorio Dauster: “...se formos apanhados, [...] você vai morar, minha Lolita vai morar (vem cá, minha flor morena) com outras trinta e nove infelizes num dormitório imundo (não, deixa eu fazer, por favor) sob a supervisão de umas matronas horríveis. Essa é a situação, é essa a escolha que você tem. Não acha que, dadas as circunstâncias, a Dolores Haze faria melhor se ficasse com seu paizinho? De tanto repetir essas ameaças consegui aterrorizar Lô. [...]” (NABOKOV, 2003, p.153).

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Além destas cenas que modificam situações do texto literário, existem também mudanças no comportamento e no trato de algumas personagens. Charlotte Haze, no texto escrito, é descrita pelo narrador Humbert como uma mulher fútil que tenta parecer erudita. As referências a ela por meio de termos pejorativos como “gata velha”, “mulherzinha” ou ainda “gorda Haze” são uma constante, sendo que em nenhum momento na narrativa ele apresenta suas qualidades. No texto fílmico, ela é apresentada de forma patética, transformando as palavras construídas pelo tom parcial de um narrador em imagens reais: sendo assim, no texto fílmico, não restam dúvidas sobre a senhora Haze ser, entre outras coisas, uma mulher fútil e deslumbrada pela cultura erudita. Outro indício é uma das cenas do filme onde é dado a entender que existe uma ligação sexual entre Charlotte e Quilty através de uma conversa em que ela se expõe de maneira muito patética. Esta cena ocorre num baile – ocasião esta que não existe na narrativa e é acrescentada ao filme. Como a mãe de Lolita, Clare Quilty também recebe no texto fílmico um tratamento diferente. Na narrativa ele apenas é citado discretamente, de maneira que passa até despercebido. Surge efetivamente no final da trama, momento em que é assassinado por Humbert. No texto fílmico, entretanto, esta personagem tem um maior destaque, aparecendo completamente integrado ao filme e se relacionando com outras personagens. Este maior destaque a Quilty empresta ao filme um humor negro que não notamos no sarcasmo do texto escrito: “Unpopular on its release, it gradually became critically rehabilitate as time passed, quite often being reclassified as ‘a black comedy’” (VICKERS, 2008, p.120)9. Além das alterações do texto original, ainda existe uma série de situações no texto escrito que são omitidas no texto fílmico para a compreensão da imagem como verdade. A primeira delas é a referência a Annabel, que surge no início da narrativa: “Annabel was, like the writer, of missed parentage: half-English, half-Dutch, in her case. I remember her features far less distinctly today than I did a few years ago, before I knew Lolita.” (NABOKOV, 2000, p. 11)10. Esta é a segunda vez que Humbert refere-se a Annabel, fazendo logo em seguida uma referência a Lolita. Esta construção textual reforça nossa hipótese, conforme tratada anteriormente, que o narrador estabelece uma relação de transferência entre ambas para “justificar” sua paixão patológica por Lolita. Dizemos paixão patológica, mas no texto fílmico não são contempladas as longas referências – bem como as defesas – que Humbert faz à pedofilia: Nowadays you have to be a scientist if you want to be a killer. No, no. I was neither. Ladies and gentlemen of the jury, the majority of sex offenders that hanker for some throbbing, sweet-moaning, physical but not necessarily coital, relation with a girl-child, are innocuous but not necessarily, inadequate, passive, timid strangers who merely ask the community to allow them to pursue their practically harmless, socalled aberrant behavior, their little-hot wet private acts of sexual deviation without the police and society cracking down upon them We are not sex friends! We do not rape as good soldiers do. We are unhappy, mild, dog-eyed gentlemen, sufficiently well integrated to control urge in the presence of adults, but ready to give years and years of life for one chance to touch a nymphet. (NABOKOV, 2000, p. 87-88)11

Tradução livre: “Impopular no seu lançamento, com o decorrer do tempo ele foi gradualmente sendo reabilitado pela crítica, sendo classificado quase sempre reclassificado como ‘humor negro’”. 10 Tadução de Jorio Dauster: “Os pais de Annabel, como os do autor, eram de nacionalidades diferentes: no seu caso,um inglês e uma holandesa. Recordo-me hoje de suas feições com muito menos nitidez do que anos atrás, antes de conhecer Lolita” (NABOKOV, 2003, p. 13). 11 Tradução de Jorio Dauster: “Nos dias de hoje, para ser um assassino é preciso ser antes um cientista. Não, não, eu não era uma coisa nem outra. Senhoras e senhores membros do júri, quase todos os pervertidos sexuais que anseiam por uma latejante relação com alguma menininha (sem dúvida pontuada de ternos gemidos, mas não chegando necessariamente ao coito) são seres inofensivos, inadequados, passivos e tímidos, que apenas pedem à comunidade que lhes permita entregarse ao seu comportamento aberrante mas praticamente inócuo, que lhes deixe executar seus pequenos, úmidos e sombrios atos privados de desvio sexual sem que a polícia e a sociedade os persigam. Não somos tarados! Não cometemos estupros, como fazem bravos guerreiros! Somos seres infelizes, meigos, de olhar canino, suficientemente bem integrados para saber controlar nossos impulsos na presença dos adultos, mas prontos para trocar anos e anos de vida pela oportunidade de acariciar uma ninfeta” (NABOKOV, 2003, p. 89-90). 9

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No excerto acima, além de Humbert fazer uma defesa à pedofilia, ele ainda se inclui nela. Podemos assim inferir que este assunto não é abordado no filme devido à implicância social que ele acarreta, sendo mais fácil criar o mito da ninfeta do que tratar da pedofilia em si. Em relação aos parâmetros que definem quais assuntos são “adequados” a serem abordados, sobretudo na escrita e na literatura, Vickers apresenta o que estabeleceram os órgãos de controle: “Sex perversion or any inference to it is forbidden,” it states. “Miscegenation (sex relationships between the white and black races) is forbidden.” Children’s sex organs are never to be exposed.” There was no great deal more along the same lines, amounting to a directive not just for making movies but for making movies into instrumental of a moral education program for adults. The code also identified what it saw as the distinction between fit topics for books and fit topics for films. “A book describes; a film vividly presents,” is stated confidently. “Our presents on a cold page: the other by apparently livng people.” (VICKERS, 2008, p. 42)12

Ao parafrasear o que estabelecem os órgãos de controle, Vickers também esclarece que estes faziam uma diferenciação entre ambos. Ao fazer esta diferenciação quanto ao código – frieza do texto escrito e vivacidade do texto fílmico –, parece-nos que existe uma preocupação maior dos órgãos em relação ao segundo, talvez por seu maior alcance e penetração junto ao público. Dentre os assuntos que não devem ser apresentados certamente encontra-se a pedofilia. Motivo este utilizado pelo próprio Kubrick para justificar seu não-aprofundamento a respeito da relação amorosa e pedófila entre Humbert e Lolita: Figura 4 – Lolita (Warner Bros., 1962)

Tradução livre: “‘Perversão sexual ou qualquer referência a isso é proibido’, declaram. ‘Miscigenação (relações sexuais entre pessoas brancas e negras) é proibida’. ‘Os órgãos sexuais infantis nunca devem ser expostos’. A produção fílmica não será mais apenas um grande negócio, o direcionamento agora não será apenas para se fazer filmes, mas para se fazer filmes que sejam um instrumento de programas de educação moral para adultos. No código (filmes ou livros) também há uma diferenciação entre o que é apropriado para um ou outro tratar. ‘Um livro descreve enquanto um filme apresenta vividamente’, declaram confiantemente. ‘O nosso código (livro) se apresenta através da página fria, o outro (cinema) por meio de pessoas aparentemente vívidas’”. 12

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Tema geral: Línguas e Literaturas: Diversidade e Adversidades na América Latina (…) because of all the pressure over the Production Code and the Catholic Legion of Decency at the time, I believe I didn’t sufficiently dramatize the erotic aspect of Humbert’s relationship with Lolita. If I could do the film over again, I would have stressed the erotic component of their relationship with the same weight Nabokov did. (KUBRICK apud VICKERS, 2008, p. 123-124)13

Podemos inferir que há no filme uma transferência de assuntos, ou seja, o assunto que recebe destaque no texto escrito é a pedofilia, enquanto no texto fílmico passa a ser o relacionamento amoroso entre uma jovem e um homem mais velho. Logo, o filme passa a ser aceito socialmente, pois muitos filmes anteriores apresentaram casais de homens mais velhos e mulheres mais novas. Além das cenas alteradas e modificadas a partir de fragmentos da obra de Nabokov, existem outras que são acrescentadas para estabelecer o mito da ninfeta. As cenas acrescentadas têm início nos créditos, onde unhas de uma garota são pintadas de uma cor escura. Mais tarde, sabemos que é Humbert quem pinta as unhas de Lolita (Figura 4): Nesta cena, Humbert colore as unhas de Lolita supostamente com um esmalte escuro. Seria vermelho? É uma hipótese a se considerar. Esta cena deixa evidente a tentativa de direcionar o espectador a uma interpretação do filme, neste caso, da ninfeta ao mesmo tempo adulta (unhas vermelhas) e criança (tomando refrigerante). Para finalizar temos ainda a cena do cinema em que Humbert, Charlotte e Lolita assistem um filme de terror. O triângulo amoroso entre as personagens é simbolizado pelo ato de colocarem as mãos umas sobre as outras no momento em que as mulheres se assustam com um monstro na tela. Lolita coloca primeiro sua mão sobre a de Humbert, sem aparentar intenção alguma de sedução: sua expressão fácil aproxima-se da de uma jovem pedindo proteção da figura masculina. A atitude de Humbert é também a de quem retribui a ação, aparentemente sem nenhuma conotação sexual. Esta cena lembra a seguinte passagem do texto escrito: “Hurry up,” she Said as I laboriously doubled up my large body in order to crawl in (still desperately devising a means to escape). […] “You! Where are you going? I’m coming too! Wait!” “Ignore her,” yelped Haze (killing the motor); alas for my fair driver; Lo was already pulling at the door on my side. “This is intolerable,” began Haze; but Lo had scrambled in, shivering with glee.” Move your bottom, you,” said Lo. […] Suddenly her hand slipped into mine and without our chaperson’s seeing, I held, and stroked, and squeezed that little hot paw, all the way to the store. (NABOKOV, 2000, p. 50-51)14

Nesta passagem o que lembra a cena do filme é o fato das três personagens terem sentado lado a lado. Contudo aqui houve um maior movimento ocasionado pela entrada rápida de Lolita. Outro ponto é o contato das mãos, que no filme ocorre entre os três e aqui somente entre Humbert e Lolita. Neste caso é Lolita quem fica com a mão por baixo da dele – “her hand slipped into mine”. Mas se Lolita o fez ou não propositalmente, isto não é claro: o que fica claro aqui, no entanto, é sua maior passividade diante de Humbert. Ao longo deste artigo, buscamos assinalar as divergências entre as representações da personagem Lolita no livro de Nabokov e as adaptações da mesma para a versão cinematográfica produzida por Kubrick. Procuramos indagar a respeito das duas construções da personagem, mostrando como no texto literário um narrador produz um determinado discurso sobre esta personagem, enquanto no texto fílmico este discurso é apresentado como imagem que, por sua vez, assume um efeito de verdade. Se no texto literário percebemos os embustes criados por um narrador Tradução livre: “(...) por causa de toda a pressão exercida pelo Código de produção e da Legião Católica da Decência na época, eu acredito que não dramatizei suficientemente o aspecto erótico da relação entre Humbert e Lolita. Se eu pudesse fazer todo o filme novamente, eu aprofundaria este assunto com a mesma profundidade que o fez Nabokov”. 14 Tradução de Jorio Dauster: “‘Depressa’, disse ela, enquanto eu laboriosamente dobrava meu avantajado corpo para entrar (tentando ainda imaginar em vão uma maneira de escapar). [...] ‘Ei, vocês aí! Aonde é que vocês vão? Vou também! Esperem um pouco’. ‘Não ligue para ela’, ganiu Haze. Mas, graças à habilidade da intrépida motorista, o carro morreu e, a essa altura, Lô já estava abrindo a porta a meu lado. ‘É incrível’, começou Haze, mas Lô acabara de entrar aos trancos e barrancos, trêmula de alegria. ‘Você aí, chega o traseiro pra lá’, disse-me Lô. [...] De repente, sua mão deslizava para dentro da minha e, sem que nossa dama de companhia visse, apertei e acariciei aquela ardente patinha durante todo o percurso” (NABOKOV, 2003, p. 52-53). 13

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perspicaz que a todo momento busca construir um monstro – a ninfeta – para se eximir de suas deficiências morais e patológicas – a pedofilia –, no texto fílmico este monstro torna-se realidade e encontramos, de fato, uma menina capaz de seduzir como uma mulher. Cria-se, portanto, o mito Lolita, e o cinema transforma-se no perfeito álibi para a pedofilia de Humbert. Referências APPEL JR., A. Notes. In: NABOKOV, V. The Annotated Lolita. London: Penguin Books, 2000. BARTHES, R. Mitologias. Trad. Rita Buongermino; Pedro de Souza. São Paulo: DIFEL, 1980. JAKOBSON, R. Decadência do cinema. Trad. Francisco Achcar. In: _____. Linguística. Poética. Cinema. São Paulo: Perspectiva, 1970. JAMESON, F. As marcas do visível. Trad. Ana Lúcia de Almeida Gazolla. Rio de Janeiro: Graal, 1995. KOCK, I. V. O texto e a construção dos sentidos. São Paulo: Contexto, 2003. MARTIN, M. A linguagem cinematográfica. Trad. Paulo Neves. São Paulo: Brasiliense, 2003. NABOKOV, V. The Annotated Lolita. London: Penguin Books, 2000. _____. Lolita. Trad. Jorio Dauster. São Paulo: Folha de S. Paulo, 2003. PANOFSKI, E. Estilo e meio no filme. Trad. César Bloom. In: LIMA, L. C. (org.). Teoria da cultura de massa. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1982. VICKERS, G. Chasing Lolita: how popular culture corrupted Nabokov’s little girl all over again. Chicago: Chicago Review Press, 2008.

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ESCOLA-EDUCAÇÃO: AÇÕES E REAÇÕES NA LINGUAGEM DOS AMAZÔNIDAS Doriedson do Socorro RODRIGUES1 (Universidade Federal do Pará) Giussany Socorro Campos dos REIS2 (PIBIC/ Universidade Federal do Pará) Maria Isabel Batista RODRIGUES3 (Instituto Nossa Senhora da Anunciação)

RESUMO: Discute-se, a partir dos pressupostos teórico-metodológicos do materialismo histórico-dialético, a escolarização destinada aos trabalhadores, concebendo-se a valorização dos saberes sociais desses sujeitos, aí incluídos os linguísticos, como condição importante para o fortalecimento de uma consciência de classe, elemento crucial para o estabelecimento de uma nova realidade social fundada pelos interesses da classe detentora da força de trabalho. Expõe-se ainda que a estigmatização de aspectos linguageiros dos trabalhadores representa estratégia dos detentores dos meios de produção para continuar no exercício do poder, fragilizando elementos que permitem a coesão social entre os trabalhadores. Defende-se, então, a tese de que contra essa lógica a classe trabalhadora vem se opondo, advogando, por exemplo, que os seus saberes (aí incluídos os linguísticos) também façam parte, no interior do universo escolar, de reflexão e interação com outras formas linguageiras presentes no meio social. PALAVRAS-CHAVE: Classe Social; Linguagem; Educação; Consciência de Classe.

RESUMEN: Se discute de los supuestos teóricos y metodológicos del materialismo histórico-dialéctico, la educación para los empleados, diseñada para la mejora de las habilidades sociales de estos temas, que incluyen la lengua, lo importante condición para el fortalecimiento de la conciencia clase, que es crucial para el establecimiento de una nueva realidad social creada por los intereses de clase de los propietarios de la mano de obra. También explica que el estigma de los aspectos de la estrategia de los trabajadores linguageiros representa a los titulares de los medios de producción para continuar en el ejercicio del poder, elementos para debilitar la cohesión social entre los trabajadores. Alega, a continuación, el argumento en contra de esta lógica de que la clase obrera se ha opuesto, defendiendo, por ejemplo, que su conocimiento (incluido el idioma allí) también formará parte dentro del universo de la escuela de pensamiento y de interacción con otras formas linguageiras en el entorno social. PALABRAS CLAVE: Clase social; Idioma; Educación; Conciencia de Clase. Mestre em Linguística (CLA-UFPA); Docente da UFPA, Campus Universitário do Tocantins/Cametá; Doutorando do Programa de Pós-Graduação da UFPA, Instituto de Ciências da Educação. 2 Discente do Campus Universitário do Tocantins/Cametá, curso de Letras. Bolsista do Programa Institucional de Bolsas de Iniciação Científica da UFPA – PIBIC/INTERIOR. 3 Pedagoga. Especialista em Estudos Culturais da Amazônia (UFPA). Docente do Instituto Nossa Senhora Auxiliadora – Cametá-Pará. 1


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1. Introdução A partir de uma concepção histórico-dialética da realidade humana, discute-se a relação entre escola-educação e linguagem1, considerando-se que a presença de aspectos linguageiros da classe trabalhadora no interior do universo escolar materializa a luta desta última pela construção de uma nova hegemonia em contraposição ao modo capitalista de produção. Advoga-se a tese, pois, de que o projeto de sociedade da classe trabalhadora implica aceitação de marcas dialetais que fomentem o sentimento de classe, que possibilitem aos trabalhadores um amalgamar-se em torno de interesses, valores e características culturais em comum. Trata-se, enfim, de um projeto político que prevê uma práxis totalizante, no sentido de permitir ao homem o pleno exercício de suas faculdades sociais, políticas e culturais, implicando, assim, uma concepção de vida voltada para a omnilateralidade humana, para uma formação que promove “[...] desenvolvimento total, completo, multilateral, em todos os sentidos das faculdades e das forças produtivas, das necessidades e da capacidade da sua satisfação” (MANACORDA, 1991, p. 78-79). Defende-se, pois, que a educação escolar comprometida com os trabalhadores não deve rejeitar os seus saberes, sua materialidade histórica, porque isso também lhe desenvolve por inteiro, multilateralmente. O trabalho encontra-se dividido em duas partes. Em um primeiro momento analisa-se a relação entre classes e seus interesses, bem como a relação entre trabalhadores, educação, linguagem e capital. Em uma outra etapa, discutem-se as ações e reações dos trabalhadores – tomando-se como base caracterizadora de análise, em termos linguageiros, o fenômeno da nasalização vocálica pretônica por efeito da consoante da sílaba seguinte, quando se diz [kã´neta] em lugar de [ka´neta], estudado em Cametá, nordeste do Pará, Brasil – por uma escola voltada realmente para seus interesses, compreendendo-se as contradições que envolvem as “[...] duas grandes classes que se enfrentam diretamente: a burguesia e o proletariado” (MARX & ENGELS, 2006, p. 24) 2. Classes e interesses de classes: educação, trabalhadores, linguagem e capital No interior do capitalismo, as relações de produção dividem os homens em duas categorias básicas: os explorados e os exploradores (MARX & ENGELS, 2006). Sob essa lógica, constrói-se uma realidade pautada pela exploração da mais-valia, valendo-se esses últimos de todos os mecanismos necessários para controlar aqueles que lhes garantem a sempre obtenção do lucro, os trabalhadores, ou seja, “[...] a classe que nada possuindo senão sua força de trabalho, vende essa força ao capital em troca de sua subsistência” (BRAVERMAN, 1987, p. 320). Contudo, partindo-se dos pressupostos teóricos do materialismo histórico-dialético (MARX & ENGELS, 1987), não se pode postular que essa cisão seja natural, no sentido de a classe trabalhadora aceitar passivamente sua condição de oprimida, explorada. Pelo contrário, as contradições que permeiam esses dois entes sociais têm imposto uma sempre busca por estratégias de firmação de classe. Nos moldes gramscianos (1968), pode-se dizer que ambos disputam hegemonias2, muito contribuindo para isso o espaço escolar, já que a classe trabalhadora, compreendendo que a escola, instituição inserida numa formação social pautada por relações sociais de produção capitalista, tem sido utilizada “[...] como uma instância mediadora, nos diferentes níveis, dos interesses do capital” (FRIGOTTO, 2006, p. 179), passa a requerer outra escola, em cujo interior seus interesses sejam a tônica, implicando, por conseguinte, em termos linguageiros, valorização da identidade dialetal dos trabalhadores, porque elemento de subjetividade e de consciência de classe, fatores importantes para a instauração de uma realidade social pautada pela humanização do homem. Em termos linguageiros, toma-se como elemento caracterizador para a presente reflexão o fenômeno da nasalização vocálica pretônica por efeito da consoante da sílaba seguinte, quando se diz [kã´neta] em lugar de [ka´neta], por exemplo, estudado no município de Cametá, nordeste do Estado do Pará. 2 Apoiado em Gramsci, Frigotto (2006, p. 192), salienta que “O conceito de hegemonia expressa a capacidade de direção, de conquista de alianças, de desarticulação da classe antagônica, na consolidação de um bloco histórico”. 1

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Trata-se, então, segundo Frigotto (2006, p. 192), da busca por uma escola que ajude a classe trabalhadora a “[...] elaborar e “explicitar seu saber, sua ciência e sua consciência”” “[...] partindo do seu senso comum, de sua cultura [...]”, sem negar-lhe, pois, o “saber acumulado no trabalho e na vida” (ibdem, p. 205). Em termos linguageiros, contudo, sob as ações do capital, não é o que vem se dando com o saber linguístico dos trabalhadores, fruto de sua materialidade histórica. Mesmo face aos avanços em termos de fundamentação teórica quanto aos conhecimentos sobre a diversidade linguística brasileira, pautados nos PCNs (2001), a classe trabalhadora ainda vê negligenciada, no universo escolar, sua materialidade linguageira, conforme Soares (2002), haja vista que a mesma não interessa ao movimento do capital, conforme palavras de Arroyo (2002): Entretanto, o direito à educação, os avanços das classes trabalhadoras na formação do saber, da cultura e da identidade de classe continuam sendo sistematicamente negados, reprimidos e, enquanto possível, desestruturados, por serem radicalmente antagônicos ao movimento do capital. (ARROYO, 2002, p. 78).

E não interessa ao capital porque essa é uma das maneiras por ele encontradas para impedir a união da classe trabalhadora, o sentimento de pertença a uma classe (HOBSBAWM, 2008), com interesses totalmente antagônicos àquele. Assim, fragilizando elementos que permitem a coesão social entre os trabalhadores, o capital vai conseguindo impor-se cada vez mais sob os que somente detêm a força de trabalho, explorada nas relações de mercado por ele estabelecidas. Entretanto, contra essa lógica a classe trabalhadora se opõe, advogando, por exemplo, que os seus saberes (aí incluídos os linguísticos) também façam parte, no interior do universo escolar, de reflexão e interação com outras formas linguageiras presentes no meio social. Trata-se de um movimento que pretende ultrapassar a mera defesa de identidade deste ou daquele grupo, já que a derrocada desse modo de produção excludente não ocorrerá por meio de lutas isoladas, mas pela união dos trabalhadores (MARX & ENGELS, 2006). O que se busca, então, é legitimar o fortalecimento de uma consciência de classe, por meio da linguagem, entre os trabalhadores, de modo a permitir-lhes condições para a transformação da realidade social, principalmente quando consideramos que a escola que aí se encontra, com seus currículos e saberes, não nascera voltada para os menos favorecidos, senão para o aprimoramento da classe que vive da exploração do trabalho alheio, conforme Saviani (1998): Se antes, no comunismo primitivo, a educação coincidia inteiramente com o próprio processo de trabalho, a partir do advento da sociedade de classes, com o aparecimento de uma classe que não precisa trabalhar para viver, surge uma educação diferenciada. E é aí que está localizada a origem da escola. A palavra escola em grego significa o lugar do ócio. Portanto, a escola era o lugar a que tinham acesso as classes ociosas. A classe dominante, a classe dos proprietários, tinha uma educação diferenciada que era a educação escolar. Por contraposição, a educação geral, a educação da maioria era o próprio trabalho: o povo se educava no processo de trabalho. Era o aprender fazendo. Aprendia lidando com a realidade, aprendia agindo sobre a matéria, transformando-a. (SAVIANI, 1994, pp. 152-153)

Entretanto, quando se pleiteiam os saberes dos trabalhadores como elementos também de importância na reflexão escolar não se está advogando com isso a inteira rejeição dos saberes já institucionalizados, senão uma relação dialética entre os mesmos, de modo a permitir, pela contradição, uma formação omnilateral (MANACORDA, 1991), ou seja, uma formação que abarque a totalidade de conhecimentos produzidos pelo trabalho humano, favorecendo aos trabalhadores uma maior compreensão da realidade em que vivem, a fim de melhor nela intervir. Em termos linguageiros, por exemplo, não significa que a escola deixará de cumprir seu papel de ensinar o dito português padrão, já que a classe trabalhadora, no dizer de Soares (2002), precisa também adquirir esse instrumental para a participação política em prol de uma sociedade contrária às desigualdades sociais. Por outro lado, já não se compactua com a tese de que a negação dos saberes linguísticos dos trabalhadores faz-se necessária para que os mesmos possam, por meio do domínio do dito padrão, serem recebidos pelo mercado de trabalho, cabendo aos que teimam em manter suas características dialetais o desemprego, a marginalização, imputando-se, assim, ao trabalhador a culpa pela não empregabilidade, quando se sabe

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que a razão do problema é de ordem estrutural3. Trata-se, então, de permitir ao trabalhador a reflexão sobre sua identidade de classe, via linguagem, em paralelo com o saber linguístico homogeneizante da escola, de modo que o mesmo se veja enquanto sujeito historicamente construído, portador de uma realidade social que se opõe ao estabelecido pela sociedade por meio da escola, mas em hipótese alguma inferior, sem capacidade de também contar e sistematizar a realidade vivida. Passa-se, então, a compreender as características linguageiras dos trabalhadores como resultantes de sua materialidade de vida, marcas de classe, porque fruto das relações sociais travadas entre os homens, já que: A produção de idéias, de representações, da consciência, está, de início, diretamente entrelaçada com a atividade material e com o intercâmbio material dos homens, como a linguagem da vida real. O representar, o pensar, o intercâmbio espiritual dos homens, aparecem aqui como emanação direta de seu comportamento social. (MARX & ENGELS, 1987, p.36)

A escola, como uma das formas de a Educação se manifestar (SAVIANI, 1994), que os trabalhadores vêm advogando ao longo dos anos não é a que “[...] discrimina, nega o saber da classe dominada e que a impede de expressar esse saber bem como ter acesso ao saber elaborado e sistematizado, ou lhe dá apenas acesso parcial, que inculca como universal a visão burguesa [...]” (FRIGOTTO, 2006, p. 225). Pelo contrário, busca-se uma escola em que a unidade teoria-prática seja a tônica, em que os saberes dos trabalhadores também sejam percebidos como oriundos das “[...] relações sociais de produção da existência historicamente determinadas” (ibdem, p. 226) e, portanto, também importantes “[...] para se entender e atuar na societas rerum e na societas hominum [...]”4 (ibdem, p. 226). Sabe-se, contudo, que tais objetivos não são pontos pacíficos entre os que detêm os meios de produção. 3. Linguagem: ações e reações no interior escolar Partindo-se da tese de que a linguagem, fruto das relações materiais entre os homens, constitui-se, em termos políticos, elemento demarcatório de classe social, no que se refere a dialeto, permitindo aos trabalhadores identificarem-se como sujeitos com uma materialidade histórica distinta do ideário burguês, bem como da proposição de que a lógica capitalista busca de todas as formas fragilizar a construção hegemônica dos trabalhadores, o que, no que concerne às práticas linguageiras, significa criar situações para que os sujeitos sintam seu dialeto como inferior ao dito padrão culto, impedindo-lhes, via linguagem, por exemplo, um maior de sentimento de classe, favorecendo-se, assim, a não-articulação dos trabalhadores, há de se compreender que por trás do prestígio ou desprestígio de formas linguísticas está em jogo muito mais que uma simples questão de identidade; está em jogo também a luta de classes, a construção de projetos distintos de sociedade, já que “[...] toda luta de classes é uma luta política” (MARX & ENGELS, 2006, p. 39). E o projeto de sociedade da classe trabalhadora implica a aceitação de marcas dialetais que fomentem o sentimento de classe, que possibilitem aos trabalhadores um amalgamar-se em torno de interesses, valores e características culturais em comum. Trata-se, enfim, de um projeto político que prevê uma práxis totalizante, no sentido de permitir ao homem o pleno exercício de suas faculdades sociais, políticas e culturais, implicando, assim, uma concepção de vida voltada para a omnilateralidade humana, para uma formação que promove “[...] desenvolvimento total, completo, multilateral, em todos os sentidos das faculdades e das forças produtivas, das necessidades e da capacidade da sua satisfação” (MANACORDA, 1991, p. 78-79). É por esse motivo, pois, que talvez a classe trabalhadora Frigotto (2006, p. 67), criticando a Teoria do Capital Humano que ainda hoje vem permeando ações da Educação brasileira, assim se posiciona contra essa força imanente da escolarização no combate ao desemprego: “Enfim, a ótica positivista que a teoria do capital humano assume no âmbito econômico justifica as desigualdades de classe, por aspectos individuais; no âmbito educacional, igualmente mascara a gênese da desigualdade no acesso, no percurso e na qualidade de educação que têm as classes sociais”. 4 Segundo Frigotto (2006), tomando como base Gramsci, os conhecimentos provenientes da societas rerum referem-se aos saberes científicos necessários para dominar e transformar a natureza; quanto os da societas hominum, buscam promover uma consciência sobre direitos e deveres, introduzindo os trabalhadores na sociedade política e civil. 3

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continue teimando em defender seus traços dialetais no interior do universo escolar, mesmo diante de todas as investidas do capital para promover o desprestígio para com suas marcas linguageiras de identidade, de classe social. Os trabalhadores entendem, portanto, que a educação escolar, com seus saberes, não pode estar desarticulada de sua vida, de sua materialidade histórica, porque isso também lhe desenvolve por inteiro, multilateralmente. Destarte, essa teimosia, que é política, vem garantindo à classe trabalhadora, em alguns momentos, vitórias, como, por exemplo, quando se consegue que uma marca de identidade linguística se torne aceita no interior escolar; em outros, contudo, vem lhe possibilitando, mesmo com menor probabilidade de manifestação linguageira, pelo menos a garantia de que sua voz existe no meio social, de que são sujeitos distintos, com histórias e necessidades diferentes da classe-que-vive-daexploração, como que denunciando a sociedade opressora em que se vive, obstinada em discriminar, em estigmatizar, e em destruir as condições materiais de vida dos sujeitos que subjetivamente interagem por meio de marcas dialetais opostas à dita norma linguística prestigiada, já que isso lhe favorece o poder enquanto classe detentora do capital. De tudo, entretanto, permanece o disposto por Marx & Engels (2006, p. 39): “De vez em quando, os operários triunfam, mas sua vitória é passageira. O resultado verdadeiro de suas lutas não é o sucesso imediato, mas a extensão sempre maior da união dos operários”. Assim o sendo, parece que as vitórias da classe trabalhadora, sejam elas pequenas ou grandes, em termos de presença de sua identidade linguística no interior escolar, representa um aproveitar-se “[...] das divisões internas da burguesia para forçá-la a reconhecer, sob forma de leis, certos interesses particulares dos operários” (MARX & ENGELS, 2006, p. 40); representa uma “[...] extensão sempre maior da união dos operários” (ibdem). 3.1 O caso da nasalização vocálica pretônica diante de consoante nasal na sílaba seguinte em Cametá – nordeste do Pará – Brasil: reação-ação-reação Estudando-se a variação da nasalização vocálica pretônica seguida de consoante nasal na sílaba seguinte no português falado no município de Cametá5, quando o falante articula, por exemplo, [kã’neta] em lugar de [ka’neta], com a pretônica /a/ nasalizada por assimilação do traço [+nasal] da consoante da sílaba seguinte (/n/, por exemplo), verificou-se uma maior probabilidade de ocorrer entre os cametaenses a variante presença de nasalização ([kã’neta] em lugar de [ka’neta]), haja vista o alto peso relativo de 0,86 face o tão somente 0,15 da ausência de nasalização. Em termos percentuais, a nasalização fora 70% maior que a desnasalização. Tabela 01 – A variável dependente e suas variantes

Comparando-se resultados, constatou-se que essa maior probabilidade de ocorrência da variante presença de nasalização em Cametá, com um percentual de 85% de um total de 2.575 dados, assemelhava-se aos resultados obtidos por Cassique (2002) em Breves, zona urbana, nordeste paraense, Trata-se de resultado de investigação sociolinguística financiada pelo PIBIC/UFPA/INTERIOR (2008), que garantiu uma bolsa de pesquisa para a discente Giussany Socorro Campos dos Reis, oriunda do Curso de Letras do Campus Universitário do Tocantins/Cametá – UFPA. A pesquisa seguiu os pressupostos teórico-metodológicos da sociolinguística laboviana (Labov, 1983), tomando-se o programa VARBRUL como ferramenta para obtenção de percentuais e pesos relativos que possibilitaram as análises aqui em apreço. Para um maior conhecimento sobre esse programa, ver SCHERRE, Maria Marta Pereira & NARO, Anthony Julius. Análise quantitativa e tópicos de interpretação do Varbrul. In: MOLLICA, Maria Cecília & BRAGA, Maria Luiza. Introdução à Sociolinguística: o tratamento da variação. São Paulo: Contexto, 2003.

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uma vez que lá o peso relativo também fora alto para a presença de nasalização: peso relativo de 0,54, 53% de um total de 2.013 dados, face o peso relativo de 0,86 observado em Cametá. Em termos ainda comparativos, essa alta probabilidade de nasalização em Cametá, considerando-se que nesta investigação os dados reportavam-se tanto a falantes da zona urbana como rural, corroborava também com os resultados obtidos por Tavares & Tavares (2005), ao estudarem o mesmo fenômeno no português falado por analfabetos de algumas ilhas desse município, zona rural. Com efeito, a partir de dados obtidos a seis informantes, verificaram um peso relativo de 0,78 para a variante presença de nasalização, 76% de ocorrências de um total de 75 dados. Diante dos dados, pôde-se inferir que a presença de nasalização era fenômeno característico dos falantes cametaenses, servindo-lhes para marcarem uma identidade linguística semelhante à dos falantes de Breves (PA), Recife, Salvador e Rio de Janeiro, onde também a presença de nasalização é alta6. Por outro lado, o resultado da presente pesquisa apresentou uma nova configuração para o disposto por Cassique (2002), no sentido de que, no Brasil, a partir do norte, há uma ascendência de vogais nasalizadas partindo do dialeto amazônico, onde se encontra Breves, para os dialetos nordestinos, atingindo aí um ápice, decrescendo no sentido do Rio de Janeiro e São Paulo, até diminuir consideravelmente no sul do país (cf. gráfico 01). Tal configuração dar-se-ia, considerando os dados do presente trabalho, no sentido de que essa ascendência/descendência entre os falares do norte e os do sul passaria, inicialmente, por uma curva descendente no Estado do Pará, no sentido de a região nordeste desse Estado, onde se encontra Cametá, apresentar maior índice probabilístico de presença de nasalização que a mesorregião do Marajó, microrregião de furos de Breves, onde se encontra o município de Breves, conforme gráfico 01.

A partir, pois, da paráfrase do gráfico idealizado por Cassique (2002), verificou-se, de fato, a ascendência/descendência do fenômeno entre lugares diferentes do país, com a ressalva, contudo, de que no interior do Estado do Pará pudesse estar havendo certa variação quanto à maior probabilidade de ocorrência de nasalização, no sentido de a região nordeste do Pará, microrregião Cametá, onde se encontra o município de Cametá, apresentar peso relativo mais elevado que a mesorregião do Marajó, microrregião de furos de Breves, onde se localiza o município de Breves, havendo, assim, um ápice de nasalização em Cametá com uma queda em Breves e, talvez, em Cassique (2002), estudando o mesmo fenômeno em Breves (PA), elaborou um quadro comparativo com os dados obtidos em cinco capitais, oriundos de trabalhos de outros pesquisadores. Com efeito, Breves (PA), com um peso relativo de 0,54, assemelhava-se, em termos de presença de nasalização, a Recife, peso relativo de 0,66, Salvador, peso relativo de 0,57, Rio de Janeiro, peso relativo de 0,52, divergindo, contudo, de São Paulo e Porto Alegre, onde os pesos relativos estiveram abaixo de 0,50, sendo 0,43 para o primeiro e 0,34 para o segundo. 6

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outras partes do Pará7. Outros estudos no Pará, todavia, poderão ou não confirmar o que se dispõe inicialmente. Fica patente, contudo, a superioridade probabilística de nasalização em Cametá face os demais lugares presentes no gráfico acima. De um ponto de vista social, os resultados da presente pesquisa constataram que falantes da zona urbana, com um peso relativo de 0,55, com maior probabilidade favorecem a nasalização em exame, enquanto que os da zona rural a desfavorecem, com um peso relativo de 0,47. Tabela 02 – Procedência

Numa sociedade dividida em classes, como a capitalista, a zona urbana geralmente tende a liderar fenômenos que, do ponto de vista social, não implicam desprestígio para com seus membros. Pelo contrário, busca justamente imprimir seus valores aos demais membros da sociedade, como os da zona rural, não raras as vezes neutralizando a subjetividade desse meio social, como os linguísticos, em proveito também de uma neutralização da consciência de classe, tão necessária para a construção de uma nova hegemonia social atrelada aos interesses dos trabalhadores. De qualquer forma, parece que os dados apontam para um uso linguístico (presença de nasalização) não estigmatizado socialmente pela sociedade, já que a zona urbana, que geralmente, como já dito, foge a formas não prestigiadas, lidera a probabilidade de ocorrência do fenômeno em exame. Todavia, os dados também expressam que os falantes da zona rural não se assumem como usuários de maior probabilidade de formas pretônicas nasalizadas por efeito da consoante nasal da sílaba seguinte, haja vista o peso relativo abaixo de 0,50, encontrando-se aí dois mundos em conflito: o urbano, com um falar nasalizado mais aceitável – [kã´neta]; o rural, com um falar mais voltado para a desnasalização – [há´neta]. Quanto à faixa etária, foram os mais jovens (15 a 25 anos) que com maior probabilidade realizaram a presença de nasalização, com um peso relativo de 0,63. As demais faixas etárias tenderam para uma inibição do fenômeno em exame: 26 a 45 anos, peso relativo de 0,47; 46 anos em diante, peso relativo de 0,37. Tabela 03 – Faixa etária

Pelo que se observa, a nasalização pretônica diante de consoante nasal na sílaba seguinte é fenômeno recente no município de Cametá, haja vista a maior probabilidade de ocorrência entre os mais jovens e a inibição entre os de faixa etária mediana e os de mais idade. Com efeito, é possível que essa nasalização venha se estabilizar em Cametá à medida que, com o decorrer do tempo, as demais faixas etárias também a assimilem em suas articulações. O que se pode dizer, enfim, é que se trata de um fenômeno em fase de surgimento entre os cametaenses, uma variante inovadora, liderada, pois, pelos mais jovens que, do ponto de vista social, não a têm como elemento estigmatizante. Para eles, trata-se de uma variante de traço gradual8, pois. Pode ser, pois, que haja também uma curva descendente/ascendente, ou vice-versa, no próprio Estado do Pará, à semelhança do que fora verificado por Cassique (2002) entre o Pará, a partir de Breves, e as cinco capitais brasileiras. 8 Bortoni-Ricardo (2005) considera variantes linguísticas graduais aquelas que, no interior de um continuum de uma dada 7

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No que se refere à escolaridade, analfabetos e falantes com ensino médios, ambos com peso relativo de 0,58, lideraram o exercício da presença de nasalização com maior probabilidade de manifestação. Os falantes com ensino fundamental tenderam a desfavorecer o fenômeno em exame, com um peso relativo de 0,33. Tabela 04 – Escolaridade

A escola, sendo uma instituição burguesa (BOURDIEU & PASSERON, 1992) destina-se, não raras as vezes, à perpetuação do modo de produção capitalista, principalmente quando se considera que seu surgimento coadunou-se aos interesses daqueles que detêm os mecanismos de extração da mais-valia, os quais, ciclicamente, vêm criando dispositivos necessários para continuar obtendo cada vez mais lucros, perpetuando sua hegemonia. É claro, contudo, que a classe trabalhadora, como já disposto, vem, no interior do capitalismo, buscando a transformação da sociedade e, portanto, uma escola atrelada aos interesses dos menos favorecidos (ARROYO, 2002). Contudo, havemos de aprofundar que essa escola burguesa, a serviço do capital, só tende a permitir, geralmente, elementos em seu interior quando já os tenha assimilado como não prejudiciais a seus interesses. Se assim o for, a escola em Cametá, também inserida no contexto de um mundo capitalista, permite a presença de nasalização em sua fase terminal da educação básica porque aí não percebe uma marca como item de estigma social, desprestígio. Se o percebesse, combateria. Eis porque, pois, os falantes do ensino médio realizam a presença de nasalização com maior probabilidade, tal qual os analfabetos. Por outro lado, sem a visão neurótica de contemplar demônios em todo lugar, não se pode esquecer o fato de que essa mesma escola burguesa geralmente tende a reinterpretar valores da classe trabalhadora, a fim de, em momentos de crise, atenuar possíveis conflitos. Assim, talvez, pode ser isso que esteja acontecendo com o favorecimento de falantes do ensino médio para com a presença de nasalização. Com efeito, a intensificação de filhos de trabalhadores no universo escolar, para os quais a escola não fora criada (SOARES, 2002), possibilitou uma série de problemas para os mesmos, como evasão e repetência, fruto de uma assimetria entre o capital cultural destes e o preceituado pela escola (BOURDIEU & PASSERON, 1992), de modo que a permissão de uso de determinada variante linguística seria, no fundo, uma tentativa de evitar esses problemas, não tanto por causa dos sujeitos, mas por causa de sua base existencial. Considerando tal análise com plausível, pode-se entender o porquê de falantes com ensino fundamental inibirem a presença de nasalização. Com efeito, até aí a escola brecaria o uso da variante em exame, vivendo possíveis conflitos, mas evitando-os no ensino médio, autorizando, sem receios, o uso da mesma. A classe trabalhadora, pois, aproveitando-se dessas crises do capital vai implementando seus valores no universo escolar, seus saberes, forçando a burguesia a reconhecer, sob forma de leis, certos interesses dos operários (MARX & ENGELS, 2006). A presença da nasalização como marca maior entre os cametaenses, pois, não é resultado do acaso. É fruto de embates políticos entre a classe trabalhadora e a detentora dos meios de produção, de modo que a pressão por escola pública de qualidade para os trabalhadores, por exemplo, vem provocando uma reformulação na forma de encarar as variações dialetais, por exemplo, no sentido de permitir que o contato entre a linguagem do aluno e a preceituada pela escola seja percebido como enriquecimento, não como uma ameaça (SNYDERS, 2005). Os trabalhadores, pois, buscam comunidade de fala, já não são percebidas como formas portadoras de estigmatização, como não pronunciar o /r/ nos infinitivos verbais.

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uma escola em que o proletariado consiga se fazer ouvir, “[...] exprimir as suas exigências como ele as entende e, portanto, antes de tudo, com as palavras que lhe são próprias [...] (ibdem, p. 348). Não se trata de negligenciar os saberes, em termos de linguagem, da escola, mas sim de se proceder a compreensão política de que a união da classe trabalhadora perpassa pela consciência de que suas práticas linguageiras não são equivocadas, sem nexos; pelo contrário, constituem a materialidade histórica de uma classe que vive oprimida pelo modo de produção capitalista e que, no interior dos embates políticos, necessita cada vez mais se firmar enquanto classe, o que pressupõe também o reconhecimento de sua história de vida, de sua cultura, de seus saberes. Aqui, com relação à nasalização em apreço, a classe trabalhadora sai duplamente vitoriosa. Primeiro porque garante a materialidade histórica de suas práticas linguageiras no interior do universo escolar; segundo porque se faz ouvir, no dizer de Snyders (2005), com suas palavras, como sujeitos com realidades diferenciadas. Trata-se, pois, de um sujeito urbano jovem, do interior da Amazônia, que vem conseguindo permear a escola com suas manifestações linguageiras. É claro, contudo, que essa permeabilidade não se realiza sem conflitos, haja vista que a escola procura reprimir a manifestação linguística aqui em apreço ainda nos primeiros anos escolares. E não poderia ser diferente, uma vez que enquanto houver a primazia da sociedade privada, enquanto o trabalho abstrato sobrepujar o trabalho concreto (MARX & ENGELS, 2006), as duas classes antagônicas continuarão lutando em prol de seus projetos societários distintos: os burgueses, em prol da sempre obtenção da mais-valia; os proletários, em busca da primazia do reino da liberdade, do trabalho em sua materialidade concreta9. 4. Considerações Finais Nos últimos anos, os trabalhadores vêm instaurando uma nova ordem de exigências quanto à escolarização, já não se tratando tão somente da construção de mais prédios escolares. Pelo contrário, passou-se mais ainda a reconhecer o papel crucial da educação no sentido de se fornecer os instrumentos necessários para o embate político-ideológico contra a sociedade burguesa (tratase do poder fornecido pela societas rerum, nos moldes gramscianos (1968)), além de se constituir em importante momento para o fortalecimento de classe. Nesse sentido, estes últimos vêm exigindo uma educação que tenha a ver com as preocupações concretas de sua existência, valorizando, também, seus saberes acumulados no trabalho e na vida, entre eles os linguísticos, como tão bem destaca Frigotto (2006). Essa nova configuração resulta de uma efetiva constatação de que a escola destinada aos filhos e filhas dos trabalhadores, no interior da lógica capitalista, não pretende em hipótese alguma promover a emancipação humana. Pelo contrário, ao se desconsiderar o capital cultural e linguístico dos menos favorecidos como importante instrumento para se alcançar os saberes escolares, como tão bem já frisaram Bourdieu & Passeron (1992), a escola contribui para o fracasso escolar e, por conseguinte, para a formação de trabalhadores cada vez mais voltados tão somente para o saber fazer, já que impedidos de ampliarem seus conhecimentos, no sentido de também dominarem os saberes que a sociedade burguesa vem utilizando para manter seu modo de produção excludente. A negação, pois, dos saberes dos trabalhadores é também uma negação de classe, a que os mesmos se contrapõem. Assim o sendo, perece-nos que, em termos de afunilamento de nossas considerações, pode-se pleitear que: 1. A consciência de classe é necessária para a busca de bases para a construção de uma realidade atrelada aos interesses dos trabalhadores. 2. Essa consciência perpassa pela valorização e reflexão, no interior do universo escolar, de aspectos linguísticos que constituem a materialidade histórica de vida dos sujeitos que lá se encontram, bem como a própria representação social que possuem sobre a realidade. A sociedade almejada pelos trabalhadores pressupõe “[...] a chegada histórica do homem a uma totalidade de capacidades produtivas e, ao mesmo tempo, a uma totalidade de capacidades de consumo e prazeres, em que se deve considerar sobretudo o gozo daqueles bens espirituais, além dos materiais, e dos quais o trabalhador tem estado excluído em consequência da divisão do trabalho” (MANACORDA, 1991, p. 81).

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Anais do II Congresso Internacional de Estudos Linguísticos e Literários na Amazônia (CIELLA) 3. Uma escola atrelada aos interesses dos trabalhadores não pode se eximir de reconhecer em seu universo de conhecimentos os saberes historicamente produzidos pela classe trabalhadora, como as diferentes formas de a linguagem se manifestar. 4. Não se cogita, contudo, que a classe trabalhadora deva possuir somente a reflexão sobre a sua linguagem, mas que esta sirva de norte para o conhecimento de outras formas de interação, empoderando-se politicamente por meio delas, a fim de instituir paulatinamente a hegemonia da propriedade coletiva, de uma sociedade voltada para o fundamento do trabalho em sua faceta concreta (MARX, 1983). 5. O reconhecimento efetivo dos saberes dos trabalhadores pela escola, como os linguísticos, representa também a possibilidade de uma maior consciência de classe entre os mesmos, reconhecendo-se, via linguagem, como sujeitos historicamente explorados pelo capital, o qual deve ser combatido pela força organizativa que os deve unir. (RODRIGUES & RODRIGUES, 2009, s/p, no prelo)

Uma escola realmente instigadora de uma nova ordem política necessita ser construída sob a ótica dos trabalhadores, pois, o que para muito pode contribuir também o ideal gramsciano de Escola Unitária (GRAMSCI, 1968), já que não serão apenas conhecimentos científicos sendo veiculados, mas compromissos com a pessoa humana, no sentido de se possibilitar uma práxis revolucionária via conhecimentos dos direitos e deveres, que introduzam o sujeito em uma prática democrática verdadeiramente participativa. Não se está, contudo, conforme Manacorda (1991, p. 96), confiando “[...] demais nas possibilidades revolucionárias de um sistema escolar frente à sociedade, da qual é produto e parte [...]”; está-se, isto sim, ainda conforme Manacorda (ibdem, p.96) não se eliminando “[...] todo adiamento pessimista e omisso de intervir nesse setor somente após a revolução, isto é, quando as estruturas sociais já tenham sido modificadas”. É com base nessa lógica, pois, que os trabalhadores podem estar compreendendo a necessidade de se construir uma escola em que, se opondo ao ideário burguês de currículo, estratégias de ensino, por exemplo, suas variações dialetais nela se façam presentes, como elementos demarcadores de classe e responsáveis pela também construção de uma nova realidade social. Referências ARROYO, Miguel G. O direito do trabalhador à educação. In: GOMES, Carlos Minayo et al. Trabalho e conhecimento: dilemas na educação do trabalhador. São Paulo: Cortez, 2002. BRAVERMAN, Harry. Trabalho e capital monopolista: a degradação do trabalho no século XX. Rio de Janeiro: Editora Guanabara, 1987. BORTONI-RICARDO, Stella Maris. Variação linguística e atividades de letramento em sala de aula. In: KLEIMAN, B. Angela. Os significados do letramento: uma nova perspectiva sobre a prática social da escrita. Campinas, SP: Mercado de Letras, 1995. CASSIQUE, Orlando (2002). Minina bunita...olhos esverdeados (um estudo variacionista da nasalização vocálica pretônica no Português falado na Cidade de Breves/PA). UFPA Dissertação de Mestrado, inédita. FRIGOTTO, Guadêncio. A produtividade da escola improdutiva. São Paulo: Cortez, 2006. GRAMSCI, Antonio. Os intelectuais e a organização da cultura. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1968. LABOV, William. Modelos sociolinguísticos. Traducción José Miguel Marinas. Madrid: Cátedra, 1983. MANACORDA, Mario Alighiero. Marx e a Pedagogia Moderna. 3ª Edição. São Paulo: Cortez, 1991. MINISTÉRIO DA EDUCAÇÃO. Parâmetros Curriculares Nacionais: Língua Portuguesa – Secretaria da Educação Fundamental – 3. ed. – Brasília: MEC/ 2001. MARX, Karl; ENGELS, Friedrich. A Ideologia Alemã. São Paulo: Editora Hucitec, 1987. ______. Manifesto do Partido Comunista. Porto Alegre: L&PM, 2006. MARX, Karl. O capital. Vol. I, São Paulo: Abril Cultural, Caps. I a V, 1983. SAVIANI, Dermeval. O trabalho como princípio educativo frente às novas tecnologias. In: FERRETI, Celso João et al. (Orgs.). Tecnologias, trabalho e educação: um debate multidisciplinar. Petrópolis, RJ: Vozes, 1994.

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Tema geral: Línguas e Literaturas: Diversidade e Adversidades na América Latina RODRIGUES, Doriedson; RODRIGUES, Maria Isabel Batista. Educação e linguagem: da constituição do homem amazônida a políticas públicas educacionais. Belém: Anais do congresso da associação de professores de língua portuguesa – aslipa, 2008 (No Prelo). SCHERRE, Maria Marta Pereira; NARO, Anthony Julius. Análise quantitativa e tópicos de interpretação do Varbrul. In: MOLLICA, Maria Cecília; BRAGA, Maria Luiza. Introdução à Sociolinguística: o tratamento da variação. São Paulo: Contexto, 2003. SOARES, Magda. Linguagem e Escola: uma perspectiva social. São Paulo: Ática, 2002. SNYDERS, G. Escola, Classe e Luta de Classes. São Paulo: Centauro, 2005. TAVARES, Adriana; TAVARES, Cíntia. Nasalização vocálica pretônica no português falado pelo analfabeto do município de Cametá: um exercício de pesquisa em sociolinguística variacionista. Cametá, UFPA, 2005, TCC.

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MEMÓRIA E ORALIDADE NO ROMANCEIRO DE DONA MILITANA Edilberto Cleutom dos SANTOS (Universidade Federal do Rio Grande do Norte)

RESUMO: O presente estudo visa a estabelecer relações quanto ao significado sócio-cultural do fenômeno emergente de Dona Militana para a cultura potiguar. Para isso tomamos suas lembranças dos romances como peças de um contexto social, relacionados ao tempo e ao espaço, influenciando a vida material e moral do seu grupo social. Ressaltamos, com isso, o fenômeno da memória individual em sua relação com a memória coletiva. Propomos, nesse sentido, supor que a retenção e a permanência desses romances na memória da romanceira revelam uma dinâmica de seu grupo social para a constituição de sua identidade. Nesse sentido, servimo-nos como referencial teórico dos estudos de Maurice Halbwachs, no que tangem as discussões relativas à memória coletiva em paralelo aos estudos de Paul Zunthor, quando tratamos das funções da oralidade para a formação da identidade. Para a execução do trabalho, é de fundamental importância, naturalmente, o relato de vida da própria Dona Militana em confronto com os simbolismos culturais presentes nos romances, em vista de flagrarmos as (co)incidências que demarquem seus vínculos de identidade com o universo cultural em que se insere. Em função disso, tomamos como objeto de análise desde os depoimentos apresentados em entrevistas, até os romances em seus aspectos poéticos, lingüísticos e mitológicos, passando inclusive pelos significados que a performance da romanceira revela. Objetivamos, portanto, a uma compreensão dialógica da relação entre a memória individual (o caso de Dona Militana), com a memória coletiva, calcada sobre a concepção hipotética de que subjaz à aparente singularidade desse fenômeno – até certo ponto um fato isolado – uma razão intrínseca e complexa que se revela como a ponta de um iceberg, em que confluem motivações históricas inconscientes de uma formação cultural. PALAVRAS-CHAVE: Memória coletiva; identidade cultural; oralidade.


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1. Memória coletiva e identidade cultural A memória tem sido objeto de estudo de diversas áreas do saber e tem estimulado a curiosidade e imaginação em diversas épocas. Sejam a filosofia, a psicologia e a psicanálise, todos voltaram suas atenções e instrumentações teóricas para a compreensão da função, do mecanismo e do significado da memória para o homem. Naturalmente, cada uma dessas áreas guarda relativas distâncias uma das outras, em função dos princípios sobre que repousam o pensamento. Assim, enquanto a filosofia compreendia a memória pelo viés epistemológico, a psicanálise, mais do que a psicologia, associa-a ao conceito de inconsciente. Todavia, o ponto comum que une essas áreas de saber está especialmente no acordo tácito sobre a função preponderante da memória na formação da identidade e personalidade do indivíduo. Mais recentemente coube à sociologia e à antropologia enveredar por esse ramo de especulações em busca de compreender de que forma atuaria a memória no seio de inter-relações sociais, deslocando o eixo de preocupações e perquirições sobre a memória da individualidade para a coletividade. Pioneiro nestas especulações, Maurice Halbwachs investiga as relações entre a memória individual e a memória coletiva1, circunscrevendo a essa interação a noção de identidade. Essa concepção só é possível porque se rompe a dicotomia entre indivíduos e sociedade. Compreendendose não haver sociedade sem o indivíduo, tanto quanto o indivíduo sem a sociedade, seria por meio de intensas e constantes interações, que se formaria a identidade coletiva. A afirmação central de seu pensamento é de que a memória é construída em função dos “quadros sociais”, os quais consistiriam em pontos de referências capazes de estruturar nossa memória, inserindo-a na memória da coletividade a que pertencemos. O processo de inserção se constituiria em função de uma afinidade entre a memória individual e a memória do outro, criando-se um campo referencial simbólico comum. Myriam Barros, na sua leitura de Halbwachs, diz que: (...) no ato de lembrar nos servimos de campos de significados - os quadros sociais - que nos servem de pontos de referência. As noções de tempo e espaço, estruturantes dos quadros sociais da memória, são fundamentais para a rememoração do passado na medida em que as localizações espacial e temporal das lembranças são a essência da memória.(BARROS, 1989:29)

Isto quer dizer que a memória individual se alimenta constantemente da memória dos outros com quem dividimos não só o espaço, mas o sentimento de pertencimento, ou seja, o sentimento de grupo. É nessa concepção que Halbwachs fala de “comunidade afetiva”. É importante ressaltar que esse termo “afetivo” é pertinente para que se compreenda nesse pensamento que a memória individual não é em absoluto produto coercitivo dos quadros sociais, mas que parte de uma aceitação e cumplicidade, capaz tanto de se formar a partir desses quadros, quanto de igualmente interferir e transformá-lo. Todavia as interações entre essas memórias são extremamente complexas, cujo processo não flui de forma unilateral, mas inclui lembranças e interdições, muitas vezes calando e recalcando determinadas lembranças. Para que nossa memória se beneficie da dos outros, não basta que eles nos tragam seus testemunhos: é preciso também que ela não tenha deixado de concordar com suas memórias e que haja suficientes pontos de contato entre ela e as outras para que a lembrança que os outros nos trazem possa ser reconstruída sobre uma base comum. (HALBWACHS, 1990, p.25)

Para chegar à definição de memória coletiva, Halbwachs precisa estabelecer um limite entre a ideia da memória coletiva e a ideia de memória histórica, enquanto esta seria linear, em tudo subordinado ao conceito de tempo, aquela tendendo a outra lógica, espiralada e complexa, possui uma concepção de tempo aberta e sujeita ao ponto de vista dos sujeitos sociais: “É a consciência coletiva que diferencia a memória coletiva da memória histórica. Há, além desta, outras formas de distinção, como a distinção do tempo e a distinção do universo que memoriza. Para a história, o tempo está dividido externamente pelos historiadores, quando classificam e ordenam os acontecimentos. Halbwachs não vê um processo, mas períodos históricos traçados posteriormente por indivíduos que deles não participaram. Esta ideia de história, em contraste com a noção de memória coletiva, acarreta para a primeira um sentido quase de falsidade, como se a verdade ou as verdades só fossem se apresentar enquanto história vivida, enquanto memória coletiva”. (BARROS, Myriam Moraes Lins de. “Memória e Família”. In: Estudos Históricos. Rio de Janeiro, 1989).

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Tanto a lembrança quanto o esquecimento são enquadrados pelo indivíduo e pelo grupo em função de marcas simbólicas construídas em função da reação do sujeito ou do grupo a sua história pregressa. Dessa forma podemos dizer que a memória coletiva alimentada pelos quadros sociais é formada tanto pelo que é lembrado quanto pelo que “deve” ser esquecido, e é nessa dialética de memória e esquecimento que o indivíduo constrói a sua memória pessoal e o seu sentimento de identidade. Mas nossas lembranças permanecem coletivas, e elas nos são lembradas pelos outros, mesmo que se trate de acontecimentos nos quais só nós estivemos envolvidos, e com objetos que só nós vimos. É porque, em realidade, nunca estamos sós. Não é necessário que outros homens estejam lá, que se distingam materialmente de nós: porque temos sempre conosco e em nós uma quantidade de pessoas que não se confundem. (idem, p.25)

É fato também que, muitas vezes, aquilo que foi relegado ao esquecimento aflora, em nova polarização, trazendo à tona lembranças que se pensavam perdidas, como é o caso de identidades emergentes. Esse retorno do recalcado obedece aos fatores históricos do presente que permitem focos de resistência de culturas outrora marginalizadas. A exemplo desse fenômeno podemos citar a emergência de comunidades quilombolas como também dos novos índios do Nordeste brasileiro, que espantam os censos mais recentes. 2. Memórias em confrontos – a formação de uma identidade É sob essa afirmação da memória coletiva como construção da ‘identidade coletiva’, e conseqüentemente cultural, que tencionamos estabelecer neste estudo algumas anotações quanto ao significado sócio-cultural do fenômeno emergente de Dona Militana para a cultura potiguar, especialmente São Gonçalo do Amarante, como também para as comunidades alocadas nessa região. Para isso tomamos suas lembranças dos “romances” como peças de um contexto social, relacionados ao tempo e ao espaço, influenciando a vida material e moral do seu grupo social. Militana Salustino do Nascimento (ou Maria José, como prefere ser chamada), uma das nove filhas de Atanásio Salustino do Nascimento, foi descoberta pelo pesquisador e folclorista Deífilo Gurgel, quando estudava danças e folguedos tradicionais. Seu universo imaginário é feito de modinhas, xácaras, cocos, toadas de boi, romarias, desafios, cancela, parcela, moirão, aboios, jornadas de chegança e fandango, todos guardados de memória, a revelia de intempéries e interdições que se estenderam por toda a sua vida. Revelada ao cenário da cultura oficial, condecorada e homenageada aos quatro cantos, é em verdade aceita de modo excêntrico e exótico, como um caso singular e raro, sem que se tente compreendê-la no contexto de seu grupo social, em São Gonçalo do Amarante, mais especificamente na comunidade de Canaã, no sítio Oiteiro, onde cresceu ouvindo do pai, todo o universo de poesia oral que ainda hoje preserva. É justamente pelo viés da memória e sua relação com a identidade cultural, que pretendemos esboçar aqui algumas reflexões que lancem luzes e um pouco de “lucidez” para o sentido cultural da romanceira. Segundo depoimentos e registros em jornais e revistas locais, Dona Militana aprendeu e “armazenou” o universo de cantos orais com o seu pai, ouvindo-o cantar, ainda criança, quando trabalhava na roça. Todavia, filha mais velha de uma família tradicional, marcada por preceitos patriarcais, sempre fora proibida de freqüentar as festas da região ou até mesmo de cantar “em público”, situação que se mantém imutável quando, adulta, já se encontrava casada. É notório que, em princípio, a vida de Dona Militana está calcada sob a condição da mulher em uma sociedade, cuja concepção, no início do século XX, não diferia da realidade colonial para quem a vida feminina estava restrita “ao bom desempenho do governo doméstico e na assistência moral à família, fortalecendo seus laços”, cabendo ao homem o papel central na provisão da mulher e dos filhos, a quem devia o poder de decisão na família. A essa proteção cabia à mulher responder com obediência (SAMARA, 1983, p.59).

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Essa interdição naturalmente não a impedia de “cantar” em ambiente doméstico, mais apropriado para a mulher, de modo que, embora relegados a uma memória subterrânea, seus cantares de certa forma não foram lançados ao esquecimento. Inclusive porque o próprio pai, que exercia importante papel nos folguedos locais, como brincante de fandangos e cheganças, mantinha acesa a memória dessa poesia. Assim, seria no papel de mãe e, posteriormente de avó, que Dona Militana resguardaria o seu direito de portadora dessa memória. De certa forma, podemos dizer que há duas memórias paralelas, senão em situação de confronto e dualidade. A primeira representada pelo pai, como portador autorizado de um saber admitido pelo grupo social, com função social definida, responsável pela perpetuação e duração de uma memória comum; por outro lado, Dona Militana resguardaria uma memória marginalizada e relegada à vida doméstica senão a um segundo plano. Trata-se, pois, de uma memória alimentada no espaço interno e uterino, enquanto a memória do homem dominaria os espaços externos de interação social. Poderíamos talvez insinuar que, se uma seria portadora de um poder político, a outra dominaria o espaço da afetividade. Todavia, em verdade, a memória paterna corresponde ainda a uma memória submissa a uma ideologia dominante cuja função seria a de concentrar a identidade cultural da comunidade. Por sua vez, a “memória Militana”, sublocada a uma condição de inferioridade, bebe em verdade da fonte de uma memória mítica, por isso mesmo milenar, cuja característica principal é a de uma natureza nômade que se expande irregularmente, desterritorializando-se constantemente e assumindo novas formas e novos significados. O único ponto em comum entre essas memórias estaria na materialidade da própria poesia oral. O gênero romance, de conceituações formais ambíguas, estaria no cerne de ambos os saberes, muito embora nem por isso deixando de ser conflituoso, pois cabia ao pai o exercício através da cantoria ritualizada nas danças e brincadeiras típicas da região, enquanto à romanceira caberia exclusivamente a materialidade da voz como meio e fim. Mesmo assim seria uma forma poética admitida pelos quadros sociais, interagindo no seio de uma memória coletiva carregada de valores simbólicos. Importa, sob este aspecto, compreender o reconhecimento dessa forma poética que remonta ao romanceiro hispânico e cujos personagens são bravos heróis e suas princesas, brancas, de olhos claros, no contexto da corte, muito embora associados a vaqueiros e cangaceiros e toda sorte de elementos típicos. A aceitação e a duração dessa memória em si mesma é suficientemente problemática e requer estudo comparativo aprofundado para que se extraiam reflexões esclarecedoras. Poderíamos atribuir por enquanto, mesmo que de forma hipotética, um possível desejo inconsciente a uma ascendência européia. Todavia, isso seria uma conclusão prematura e superficial, uma vez que sabemos que a memória é seletiva, mas em hipótese nenhuma passiva, capaz de apropriar-se daquilo que corresponde a um interesse comum ao grupo, porém atualiza-o em conformidade com uma estrutura latente de sua identidade. Poderíamos igualmente atribuir a isso a assimilação de estereótipos cujo conteúdo intrínseco corresponderia às representações coletivas do grupo social. Nesse caso, estaria talvez em processo a apropriação da memória do outro como forma de reação a uma dominação histórica e cultural e suas conseqüentes interdições, implícitas nesse processo. Vale ressaltar que a memória se concretiza no discurso e é pela linguagem que ela estabelece as interações sociais, reveladoras das identidades coletivas. Resta-nos, portanto, a investigação da fala e da oralidade, onde possivelmente encontraremos o esteio de um profundo e complexo embate de memórias e identidades. No cerne desse embate reside especialmente a dialética entre a memória escrita e a memória oral. É indiscutível, nesse aspecto que o grupo social de que faz parte Dona Militana convive com uma sociedade moderna em que a escrita e os media são recursos de memória dominante. É natural que o convívio de ambas as formas de memória não seja de todo assonante, o próprio espanto provocado pelos receptores e ouvintes quanto ao vigor da memória de Dona Militana dá provas das relações conflituosas entre essas formas de memória. Walter Benjamim, em seu ensaio, “O narrador”, aponta a essa condição moderna da perda da capacidade de narrar em função da força da técnica sobre as relações sociais, fenômeno causador de uma certa atrofia da memória oral.

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É sob esse ponto de vista que supomos D. Militana como um expoente de uma fase de transição de uma memória em transformação. Se de um lado, confluem em sua memória excertos de uma memória coletiva envolta em seus conflitos, de outro lado ela se põe como que a frente de um ressurgimento de uma memória anteriormente submissa às condições modernas e à supremacia da escrita. A exemplo disso, percebe-se que, após a revelação pública de sua arte, de certa forma tem-se alimentado certa efervescência cultural outrora adormecida. Não deixa de estar implícito a esse fenômeno, a dicotomia de classes que opõe as comunidades populares às classes e à cultura dominante, residindo na oralidade o instrumento de resistência dessas comunidades. É nesse sentido que nos fala Ayala: Essa prática de narração [oral] afirma-se como uma forma de resistência à alienação imposta pelo sistema que abrange tanto as situações de trabalho, como determinadas formas de lazer produzidas sobre o controle das classes dominantes. (AYALA,1988, p. 19)

E mais adiante: “As práticas de cultura popular possibilitam que os indivíduos a elas relacionados dificultem, de alguma forma, a perda de sua identidade e integridade enquanto seres humanos que vivem em sociedade”. (idem. p. 19) É necessário, portanto, aprofundarmos a compreensão da poética da oralidade como agente responsável pela resistência, continuidade e ao mesmo tempo transformação dessa identidade. Enfim, é nesse sentido que situamos o re-conhecimento de D. Militana dentro do seu grupo social, como a portadora de uma memória significativa à identidade cultural do lugar. Percebemos esse reconhecimento por meio da própria Militana quando diz: Vem das coisas que eu ouvia menina, criança, e continuei ouvindo. Eu canto desde pequena. Cantava pras filhas, canto pros netos, pro povo. Assim o povo me ouviu e pediu que eu cantasse mais. Lembro de tudo. De tanta coisa desse mundo de Deus...2

3. Literatura e oralidade Quando tratamos da literatura oral penetramos em um objeto de estudo movediço e problemático por natureza. Isso porque se conjugam, em verdade, áreas de saberes diversos nem sempre facilmente conciliáveis. De um lado deparamo-nos com o conceito de literatura já suficientemente complexo ao longo de toda uma tradição ocidental. Por outro lado os conceitos relacionados à oralidade, emergentes de recentes estudos lingüísticos, sociológicos e antropológicos, carecem muitas vezes de contornos que os definam mais claramente, em função mesmo de se situarem em zonas fronteiriças de ramos de conhecimento diversos. Sabe-se em princípio que a própria palavra literatura é vítima de uma multiplicidade de significações, as quais não serão pertinentes discuti-las aqui, todavia é fato que em geral esteve sempre associada ao exercício da escrita. Nesse sentido, independentemente de se tratar da prática ou do estudo das belas-letras, concepção nitidamente clássica, engajada em um projeto racionalista e objetivo; seja quando recebe conotação transcendente de arte do espírito, como fizera o pensamento romântico, imbuído de elementos intuitivos e subjetivos; ou pelas aventuras vanguardistas do século XX que a levara à condição revolucionária de arte (trans)formadora do mundo e da realidade; o gesto por que se forma a literatura seria sempre e indiscutivelmente o da escrita. Ou seja, ao longo de mais de dois séculos, o “fato literário” se fez associar à escrita, à revelia de todas as outras formas de manifestação poética, cujo suporte não incluísse os grafismos impressos sobre uma superfície plana, em postura nitidamente dominante e elitista. Excluía-se naturalmente a performance da voz, uma vez que esta não corresponderia às condições de validade do estatuto literário. Talvez isso se explique pelo fato de que a literatura, enquanto arte da escritura, atribua ao texto em si uma superioridade em relação à produção da obra (tomada aqui no sentido do momento 2

Entrevista concedida ao Diário de Natal em 25 de Setembro de 2006.

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de execução). O “efeito poético” consistiria, assim, na possibilidade de semioses múltiplas do texto, em suas relações internas de significâncias, associadas às possibilidades de interpretação, quando sujeito à recepção, coisa que só seria possível, pela fixidez do texto escrito, salvo da efemeridade da voz. Nesse sentido é que as obras poéticas vocais (para nos servirmos do termo preferido por Paul Zunthor), invertendo essa supremacia, enfatizam mais a execução performática, a gestualidade e a voz, em detrimento do texto, no seu sentido fechado e acabado. Com efeito, nas formas poéticas transmitidas pela voz (...), a autonomia relativa do texto, em relação à obra, diminui muito: podemos supor que no extremo, o efeito textual desapareceria e que todo o lugar da obra se investiria de elementos performanciais, não textuais, como a pessoa e o jogo do intérprete, o auditório, as circunstância, o ambiente cultural e, em profundidade, as relações entre a representação e o vivido (ZUNTHOR, 2000, p. 21).

Assim, podemos dizer que a poesia vocal assume os riscos da efemeridade, uma vez que sua “existência” está condicionada ao momento presente e às circunstâncias espaciais, cuja perpetuação dependeria exclusivamente da memória, igualmente volátil e metamorfa, e das re-atualizações espaciais. A literatura escrita, por sua vez, tendo já sua memória assegurada, estaria naturalmente salva da morte do esquecimento. O texto escrito representaria inconscientemente um “repouso” da ideia. Estando em repouso, suplantaria o tempo. Impulso que aparentemente contradiz as ideias platônicas, para quem a escrita “tornará os homens esquecidos, pois deixarão de cultivar a memória; confiando apenas nos livros escritos, só se lembrarão de um assunto exteriormente e por meio de sinais, e não em si mesmos (PLATÃO, 1966, p. 202)”. O texto oral, por seu lado, vivendo do instante e pondo-se em movimento, está sujeito à destruição do tempo. Sua sobrevivência depende, portanto, da memória e, conseqüentemente, da tradição. 4. Pensamentos que confluem No cerne dessa dialética residem em verdade duas formas de pensamento e de expressão cultural. A escrita estabeleceu-se na história ocidental não só como um instrumento de memória, mas também e principalmente em função de uma forma de pensamento. O texto escrito, mesmo em se tratando do seu uso criativo, está imerso numa ordem de pensamento lógico e objetivo tanto quanto o texto oral, emerge de uma cultura marcada pelo pensamento mítico, avesso à lógica discursiva abstrata e tendendo a uma linguagem concreta. As luzes dessa ideia estão expressas nos estudos de G. Vico, professor de Retórica na Universidade de Nápoles em fins do século XVII, visionário da Scienza Nuova. Vico percebeu que a história do pensamento moderno situa-se na passagem da idade heróica para a idade civil. Nesta, os signos são convencionais e lógicos, articulados hierarquicamente para representar a própria estrutura metonímica da sociedade civilizada; enquanto naquela os signos são menos convencionais e estão a serviço de uma linguagem metafórica. Anterior a ambas existiria uma idade divina cuja linguagem seria pouquíssima articulada, exercendo uma intrínseca identidade com as coisas. Nessa primeiridade do pensamento a palavra é mágica porque lá está para nomear o que ainda não existe, ou seja, para dar existência às coisas ou a ela mesma. Se a escrita como a conhecemos hoje, em sua forma abstrata já bastante diversa da escrita mimética – ainda lembrada nos ideogramas chineses –, representa por semelhança as sociedades modernas, urbanas e aristocráticas; a oralidade ser-nos-ia, nas sociedades arcaicas, tradicionais e agrícolas, os resquícios de um tempo em que a palavra fazia “de toda a Natureza um vasto corpo animado que sente afetos e paixões” (VICO, 1974, p. 190). A razão dessa linguagem é uma certa identidade entre o homem e a natureza, análoga a identidade entre as palavras e as coisas. No tempo da escrita o homem vê-se separado do mundo. Vive a solidão da leitura silenciosa. O gênero literário típico da cultura escrita seria, por isso, o romance. Enquanto o épico, exemplar legítimo da idade heróica, dá voz ao homem e o faz cantar em praça pública; e o conto popular

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reúne crianças e mulheres em torno do marinheiro ou do agricultor para beber-lhe da experiência de vida (BENJAMIM, 1982); o romance, sem mais ter o que narrar, entrega ao homem o universo problemático dos signos escritos. Subjaz, assim, à cultura oral as razões do pensamento mítico, cuja característica primeira é a de um discurso da e para a coletividade. No mundo mítico não há o indivíduo isolado nem a leitura silenciosa, pois o grupo social e o indivíduo são idênticos porque compõem um só e mesmo corpo. A narrativa mítica possuiria neste sentido, conforme a concepção de Nortrhop Frye, uma função empenhada, porque consiste em verdade em estórias que “contam para uma sociedade o que é importante para esta saber” (2004, p. 59). Todavia, esta função empenhada de que nos fala Frye só é possível se o mito se mantiver vivo e atualizado. Ora, é por essa razão mesmo que lhe é indispensável a performance, posto que, ao contrário da história, sua conservação escrita representaria uma condenação à morte. A narrativa mítica, pelo próprio fato de representar a voz da coletividade só se perpetua pelo exercício da récita, do contrário, cairia no esquecimento, perdendo o seu valor de “verdade”. Existindo em função da presença e do tempo presente, o princípio gerador do mito é a repetição. É por meio da repetição, associada ao dromenon – a re(a)presentação – que o mito persiste. Desse princípio fundamental é que decorrem outras propriedades do mito como também sua forma de linguagem. A questão é complexa e absorvente; não podemos esgotá-la nesse breve espaço, só podemos fazer aqui um rápido exame de alguns aspectos da linguagem mítica. Considerando-se que o mito é performático, no sentido de que urge ser apresentado concretamente, algumas conseqüências podem se abstrair desse fato. Primeiramente que concorrem em sua apresentação, além da linguagem verbal a linguagem do corpo físico, seus gestos e expressões faciais, como também os matizes da voz. Assim, a primeira das propriedades de que podemos falar é a da simultaneidade. O mito, ao contrário da lógica encadeada da contigüidade forma-se pela concomitância de várias linguagens e, sendo dramático por natureza, assume uma forma sensível e empírica cuja propriedade é ser simultâneo e efêmero. Em função mesmo de assumir a forma sensível, a linguagem capaz de dar peso e textura à matéria sensível é a metáfora. E tomamos aqui a concepção de metáfora conforme o ponto de vista de Northrop Frye para quem esta seria “uma modalidade diretiva de pensamento” (2004:81). No interior de cada metáfora está a semelhança e a identidade no momento em que as imagens se justapõem formando uma única imagem verbal. Nesse sentido não haveria mais o conceito preenchendo o vazio entre as palavras e seus referentes, posto que o conceito não é mais semelhança, mas diferença. A palavra viva da manifestação mítica coloca-se aos referentes porque são símiles, pois, dir-nos-á Frye, “todas as palavras nesta fase da linguagem são concretas: em verdade não há abstrações” (2004, p. 29). E ainda: Neste período há relativamente pouca ênfase na separação entre sujeito e objeto; ao invés disso, a ênfase recai sobre o sentimento de que sujeito e objeto estão interligados por uma energia ou poder comum a ambos. (FRYE, 2004, p. 28).

Isso implica conceber, na linguagem do mito, um grau de concreção incomum à lógica verbal, cuja natureza concatenada tende necessariamente a opor a abstração sígnica à materialidade do mundo objetivo. Falando dessa forma de metáfora inerente à palavra mágica, nos diz Cassirer que ela ...não exprime o conteúdo da percepção como um mero símbolo convencional, estando misturado a ele em unidade. O conteúdo da percepção não imerge de modo algum da palavra, mas sim dela emerge. Aquilo que alguma vez se fixou numa palavra ou nome, daí por diante nunca mais aparecerá como uma realidade, mas como a realidade. Desaparece a tensão entre o mero ‘signo’ e ‘designado’, em lugar de uma expressão mais ou menos adequada, apresenta-se uma relação de identidade, de completa coincidência entre a ‘imagem’ e a coisa, entre o nome e o objeto (CASSIRER, 1972, p. 75).

O mito representaria assim para as sociedades arcaicas um veículo para o sagrado. Esta forma de configuração de sua linguagem culminaria com o propósito de superação do tempo histórico. As

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propriedades de repetição do ato e de sua constante re-atualização imprimem uma dimensão cíclica atemporal aos eventos vividos. Ao contrário do pensamento que rege a cultura da escrita, o tempo é superado não pela anulação do movimento, cristalizado na letra, mas pelo movimento constante da palavra que se repete pela ação e pela voz. O pensamento lógico é conceitual e nominalista, efetuando em definitivo um hiato entre o pensamento e a ação, de modo que prevalece “uma concepção linear do tempo e cumulativa do espaço”. (ZUNTHOR, 1983, p. 35). A supremacia desse pensamento na sociedade ocidental, sustentado pelo “documento escrito”, condenou o pensamento mítico à decadência. Essa forma de pensamento sobrevive, mas de forma modesta em algumas poucas formas de manifestação populares. De certa forma as sociedades modernas perderam a memória dos acontecimentos da origem (in illo tempore). Em princípio os mitos se separaram das concepções religiosas a que estavam ligados e se converteram em lendas e contos populares (ELIADE, 1972), muito embora essa diacronia seja discutível posto não se poder afirmar a anterioridade dos mitos em relação aos contos populares. Todavia, independentemente desta indefinição, é possível trabalhar-se com a hipótese dos contos e lendas populares como gêneros que guardam resquícios da sacralidade mítica. Sobre isso, fala-nos, contundentemente, Mircea Eliade que A revolução efetuada pela escrita foi irreversível. Doravante a história da cultura tomará em consideração apenas os documentos arqueológicos e os textos escritos. Um povo desprovido dessa espécie de documentos é considerado um povo sem história. (...) As criações populares, onde ainda sobrevivem o comportamento e o universo míticos, serviram algumas vezes de fonte de inspiração para alguns grandes artistas europeus. Mas tais criações populares jamais desempenharam um papel importante na cultura. Elas acabaram por serem consideradas ‘documentos’ e, como tais, despertam a curiosidade de alguns especialistas. Para interessar a um homem moderno, essa tradicional herança oral deve ser apresentada sobre a forma de livro... (ELIADE, 1972, p. 140).

Entretanto é importante argumentar que essa menor importância da oralidade se dá apenas frente à cultura oficial, uma vez que entre as camadas populares e subalternas a oralidade resiste e tem larga aceitação. É em função disso mesmo que talvez possamos discutir que essa resistência cultural protagoniza em alguns momentos da história momentos de tensão e de conflito, como o percebemos em finais do século XX, em muito favorecido pela revolução informática e pelas facilidades permitidas pela mídia moderna. É justamente nesse mundo globalizado e virtualmente interligado que se criou o espaço propício para o ressurgimento de formas e pensamentos outrora relegados a segundo plano e à marginalidade. Funcionando como uma espécie de linha de fuga à globalização, vivemos igualmente uma época de multiculturalismo, em que minorias culturais emergem e reassumem sua memória. O mundo perdeu seu pivô, o sujeito não pode nem mesmo mais fazer dicotomia, mas acede a uma mais alta unidade, de ambivalência ou sobredeterminação, numa dimensão sempre suplementar àquela de seu objeto. (DELEUZE e GUATTARI, 1995, p. 14).

Parece que esse descentramento que marca a sociedade pós-moderna é que deu suporte a essa emergência das memórias, sejam relacionadas à questão dos gêneros, dos negros, dos índios, dos homossexuais, ou da “oralidade”. Nessa perspectiva, é que vemos ressurgir discussões a cerca de etnias emergentes, como as das comunidades quilombolas e indígenas, ou mesmo do marranismo3 no sertão brasileiro, todos afirmando sua identidade e exigindo o reconhecimento de sua memória. É o que sugere Michel Maffesoli em A Conquista do Presente: É assim que – retomando os grandes temas explicativos da pós-medievalidade (modernidade): Estadonação, instituição, sistema ideológico – podemos constatar, quanto ao que concerne à pós-modernidade, o retorno do local (o grifo é nosso), a importância da tribo e a bricolagem mitológica (2001, p. 22).

O Marranismo foi uma sociedade judaica subterrânea que se criou no Brasil Colonial, perdurou até o século XIX e deixou resquícios até os dias de hoje. Atualmente estudiosos das ciências sociais, como é o caso Nathan Wachtel, têm estudado esse fenômeno de emergência dos descendentes dessa cultura.

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E ainda, referindo-se ao descentramento pós-moderno: “E podemos supor que essa fragmentação da vida social se desenvolverá de uma maneira exponencial, constituindo assim uma nebulosa inapreensível, não tendo nem centro preciso nem periferias discerníveis. O que engendra uma socialidade4 fundada na concatenação das marginalidades em que nenhuma é mais importante que a outra” (idem, p. 23).

É nesse mesmo contexto que a cultura oral, estreitamente relacionada ao saber local e cotidiano, tem emergido e muitas vezes surpreendido leigos e estudiosos quanto a sua capacidade de resistência em uma sociedade profundamente tecnológica e informatizada. Em verdade, a cultura oral é só mais uma das formas de pensamento partícipe dessa cadeia semiótica paradoxal que representa a sociedade pós-moderna. O que gera esse espanto ante a emergência dessa cultura de tecnologia artesanal é exatamente o equívoco histórico de uma concepção temporal que via no progresso uma lógica linear e causal. “Embora cultivemos a impressão de que nossa cultura se define por uma acumulação ininterrupta e evolutiva, a história escrita das civilizações acumula sim, uma sucessão de abismos” (WANDELLI, 2000, p. 46). No contexto pós-moderno, em que sólidas concepções (como a do espaço como território e, com ele, o conceito de Estado-Nação) são lançadas por terra e fragmentam-se, anuncia-se a ordem da multiplicidade do devir, como um lugar de memórias e fronteiras fluidas e que deve se redescobrir pluricultural. 5. Oralidade e escrita – momentos de tensão Em seu livro Introdução à poesia oral, Paul Zunthor (1997, p. 37) elege quatro formas ideais de a oralidade se relacionar com escrita: a oralidade primária e imediata ou pura, sem qualquer contato com a escrita; a oralidade mista, cuja influência da escrita é ainda exterior e paralela à oralidade, como o caso de grupos sociais analfabetos; a oralidade segunda, “que se (re)compõe a partir da escrita e no interior de um meio em que esta predomina sobre os valores da voz na prática e no imaginário”, e finalmente uma oralidade mediatizada, comum às sociedades profundamente tecnológicas. Apesar de ser uma divisão didática e aparentemente mecânica ela nos favorece algumas apreciações acerca do romanceiro de D. Militana. É fato que a oralidade primária é excessivamente ideal, uma vez que mesmo em sociedades consideradas primitivas ela seria uma hipótese em função de que sua conceituação dependeria em princípio de concepções bastante rígidas quanto ao conceito de escrita. Todavia, se não nos detivermos numa separação mecanicista dessa tipologia, poderemos supor que o contexto cultural de Dona Militana transita entre a oralidade segunda e a oralidade mista sem se fixar em nenhuma delas. Isso porque o seu meio social é formado por uma comunidade semialfabetizada, principalmente se considerarmos que a cidade de São Gonçalo, a mais de meio século atrás, era uma sociedade rural, com índices de analfabetismos relativamente altos. Naquele contexto, esses poemas eram declamados e decorados ou lidos em folhetos de cordel por alguns poucos letrados para um público ouvinte analfabeto ou semi-alfabetizado, de modo que a escrita se fazia tão presente quanto ausente, muitas das vezes representando um certo prestígio social. Reside aí uma espécie de tensão entre oralidade e escrita semelhante ao que tange aos papéis sociais masculinos e femininos. A relação é problemática porque estão em conflito universos sociais diversos, mas que habitam os mesmos espaços. Segundo Zunthor, na lógica da oralidade o homem vive diretamente ligado aos ciclos naturais, interioriza, sem conceituá-la, sua experiência histórica; ele concebe o tempo segundo esquemas circulares, e o espaço (...) como a dimensão de um nomadismo; as norma coletivas regem imperiosamente os seus comportamentos. Em compensação, o uso da escrita implica uma disjunção entre o pensamento e a ação, um nominalismo natural ligado ao enfraquecimento da linguagem como tal, a predominância de uma concepção linear do tempo e cumulativa do espaço, o individualismo, o racionalismo, a burocracia... (ZUNTHOR, 1997, p.36) O conceito de socialidade foi forjado por M. Maffesoli para suprir a ausência de um conceito para o sentimento de estarjunto primário, para que não servem as concepções viciadas de “social” ou sociabilidade, excessivamente marcadas por uma racionalidade ausente nas relações cotidianas. A socialidade seria uma solidariedade orgânica, irrefletida e natural, que constitui o ritual da convivência. 4

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Esses dois universos se interpenetram e muitas vezes colidem. Isso porque, se dominar a palavra escrita seria ter acesso a uma espécie de mundo mágico, um código secreto dotado de poderes incomuns àquela sociedade, uma das formas de acesso a esse universo poderia ser, contraditoriamente, o exercício da memória. Isso representa uma contradição em função de que a memória é a faculdade capital da oralidade e aproximar-se da escrita pelo exercício mnemônico significa pôr-se no limiar entre a oralidade mista e a segunda, transitando de uma a outra, ao adaptar à fala marcas da escritura ao mesmo tempo em que perpassam, na escrita, marcas da oralidade. Essa tensão se flagra claramente na fala de Dona Militana abaixo, que relata de quando fora chamada a Natal unicamente para dizer um romance a uma tia alfabetizada: Era tia Petronila, a mais velha irmã de papai, era só quem sabia ler. Ela lia toda qualidade de folheto. Um dia, mandaram me chamar em Natal, só pra mode eu cantar o verso de Antonino, óia? Perguntaram: A senhora sabe o verso de Antonino? Eu digo: vocês sabem ler? Então pega um folheto, pra ler no folheto. E eu que venha cantar verso pra vocês?5

Ao mesmo tempo a cantadeira se recente de não dominar a escrita, consciente de que ela lhe ofereceria outra forma de vida e outras oportunidades: Aí veio um homem muito grosso e perguntou: a senhora sabe ler? Eu disse: num sei não. O meu livro era a terra, a enxada era... o meu caderno era a terra, o cabo da enxada era o lápis e o ferro de cova era a pena. Aí ele perguntou: a senhora não saber ler não? sei não senhor, num tive esse tempo. Acordava logo cedo e só ia dormir depois da meia-noite, só trabalhando. Talvez eu fosse outra. Saí de casa com 20 anos. E diz aí o que quando eu me casei com 20 anos, o que foi que levei de casa? Meu vestido, uma rede emendada e um pedaço de pano remendado que me cobria com ele. Trabalhava direto lá. A mão era aquela carreira de calo... Se soubesse ler... já disse muito isso na vida!6

Esse conflito tem em verdade motivos mais profundos e mais fecundos a nossa investigação do que o simples fato do ressentimento de alguém que lamenta não ter sido alfabetizada. Em verdade, reside aí uma tensão que reflete as mudanças sociais por que passaram essas comunidades rurais ao longo do século XX. A sociedade se modernizou e impôs a esses grupos sociais, cujo pensamento era permeado pelo domínio da oralidade, a urgência da escrita. Todavia, essa imposição não se dá de forma pacífica uma vez que não se lhes impõe apenas um instrumento de comunicação, pois com ele transmite-se também uma mitologia, uma lógica, uma forma de pensamento e de ação moral em tudo diverso do pensamento e da moral das sociedades de oralidade primária. Em geral, na cultura oral, a representação do mundo está associada aos ciclos naturais e a uma organização harmônica e íntegra em que todos os elementos sociais se inter-relacionam e funcionam como uma engrenagem. No centro dessa organização residem os valores religiosos que determinam a ação comum e a que se recorre ante qualquer fato que provoque uma desordem no sistema interno. As catástrofes, as doenças, os crimes são motivos de desequilíbrio cuja restauração depende da interferência divina ou sobrenatural. Nessas ocasiões, alguns atores, detentores da palavra, atuam como instrumentos de mediação para a restauração da ordem: sacerdotes, benzedeiras, rezadeiras, milagreiros, são personagens comuns portadores de autoridade diante da comunidade. Ao se fazer a transposição do universo oral para o universo escrito, o caderno vira a terra, e a enxada o lápis. Todavia, bem poderia a terra ser o livro uma vez que ela é a portadora dos segredos da natureza a que se pode recorrer em busca de respostas às angústias da vida. É importante frisar que essa concepção da terra como um livro ou um caderno, denuncia a presença da metáfora como a modalidade diretiva dessa forma de pensamento. O que reza a metáfora nessa estrutura mental é a relação de identidade seja entre o homem e a natureza, o divino e o humano, ou mesmo um e outro homem, posto que tudo “é” outra coisa, pois todos estão unidos pela semelhança. Na cultura escrita, a representação do mundo substitui a lógica circular relativa à natureza pela linearidade hierárquica do tempo. A ciência e a jurisprudência determinam a verdade e a moral. A Entrevista concedida a pesquisadora Lílian de Oliveira Rodrigues, in: RODRIGUES, Lílian de Oliveira. A voz em canto: de Militana a Maria José, uma história de vida. p.75. 6 idem. p. 239. 5

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autoridade não se concentra mais sobre o portador da voz, aquele que conduz a palavra sagrada, mas sobre o portador do “documento” escrito que lhe confira esse poder. Como nos diz Paul Zunthor, é uma época de individualidade, quando não individualismos, por isso não há, nesse universo, semelhanças, mas diferenças, uma vez que quem não for sujeito e senhor das ações será objeto. Pode-se compreender assim as palavras de Dona Militana quanto ao seu desejo de possuir o poder da escrita como a representação de um momento de tensão, quando as águas de dois mundos se encontram e se misturam sem necessariamente se conciliarem. O resultado desse processo é que as manifestações culturais são complexas e fragmentárias prenhes de ambigüidades. 6. Considerações finais Em função disso é que não basta compreender o fenômeno de Dona Militana como um processo de herança hierárquica, da supremacia de uma cultura sobre a outra, em função de uma lógica da continuidade, mas é fundamental compreendê-la sob a ótica de um devir descontínuo e fragmentário. Sob esta ótica, a memória dos romanceiros de Dona Militana seria o resultado de um devir da memória não podendo ser interpretada sob a ótica da influência ou da herança cultural, típicos de um discurso dominante, mas como uma forma de resistência dos desejos coletivos. O que move essa memória é um componente transformacional, sujeito a combinações intensas e constantes, emergindo muitas vezes como uma forma singular e inapreensível. Nesse sentido os príncipes e princesas do romanceiro figuram como objetos de um desejo coletivo, que resulta em uma “bricolagem” cultural e não em um cruzamento de culturas, como retas que se encontram. Daí não se poder fazer diferença entre a moralidade principesca e a do homem rústico sertanejo para quem a palavra, a honra, a moral têm igualmente valores simbólicos e heróicos. Se há aqui um encontro é o encontro de outros (outrem) diversos e múltiplos, salientandose mais uma aliança por diferença que por parentesco. As peças dessa máquina-memória se fundem e se confundem em função de significados completamente diversos daqueles do contexto do outro. Isso porque a memória é nômade por excelência, pois não possui referências físicas fixas, assumindo significados conforme múltiplas formas de relacionamento. A lógica que rege a apropriação dos conteúdos culturais da memória não é de ordem política (da polis), com sua estrutura definida e definitiva, com agentes, objetos e ações pré-estabelecidos, como é o caso daquela memória defendida pela performance paterna – folclorizada pela cultura dominante –, mas, no caso de Dona Militana, domina uma certa imprecisão de espaço, posto que jamais atinge uma codificação plena. Daí o fato de não se fazer diferença entre as sagas principescas e de cangaço, os contos moralizantes e as apologias anti-heróicas de seus personagens picarescos, todos compondo uma supramemória espiralada, admitida pelo seu grupo social em função de um desejo de resistência e autonomia. É assim uma memória que não obedece “aos modos de subjetivação subordinados ao regime identitário e ao modelo da representação”, típico da lógica dominante. Em suma, o que de fato se dá com a memória do romanceiro de Dona Militana é uma apropriação do saber do outro, como um ritual antropofágico de dominação do dominante, funcionando desta feita como um discurso de resistência cultural. O resultado é a construção de uma subjetividade heterogênea e híbrida em tudo diversa das imagens a priori próprias dos regimes identitários do establishment. Referências AYALA, Maira Ignez Novais. No arranco do grito, aspectos de uma cantoria nordestina. São Paulo: ed. Ática, 1988. BARROS, Myriam Moraes Lins de. “Memória e Família”. In: Estudos Históricos. Rio de Janeiro, 1989. Vol. 2, nº. 3.

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Anais do II Congresso Internacional de Estudos Linguísticos e Literários na Amazônia (CIELLA) BENJAMIN, Walter. Magia e técnica, arte e política. Ensaios sobre literatura e história da cultura, Obras Escolhidas, vol. 1. São Paulo, Brasiliense, 1987. BOSI, Ecléa. Memória e sociedade - lembranças de velhos. 6 ed. São Paulo: Schwarcz LTDA, 1998. CASSIRER, Ernest. Linguagem e Mito. São Paulo: ed. Perspectiva, 1972. ELIADE, Mircea. Mito e Realidade. São Paulo: ed. Perspectiva, 1972. ENTREVISTA – Dona Militana, Diário de Natal. 25, Set. 2006. Disponível em: <http://diariodenatal. dnonline.com.br/site/materia.php?idsec=6&idmat=138146>. Acessado em 02, out. 2007. FRYE, Northrop. Código dos Códigos – a Bíblia e a Literatura. São Paulo: Boitempo Editorial, 2004. GUARINELLO, N. L. “Memória coletiva e história científica”. Revista Brasileira de História, São Paulo, Anpuh/Marco Zero, n. 28, v. 14, p. 180-193, 1994. p. 188 HALBWACHS, Maurice (1877-1945). A memória coletiva. São Paulo: Vértice, 1990. NEITHAMMER, L. “Conjunturas de identidade coletiva”. In: Revista Projeto História, n. 15. São Paulo: EDUC. pp. 119-144, 1997. PATRINI, Maria de Lourdes. A renovação do conto – Emergência de uma prática oral. São Paulo: Ed Cortez, 2005. PLATÃO. Fedro. In: ___. Diálogos. Tradução de Jorge Paleikat. Rio de Janeiro: Tecnoprint, 1966. v. 1, p. 262. POLLACK, M. “Memória e identidade social”. Estudos históricos, Rio de Janeiro, APDOC, v. 5, n. 10, p. 200215, 1992. p. 204. RODRIGUES, Lílian de Oliveira. A voz em canto: de Militana a Maria José, uma história de vida. 2006. 289f. Tese de doutorado (Literatura e cultura) – Programa de Pós-Graduação em Letras, Universidade Federal da Paraíba, João Pessoa-PB. SAMARA, Eni de Mesquita. A família brasileira. São Paulo: Brasiliense, 1983. SANTOS, Myrian S. dos. “Sobre a autonomia das novas identidades coletivas: alguns problemas teóricos”. Revista Brasileira de Ciências Sociais. São Paulo: Anpocs, 1998. GURGEL. “D. Maria José: esse fenômeno”. Tribuna do Norte. Natal, 13, jan. 1999. Disponível em:<http:// anteriores.tribunadonorte.com.br/anteriores/990113/viver.html>. Acesso em: 2 out. 2007. ZUNTHOR, Paul. Performance, Recepção, Leitura. São Paulo: Educ, 2000. ______________. Introdução à poesia oral. São Paulo: Hucitec/Educ, 1997.

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LITERATURA NO PARÁ OITOCENTISTA: OS ROMANCES-FOLHETINS COMO “RIQUEZAS” DA BELLE-ÉPOQUE Edimara Ferreira SANTOS1 Germana Maria Araújo SALES2 (Universidade Federal do Pará) RESUMO: No Brasil o Romantismo encontrou na narrativa a forma ideal para explorar o pensamento da sociedade de época. Assim, atrelado a este movimento literário, surgem os chamados folhetins, os quais, a partir da década de 1840, passariam a ser denominados de romances-folhetins. Para este gênero, a imprensa brasileira, no século XIX, representou, por um lado, o principal veículo por meio do qual era difundido e, por outro, representou uma espécie de “laboratório” para os autores que surgiram ao longo do século; autores que passaram a publicar nos jornais suas obras “recortadas” nas notas de rodapés. Dessa forma, a pesquisa com periódicos paraenses revelou que no Pará oitocentista, a imprensa representou papel semelhante ao que desempenhou para o Brasil: o de fazer circular esse gênero literário e, também, de estabelecer um espaço para surgimento de novos autores. A “narrativa folhetinesca”, como ficou conhecida, fez parte da nossa Literatura e teve, ao longo da história, influência européia, como demonstra a influência francesa nos romances-folhetins publicados no jornal O Liberal do Pará nos anos de 1870-1880. Este período coincide com o contexto no qual a cidade de Belém vive uma época de grandeza cultural, chamada de Belle-Époque e passou por transformações culturais, econômicas e sociais que modificaram não só o cenário paraense como também, da Região Amazônica. Por esse motivo, a circulação dos romances-folhetins atuou como mecanismo privilegiado na difusão e incorporação de idéias, hábitos, costumes e estilos literários europeus, principalmente, as de influência francesa, como parte das “riquezas” produzidas na Bellé-Époque belenense. PALAVRAS-CHAVE: Romances; folhetins; circulação; imprensa.

ABSTRACT: In Brazil Romanticism found in the narrative the ideal form to explore the thoughts of the society. Then there appeared, attached to this literary movement, the serial romances. For this genre, the 19th century Brazilian press represented the principal vehicle through which it became widespread, as well as a sort of “laboratory” for other authors that appeared during the century: authors that started to publish, in the newspapers, their “cut” works in the footnotes. On this point, the research into newspapers revealed that in Pará, during the 18th century, the local press carried out a similar role to the Brazilian national press: to help circulate this literary genre and to provide a space to the development of new authors. The serial romances are part of our literary tradition and had, along with our history, European influences, as can be noticed by the French influence in the serial romances published in the newspaper O Liberal do Pará during the years 18701880. This period corresponds with a huge cultural explosion that occurred in Belém at this time, called BelleÉpoque, which brought cultural, economical and social transformations in the Pará and Amazonian regions. Because of that the circulation of the serial romances acted as the primary mechanism for the diffusion and incorporation of ideas, habits, customs and European literary styles (mainly the French styles) and was part of the “wealth” produced on the Belle-Époque in Belém. KEY WORDS: Romances, serial romances, circulation, press. Graduada em Letras pela Universidade Federal do Pará (UFPA), especialista em Língua Portuguesa: uma abordagem textual pela Universidade Federal do Pará (UFPA) e mestranda em Estudos Literários pela UFPA. Pesquisadora voluntária junto aos projetos Lendo o Pará: A publicação de romances-folhetins nos jornais de Belém do Pará na segunda metade do século XIX (1850 a 1880) e Prática de Leitura no Pará (século XIX) desenvolvidos nesta Instituição. 2 Professora Doutora Adjunta da UFPA. Coordenadora dos projetos “Lendo Pará: A publicação de romances-folhetins nos jornais de Belém do Pará na segunda metade do século XIX (1850 a 1900)” e “Prática de Leitura no Pará(século XIX) desenvolvidos na Universidade Federal do Pará. 1


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No campo dos estudos da Literatura, o século XIX é considerado um período fundamental na consolidação do Romance, momento em que também se solidificou o movimento literário característico deste século: o Romantismo (Candido, 1964; Tinhorão, 1994). No Brasil, o surgimento deste movimento tinha como propósito mostrar a fragilidade do modelo neoclássico, o qual valorizava a cultura européia. Para isso, este momento literário buscou apoio no nacionalismo, por meio da valorização da pátria (a idéia da cor local)1 como lugar de inspiração para que os “homens das letras” pudessem criar, a partir de então, uma identidade nacional (Candido, 1964), cuja gênese e explicação estivessem calcadas no amor, religião e na história de um povo e fossem capazes de abranger a complexidade romântica: [...] uma espécie de contrapêso do individualismo lírico, por mais de um aspecto. Gênero onímodo, dentro das suas fronteiras tolerantes enquadrou-se desde logo tanto o conto fantástico (A Noite na Taverna), quanto a reconstituição histórica (As minas de Prata) ou a descrição dos costumes (Memórias de um Sargento de Milícias). Por isso, se de um lado trazia água para o moinho de eu, ia de outro preservando a atitude, de objetividade e respeito ao material observado, que mais tarde produzirá o movimento naturalista (Candido, 1964, p.26).

Neste contexto, o Romantismo, momento em que a produção literária teve a narrativa como ferramenta ideal para explorar o pensamento da sociedade da época, foi de fundamental importância para a expansão do público brasileiro. É nesse sentido que estudos e trabalhos recentes vêm cada vez mais mostrando que, ao lado do Romance, surgia também um novo elemento na história da formação do leitor brasileiro, – os folhetins, os quais, mais tarde, a partir da década de 1840, passariam a ser chamados de romances-folhetins (Tinhorão, 1994). Os folhetins, segundo Meyer (1996), tiveram suas origens na França com Émile de Girardin por volta de 1836 em que teve “um lugar de honra no jornal”. A sua publicação se apresentava em pedaços nas notas de rodapé dos jornais franceses e, também, esses romances fizeram com que um número muito grande de autores surgissem na França e outros que já eram reconhecidos ficassem mais famosos, como foi o caso de Alexandre Dumas pai, Xavier de Montépin, Eugène Sue, Ponson du Terrail, Soulié e Paul Féval, entre outros, em que suas histórias tiveram uma aceitabilidade muito grande entre o público francês e, com isso, cresceram as vendas dos jornais na França oitocentista. No Brasil, semelhante como ocorreu na França, o meio de divulgação desse gênero era através da publicação nas notas de rodapés dos jornais que circulavam no período oitocentista. A divulgação dos romances-folhetins, segundo Tinhorão (1994), representou para o Brasil não só uma abertura dos jornais, com intuito de adquirir novos públicos, como também, o lançamento na Literatura Brasileira de autores que passaram a escrever suas obras “recortadas” nas notas de rodapés dos jornais. Conseqüentemente, os romances-folhetins passaram a constituir um importante veículo de popularização dessa Literatura atrelado a uma época de publicação de obras de ficção em livros. Além disso, Meyer (1996) faz uma observação bastante significativa ao mostrar a importância da publicação do folhetim para o crescimento nas vendas do jornal: [...] O folhetim, portanto, instala-se no jornal e espalha-se em volume baratos pelas bibliotecas, onde, já o dissemos, é espantosa sua ocorrência. Muito embora o estudo de tiragem e público da imprensa brasileira ainda esteja por ser feito, o simples exame das modificações havidas no jornal leva a crer que, como na França, sua prosperidade esteve ligada diretamente ao sucesso e, portanto, à publicação do folhetim. E tal sucesso mostra igualmente, guardadas as proporções, a existência no Brasil de um público consumidor de novelas já suficiente para constituir em elemento favorável de venda de jornal (Meyer, 1996, p.59)

A “narrativa folhetinesca” que fez parte da nossa Literatura teve ao longo da história de sua consolidação uma influência marcadamente européia, entre elas, destaca-se a influência francesa2. Como exemplo disso, Meyer (1996) observa que, em sua maioria, os romances publicados eram “Descrever costumes, paisagens, fatos, sentimentos carregados de sentimento nacional, era liberta-se do jugo da literatura clássica, universal, comum a todos, preestabelecida, demasiado abstrata – afirmando em contraposição o concreto, espontâneo, característico, particular” (Candido, 1964, p.15). 2 Embora se destaque a influência francesa, Nadaf (2002) identifica a presença de romances-folhetins portugueses e espanhóis. 1

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de autores franceses, mesmo porque a França, neste século, colocava-se enquanto uma referência cultural e intelectual. Ainda neste sentido, Tinhorão (1994) diz que os “romances de folhetim” eram, em sua maior parte, traduzidos do francês e publicados com freqüência nos jornais brasileiros, principalmente jornais cariocas, sendo que quem traduziu, em sua maioria, foi o jornalista e conservador Justiniano José da Rocha, o qual traduziu O conde de Monte Cristo em 1845 e Os miseráveis em 1862. Diante disso, no contexto da “febre” dos romances românticos, os romances-folhetins desempenharam também um papel importante no processo de alcance cada vez mais amplo de um mercado editorial e de um público leitor específico na sociedade vigente. Atualmente, estudos específicos têm apontado para a presença dos romances-folhetins de autores franceses em diferentes periódicos dos estados do Brasil no século XIX, como o de Socorro de Fátima Barbosa (2007) para o caso da Paraíba; o de Yasmin Nadaf (2002) a respeito de Mato Grosso; o de José Ramos Tinhorão (1994) para o Rio de Janeiro e o de Maria Germana Sales (2006) para o caso do Pará3. Em se tratando do Pará, o gênero romance-folhetim tem como suporte os jornais e ganha espaço nos periódicos paraenses através de publicação de prosa de ficção recordas de autores franceses e portugueses. Além disso, o gênero folhetinesco assim como no resto do Brasil possui uma estrutura e uma forma semelhante a da França: publicação em notas de rodapé, publicação em séries, grande temas – românticos e melodramas e as narrativas recortadas publicadas nos jornais paraenses apresentavam um tripé de personagens típicos como a vítima, o vilão e o herói ou vingador. Assim como nos outros estados, à presença dos romances-folhetins de autores franceses nos periódicos paraenses foi bastante marcante, como nota-se nos periódicos O Liberal do Pará e Diário de Belém em que ambos circularam na cidade de Belém na metade do século XIX. Com relação ao jornal O Liberal do Pará teve de início a Typografia o Jornal do Amazonas e depois a Typografia d’o Liberal do Pará. Sua circulação acontece no período de 1869 a 1889, mas sendo suspensa por um período não identificado e reiniciado em setembro de 1869. Além disso, sua publicação era diária, com exceção da segunda-feira, e possuía um caráter político, comercial e noticioso e participava do órgão do Partido Liberal do Pará. Seu proprietário foi Manoel Antonio Monteiro e seu redator José Antônio Ernesto Paragassu. Saiu de circulação após a proclamação da República em 1889 e reaparecendo 1890 com um novo nome “O Democrata”. O jornal O Liberal do Pará compunha várias secções como Litteratura em que se observa a publicação de contos, de poemas; Transcripção com a presença de artigos científicos e artigos atacando o governo; Publicação à pedido em que publicava crônicas, contos, denotas; Variedades que aparecia em sua maioria contos , crônicas e poema ; a secção Annuncios que atrelado aos anúncios de chapéus, de roupas, de remédios vinham anúncios de vendas de livros, gabinete de leitura e a secção Folhetim em que publicava os romances-folhetins, artigos científicos, contos e artigos sobre a economia brasileira.: Tabela 01

Fonte: O Liberal do Pará, do acerco da seção de microfilmagem da Biblioteca Arthur Viana. Há uma recorrência nos romances-folhetins dos jornais do Rio de Janeiro de autores como, por exemplo, Ponson du Terrail (“A dama da luva preta”), Xavier Montépin (“O testamento vermelho”) e Alexandre Dumas (“A dama da vida”) (Nadaf, 2002). Além disso, um texto de Alexandre Dumas titulado “Moisés e Homero” foi publicado no jornal “O Cronista” (Barbosa, 2007).

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No ano de 1871 o jornal O Liberal do Pará publica de 20 de agosto a 20 de setembro o romance-folhetim Blanche de Beauliou de um grande folhetinista francês chamado Alexandre Dumas pai possuindo 15 páginas e, também, teve como tradutor de seu romance no periódico B. S. Pinto Marques: A pessoa que na tarde de 15 de dezembro de 1793, partisse da pequena cidade de Clarisson, tomasse o caminho que conduz a aldea de Saint Crépni, e parasse no cume da montanha ao pé da qual corre o rio Birae, veria do outro lado do valle um espectaculo singular. Primeiramente, no lugar em que sua vista procurasse a aldêa perdida no meio das arvores, no meio d’um horisonte já sombreado pelo crepusculo, veria tres ou quatro columnas de fumaça que isoladas na base, reuniam se á medida que se [ilegível], balanceavam se um instante, e, cedendo fronjamente a um vento humido de oeste, volviam se n’esta direcção confundidas com as nuvens d’um céo baixo e nublado. Veria esta base tornar-se vermelha pouco a pouco, cessar toda fumaça, e se lançarem dos tectos das casas com um estrondo surdo, (ilegível) de fogo, ora retorceando’se como linhas espiriaes, ora curvando se e levantando se como o mastro d’um navio [ilegível] parecido que todas as janellas iam abrir-se para vomitar fogo. De tempos em tempos quando um [ilegível] suviria um ruído surdo, distinguiria uma chamma mais viva, misturada com milhares de faiscas, e, com o auxilio da luz sanguinolenta do incendio que aumentar cada vez mais, veria luzir armas e um circulo de soldados s’extender ao longe. Ouviria gritos e rizos e diria com terror: «É um exercito que incendia uma aldeã. [...] (fonte: jornal O Liberal do Pará no ano de 1871)

Além da publicação do romance-folhetim de Alexandre Dumas pai no ano de 1871 circulou no jornal paraense O Liberal do Pará nos dias 23 de agosto de 1874 a 21 de fevereiro de 1875 o romancefolhetim O Médico dos pobres de um, também, famoso folhetinesco francês Xavier de Montépin sendo um dos mais longo romancem-folhetim publicado neste jornal com cerca de 100 páginas: [...] Na occasião do nascimento de Carlos, o simples, filho posthumo de Luiz, o gago, o pricipe Boson revoltou-se e poz-se a frente do poderoso partido que os parentes e os amigos de sua mulher Hermengarda lhe tinhão preparado; convocou uma assembléa de nobres e de bispo, e, a 15 de outubro de 879, foi eleito rei de Borgonha. Em 887 Boson morreu. Seo filho Luiz, que lhe succedeo, era ainda quase um menino, quando Rodolpho I, filho do príncipe allemão Conrado se apoderou da parte mentanhosa situada no norte dos estados legados por Borson a seu filho. O reino de Borgonha foi então dividido em dous, independentes um do outro. O primeiro tomou o nome de Borgonha Traujurana e o segundo o de Bourgonha Cisjarana. Esta divisão não teve longa duração. Rodolpho II reinou os dois reinos em só que durou até 1126. [...] (Jornal O liberal do Pará de 18741875)

Junto às publicações de Alexandre Dumas pai e Xavier de Montépin, no dia 29 de novembro de 1872 a 21 de fevereiro de 1873 circula no jornal O Liberal do Pará o romance-folhetim A Fada D’auteil do visconde Pierre Alexis Ponson du Terrail em que seu romance-folhetim abarcou cerca de 50 páginas desse jornal: Paris é pequeníssima depois que se tornou tamanha. Outr’ora, ha uns dez annos, quando se partia do boulevard Montmartra para ir a Áuteui, não se fazia talvez testamento, mas tormavam-se precauções. O lavrador armava-se do seu guarda-chuva, no mez de junho, e o pintor munia-se da capa de borracha. Hoje, um meio [ilegível] espera-nos do parque dos principes. Ora, em uma manhã do mez de junho de ha dois annos, quando soavam as seis horas em S. Felippe de Roule, caminhava um moço. E passo apressado no fim da rua do Meruy, onde ha casas, este é entre o bairro Santo Honorato e os campos Elysios. Quando elle quis atrevessar aquella ultima viella que, mercê de Deus, não está ainda atalhada nessa hora matinal, parou, e pareceu inquieto como um provinciano perdido em pleno atalho Dros sot. O motivo dessa enquietação era talvez a chegada de uma dessas carroagens a que chamam «esqueletos», e ás quaes os negociantes de cavallo, apllicam para puchal-as, com um cavallo manso, o cavallo que querem amansar. O trem era guiado por um moço vestido de branco e com um chapéu de palha. No assento trazeiro, de pé, dous outros moços pareciam seguir com attenção a marcha a cavallo, que eram soberbos alazões queimados. [...] (Jornal O Liberal do Pará no ano de 1871)

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À presença dos romances-folhetins dos autores franceses Alexandre Dumas pai, Xavier de Montépin e Ponson du Terrail no periódico paraense O Liberal do Pará fora bastante significativa, pois além dos romances-folhetins se apresentarem numa estrutura muito longa chegando a circularem por mais de dois anos o mesmo folhetim, eles permaneceram por um longo tempo nas primeiras páginas do jornal e eram sempre publicados na coluna Folhetim mudando só de página quando se tinha uma informação a respeito da economia brasileira. Tabela 02

Fonte: O Liberal do Pará, do acerco da seção de microfilmagem da Biblioteca Arthur Viana.

No caso do periódico Diário de Belém4 sua circulação se deu nos anos de 1868 a 1892 tendo um caráter político, noticioso e comercial, observamos à presença do autor francês Ponson du Terrail em que a publicação de seus romances foram quase dois anos de circulação. Com disso, o jornal Diário de Belém publica no ano de 1871 os romances-folhetins A pagem de Luiz XVI que começou 15 de janeiro de 1871 a 14 de março de 1871, A mulher immotal em que teve uma publicação de três meses e A segunda mocidade de Henrique IV que teve duração quase quatro meses consecutiva. Atrelado a essas circulações dos romances-folhetins de autores franceses nos jornais paraenses, Belém vive um contexto histórico chamado de “Belle-Époque”. Como adverte Sarges (2000), a cidade de Belém passa por profundas transformações econômicas, sociais, políticas e culturais que modificaram não só o cenário paraense como também da Região Amazônica. Neste sentido, percebemos que à cidade de Belém ganha forma e estrutura através de seus bondes, de seus costumes, de suas vestimentas, de sua arquitetura e de seus hábitos aspectos tipicamente europeus, particularmente franceses, que eram refletidos não só no cenário, mas também, na literatura que circulava no Pará, sobretudo, na imprensa paraense que estava se estruturando no século XIX. A respeito disso, Sarges (2000) afirma que: De fato, tendo Paris como modelo, Antônio Lemos procurou transformar as feições da urbe, reformando basicamente o centro da cidade, considerando o lócus econômico e cultural por onde circulava a capital, as rendas e naturalmente os seus possuidores (SARGES, 2000, p. 115).

Assim, no campo da história e historiografia literária, torna-se cada vez mais necessário investigar a íntima relação desenvolvida entre o surgimento e o desenvolvimento da imprensa brasileira no século XIX e a publicação e circulação de romances em folhetins, pois, como adverte Regina 4

Com relação ao jornal Diário de Belém os dados ainda não foram totalmente catalogados.

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Zilberman, “[...] ainda não foi completada a história que narra a dívida da literatura brasileira para com o jornalismo, especialmente no século XIX” (ZILBERMAN apud BARBOSA, 2007, p.15). Desse modo, estudar a circulação dos romances-folhetins nos periódicos paraenses é assumir especial relevância no âmbito da história e historiografia literária, pois, por um lado, permite compreender através da análise de um caso específico, a dinâmica de circulação dos romances-folhetins no Pará no século XIX, mais precisamente em sua capital, Belém, o papel que os mesmos assumiram na expansão e consolidação do Romance enquanto um gênero literário. Por outro lado, permite compreender o papel social que os romances-folhetins tiveram enquanto um veículo de transformação cultural neste período chamado de “Belle-Époque”. Com isso, percebemos que assim como ocorria nos outros estados como Rio de Janeiro, Paraíba, Mato Grosso, o Pará não ficou isento dessa influência francesa seja na sua literatura, seja na sua estrutura de cidade. Além disso, a imprensa paraense que nesse momento ainda estava se estruturando, publicou nos seus periódicos na metade do século XIX romances-folhetins de autores europeus como Alexandre Dumas pai, Ponson du Terrail e Xavier de Montépin, principalmente franceses, como ficaram visíveis nos periódicos O Liberal do Pará e Diário de Belém. Portanto, pensar na circulação dos romancesfolhetins de autores franceses significa visualizar a divulgação desse gênero no período oitocentista, na cidade de Belém, assim como sua influência cultural nesse período. Referências ABREU, M. Letras, Belas-letras, Boas Letras. In: BOLOGNINI, Carmem Zink (Org.) História da literatura: o discurso fundador. Campinas: Mercado de Letras, ALB, Fapesp, 2003, p.11-69 (Coleção Histórias de Leitura). ______. Cultura letrada: literatura e leitura. São Paulo: Unesp. 2006. BARBOSA, S. F. P. Jornal e literatura: a imprensa brasileira no século XIX. Porto Alegre: Nova Prova, 2007. CANDIDO, A. Formação da literatura brasileira. 2v. São Paulo: Martins, 1964. FACIOLA, Rosana Assef. Os Romances–Folhetins dos jornais de Belém do Pará entre 1858 e 1870. Belém: UFPA, 2005. (Dissertação de mestrado apresentada na Universidade Federal do Pará). FERREIRA, P. R. Mais de 180 anos de imprensa na Amazônia. Disponível no site: http://www2.metodista.br/ unesco/hp_unesco_redealcar55completo.html Acesso em 25/07/2008 LAJOLO, Marisa; ZILBERMAN, Regina. A formação da leitura no Brasil. São Paulo: Ática, 1999. MEYER, M. Folhetim: Uma história. São Paulo: Companhia das Letras, 1996. NADAF, Y. J. Rodapé das miscelâneas – o folhetim nos jornais de Mato Grosso (século XIX e XX). Rio de Janeiro: 7 Letras, 2002. SARGES, M. N. Belém: riquezas produzindo a Belle–Époque (1870 – 1912). Belém: Paka – Tatu, 2000. SILVA, Ozângela de Arruda. A atuação dos livreiros e a circulação de romances em Fortaleza no século XIX. Disponível no site: http://www.caminhosdoromance.iel.unicamp.br./estudos. Acesso em: 25/03/2008. TINHORÃO, J. Os romances em folhetins no Brasil: 1830 à atualidade. São Paulo: Duas Cidades, 1994.

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A PRESENÇA DA ORALIDADE NO ROMANCE TRÊS CASAS E UM RIO, DE DALCÍDIO JURANDIR Elaine Pastana VALÉRIO (Universidade Federal do Pará)

RESUMO: Este artigo abordará a presença da oralidade no romance “Três casas e um rio”, de Dalcídio Jurandir. Neste romance, a oralidade – que é entendida como marca cultural porque seus contos são criações coletivas – se faz presente na ação narrativa, percebidas através de algumas particularidades, tais como: a interlocução entre narrador e ouvinte; as marcas lingüísticas próprias da oralidade; a performance. Dalcídio Jurandir sentiu necessidade de dar voz a pessoas simples, ao fazê-las narrar histórias que se misturam com suas vivências particulares, pois oralidade é a união da experiência de vida e do conhecimento. Sendo assim, essa pesquisa visa analisar a oralidade no romance “Três casas e um rio”, de Dalcídio Jurandir e mostrará que as narrativas orais são marcas culturais de um povo e dependem da época em que foram narradas. PALAVRAS-CHAVE: Cultura, Memória, Oralidade, Popular, Folclore.


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1. Introdução O presente trabalho visa analisar os aspectos da oralidade no romance “Três casas e um rio”, do escritor marajoara Dalcídio Jurandir e mostrará que as narrativas orais são marcas culturais de um povo. A partir do contato com alguns elementos da natureza, as personagens recriam sua realidade, dando a ela um novo significado e um novo sentido, por isso narram histórias míticas que se misturam com sua vida pessoal. Roland Barthes (1978) afirma: “é a história que transforma o real em discurso, é ela e só ela que comanda a vida e a morte da linguagem mítica” (p. 132), portanto, pela voz rememorase e presentifica-se o passado. 2. Folclore, Popular e Erudito Os estudos acerca da oralidade têm seus pressupostos nos conceitos dos termos “folclore”, “popular” e “erudito”, que são definidos de forma vaga e imprecisa para o estudo do referido tema. Estas definições são vistas com certo “desconhecimento ou desdém dos que praticam literatura” (ZUMTHOR: 1997:21), pois a definição de oralidade deve perpassar por esses conceitos, porém ela ultrapassa a vaguidade dos termos e engloba-os a partir de um conceito que esteja ligado a ela porque cada ciência define os termos à sua maneira e de acordo com seu interesse de pesquisa. Portanto, farei um breve comentário sobre tais termos antes de chegar à noção de oralidade. O termo “folclore” deriva de folk, “povo” e lore, “saber”, logo se deduz que folclore designa o ‘saber do povo’, porém esse saber foi durante muito tempo alvo de (pré)conceitos de estudiosos da literatura que acreditavam que a literatura oral era uma subclasse do popular e por isso também a denominavam de ‘primitiva’. Segundo Idelette Muzart (1995): O termo folclore designa, de uma só vez, o conhecimento que se pode ter do povo e o conhecimento e as práticas que este possui em si próprio. A pesquisa folclórica salvou do esquecimento grande número de produções, principalmente literárias, sem distinguir com muita nitidez a produção do povo e o discurso sobre esta produção. (p. 32).

Aqui percebemos que o folclore contribuiu para os estudos da literatura oral, pois através dele as produções literárias orais puderam permanecer na memória do povo, sendo constantemente (re)contadas e (re)criadas a partir da oralidade. A designação “popular” também é um conceito que possui uma amplitude e analisada sob a ótica de diversas ciências, no entanto também é vista de forma preconceituosa por alguns críticos literários. Este termo possui a mesma complexidade que a palavra “povo”, a qual dá subsídios para uma possível definição de “popular”. Idelette Muzart (1995) assim afirma: “popular designa o que vem do povo, o que é relativo do povo, o que é feito para o povo e, finalmente, o que é amado do povo. Pertence, portanto, a um discurso sobre o povo, [...]. O popular designa então um conjunto cultural caracterizado pelas suas condições de produção, de circulação ou de consumo”. (p. 32).

Eis que dessa expressão surge o termo “cultura popular”, tradicionalmente aproximamos “cultura” a “conhecimento”; tem cultura quem tem conhecimento, quem é letrado e pertence a uma classe social dominante, no entanto ninguém detém todo este conhecimento, pois ele “é sempre produzido em um determinado contexto cultural” (FERNANDES: 1998). Originariamente, a palavra “cultura” significa “eu moro”, “eu cultivo”, tendo como sentido de cuidar de algo ou alguma coisa. Com o avanço dos estudos que buscavam uma definição exata para o termo, cultura vinculou-se ao conhecimento produzido pelo homem e/ou sociedade, e estava, portanto, ligada à memória, determinada pelo acúmulo do trabalho, que foi incorporado à sua experiência de vida, portanto a cultura não é determinada somente por aqueles que têm certo nível de sabedoria, todos possuem cultura, daí podermos afirmar que não existe uma cultura homogênea, mas sim, várias culturas com ritmos diversos e ligadas a um tempo em particular. José Guilherme Fernandes (1999) assim afirma:

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Tema geral: Línguas e Literaturas: Diversidade e Adversidades na América Latina Cultura, assim, é o conhecimento depreendido do trabalho físico e psicológico realizado pelo homem em dado espaço e com seus pares, mas que, pela transitoriedade do tempo e pela multiplicidade dos espaços, é transformado e fragmentado, não obstante guardar o passaado na memória e no culto, para que exista a garantia da unidade entre os indivíduos, a fim de realizares o processo dialético da existência. (p. 109).

Desse modo podemos entender que a cultura popular é um traço fundamental da necessidade de se narrar a experiência de vida, apoiando-se no imaginário e nos recursos mnemônicos. Com isso notamos que ela está presente nas narrativas orais, pois são marcas culturais de um povo e estão vinculadas ao contexto em que foram produzidas, ou seja, não devem ser desvinculadas de seu contexto de produção. Assim nos afirma Maria Ignez Ayala (2002): A cultura popular tem como traço fundamental a necessidade, pois é regida por uma lógica da necessidade, em que solidariedade, auxílio mútuo, vida comunitária são importantes para a existência de suas diferentes manifestações. No caso da literatura oral, dá-se conselho, narra-se a experiência de vida, contam-se casos exemplares, utilizam-se adivinhas para estimular a inteligência, atenção e rapidez de raciocínio das crianças, valendo-se do imaginário, recursos mnemônicos e outras sabedorias tidas como necessárias para bem educar e estabelecer formas de comunicação com pessoas de gerações diferentes.

No romance “Três casas e um rio”, objeto de meu estudo, é nítida a relação entre ficção e realidade, uma vez que o imaginário recorrente na região funde-se à vivência do povo marajoara. Na seguinte passagem do romance, temos uma conversa entre o tio, um homem mais velho e que possui uma vasta experiência de vida e o menino Alfredo, personagem principal da narrativa, que ouve atentamente as histórias do tio: O padrinho não explicou nada. Sentado no chão, mordido de mosquitos, orelha cheia de zumzum dos bichos, o menino via o padrinho com a machadinha golpeando a árvore, a aplicar a tigelinha no tronco, tal como viu, uma noite, a sua tia aplicar a ventosa na barriga de um velho que gemia. Teve uma interrogação muda: as árvores não sentiam dor com isso, não parecia doer? Aquelas vacas nem mugiam e os bezerros onde estavam? Foi esta a única pergunta maldosa que fez ao padrinho. Os bezerros mamam à noite, trazidos pelo curupira, respondeu o seringueiro que acumulava na sua barraca muitas peles de borracha na intenção de descer as corredeiras e vender o seu produto a bom preço. Assim teria a casa, os juros e o colégio do afilhado. Sebastião não entendia porque o curupira... Então o tio falou que era, sim o curupira, o vaqueiro daquelas vacas. Curupira, de dente verde, dava flecha encantada para o caçador que não perdia uma caça. Mas em compensação pedia ao homem um pedaço do seu fígado. (TCR, p. 79).

No exemplo citado, nota-se uma relação de dependência entre a personagem do romance e o ser lendário. O homem se submete às forças sobrenaturais do espaço que ele está “invadindo”, o qual oferece caça em abundância, mas quer algo em troca, então o “trato” é consolidado porque o nativo teme que algo de mal lhe aconteça. Assim, nota-se que, nessa relação, existe o dominante (natureza) e o dominado (homem), em que o primeiro sobrepuja-se sobre o segundo. Sendo assim, a cultura dita popular estabelece uma relação entre a experiência de vida e as recriações míticas dos espaços em que o homem está inserido e tal cultura, diferente do que muitos estudiosos pensam, é estetizante e poética, daí podermos inseri-la ao contexto da literatura oral. No entanto, os termos “folclore” e “popular” são vistos como uma oposição ao “erudito”, o que, segundo Zumthor (1993) “remete, quando muito, aos costumes predominantes neste ou naquele momento e meio” (p. 118). O vocábulo “erudito” está associado à tradição literária, à escrita, à língua padrão, culta; é produzido por um autor reconhecido, enquanto que o texto popular se sustenta no anonimato. José Guilherme Fernandes (1999) assim nos afirma: Ele [o texto popular] é recriado por cada narrador, sem perder, em cada narração, a sua estrutura, o que o caracteriza como assentado em um percurso narrativo invariante. Por ser um texto “tecido por várias mãos”, por vários narradores, por “várias vozes”, o que garante sua variação, esta está proporcionalmente ligada ao código de transmissão que o texto privilegia, o oral. É através da oralidade que as variações de cada narrativa ocorrem, pois a oralidade significa não só variação lingüística, mas também narrativa daí também o caráter variante da narrativa popular. (p. 110).

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Pode-se perceber essa variação narrativa dentro do romance a ser estudado, quando as personagens narram diferentes versões da história do bicho socuba, observe: As moças faziam rodas em torno da ginjeira carregada. Adalzira, então, contou que, certo dia, uma moça viu no sítio aquele pé de maniva e exclamou: Ah, se esse pé de maniva fosse um homem, eu me casava com ele. Dias depois, no mesmo roçado, lhe apareceu um rapaz que ela achou tão bonito, tão alvo... Namoro vem, namoro vai, a moça não demorou, emprenhou... – Mas fala baixo, Adalzira. Olha se passa uma pessoa... Tu com essas conversas... – Que conversas? Não é coisa que pode acontecer com uma de nós? Não nascemos para isto? – Para isto o quê? – De ficar assim. Eu, por exemplo... E Aldazira com as mãos sobre o ventre fez o tamanho da sua possível gravidez. (...) – Mas bem. A moça ficou grávida, não foi? Pois quando ela teve o filho, o rapaz disse: nunca banhe o nosso filho – lá deles – na água fria. E ela assim fazia. A criança era alvinha que só uma tapioca, os olhos verdes como a folha da maniva. A mãe – lá dele – criava o filho como o pai – lá dele – mandava. Um dia, a moça teve que ir ao roçado e deixou o curumim com a avó. A avó era uma velha tão birrenta, tão sem paciência, que só fervendo a diaba velha dentro de uma chaleira. A criança na mão da velha principiou foi a chorar. Talvez, e isto é por minha conta, talvez por via de só olhar a cara da velha. A avó – lá da criança – fez uma papa de berinjela e deu pro neto. Qual! Nada do jito de calar. A velha não pôs dúvida. Fez foi encher uma tina d’água, tirou o penso da criança e meteu o bichinho dentro da água fria. Paf! Pois a criança não se desfez todinha na água tal qual a tapioca? Pois foi. A velha aí ficou com cada zolhão em cima da água e disse: “Hum, metida com meuã! Teve filho com bicho”. A moça tinha tido filho com um pé de maniva. – E depois? Quando a moça voltou? – Acabou-se o que era doce. Não sei mais de nada. E adeus, que quero entregar estas amaldiçoadas cartas pra aquele pé de maniva. Mas só sei que o filho que tivesse dele... Hum! Credo. Podia meter em dez tinas d’água. O bicho era ali, de carne e osso. (TCR, p. 278-279). (...) Uma moça também a caminho da roça viu certa manhã um bicho de socuba deslizando no chão. Cortou ele em dois pedaços. Ao chegar à roça encontrou um desconhecido, rapaz de cabeça amarrada, cinto amarelo, calça listrada de cores. Ela deixou de tirar a mandioca para ficar conversando com ele. Conversação esse que fez eles dois se gostarem assim de supetão e naquele dia mesmo fizeram amores. Um ah! saiu de todas as moças num fingido pudor. Vendo-a barriguda, o rapaz lhe avisou: olhe, quando você estiver com as dores, vá ter a criança ao pé da socubeira. – Pensa que a moça estranhou ao menos que ele dissesse aquilo? Achou foi natural... Depois se soube que, na hora, a moça foi pro pé da socubeira e ah! meas manas... em vez de uma criança viu foi sair dela aquela desconforme quantidade de bichos de socuba, saindo... (TCR, p. 279 – 280).

Portanto, o oral e o erudito convivem harmonicamente, sem que um sobrepuja-se ao outro. Estes termos, atualmente, são desvirtuados de seu conceito mais amplo, pois muitos acreditam que o oral sempre está associado ao popular e que o erudito está ligado à escrita. Paul Zumthor (1993) nos faz acreditar que tal pensamento está um tanto equivocado. Oral não significa popular, tanto quanto escrito não significa erudito. Na verdade, o que a palavra erudito designa é uma tendência, no seio de uma cultura comum, à satisfação de necessidades isoladas da globalidade vivida, à instauração de condutas autônomas, exprimíveis numa linguagem consciente de seus fins e móvel em relação a elas; popular, a tendência a alto grau de funcionalidade das formas, no interior de costumes ancorados na experiência cotidiana, com desígnios coletivos e em linguagem relativamente cristalizada. (p. 119).

Assim, notamos que a definição das expressões “folclore”, “popular” e “erudito” são importantes para um melhor esclarecimento do que seja a Literatura Oral e sua importância dentro do contexto literário, uma vez que é um contexto amplo para ser estudado. Desse modo, o estudo das narrativas orais deve, primeiramente, perpassar por tais conceitos para que haja um melhor entendimento do que seja, realmente, a Literatura Oral. Pois é possível haver elementos orais em uma obra literária escrita? Tal indagação será devidamente analisada no próximo item deste artigo.

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3. Impressões orais na narrativa escrita Como já fora citado anteriormente, os termos folcore, popular e erudito se complementam e ajudam-nos a chegar a um melhor entendimento do que seja Literatura Oral, embora essa expressão nos deixe duvidosos, pois quando se fala em Literatura, pensa-se logo em escrita, leitura e em todas as suas exigências linguísticas. Há alguém que escreve para o outro ler. A oralidade se materializa por meio da voz, da fala, e se concretiza através da audição. Alguém conta para o outro ouvir. Portanto, analisando esses termos separadamente, nota-se que há uma contrariedade entre ambas, pois haveria, de fato, uma Literatura Oral? Seguindo os critérios para se estabelecer se um texto é ou não literário, deve-se analisar sua função estética e se o mesmo tem literariedade, pois um texto é literário quando tem essa característica. Os estudiosos desta literatura acreditam que a oralidade possui sim, literariedade e por isso, a Literatura Oral está ultrapassando barreiras rígidas entre as abordagens do oral e escrito e seduzindo pesquisadores para esse tema tão instigante, pois a partir dos avanços do estudo acerca da oralidade, notou-se que o texto escrito é elaborado a partir de uma oralidade rememorada, ou seja, esses dois termos que, a princípio, fez-nos pensar em uma possível contrariedade e exclusão, convivem harmonicamente, não podendo ser analisadas separadamente. Idellete Muzart (1995) afirma: Se oralidade e escritura opõem-se na própria denominação – literatura oral – a ambiguidade aumenta quando se procura compreender os processos de passagem de um para o outro código. Os estudos realizados sobre a literatura oral, na perspectiva literária, recorrem em geral a textos “escritos”, elaborados por outros – etnólogos, folcloristas, linguistas – a partir de uma pesquisa de campo com objetivos específicos estranhos via de regra aos analistas literários. (p. 38).

Convém lembrar que o texto escrito surgiu a partir do texto oral, como defende Roberto Scholes, e gradativamente a escrita ganhou uma fixidez que exclui os elementos próprios da oralidade, quais sejam: interlocução entre narrador e ouvinte; os traços linguísticos próprios da oralidade; a performance; os gestos; as onomatopéias; as expressões faciais etc., então, além da fala, o corpo também ajuda a compor a materialização do texto oral. Através dele, um povo presentifica o passado, com a ajuda de sua memória, embora esta seja fragmentada, mas que está intimamente ligada ao tempo e este, a medida que um fato se distancia do presente, deixa marcas do esquecimento. Concluise então que o tempo faz esquecer, porém a memória faz (re)lembrar e para que essa rememoração fique mais próxima da realidade, o narrador utiliza, além da voz, outras expressões para envolver o ouvinte naquela história. Ele faz isso para seduzi-lo a fim de tornar sua narração mais real. Essa sedução do narrador também está presente no romance “Três casas e um rio”, quando D. Amélia, mãe de Alfredo, narra a história mítica entre o rio e a cobra, sua mãe, que o abandonava: Alfredo ouvira-a falar dessa história cheia de águas e florestas desconhecidas, que se confundiam com as velhas impressões da primeira infância. Sua mãe, numa voz evocativa, soltava a história no silêncio da sala e envolvia todos numa atmosfera de sortilégio1. Era a queixa de um rio à cobra, sua mãe, que o abandonava. O rio se lamentava soturnamente no meio do mato. Cobra grande não me abandone. A terra crescia na água. O rio secava. Os estirões, largos outrora, se estreitavam, se estreitavam e as margens se fundiram, balançando na rede dos cipoais (...). (TCR, p. 133).

A escrita perpassa pelo oral, pois uma narrativa vocalizada pode ser registrada em um texto escrito, assim como uma narrativa escrita pode ser transmitida através da oralidade, quando alguém decora um texto e sai a recitá-lo, no entanto nenhum deles perde suas particularidades quando transformados de um estilo a outro. O texto oral, ao ser registrado em uma narrativa escrita, não perde as marcas linguísticas próprias da oralidade, sendo assim, nota-se que esses dois gêneros, embora pareçam contraditórios, encontram-se e convivem em harmonia. Esta é, portanto, a proposta deste trabalho: fazer um estudo das narrativas orais presentes no romance “Três casas e um rio”, de Dalcídio Jurandir, pois através delas, as personagens recriam sua realidade, dando a ela um novo significado e um novo sentido. O escritor marajoara é fiel à realidade e transcreve-a de maneira poética, unindo ficção e realidade, uma vez que o imaginário recorrente na região funde-se à vivência Grifo meu a fim de chamar atenção para o envolvimento feito por D. Amélia para que os ouvintes da história que ela irá contar possam se envolver na ação narrativa e fiquem atentos à sua voz narradora.

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do povo marajoara, pois segundo Roland Barthes (1978): “é a história que transforma o real em discurso, é ela e só ela que comanda a vida e a morte da linguagem mítica”. (p. 132). É o que se nota na seguinte passagem do romance “Três casas e um rio”, quando Sebastião, tio de Alfredo, ao passear pelas matas, ouve um som que o atrai. Um grito do urutaí2 atravessou a mata que se sacudiu, espantada. Por fim, um violão, na cabeça do trapiche, tocou. Sebastião foi se aproximando do caboclo que tocava. Só havia quatro cordas no instrumento. O caboclo, cor de ferrugem, cabelo empinado e duro, tinha no ombro feia cicatriz de uma luta com onça. O pretinho espiava o caboclo que com tão gosto ia ponteando. Era uma admiração no guri: pois mão tão grossa, que brigou com onça, sustentou cedros, puxou canoa nas cachoeiras, tão pesada em cima das cordas, dedos tão brutos podiam tirar aquela música fininha do violão? E tão íntima, falava tão delicadamente de uns sentimentos misteriosíssimos para o pretinho! O caboclo tocou, e uma corda rompeu-se. O tocador, indiferente, continuou. Partiu-se nova corda. Ficavam duas apenas. O caboclo não se rendia, tocando sempre. Na sua teima, se todas as cordas rompessem, continuaria a tocar até que o instrumento voasse de sua mão. E como visse o pretinho tão embevecido, o caboclo passou-lhe o violão e fez sinal com a cabeça para que experimentasse tocar. Também com um sinal de cabeça o pretinho disse que não. E se viu, porém, com o violão em cima de seus joelhos sujos e magrinhos, o luar luzindo nas cordas partidas, como se estas soassem ao contato da lua. (TCR, p. 82-83).

Ao texto que une oralidade e escrita, Zilá Bernd (1995) chama de impuro ou híbrido, pois segundo ela, “o híbrido é aquilo que participa de dois ou mais conjuntos, gêneros ou estilo” (p. 76). Assim é o romance de Dalcídio Jurandir, pois a narração feita em terceira pessoa, nitidamente poética e literária, através das metáforas utilizadas pelo narrador, confunde-se com as narrações orais feitas pelas personagens e que também tem seu lado poético e estetizante. Assim, nota-se que o texto literário oral “encontra-se raramente isolado, ou produzido como texto, mas sempre inserido num discurso, como mensagem em situação” (SANTOS, 1995:39). Portanto, percebe-se que a obra de Dalcídio Jurandir constitui um legado cultural extenso, porque, ao dar voz às personagens, quando estes narram as histórias da região ao leitor, o escritor registra a cultura daquela comunidade, daí Vicente Salles (2001) afirmar que “Dalcídio Jurandir conseguiu criar um vasto painel da cultura popular paraense”. (p, 12). A hibridação passou a fazer parte da literatura brasileira recentemente, pois as primeiras manifestações híbridas deram-se na área religiosa quando ocorreu o sincretismo religioso das religiões africanas com a católica, a partir daí tal gênero expandiu-se para outras áreas e eis que chega à literatura, o que permitiu usar elementos da tradição oral e popular nas narrativas escritas. Segundo Paul Zumthor (1997): “De qualquer maneira, e salvo exceções, a poesia oral hoje se exerce em contato com o universo da escrita” (p. 39). Esse hibridismo pode ser percebido no romance “Três casas e um rio”, pois ele pertence a um gênero literário escrito, porém no decorrer da narrativa aparecem histórias míticas àquelas que são tipicamente culturais e estão inseridas ao contexto marajoara, narradas pelas personagens e que compõem o imaginário da região. Portanto, as narrativas orais são importantes porque preservam a memória de um determinado povo, pois como já fora dito anteriormente, nossa memória é fragmentada, por isso há idas e vindas quando se narra um fato que se passou a algum tempo atrás e a partir do momento que se vai contando, as lembranças evocam e a memória ajuda à relembrança dos fatos acontecidos. Essas narrativas orais, segundo conceito de Idelette Santos (1995), são chamados de etnotexto porque ele “designa o discurso que um grupo social, uma coletividade, elabora sobre sua própria cultura, na diversidade de seus componentes, e através do qual reforça ou questiona sua identidade”. (p. 39). Sendo assim, nota-se que o etnotexto está ligado à memória cultural de uma coletividade. Ele reaviva mitos, contos, cantos, provérbios que não são mais encontrados “na vida cotidiana ou no ambiente habitual, os apoios memoriais que lhes permitiriam permanecer “vivos”” (SANTOS, 1995: 39). Portanto, ele se estrutura na memória cultural de uma coletividade.

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Ave noturna.

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4. Memória e oralidade A memória reaviva algo que foi dito ou vivido no passado e é transmitida no presente através da oralidade. Então, como se vê, memória e oralidade não podem se dissociar porque uma auxilia na concretização da outra. Jean Pierre Vernant acredita que a função da memória não é somente a de reconstruir o tempo, mas sim lançar uma ponte que separa o presente do passado. Através dela o passado é rememorado, daí a narração dos mitos vividos e ouvidos pelos narradores orais. Vernant (1990) assim afirma: “Essa imagem da memória que os mitos refletem, essa função que eles lhe destinam não são gratuitas. Estão ligadas às técnicas de rememoração muito particulares, praticadas no interior de grupos fechados para fins que lhes são próprios” (...). (p. 129). No entanto, a oralidade necessita de outros meios para que seja materializada por meio da voz, além da memória. É importante ressaltar que ela não significa analfabetismo. Oralidade é pois “toda comunicação poética em que, pelo menos, transmissão e recepção passem pela voz e pelo ouvido” (ZUMTHOR, 1993: 34) e além da voz, pode-se utilizar outros recursos, tais como: gestos, interlocução entre narrador e ouvinte, performance. Através da voz, as narrativas orais são (re)contadas e (re)criadas, pois elas são sempre vinculadas a um contexto, daí a existência de variações de uma mesma narrativa, como já fora dito anteriormente. Esse fato é percebido, no romance, no momento em que D. Amélia narra a história da Cobra Grande e sua relação com o rio, sua morada eterna: Cobra grande não me abandone. A cobra dormia no fundo do rio e de repente acordou, era meia noite e deu um urro: vou-me embora pras águas grandes. Então os peixes, todos os bichos, os caruanas, as almas dos afogados, os restos de trapiches, as montarias também seguiam pras águas grandes. Os restos de cemitério que tombavam nas beiradas também partiam pras águas grandes. Adeus, ó limo da cobra grande, adeus ó peixes, adeus, marés, tudo vai embora pras águas grandes. Até a lama há de partir, os aningais, as velhas guaribas, tudo seguindo pras águas grandes. O rio se queixava, se queixava, secando sempre: não me abandones, mea mãe cobra, me amamenta nos teus peitos, vomita em meu peito o teu vômito, enche os meus poços, alaga as margens, quero viver, quero as marés, mãe cobra grande. Ninguém ouvia o agonizante rio. (TCR, p. 133-134).

Nesse trecho nota-se a recriação da narrativa. Esse fato só é possível porque tem apoio da memória, que por sua vez é materializada através da oralidade. Nesse sentido se percebe que a oralidade é um elemento, que apoiado ao imaginário e à evocação da memória, não permite que as narrativas orais sejam esquecidas pelo povo de certa comunidade e esse mesmo povo é capaz de dar um novo sentido, uma nova versão a essas narrativas. Zumthor (1993) tipifica o termo “oralidade”, pois para ele existem algumas espécies ideais de oralidade: – a oralidade primária ou pura é aquela em que não há contato algum com a escrita; – a oralidade denominada mista, o que nos faz lembrar da hibridação defendida por Zilá Bernd e que já fora mencionado neste artigo. É a oralidade que há influência da escrita. Zumthor (1993) afirma que a “oralidade segunda se (re)compõe a partir da escrita e no interior de um meio em que esta predomina sobre os valores da voz na prática do imaginário” (p. 37). Nela “toda expressão é marcada pela presença da escrita” (ZUMTHOR, 1993: 37), portanto conclui-se que é a oralidade da cultura letrada; – por fim, a oralidade mediatizada, em que há diferenciação entre o tempo e o espaço em que foi produzida. O romance em estudo integra-se à oralidade mista, uma vez que há a impressão da oralidade em um texto escrito. Para Paul Zumthor (1997) oralidade ou texto oral “é toda comunicação poética em que, pelo menos, transmissão e recepção passem pela voz e pelo ouvido” (p. 34). Sendo assim podemos deduzir que não são apenas as pessoas ditas “analfabetas” que são capazes de transmitir uma narrativa oral, pois todas as pessoas, independente de classe social, utilizam a voz, a oralidade para transmitir uma

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história, um conhecimento, seja ele acadêmico ou de vida. Talvez por ser contado de forma relaxada, sem as exigências da língua culta, alguns resistem em aceitar a Literatura Oral como produção poética e dão importância maior ao texto escrito. Não quero aqui condenar os textos escritos, o objetivo de meu trabalho é acrescentar aos estudos acerca da oralidade e mostrar que os textos escritos e orais são capazes de conviver harmonicamente, eles têm suas importâncias peculiares e por isso possuem uma estreita relação e afinidade. O texto escrito tem como objetivo registrar as narrativas, sem que haja muitas variações. Registra para não esquecer. Já a oralidade é capaz de transmitir as histórias e de perpetuá-las por meio da voz e da memória. Portanto não se deve condenar esse tipo de transmissão porque ele integra a cultura de um povo. Para não se esquecer completamente, transmite-se à outras pessoas, para que, futuramente, juntos, elas possam transmitir tais histórias a outras pessoas e assim poder perpetuar as narrativas orais. Portanto “Ave a Voz”! Referências AYALA, Maria Ignez Novais. Cultura Popular e Temporalidade. Gramado: ANPOLL, 2002. BARTHES, Roland. Mitologias. 3ª ed. Tradução de Rita Buongermino e Pedro de Souza. Rio de Janeiro: DIFEL, 1978. BENJAMIN, Walter. Obras escolhidas: Magia e técnica, arte e política. Volume 1. Tradução Sérgio Paulo Rouanet. São Paulo: Brasiliense, 1994. BERND, Zilá. Inscrição do oral e do popular na tradição literária brasileira. In: Fronteiras do literário: literatura oral e popular Brasil/França. Organizado por Zilá Bernd e Jacques Migozzi. Porto Alegre: Editora da Universidade / UFRGS, 1995. FERNANDES, José Guilherme dos Santos. Cultura e narrativa. In: Dissertação de mestrado intitulada: Largueza e lassidão: a mitopoética do espaço das água. Belém, 1998. ______. Narrativa e Cultura: Do erudito e do Popular. In: Narrativa Oral e Imaginário Amazônico. Organizado por Maria do Socorro Simões. Belém: UFPA, 1999. FERREIRA, Jerusa Pires. Matrizes impressas da oralidade. In: Fronteiras do literário: literatura oral e popular Brasil/ França. Organizado por Zilá Bernd e Jacques Migozzi. Porto Alegre: Editora da Universidade / UFRGS, 1995. ______. Armadilhas da memória e outros ensaios. Cotia, SP: Ateliê Editorial, 2003. HALBWACHS, Maurice. Memória Coletiva e Memória Individual. In: A memória coletiva. São Paulo: Vértice, 1989, p. 25-52. JURANDIR, Dalcídio. Três casas e um rio. Belém: CEJUP, 1994. LOUREIRO, João de Jesus Paes. Obras reunidas, volume 4. São Paulo: Escrituras Editora, 2000. SALLES, Vicente. VII Jornada do Conto Popular Paraense. Narrador: Dalcídio Jurandir. Brasília: MicroEdição do autor, 2001. SANTOS, Idelette Muzart Fonseca dos. Escritura da voz e memória do texto: abordagens atuais da literatura popular brasileira. In: Fronteiras do literário: literatura oral e popular Brasil/França. Organizado por Zilá Bernd e Jacques Migozzi. Porto Alegre: Editora da Universidade / UFRGS, 1995. TORRES, Olinto; MARANHÃO, Haroldo e GALVÃO, Pedro. Um escritor no purgatório. In: Asas da Palavra, nº 04. Belém: Unama, 1996. VERNANT, Jean Pierre. Mito e pensamento entre os gregos. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1990. ZUMTHOR, Paul. Introdução á poesia oral. Tradução Jerusa Pires Ferreira. São Paulo: Editora Hucitec, 1997.

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Tema geral: Línguas e Literaturas: Diversidade e Adversidades na América Latina ______. A letra e a voz: A “literatura” medieval. Trad. Amálio Pinheiro, Jerusa Pires Ferreira. São Paulo: Companhia das Letras, 1993. ______. Memória e comunidade. In: A letra e a voz. São Paulo, Cia das Letras, 1993. (p. 139-158). Tradução Amália Pinheiro.

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Artur Azevedo e a defesa da nacionalidade: a caminho do teatro brasileiro moderno Elen de MEDEIROS (IEL/Universidade Estadual de Campinas)

Resumo: As discussões e controvérsias a respeito da modernização do teatro brasileiro se referem a um processo histórico conturbado e muitas vezes repetido, no sentido de que houve várias tentativas de modernização, em diferentes épocas e de diferentes maneiras. Destacando-se desse panorama histórico, Artur Azevedo não visava propriamente à modernização do teatro brasileiro – ligado que era às tradições –, mas buscou sobretudo valorizar a nacionalização dos temas dramáticos. Curiosamente, foi lutando para que os dramaturgos escrevessem sobre o Brasil que ele pôs em evidência um paradigma que, mais tarde, no século XX, será considerado como um dos principais fatores de modernização da literatura brasileira e, por conseguinte, do teatro nacional. Em vista disso, esta comunicação tem por objetivo analisar alguns temas considerados nacionais e entender como isso torna o autor, em certo aspecto, um visionário e personagem contraditória. Para tanto, analisaremos elementos nacionalizantes em O Tribofe e A Capital Federal. Palavras-chave: Artur Azevedo; teatro brasileiro; nacionalidade; teatro do século XIX.

RÉsumÉ: Les discussions et controverses sur la modernisation du théâtre brésilien se réfèrent à un processus historique polémique et parfois répétitif, concernantsesnombreuses tentatives de modernisation,à différentesépoques et de manières variées. En se détachant de ce panorama historique, Artur Azevedo ne visait pas à proprement la modernisation du théâtre brésilien – il était en effe très lié aux traditions –, mais il a surtout cherché à valoriser la nationalisation des thèmes dramatiques. Curieusement, à traverssa lutte pour développer la création de pièces sur le Brésil, il a mis en évidence un paradigme qui a été consideré au XXème siècle comme un des principaux facteurs de modernisation de la littérature brésilienne et, par conséquent, du théâtre national. Pour cette raison, cet exposé analisera quelques thèmes considérés comme nationaux et tentera de comprendre comment cette caractéristique fait de l’auteur un visionnaire et un personnage contradictoire.Cette présentations’intéresseraprécisémentà l’analyse desélements nationaux dans O Tribofe et A Capital Federal. Mots-ClÉs: Artur Azevedo; théâtre brésilien; nationalité; théâtre du XIXème siècle.


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1. Aspectos gerais do teatro brasileiro moderno O teatro moderno surge a partir da segunda metade do século XIX, como se convencionou estabelecer cronologicamente1. Em âmbito internacional, o crítico Peter Szondi (2001) delineou suas características com base em peças de Ibsen, Tcheckov, Strindberg, Ionesco, Pirandello: a estrutura convencional do drama, estabelecida a partir do renascimento, não suporta mais as ambições e temáticas da época de fin-de-siècle e, posteriormente, de crises econômicas, de identidade e guerras mundiais. A ruptura, portanto, é inevitável – e, sem saída, o drama tende a se transformar em moderno (estrutural e tematicamente). A noção de modernidade dramática, portanto, é a do rompimento com as normas preestabelecidas e surgimento de um novo paradigma de representação do homem moderno no palco, em concordância com os sentimentos e angústias apresentados. Estruturalmente, isso se reflete na ausência dos diálogos convencionais – eles que, segundo Szondi, geravam a relação intersubjetiva entre as personagens –, na ruptura com as unidades de tempo e ação. Reconhecemos que no Brasil o processo de renovação teatral foi um pouco diferente. As produções em território nacional não necessariamente acompanharam as tendências exteriores; por outro lado, alguns autores produziram de forma diversa daquela em vigor. Poderíamos tomar como exemplo algumas peças de Qorpo Santo ou de Martins Pena. Ambos do século XIX, esses autores são considerados expoentes do teatro nacional; destoantes da estética contemporânea, previram modificações concretizadas no século seguinte. O primeiro, por escrever textos que não se vinculavam a uma estética específica, criando sua própria; o segundo, por trazer à tona questões sociais e problemáticas do Brasil monárquico, de maneira irônica e sarcástica. Qorpo Santo foi recentemente lançado ao patamar de grande escritor, por produzir uma literatura ora denominada do absurdo, ora do surrealismo. Já Martins Pena, enquadrado cronologicamente como romântico, pouco se enquadra à estética ao propor não a idealização das questões nacionais, mas uma descrição e olhar crítico aos principais problemas do cotidiano brasileiro, fundando o gênero de maior fôlego no Brasil: a comédia de costumes. Em vários autores brasileiros, sobretudo no século XX, a proposta de modernização surge a partir da nacionalização de alguns elementos componentes da peça, especialmente no que diz respeito à construção da personagem. Se por um lado a história do teatro convencionou dizer que o teatro brasileiro moderno começou na década de 1940, por outro lado não podemos esquecer a dramaturgia inovadora e vanguardista de Oswald de Andrade, ainda na década de 1930. Do que trata O rei da vela, por exemplo? É uma sagaz crítica à burguesia em ascensão e à aristocracia em crise, transformação proveniente da crise do café no Brasil, contexto sócio-político do início da década, que também propiciou ao autor a criação de suas sarcásticas personagens. Peça escrita sobre o Brasil e para o público nacional, de um dos autores responsáveis pela literatura modernista e moderna. A estética do escracho e da antropofagia, especialmente preferidas por Oswald, também foram adotadas em suas outras duas peças: O homem e o cavalo e A morta. Houve, no entanto, outras tentativas de modernização teatral no Brasil no século XX, antes mesmo de Oswald de Andrade e da conhecida iniciação moderna de Nelson Rodrigues: autores que, face ao que era produzido na Europa, buscaram inovações estéticas e filosóficas voltadas a um palco e a um público que não as compreendia. Nem autores, nem críticos, nem platéia foram capazes de entender as transformações propostas por Roberto Gomes, na década de 1910. O teatro intimista era estranho demais a uma história cênica repleta de operetas, revistas e mágicas. A pretensão de alçar o teatro nacional à esfera literária simbolista ensaiada por Gomes não rendeu frutos entre nossos autores, tendo legado seu triste fim a quem o experimentasse2.

Meu ponto de partida para tal afirmação, assim como de grande parte dos estudos atuais sobre teatro moderno, é o livro de Peter Szondi (2001). 2 Ver: Medeiros (2009). Neste texto traço um panorama do teatro do início do século XX e de autores que, visando à modernização do teatro nacional, produziram peças de teatro conforme o que estava em voga na Europa naquele momento. Ainda que tais tentativas tenham parecido inócuas, elas preparam o caminho para o teatro da década de 1940. 1

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2. Do contexto histórico-teatral O contexto teatral brasileiro do final do século XIX é bastante conhecido: poucas casas de espetáculos (grande parte delas em situações físicas precárias); atores e atrizes despreparados e sem condições de sobrevivência pelo ofício; por vezes, algumas atrizes se aventuravam na atividade das prostitutas; poucos autores nacionais tinham realmente reconhecimento; e, sobretudo, a maior parte da atenção artística era destinada às companhias européias que aqui vinham representar óperas, operetas e tragédias nas férias do além-mar. Ou seja: a arte dramática nacional estava totalmente subvalorizada pela crítica brasileira. Tal contexto nos é apresentado por Décio de Almeida Prado (1999: 142): Firmou-se, nos últimos decênios do século XIX, um roteiro artístico que abrangia cidades litorâneas como Rio de Janeiro, São Paulo (graças ao porto de Santos), Montevidéu e Buenos Aires. No verão europeu, que coincidia com o inverno ao sul do equador, os atores dramáticos ou cantores líricos franceses e italianos, em período de férias, uniam-se em grandes companhias, encabeçadas por duas ou três celebridades, partindo para a conquista dos pontos extremos do mundo ocidental – Rússia, Estados Unidos, América do Sul. Durante a demorada travessia do Atlântico ensaiava-se o repertório, extenso e variado, porque cada espetáculo pouco tempo permanecia em cartaz, só se reprisando os de maior sucesso. Dois gêneros figuravam no topo da hierarquia teatral: a ópera e a tragédia.

Artur Azevedo foi um dos intelectuais que mais se empenharam para aumentar o prestígio dessa arte no Rio de Janeiro. Lutou para o reconhecimento da profissão dos atores e autores, para a construção de um teatro digno na capital federal e, principalmente, para que a cultura brasileira fosse transposta para o palco. Lutas para as quais ele dedicou grande parte de sua vida3. E seu engajamento não foi apenas através das crônicas publicadas diariamente nos jornais, mas também por meio da escritura de peças que retratam a cultura nacional e que se remetem ao teatro por aqui produzido e encenado. Assim, o teatro e cultura brasileiros foram temas de várias de suas revistas, comédias e burletas. Em alguns casos, a aproximação com a cultura daqui era por meio de adaptações de uma peça estrangeira à condição local, como foi sua primeira empreitada nessas traduções livres, em 1874, que do original francês La fille de Mme Angot tornou-se A filha de Maria Angu. A posição de Artur Azevedo a respeito da arte dramática brasileira era bem conhecida entre seus contemporâneos; e também se tornou tema frequente de suas crônicas em sua defesa. Não é, portanto, novidade o fato de que ele sobrepunha a arte nacional em relação à estrangeira. O teatro brasileiro deve buscar todos os seus elementos na vida nacional e não vestir os seus personagens nem desenhar os seus caracteres à européia. (...) Os nossos escritores atuais, se se meterem – e eu espero que se metam – a escrever peças de teatro, encontrarão nos nossos costumes, nos nossos sentimentos, na nossa vida, vastíssimo terreno.4

Especialmente nesse contexto, em que o público ia ao teatro para rir, a hierarquia dramática dividia os três gêneros do teatro musicado entre as operetas, as revistas e as mágicas. Artur Azevedo defendia a literariedade das peças, mas também apostava sua pena nas comédias tidas por “menores”, especialmente nas revistas de ano e nas burletas (gênero explorado por ele), embora não quisesse baixar sua arte ao rodapé teatral com as mágicas. E foi nas comédias ligeiras que ele melhor desenvolveu sua capacidade dramatúrgica. Segundo Sousa Bastos, em seu Dicionário do Teatro Português (apud Prado, 1999: 258-9), revista É a classificação que se dá ao gênero de peças, em que o autor critica os costumes de um país ou de uma localidade, ou então faz passar à vista do espectador todos os principais acontecimentos do ano findo: revoluções, grandes inventos, modas, acontecimentos artísticos ou literários, espetáculos, crimes, desgraças, divertimentos, etc. Nas peças deste gênero todas as coisas, ainda as mais abstratas, são personificadas de maneira a facilitar apresentá-las em cena. As revistas, que em pouco podem satisfazer pelo lado literário, dependem principalmente, para terem agrado, da ligeireza, da alegria, do muito movimento, do espírito, com que forem escritas, além de couplets engraçados e boa encenação. 3 4

Informações obtidas de Neves (2009). O Teatro, 02/05/1895 apud Neves, ibidem.

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A estrutura narrativa da revista, pelo objetivo a que se propõe, é fragmentada e conduzida pelo compère (compadre), responsável por trazer a unidade do que se apresenta no palco. Este gênero viveu seu auge no final do século XIX e ficou em voga até a era getulista, quando sua estrutura começou a se desintegrar. Artur Azevedo escreveu várias revistas, sozinho ou em parceria, e também aproveitou seus enredos para desenvolvê-los mais tarde em peças de outros gêneros, como as burletas e comédias de costumes. Ele fez isso com algumas peças, mas vamos nos deter aqui em duas, uma consequência da outra. O enredo parece simples: um jovem que se divide entre a noiva – brasileira, inocente e sincera – e a amante – estrangeira, cortesã e interesseira. O jovem perde-se nas distrações da recém-criada capital federal e a noiva, tendo ficado no interior do país (Minas Gerais), lamenta sua sorte. A família interiorana vai ao Rio de Janeiro à procura do noivo fujão e lá encontra todo tipo de contrapontos à vida tranquila da roça. Este é, basicamente, o fio narrativo tanto d’O Tribofe quanto d’A Capital Federal. Artur Azevedo escreveu O Tribofe, uma revista de 1891, com trama semelhante a esta e depois a reescreveu na burleta A Capital Federal, em 1897. O jovem se chama Gouveia, que se apaixona pela roceira Quinota e é amante da francesa Ernestina (em O Tribofe) ou da espanhola Lola (em A Capital Federal). Mas é por detrás deste simplório enredo que o autor destaca aspectos de uma sociedade paradoxal, complexa em suas relações – especialmente no que concerne o dinheiro e a sobrevivência individual –, injusta e moralmente ultrapassada quando se trata de seduções sensuais. 3. Nacionalidade: um caminho para o moderno As referências a elementos nacionais são inúmeras em ambas as peças. É, inclusive, a partir da caracterização das personagens genuinamente nacionais – a família caipira – que Artur Azevedo cria grande parte da comicidade nas peças. Mas é também na representação desses tipos nacionais, pessoas simples e honestas – em geral ludibriadas pelas pessoas que vivem na capital –, que o dramaturgo melhor compõe suas personagens, dotadas de leveza e graça. A dedicação do autor ao teatro ligeiro, em geral rodeado pelos preconceitos dos intelectuais contemporâneos e que lhe acumulou inúmeras críticas, rendeu-lhe no entanto suas melhores peças5. E foi, também, nesse tipo de dramaturgia que Artur Azevedo levantou a bola para o que, mais tarde, será considerado como um dos principais elementos para a constituição do teatro moderno nacional: a brasilidade expressa nas peças. Segundo Neves (2008: 32): O teatro ligeiro, porém, no objetivo de aproximar-se da população mais pobre, a fim de garantir o rendimento com a bilheteria, favoreceu a inclusão, nas peças, de elementos da cultura popular nacional marginalizados pela maioria dos escritores, até o advento do Movimento Modernista (a exemplo da linguagem brasileira e dos tipos nacionais).

Para iniciar a reflexão acerca da composição dos traços de nacionalidade nestas peças, peguemos como ponto de partida a família que compõe o núcleo central da história. Vinda do interior de Minas Gerais, ela é o contraponto da vida boêmia fluminense, representada especialmente pelo noivo (Gouveia) e pela prostituta (Ernestina/ Lola). Assim, Eusébio, Fortunata, Quinota, Juca e Benvinda são personagens que compõem o núcleo da brasilidade, cujas maiores características são a naturalidade das ações e o coloquialismo das falas. No lado oposto, moradores e representantes da vida urbana carioca: Gouveia, Ernestina/Lola e outras personagens que mudam de uma para outra peça. A característica mais marcante neste rol de personagens é o fato de todos lidarem com esperteza e buscarem, sobretudo, a autopromoção em meio à vida cada vez mais difícil da capital federal. Também ajudam a compor esse quadro de personagens outras imagens da vida carioca: o lançador de mulatas, os jogadores, o proprietário de casa, o pai de família etc. São todos tipos, construção típica da comédia, que representam cada qual uma parcela da sociedade retratada. Em virtude da característica da revista, são vários os elementos que perpassam toda a peça que exigem certa atenção, pois são fatos históricos ocorridos no Rio de Janeiro naquele ano de 1891. 5

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Cf. Décio de Almeida Prado, Larissa de Oliveira Neves entre outros.

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Se por um lado sua leitura fica dificultada por tais referências históricas, por outro podemos ter uma reconstrução – ao menos parcial – da vida carioca do momento. Em O Tribofe, por exemplo, a primeira cena retrata um fato bastante curioso e que hoje passa praticamente despercebido ao leitor: a família interiorana, recém-chegada na capital, entra em uma rotunda onde está exposto o Panorama do Rio de Janeiro. Ao longo da cena, o pintor brasileiro Victor Meirelles é citado. O coro inicial fala de “obra-prima”, “belo panorama” e “Desde França, está provado/ Que defronte desta tela/ Fica tudo estatelado!”. Ora, para compreender essa primeira referência histórica ao ano de 1891, é preciso ter como ponto de partida o fato de que Victor Meirelles, famoso pela obra A Primeira Missa no Brasil (1861), pintou entre 1885 e 1899 um quadro intitulado Panorama do Rio de Janeiro, que foi exposto inicialmente em Bruxelas e em Paris. Somente por volta de 1891 a tela, que apresentava um panorama de 360 graus da cidade do Rio de Janeiro, chegou ao Brasil e fez grande sucesso. A pintura, que foi utilizada pelo pintor anos mais tarde para conseguir recursos para viver ao ser demitido da Academia Imperial, perdeu-se logo após a morte de seu autor. Este fato inicial é usado como artifício para inserir o núcleo caipira na peça, pois o grupo entra na rotunda não para admirar a obra – embora seja “fisgado” pela beleza monumental da tela –, mas para tentar conseguir um lugar para morar. E aí entra outra questão referencial da cidade do Rio de Janeiro daquela época: a dificuldade em alugar casas. Com o processo de modernização da capital, que se transformara recentemente em Distrito Federal, a cidade sofre sérios problemas e conflitos de ordem sócio-econômica, causando uma grave crise habitacional. Baseando-se no fato para fazer uma crítica social, Artur Azevedo põe um proprietário aproveitando-se da carência de residências: O proprietário. – A minha casa é na Praia Formosa. Mota e Vieira. – Que horror! O proprietário. – É um sobrado com janelas de peitoril. Os baixos estão ocupados por um açougue... A senhora. – Oh! deve haver muitos mosquitos! O proprietário. – Mosquitos há em toda a parte. Sala, três quartos, sala de jantar, dispensa, cozinha, latrina na cozinha, água, gás, tanque para lavar e galinheiro. A senhora. – Tem banheiro? O proprietário. – Terá, se o inquilino o fizer. A casa foi pintada e forrada há dez anos; está muito suja. Aluguel, duzentos mil-réis por mês; pagamento adiantado e carta de fiança, passada por negociante matriculado; trezentos mil-réis de posse e contrato por cinco anos... O imposto predial e de pena-d’água é pago pelo inquilino. (AZEVEDO, 1986: 60)

Quanto à produção teatral do ano de 1891, Artur Azevedo faz uma homenagem a João Caetano e ao Vasques (que representava o Tribofe na própria peça). Como em maio daquele ano havia sido inaugurada uma estátua do ator morto em 1863, por empenho de Vasques, o dramaturgo usa isso para comentar os fatos teatrais e, por meio de um recurso da mágica, transforma a estátua que está no palco em personagem. Em resposta ao comentário de Frivolina sobre a estátua, Tribofe comenta: “Do Vasques? Conheço. Dizem que me pareço muito com ele”. Em seguida, Frivolina e Tribofe descrevem os principais acontecimentos teatrais do Rio de Janeiro para João Caetano, ávido por novidades da cena carioca. Mas o compère o adverte: ele terá decepções. A certa altura, João Caetano pergunta se nenhuma peça nacional foi encenada, dando o recado do autor, de que as montagens estrangeiras são preferidas às nacionais. Frivolina lamenta o insucesso das únicas duas tentativas, uma inclusive do próprio Azevedo: a revista de ano Viagem ao Parnaso. Ao passar em revista, então, as três óperas brasileiras representadas no ano, as próprias personificações dão os motivos do malogro de cada uma. Foram mal cantadas, mal montadas, com libretos ruins. Todas essas referências ao teatro nacional oferecem a justa medida da situação dos empreendimentos no campo cênico, com destaque para como a arte nacional era desvalorizada e posta a escanteio. E assim a peça aborda várias questões que atingiram a vida cotidiana do povo carioca em 1891, sendo o mais marcante a febre amarela, que avassalou o Rio de Janeiro naquele ano. Os espectadores são acompanhados na revista do ano por duas personificações: Frivolina (“a musa das revistas de ano”) e Tribofe (o compère e responsável pelo título da peça), os quais aqui também têm a responsabilidade de tecer os acontecimentos que se passam. São, além disso, duas referências

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nacionais. Frivolina é uma personagem meta-teatral, uma vez que já havia sido utilizada pelo autor em outra peça e ele mesmo faz referência ao recurso: Frivolina. - Ora essa, meu caro senhor! Um dos autores do Mercúrio é o autor d’O Tribofe; está, por conseguinte, no seu direito, servindo-se de um personagem que inventou. O espectador. - É uma imperdoável falta de novidade. Quem não tem imaginação não se mete a escrever revistas. Frivolina. - O senhor é um espectador impertinente! O espectador. - Exerço o meu direito de crítica. Vejo que a peça não tem originalidade. Hão de ver! não tarda por aí um ator disfarçado em espectador, a falar da platéia, como em todas as revistas! (AZEVEDO, 1986: 51)

Parece-me pouco útil dizer que o nome vem de “frívolo”. Já em se tratando de Tribofe, temos aqui a personificação da malandragem e seu sentido não é tão evidente. O dicionário Houaiss dá o seguinte significado para a palavra: “acordo desonesto entre jóqueis, nas corridas de cavalo” e, por extensão de sentido: “procedimento que tem por fim lograr outrem; patifaria”. No entanto, na própria peça Artur Azevedo (1986: 54) dá o sentido que ele quer atribuir a “tribofe”: Sabichão que se estafe e se esbofe, Desejoso de tudo saber, O novíssimo termo – tribofe – Em nenhum dicionário há de ver.

E o rondó dedicado à explicação continua, dando detalhes do que se pode classificar como um tribofe. Por fim: No comércio, nas letras, nas artes, Há tribofe, tribofe haverá, Que o tribofe por todas as partes E por todas as classes irá! (Idem: 55)

Com seu sentido esclarecido, Tribofe e Frivolina percorrem a peça explorando os problemas sociais enfocados, lucrando com eles: o problema habitacional, o encilhamento que ocorrera no ano anterior; o problema dos juros devido à alta da inflação e, por consequência, a alta do câmbio externo e a desvalorização monetária nacional. Para todos esses problemas sociais, Artur Azevedo estava atento, procurando alterná-los com a história da família, núcleo central da história. Mas é na formação das personagens que compõem a família – e nas peripécias vividas por eles – que está a maior marca de nacionalidade da peça e também o grande trunfo de Artur Azevedo. A simplicidade das atitudes, o vocabulário simples e carregado de um sotaque interiorano (da maneira como se convencionou a retratar uma pessoa caipira) e as peripécias provocadas pelos anseios do grupo são os responsáveis pela graça do texto. O contraponto da singeleza dessas personagens em relação à esperteza dos urbanos é a linha narrativa desta peça, que é mantida também em A Capital Federal. Assim, Gouveia e Ernestina são símbolos maiores das mazelas da vida urbana, em confronto direto com o núcleo dos roceiros. A vida urbana é permeada de estrangeirismos, malandragens e interesses. A crítica a esse modo de vida vem na sequência do olhar de Azevedo para o teatro nacional, apontando as fraquezas dos que se deixam ludibriar pela aparência e pelo luxo, enquanto a pureza (da arte? da vida?) estaria no que o Brasil tem de mais genuíno. As observações acima servem tanto para a revista de ano quanto para a burleta, uma vez que o ponto central da história se manteve. Artur Azevedo, passados cinco anos da redação de O Tribofe, retomou o enredo para A Capital Federal e, nos recortes necessários para a outra peça, melhorou a conexão entre as cenas e preencheu lacunas antes existentes. Escreveu, assim, uma das melhores comédias do século XIX no Brasil, mantendo as características das personagens roceiras, alterou a cocote de francesa para espanhola (para dar o papel a Pepa Ruiz, atriz espanhola que vivia no Rio de Janeiro). As falas roceiras se mantiveram (elas que já tinham sido sugestão de Brandão, o popularíssimo), em torno do que gira grande parte do sentido cômico. Nas palavras do próprio dramaturgo:

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Tema geral: Línguas e Literaturas: Diversidade e Adversidades na América Latina Escrevi então essa comédia, que é um trabalho, devo dizê-lo, quase inteiramente novo, pois o que aproveitei do Tribofe não ocupa a décima parte do manuscrito. Ampliei cenas, inventei situações e introduzi novos personagens importantes, entre os quais o de Lola, destinado à atriz Pepa, e o de Figueiredo, que escrevi para o ator Colás. Como uma simples comédia saída do gênero dos espetáculos atuais do Recreio Dramático, e isso não convinha nem ao empresário, nem ao autor, nem aos artistas, nem ao público, resolvi escrever uma peça espetaculosa, que deparasse aos nossos cenógrafos, como deparou, mais uma ocasião de fazer boa figura, e recorri também ao indispensável condimento da música ligeira, sem, contudo, descer até o gênero conhecido pela característica denominação de maxixe. (AZEVEDO apud PRADO, 1986: 271)

Mudam algumas referências históricas, mas a essência da comédia se mantém e até mesmo alguns retratos da sociedade – prática já recorrente no teatro desde Martins Pena – para caracterizar a sua “comédia-opereta de costumes brasileiros”. Alteraram-se algumas mazelas sociais e surgiram novos personagens para melhor interligar as histórias, em especial Figueiredo. Esta personagem vem preencher a lacuna a respeito da mulata Benvinda, a criada da família. Representante dos negros pósabolição, Benvinda é a figura típica do criado no seio da família patriarcal: desvirginada pelo patrão (em O Tribofe) ou pelo feitor da fazenda (em A Capital Federal), na cidade ela se torna alvo fácil para o “lançador de mulatas”. Enquanto na primeira peça Benvinda recebe uma carta e sai de casa sem avisar, para no fim retornar aos seus, na segunda Figueiredo surge em cena, provoca a mulata dando-lhe um beliscão no braço, deixa-lhe um bilhete e aparece em algumas cenas tentando ensinar-lhe o ofício das cortesãs de luxo. Cenas, aliás, que rendem à peça momentos de perfeita comicidade, brincando com a ginga da mulata brasileira em oposição às atitudes elegantes das cocotes européias: Figueiredo (Repreensivo): Já vejo que há de ser muito difícil fazer alguma coisa de ti! Benvinda: Eu não tenho culpa que esses diabo... Figueiredo (Atalhando): Tens culpa, sim! Em primeiro lugar, essa toalete é escandalosa! Esse chapéu é descomunal! Benvinda: Foi o sinhô que escolheu ele! Figueiredo: Escolhi mal! Depois, tu abusas do face-en-main. Benvinda: Do... do quê? Figueiredo: Disto, da luneta! Em francês chama-se face-en-main. Não é preciso estar a todo o instante... (Faz o gesto de quem leva aos olhos o face-en-main.) Basta que te sirvas disso lá uma vez por outra, e assim, olha, assim, com certo ar de sobranceria. (Indica.) E não sorrias a todo instante, como uma bailarina... A mulher que sorri sem cessar é como o pescador quando atira a rede: os homens vêm aos cardumes, como ainda agora! E esse andar? Por que gingas tanto? Por que te remexes assim? (AZEVEDO, 2002: 351) (...)

Benvinda procura a liberdade não atingida com a abolição, vê em Figueiredo a promessa de uma vida independente da família que a criou e a mantém como mucama. A troca é, no entanto, enganosa: de servente dos roceiros, torna-se servente dos urbanos. Assim como outras personagens da peça, ela também pegou o “micróbio da pândega”, responsável pelos deslizes morais protagonizados por Eusébio e Gouveia. No final, no entanto, os três que se perderam nas teias perigosas da capital federal retornam ao seio familiar: Gouveia perdeu o dinheiro fácil antes ganhado no jogo e foi abandonado pela cortesã Lola; volta, pede perdão à noiva Quinota e vai junto com a família para o interior; Eusébio, ludibriado por Lola e seu cocheiro Lourenço, arrepende-se e volta ao lar, com o consentimento da resignada esposa Fortunata; Benvinda percebeu que a vida de meretrício não lhe seria a promessa de liberdade, volta então para a fazenda para casar-se com o feitor que a desvirginou. Todos se curam de seus males, arrependem-se, e cada um é posto em seu devido lugar, com a solução de tudo na supremacia moral. Retrato social por vezes superficial, a peça não deseja ir além disso, mas procura valorizar aspectos nacionais e coloca-os em contraponto às representações estrangeiras tão em voga na belle époque do Rio de Janeiro. Ou seja, é através dos elementos puramente brasileiros, confrontados com os desvios provocados pelo excesso de estrangeirismos, que o dramaturgo tenta construir o seu melhor teatro; que ele tenta pôr em prática a crença de que é naquilo que o Brasil tem de mais genuíno que estão os melhores instrumentos para a elaboração do teatro nacional. Não estará errado, como a história teatral mostrará a partir da década de 1940.

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4. Uma personagem paradoxal Artur Azevedo não foi uma personalidade preocupada com a modernização do teatro, nem de seus textos, nem da cena. Ao contrário, arraigado às tradições, sua posição frente ao teatro moderno era de crítica. Por outro lado, as iniciativas tomadas por ele para a produção de uma dramaturgia essencialmente nacional provocaram involuntariamente um confronto paradoxal com suas ideias. Além dos aspectos da brasilidade – rural e urbana – alia-se à obra do autor o cuidadoso trabalho com a linguagem, fato que também evoca um quase-moderno. Ao analisar o entreato Amor por Anexins, Orna Messer Levin (2008: 50) observa que: Os diálogos encenados em suas peças curtas limitavam-se a apontar alguns usos de linguagem e formações discursivas que viriam a ser pouco depois a chave do teatro moderno em um autor como Brecht, que soube se aproveitar da paródia para buscar o efeito de estranhamento. Artur Azevedo, por sua vez, preso ao modelo e às convenções do teatro burguês, embora tomasse o teatro como agente desencadeador da consciência social e fosse sensível aos efeitos das palavras, manteve-se dentro dos limites dados à personagem Ramiro, incapaz de converter suas falas em instrumento de ação.

A energia e a vitalidade da quais fala Levin serão marcas também das revistas e das burletas, ultrapassando o limite das peças em um ato. O cuidado em apresentar, pelas falas da família protagonista das suas peças aqui estudadas, o linguajar popular do Brasil interiorano, Artur Azevedo trouxe à cena não apenas a comicidade desejada, mas também um olhar mais atento ao modo brasileiro. Mesmo que, por vezes, as falas sejam carregadas demais, é representativo o fato de tentar apontar os costumes nacionais e a diversidade popular brasileira. A vida da roça em contraposição à vida urbana, motivo tão caro a tantos autores, não foi o único grande aspecto tratado por ele; há também de se levar em consideração uma dedicação a explorar vários detalhes do cotidiano, em concomitância àquilo que ele defendia em suas crônicas: o bom teatro fundamentado nas raízes brasileiras (mesmo que tais raízes sejam eventualmente repletas de mazelas). Outro ponto intrigante na personalidade Artur Azevedo foi sua visionariedade. Dizia ele: Não me parece que se deva facilmente descrer do futuro do teatro num país onde se encontram simples amadores que representam na mesma noite a ópera, a comédia e a pantomima. Bem sei que o nosso palco não pode absolutamente contar com as senhoras e os cavalheiros que se exibiram no Cassino, mas o grande caso é que não faltam vocações dessa natureza em todas as classes da nossa sociedade, vocações que, em havendo um teatro sério, podem ser utilizadas com muito proveito para a arte.6

Ele previu que a constituição de uma dramaturgia essencialmente nacional seria realmente alcançada através dos amadores. Muito provavelmente ele escreveu tais linhas em defesa dos atores aqui em cena, poucos profissionais, tão pouco valorizados devido à presença das companhias estrangeiras. Mas não espanta o fato de ter sido exatamente isso o que aconteceu algumas décadas após sua morte: foi com um grupo amador, Os Comediantes, que aconteceria a revolução cênica no Brasil, gerando o que será posteriormente conhecido como o teatro moderno brasileiro. Além disso, ele defendia veementemente a construção de uma casa de espetáculos destinada às companhias nacionais; combateu por anos com as autoridades para que erguessem o Teatro Municipal. Quando finalmente isso aconteceu, viu desde o início que ali se apresentariam apenas companhias estrangeiras; mas ele não sobreviveu para ver, no mesmo Teatro Municipal, a revolução causada pelos Comediantes com Vestido de Noiva, de Nelson Rodrigues. Este, autor que sempre procurou pôr em cena os problemas da sociedade brasileira, ainda que de forma muito diferente da de Artur Azevedo: sempre ligados a uma ambição pessoal e tensões de desejos. Referências AZEVEDO, A. A Capital Federal. In: Teatro de Artur Azevedo, vol. V. Rio de Janeiro, FUNARTE, 2002. ______. O Tribofe. Rio de Janeiro, Nova Fronteira, Fundação Casa de Rui Barbosa, 1986. 6

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O Teatro, 12/11/1896 apud Neves (2009).

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Tema geral: Línguas e Literaturas: Diversidade e Adversidades na América Latina LEVIN, O. M. Teatro de papel – certa dramaturgia de Artur Azevedo. In: Remate de Males. vol. 28 (1). Campinas, Publiel, Unicamp, 2008, p. 43-51. MEDEIROS, E. O teatro brasileiro e a tentativa de modernização. In: Terra Roxa e Outras Terras, Londrina, vol. 14, p. 36-54, 2009. www.uel.br/pos/letras/terraroxa/index.php NEVES, L. de O. Artur Azevedo nos rodapés de A Notícia. In. Azevedo, A. O Theatro: crônicas de Artur Azevedo. (org. Larissa de Oliveira Neves e Orna Messer Levin). Campinas, Editora da Unicamp, 2009. (no prelo) ______. Ritmo e brasilidade em A Capital Federal. In: Remate de Males. vol. 28 (1). Campinas, Publiel, Unicamp, 2008, p. 31-42. PRADO, D. de A. Do Tribofe à Capital Federal. Posfácio. In: AZEVEDO, A. O Tribofe. Rio de Janeiro, Nova Fronteira, Fundação Casa de Rui Barbosa, 1986, p. 253-281. ______. História concisa do teatro brasileiro (1570-1908). São Paulo, EDUSP, 1999. SZONDI, P. Teoria do drama moderno [1890-1950]. São Paulo, Cosac & Naify, 2001.

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GUIANA, GUIANAS: CENTRO CULTURAL DA AMÉRICA LATINA Elisabeth BALDWIN (Universidade Federal da Bahia e Université des Antilles et de la Guyane)

RESUMO: Pretende-se noticiar os primeiros resultados da pesquisa sobre a diáspora brasileira para Caiena, cidade-eixo do Centro Cultural Guiana, guianas e seus emergentes traços identitários. Há mais de quarenta anos a imigração brasileira constrói nessa direção uma brasilidade ou latinidade estendida. Busca-se estudar alguns, ainda frágeis traços da emergência dessa construção identitária em diáspora, alinhavando os estilhaços das histórias de vida individuais e coletivas dessa comunidade cultural. Integra o pojeto “O imaginário das línguas e das culturas e as culturas e línguas do imaginário: desenvolvendo e interpretado os novos arquivos da América Latina” que enfoca três centros culturais: Guiana, guiana; Bahia, bahias e Cone-Sul e faz parte do NEALA – Núcleo de Estudos e Arquivos Latino-americanos sediado na Universidade Federal da Bahia. PALAVRAS-CHAVE: Centros culturais; América Latina; Guiana Francesa; Imigração brasileira.

RÉSUMÉ: Il est question d’annoncer les premiers résultats de la recherche sur la diaspora brésilienne et ses traits identitaires émergeants à Cayenne, ville-axe du Centre Culturel Guyane, Guyanes. Depuis plus de quarante ans, l’émigration brésilienne construit vers cette direction une « brésilienité » ou latinité, très large. Il est aussi question d’étudier quelques, mais encore fragiles, traits de cette construction identitaire émergeante, en diaspora. Et pour cela, il faut ramasser et réunir les histoires individuelles et collectives partie en éclats de cette communauté culturelle. Cette recherche s’intègre au projet « L’imaginaire des langues et des cultures et les cultures et les langues de l’imaginaire: développer et interpréter les nouvelles archives de l’Amérique Latine ». Cela met en évidence trois centres culturels: Guyane, Guyanes, Bahia, Bahias et le Cône sud que font partie du NEALA – Núcleo de Estudos e Arquivos Latino-americanos dont le siège se trouve à l’Université Fédérale de Bahia au Brésil. MOTS-CLÉS: Centres Culturels; Amerique Latine; Guyane française; Imigration brésilienne.


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1. Palavras introdutórias Com o fortalecimento da abordagem dos arquivos e o novo valor conferido à pesquisa da memória dos povos, passou-se a desconfiar dos estudos dos documentos como monumentos, que perpetuavam a herança de uma memória monumental e disponibilizavam-na nos museus, acervos e bibliotecas, referendando o seu caráter de monumentalidade. A história nova substituiu a história fundada essencialmente no texto, no documento escrito, por uma história baseada em documentos variados - escritos, orais, fotografias, filmes, depoimentos. Por outro lado, a história nova concentra-se, também, alongando o seu sentido, não só em grandes homens e acontecimentos notáveis, grandes culturas, cartografias e geografias estabelecidas, línguas ou idiomas nacionais e padronizados, mas também em todos os homens, seus cotidianos espaços e eventos, seus frágeis e variáveis idiomas. Apontando para a construção de uma nova cartografia lingüístico-cultural da América do Sul, as recentes pesquisas dos Estudos Culturais têm enfatizado a realização de um novo desenho dessa sul-americanidade, mais abrangente e mais complexo – no qual se inscreveriam, além de algumas populações hispano-americanas, brasileiras, guianenses, o Caribe francófono, o Caribe espanhol e outras comunidades latino-americanas diaspóricas. Eduardo Coutinho (COUTINHO, 2004) propõe um conceito fundamental para a elaboração de qualquer história literária (ou cultural) da América Latina: o de Centros Culturais que seriam tanto o ponto de difusão como o de recepção de ideias, imagens, conceitos. Os Centros Culturais constituiriam os novos arquivos dessa americanidade que se desenha. Dessa forma, elejo, como um Centro Cultural da América Latina, esse espaço ampliado do Norte da América do Sul (Guiana, guianas), que ultrapassa os limites meramente geográficos, criando um espaço imaginário, além das noções tradicionais de nação e de idioma nacional, que mistura colonização francesa, inglesa, holandesa, espanhola, portuguesa, indígena, africana, brasileiras e outras e que se revela povoado, paradoxalmente, de imagens diversas, heterogêneas e transculturais. Coutinho (COUTINHO, 2004), em outro momento, sugere também, que este Centro Cultural poderia ser constituído em torno de cidades-eixo, cidades que tenham ou tiveram a função de pólos estratégicos de influência simbólico-cultural, a exemplo ou de Manaus, ou de Belém, ou de Macapá, ou de Caiena, ou de Georgetow ou de Paramaribo. Assim, além de se constituir como pólo de articulação entre a geografia e a história, poderia promover a relação entre outros campos do saber, que transitassem entre o imaginário oriundo do contato entre suas línguas e culturas ou entre as culturas e as línguas inscritas nesse imaginário. Desenvolver possibilidades para o estudo desses novos arquivos – literatura oral, escrita e outros documentos – apontaria para indicadores de uma história não progressiva, deslinearizada, descontínua, não-monumental, uma nova história cultural, construída pela emergência de novos perfis identitários e todos seus entornos bem como por uma memória ainda não nomeada nem descrita. 2. Breves apontamentos sobre uma história cultural Uma história cultural, discussão que voltou à baila com os questionamentos ligados ao conceito de nova história de Le Goff (LE GOFF), vai buscar reforço em Roger Chartier, Peter Burke, Carlo Ginsburg, Natalie Zemom Davis (PONS & SERNA, 2005), agregando o pensamento do cotidiano de Michel de Certeau (CERTEAU, 1994) desenhando uma rede, um colégio invisível de diálogos entre produções de intelectuais de centros de pesquisa e universidades da França, Inglaterra e Estados Unidos e outras regiões que vêm se constituindo ao longo das últimas três décadas. Fundamentando-se em conceitos como grupos culturais subalternos ou excluídos, novos arquivos/ acervos, práticas culturais, eventos do cotidiano, patrimônio material e imaterial, experimentação, microanálises e micronoarrativas, pessoas comuns, imaginários, representações, travessias e trânsitos, a nova história cultural vai construindo o seu conceptual teórico. Eleger como trajeto de pesquisa a história cultural significa eleger um grupo cultural, motivado por uma prática cultural que os mantêm reunidos por um sentimento de pertencimento e que, conseqüentemente, desenha um novo espaço simbólico e representativo dessa cultura.

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Lyn Hunt (PONS & SERNA, 2005) denomina a nova história cultural como um estudo centrado nas práticas culturais, que investigadores como Jacques Revel e sobretudo Roger Chartier mostraram claramente tais orientações, evidenciando,também, a influência de Michel Foucault. Tanto a Antropologia como a Teoria Literária, disciplinas que reivindicaram para si os estudos da nova história cultural, conforme Lyn Hunt (PONS & SERNA, 2005), manteriam um ponto em comum: tomar a linguamgem como metáfora e, em última instância, reconhecer a representação como conceito capital. Assim, tanto a literatura ou a arte, como a história (cultural) teriam uma posição similar em relação aos seus objetos de estudo e ao mundo em geral. Como exemplo, historiadores como Natalie Zemom Davis, entre outros, haviam utilizado, com bons resultados, a análise do discurso como comprova seu texto Fictions in the Archives, dedicado a estudar as cartas de perdão na França do século XVI (PONS & SERNA, 2005, p.175). Em suma, voltando à visão de Lyn Hunt, a história cultural ofereceria um exame circunstanciado, concreto, incluso, microanalítico ( de textos, imagens atos),mas exigiria uma mente aberta e disposta para aceitar as conseqüências de grande alcance que essas averiguações possam revelar. 3. A propósito do povoamento da Guiana Francesa: uma história de imigração Durante os dois primeiros séculos de colonização da Guiana (XVII e XVIII séculos), os franceses não dispunham dos recursos humanos necessários para a ocupação da totalidade desse espaço. Além disso, a política da França em relação aos amerídios, a simpatia dos franceses pelos autóctones e a vontade do rei de França de não fazê-los escravos, instituiu um tratamento particular em relação aos amerídios da Guiana – a coexistência pacífica – durante o curso desses dois primeiros séculos da colonização. Inicialmente, foram feitos acordos com os Galibis (os Kaliña, habitantes da região costeira) para que abdicassem da região da Ilha de Caiena em favor dos franceses em troca de ajuda e assistência em relação às suas atividades econômicas de extração, - caça e pesca – bem como da autorização de livre comércio e da promessa de jamais endereçarem operações militares contra eles. A política francesa em relação aos ameríndios, além de diversas instruções Reais, foi desenvolvida com mais intensidade pela prática social dos missionários capuchinhos e, depois, jesuítas. Conforme Serge Mam Lam Fouck (MAM LAM FOUCK, 2002), desde a chegada dos franceses, no início do século XVII até o final da Segunda Guerra Mundial, dos 30.000 ameríndios que habitavam o solo guianense, apenas cerca de mil sobreviveram ao choque de civilizaões. O povoamento da Guiana pelo comércio dos negros estendeu-se por mais ou menos dois séculos (1652-1831). Seu ritmo foi particulamente lento. Dependia da evolução do número de compradores e das suas capacidades financeiras. O mercado de escravos na Guiana jamais conheceu a mesma atividade que o das Antilhas, Brasil ou Suriname. A Guiana recebeu apenas uma ínfima parte do fluxo de escravos africanos no Atlântico – século XVII ao XIX. Mas a desproporção que existia entre a massa de escravos e o reduzido número de proprietários de escravo (les maîtres), de um lado e, a natureza das relações de dominação existente entre proprietários e escravos, de outro lado, poderiam alinhavar a escravatura guianense com o conjunto do continente americano. O sistema escravagista na Guiana mantinha no seu estatuto, um espaço para os escravos libertos ou ‘gente de cor livre’. Os escravos crioulos tinham mais chance que os escravos africanos de serem libertados; os mestiços, porque eram filhos de brancos, mais possibilidades que os negros. O acesso à liberdade foi limitada durante os séculos XVII e XVIII e mais aberto na primeira metade do século XIX pelo efeito da grande contestação ao sistema escravagista. No restabelecimento da escravatura, 1802, Napoleão acentua a segregação existente, interditando os casamentos entre brancos e pessoas de cor, depois que o Code Noir já os havia autorizado, porque os mulatos, filhos de brancos e negros, insurgiam-se e lutavam por uma igualdade com os brancos, embora dentro de uma pespectiva totalmente assimilacionista.

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Como resistência ao sistema escravagista, ocorriam práticas de feitiçaria, envenenamentos, formação de quilombos de resistência e revoltas armadas contra as habitações. No entanto, as revoltas dos escravos na Guiana não tinham a dimensão das revoltas no Suriname, por exemplo, como os grupos armados dos Saramacas, Djuka ou Bonis. Do século XVIII ao XIX, o estado francês lança vários projetos de colonização ‘branca’. Colonos, militares, religiosos e administradores passam a gerir a colônia na qual a maioridade da população é constituída de integrantes do mundo tropical. A classe social dos brancos soma, ao fim do sistema escravagista, um pouco mais de 2.000 pessoas em 1842. Após o anúncio do decreto de 27 de abril de 1848 que abolia definitivamente a escravatura, em substituição à antiga sociedade dominada pelos brancos surge uma outra classe dirigente, composta essencialmente por crioulos, produto de uma lenta modificação da composição étnica e social da classe dirigente. Uma burguesia crioula substitui progressivamente uma classe dirigente branca. Conforme o historiador Serge Mam Lam Fouck (MAM LAM FOUCK, 2002), ao contrário das Antilhas francesas (Guadalupe e Martinica), da Reunião, dos países Caraíbas e das Américas que conservaram até nossos dias uma classe social dirigente de brancos crioulos, na Guiana, ao contrário, a classe dirigente continua sendo de negros crioulos. Conforme o mesmo pesquisador, o termo crioulo hoje foi alargado, pois, na Guiana, atualmente, designa tanto os mulatos do Antigo Regime, os negros libertos em 1848 como os imigrantes de todas as raças e origens. Os crioulos da Guiana, diz o pesquisador, são essencialmente mestiços de origens variadas. É importante que se registre que, embora o conceito seja inovador e produtivo, as representações que esses grupos têm de si e dos outros ainda se mantêm dentro de um enquadramento segregacionista e reacionário. Os dois novos grandes projetos de povoamento branco, a expedição de Kourou e as prisões (1850-1930) trouxeram características específicas para a situação demográfica da Guiana. Um projeto trazia embutido o interesse da monarquia francesa de redistribuir suas forças na América, depois das perdas na guerra dos Sete anos; o outro, reforçava o desejo do segundo império de achar uma solução para os milhares de condenados das prisões metropolitanas. Verdadeiramente foram três séculos de tentativas de povoamento branco na Guiana (16521956). A Guiana chegou a pagar cento e sessenta e cinco francos, na época, por imigrante. Assim aportaram na Guiana alguns portugueses da Ilha da Madeira, indianos, chineses somando de 1849 a 1877, 11 244 trabalhadores. Leis protegiam a imigração, favoreciam estadas mais longas (de 5 a 7 anos) e encorajavam a instalação definitiva. A partir da descoberta e exploração das minas de ouro na Guiana, uma imigração espontânea começa a se desenvolver. No início de 1880, antilhanos, brasileiros, holandeses (surinamenses) aportam na Guiana. Também os crioulos de Santa Lúcia, crioulos de nacionalidade inglesa, grupo antilhano mais numeroso descobre a Guiana no tempo do sonho e das misérias do garimpo. Outros pequenos grupos como libaneses, indonésios, outros chineses e alguns indianos vêm algum tempo depois. Em 1961, com 33.295 habitantes, a Guiana era o território de menor densidade populacional de toda a América, mas igualmente aquele que recebeu o maior fluxo de imgrantes. Assim, os imigrantes representavam, nesse momento mais da metade da população colonial. Pode-se dizer que a Guiana pôde se construir devido à imigração e que não há como negar a importância desse processo no desenvolvimento da Região. A lei de 19 de março de 1946, votada pelo parlamento francês transforma as quatro velhas colônias – Martinica, Guadalupe, Reunião e Guiana – em departamentos ultramarinos. Essa mudança política que, conforme o historiador Serge Mam Lam Fouck, “traduzia uma nova política colonial francesa, que todos os habitantes da região deveriam gozar dos mesmos direitos e deveres dos cidadãos da França metropolitana” (MAM LAM FOUCK, 2002). O nível de vida dos franceses da Europa – os metropolitanos – deveria ser, a partir de então, a referência da política social professada na Guiana como também nos outros departamentos ultramarinos. Mas o fosso entre as condições de vida dos guianeses e a dos metropolitanos era muito grande. Assim, na opinião do mesmo pesquisador (MAM LAM FOUCK, 2002) o projeto departamental surgia como uma caricatura. Aos poucos as iniciativas

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do governo francês endereçadas à alimentação, à saúde pública, à educação, ao incentivo à natalidade foram sedimentando melhores condições de vida. De acordo com a leitura de Serge Mam Lam Fouck (MAM LAM FOUCK, 2002), o povoamento que ocorre durante a segunda metade do século XX responde, efetivamente, às necessidades de implementação do funcionamento e do desenvolvimento da base espacial de Kourou. Desde trabalhadores altamente qualificados até mão-de-obra de sustentação do empreendimento (agricultura, pesca, indútrias diversas, serviços) foram necessários em Kourou. Mesmo a renovação da exploração do ouro exigiu novo contigente de trabalhadores. Assim, uma imigração de origem européia se coloca lado a lado com outra, vinda dos países menos favorecidos. A vila espacial tem dado à Guiana uma outra imagem e ela passa a ser uma região atrativa para o movimentos migratórios recentes provenientes da América do Sul, das Caraíbas, da França e de certos países da Ásia. Surinamenses, brasileiros, colombianos, haitianos, chineses (sul da China), Hmongs (Laos), metropolitanos, antilhanos constituem os novos imigrantes. Os brasileiros vêm em geral do Amapá e do Pará via avião ou atravassando a fronteira de Saint-Georges-de-l’Oyapock; os haitianos, a comunidade mais numerosa, vêm como turistas e atingem mais ou menos 13.457 habitantes. Os metropolitanos constituem o segundo grande grupo dessa nova população – 13.403. Os antilhanos, a mais antiga da Guiana, atinge o número de 5.107 pessoas. Conforme o referido pesquisador tais dados são de 1985 para os haitianos, 1990 para os metropolitanos e 1982 para os antilhanos. Assim, os últimos trinta anos contribuíram para que a população quadruplicasse (1961 – 33.295 habitantes; 1995 – 157.213). No período de 1975-1985, quando o fluxo migratório foi mais forte, surgem reações de rejeição a essa imigração massiva, que é vista agora como prejudicial à existência do povo guianense. As primeiras grandes operações de expulsão dos imigrantes em situação irregular, que engrossa as fileiras guianenses, começaram em 1982. Houve operações policiais com a expulsão de 10.000 pessoas em 1983-1994 e de 15.000 em 1995. A imigração passa, então, a ser mais controlada. Pode-se dizer, então, que a história da Guiana foi construída por movimentos de imigração constantes, os provocados pela sua necessidade colonialista de povoá-la ou os espontâneos motivados por empreendimentos como o garimpo, a implantação do pólo espacial de Kourou ou busca de melhores condições de vida simplesmente. 4. Presença brasileira na Guiana Francesa: flashes de uma diáspora A partir da década de 60, a presença brasileira na Guiana francesa começa a se fazer notar. Conforme Serge Mam Lam Fouck (MAM LAM FOUCK, 1992), em 1967 eram 987 brasileiros. Tal número, conforme estimativas, aumentou para 3000 em 1975 e para 5.300 em 1985. Hoje, pode-se estimar que um quinto da população guianense é brasileira ou de origem brasileira: brasileiros, filhos de brasileiros ou netos de brasileiros. Assim, dentre os 200 mil habitantes da Guiana francesa, 20 mil são brasileiros legalizados. O Itamaraty acredita que outros 50.000 vivem ilegalmente no país, logo, a hipótese de que 1/5 da população guianense é brasileira ou de origem brasileira vai criando relevo. Os movimentos migratórios brasileiros que, no início do século XX, tinham como direção as capitais do centro do Brasil, como Rio Janeiro, São Paulo e Minas Gerais, após o esgotamento de recursos de emprego e habitação desses centros urbanos do país, redirecionaram-se para múltiplos destinos fora do país como Américas, Europa e Asia, Austrália e Nova Zelândia. O sonho de buscar melhores condições de vida e emprego alterou o fluxo migratório brasileiro, distribuindo pelo mundo os núcleos migratórios que se instalavam anteriormente no centro do país. Ao ultrapassar as fronteiras geográficas e idiomáticas, esses núcleos de origem brasileira, esses núcleos foram alinhavando um continuum identitário variável, diversificado e criando microclimas culturais e lingüísticos inesperados e originais – resultados desse processo de “crioulização” conforme Glissant.

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Os brasileiros, então, já faziam parte da primeira leva de imigrantes para o Centro espacial de Kourou, dentre outros europeus, guianenses, europeus, antilhanos, surinamenses e colombianos e hoje, russos e outras etniasconforme o historiador Serge Mam Lam Fouck (MAM LAM FOUCK, 2002). Tais brasileiros vinham geralmente do Amapá e do Pará e eram contratados pelas empresas do referido Centro espacial, vinham de avião e permaneciam com salários estáveis e razoáveis condições de vida recebendo primeiramente em francos franceses e depois em euros. A proximidade da fronteira, a pressão demográfica do nordeste brasileiro, a falta de emprego e de melhores condições de vida, nos anos seguintes levaram os brasileiros a investir na imigraçã, mesmo clandestina. Atravessando a fronteira, alguns ficavam em Saint-Georges-del’Oyapok, onde praticamente não há fiscalização. Outros viviam em pequenos grupos na floresta amazônica guianense e, após a construção da estrada até Caiena, uma grande parte dirigiu-se para a capital. Os homens geralmente trabalham como pescadores, marceneiros e pedreiros e as mulheres como cozinheiras, faxineiras e prostitutas. A regularização de sua situação ocorre progressivamente por contratos de trabalho, ou por casamentos com pessoas de nacionalidade francesa, e, depois de mais ou menos dez anos de renovação de sua Carte de Séjour podem torna-se cidadãos franceses e recebem as várias ajudas financeiras e medicais que o governo francês oferece aos franceses em geral. Atualmente, quando o cerco aos imigrantes tornou-se mais agressivo, os imigrantes ilegais são freqüentemente deportados, no entanto, a maioria volta novamente, pois principalmente a indústria da pesca e da construção civil contratam esses brasileiros por trabalhos tempórarios e eles, ganhando em euro, vão fazendo o seu pé de meia. Podemos dizer, então, que os brasileiros na Guiana podem ser reunidos em grupos com determinadas especificidades: a) Os brasileiros que vieram através de contrato legal e já construíram seus vínculos familiares, religiosos e comunitários, falam português e francês, escrevem mal o pôrtuguês e não escrevem francês, dos quais muitos voltam depois da aposentadoria para viver em suas cidades de origem; b) Os brasileiros que embora, legalizados, ou pelo contrato de trabalho temporário ou pelo casamento, que sempre pensam em voltar ao Brasil e vão construindo seus patrimônios nas suas regiões de origem (a travessia do Oyapok é uma imagem desse fato); c) Há os brasileiros ilegais que vivem de biscates e habitam verdadeiras favelas ou até regiões da floresta amazônica do lado francês. O problema que se coloca é que não há ainda dados visíveis dessa imigração que ocorre há quanrenta anos e que é muito sofrida e cheia de conflitos identitários. Muitos brasileiros ilegais atravessam a fronteira de barco ou pela mata amazônica conduzidos por atravessadores que já construíram trilhas por dentro da floresta. Essa travessia, chamada “varação”, conforme entrevistada brasileira de dezessete anos, é paga em euros, leva seis a sete horas a pé e está sujeita aos mais diversos perigos. Existem apenas estimativas e, portanto, desconhecimento quase total sobre os modos de viver, de crer, de narrar desses núcleos de brasilidade. Os jornais locais de um lado e do outro da fronteira, ocupam-se de contar essa história através dos conflitos entre policiais e imigrantes. Por outro lado, há um imaginário depreciativo e preconceituoso dessa população brasileira em diáspora. No imaginário dos próprios brasileiros ocorrem representações identitárias bastante ambíguas. Alguns deles, talvez para fugir ao preconceito, estão já assimilados pela visão francesa, consideramdo-se franceses e rejeitam conviver com seus próprios compatriotas. Outros não, enfatizam a sua nacionalidade brasileira e são solidários. Assim, pretendo com este trabalho de pesquisa, trazer à tona as vozes desses brasileiros, entrevistá-los, recolher memórias de vida, fotos, cartas e observar as representações de pertencimento que eles têm de si mesmos. Talvez até, desconstruir esse olhar preconcebido e preconceituoso sobre os brasileiros que se instalou nesse Centro Cultural.

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5. À maneira de conclusão: algumas hipóteses sobre as representações/imaginário dos brasileiros nesta trajetória diaspórica Conforme depoimentos nas histórias de vida de informantes brasileiros que residem em Caiena há menos de dez anos, na Guiana pode-se viver melhor do que no Brasil se houver emprego. Os guianenses são vistos como desconfiados, fechados a amizades, exploradores do trabalho brasileiro. A maioria deles, em Caiena, habita em bairros Ilet Malouim e Cogneau. Dentro dessas comunidades – de invasão – há casas melhores alugadas a brasileiros que mantêm emprego regular e há também verdadeiros cortiços que reúnem os brasileiros desempregados e ilegais. Normalmente, eles casam com brasileiros, naturalizados franceses, aqueles filhos de brasileiros que nasceram na Guiana ou que para cá vieram muito pequenos. Há casos de brasileiros casados com crioulos surinaneses e crioulos guianenses. Casos de brasileiros casados com franceses metropolitanos há bem menos. A maioria desses brasileiros, conforme depoimentos de entrevistados, veio pela fronteira do Oiapoque em barcos – catraias – por água ilegalmente, através de subterfúgios outros, trazidos por outros brasileiros ou por “varação” nome que dão às travessias por trilhas na floresta guiados por atravessadores profissionais. Esses brasileiros voltam continuamente ao lado brasileiro – Oiapoque, compram seus mantimentos lá, trazem alimentos e roupas para vender à comunidade brasileira na Guiana. Falam razoavelmente o frncês, não sabem escrevê-lo, falam uma variante linguística brasileira popular e escrevem muito pouco na sua língua natal, se escreverem é dentro da mesma variante linguística brasileira popular falada. Professam crenças brasileiras, o catolicismo, a umbanda e algumas outras. Tais crenças passam a ser cultuadas de forma mais individual, com altares ou não em suas casas. Representam-se brasileiros, cultivam hábitos e costumes brasileiros entre família, se puderem possuem televisão com canais brasileiros. Sua diversão maior é reunir-se para comer e beber em grupos, em famílias ou acampar para usufruir das belas paisagens tropicais guianenses. Normalmente, trabalham na pesca artesanal, ganham em média 100 a 800 euros por mês ou trabalham na pesca industrial ou na construção civil recebendo por volta de 1000 euros por mês. Somente os trabalhadores legais, de empresas confiáveis, ganham o salário previsto pela legislação, o SMIC. As mulheres trabalham como domésticas e recebem menos de 500 euros por mês. Outras fazem serviços independentes de faxina, cuidado de crianças e feitura de unhas, vão às casas das clientes e cobram por horas trabalhadas. Já os brasileiros que estão há mais de dez anos ou vinte ou trinta anos já estão mais estabilizados e buscam atingir um status de vida melhor, possuem carro, mesmo alugando casas, vivem melhor porque possuem um salário regular e a cidadania francesa. Seus filhos já estudam nas escolas e universidades francesas, falam e escrevem o francês e o português, entendem os crioulos falados na Guiana. Esses brasileiros sentem-se, para algumas coisas, brasileiros, para outras, franceses. Tentam aliar-se aos guianenses e, às vezes, discriminam os brasileiros que estão ilegalmente aqui, devido a sua má reputação e os seus problemas com a polícia. Há brasileiros que já se aposentaram, voltaram para suas famílias no Brasil, deixaram os filhos e netos na Guiana e vivem com sua aposentadoria no Brasil, preferem agora, o estatuto de serem brasileiros respeitados, embora vivendo com o dinheiro da aposentadoria francesa e dos rendimentos das propriedades que construíram no Brasil. A hipótese que se defende é a de que, os novos desvabradores, são hoje esses brasileiros que, não encontrando alternativas de melhor futuro no Brasil, jogam-se fronteiras afora para cavar com suas próprias mãos, uma outra alternativa de sobrevivência, mais digna e mais justa, mesmo que os primeiros tempos sejam de luta, humilhação, perseguição e muito trabalho, mas pode-se dizer que, ainda,alimentam e lutam por um sonho. Suas práticas culturais constituem travessias entre uma cultura e outra, entre uma língua e outra. Conhecedores de muitas práticas culturais, aperfeiçoaram-se mais em transitar entre elas do que especificamente situar-se em uma ou em outra. E por isso, constroem uma identidade em errância ou em trânsito, porém, mais alargada, mais experiente, transcultural.

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FRANKLIN DE OLIVEIRA: UMA CONTRIBUIÇÃO PARA ANÁLISE CRÍTICA DO SIMBOLISMO EPÍGRÁFICO EM SAGARANA Elizandra Fernandes REIS (Graduanda em Letras – Universidade Federal do Pará) Sílvio Augusto de Oliveira HOLANDA (Orientador – Universidade Federal do Pará)

RESUMO: Franklin de Oliveira (1916-2000), crítico e jornalista maranhense de renome, amigo de Guimarães Rosa, a quem destinou um artigo intitulado Guimarães Rosa, publicado na antologia crítica A Dança das Letras (1991), extraído do ensaio Viola d’Amore (1965), e publicado, também, no livro A Literatura no Brasil (1986), de organização de Afrânio Coutinho, no qual recebeu o nome de Sagarana: as epígrafes. Nesse artigo, o valor simbólico e a condensação ideológica das epígrafes presentes em Sagarana (1946) são enfatizados e analisados. Pois, nesta obra, as epígrafes deixam a esfera de simples objetos inócuos, enfeites ou confissões de influência, para tornarem-se índices que apontam para o caráter reflexivo e metafísico em Sagarana. Dessa forma, este trabalho objetiva apresentar a análise crítica de Franklin de Oliveira, a respeito das epígrafes presentes em Sagarana, que contribui, de forma significativa, à crítica rosiana. PALAVRAS-CHAVE: Sagarana; epígrafes; Franklin de Oliveira; Guimarães Rosa.

ABSTRACT: Franklin de Oliveira (1916 – 2000), a well-known critic and journalist from Maranhão, friend of Guimarães Rosa, who devoted an article entitled Guimarães Rosa, published in the critical anthology of A Dança das Letras (1991), extracted from the test Viola d’Amore (1965), published also in the book called A Literatura no Brasil (1986), organization of Afrânio Coutinho, which received the name of Sagarana: the epigraphs. In this article, the symbolic value and the ideological condensation of the epigraphs in Sagarana (1946) are emphasized and analyzed. Well, in this work, the epigraphs leave the sphere of mere harmless objects, ornaments or confessions of influence, to become indices that points to the reflexive and metaphysic character in Sagarana. Thus, this work aims to present the critical analysis of Franklin de Oliveira about the epigraphs in Sagarana that helps, significantly, the rosiana criticism. KEY WORDS: Sagarana; epigraphs; Franklin de Oliveira; Guimarães Rosa.


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1. Introdução Franklin de Oliveira nasceu na cidade de São Luis no Maranhão, em 1916. Filho de homem humilde, que valorizava a erudição e a intelectualidade, tanto que se tornou integrante de um grupo literário. Franklin de Oliveira conheceu o trabalho muito cedo, aos treze anos trabalhou no jornal a Tribuna. A paixão pela música, herdara do pai, o qual considerara o conhecimento sobre a música algo fundamental para educação de seus filhos. Aprendeu magistralmente teoria musical, violino e bandolim italiano. Aos vinte e dois anos mudou-se para o Rio e, no jornal Dom Casmurro, publicou o seu primeiro artigo intitulado: Riso e ternura da Hungria. Logo após, foi trabalhar no jornal A Notícia. Trabalhou também no Boletim mercantil, porém, em virtude do caráter burocrático das publicações deste jornal, não permaneceu por muito tempo, vindo a trabalhar como editor chefe internacional no Diário da Noite. Homem de caráter forte que pediu demissão do jornal O Diário após de ter lhe sido negada uma licença para ver sua mãe adoentada, e que trabalhou no jornal O Globo após ter feito as mais ferrenhas críticas ao dono deste jornal, porém sua inteligência e sua qualidade profissional se sobrepuseram ao seu temperamento. Trabalhou no jornal O Radical, e na revista O Cruzeiro nesta última, nasceu sua primeira obra literária, Sete Dias (1948), edições de crônicas. Em 1967 publica Morte da memória nacional. Depois destas, publicou muitas outras obras de crítica literária e de outras áreas do conhecimento, entre elas, o conjunto de ensaios, de literatura e música, denominado A Fantasia Exata (1959). Membro da Academia Maranhense de Letras, recebeu os prêmios Golfinho de Ouro de Literatura, em 1978, atribuído pelo Museu da Imagem e do Som do Rio de Janeiro, e Machado de Assis, da Academia Brasileira de Letras, em 1982, pelo conjunto da obra. Franklin de Oliveira morreu no Rio de Janeiro em 2001. Muitos escritores e críticos descrevem a obra e o autor da seguinte forma: “... um dos prosadores mais nobres. Uma prosa macia e fidalga onde o pensador se insinua ao lado do poeta de imensos recursos” (MONTELLO apud OLIVEIRA, 1991, p. 414); ou este outro: “Franklin é um espírito que não se conforma em pensar o que já foi pensado e que, situando-se em bases cientificas, não perde a inspiração artística.” (BROCA apud OLIVEIRA, 1991, p. 414). Publicações: Ad. Imortalitatem (1935), Rio Grande do Sul, um novo Nordeste (1962), Revolução e contra-revolução no Brasil (1963), Viola d’amore (1965), A tragédia da renovação brasileira (1971), Literatura e civilização (1978), Euclides: a espada e a letra (1983), A dança das letras (antologia crítica, 1991) e A Semana da Arte Moderna na contramão da história e outros ensaios (1993). 2. A relação do crítico e com o autor de literatura: uma amizade que enriquece tanto a literatura quanto a sua crítica Guimarães Rosa era um amigo e admirador de Franklin de Oliveira, a esta admiração o próprio Franklin de Oliveira faz menção quando afirma que um dos primeiros a se mostrar contra a saída de circulação das edições de Os Setes Dias, foi o próprio Guimarães Rosa, como se pode ver nessa passagem: “[...] excluí da minha bibliografia Os setes dias. João Guimarães Rosa, ao tomar conhecimento da exclusão, deu-me uma bronca heroica e exigiu que o livro voltasse figurar na minha biblioteca. Voltou.” (OLIVEIRA, 1991, p.13) Nos ensaios críticos de Franklin de Oliveira, analisados até o momento, sempre há uma nota que faz referência à qualidade dos textos rosianos, como esta: Somente hoje iniciamos um processo de transcendentalização de nossa literatura, de incorporação à ficção brasileira dos altos valores espirituais, expressões na novelística de João Guimarães Rosa, sobretudo em Corpo Baile, cujo sentido metafísico foi captado pelo Sr. Paulo Rónai, em ensaio que honra e dignifica a crítica brasileira. E ainda em seu romance Grande Sertão, de cuja difícil e múltipla complexidade temática destaca-se a transladação do leit-motivo fáustico para a grossa hinterlândia geralista. (OLIVEIRA, 1959, p. 137-138)

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Além da obra, da qual a citação acima foi extraída, há outros ensaios críticos publicados por Franklin de Oliveira que fazem referência à obra rosiana, alguns até se repetiram em publicações diferenciadas, como o artigo que trata das epígrafes presentes em Sagarana, publicado na antologia crítica A Dança das Letras (1991), extraído do ensaio Viola d’Amore (1965), e publicado também no livro A Literatura no Brasil (1986), de organização de Afrânio Coutinho, no qual recebeu o nome de Sagarana: as epígrafes. Porém, antes que se possa compreender as análises tecidas, por Franklin de Oliveira, a respeito das epígrafes presentes em Sagarana, é necessário que se faça um breve comentário sobre a obra em si. Sagarana é um conjunto de contos ou novelas, pois ainda hoje há uma discordância quanto à natureza dos gêneros das histórias que compõem o livro. Sabe-se, porém, que se trata de uma coletânea de histórias, nas quais o regionalismo ganhou uma nova roupagem, uma vez que não é o sertão de Taunay, Alencar, Távora ou de Bernardo de Guimarães que é abordado, mas sim um sertão que comporta um universo simbólico e metafísico, não encontrado em quase nenhuma outra obra. Nesta obra, por vezes, há um espaço para a uma linguagem não corriqueira, não dicionarizada ou estruturada segundo padrões sintáticos, como afirma Franklin de Oliveira: Para atender á imperatividade de uma língua destinada a servir ao curso do objeto e não de veículo ao desregramento subjetivo, língua em que as coisas encontrem expressão e não apenas na qual nos confessemos, língua concreta, capaz de suportar germanicamente a abstração, e não apenas afeita ao impressionismo, porque incapaz de ver o mundo categorizado, o Sr. João Guimarães Rosa, cujo comportamento verbal vem sendo motivo de estudos dos srs. Oswaldino Marques e M. Cavalcanti Proença, teve de fazer explodir a linguagem consuetudinária, desarticular sintaxe tradicional, subverter a semântica dicionarizada, dinamitar a rocha da tradição, atomizar o consagrado, o comunitário, até dá a impressão de que sozinho estava forjando uma língua ‘língua geral’, a qual motivou que, por preguiça mental, alguns articulassem contra ele a imputação de ilegível. (1959, p.214)

Ao se observar as análises tecidas por Franklin de Oliveira e as que ele cita, pode-se observar que a linguagem rosiana estar longe de cair no anarquismo ou em uma mera revolução linguística, verse a linguagem em seu sentido filosófico, como afirma Heidegger, ao falar da linguagem na poesia, “a linguagem é a morada do ser” (HEIDEGGER apud MARCONDES, 2007, p.149), e sendo a morada do ser, deve-se primar pela centralidade deste ser na linguagem; uma língua, em que o popular, na sua forma mais erudita, ganhe espaço, uma língua que comporte a universalidade sem ficar presa a meros padrões sintáticos ou lexicais. 3. As epígrafes em Sagarana: um diferencial em meio ao trabalho epigráfico na literatura brasileira Para a análise do trabalho epigráfico em Sagarana, há a necessidade de que se compreenda a etimologia da palavra “epígrafe”, esta se que reporta à palavra grega gráphein (“inscrever”), que designava inscrições que abriam textos poéticos, muito em voga na França pelos românticos do século XVIII. Reportar, apontar, elucidar o que está por vim, de certa forma uma epígrafe pode dizer muito sobre a obra que irá ser lida, ou simplesmente será um fragmento que dialoga com pequenas partes do texto; perpassam uma necessidade de apadrinhamento ou influência à obra. Franklin de Oliveira, ao fazer menção a este artifício nos textos ficcionais, os chama de “reles enfeites”. Em geral a epígrafe é um artifício inócuo, ou porque represente simples excrescência, reles enfeite, ou porque revele exibição vaidosa, ou ainda porque mostre desejo de apadrinhamento, vontade de amparo de um nome ilustre. Algumas vezes equivale a honrada confissão de influência — indicação de fonte. (1986, p.492)

Porém, ao fazer referência às epígrafes presentes em Sagarana, Franklin de Oliveira assumiu outra posição: Em livro de tal forma elaborado, as epígrafes teriam também de ser dinâmicas. Elas são uma espécie de formulação algébrica das histórias: siglas em arquitrave, clave e cimalha das novelas. Acusam o que vai vir; condensam a dimensão metafísica. São inscrições que encerram o tema, compendiando-o in nuce. Às vezes são uma só peça óssea que permite a reconstituição do esqueleto da fábula. Outras vezes funcionam como

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Anais do II Congresso Internacional de Estudos Linguísticos e Literários na Amazônia (CIELLA) bordão de arrimo: têm algo de refrão, ritornelo. Situam previamente o tema em seus paralelos e meridianos. São tremas simbólicos, diagramas metafísicos. Constituem a fronteira superior, o teto transcendente das histórias. São as próprias novelas cristalizadas em teoremas poéticos postos em alto relevo — dos quais as novelas, as histórias desempenham, em seu curso, o papel de demonstração viva. As epígrafes descobrem ou indicam o ideário do autor astuciosamente oculto na trama da narrativa. (1986, p. 492-493)

Desta forma, Franklin de Oliveira mostra que, tal como os demais recursos em Sagarana, as epígrafes cooperam para a harmonia da obra, para o bom funcionar. As epígrafes nesta obra são dinâmicas, isto é, são capazes de sintetizar o conteúdo ideológico da obra que irá ser lida, são capazes de tomar a posição de formas algébricas, que irão apontar para o teor literário, filosófico e artístico da obra, são linhas breves capazes de comprimir toda a temática de um conto ou da própria coletânea. Conseguem, em poucas linhas, abarcar o inicio, o meio e o fim da obra literária. Pois, justamente por seu pequeno formato, terão que se valer de elementos simbólicos, necessários para que se possa alcançar a compreensão da obra lida, compreensão essa, às vezes, não atingida durante a leitura. Franklin de Oliveira ao citar Pedro Salinas, no ensaio A fantasia exata, afirma que um aspecto peculiar nas novelas/contos de Sagarana é fato de derivarem de uma espécie de forma simbólica, isto é, de suas epígrafes. “Lá em cima daquela serra, passa boi, passa boiada, passa gente ruim e boa, passa a minha namorada” (Quadra de Desafios)

Podemos observar nessa pequena epígrafe, formada por uma quadra popular, que encima toda a obra Sagarana, um exemplo do dinamismo, da condensação e simbolismo presente nas epígrafes de Sagarana. No primeiro verso, o autor apresenta o cenário que será constante em toda a obra, como se pode observar nos seguintes fragmentos desta obra: “Apuram o passo, por entre campinas ricas, onde pastam ou ruminam outros mil e mais bois” (ROSA, 1984, p. 37); “Ao redor, bons pastos, boa gente, terra boa para o arroz” (ROSA, 1984, p.137); “ Na serra, verde-malaquita, arquipélago de reses, muito, pastando, entre outras ilhas, vermelhas, vermelhados, do capim barbade-bode”. (ROSA, 1984, p.194) No segundo verso, o eu lírico sintetiza bem sobre que irá ser tratado em todas as novelas, que compõe Sagarana: o trabalho, o simbolismo, a vida e o que há de mais expressivo e encantador no manejo pecuário, uma vez que não falta em nenhuma novela a presença de um animal pertencente ao cenário rural. Na primeira novela a figura que se apresenta é do burrinho pedrês, o qual, embora, cansado e envelhecido, parece carregar em si a sabedoria universal. Na segunda novela, lá está a figura do burrinho, carregando sobre si, igual carga que não poderia ser sustentada pelo homem, assim sucederá em todas as narrativas que seguem em Sagarana, ora é a figura do burrinho, ora do jegue, ora da mula, ora do boi que irá sobrepor-se ao do homem. O segundo verso desta epígrafe elucida e demonstra muito bem a temática que permeia Sagarana, além de abarcar o simbolismo presente na figura do animal, como podemos observar segundo a citação de Luker (1991, p. 91) “o boi é o símbolo do eterno princípio da vida [...] o filho de Deus se encontra entre o boi, atrelado à lei judaica, e o burro, carregado com os pegados da adoração pagã, para libertá-los de suas cargas”. Deste modo, observamos nesse verso um dos elementos que compõe quase todo o aspecto metafísico de Sagarana. No terceiro verso “passa gente ruim e boa”, se percebe a menção à riqueza e à variedade de personagens que compõe a trama de Sagarana: Major Saulo que parece manter em relação ao burrinho certo sincronismo; o esperto seu Marra, a rusticidade dos primos Argemiro e Ribeiro etc. No último verso, encontra-se todo o lirismo presente na obra, isto é, embora os caminhos sejam difíceis de serem percorridos, o trabalho seja pesado e a morte uma constante. A obra carrega em si uma beleza e ternura ante o ato de contemplação do autor, esse capaz de ver o belo nas formas mais rústicas, fora de padrões de perfeição ou ordenamento.

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A segunda epígrafe que, ao lado da citada acima, encabeça toda a obra, assim como o título (“Saga”, radical germânico — criação verbal a serviço do épico; “rana”, sufixo tupi — “à maneira de...”) carregado de certo hibridismo, esse responsável por comportar ao mesmo tempo o caráter universal e regional da obra, aponta também para além desse hibridismo, trata-se de uma estratégia do próprio autor que se predispõe a conduzir o leitor pela obra que irá ser lida. Desta forma, o autor convida o leitor, ou melhor, o guia, por meio da porta de entrada de seus contos/novelas, as epígrafes, a desvendar o seu ideário, para que assim possa alcançar a compreensão da obra que irá ser lida. “For a walk and back again”, said the fox. “Will you come with me? I’ll take you on back…For a walk and back again”

Como afirma Franklin de Oliveira na seguinte passagem: [...] a história da “raposa cinzenta” — Grey Fox — que convida para um passeio e se dispõe a levar, em suas costas, o interlocutor. Nada mais simples — mas quem convida é a raposa, e eis a malícia; ela como o autor, com astúcia e manha, vai inocular no companheiro de passeio (o leitor) coisas que, com finura, começamos a surpreender no rastro das epígrafes. (1986, p.494)

Além das epígrafes que encimam os contos (ou novelas) de Sagarana, Franklin de Oliveira chama a atenção para outro tipo de epígrafe presente em Sagarana, as ditas internas ou inclusas, são bem sutis, são personagem, frases, lugares comuns a todas histórias, capazes de interligar as narrativas, como se essas fossem parte de um único romance, algo que por vezes torna quase que impossível definir Sagarana como conto ou como novela, pois ora são histórias isoladas, ora dialogam entre si por meio de seus personagens, espaços, falas, cooperando, assim, para o caráter circular de Sagarana, como afirma Franklin de Oliveira nestas passagens: Ao lado, porém, destas epígrafes que, como um friso ideológico, encimam as histórias, há outras, internas, inclusas — são as quadras, as frases ou mesmo as cenas que entram na narração para dar ou mudança ou sustentação de tom. Funcionam como diérese, separação de tecidos orgânicos. Funcionam, também, como fios de engarce no enlace de partes, mas e aqui está a sutileza do artista não deixam nenhuma soldagem à vista. Em ambos os sentidos valem como historietas autônomas ou subnovelas intercaladas no texto, fato este que corresponde, aliás, à autêntica e velha maneira de narrar. Vezes outras estas sub-histórias ou noveletas servem para ligar, interligar entre si as novelas. novelas — por exemplo: o pretinho de “O burrinho pedrês” de certa maneira une-se ao outro pretinho de nome Tiãozinho, da novela “Conversa de bois”. O burrinho Sete-de-Ouros da primeira novela corresponde à mula ruana, “sábia e mansa”, da novela “Corpo fechado” e ao jegue — “mãe Quitéria lhe recordou ser o jumento um animalzinho assim meio sagrado, muito misturado às passagens da vida de Jesus” — que aparece na última novela. (1986, p. 493)

Além do aspecto temático, as epígrafes em Sagarana dão de conta do próprio estilo de escrever do autor, isto é, frases curtas, verbetes regionais, desapego ao tradicionalismo e ás normas sintáticas, como Guimarães Rosa afirmou no prefácio da obra Sagarana (1984, p.8) “Porque não tentar trabalhar a língua em seu estado gasoso”. Uma língua não apegada a nenhuma norma, não preocupada em repassar conceitos ou preceitos gramaticais, mas sim em demonstrar o caráter rico, peculiar e singular de que se vale o ser humano no ato da comunicação. Língua do caboclo, boiadeiro, roceiro, os quais não tiveram oportunidades de entrarem em contato com a tradição e a normatização linguística, mas que carregam uma riqueza única proveniente de uma sabedoria universal, que perpassa a alma humana; um diálogo entre o ser e o não ser, entre a coisa e a criatura, isto sim parece dá conta a obra de Guimarães Rosa. Mas lembrando-se de que não é pelo fato de adotar o popular das narrativas orais sertanejas que as epígrafes deixam de carregar um valor erudito, pois são frutos de uma vasta e variada carga de saberes que constituem a sabedoria e a alma de um povo. “Lá vai! Lá vai! Lá vai!... Queremos ver...Queremos ver... Lá vai o boi Cala-a-Boca fazendo a terra tremer!...” (Coro do Boi-Bumbá)

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Deste modo, assim como nesta epígrafe que encabeça o conto ou novela Conversa de Bois, em Sagarana, encontra-se a valorização da cultura popular sertaneja em todas as demais epígrafes, pois ora são desafios, ora cantigas, ora provérbios, ora cordéis, ora historietas, porém em todas é observada a alma da gente humilde do campo, por meio da fala habitual das conversas de porta ou das cantigas que embalam as horas festivas. Portanto, observa-se que o apadrinhamento por meio das epígrafes em Saragana não vem do consagrado, mas sim, daquilo que o próprio escritor elegeu como textos capazes de consagrar uma obra da qualidade de Sagarana. 4. A recepção estética das epígrafes em Sagarana Se se atenta para o uso do conceito de prazer estético segundo uma concepção aristotélica, ver-se-á que Guimarães Rosa utilizava as epígrafes, como forma de prazer ante a criação, ou melhor, Poieses, pois como apresenta Jauss ao citar Aristóteles “a dupla origem do prazer da imitação: pode derivar de uma técnica perfeita da imitação, mas também ante o regozijo, ante o reconhecimento da imagem original imitado” (1979, p. 64-65). Assim sendo, pode-se dizer que se ver não só a realidade sertaneja, mas os olhos admirados e contemplativos de um autor pela imagem que irá transpassar para a prosa, como também se pode observar na própria fala do autor, ao fazer referência ao momento em que escreveu Sagarana: Então, passei horas de dias, fechado no quarto, cantando cantigas sertanejas, dialogando com vaqueiros de velhas lembranças, “revendo” paisagens da minha terra, e aboiando para um gado imenso [...] o livro foi escrito -... em sete meses; sete meses de exaltação, de deslumbramento.(ROSA, 1984, p.8)

Mas não é só o autor que é contemplado com esta experiência estética, o leitor após conhecer e se reconhecer na obra, é despertado por um desejo de conhecer mais sobre a obra que é encabeçada por versos tão populares, mas tão ricos em sabedoria popular, como se lá, na simples contemplação diante de algo tão simples e ingênuo, porém tão cativante, o leitor pudesse descarregar toda a pressão e opressão causada pela sociedade que o cerca; a este sentimento causado pela leitura da obra da qualidade de Sagarana, Jauss afirma: [...] Mas a experiência estética não se esgota em um ver cognoscitivo (aisthesis) e em um reconhecimento perceptivo (anamnesis): o expectador pode ser afetado pelo que se representa, identifica-se com as pessoas em ação, dar assim livre curso às próprias paixões despertadas e sentir-se aliviado por sua descarga prazerosa, como se participasse de uma cura (Katharsis). (1979, p.65)

Deste modo, o falar ingênuo e rústico traz o afastamento das angústias e dos sofrimentos. Assim, afirma Jauss, ao citar Górgias, que faz referência ao poder da língua e da falar “ela [fala] é capaz de afugentar o temor e de banir o sofrimento, de provocar alegria e de suscitar a compaixão”. (1979, p.67) Assim são as cantigas presentes nas epígrafes, embalam o leitor e o fazem mergulhar no “mundo de sonhos” presentes nos contos/novelas de Sagarana, e trazem por meia da arte do discurso o inacreditável mundo em Sagarana, como mais uma vez ao citar Gorgias, Jauss afirma “[...] o prazer estético dos efeitos provocados pelo discurso ou pela poesia é a tentativa de deixar-se persuadir pela transformação do pathos arrebatador na serenidade de ética”. (1979, p.67) “A barata diz que tem sete saias de filó... È mentira da barata: ela só tem uma só”

Assim como nas festas ou nas brincadeiras infantis, a musicalidade, trazida para o âmbito das epígrafes em Sagarana, nos faz liberar a psique, desta maneira, não é a mente que esta sendo preparada para a leitura, mas a alma. Sobre o valor da música para a alma, Luker (1991, p. 466) afirma “Tons, tonalidades, formas musicais são como elo entre a Harmonia do Universo e a ordem no mundo, no Estado, na sociedade e na vida de cada um”. Deste modo, a música se mostra um elemento valioso e significativo à experiência estético nas epígrafes de Sagarana, como a Afirmar Franklin de Oliveira (1986, p.491): “porque a música é a mediadora entre a percepção intelectual e a emocional — ela nos ensina a sentir juntos, promovendo transcendente unificação afetiva”.

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Além disso, pode-se também atribuir o uso das epígrafes em Sagarana no formato de cantigas de roda, como uma busca pelo prazer estético no passado, pois como afirma Jauss, ao citar Freud: [...] uma forte experiência atual desperta no poeta a lembrança de uma passada, experiência principalmente pertencente à infância, da qual agora deriva o desejo, cuja satisfação se realiza na poesia; a própria poesia revela tanto elementos do motivo recente, quanto elementos das velhas lembranças. (1979, p.70-71)

Como é esperado, ao se ouvir uma cantiga como a que serve de epígrafe para o conto “A hora e a vez de Augusto Matraga”, um retorno às lembranças antigas, às lembranças de criança, causando, assim, no leitor um retorno ao passado de modo a harmonizar o seu presente. “Eu sou pobre, pobre, pobre, vou-me embora, vou-me embora .................................................... Eu sou rica, rica, rica, vou-me embora, daqui!...” (Cantiga antiga)

Portanto, o envolvimento obra e leitor é visto por meio das epígrafes, seja por elas suscitarem lembranças antigas na mente de seu leitor ou por se aproximarem de seu ambiente sociológico, cultural e religioso, valorizando, deste modo, a experiência estética na vida do ser humano, pois o que se trouxe às epígrafes, foi a esfera popular erudita da arte literária. Esta experiência estética de reconhecer-se e perder-se, por meio de uma situação de leitura de uma obra literária, da percepção de valores estéticos inerentes à uma obra de arte ou por meio da própria vivência em sociedade é algo que reporta ao ideal humanístico sartriano, que não julgar o homem como um ser supremo ou perfeito, mas como um ser em constante processo de perda e encontro fora de si, vivendo no universo da subjetividade, como afirma Sartre (1973, p.501): “o homem está constantemente fora de si mesmo, é projetando-se e perdendo-se fora de si que ele faz existir o homem e, por outro lado, é perseguindo fins transcendentes que ele pode existir”. A esse poder da experiência estética humanística, Franklin de Oliveira (1986, p. 496) faz menção, ao citar Schiller: “Não se pode chegar à solução política do problema da ‘libertação do homem de condições existenciais inumanas’, infra-humanas, sem uma visão estética do destino e da vida humana”. Mas que relação há entre um valor humanístico sartriano e as epígrafes de sagarana? Se se recorrer à epígrafe do conto/novela “Burrinho pedrês”. “E, ao meu macho rosado, carregado de algodão preguntei: p’ra donde ia? Pra rodar no mutirão” (velha cantiga, solene, da roça.)

Se observar, na figura de macho rosado, a do próprio ser humano perdido em meio a perguntas: Para quê? Por quê? De onde? Para onde? A carregar o peso de sua vida, de sua carga existencial, a homem destinado a rodar no mutirão da vida, vítima de suas paixões, de seus medos, um homem condenado a liberdade, porém a teme por não assumir os riscos pospostos por ela, e vive a rodar o mutirão. Portanto, vê-se nestas epígrafes a condensação ideológica da obra Sagarana e questões que permeiam a identidade do eu como um ser universal. Epígrafes que, como foi dito no inicio deste artigo, deixam a esfera de objetos de adorno de narrativas, para serem parte da obra literária e mais que isso, serem elementos que suscitam a reflexão sobre o valor simbólico, metafísico e filosófico contidos em Sagarana. Deste modo, há de se considerar também para uma leitura que compreenda os três níveis da hermenêutica literária: os da compreensão, os da interpretação e da aplicabilidade, a importância do trabalho epigráfico em Sagarana.

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Referências JAUSS, Hans Robert et al. A literatura e o leitor: textos de estética da recepção; coordenação e tradução de Luiz Costa Lima. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1979. 213 p. LURKER, Manfred. Dicionário de simbologia. São Paulo: Martins Fontes, 1991. 534 p. MARCONDES, Danilo. Textos básicos de Filosofia. Rio de Janeiro: Zahar, 2007. 183 p. OLIVEIRA, Franklin de. A fantasia exata: Ensaios de literatura e música. Rio de Janeiro: Zahar, 1959. 313 p. OLIVEIRA, Franklin de. Guimarães Rosa. In: COUTINHO, Afrânio (dir.). A Literatura no Brasil. Rio de Janeiro: J. Olympio; Niterói: UFF, 1986. v. 5, p.475-526. OLIVEIRA, Franklin de. A dança das letras: antologia crítica. Rio de Janeiro: Topbooks, 1991. 416p. ROSA, João Guimarães. Sagarana. 29. ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1984. 336 p. SARTRE, Paulo Jean. O existencialismo é um Humanismo. Trad. Vergílio Ferreira In: Os Pensadores. São Paulo: Abril Cultural, 1973. v. 45, p.16-37.

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O SATÃ DE MILTON E O GUESA DE SOUSÂNDRADE: A EMERGÊNCIA DO ANTI-HERÓI MODERNO? Enéias Farias TAVARES (Universidade Federal de Santa Maria)

RESUMO: O objetivo deste trabalho é apresentar um estudo que perceba as relações temáticas na poesia do inglês John Milton (1562-1647) e do brasileiro Joaquim de Sousa Andrade (1832-1902), percebendo especialmente a caracterização do herói épico nos poemas O Paraíso Perdido e O Guesa Errante. Complementarmente, este estudo prevê um comentário da configuração desse novo modelo de herói em outros poemas do gênero épico anterior, como nos poemas de Homero, Virgílio, Dante e Camões. Nesse caso, observaremos como os dois poetas em questão alteram uma representação já canônica de um protagonista épico, modelo de uma série de características ideais da cultura que o produziu, para um protagonista repleto de conflitos e imperfeições. PALAVRAS-CHAVE: Crítica Literária; John Milton; Sousândrade; herói épico.

ABSTRACT: This paper aims to present a study that understands the thematic relationship in English poetry of John Milton (1562-1647) and the Brazilian poetry of Joaquim de Sousa Andrade (1832-1902), noticing especially the characterization of the hero in the epic poems Paradise Lost and O Guesa Errante. In addition, this study provides a commentary on the configuration of this new type of hero in other earlier epic poems, such as the works by Homer, Virgil, Dante and Camões. In this case, we will observe how this two poets, Milton and Sousândrade, alter a canonical representation of an epic protagonist, model of a series of ideal characteristics from the culture that produced it, for a character with conflicts and imperfections. KEY WORDS: Literary Criticism; John Milton; Sousândrade; epic hero.


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1. Milton e Sousandrade: poetas à margem de suas sociedades Do ponto de vista biográfico, tanto Milton quanto Sousândrade foram poetas que viveram e publicaram suas grandes obras à margem. No caso do primeiro, apesar de um relativo destaque durante o período Cromwell ou no sucessivo reinado de Charles II, a obra de Milton foi publicada sem grande destaque no fim de sua vida. Cego, de parcos recursos financeiros e sem voz política atuante, como nos anos de Cromwell, Milton dita os três grandes poemas finais, Paraíso Perdido, Paraíso Recuperado e Sansão Antagonista, para familiares. Mesmo tendo recebido um exagerado enaltecimento no Romantismo, sobretudo por sua personagem satânica, Milton continua a despertar a atenção da crítica, na maioria das vezes por seu viés político, cultural ou religioso. No Brasil, excetuando a tradução portuguesa de mais de um século dO Paraíso Perdido, sua grande obra permanece ainda inédita no país. No caso de Sousândrade, essa marginalidade, social e artística, não se dá apenas pelo poeta publicar sua obra inicial em Maranhão, mas também por sua temática e estilo contrastante a proposta nacionalista do romantismo. Nomeado pelos irmãos Campos de “terremoto clandestino”, o “à margem” de Sousândrade deu-se também pelos comentadores literários do período posterior que, incapazes de perceber a obra do poeta, o classificam como um mestre do “frasear pomposo”, como no caso de José Veríssimo, ou o poeta que de vez em quando apresenta “a destreza e a habilidade da forma” ou ainda, algum ou outro “verso excelente”, nas palavras de Sílvio Romero. Infelizmente, para a crítica da segunda metade do século XX, não foi diferente, visto que autores como Alfredo Bosi, Afrânio Coutinho e Antônio Candido não dedicaram ao poeta mais do que algumas linhas em seus respectivos estudos sobre a Literatura Brasileira. Desse modo, tanto Milton quanto Sousândrade não parecem imperar como autores importantes para as preocupações do século XX, emergindo apenas em seus aspectos culturais, caso do poeta inglês, ou nas suas inovações estilísticas “pré-modernistas”, caso do poeta brasileiro. Por outro lado, curiosamente os dois autores encerram em suas obras muitas das inquietações, angústias e temáticas presentes não apenas no Modernismo da virada do século vinte, quanto também no PósModernismo das últimas décadas. Sobre isso, Luis Costa Lima menciona que o poeta brasileiro foi o único brasileiro que, mesmo “antes do modernismo, antecipou formas que só depois se desenvolveriam dentro do acervo poético internacional. Só ele não foi mero reflexo de correntes europeias. Por isso mesmo ele se tornou o mais incompreendido dos poetas pré-modernistas” (Costa Lima, 2002, p. 477). Se Milton é tido como a principal influência de Sousândrade, essa pré-modernidade presente na obra do poeta maranhense também deve, supõe-se, ter estado em forma embrionária na obra do poeta inglês. Nossa suposição é a de que esses elementos antecipatórios de uma determinada reflexão romântica e depois moderna estiveram na própria configuração poética dos heróis desses autores. 2. A ideia de heroísmo na épica clássica, medieval e renascentista Em Dante – Poeta do Mundo Secular, Enrich Auerbach escreve que ao pensarmos em personagens como Aquiles ou Ulisses, falamos de duas figuras contrastantes (contraste previsto já nos epítetos dedicados a cada uma dessas personagens), embora aqui interesse observarmos os dois protagonistas em sua unidade épica primeira. Apesar das diferenças entre o herói da morte gloriosa e o herói cujo ímpeto o leva a retornar ao lar, o que fica nítido em Homero é o quanto as respectivas representações de Aquiles e Ulisses correspondem ao que havia de melhor na imaginação grega do período, imaginação essa que perduraria séculos a fora. Como a própria concepção poética homérica, seus heróis são espontâneos, completamente entregues aos seus próprios desejos e motivações. Não queremos dizer com isso que estava presente já uma noção de individualismo moderno na poesia homérica, e sim que havia naquela cultura uma relativa liberdade de motivação e decisão na representação desses personagens, mesmo estando presos a uma determinada noção de destino. Tal caráter de relativa liberdade e individualidade é atenuado na épica romana de Virgílio, classificada pela crítica como “épica artificial” em contraste com a “épica espontânea” de Homero.

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Auerbach adverte que o comentário que desvaloriza Virgílio em relação a Homero é errôneo, visto não perceber a rede de complexidades que diferenciam as duas culturas: a grega do século IX A.C. da romana do século I A.C. Se Aquiles e Ulisses eram vistos em seu caráter espontâneo-individual, mesma relação inexiste no Enéias romano, sendo que ali o herói não era retratado como tendo um caráter individual, específico, mas em sua responsabilidade ou compromisso para com uma coletividade futura. Se os epítetos de Aquiles e Ulisses – “de pés ligeiros” e “industrioso” – fazem menção a características particulares, Enéias é o “piedoso” e o “patriarca”, ambos escolhidos por Virgílio para ressaltar uma responsabilidade social que estava na própria constituição primeira da personagem. O objetivo de Auerbach com seu argumento é fazer uma ponte entre o tipo de caracterização heróica em Virgílio com a própria idealização católico-medieval posterior, que via na figura de Cristo – também uma figura piedosa e paterna ao seu modo – o ideal de personagem que esmaga sua individualidade em prol de uma vontade superior e de um bem coletivo. Segunda o autor, “ao entrar na consciência dos povos da Europa, a história do Cristo mudou fundamentalmente a concepção do destino do homem e sua maneira de descrevê-lo” (ibidem, p. 26). Se para Aquiles e Ulisses interessa o mundo visto, para Cristo, e num certo sentido também para o fundador de Roma, interessa o invisível, o etéreo, uma determinada imagem de futuro ideal. Tendo a relação entre a constituição do herói romano e do herói cristão em mente, Auerbach chega no objetivo de seu estudo: o poeta florentino do século XIII. A Divina Comédia descreve um movimento de ascensão espiritual, partindo dos tormentos infernais, passando pelas aflições do purgatório e chegando a glória celestial. Como Auerbach menciona, há uma materialidade que perpassa nitidamente os dois primeiros estágios da viagem de Dante. E mesmo no Paraíso, etéreo e espiritual, o guia do poeta é o vínculo com uma existência e com uma relação lírico-amorosa anterior, relacionada com a existência humana. Concorda com isso a própria estrutura do poema, que mescla essa viagem espiritual com uma série de alusões a séculos de história italiana e ocidental. Para Dante, poeta ou personagem, a divisão entre materialidade e espiritualidade é imperfeita, pois sua épica não consegue aludir a uma sem fazer relação à outra. Comumente, e simploriamente, chamada de o “épico católico”, A Divina Comédia já seria um prenuncio dessa cisão entre representação heroica ideal e um herói ainda por nascer, imperfeito. Três séculos depois, após essa sutil alteração do ideal heroico em Dante, tem-se a personagem que corresponderia aos ideais renascentistas e expansionistas do período: Vasco da Gama. Segundo Salvatore D’Onofrio, Os Lusíadas, de Luís Vaz de Camões, é um poema modelar por conceber tanto um herói exemplar quanto ao evidenciar a capacidade dos autores renascentistas de recriar os modelos artísticos do período clássico (D’Onofrio, 2004, p. 242). Ao narrar as aventuras do descobrimento português, tendo por trama principal a viagem de Vasco da Gama às Índias, Camões instaura um quimérico herói português, seguro, intrépido e dedicado a tarefa de levar os ideais de sua nação a povos gentios. Daí o aspecto educativo e moralizante, característica principal da épica camoniana” (ibidem, p. 245). Desse modo, é perceptível nessa rápida explanação sobre a constituição heroica na épica anterior a Milton que a própria caracterização desses protagonistas corresponde, de uma forma ou outra, a ideais culturais, sociais e políticos de heroísmo ou de comportamento coletivo das respectivas culturas nas quais seus autores estavam inseridos. A partir desse ponto, interessa-nos saber o que acontece, entre os séculos XVI e XVII, para que um poeta como John Milton possa surgir, sendo o primeiro a quebrar com esse ciclo de idealismo heroico em sua poesia, de um lado com um herói derrotado e demoníaco e de outro, com um herói cego, diante da miséria e da morte. 3. O Satã e o Sansão de Milton: perspectivas dissonantes da representação heroica? De uma forma muito peculiar, John Milton (1608-1674) recriou com sua poesia dois mundos que inicialmente pareceriam irreconciliáveis: de um lado, a cultura literária grega e de outro, a narrativa mítica judaica. Como exemplos dessa união do gênero clássico e da temática bíblico-judaica, temos a

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epopeia O Paraíso Perdido e o drama Sansão Antagonista. No artigo biográfico de Henry Thomas e Dana Lee Thomas, publicado numa das edições brasileiras dO Paraíso, os autores afirmam ser ele a “ponte esplêndida que liga o velho ao novo mundo por combinar a erudição magnífica da Renascença com a rebeldia estupenda da Reforma” (Milton, 2002, p. 472). A crítica dedicada a Milton quase sempre se dedica a três instâncias interpretativas: Milton seria um teórico político, refletindo sobre a dicotomia monarquismo versus parlamentarismo; um teórico religioso, associado ao protestantismo (quase sempre fazendo par com a crítica dedicada a Dante como teórico do catolicismo medieval) ou seria um poeta de Gênio, afirmação romântica, cuja poesia corresponderia aos parâmetros de uma possível acepção estética universal. Em nosso estudo, nos interessam as informações provenientes dessas três possibilidades interpretativas, embora receba maior realce a construção poética do autor, que via na figura satânica não o monstro anterior do período medieval, e sim uma figura complexa, repleta de tonalidades psicológicas. Nesse sentido, quando partimos da figuração demoníaca “convencional” em Dante, e chegamos a Milton, percebe-se que no épico inglês o demônio tem presença central, não como monstruosidade estática, gélida, mas extremamente atuante e não conformado com a sua condição decaída. Peter Stanford, em O Diabo: uma biografia, traça um possível paralelo entre representação demoníaca em Dante e em Milton, afirma que na descrição da queda, da criação e da própria sedução do casal adâmico pelo demônio, o poema inglês não apresenta grandes inovações. A exceção está justamente na construção poética do demônio. Se na Comédia italiana temos um diabo monstro que chora e lamenta, enquanto olha para a luz celeste perdida, a épica inglesa se constitui como exceção na caracterização dessa personagem. Nela, esse personagem é equilibrado, crível, muitas vezes simpático, e sempre sedutor. Ou seja, com esse poeta desaparecem os monstros de outrora. Além disso, o realismo psicológico que predomina nos seus textos conduz o leitor a uma cumplicidade com Adão e Eva no momento em que os dois caem em tentação, fazendo com que a queda do casal fique muito mais compreensível. Inicialmente, o aspecto mais revolucionário do Paraíso Perdido encontra-se no papel do herói que é dado ao Diabo, como primeiro rebelde. Independente das descrenças ou suspeitas que o leitor possa ter com relação ao Diabo, para ele é quase impossível não admitir que o ser diabólico é magnífico nas mãos de Milton... sempre apaixonado, enérgico e corajoso. (ibidem, p. 259)

Essa descrição de Satã, talvez na literatura a primeira descrição do demoníaco como belo, seria futuramente comparada com a complexidade que Shakespeare investe os seus heróis. A fórmula de Stanford funciona perfeitamente nessa comparação: Se Shakespeare representou o demoníaco da mente humana, Milton acrescenta inveja e ressentimento humano à mente de seu demônio. Fazendo novamente o paralelo com a representação pictórica, são raríssimos os exemplos em que o satã foi representado como atraente antes de Milton1. Basicamente, o poeta inglês trabalhou com duas fontes, a bíblia e Dante. Dessas, o que o poeta poderia ter usado é uma série de imagens irregulares e antitéticas no texto bíblico (serpente falante no Gênesis, velho conhecido em visita ao céu no livro Jó, anjo extremamente belo em Ezequiel, tentador supremo nos evangelhos e dragão de sete cabeças no Apocalipse) ou o gélido monstro lamentoso do épico italiano. Recusando essas duas possíveis fontes, Milton cria seu Satã com características que destoam de qualquer obra anterior, o investindo de paixão, humanidade e expressividade retórica então inéditas não apenas na representação demoníaca mas em toda a literatura. A angústia da personagem, sua inveja, seu ciúme e a elaboração linguística desses sentimentos é o que nos conecta a ele, nos afastando automaticamente do impassível deus miltoniano, do irrepreensível cristo em armas, dos distantes seres angélicos, do demasiadamente ingênuo Adão ou da sempre auto-referente Eva, sendo que essa última talvez seja a única exceção na lista anterior, justamente por sua característica narcísea. Ver iluminura dos Irmãos Limbourg, no Livro das Horas, chamada A queda dos anjos, no qual temos uma das poucas – talvez a única – concepções pictóricas da beleza do anjo caído durante o período medieval. Após ele, temos o Miguel expulsado o Lúcifer, de Lorenzo Lotto, no Renascimento italiano. Após Milton, aí sim temos uma série de representações desse belo demoníaco, ressaltando-se as xilogravuras de Gustav Doré e as ilustrações de William Blake. 1

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Refletindo sobre essa constituição poética tão atraente, Samuel Taylor Coleridge escreve que o “character of Satan is pride and sensual indulgence, fingind in self the sole motive of action.(...) Milton has carefully marked in his Satan the intense selfishness, the alcohol of egotism, which would rather reign in hell the serve in heaven” (Casebook, p. 51). Do ponto de vista do crítico e poeta, o famoso “é preferível reinar no inferno do que servir no céu” não é a cerne do pensamento satânico em Milton. Antes, é o seu egotismo ilimitado e sua capacidade infinita de nunca desistir, como os doze cantos do poema nos mostram. O primeiro canto abre com um herói que já se diz vencido, tendo perdido a batalha. Mas o que resta? A exclamação demoníaca “We lost the field, yet lost we not our heart” (Perdemos a campanha, não perdemos o coração) é a sua proteção e a sua máxima no decorrer de todo poema. Satã ama a existência e não esconde essa vontade ilimitada de ser. No seu solilóquio mais conhecido, no alto do monte Nifates, no quarto canto, Satã elabora o que seria um dos principais temas presentes no romantismo posterior: a destruição de qualquer ideal, de qualquer confiança que advenha do cosmos, seja ele divino ou humano: “So farewell hope, and vith hope farewell fear, farewell remorse: all good to me is lost; evil be thou my good”(Então adeus esperança, e com ela me despeço também do temor, e também do remorso: todo o bem para mim está perdido; mal sejas tu o meu bem). É por essa força argumentativa e poética, presente em todas as suas falas, que o Satã de Milton, talvez não o protagonista do poema mas certamente sua mais expressiva personagem, povoou mais tarde os ideais e a imaginação poética romântica, na qual o herói ideal não era nem perfeito nem belo, mas satânico em sua queda e em sua desilusão ressentida. No mesmo eixo de recriação poética, Milton escolhe outra personagem bíblica para aprofundar ainda mais essa caracterização de herói decadente: o poderoso e tolo Sansão. No caso de Sansão Antagonista, é notável o modo como o poeta inglês ignora ou realça certos detalhes do mito original, presente em Juízes 13-16, como a charada do mel e do leão, o sacrifício das trezentas raposas ou o assassinato da primeira esposa, além de, sabiamente, esquecer o gosto do herói por prostitutas. Mesmo nessa primeira comparação, notamos que passar do mundo de Juízes para o mundo de Milton é passar de uma esfera para outra, sendo a do inglês muito mais nobre do que a do texto judaico. Chauncey B. Tinker, um dos ensaístas do livro Tragic Themes in Western Literature, menciona que “traces of barbarism, murder, and torture are gone, as well as the foolish and ostentatious examples of the hero’s eccentric and scoffing humor. Samson has become, as a result of the sufferings which he has endured, a person whom it is possible not only to pity but to admire and even to love” (Tinker, 1960, p. 62). Nessa relação entre o personagem bíblico e a criação de Milton, o poeta demonstra o mesmo tipo de caracterização não perfeita de seu herói. Se Sansão é o oposto de seu Satã, se visto como um ser que se arrepende e se redime ao final de seu drama, seu ímpeto, sua força e sua determinação são muito semelhantes as do herói demoníaco. Tanto Satã quanto Sansão recusam-se a desistir de seus respectivos propósitos, resolução que é exemplificado pela proclamação de Sansão contra Harapha, “Meus pés estão aguilhoados mas minhas mãos estão soltas”. Milton, aproveita a mesma ideia em Paraíso Perdido, poema no qual Satã poderia ser considerado como estando amarrado, preso, aguilhoado por sua derrota e queda. Entretanto, tanto Satã quanto Sansão, heróis imperfeitos, caídos, miseráveis, apresentam, na composição de Milton, o oposto de suas próprias derrotas: são gigantes em seus fracassos. 4. A poesia de Sousândrade: estilo barroco, temática romântica e experimentação moderna Em seu livro Sousândrade: épica e modernidade (2003), Luiza Lobo menciona que, ao estudar a obra do poeta brasileiro, “É extremamente difícil, como sucede com tantos outros autores, enquadrálo num gênero puro e atrelá-lo a uma escola literária. Sousândrade já foi considerado romântico, parnasiano, simbolista; e por que não pré-modernista?”. Como a citação ilustra, para se apreender o fenômeno Sousândrade, é preciso não reduzi-lo a fórmulas conceituais, estilísticas ou periodológicas. Inicialmente, surpreende a pouca bibliografia crítica sobre o autor. Entre rápidas menções em livros como História Concisa da Literatura Brasileira (1993), de Alfredo Bosi, A Literatura no Brasil (sem data),

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livro organizado por Afrânio Coutinho com texto de Fausto Cunha, e Formação da Literatura Brasileira (1969), de Antonio Candido, temos apenas três grandes estudos sobre a poesia sousandradina. Um dos escritos pioneiros sobre a obra desse poeta, então quase desconhecido, foi o dos irmãos Campos, ReVisão de Sousândrad (2002), publicado originalmente em 1964. Em seu estudo, os Campos retomam diversos aspectos da obra do poeta maranhense do ponto de vista do estilo e das suas inovações poéticas, além de apresentar um dos primeiros comentários sobre a duplicação da imagem infernal no poema épico O Guesa Errante. Além desse, há também a obra Poesia e Prosa Reunidas de Sousândrade, livro organizado por Frederick G. Williams e Jomar Moraes em 2003, tendo por base os livros Sousândrade: inéditos e Sousândrade: prosa, publicados pelos próprios autores em 1970 e 1978, respectivamente. Nesse volume, temos a terceira edição do Guesa Errante, a segunda de Novo Éden, além de escritos líricos como Harpas de Ouro e Liras Perdidas. Completam o volume cartas, ensaios e textos escritos para os jornais da época. Por fim, o estudo mais recente sobre o poeta é o já citado Sousândrade: Épica e Modernidade, de Luiza Lobo, publicado em 2005. Mesmo levando em conta que os três volumes apresentam uma série de informações e dados interessantes que podem iluminar a poética de Sousândrade, notamos que o autor ainda é pouco estudado no seu país. O principal poema do autor, O Guesa Errante tem a extensão da Odisséia homérica. No entanto, se a obra grega traçava o percurso de um herói com um objetivo preciso, Ítaca, O Guesa apresenta as viagens de um personagem que não tem destino definido, por isso Errante. Se de um lado temos um narrador impessoal que relata acontecimentos históricos sobre a colonização da América, a voz do protagonista, que está prestes a ser sacrificado pelos muíscas, expressa seus temores e aflições. Resumidamente, os primeiros cinco cantos acompanham o herói na América do Sul Hispânica, entre os incas dos Andes e vai para o Amazonas até chegar à sociedade brasileira contemporânea. O sexto canto, mostra a ida do herói para Corte brasileira. No sétimo, sua partida para Europa. Os cantos VIII e XII, descrevem a viagem do herói, partindo de Maranhão e chegando na América no norte. No último canto, XIII, temos o flashback nova-iorquino que prenuncia o retorno para São Luís. A própria estrutura dO Guesa é especialmente inovadora pois é a primeira a diretamente adaptar as errâncias épicas da protagonista com as vivências do escritor. Sousândrade é o próprio Guesa na medida em que suas viagens para Europa e Estados Unidos são também as viagens de seu protagonista. Entretanto, a análise que Luiza Lobo faz do Guesa proporciona ainda outra possibilidade interpretativa. Se na primeira, a autora correlaciona os cantos do épico com biografia do autor, na segunda ela observa na estrutura do poema, sobretudo em sua versão modificada de 1884, as similaridades com o Paraíso Perdido de Milton. Segundo ela, O Guesa apresenta a típica estrutura épica (proposição, invocação, dedicatória e narração) e em pé de igualdade com O Paraíso Perdido, o poema brasileiro apresenta dois narradores, um impessoal em terceira pessoa e outro em primeira, que está entre aspas. No entanto, vale aqui nos atermos a essa readaptação que Sousândrade faz da tradição anterior. Segundo Lobo, “a importância e a originalidade de Sousândrade residem no fato de ele mostrar excepcional capacidade para absorver, reaproveitar e reelaborar os escritores estrangeiros, fossem seus contemporâneos ou do passado, recriando-os num todo autônomo com relação às fontes” (Ibiden, p. 13). Esses “contemporâneos ou do passado”, que encontramos no decorrer de toda a obra poética do autor, estão mesclados a elementos da própria cultura indígena antes da colonização européia. Embora tenha vivido durante o período romântico brasileiro, Sousândrade evitou as principais modas poéticas de seu tempo, e se não fugiu completamente de suas temáticas (expressão subjetiva exacerbada, temática indianista, glorificação nacionalista), engrandeceu-as estilisticamente, dando-lhes um viés mais universal. Enquanto os poemas Juca Pirama, de Gonçalves Dias e o Caramuru, de Santa Rita Durão, interessam-se por uma expressão indianista sobretudo brasileira, Sousândrade incorpora elementos e mitos de todos as tribos indígenas da América Latina. No campo da linguagem, Sousândrade inovou métrica, rimas e a própria estrutura sintática e vocabular em seus versos, não tornando sua poesia “facilmente acessível” para um público leitor mais abrangente. Sobre a criação dissonante de Sousândrade no período, Alfredo Bosi afirma o poeta foi marcante por seus suas inúmeras experimentações poéticas numa época em que a regra era a reprodução da arte europeia.

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Segundo Bosi, Sousândrade “não podia ser assimilado no seu tempo e, de fato, não o foi.” (1997, p. 126). Essa última constatação de Bosi, após enumerar as qualidades temáticas e estilísticas de Sousândrade, é o que torna, a princípio, o estudo de Sousândrade instigante: Qual seria a razão dessa não assimilação? Esse silêncio dedicado ao poeta por parte da crítica mais tradicional pode ser resultado de vários fatores. Primeiramente, pela distância geográfica do poeta que, estando longe da corte em Maranhão, não teve sua obra lida e comentada durante o período, como aconteceu com autores como Gonçalves Dias e José de Alencar. Outra razão poderia ser o estilo métrico e sintático poético escolhido por Sousândrade. Não apenas pelo vocabulário rebuscado mas também pela estrutura sintática irregular, sua leitura foge completamente dos hábitos e predileções de um público leitor ainda em formação como no Romantismo. Essas distâncias, geográficas ou poéticas, talvez ecoem na famosa fala do poeta em Memorabilia de 1877, junto da primeira publicação do oitavo canto da edição americana do Guesa: “Ouvi dizer já por duas vezes que o ‘Guesa Errante será lido cinquenta anos depois’, entristeci – decepção de quem escreve cinquenta anos antes” (apud Campos, p. 24). Mas há ainda um terceiro fator que talvez indique esse esquecimento dedicado à obra do poeta, mencionado pelos irmãos Campos, que escrevem: Trata-se, realmente de uma linguagem que apresenta níveis estilísticos vários, uma linguagem sincrética por excelência, abrindo-se num verdadeiro feixe de dicções, que tanto vai se alimentar nos clássicos da língua, quanto se projeta em invenções premonitórias do futuro da poesia. Ela se opõe mesmo aos clichês da sensibilidade e aos afrouxamentos da dicção romântica tal como se fixou entre nós (retoricismo sentimental, platitude discursiva, etc). (2002, p. 73)

Esse “se alimentar nos clássicos da língua” de um lado, e “se projeta em invenções premonitórias do futuro da poesia” de outro, destaca os dois grandes destaques da obra sousandradiana: sua releitura e reescrita dos clássicos, em estilo e temática, e, ao mesmo tempo, sua constante reinvenção da linguagem que aponta para o modernismo poético. Consoante a essa releitura passada e previsão futura, Sousândrade ainda apresentaria alguns dos elementos muito caros ao período romântico brasileiro, como a sua fascinação pelo cenário natural brasileiro. Entretanto, o que em quase todos os românticos nacionais, especialmente na obra dos dois Gonçalves, se torna nacionalismo idealizado e sentimental, em Sousândrade se torna vínculo com um passado não apenas religioso mas sobretudo poético. Quando compara a natureza brasileira ao Éden, seja nO Guesa ou no Novo Éden, o poeta não tem em mente apenas a descrição do Gênesis, mas também a exuberante poesia de Milton no Paraíso Perdido, além de uma constante alusão ao solo brasileiro como a de sendo um novo Éden. Mas em Sousândrade, não é apenas o passado barroco ou presente romântico nacional que emerge com profundo interesse de sua criação poética, mas também essa inovadora experimentação que resultaria no modernismo do século seguinte. Como primeiro exemplo dessa terceira temática presente na obra do poeta, no Guesa Errante, seu primeiro inferno, florestal, não relembra qualquer crença religiosa medieval e sim o passeio de Dante por seus círculos na Divina Comédia, sobretudo em seu início, com um sonho, estando o personagem perdido numa floresta escura. Já o segundo inferno, urbano, já aponta para uma descrição fragmentária, caótica, enlouquecedora, muito próxima do que veríamos na obra de Pound e no Waste Land de Eliot. Segundo os irmãos Campos, essa relação entre tradição épica anterior e temática urbana futura se faz presente nO Guesa via recriação da paisagem infernal. Essa primeira acepção dos Campos sobre Sousândrade, como ponto de convergência entre tradição clássica e experimentalismo moderno ocorrendo em pleno romantismo, será bem desenvolvida no livro de Luiza Lobo. Segundo Luiza Lobo, o plano desse primeiro épico, baseado na estrutura homérica e virgiliana, de uma grande viagem, é modificado pela visita a Nova York, que “lhe mostra um outro caos, um outro Pandemônio até então ignorado” (ibidem, p. 97). Sua noção idealizada da democracia cai por terra ao perceber que se tratava de um caos no qual o individualismo, a pressão econômica, o consumismo exagerado e uma solidão em meio ao turbilhão alcançavam patamares nunca antes vislumbrados. “Em face dessa imagem selvagem de competição capitalista, Sousândrade viu esboroar-se seu ultrapassado

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Romantismo utópico e o substituiu por uma visão mais política e realista da América” (idem). É por esses e outros elementos, tanto temáticos quanto estilísticos que Sousândrade, cinquenta anos antes, seria o pioneiro dessa “colagem parafraseadora” que resultaria no próprio núcleo estilístico do modernismo dos Andrade, como aponta Lobo. Como a argumentação da autora denota, estamos lidando com um poeta em constante movimentação temática e estilística. Um poeta cuja verve experimentalista se faz presente já nos poemas de Harpas Selvagens, perfazendo todas as edições do Guesa e do Novo Éden. Mas aqui, em contraste com a poesia de John Milton, nos interessa o tipo de herói representado pelos dois autores. Primeiramente num ambiente inglês e depois no cenário brasileiro, é como se na obra dos dois autores, tivéssemos uma progressão do que viria a ser uma nova figuração de herói literário. Um herói anti-herói, angustiado, decadente, caído. Podemos chamá-lo de Satã. Podemos chamá-lo de Guesa. 5. O Satã de Milton e o Guesa de Sousândrade: a emergência do anti-herói moderno? William Haszlitt, um dos mais importantes críticos literários do inicio do século XIX, fascinado como estava pelo esplendor da poesia de Milton, escreveu em Round Table (1817) sobre a própria constituição satânica no poema. A pergunta que Haszlitt se faz, também a nossa, é como uma personagem em tal estado de desgraça espiritual e psíquica pode ter se tornado, pelo menos no Romantismo e por todo período posterior, um ser tão central ao imaginário literário. Uma possível resposta é que, embora marcado pela tradição épica anterior, como Lewis demonstrou no primeiro capítulo do seu estudo sobre O Paraíso Perdido, Milton não estava interessado em reaproveitar um determinado modelo de herói. O Satã miltoniando é o mais humano dos heróis épicos, o mais expressivo e o menos temeroso de expressar suas angústias, e talvez por isso seja ele o mais crível, apesar de tratar-se de um demônio. As palavras de Hazlitt – “He was baffled, not confounded”, “Ele foi enganado, porém não confinado” – são esclarecedoras na medida em que reforçam o caráter irresoluto e destemido de sua personagem. O Paraíso Perdido abre com a percepção dos anjos caídos, agora demônios, de haverem perdido a batalha contra os céus. Num redemoinho de gritos e vociferações em meio ao caos, Satã surge como figura organizadora, motivadora e inspiradora. É dele a voz que faz os demônios se reconstruírem enquanto seres e enquanto reis desse novo cosmos. Entretanto, essa figuração inicialmente heróica da personagem, enquanto fala intrepidamente aos demônios, mostrará, nos comentários do narrador, padecer da mesma força, certeza e ímpeto que tenta inspirar nos irmãos infernais. No excerto abaixo, adaptado da tradução de Antônio José Lima Leitão, temos o famoso discurso satânico dedicado à reflexão sobre glória e servidão. Após a descrição da admiração que as hostes infernais dedicam ao seu general, o poeta nos faz vislumbrar esse arroubo de transformação interior na mente de Satã. “Que importa onde eu esteja, se eu o mesmo Sempre serei, – e quanto posso, tudo?... Tudo... menos o que é esse que os raios Fizeram mais poderoso do que nós! Nós ao menos seremos livres, Deus não fez o inferno para invejá-lo, Não quererá daqui nos expulsar; Poderemos aqui reinar seguros. Reinar é o alvo da mais nobre ambição. Inda que seja no profundo inferno: Reinar no Inferno nos parece preferível A humilhação de ser escravos no céu.” (...) Já toda a multidão enche as praias: Nos macerados, abatidos olhos Inda mostram uns longes de alegria, Vendo que seu chefe não desespera, E que eles mesmos não estão perdidos E imersos dentro da própria perdição.

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Tema geral: Línguas e Literaturas: Diversidade e Adversidades na América Latina Em seu porte Satã descobre indícios De dúvida e receio, mas ostenta Sua soberba usual; (...) Tem os olhos cruéis; mas dão indícios De paixão, de remorso, quando observam Os seus sectários. (Paraíso Perdido, Canto I)

Na fala satânica há uma descrição de rebeldia declarada no modo como Satã tenta discursar sobre uma possível glória no Inferno, local em que os antes servos angélicos reinarão como demônios reis. Num argumento muito próximo ao “do pior tiraremos o melhor”, Satã expressa sua resolução dedicada a um ambiente não invejado por Deus, onde ele e seus irmãos demoníacos poderão abraçar a sua merecida soberania. Após esse primeiro discurso, num diálogo contrastante com a linguagem entrecortada e titubeante do demônio Belzebu, o narrador miltoniano expressa a recepção que sua postura incólume tem sobre eles: vendo seu chefe não desesperar, eles encontram forças para se reestruturar. Porém, se o ambiente descrito por Milton é um ambiente caótico, fruto da explosão da queda que dá origem ao Inferno, também caótico é a interioridade demoníaca. “Dúvida”, “receio”, “paixão” e “remorso” contrastam com a “soberba usual” demonstrada pelo demônio. É também nessa passagem que nós, leitores, nos apiedamos dos anjos caídos. Esse sentimento se dá via expressão da própria piedade demonstrada por Satã, piedade essa que nos faz compreender a descrição de Taine sobre a configuração poética do demônio miltoniano, apesar da oposição apresentada por Mario Praz em A carne, a morte e o diabo na literatura romântica: Nas palavras de Taine, em Satã podemos perceber “esse heroísmo sombrio, essa dura obstinação, essa pungente ironia, esse braço orgulhoso e rijo que cerra a dor como uma amante, essa concentração de coragem invicta, que, curvada sobre si mesma, tudo encontra...!” (1996, p. 73). Embora Praz descorde de Taine, sobretudo por tentar estudar as influências de Milton para a composição de seu Satã, a nós interessa a leitura do crítico, pois ela realça o espírito forte, determinado, pujante da personagem, enquanto também demonstra sua fissura, sua dubiedade, sua relativa fragilidade, não advinda de pouca paixão mas de uma emotividade infinda. É nesse caráter de irredutibilidade e força, apesar da queda, que pretendemos contrastar a personagem satânica em relação o herói Guesa errante de Sousândrade. Sobre essa relação, Antonio Candido, mesmo criticando alguns dos elementos estilísticos do poeta, comenta a força da personagem brasileira, embora carregue em si algo de inquietante. Podemos relacionar esse inquietante com uma aura de nervosa incompletude, exemplificada na busca incessante por um lugar, por uma história, por um mito. Segundo ele, o poeta apresenta uma Poesia tensa e carregada de energia, desleixando os ritmos românticos e se realizando melhor no verso branco, não raro em poemas extensos, ao longo dos quais procura em vão a forma adequada. Um dos motivos de interesse da sua obra está nesse ar de procura, que, se não favorece a plenitude artística, testemunha em todo o caso uma lídima inquietação, elemento de dignidade intelectual nem sempre encontrada nos seus manhosos contemporâneos. Outro fator de interesse é a importância que a viagem assume, para ele, como estímulo da emoção. Os poemas são datados de vários lugares do Brasil e da Europa, sugerindo que a mobilidade no espaço o ia revelando a si mesmo, ao variar o panorama do mundo e aguçar a reflexão: uma procura formal somada a uma procura dos lugares, exprimindo no fim a procura do próprio ser. Esses movimentos tecem a contextura da sua poesia, onde encontramos com prazer, em lugar da mobilidade algo falaciosa dos ritmos, como em seus contemporâneos, a mobilidade espiritual de um drama. (sem data, p. 204)

O interessante no apontamento de Candido é que está associado não apenas ao Guesa personagem, ou a uma realização heroica mais próxima do século XX, mas também a própria constituição do poeta, sempre em mudança, inquieto, escrevendo uma poesia para ser lida cinquenta anos depois, ou seja, uma poesia de um só leitor contemporâneo, ele próprio. Tais “movimentos” de Sousândrade, sejam eles existenciais, geográficos ou poéticos, também podem indicar a relação com o incompleto personagem do poema de Milton. Sempre deslocado, protagonista de um poema onde deveria ser coadjuvante, Satã também é um ser errante, em busca

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interminável pela queda do outro, pela desgraça alheia que possa diminuir sua própria solidão. No caso do Guesa, percebemos na citação abaixo o modo como o poeta constrói o seu protagonista, que ao observar a natureza, observa também a sua própria paisagem interior: As balseiras na luz resplandeciam oh! que formoso dia de verão! Dragão dos mares, na asa lhe rugiam Vagas, no bojo indômito vulcão! Sombrio, no convés, o Guesa errante De um para outro lado passeava Mudo, inquieto, rápido, inconstante, E em desalinho o manto que trajava. A fronte mais que nunca aflita, branca E pálida, os cabelos em desordem, Qual o que sonhos alta noite espanca, “Acordem, olhos meus, dizia, acordem!” E de través, espavorido olhando Com olhos chamejantes da loucura, (...) Imagens do ar, suaves, flutuantes, Ou deliradas, do alcantil sonoro, Cria nossa alma; imagens arrogantes, Ou qual aquela, que há de riso e choro: Uma imagem fatal (para o ocidente, Para os campos formosos d’áureas gemas, O sol, cingida a fronte de diademas, índio e belo atravessa lentamente): Estrela de carvão, astro apagado Prende-se mal seguro, vivo e cego, Na abóbada dos céus, negro morcego Estende as asas no ar equilibrado. (O Guesa Errante, Canto III)

Na passagem, há alusão a paisagem iluminada, radiante que se vislumbra ao redor dessa embarcação marítima, na qual tanto o sol quanto as ausência de nuvens reforçam essa figuração de esplendor natural. Em contraste com isso, o herói que vislumbra o cenário é descrito como “sombrio”, “errante”, “mudo”, “inquieto”, “rápido”, “inconstante”, seus trajes em “desalinho”, “fronte mais que nunca aflita, branca e pálida”, cabelos em desordem, “espavorido”, tendo “olhos chamejantes da loucura” que impossibilitam o personagem de vislumbrar qualquer cenário ou imagem, a não ser a sua própria interioridade desolada. Nessa concepção, Guesa une o ideal romântico melancólico de Byron com o de Gonçalves Dias, ou seja, um herói que mescla algumas particularidades do romantismo europeu, como rebeldia e idealismo fracassado, com uma concepção nacional indianista. No poema, o herói é um nativo que tenta proteger os resquícios de sua cultura e que, percebendo sua derradeira destruição, torna-se decadente. A relação de Sousândrade com a poesia épica se dá primeiramente pela admiração que nutriu pela obra de Odorico Mendes, sobretudo de suas traduções da Odisseia e da Eneida. Mas foi no épico de Milton que poeta encontrou um modelo válido para a sua própria criação poética. Primeiramente, havia a relação entre a natureza brasileira e a concepção de paraíso original, relação já presente na Carta de Achamento do Brasil, de Pero Vaz de Caminha. Sousândrade, em artigo de 1872 escreve: “Ninguém penetra nas selvas do Amazonas que não encontre a primitiva inocência à imagem dos primeiros habitantes do Paraíso de Milton” (2003, p. 54). No entanto, devemos ressaltar que Sousândrade está interessado em indianismo, mas não em indianismo nacional ou patriótico. É por isso que o poeta escolhe como herói a vítima de um sacrifício mítico a ser perpetrado pelos índios muíscas da Colômbia, ampliando as fronteiras do indianismo brasileiro para uma temática sul-americana, amalgamando-o ao índio inca do Peru e ao muísca da Colômbia. Em movimento constante, o Guesa vai à corte brasileira, ao Amazonas, à Europa passando pela África e continua seu trajeto pela América do Norte, Central e do Sul, retornando ao

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solo nacional, para ali morrer. Em contraste com os heróis indígenas de Gonçalves Dias e José de Alencar, o Guesa é uma oposição ao ideal indígena então vigente. Sobre essa concepção de herói, em seu contraste com o herói anterior, na épica homérica, virgiliana e camoniana, Lobo afirma: É claro que a feição do herói é romântica, byroniana, autobiográfica, existencial, nos moldes individualistas modernos; o guesa é um personagem romântico, como o Childe Harold, de Byron, um rebelde que deseja um governo mais liberal para as nações modernas. Na epopéia moderna, vemos, assim, o conflito explicitado entre o desejo ilimitado do homem individualista e a estagnação institucional da sociedade. Tal não se dava na epopeia grega, na qual o herói era sempre o representante direto da pólis, do nomos (sociedade, comunidade) e do ethos (casa, moral). Odisseu é um herói-mito, um homem padrão, que, dominador, leva a palavra de Ítaca a todas as ilhas e reinos do mar Egeu. O herói moderno é outro: o profeta revolucionário e antissocial, que antevê um futuro ainda não alcançado pela massa, e talvez para sempre inalcançável. É um marginal iluminado. (ibidem, p. 94)

Abaixo da citação de Lobo, concentraremos nosso estudo na expressão “marginal iluminado”, em contraste com o herói miltoniano, no qual Satã tem essa iluminação proveniente da queda e de seu desespero mediante a impossibilidade de ascender à perfeição novamente. À margem do mundo, o anjo caído conhece coisas que nunca poderia vislumbrar do céu. Visto que nenhum outro anjo no Paraíso de Milton demonstra tanto fascínio e desejo pelos homens, Satã está também muito próximo da iluminação que apenas a materialidade pode oferecer. A queda do casal, uma queda motivada pelo desejo de mais conhecimento, também apresenta o mesmo paradoxo. Estão à margem do jardim, mas agora são deuses, sabendo a diferença entre o bem e o mal. Igual em Sousândrade, o Guesa é o herói à margem por excelência. Não tendo nacionalidade definida, nem moradia, é o errante que em busca de algo, obtém uma iluminação que só advém de uma viagem pelo bárbaro e pelo civilizado, pelo novo e pelo velho mundo, pelo monárquico autoritário e pelo democrático capitalista, em meio ao caos da selva e ao caos da cidade. Mas a relação com Milton vai mais longe, configurando-se na própria reorganização estrutural do poema, que acontece em 1884, quando o poeta morava nos Estados Unidos. Lobo afirma ser “difícil compreender por que procurou Londres para publicar seu livro” (ibidem, p. 56). Talvez a explicação esteja na reorganização do mesmo para corresponder à estrutura do poema miltoniano. Segundo Lobo, o principal elemento dessa correspondência está na abolição do espaçamento entre as estrofes, aproximando o poema ainda mais de Milton em sua versificação contínua. Um outro fator de contaminação estilística do poeta inglês na poesia do brasileiro está na própria estruturação frasal dos versos. Sousândrade, seguindo o estilo vérsico de Milton, opta pelas frequentes inversões sintáticas e pelos constantes enjambements (ibidem, p. 87). Entretanto, a influência da poesia miltoniana não está apenas na reestruturação estilística do poema, mas na própria concepção e realização do épico. O Inferno de Wall Street “constitui uma inserção tragicômica dentro de um poema épico-lírico”, conforme apontado pelos Campos, algo presente em Homero mas inconcebível na Épica clássica posterior, como em Virgílio ou Dante. Outra diferença é que, enquanto em autores como Homero, Virgílio, Dante e Camões ainda há uma superexaltação dos elementos político-culturais de seus poetas, o sentido trágico-épico dO Guesa está na busca por um sentido de um povo dominado e já destroçado, perto da extinção de seus valores primitivos. Nesse sentido, Sousândrade tem a influência direta de Milton, no qual o drama de seus protagonistas, Adão, Eva e Satã, tem por objetivo justamente refletir sobre sua queda, não sobre seu enaltecimento. Enquanto nos épicos clássicos e em Dante e Camões há uma projeção ascendente que culmina com o retorno/vitória do herói, em Milton e em Sousândrade não há retorno ou vitória possível. São personagens, caídos, decaídos, espiritualmente ou culturalmente, em busca de um sentido para a perpetração de suas existências. No entanto, apesar dessa relação estrutural entre os dois épicos ser válida, nosso interesse está mais em estudar como os respectivos protagonistas da obra de Milton e Sousândrade se estabelecem como novas representações de um pensamento que nasce entre os séculos XVII e XVIII, fruto do barroco: a representação do herói imperfeito. Lobo já havia percebido essa relação ao afirmar que se Milton buscou “humanizar a figura de Satã, mostrando seus conflitos interiores”, Sousândrade

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também decidiu “focalizar as diversas facetas da figura do herói, matizando-as de dúvidas e incertezas, como um anti-heroi, civilizador e civilizado, dominador e dominado” (ibidem, p. 79). É nesse ponto que pretendemos centrar nosso estudo dos poetas referidos. Após aludirmos a configuração do herói na épica anterior em contraste com a representação de Milton e Sousândrade, agora é necessário perceber o que diferenciava a visão desses dois poetas. Em Revisão de Sousândrade, Luiz Costa Lima, no estudo “O Campo de uma Experiência Antecipadora”, faz referência à capacidade de certos poetas de visualizarem e conceberem certas noções de realidade décadas antes de elas serem percebidas, nomeadas e conceituadas. Essa capacidade é chamada pelo autor de “campo visual da realidade” (Costa Lima, 2002, p. 463), que corresponderia à própria visão do poeta, mas não necessariamente a visão da comunidade na qual o poeta está inserido. Como Costa Lima resume na bem articulada máxima “A arte grega então sobrevive, porém desacompanhada, da forma grega de vê-la” (ibidem, p. 464), o que poderia explicar a obra de Sousândrade ter sido ignorada no seu tempo e ressurgir nas últimas décadas como obra pertinente, inquietante e passível de análise. Sousândrade, nesse sentido, foi “um grande poeta esmagado pelo clima colonial que o cercava”, nas palavras de Costa Lima, visto que a visão de mundo do período romântico brasileiro estava “condicionada por um sentimento de autopiedade. A experiência do mundo convertia-se assim em uma experiência de consumo, em uma naturofagia. Toda a realidade, a natureza, os elementos, os astros, era imolada em favor do eu” (ibidem, 466). O autor cita a obra de Gonçalves Dias e de Casimiro de Abreu como modelos dessa autopiedade sentimental que marca tanto o romantismo nacionalista ufanista quanto o romantismo melancólico, também associado à obra de Álvares de Azevedo. Se o nosso romantismo estaria centrado nessa autopiedade, nessa relação enviesada na qual o mundo massacra o eu lírico, ou, quanto muito, no qual o eu lírico expressa seu sofrimento por estar no mundo, a lírica de Sousândrade desvia dessas temáticas melancólicas. Seu Guesa não é pressionado pelo mundo porque ele não está diretamente conectado ao mundo como os homens de seu tempo. Como a própria angústia satânica de Milton é não fazer parte do mundo, a angústia do Guesa é, num certo sentido, ver o mundo de fora. E ao mesmo tempo, como Costa Lima argumenta, esse não estar diretamente relacionado com o mundo é o que faz com que o eu lírico aceite e se abra para o próprio mundo. Nesse sentido, tanto Milton quanto Sousândrade não estão interessados em expressar o que viria a ser chamada de autopiedade romântica. Antes, é em suas obras que tais poetas demonstram o momento preciso em que o ser, já carente e desassociado de ilusões, percebe que está só no mundo. Tal mundo, anteriormente dádiva conquistada e modificada pelo herói, torna-se agora uma realidade ultra-sentida que intensifica sua solidão, o que o faz vagar errante pelo mundo. Quer seja ele Satã ou Sansão, Guesa ou Adão, tal herói não mais sabe seu lugar no mundo e toda a sua reflexão está em tentar encontrar esse lugar. Desse modo, é nessa, e por meio dessa, reflexão que uma determinada visão da realidade se instaura, visão essa não mais ideal, não mais absoluta, como percebida na visão épica homérica, virgiliana, dantesca e camoniana. E é nessa visão que o novo poeta encontra seu ponto de choque e contraste para a expressão de uma nova visão de realidade. Tanto Milton quanto Sousândrade possuíam essa visualização da realidade enquanto impressão de um herói imperfeito, confuso, atormentado e à parte do mundo. A tradição que encontraram, seja ela épica, dramática ou lírica, permitiu a esses dois poetas trabalhar uma visão em especial. Milton fez isso por meio de seus heróis, um Sansão acorrentado e um Satã ludibriado, porém nunca confinados. Sousândrade fez isso com o seu Guesa em sua jornada errante e com o seu Adão, só verdadeiramente humano após a queda. Neste trabalho, tivemos por objetivo traçar um mapa de relações possíveis e prováveis entre as obras de Milton e Sousândrade, especificamente na configuração de seus heróis não heroicos. A partir dessa pesquisa, almejaremos perceber como a percepção poética dos dois autores pode ter uma relação possível com o que, mesmo no Romantismo e mais enfaticamente no Modernismo, convencionou-se chamar de anti-herói moderno.

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O TEXTO COMO ATIVIDADE HUMANA INTERATIVA: A MOBILIZAÇÃO DAS CAPACIDADES DE AÇÃO, ENUNCIATIVAS E LINGUÍSTICO-TEXTUAIS NA ESCRITA DO ALUNO Eneida Lúcia Garcia KLAUTAU (Universidade Federal do Pará) Suely Claudia Lobato MACIEL (Secretaria do Estado de Educação do Pará)

RESUMO: No ensino escolar da escrita, o professor não deve perder de vista a função sócio-interativa da linguagem, pois é a partir dela que se podem conduzir atividades didáticas em que o aluno compreenda que a forma e o conteúdo textuais emergem de uma situação específica de uso social da língua, ou seja, que os textos, orais ou escritos, são condicionados pelas circunstâncias sócio-comunicativas de sua produção. A concepção do texto como unidade de produção de linguagem situada, que veicula uma mensagem linguisticamente organizada, em relação de interdependência com as propriedades do seu contexto de produção e que tende a produzir um efeito de sentido sobre o destinatário (BRONCKART, 1999, p.71) favorece o trabalho do professor no sentido de desenvolver as capacidades de ação, enunciativas e linguístico-textuais do aluno e conscientizá-lo do uso dessas capacidades em suas práticas linguageiras cotidianas. PALAVRAS-CHAVE: ensino da escrita; função sócio-interativa da linguagem; capacidades linguageiras.

ABSTRACT: While teaching writing, the teacher cannot loose sight of the socio-interactive function of language, given the fact the such function is the starting point for conducting didactic activities which can help the student understand that textual form and content always arise from a particular situation of social usage of the language, that is, to understand that texts, whether oral or written, are conditioned by the sociocommunicative circumstances of their production. The concept of “text” as a unit of production of situated language, which transmits a linguistically organized message in a relation of interdependence with the properties of its context of production and impresses meaning upon its addressee (BRONCKART, 1999, p.71), favors the teacher’s work in the sense it helps the student develop his or her enunciative and linguistic-textual capacities, and understand the importance of the use of such capacities in everyday linguistic practices. KEY WORDS: teaching of writing; socio-interactive function of language; linguistic capacities.


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1. Um projeto de ensino da escrita Os estudos linguísticos contemporâneos colocam o professor frente a uma crescente exigência: é preciso desenvolver no aluno a sua capacidade de leitura e de escrita para que ele, como sujeito de atividades linguageiras cotidianas, consiga, pelo uso adequado da língua, atingir seus propósitos comunicativos. Travaglia (2003, p.24) nos esclarece que um bom usuário da língua vem a ser aquele que sabe “usar de modo adequado os recursos da língua para a construção/constituição de textos apropriados para atingir um objetivo comunicativo dentro de uma situação específica de interação comunicativa [...]”. Faz-se necessário, nesse sentido, que o professor dirija, em sala de aula, atividades didáticas que desenvolvam no aluno a percepção de que a língua é uma atividade sóciointerativa, por meio da qual, cotidianamente, ele tem a possibilidade de atuar sobre o outro, sempre com vistas a alcançar objetivos específicos.. Ao elaborarmos um projeto de ensino da escrita, pautamo-nos nessa concepção sóciointerativa da linguagem, pois entendemos que tal concepção favorece, inquestionavelmente, a aplicação de atividades de escrita que levem o aluno a perceber o condicionamento sócio-comunicativo de suas produções textuais, ou seja, a perceber que forma e conteúdo textuais emergem sempre de uma situação específica de uso da língua. A princípio, esse projeto foi concebido para ser aplicado no Ensino Médio, com carga horária de 16 horas, podendo, entretanto, em nosso entendimento, ser também aplicado nas duas últimas séries do Ensino Fundamental. Nosso objetivo seria levar o aluno a perceber a sua produção textual escrita como um agir comunicativo materializado linguisticamente, como um trabalho de escrita em que mecanismos e capacidades diversas são mobilizados simultaneamente, o que implicava desenvolver um projeto de ensino com objetivos específicos que o fizessem entender, dentre outros aspecto, que todo texto, por sua finalidade comunicativa e conteúdo veiculado, inscreve-se em um gênero de texto; que segmentos descritivos, expositivos, narrativos, etc. podem entrar na composição dos textos, com a possibilidade de predomínio de um deles; que as escolhas dos segmentos, na composição de um texto, decorrem, dentre outros fatores, da intenção comunicativa do enunciador e da situação particular de comunicação em que este e o seu interlocutor se encontram; que os interlocutores, na produção de textos, utilizam capacidades diversas; e que fatores também diversos, como os objetivos, os efeitos de sentido pretendidos e os papéis sociais que enunciador e destinatário desempenham em diferentes situações comunicativas, interferem na produção textual. É evidente que, em um projeto de ensino da escrita, o objetivo central dentro das atividades conduzidas em sala de aula sempre será o exercício da própria escrita do aluno, com vistas a se desenvolverem neste aluno capacidades tais que lhe permitam a produção de um texto coeso e coerente. Nesse sentido, fazia-se necessário uma fundamentação teórico-metodológica adequada para que se trabalhassem didaticamente essas diferentes capacidades mobilizadas nas produções textuais. Encontramos tal fundamentação nos estudos desenvolvidos por Jean-Paul Bronckart (1999), professor de didática de línguas na Universidade de Genebra, que centrou suas pesquisas na análise da estrutura e do funcionamento dos textos e nas relações destes com a atividade humana. Bronckart, (1999, p.15) esclarece que, apesar de seus estudos se inscreverem no quadro epistemológico geral do interacionismo social, eles compõem uma versão mais específica deste, à qual ele chama de interacionismo sociodiscursivo. Foi sob essa perspectiva teórica que se delinearam, no projeto, nossas ações de ensino da escrita. Para corroborar nossa opção de trabalhar com esse referencial teórico, citamos Bronckart (1999, p. 119) que, com relação ao texto, propõe uma lógica de sobreposição de camadas baseada no caráter hierárquico – ou, como também diz o autor, pelo menos parcialmente hierárquico – de qualquer organização textual: Concebemos a organização de um texto como um folhado constituído por três camadas superpostas: a infraestrutura geral do texto, os mecanismos de textualização e os mecanismos enunciativos. Essa distinção de níveis de análise responde adequadamente à necessidade metodológica de desvendar a trama complexa da

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Tema geral: Línguas e Literaturas: Diversidade e Adversidades na América Latina organização textual [...]. Os mecanismos de textualização, em particular as séries isotópicas de organizadores e de retomadas nominais, contribuem para marcar ou “tornar mais visíveis” a estruturação do conteúdo temático (plano geral que combina tipos de discursos e, eventualmente, sequências); portanto, pressupõem essa organização mais profunda que chamamos de infraestrutura. Quanto aos mecanismos enunciativos, [...] podem ser considerados como sendo do domínio do nível mais “superficial”, no sentido de serem mais diretamente relacionados ao tipo de interação que se estabelece entre o agente-produtor e seus destinatários.

Com base nessa concepção de organização textual proposta por Bronckart, propusemonos a elaborar planos de aula cujo principal objetivo seria primordialmente o de ensinar ao aluno, pela análise de sua própria escrita, como usar adequadamente – de acordo com os seus propósitos comunicativos e tendo em vista os efeitos de sentido pretendidos sobre o seu interlocutor – as suas capacidades de ação, enunciativas e linguístico-textuais, mobilizadas em toda e qualquer produção textual. Quanto ao planejamento das aulas e à maneira como poderíamos conduzir as atividades de produção e análise dos textos escritos, optamos (por também se coadunar com o objetivo central do nosso projeto) em seguir a orientação metodológica de Schneuwly & Dolz (2004), autores que propõem a utilização de sequências didáticas modulares como forma de trabalhar o texto oral e o escrito, desenvolvendo no aluno a maneira mais adequada de falar ou escrever numa dada situação de comunicação. 2. Um pouco sobre o interacionismo sociodiscursivo Dentro do quadro epistemológico proposto por Bronckart (1999) privilegia-se a análise de fatos de linguagem, o que, para o autor, é de primordial importância, já que é a partir da observação empírica dos textos que circulam socialmente que se podem perceber, de forma mais clara, como se dão as relações de interdependência entre as produções de linguagem e seus contextos sócioacionais. Como produtos da atividade humana, os textos surgem condicionados por necessidades, interesses e objetivos concernentes aos diferentes contextos sócio-históricos em que se encontram inseridos os falantes. Emerge daí a noção de espécies de texto ou gêneros de texto (carta, e-mail, telegrama, depoimento, romance, artigo, sermão, etc.), isto é, textos com características comuns que funcionam como modelo para a produção de textos similares, orais ou escritos. Segundo Bronckart (1999, p.137), as produções de linguagem se processam na interação com uma intertextualidade, já que essas espécies de texto “ficam disponíveis no intertexto como modelos indexados, para os contemporâneos a para gerações posteriores”. Bronckart (1999) pontua, ainda, que textos pertencentes a um mesmo gênero podem apresentar, em sua constituição, segmentos distintos. Por exemplo, dois textos produzidos dentro do gênero carta podem apresentar, dependendo do conteúdo temático, da situação de produção e dos propósitos comunicativos do enunciador, segmentos diversos (segmentos de relato, de argumentação, de diálogo, de narração, etc.). Isso ocorre porque a escolha dos segmentos, pelo falante, decorre de um “trabalho particular de semiotização ou de colocação em forma discursiva” (BRONCKART, 1999, p.76). A esses diferentes segmentos que compõem um texto, Bronckart (1999) chama de discurso e considera que, ao apresentarem fortes regularidades de estruturação linguística, deverão ser designados como tipos de discurso. A partir dessas colocações, o autor conclui que (1) reconhecemos um gênero textual – a carta, por exemplo – não pelos segmentos que compõem o texto, mas pelo uso sócio-comunicativo a que aquele texto se destina; (2) que as estruturas sintáticas relativamente estáveis presentes em um texto só podem ser observadas no nível dos segmentos; e (3) que são, portanto, os segmentos, e não os gêneros, que podem ser identificados com base em propriedades linguísticas específicas. Ora, como vimos acima, a escolha, por parte do falante, dos segmentos que irão entrar na composição do

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texto decorre de um trabalho particular de semiotização ou de colocação em forma discursiva de um conteúdo temático específico. Vimos, também, que um texto é produzido necessariamente dentro de um gênero e pode conter vários tipos de discurso. Acrescente-se, agora, que todo texto apresenta marcas provenientes das decisões tomadas pelo enunciador em função da situação de comunicação particular em que se encontra. Isso significa dizer que os interlocutores, ao produzirem seus textos, sempre serão levados a considerar certos fatores, tais como: o lugar social e o momento de sua produção textual, a posição social que desempenham na interação em curso, o conteúdo temático a transmitir e o efeito que o texto pode produzir no destinatário. As escolhas linguísticas do falante e, também, a escolha da organização sequencial de seu texto estão, portanto, sob influência direta de uma situação particular de ação de linguagem, em que três mundos – o físico, o social e o subjetivo – funcionam como representações interiorizadas a partir das quais ocorrerá a produção do texto. Acerca dessas representações interiorizadas, Bronckart (1999, p.92) pontua: Para produzir um texto, o agente deve então mobilizar algumas de suas representações sobre os mundos, efetuando-se essa mobilização em duas direções distintas. De um lado, representações sobre os três mundos são requeridas como contexto da produção textual (qual é a situação de interação ou de comunicação na qual o agente-produtor julga se encontrar?) e esses conhecimentos vão exercer um controle pragmático ou ilocucional sobre alguns aspectos da organização do texto. De outro lado, representações sobre os três mundos são requeridas como conteúdo temático ou referente (quais temas vão ser verbalizados no texto?) e vão influenciar os aspectos locucionais ou declarativos da organização textual.

Em relação ao contexto da produção textual, Bronckart (1999, p.93) o define como “o conjunto de parâmetros que podem exercer uma influência sobre a forma como um texto é organizado”. Acrescenta que essa influência ocorre necessariamente, mas não automaticamente, sobre a organização dos textos. Agrupa, então, esses fatores de influência em dois conjuntos. O primeiro reúne os fatores do mundo físico: o lugar de produção, o momento de produção, o emissor e o receptor. O segundo agrupa os fatores do mundo social (normas, valores, regras, etc.) e do mundo subjetivo (imagem que o sujeito do agir fornece de si mesmo), a saber: o lugar social, a posição social do emissor, a posição social do receptor e o objetivo da interação. Quanto ao conteúdo temático do texto, Bronckart (1999, p. 96) o define como “o conjunto das informações que nele são explicitamente apresentadas” e explica-nos que, tanto quanto os parâmetros do contexto de produção, as informações referentes ao conteúdo temático também são representações construídas pelo produtor textual, constituindo-se em conhecimentos que variam em função da experiência e do nível de desenvolvimento deste produtor. São essas representações sobre os três mundos interiorizadas pelo agente verbal, portanto, que irão guiar suas decisões linguísticas, como, por exemplo, a escolha do gênero de texto mais adequado às suas intenções comunicativas e a escolha dos tipos de discurso que entrarão na composição do seu texto. Em conclusão acerca de seu posicionamento teórico, Bronckart (1999, p. 107) coloca: Dessa orientação epistemológica decorre que as produções de linguagem, em primeiro lugar, devem ser consideradas em relação com a atividade humana m geral. Essa necessidade leva a delimitar, na atividade coletiva, as ações de linguagem, como unidades psicológicas sincrônicas que reúnem as representações de um agente sobre os contextos de ação, em seus aspectos físicos, sociais e subjetivos.

Essa perspectiva teórica coloca em evidência a importância de o professor promover, em sala de aula, atividades de produção de textos que propiciem ao aluno a reflexão “não apenas sobre os diferentes recursos expressivos utilizados pelo autor do texto, mas também sobre a forma pela qual a seleção de tais recursos reflete as condições de produção do discurso”. (PCN: 5ª a 8ª séries, p. 27-8).

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3. Bronckart e o folhado textual Em relação às capacidades de ação, enunciativas e linguístico-textuais mencionadas, sabemos serem elas mobilizadas simultaneamente no momento da produção textual. Entretanto, didaticamente, elas precisam ser trabalhadas em etapas, para que o aluno perceba, de forma consciente, essa mobilização. Nesse sentido, mais uma vez encontramos apoio teórico em Bronckart (1999), já que, para o referido autor, todo texto encontra-se organizado em três níveis, que definem o que ele chama de folhado textual: a infraestrutura geral do texto, os mecanismos enunciativos e os mecanismos de textualização. Ainda segundo o autor, “essa distinção de níveis de análise responde adequadamente à necessidade metodológica de desenvolver a trama complexa da organização textual” (BRONCKART, 1999, p.119). Bronckart (1999, p.120) explica que a infraestrutura é o nível mais profundo e “é constituído pelo plano mais geral do texto, pelos tipos de discurso que comporta, pelas modalidades de articulação entre esses tipos de discurso e pelas sequências que nele eventualmente aparecem”. Caracteriza-se a infraestrutura, portanto, pela organização linear do conteúdo temático, pela combinação de tipos de discurso e sequências. Em relação à sequencialidade, o autor faz referência ao trabalho desenvolvido pelo teórico J.-M. Adam, para quem a organização linear do texto é resultado de um trabalho de combinação e de articulação, por parte do produtor textual, de cinco diferentes tipos de sequências: narrativa, descritiva, argumentativa, explicativa e dialógica. Bronckart considera que a diversidade das sequências e a diversidade de suas modalidades faz a maioria dos textos apresentarem uma composição heterogênea. Nesse nível – da infraestrutura geral do texto – é mobilizada a capacidade de ação do falante, que precisa organizar textualmente um conteúdo temático. Sua primeira decisão será referente à escolha do gênero mais adequado aos seus propósitos comunicativos, o que irá acontecer de acordo com a situação particular de ação de linguagem em que se encontra e em consonância com suas representações interiorizadas. Dentro do gênero escolhido, ele organizará linearmente, então, o conteúdo temático, combinando tipos de discurso em sequências narrativas, explicativas, argumentativas, etc. Quanto aos mecanismos de textualização, Bronckart (1999) explica que estes consistem na conexão, na coesão nominal e na coesão verbal. Os mecanismos de conexão contribuem para marcar as articulações da progressão temática e são realizados por organizadores textuais (conjunções, advérbios, locuções adverbiais, etc.). Os mecanismos de coesão nominal têm a função de introduzir novos elementos no texto e assegurar a sua retomada ou a sua substituição, formando as cadeias anafóricas, cujas unidades constitutivas podem ser, por exemplo, os pronomes (pessoais, relativos, possessivos, etc.). Os mecanismos de coesão verbal, por sua vez, são essencialmente realizados pelos tempos verbais e são responsáveis pela organização temporal dos estados, acontecimentos ou ações verbalizados no texto. “Sua distribuição depende [...] dos tipos de discurso em que aparecem” (BRONCKART, 1999, p.127). Nesse nível – da textualização – é mobilizada a capacidade linguísticotextual do falante, que precisa criar as séries isotópicas que contribuem para o estabelecimento da coerência temática. Por fim, ao abordar os mecanismos enunciativos, Bronckart (1999, p.120) esclarece que estão “mais relacionados ao tipo de interação que se estabelece entre o agente-produtor e seus destinatários”. Eles contribuem para o esclarecimento dos posicionamentos enunciativos (vozes) e traduzem as diversas avaliações (modalizações) sobre certos aspectos do conteúdo temático. Nesse nível – dos mecanismos enunciativos – é mobilizada a capacidade enunciativa do falante, que precisa orientar a interpretação do texto pelo destinatário, o que irá acontecer pelo uso dos modalizadores textuais (deônticos, apreciativos, etc.) e pela presença de vozes (do autor empírico, sociais ou de personagens) expressas no texto. Como dissemos anteriormente, essas três capacidades – de ação, enunciativa e linguístico-textual – são mobilizadas simultaneamente no momento da produção textual, mas, didaticamente, precisam ser trabalhadas em etapas, para que o aluno perceba, de uma forma consciente, essa mobilização. Nesse

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sentido, para a aplicação de nosso projeto de ensino da escrita, escolhemos, como recurso didático, a proposta teórico-metodológica de Schneuwly & Dolz (2004). É o que veremos a seguir. 4. As sequências didáticas de Schneuwly & Dolz Os Parâmetros Curriculares Nacionais (PCN), quando abordam as Organizações Didáticas Especiais, propõem atividades por meio de planejamento modular, concebendo módulos didáticos como “sequências de atividades e exercícios, organizados de maneira gradual para permitir que os alunos possam, progressivamente, apropriar-se das características discursivas e linguísticas dos gêneros estudados, ao produzir seus próprios textos” (PCN: 5ª a 8ª séries, p. 88). Com essa percepção de que atividades sequenciadas seriam uma opção favorável para se trabalhar, dentro da perspectiva do interacionismo sociodiscursivo, com as capacidades supracitadas, encontramos, em Schneuwly & Dolz (2004), uma orientação teórico-metodológica adequada quanto à forma como poderíamos conduzir junto aos alunos atividades de produção de textos escritos. Da mesma forma que esses autores, entendemos ser o planejamento sequencial modular uma maneira adequada para desenvolver no aluno suas capacidades de ação, enunciativas e linguísticotextuais, sem, entretanto, perder de vista a unidade textual que advém da somatória desses três aspectos. É nesse sentido que Schneuwly & Dolz (2004, p. 97) consideram que “uma sequência didática tem, precisamente, essa finalidade de ajudar o aluno a dominar melhor um gênero de texto, permitindo-lhe, assim, escrever ou falar de maneira mais adequada numa dada situação de comunicação”. Como estrutura de base, a sequência didática proposta pelos referidos autores apresenta como componentes: a apresentação da situação, a produção inicial, os módulos e a produção final. O primeiro momento – a apresentação da situação – segundo Schneuwly & Dolz (2004, p. 99), é aquele “em que a turma constrói uma representação da situação de comunicação e da atividade de linguagem a ser executada”. Esse é um momento de extrema importância, visto ser o primeiro contato dos alunos com a atividade verbal que norteará as produções textuais a serem posteriormente executadas por eles. Por isso é essencial, já nesse instante, colocar para o aluno algumas questões importantes, tais como: qual exatamente a situação de comunicação apresentada? Quem são os agentes verbais envolvidos nessa situação específica? Que função social eles ocupam dentro dessa situação? Quais os objetivos ligados a essa atividade de linguagem? O segundo momento da sequência didática é a produção inicial, quando, após a apresentação da situação, o professor busca, junto aos alunos, a realização de uma primeira atividade de produção (oral ou escrita) textual, a fim de que possa “circunscrever as capacidades de que os alunos já dispõem e, consequentemente, suas potencialidades” (SCHNEUWLY; DOLZ, 2004, p.101). Esse é o momento em que o aluno, por dar início ao seu fazer, começa a perceber as suas dificuldades em relação ao objeto de aprendizagem, no caso, o texto escrito. Para o professor, esse é o momento de começar a avaliar e orientar. Os módulos, terceiro elemento da sequência didática, subdividem-se em etapas nas quais o professor deve trabalhar as dificuldades de escrita dos alunos e, ao mesmo tempo, fornecer-lhes instrumentos para superá-las. Nesse sentido Schneuwly & Dolz (2004, p.104) esclarecem que a produção textual, oral ou escrita, “é um processo complexo, com vários níveis que funcionam, simultaneamente, na mente de um indivíduo”. Para esses autores, existem quatro principais níveis envolvidos em uma produção textual: a representação da situação de comunicação, a elaboração dos conteúdos, o planejamento do texto e a realização do texto. Acrescentam que, em cada um desses níveis, o aluno se depara com problemas específicos que precisam ser resolvidos, também simultaneamente, o que os leva à defesa da modularidade como instrumento metodológico adequado que possibilita ao professor trabalhar em etapas, problemas diversos relativos aos vários níveis de funcionamento da linguagem. Por fim, como último elemento da sequência didática, temos a produção final, a reescritura do texto, que oferece ao aluno, segundo Schneuwly & Dolz (2004, p.106), “a possibilidade de pôr em prática as noções e os instrumentos elaborados separadamente nos módulos”.

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Para evidenciar ainda mais a importância dessa etapa da sequência didática em que o aluno deve reescrever seu texto, citamos Riolfi (2008, p.140-141), que pontua: Parece-nos que o desafio para o professor nos dias atuais é, inicialmente, construir leitores de si mesmos, dos próprios escritos. Não é necessário desenvolver uma pesquisa acurada para chegar à conclusão de que alunos da segunda etapa do Ensino Fundamental e do Ensino Médio, por exemplo, acreditam que produzir um texto é simplesmente pegar um papel, uma caneta, sentar numa carteira, escrever e entregar para o professor. Não há compreensão de que a escrita é produto de reflexão, de trabalho com a linguagem. [...] Escrever e reescrever: esse é o movimento que o aluno precisa aprender. [...] Para levar o aluno a fazer isso, faz-se necessário abrir portas para tratar dos problemas da escrita.

5. Nosso procedimento didático Ao elaborarmos um projeto ancorado no interacionismo sociodiscursivo de Bronckart e pautado na metodologia das sequências didáticas propostas por Schneuwly & Dolz (2004), julgamos ter efetuado esse movimento, referido por Riolfi, de abrir portas para tratar dos problemas da escrita. Nesse sentido, nosso procedimento didático está assim constituído: Apresentação da situação comunicativa e primeira produção escrita: Produção escrita a partir de uma situação interlocutiva em que o aluno precise defender-se. Carga Horária: 2h/aula Objetivo Geral: Produção de texto escrito. Objetivos específicos: expressar as representações interiorizadas dos parâmetros da situação de comunicação apresentada e do conteúdo; usar segmentos, tipos de discurso e sequências; usar mecanismos enunciativos e de textualização. Conhecimento prévio: representações interiorizadas dos parâmetros da situação de comunicação apresentada, do conteúdo, dos tipos de segmentos, de discursos e de sequências; noção dos mecanismos de textualização e enunciativos. Materiais e equipamentos necessários: quadro, giz/pincel, caderno, caneta, lápis, borracha. Avaliação: verificar nos textos escritos as capacidades de ação, enunciativas e linguístico-textuais do aluno. Metodologia: produção de um texto escrito com base na seguinte situação de comunicação: um aluno agrediu verbalmente um professor em sala de aula, foi levado à presença da direção escolar e terá de apresentar a esta, por escrito, sua defesa.

Nesse momento não estabelecemos em que gênero (carta, requerimento, bilhete, ofício, etc.) o aluno deveria inscrever seu texto, pois a escolha do gênero texto já seria o exercício de sua capacidade de ação de optar por um gênero que julgasse mais adequado às suas intenções comunicativas. Pelo mesmo motivo, também não estabelecemos se o texto seria narrativo, expositivo ou descritivo, pois sabemos que diferentes segmentos (descritivos, expositivos, narrativos, etc.) podem entrar na composição dos textos e que as escolhas de tais segmentos decorrem, dentre outros fatores, da intenção comunicativa do enunciador e da situação particular de comunicação em que este e o seu interlocutor se encontram. Dessa forma, também o aluno estaria já exercitando sua capacidade de ação. A expectativa é de que, pela finalidade comunicativa apresentada, o gênero privilegiado seja a carta. Módulo I: Representações das formações sociais dos parâmetros da situação interlocutiva apresentada. Carga Horária: 2h/aula Objetivo Geral: Conscientizar o aluno de sua capacidade de ação. Objetivos específicos Identificar os agentes sociais, o lugar social e o objetivo da interação. Conhecimento prévio As representações interiorizadas dos parâmetros da situação de comunicação apresentada. Materiais e equipamentos necessários quadro, giz/pincel, caderno, caneta, lápis, borracha, textos dos alunos. Avaliação: Avaliar a adequação das representações que os alunos possuem da situação de comunicação apresentada. Metodologia: Comentários acerca dos parâmetros da situação de comunicação apresentada (agentes sociais, espaço social e objetivo); levar os alunos a perceberem que a produção de outro texto defensivo, considerando outros parâmetros de comunicação (um texto defensivo dirigido a sua mãe, por exemplo) implicaria outras decisões relativas à sua escrita.

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Anais do II Congresso Internacional de Estudos Linguísticos e Literários na Amazônia (CIELLA) Módulo II: Compreensão da infraestrutura geral do texto. Carga Horária: 2h/aula Objetivo Geral: Compreender a infraestrutura geral do texto. Objetivos específicos: identificar, em textos dos alunos: a organização do conteúdo temático; os segmentos (descritivos, narrativos, expositivos e de relato) e sua configuração discursiva. Conhecimento prévio: representações do conteúdo temático, dos tipos de discurso e de sequências. Materiais e equipamentos necessários: quadro, giz/pincel, caderno, caneta, lápis, borracha, textos dos alunos. Avaliação Avaliar as representações do conteúdo, o uso de segmentos, de tipos de discurso e de sequências. Metodologia Comentários acerca da infraestrutura geral do texto (organização do conteúdo temático, o uso de segmentos, de tipos de discurso e de sequências). Módulo III: Reconhecimento de mecanismos de textualização. Carga Horária: 2h/aula Objetivo Geral: Conscientizar o aluno do uso dos mecanismos de textualização. Objetivos específicos: Reconhecer, em textos dos alunos, mecanismos de textualização (conexão, coesão nominal e coesão verbal). Conhecimento prévio: noção de mecanismos de textualização. Materiais e equipamentos necessários: quadro, giz/pincel, caderno, caneta, lápis, borracha, textos dos alunos. Avaliação: Avaliar se os alunos conseguem identificar os mecanismos de textualização nos textos selecionados para análise. Metodologia: Identificação, nos textos selecionados, dos mecanismos de textualização.

Para desenvolver as atividades desse módulo, o professor deverá selecionar previamente alguns textos dos alunos que exemplifiquem os usos, adequados e/ou inadequados, dos mecanismos de textualização. Módulo IV: Reconhecimento de mecanismos enunciativos. Carga Horária: 2h/aula Objetivo Geral: Conscientizar o aluno do uso dos mecanismos enunciativos. Objetivos específicos: Reconhecer, em textos dos alunos, mecanismos enunciativos (vozes e modalizações). Conhecimento prévio: noção de mecanismos enunciativos. Materiais e equipamentos necessários: quadro, giz/pincel, caderno, caneta, lápis, borracha, textos dos alunos. Avaliação: Avaliar se os alunos conseguem identificar os mecanismos enunciativos nos textos selecionados. Metodologia: Identificação, nos textos selecionados, dos mecanismos enunciativos. Módulo V: Exibição de um filme. Carga Horária: 2h/aula Objetivo Geral: exibir um filme que os agentes verbais produzam textos defensivos em situação comunicativa “Tribunal de Júri”. Objetivos específicos: Perceber o processo de mobilização, por parte do enunciador, das capacidades de ação, enunciativas e linguístico-textuais em uma situação de comunicação institucionalizada. Conhecimento prévio: Conhecimentos relativos às capacidades de ação, enunciativas e linguístico-textuais mobilizadas. Materiais e equipamentos necessários: data-show, aparelho DVD e filme. Avaliação: Avaliar se os alunos conseguem perceber que a produção textual está vinculada à prática das capacidades trabalhadas. Metodologia: exibição do filme; comentários sobre a situação defensiva do filme. Produção final: nova produção do texto escrito considerando a mesma situação de interlocução apresentada na primeira aula. Carga Horária: 2h/aula Objetivo Geral: Produzir um texto defensivo considerando a mesma situação interlocutiva apresentada na primeira aula. Objetivos específicos: Possibilitar ao aluno a prática textual consciente no que se refere à mobilização de suas capacidades de ação, enunciativas e linguístico-textuais.

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Tema geral: Línguas e Literaturas: Diversidade e Adversidades na América Latina Conhecimento prévio: Conhecimentos relativos às capacidades de ação, enunciativas e linguístico-textuais mobilizadas em uma produção textual. Materiais e equipamentos necessários: caderno, caneta, lápis, borracha. Avaliação: Avaliar se houve uma mobilização mais consciente, por parte do aluno, de suas capacidades de ação, enunciativas e linguístico-textuais na segunda produção escrita. Metodologia: Promover atividade de produção textual. Aula final: Comparação de aspectos dos dois textos produzidos pelos alunos durante a aplicação do projeto. Carga Horária: 2h/aula Objetivo Geral: Comparar aspectos (alguns mecanismos mobilizados ou não) da primeira e da segunda produção textual dos alunos. Objetivos específicos: verificar, a partir da comparação desses aspectos, se ocorreram mudanças positivas na segunda produção do texto defensivo. Conhecimento prévio: Conhecimentos relativos às duas produções textuais. Materiais e equipamentos necessários: os textos dos alunos. Avaliação: Avaliar quais mudanças em sua escrita os alunos percebem ao compararem suas duas produções textuais. Metodologia: comparar as produções textuais.

6. Algumas considerações finais Se nós entendemos que uma ação de linguagem é uma base de orientação a partir da qual o agente-produtor toma um conjunto de decisões para produzir o seu texto, é preciso também levar o aluno a compreender esse processo. Uma atividade favorável a essa compreensão é a análise, por exemplo, de mecanismos enunciativos mobilizados no texto, como talvez, parece, é provável, nem sempre, às vezes, que denunciam a posição do produtor diante do assunto tratado. O professor tem, aí, a possibilidade de trabalhar com as representações interiorizadas do aluno com relação ao seu dizer comunicativo: nesse caso, ao usar os mecanismos enunciativos citados, temos a imagem de um produtor que quer eximir-se da responsabilidade do dito, deixando subtendido, pelo uso desses mecanismos, a sua não responsabilidade frente ao que está dizendo, ou seja, esse produtor não se posiciona efetivamente em relação às informações veiculadas em seu texto. Já da análise de um texto que apresenta mecanismos de textualização, como o uso de itens verbais condizentes com a norma culta, para relacionar as orações e estabelecer relações anafóricas nominais, o professor pode levar o aluno a compreender que esse texto foi produzido em situação formal, como a de elaboração de uma monografia, por exemplo, em que o produtor do texto, conhecedor das regras e das condições de apresentação desse tipo de texto, assim como de sua finalidade, preocupa-se em, por meio dos mecanismos adequados de textualização, proceder ao encadeamento e à ordenação das idéias abordadas e expostas no texto. É um produtor, portanto, que, conscientemente, utiliza os mecanismos de textualização necessários para produzir um texto gramaticalmente correto em situação formal de uso da língua. Para concluir esse entendimento acerca de como deveria se processar o ensino escolar da escrita, novamente recorremos a Riolfi (2008, p. 136), que muito adequadamente coloca que tanto a prática mecânica das redações escolares (cuja razão não é outra senão a de mero cumprimento de uma tarefa) como a produção de textos que versam sobre temas engajados do ponto de vista social e político (educação, fome, corrupção, violência, etc.), cujo objetivo é discutir assuntos relacionados ao cotidiano do aluno, não privilegiam o trabalho com a linguagem, ou seja, o trabalho, como aqui defendemos, com os mecanismos envolvidos e mobilizados em toda e qualquer produção textual. Se, por meio deste projeto, conseguimos efetuar pelo menos um leve movimento de abrir algumas pequenas portas para tratar dos problemas da escrita (RIOLFI, 2008, p. 141), é sinal de que estamos no caminho certo.

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Referências BRASIL. Secretaria de Educação Fundamental. Parâmetros Curriculares Nacionais: terceiro e quarto ciclos do ensino fundamental: Língua Portuguesa. Brasília: MEC/SEF, 1998. BRONCKART, J.P. Atividade de linguagem, textos e discursos: Por um interacionismo sócio-discursivo. São Paulo: EDUC, 1999. DOLZ, SCHNEEUWLY; COLABORADORES. Gêneros orais e escritos na escola. São Paulo: Mercado da Letras, 2004. RIOLFI, C. ET AL. Capítulo 9. Problemas comuns no processo de ensino da escrita. In: Ensino de Língua Portuguesa. São Paulo: Thomson Learning, 2008. p.135-158. TRAVAGLIA, Luiz Carlos. Gramática: Ensino Plural. São Paulo. Cortez, 2003.

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O CÂNONE DE JOSÉ VERÍSSIMO E A AUSÊNCIA DA LITERATURA DA AMAZÔNIA1* Érika Guiomar Martins de AQUINO (Universidade Federal do Pará)

RESUMO: O estudo vai apresentar os resultados obtidos por meio da execução do plano de trabalho que objetivou levantar os autores amazônicos e suas obras no contexto da História da Literatura Brasileira formulada por José Veríssimo. Para tanto, foram relacionados os autores literários ao cânone da literatura brasileira do final do século XIX e início do século XX e abordados conceitos estéticos e ideológicos apoiados na história da recepção da literatura brasileira e universal. Na pesquisa, foi articulada a abordagem da produção literária da Amazônia no contexto nacional e foi constatado que os autores amazônicos, da época recortada pela pesquisa, foram excluídos da literatura brasileira por uma questão de recepção de suas obras, poucos eram os leitores fora do contexto regional das produções amazônicas e para estar no mérito do cânone tinham que estar na condição de literatura nacional. PALAVRAS-CHAVE: José Veríssimo; História da Literatura; Literatura da Amazônia.

ABSTRACT: The research will present the results obtained by the plan’s execution of work that intended exalt the amazonics authors and your works in the context of the story of the brazilian literature, formulated by José Veríssimo. For this became possible, were related the literalies authors to the canon of the brazilian literature in the end of the century XIX and the begin of XX and broached esthetics and ideologics conceptions supported in the history of reception of the universal brazilian literature. In the research was articulated the subject of Amazonia’s literary in the national context and was evidenced that the amazonics authors in their times were excluded of the brazilian literature for a question of reception of your works. There were a small quantity out of the regional context of amazonics productions and for being in the merit of canon they had to be in the condition of national literature. KEY WORDS: José Veríssimo; History of literature; Amazonia’s literature. Este texto é uma versão adaptada do meu Trabalho de Conclusão de Curso que se originou da pesquisa feita na Iniciação Científica (PIBIC – CNPq 2007-2009). Inicialmente o título do texto era “O Cânone de José Veríssimo e a Presença da literatura da Amazônia”, mas pelo fato dessa presença praticamente não existir, mesmo sendo um crítico oriundo da região, segui o conselho da Profa. Dr. Sônia Araújo da Faculdade de Educação, a qual fez parte de minha banca examinadora, em colocar sem receio a palavra ausência, correspondendo de fato ao teor do trabalho. Chamo ainda atenção para outro ponto do título, a designação “Literatura da Amazônia”, utilizado nos termos exposto por Fernandes (2005, p. 178-189) no artigo Literatura Brasileira de Expressão Amazônica, Literatura Amazônica ou Literatura da Amazônia?. Desse modo, nas palavras do autor, “a Amazônia é a origem e causa desse tipo de produção literária que funda um imaginário pautado em sua paisagem e identidade, transitória entre o local e o universal, mas, atente-se, a Amazônia é o ponto de partida e não um fim em si mesmo”. (2005, p. 189).

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1. Introdução Falar de José Veríssimo significa resgatar parte de nossa história no que diz respeito ao pensamento literário no Pará. Permite-nos compreender o processo de formação do pensamento literário a da percepção da produção nacional. Como povo colonizado, muito do discurso do colonizador imbricou-se e o próprio povo daqui, via-se como atrasado por razões históricas de nação colonizada. O estudioso aderiu aos seus primeiros trabalhos de feição cultural este discurso. Atribui-se a João Alexandre Barbosa os primeiros estudos mais detalhados sobre José Veríssimo, pois escreveu como tese de doutorado A tradição do impasse: linguagem da Crítica e Crítica da linguagem em José Veríssimo. Além disso, possui dois artigos sobre o autor no livro Alguma Crítica dos quais temos somente a notícia, pois não conseguimos adquiri-los. Barbosa também selecionou e organizou textos do crítico com o intuito de explicitar o conceito de literatura de José Veríssimo, sua orientação crítica, suas formulações teóricas e sobre a cultura brasileira. Na introdução do livro organizado por Barbosa, o autor tece considerações que se assemelham a um estudo baseado na Teoria da Recepção, sem contudo deixar claro se a teoria era base de seu estudo. Barbosa (1977) diz “a leitura que se propõe de José Veríssimo deve levar em conta, simultaneamente, a posição de seus textos dentro do contexto histórico-cultural, neste caso permitindo uma abordagem ampla da série literária, e a especificidade de sua resposta aos problemas e questões com que se defronta”. Dessa maneira, o autor propõe articular diacronia e sincronia, superando a contemplação de uma ou de outra e percebendo o aspecto do desenvolvimento literário com relação ao processo histórico em geral. Assim, argumenta: “Creio que a melhor maneira de introduzir o leitor de hoje a estes textos de José Veríssimo é começar por uma pergunta direta, incisiva: qual a importância do crítico no quadro das nossas ideias acerca da nossa literatura”? (Barbosa, 1977). José Veríssimo tem um papel relevante para a compreensão da literatura nacional e da trajetória da crítica nacional. E pautando-se em Jauss o crítico antes de ser crítico é, também, um leitor e vivenciador de um momento histórico A história da literatura é um processo de recepção e produção estética que se realiza na atualização de textos literários por parte do leitor que os recebe, do escritor, que se faz novamente produtor, e do crítico que sobre eles reflete. (1994, p. 25)

Portanto, a leitura de um texto é pautada por certos aspectos como meio social, idade, gosto individual, que podem estar relacionados à época, competência linguística, formação, conhecimento prévio. Desse modo, José Veríssimo, também apresenta estes aspectos refletidos nos seus argumentos. Por que incluir ou não determinada literatura no cânone brasileiro? Nesta seleção estava envolvida a recepção que o crítico fazia das obras, logo possuía argumentos para enquadrá-las ou não. Assim, construía suas frases de julgamento influenciadas pelo seu horizonte de expectativa, que não o deixou reconhecer certas obras que fugiam a seu tempo, apresentando configurações que projetavam o futuro. 2. O historiador e crítico literário: José Veríssimo e o contexto histórico-literário José Veríssimo nasceu em Óbidos, no Estado do Pará, em abril de 1857, filho de José Veríssimo Dias de Matos e Ana Flora Dias de Matos. Começou seus estudos na região Norte. Mudouse para o Rio de Janeiro aos 12 anos o que data 1869 e por lá continuou sua formação, no entanto, por motivo de doença, teve de interromper os estudos e voltar para a província, retornou à capital do país em 1891 e lá residiu até falecer em 2 de fevereiro de 1916. O século XIX para o século XX foi um período de grandes mudanças e inovações: transição do período colonial para o período nacional, estabelecimento da imprensa em 1808 em consequência da sede da monarquia portuguesa ter sido transferida para o Brasil (por meio dela teve-se a possibilidade e a facilidade de publicar trabalhos de toda natureza); o romantismo com seus ideais de liberdade, igualdade e fraternidade (ainda existia no Brasil a escravidão; abolida em 1888), o surgimento das

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filosofias positivistas e dos ideais naturalistas. Veríssimo viveu na época em que as ideias do liberalismo não condiziam com a realidade escravocrata da sociedade brasileira. Era um país independente, mas dependente do trabalho escravo e do mercado externo. Era presente o raciocínio econômico burguês apesar de ser um país destinado à produção agrícola baseada no trabalho escravo. O Brasil procurava imitar a realidade europeia nos modos, nas roupas, na urbanização, nas ideologias. Conforme Schwarz “Ao longo de sua reprodução social, incansavelmente o Brasil põe e repõe ideias europeias, sempre em sentido impróprio” (2003, p. 29). Esse sentido impróprio foi chamado de “ideias fora do lugar”. Participante desse contexto e da elite intelectual da época, José Veríssimo foi um dos colaboradores ativos das questões literárias que rodeavam a crítica do período. Acompanhou uma gama de transformações, como a independência do Brasil, e o país, com esta proclamação, buscou se firmar cada vez mais como nação livre de influências estrangeiras, o que se sabe impossível, pois a condição de colônia leva ao encontro de culturas que acabam se misturando. O crítico acompanhou tal período com um discurso fortemente nacionalista, mas que não reconhecia, a princípio, que na mistura de raças se encontrava a verdadeira feição do nacional. Buscar provar que esta ou aquela raça eram melhores não era caminho para se chegar a uma identidade. No contexto recente, de uma cultura letrada, se comparada às nações colonizadoras, era difícil, realmente, falar em tradição. Não é simplesmente a autonomia política e a separação geométrica que fazem uma nacionalidade; são as suas tradições, a sua língua e o seu território em primeiro lugar e depois as suas crenças, as suas ideias, os seus costumes, as suas leis, etc. A nós faltam-nos a tradição e a língua. Nascidos ontem de um povo e uma raça selvagem, não temos nem tradição nem língua; o que temos é tudo português, embora um pouco modificado pela influência do elemento indígena. (apud BARBOSA, 1977, p. 155).

A expressão “O que temos é tudo português” reflete o eurocentrismo que reunia território, pessoas, experiências, moldando-as a seu gosto, unificando a multiplicidade e excluindo identidades diferentes. Escrita e saber, sempre vêm relacionados ao poder e funcionam como uma arma para a dominação ao determinarem papeis sociais. Eis o reclame de Veríssimo: o português não representa a nação brasileira e nem o indígena representava a tradição desejada de uma cultura civilizada, mas o primeiro tinha a tradição europeia que se impunha no novo território. José Veríssimo demonstrou, também, preocupação com os rumos da literatura, tanto das produções estéticas quanto das produções críticas. Um de seus enfoques foi a busca pelo o que no momento era uma questão universal e ontológica: o que é literatura? E partindo para uma discussão mais específica: o que caracterizaria uma produção nacional, buscando uma identidade em comparação com a literatura estrangeira. A palavra-chave seria identidade. Para o crítico deveriam ser evitados certos estrangeirismo, repudiava sobretudo os franceses, pois acreditava poder haver uma cultura brasileira livre dessas influências. Na obra Letras e Literatos - que seria no projeto original a continuação das séries de Estudos de Literatura Brasileira - publicada após sua morte em 1936, nos diz: “Das principais correntes filosóficas e sociais que ultimamente agitaram o pensamento europeu e as literaturas europeias, nenhuma teve aqui eco demorado e forte” (1936, p.8). Isso evidencia o que o autor pontuou como ausência de tradição - a literatura brasileira padecia do problema de estar sempre se reiniciando e nascendo com “germes da Europa”. Percebese aqui um forte nacionalismo, o que não poderia ser diferente, num momento em que todo país procurava manter com força total suas peculiaridades, mostrando para o resto do mundo autonomia e identidade próprias. No seu primeiro livro Primeiras Páginas: viagens no sertão, quadros paraenses, estudos de 1878, relata sua insatisfação diante do conhecimento produzido no Brasil em contraposição a críticos e teóricos estrangeiros. Por causa dessa fragilidade e sentindo-se, talvez, aquém das grandes produções, justifica o trabalho da juventude ressaltando sua debilidade: A maior parte d’elle, ou antes todo, foi escripto quando o autor era victima de uma enfermidade, que, além de enfraquecer-lhe o espírito, veda-lhe todo esforço, todo trabalho. Foi violando as prescripções médicas que o escreveu. Estes prohibiram-n’o de estudar. Sem estudo é impossível produzir nada bom. (1878, p. 1).

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A imprensa era o espaço propício para divulgação do que se produzia de conhecimento, espaço para se exercer a crítica literária, onde, não raras vezes encontravam-se desafetos, intelectuais discutindo ideias e contradizendo uns aos outros. Os textos deste primeiro livro foram publicados primeiramente em folhetim em 1877 e posteriormente foram reunidos para compor o livro lançado em 1878, logo após a volta de José Veríssimo a Belém. Nesse momento, Veríssimo reconhece o Brasil, voltando-se para uma concepção biológica da história, como uma criança que ainda precisa aprender a caminhar sozinha: O Brasil precisa romper as faixas que ligam-no ainda à Europa. Não basta afirmar que somos um povo independente com a carta de alforria de 29 de agosto de 1825 na mão. É preciso mais. Cumpre com as nossas letras, a nossa ciência, as nossas ideias, os nossos costumes tenham uma feição própria. (apud BARBOSA, 1977, p. 155).

Era preciso amadurecer. Como nativo desta região, desejava ligar a Amazônia ao resto do Brasil, intelectualmente, mas via nas características do caboclo amazônico a falta de uma cultura letrada, de comportamento civilizado, o que afastava tal possibilidade. De certa forma a província o choca em seu retorno. Em viagem a Breves, ao retornar ao Pará, comenta que o povo prefere comer peixe seco (sem tempero ou acompanhamento) a um peru bem temperado. Em outro trecho diz: A humanidade cerca-os por todos os lados com seu cortejo de doenças. E dentro nenhuma indústria, nem um trabalho, nem um esforço para sair de semelhante condição! São verdadeiros semi-selvagens que, quando o vapor passa, correm todos à margem, as crianças núas, a mulheres andrajosas, os homens seminús. E, talvez, a essa hora esteja a panela com o mingáo de pacova, que lhes será o alimento hoje, como já foi hontem e há de ser amanham! (1878, p. 34).

Daí o interesse pela educação para promover valores no sujeito: É preciso aprender com a natureza que junto ao veneno põe o antídoto. Seria belo de vêr junto á sala onde se julga dos erros humanos, a sala onde ha os preservativos dos mesmos erros. As bibliotecas populares são grandes fontes de luz e n’este paiz principalmente, onde os livros são tão caros, é que ellas são immensamente proveitosas. (1878, p. 14-15).

No trecho anterior é presente a ideologia positivista influenciando a ideologia do crítico. Não que a ideia de construir bibliotecas seja meramente positivista, mas a ideia por trás sim, pois revela a urgência do conhecimento científico que só pode ser alcançado por meio da leitura e do estudo apurado, características que para Veríssimo o caboclo precisava aprender, mas faltava-lhes a ambição. Faltava aos brasileiros, especialmente aos do norte, cultura, entendendo-se esta como sinônimo de comportamento civilizado. José Veríssimo enfatiza em suas obras a importância do trabalho científico e que no Brasil faltava o rigor científico. Ao procurar razões para isso, atribuiu tal deficiência à raça que herdou as piores qualidades de seus ascendentes, ficando com a indolência para o trabalho e para o estudo. A vida dos habitantes dos sítios é a mesma aqui [Monte Alegre] que a dos outros do vale amazônico. Reina entre seus habitantes - Caboclos ou tapuios - como indistintamente os chamam, o mesmo fatalismo embrutecedor, essa indolência nociva e a falta completa de ambição de um viver melhor. (1878, p.20).

No primeiro momento de seus estudos, percebe-se um discurso influenciado pela ideia de raça e natureza tão difundida no momento. O nosso gênio meridional, ajudado pelo clima e pelas nossas condições sociais, não deixou que os poetas brasileiros tentassem com vantagem, um gênio de poesia mais severo, e mais difícil também, do que o lirismo todo pessoal que forma a principal feição do caráter literário de nossos poetas. (apud BARBOSA 1977, p.157).

Desse modo, resumiu a literatura a uma condição natural. Para ele a literatura deveria estar ligada aos estudos etnológicos “foi este estudo etnológico que a nossa literatura não soube ou não quis fazer, não podendo estar, por isso, habilitada a compreender nosso espírito de raça” (apud BARBOSA 1977, p. 161). Ventura (1991, p. 41) comenta:

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Tema geral: Línguas e Literaturas: Diversidade e Adversidades na América Latina Introduziu-se, na literatura e na crítica brasileira, uma visão exótica ou um olhar de fora, que trouxe uma imagem negativa da sociedade e da cultura local, expressa na oscilação entre ufanismo e cosmopolitanismo, na tensão entre a ideologia civilizatória e o projeto nacionalista.

No livro Primeira páginas, Veríssimo conceitua poesia e poeta tomando como referência o social, consequentemente pensar literatura no princípio de seus estudos era pensar como uma configuração da sociedade atual àquela época. “A poesia é hoje objetiva, isto é, tem um fim, uma missão [...] o poeta tem também um papel social a desempenhar: é um indivíduo, é um cidadão” (apud BARBOSA, 1977, p. 156). Temos a combinação de um método etnológico com o critério de nacionalidade. As obras só teriam valor em razão de sua representatividade na correspondência com condições sociais e naturais. Não representando, propriamente, uma homogeneidade entre os críticos incluídos na denominação, Ventura apresenta como “geração de 1870” o grupo representado, entre tantos outros, por José Veríssimo, Sílvio Romero, Araripe Júnior, Capristano de Abreu, Joaquim Nabuco. Todos estes tinham enraizado a crítica naturalista, predominante na crítica literária brasileira do final do século XIX. A crítica naturalista aborda o texto como reflexo de condições sociais e naturais e estabelece como critério de valor, a correspondência entre ambos. As obras literárias são tomadas como “documentos” que revelam a psicologia de um século ou raça, ao representar a sociedade e a natureza que as produziram. (VENTURA, 1991, p. 88).

Foram os críticos dessa geração que fundamentaram o debate sobre a literatura e a cultura brasileira, possuindo como referência discursos adotados a partir do romantismo, como a afirmação da literatura de um país como fundamentalmente de feições nacionais, em contraste à história escrita no passado colonial. 3. A história da literatura brasileira: sobre o argumento estético No século XIX parecia existir a urgência de se escrever uma história da literatura, era uma afirmação do nível intelectual de um estudioso. Sílvio Romero foi o primeiro a publicar sua obra. Araripe Júnior também projetou escrever uma, mas seu projeto não foi adiante. José Veríssimo como um projeto de sua maturidade também publicou uma História da literatura brasileira. Luiz Roberto Velloso Cairo constata que não se deveria pensar história da literatura dissociada da crítica literária ou da literatura comparada, pelo simples fato de que sua construção se deu nessa base, foram escritas para “justificar a própria existência de uma literatura que se pudesse chamar de brasileira” (CAIRO, 1998, p. 81). Escrever uma história da literatura nacional começa a ter demasiada importância a partir do Romantismo, pois este espalhará o sentimento nacional. A crítica literária encarregou-se de construir a história da literatura brasileira. E coube aos críticos do Realismo-Naturalismo uma história da literatura brasileira propriamente dita, pois “tinham como meta, como índice de maturidade de seus discursos críticos, a elaboração de uma história da literatura” (1998, p. 81). Walter Benjamim, pensando sobre história da literatura e ciência da literatura afirma: “É verdade que esta época de doutrina positivista produziu uma grande quantidade de histórias literárias para o consumo caseiro da burguesia, como complemento ao trabalho rigoroso de pesquisa” (1993, p. 39). No Brasil, portanto, não foi diferente. Era parte do projeto nacional. Definir a literatura brasileira era definir, também, o perfil da nação. Escrever a história da literatura brasileira era necessário para registrar a literatura como um fato histórico, para que não ficasse oculta; representava um projeto de identidade. O crítico ficava responsável pela canonização das obras. Atualizava ou não uma obra de acordo com seus critérios. A apreciação de uma obra ainda era restrita, na época a distribuição de livros não se dava como na atualidade. Ficavam, realmente, como enfeites nas estantes da burguesia. Muitos dos livros tinham uma determinada tiragem, encomendadas pelos próprios escritores que os distribuíam aos amigos.

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Apesar de história e crítica literária estarem fortemente ligadas nesse momento, Cairo chama a atenção para o conceito de crítica diferente do atual “Não se trata de análise imanente dos textos poéticos” (1998, p. 81), mas antes uma interpretação cultural ligada à necessidade de constatar características nacionais, adotando como critério de valor as correspondências entre literatura e sociedade. Sílvio Romero publicou a História da Literatura Brasileira em 1888, ano da abolição. O crítico “apresenta uma interpretação determinista da história brasileira”. Contemplava a obra literária a partir de sua história em dupla face “uma geral influenciada pelo momento europeu, e outra particular, determinada pelo meio local” (VENTURA, 1991, p. 50). Seu conceito de literatura é expressão da raça e do povo. José Veríssimo em resenha escrita por ocasião da publicação da segunda edição da História da literatura Brasileira de Romero aponta “as contradições, as incoerências, as repetições, as inexatidões de fato ou de juízo, os abusos de generalizações, a carência de serenidade e imparcialidade crítica” (apud BARBOSA, 1977, p. 112). E mesmo depois de criticá-lo dessa maneira, diz que tais observações não lhe tiram o mérito de primeiro “livro mais completo de nossa história da literatura” (1977, p. 111). Ventura nos diz que “Sílvio Romero dá, à primeira vista, a impressão de indefinição teórica, tantos são os modelos críticos e filosóficos em que se apoia.”, mas ao contrário defende que os que estudam o crítico “devem partir da sua proposta de sintetizar diversos sistemas” (1991, p. 50), mas Veríssimo afirma que falta uma concepção, um método mais definido para a história literária e mais “O seu livro é de polêmica, como de polemista é essencialmente o temperamento literário do autor” (apud BARBOSA, 1977, p.112). São conhecidas as desavenças entre os críticos, no que diz respeito às avaliações literárias, principalmente com relação a Machado de Assis. Chama também a atenção para a indefinição de Romero nas classificações e divisões dos períodos literários “Temos, pois, um só historiador da literatura nacional que acha possível dividir indiretamente em quatro classificações ou divisões diversas os seus períodos históricos, de nenhuma das quais, declara-o ele francamente, ‘faz grande cabedal’” (1977, p. 114). Outro ponto que chama atenção é quanto à definição de literatura Deve ela, segundo quer e praticou o Sr. Sílvio Romero, comportar tudo quanto na ordem intelectual se escreveu no Brasil, ou, como penso, somente o que é propriamente literário ou o que não sendo, tem bastantes generalidades e virtudes de emoção e de forma para ser incorporado na literatura? (1977, p. 115).

Qual seria então a definição de Veríssimo de literatura? Veríssimo, nessa altura de seu trabalho como crítico, já não se valia somente do critério nacionalista, pondo-o em dúvida. Começa a valorizar, não somente critérios externos, mas também os internos, assim no livro Que é Literatura? e outros escriptos, nos diz: Na obra de arte literária, na obra de literatura, há, porém, mais que o aspecto, de alguma forma exterior, da forma. A simples perfeição dela poderá, nas belas artes em geral, constituir uma obra prima, que vença os séculos sempre admirada. Que outro mérito há na Vênus de Milo? A arte literária exige mais. Para viverem, precisam suas obras de virtudes intrínsecas que acaso aquelas outras artes dispensam. (apud BARBOSA, 1977, p. 4).

Considera, por isso, a obra de Romero geral demais “excedendo os seus justos limites perde em lógica, em método, em proporções, e, portanto, em beleza, como obra de arte, ganha em extensão, sendo mais que uma história da nossa literatura, quase uma história da nossa cultura” (1977, p. 116). Quando publicou, enfim, sua História da Literatura Brasileira em 1916, inclui como critério de avaliação das obras, o estético, ao contrário de Romero que só observava os critérios extra-literários, ficando limitado, portanto em suas análises, pois considerava somente o critério da nacionalidade. Deixava de fora do cânone obras que não se encaixavam numa apreciação desse tipo. Veríssimo percebeu que era preciso renovar. A limitação desse critério deixava de fora obras como de Machado de Assis: Sílvio Romero recorreu ao critério nacionalista, para afirmar a diferenciação da expressão literária brasileira. No entanto, esse critério se revelou inviável por conter implícita uma teoria da imitação que nega o caráter específico da literatura, valorizada à medida que reproduz aspectos da vida e da paisagem nacional. (VENTURA, 1991, p. 77)

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Até como uma resposta à obra de Romero, Veríssimo escreve sua própria História da Literatura, valendo-se de outros métodos e critérios. “Literatura é arte literária. Somente o escrito com o propósito ou a intuição dessa arte, isto é, com os artifícios de invenção e de composição que a constituem é, ao meu ver, literatura.” (1969, p. 10). Com o contato com a obra de Machado de Assis, com o qual possuía uma relação de amizade, começou a perceber que a literatura não é condicionada somente por fatores externos, estes não podem determinar sua atividade inventiva. A literatura não deve ser resumida a um determinismo histórico, sociológico ou natural. O condicionamento social não é a única razão de ser da literatura. Romero desvalorizava a obra de Machado de Assis, pois não admitia que o escritor não se encaixasse nos moldes da época, não tivesse lugar na série evolutiva da literatura. Se o crítico não tem a sensibilidade de perceber as mudanças no horizonte de expectativa, observando que a obra ultrapassa o tempo presente, ou ele simplesmente a critica, atacando com um discurso que aponta defeitos e não vê as qualidades ou simplesmente ignora. As censuras a Machado de Assis se orientam por um critério evolucionista, segundo o qual sua obra, fruto de um romantismo tardio, não teria valor por estar em desacordo com as tendências contemporâneas. Devido ao seu ‘atraso’, Machado não teria um papel saliente na ‘evolução intelectual’, devendo ser combatido pela ‘dubiedade de seu caráter político e literário’. Sentencia Romero: ‘É um tipo morto antes do tempo na orientação nacional’. Sílvio não percebeu as críticas de Machado ao naturalismo e ao cientificismo, nem sua ruptura com a estética romântica e realista. (VENTURA 1991, p. 96-97).

Mas Veríssimo reconheceu que independente de uma inspiração apegada à vida nacional, existem outras formas de conhecer e executar um critério de valor: “A crítica não estabelece regras para a criação, todas as suas regras e princípios são derivados da literatura, não a literatura dessas regras e princípios” (apud BARBOSA, 1977, p. 16). Veríssimo voltou sua atenção para questões da forma literária. Enquanto Romero não reconheceu a técnica de Machado na composição de seus romances como uma ruptura com o conceito de escola literária, podendo, portanto, uma obra ser concebida sem se prender ao estilo de época, Veríssimo já revela uma lucidez ao tratar de periodização literária, permitindo admitir que as obras não surgem somente para preencher um espaço pré-determinado ou corresponder aos modelos das escolas vigentes: Uma escola literária não morre de todo porque outra a substitui, como uma religião não desaparece inteiramente porque outra a suplanta. Também não acontece que um movimento ou manifestação coletiva de ordem intelectual, uma época literária ou artística, seja sempre conforme o seu princípio e conserve inteira sua fisionomia e caráter. (1969, p.9).

Na segunda série de Estudos de Literatura Brasileira, começa a ficar mais clara a mudança no método de Veríssimo. Em Um século de Literatura já possui uma nova visão da chamada imitação, mas ao invés de valorizar a literatura brasileira, continua, de certa forma, a depreciá-la. “Deve-se dizer da nossa literatura que ela tem vivido muito de imitação; mas isso não é depreciá-la. Todas as mais ricas vivem de escambos de ideias e concepções. Somente nós não trocamos, apenas recebemos.” (1904, p.17). Em Um romance da vida Amazônica, começa a adotar um estilo impressionista, fato comprovado na análise descritiva que faz de O Missionário de Inglês de Souza. Tal apreciação dá-se, novamente, como aconteceu com a História da Literatura Brasileira de Romero, na segunda edição. Isso pode não significar muito, mas revela um crítico que espera um reconhecimento maior da obra, para poder comentá-la. Na resenha escreve sobre a construção do Romance em Inglês de Sousa filiado ao naturalismo, mais especificamente ao estilo de Emílio Zola. Porém é na História da Literatura Brasileira de Bento Teixeira (1601) a Machado de Assis (1908) que se dá a confirmação da conceituação de literatura como “sinônimo de boas e belas letras”, sobressaindo nestes termos um critério estético. Embora isto não se concretize de todo, pois como não se presumiu de infalível incluiu na sua História da Literatura obras e autores que não encaixavam em tal definição. Foram incluídas, por serem, segundo Veríssimo, parte importante da história: Muitos dos escritores brasileiros, tanto do período colonial como do nacional, conquanto sem qualificação propriamente literária, tiveram, todavia uma influência qualquer em a nossa cultura, a fomentaram ou de algum modo a revelam. Bem merecem pois de nossa literatura. (1969, p.11).

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E reconhece no final da introdução que se utilizou do termo literário num sentido mais amplo, nos moldes do conceito germânico. Fez isso porque julgou necessário para compreender o processo histórico brasileiro. Com diverso conceito do que é literatura, e sem fazer praça de filosofia ou estética sistemática, aponta esta apenas a fornecer aos que por ventura se interessam pelo assunto, uma noção tão exata e tal clara quanto em meu poder estiver, do nosso progresso literário, correlacionado com a nossa evolução nacional. (1969. p.17)

Apesar de Veríssimo ter definido um critério estético, seguindo o modelo clássico dos gregos (não representando por isso, propriamente uma inovação na crítica, já que é um critério tão antigo, mas apenas um reconhecimento de que os métodos de interpretação não devem ser limitados), o critério estético de “belas letras” não foi seguido exemplarmente. Comentou, por exemplo, que começou o livro pelo poema “A Prosopopéia”, de Bento Teixeira, apenas por um dado cronológico, pois foi a primeira produção literária publicada de um brasileiro, sem considerar se possuía um valor estético estimável. Preocupou-se em apresentar o fato, mais do que questioná-lo ou interpretá-lo. A escolha da obra que inaugura a literatura brasileira é uma opção pelo país a ser moldado numa concepção. Conforme Kothe (1997, p.150) “A opção pelo texto inicial implica uma orientação do resto do sistema”. Uns tem como documento inaugural do trajeto brasileiro a Carta de Caminha (primeiro registro da nova terra) outros Gregório de Matos (pela sua inventividade ao mesclar peculiaridades da nação às influencias estrangeiras), entre outros, porém Veríssimo preferiu o dado da brasilidade. Precisou do registro confirmando a publicação de um brasileiro para constatar o começo da história da literatura brasileira. 4. O cânone e os escritores da Amazônia Canonizar ou não uma obra está nas mãos do crítico, seja o leitor leigo ou o grande intelectual. Como se dá esse processo? Somente por gosto ou predileção? Em alguns casos sim. Quais os critérios incluídos na valorização de uma obra? Estéticos, ideológicos, políticos? Pois bem, para se escrever uma “História da Literatura”, atividade que para época era, de certa forma, o apogeu da carreira intelectual, pois representava um amadurecimento intelectual, deveria se fazer uma seleção para escolher quais obras tem importância significativa para fazer parte da história literária de uma nação. Como já exposto, no começo José Veríssimo esteve muito ligado ao critério nacionalista, aos conceitos naturalista de apreciação da obra, sempre com um olhar de historiador que passou a fazer uma crítica impressionista até chegar a um conceito estético ligado aos gregos, adquirindo uma visão mais estética da literatura. Desse modo, o que poderia ser dito com relação à literatura produzida na Amazônia? Qual sua importância no contexto da Literatura brasileira? Como um escritor da Amazônia, não só pelo nascimento e vivência na região, mas muito mais pelos trabalhos, tanto os ficcionais como os não ficcionais, que abordam questões da Amazônia, históricas ou culturais, Veríssimo poderia ter incluído obras da região em seu cânone. Mas não o faz devidamente. Como um expoente da Amazônia e o segundo a escrever uma história da literatura brasileira, o crítico tinha como conhecer a produção local e incluí-la na trajetória literária brasileira. O texto publicado em 1878 A literatura Brasileira: sua formação e destino no livro Primeiras Páginas, o crítico o escreveu quando veio se tratar de uma enfermidade em seu estado natal. Como principiante nos estudos, sentia-se acuado, “um jovem doente”, que por nobreza de espírito e sede de conhecimento foi contra as prescrições médicas e pôs-se a estudar e escrever. Por isso, adverte “ ninguem mais do que o autor d’este livro lhe conhece nenhum valor” (1878, p.1). Adentrando o texto, ele nos chama a atenção logo no título “A Literatura Brasileira: Sua Formação e Destino”. Começado a exercer seu papel de crítico analisa o passado e tenta projetar o futuro. Como no século XIX era muito forte o nacionalismo, pois o país precisava se firmar enquanto estado nacional, Veríssimo começa falando do Brasil criança que tudo copia de Portugal, como se a

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literatura portuguesa fosse a mais inventiva, quando, na verdade, seguiam paradigmas de outros países, como França, Espanha. A forte influência externa é uma herança do padrão cultural da colonização, muitas ideias e conceitos já vieram prontos e coube aos nativos aceitá-los. Nesse contexto almejar um purismo é inconcebível. A memória se preserva, mas agora com novas nuances. A grande preocupação do crítico era o conhecimento científico, mas, ao querer a autonomia do país, uma identidade própria cai no preconceito: dizendo que faltava ao povo brasileiro tradição porque se originou de uma raça selvagem, pois considerar que um povo não tem tradição e costume é assumir o papel do colonizador que considerava o indígena como tábula rasa. Feitas essas considerações finais, adentra ao mundo literário, criticando a produção literária. Condenando o subjetivismo do antigo lirismo da poesia, levanta a bandeira do objetivismo, defendendo que o poeta apresente - muito mais que sentimentalismos - um papel social, no entanto, “o nosso gênero meridional, ajudado pelo clima e nossas condições sociais, não deixou que os poetas brasileiros tentassem com vantagem, um gênero de poesia mais severo” (apud BARBOSA, 1977, p.157). Veríssimo acreditava que as influências estrangeiras podavam o talento dos poetas brasileiros, é o que diz de Gonçalves Dias, por exemplo: “A sua educação em Coimbra foi perniciosa e as águas do Mondego afogaram o que aquele talento tinha de nativo”. A Literatura Brasileira: sua formação e destino foi publicado primeiramente em folhetim, já que era o principal suporte de publicação na época e servia como divulgador de estudos. Como um dos primeiros trabalhos da mocidade, nota-se um estilo muito ligado a sua jovialidade, discurso incisivo cheio de espírito nacionalista, de ânsia por liberdade não só política e econômica, mas também cultural. É com todas essas preocupações e marcas da crítica naturalista que José Veríssimo apresenta seu primeiro trabalho de crítica literária. Neste não faz nenhuma referência a autores nascidos ou que viveram na Amazônia, por mais que o escrevesse em um momento de retorno à região. Apesar de criticar a artificialidade do romance brasileiro com seus cosmopolitismo e defender que “o verdadeiro romance brasileiro precisa dos fatos da vida do nosso sertão onde o genuíno povo brasileiro, o resultado dos cruzamentos, vive com seus hábitos, suas crenças e seu falar próprios” não comenta, nem de passagem, as produções amazônicas. Em Um século de Literatura (1903), texto integrante da segunda série de Estudos da Literatura Brasileira começa com uma crítica. “Os primeiros anos do século XIX são de decadência, de estagnação completa para as letras no Brasil”. Muitos escritores existem, mas nenhuma obra de valor, segundo Veríssimo, pois, como uma constante, fala da falta de originalidade. Neste artigo o autor demonstra ter um grande conhecimento da Literatura Portuguesa e acusa novamente o Brasil de imitá-la. Do arquivo de suas leituras, menciona 78 autores, brasileiros e portugueses e, entre eles, fazendo uma breve referência, Bento de Figueiredo Tenreiro Aranha. Este é o primeiro nome citado por Eustáquio de Azevedo no livro Antologia Amazônica (poetas paraenses) como uma figura importante no começo da produção poética da região. No final do artigo justifica não ter falado dos vivos por causa da preocupação de esquecer nomes e obras, portanto pode haver aí uma desculpa para a não citação de autores da Amazônia contemporâneos seus, como Inglês de Sousa, já que também trata do naturalismo no Brasil. No entanto dedica um artigo nesta mesma obra ao romancista. Em Um Romance da vida amazônica (1903), José Veríssimo resenha o romance O Missionário (1891) de Inglês de Sousa a partir da segunda edição. O curioso é não citar os outros romances publicados antes como O Cacaulista (1876), A História de um Pescador (1876) e Coronel Sangrado (1877). Apesar de reconhecer o conterrâneo, não o inclui na História da Literatura. Coloca o romance em comparação com outros dois o Homem de Aluísio Azevedo e Carne de Júlio Ribeiro, salientando que o romance de Inglês de Sousa é superior não caindo demasiadamente no “pecado da escola naturalista” com suas interpretações e análises baseadas em noções científicas. É relevante comentar que apesar da atribuição, na segunda série de Estudos Brasileiros (1889-1893) publicada em 1894, Veríssimo dedica um artigo ao naturalismo intitulado O Romance naturalista no Brasil, e não faz referência ao romancista, como se fosse ausente da crítica nacional. Em compensação fala de Marques de Carvalho, um paraense, e o romance Hortência, novamente em comparação aos dos romances já citados de Aluísio Azevedo e Júlio Ribeiro. Outra referência neste livro é a um historiador paraense o Sr. Barão do Guajará ou Domingos

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Antônio Rayol (membro honorário da Mina Literária - revista literária criada a partir da associação de “homens de letras do Pará” conforme se lê na Antologia Amazônica) em motivo da publicação do 5º volume sobre os Motins públicos, como uma obra de importância por causa da contribuição histórica. Neste mesmo artigo denominado O Movimento intelectual em 1891 fala do romance como “a forma mais viva” de literatura, mas que no entanto nesse ano está em decadência, não podendo citar mais que, justamente, O Missionário , publicado esse ano, do Sr. Luís Dolzani, pseudônimo de Inglês de Sousa. É notório que Veríssimo conhecia a obra desde a sua primeira edição, mas só a comentou na segunda. Se o romance teve seus momentos importantes por que José Veríssimo não a incluiu na sua história da literatura? Considerada a obra de sua maturidade, reuniu seus estudos críticos de literatura para publicar a segunda história da literatura escrita no Brasil, em 1916. Na introdução da História da literatura Brasileira: de Bento Teixeira (1601) a Machado de Assis (1908) refere-se a 55 escritores e nenhum é da Amazônia. O crítico diz: Por motivos óbvios de discrição literária não se quisera êste livro ocupar senão dos mortos. Esta norma, porém, era quase impossível segui-la na última fase de nossa literatura, vivendo ainda, como felizmente vivem, alguns dos principais representantes dos movimentos literários nela ocorridos; calar-lhes o nome seria deixar suspensa a história dêsses movimentos. Ainda assim apenas ocasionalmente, por amor de completar ou esclarecer a exposição, se dirá de vivos. (1969, p.15).

Desse modo ele calou os nomes de escritores da região, pois, como um reflexo da introdução, no corpo do livro nenhum escritor da Amazônia é abordado em estudo mais detalhado. Nem Inglês de Sousa como já foi constatado, mesmo presumindo-se ser este conhecido em esfera nacional por ter sido um dos fundadores da Academia Brasileira de Letras, não entra para o livro. A única referência no livro todo a um escritor da Amazônia é, novamente, ao poeta Tenreiro Aranha à “vol d’oiseau” utilizando-se o termo empregado por Eustáquio de Azevedo na Literatura Paraense. Cita o poeta ao falar da escola mineira ao lado de outros poetas e é taxativo “São demais tão insignificantes que podemos dispensar-nos de os levar em conta no estudo de nossa evolução literária” (1969, p.81). Por isso que Eustáquio de Azevedo acusa Veríssimo de esquecer dos intelectuais paraenses. O crítico da literatura paraense questiona tal ausência sendo irônico por vezes como na introdução da literatura Paraense “O resto ele desconhecia... porque não citou” (1943, p.9). Ele bem sabia que isto não era verdade, pois José Veríssimo foi fundador da Revista Amazônica de circulação regional e correspondente da revista “Mina Literária”, portanto, chegavam ao conhecimento dele os acontecimentos literários da Amazônia. Uma possível resposta para a questão da não inclusão de autores amazônicos poderia ser encontrada na seguinte afirmação: A história da literatura brasileira é no meu conceito, a história do que a nossa atividade literária sobrevive na nossa memória coletiva de nação. Como não cabem nela os nomes que não lograram viver além de seu tempo também não cabem nomes que por mais ilustres que regionalmente sejam não conseguiram, ultrapassando as raias de suas províncias, fazerem-se nacionais. (1969, p.13)

Portanto, José Veríssimo apoiado na ideia de âmbito nacional e não explicitamente por um critério estético exclui os estudos sobre produção amazônica do cânone de sua História da Literatura. Quanto à formação intelectual do brasileiro Veríssimo sempre pontuava que a falta de uma boa formação cria reflexo na produção literária e nos trabalhos de crítica. Acusava que muitos cientistas brasileiros possuíam estudos mal fundamentados e generalizados e acusava o povo da Amazônia de indolência para o estudo. Talvez por causa dessa fragilidade intelectual do amazônida, pouco falou dos escritores da região. Porém a região se faz bastante presente nas obras de teor etnográfico e etnológico, econômico e histórico tento por conteúdo a economia, a cultura e os costumes regionais. Em outras áreas a região foi objeto de estudo e por que na literária não? Não existe a primeira vista motivo mais claro e direto do que o motivo regionalista. No entanto por que não citar Inglês de Souza, pois se presume ser este conhecido em esfera nacional. Fica a lacuna, já que em outros trabalhos comentou o autor em Um romance da vida amazônica e faz uma breve citação em O movimento intelectual em 1891 chamando-o de Luís Dolzani. Algumas especulações podem ser formuladas:

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– Muito tempo passado no Rio de Janeiro possibilitou maior contato com os escritores de lá; – A “rudeza” da região que se voltava mais para o econômico (extrativismo da borracha) do que pelo desenvolvimento literário e científico; – Talvez não tivesse quem fornecesse fundos para divulgação da produção literária local, já que o próprio Veríssimo acusou a literatura de se vender para sobreviver. Para Veríssimo “A literatura e a arte são, no bom e mal sentido, cortesãs. Precisa de uma sociedade polida que as aprecie, estime e acolha, e enquanto o público não começou a pagar os seus labores, precisaram também de quem as protegesse e patrocinasse”. (apud BARBOSA, 1977, p.50). A Amazônia surge como tônica de interesse em vários trabalhos de Veríssimo relacionados às outras áreas de conhecimento. Por isso mais que não comentar ou desvalorizar, o crítico, simplesmente ignora a literatura da Amazônia. Envolvem-se, neste caso, as questões do cânone que nem sempre faz jus aos escritores. O conceito de literatura brasileira propõe uma unidade, entretanto, esta fica apenas no plano das ideias. Pois fogem do cânone muitas particularidades. O importante, portanto, não é apenas reafirmar o institucionalizado. É necessário promover a atualização da leitura. O cânone cria uma visão unilateral acerca da literatura brasileira por meio da instauração do que deve ser valorizado. Todavia, a literatura canonizada não é a única que existe. 5. Considerações finais Há momentos diferenciados na crítica de Veríssimo e isso o individualizou, ainda mais pelos argumentos literários em favor da concepção estética que o distinguiu de vários outros críticos da época. Porém uma questão comum entre esses críticos girava em torno do que é ser brasileiro. O tema da identidade nacional sempre chamou a atenção dos artistas, desde o período colonial, todavia foi o Romantismo que o consagrou. Apesar de outras abordagens existentes atualmente e que não se prendem a um critério nacionalista, ao contrário do que se pode pensar, o tema nacional ainda se fez presente dentro de outras perspectivas. Ele foi retomado e aprofundado por escritores modernistas como Mário e Oswald de Andrade. Os tropicalistas, nos anos 60, voltaram a discutir tal questão temática. E o discurso da identidade nacional ainda ronda a sociedade atual, claro, de maneira diferente da visão do passado. Por exemplo, o Brasil é conhecido como o país do samba, da feijoada, das mulheres bonitas. É essa identidade passada para as pessoas de fora. Muitas discussões se desenrolaram em torno do caráter da literatura brasileira. A busca por uma criação literária eminentemente nacional culminou com a ideia do “entre-lugar”, apresentado por Sílviano Santiago no artigo O Entre-lugar do discurso latino-americano. Abandona-se o antigo discurso de apenas cópia dos acontecimentos literários externos ao Brasil e adota-se a realidade das influências e adaptações, mediadas pelo antropofagismo literário, destruindo o conceito literário de unidade e pureza. Ao se pensar na inclusão de autores amazônicos no cânone estabelecido por Veríssimo, lembrou-se de uma frase de Antônio Candido que, em síntese, diz que devemos amar nossa literatura porque é ela e não outra que nos exprime. A afirmação tem um teor fortemente patriótico. No entanto, não se pretendeu com o trabalho, exaltar a qualquer custo a literatura amazônica com a ideia de “autores da Amazônia, ame-os ou deixe-os”. Todavia, se José Veríssimo como crítico possuía a palavra, possuía de certo modo o “poder” de incluir ou não os escritores e, levando em consideração que entraram na História da Literatura Brasileira escritores que equiparou aos da produção considerada regional, deveriam figurar em sua obra escritores como o anteriormente citado, Inglês de Sousa. O cânone não é para todos. Somente para os privilegiados, cometendo, por vezes, injustiças. José Veríssimo é um crítico que se pode dizer ser produto do meio, sem receio de erros. Suas opiniões, ideias, posturas ideológicas refletiam um intelectual fortemente influenciado pelo positivismo, o evolucionismo e pelos fatores meio, raça e momento histórico. Apesar de ao longo da carreira abandonar certas posturas e ideias, o que é natural na busca do conhecimento, persistem

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os critérios naturalistas e positivistas de seu período de formação intelectual. O trabalho de pesquisa não pretendeu encontrar nas discussões em torno da raça as explicação para tal ausência, procurouse entender o lado literário e nesta não houve uma resposta satisfatória para a ausência de autores da Amazônia no cânone. Os critérios estéticos e ideológicos encontrados nos questionamentos da literatura enquanto obra de arte, não foram suficientes, fez-se necessário incluir a questão preconceito das raças e a ilusória ideia de superioridade de uma sobre a outra. José Veríssimo possuía um preconceito muito grande com relação às raças cruzadas do norte. Mas tais questionamentos ficam para um outro artigo. Referências ASSIS, M. Páginas críticas comemorativas. Disponível em www.nead.unama.br, acessado em 10/08/2008. BARBOSA, J. A. José Veríssimo: Teoria critica e historia literária (seleção e apresentação de João Alexandre Barbosa). Rio de Janeiro: Livros técnicos e científicos; São Paulo: Universidade de São Paulo, 1977. BENJAMIM, W. História da Literatura e Ciência da Literatura. In: Pasárgada. Recife, nº 2, setembro de 1993. CAIRO, L. R. V. História da Literatura, Literatura Comparada e Crítica Literária: frágeis fronteiras disciplinares. In: Cadernos do Centro de Pesquisas Literárias da PUCRS. Porto Alegre, volume 4, nº 2, nov. 1998. CANDIDO, A. Formação da literatura brasileira. São Paulo: Martins, 1971. JAUSS, H. R. A História da Literatura como provocação à Teoria Literária. Trad.: Sérgio Tellaroli. São Paulo: Editora Ática, 1994. KOTHE, F. O Cânone Colonial. Brasília: Editora Universidade de Brasília, 1997. SCHWARZ, R. As ideias fora do lugar. In: Ao vencedor as batatas. 5 ed. São Paulo: Livraria Duas Cidades e Editora 34, 2003. STEINER, G. Alfabetização Humanística. In: Linguagem e Silêncio: ensaios sobre a crise da palavra. Trad.: Gilda Stuart e Felipe Rajabally. São Paulo: Companhia das letras, 1988. VENTURA, R. Estilo Tropical: história cultural e polêmicas literárias no Brasil. São Paulo: Cia. das Letras, 1991. VERÍSSIMO, J. História da Literatura Brasileira: de Bento Teixeira (1601) à Machada de Assis (1908). 5 ed. Rio de Janeiro: Livraria José Olímpio Editora, 1969. ______. Estudos de Literatura Brazileira. Rio de Janeiro: H. Garnier, 1904. ______. Scenas da Vida Amzônica. RJ: Laemmert, 1899. ______. Estudos Brasileiros: 1877-1885. RJ: Laemmert, 1889. ______. Primeiras Páginas: Viagens no sertão, quadros paraenses, estudos. 1 ed. Belém/PA: Typ. Guttenberg, 1878.

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USOS LINGUÍSTICOS COMO ELEMENTOS CONSTRUTORES DA IDENTIDADE SOCIAL DE BAMBURRISTAS DE GEMA DE OPALA NO MUNICÍPIO DE PEDRO II – PI Ernâni Getirana de LIMA (Universidade Estadual do Piauí)

RESUMO: Conhecido nacional e internacionalmente como Terra da Opala por ser o maior exportador mundial dessa gema, o município piauiense de Pedro II possui cerca de seiscentos homens (os bamburristas) que trabalham de forma precária em garimpos locais. O artigo, fruto de minha dissertação de mestrado, procura estabelecer algumas relações entre a lingua(gem) utilizada por este grupo socialmente invisibilizado, inserido em uma sociedade que os ignora, e seu processo de construção identitária a partir do garimpo como espaço simbólico. A conclusão é de que a lingua(gem) é um dos componentes fundamentais na construção da identidade sociocultural do grupo, perpassando os demais elementos formadores dessa identidade e os amalgamando. PALAVRAS-CHAVE: Bamburristas; usos linguísticos; opala; identidade.

ABSTRACT: Known nationally and internationally as the Land of Opal for being the world’s largest exporter of gemstone, the municipality of Pedro II, Piauí state, Brazil, has about 600 men (the bamburristas) who work in mines in precarious places. The article, results from my master’s dissertation, seeks to establish some relations between language used by this group invisibilized socially, inserted in a society that ignores them, and the process of identity construction from the mine as a symbolic space. The conclusion is that the language is one of the key components in the construction of sociocultural identity of the group, permeating all elements of this identity and amalgamated them. KEY WORDS: Bamburristas; language uses; opal; identity.


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1. Introdução Localizado a 4º 25’ 18” de Latitude Sul e 41º 27’ 34” de Longitude W, Gr, o município de Pedro II – PI, com uma área de 3.019 Km2 (três mil e dezenove) km², e uma altitude média de 550 (quinhentos e cinquenta) m, distando cerca de 195 (cento e noventa e cinco) km da capital do Estado, Teresina, é conhecido nacional e internacionalmente como a Terra da Opala. Cerca de 600 (seiscentos) homens, os bamburristas (neologismo usado aqui em oposição ao termo bamburrador, que é aquele que encontra de uma só vez uma quantidade considerável de opala, tornando-se imediatamente rico), com faixa etária entre 18 (dezoito) e 75 (setenta e cinco) anos extraem essa gema há 60 (sessenta) anos em cerca de 34 (trinta e quatro) garimpos, localmente chamados de barreiros. Apesar de ser um dos grupos sociais cuja força de trabalho concorre de maneira substancial para o incremento da economia local, os bamburristas, além de excluídos do bônus econômico gerado pelo comércio de opala (o grosso da lucratividade fica nas mãos dos empresários da opala), sofrem do fenômeno da invisibilidade social. Apesar disso bamburristas têm construído sua identidade sociocultural no contrapelo de uma conjuntura que lhes é adversa, lançando mão de usos linguísticos como um dos principais suportes construtores dessa identidade. O processo de invisibilidade social dos bamburristas não é exclusividade desse grupo. Tratase de um processo em escala global que atinge trabalhadores localizados na base das cadeias produtivas dos processos produtivos capitalistas e possui estreita ligação com o fenômeno da precarização do trabalho (ANTUNES, 2006; SILVA, 2005), embora, no caso dos bamburristas, haja outros fatores de ordem local que tornam a situação desse grupo peculiar. Dentre estes fatores, o fenômeno do coronelismo, que, ainda hoje, carrega com fortes tintas o cotidiano da sociedade pedrossegundense. Para uma melhor compreensão, porém, de como bamburristas, apesar de tudo, têm resistido ao longo dessas seis décadas de exploração da opala e, assim, construído uma identidade sociocultural, nos concentramos em alguns aspectos da lingua(gem) de que o grupo faz uso, mais precisamente no que definimos como usos linguísticos. Não pretendemos fazer aqui qualquer aprofundamento teórico acerca da linguagem e mesmo dos usos linguísticos, a não ser apresentar o que a literatura especializada, ou parte dela, já vem tratando há algum tempo sobre o assunto. Restringimo-nos na verdade, ao fato de que a riqueza da língua(gem) de bamburristas nunca tenha sido estudada cientificamente de forma aprofundada, pois, a nosso juízo, provavelmente estaria aí, um manancial inesgotável para a melhor compreensão não apenas do grupo em si, mas da sociedade pedrossegundense como um todo. Em nossa pesquisa de mestrado, porém, apesar de termos tido como foco não propriamente a linguagem, mas a identidade sociocultural de bamburrista, aquela nos pareceu de extrema importância, ganhando um subitem no corpo da dissertação. Detectamos nos usos linguísticos de que esses sujeitos lançam mão em seu cotidiano um dos constructos de sua identidade. Tal percepção advém, provavelmente, da nossa formação em Letras e, consequentemente, de nosso contato com a linguística. 2. A linguagem: alguma teorização necessária A linguagem é a fronteira que separa os humanos dos demais seres animados. Não a linguagem em sua abrangência total, mas a linguagem articulada1. O envolvimento dos humanos com a linguagem é tal que esta se confunde com a própria definição de vida. Em todas as épocas da história humana a linguagem articulada tem sido a construtora de realidade, de modos de viver. Podemos estudar a linguagem sob dois enfoques diferentes. Linguagem como produto e linguagem como processo. Nossa opção é pelo segundo enfoque, na linha delineada, dentre outros por Eni Orlandi, ao tratar da questão. Para esta autora, um estudo abrangente [...] da linguagem, é aquele que vai fundo na sua natureza, ou seja, é aquele que perde menos de sua simplicidade. É aquele que ousa aceitar que não há hierarquias, não há categorias estritas, ou níveis que possam servir de suporte para explicitar o que não dá para explicitar nem simplificar o que não dá para simplificar, ou clarear o que, por natureza, se faz obscuro (ORLANDI, 1987, p. 146). 1

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Diz-se da linguagem simbólica, como a concebe Strauss, 1984.

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Estaria provavelmente aí uma das razões pelas quais, por décadas, os estudos gramaticais (prescritivos) desconheceram os usos linguísticos de grupos menos privilegiados socialmente, havendo tal interesse surgido tão somente quando tiveram início os estudos linguísticos (descritivo-explicativos). Segundo Viott (2007), pelo fato de a língua ser social, a linguística precisa entender as relações entre língua e cultura, entre língua e classes sociais, e entre uma língua e outras línguas que estão em contacto com ela. Essas relações são importantes porque elas estão associadas a alguns fenômenos de grande interesse, como a variação e a mudança linguísticas. Passou-se, assim, de um enfoque, que privilegiava certos status de uma gramática2 de domínio de estratos privilegiados da sociedade. Em outras palavras, o discurso dos grupos socialmente desprestigiados não era, como ainda em grande medida não é, levado em conta. Ora, se, como diz Orlandi (1987), no interior de uma mesma língua transitam diversos discursos3, isto é, diversas maneiras de os diversos grupos sociais estabelecerem sua compreensão do mundo, é perfeitamente aceitável que os discursos sejam “estabelecidos a partir de suas condições de produção” e que o funcionamento discursivo é “a atividade estruturante de um discurso determinado, por um falante de um discurso determinado, para um interlocutor determinado, com finalidades específicas” (ORLANDI, 1987, p. 125). Ou, por outra, o sentido é uma construção, um empreendimento coletivo, mais precisamente interativo, por meio do qual as pessoas – na dinâmica das relações sociais historicamente datadas e culturalmente localizadas – constroem os tempos a partir dos quais compreendem e lidam com as situações e fenômenos a sua volta (SPINK, 1999, p. 41).

O que podemos dizer sobre a linguagem, compreendida aqui como o emprego da língua por um determinado grupo social, é que ela tem um caráter social. Tal percepção salta aos olhos de quantos se debruçam para estudá-la. A linguagem é recebida “totalmente elaborada” e somos obrigados a recebê-la “e a empregar assim, sem variações consideráveis” (ORLANDI, 1987, p. 7). Por seu turno, compreendemos língua como sendo “não somente um sistema de palavras; [...] implica uma certa maneira de perceber, de analisar e de coordenar [o mundo]” (ORLANDI, 1987, p. 7). Os usos linguísticos aparecem como maneiras específicas de reelaboração do mundo a partir de determinados grupos sociais, como trataremos mais adiante ao nos referirmos a bamburristas. No interior de uma mesma língua transitam diversos falares, isto é, práticas cotidianas concretas estruturadas a partir do discurso, isto é do “uso institucionalizado da linguagem e de sistemas de sinais de tipo linguístico” (SPINK, 1999, p. 43), dos diversos grupos que compõem a sociedade. Os falares, línguas dentro da língua-mãe e os atos de fala, que são os falares em sua realização concreta, como veremos mais adiante. São fundamentais na construção da memória e da identidade do grupo social onde se realizam maneiras diversas de os diversos grupos sociais estabelecerem sua compreensão do mundo, por um lado. Para tanto, compreendemos fala como sendo manifestações textuais-discursivas para fins de comunicação na modalidade oral, uso da língua na forma de sons sistematicamente articulados e significativos, além de aspectos prosódicos e outros recursos expressivos situados no plano da oralidade, Marcuschi (2001). Os termos discursos e falares requerem, a essa altura, uma caracterização mais detalhada. Se caracterizarmos os discursos como “estabelecidos a partir de suas condições de produção” (ORLANDI, 1987, p. 115), e dissermos que no interior de uma mesma língua transitam diversos discursos, e ainda que o que temos concretamente é “a atividade estruturante de um discurso determinado, por um falante determinado, para um interlocutor determinado, com finalidades específicas” (ORLANDI, 1987, p. 125), então estabeleceremos que os falares de determinado grupo (línguas dentro da língua) alinhavam uma sintaxe grupal que posta em prática (e é sempre assim) contribui com a urdidura interna (se podemos dizer assim) da identidade sociocultural (e da memória) do grupo no contrapelo da disputa por legitimidade4 com os demais grupos, na fronteira entre o nós e o outro. Empregamos esse terno no sentido lato, isto é como corpus expressivo-comunicacional de certo estrato social. Para Orlandi (1987) discurso é um conceito teórico e metodológico. 4 Compreendemos por legitimidade (legitimacy) em se tratando de política pública (no caso política pública de diversidade 2 3

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No caso de bamburristas aqui tratados, os usos linguísticos dizem respeito às especificidades que estes fazem do uso da língua portuguesa, no bojo desta, de falares, utilizando-se de uma semântica própria, de um vocabulário específico com o qual elaboram uma sintaxe entranhada nas práticas de garimpagem5 da opala. 3. Diversidade de falares: minha pátria é minha língua Uma língua pertence ao conjunto de pessoas que falam essa língua. O poeta português Fernando Pessoa chegou a dizer, como muita propriedade, que a língua portuguesa era sua pátria. O problema é quando há exilados da própria língua. Geralmente tal exílio se deve a questões extralinguísticas, o que apenas reforça a necessidade de estudos linguísticos que contemplem o estudo da língua como um ser no mundo. Um estar aí. A diversidade linguística de bamburristas é tão grande quanto à de gemas de opala, mas ainda adormecida no subsolo da cultura pedrossegundense à espera de um estudo sério e completo o suficiente para que venhamos a ter, quem sabe, um mapa dos falares da região da opala e de seu entorno, a exemplo de algumas iniciativas de catalogação dos ecossistemas naturais e de sítios rupestres. Exemplos de estudos de envergadura que visam à catalogação de falares regionais há, contudo, pelo país, e certamente contribuem para questionar a discriminação linguística. As diversidades de falares de uma região estão geralmente ligadas a migrações que por sua vez ligam-se a ciclos econômicos, sendo o ciclo da mineração um dos que mais contribuem com tal diversidade. No Brasil, por exemplo, há pelo menos dezessete línguas indígenas e todas sob ameaça de desaparecer. Baronas (2004), não por acaso, chama os falares de ecologia linguística, tal a sua riqueza. Tal diversidade, contudo, não é respeitada e/ou estudada como deveria ser. Contra os falares populares tem havido ao longo do tempo um processo de violência simbólica no sentido bourdieuano do termo, penalizando esses falares e, consequentemente, os grupos sociais que deles fazem uso. Na verdade a intolerância linguística é uma das formas de intolerância, pois é evidente que o uso da linguagem tem sido sempre fortemente marcado por intolerância e preconceitos, com o agravante de que a intolerância linguística é muito mais camuflada do que outras formas de preconceito. Assim, revistas, artigos racistas, acatam, sem problemas, textos intolerantes em relação a certos usos (PESSOA, 2008, p. 1)

Os discursos sobre a opala são múltiplos, pois percorrem toda a cadeia produtiva da gema, sendo que esta mesma cadeia é constituída por um segmento empresarial, formado por joalheiros, lapidários, mineradores e designers, que monopoliza não apenas os aportes financeiros destinados à extração, lapidação e comercialização da gema, como também se apropria de significados simbólicos que são midiatizados, constituindo-se em verdades incontestáveis, diante das quais bamburristas têm poucas chances de se contrapor, apartados (financeira e simbolicamente) que são desde logo após a extração da gema e dela mantidos à distância que financeira, quer simbolicamente. Resta-lhes, portanto, poucas alternativas para manterem-se unidos: a própria atividade garimpeira (impregnada fortemente pela precarização do trabalho) e, como amálgama dessa (mas aí, como contraponto à precarização), os usos linguísticos. O discurso operado a partir do segmento empresarial é endossado e corroborado pelos apoiadores do Arranjo Produtivo da Opala – APL Opala6, desde sua implementação, em 2005. linguística) voltada para a promoção de grupos excluídos socialmente o conceito de Bo Rothsstein: “[No que tange à] legitimidade política de uma política pública, (...) seu sucesso ou fracasso depende da] confiança do grupo [a]o qual é dirigida, ou para a grande maioria dos cidadãos. Por exemplo, muitos programas requerem o consentimento (ou inostilidade, pelo menos) do grupo que foi designado para ser implementado prosperamente. (ROTHSTEIN, 1998, p. 72)” (Parêntese no original). 5 Diz-se do cabedal de conhecimentos necessários à extração da gema de opala do subsolo, assim como da experiência acumulada e repassada por bamburristas mais experientes aos novatos. 6 O APL Opala foi instalado, oficialmente, no município de Pedro II em julho de 2005. O projeto do arranjo foi renovado em abril de 2007 com validade até 2009, pelo MME - Ministério das Minas e Energia e MCT – Ministério da Ciência

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Midiatizado, este discurso operado na prática por usos linguístico do segmento empresarial apropriase da gema de opala concreta e simbolicamente, como alinhavamos em outras partes deste artigo. Tal apropriação (financeira e simbólica) por parte de empresários alimenta o mito de que Pedro II é a Terra da Opala e, a partir daí a gema brilha, tornando-se o centro de atenção da sociedade local (embora não tenha sido beneficiada financeiramente em mais de seis décadas de extração da gema) e de turistas (que já vêm impregnados pelo discurso midiático acerca da gema), como se fosse possível obter a opala sem bamburristas para extraí-la das entranhas da terra. É nesse ponto que os usos linguísticos de bamburristas emergem como resistência àqueles oriundos do empresariado e dos mass media, como veremos no próximo item. 4. Usos linguísticos e práticas identitárias de bamburristas Podemos dizer, segundo Dina Luz Pessoa, que os usos linguísticos são determinados por seu caráter público e privado, sendo que o primeiro é regulamentado por leis e regras e estabelece a variedade possível desses usos. No limite do caráter público e do caráter privado é que a intolerância linguística é gerada, havendo a necessidade de compreendermos cientificamente como isso ocorre. De antemão, a exemplo do que ocorre com os ecossistemas naturais, o plurilinguismo aponta para possíveis respostas ao clima de hostilidade e de intolerância nessa área. Dessa forma, o plurilinguismo impõe-se atualmente como um tema fortemente mobilizador. Para muitos, constitui uma proposta incontrolável para preservar a riqueza e a diversidade linguístico-culturais em um mundo globalizado; para outros, não passa de uma utopia anti-uniformização em prol de grupos migratórios fadados ao desaparecimento ou ainda de um vetor de interesse político-econômico diversos (CIELLA, 2008).

A relação que hoje estabelecemos entre a ecologia e a linguística, relação na qual a segunda se apropria de termos e conceitos da primeira, fundamenta-se, sobretudo, na teoria dos sistemas7, e apenas quer denotar o fato de que a língua é um sistema orgânico e altamente endoativo. É crescente o número de estudos que exploram a diversidade linguística vendo nela um caminho cheio de possibilidades e maneiras de estudarmos a diversidade das comunidades humanas sob diversos aspectos no que tange à linguagem e àquilo que lhe é fronteiriço. Dentre os muitos elementos fronteiriços à linguagem, a identidade sociocultural das assim ditas comunidades carentes ou comunidades excluídas ou periféricas tem sido cada vez mais objeto de pesquisa. O Inventário Nacional da Diversidade Linguística8 (INDL) é um dos principais estudos nesse campo e tem ampla importância por relevar nossas práticas identitárias, pois “estas línguas são constitutivas da história e da cultura do Brasil e devem ser entendidas como referências culturais da nação, tal qual ocorre com outros bens de natureza material ou imaterial” (apud VIOTT, 2007, p. 1). e Tecnologia. Além das duas instituições públicas citadas, acima, ambas componentes do conselho consultivo do APL Opala, fazem parte do arranjo as seguintes entidades: a Fundação de Desenvolvimento e Apoio a Pesquisa, Ensino e Extensão – FUNDAPE – PI; como interveniente/co-financiador o Serviço de Apoio às Micro e Pequenas Empresas do Piauí – Sebrae; e como instituições colaboradoras: o Centro de Tecnologia Mineral - CETEM, o Departamento Nacional de Produção Mineral - DNPM, o Instituto Brasileiro de Gemas e Metais Preciosos – IBGM, o Serviço Geológico do Brasil-CPRM, a Secretaria do Trabalho e Desenvolvimento Econômico, Tecnológico e Turístico do Estado do Piauí– SETDETUR, a Cooperativa dos Garimpeiros de Pedro II – COOGP, a Associação dos Joalheiros e Lapidários de Pedro II – AJOLP (conforme convênio FINEP nº 3686/04), e a Associação de Produtores de Opala do Piauí – APROPI, esta, criada em novembro de 2007. Outras instituições como o Conselho Regional de Engenharia, Arquitetura e Agronomia – CREA, a Secretaria de Meio Ambiente e Recursos Naturais – SEMAR, o Banco do Nordeste do Brasil – BNB, e a Companhia de Desenvolvimento do Piauí – COMDEPI. Em fevereiro de 2009 teve início a terceira etapa prevista pelo APL: foi criada mais uma entidade encarregada de criar e difundir a identidade gemológica da opala de Pedro II. 7 Teoria proposta em meados de 1950 pelo biólogo Ludwig von Bertalanfly que se contrapôs ao reducionismo científico. 8 O Inventário Nacional da Diversidade Linguística (INDL) é instrumento de levantamento e registro das línguas faladas pelas comunidades linguísticas brasileiras. Estas línguas são constitutivas da história e da cultura do Brasil e devem ser entendidas como referências culturais da nação, tal qual ocorre com outros bens de natureza material ou imaterial (IPHAN, 2008).

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5. Usos linguísticos de bamburritas Não é propósito desse artigo, relembramos, esmiuçar usos linguísticos dos bamburristas, nem listá-los em sua complexidade, dado o pouco espaço de um artigo e a complexidade do tema. Nem ao menos iremos aqui teorizar desnecessariamente acerca de pontos da linguística sabidamente conhecidos e já devidamente tratados em outros lugares. Mesmo porque o material gerador desse artigo não trata especificamente de usos linguísticos de bamburristas, reiteramos, mas de como esse grupo social constroi sua identidade sociocultural a partir de algumas ferramentas simbólicas das quais lança mão. A questão que se apresenta nessa oportunidade encontra-se muito mais à espera de alguém que se debruce sobre a mesma e, efetivamente, consiga lançar alguma luz sobre o mundo linguístico de bamburristas e, de modo especial, sobre os usos que fazem da língua(gem). Nossa intenção é tão somente chamar atenção para o fato de que tais usos são um dos principais, senão o principal, componentes construtivos de sua identidade sociocultural. Inicialmente alertamos para o fato de que a maioria dos bamburristas de opala do município de Pedro II, cerca de noventa por cento, pratica a agricultura de subsistência9 nos meses de chuva, entre dezembro e março. Com isso queremos dizer que tais bamburritas exercitam usos linguísticos praticados pelo componente de práticas de campesinato10 e, ao mesmo tempo, usos linguísticos restritos ao ambiente de garimpo11 de opala. Não restando, porém, dúvidas quanto ao fato de que os componentes do grupo se veem como pequenos garimpeiros (bamburristas) e as práticas de campesinato têm menor importância para eles, uma vez que se reconhecem como garimpeiros. De uma maneira geral a gama de expressões empregada por bamburritas gira em torno das práticas garimpeiras, com seus afazeres, sua ritualidade, durante o tempo em que estão trabalhando; mas posteriormente também, quando bamburristas se encontram à noite na calçada da cooperativa de garimpeiros. Vocábulos que fazem referências a ferramentas e seus processos de uso delineiam campos semânticos, vocabulário e uma sintaxe própria. Do ponto de vista da funcionalidade, podemos dizer que as ferramentas são concretas e simbolicamente extensões dos corpos e mentes de bamburristas. Nesse sentido, os bamburristas são mostrados como máquinas humanas conjugadas às ferramentas, extensão naturalizada de seus braços, cuja função é extrair a gema bruta das entranhas da terra. Seus corpos envoltos em roupas velhas, lenços cobrindo-lhes o rosto, chapéus de abas longas para barrar os raios do sol inclemente, posam [referência a um catálogo de jóias de opala] ao lado de um montículo de gemas igualmente rotas porque ainda envoltas pelo barro sob o qual descansavam antes (LIMA, 2008, p. 171).

Os usos linguísticos, com frequência fazem menção às difíceis condições de trabalho de bamburristas. Mais uma vez, lembramos que a situação de precariedade12 de bamburristas não é exceção, mas regra no capitalismo. Eclea Bosi chama nossa atenção para o fato de que a estética neocapitalista tem “desprezo pelas coisas gastas, usadas, como marcas do trabalho e da vida” (BOSI, 2003, p. 167), instaurando um consumismo degenerador e insano que vai de encontro ao conceito de sustentabilidade13. Nada mais desgastado na cadeia produtiva da opala (CPO) do que as ferramentas de Tipo de agricultura que consiste fundamentalmente em consumir boa parte do que os campesinos produzem, havendo a venda do excedente, quando necessário. 10 De fato, configura-se um conflito entre a lógica de mercado da qual comungam AJOLP, APROPI e demais entidades e instituições participantes do arranjo (inclusive, de certa forma, a COOGP) e a lógica garimpeira (BARBOSA, 1991) dos bamburristas, no âmbito tanto da cadeia produtiva quanto do APL Opala; conflito esse mantenedor da figura dos bamburristas como sujeitos socialmente subordinados e estigmatizados (GOFFMAN, 1982) isto é, nas mesmas condições, ou algo muito próximo, do eclipse da categoria, anterior à implementação do arranjo produtivo (LIMA, 2008, p. 188). 11 Tomamos o termo garimpo, aqui, além do registro geográfico isto é, lugar onde bamburristas extraem a opala, também no sentido simbólico, uma vez que o termo é gerador de uma infinidade de situações de comunicação no cotidiano de bamburristas independentemente destes se encontrarem fisicamente ou não no garimpo. 12 “formas precárias de inserção no mercado de trabalho, como os baixos salários, o desemprego, os empregos temporários, a alta rotatividade, a assustadora e crescente informalização etc” (FAGNANI, 2001, p. 120) são as partes mais visíveis do estado de precarização que assola a classe trabalhadora brasileira (LIMA, 2008). 13 O desenvolvimento sustentável é aquele que atende às necessidades do presente sem comprometer a possibilidade de 9

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bamburristas e, paralelamente, são os bamburristas os sujeitos fisicamente mais sacrificados, aqueles sobre quem o ônus das horas de trabalho deixa suas marcas e cicatrizes, quando não a morte. Os usos linguísticos de bamburristas revelam a evocação do vivido (histórias de bamburristas, acidentes, mortes e momentos felizes, dificuldades cotidianas, o descaso das autoridades para com o grupo; e resistência ao longo de seis décadas). Ao mesmo tempo diagnosticam o presente na medida em que referências ao garimpeiro, ao trabalho no garimpo, ao coletivo dos bamburristas nos servem de temáticas possíveis para a construção do mundo do garimpo e, consequentemente, de sua identidade (e da memória). Outro aspecto a ser considerado nos atos de fala dos bamburristas é o fato de que estes lidam com a terra, no sentido pragmático (ao exercerem a garimpagem) e simbólico (usos linguísticos), durante boa parte de suas vidas, quer como bamburristas, quer como campesinos. No primeiro momento extraindo gemas do subsolo, no segundo momento plantando e colhendo. Ambas as atividades concentram certo grau de incerteza, pois são dependentes daquilo que bamburristas definem como sorte, o acaso a seu favor. É preciso sorte para encontrar a gema rara que se esconde dos olhos de quem a procura, ofuscada pela areia, assim como também é preciso sorte para que tenham um bom inverno, que é como eles denominam a estação chuvosa. Ambas as atividades podem ser vistas como matrizes geradoras de uma semântica, de uma sintaxe e de uma morfologia que se tocam em alguns pontos, delineando e sendo delineadas por discursos que se concretizam em atos de fala, em atos linguísticos, como já dito aqui, em que o desconhecido, as intempéries do clima e da sorte são amainadas, domesticadas e, finalmente, enquadradas e rotinizadas, pois, do contrário, seria impossível que bamburistas e mineradores em geral pudessem desenvolver a contento suas práticas garimpeiras, como observa Barbosa, 1991. 6. A linguagem, essa faca de dois gumes Nossa pesquisa revelou que a maneira como bamburristas lidam com a linguagem revela algumas coisas interessantes, como o fato de, dependendo de sua avaliação sobre o quanto perdem ou ganham simbolicamente ao fazerem uso da linguagem, de atos linguísticos, se dirigem a seus interlocutores. Dessa forma, muitos se expressam, com relação ao ato de garimpar a opala, de forma instigantemente metafórica, como sendo, tal ato, “uma cachaça”, “um vício”, “um jogo”. O emprego desses vocábulos pelos atores sociais, dependendo do lugar, e do momento, poderá comprometê-los perante terceiros, principalmente quando parte de lideranças garimpeiras, de quem se espera um discurso mais sóbrio. Contudo, [...] esse jeito de ser é parte das identidades socioculturais desses bamburristas (LIMA, 2008, p. 54).

A palavra opala, por exemplo, que morfologicamente significa pedra preciosa, dependo do sentido que bamburristas querem imprimir ou causar em seu interlocutor pode significar mulher, coisa difícil, sorte, azar, dificuldade, dinheiro, etc. Bamburristas fazem uso da linguagem para delimitar, filtrar o que não-bamburristas devem ou não saber, compreender acerca dos mistérios da opala, das coisas escondidas debaixo da terra, das sabedorias da terra, como diz esse bamburristas experiente: Eu lhe dizer que não tem jeito, não tem jeito. O sujeito trabalha na montoeira, um cava, tira uma, duas, três pedras, aquilo que ele tira a quarta,... Se tem mesmo pedra, pode ficar na certeza que passou. Aí vai peneirar, dá outro bocado. Se vai lavar, dá outro bocado. Não tem fim. Você tem de jogar porque vai ter que ficar, porque todo minério tem o pagamento da terra14

Nesse sentido, podemos dizer que lançam mão de uma gíria de bamburistas, esta mesma rica e diversificada, assimilando novos termos e expressões ligadas geralmente ao processo de extração e manuseio da gema. as gerações futuras atenderem às suas próprias necessidades. Em outras palavras, é o equilíbrio na convivência entre o homem e o meio ambiente . http://www.blogbrasil.com.br/conceito-de-sustentabilidade/ (2008). 14 Sr. Benedito Pereira, bamburrista, 65 anos, Pedro II. Entrevista concedida a Ernâni Getirana de Lima, em 20/10/2007.

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7. Conclusão Embora a exploração de gemas de opala no município piauiense de Pedro II venha ocorrendo nas seis últimas décadas, bamburristas, grupo social constituído por cerca de seiscentos homens com idade entre dezoito e setenta e cinco anos, situados na base da cadeia produtiva dessa gema, não têm sua legitimidade de sujeitos protagonistas reconhecidos quer pelos demais sujeitos da cadeia, quer pela sociedade local. Bamburristas, contudo, vêm construindo sua identidade sociocultural de diversas formas, lançando mão de vários artifícios legítimos, com os quais se identificam. O uso linguístico é um dos elementos centrais na construção de sua identidade sociocultural. Referências ANTUNES, R. As formas contemporâneas de trabalho e a desconstrução dos direitos sociais. In: SILVA, M. O. S. Políticas públicas de trabalho e renda no Brasil contemporâneo. São Paulo: Cortez, MA: FAPEMA, 2006, p. 41-51. BARBOSA, L. Garimpo e meio ambiente: água sagrada e águas profanas. In. Estudos Históricos, Rio de Janeiro, vol. 4, n.8, 1991, p.229-243. Disponível em <http://www.cpdoc.fgv.br/revista/arq/87.pdf>. Acesso em: 20/2/2007. BARONAS, R.L. Pela criação do museu da diversidade linguística de Mato Grosso, 2004. Disponível em: http:// www.secom.mt.gov.br/conteudo.php?sid=22&cid=7310&parent=0 Acesso: 03/01/2009. BERTALANFFY, Ludwig Von. Teoria Geral dos Sistemas. Ed. Vozes;1975. BOSI, E. O tempo vivo da memória. 2. ed. São Paulo: Ateliê Editorial, 2003. DECA, E. S. Cidadão, mostre-me a identidade. In: Cad. Cedes, Campinas, v.22, no 58, p. 7-20, dezembro 2002. ECKERT, C. Ritmos e ressonâncias da duração de uma comunidade de trabalho: mineiros do carvão (La Grand-Combe, France). Cadernos de Antropologia. UFRG, 1993, nº. 11. FAGNANI. E. Avaliação do ponto de vista do gasto e financiamento das políticas públicas. In. RICO, E. M. (Org.). Avaliação de políticas sociais: uma questão em debate. São Paulo, IEE, 2001, p. 119-130. LIMA, E.G. Bamburristas da terra da opala: Identidade sociocultural e os desafios frente a políticas de inserção produtiva em Pedro II. Dissertação (Mestrado em Políticas Públicas). Universidade Federal do Piauí, Teresina. Teresina: UFPI, 2008. MARCUSCHI, L. A. Da fala para a escrita: atividade de retextualização. São Paulo: Cortez, 2001. ORLANDI, E.P. A linguagem e seu funcionamento: as forças do discurso. 2.ed. rev. e aum. Campinas, SP: Pontes, 1987. PESSOA, D. L. Linguística e preconceitos. Disponível em www.millenium.pt Acesso: 02/01/2009. ROTHSTEIN, B. Just Institutions Matter. The moral and Political logic of The Universal Welfare State. Cambridge University Press. SILVA, M. O. S. Avaliação de Políticas e Programas Sociais: aspectos conceituais e metodológicos. In: SILVA, M.O.S. (Org.). Avaliação de Políticas e Programas Sociais: teoria e prática. São Paulo, Veras Editora, 2005 (Série Núcleo de pesquisas; 6), p.37-93. SPINK, M.J.P.; MEDRADO, B. Produção de sentidos no cotidiano: uma abordagem teórico-metodológica para análise das práticas discursivas. In: SPINK, M. Práticas discursivas e produção se sentidos no cotidiano: aproximação teórica e metodológicas (Org.). São Paulo: Cortez, 1999. STRAUSS, C; CHARBONNIER, G. Arte, linguagem, etnologia: entrevistas com Claude Lévi-Strauss. Papirus, Campinas, 1989.

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Tema geral: Línguas e Literaturas: Diversidade e Adversidades na América Latina VIOTT, E. O que é linguística. In: Introdução aos estudos linguísticos. Florianópolis, UFSC, 2007. Disponível em: http://www.libras.ufsc.br/hiperlab/avalibras/moodle/prelogin/adl/fb/logs/ Arquivos/textos/ introducao_aos_estudos_linguisticos/1_O%20que%20%E9%20lingu%EDstica.pdf www.abralin.org/ABRALINIPHAN/INDL.doc. Acesso: 06/03/2009. www.blogbrasil.com.br/conceito-de-sustentabilidade/ (2008).

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AS RELAÇÕES INTERACIONAIS NA ELABORAÇÃO DO CONHECIMENTO Estevão Domingos Soares OLIVEIRA (Universidade Federal da Paraíba)

RESUMO: Segundo Marcuschi (2007), na conversação, os participantes falam ao mesmo tempo, misturam tópicos da conversa, não terminam observações, atravessam histórias contadas, “andam” de um assunto para outro facilmente. Diante desse aparente caos, é possível absorver conhecimento com tantos desvios na organização da fala? Esse caos faz sentido quando inserido num contexto. Este trabalho analisa os efeitos da interatividade na construção conceptual de enunciados situados contextualmente a partir do estudo de recursos linguísticos usados com as funções comunicativas de repetições e hesitações, reparos e correções. Para o desenvolvimento deste trabalho, foram utilizados dados gravados em áudio coletados num contexto escolar de sala de aula. Tais dado foram transcritos e avaliados. Concluímos que, como na escrita, existem regras na conversação e há organização dos participantes da interação para que haja compreensão dos enunciados. As descontinuidades da fala não resultam da falta de planejamento, mas são recursos que operam sóciocognitivamente e promovem comunicação, interação e construção de conhecimento entre os indivíduos. PALAVRAS-CHAVE: Cognição; interação; descontinuidades; conhecimento.


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1. Introdução Por muito tempo valeu a crença que estudar a língua era estudar gramática. No entanto, muitos de nós nos vimos diante de eventos em que a teoria gramatical, apesar das inúmeras regras, parecia insuficiente para responder a todos os casos que a língua demonstrava abranger. E se analisarmos um pouco, não é tão difícil perceber que a Gramática Tradicional realmente não dá conta da riqueza da língua. Outro ponto é o fato de que desconhecer uma regra gramatical da língua escrita não significa que alguém não possa utilizar essa língua para se comunicar. Felizmente, atualmente muitos são os linguistas que entendem a necessidade de abandonar os preconceitos e apresentar fundamentos para o estudo da oralidade. Estes procuram cada vez mais estudar a língua como um todo, sem supervalorizar uma de suas modalidades em detrimento da outra. Nossa investigação parte da premissa de que a conversação, como algo altamente organizado, também é reflexo de um processo onde as decisões interpretadas pelos interlocutores decorrem de informações contextuais e semânticas mutuamente construídas ou inferidas de pressupostos cognitivos, étnicos, culturais, entre outros. Consequentemente, a linguagem humana é tida como um lugar de interação, de constituição das identidades, de representação de sentidos, não sendo apenas lugar de representação do mundo e do pensamento ou apenas instrumento de comunicação, mas sim, acima de tudo, uma forma de interação-social. Entendendo a gramática como instrumento de conceptualização e fazendo uma revisão do compromisso cognitivista, chegamos à conclusão de que a gramática constitui um modo de interação social. Assim, o objetivo geral deste texto é estudar as hesitações, repetições, reparos e correções da linguagem e o papel da interação social e da cognição em seu planejamento. Deste modo, a execução deste trabalho procura investigar, a partir de teorias e de dados orais coletados, como a conversação se estrutura para favorecer a organização e a administração das relações interativas na construção do conhecimento. 2. Fundamentação teórica Nossos estudos são desenvolvidos a partir de teorias da Análise da Conversação, interação na linguagem e prioritariamente dos enfoques sócio-cognitivos. Desta maneira serão privilegiados, por exemplo, dentro da Análise da Conversação, os estudos de Luiz Antonio Marcuschi (2007); Interação na linguagem, nos estudos de Ingedore Koch Vilaça (1992), e a sócio-cognição nos estudos de Lorenza Mondada (2001) e Margarida Salomão (1997). Koch (1992) defende a teoria da linguagem humana ser um lugar de interação, de constituição das identidades, de representação de sentidos, não sendo apenas lugar de representação do mundo e do pensamento ou apenas instrumento de comunicação, mas sim, acima de tudo, uma forma de interação-social. Para defender sua teoria, Koch analisa vários textos procurando descrever e explicar a capacidade do ser humano de interagir socialmente por meio de uma língua. Esclarece a distinção entre linguagem falada e linguagem escrita, além disso aborda sobre as características próprias da interação face a face, tais como: a) Não é planejável de antemão; b) Tem natureza altamente interacional; c) É localmente planejada ou replanejada a cada ¨lance¨ do jogo; d) O texto falado apresenta seu próprio processo de construção; e) Apresenta descontinuidades, derivadas de fatores cognitivo-interativos; f) O locutor não é o único ser responsável pela produção de seu discurso; g) O ouvinte/leitor não é absolutamente um ¨receptor¨ passivo, já que lhe cabe ATUAR, e reconstruir um sentido, criar uma leitura. Marcuschi (2004) analisa a natureza da interação em aulas expositivas universitárias, observando as relações dialógicas existentes, considerando, a diferença entre diálogo na conversação espontânea e o dialogo na aula expositiva. Também analisa a diferença entre a interatividade e diálogo, que não são sinônimos, é possível ser interativo sem dialogar, mas não o contrário, por esta razão o diálogo é uma das estratégias da interação. O estudioso categoriza as aulas expositivas em: Aula Ortodoxa (uma aula com raros desvios de tópico, geralmente sem intervenção dos alunos

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ou com intervenções breves); Aula Socrática (o professor não anuncia o tema de forma direta e tem a convicção que o aluno sabe algo que deve ser compartilhado); Aula Caleidoscópica (o aluno tem grande participação espontânea e o tema acaba sendo deslocado); Aula Desfocada (o professor trata de muitos temas, pouco interligados ou cede as provocações dos alunos, aparentando ser uma aula sem planejamento). Feita esta categorização, o autor afirma que o ideal seria o equilíbrio entre a apresentação do tópico e a atividade sócio-interativa. Defende o fato que a continuidade, ruptura e integração são três aspectos que não conflitam, mas fazem parte do processo dinâmico da aula expositiva e também defende a hipótese de que as aulas expositivas universitárias ao desenvolverem um tópico, devem receber significativas contribuições dos alunos e não apenas do professor. O foco deste estudo é a contribuição que as intervenções espontâneas dos alunos e os diálogos suscitados pelo professor trazem à organização tópica e definição temática. Salomão (1997) faz um levantamento histórico sobre a vertente funcionalista dos estudos da linguagem, na qual, o principal motor analítico é a abordagem da gramática como fenômeno, que substitui o estudo da gramática como estrutura. A autora discute dois princípios que se comprometem a estudar a sensibilidade da expressão linguística (e, particularmente da gramática) às pressões do uso. São eles: 1 - O principio da escassez da forma linguística (a subdeterminação do significado pelo significante); 2 - O principio do dinamismo da determinação contextual (a dimensão contextual na explicação do fenômeno linguístico). A hipótese que a autora adota em respeito ao primeiro princípio é que a significação é uma construção mental produzida pelos sujeitos cognitivos no curso de sua interação comunicativa. Já em relação ao segundo, ela diz que ao adotarmos uma compreensão fenomenológica entendemos o contexto como modo de ação, constituído socialmente, interativamente e temporalmente delimitado. Dentro deste segundo principio, Margarida Salomão afirma que o processo da avaliação pode instaurar um novo ato comunicativo, a rigor, uma nova proposição no meio da enunciação de uma única sentença. Salomão, também aborda a compreensão do funcionamento da gramática como instrumento de conceptualização, para isso, ela faz uma revisão do compromisso cognitivista, abordando a linguística Chomskyana que defende a linguagem como um processo natural, programado biologicamente e fortemente endógeno. Por fim, ela apresenta outra concepção de gramática em que a trata como estrutura, ou seja, ela não só organiza a interação como por ela está influenciada. A gramática constitui um modo de interação social. A autora propõe um novo tipo de abordagem do discurso que combine o reconhecimento da cooperatividade de sistemas não linguísticos com uma perspectiva de análise expressamente linguística. 3. Metodologia A pesquisa apresentada, seguindo padrões desenvolvidos no estudo etnográfico/ interpretativo, utilizou dados gravados em áudio na sua totalidade autêntica de uso. O equipamento utilizado em campo para obter as gravações deste trabalho foi um aparelho MP3; a complementação de dados se realizou por anotações específicas em caderno, contendo observações importantes como números de alunos, duração da aula, datas e eventos do tipo. 3.1. Coleta e Transcrição O campo de trabalho onde foram coletados os dados foram salas de aula de quinta série do ensino fundamental de uma escola pública de João Pessoa. Além das anotações de campo, coleta de materiais e documentos, o uso de gravações mecânicas pôde auxiliar em todo o processo de análise dos dados através da possibilidade de uma volta aos acontecimentos e eventos pesquisados, dando mais acuidade ao trabalho. As gravações foram feitas durante as observações participativas, mas procuraram não interferir na naturalidade dos eventos, o que criaria um efeito artificial. Deste modo, do total de aulas gravadas, apenas uma parte foi transcrita, dando preferência as aulas com melhor

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qualidade de áudio e com maior número de ocorrências de correções e reparos. Assim, chegamos ao total de três narrativas, divididas por disciplinas acadêmicas das aulas nas quais os trechos se inserem num total aproximado de 40 minutos de gravação. Tabela 1 – Detalhes do Campo de Coleta de Dados

3.2. Regras para transcrição Tabela 2 – apresenta as regras de transcrição utilizadas neste trabalho

4. Análise dos dados As análises foram divididas em duas categorias de recursos linguísticos que contribuem para a hipótese de uma gramática interacional (conjunto de procedimentos que dão forma à interação),

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quais sejam: a) repetições e hesitações; b) reparos e correções. Mostramos agora alguns resultados obtidos a partir da constatação destas duas categorias nos dados coletados: 4.1. Repetições e Hesitações As repetições e as hesitações - as rupturas de construção - funcionam como as temporalizações na expectativa que a coordenação entre os locutores produz, ou mesmo como os marcadores de um ato de pedido, assinala ao destinatário que sua expectativa é requerida. Estas descontinuidades micro e macro sintáticas são ligadas à planificação da linguagem oral e têm sido sempre sub-avaliadas em uma perspectiva normativa e idealista da língua, e um enfoque interacional permitindo melhor compreender como relevantes às atividades de organização da conversação, entendidas como um trabalho coletivo de estruturação. No quadro apresentado temos um trecho retirado de uma das aulas transcritas, como exemplo do uso dos mecanismos de repetição e hesitação. Transcrição 1, Aula de Português, 4ª série, Escola 1, Leitura e Compreensão de texto 1. 2.P 3.A 4.P

(...) bom (+) pedrinho cadê seu material?(+) que material? (+) de artes agente vai corrigir agora (+) agente vai corrigir a tarefa de ARtes (+) ta (+) corrigir a tarefa de artes (+) pega o caderno (+) 5.A pegar o caderno? 6.P bom (++) olha só fernando (++) olha só agente começou a estudar(+) né sobre a vida e a obra de candido portinari (+)que candido portinari(++)(...)pronto (+) foi um dos gran/ né foi um dos mais importantes homens do nosso tempo e por sua mão (+) por suas mãos né (+) por que pintavam(+) nasceu/agora éh:: olha(+)uma coisa que rafael colocou e que outras pessoas deviam ter colocado (+)nasceu a cor e a poesia porque portinari ele só pintou ?(+) ele só pintou quadros?(+)ele tinha éh:: representação na parte de literatura com poesias?(+) tinha também num é (+) éh com seus pincéis (+) na letra b “com seus pincéis (+) com seus pincéis ele tocou (+) com seus pincéis ele tocou fundo em nossa realidade” (+) douglas fez ?(+) bora lá douglas (+)(...)então você tem aí “com seus pincéis ele tocou fundo em nossa realidade” (+) éh ::com seus pincéis ele usou ah::: ah (+) “ele pintou a terra o povo brasileiro os camponeses os retirantes as crianças os santos e artistas de circo (+) os animais a paisagem” (+) tudo isso éh:: (+) constituíram a sua obra éh :: óh é uma matéria (xxx) (+) ah::: camponeses (+) retirantes (+) crianças(+) artistas de circo (+) são a matéria com que trabalhou (+) e construiu todavia sua (+) a sua obra e (+) se tornou imortal (+) né porque? (+)agente ta (...) Portinari também foi poeta (+) e a sua obra (+) a sua obra de literatura tem a mesma temática (+) ou seja (+) retrata o povo brasileiro crianças artistas de circo(...)sim porque heim gente? porque? ele pintava o quê? sobre o brasil ? e fez com que o brasil ? 7.A as pessoas (+) 8.P éh:: (+) que fez com que o brasil se projetasse (+) inter/internacionalmente (+) ahn?(+)as pessoas (+) como gerlane colocou só isso ? éh:: a vida (+) o cotidiano (+) brasileiro certo (+) isso aí foi (+) um dos marcos de toda a obra de Portinari (+) certo (+) (xxx) psiu desliga aí (+) porque pra gente vai (+) a gente vai vê agora (+) a parte de português tá (+) 9.A um hum (+) 10.P então olha só (+) éh:: raiane (+) seu caderno tá todo ok com as perguntas? (xxx) e de artes?(+) fez tudo?(+) porque depois (+) eu não trouxe os diários né (+) depois eu vou pegar os diários (+) ai vou olhar as perguntas não quero achar nenhum erro agora nós vamos dá uma relemBRADA em pre-po-sição (+) pre-po-si-ção (+) que vocês estudaram ano passado com

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certeza (+) então as preposições (+) elas são PAlavras INvariáveis (+) né (+) são palavras invariáveis significa o quê? que não vai mudar certo!(+) São palavras invariáveis que servem para ligar os nomes (+) das frases certo (+) então olha só (+) as preposições éh::: (+) as principais preposições que nós temos (+) a antes após até com contra desde em entre (+) para (+) perante por sem (+) sob (+) (xxx) certo (+) éh: e a partir(...)você leu sobre aquele assunto? (+) óh (+) aonde que tá a preposição?(+) sobre (+) sobre (+) quem mais? vai vinícios (+) desde de mil novecentos e oitenta e nove que eu luto (+) desde de mil novecentos e oitenta e nove que eu luto (+) agora não não tá bom esse pirulito na boca né vinícious(+) logo cedo assim (+) agora quero ouvir das meninas (+) agora (+) daiane (+)(...)= pronto(+)sem você olha além de ser uma frase(+) é uma é uma frase romântica(+) sem você eu não vivo temos uma preposição(xxx)((vozes simultâneas de alunos e professora)) (...) psiu um de cada vez calma (+) professora (+) ahn (+) (xxx) tá certo (+) tá certo (+) pedro ela foi a piscina(...)

Este trecho é um exemplo real de atividade interativa entre a professora e seus alunos no qual se utilizam os recursos de hesitação e repetição como ferramentas de uma melhor formulação do segmento discursivo. Primeiramente iremos observar o uso do mecanismo de repetição em suas variadas formas, em seguida estará exposta à análise do mecanismo de hesitação. Logo no início da transcrição (turno 3) temos um exemplo de repetição heterocondicionada, isto é, provocada pelo interlocutor, no caso, um aluno, que provavelmente não lembrava de qual material a professora estava tratando, o mesmo acontece no (turno 5). Já no turno 4, observamos o uso do mecanismo de repetição feita pela professora, neste caso, temos o exemplo da repetição como processo de inserção, ou seja, a professora faz uma auto-repetição, pra atenuar, chamar a atenção dos alunos para a próxima atividade: a correção da tarefa. O mesmo acontece no ponto 6, linha 2, a professora repete o nome do pintor para reforçar a assimilação dos alunos. “As inserções ou digressões constituem um fenômeno bastante comum na conversação. De um modo geral, elas não só não prejudicam a coerência, mas, pelo contrario, muitas vezes ajudam a construí-la.” ( Koch 1992, p.97). Ainda no ponto 6, linhas 3 e 4 o uso da repetição, já não é mais um processo de inserção, mas sim de reconstrução. A reconstrução consiste em uma reelaboração da sequência discursiva, que provoca também uma diminuição de ritmo no fluxo informacional, com a volta de conteúdos já veiculados, ou seja, é como se ocorresse uma patinação na progressão discursiva. Sua função é, geralmente, a de formular melhor ou reformular um segmento maior ou menor do texto já produzido, às vezes para sanar problemas, detectados quer pelo próprio locutor, quer pelo parceiro. As repetições como processos de reconstrução, têm função semelhante às correções (reparos), isto é, a de sanar problemas detectados (pelo próprio locutor ou pelo parceiro) em segmentos enunciados anteriormente: repete-se ou parafraseia-se o que foi dito, quando se percebe que o parceiro não compreendeu bem, para evitar mal-entendidos devidos a ruídos externos ou distrações do interlocutor, etc. Agora, como foi dito anteriormente, utilizando à mesma aula, analisaremos o uso do mecanismo de hesitação. Em vários momentos no texto temos exemplos de hesitações com caracterizada pelo alongamento de vogais, como podemos observar no ponto 6/linhas 4, 6, 11, 13, 14); ponto 8/linhas 1,2; ponto 10/linhas 1, 8. Em geral as hesitações ou pausas preenchidas servem como momentos de organização e planejamento interno do turno e dão tempo ao falante de se preparar. Marchuschi (2002). Foi o que justamente aconteceu nos exemplos citados anteriormente.

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Uma hesitação, por exemplo, pode ser um convite à tomada de turno, é o que acontece no ponto 8/linha 2 quando a professora hesita ahn. No ponto 6/linha 11 a professora usou o mecanismo da hesitação pra ganhar tempo e reformular melhor o seu turno de fala ( éh ::com seus pincéis ele usou ah::: ah (+) ele pintou...) Quando o locutor procura resolver as dificuldades paralelamente ao próprio processamento, ocorre então o fenômeno da hesitação KOCH (1992) “o uso desses recursos tem por objetivo garantir ao locutor o tempo necessário para o planejamento mais adequado de seu discurso.” (Koch 1992,p.105) o locutor tenta resolver os problemas durante a própria formulação. As hesitações, pausas e os silêncios são organizadores locais importantes, podendo configurar lugares relevantes para a transição de um turno a outro (Marchuschi, 2002). É o que ocorre no ponto 10/linha 4 o discurso é construído pausadamente a fim ser claro à compreensão dos alunos. Transcrição 2, Aula de Português, 4ª série, Escola 1, Ortografia 1.P 2.A 3.P 4. 5. 6. 7. 8. A 9. P 10. 11.

(...) peraí... / com licença / felipe / por que rr não é encontro consonantal? éé::: /.../ ah / ah / ah / ah / ah / com licença / carlos felipe não está prestando atenção Então eu acho que ele já sabe do assunto...certo? eu quero saber de carlos felipe / Carlos felipe... iuri falou que rr não é encontro consonantal porquê? (5s) r-r não é encontro consonontal porquê?... nós aqui estamos vendo pr dr tr br / e aí alguém Gritou rr e iuri falou... erre erre não é encontro consonantal...por que? [ é dígrafo Calma ] / eu quero que o carlos felipe ... carlos/ eu acho que só tem um carlos felipe Nessa turma / respeite / porque rr não é considerado encontro consonantal? Procura na sua gramática [...]

No exemplo acima, retirado de uma aula de português em que a professora explica questões de ortografia, sobre encontro consonantal, percebe-se que a atitude comunicativa de repetição (linha 4) partiu da professora a um aluno com a intenção de enfatizar que outro aluno, especificamente, respondesse. Ocorre um exemplo de repetição exata na linha 5, ou seja, a expressão da mesma ideia com as mesmas palavras e a mesma entonação. Temos uma pausa que exemplifica uma hesitação de planejamento de discurso (linha 5). Há um exemplo de retomada quando a professora retoma o discurso de que um aluno especificamente responda (linha 9). O uso dos recursos hesitação e repetição têm por objetivo garantir ao locutor o tempo necessário para o planejamento mais adequado de seu discurso. 4.2. Reparos e Correções Para qualquer intenção do falante, a regra é fazer-se entender ao(s) ouvinte(s). Desse modo, o falante visando uma melhor compreensão, planeja a organização da fala. No entanto, esse planejamento não é prévio como na escrita. Cada turno pode mudar o rumo da conversa, em consequência, todo planejamento na conversa espontânea é construído passo a passo pelos participantes (MARCUSCHI, 2007). Desse modo, aparece na construção da conversação uma grande incidência de descontinuidades que costumamos, por equívoco, chamá-las de falhas. A hesitação e a repetição, ou a avaliação, são exemplos dessas descontinuidades, mas apenas a correção e o reparo foram focos deste trabalho. Veja neste trecho da mesma aula um exemplo de descontinuidade: 82.

Transcrição 4 Prof.ª: eu conheço um peixe... que vive em água salgada... que é conhecido como baiacu... não é?... é o baiacu... é o peixe... não é?... que ele... tem embaixo de su/na barriga dele... quando ele se acha ameaçado... não é?... ou pelo homem ou por outro p/ por outros animais...ele incha...

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Na terceira linha do ponto 82, a professora pára o desenvolvimento de sua fala (p), então a preenche com o recurso da hesitação e finalmente dá continuidade à mesma retomando parte do segmento dito antes (por outro). Provavelmente, quando ela hesitou ao dizer p, ela iria dizer peixe, mas avaliou que não são apenas outros peixes que podem ameaçá-lo, então corrigiu o segmento que iria pronunciar o substituindo por animais. Este exemplo também nos deixa perceber que a correção normalmente não se manifesta sozinha, mas acompanhada de outros recursos. Transcrição 5, Aula de Português, 4ª série, Escola 1, Ortografia

1. P 2. 3. A 4. P 5. A 6. P 7. A 8. P

[...] aquele grupo acredita que a palavra gás ...deu e : : veio...veio...derivou-se...criou-se de gasoso...gasolina e gasosa...alguém tem alguma consideração sobre isso?/.../ [ professora] diz... Tiago e : : eles num disse que gás vinha de gasoso...gasolina e gasosa? [sim] mas é o contrário... a:::h![...] Transcrição 4, Aula de Português , 4ª Série, Escola 2, Substantivos

1. P 2. A 3. P 4. A 5. P

[...]substantivo pode ser derivado ... mas pra ser derivado ele veio de um adjetivo? não...adjetivo não [de um verbo tia?] oh:::lha...pegue a gramática [...]

Os mecanismos de correção e reparo são processos de reconstrução, ou seja, uma reelaboração da sequência discursiva, que tem uma função de formular ou reformular um segmento. No exemplo da transcrição 5, retirado de uma aula de português em que a professora explica questões de ortografia a partir da semelhança entre palavras primitivas e derivadas, percebe-se que a atitude comunicativa de reparo (linha 1) partiu da professora em relação ao turno de um aluno. Já na linha 7, um aluno analisa a suposição de outro grupo envolvido na atividade, chamando a atenção da professora e corrigindo a informação “mas é o contrário...¨. O exemplo demonstra que correção e reparo,como atividades interativas, orientam o processo comunicativo pondo em relevo as dúvidas e incompreensões sobre o tópico em curso e procedendo a reformulação e inserção de conteúdos que venham a favorecer a conceptualização das noções discursivas. No exemplo 2 (linha 3) a professora corrige o aluno que responde incorretamente. 5. Conclusão Se compararmos a língua escrita com a língua oral/falada tendemos a crer que a escrita é mais organizada. Esta crença nos é tendente porque esta modalidade da língua passa por um processo de reelaboração que corrige os “erros”. No entanto, quando se lê um bom texto, temos em mãos o resultado de todo um trabalho; não vemos as correções que foram feitas, e assim, somos levados a acreditar que quanto à organização, a escrita é superior a fala, pois o processo de reformulação que corrige e organiza a fala nos é explícito, ou seja, temos contato direto com as

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“falhas” da modalidade oral da língua. Contudo, não podemos afirmar que quanto à organização, a escrita é superior à fala, pois na verdade, a modalidade escrita também passa por processos de reformulação antes de se apresentar a nós, a questão é que não os vemos. Os recursos de correção e reparo apresentaram-se como atividades de reformulação/ reconstrução que podem organizar/orientar o processo comunicativo pondo em relevo as dúvidas e incompreensões sobre o tópico em curso, favorecendo assim a conceptualização das noções discutidas. O presente trabalho trata especificamente do fenômeno das repetições e hesitações como ocorrências de aparente descontinuidade sintática. Tais descontinuidades, depois de bem analisadas, são categorizadas como recursos interacionais utilizados pelos falantes em situações face a face, que compõem as bases de uma gramática da interação. Comprovamos que estas “falhas” são na verdade recursos interacionais que provam que a conversação possui regras e recursos que a orientam; que o uso dos recursos de correção e reparo não constituem meras descontinuidades. Tudo que é construído no decorrer de uma conversa tem além da intenção particular final do falante, a intenção essencial de ser compreendido. Sendo assim, cada descontinuidade visa promover a organização da fala a fim de promover uma melhor intercompreensão dos falantes. Referências KOCH, Ingedore. A inter-ação pela linguagem. São Paulo: Contexto, 1992. MARCUSCHI, Luiz Antonio. Análise da Conversação. São Paulo: Ática, 2007. _____. O diálogo no contexto da aula expositiva. Recife: UFPE, 2004 (mimeo) _____. Perplexidade e Perspectivas da Linguística na Virada do Milênio. In: Língua, Linguistica e Literatura. João Pessoa: Pallotti: 2005 MONDADA, Lorenza. Planification syntaxique des énoncés et séquentialité de la conversation. In: Problèmes de Sémantique et de relations entre micro- et macro-syntaxe. Actes des Rencontres de Linguistique BENEFRI-Strasbourg, Neuchâtel, 19-21 Mai 1994, 1995b. pp. 319-342. SALOMÃO, Margarida. Gramática e Interação: o enquadre programático da hipótese sócio-cognitiva da linguagem. Veredas. UFJF. Vo1. 1, no. l, 1997, pp.23-39.

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HISTÓRIA E FICÇÃO: O DIÁLOGO CRÍTICO DE MEMÓRIAS DE UM SARGENTO DE MILÍCIAS COM SEU TEMPO Evaneide Araújo da SILVA (UNESP)

RESUMO: este trabalho pretende fazer uma análise do romance Memórias de um sargento de milícias (1852-1853), de Manuel Antônio de Almeida, levando em conta certas características que diferenciam essa obra dos demais romances brasileiros do século XIX. Assim, objetiva-se fazer alguns apontamentos sobre o sentido realista e satírico da obra, para demonstrar seu caráter inovador em relação ao panorama literário do romance brasileiro do século XIX. Considerando que Memórias de um sargento de milícias não é um romance que se enquadra nos moldes do romantismo brasileiro, pretende-se apontar alguns traços que o afastam do momento literário que o romance brasileiro vivia naquele período. PALAVRAS-CHAVE: CRÍTICA SOCIAL; REALISMO; ROMANCE.

RÉSUMÉ: ce travail a l’intetion de faire un analyse du roman Memórias de um sargento de milícias (1852-1853), de Manuel Antônio de Almeida, en prenant en considération quelques caractéristiques qui font la distinction de cet oeuvre en relation à d’autres romans brésiliens du dixneuvième siècle. Dans ce sens, on objective faire quelques considérations sur le sens réaliste et satirique de cet oeuvre-là, pour démontrer son caractère inovateur en relation à le panorama littéraire du roman brésilien du dixneuvième siècle. En considérant que Memórias de um sargento de milícias n’est pas un roman qui a la feinte du romantisme brésilien, on prétend démontrer quelques traits qui l’éloignent du moment littéraire que le roman brésilien vivait au dixneuvième siècle. MOTS-CLÉS: CRITIQUE SOCIALE; RÉALISME; ROMAN.


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1. Introdução Memórias de um sargento de milícias (1852-1853) é um dos únicos romances de seu tempo (o século XIX), se não o único, que apresenta um diálogo crítico através da sátira e da comicidade, portanto realista, com esse período tão singular e tão intenso da história Brasil, mais especificamente do Rio de Janeiro, capital do país e palco de todas as importantes transformações que o atingiam. Quando Manuel Antônio de Almeida escreveu sua obra mais conhecida, com apenas 21 anos de idade, o Brasil ainda se formava como nação; o país ainda se ligava a Portugal por vários motivos, tanto econômicos quanto políticos. Já independente, façanha conquistada pelas elites em 1822, uma figura portuguesa continuava mandando e desmandando no cenário político: o imperador Pedro II impunha sua vontade em todos os setores sociais através do exercício do chamado Poder Moderador. Quando lhe interessava, ele dissolvia o gabinete ministerial e destituía quem estivesse no poder, fosse o Partido Liberal ou o Conservador, as duas forças políticas da época, que ora eram inimigas, ora aliadas, segundo os interesses do momento. No século XIX, um período bastante conturbado do ponto de vista político, os jornais eram os principais meios de comunicação; e não deixavam de claramente aliar-se a um ou outro partido político, defendendo de forma aberta seus interesses. Nesse sentido, a imprensa exercia um papel fundamental na vida política do país; os jornais eram verdadeiros cabos eleitorais dos partidos, e pelo seu poder de comunicação, exercido principalmente entre os setores mais abastados da sociedade que sabiam ler e tinham condições financeiras de adquirir o jornal, manipulavam abertamente o cenário político de acordo com seus interesses e os interesses daqueles a quem apoiavam. Assim comportava-se um dos jornais cariocas mais importantes da época de Manuel Antônio de Almeida, o Correio Mercantil, que circulou no Rio de Janeiro entre 1848 e 1868. Em 1848, Dom Pedro II derrubou o gabinete formado pelo Partido Liberal, no poder desde 1844, e convocou os Conservadores para formarem uma nova organização política. Esse fato provocou a ira dos Liberais, que viram o poder político lhe sendo tirado sem maiores explicações. A partir de então, numa luta verbal que duraria anos, o Partido Liberal atacava o Imperador e o seu partido aliado, os Conservadores, de todas as formas possíveis, formas essas que iam desde discursos políticos afiados e bem construídos até ofensas chulas dos mais variados tipos. De todos os jornais aliados ao Partido Liberal, o Correio Mercantil era sem dúvida o mais bem organizado, contando com uma boa equipe de redatores e um número considerável de assinantes. Segundo Jarouche (2002), o jornal era publicado quase todos os dias e contava com pouco mais de 2000 assinantes, um número bastante considerável para um período em que quase 80% da população fluminense não tinha acesso à leitura por conta do analfabetismo. Além das tradicionais seções com textos que versavam sobre assuntos da vida cotidiana brasileira, sobre a situação política do Brasil e sobre acontecimentos europeus, entre 1852-1854, o Correio Mercantil trouxe aos seus leitores uma novidade: aos domingos, uma seção humorística chamada “Pacotilha” dominava quase todas as páginas do jornal, trazendo aos seus leitores os mais variados textos, geralmente ligados ao humor e à galhofa. Na Pacotilha tinha de tudo: textos criticando a Câmara Municipal, críticas acusando o Partido Conservador de corrupto, desleal, incapaz, etc., notas de falecimento e utilidade pública, tudo no mais completo espírito de zombaria. Foi justamente nesse ambiente de “licença cômica” que surgiram pela primeira vez as Memórias de um sargento de milícias. Publicadas entre os anos de 1852-1853 em forma de folhetim na Pacotilha do jornal Correio Mercantil, as Memórias foram um dos primeiros romances brasileiros, talvez o mais importante da época, pela sua originalidade. Sem dúvida, quem lê a obra de Manuel Antônio e a compara com outros romances da mesma época (os de Alencar ou Macedo, por exemplo), perceberá que o livro possui um estilo e um conteúdo muito diferentes dos romances desses autores consagrados pela crítica e pelo público. Por conta de seu espírito inovador, Manuel Antônio de Almeida morreu no anonimato, e sua obra só alcançou o valor merecido já no final do século XIX, quando o realismo e naturalismo despontam como correntes literárias. Como notou Josué Montello (1955), “[...] as Memórias de um sargento de milícias teriam de ser, fatalmente, uma obra deslocada”, num “ambiente de aplauso à literatura romântica”. (p. 38).

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2. O diálogo crítico das Memórias com seu tempo Nesta oportunidade, pretendemos destacar o diálogo que o autor mantém com o seu tempo através de sua obra, destacando a originalidade e o diferencial da mesma, considerando seu caráter satírico-realista. A crítica literária geralmente destaca que quase todos os romances do século XIX mantinham um diálogo social com o seu tempo, em especial através do romance histórico, muito comum no romantismo. José de Alencar, por exemplo, seja no seu romance citadino ou indianista, retrata muitas situações sociais nas quais é possível ao leitor reconhecer o contexto político-social do Brasil do século XIX. Chega mesmo a criticar de forma aberta determinadas posturas da sociedade de seu tempo, embora o tom de crítica não seja o dominante de sua obra. Nesse aspecto, a obra de Manuel Antônio de Almeida nada apresenta de novo: o diálogo com a organização social de seu período é claro e evidente. Mas sem dúvida não é um romance como os outros da mesma época, e é essa originalidade que nos interessa retratar. Em primeiro lugar, Memórias de um sargento de milícias não é um romance romântico, cujo eixo central é a história de amor cheia de percalços entre dois jovens integrantes da classe nobre brasileira. Disso provém a diferença essencial e primeira do romance de Manuel Antônio: o tom cômico, essencialmente popular, carregado de um realismo de grande valor documental, em que os costumes de uma classe social jamais retratada em nossa literatura, nem antes e só muito tempo depois do aparecimento das Memórias, entra em cena. Esta é uma das características que constituem a originalidade dessa obra muito agradável de ler: foi o primeiro romance brasileiro a retirar seus personagens de uma classe social pobre (os então chamados homens livres), constituída pelas simpáticas comadres e pelos compadres, por barbeiros, meirinhos, mestres de reza e de cerimônias, granadeiros, donas de casa, e mesmo os amáveis e jovens malandros do tipo de nosso anti-herói Leonardo. Nessa esteira de novidades, temos ainda a marca inconfundível da comicidade, um dado que, no século XIX, só encontramos no teatro de Martins Pena. O alvo principal dos comentários cômicos e sarcásticos do narrador é a sociedade carioca do século XIX, com suas instituições corruptas, e mesmo os maus hábitos da classe média pobre que ele alegremente retrata, julgando sem o tom de fatalismo dos românticos. Jarouche (2002) considera mesmo que as Memórias “poderiam constituir uma espécie de sátira social, texto por meio do qual se condena a sociedade contemporânea”. (p. 33). De fato, as críticas bem-humoradas do narrador de Memórias de um sargento de milícias à sociedade da época de Manuel Antônio são explícitas e diferenciadas. Em nenhum romance desse período encontramos alusões críticas diretas ao rei ou à Corte, e a partir daí aos portugueses em geral, e muito raramente à organização política mantida pelas elites do país. O máximo que identificamos nos romances do século são críticas a determinados comportamentos sociais (Alencar, por exemplo, retratou criticamente o amor incondicional pelo dinheiro), mas nada que substancialmente pudesse aludir de forma crítica aos portugueses e à ordem estabelecida pelas instituições criadas por eles. Não é o que identificamos no romance de Manuel Antônio de Almeida. É muito encontramos no enredo referências pejorativas aos portugueses e mesmo à corte de D. João. O tom de ironia e oposição da obra toma como referencial o passado colonial, mais precisamente a época em que D. João VI permaneceu no Brasil (1808-1823), mas é provável que Manuel Antônio de Almeida na verdade referia-se era mesmo ao seu tempo, já que nenhuma mudança essencial tinha ocorrido na sociedade fluminense desde a chegada da Corte portuguesa. O deslocamento da ação de Memórias de um sargento de milícias no tempo talvez constitua uma estratégia de defesa adotada pelo próprio autor, que era consciente dos perigos a que estaria sujeito ao criticar instituições e partidos políticos de seu tempo. O próprio narrador, em vários momentos, deixa claro que há uma correspondência entre o tempo de ação da história e o momento em que ele a narra. É o que observamos nessa passagem: Um dia de procissão foi sempre nesta cidade um dia de grande festa, de lufa-lufa, de movimento e de agitação; e se ainda é hoje o que os nossos leitores bem sabem, na época em que viviam as personagens dessa história a coisa subia de ponto [...]. É quase tudo o que ainda hoje se pratica [...]. (ALMEIDA, 2004, p. 97).

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Identificamos na versão original do livro (a do folhetim)1 críticas diretas e em tom satírico dirigidas a todos os setores da sociedade fluminense do século XIX: a Igreja, a polícia, o judiciário, a educação, os imigrantes portugueses, a literatura e até mesmo a figura do rei. Como exemplo, citaremos algumas dessas passagens que revelam o caráter de galhofa da obra. No trecho que segue, verifica-se o tom de zombaria com que o narrador dirige-se ao modelo de homem romântico difundido pela estética romântica: “[...] mas o homem [Leonardo pai] era romântico, como se diz hoje, e babão, como se dizia naquele tempo; não podia passar sem uma paixãozinha [...]”. (ALMEIDA, 2004, p. 31).

Com o mesmo ar zombeteiro, o narrador destaca de forma bem humorada o comportamento do herói Leonardo, que quando encontra a encantadora Vidinha esquece seus primeiros laços amorosos com Luisinha. O primeiro amor, estado de alma tão valorizado pelos românticos, é aqui reduzido a uma aventura amorosa como outra qualquer: Portanto não foram de modo algum mal recebidas as primeiras finezas do Leonardo, que desta vez se tornou muito mais desembaraçado, quer porque já o negócio com Luisinha o tivesse desasnado, que porque agora fosse a paixão mais forte, embora esta última hipótese vá de encontro à opinião dos ultrarromânticos, que põem todos os bofes pela boca pelo tal – primeiro amor: - no exemplo que nos dá o Leonardo aprendam o quanto ele tem de duradouro. (ALMEIDA, 2004, p. 183-184)

Na passagem abaixo, evidencia-se o tom crítico com que o narrador se dirige ao sistema policial da época, marcado pelo despotismo e pela falta de leis; indiretamente, nota-se também uma alusão crítica à monarquia portuguesa, que regia o país mais ou menos nos mesmos moldes: Nesse tempo ainda não estava organizada a polícia da cidade, ou antes estava-o de um modo que bem denotava o caráter da época. O major Vidigal era o rei absoluto, o árbitro supremo de tudo que dizia respeito a esse ramo de administração; era o juiz que julgava e distribuía a pena [...]; nas causas que ele julgava não havia testemunhas, nem provas, nem razões, nem processo; ele resumia tudo em si [...]; fazia o que queria, e ninguém lhe tomava contas; exercia enfim uma espécie inquirição policial. (ALMEIDA, 2004, p. 44).

Na citação que segue, o narrador refere-se ironicamente à classe dos oficiais aposentados que levavam uma vida sedentária, ocupando um cargo potencialmente inútil para a nação; por extensão, percebe-se uma critica à pessoa do rei, que mantinha tais oficias a seu serviço sem nenhuma necessidade aparente: [...] passava ali [no pátio dos bichos] todos os dias do ano três ou quatro oficiais superiores, velhos, incapazes para a guerra e inúteis para a paz, que o rei a pretexto de seu serviço os tinha ali, não sabemos se com mais alguma vantagem de soldo, ou se só com mais a honra de serem empregados no serviço real. (ALMEIDA, 2004, p. 55).

A seguir, uma referência sarcástica ao sistema educacional da época, que associava o ensino formal à práticas despóticas de tortura física: “Era este [o mestre-escola] um homem todo em proporções infinitesimais, baixinho, magrinho, de carinha estreita e chupada [...], tinha pretensões de alatinado, e dava bolos nos discípulos por dá cá aquela palha; por isso era um dos mais acreditados da cidade”. (ALMEIDA, 2004, p. 71). Para este trabalho, utilizamos a edição lançada pela editora Globo em 2004, que toma como base o texto original das Memórias, publicado na Pacotilha do Correio Mercantil. Reginaldo Pinto de Carvalho (1999) fez um cotejo entre as versões de livro e folhetim, destacando as diferenças entre as duas. Defendendo a tese da autocensura, o crítico ressalta que possivelmente Manuel Antônio de Almeida operou um trabalho de “refinamento” quando da publicação da obra em livro, levado a cabo por vários motivos: correção de erros ortográficos, ajuste de frases para uma sintaxe mais adequada, suprimento de alguns trechos que aludiam mais diretamente à figura real, entre outros. Carvalho destaca que essas mudanças empreendidas pelo autor podem ter sido motivadas, entre outras coisas, pelo desejo de adequação, ainda que mínima, aos padrões da língua literária de então. Mas nada que tenha tirado o valor e a originalidade da obra, que continuou sendo uma das mais singulares de seu tempo. Nossa escolha por utilizar o texto que retoma a versão original do livro se deu pelo fato de que ela pode demonstrar mais adequadamente o diálogo crítico que estamos retratando. A versão revisada pelo autor não apresenta, entretanto, mudanças muito significativas: apenas as referências diretas à pessoa do rei sofreram maior censura; no geral, o tom e o estilo da obra são os mesmos.

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No trecho que segue, temos uma referência ainda mais direta e irônica ao rei. No capítulo em que é narrado o atrapalhado sermão num dia de festa religiosa (“Nova vingança e seu resultado”), no qual o Mestre de Cerimônias é enganado por Leonardo e seu companheiro de travessuras, o narrador insiste em citar a presença do rei, como querendo destacar que não só aquele evento religioso, mas todo e qualquer acontecimento da época girava em torno da figura real, ou mesmo dos descendentes da família real: A festa seguiu os seus trâmites regulares; [...]. Fez-se mais esta cerimônia, mais aquela, e nada de aparecer o homem; esperou-se um pouco, porém, oh! El-rei não devia esperar. [...] Subiram-se os apuros; el-rei começava já a franzir o sobrolho; não havia remédio; era preciso um sermão, fosse como fosse. (ALMIEDA, 2004, p. 82).

No mesmo capítulo, verificamos o tom pejorativo com que o narrador se refere à classe religiosa de então, e mais diretamente à figura dos padres: [...] era no sermão desse dia que o homem [o Mestre de Cerimônias] se empregava, muito tempo antes, pondo abaixo toda a livraria, e fazendo um enorme esforço de inteligência (que não era nele coisa muito vigorosa). [...]. Digamos entretanto que era bem mau caminho o tal sermão, porque se podia ele demonstrar alguma coisa era a insuficiência do padre para qualquer coisa desta vida, exceto para mestre de cerimônias, em que ninguém o desbancava. (ALMIEDA, 2004, p. 80).

O mesmo posicionamento antirreligioso notamos quando o narrador comenta a situação complicada em que o Mestre de Cerimônias se envolve por conta de envolvimentos amorosos com a cigana: Além disto o mestre de cerimônias, depois de graves meditações, sabendo que ficara malvisto de seus companheiros pelo escândalo que dera, se bem que fosse certo não estar nenhum deles a tal respeito em circunstâncias de lhe atirar a primeira pedra, [...] decidiu-se a abandonar a cigana, e assim o fez. (ALMEIDA, 2004, p. 94).

No capítulo em que Leonardo Pataca acerta contas com a mãe de seu filho, Maria da Hortaliça, por contas de traições amorosas, o narrador deixa transparecer uma crítica explícita aos portugueses, através dos diálogos dos personagens e mesmo dos comentários que ele próprio faz das atitudes da portuguesa Maria. Comentário do narrador: Afinal de contas a Maria sempre era ilhoa, e o Leonardo começava a arrepender-se seriamente de tudo que tinha feito por ela e com ela. E tinha ele razão, porque, digamos depressa e sem mais cerimônias, havia ele desde certo tempo concebido fundadas suspeitas de que era atraiçoado. (ALMEIDA, 2004, p. 18).

Diálogo de Leonardo Pataca com Maria: – Tira-te lá, ó Leonardo! – Não chames mais pelo meu nome, não chames, que senão tranco-te a boca com um par de murros... Dizem que os da tua raça dão coices depois de mortos, e tu deste-mo mesmo em vida, e foi mesmo na cara, nas minhas barbas!. (ALMEIDA, 2004, p. 18-19).

Passagens como essas, de tom abertamente crítico e sarcástico, são recorrentes, colaborando para dar ao livro o aspecto verossímil que o próprio narrador assume, quando desde o título dá a entender que elaborou a narrativa à base de memórias. O meio inicial de publicação do romance favoreceu o sentido realista, galhofeiro e irreverente da obra. Como já dissemos, ela foi primeiramente veiculada através do folhetim de um jornal, como também muitos outros romances de autores importantes, entre eles o próprio José de Alencar, que inicialmente publicou quase todos os seus romances em folhetins de jornais. Apesar dos romances-folhetins não serem bem vistos pelo meio literário de então, não houve no século XIX, segundo José Ramos Tinhorão (1994) um só romancista completamente alheio à influência do folhetim. Este meio de publicação era muito mais acessível e conquistava um número muito grande de leitores, um dado importante para os jovens romancistas do período que se lançavam à vida literária.

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O folhetim era, à época, uma espécie de casamento da imprensa com a literatura. Esse modelo de publicação nasceu na França em fins do século XVIII, começo do século XIX, como forma encontrada pelos donos dos jornais para adquirir um número maior de leitores e assim vender mais exemplares de seus jornais. A popularidade dos mesmos era tanta que muitas pessoas, em especial as mulheres, compravam o jornal todos os dias unicamente com a intenção de acompanhar os capítulos dos romances, que eram publicados um por vez, diariamente. Por seu caráter descompromissado, o folhetim permitia que os autores desses romances utilizassem uma linguagem mais aberta, livre de rebuscamentos, bem como o uso do humor e da sátira. Nesse sentido, favorecidas pelo maio de publicação, as Memórias apresentam características típicas da literatura cômica popular. Apesar de na época em que viveu Manuel Antônio de Almeida ser muito perigoso criticar partidos políticos e instituições oficias, no folhetim o escritor contava com uma certa margem de liberdade de expressão, ainda que pequena. Certamente os escritores nacionais receavam publicar no mercado editorial oficial uma obra literária na qual houvesse críticas explícitas aos portugueses, à polícia, ao clero ou a qualquer outra instituição oficial; isso só era possível mesmo nos folhetins, pois de certa forma as elites literária e econômica brasileiras não levavam a sério o folhetim. Os romances que ali se publicavam só mereciam atenção da crítica quando eram lançados em livro, e mesmo assim se estivessem de acordo com os padrões exigidos pela tradição, no que concerne ao estilo e ao conteúdo, e também com a estética literária então vigente no meio literário, o romantismo. Mesmo sabendo da parcial liberdade de que gozavam no folhetim, praticamente nenhum escritor brasileiro da época de Manuel Antônio de Almeida aventurou-se a escrever um romance que fugisse dos padrões, comumente copiados dos modelos franceses. Em geral os romances que se publicavam nos folhetins nacionais eram histórias tipicamente melodramáticas cheias de aventuras e sofrimento, consequência da estética literária então dominante. Escrever um livro que criticasse de forma cômica e bem-humorada a sociedade brasileira de então e mesmo os portugueses e a Família Real era candidatar-se ao anonimato e às opiniões desfavoráveis ou indiferentes da crítica. Mas o autor de Memórias de um sargento de milícias preferiu não aderir à tendência geral, escrevendo uma obra completamente destoante de seu tempo. Manuel Antônio de Almeida desautomatizou o modelo vigente, tanto do ponto de vista do conteúdo quanto do lingüístico e do estilístico. Tanto que Mário de Andrade (1963) vê as Memórias como um livro às margens das literaturas, resultado de um “reacionarismo temperamental que o põe [Manuel Antônio de Almeida] contra a retórica de seu tempo” (p. 136). E o jovem autor estava mesmo contra a retórica do tempo. Enquanto as primeiras experiências do romance brasileiro surgem com os melodramas de Macedo e Teixeira e Souza, Manuel Antônio de Almeida prefere presentear o meio literário com um livro totalmente destoante, de tom genuinamente realista que apresentava aos leitores de maneira fácil, leve e bem humorada a constituição urbana da sociedade fluminense do século XIX, a partir do retrato de costumes da classe social média e pobre daquele momento histórico. Esse diálogo realista com seu tempo é tão evidente que o crítico Antônio Cândido (1998) classifica a obra de “romance representativo”. Schwarz (1987) diz que o romance é assim nomeado por Cândido devido à sua intuição da dinâmica histórica profunda da sociedade brasileira de seu período, e essa intuição se manifesta na forma literária da obra, através da pintura de costumes, da ação e caráter das personagens, da linguagem essencialmente coloquial. 3. A forma e o conteúdo Com exceção do desenlace da história de amor entre o herói Leonardo e a tímida Luisinha, a obra nada tem do idealismo romântico: a narrativa é toda construída sobre uma estreita observação do real, desvendando para o leitor um painel colorido dos costumes da sociedade carioca do século XIX, dando especial atenção aos modos de vida das camadas mais baixas da população. Nesse sentido, Memórias de um sargento de milícias desenvolveram-se à margem das grandes literaturas de seu tempo, manifestando um caráter realista de cunho satírico e paródico.

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O tom realista e satírico da obra de Manuel Antônio de Almeida justifica-se pelo comprometimento do próprio narrador em revelar o contexto social através da pintura de costumes, e é esse contexto social que determina sua estrutura realista, tanto do ponto de vista estilístico quanto do conteúdo. De fato, o estilo adotado pelo narrador, que se coloca como um verdadeiro contador de histórias, revela-se muito particular aos tipos de personagens e às situações que são retratadas na história. Nesse sentido, o tom fácil e coloquial utilizado para descrever os fatos e mesmo quando faz falar os personagens revelam o próprio modo de ser, de viver e de se comunicar da classe social que a obra está representando (os chamados homens livres). Carvalho (1999) notou que esse estilo fácil e coloquial da obra de Manuel Antônio de Almeida foi muito frequentemente taxado pela crítica como desleixo por parte do escritor no momento de escritura da obra. Na verdade, o estilo foi perfeitamente adequado ao conteúdo da narrativa. Apresentando personagens de uma esfera social que não fazia parte das elites, Manuel Antônio de Almeida preferiu usar uma linguagem compatível com o modo de falar de seus personagens-tipo, tanto nos diálogos quanto na voz do narrador. Nesse sentido, defende Carvalho: O estilo das Memórias não resultou, portanto, de uma insuficiência de seu autor, mas de uma intenção. Ele estava consciente de que para o assunto de seu romance, com todos os elementos que o compõem, cabia usar um tipo específico de linguagem. Essa linguagem tinha de ser adequada à fala das personagens e também à do narrador, que optou por um distanciamento o menor possível em relação à matéria narrada. (CARVALHO, 1999, p. 147).

Diferente dos discursos literários refinados, por vezes até rebuscados, adotados pelos escritores do romantismo brasileiro, o narrador de Manuel Antônio de Almeida apresenta os diferentes modos de ser e de falar dos tipos sociais que são retratados, de modo que maneira de falar dos personagens revela-se muito natural e típica da classe social representada. O próprio narrador adota o tom coloquial quando apresenta os fatos e as situações. Todo esse estilo leve da narrativa torna o romance uma história que esteticamente representa muito convenientemente o contexto social em que ela se ancora. Não são poucos os exemplos que poderíamos citar para demonstrar o discurso simples, marcado pela coloquialidade, do narrador e também dos personagens. Para exemplificar, transcrevemos abaixo algumas passagens em que essa característica se evidencia: O pequeno enquanto se achou novato em casa do padrinho portou-se com toda a sisudez e gravidade; apenas porém foi tomando familiaridade começou a pôr as manguinhas de fora. (ALMEIDA, 2004, p. 25). Quando a conversa estava nesta altura, a vizinha dos maus agouros, que também já se achava presente, porém que até ali estivera distraída, [...] chegou-se também para meter a sua colherada [...]. (ALMEIDA, 2004, p. 101). Leonardo caminhava parecendo completamente alheio ao que se passava em roda dele; tropeçava e abalroava nos que se encontrava; uma idéia única roía-lhe o miolo. (ALMEIDA, 2004, p. 115). [...] isto quer dizer, em linguagem chã e despida dos trejeitos da retórica, que ela era uma formidável namoradeira, como se diz hoje, para não dizer lambeta, como se dizia naquele tempo. (ALMEIDA, 2004, p. 183).

4. O romantismo às avessas Ian Watt, no texto “O realismo e a forma romance”, afirma: O realismo é a expressão narrativa de uma promessa implícita do gênero romance: a de que ele constitui um relato completo e autêntico da experiência humana e, portanto, tem a obrigação de fornecer ao leitor detalhes da história como a individualidade dos agentes envolvidos, os particulares das épocas e locais de suas ações – detalhes apresentados numa linguagem muito mais referencial. (WATT, 1990, p. 31).

É essa a principal função que encontramos no romance de Manuel Antônio de Almeida: o relato de uma época a partir da observação de costumes de uma classe social importante na constituição da sociedade carioca. Numa época em que os autores estavam preocupados em fornecer ao público romances com as já conhecidas histórias de amor cheias de lágrimas e sofrimento, pois era mesmo com fantasia e sentimentalismo que o público estava acostumado, Memórias de um sargento

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de milícias apresentam-se ao público como um romance às avessas, assim como seu herói. De fato, o que dá o colorido à obra e o que desperta o interesse não é a tão recorrente história de amor cheia de percalços e obstáculos comuns nos romances da época, nem mesmo o exotismo do clima e do povo brasileiro; o que prende a atenção do leitor é a pintura viva dos costumes, o retrato das ações muito próximas do real modo de vida dos fluminenses, a descrição sucinta de danças populares, tradições e festas religiosas, e mesmo as peraltices de um anti-herói picaresco, o Leonardo. Mesmo a história de amor que põe ordem à movimentada trajetória de vida do herói é retratada de forma realista, deixando de lado todo idealismo romântico, e evidenciado mesmo o lado cômico e bem humorado do processo de conquista amorosa. É só compararmos muito rapidamente um par amoroso de qualquer romance de Macedo ou Alencar com nosso Leonardo e sua Luisinha para notarmos como o autor das Memórias construiu de forma bem mais verossímil o relacionamento amoroso de seus protagonistas. Em O Moço Loiro, por exemplo, romance mais famoso de Joaquim Manuel de Macedo, temos representada a já conhecida estrutura do romance romântico: a heroína (Honorina, 16 anos) é tipicamente romântica: frágil, feminina ao extremo, obediente aos pais, não foge às regras morais, é leal ao seu único e verdadeiro amor, o jovem, rico e honesto Lauro de Mendonça. Os vilões (Otávio e Félix) são ingratos, desonestos, invejosos e frustrados socialmente. O herói (Lauro de Mendonça) é corajoso, honesto, fiel e justiceiro. Depois de muitas provações e percalços e de se manterem fiel um ao outro, os amantes Honorina e Lauro de Mendonça encontramse ao final da narrativa, casam-se e são felizes para sempre. O que nos é apresentado da história de amor de Luisinha e Leonardo é algo bem mais verossímil, em que a idealização do amor quase não existe. Para começar, ao ver pela primeira vez aquela que seria sua futura esposa, nosso anti-herói esboça uma reação que nada tem de romântica e apaixonada: Leonardo lançou-lhe os olhos e a custo conteve o riso. Realmente a sobrinha de D. Maria não tinha uma figura das mais agradáveis [...]: era alta, magra, pálida; andava com o queixo enterrado no peito [...]. Vendo-a ir-se, Leonardo tornou a rir-se interiormente. [...] O padrinho indagou a causa de sua hilariedade, e ele respondeu que não se podia lembrar da menina sem rir-se. (ALMEIDA, 2004, p.108).

No desenrolar da ação, o jovem casal aproxima-se e demonstra interesse um pelo outro, mas mesmo após esse ajuste o que o narrador nos mostra é um par amoroso que nada tem de ideal e perfeito; ao contrário, são envergonhados e atrapalhados, de modo que seus encontros revestem-se de um natural aspecto cômico: Durante todos esses movimentos o pobre rapaz suava a não poder mais. Enfim, um incidente veio tirá-lo do aperto. Ouvindo passos no corredor, entendeu que alguém se aproximava, e tomado de terror por se julgar apanhado naquela posição, deu repentinamente dois passos para trás e soltou um – ah! - muito engasgado. Luisinha voltando-se despertada por esse – ah! - deu com ele diante de si e recuando espremeu-se de costas contra a rótula; veio-lhe também outro – ah! - que devia fazer casal com o que soltara o Leonardo, porém não lhe passou da garganta, e conseguiu apenas fazer uma careta. (ALMEIDA, 2004, p. 131). D. Maria fez com que Leonardo acompanhasse a sua sobrinha; ele aceitou a incubência com gosto, mas não sem ficar alguma coisa atrapalhado, e deu na pobre menina alguns encontrões embaraçado por não saber se lhe daria a esquerda ou a direita [...]. (ALMEIDA, 2004, p. 116). Leonardo, apesar das emoções novas que experimentava desde certo tempo, e principalmente naquela noite, nem por isso perdeu o apetite, e esqueceu-se por algum tempo de sua companheira para cuidar-se unicamente do seu prato. (ALMEIDA, 2004, p. 117).

Nessa pintura muito próxima do real modo de ser do homem, os amantes não são nem a heroína de pálida beleza, nem o jovem belo, viril, forte e corajoso, mas dois seres tímidos, não tão belos e corajosos como queria a inverossimilhança do amor romântico. Leonardo chega mesmo a esquecer por um período de tempo seu primeiro amor, numa atitude muito natural que poderíamos identificar em qualquer jovem de sua idade. O narrador destaca que nosso herói chega a duvidar de que tenha realmente gostado da desengonçada Luisinha, quando ele conhece a bela e faceira mulata Vidinha: [...] passando-lhe rápido pela mente um turbilhão de idéias, admirava-se ele de como é que havia podido inclinar-se por um só instante a Luisinha, menina sensaborona e esquisita, quando haviam no mundo mulheres como Vidinha. Decididamente estava apaixonado por esta última. (ALMEIDA, 2004, p. 173).

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De fato, o que Manuel Antônio de Almeida preferiu destacar no caráter de seus personagens são suas atitudes mais negativas, que, no entanto não deixam de ser de certa forma contrabalançeadas pelas suas “boas ações” ou pelo seu comportamento naturalmente alegre. Isso porque, como destaca Walnice Galvão em seu texto “No tempo do rei” (1976, p. 30) o autor de Memórias de um sargento de milícias “recusa-se a transmitir uma visão romântica e embelezadora do real; pinta o ridículo do homem e de suas obras”. 5. Conclusão De tudo o que foi dito, concluímos este trabalho reafirmando que em Memórias de um sargento de milícias não encontramos personagens honrados e virtuosos; nem o amor divino, a descrição exótica da paisagem, ou mesmo o interesse por situações dramáticas e apaixonantes, mas uma ação toda ela construída pela pintura verossímil do ambiente, dos costumes e dos gostos da classe social representada. Nessa mesma tendência, encontramos um narrador lúcido e realista, que a todo momento faz intervenções judiciosas sem no entanto dar um tom fatalista aos fatos que critica. E como na época em que o livro foi escrito era muito perigoso criticar instituições oficias e mais ainda os descendentes portugueses, Manuel Antônio de Almeida preferiu deslocar no tempo a ação de sua obra para minimizar o “peso” da mesma. Não só pela sua temática, calcada na crítica bem humorada da sociedade, mas pelo seu estilo, a obra era mesmo um incômodo, uma espécie de “peixe fora d'água”, uma vez que sua principal característica é a apresentação esteticamente verossímil da realidade. A correspondência com o real evidencia-se pela forma e pelo conteúdo do romance. Na forma, temos as descrições rápidas e sucintas de costumes, a linguagem coloquial, os diálogos construídos muito próximos do real modo de falar dos homens livres e pobres, a construção de personagens-tipo, que representam grupos sociais integrantes daquela sociedade; o desenrolar da ação num tempo e num espaço típico, facilmente identificável para um leitor familiarizado; um narrador que se identifica muito com um contador de histórias, dando aos fatos um tom levemente folclórico. No conteúdo, temos a pintura de ações comuns do dia-a-dia: as intrigas, as festas religiosas, as procissões dos dias santos, as ações dos malandros e da polícia, as peraltices de um herói desajustado socialmente, a inatividade dos velhos aposentados, as fofocas de vizinhança, em suma, a vida algo desocupada de uma classe social pobre, cujas principais atividades eram as demandas e o compadrio. Referências ALMEIDA, M. A. de. Memórias de um sargento de milícias. São Paulo: Globo, 2004. ANDRADE, M. de. Memórias de um sargento de milícias. Brasília: Universidade de Brasília, 1963. CANDIDO, A. Dialética da malandragem. In: O Discurso e a cidade. São Paulo: Duas Cidades, 1998. GALVÃO, W. N. No tempo do rei. In: Saco de gatos. São Paulo: Duas Cidades, 1976. JAROUCHE, M. M. Introdução. Galhofa sem melancolia: as Memórias num mundo de luzias e saquaremas. In: Memórias de um sargento de milícias. São Paulo: Ateliê Editorial, 2002. MONTELLO, J. Um precursor: Manuel Antônio de Almeida. In: COUTINHO, A. (Org). A literatuta no Brasil. Rio de Janeiro: Sul Americana: 1955. CARVALHO, R. P. de. O humor e a linguagem chã contra os trejeitos da retórica. Tese. São Paulo: FFLCH-USP, 1999. SCHWARZ, R. Pressupostos, salvo engano, de “Dialética da Malandragem”. In: Que horas são? Ensaios. São Paulo: Companhia das Letras, 1987. TINHORÃO, J. R. Os romances em folhetins no Brasil (1830 à atualidade). São Paulo: Duas Cidades, 1994. WATT, I. O realismo e a forma romance. In: A ascensão do romance: estudos sobre Defoe, Richardson e Fielding. Tradução de Hildengard Feist. São Paulo: Companhia das Letras, 1990.

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O MARCADOR YADÏ EM XIPAYA (TUPI)

Fabiana Almeida dos SANTOS Carmen Lúcia Reis RODRIGUES (Orientadora / Universidade Federal do Pará)

RESUMO: O presente trabalho exporá as análises feitas sobre o marcador yadï da língua xipaya (Tupi), observando seu comportamento nos contextos em que se encontra, descrevendo seus possíveis valores semânticos e funcionais no discurso da língua xipaya. Os estudos sobre o marcador yadï foram realizados a partir de dados retirados de narrativas relatadas pela informante Maria Xipaya, coletadas pela Professora Carmen Rodrigues. Os resultados da pesquisa demonstraram que o comportamento do marcador yadï é influenciado pelo contexto em que está inserido de acordo com a intenção do falante, o qual o utiliza a seu modo, segundo suas possibilidades de comunicação. Dessa forma, constatamos que yadï pode apresentar mais de um valor semântico-funcional: o valor de tema e o valor de discurso reportado. Nesta pesquisa, nos deteremos em mostrar o valor de yadi quando ocorre posposto ao verbo nos discursos da língua xipaya, além mostrarmos estudos anteriores sobre esse morfema. PALAVRAS-CHAVE: Língua Xipaya, verbo dicendi, morfema


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1. Introdução As pesquisas sobre a língua Xipaya vêm sendo realizadas desde 1988 pela professora Dra. Carmen Rodrigues, que já realizou estudos sobre vários aspectos gramaticais, com foco na fonologia e na morfossintaxe dessa língua (cf. Rodrigues 1995, 1998, 2001, 2002, 2003, 2006). Segundo A. Rodrigues (1986), a língua xipaya pertence à família juruna, do grupo Tupi. Os xipaya encontramse hoje bastante reduzidos, com apenas quatro falantes nativos. Esse povo – constituído, hoje, principalmente por remanescentes – encontra-se, atualmente, disperso na região do rio Xingu e muitas famílias residem no município de Altamira/Pa. A língua xipaya encontra-se em vias de extinção, pois não é mais falada pela maioria dos índios dessa etnia, não é ensinada para as crianças como língua materna e as únicas pessoas que ainda falam a língua estão com idade acima de sessenta anos. Assim, o conteúdo deste trabalho tem caráter significativo na contribuição dos estudos sobre o xipaya, pois ajudará a compreender as funções sintático-semânticas de mais um morfema dessa língua, somando-se aos demais estudos que já se tem sobre a língua xipaya. A pesquisa “Yadï: verbo dicendi da língua xipaya (Tupi)” foi realizada a partir do projeto de pesquisa “Tipos de texto e as marcas do discurso da língua xipaya (Tupi)” que desenvolvi enquanto bolsista do Programa PIBIC/UFPA, sob a orientação da Profa. Dra Carmen Rodrigues. O projeto teve como proposta de estudo analisar algumas marcas morfológicas que ocorrem no discurso da Língua Xipaya, como por exemplo, os morfemas he, anu e yadï, pois estes ocorrem de maneira freqüente no discurso da língua. Neste trabalho, apresentaremos apenas análises e resultados sobre o morfema yadï, formulando possíveis hipóteses para as suas ocorrências, em posição posterior ao verbo nos enunciados da língua xipaya (Tupi). A freqüência desse elemento no discurso xipaya levou-nos a questionar qual valor gramatical esse marcador possui quando ocorre na língua. Dessa forma, os estudos sobre o morfema yadï tiveram como objetivo analisar o comportamento desse elemento observando os contextos em que estava inserido a fim de se identificar e descrever as suas funções sintático-semânticos que assume na língua xipaya. 2. O marcador yadï em Xipaya (Tupi) O morfema yadï ocorre no discurso realizado de forma pessoal e espontânea, sendo que o indivíduo, ao utilizar esse morfema, usa-o de forma livre, a seu modo, segundo sua intenção de comunicação. Durante as análises, buscamos observar as relações de sentido que o morfema yadï apresenta com o restante da oração, analisando seu comportamento naquele determinado contexto para que, assim, chegássemos a uma provável hipótese de seu significado. Dessa forma, constatamos que os contextos em que yadï ocorre demonstram que é possível esse morfema apresentar mais de um valor semântico. Em análises anteriores, realizadas pela Profa Carmen Rodrigues (cf. Rodrigues, 1995, 2002) foram analisadas as ocorrências desse morfema, em posição anterior ao verbo. Conforme essas análises, nessa posição, yadï tem valor de tema, ou seja, é utilizado para marcar o tema do enunciado. Levando em consideração o que Halliday (apud Illari, 1992) conceitua como tema, “o primeiro segmento de qualquer oração, seguido pelo rema” (p.21, grifos do autor), yadï seria o elemento que chama a atenção para “aquilo sobre o que se fala”. Segundo C. Rodrigues (2002), o elemento temático, em xipaya, ocorre normalmente no início do enunciado seguido do morfema yadï, considerando-se a ordem básica dos constituintes na oração (SOV). Nesse mesmo trabalho, são apresentados exemplos de yadï como marca de tematização do: a) Sujeito: sídja mulher

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yadï TEMA

wári caxiri

wi beber

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Tema geral: Línguas e Literaturas: Diversidade e Adversidades na América Latina Lit: ‘ A mulher, bebeu caxiri’ ‘A mulher bebeu caxiri’

b) Objeto direto: sídja yadï apy tu mulher TEMA cachorro morder Lit: ‘ A mulher, o cachorro a mordeu’ ‘ O cachorro mordeu a mulher’

de anu OBJ MOD

c) Objeto indireto (dativo): use ze yadï tukája kua 1excl. DAT TEMA flecha dar Lit: ‘Para nós, (ele) deu a flecha’ ‘Ele deu a flecha para nós’

d) Complemento circunstancial: ija he yadï água LOC TEMA Lit.: ‘Na água, ele está’ ‘Ele está na água’

ty anu 3s MOD

Em todos os exemplos acima, os quais foram retirados do artigo da Profª Carmen Rodrigues (2002), yadï ocorre anterior ao verbo, seguindo o elemento tematizado. Porém, nas pesquisas que realizamos sobre yadï verificamos a hipótese que esse morfema também pode ter o valor de tema quando ocorre após o verbo. O que explica a posição de yadï posterior ao verbo é o fato de ser condicionado a essa posição por alguns elementos presentes no texto, como, por exemplo, pelo pronome clítico posposto ao verbo. Nesse contexto yadï tem a função de tematizar o sujeito do enunciado, ocorrendo imediatamente antes do pronome clítico. Essa tematização apresentou-se nos textos das seguintes formas: a) com yadï após o verbo seguido do clítico da “3ª. pessoa plural”: IV - 5.

yári yadï da alegre TEMA 3pl ‘eles ficaram alegres.’

IV - 6.

karia bïya yadï da dançar cantar TEMA 3pl ‘Eles dançaram e cantaram.’

IV - 9.

ya yadï chorar TEMA ‘Eles choraram.’

VII – 4.

sawázi pũrũ xu yadï da criança umbigo comer TEMA 3pl. ‘Eles (os xipaya) comeram o umbigo da criança.’

VII – 5.

uza abáku pypynada yadï porco matar aparentemente TEMA ‘Parece que eles mataram um porco.’

VII - 8.

uza wãza xu yadï da porco víscera comer TEMA 3pl. ‘Eles comeram (o que achavam ser) as vísceras do porco.’

VII - 22.

miu yadï da máku Ficar c/ raiva TEMA 3pl. tornar-se ‘(E) eles ficaram com raiva.’

da 3pl

da 3pl.

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b) com yadï após o verbo, em enunciados com sujeito em 3ª. pessoa marcada por ∅: III - 11.

‘wari wi yadï caxiri beber TEMA ‘(Ele) bebe caxiri,

IV - 18.

abakau yadï abáku-au matar-NEG TEMA ‘(Ele) não a matou’

IV - 19.

matuxiu ma-tuxi-u CAUS-queimar-NEG ‘(Ele) não a queimou’

de OBJ yadï

de

TEMA

OBJ

IV - 23.

matúxi yadï paï ze ma-túxi TEMA cobra DAT ‘(Ele) queimou a cobra.’

IV - 24.

paï túxi mamáku ma-máku cobra queimar CAUS-colocar ‘(Ele) queimou a cobra’

V - 12.

i-bïdapa du yadï 3s.-pé ver TEMA ‘(Meu pai) viu (o rastro de) seu pé.’

VI - 4.

xixi yadï xu-i-xi comer-IR-red. TEMA (e eles) nos comiam.’

yadï TEMA

de OBJ

VIII - 3.

nu-me kamixa máku yadï kuxáma 3refl. camisa colocar TEMA panela de barro ‘(Ele) colocou sua camisa na panela.’

VIII – 5.

karia yadï dançar TEMA ‘(ele) dançou.’

VIII - 6.

pïripïriku yadï pïri-pïrku red.-pular TEMA ‘(Ele) pulou.’

VIII - 7.

nu-me xirára yaku yadï 3refl.-GEN calça-comprida tirar TEMA ‘(Ele) tirou sua calça-comprida, (e)

he LOC

c) yadï em enunciados cujo sujeito é duplamente marcado, estando uma das marcas posposta ao verbo: - Sintagma nominal anterior e posterior ao verbo XII - 10.

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adji saũ yadï adji índio querer-NEG TEMA kayapó ‘Os kayapó não nós querem (lá).’

de OBJ

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Tema geral: Línguas e Literaturas: Diversidade e Adversidades na América Latina

- Pronome independente e pronome clítico posposto ao verbo II - 2.

tade du tyda se-siu yadï da L.CD 3PL 1incl.-dormir TEMA 3pl. ‘(E) então, eles (os xipaya) dormiram.’

VII - 9.

tade du tyda máku yadï L.CD. 3pl. deitar TEMA ‘Então, eles deitaram.’

VII - 11.

tade du tyda kamenu yadï L.CD. 3pl. falar TEMA ‘E, eles falaram.’

da 3pl. da 3pl.

- Pronome Ø e sintagma nominal posposto ao verbo III - 12.

e’tuka xu yadï anu ziapa comida comer TEMA MOD pajé ‘(Ele) come comida, o pajé.’

d) com yadï após o verbo seguido do clítico i “1ª. pessoa genérica”: I - 2.

takurare xu yadï i ta akana yuze jacaré comer (tr.) TEMA 1gen. ir (aux.) ilha DIR ‘Nós vamos comer jacaré na ilha.’

I - 4.

‘xita padi’ku yadï i ta e’tuku peixe pegar TEMA 1gen. ir (aux.) comer(intr.) ‘Nós vamos pegar peixe e (vamos) comer.’

É possível também que yadï posposto ao verbo, além de tematizar o sujeito, possa tematizar outros termos da oração, assim como ocorre antes do verbo, tais como o objeto indireto, como no exemplo: VIII - 8.

tapáku yadï nu-me xirára jogar TEMA 3refl.-GEN calça-comprida ‘(Ele) jogou sua calça-comprida.’

ze DAT

No entanto, para essa afirmação é preciso que sejam analisados outros dados com o mesmo fenômeno, visto que, o exemplo demonstrado foi o único encontrado nos treze textos analisados. A partir dessas análises podemos concluir que a presença de alguns termos da oração, conforme foi visto nos exemplos, condicionam a ocorrência de yadï para depois do verbo. Porém, esse morfema ainda continua com o valor de tema, tematizando o sujeito do enunciado. 2.1. Yadï: verbo dicendi na língua Xipaya (Tupi) Além do valor de Tema, encontramos outra hipótese para a ocorrência de yadï após o verbo. Esse morfema pode ser marca de discurso direto nos discursos reportados, no qual yadï teria os mesmos valores funcionais e semânticos de um verbo dicendi. O gênero relato ou relatado, conforme Mainguenau (2006, p. 45), também chamado de discurso reportado, constitui-se nos diversos modos de representação num discurso de proposições atribuídas a fontes distintas de seu enunciador utilizando-se do discurso direto, indireto e indireto livre. De acordo com Urbano (2000, p. 21), no discurso narrativo existem marcas enunciativas que são um “conjunto de indícios deixados, consciente ou inconscientemente, pelo narrador durante o relato”. Sendo assim, encontramos no discurso relatado da língua Xipaya (Tupi) o morfema yadï caracterizando a presença do discurso direto nos textos que foram analisados. Esse marcador discursivo

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adquire o mesmo valor de um verbo dicendi, o qual serve para “indicar que houve um ato de fala, ou seja, marca a fronteira do discurso citante com a do discurso citado.” (Maingueneau, 2005, p. 143). O discurso direto “simula restituir as falas citadas e se caracteriza pelo fato de dissociar claramente as duas situações de enunciação: a do discurso citante e a do discurso citado” (Maingueneau, 2005, p. 140). Essa dissociação pode ser satisfeita através de verbos cujo significado indique que há enunciação, neste caso, os verbos elocucionais, também chamados de dicendi. Exemplo no Português: Ele me disse: Você dever partir.

Exemplo em Xipaya: V – 10.

kaa uza naemã yadï neg. porco ? neg. D.D ‘- Não, isso não é porco, (disse meu pai)’

Nesse exemplo yadï tem valor de um verbo dicendi com o sentido de afirmar a declaração do discurso citado, no sentido de verbos derivados de dizer, responder e declarar. Esses verbos não fazem parte da oração, nem da fala da personagem. Garcia (1996, p.130) explica que “são orações justapostas e independentes já que o enlace com a fala da personagem prescinde de qualquer conectivo, havendo apenas, entre as duas orações, uma ligeira pausa, marcada ora por uma vírgula, ora por um travessão.” A construção do discurso citado por meio do verbo dicendi não é mero fato puramente estrutural, mas um mecanismo discursivo criado socialmente para a produção de discursos. Maingueneau (2006, p. 113) afirma que o verbo dicendi possui além da função de indicar um ato de fala, a função de especificar semanticamente a enunciação citada em diferentes registros. Ou seja, esse verbo pode sugerir semanticamente diferentes significados e, por isso, a escolha do verbo introdutor do discurso direto tem conseqüências importantes na maneira pela qual o co-enunciador irá interpretar a citação. Garcia (1996, p.131) coerente com a idéia de Maingueneau, afirma que os verbos dicendi podem ser classificados em diferentes áreas semânticas a partir do sentido que possa ser empregado. Diante dessa afirmação conseguimos observar no comportamento do marcador yadï alguns valores semânticos de verbo dicendi. 1. Verbo dizer com o sentido de: a) afirmar e declarar: IV - 12.

13.

IV - 22.

V - 14.

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tade du tï i-za ta aka yuze du-azi ze yadï C. CD. 3-irmão ir casa DIR 3refl-irmão DAT D.D ‘Então, o irmão dele foi para a casa dele, (e) contou para a mulher dele: iyã u-aetabïi kíwi iyã anu morrer 1s-parente todo morrer MOD ‘-(Eles) estão mortos, todos os meus parentes estão mortos.’ máxi na abáka de abaku-a agora 1s matar-IR OBJ agora, eu a matarei (ele se dizia).’

yadï D.D

sawázi dju anu ta adji yadï criança comit. MOD ir índio D.D Lit.: ‘- Com as crianças, (ele) foi embora, o índio (kayapó)!’ ‘- Os índios (kayapó) foram embora com as crianças! (ele se disse)

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Tema geral: Línguas e Literaturas: Diversidade e Adversidades na América Latina V- 24.

use-padika sa yadï padiku-a 1excl.-pegar-IR querer D.D ‘- (ele) quase nos pegou, (nós dissemos)’

IV - 21.

tade yadï paï urapïpï paï C. CD. D.D cobra grande cobra ‘Aí (ele se dizia): - a cobra grande, a cobra,

VII - 6.

báxi xu de yadï IMP. Pl comer OBJ D.D ‘-Vamos comer! - Eles diziam.’

VII - 12.

kamenu yadï da Falar D.D 3pl. ‘Eles se falaram dizendo:

13.

da 3pl.

sídjia i-mabïa xã mulher 3s.-filho nascer Lit. : ‘A mulher, o seu filho nasceu.’ ‘- A mulher deu a luz.’

b) responder (retrucar, replicar): III - 8.

pãã na he yadï si zia’pa Estar bem 1s. MOD D.D 1GEN pajé ‘- Eu estou bem, (respondemos) nós ao pajé.’

ze DAT

c) contestar (negar, objetar): V - 10.

kaa uza naemã yadï neg. porco neg. D.D ‘- Não, isso não é porco, (disse meu pai)

d) exclamar (gritar, bradar): V - 21.

wïa he pïzá dju vir MOD canoa com. ‘- Traga a canoa! (ele gritou)’

yadï D.D

Todos os exemplos demonstrados confirmam a hipótese de que yadï tem valor de verbo dicendi com os respectivos valores semânticos apresentados acima. Os verbos dicendi também podem adotar outros valores de sentido além do sentido “de dizer”, como por exemplo, o sentido de “sentir”, Garcia os chama de “sentiendi”. Esses verbos expressam estado de espírito, reações psicológicas e as emoções do enunciador citado. É comum esses tipos de verbo virem antepostos à fala quando não admitem de forma alguma a idéia de transitividade, como por exemplo: IV - 7.

8.

tïdai iya 3pl água

du tade ver C. CD.

yadï da ya D.D 3pl chorar

‘(Mas) quando eles viram a água, eles começaram a chorar: iyã he si he morrer MOD. 1GEN MOD - nós vamos morrer!’

403


Anais do II Congresso Internacional de Estudos Linguísticos e Literários na Amazônia (CIELLA)

Nesse exemplo, yadï ocorre com valor de sentiendi anteposto à fala do enunciador citado, conforme ocorre com os verbos dicendi com sentido de “sentir”, de acordo com o fenômeno mencionado por Garcia. Do ponto de vista lógico-sintático, esses verbos “sentiendi” presumem a existência de um dicendi oculto. Neste caso, no exemplo citado acima está implícito a presença do verbo dizer no gerúndio. Logo, a frase poderia ser traduzida da seguinte forma: IV - 7.

8.

tïdai iya du tade yadï da ya 3pl água ver C. CD. D.D 3pl chorar ‘(Mas) quando eles viram a água, eles começaram a chorar, dizendo): iyã he si morrer MOD. 1GEN - nós vamos morrer!’

he MOD

Nesse exemplo o yadï marca na frase a ocorrência do verbo dicendi como auxiliar do verbo ya ‘chorar’ fazendo-o exercer um valor de verbo “sentiendi”. 2.1.1. Posição de yadï na frase Segundo Garcia (1996), é comum os verbos dicendi se posicionarem no meio da frase com propósito enfático, isso ocorre “com freqüência logo após duas ou três palavras iniciais a que na corrente da fala se segue uma pausa natural” (op. cit., 1996, p. 140). Nos textos analisados, em xipaya, foram encontrados enunciados que apresentam esse fenômeno: - Fim da frase

404

IV - 12.

tade du tï i-za ta ka yuze du-azi ze yadï C. CD. 3-irmão ir casa DIR 3refl-irmão DAT D.D ‘Então, o irmão dele foi para a casa dele, (e) contou para a mulher dele:

IV - 13.

iyã u-aetabïi kíwi iyã anu morrer 1s-parente todo morrer MOD ‘-(Eles) estão mortos, todos os meus parentes estão mortos.’

IV - 22.

máxi na abáka de abaku-a agora 1s matar-IR OBJ agora, eu a matarei (ele se dizia).’

yadï D.D

V - 10.

kaa uza naemã yadï neg. porco neg. D.D ‘- Não, isso não é porco, (disse meu pai)

V - 14.

sawázi dju anu ta adji yadï criança comit. MOD ir índio D.D Lit.: ‘- Com as crianças, (ele) foi embora, o índio (kayapó)! ‘- Os índios (kayapó) foram embora com as crianças! (ele se disse)

V - 21.

wïa he pïzá dju vir MOD canoa comit. ‘- Traga a canoa! (ele gritou)’

V- 24.

use-padika padiku-a

sa

yadï D.D yadï

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Tema geral: Línguas e Literaturas: Diversidade e Adversidades na América Latina 1excl.-pegar-IR querer D.D ‘- (ele) quase nos pegou, (nós dissemos)’

- No meio da frase III - 8.

pãã na he yadï si zia’pa ze Estar bem 1s. MOD D.D 1GEN pajé DAT ‘- Eu estou bem, (respondemos) nós ao pajé.’

VII - 6.

báxi xu de yadï IMP. Pl comer OBJ D.D ‘-Vamos comer! - Eles diziam.’

VII - 12.

kamenu yadï da Falar D.D 3pl. ‘Eles se falaram:

13.

da 3pl.

sídjia i-mabïa xã mulher 3s.-filho nascer Lit. : ‘A mulher, o seu filho nasceu.’ - A mulher deu a luz.’

O morfema yadï, como marca de discurso direto, pode ocorrer também em orações cujo verbo é marcado pelo morfema zero ou em orações que não apresentem necessariamente um verbo no discurso citado. Exs: IV - 21.

tade yadï aï urapïpï paï C. CD. D.D cobra grande cobra ‘Aí (ele se dizia): - a cobra grande, a cobra,

V - 10.

kaa uza naemã yadï neg. porco neg. D.D ‘- Não, isso não é porco. (disse meu pai)

Conforme Maingueneau (2005, p. 142), a escolha do discurso direto como modo de discurso relatado geralmente está ligado ao gênero de discurso em questão. Os dados analisados foram retirados de narrativas contadas espontaneamente pela informante. A presença do discurso direto pode ser explicado pelo fato de o enunciador tentar descrever o enunciado de outra pessoa tal como foi formulado ou como se imagina que o foi, mantendo todos os seus traços de subjetividade. Como afirma Garcia (1996), “o discurso direto permite melhor caracterização das personagens, como reproduzir-lhes, de maneira mais viva, as matizes da linguagem afetiva, as peculiaridades de expressão” (p. 130,131). A partir dos dados analisados, constatamos que o discurso direto no enunciado é atribuído ao morfema yadï, o qual funciona como marca de verbo dicendi, visto que não existe a presença de nenhum outro morfema ou um lexema constituído desse mesmo significado no enunciado. Dessa forma, podemos caracterizá-lo também, como marcador de discurso direto ou citado quando ocorre posterior ao verbo, além de sua função como marcador de tema. 3. Considerações finais A partir dos dados analisados, constatamos que o morfema yadï, quando posposto ao verbo, possui duas funções gramaticais na língua: marca de tema e marca de discurso direto (verbo dicendi). Ressalta-se que não existe a presença de nenhum outro morfema ou lexema constituído desse mesmo significado no enunciado.

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No entanto, é necessário que os estudos desses marcadores não terminem por aqui, pois ainda existem outros aspectos a serem analisados, como por exemplo a possibilidade de yadï, posposto ao verbo, ter a função de tematizar não só o sujeito, mas outros elementos sintáticos como, objeto direto, objeto indireto e complemento circunstancial, conforme acontece quando esse morfema ocorre anterior ao verbo. Porém, para essa afirmação é necessário a análise de um maior número de textos em que apresente essa ocorrência para que se possa comprovar esse fenômeno. É possível também, que se faça um estudo comparativo com outras línguas da mesma família que o xipaya para verificar se existe um morfema nessas línguas com a mesma função que yadï possui na língua xipaya, ou é uma característica particular dessa língua. As descobertas realizadas nesse trabalho têm grande valor científico, pois contribui no trabalho de documentação e preservação da língua xipaya e ajuda a compreender quais os valores gramaticais de mais um morfema dessa língua. Referências GARCIA, Otthon M. Comunicação em prosa moderna. 17 ed. Rio de Janeiro: editor da Fundação Getúlio Vargas, 1996. ILARI, Rodolfo. Perspectiva funcional da frase portuguesa. 2 ed. Ver. Campinas, SP: editora da UNICAMP, 1992. (série teses) MAINGUENEAU, Dominque. Análise de textos da comunicação. 4 ed. São Paulo: Cortez, 2005. (tradução de Cecília P. de Souza e Silva e Décio Rocha) MAINGUENEAU, Dominque. Termos-chave da Análise do discurso. 2ª reimpressão. Belo Horizonte: UFMG, 2006 (tradução Márcio Venício Barbosa, Maria Emília Amarante Torres Lima) NAGAI, Eduardo Eide. Os gêneros do discurso. Disponível em: <htp://www.meuartigo.brasilescola.com/osgeneros-discurso>. Acesso em: 11ago.2007. RODRIGUES, Aryon Dall’Igna. Línguas brasileiras: para o conhecimento das línguas indígenas, edições loyola – São Paulo, 1986. RODRIGUES, Carmen L. R. Etude morphosyntaxique de la langue Xipaya. Tese de Doutorado, Université Paris VII - Denis Diderot, Paris, França, 1995. ______. O fenômeno da tematização em Xipaya. Línguas Indígenas Brasileiras: Fonologia, Gramática e História. Atas do I Encontro Internacional do Grupo de Trabalho sobre Línguas Indígenas da ANPOLL, I. Ana Suely Arruda Câmara Cabral, Aryon D’Alligna Rodrigues (org). Belém, EDUFPA, T. I, 2002. URBANO, Hudinilson. Oralidade na literatura: o caso Ruben Fonseca, São Paulo: Cortez, 2000. VIEGAS, Ilana da Silva Rebello. Os verbos dicendi na construção de personagens da literatura brasileira. Disponível em: <htp://www.oficinaideiaseideias.blogspot.com/2008/09/oficina-de-hoje-1609.html>. Acesso em: 11set.2008.

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A VIDA COMO ELA É...: [OBS]CENAS URBANAS DE NELSON RODRIGUES Fernanda Beatriz do Nascimento ROSÁRIO (Universidade Federal do Pará)

RESUMO: A vida Como ela é... uma das mais marcantes obras do multifacetado escritor Nelson Falcão Rodrigues ou, simplesmente, Nelson Rodrigues, é um retrato do Rio de Janeiro urbano, um recorte de cenas cariocas, com seus personagens que ganharam vida e extrapolaram o simples texto jornalístico-ficcional. Nos textos de Nelson desfilam personagens — homens e mulheres — cujos comportamentos e papéis são, ainda hoje, passíveis de discussão por serem personagens universais e atemporais. O erotismo, numa perspectiva Batailleana, permeia toda a obra do autor, o adultério — temática primordial das histórias, a mulher — a desencadeadora dos conflitos, o homem — um ser passional, e o amor que termina em tragédia, são alguns dos temas tratados nas histórias. A partir daí, traça-se um perfil dessas personagens que compõem o cenário rodriguiano, autor cuja escrita revela sua visão tragicômica — no sentido aristotélico do termo — do que é o ser humano. PALAVRAS-CHAVE: Nelson Rodrigues; A vida como ela é...; adultério; amor; morte.

RESUMÉ: A vida como ela é... l’une des oeuvres les plus influentes de l’écrivain multiforme Nelson Rodrigues, ou tout simplement, Nelson Rodrigues, est un portrait de la ville de Rio de Janeiro, une description des scènes de Rio, avec ses personnages qui sortent de la fiction des journaux. Chez Nelson défilent hommes et femmes dont le comportement et les rôles sont encore ouverts à la discussion parce qu’ils sont universels. L’érotisme, dans le sens utilisé par Georges Bataille, imprègne l’ensemble des travaux de l’auteur, l’adultère - thème principal des histoires, la femme - le déclencheur des conflits, l’homme – un être passional et l’amour qui finit en tragédie, sont quelques-uns des thèmes des histoires. À la suite, on présent un profil de ces personnages qui composent le scénario de Nelson Rodrigues, auteur dont l’écriture révèle sa vision tragicomique - dans le sens aristotélicien du terme – de ce qui est l’être humain. MOTS-CLÉS: Nelson Rodrigues; A vida como ela é...; l’adultère; l’amour; la mort.


Anais do II Congresso Internacional de Estudos Linguísticos e Literários na Amazônia (CIELLA) O homem é um ser de múltiplas vidas e inúmeras sensações; uma criatura complexa e multiforme que traz consigo estranhas heranças de pensamento e de paixões, e que até na carne é conspurcada pelas monstruosas doenças dos mortos. Oscar Wilde

As páginas d’A vida como ela é... surgiram entre os anos de 1951 e 1961, como coluna diária homônima do jornal Última Hora. As histórias, mais de duas mil, baseavam-se em fatos do cotidiano, geralmente, aquele retirado das páginas policiais. Na contramão do teatro rodriguiano, largamente refutado pela crítica e pelo público, Ruy 1 Castro aponta o sucesso estrondoso da coluna: “uma cena comum nos ônibus apinhados era a fila de homens em pé no corredor, pendurados nas argolas e empunhando um ‘Última Hora’ dobrado na página de ‘A vida como ela é...’” (2007, p.238), e, ao contrário dos folhetins de Suzana Flag, pseudônimo adotado por Nelson, a nova coluna tinha uma sólida plateia masculina. O Rio de Janeiro e sua classe média era pano de fundo da maioria das histórias, cujo tema central era o mesmo: o adultério. Em uma observação mais acurada, percebemos que as relações d’A vida como ela é... encontram-se baseadas no tripé amor → traição → morte, pois grande parte das histórias tem por enredo relacionamentos amorosos que acabam em morte provocada pela infidelidade de uma das partes, sendo na maioria dos casos a mulher a infiel. Esta ênfase ao adultério, principalmente o feminino, pode ser explicada pelas palavras do próprio Nelson: “tudo passa, menos a adúltera. Nos botecos e nos velórios, na esquina e nas farmácias, há sempre alguém falando nas senhoras que traem. O amor bem-sucedido não interessa a ninguém” 2 . A presença constante da capital, mais precisamente o subúrbio, nos permite estabelecer comparação com outro nome da Literatura Brasileira, Lima Barreto, o qual também encontrou no citadino, coincidentemente o carioca, matéria para sua produção literária. Segundo Adriana Facina, “Lima Barreto foi talvez o autor que mais tematizou essas divisões da cidade e que deu ênfase à caracterização dos subúrbios como o lugar das habitações das vítimas do progresso e também do abandono do poder público” (2004, p.159). Longe da intenção “denunciadora” de Lima Barreto, cuja proposta era assinalar a condição da vida, em geral nos grandes centros, as histórias de Nelson não apresentam nenhum cunho moralizante. Elas estão repletas de anti-heróis, cujos desejos são reprimidos pela “moralidade” de uma sociedade repressora, mas dividida entre santos e canalhas, para fazer uso da expressão rodriguiana que dá nome ao livro de Facina. A repressão da sexualidade é tópico extensamente trabalhado por Foucault na História da sexualidade I: A vontade de saber: No espaço social, como no coração de cada moradia, um único lugar de sexualidade reconhecida, mas utilitário e fecundo: o quarto dos pais [...]. Assim marcharia, com sua lógica capenga, a hipocrisia de nossas sociedades burguesas. Porém, forçada a algumas concessões. Se for mesmo preciso dar lugar às sexualidades ilegítimas, que vão incomodar noutro lugar: que incomodem lá onde possam ser reinscritas, senão nos circuitos da produção, pelo menos nos do lucro (1977, p.10).

Castro também assinala essa repressão no meio social e, assim como Foucault, afirma que a sexualidade foi encerrada no seio familiar, e indica que, ainda ali, ela encontra espaço de coibição – o “princípio do segredo” de Foucault (1977, p.9) –, o que não minora sua existência: No rio em que se passam as histórias de “A vida como ela é...” – o dos anos 50, quando elas foram escritas –, não havia motéis, nem a pílula e nem a atual liberdade absoluta entre os jovens. A Zona Norte, quase sem comunicação com a paradisíaca e permissiva Zona Sul, ainda preservava valores contemporâneos da “Espanhola”. As famílias eram rigorosas e, o que é pior, muito mais famílias moravam juntas do que hoje. Maridos, cunhadas, sogras, tias e primas cruzavam-se dia e noite nos corredores dos casarões, sob uma capa de máximo respeito. Nessa convivência compulsória e sufocante, o desejo era apenas uma faísca inevitável (2007, p.237) (grifo meu). 1 2

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Ruy Castro é autor do Livro “O anjo pornográfico: a vida Nelson Rodrigues”, sua biografia oficial. Citação extraída do endereço www.nelsonrodrigues.com.br, site oficial do escritor.

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O desejo oriundo dessa convivência familiar, e reprimido pela mesma, pode ser exemplificado no conto O monstro. Bezerra, após ser assediado pela cunhada mais nova, é flagrado com ela aos beijos, pela empregada da casa. O acontecimento causa um alvoroço na família, que passa a ver em Bezerra o “tarado”: O Bezerra era casado com Rute, a irmã mais velha de Flávia. Maneco quis saber: “por que tarado?” Flávia explodiu: — Esse miserável não soube respeitar nem este teto! [...] — Aqui, dentro de casa, quase nas barbas da esposa, deu em cima de uma cunhada, com o maior caradurismo do mundo. Vê se te agrada! Assombrado, perguntou: “que cunhada?” Pensava na própria mulher. E só descansou quando Flávia disse o nome num sopro de horror: — Sandra, veja você! Sandra! Escolheu a dedo a caçula (2006, p.30).

Mais adiante, num diálogo entre Maneco e Bezerra, é possível entrever o tema do desejo reprimido, indiciado em Bezerra, e observar de maneira mais ampla o comportamento da família em torno do possível incesto: Mas a situação era de fato crítica. A família, sem exclusão das criadas, passou a abominar o tarado. Até o cão da casa, um vira-lata disfarçado, parecia contagiado pelo horror [...]. Quanto ao pobre culpado, estava na garagem da casa, em petição de miséria [...]. Maneco olhou para um lado, para o outro, e baixou a voz: — Mas que mancada! Como é que você me dá um fora desses! [...] Ralado de curiosidade, Maneco baixou a voz: — E o que é que houve, hein? O outro foi modesto: — Não houve nada. Um chupão naquela boca. Eu beijava aquele corpo todinho. Começava no pé. Mas não tive nem tempo. Estão fazendo um bicho-de-sete-cabeças, não sei por quê!... (2006, p.31).

Após este panorama geral sobre A vida como ela é..., passo ao estudo da obra, o qual não poderia deixar passar despercebidas certas características que se encontram já latentes no próprio título, e as quais tomo a partir de agora, antes de adentrarmos nos demais aspectos dos contos. N’A vida como ela é..., é possível perceber, de antemão, a marcada presença do feminino que, no título, está assinalada pelo vocábulo vida e pelo vocábulo ela, que aqui faz referência à vida, mas também pode se referir a própria figura da mulher. Outro tópico que merece relevância são as reticências presentes no título A vida como ela é.... Aqui, seu sentido está intimamente ligado à sugestão. Apesar de eróticos, os contos d’A vida como ela é... não apresentam relações sexuais explícitas, tudo está no plano da insinuação, e depende da perspicácia do leitor. Como exemplo, tomemos o conto O decote: Quando Mirna fez 8 anos, ele recebeu uma carta anônima em termos jocosos: “Abre o olho rapaz!” Pela primeira vez, caiu em si. Começou a observar a mulher. Mãe displicente, vivia em tudo que era festa, exibindo seus vestidos, seus decotes, seus belos ombros nus. Um dia, chamou a mulher: “você precisa selecionar mais suas amizades...” (2006, p.527).

O uso das reticências, enquanto índice de suspensão, é proposital do próprio Nelson, que, segundo Castro, considerava: “muito mais sugestivo [...], e dava um toque de fatalidade, de ninguémfoge-ao-seu-destino” (2007, p.236). As personagens d’A vida como ela é... são acometidas por esse destino inexorável e, muitas vezes, ao contrário do que fez Édipo Rei, escolhem apenas aceitá-lo ao invés de lutar contra ele. Essa aceitação do destino está claramente assinalada no conto O castigo. Odésio, após descobrir ser portador de sífilis, doença que, segundo advertência de seu médico, poderia levá-lo à loucura, decide não fazer o tratamento e encontra, na possível loucura, um álibi para extravasar sua paixão por Laurinha, mulher de seu amigo Abelardo: Então, não tendo para onde ir, pensou numa visita à casa de Abelardo. Àquela hora, a mulher do amigo estaria sozinha. Odésio coçou a cabeça, temeroso de uma inconveniência. Mas, como se sentia, para todos os efeitos, doente, e grave, decidiu-se: “Vou lá, sim”.

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Anais do II Congresso Internacional de Estudos Linguísticos e Literários na Amazônia (CIELLA) [...] Vendo aquela moça tão linda e próxima, cheirosa do banho recente, ele fez uma reflexão, que, de momento, parecia uma blague: — Sabe que, às vezes, o maluco tem suas vantagens? — Deus me livre! Odésio insistiu na pilhéria: — Claro! A loucura pode ser um alto negócio! O louco é o sujeito mais livre do mundo. Pode fazer o diabo, sem dar satisfações a ninguém [...]. Um negocião! Laurinha ria: — Que horror! E ele: — Mas é ou não é? No duro que é! Queres ver uma coisa? — Baixou a voz sem a desfitar: — se eu fosse louco, sabe o que podia fazer agorinha, neste momento? Segurar você e beijá-la e... Compreende? E seríamos ambos inocentes... (2006, p.156-157).

Odésio, mediante a perspectiva da morte, decide levar a cabo seu desejo recalcado por Laurinha. Sua tentativa de estabelecer um contato físico e a recusa daquela levam Odésio a assassinála friamente. O desejo que culmina em morte nos direciona as associações constantes que George Bataille, n’O erotismo, faz entre o erotismo e a violência, a agressividade, que tem seu ápice na própria morte. Em seu discurso, Bataille defende que a base do erotismo reside na descontinuidade dos seres que, como tais, necessitam alcançar uma continuidade. Este sentimento de falta, que ele denomina nostalgia, dirige as três formas de erotismo – a saber: o erotismo dos corpos, dos corações e o sagrado –, cujo campo é, por natureza, o da violência, ou violação. A procura pela continuidade é manifesta, muitas vezes, por meio da paixão, cuja essência é, para Bataille, “a substituição da persistente descontinuidade de dois seres por uma continuidade maravilhosa entre dois seres” (2004, p.32), ou seja, projetamos no outro a nossa continuidade. A paixão não levada a cabo resulta na quebra dessa continuidade a qual só se estabelece, neste momento, com a morte do outro. Este mesmo conceito de projeção sobre o outro é reiterado por Camille Paglia, ao afirmar que “no amor a si próprio não há a energia da dualidade, e, portanto, não há avanço espiritual” (1992, p.183). A morte, violência suprema, como forma de estabelecer esta continuidade, pode ser exemplificada no excerto abaixo do mesmo conto, O castigo: Um mês depois, foi bater na casa de Abelardo, numa hora em que ele não podia estar. Quem atendeu de quimono, chinelinhas de arminho, foi a própria Laurinha. Assim que o reconheceu, fez a pergunta alegremente: — Já ficou maluco? E ele, no mesmo tom: — Já. [...] Foi essa euforia irresponsável que a perdeu. Ele se irritou de vê-la tão linda e frívola, quase ordinária. Ergueu-se apertou entre as mãos o rosto da moça e a beijou, várias vezes, na boca. Laurinha, branda, balbuciou: “Que é isso? Não faça isso!” E ele, num surdo sofrimento: “Enlouqueci... Estou louco...” Queria dizer que uma mulher pode beijar um louco sem pecar [...]. Súbito, as mãos de Odésio desceram e se fecharam sobre aquele pescoço de mulher. Teve uma sensação muito remota de que a estrangulava. Viu como Laurinha se tornava feia, roxa, os olhos brancos, umas bochechas de máscara de carnaval [...]. Pronto. Ela estava morta a seus pés. (2006, p.158-159).

Num comentário mais abrangente de todo o título, podemos desenvolver um contraponto com as considerações aristotélicas. Em sua Poética, Aristóteles demarca a arte enquanto mimese: “a epopéia e a poesia trágica, assim como a comédia, a poesia ditirâmbica [...], todas se enquadram nas artes de imitação” (2003, p.239). No tocante à poesia, Aristóteles aponta a representação do humano da seguinte maneira: Como a imitação se aplica aos atos das personagens e estes não podem ser senão bons ou maus (pois os caracteres dispõem-se quase só nestas duas categorias, diferindo apenas pela prática do vício ou da virtude), daí resulta que as personagens são representadas melhores, piores ou iguais a nós (2003, p.242) (grifo meu).

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O próprio título da obra, A vida como ela é..., estudado segundo a proposta de Aristóteles, me leva a enquadrar suas personagens no terceiro grupo: iguais a nós. Estas personagens, não ocupando os extremos das virtudes (tragédia ou epopéia) ou dos vícios (comédia), possuem uma natureza central, para a qual acabam confluindo essas duas forças, por serem opostas, como demonstro no esquema abaixo:

Daí o título A vida como ela é... se enquadrar exatamente no centro, nem pior, nem melhor, mas igual. Facina, tentando explicitar a visão de Nelson sobre a natureza humana, assim disserta na introdução de seu livro: Para Nelson Rodrigues, todos os homens têm em si duas metades, uma “face linda” e outra “face hedionda”, centauros parcialmente Deus e parcialmente Satã. As imagens que apareciam freqüentemente nos textos de Nelson representando essas duas metades dos seres humanos eram os santos e os canalhas. Os santos, além de bons e virtuosos, eram caracterizados pela renúncia aos instintos que Nelson considerava desumanizadores e por uma existência pautada em um forte sentido ético-moral. Já os canalhas eram seres amorais por excelência, que não reconheciam limites para a satisfação de seus desejos pessoais, assumindo uma posição relativista no que diz respeito aos valores éticos e morais reconhecidos pela sociedade (2004, p.15).

Ela ainda prossegue: De acordo com Nelson, no mundo contemporâneo a maioria dos seres humanos tenderia mais para os canalhas do que para os santos. Mas as duas metades estariam sempre presentes. Mesmo o canalha mais vil possuiria uma dimensão de São Francisco de Assis adormecida em si, assim como o santo mais devotado teria trevas interiores que poderiam aflorar em determinados momentos. É essa tensão que constitui, na visão de nosso autor, toda a complexidade da natureza humana (2004, p.16).

Encerrando as considerações sobre o título, prossigo na análise dos outros aspectos da obra. O primeiro deles diz respeito ao ambiente principal o qual se passa a maioria das histórias. Percebemos que o espaço dos acontecimentos é, no geral, o familiar. Assim como no teatro rodriguiano, é a família o núcleo concentrador das tensões. A competição e a desconfiança, o antagonismo entre irmãos, pais e filhos, marido e mulher, sogras e noras, são matéria perfeita para a produção rodrigueana, e é nesse espaço que observamos claramente, segundo a perspectiva do autor, A vida como ela é.... Maria Luísa Boff, citada por Facina, assim define o papel da família, identificando-a “como reduto principal dos personagens e da ação e, pela exigüidade do espaço onde ocorrem as compulsões e desatinos, favorece a tragédia entre os membros que a compõem” (2004, p.116).

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A configuração das famílias na obra é diversa, como nos aponta Facina: “as formas de organização familiar vão variar muito: nuclear, família que inclui outros parentes ou agregados, casal sem filhos morando com agregados” (2004, p.115). A estas configurações, acrescento ainda: casais sem filhos que vivem sozinhos, mães solteiras e inúmeras outras combinações. Desta família nuclear, agregada sob o comando do pai – sinônimo de austeridade, respeito e virtude –, temos exemplo no conto O monstro: E de fato, o Dr. Guedes era o terror e a veneração daquela família. Esposa, filhas e genros, numa unanimidade compacta, tributavam-lhe as mesmas homenagens. Era de alto a baixo, uma dessas virtudes tremendas que desafiam qualquer dúvida. Infundia respeito, desde a indumentária (2006, p. 32).

Muito embora a presença da figura paterna se repita em vários contos, este aparente virtuosismo não recai somente sobre ela, mas sobre outras instâncias masculinas, como nos contos Cemitério de bonecas e A missa de sangue. No primeiro, temos Dr. Basílio, reconhecido e respeitado por sua generosidade em manter um orfanato feminino, mas que, na verdade, abusava das meninas. A missa de sangue conta a história de Penteado, “a pérola dos maridos” (2006, p.59), que, em ocasião de um delírio de Clélia, sua esposa, proveniente de uma febre, descobre que esta tinha um amante. Penteado, após a morte de Clélia, assassina Euzébio, o amante, com três tiros. Contudo, as diversas configurações familiares na obra sempre se encontram marcadas por segredos, ciúmes, traições, cobiça, inveja: ingredientes necessários para o drama. Outro aspecto importante recai, como já disse, sobre a marcante presença do feminino na obra, e aqui gostaria de abrir um parêntese para investigar melhor essa condição feminina n’A vida como ela é.... Os tipos femininos são inúmeros (esposas, sogras, irmãs, cunhadas) e se expressam através de vários tipos. Posso citar alguns, dentre a vasta gama contida na obra, como a esposa fiel, Clarita, do conto O dilema: E, de fato. Durval estava muito bem casado. Talvez Clarita não fosse exatamente um anjo. Teria seus defeitos, como todo mundo; mas o fato é que fazia a vida do marido, no lar, bem suportável e trazia a casa que era um brinco. Além disso, dera ao esposo um filho então com três anos, que era insofismavelmente um primor, diziam biscuit (2006, p.84);

e a esposa infiel, Solange, d’A dama do lotação: O furor extinguira-se nele. Se fosse um único, se fosse apenas o Assunção, mas eram tantos! Afinal, não poderia sair, pela cidade, caçando os amantes. Ela explicou que, todos os dias, quase com hora marcada, precisava escapar de casa, embarcar no primeiro lotação. O marido a olhava, pasmo de a ver linda, intacta, imaculada. Como é possível que certos sentimentos e atos não exalem um mau cheiro? Solange agarrou-se a ele, balbuciava: “Não sou culpada! Não tenho culpa!” E, de fato, havia, no mais íntimo de sua alma, uma inocência infinita (2006, p.38).

Há ainda a filha frágil e delicada, que surpreende a todos no final da história, como Margô d’O escravo etíope: Todos se voltaram na direção da menina. Então, aquela mocinha frágil, fina, que desfalecia ao aspirar um perfume mais intenso, ergueu o olhar firme, quase cruel. Disse apenas, sem medo: — É verdade (2006, p. 21).

Há também a ninfeta, sempre na pele de uma vizinha ou de uma cunhada sedutora, como Sandra d’O monstro ou Alice de Diabólica. Inúmeras são as conformações: mães virtuosas que, depois se descobre, tinham amantes, sogras intrusas, irmãs ciumentas, namoradas autoritárias, viúvas fogosas, esposas inseguras, enfim, um vasto repertório de comportamentos com os quais concorrem também inúmeros tipos masculinos. Contudo, mesmo com comportamentos distintos, estas mulheres se igualam em um aspecto: o desejar e/ou o serem desejadas. Quando não se apaixonam, elas despertam paixões capazes de levar o homem à loucura. Este desejo, assinalado uma vez por Castro, é ratificado também por Ricardo Pinto de Souza, em seu artigo Chorando na porta do céu, ao considerar que

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Tema geral: Línguas e Literaturas: Diversidade e Adversidades na América Latina O desejo era ainda tratado como uma força explosiva, e eventualmente se via um ou outro final moralista, mas, de um modo geral, os contos de A vida... tinham a capacidade de abordar com bastante liberdade a sexualidade reprimida e a ansiedade que esta repressão causava. O desejo é explosivo, mas é explosivo porque obrigam-no a ser velado. Mostra-se a degradação das mulheres, descritas por Rodrigues como seres desejantes (e a degradação, na verdade, era o desejo), mas por trás destes aspectos aparentemente conservadores há uma espécie de prazer em destruir os valores tradicionais, o que reforçaria a fama de tarado que Rodrigues possuía (s.d., p.11).

Essa “força explosiva” é a mesma paixão, que retoma os conceitos de Bataille sobre a relação amor e morte: As chances de sofrer são ainda maiores na medida em que apenas o sofrimento revela a inteira significação do ser amado. A possessão do ser amado não significa a morte, ao contrário, mas a morte está envolvida em sua procura. [...] O que está em jogo neste momento de fúria é o sentimento de uma continuidade possível percebida no ser amado [...]. Para o amante, parece que apenas o ser amado [...] pode realizar neste mundo o que nossos limites proíbem (2004, p.33).

As histórias giram, invariavelmente, em torno desses personagens femininos que, se não são personagens centrais, revelam-se de extrema importância para o desencadear dos conflitos. As mulheres rodrigueanas, em geral, são responsáveis pela sedução que leva ao adultério, à loucura e que culmina na trágica, mas não menos freqüente, morte. Esta associação mulher e morte, na obra rodrigueana, retoma conceitos há muito já explorados tanto na mitologia quanto na literatura gregas, cuja gama de personagens femininos é extensa, e não são raros os exemplos de mulheres que têm sua imagem intimamente ligada à luxúria, ao desejo, à paixão e à morte. Lembremo-nos aqui das célebres mulheres homéricas da Odisséia, verdadeiras femmes fatales: Circe, que com seu transe ilude e encanta, fazendo o homem voltar ao seu estado primitivo, animalesco; as sereias, que com seu canto atraem para morte, e Sila, a que devora quem atravessa seu caminho. A elas não puderam escapar ilesos Odisseu e seus homens. Arriscando uma classificação geral, posso dizer que as mulheres d’A vida como ela é... estão distribuídas em três tipos básicos: a santa (Geralda d’A grande mulher), a outra (Lucília d’O inferno), denominações encontradas em Ilane Cavalcante (apud Corrêa, 2006, p.66) e a ambivalente (Maria de Lourdes de Alegria perniciosa), e esta última nos remete à Conceição, personagem do conto Missa do Galo, de Machado de Assis. Conceição é a devota esposa do escrivão Meneses, que, mesmo a infidelidade do marido, vive virtuosamente. Uma noite, porém, tendo em sua casa, como hóspede, o jovem Nogueira, rapaz de 17 anos, acaba por envolver-se com ele, em um instante de conversa no qual Nogueira presencia a transformação da recatada esposa em sedutora mulher. Como é possível observarmos no conto machadiano, Conceição congrega em si estas duas faces: a santa, demarcada pelo dia: “na manhã seguinte, ao almoço, falei da missa do galo e da gente que estava na igreja, sem excitar a curiosidade de Conceição. Durante o dia, achei-a como sempre, natural, benigna, sem nada que fizesse lembrar a conversação da véspera” (2006, p.17) (grifo meu); e a outra, demarcada pela noite: “Há impressões dessa noite que me aparecem truncadas ou confusas. [...] Uma das que ainda tenho frescas é que, em certa ocasião, ela, que era apenas simpática, ficou linda, ficou lindíssima” (2006, p.16) (grifo meu). Dessa forma, vemos que Conceição representa a ambivalente e retoma nosso esquema da classificação de Aristóteles, cujas extremidades, virtudes (homens melhores) e vícios (homens piores), convergem para o centro, no qual se encontram os homens iguais. A ambivalente representa, aqui, a existência, nem sempre conflituosa, dessas duas naturezas, a natureza de centauro, expressão do próprio Nelson (apud Facina, 2004, p.261), que a faz oscilar entre os dois comportamentos. No processo de atração dessas duas forças opostas (a virtude representa o pólo positivo e o vício representa o pólo negativo) existe uma culminância, um momento no qual elas acabam por se encontrar e coexistir sem que se anulem, colaborando, desse modo, para a existência de um ser nem bom nem mau, mas igual, portador dessas duas naturezas.

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Outro aspecto desta análise envolve o papel do masculino, já que, para cada mulher, como já disse, existem inúmeros amantes, namorados apaixonados, fetichistas, gigolôs e maridos austeros ou pais moralistas. Comparados aos aspectos femininos, a configuração do masculino n’A vida como ela é... não é muito diferente. Encontramos na obra, invariavelmente, a mesma representação masculina que temos no feminino: os justos (Dr. Hildegardo de Vinte e cinco anos de casado), os canalhas (Euzébio d’O vadio) e os que vivem divididos entre os dois primeiros tipos. Representante deste último tipo, temos Nilson, d’A grande mulher, que chega mesmo a fazer a reflexão: — Homem não presta mesmo! — Por quê? E ele: — Veja você; sou casado com o anjo dos anjos. Mas bastou passar uma mulher ordinaríssima, como essa tal Neném, e eu já estou com água na boca! (2006, p.192).

Nilson, face à descoberta de que era traído pela mulher, começa a levar uma vida dupla e, então, “começou a ter ‘duas vidas’, uma em casa, com a esposa; outra, na rua, com a Neném” (2006, p.194). Apesar do título A vida como ela é... estar impregnado da presença feminina, ao masculino não foi reservado papel menor, à medida em que ele é co-responsável com a mulher pela traição, pelo incesto. A principal diferença está no fato dele ser, muitas vezes, a vítima da sedução feminina e o agente principal da tragédia: é o homem que cai, que foge e que mata, caso do já citado conto O castigo. O homem enquanto regente da sociedade, o patriarca, ainda aparece na obra. Não são poucas as figuras de pais austeros, moralistas e repressores, aqui, representações do superego freudiano, o qual “restringe a atividade do ego mediante proibições e punições, e incentiva ou força o estabelecimento de repressões” (2001, p.62). Para exemplificar esta assertiva, vejamos o conto O justo: Era a grande ou, por outra, a única autoridade naquela casa. Mandava e desmandava na mulher, nas filhas solteiras e casadas, nos filhos homens, nos genros. Sua palavra era a lei inapelável e definitiva. Entre parênteses, observe-se que esta autoridade se exercia na base de uma virtude inumana. Seu Clementino, com efeito, não bebia, não fumava, não jogava; era sóbrio e contido até nos prazeres da mesa (2006, p.90).

Percebemos também uma espécie de “moralização” da figura masculina: são maridos traídos que padecem a infâmia moral, amantes tocados pela culpa da desonra do outro, ou que, antes, culpam a mulher, tomando o exemplo do conto Morte pela boca: Atônito, Egberto despediu-se. Nessa noite, não conseguiu dormir. É o cúmulo! No dia seguinte, força o encontro com a pequena. Entrou, como ele próprio diria, de sola. “O que você fez não se faz. Nenhuma mulher tem o direito de caluniar o marido!” Foi uma cena atroz. Luíza explodiu em soluços e, finalmente, fez uma confissão total. Então, com uma sensação de úlcera no estômago, Egberto percebeu tudo [...]. Abraçado a Luíza, ele explodiu: “Bom demais! Bom demais!” Frio por dentro, incomovível, Egberto afastou a pequena: “Foi a última vez! Não quero mais nada contigo, nada!” (2006, p.236) (grifo do autor).

Mas não poderia deixar de existir no universo d’A vida como ela é... os canalhas, os oportunistas sociais, os quais, curiosamente, apesar do comportamento antimoralista, recebem o respeito da sociedade que, no seu íntimo, reconhece neles um certo heroísmo, ao contrário do que acontece com a mulher. É o caso de Norival de Caça-dotes. Interessado no dinheiro da viúva Suzana, consegue casar-se com ela, mesmo sem amá-la, provocando assim o espanto e admiração de seus amigos e, de namorado galante, passa a verdadeiro gigolô, que vive para maltratar a esposa e gastar-lhe o dinheiro. Análise similar a essa vemos em Facina, sobre outro personagem rodrigueano, Palhares: “como todo canalha, Palhares era cordial e simpático. E o que mais espanta Nelson Rodrigues é que, ao invés de ser condenado por seu feito, Palhares era admirado por todos” (2004, p.266).

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Contudo, ao lado destas e de outras configurações masculinas, existem outras curiosas, como a figura do homem que é capaz de aceitar uma traição pelo medo da perda (Domício, d’O aleijado). Essa é uma outra face do homem na obra: o frágil e inseguro. Este homem, apesar da resistência social, que lhes impõe o exercício da supremacia e da autoridade, sobretudo frente ao feminino, aparece em vários contos, e demonstra esta natureza que, em muitos momentos, é fruto de uma imposição social, imposição essa profundamente discutida por Badinter em XY: sobre a identidade masculina: Pouco inclinados a nos questionar sobre uma realidade inconstante, queremos crer num princípio universal e permanente da masculinidade (macheza) que desafie o tempo, o espaço e as fases da vida. Esse princípio, nós o encontramos na ordem da natureza, que exibe a diferença dos sexos. [...] Nosso linguajar cotidiano trai nossas dúvidas, quem sabe até nossa preocupação, ao se referir à masculinidade como a um objetivo e um dever. Ser homem se diz mais no imperativo do que no indicativo (1993, p.3) (grifos meus).

É possível presenciarmos, em alguns personagens masculinos d’A vida como ela é... certa “inveja” do sexo oposto, uma vontade de ser o outro, também assinalada por Badinter – no livro Um é o outro – como uma inversão, já manifesta em sociedades primitivas, nas quais o homem, pela impossibilidade de gerar filhos, sentia-se inferior, e tentava igualar-se à mulher através de certos rituais. Sobre essa prática masculina, a autora cita G. Delaisi de Parseval, o qual afirma que “primeiro encontramos a inveja do homem em relação às capacidades da mulher de gestar, parir, amamentar” (1986, p.115), porém, como prossegue Parseval, este desejo de ser o outro se estende a outras dimensões do feminino que não apenas a maternidade, como “ao seu poder de criatividade, de seu gozo, de seu mistério” (1986, p.115). Exemplo da assertiva de Badinter pode ser encontrado no conto Noiva da morte. Alipinho – nome sugestivo –, único homem de uma família de mulheres, era sempre protegido – ou tiranizado, termo que aparece no conto – pela mãe e as irmãs, que o impediam mesmo de ir à rua brincar com outros meninos. Ele vivia entre os cuidados excessivos da mãe e a repreensão furiosa do pai que o julgava em vias de tornar-se um maricas: — Ora, bolas! Vocês estão pensando o quê? O Alipinho é homem! — E enchia a boca, com a palavra: — Homem! Mas as mulheres, inclusive a mãe, se atiravam em pânico, numa pavorosa histeria coletiva. Agarravam-se ao menino, absorviam o menino: a mãe, em crise, frenética, berrava: “O filho é meu!” E atirava à cara do marido o grande argumento: — Fui eu quem teve as dores! Eu!... (2006, p.65).

Esta expressão materna “fui eu quem teve as dores! Eu!”, nos remete ao poder feminino da gestação, apontado por Badinter. Antes de morrer, o pai de Alipinho deixa ao médico da família, Dr. Assunção, a seguinte tarefa: tornar seu filho um homem, casando-o. Mesmo debaixo de muitos protestos, mãe e irmãs acabam cedendo e lhe arranjam Marta, moça de temperamento completamente oposto ao do noivo: “Era uma namoradeira que Deus te livre [...]. Alipinho olhava, com uma espécie de terror, a noiva, cheia de elã, de apetite vital. Entre os dois, ela era quem tinha a voracidade dos beijos” (2006, p.69). O próprio nome da namorada de Alipinho, Marta, traz consigo uma referência à figura mitológica de Marte, deus latino da guerra, reconhecido por simbolizar a força e a agressividade, características inerentes ao espírito guerreiro (1973, p.115). No conto, esta agressividade está demarcada na voracidade dos beijos de Marta. Com a proximidade do casamento e o terror – na verdade, admiração – que Marta infundia em Alipinho, este, não podendo ser a própria noiva, acaba por cometer suicídio, trajando o vestido de sua noiva, que ele mesmo escolhera para ela: Sozinho, em casa, Alipinho não precisou ter pressa. Tomou um banho, com sabonete espumoso. Depois, perfumou-se com água de colônia, diante do espelho. Da água de colônia passou ao pó de arroz, ao ruge, ao batom. E, finalmente, pôs o vestido de noiva, inclusive a grinalda, o véu. [...] Horas depois, chega a família. Já a vizinhança estava alucinada com o disco da marcha nupcial. [...] Uma das irmãs vai ao banheiro e lá vê aquele vulto branco suspenso. [...] Vestido de noiva, com véu e grinalda, enforcara-se Alipinho (2006, p.69).

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Como últimos itens desta análise, me reporto a dois aspectos que considero também relevantes para obra. O primeiro diz respeito à linguagem e aos nomes dos personagens, característicos do meio em que se passam as histórias. Os personagens rodrigueanos, no geral, por serem urbanos e pertencerem à classe média, apresentam o vocabulário local, permeado de gírias que vão das mais corriqueiras, como “papagaio!” (2006, p.98) às frases feitas: “vim descalçar contigo uma bota daquelas!” (2006, p.127), o qual corrobora para certo caráter de verossimilhança das histórias, o que se constata também nos nomes dos personagens como Dagmar, Maneco, Bezerra, Lucília. Há, comumente, a presença de nomes diminutivos como “Glorinha”, “Alicinha”, “Margô” e outros. Tal caráter verossímil era importante se nos lembrarmos do local no qual eram veiculadas as histórias: um jornal, e se levarmos em consideração também a fonte de inspiração de muitas delas, as páginas policiais. O outro aspecto ao qual gostaria de fazer referência diz respeito à conformação dos textos d’A vida como ela é.... Todas as histórias se apresentam fragmentadas e, além do título, trazem vários subtítulos, o que podem ser atribuído à prática jornalística de Nelson. Nos jornais, estes subtítulos servem como síntese das matérias e, no caso dos contos, sintetizam em poucas ou em uma só palavra os conteúdos das partes que compõem a história. Eles podem ser também representativos do desejo de Nelson de assinalar a própria fragmentação humana. Em suas histórias, o homem nunca termina na mesma condição em que começou. Angélica de Oliveira Castilho, em sua tese Clarice Lispector e Nelson Rodrigues: modernidade e tragicidade, assim classifica as personagens rodrigueanas: Um dos traços que caracteriza o perfil da personagem rodrigueana é essa passagem de um pólo ao outro, por ter falsificado quem realmente é e por descobrir sentimentos singulares em circunstâncias igualmente únicas. Em O decote de A vida como ela é..., Clara passa de frágil a adúltera e agressiva; Aderbal passa de adúltero e grosseiro a resignado, porque ama a filha e quer manter as aparências; Mirna, a filha de quinze anos, de dócil passa a mandante do assassinato da mãe (2006, p. 79).

Após este breve panorama a respeito d’A vida como ela é..., é possível percebermos a riqueza que compõem o universo do escritor, que soube fazer da matéria do cotidiano conteúdo não apenas ficcional, mas literário, com uma gama de personagens envolventes e tramas com desfechos inesperados, que, invariavelmente, rompem com nossas expectativas de chegarmos a um final feliz. Referências ARISTÓTELES. Arte retórica e arte poética. 16.ed. São Paulo: Ediouro, 2003. ASSIS, M. Contos escolhidos. São Paulo: Martin Claret, 2006. BADINTER, E. XY: sobre a identidade masculina. Trad. Maria Ignez Duque Estrada. 2 ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1993. ______. Um é o outro: relações entre homens e mulheres. Trad. Carlota Gomes. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1986. BARRETO, L. Os melhores contos. São Paulo: Martin Claret, 2005. BATAILLE, G. O erotismo. Trad. Cláudia Fares. São Paulo: Arx, 2004. CASTILHO, A. O. Clarice Lispector e Nelson Rodrigues: modernidade e tragicidade. Tese (Doutorado em Literatura Brasileira) — Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2006. Disponível em: http:// www.letras.ufrj.br/ Acesso em: 8 set. 2007. CASTRO, R. O anjo pornográfico: a vida de Nelson Rodrigues. 2 ed. São Paulo: Companhia das letras, 2007. CORRÊA, P. M. Contos selecionados de Inglês de Sousa. Belém: Pakatatu, 2005.

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Tema geral: Línguas e Literaturas: Diversidade e Adversidades na América Latina FACINA, A. Santos e canalhas: uma análise antropológica da obra de Nelson Rodrigues. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2004. FOUCAULT, M. História da sexualidade: I a vontade de saber. Rio de Janeiro: Edições Graal Ltda, 1977. FREUD, S. Esboço de Psicanálise. Tradução de Maria Aparecida Moraes Rego. Rio de Janeiro: Imago, 2001. MENARD, R. Mitologia greco-romana. Trad. Aldo Della Nina. São Paulo: Opus, 1991. 2 ed. Vol. III. PAGLIA, C. Personas sexuais: Arte e decadência de Nefertite a Emily Dickinson. Trad. Marcos Santarita. São Paulo: Companhia das Letras, 1992. RODRIGUES, N. Histórias da vida como ela é: elas gostam de apanhar. Rio de Janeiro: Agir, 2007. ______. A vida como ela é.... Rio de Janeiro: Agir, 2006. ______. Teatro completo: tragédias cariocas. org. Sábato Malgadi. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1985. ______. Teatro completo: peças psicológicas. org. Sábato Malgadi. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1981a. ______. Teatro completo: peças míticas. org. Sábato Malgadi. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1981b. SOUZA, R. P. Chorando na porta do céu. Artigo – Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, s.d. Disponível em: http://www.letras.ufrj.br/ciencialit/imagens/chorando%20naporta%20do% 20c%E9udoc. Acesso em: 8 set. 2007. WILDE, O. Aforismos. Rio de Janeiro: Newton Compton Brasil, 1995.

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DEVANEIO E EMBRIAGUEZ DUMA RAPARIGA: UMA ANÁLISE DA FIGURA FEMININA NO CONTO DE CLARICE LISPECTOR Flávia Rodrigues de MELO Antonia Marly Moura da SILVA (Universidade do Estado do Rio Grande do Norte)

RESUMO: O objetivo deste trabalho é apresentar uma análise da representação da figura feminina em Devaneio e embriaguez duma rapariga, conto de Laços de família de Clarice Lispector. Busca, sobretudo, enfatizar a ação da personagem, destacando seus papéis sociais, bem como o conflito existencial vivido pela mulher. No conto, vemos, a imagem da mulher condicionada aos valores de uma sociedade patriarcal e a inquietude de quem interroga esses valores. Considerando esse recorte temático, tomaremos como referencial os estudos de Brait (1985) e Candido (1968), sobre a categoria personagem; CHEVALIER e Gheerbrant (1992), Freud (1996) e Brunel (1998) sobre o narcisismo e a simbologia do duplo. Os aspectos da narrativa e os elementos temáticos que sugerem a configuração da personagem mulher, enfocando os papéis que está desempenha na sociedade serão o foco de nossa análise. PALAVRAS-CHAVE: Clarice Lispector; papel da mulher;,maternidade; sociedade.

ABSTRACT: The objective of this work is to show an analysis of the mode of representation of the female figure in Devaneio e embriaguez duma rapariga, the tale of Laços de família by Clarice Lispector. Search, especially, emphasizing the action of the character, highlighting the social roles assumed by the women. In the tale Devaneio e embriaguez duma rapariga, we see, first, the image of women conditioned on values of a patriarchal society and the concern of who question these values. Considering this cut theme, take as a referential the studies of Brait (1985) and Candido (1968), about the class of the character, Chevalier and Gheerbrant (1992), Freud (1996) and Brunel (1998) about the narcissism and the double symbolism. The aspects of the narrative and thematic elements that suggest the configuration of the women character, focusing on the roles that they play in society will be the focus of our analysis. KEY WORDS: Clarice Lispector; the role of the women; motherhood; society.


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1. Introdução Este trabalho pretende analisar o modo de representação da figura feminina no conto Devaneio e embriaguez duma rapariga, da obra Laços de família (1960) de Clarice Lispector, enfocando a ação da personagem e destacando os papéis sociais assumidos pela mulher. Em nossa análise, focaremos três aspectos da estrutura da narrativa que contribuem também na tematização do drama da mulher. Primeiramente, observaremos como a figura feminina está representada na narrativa, buscando compreender o aparato ideológico expresso nas imagens da mulher como sujeito integrante da cultura patriarcal. Em seguida, analisaremos o espaço e o ambiente que referendam o cotidiano doméstico e um discurso contraditório que ora emblematiza o desejo de mudança ora a opressão da mulher, culminando num conflito existencial vivido pela personagem. Por fim, observaremos neste conto, as múltiplas metáforas que revelam o caráter dual da figura feminina – a mistura de experiências que figurativizam a purgação e a renovação, bem como as imagens de repressão em relação ao desejo e a sexualidade. Em outras palavras o drama de quem é consciente de sua duplicidade e de quem teme a ruptura. Na leitura pretendida, tomaremos como referencial básico os seguintes autores: Brait (1985), Candido (1968), Chevalier e Gheerbrant (1992), Freud (1996) e Brunel (1998). 2. A caracterização da personagem feminina No primeiro conto de Laços de Família, Devaneio e embriaguez duma rapariga temos representada a temática da mulher, marcada por um discurso contraditório que evoca o conflito entre o ideal e o real, onde a figura feminina se enquadra dentro de uma estrutura familiar tradicional, ocupando os papéis de mãe, esposa e dona de casa. No conto em análise, observamos que a personagem não tem nome, um indício de identidade esvaziada; assim, sem referências jurídicas, ela não é considerada uma cidadã plena, além de ser um sujeito enclausurado em sua própria casa. Nessa perspectiva, concordamos com Trevian (2004, p.69) ao declarar que: “A personagem sem nome de ‘Devaneio e embriaguez duma rapariga’ [...] expressa a situação da mulher absorvida pela rotina da vida doméstica que, por suas limitações, não oferece espaço para uma exploração das potencialidades mais íntimas e profundas do ser”. Nos elementos constitutivos da estrutura narrativa do conto, prevalecem os códigos éticos e sociais expressos na caracterização da figura feminina que é dimensionada por traços que evidenciam a vida familiar e doméstica. Em todo o conto, é recorrente a preocupação da personagem em manter a casa em ordem, em preparar as refeições dos filhos e do marido. Ao investir em responsabilidades maternas e conjugais, a mulher atua como sombra dos seus entes queridos, esquecendo-se de si própria. Nas primeiras linhas do texto, o narrador menciona três espelhos, momento em que a figura feminina contempla sua imagem plural e esfacelada. A simbologia do espelho expressa aqui nos induz a inferir que se trata um sujeito consciente de suas máscaras e, portanto, dos vários papéis ocupados na sociedade e em sua vida pessoal. Porém, a cena diante do espelho, assume um contorno de resistência, pois o diálogo com o “outro”, do outro lado do espelho, revela a imagem de quem não comunga com o drama vivido; é o momento em que ela olha para si mesma, distanciando-se das suas obrigações diárias, o que motiva um estado de confronto e idealização. Esse ato contemplativo dá início a uma busca existencial que a torna uma subversiva dos valores sociais e morais, é um confrontar-se com sua própria condição de mulher. Assim, reflexiva e temerosa, a personagem permanece por vários dias, sem se dar conta de mais nada, pois, como bem declara o narrador: Estava apenas a pensar, deitada em sua cama. Porém, de um momento para outro, é como se ela acordasse do sonho em que estava vivendo e visse a realidade. É o que podemos verificar num dos fragmentos que destaca esse comportamento: Dum momento para outro, com raiva, estava de pé. Mas nas fraquezas do primeiro instante parecia doída e delicada no quarto que rodava, que rodava até ela conseguir às apalpadelas deitar-se de novo à cama,

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Tema geral: Línguas e Literaturas: Diversidade e Adversidades na América Latina surpreendida de que talvez fosse verdade: ‘ò mulher, vê lá se me vais mesmo adoecer!’, disse desconfiada. Levou a mão à testa para ver se lhe tinham vindo febres [...] Acordou com o dia atrasado, as batatas por descascar, os miúdos que voltariam à tarde das titias, ai que até me faltei ao respeito!, dia de lavar roupa, e serzir as peúgas, ai que vagabunda que me saíste!, censurou-se curiosa e satisfeita, ir às compras, não esquecer o peixe, o dia atrasado, a manhã pressusora de sol. (LISPECTOR, 1983, p. 10).

Assim, observamos a duplicidade da personagem que se depara com um conflito, o “eu” e o outro, a mulher versus a dona de casa. Ela, nesse momento da narrativa, encontra-se depressiva, por não estar cumprindo, como deveria seu papel de dona de casa. A reclusão no quarto, os momentos reflexivos, o silêncio necessário para a descoberta de si traçam a evolução da personagem; o desapego aos afazeres domésticos, mesmo que momentaneamente, representam o desejo de liberação. É a etapa em que ela acorda e percebe que está vivendo apenas um aspecto de sua realidade, uma faceta de sua condição de mulher, e para exercer esses papéis com eficiência é necessário se desprender do seu dia a dia. No processo de descoberta de si mesma, observamos imagens que materializam o despertar da personagem diante do espelho. Nas primeiras linhas do texto, a personagem aparece “dialogando” consigo mesma diante do espelho: Pelo quarto parecia-lhe estarem a se cruzar os elétricos, a estremecerem-lhe a imagem refletida. Estava a se pentear vagarosamente diante da penteadeira de três espelhos, os braços brancos e fortes arrepiavam-se à frescurazita da tarde. Os olhos não se abandonavam, os espelhos vibravam ora escuros, ora luminosos. [...] Os olhos não se despregavam da imagem, o pente trabalhava meditativo, o roupão aberto deixava aparecerem nos espelhos os seios entrecortados de várias raparigas. (LISPECTOR, 1983, p. 7)

Pode ser visto nesse trecho, a duplicidade provocada pela luz, uma vez que o espaço aparece ora escuro ora luminoso. Nesse jogo de reflexos se cria uma personagem ambígua e uma realidade de duas ordens que traz à tona os opostos desejados pela mulher em seu ato contemplativo: liberdade e resistência, culpa e vergonha. Sobre o duplo em Clarice Lispector, vale lembrar o que afirma Caldas (2008, p.51) ao fornecer uma definição fundamental sobre a caracterização da personagem feminina, quando analisa o conto Laços de família: Á luz dos elementos estruturais da narrativa, em particular da caracterização dos personagens, e da linguagem utilizada, é possível afirmar que a mulher de ‘Laços de Família’ caracteriza-se como a imagem de um reservatório de incertezas e desconhecimento de si própria. Na condição de sujeitos modernos, ora conscientes ora inconscientes de sua duplicidade, verdadeiros Narcisos estilhaçados, as mulheres lispectorianas são destronadas de suas histórias, social e simbolicamente. O desconhecimento do outro é uma alegoria do descentramento do sujeito contemporâneo. A ausência de conexão entre a mulher e a mãe, a mulher e o marido emblematizam o fracasso das identidades pessoais e familiares, ou a imagem dual da mulher num jogo desleal e desigual.

Assim, vemos que a mulher retratada por Clarice Lispector é caracterizada como um ser de incertezas e desconhecimento de si mesma, o que nos leva à fazer referência com o mito de Narciso, uma vez que este não tinha consciência de sua duplicidade, ou seja, Narciso não sabia que a imagem pela qual ele se apaixonou era o reflexo de si mesmo. 3. Melancolia e Estranhamento no comportamento da personagem feminina O estado de melancolia e descontentamento em “Devaneio e embriaguês duma rapariga” é recorrente na ação da figura feminina; o narrador parece querer enfatizar o conflito existencial da mulher que busca emergir e tornar-se sujeito de sua história. A melancolia, esse “Estado mórbido de tristeza e depressão” Ferreira (1993, p.358), é um sentimento latente no conto, como podemos perceber no trecho que segue: “estava rasa, não tinha sequer onde buscar uma resposta para o marido, ficou na cama a ouvir a casa silenciosa, passou o dia deitada”. (LISPECTOR, 1983, p.9). Sigmund Freud,

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Anais do II Congresso Internacional de Estudos Linguísticos e Literários na Amazônia (CIELLA) Os traços mentais distintivos da melancolia são um desânimo profundamente penoso, a cessação de interesse pelo mundo externo, a perda da capacidade de amar, a inibição de toda e qualquer atividade, e uma diminuição dos sentimentos de auto-estima a ponto de encontrar expressão em auto-recriminação e auto-envilecimento, culminando numa expectativa delirante de punição. (FREUD, 1996, p. 250).

A melancolia é o sentimento possível para a crise interior de um sujeito feminino que busca sua identidade como ser humano pleno, aquele que olha para si mesmo diante do espelho e questiona seus papéis e sua realidade. As características mencionadas por Freud são perceptíveis na caracterização da mulher do conto, pois ela encontra-se em um notório estado de desânimo, desejosa de isolar do mundo exterior, experimentando um estado de estranhamento em relação ao papel por ela ocupado, a de protetora da família. O sentimento de estranhamento marca a estrutura narrativa, conforme podemos ver no trecho abaixo: [...] Durante o dia inteiro ficou-se na cama, a ouvir a casa tão silenciosa sem o bulício dos miúdos, sem o homem que hoje comeria seus cozidos pela cidade. Durante o dia inteiro ficou-se à cama. Sua cólera era tênue, ardente. Só se levantava mesmo para ir à casa de banhos, donde voltava nobre, ofendida. A manhã tornou-se uma longa tarde inflada que se tornou noite sem fundo amanhecendo inocente pela casa toda. (LISPECTOR, 1983, p.9)

Vemos, a partir do trecho acima, que o estranhamento se dá também pelo não cumprimento das atividades que a personagem estava acostumada a realizar todo dia. Reflexiva, a mulher, passa a ter atitudes anormais e misteriosas. Fica apenas deitada na cama, sem se preocupar com mais nada, levantando-se apenas para ir à casa de banhos. Dias e noites se passam e ela permanece nesse estado. Sobre o estranho, Freud (1996, p. 237) afirma: “O estranho relaciona-se indubitavelmente com o que é assustador – com o que provoca medo e horror; certamente, também, a palavra nem sempre é usada num sentido claramente definível, de modo que tende a coincidir com aquilo que desperta o medo em geral”. Dessa forma, observamos que a mudança do comportamento da mulher é resultado do seu olhar crítico sobre si mesma diante de sua imagem refletida no espelho. Ou seja, ela percebeu não só sua imagem física refletida, viu também sua vida, seus atos, seus desejos, viu o esfacelamento do sujeito, causando o estranhamento e propiciando esse estado de descontentamento e desassossego. Podemos associar ao fato do estranhamento da personagem a questão de que ela não se via como sujeito mulher. Ao longo dos anos, casada, cuidando apenas do marido, da organização da casa e dos filhos, ela esquece de si e passa a ser um outro, viver a vida de um outro, assim o espelho reflete uma falsa imagem da mulher. 4. Os indícios do mito de Narciso no Conto Ouvimos sempre a palavra mito relacionada a algo que não existe, que é fantasia e que impõe medo. Podemos dizer que o mito é mentira, ou seja, não existe. Dessa forma, o mito pode ser considerado como um relato das experiências vividas. Para Rocha (1985, p.7-8): Mito é uma narrativa. É um discurso, uma fala. É uma forma de as sociedades espelharem suas contradições, exprimirem seus paradoxos, dúvidas e inquietações [...] O mito faz parte daquele conjunto de fenômenos cujo sentido é confuso, pouco nítido múltiplo. Serve para significar muitas coisas, representar várias ideias, ser usado em diversos contextos [...] O mito é também uma palabra que está em moda. Um conceito amplo e complexo, por trás de uma palavra chique.

Considera ainda que: [...] O mito é, então, uma narrativa especial, particular, capaz de ser distinguida das demais narrativas humanas [...] O dicionário Aurélio, diz que o mito é o seguinte: “Fato, passagem dos tempos fabulosos;

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Tema geral: Línguas e Literaturas: Diversidade e Adversidades na América Latina tradição que, sob forma de alegoria, deixa entrever um fato natural, histórico ou filosófico; (sentido figurado) coisa inacreditável, sem realidade” [...] A partir dessa ideia podemos pensar que o mito carrega consigo uma mensagem que não está dita diretamente. Uma mensagem cifrada. O mito esconde alguma coisa. O que ele procura dizer não é explicitado literalmente. Não “está na cara”. O mito não é “objetivo”. (ROCHA, 1985, p.9)

Dessa forma, vemos que definir mito não é uma tarefa fácil, principalmente pelo fato de que o mito pode representar várias coisas em diversos contextos, ou seja, não existe uma regra para o mito. Em nossa análise do conto Devaneio e embriaguez duma rapariga, notamos que a personagem central – a mulher -, possui características de Narciso. Nossa compreensão do problema parte do fato de que tanto a mulher do conto como Narciso tiveram suas vidas refletidas. Narciso através da água e a mulher através do espelho do seu quarto, porém, no caso do Narciso representado na narrativa de Clarice Lispector são visíveis os traços de um Narciso moderno, descentrado e estilhaçado, um sujeito consciente de sua duplicidade. Vale destacar aqui os traços distintivos contidos na evolução do referido mito. Na visão clássica, Narciso busca a si mesmo no outro. Esta presença objetiva do outro que atesta a sua existência. Este outro que o reflete e no qual se vê refletido. Narciso brinca com a imagem de si mesmo no outro e do outro em si mesmo buscando sua própria identidade, sua condição de ser no mundo. Procura na relação dos contrários à natureza do seu existir, a possibilidade de ser, e de deixar de ser do outro. (CAVALCANTI, 1992, p.208).

Narciso, através da água viu seu próprio reflexo e se apaixonou perdidamente, não podendo conter esse amor e, principalmente, sem saber que amava a si próprio. Dessa forma, passou dias sem comer, sem beber, ficando apenas a contemplar aquela linda imagem na beira do lago. Morreu consumido pelo seu amor. Na configuração moderna do mito, podemos dizer com Aragão que: “O Narciso Moderno é aquele que não se olha por mero acaso, mas porque ausculta o mistério de sua existência. É aquele que se reconhece no espelho, que se sabe dividido, que deseja consolidar sua consciência. Exatamente por isto, fadado a conviver com a morte, transitando em um espaço partilhado por Eros e Thanatos (ARAGÃO, 1991, p.71). A figura feminina do conto “Devaneio e embriaguês duma rapariga” é um tipo de Narciso cônscio de seu caráter multifacetado e de seus múltiplos e variados reflexos, figurativizados nos diversos papéis representados na estrutura narrativa. No conto, a personagem num ato contemplativo diante do espelho tem uma visão ampla da sua vida, ou seja, ela vê a imagem dela como mãe, esposa e mulher, tendo, assim, uma visão tripla. Nesse momento, o olhar no espelho reflete uma imagem fantasiosa da mulher que se repete infinitamente em três espelhos. Sobre a simbologia do espelho Umberto Eco (1989, p. 12) afirma, tomando por base os escritos de Lacan, temos que: O espelho é um fenômeno-limiar, que demarca as fronteiras entre o imaginário e o simbólico. Entre os seis meses e oito meses, a criança se defronta com a própria imagem refletida no espelho. Numa primeira fase confunde a imagem com a realidade, numa segunda fase percebe tratar-se de uma imagem, numa terceira compreende que a imagem refletida é a sua. Nesse estado de júbilo, a criança reconstrói os fragmentos ainda não unificados do próprio corpo, mas o corpo é reconstruído como alguma coisa de extremo e – dizse – em termos de simetria inversa.

5. A embriaguez: a metáfora da fuga e do estranhamento O primeiro problema a ser desenvolvido é encaminhado a partir da saída da personagem, num sábado a noite, com seu marido. Eles vão à Praça Tiradentes, cenário onde se desencadeia o resto da história. Vejamos: Mas no sábado à noite, foram à tasca da Praça Tiradentes, a atenderem ao convite do negociante tão próspero, ela com vestidito novo que se não era cheio d’enfeites era de bom pano superior, desses que lhe

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Anais do II Congresso Internacional de Estudos Linguísticos e Literários na Amazônia (CIELLA) iam a durar pela vida inteira. No sábado à noite, embriagada na Praça Tiradentes, embriagada mas com o marido ao lado a garanti-la, e ela cerimoniosa diante do outro homem tão mais fino e rico, procurando darlhe palestras, pois que ela não era nenhuma parola d’aldeia e já vivera em capital. Mas borrachona a mais não poder. (LISPECTOR, 1983, p.11).

Notamos que é feita uma referência a diversos fatores que nos levam a pensar na fuga do cotidiano. Logo de início, vemos um destaque para o fato de a personagem estar de vestido novo, ou seja, com uma vestimenta escolhida para uma ocasião especial – como é este encontro -,daí o fato da mulher usar sua melhor roupa. Aqui a personagem abandona as vestes rotineiras e usa uma indumentária que a transporta para essa outra realidade, vivida num sábado, o dia considerado para o descanso. A ocasião é também propícia para a fuga provocada pelo álcool; bebendo ela pode despojar-se, ser outra. À medida que a noite passa, ela se embriaga cada vez mais: “Os lábios engrossados e os dentes brancos, e o vinho a inchá-la. E aquela vaidade de estar embriagada a facilitar-lhe um tal desdém por outro, a torná-la madura e redonda como uma grande vaca.” (LISPECTOR, 1983, p. 11). Nesse trecho, a mulher é apresentada com uma vaca. A metáfora da vaca representa a imagem irônica de mulher produtiva e leiteira, numa caricatura ou na imagem grotesca de vaca embriagada. De repente, a visão da personagem volta-se a uma mulher que estava no restaurante: “Toda cheia dos chapéus e d’ornatos, loira como um escudo falso, toda santarrona e fina – que rico chapéu que tinha! – vai quer que nem casada era, e a ostentar aquele ar de santa.” (LISPECTOR, 1983, p. 14). Nesse momento, percebemos a expressão de um sentimento de competição entre as mulheres, pois ela descreve a imagem como o protótipo de imagem ideal do desejo masculino – a típica mulher fatal. A partir daí é perceptível o complexo e inferioridade, pois ela demonstra a condição de quem não possui as qualidades físicas que observa na outra, principalmente, em relação ao corpo. E ela segue com seus pensamentos introspectivos: “E a santarrona toda vaidosa de seu chapéu, toda modesta de sua cinturita fina, vai ver que não era capaz de parir-lhe, ao seu homem, um filho.” (LISPECTOR, 1983, p. 14). Ela faz uma crítica, pois a mulher da qual ela condena é magra e ela, ao contrário, é uma mulher gorda. Magra e perfeita, essa é a imagem da mulher incapaz de procriar, o que vem à tona nessa competição desigual, daí a imagem da inveja que toma conta dos devaneios da personagem central do conto. E o devaneio não pára por aí. Ela não se conforma de ver aquela mulher, com um corpo aparentemente mais belo do que o seu, por isso insiste em afirmar seu descontentamento: “Oh, como estava humilhada por ter vindo à tasca sem chapéu, a cabeça agora parecia-lhe nua.” (LISPECTOR, 1983, p. 14). Aqui, ela se sente inferior, desnuda. Depois de trazer à tona todos os preconceitos sobre si mesma e de rejeitar estereótipos, a personagem retorna para casa em completa desordem interior, inquieta dentro de sua realidade familiar, porém desejosa de romper com as mais veladas formas de imposições éticas e sociais, daí seu estado “esquisito”. Estado capaz de levá-la ao encontro consigo mesma: “Se conseguisse chegar mais perto de si mesma, ver-se-ia inda maior”. (LISPECTOR, 1983, p.15). Nas partes finais no conto, ela fica surda; entendemos que o fato dela perder a audição significa que ela não quer mais ouvir nada, fechando-se no seu silêncio. Nesse momento, ela revela como tinha se tornado uma mulher relaxada e preguiçosa, mas isso iria mudar quando ela estivesse bem das pernas. Quando iria colocar a casa em ordem, limpar todas as sujeiras e, conseqüentemente, sua vida, pois a desordem exterior interfere na ordem interior e uma casa bagunçada é o reflexo de uma mulher desleixada – é o julgamento que a personagem faz de si mesma. 6. Considerações finais Em Devaneio e embriaguês duma rapariga, o espelho, a melancolia, o estranhamento e a embriaguês funcionam como traços decisivos para a construção dos vários papéis exercidos pela personagem feminina.

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Por um lado percebemos a duplicidade da mulher marcada por suas atitudes: a mulher dividida entre o papel de protetora da família, responsável pelas obrigações domésticas e maternais e a mulher diante de seu despertar, consciente de sua alienação no cumprimento desses papeis. Nesse jogo dual, verificamos o desejo de fuga da realidade e o receio de assumir sua própria voz. Notamos que no texto de Clarice Lispector estão presente questões ligadas à identidade, ao esfacelamento do sujeito. Em Devaneio e embriaguez duma rapariga, percebemos imagens de um sujeito narcísico, fragmentado, dividido em seus diversos papéis. Referências ARAGÃO, V. de. O estilhaçamento de Narciso na modernidade. In: CARDOSO, Z. de A. (org). Mito, religião e sociedade. (Atas do II. Congresso Nacional de Estudos Clássicos). São Paulo. SBEC, 1991, p. 69-74. BRAIT, B. A personagem. São Paulo: Ática, 1985. BRUNEL, P (Org.). Dicionário de mitos literários. 2. ed. Trad. Carlos Sussekind et. al. Rio de Janeiro: José Olympio, 1998. CANDIDO, A. A formação da literatura brasileira: momentos decisivos. 6 ed. Belo Horizonte: Itatiaia, 2000. CALDAS, I. F. P. Os múltiplos ecos do mito de Narciso no conto “Laços de família” de Clarice Lispector. 2008. Monografia (Curso de especialização em Literatura e Estudos Culturais) Universidade do Estado do Rio Grande do Norte, Pau dos Ferros, 2008. CAVALCANTI, R. O mito de narciso: o herói da consciência. São Paulo: Cultrix, 1992. CHEVALIER, J. e GHEERBRANT, A. Dicionário de Símbolos: mitos, sonhos, costumes, gestos, formas, figuras, cores, números. 6, ed. Tradução V. da C. Silva. et al. Rio de Janeiro: José Olympio, 1992. DA MATTA, R. A casa e a rua: espaço, cidadania, mulher e morte no Brasil. Rio de Janeiro: Rocco, 1997. ECO, U. Sobre os espelhos e outros ensaios. Tradução de Beatriz Borges. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1989. FERREIRA, A. B. de H. Minidicionário da Língua Portuguesa/ Aurélio Buarque de Holanda Ferreira; coordenação Marina Baird Ferreira, Margarida dos Anjos; equipe Elza Tavares Ferreira... [et al]. 3. ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1993. FREUD, S. Luto e melancolia. Edição, Standard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmon Freud. Traduzido do alemão e do inglês sob a direção geral de Jayme Salomão. Rio de Janeiro: Imago, 1996. p. 245-263. GRIMAL, P. Dicionário da mitologia grega e romana. 2. ed. Tradução V. Jabouille. Rio de Janeiro: BERTRAND, 1993. LISPECTOR, C. Laços de Família. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1983. LOWEN, A. Narcisismo: negação do verdadeiro self. Trad. Álvaro Cabral. São Paulo: Cultrix, 1993. ROCHA, E. P. G. O que é mito. 4. ed. São Paulo: Brasiliense, 1985. SANTANA, A. L. Melancolia. Info Escola – navegando e aprendendo. Disponível em: http://www.infoescola. com/psicologia/melancolia/. Publicado em 20/11/2007. Acesso em 09-03-2009.

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AQUELES DOIS: A REPRESENTAÇÃO DA IDENTIDADE CINDIDA Francisco Aedson de Souza OLIVEIRA Antonia Marly Moura da SILVA (Universidade do Estado do Rio Grande do Norte)

RESUMO: O tema do duplo é questão privilegiada desde a antiguidade clássica até a contemporaneidade, aqui poderíamos lembrar o mito de Narciso e o mito do andrógino evidenciando uma questão inquietante da condição humana: Quem sou eu? Na poética de Caio Fernando Abreu, o duplo se apresenta como forma de revelar a busca do Eu que se converte no encontro com o Outro. No caso especifico do conto Aqueles dois, integrante da obra Morangos Mofados, os personagens Raul e Saul vivenciam de maneira dramática, o esfacelamento do eu. Da cisão entre o eu e o mundo decorre a duplicidade dos personagens, apresentando indícios com a teoria do homem andrógino. Nessa perspectiva, considerando que a questão é tema recorrente no conto referido, faremos uma leitura da narrativa à luz dos estudos de Chevalier e Gheerbrant (1992), Eco (1989) e Brunel (1998) com o objetivo de analisar a representação do duplo. No conto, os dois homens parecem querer encontrar sua alma gêmea, a complementação com aquele ser desconhecido que deseja conhecer. Em “Aqueles dois” o duplo habita na estrutura narrativa revelando, através da imagem de sujeitos múltiplos e cindidos, o conflito da personalidade humana. PALAVRAS-CHAVE: Caio Fernando Abreu; Aqueles dois; Duplo; Personagens. ABSTRACT: The theme of double is privileged question from the classic antiquity until today, here we could remember the myth of Narciso and the myth of the androgynous evidencing a question unsettling of the human condition: who am I? In the poetic of Caio Fernando Abreu, the double comes as form of revealing the quest for the self that he turns into the encounter with the other. In the specific case of the short story Aqueles dois, part of the work Morangos Mofados, the characters Raul and Saul live in a dramatic way, the fragmentation of the self. From the fusion between the self and the world results the duplicity of the characters, presenting signs with the androgynous man theory. In this perspective, considering that the question is recurrent in the referred short story, we will make a reading of the narrative through the light of the studies of Chevalier and Ghewrbrant(1992), Echo(1989) and Brunez (1998) aiming at to analyze the representation of the double. In the short story the two men seem to wish to find their soul mate, the complementation with that unknown that one wants to know. In “Aqueles dois” the double inhabits in the narrative structure revealing, through the image of multiple and split subjects, the conflict of the human personality. KEY WORDS: Caio Fernando Abreu; Aqueles dois; Double; Characters.


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1. Introdução O conto brasileiro obteve seu auge na década de 70, ocupando espaço privilegiado. Vários escritores escolheram o gênero, dando destaque a abordagens existencialistas, políticas e do cotidiano. É no conto brasileiro contemporâneo, segundo Alfredo Bosi (2002, p. 08) em que se dizem situações exemplares vividas pelo homem do período. E são essas situações, inerentes ao sujeito pós-moderno, da cidade e do mundo do trabalho que encontramos expressas na produção ficcional de Caio Fernando Abreu, em particular no conto “Aqueles dois”, parte integrante do livro Morangos Mofados, nosso objeto de estudo neste trabalho. Na leitura pretendida, enfocaremos o tema do duplo observado na caracterização dos personagens, bem como a problemática homoerótica expressa no drama das figuras masculinas que protagonizam a história narrada. É interessante lembrar que o tema do duplo não é novo, desde Platão já encontramos referência a duplicidade dos sujeitos na alegoria da caverna – em a República – e também na menção ao mito do andrógino – no Banquete, conforme nos lembra Nóbrega Júnior. Afirma o autor que “para Platão, na ‘alegoria da caverna’, a noção de real imediato só se concretiza e ganha sentido por ser representação de um outro real do qual é apenas uma espécie de projeção imperfeita. Acrescenta ele: Segundo o mito do homem andrógino, ser composto dos dois gêneros: masculino e feminino, o ser humano seria fruto de uma traumática separação, ainda em tempos primitivos, na qual perderam a perfeita harmonia e unidade quando os homens ameaçaram os deuses. Como punição, a concretização de tal cisão em suas naturezas humanas, levaram-nos ao enfraquecimento e à constante busca da metade faltante. (2007, p. 2)

No que se refere ao homoerotismo na literatura, podemos dizer o mesmo sobre a recorrência do problema em outras épocas. Como não lembrar o romance Bom-Crioulo (1895), do cearense Adolfo Caminha? Porém, é na década de 70, com as ideias da contracultura que começa um debate em defesa dos interesses das minorias e, nesse contexto, e com mais intensidade nos anos 80 e 90, em decorrência das reivindicações de alguns engajados, é que o tema se propaga em textos literários. Convém assinalar que enfocar o tema do homoerotismo não é tarefa fácil, uma vez que a literatura de minorias – de negros, índios, mulheres e homossexuais – ainda é alvo de preconceito de alguns acadêmicos, por representarem uma reação contra o sistema dominante, e que, segundo alguns, se comparada com a literatura oficial brasileira não contém elementos poéticos significativos, que sejam considerados compatíveis com aqueles consagrados pela crítica literária, conforme afirma Santos e Weilewick (2003). Sobre a questão na poética de Caio Fernando Abreu, consideramos oportuna a afirmação de Lima: Caio Fernando Abreu é reconhecidamente o autor que elege a homoafetividade como tema constante de sua obra, num momento em que a repressão política no Brasil perdia forças e o fantasma da Aids era vinculado à homossexualidade. Suas personagens geralmente são sujeitos estranhos que existem dentro da solidão urbana, à procura de uma afirmação tanto social quanto sexual. (2008, p. 3)

O isolamento, a solidão, a angústia e a busca do “eu” são temas recorrentes na construção dos personagens de Abreu. O escritor explora a técnica dos fragmentos, a linguagem dos excluído, no caso os homossexuais, a negatividade do pensamento, entre outras questões, seus textos exigem do leitor uma leitura minuciosa e atenta no sentido de observar o contexto e os conflitos humanos, expressos de forma engenhosa e metafórica. Tomando como referência esse contexto, enfocaremos a identidade do homossexual a partir das ações dos personagens, do espaço, no caso o urbano, e do ambiente. Daremos destaque ao modo de configuração do enredo, evidenciando o perfil dos personagens e, a partir desses fragmentos, analisaremos as marcas do homoerotismo, que se constitui como um elemento recorrente na construção da narrativa. Para a análise dessas categorias narrativas, tomaremos como referência os estudos de Gancho (1999), Brait (1985), e Dimas (1985).

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2. A busca de uma identidade A estrutura narrativa do conto “Aqueles dois” de Caio Fernando Abreu está marcada por elementos que evocam a problemática do homoerotismo. A questão pode ser observada na configuração dos personagens centrais Raul e Saul, na materialidade do nome próprio, na descrição do espaço e do ambiente, e principalmente na construção do discurso amoroso. Trata-se da história de dois indivíduos que chegam a um grande centro urbano para prestarem um mesmo concurso de emprego, ambos aprovados, passam a dividir a mesma sala no trabalho. “Passaram no concurso para a mesma firma, mas não se encontraram durante os exames. Foram apresentados no primeiro dia de trabalho de cada um. Disseram prazer, Raul, prazer Saul, depois como é mesmo seu nome? Sorrindo divertidos da coincidência”. (ABREU, 2006, p. 146). As coincidências perpassam toda ação dos dois personagens, neste fragmento em particular é recorrente a presença do acaso. Em outras palavras, coincidências e semelhanças são observadas em toda a narrativa e, dentre elas, a que mais nos chama a atenção é a duplicidade desses personagens expressa no signo do nome próprio. Defendemos a hipótese que os nomes dos personagens antecipam elementos da história narrada, funcionam como os indícios de uma frutífera relação de amizade que culminará numa bela história de amor. Em relação às personagens centrais, podemos citar algumas característica que são expostas na narrativa. Moreno de barba forte azulando o rosto, Raul era um pouco mais definido, com sua voz de baixo profundo, tão adequada aos boleros amargos que gostavam de cantar. Tinham a mesma altura, o mesmo porte, mas Saul parecia um pouco menor, mais frágil, talvez pelos cabelos claros, cheios de caracóis miúdos, olhos assustadiços, azul desmaiado. (ABREU, 2006, 148)

No conto, aproximações e distanciamentos, semelhanças e diferenças, familiaridade e estranhamento irão compor o drama desses sujeitos, ambos vêm de um passado repleto de dificuldades e decepções tanto na vida profissional como na vida amorosa, elementos esses que o narrador procura destacar ao descrever o passado dos dois, conforme podemos observar no trecho abaixo: Não chegara a usar palavras como “especial”, “diferente” ou qualquer coisa assim. Apesar de, sem efusões, terem se reconhecido no primeiro segundo do primeiro minuto. Acontece porém que não tinham preparo algum para dar nome às emoções, nem mesmo para tentar entendê-las. Não que fossem muito jovens, incultos demais ou mesmo um pouco burros. Raul tinha um ano mais que trinta; Saul, um menos. Mas as diferenças entre eles não se limitavam a esse tempo, a essas letras. Raul vinha de um casamento fracassado, três anos e nenhum filho. Saul, de um noivado tão interminável que terminara um dia, e um curso frustrado de Arquitetura. Talvez por isso, desenhava. Só rostos, com enormes olhos sem íris nem pupilas. Raul ouvia música e, às vezes, de porre, pegava o violão e cantava, principalmente velhos boleros em espanhol. E cinema, os dois gostavam. (ABREU, 2006, p.146)

Narrado em primeira pessoa, sendo o narrador caracterizado como onisciente, narrador que, segundo Dimas (1985) evita tecer comentários sobre o que pensa ou sente, apenas apresentando cenas ricas em detalhes, sugerindo ao leitor a existência de um sentimento afetivo entre aqueles dois, embora, nenhum deles a princípio, seja descrito como homossexual, conforme assinala Lima (2008, p. 3). Vale salientar que a construção da trama ocorre ao mesmo tempo em que flui o amor entre Raul e Saul. No “deserto de almas”, que é o ambiente de trabalho, aos olhos do narrador, os dois encontram motivos para a compreensão e aceitação recíproca: Suas mesas ficavam lado a lado. Nove horas diárias, com intervalo de uma para o almoço. E perdidos no meio daquilo que Raul (ou teria sido Saul?) chamaria, meses depois, exatamente de “um deserto de almas”, para não sentirem tanto frio, tanta sede, ou simplesmente por serem humanos, sem querer justificá-los — ou, ao contrário, justificando-os plena e profundamente, enfim: que mais restava àqueles dois senão, pouco a pouco, se aproximarem, se conhecerem, se misturarem? Pois foi o que aconteceu. Tão lentamente que mal perceberam. (ABREU, 2006, p. 146)

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O ambiente de trabalho favorece a aproximação dos dois – as mesas dispostas uma ao lado da outra e o curto intervalo para o almoço impõem uma convivência que se prolonga na rotina dos personagens. Vale ressaltar, de antemão, que a trama de Caio Fernando Abreu acontece no espaço urbano, o que propicia o relacionamento dos personagens caracterizados na narrativa como homossexuais: ora é a disposição arquitetônica das mesas, ora é a divisão do quarto de pensão ora a ocupação da quitinete de Saul, o local ideal para os encontros amorosos ou para as longas conversas e reflexões sobre assuntos do interesse dos dois. Raul e Saul, belos e jovens, são admirados pelos colegas de trabalho, principalmente pelas mulheres, falaram no tal deserto, nas tais almas. Eram dois moços bonitos também, todos achavam. As mulheres da repartição, casadas, solteiras, ficaram nervosas quando eles surgiram, tão altos e altivos, comentou, olhos arregalados, uma das secretárias. Ao contrário dos outros homens, alguns até mais jovens, nenhum tinha barriga ou aquela postura desalentada de quem carimba ou datilografa papéis oito horas por dia. (ABREU, 2006, p. 147)

As coincidências não se restringem ao espaço de trabalho, há também as preferências por filmes, que motivam outras formas de interação, já que eles passam a dividir os espaços domésticos, intensificando o amor oculto entre os personagens. Essa descoberta ocorre no dia em que Saul chega atrasado ao trabalho e conta ter ficado acordado até tarde, assistindo a um filme na televisão. A partir dessa revelação, o café da repartição será o palco para as longas conversas sobre os filmes vistos – momento de muito despojamento e prazer. Durante aquele fim de semana obscuramente desejaram, pela primeira vez, em sua quitinete, outro na pensão, que o sábado e o domingo caminhassem depressa para dobrar a curva da meia noite e novamente desaguar na manhã de segunda-feira quando, outra vez, se encontraria para: um café. (ABREU, 2006, 149)

E assim, à medida em que os assuntos afloram e se alongam, cresce o amor entre os dois. A convivência diária significa mais tempo juntos e, portanto, a ocupação de outros espaços, pois eles já não conseguem mais suportar a solidão e a saudade dos fins de semana. Os fins de semana tornaram-se tão longos que um dia, no meio de um papo qualquer, Raul deu a Saul o número de seu telefone, alguma coisa que você precisar, se ficar doente, a gente nunca sabe. Domingo depois do almoço, Saul telefonou só para saber o que o outro estava fazendo, e visitou-o, e jantaram juntos a comidinha mineira que a empregada deixara pronta sábado. Foi dessa vez que, ácidos e unidos, falaram no tal deserto, nas tais almas. (ABREU, 2006, p. 150)

Em toda a narrativa, do ponto de vista do narrador, há um clima propício para que Raul e Saul se apaixonem ou descubram as almas gêmeas que são, solitários e idênticos, eles alimentam a reciprocidade que descobriram um no outro. Segundo Nóbrega Júnior, (2007, p. 5): O sentimento de fracasso e de intensa solidão desperta nos dois jovens a mesma percepção do espaço de trabalho, reconhecendo-o como um “deserto de almas”. Insígnia que, à medida que intensificam os laços de amizade, reconhecem como sendo ponto-de-vista de ambos. Tal sentimento e percepção, desencadeados em ambos pela atmosfera do espaço, os diferenciam daqueles seres autômatos e destituídos de alma que dividiam com eles o mesmo ambiente de trabalho. Acabam, então, por se reconhecerem um no outro, assim como as metades faltantes ou “almas gêmeas” das quais nos fala Platão.

Há um desejo latente de cultuar esse amor através dos encontros casuais, nas conversas freqüentes sobre música, filmes, televisão, dentre outros temas de interesse dos personagens. Muitos encontros vieram, músicas foram cantadas e, para justificarem a necessidade de união, usam o pretexto de partilharem programas de televisão, é num desses dias em que os dois bebem, fumam, cantam e dormem juntos. O cenário é propício para a realização do ato amoroso – sozinhos e embriagados, numa noite chuvosa acabam dormindo no mesmo espaço, no dia seguinte, íntimos e de cabelos molhados, Raul e Saul chegam juntos ao trabalho.

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Tema geral: Línguas e Literaturas: Diversidade e Adversidades na América Latina Às vezes olhavam-se. E sempre sorriam. Uma noite, por que chovia, Saul acabou dormindo no sofá. Dia seguinte, chegaram juntos a repartição, cabelos molhados do chuveiro. Nesse dia as moças não falaram com eles. Os funcionários barrigudos e desalentados trocaram alguns olhares que os dois não saberiam compreender, se percebessem. Mas nada perceberam, nem os olhares nem duas a três piadas enigmáticas. (ABREU, 2006, p. 151-152)

Esse é um momento decisivo para a mudança de tom na narrativa. Podemos dizer, portanto, que a narrativa foca dois momentos na ação dos personagens: o primeiro aborda o processo de encantamento dos dois que culmina no amor; o segundo, por sua vez, o esfacelamento desses sujeitos que experimentam o olhar discriminatório dos colegas e chefes de trabalho. Após ser informado da morte de sua mãe Raul precisa se ausentar por uma semana, período do desassossego de Raul, que não consegue permanecer quieto tamanha é a ansiedade. O personagem, inquieto, vivencia o sentimento de espera, a espera de um telefonema e o desejo incontido de estar junto do outro, a própria imagem do andrógino – o ser cindido que sofre pela falta da outra metade. No norte, quando começava dezembro, a mãe de Raul morreu e ele precisou passar uma semana fora. Desorientado, Saul vagava pelos corredores da firma esperando um telefonema que não vinha, tentando em concentrar-se nos despachos, processos, protocolos. A noite em seu quarto, ligava a televisão gastando tempo em novelas vadias ou desenhando olhos cada vez mais enormes, enquanto acariciava Carlos Gardel. Bebeu bastante essa semana. (ABREU, 2006, p. 152).

O desfecho do conto ocorre quando Raul e Saul são chamados a comparecer na sala do chefe, momento em que o superior deles informa ter recebido cartas anônimas, comunicando o caráter anormal da relação entre os dois funcionários, carta que o chefe prefere não mostrar. Os termos contidos na carta, segundo o dono da repartição, são do tipo “relação anormal e ostensiva”, “desavergonhada”, “aberração”, termos que refletem a carga preconceituosa que reina no entorno da história amorosa. Tal como o narrador nos mostra: Suarento, o chefe foi direto ao assunto: tinha recebido algumas cartas anônimas. Recusou-se a mostrá-las. Pálidos, os dois ouviram expressões como “relação anormal e ostensiva”, “desavergonhada aberração”, “comportamento doentio”, “psicologia deformada”, sempre assinadas por Um Atento Guardião de Moral. (ABREU, 2006, p. 154)

Com um grande desapontamento, segundo o narrador os dois altos e altivos arrumam suas gavetas e retiram seus pertences para logo saírem “daquele deserto de almas”. Esvaziaram lentamente cada um a sua gaveta, a sala vazia na hora do almoço, sem se olharem nos olhos. O sol de verão escaldava o tampo de metal das mesas. Raul guardou no grande envelope pardo um par de enormes íris sem pupilas, presente de Saul, presente de Raul, que guardou no seu grande envelope pardo a letra de “Tú me acostumbraste”, escrita por Raul numa tarde de agosto e com algumas manchas de café. Desceram juntos pelo elevador, em silêncio. (ABRU, 2006, p.155)

Despedidos e melancólicos, entram num táxi e partem, deixando todos a contemplarem a cena das janelas. A cena da dramática separação dos dois amantes emblematiza uma espécie de conformação de uma causa homossexual. “Quase todos ali tinham a sensação de que seriam infelizes para sempre. E foram.” (ABREU, 2006, p. 155). O narrador insiste no clima de tristeza entre os colegas, naquela tarde: “Pelas tardes poeirentas daquele resto de janeiro, quando o sol parecia a gema de um enorme ovo frito no azul sem nuvens no céu, ninguém mais conseguiu trabalhar em paz na repartição”. (ABREU, 2006, p.155) A gema do ovo denota vida, começo, exatamente o que estava acontecendo com os personagens principais da narrativa, os dois agora estavam iniciando uma nova vida, uma nova história em outro lugar. A busca de uma identidade é o drama dos personagens de “Aqueles dois”, um é o simulacro do outro, a cópia, a sombra. O reflexo, portanto, configura-se como representação do duplo, trazendo à consciência desses sujeitos, características ocultas da alma, uma alma aparentemente gêmea.

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A caracterização dos personagens é um aspecto importante na busca da identidade. Os traços das duas figuras masculinas contêm características freqüentemente atribuídas ao duplo, ao reflexo. Segundo Brunel (1998, p. 261) “traduz por ‘duplo’ ‘segundo eu’. Significa literalmente ‘aquele que caminha ao lado’, ‘companheiro de estrada’”. Essa busca da identidade é observada no decorrer de toda a trama do conto “Aqueles dois”. Na narrativa é visível o caráter dual vivido pelas personagens centrais; a sombra e o reflexo são referências explicitas da cisão da alma contida no mito do andrógino. No ato contemplativo e no reflexo entre os dois constatamos também indícios do mito de Narciso, um está refletido na imagem do outro ao ponto de serem confundidos, tantas são as semelhanças entre eles. Sendo, por isso, necessário que um possa compreender o outro como parte da sua coexistência, um “modelo” que o auxilia a construir a própria imagem, compreendendose também como parcela da coexistência desse outro. Vendo-se em Raul, Saul entende, então, que ele possui características idênticas ao outro, os quais podem ser facilmente reconhecidos ou, contrariamente, podem lhe causar uma certa “estranheza”. O mesmo se diz do ato contemplativo de Saul em relação ao amante. Em outras palavras, em “Aqueles dois” percebemos uma constante busca da outra metade, na qual podemos perceber a retomada do mito do homem andrógino, a busca incessante do outro. O mito do andrógino caracteriza o homem que se desdobrou, a mulher desdobrada, aqui não importa se essa outra metade encontrada decorre de uma relação homossexual ou heterossexual. São inumeráveis, em todas as culturas, os mitos que apresentam divindades andróginas, fundamentam as origens do mundo na ideia de um caos ou de um ovo primordial contendo, unidos, os princípios do masculino e do feminino, e dotam da bissexualidade os ancestrais da humanidade. [...] perfeição original de uma unidade dual, transgressão orgulhosa do homem, mutilação realizada pela divindade ofendida, andanças trágicas das metades divididas do homem, esperança de nova aproximação da unidade perdida no tempo e no sofrimento. [...] o homem num mesmo movimento transgride as diferenças sexuais às quais a normalidade social o convida, rompendo uma relação submissa de dependência à divindade. (BRUNEL, 1998, p. 26-27)

Diante do rico material metafórico e imagético presente no conto, podemos dizer que a narrativa caracteriza-se como uma narrativa aberta, deixando a critério do leitor a decisão de construir um fim e de imaginar o que aconteceu, a partir dali, com “Aqueles dois”. Qual rumo tomaram, se foram felizes ou não e se, realmente, os dois permaneceram juntos, na condição de andróginos, de alma gêmea. 3. Considerações finais Ao término desse trabalho observamos que os personagens do conto “Aqueles dois” vivem um grande amor, enfrentando os preceitos de uma sociedade machista, onde o domínio de um pensamento tido como “normal” dita as normas de convivência nas relações afetivas. Dessa forma, percebemos que na narrativa os dois amantes vivenciam um silencio metafórico, necessário para a aceitação social e para a permanência no trabalho, aceitação que tem um fim a partir do momento em que a história amorosa vem à tona. No conto, o tema do homoerostismo é tratado através de uma linguagem mais sugestiva do que descritiva, pois em nenhum momento o narrador usa palavras que deixe claro a consumação do ato sexual; isso fica a critério de leitor, só acontece no ato da leitura. Enfim, a trama é construída numa rede intrincada de mitos, sobretudo o mito de Narciso e do andrógino, evidenciando as perturbações, conflitos e desespero do homem moderno em busca de sua identidade, por isso é recorrente na estrutura narrativa indícios de um sujeito que se desdobrou, se desfragmentou na tentativa de um entendimento sobre sua existência. O fim melancólico da história de Raul e Saul deixa entrever um sentimento difuso e confuso de aceitação e renúncia da situação vivida. Por um lado, a imagem do fracasso após a demissão e

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despedida no trabalho, por outro, um sentimento de vitória, de uma causa bem sucedida, o que podemos comprovar quando observamos o narrador que declara: “ninguém mais conseguiu trabalhar em paz naquela repartição. Quase todos ali tinham a nítida sensação de que seriam infelizes para sempre. E foram”. (ABREU, 2006, p. 142). Referências ABREU, C. F. Melhores contos: Caio Fernando Abreu. Seleção e prefácio de Marcelo Secron Bessa. São Paulo: Global, 2006. p. 145-155. BOSI, A. (Org.). O conto brasileiro contemporâneo. 14.ed. São Paulo: Cultrix. 2002. BRAIT, B. Personagem. São Paulo: Ática, 1985. BRUNEL, P (Org.). Dicionário de mitos literários. 2. ed. Trad. Carlos Sussekind et. al. Rio de Janeiro: José Olympio, 1998. CHEVALIER, J.; GHEERBRANT, A. Dicionário de Símbolos: mitos, sonhos, costumes, gestos, formas, figuras, cores, números. 6, ed. Tradução V. da C. Silva. et al. Rio de Janeiro: José Olympio, 1992. DIMAS, A. Espaço e romance. São Paulo: Ática, 1985. GANCHO, C. Como Analisar Narrativas. São Paulo:Ática, 1999. GRIMAL, P. Dicionário da mitologia grega e romana. 2. ed. Tradução V. Jabouille. Rio de Janeiro: BERTRAND, 1993. LEAL, B. S. Caio Fernando Abreu, a metrópole e a paixão do estrangeiro: contos, identidade e sexualidade em trânsito. São Paulo: Annablume, 2002. LIMA, M. H. de. Quando eles se amam: homoerotismo nos contos de Caio Fernando Abreu e Waldir Leite. Revista Travessias, v. 3, p. 1-11, 2008. NÓBREGA JÚNIOR, C. M. Aspectos do “Duplo” em Aqueles dois, de Caio Fernando Abreu. Encontro Regional da ABRALIC 2007. Disponível em: <http://www.abralic.org.br/enc2007/anais/42/22.pdf>. Acesso em 14/03/2009. SANTOS, C. R. dos; WIELEWICKI, V. H. G. Literatura de autoria minorias étnicas e sexuais. In: ZOLIN, L. O. E BONICCI, T. (Org.) Teoria literária: abordagens históricas e tendências contemporâneas. Maringa: EDUEM, 2003. p. 263-277.

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COLAGEM, SUBVERSÃO E ANTROPOFAGIA NO ROMANCE GALVEZ IMPERADOR DO ACRE, DE MÁRCIO SOUZA Francisco Ewerton Almeida dos SANTOS (Universidade Federal do Pará)

RESUMO: O presente trabalho aborda o romance Galvez Imperador do Acre, lançado em 1976 pelo amazonense Márcio Souza, observando a maneira parodística como o mesmo retoma a Belle Époque e a extração do látex na Amazônia e sua estética fragmentária, constituída de diversas citações de autores canônicos, investigando o funcionamento da paródia e colagem antropofágicas como principais ferramentas de denúncia e subversão ao processo cultural de importação de valores europeus vivido pelas capitais amazônicas no momento representado pelo romance e cuja crítica pode ser extrapolada para todo um processo de formação cultural no Brasil e na Amazônia. Para tal, nossa pesquisa toma como base nas teorias de Antonio Candido, Silviano Santiago, Jaques Derrida, Antoine Compagnon, Walter Benjamim, entre outros estudiosos que tratem da relação entre Literatura e Sociedade, Literatura e História e Literatura Comparada. PALAVRAS-CHAVE: Galvez imperador do Acre; antropofagia; colagem; subversão; paródia.

ABSTRACT: The present work approaches the romance Galvez imperador do Acre, thrown in 1976 by the Amazonas’s writer Márcio Souza, observing the parody as the way of the same to retake the Belle Époque and the extraction of the latex in the Amazonian and his fragmentary aesthetics, constituted of several citations of canonical authors, investigating the operation of the parody, collage and anthropophagy as main tools of denunciation and subversion to the cultural process of import of European values lived by the Amazonian capitals in the moment acted by the romance and whose critic that can be extrapolated for whole a process of cultural formation in Brazil and in the Amazonian. For such, our research takes as base the theories of Antonio Candido, Silviano Santiago, Jaques Derrida, Antoine Compagnon, Walter Benjamim, among other studious that treat of the relationship among Literature and Society, Literature and History and Compared Literature. KEY WORDS: Galvez imperdor do Acre; anthropophagy; collage; subversion; parody.


Anais do II Congresso Internacional de Estudos Linguísticos e Literários na Amazônia (CIELLA)

1. Introdução O romance Galvez Imperador do Acre (1976), escrito pelo amazonense Márcio Souza, conta a história de como o aventureiro espanhol Luiz Galvez, em suas andanças por terras amazônicas, envolveu-se em uma conspiração revolucionária, que pretendia libertar o Acre do jugo estrangeiro, isto é, dos aliados Bolívia e Estados Unidos, transformá-lo em um estado independente, para, posteriormente, anexá-lo novamente ao território brasileiro. Com o êxito dessa revolução, Galvez transformou o Acre em uma monarquia e proclamou-se imperador, contudo, seu reinado durou pouco, pois logo os comerciantes do látex, percebendo as desvantagens e prejuízos que aquele governo lhes trazia, tomaram providências para derrubá-lo. Utilizando-se da forma de folhetim, com sua estrutura dividida em pequenas cenas permitindo uma narrativa rápida e dinâmica, o romance retoma a Belle Époque do eixo Belém-Manaus, viabilizada pela extração do látex, matéria prima retirada, principalmente, dos seringais acreanos, sendo essa a principal causa do conflito político que move a narrativa. Contudo, este momento histórico é reescrito de forma subversiva e dessacralizadora e modificado, através da paródia e da sátira. O paradigma da história oficial é desviado mediante a mescla de fatos históricos e ficção, e, por meio destes recursos, são destiladas duras críticas não só a este passado, mas a todo um processo histórico e cultural pelo qual passou (e passa) a Amazônia, o qual o texto literário reflete como um espelho irônico. Para melhor penetrarmos na questão da retomada histórica empreendida pelo romance cabe partirmos do primeiro capítulo do texto: Floresta Latifoliada Esta é uma história de aventuras onde o herói, no fim, morre na cama de velhice. E quanto ao estilo o leitor há de dizer que finalmente o Amazonas chegou em 1922. Não importa, não se faz mais histórias de aventuras como antigamente. Em 1922 do gregoriano calendário do Amazonas ainda sublimava o latifoliado parnasianismo que deu dores de cabeça a uma palmeira de Euclides da Cunha. Agora estamos fartos de aventuras exóticas e mesmo de adjetivos clássicos e é possível dizer que este foi o último aventureiro exótico da planície. Um aventureiro que assistiu às notas de mil réis acenderem os charutos e confirmou de cabeça o que a lenda requentou. Depois dele: o turismo multinacional. (SOUZA, 1983, p. 13)

No excerto acima, fica evidente a proposta de Galvez, imperador do Acre. O narrador, que se afasta da história, dizendo ter encontrado o manuscrito produzido pelo próprio protagonista em um sebo na frança e publicado tal qual o encontrara e afirma que, por meio deste texto, o Amazonas finalmente chega a 1922, primeiramente, rompe com o ufanismo e o estilo clássico pomposo e anacrônico, com sua linguagem “latifoliada”, isto é, grandiosa, tal qual a vegetação da Floresta Amazônica (lembrando que o termo “latifoliada” vem da botânica e remete à vegetação de folhas largas e grandes) derrubando esta utopia literária também na figura do herói, na verdade um antiherói oportunista, cínico, beberrão e mulherengo que, muito diferente do que se espera da tradição do herói de folhetim, não teve uma vida nem uma morte gloriosa, como diz o próprio texto, morreu de velhice e viveu “uma vida que só tinha sido relevante porque vivida numa terra irrelevante” (SOUZA, 1983, p. 14). Por outro lado, retoma o modernismo de 22, ao qual afirma a literatura amazônica nunca ter chegado, inscrevendo-a, assim, nas vanguardas de sua época, tais quais o Tropicalismo, a Poesia Visual, o Cinema Novo e o Cinema Marginal. Estas vanguardas artísticas das décadas de 50 e 60 têm suas bases na releitura de propostas iniciadas pelas vanguardas modernistas, principalmente pela antropofagia proposta por Oswald de Andrade em seu Manifesto Antropófago (1928) e retomada por estudiosos como os irmãos Campos, Décio Pignatari, Silviano Santiago, entre outros, para caracterizar a assimilação da força do outro, do europeu, como a forma de criação original da arte brasileira e latino americana. As propostas dessas vanguardas podem ser observadas em características como a colagem de signos extraídos de contextos opostos, a paródia antropofágica utilizada como estratégia de crítica e agressão, a mistura de línguas e linguagens num romance feito à maneira de um mosaico e da sua atitude dessacralizadora e iconoclasta de retomada histórica, constituindo um texto de estética pós-moderna falando de uma sociedade arcaica, acentuando, dessa forma, a contradição entre o ideal

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de progresso e o atraso cultural da sociedade brasileira, e, mais especificamente, no caso do romance, na sociedade amazônica. Procuraremos, neste trabalho, aprofundar a relação entre romance, sociedade e história, levando em consideração a proposta de construção narrativa e estética do texto. 2. A relação entre Literatura e Sociedade Como já foi dito, o romance Galvez imperador do Acre aborda e critica a formação cultural do Brasil, e, mais especificamente, da Amazônia. Esta crítica encontra-se nos planos conteudístico e formal da obra. Sabemos, contudo, que estes são inseparáveis, seguindo a premissa, apresentada, principalmente, por Antonio Candido, em seu livro Literatura e Sociedade, de que a própria construção artística pode refletir a estrutura de uma sociedade. O autor parte da oposição entre duas correntes metodológicas para esclarecer a sua própria: uma que buscava investigar o texto literário unicamente por seus fatores externos — históricos e sociais — e outra que seguia um caminho oposto, buscando investigá-la exclusivamente por seus fatores internos — formais. Acerca dessa contradição, afirma o estudioso: Hoje sabemos que a integridade da obra não permite adotar nenhuma dessas visões dissociadas; e que só a podemos entender fundindo texto e contexto numa interpretação dialeticamente íntegra, em que tanto o velho ponto de vista que explicava pelos fatores externos, quanto o outro, norteado pela convicção de que a estrutura é virtualmente independente, se combinam como momentos necessários do processo interpretativo. Sabemos ainda que o externo (no caso, o social) importa, não como causa, nem como significado, mas como elemento que desempenha um certo papel na constituição da estrutura, tornandose, portanto, interno. (CANDIDO, 2000, p. 04)

Nosso corpus de análise reflete um contexto histórico social de forma irônica e crítica. Utilizando da paródia como principal recurso de denúncia, o romance evidencia o contraste entre a recente riqueza e luxo trazidos pelo extrativismo — os quais possibilitam aos seus detentores o ócio e a ostentação, evidenciada, principalmente, na importação de bens de consumo e costumes europeus, símbolo de status nesta sociedade — e o atraso cultural das capitais recém urbanizadas Belém e Manaus. Isto é, um contraste entre os ideais de progresso e refinamento europeus e a realidade hostil das capitais construídas em meio à selva, criando assim o que Roberto Schwarz chama de “As ideias fora de lugar”. Este estudioso, ao tratar do tema da contradição entre as ideias francesas, inglesas e americanas e a realidade de miséria e escravidão nas capitais brasileiras, cita Sérgio Buarque de Holanda: “Trazendo de países distantes nossas formas de vida, nossas instituições e nossa visão de mundo e timbrando em manter tudo isso em ambiente muitas vezes desfavorável e hostil, somos uns desterrados em nossa terra” (HOLANDA apud SCHWARZ, 2000, p.13). Esta crítica é patente em todo o romance, como, por exemplo, no capítulo “Máxima da ostentação”, em que o narrador diz: “Aprendi que o novo rico só é desagradável porque amplia os detalhes da miséria” (SOUZA, 1983, p.34). Aqui que, a tentativa de demonstração de glamour e luxo do novo rico amazônico por meio de modos e acessórios importados de outros países, apenas acentua, sob a visão irônica do “civilizado” europeu, a miséria e o atraso daquele povo. Outra bem humorada referência feita a esta condição está na teoria do personagem Sir Henry Lust, cientista inglês que percorre a Amazônia pesquisando provas para suas teorias: Quando lhe disserem em Manaus (...) que o Teatro Amazonas é obra de um obscuro governador, não acredite. Isso é fruto da ignorância dos nativos. Estamos certos, Mister Aria, que os extraterrestres existem e que o Teatro Amazonas é uma de suas marcas. A concepção de que o Teatro Amazonas é um artefato espacial é exclusivamente racional, isto é, a intervenção no meio da jungle equatorial é produto de seres inteligentes, mais poderosos do que nós, seres materiais, habitantes do espaço exterior. (SOUZA, 1983, p. 87)

Mais adiante, afirma o narrador: “Sir Henry não concebia que o Teatro Amazonas fosse obra dos seres humanos. Muito menos dos semicivilizados nativos, notórios por sua inferioridade racial e total falta de capacidade para o raciocínio lógico.” (SOUZA, 1983, p. 87).

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A teoria de Sir Henry sublinha a estranheza da presença de um monumento art noveau de intrincada arquitetura no meio da selva amazônica, isto é, o Teatro Amazonas seria uma intervenção “alienígena” no espaço em que se encontra, algo estranho, fora de lugar, cuja sofisticação contrasta com o aspecto primitivo da paisagem e dos nativos dos trópicos, tendo estes últimos, ainda, sua visão inferiorizada aos olhos do europeu assinalada. Vemos aqui a visão do colonizador narcisista sobre o colonizado. Pondo em evidência essa relação entre progresso “postiço”, onde o dinheiro e a riqueza contrastam com um atraso cultural do povo colonizado que não se liberta do jugo do colonizador, e a visão de preconceituosa que o europeu “civilizado” tem sobre o “selvagem” nativo da Amazônia, podemos afirmar que a visão histórica e social do romance de Márcio Souza expressa a “consciência do atraso” do escritor latino americano, de que fala Antonio Candido. O estudioso, em seu artigo “Literatura e Subdesenvolvimento” (1972), assinala dois momentos dessa consciência: o primeiro é de euforia, quando a esperança de que o Brasil é um país em desenvolvimento (“o país do futuro”) fomenta uma mentalidade progressista, de um nacionalismo ufanista. O segundo momento é a da consciência catastrófica do atraso ligada à ideia de subdesenvolvimento, posterior à segunda guerra, manifestada de forma mais evidente a partir da década de 50. Galvez imperador do Acre reflete este segundo momento, que, por referir-se à Amazônia, região ainda mais desprivilegiada dentro deste contexto, tem seu caráter catastrófico intensificado. Contudo, Antonio Candido também nos mostra que, por apresentar uma face crítica mais madura, nesta fase da tomada de consciência do atraso, o escritor renega o ufanismo (abordado com muita ironia por Márcio Souza), e compreende a questão da influência cultural como algo natural, descentralizando o conceito de fonte e influência, isto é, a expressão artística dos países subdesenvolvidos deixa de ser vista como mera cópia mal feita do que vem das metrópoles irradiadoras de cultura para tornar-se “forma de participação e contribuição a um universo cultural a que pertencemos, que transborda as nações e os continentes, permitindo a reversibilidade das experiências, a circulação dos valores” (CANDIDO, 1972, p. 353). Nesse ponto, o texto aqui abordado não só crítica a aculturação em nome da ostentação sofrida pelos novos ricos da sociedade extrativista amazônica como impõe uma resistência a esse processo, por meio da antropofagia cultural, isto é, da deglutição, irônica e parodística, dos monumentos canônicos das culturas dominantes, afirmando, assim, sua alteridade diante destas culturas. 3. Estética Pós-moderna Ao traduzir para a forma do romance uma estrutura social, é necessário tomar precauções contra o estudo realista do texto literário, isto é, prender sua leitura em um tempo e espaço determinados. O que o texto literário faz, na verdade, é transcender estas contingências externas a ele, atualizando-se de acordo com o momento histórico e o contexto social onde é lido. Assim, ao tratar da hibridização cultural na formação da sociedade amazônica no período da Belle Èpoque, Márcio Souza atualiza-a a uma outra abordagem acerca de formação cultural que se traduz na estética das expressões culturais dos povos colonizados e de cultura periférica, esta abordagem é feita sob o olhar de uma gama de perspectivas críticas da atualidade que se denominam pelo controvertido termo Pós-modernidade. Esta forma de pensamento, ao negar o essencialismo do ideal moderno, que defendia, o conhecimento objetivo, neutro, universal, embasado na razão, a qual determinaria as verdades transcendentais que não se subordinariam ao tempo, às circunstâncias, à classe, ao gênero, à raça, negando a diferença e o historicismo, nega também a ideia de pureza, das narrativas de subjetividade originárias e iniciais que embasam o conceito de cultura nacional. O Pós-modernismo compreende que os processos de construção de subjetividades — singulares ou coletivas — são produzidos nos entre-lugares, isto é, nos “excedentes das somas das partes da diferença (geralmente expressas como raça/ classe, genro, etc.)” (BHABHA, 2007, p. 20). O

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entre-lugar é onde se dá o intercâmbio de valores e significados (nem sempre colaborativo e dialógico), onde alteridade e diferença se forjam pela troca e pela hibridização. O pensamento pós-moderno enfatiza que é impossível neutralizar as diferenças e a ideologia, enfatizando que a diferença não deve ser entendida como o reflexo traços étnicos e culturais préestabelecidos. Pelo contrário, é exatamente essa diferença que marca a contingência dos significados das expressões culturais, entendendo que a identidade e a tradição estão sempre em processo de transformação e reinvenção. Para reforçar e melhor esclarecer estes posicionamentos, cito Homi Bhabha: A articulação social da diferença, da perspectiva da minoria, é uma negociação complexa, em andamento, que procura conferir autoridade aos hibridismos culturais, que emergem em momentos de transformação histórica. O “direito” de se expressar a partir da periferia do poder e do privilégio autorizados não depende da persistência da tradição; ele é alimentado pelo poder da tradição de se reinscrever através das condições de contingência e contraditoriedade que presidem sobre a vida dos que estão “na minoria”. O reconhecimento que a tradição outorga é uma forma parcial de identificação. Ao reencenar o passado, este introduz outras temporalidades culturais incomensuráveis na invenção da tradição. Esse processo afasta qualquer acesso imediato a uma identidade original ou uma tradição “recebida”. (BHABHA, 2007, p. 21)

Um primeiro ponto que podemos observar no excerto acima é a repercussão que essa perspectiva tem sobre a formação cultural dos povos à margem da cultura hegemônica, as chamadas “minorias”, que, por sua condição migrante ou colonizada, são a própria expressão do multiculturalismo. A destituição de uma cultura original, essa é a condição do Brasil, como expressa Paulo Emílio Sales Gomes: “Não somos europeus nem americanos do norte, mas destituídos de cultura original, nada nos é estrangeiro, pois tudo o é. A penosa construção de nós mesmos se desenvolve na dialética rarefeita entre o não ser e o ser outro.” (GOMES, 1986, p.88). O colonizador narcisista quis criar o colonizado à sua imagem, tornando dele a sua cultura e sua história e renegando toda a diferença. Contudo, podemos perceber que nossa formação se dá no entre-lugar entre colonizador e colonizado, não somos fruto nem da tradição recebida pelo indígena nem pelo europeu, somos o excedente da sua soma, e, como tal, resignificamos suas tradições. Dessa forma, a expressão a partir da periferia, sua forma de criação artística original está exatamente na hibridização destas tradições e seus legados culturais. Stuart Hall nos fala da “Estética Diaspórica”, que seria a estética dos povos da diáspora, tanto aqueles que migraram para os centros como aqueles que foram invadidos por eles e desterrados em suas próprias terras, e utiliza as palavras do romancista Salman Rushdie para defini-la como a forma de criação original desses povos: “‘o hibridismo, a impureza, a mistura, a transformação que vem de novas e inusitadas combinações dos seres humanos, culturas, ideias, políticas, filmes, canções’ é ‘como a novidade entra no mundo’” (RUSHDIE Apud HALL, 2003). Assim, compreendemos a estética pós-moderna tal qual, em seu livro Tradução Intersemiótica, o estudioso Julio Plaza a define:“A recuperação da categoria de público, isto é, por uma ênfase na recepção e, sobretudo, por uma imensa inflação babélica de linguagens, códigos e hibridização dos meios tecnológicos que terminam por homogeneizar, pasteurizar e rasurar as diferenças: tempo de mistura” (PLAZA, 1987, p.206). 4. A composição estética do romance: colagem, subversão e antropofagia Para relacionarmos as reflexões feitas no capítulo anterior à construção estética do nosso romance de análise, precisamos levá-la a outro campo de discussão: a tradução textual. O rompimento da pós-modernidade com o essencialismo moderno tem impacto direto sobre a atividade tradutória, visto que, nega-se, a partir daí, a ideia de que o texto carregue um sentido originário e imutável, atribuído pelo autor e que deva ser apenas recuperado pelo leitor. Entende-se, portanto, a tradução como uma interpretação, leitura e produção de um novo texto, cujos sentidos são produzidos por comunidades de leitores e sofre coerções de fatores externos a ele, como o contexto histórico e social em que se lê.

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Assim, compreendemos que, um autor, ao enxertar em seu texto outros textos de outros autores, ele os está interpretando, dando-lhes um novo sentido numa outra composição, está, portanto, traduzindo. A intenção do autor do texto “original” cai, deixa de importar, conquanto que um texto só pode sobreviver, se for lido, interpretado, renovado, traduzido. O filósofo francês Jaques Derrida foi um dos principais pensadores que problematizaram a questão da tradução, derrubando a noção tradicional de tradução como restituição de sentidos pretendidos pelo autor. Cristina Rodrigues, acerca da concepção derridiana de tradução, afirma o seguinte: (...) ler não é buscar um ponto fixo, recuperar a intenção dada pelo autor ou desvelar o sentido oculto que estaria presente no texto. Ao ler, estamos criando um texto, estamos escrevendo nosso próprio texto, não restituindo o sentido dado pelo autor. A escritura rompe com seu contexto de produção e com qualquer contexto de recepção determinado (...). Derrida não associa a repetição à permanência de um mesmo, pois “iter, de novo, vem de itara, outro, o que “liga a repetição à alteridade” (...). Assim, na repetição, não é o mesmo que se apresenta, pois a prática da iteração trabalha, altera e algo de novo sempre ocorre, implicando, “ao mesmo tempo, identidade e diferença”(...) Isso torna impossível a igualdade absoluta mesmo na repetição, pois ela própria não é idêntica a si mesma. (RODRIGUES, 2000, p.202)

Se a tradução é interpretante, e, como tal, também é signo a ser interpretado, a tradução empreendida por Márcio Souza em Galvez imperador do Acre se dá em dois níveis: na utilização da epígrafe, colagem e intertextualidade, sendo, essa composição fragmentária do romance, também uma tradução da estrutura social que este representa para a linguagem literária. Sendo assim, ele reencena em outra temporalidade a tradição, reescrevendo os textos citados, o momento histórico e a estrutura social representados. Dizendo de outra maneira, observamos que a crítica a uma estrutura social se reflete na construção estética do romance. Galvez imperador do Acre é constituído de retalhos de outros textos, sejam eles literários, científicos, filosóficos, operísticos e etc., apresentando um aspecto experimental, como um romance colagem, no qual o autor recorta elementos de um conjunto, e integra-o em uma nova composição. Ou seja, semelhante à moda da importação de modelos europeus em voga na sociedade retratada no texto, o mesmo é pontuado por referências a autores canônicos, tais quais Cervantes, Espinoza, Verdi, Calderón de La Barca, Moliére, Descartes, dentre outros, à mitologia clássica e à história política européia e, assim como os costumes e ideais estrangeiros se corrompem no contexto dos trópicos, os textos citados são relidos, reescritos, recontextualizados e parodiados numa atitude antropofágica. Levamos em consideração as mudanças de contexto, de espaço e de tempo na atividade tradutória, entendendo a colagem e o trabalho de citação tal qual nos expõe Antoine Compagnon: A citação trabalha o texto, o texto trabalha a citação. Aqui, surge o sentido (...). Isso não significa que o texto se distinga das outras práticas com o papel que não teriam sentido: o jogo do recorte e da colagem faz sentido, e não é indiferente para o sentido que eu coloque um vestido sobre uma silhueta masculina ou feminina. (COMPAGNON, 2007, p.46)

A metáfora do pensador francês remete às mudanças de sentido sofridas pelo texto citado ao ser deslocado para outro contexto espaço-temporal, nos levando à questão do entre-lugar no discurso Latino Americano, de que nos fala Silviano Santiago (1978), evidenciado na operação tradutória de que se vale o escritor imerso em um contexto marginalizado, vencendo sua dependência cultural por meio da antropofagia, reescritura do texto citado que pressupõe uma traição ao mesmo, criando um texto novo, diferente e universal. Márcio Souza acena para esta proposta tradutora e traidora de seu texto citando uma passagem de Cervantes, onde o mesmo fala da queda da intenção do autor também como maneira de isentar-se da responsabilidade diante do texto escrito, mostrando que quem lhe atribui significado é o leitor: Nestas matérias a língua não tropeça sem que a intenção caia primeiro. Mas se acaso por descuido ou por malícia mordiscar, responderei aos méis censores o que Mauléon, poeta bobo e acadêmico burlesco da Academia de Imitadores, respondeu a alguém que lhe perguntara o que queria dizer Deu de Deo. Ele traduziu: Dê por onde der. Miguel de Cervantes, Novelas Exemplares (SOUZA, 1983, p.11)

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O tom burlesco da epígrafe unido à ironia de Márcio Souza ao citar Cervantes que cita Mauléon que por sua vez é da Academia dos Imitadores deixa evidente um jogo de rastros no texto. Não há originalidade e nem intenção do autor. Márcio Souza retoma a tradição medieval européia para abordar uma problemática moderna e latino-americana. Ele se inscreve na Academia dos Imitadores, isenta-se de toda a responsabilidade de seu texto, e o apresenta como uma bricolagem satírica por meio do pastiche e da parodia de toda tradição. Entra aqui o conceito de pastiche e paródia, tal qual nos expõe Márcia Arbex: O pastiche é considerado como imitação, uma transformação indireta, pois supõe a mediação de uma modelo genérico que deve ser reconhecido como tal, enquanto a paródia é a transformação de um texto, com modificação de seu conteúdo sem mudança de estilo, como acontece no romance colagem. (ARBEX, 2002, p.213)

Um índice desta construção está na constituição do grupo de teatro Les Commediens Tropicales, assim caracterizados pelo narrador: Havia a bordo uma pequena orquestra. O imediato tocava fagote, o taifeiro tocava violino, o cozinheiro tocava violoncelo. Blangis tocava concertina. Justine L’Amour começava com um monólogo de “As Preciosas Ridículas”, de Molière. Terminava com Blangis, a caráter de Duque de Caxias, cantando uma copla de minha autoria sobre música de Rossini. Era tão patriótico. (SOUZA, 1983, p. 92)

Uma orquestra improvisada com que sobrou da companhia de ópera francesa, a mistura de línguas e contextos, um nome tropical em francês, a mistura de Moliére e Rossini para contar um episódio da história brasileira. Observa-se aqui, por meio da junção entre a cultura elevada e a cultura de massa, do dialogismo paródico, da heteroglossia social, da polifonia lingüística, cultural e textual, algumas das principais estratégias backtinianas de subversão carnavalesca. A carnavalização é a principal forma de subversão do oprimido contra o discurso oficial do dominador e é amplamente utilizada no romance de Márcio Souza. Em Galvez imperador do Acre toda expressão hegemônica da cultura dita elevada é parodiada e carnavalizada. A própria revolução acreana é apresentada como uma grande paródia da história política européia. A carnavalização apresenta-se, primeiramente, na escolha de Galvez em instituir uma monarquia no Acre: “Decidi pela monarquia, que era pomposa, colorida e animada como uma festa folclórica” (SOUZA, 1983, p. 126). A ideia carnavalesca de monarquia como uma festa folclórica se evidencia também na confecção da bandeira revolucionária, uma colcha de retalhos, paródia da bandeira e dos ideais revolucionários franceses: Nossa Bandeira Idolatrada Justine L’Amour e Joana confeccionaram nossa bandeira, seguindo um desenho de Blangis. O EstadoMaior tinha aprovado o desenho, com o seguinte despacho escrito por Vaez: “És um retângulo como todas as dignas e indignas bandeiras dos povos. Uma faixa azul, que se toma a metade, suaviza os rigores desta natureza suntuosa, para mostrar os ânimos de poeta e trabalhador de teu povo. A outra metade é o branco puro: esse lírio das cores reunidas e brilhando numa só. O branco: é a cordura mais uma vez de humilde povo. Em meio a estas duas manifestações heráldicas da paz e da concórdia, fulgura uma estrela solitária, fúlgida, como é a nossa esperança. È o farol de nossa caminhada rumo ao futuro. Finalmente, essas três palavras sagradas, surgidas no mundo, das bênçãos da criação do povo na ruas: LIBERDADE, IGUALDADE E FRATERNIDADE. (SOUZA, 1983, p. 154)

O curto reinado de Galvez é um grande carnaval e a deposição do imperador do Acre é tão ridícula quanto seu reinado, no seu “palácio” improvisado em um barracão, ocorre uma orgia enquanto ele é localizado dormindo entre várias garrafas de xerez e termina por vomitar na farda de seu depositor. Se, como diz Robert Stam, “A lógica do carnaval é a do mundo de pernas para o ar, onde se zomba dos poderosos e onde reis são entronizados e depostos” (STAM, 1992, p. 52), Galvez imperador do Acre é um grande carnaval, onde, por meio da paródia, o dominado assume a força do discurso dominante para denunciar as próprias instituições de poder, onde o nivelamento da arte dita “elevada” e a arte “baixa”, popular, é uma forma de provocar e atacar a cultura oficial, elitista e colonizada, colocando a expressão da margem no centro da discussão e derrubando as hierarquias.

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5. A história aberta: a retomada do passado como forma de subversão à tradição Ao relançar em seu tempo textos anteriores, o romance de Márcio Souza carnavaliza a tradição oficial retomando o passado de forma crítica e combativa. Observamos, então, que Galvez imperador do Acre como uma obra de ficção pós-moderna, resgata o passado tal qual afirma Linda Hutcheon: “a ficção pós-moderna sugere que reescrever ou reapresentar o passado na ficção e na história é - em ambos os casos – revelá-lo ao presente, impedi-lo de ser conclusivo e teleológico” (HUTCHEON, 1991, p.147) Márcia Arbex, ao estudar os romances-colagem do surrealista Max Ernst, faz a seguinte reflexão: Ao utilizar como material de base para suas colagens gravuras provanientes de folhetins do final do século XIX que, para um leitor de 1930, são desusadas, antiquadas, conservadoras, pertencentes à geração dos pais (e a um acervo cultural pequeno burguês), e ao modificar tais imagens através da colagem, conferindo-os um conteúdo outro, Max Ernst cria uma tensão dentro da imagem que caracteriza a paródia: o modelo é designado e ao mesmo tempo ridicularizado; um sentido novo é atribuído a um discurso antigo de forma lúdica, irreverente e muitas vezes subversiva, cujo propósito é acertar contas com a moral burguesa e cristã. (ARBEX, 2002, p. 223)

Da mesma forma que Max Ernst, Márcio Souza também retoma a tradição de forma subversiva, resgatando textos e valores de um passado colonial para criticá-lo por meio da paródia. Observamos como o texto de Márcio Souza lança luzes sobre o modelo de desenvolvimento e formação da cultura amazônica. Este modelo está historicamente calcado no processo colonial de transmissão de cultura, e, como nos diz Walter Benjamim “Nunca houve um monumento da cultura que não fosse também um monumento da barbárie. E, assim como a cultura não é isenta de barbárie, não o é, tampouco, o processo de transmissão da cultura.” (BENJAMIM, 1987, p. 226). A frase do pensador Alemão nos leva a refletir sobre a violência do processo colonial e seus reflexos ao longo da história dos povos vencidos, que, apesar de se libertarem aparentemente de seu julgo, permanecem dependentes política, econômica e culturalmente dos vencedores, isto é, os povos de cultura dominante. A denúncia empreendida pelo romance nos permite considerar, analisar e criticar este modelo no presente com o intuito de auxiliar no traçado do roteiro de uma outra história, sendo esta, ainda segundo Benjamim, a função do historiador consciente: Articular historicamente o passado não significa conhecê-lo “como ele de fato foi”. Significa apropriarse de uma reminiscência tal como ela lampeja no momento de um perigo. Cabe ao materialista histórico fixar uma imagem do passado, como ela se apresenta, no momento do perigo, ao sujeito histórico, sem que ele tenha consciência disso. O perigo ameaça tanto a existência da tradição quanto os que a recebem. Para ambos o perigo é o mesmo: entregar-se às classes dominantes, como seu instrumento. Em cada época, é preciso arrancar a tradição ao conformismo, que quer apoderar-se dela. (...). O dom de despertar no passado as centelhas da esperança é privilégio exclusivo do historiador convencido de que os mortos também não estarão em segurança se o inimigo vencer. (BENJAMIM, 1987, p. 225)

Benjamim rompe com o conceito linear de história, empreendendo uma “explosão monádica”, em que cada o tempo é espacializado tal qual uma constelação, onde cada momento é como uma estrela que ilumina a outra num processo dialógico. Dessa forma, o passado pode ser recuperado para iluminar o presente no momento do perigo, assim como no presente pode-se mudar o passado, ao passo que muda sua leitura, impede que este seja conclusivo e pode iluminar seus equívocos e utopias, libertado-as “como estilhaços ou fragmentos para fazer face a um projeto transformativo do presente, a iluminar o presente” (PLAZA, 1987. P. 7). Derrida, em seu ensaio Torres de Babel, no convida a perceber o conceito de vida de Walter Benjamim, que vai além da visão de vida enquanto “corporalidade orgânica”. Ele nos diz que existe vida quando há “sobrevida”, isto é, quando há história, historicidade. A sobrevida pressupõe constante transformação, precisa dela, a sobrevida dos textos, das culturas e tradições só pode se dar por meio da transformação de sua leitura, da sua reencenação em outro espaço e tempo. Galvez imperador do Acre é uma obra de ficção que se propões a reler um determinado momento histórico, transformá-lo para

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poder iluminar um momento de perigo, arrancando a tradição do conformismo e, por meio de seus signos, destilar críticas que atingem todo um processo de formação cultural da Amazônia. Sua crítica extrapola a sociedade e o momento histórico que representa e em que foi produzido, visto que pode se atualizar sempre em sucessivas leituras. 6. Conclusão Este artigo é um desdobramento de um projeto de trabalho maior, que culminará em uma dissertação de mestrado. Procuramos, neste primeiro momento de nossa pesquisa, dar um passo adiante no estudo da obra de Márcio Souza, visto que, em nossa revisão bibliográfica, não encontramos nenhum estudo que abordasse tal tema, apesar da forma patente como ele se apresenta no romance. Encontramos duas teses sobre Galvez imperador do Acre: “Galvez imperdor do Acre: o discurso do romance e a ficcionalização da história”, de Renato Otero da Silva Junior e “Dom Luiz Galvez na Comarca da Amazônia”, de Maria de Nazaré C. de Souza. A primeira se propõe a utilizar o romance como corpus para a investigação das relações entre história e ficção e aproximá-lo das características do gênero romanesco proposto pelo teórico russo Mikail Bakhtin. A segunda aborda a temática do herói picaresco retomada na figura de Galvez e faz um estudo do romance segundo a teoria da Transculturação, proposta pelo uruguaio Ángel Rama. Apesar de alguns pontos de contato, nosso estudo segue outra linha, que parte da noção de resgate histórico de Walter Benjamim, isto é, não como uma maneira de reconstituir o passado como verdadeiramente foi, mas como reinvenção do mesmo em face de um projeto do presente, para podemos compreender o conceito de tradução desconstrucionista proposto pelo filósofo francês Jaques Derrida, principalmente, em seu livro Torres de Babel, a qual exclui a possibilidade de uma tradução equivalente, visto que pensar em equivalência de sentidos seria subordinar o texto a conceitos e valores que seriam inerentes a ele, fixos, atribuídos pelo autor e apenas recuperados pelo leitor. Partindo desses pressupostos teóricos, podemos investigar, de forma crítica, a noção de cultura e literatura amazônica pelo prisma de um romance que nos expõe a consciência do subdesenvolvimento, a qual, segundo Antonio Candido, é necessária para uma criação artística original e universal, aprofundando a confrontação entre Literatura, sociedade e história da Amazônia e comparando-as com as de outros povos, permitindo-nos não só penetrar em nossos problemas regionais, como também observar a universalidade desses problemas e de nossa produção literária. Referências ARBEX, Márcia. Onirismo, subversão e ludismo no romance-colagem. In ARBEX, Márcia; RAVETTI, Graciela (Org.). Performance, exílio, fronteiras: errâncias territoriais e textuais”. Belo Horizonte: UFMG, 2002. p.207 – 226. BENJAMIM, Walter. Sobre o conceito de história. In Obras escolhidas. Vol. 1. Magia e técnica, arte e política. Ensaios sobre literatura e história da cultura. Prefácio de Jeanne Marie Gagnebin. São Paulo: Brasiliense, 1987, p. 222-232. BHABHA, Homi K. O local da cultura. Belo Horizonte: UFMG, 1998. CANDIDO, Antonio. Literatura e Subdesenvolvimento. In: América Latina em sua literatura. São Paulo: Perspectiva/ Unesco – 1972. p.343 – 362. ______. Literatura e Sociedade. São Paulo: T.A Queiroz Editor, 2000 CASTILO, Luis Heleno Montoril Del. “Lanterna dos Afogados: Literatura, História e cidade em meio à selva”. Tese de Doutorado apresentada em 2004 ao Programa de Pós-graduação em Letras: Estudos Literários, da Faculdade de Letras da Universidade Federal de Minas Gerais. COMPAGNON, Antoine. O Trabalho da citação. Tradução Cleonice P. B. Mourão. Belo Horizonte: UFMG, 2007.

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O PROCESSO TRADUTÓRIO: AS TRADUÇÕES DE ORLANDO PARA O PORTUGUÊS Francisco Rafael Silva BARROS (Faculdade de Educação, Ciências e Letras do Sertão Central / UECE)

RESUMO: O presente estudo analisa o processo de tradução do romance Orlando – A Biography (1928), da escritora moderna britânica Virginia Woolf para o contexto brasileiro: Orlando (1948) traduzido pela consagrada poetisa Cecília Meireles e Orlando (1994) traduzido pela tradutora Laura Alves, perguntando qual o impacto dessas duas traduções, nos mesmos meios semióticos e a sua inserção na literatura traduzido do Brasil. Para tanto, utilizam-se os conceitos de “reescritura” de Lefevere (1992) e de tradução como agente político e formadora de identidades estrangeiras de Venuti (2002). PALAVRAS-CHAVE: tradução; literatura; domesticação

ABSTRACT: The following article analyzes the translation process of the Virginia Woolf ’s modern novel Orlando – A Biography (1928) which, to the Brazilian context: Orlando (1948) translated by the acclaimed writer and poet Cecília Meireles and Orlando (1994) translated by the translator laura Alves, asking what is the impact of these two translations, on the same semiotics ways and their insertion on the Brazil’s translated literature. For that we used the concepts of translation as rewriting by Lefevere (1992) and of translation as a politic agent and foreign identities former by Venuti. KEY WORDS: translation; literature; domestication


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1. Introdução O presente trabalho analisa as traduções do romance Orlando – A Biogrphy, da escritora britânica modernista Virginia Woolf para o contexto literário brasileiro. Tal obra gerou para o Brasil duas traduções: em 1948, Orlando foi primeiramente traduzido por Cecília Meireles e mais recentemente, em 1994, a tradutora Laura Alves traduzira-o novamente às letras brasileiras. A primeira indagação que se é gerada é sobre o porquê de duas traduções da mesma obra, pelos mesmos meios semióticos e para o mesmo país: o que motivou cada uma das tradutoras, em seus distintos contextos, à tradução dessa obra de Woolf ? e como essa motivação influenciou seus textos? Por meio deste trabalho vamos mostrar que este romance é de assuntos, gêneros e temáticas diversificadas e que ao longo das décadas que se sucederam a sua compilação, diferentes aspectos foram tomados por principais e/ou importantes na obra. Pretende-se a partir da análise das traduções, não apenas textualmente como contextualmente, inseri-las em seus loci culturais e políticos, apontar as diferenças e semelhanças entre elas, as maneiras que os textos foram escritos para cada década e qual teria ficado mais estrangeirizado e/ou domesticado. O que podemos dizer, preliminarmente, e que mostraremos ao longo de nosso texto, é que cada uma das traduções operou uma diferente domesticação específica para cada público e contexto à que ela se inscrevia. Para cumprir nossos objetivos tomamos como base teórica o estudo de Lefevere sobre tradução como reescritura, que para ele, nas palavras de Else Vieira, a reescritura é uma “... adaptação de uma obra literária a um público diferente com a intenção de influenciar a forma como o público lê a obra” (V., 1996), mas não só a tradução, como também as críticas, resenhas, notas, introduções sobre os textos. Também será de grande importância a visão de Lawrence Venuti de tradução como agente político difundida em seu livro Os Escândalos da Tradução: por uma ética da diferença (2002) onde o autor expõe seus conceitos sobre tradução domesticada e estrangeirizada, também nos ficando clara a sua defesa pela tradução estrangeirizada, como está no subtítulo de seu livro, pela da “diferença”. 2. Fundamentação teórica Como fundamentação às nossas análises dos dois romances, nos apropriamos de duas teorias distintas, mas que compartilham da mesma visão geral sobre o fenômeno tradução: de que a tradução não é um simples acontecimento linguístico, isolado de seu contexto e livre de consequências, mas que sua função é primordial no estabelecimento de cânones literários ou da visão da cultura estrangeira. André Lefevere deu uma grande contribuição às teorias tradutológicas com a sua visão de que a tradução, juntamente com outros textos não literários, é uma reescritura de um texto primeiro. Logo, ela funciona no novo sistema em que o texto é reinserido com a função de influenciar o modo como o público (o novo público) vê aquele texto e consequentemente deve ser enxergada não como uma “obra literária” em si, mas como uma adaptação de um texto literário para outro público. Mas não apenas a tradução (e talvez uma das maiores contribuições de Lefevere na sua teoria) como também os textos que falam dessa tradução e as pessoas envolvidas no processo: o autor considera as “pessoas que fazem alguma coisa com esses textos: pessoas que escrevem, distribuem, lêem, em suma, refratam os textos” (L., 1996, p 141). Outro teórico bastante importante para essa discussão é o americano Lawrence Venuti e sua obra Os Escândalos da Tradução: por uma ética da diferença (2002) onde o autor discorre sobre a necessidade da tradução, dentro do próprio produto, afirmar-se como tradução e não como uma obra “original”, pois o contrário disso seria um dos “escândalos” propriamente dito no título da sua obra. Venuti afirma que uma obra domesticada (que esconde os traços da obra de origem) além de negar a cultura e o contexto estrangeiro da primeira, ainda não traz nenhuma inovação ao ambiente doméstico, por se adaptar aos parâmetros e estilos do mesmo: “A longo prazo, a tradução penetra nas relações geopolíticas ao estabelecer as bases culturais da diplomacia, reforçando alianças, antagonismos e hegemonias entre nações.” (V., 2002, p 130). Entre outros

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pontos Venuti reivindica valorização da autoria do tradutor, da revisão teórica da tradução e da tradução de literatura minorizante. 3. “Orlando em carne” O título desta seção do nosso artigo é uma tradução de um dos subtítulos do artigo da americana Merry Pawlowski em uma introdução de uma das edições de Orlando (2003) em inglês quando esta pretende falar sobre quem “é” o ser biografado por Woolf. Aqui pode se iniciar uma das mais árduas discussões em literatura sobre o tema da ficção e/ou realidade em narrativas dramáticas ou romanceadas que iremos evadir, por não ser o ponto essencial de nosso estudo. Mas ao que tudo indica (inclusive pela dedicatória antes do início do romance: “To V. Sackville-West”1) é que o romance retrata e reconta a história de sua amiga e suposta amante Victoria Sackville-West, uma importante diplomata e poeta da época. Como afirma Pawlowski, Virginia ao conhecer Vita (como era chamada por Woolf) ficou logo de imediato fascinada com a história dos Sackville-West, os antepassados de Vita e sua própria vida e logo então pedira “a copy of the family history she [Vita] had written, Knole and the Sackvilles”2 (P., 2003, p 6) e foi sobre os grandes feitos da família de Vita, entrelaçados com a vida dela própria, que a narrativa de Orlando foi construída. A ligação entre a personagem e a poeta é inegável em vários discursos, como por exemplo, por carta no mesmo dia em que o livro foi lançado, Vita escreve para Woolf dizendo que esta havia inventado um novo tipo de narcisismo pois se encontrava “in love with Orlando” (GLENDINNING, 1983, p 206) E mesmo o público da época o lia, primeiramente, como “... a gossipy portrait of Vita Sackville-West; (…)”3 (TETTERTON, 1995, p 05). O que importa é que Orlando é um livro multifacetado e extremamente multigenérico. Além da intersecção entre ficção e realidade, o livro também compete na sua escrita passagens em língua francesa e vários outros gêneros literários dentro da sua tecitura: ao mesmo tempo que é romance, é biografia e poesia. Dentro da narrativa nos é facilmente visível relatos históricos, dados literários e poemas. E apesar de tantos fatos retificadores da “realidade” que o protagonista participa, Virginia “brinca” com a fábula de um homem que vive 30 anos como participante do sexo masculino e depois de uma transformação metamorfósica, se torna mulher e, nessa condição, vive mais dois séculos e meio. Além de é claro contarmos com o brilhante estilo de Woolf do fluxo de consciência que neste livro, a própria autora afirma, este tenha ficado “amenizado”, pois ele teria sido para Woolf uma escrita de fuga, para descançar de seus trabalhos poéticos mais sérios: “I feel the need of an escapade after these serious poetic experimental books whose form is always so closely considered”4 (W., 1977-84, p 131) sendo assim, a produção dele não era mais do que uma busca de Woolf por “fun” (diversão). Mesmo assim, apesar de uma aparente falta de comprometimento com a escrita do romance, dentro dele podemos encontrar vários conceitos estéticos e ideológicos de Woolf, que também nos serão importantes para as nossas análises. 4. Análise dos dados Das traduções de Orlando o que podemos citar primeiramente é a diferença da tradução do romance feita por uma poeta e por uma tradutora, estudante da língua e da disciplina tradução. Assim temos que o livro traduzido por Meireles tende a ser mais “poético” que o de Alves: Tradução do autor: “A V. Sackville-West”. “uma cópia da história da família que ela [Vita] havia escrito, Knolle e o Sackvilles” 3 “... como um retrato escandaloso de Vita Sackville-West; (...)” 4 “Eu sinto que preciso de uma fuga depois desses livros mais poeticamente experimentais cuja forma é sempre tão detalhadamente considerada.” 1 2

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Pode-se perceber a domesticação em ambas as traduções, principalmente o deslocamento do verbo “were” para mais adiante nas duas, mas Meireles se colocou, enquanto tradutora, mais estilisticamente e Alves mais textualmente: por “yellow pools which chequered” em Meireles temos “poças amarelas que enxadrezavam” e em Alves “manchas amarelas que quadriculavam” o que marca bem a diferença entre ambas as tradutoras. Apesar de, como vimos mais acima, Virginia Woolf ter considerado esse livro à parte dos seus trabalhos literários, sendo ele de menos importância e menos esteticamente trabalhado, não haveria como Woolf fugir completamente de seu estilo e em passagens onde o fluxo nos é apresentado na leitura do texto em inglês, houve uma certa amenização desse fluxo:

Tanto nas duas primeiras frases de Meireles e Alves vemos que claramente houve uma mudança da ordem estabelecida para a frase em inglês por Woolf. Já na segunda frase, apenas o de Meireles foi sintaticamente modificado, efeito que percebemos facilitar a leitura e compreensão do texto. Já a nossa impressão da tentativa de Alves deixar o texto mais parecido o possível com o original, talvez seja por uma “idealização” do texto literário como algo “sagrado” fazendo-a tentar o mínimo possível “corromper” a obra. Outro ponto interessante nesse trecho é que a primeira frase de ambas não estão só “parecidas” se não exatamente iguais. Já foi exposto nesse artigo que a data da primeira publicação de Orlando para letras nacionais foi feita por Meireles em 1948 e somente em 1994 é que temos disponível a edição de Alves. Supomos, por não termos auxílio de textos, declarações ou entrevistas que comprovem essa dúvida, que Alves, antes mesmo de começar o trabalho tradutório de Orlando, justamente pela já existente tradução previamente feita por Meireles, teria lido o romance anterior. Baseamo-nos para levantar essa idéia em fatos como esse. Não estamos aqui afirmando que Alves teria “copiado” ou plagiado o texto de Meireles, apenas que as coincidências são muito grandes. E mesmo Alves tentando ser tão fiel estrutural e lexicalmente ao texto woolfiano, uma domesticação lexical muito forte nos fez indagar ainda mais sobre essa suposta leitura do texto de Meireles:

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Vejam que os mesmos recursos já expostos nos parágrafos anteriores podem ser percebidos novamente para ambas as tradutoras, mas o que eu quero ressaltar aqui é a tradução de “Would” por “Oxalá” nas duas traduções. Oxalá aqui está no sentido de “quisera podermos”, “fosse possível” e não como uma das entidades do candomblé. Tal tradução mostra uma domesticação muito forte, no intuito de dar a mesma tenção do momento em que Orlando começava a sua transmutação de sexo. Em português as tradutoras optaram por usar o vocábulo “Oxalá” tanto para causar um choque à cena que está a ser descrita quanto para enfatizar o momento dramático que se estabelece na narrativa e está escrito mesmo no texto de Alves, que tende a ser mais “fiel” ao woolfiano, o que aumenta ainda mais as nossas suspeitas de um leitura prévia de Meireles antes de seu trabalho. Sobre a variação textual falada anteriormente na narrativa de Orlando, dentre os variados gêneros textuais “inseridos” no enredo da estória, a tradução das poesias são as mais interessantes. Quando o livro apresenta um fragmento de um dos poemas de Pope, Meireles prefere preservar dentro do seu texto o original em inglês e traduzi-lo em nota de roda pé, já Alves o traduz diretamente. Mesma coisa acontece quando a poesia é da própria personagem Orlando: Meireles conserva dentro da narrativa o original inglês e Alves o traduz à diferença que dessa vez o poema em inglês é colocado em nota de roda pé. A tradução dessa poesia é bem interessante:

É certo que ambas encontraram boas estratégias para traduzir a rima do segundo com o quarto verso “chain” e “vain” por “fatigada” e “nada” em Meireles e “cansada” e “nada” em Alves. Mas fica bem claro através da leitura que a tradução de Meireles é bem mais hermética. O poema em Meireles tenta se ater, além do assunto, da tonalidade poética na tradução: o tom de tristeza causado pela repetição dos fonemas nasais em “But I have spoken hallow’d words (grifo nosso)” ficando “Mas pronunciei palavras sacrossantas (grifo nosso)” como também a erudição lexical em “desprezível”, “cadeia” e “sacrossantas”. Assim confirmamos ainda mais a tradução voltada ao foco estético de Meireles e a sintático-vocabular e/ou textual de Alves. Além dessas evidências textuais, encontramos também em algumas refrações e textos que se referem aos romances, muita informação pertinente: no livro de Laurence Hallewell, O livro no Brasil (2005), o autor fala que na década de 30/40, a editora Globo começava a se estabilizar no mercado

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editorial brasileiro e com uma crise financeira que deixou os livros europeus a preços exorbitantes para o público leitor no país, a inserção de textos de língua inglesa foi a saída para a estabilização desse mercado: “O desempenho da Globo nas traduções, junto com outras editoras, em particular a José Olympio, levou Paulo Rónai a designar os anos de 1940 ‘a idade de ouro da tradução no Brasil’” (H., 2005, p 403). Nesse mesmo livro, a referir-se as conquistas de Maurício Rosenblatt para a editora no Rio de Janeiro, diz-se que ele “... convenceu Cecília Meireles a traduzir Orlando, de Virginia Woolf.” (idem, p 412). O surgimento de uma nova editora no mercado e um “novo” mercado, exigiam dos editores um investimento maior em conseguir a confiança do público leitor brasileiro para essas nova literatura (a literatura norte-americana e inglesa) confiando a autores como Mário Quintana, Érico Veríssimo e (no nosso estudo) Cecília Meireles o trabalho de intitular essas traduções. A tradução de Cecília Meireles, assim, na década de 40, se insere nessa renovação da literatura traduzida para o Brasil, formando um novo centro de referência cultural que veio a ser o inglês (principalmente o americano), pois nas palavras de Lefevere, em tradução: “Trust may be more important than quality.”5 (L., 1992, p 02). Contextualizando a tradução de Laura Alves nos anos 90, percebemos que houve nessa época (na verdade, a partir dos anos 80) uma constante reeditoração, reescritura e revisão dos textos de Woolf, especialmente aqui no Brasil. Temos aqui alguns exemplos: “A diretora Bia Lessa inaugurou, em 1989, o Centro Cultural Banco do Brasil com a peça Orlando, protagonizada por Fernanda Torres e baseado no livro de Virginia Woolf.” (GHIVELDER, 2004, p 01), além das traduções de outros livros de Woolf que antecederam Orlando, como As Ondas em 1980 por Lya Luft, em especial Um teto todo seu em 1985 por Vera Ribeiro onde a temática feminista e outras ideologias de Woolf nos ficam bem claras (fato crucial na contextualização de Orlando que nessa década também será visto como uma obra feminista) e posteriormente o livro As Horas de Michael Cunninghan traduzido por Beth Vieira em 1999, que no seu enredo traz como fato essencial e condutor da narrativa o livro Mrs. Dalloway (1925) de Woolf e como personagem ela própria. Além de produções cinematográficas que referiamse a Woolf como Orlando de 1992 dirigido por Sally Potter, Sra Dalloway de Marleen Gorris em 1997 e, já no século 21, As Horas de Stephen Daldry em 2002. E assim, nessa revisão dos trabalhos de Woolf, em especial os considerados feministas, ou que abordassem em si a temática de sexo e gênero, o romance Orlando é novamente traduzido levando a ver Woolf como uma revolucionária não só na literatura, mas também na luta de gênero e sexualidade, como a própria Alves afirma na sua introdução: “Contudo, o livro é bem mais que uma biografia ou ainda uma defesa da mente andrógena (grifo nosso), conforme as idéias de Coleridge, posteriormente apresentadas por Virginia em Um teto todo seu (1929).” (A., 1994, p 11), ou do foco principal na peça de Lessa: “Afinal a peça trata exatamente da ‘desimportância’ do gênero masculino ou feminino para se viver e amar homens ou mulheres.” (STEPHAN, 2004, p 1). Uma visão de Orlando de Woolf que faz parte da nossa contemporaneidade e que não é compartilhada com o público da época do lançamento do mesmo, como pode ser visto em um artigo de Kelly Tetterton, Virginia Woolf ’s Orlando: the book as a critic (1995), onde a autora analisa as capas das edições de Orlando na Europa. A autora afirma que: “We read Orlando now most often as a feminist work that explores the boundaries of gender and sexuality and the limits of women writers within literary history, or as a sharp critique on the possibilities of biography. But Orlando was often first read by its contemporary audience as a gossipy portrait of Vita Sackville-West; (…)”6 (TETTERTON, 1995, p. 05) enfatizando o aspecto variado da temática de Orlando como também a “moda” contemporânea de ver essa obra de Woolf como um livro que lida da luta entre os gêneros e tais tendências é que contextualizam uma segunda tradução, para um mesmo meio semiótico, do romance no Brasil. Analisando o romance traduzido mais textualmente. Ora, essas alterações como já apontamos “Confiança talvez seja mais importante que qualidade.” “Hoje lemos Orlando mais frequentemente como um trabalho feminista que se desenvolve sobre as fronteiras do sexo e da sexualidade e os limites de escritoras mulheres dentro da história da literatura, ou como uma crítica maliciosa das possibilidades de uma biografia. Mas Orlando foi a priori lido pelo seu público contemporâneo como um retrato escandaloso de Vita Sackville-West; (...)”

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nos trechos acima não acontecem se não identicamente às mudanças feitas por Meireles (sintática, vocabular) e no geral o texto ficou domesticado estruturalmente e principalmente mais linear. 5. Conclusão Assim, podemos dizer que o texto traduzido por Cecília Meireles é estrangeirizado no que diz respeito ao momento que passava a editoração de livros no Brasil, de inserção de uma nova literatura estrangeira que não fosse a francesa e consequentemente a formação de um novo público leitor de literatura inglesa ou norte americana, sendo que para isso a tradutora teve que operar uma forte domesticação textual de maneira mais estilística tornando-o um tanto “seu”, para que o seu respaldo também engrandecesse o dessa nova literatura; já o texto trabalhado por Laura Alves não teve o compromisso de formar uma nova visão de cânone literário para o país, mas se insere em uma revisão dos textos de Woolf. O romance reinserido nesse novo momento é estrangeirizado, por que reitera uma nova visão temática ao trabalho literário de Woolf que se começava naquela época, mas textualmente é domesticado, porém de maneira diferente do de Meireles, por em muitas vezes diminuir a questão do fluxo de consciência e poético da autora, não enfatizando o ponto de vista estético desta dentro da obra. Referências GHIVELDER, Debora. “Bia Lessons” de volta: diretora revive Orlando em ano de sucessos. In.: http://veja.abril. com.br/vejarj/101104/perfil.html. Visto em: 16/01/2009 GLENDINNING, Victoria. Vita: the life of V. Sackville-West. New York: Quill, 1983. HALLEWELL, Laurence. O Livro no Brasil. São Paulo: Edusp, 2005. LEFEVERE, A. Translation, rewriting & the manipulation of literary fame. London and New York: Routledge, 1992. ______. A teoria das refrações e da tradução como reescrita. In: VIEIRA, Maria Else Ribeiro (org.). Contextualizando a Tradução. Belo horizonte. Curso de pós-graduação em Estudos Lingüísticos da FALE/ UFMG, 1996. PAWLOWSKI, Merry M. Introduction. In: WOOLF, Virginia. Orlando – A Biography. London: Wordsworth, 2003 STEPHAN, Pedro. Panorama: Bia Lessa encena Orlando do babado, 2004. In: http://mixbrasil.uol.com.br/ cultura/panorama/orlando/orlando.asp. visto em 14/01/2009. TETTERTON, Kelly. Virginia Woolf ’s Orlando: The Book as Critic. In: http://www.tetterton.net/orlando/ orlando95_talk.html. Visto em: 16/01/2009. VENUTI, Lawrence. Os escândalos da tradução: por uma ética da diferença. Tradução de Laureano Pelegrino, Lucinéia Marcelino Villela, Marileide Dias Esquerda e Valéria Biondo. Bauru, São Paulo, EDUSC, 2002. VIEIRA, Else Ribeiro Pires (Org.) Teorizando e contextualizando a tradução. In: André Lefevere: A teoria das refrações e da tradução como reescritura. Curso de Pós-graduação em Estudos Lingüísticos da FALE/ UFMG, 1996. WOOLF, Virginia. Orlando – A Biography. London: Grafton Books, 1986. ______. Orlando. Trad.: Cecília Meireles. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2003 ______. Orlando. Trad.: Laura Alves. Rio de Janeiro: Ediouro, 1994 ______. The Diary of Virginia Woolf, 5 vol. New York: Anne Olivier Bell, 1977-84

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SOBRE O II CIELLA

O Congresso Internacional de Estudos Linguísticos e Literários na Amazônia (CIELLA) é um evento bianual que resultou do bom desenvolvimento e projeção de um tradicional encontro intitulado Jornada de Estudos Linguísticos e Literários (JELL), promovido pelo Programa de Pós-Graduação em Letras da Universidade Federal do Pará (UFPA) durante 10 anos consecutivos. O II CIELLA foi realizado na UFPA, em Belém, nos dias 06, 07 e 08 de abril de 2009 e teve como tema principal “Línguas e Literaturas: diversidade e adversidades na América latina”. O objetivo do encontro é integrar os pesquisadores da área de estudos linguísticos, literários e culturais implicados na discussão de problemas característicos do contexto latino-americano e na busca de soluções diferenciadas, oportunizando o diálogo com os demais atores sociais envolvidos, de modo a favorecer a elaboração de propostas político-educacionais diversificadas.

www.ufpa.br/ciella


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PÚBLICO ALVO Como evento acadêmico, o II CIELLA volta-se para professores universitários, pesquisadores, estudantes de Graduação e Pós-Graduação de instituições locais, nacionais e internacionais. Assinalamos que o evento caracteriza-se também por estabelecer um diálogo com profissionais e gestores interessados nas repercussões econômicas, políticas e socioculturais dessas pesquisas. Além disso, abre-se, de forma pioneira, na região norte, para estudantes de Ensino Médio, participantes do Programa Institucional de Bolsas de Iniciação Científica Júnior da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado do Pará. Essa dinâmica, congregando vários atores sociais, permite estabelecer intercâmbio efetivo entre a academia e as comunidades envolvidas, garantindo maior circulação dos resultados de pesquisas. CARACTERÍSTICAS DO EVENTO Por se tratar de um evento com fortes características interdisciplinares, o II CIELLA explora tanto o universo linguístico quanto o literário e o cultural. Nesta segunda edição, Língua, Literatura e Cultura serão abordadas sob vários aspectos. Da perspectiva da Linguística, as discussões serão centradas especialmente nas seguintes questões (ver detalhamento nos subtemas): 1. Efeitos de situações de plurilinguismo e contato, tanto de um ponto de vista social quanto cultural e linguístico. 2. Aspectos tipológicos, principalmente das línguas indígenas sul-americanas, bem como a sua contribuição para o debate sobre universais linguísticos. 3. Avanços e contribuições que a tecnologia proporciona na compreensão, estudo e ensino de línguas. 4. Usos concretos da língua na relação com as estruturas e demandas sociais. 5. Aspectos relativos à textualização da interação humana e às relações entre oralidade e escrita. 6. Relação entre língua e sociedade, considerando-se seus vários aspectos: sociolinguístico, aquisição, ensino/aprendizagem, etc. No campo literário, os temas indicam um diálogo com os domínios das ciências sociais, da história e de outras ciências, em especial aquelas voltadas para os estudos culturais e as manifestações artísticas nas diferentes sociedades: 7. Relações entre literatura, sociologia e antropologia, tendo em vista as contribuições decorrentes da interdisciplinaridade. 8. Literatura e as tradições orais. 9. Unidade e a diversidade literária, especialmente na América Latina. 10. Regimes de produção e circulação do livro, bem como práticas de leitura no contexto latino-americano. 11. Reflexões sobre epistemologia, história e crítica da produção literária. 12. Relação entre literatura e outras artes. TEMA GERAL DO II CIELLA Línguas e Literaturas: Diversidade e Adversidades na América Latina.

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SUBTEMAS Para o II CIELLA, foram definidos 6 subtemas voltados para a área de Estudos literários e culturais e 6 outros dedicados à área de Estudos Linguísticos. As propostas de intervenção dos participantes às diferentes modalidades da Programação se inscreveram no âmbito de um desses subtemas: I. SUBTEMAS DA ÁREA DE ESTUDOS LITERÁRIOS E CULTURAIS 1. História do livro e das práticas de leitura O texto, manuscrito ou impresso, lido silenciosamente ou em voz alta, encarna-se em suportes materiais e submete-se a regimes de produção e circulação que possuem uma dimensão histórica e social. As práticas de leitura, por sua vez, encarnam-se em gestos, hábitos e lugares, também marcados pela historicidade e por partilhas de natureza social. Assim sendo, o presente subtema pretende reunir sessões temáticas que se dediquem: i) ao estudo dos regimes de produção e circulação das obras, nos quais estão implicados autores, livreiros, impressores, etc.; ii) às relações entre os suportes materiais do texto literário e sua recepção pelas diferentes comunidades de leitores; iii) aos lugares sociais em que o livro é dado a ler, como bibliotecas e gabinetes de leitura; iv) às práticas de leitura propriamente ditas; v) aos suportes materiais dos textos, sejam eles manuscritos, impressos, ou dispostos na tela de um computador. 2. Literatura, diferenças culturais e relações de poder O campo dos estudos culturais envolve toda discussão acerca das relações entre cultura e sociedade, a partir da luta pelo poder existente entre os diversos grupos sociais, ou mesmo entre sociedades, notadamente as tensões presentes nas formas e nas instituições e práticas culturais. A par desse princípio dos estudos culturais, serão agrupadas nesse subtema sessões temáticas que envolvam a discussão sobre hegemonia e identidade nacional, culturas populares e indústria cultural, produção de hierarquias sociais e políticas a partir das relações culturais, comunicação e práticas sociais, memória e narrativas nacionais, e afins. A abordagem pode considerar: i) a interdisciplinaridade, evidente no tripé comunicação, sociologia e antropologia; ii) a construção do nacional; iii) hegemonia e diversidade cultural; iv) o cânone literário e o popular. 3. Epistemologia, história e crítica literária A história do objeto literário se funda sobre o princípio do passado como portador de valor. Mas esse passado sempre é visto pelas lentes do presente que, por meio do exercício da escritura, organiza, fabrica e valora a produção literária, a partir de determinados pressupostos teórico-epistemológicos. Tendo isto em vista, o presente subtema tem por objetivo reunir sessões temáticas sobre poéticas escritas e orais, práticas historiográficas, a recepção crítica de obras, sempre plurais e móveis, bem como sobre as teorias da literatura que, associadas ou não ao discurso histórico, constituem e fundam as categorias de análise e percepção a partir das quais a produção literária é discutida. A abordagem pode considerar: i) a construção de poéticas orais e/ou escritas; ii) o papel do intelectual no conhecimento literário; iii) recepção crítica de obras literárias; iv) historiografia e teorias da literatura. 4. Literatura e tradição orais As poéticas orais permaneceram, por longo tempo, alijadas dos estudos literários. Quando muito, foram objeto de estudos das ciências sociais, notadamente a antropologia. A partir dos anos de 1970, no entanto, alguns estudiosos, como Paul Zumthor, dedicaram pesquisas à oralidade, afirmando a natureza artística e etnográfica do texto oral. Hodiernamente, o texto poético oral não se restringe ao seu caráter verbal, atentando-se, também, para seu caráter translinguístico, enquanto narração (gestos, pausas, entonações, movimentos corporais), e para seu caráter de tradição, como condutor

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de imaginário intercultural e da memória coletiva, mesmo a despeito da realização intersubjetiva desta. Por outro lado, não se deve perder de vista que a relação oral/escrito antes de ser excludente é complementar, fato este que nos remete à gênese ocidental da Literatura. Essas são as reflexões que serão abordadas nas sessões temáticas organizadas no âmbito do presente subtema. A abordagem pode considerar: i) marcas translinguísticas em poéticas orais; ii) matrizes narrativas orais em obras literárias; iii) relação oralidade e escrita; iv) tradição etnográfica e história oral. 5. Relações literárias latino americanas: unidade e diversidade A história colonial na América Latina concorreu para a caracterização da produção cultural e literária do continente sob dois enfoques: por um lado a afirmação de modelos eurocêntricos, próxima à emulação; de outro lado, a negação desses modelos, na esteira dos nacionalismos românticos. Sem polarizar as escolhas, alguns autores latino-americanos, como Angel Rama, Edouard Glissant, Garcia Canclíni e Silviano Santiago optaram por uma mediação entre o local e o supostamente universal, ao elaborarem os conceitos de transculturação narrativa, de poética da diversidade, de culturas híbridas, de supra-regionalismo e de entre-lugar, como saída para compreender a produção literária latino-americana como uma vertente inclusiva. Os trabalhos apresentados nas sessões temáticas organizadas em torno deste subtema versaram sobre a tensão entre esses conceitos e modelos, assim como indicar leituras alternativas que apontem para a mediação literária. A abordagem pode considerar: i) poéticas oriundas de movimentos migratórios; ii) relação entre local e universal na construção do entre-lugar; iii) diálogos literários entre produção literária brasileira e produção literária da Hispano-América; iv) transculturalidades na produção literária. 6. Literatura e outras artes Na perspectiva de Jakobson, a poesia e, por extensão, a literatura é o uso artístico da linguagem. Quais são as relações dessa arte linguageira com as outras artes, quais são as representações recíprocas, como se operam as transposições da literatura para as outras artes e vice versa, quais são os limites desses processos de trans-semiose: essas grandes questões e suas múltiplas ramificações constituem o objeto das sessões temáticas que este subtema agrupa. II. SUBTEMAS DA ÁREA DE ESTUDOS LINGUÍSTICOS 7. Plurilinguismo e línguas em contato O plurilinguismo impõe-se atualmente como um tema fortemente mobilizador. Para muitos, constitui uma proposta incontornável para preservar a riqueza e a diversidade linguístico-culturais em um mundo globalizado; para outros, não passa de uma utopia anti-uniformização em prol de grupos minoritários fadados ao desaparecimento ou ainda de um vetor de interesses político-econômicos diversos. Em uma América Latina que representou a si mesma, nos últimos séculos, como exclusivamente monolíngue, (re)descobrem-se as múltiplas situações de contato entre línguas como desafio para as políticas públicas, principalmente as educacionais, e para as tentativas de manutenção e revitalização de línguas ameaçadas. Tratando tanto das situações de contato entre línguas (nos casos de comunidades tradicionais indígenas, fronteiriças, de migrantes, de falantes de línguas de sinais etc.) quanto das situações de plurilinguismo no sistema escolar, as sessões temáticas aqui reunidas permitiram abordar essas questões na perspectiva: (i) da descrição linguística, (ii) das políticas educacionais, (iii) das experiências de ensino/aprendizagem e (iv) das experiências de manutenção e revitalização de línguas. 8. Descrição linguística, tipologia e universais A comparação das gramáticas das línguas revela padrões sistemáticos de variação entre estas. Pesquisa em tipologia e universais evidencia esses padrões e possibilita a formulação de universais

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sobre línguas e, com isso, a expansão do debate em torno de explicações para universais linguísticos (ex. CROFT, 2003). O objetivo das sessões temáticas organizadas em torno deste subtema é abordar diferentes aspectos da descrição de línguas naturais, podendo referir-se a questões de (i) fonologia, (ii) morfologia e sintaxe e (iii) semântica, em uma perspectiva tipológico-universal ou não. 9. Tecnologia(s) e estudos de línguas Aplicações tecnológicas constituem atualmente um forte recurso para o estudo de línguas tanto na área da descrição quanto na de ensino/aprendizagem. Com este subtema, pesquisadores são convidados para uma discussão sobre as interações entre tecnologia, linguística e ensino/aprendizagem de línguas, focalizando em questões como: (i) preparação de corpora para o estudo de línguas; (ii) bases de dados para armazenamento e recuperação de dados linguísticos; (iii) instrumentos e métodos experimentais para análises linguísticas e tratamentos estatísticos; (iv) tecnologias da informação e da comunicação no ensino de línguas maternas e estrangeiras. 10. Gêneros discursivos, oralidade e escrita Pensar a linguagem enquanto forma de manifestação do que inexoravelmente caracteriza o humano e, portanto, singulariza-o como homo sapiens, é pensar a própria natureza desse homem que se (re)vela por meio de suas práticas e se constitui enquanto sujeito em sua necessária relação com o mundo e com o outro. Essa entidade psicossocial faz-se na e pela linguagem, num jogo em que o texto se configura como o próprio lugar da interação e os interlocutores, como participantes ativos na construção das representações que fundam a comunicação. Em assim sendo, investigar as formas sociocomunicativas constitutivas de nossas atividades diárias parece ser de importância vital à explicitação e compreensão do modus faciendi que nos permite a socialização e o trânsito pelas variadas situações sociais do dia-a-dia. Importa, então, discutir os usos concretos da língua em sua necessária relação com as estruturas e demandas sociais, bem como aspectos relativos à textualização da interação humana. Incluem-se aqui sessões temáticas que versem sobre: (i) gêneros do discurso; (ii) interação verbal no mundo off-line e no virtual; (iii) relação entre oralidade e escrita; (iv) produção e compreensão do texto oral, do texto escrito e do texto eletrônico. 11. Língua, Sociedade e Identidade Considerando-se a dinâmica das relações sociais nos processos criativos de uso das línguas e nas práticas de produção textuais, o presente subtema abre espaço para sessões temáticas que versem sobre as inter-relações entre sociedade e linguagem, tanto do ponto de vista das análises discursivas quanto dos estudos sociolinguísticos, enfocando questões como: (i) variação e usos linguísticos; (ii) mudança linguística; (iii) estudo do léxico; (iv) práticas identitárias; (v) práticas discursivas. 12. Línguas, linguagem e apropriação linguageira O presente subtema abrange os diversos fenômenos envolvidos na apropriação de uma ou de várias línguas, oralmente ou por escrito, quaisquer que sejam o status sociopolítico dessa(s) língua(s), os processos de aquisição/aprendizagem considerados e o contexto didático-metodológico em que ocorrem. Incluem-se, portanto, aqui sessões temáticas voltadas para: (i) a aquisição da linguagem; (ii) o desenvolvimento das competências interacionais; (iii) as práticas de letramento na escola e fora dela; (iv) a seleção e organização dos objetos didáticos; (v) a elaboração e exploração de materiais didáticos; (vi) as modalidades de ensino e de aprendizagem de línguas; (vii) a avaliação e a certificação das competências linguageiras.

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MODALIDADES DE PARTICIPAÇÃO As atividades do evento foram organizadas para permitir que a discussão sobre os subtemas escolhidos seja bastante diversificada, podendo acontecer em forma de debates entre profissionais da área ou até como relatos de experiência. As modalidades são as seguintes: 1. CONFERÊNCIAS (SOMENTE CONVIDADOS) Seis conferencistas convidados abordaram temas como: Teoria e Análise Linguística; Tipologia e Diversidade Linguística; Linguística Histórica e Comparativa; Plurilinguismo e Pluriletramentos; Estudos Culturais e Literatura; Imaginário Amazônico e Construção da Identidade. 2. DEBATES (SOMENTE CONVIDADOS) Quatro debates reuniram pesquisadores, profissionais e/ou responsáveis políticos convidados, de instituições nacionais e internacionais, em torno de questões da atualidade, como: (1) Línguas/culturas ameaçadas de extinção; (2) A renovação do ensino da língua materna no Brasil: avanços, obstáculos e perspectivas; (3) Narrativa latino-americana contemporânea; (4) Literatura e identidade nacional. Foi reservado um tempo para os ouvintes intervirem. 3. MESAS-REDONDAS (SOMENTE CONVIDADOS) Oito mesas redondas, animadas por um mediador, contaram, cada uma, com a participação de 4 pesquisadores, convidados com base nos resumos recebidos, apresentando trabalhos com tema afim e enfoques diferenciados. Foi reservado um tempo para os ouvintes intervirem. 4. SESSÕES DE COMUNICAÇÃO (ABERTO PARA INSCRIÇÕES) Foram definidos 12 subtemas em torno dos quais foram organizadas as diferentes sessões de comunicação. Nelas, os participantes – professores, pesquisadores e alunos de pós-graduação – inscreveram comunicações de resultados de pesquisas acadêmicas. Cada apresentação teve duração de 20 minutos e houve 10 minutos para discussão. 5. PAINÉIS (ABERTO PARA INSCRIÇÕES) As apresentações de painéis são destinadas mais especificamente a divulgar trabalhos de Iniciação Científica de alunos da graduação (Bolsas institucionais PIBIC-CNPq e voluntários) e do Ensino Médio (Programa Institucional de Bolsas de Iniciação Científica Júnior – PIBIC JÚNIOR). 6. SESSÕES DE RELATOS DE EXPERIÊNCIAS (ABERTO PARA INSCRIÇÕES) Pesquisadores, profissionais de diversas áreas e educadores do Ensino Básico puderam apresentar relatos de experiências de trabalho em torno das temáticas do Congresso. O objetivo dessas sessões é de discutir problemas no andamento de pesquisas ou no encaminhamento de propostas de intervenção e de partilhar soluções experimentadas ou sucessos obtidos. Cada relator teve 10 minutos para apresentar sua experiência e houve 10 minutos para discussão. 7. LANÇAMENTO DE LIVROS (ABERTO PARA INSCRIÇÕES) Nestas sessões, seguidas de assinatura das obras, cada autor dispôs de 45 minutos para apresentar e discutir com o público sua obra.

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8. MINICURSOS Minicursos, com duração total de 4h cada, foram ministrados pelos pesquisadores convidados. Obs.: Um mesmo apresentador pôde inscrever uma comunicação, um relato de experiência e um livro para lançamento (unicamente trabalhos acadêmicos), se assim o desejasse. Obs2.: Foi autorizada a apresentação de trabalhos em co-autoria, desde que pelo menos um dos autores esteja presente no evento. Para submeter o resumo à apreciação da Comissão Científica, recomendou-se o seguinte: cada um dos autores devia preencher o formulário de cadastro em seu nome, mas apenas um submetia o resumo. Os outros autores deveriam inscrever uma observação no campo “resumo”: Trabalho apresentado com Fulano – nome completo. PUBLICAÇÃO DE TRABALHOS Os trabalhos aceitos pela Comissão Científica foram publicados nos Anais do evento, que estão disponibilizados no site do evento. Uma seleção dos melhores artigos foi destinada à publicação de um número especial da Revista Moara (Qualis B2 Nacional). Os artigos foram remetidos em arquivo anexado para o e-mail 2ciella@gmail.com, de acordo com as normas da revista expressas em “Normas para publicação” (válidas para conferências, mesas-redondas, comunicações, painéis e relatos de experiência). NORMAS PARA PUBLICAÇÃO DE TRABALHOS NOS ANAIS Para serem incluídos nos Anais do evento, os textos devem impreterivelmente respeitar as seguintes normas: 1. Redigir o texto em português, inglês, francês ou espanhol. 2. Utilizar margens de 3 cm. à esquerda, 2 cm. à direita, 3 cm. na margem superior e 2 cm. na margem inferior em formato de papel A4. 3. O texto digitado deve ter entre 4 mil e 8 mil palavras, incluindo os anexos. 4. Digitar o texto em Word for Windows (edição 6.0 ou superior), fonte Garamond, corpo 12, espaçamento simples entre linhas e parágrafos, em modo justificado. 5. Entre partes do texto e entre texto e exemplos, citações, tabelas, ilustrações etc, utilizar espaço duplo. Para fazer isso, basta redigi-los na segunda linha após o parágrafo anterior. 6. Para texto citado com mais de três linhas, adentrar o texto em 2 cm. e utilizar fonte Garamond, corpo 10. 7. Para texto citado com menos de três linhas, usar aspas no próprio corpo do texto. 8. Para notas de rodapé, usar fonte Garamond, corpo 10. 9. Utilizar paragrafação automática. 10. Apresentar o texto na seguinte sequência: título do artigo, nome(s) do(s) autor(es), resumo na língua do artigo e em alemão, francês, espanhol ou inglês, palavras-chave em português e na outra língua do resumo apresentado, texto, referências e anexos. 11. Digitar o título do artigo centralizado na primeira linha da primeira página com fonte Garamond, tamanho12, em formato negrito, todas as letras maiúsculas. 12. Digitar o(s) nome(s) do(s) autor(es) de forma completa na ordem direta, na segunda linha abaixo do título, com alinhamento à direita, seguido do nome completo da Instituição de filiação, entre parênteses. Letras maiúsculas devem ser utilizadas apenas para as iniciais e para o sobrenome principal. 13. Os resumos devem ser antecedidos pela expressão RESUMO em maiúsculas, seguida de dois pontos, na terceira linha abaixo do nome do autor e sem adentramento. O texto dos resumos segue na mesma linha e deve ficar entre 100 e 150 palavras. Digitá-lo em fonte Garamond, corpo 11. 14. As palavras-chave devem ser antecedidas pela expressão PALAVRAS-CHAVE em maiúsculas, seguida de

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Anais do II Congresso Internacional de Estudos Linguísticos e Literários na Amazônia (CIELLA) dois pontos, na segunda linha abaixo do resumo e duas linhas acima do início do texto. Utilizar entre três e cinco palavras-chave com fonte Garamond, tamanho 11, separadas por ponto e vírgula. 15. Digitar os títulos de seções com fonte Garamond, tamanho12, em negrito. O título da introdução deve ser redigido na terceira linha após as palavras-chave. Os demais títulos, duas linhas após o último parágrafo da seção anterior (pular linha). Os títulos de seções são numerados com algarismos arábicos seguidos de ponto (por exemplo, 1. Introdução, 2. Fundamentação teórica). Apenas a primeira letra de cada subtítulo deve ser grafada com caracteres maiúsculos, exceto nomes próprios. 16. Digitar a primeira linha de cada parágrafo de texto com adentramento. 17. As referências no texto devem ser indexadas pelo sistema autor data. Para citar, resumir ou parafrasear um trecho da página 36 de um texto de 2005 de Pedro da Silva, a indexação completa deve ser (SILVA, 2005, p. 36). Quando o sobrenome vier fora dos parênteses deve-se utilizar apenas a primeira letra em maiúscula. 18. Citações no meio do texto sempre devem vir entre aspas e nunca em itálico. Use itálico para indicar ênfase ou grafar termos estrangeiros. 19. Exemplos de corpora analisados devem vir no padrão de citação. 20. Caso seja necessária transcrição fonética, o autor deve enviar a fonte utilizada juntamente com seu artigo, a fim de que a mesma possa ser instalada para editoração do artigo. 21. Notas devem ser digitadas em rodapé em sequência numérica. Se houver nota no título, marcar com asterisco (*). Não se deve usar nota para citar referência 22. Tabelas, quadros, ilustrações (desenhos, gráficos etc.) devem ser entregues prontos para a editoração eletrônica. Não se admitem ilustrações xerocopiadas. Elas deverão ser devidamente escaneadas e inseridas no texto. Os títulos de figuras devem ser digitados com fonte Garamond, tamanho 12, em formato normal, centralizado. Tabelas, quadros, ilustrações devem ser identificados por legendas. 23. Os anexos devem ser entregues prontos para a editoração eletrônica. Para anexos que se constituem de textos já publicados, o autor deve incluir referência bibliográfica completa. 24. As referências devem ser antecedidas da expressão Referências, em negrito. A primeira referência deve ser redigida na segunda linha abaixo dessa expressão. As referências devem seguir a NBR 6023 da ABNT: os autores devem ser citados em ordem alfabética, sem numeração, sem espaço entre as referências e sem adentramento; o principal sobrenome do autor em maiúsculas, seguido de vírgula e iniciais dos demais nomes do autor. Se houver outros autores devem ser separados uns dos outros por ponto e vírgula; título de livro, de revista e de anais, em itálico; título de artigo: letra normal, como a do texto; se houver mais de uma obra do mesmo autor, seu nome deve ser substituído por um traço de cinco toques; mais de uma obra do mesmo autor no mesmo ano, use uma letra (a, b, ...) após a data. Ordene referências de mesmo autor em ordem decrescente. Exemplos: FERREIRA, M. Morfossintaxe da Língua Parkatêjê. Munique: Lincom-Europa, 2005. FURTADO, M. T. A visão da Amazônia em Euclides da Cunha, Ferreira de Castro e Dalcídio Jurandir. In: XX JORNADA NACIONAL DE ESTUDOS LINGUÍSTICOS – GELNE, 2004, João Pessoa, Paraíba. Anais... João Pessoa, 2004. p.1869-1874. MAGNO E SILVA, W. Estratégias de Aprendizagem de Línguas Estrangeiras – Um Caminho em Direção à Autonomia. Intercâmbio, vol. XV. São Paulo: LAEL/PUC –SP, 2006. Disponível em: Acesso em: 5 set. 2007. PESSOA, F. C. As relações interpessoais nos domínios do contar e fazer contar as narrativas populares da Amazônia paraense. In: MARINHO, J. H. C.; PIRES, M. S. O.; VILLELA, A. M. N. (orgs.). Análise do discurso: ensaios sobre a complexidade discursiva. Belo Horizonte: CEFET-MG, 2007, p. 139-157. SALES, G. M. A. Um público leitor em formação. Moara, Belém, v. 23, p. 23-42, 2006.

INSTITUIÇÃO ORGANIZADORA UFPA – Instituto de Letras e Comunicação (ILC) – Programa de Pós-Graduação em Letras Cidade Universitária Professor José da Silveira Netto Rua Augusto Corrêa, 01 – Guamá – 66.075-900, Belém (PA) Fone/Fax: (91) 3201.7499 E-mail: mletras@ufpa.br Site: http://www.ufpa.br/mletras

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Site oficial do II CIELLA

www.ufpa.br/ciella



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