Edição eletrônica
Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP) Biblioteca do ILC/UFPA-Belém-PA Congresso Internacional de Estudos Linguísticos e Literários na Amazônia (2.: 2009: Belém, PA) Anais [do] II Congresso Internacional de Estudos Linguísticos e Literários na Amazônia [recurso eletrônico] / Congresso Internacional de Estudos Linguísticos e Literários na Amazônia ; organização, Myriam Crestian Chaves da Cunha, Jorge Domingues Lopes. –– Belém: Programa de Pós-Graduação em Letras da UFPA; Curitiba: CRV, 2010. 3v. : il. Conteúdo: v. 1, 2 e 3 – Línguas e Literaturas – Diversidade e Adversidades na América Latina. Modo de acesso: Word Wide Web: <http://www.ufpa.br/ciella/> Congresso realizado na Cidade Universitária Professor José da Silveira Netto da Universidade Federal do Pará, no período de 6 a 8 de abril de 2009. ISBN 978-85-8042-640-3 1. Lingüística – Discursos, ensaios e conferências. 2. Literatura – Discursos, ensaios e conferências. 3. Estudos Culturais – Discursos, ensaios e conferências. I. Cunha, Myriam Crestian Chaves da (Org.). II. Lopes, Jorge Domingues, (Org.). III. Título. I. Título. CDD-20.ed. 410
UNIVERSIDADE FEDERAL DO PARÁ Carlos Edilson de Almeida Maneschy Reitor Horácio Schneider Vice-Reitor Marlene Rodrigues Medeiros Freitas Pró-Reitora de Ensino de Graduação Emmanuel Zagury Tourinho Pró-Reitor de Pesquisa e Pós-Graduação Fernando Arthur de Freitas Neves Pró-Reitor de Extensão Edson Ortiz de Matos Pró-Reitor de Administração João Cauby de Almeida Júnior Pró-Reitor de Desenvolvimento e Gestão de Pessoal Erick Nelo Pedreira Pró-Reitor de Planejamento Flávio Sidrim Nassar Pró-Reitor de Relações Internacionais
INSTITUTO DE LETRAS E COMUNICAÇÃO Luiz Roberto Vieira de Jesus Diretor Geral Rosa Maria de Sousa Brasil Diretora Adjunta PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM LETRAS Sílvio Augusto de Oliveira Holanda Coordenador Marília de Nazaré de Oliveira Ferreira Vice-Coordenadora
COMISSÃO ORGANIZADORA DO EVENTO Dr. José Guilherme dos Santos Fernandes Presidente da comissão organizadora Docente do Programa de Pós-Graduação em Letras
Dra. Myriam Crestian Cunha Coordenadora do Programa de Pós-Graduação em Letras
Dra. Carmen Reis Rodrigues Docente do Programa de Pós-Graduação em Letras
Dra. Gessiane Lobato Picanço Bolsista de Desenvolvimento Científico Regional (FAPESPA/CNPq), afiliada ao Programa de Pós-Graduação em Letras
Dra. Valéria Augusti Bolsista de Desenvolvimento Científico Regional (FAPESPA/CNPq), afiliada ao Programa de Pós-Graduação em Letras
ORGANIZAÇÃO DOS ANAIS Myriam Crestian Cunha Jorge Domingues Lopes Secretaria do PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM LETRAS Eduardo Antonio Ribeiro de Brito (Secretário) Amanda Faustino de Pinho (Bolsista)
UFPA / Instituto de Letras e Comunicação Programa de Pós-Graduação em Letras Cidade Universitária Professor José da Silveira Netto Rua Augusto Corrêa, 01, Guamá CEP 66.075-900, Belém - PA Fone-Fax: (91) 3201-7499 E-mail: mletras@ufpa.br Site: www.ufpa.br/mletras
Apresentação
O
Congresso Internacional de Estudos Linguísticos e Literários na Amazônia (CIELLA) é um evento bianual que resultou do bom desenvolvimento e projeção de um tradicional encontro intitulado Jornada de Estudos Linguísticos e Literários (JELL), promovido pelo Programa de Pós-Graduação em Letras da Universidade Federal do Pará (UFPA) durante 10 anos consecutivos. O II CIELLA tem como tema principal “Línguas e Literaturas: diversidade e adversidades na América latina”. O objetivo do encontro é integrar os pesquisadores da área de estudos linguísticos, literários e culturais implicados na discussão de problemas característicos do contexto latinoamericano e na busca de soluções diferenciadas, oportunizando o diálogo com os demais atores sociais envolvidos, de modo a favorecer a elaboração de propostas político-educacionais diversificadas. Como evento acadêmico, o II CIELLA volta-se para professores universitários, pesquisadores, estudantes de Graduação e Pós-Graduação de instituições locais, nacionais e internacionais. Assinalamos que o evento caracterizase também por estabelecer um diálogo com profissionais e gestores interessados nas repercussões econômicas, políticas e sócio-culturais dessas pesquisas. Além disso, abre-se, de forma pioneira, na Região Norte, para estudantes de Ensino Médio, participantes do Programa Institucional de Bolsas de Iniciação Científica Júnior da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado do Pará. Essa dinâmica, congregando vários atores sociais, pretende estabelecer intercâmbio efetivo entre a academia e as comunidades envolvidas, garantindo maior circulação dos resultados de pesquisas. Comissão Organizadora do II CIELLA
© 2010 Programa de Pós-Graduação em Letras da UFPA A reprodução parcial ou total desta obra é permitida, desde que a fonte seja citada. COMISSÃO CIENTÍFICA Abdelhak Razky, UFPA Ana Carla dos Santos Bruno, INPA Andrea Ciacchi, UFPB Christophe Golder, UFPA Daniel dos Santos Fernandes, IDEPA / Faculdade Ipiranga Germana Maria Araújo Sales, UFPA Heraldo Maués, UFPA Joel Cardoso da Silva, UFPA José Carlos Chaves da Cunha, UFPA José Carlos Paes de Almeida Filho, UnB Lindinalva Messias do Nascimento Chaves, UFAC Luís Heleno Montoril del Castilo, UFPA Maria Aparecida Lopes Rossi, UNITAU Maria do Socorro Galvão Simões, UFPA Maria Risolêta da Silva Julião, UFPA Mário César Leite, UFMT Marcello Moreira, UESB Marília de N. de Oliveira Ferreira, UFPA Marilúcia Barros de Oliveira, UFPA Marli Tereza Furtado, UFPA Sidney da Silva Facundes, UFPA Sílvio Augusto de Oliveira Holanda, UFPA Simone Cristina Mendonça de Souza, UF de Viçosa Thomas Massao Fairchild, UFPA
COMISSÃO DE APOIO Coordenação: Thayana Albuquerque. Adriana Oliveira, Adrielson Barbosa, Alex Moreira, Alice Oliveira, Aline Silva, Aline Souza, Ana Maria de Jesus, Ana Paula Silva, Anny Linhares, Brenda Lima, Bruna Pimentel, Carla Guedes, Crystian Alfaia, Daniele Chaves, Edimara Santos, Eduardo Lopes, Elma Lima, Eveline Nascimento, Fabiana Silva, Gézika Ferreira, Glaciane Serrão, Jonatas Silva, Josemare da Silva, Joyce Costa, Jucineide Ribeiro, Kelly Souza, Layse Oliveira, Maria Elisabete Blanco, Maria Iracema Lima, Marla de Abreu, Martha Luz, Maxwell Maciel, Mayara Rocque, Michela Garcia, Natália Magno, Nathalia Carvalho, Nilsineia Simões, Ordilene Souza, Patrícia Martins, Patrick Pimenta, Paulo Alberto dos Santos, Phillippe Souza, Priscila Castro, Rafaela Margalho, Raicya Coutinho,Samara Queiroz, Sara Costa, Shirlene Ribeiro, Shirley Silva, Tayana Barbosa, Thiago Nascimento, Thiago Souza, Wladimilson Mota.
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PROJETO GRÁFICO, EDITORAÇÃO ELETRÔNICA E CAPA Jorge Domingues Lopes (jdlopes@ufpa.br)
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Sumário 865
Violência e alteridade em A hora e vez de Augusto Matraga Marcellus da Silva VITAL
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Paisagem e literatura em Mia Couto: O viés da identidade Márcia Manir Miguel FEITOSA
879
Análise do aspecto (inter) cultural em um manual de português brasileiro para estrangeiros Marcos dos Reis BATISTA
893
Planejamento e execução de atividades interculturais na aula de português para estrangeiros Marcos dos Reis BATISTA
903
Às margens do jornal, às margens do Diário: Forma literária e processo social em Triste Fim de Policarpo Quaresma Marcos Vinícius SCHEFFEL
917 De instrutor a educador: Uma abordagem multicultural Margarete de Oliveira Santos NOGUEIRA Isabel Patrícia Mercado de FAUSTINO 923
Selecionar livros didáticos para uso em escolas de idiomas: Uma tarefa nada fácil Maria Amélia Carvalho FONSECA
933
A construção de sentido na interação entre pessoas de competências comunicativas distintas: Oralidade x escrita Maria da Guia Taveiro SILVA
943
A questão dos gêneros híbridos: Considerações a partir de uma análise de casos em gêneros promocionais Maria Lourdilene VIEIRA
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Jornal Gazeta Official e a (in)formação do literário na Belém do século XIX Maria Lucilena Gonzaga COSTA
969
Julio Cortázar: Um antropófago latino-americano? Maria Luiza Teixeira BATISTA
977
As construções do sentido de violência nas práticas culturais do Sertão Central do Ceará Maria Mônica Ramos de MELO Claudiana Nogueira de ALENCAR
983
Marcas de ironia no Jornal de Tímon, de João Francisco Lisboa Maria Rita SANTOS
993
O ensino de língua inglesa: A leitura de gêneros textuais como proposta de letramento Marília dos Santos BORBA
1003
A construção de ideologias machistas na prática cultural do forró Marília Pinheiro RIBEIRO Claudiana Nogueira de ALENCAR
1013
Oralidade e escrita na poesia de Manoel de Barros Marinei ALMEIDA
1023
A representação da pobreza social na ficção brasileira do Oiapoque ao Chuí Marisa de Assis SOUZA
1035 Dalcídio Jurandir: A Amazônia na construção de um projeto estético-ideológico Marlí Tereza Furtado 1043
Polifonia no hipertexto: Uma análise discursiva Naira Augusta Pedroso de SOUSA
1057
A memória e tradição amazônica na composição das narrativas do acervo IFNOPAP Natasha Queiroz de ALMEIDA
1067
As práticas voltadas para a motivação e autonomia dos aprendentes na leitura e escrita em língua materna Nelma do Socorro Santana QUEIROZ
1087
Educação global através do ensino de línguas Nilton HITOTUZI
1103
Direitos humanos na contemporaneidade Paolo TARGIONI
1111
Monteiro Lobato: Um escritor a ser redescoberto na sala de aula Patrícia Aparecida Beraldo ROMANO
1121
As folhas literárias do Jornal do Pará (1862-1878) Patrícia Carvalho MARTINS Germana Maria Araújo SALES
1131
A hesitação e a construção de imagem no gênero entrevista Patrícia de Castro JOUBERT
1139
Oralidade e escrita em contextos diversos Paula de Carvalho FERREIRA
1153
Chico Buarque de Hollanda: A palavra e o poeta Paula Cristhiane da Silva OLIVEIRA
1165
O processo argumentativo no editorial Paulo da Silva LIMA
1173
O próprio e o alheio em El Delirio de Turing: Realismo mágico e ficção cyberpunk no romance de Edmundo Paz Soldán Rodolfo Rorato LONDERO
1187
Poesia brasileira e música atonal Rodrigo de Albuquerque MARQUES
1194
A recepção crítica em Darandina e Os cimos de Primeiras Estórias Rosalina Albuquerque HENRIQUE Sílvio Augusto de Oliveira HOLANDA
1203
Guimarães Rosa e a crítica italiana: o caso de Ettore Finazzi-Agrò Sílvio Augusto de Oliveira HOLANDA
1211
Arthur Azevedo e os seus Contos Ligeiros: Cotidiano e (in)fidelidades na Belle Époque fluminense Tatiana Oliveira SICILIANO
1222
O ensino de língua portuguesa e o desenvolvimento de competências e habilidades Teresa Cristina NASCIMENTO
1233
E foi quando Shakespeare caiu no boi-bumbá: No limiar entre arte e cultura popular Thales Branche Paes de MENDONÇA
1245
A forma e o papel das revistas na produção de sentidos da escolarização dos role-playing games (rpgs) Thomas Massao FAIRCHILD
1259
As intercessões entre literatura e cinema a partir de uma leitura do romance Em câmera lenta Veridiana Valente PINHEIRO Tânia Sarmento PANTOJA
1265
Da página de papel ao papel higiênico: Textos fecais na obra de Rubem Fonseca e Patrícia Melo Vinícius Carvalho PEREIRA
1277
Livros didáticos de português: Instrumentos de naturalização ou mudança linguística? Yana Liss Soares GOMES
1289
SOBRE O II CIELLA
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VIOLÊNCIA E ALTERIDADE EM A HORA E VEZ DE AUGUSTO MATRAGA
Marcellus da Silva VITAL (Mestrando em Letras — Universidade Federal do Pará) Prof. Dr. Sílvio Augusto de Oliveira HOLANDA (Orientador — Universidade Federal do Pará)
RESUMO: A violência é um elemento que está — intrinsecamente relacionado ao universo rosiano, local em que o “direito codificado”, quase sempre, cede espaço para os códigos e para as leis instauradas por aqueles que foram empossados pelo prestígio social, ou pelo uso da “violência legalizada”, ou ainda, pelo cumprimento de honrados acordos interpessoais: coronéis, jagunços, bandidos etc. Amparado pela influência social — herança oligárquica deixada por seu pai —, o coronel Nhô Augusto, personagem central de “A hora e vez de Augusto Matraga”, nono e último conto de Sagarana (1946), faz da violência o seu instrumento de materialização dos desejos e, também, seu elemento mantenedor do respeito e da aceitação social. Seu comportamento arbitrário — que não respeita sentimentos e muito menos importa-se com posicionamentos éticos —, torna-se uma constante, e não um desvio de regra, em uma região onde a conduta violenta é quem dita as regras a serem seguidas. Portanto, analisar os motivos legitimadores da violência no sertão de “A hora e vez de Augusto Matraga”, é o objetivo do estudo proposto, tendo como embasamento teórico, principalmente, a análise crítica desse conto de Guimarães Rosa, realizada pelo antropólogo Roberto DaMatta. PALAVRAS-CHAVE: Guimarães Rosa, violência, “A hora e vez de Augusto Matraga”.
ABSTRACT: The violence is an element that intrinsically is related to the rosiano universe, local where the “codified right”, almost always, yields space for the codes and the restored laws by that they had been installed by social prestige, or for the use of the “legalized violence”, or still, for the fulfilment of honored interpersonal agreements: colonels, “jagunços”, outlaws etc. Supported for the social influence — oligarchical inheritance left by its father —, August Nhô colonel, central personage of “A hora e vez de Augusto Matraga”, nineth and last story of Sagarana (1946), takes of the violence as instrument of materialization of the desires and, also, its mantenedor element of the respect and the social acceptance. Its arbitrary behavior — that it does not respect feelings much less imports with ethical positionings —, a constant becomes, and not a rule shunting line, in a region where the violent behavior is who said the rules to be followed. Therefore, to analyze the reasons of the violence in the hinterland of “A hora e vez de Augusto Matraga”, is the objective of the considered study, having as theoretical basement, mainly, the critical analysis of this story of Guimarães Rosa carried through for the anthropologist Robert DaMatta. KEY WORDS: Guimarães Rosa, violence, “A hora e vez de Augusto Matraga”.
Anais do II Congresso Internacional de Estudos Linguísticos e Literários na Amazônia (CIELLA)
1. Introdução Dos nove contos pertencentes ao livro Sagarana, — cuja primeira edição data de 1946 —, o último conto, intitulado “A hora e vez de Augusto Matraga”, obteve uma recepção crítica maior do que a dos demais contos contidos na primeira incursão de Guimarães Rosa no campo literário. Neste conto, o criador de “Recado do Morro” nos apresenta a trajetória de encontro pessoal e religioso do personagem Augusto Esteves, homem que, diante de uma condição social privilegiada, apóia-se na força do poder e na conveniência das influências para fazer valer seus caprichos. Em determinado momento de sua vida, vem a perder tudo o que possuía. Por vingança de alguns desafetos, vê-se vítima de um brutal atentado, chegando a ser dado como morto após cair de uma ribanceira. Consegue sobreviver e é acolhido por um casal que morava em um humilde rancho. Augusto Esteves recebe os tratamentos necessários, conseguindo recobrar sua consciência. Após experimentar tamanha provação, decide expurgar-se. Torna-se um penitente e renuncia a tudo o que lhe encaminhava ao prazer. Por fim, sacrificando-se, vale-se da violência para salvar a vida de uma pessoa inocente. 2. Violência e Alteridade A violência é um elemento que está inseparavelmente associado ao sertão rosiano. Local em que o “direito codificado” não tem valia, o território recriado pelo escritor é propício para a circulação daqueles que tendem a respeitar somente os códigos de honra criados pelos seus pares: jagunços, coronéis, bandidos, capangas, boiadeiros, criminosos etc. Portanto, certos personagens que povoam as narrativas de Guimarães Rosa dão aplicabilidade às suas próprias leis e, quase sempre, lançam mão da coação para materializar suas vontades. No estudo intitulado “Os vastos espaços”, o professor Paulo Rónai aborda “o cenário e o substrato social” formadores do universo rosiano, destacando o comportamento violento e arbitrário que impera neste cenário Nos intervalos das fazendas ocultam-se arraiais pobres, de reduzida povoação [...] sem quaisquer recursos de organização social. A lei do mais forte — a única existente — é exercida na fazenda sob formas paternalísticas pelo dono, assistido, para o que der e vier, dos rifles certeiros de alguns capangas; nas vilas, pelos valentões do lugar, detestados e temidos; nas escassas cidadezinhas, pela polícia local, que para fazerse respeitar, tem de pedir emprestados os métodos da arbitrariedade. (RÓNAI, 1968, p. XXXIV)
Walnice Galvão, em seu livro, As Formas do Falso (1972), analisa a condição do sertão enquanto local da violência e afirma que “destituído de formas organizatórias e institucionais que regulamentem suas relações [...], os conflitos, por mínimos que sejam, só podem ser resolvidos mediante a violência” (GALVÃO, 1972, p. 39). Capaz de interferir na vida e na formação de personagens residentes no sertão, a violência transita pelos contos presentes em Sagarana como um instrumento manuseado pela vontade dos homens e, por vezes, guiada pelas incertezas do destino. Filho do Coronel Afonsão Esteves, Augusto Esteves demonstra ser um habitual utilizador da violência como mecanismo capaz de impor o respeito diante do povo do arraial do Murici. Amparado pelo poder que transgride as normas legais da lei, o filho de Afonso Esteves é uma cria do chamado Coronelismo. Tendência política praticada no período histórico que se estendeu entre as décadas de 30 e 40 do século XX, em que o controle do poder político-social permaneceu sob a tutela de coronéis rurais, principalmente na região do sertão brasileiro. Uma vez empossado do título de “Nhô” (“senhor”) — cujo reconhecimento social faz-se necessário para sua valia —, Augusto Esteves passa a ocupar uma posição de prestígio na formação do cenário da sociedade o qual está inserido. Como forma de salvaguardar posição social tão visada, Nhô Augusto, das Pindaíbas, tem consigo um grupo de cacundeiros armados, capangas mantenedores do reconhecimento e do prestígio de seu chefe.
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Volume 3
Tema geral: Línguas e Literaturas: Diversidade e Adversidades na América Latina
Os cacundeiros pertencem à classe dos homens livres, porém tornam-se dependentes do senhor que os acolheu, pois nasceram à margem de tudo, desprovidos de qualquer pertencimento social. Walnice Galvão afirma que este homem “livre”, enquadrado em uma plebe rural, é [i]nconsciente de seu destino, e por isso mesmo te[m] seu destino determinado por outrem. Sem nada a defender, e por isso mesmo usado para defender causas alheias. Avulso de móvel, e por isso mesmo chefiado autoritariamente e fixado em sua posição de instrumento. (GALVÃO, 1972, p. 42)
Contudo, a relação entre Nhô Augusto e seus capangas é extremamente delicada, já que a prestação de serviços só existe enquanto aquele que comanda mantiver os acordos monetários selados com os que o seguem. Logo, nessa relação inexistem valores como honra, respeito e muito menos a admiração legítima, pois trata-se de uma relação contratual, meramente financeira. Na ocasião em que Nhô Augusto se vê desprovido de poder e prestígio — “com dívidas enormes, política do lado que perde, falta de crédito, as terras no desmando, as fazendas escritas por paga” (ROSA, 2006, p. 346) —, todos os seus capangas voltam as costas para ele. Nesse instante passam a pertencer ao grupo de seguidores do fazendeiro Major Consilva, desafeto declarado da família Esteves e principal responsável pela queda do filho do Coronel Afonsão Esteves. A exceção cabe ao personagem Quim Recadeiro, o único dos capangas que não se voltou contra Nhô Augusto no momento em que este precisou de ajuda. Não queriam ficar mais com Nhô Augusto... O Major Consilva tinha ajustado, um e mais um, os quatro, para seus capangas, pagando bem. Não vinham, mesmo. O mais merecido, o cabeça, até mandara dizer, faltando ao respeito: — Fala com Nhô Augusto que sol de cima é dinheiro! ... P’ra ele pagar o que está nos devendo... E é mandar por portador calado, que nós não podemos escutar prosa de outro, que seu Major disse que não quer. [...] Onde é que eles estão? — Indo de mudados; p’ra a chácara do Major... (ROSA, 2006, p. 350)
Homem de temperamento explosivo, Nhô Augusto aparenta não se importar com o sentimento das pessoas, fazendo da relação com o Outro um mero instrumento para seu entretenimento. Lido sob a ótica do pensamento dialógico1 de Martin Buber (1878-1965) — centrado no sentido do humano e na sua relação com outro e com o mundo —, o não-reconhecimento do Outro enquanto Ser será a tônica do primeiro momento do conto “A hora e vez de Augusto Matraga”, quando se dá o declínio do, até então, poderoso proprietário de terras Nhô Augusto. O comportamento arbitrário de Augusto Esteves não é de se causar estranheza. A formação de sua personalidade deu-se em um ambiente impregnado por valores patriarcais e religiosos e pautado por princípios morais excludentes, tratados como corretos no meio social em que o personagem se criou. Valores que podem ter corroborado para que o filho de um coronel decidisse se comportar à maneira dos coronéis. No início do conto, ao comprar uma jovem em um insólito leilão paroquial, Nhô Augusto não apenas prova para todos os presentes no evento que não há como medir forças com ele, como, também, faz desse momento um divertimento para si e um tormento para outros “convidados”. A aquisição da moça batizada de Tomázia — e apelidada de Sariema por possuir pescoço e pernas muito finas — não passa de um capricho do Coronel. Do momento do arremate até o breve instante em que estiveram juntos, a jovem foi humilhada até ser abandonada aos prantos. Segundo Esteves, ela era “só osso”, “peixe cozido sem tempero”, “uma sombração”, “um frango-d’água”. Um “capiau de cara romântica”, apaixonado pela jovem Tomázia, também recebeu sua dose de humilhação durante o inusitado leilão. Não possuindo dinheiro suficiente para cobrir o lance de cinquenta mil-reis de Nhô Augusto, restou ao capiau aproveitar-se de um momento de confusão para tentar levar a moça consigo, todavia Nhô Augusto separou-os, com uma pranchada de mão: — Não vai, não! E, atrás, deram apoio os quatro guarda-costas: Tem areia! Tem areia! Não vai, não! [...] O capiauzinho ficou mais amarelo. A Sariema O dialógico é para Buber a forma explicativa do fenômeno do inter-humano. Inter-humano implica a presença ao evento de encontro mútuo. Presença significa presentificar e ser presentificado. Reciprocidade é a marca definitiva da atualização do fenômeno da relação. O “entre” é assim considerado como a categoria ontológica onde é possível a aceitação e a confirmação ontológica dos dois pólos envolvidos no evento da relação. (ZUBEN, 2006, p. 34)
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Anais do II Congresso Internacional de Estudos Linguísticos e Literários na Amazônia (CIELLA) começou a querer chorar. Mas Nhô Augusto, rompente, alargou no tal três pescoções: — Toma! Toma! E toma! ... Está querendo? [...] Foi o capiauzinho apanhando, estapeado pelos quatro cacundeiros de Nhô Augusto (ROSA, 2006, p. 343)
Não diferente é o tratamento dispensado à sua esposa Dionóra e à sua filha Mimita. Cansada do descaso e do comportamento prepotente do marido — que passa mais tempo na companhia de mulheres à toa e ao lado de seus capangas —, cogita-se em seu coração a possibilidade de fugir com outro homem para a região do Morro Azul. Resoluto, Ovídio Moura tenta convencê-la a abandonar o marido para viver vida nova ao seu lado. Certo de que está fazendo o melhor para a pequena Mimita e sua mãe, Ovídio manda avisar que “Dionóra não quer viver mais com ele [Augusto Esteves], e que ela de agora por diante vai viver comigo, [...] com a benção de Deus!” (ROSA, 2006, p. 348). Além dessa notícia, Quim Recadeiro informa que os capangas do chefe agora trabalhavam para o Major Consilva. Mesmo destituído de todo seu poder, Nhô Augusto não reconhece sua perda de prestígio social e parte para a chácara do Major Consilva com o intuito de vingar sua honra maculada. O temor e o respeito alheio não mais existem, pois agora o Coronel Augusto Esteves é nivelado por baixo pelos inimigos e pela sociedade. Momento propício para que a violência seja usada contra aquele que sempre fez dela sua lei, “estão dizendo que o senhor nunca respeitou filha dos outros nem mulher casada, e mais que é que nem cobra má, que quem vê tem de matar por obrigação” (ROSA, 2006, p. 350). Recepcionado à base do porrete, Augusto Esteves logo é dominado pelos homens do Major. Dentre eles, cheio de ódio, o “capiauzinho mongo” apaixonado pela Sariema. Sob a ordem do Major Consilva, Esteves é levado para o rancho do Barranco, longe da chácara, e deve ser marcado a ferro antes de ser executado. Os pertences da família Esteves agora agregam-se às posses do Major. O poderoso Nhô Augusto, das Pindaíbas, já não existe mais. Por méritos violentos — respeitando uma hierarquia civil que se utiliza de patentes militares —, gradua-se a Coronel o Major. Na realidade social do Sertão, local em que os personagens estão inseridos, considerar o uso da violência é considerar a possibilidade da concretização de ambições que, possivelmente, jamais se realizariam por outras vias “legais”. Para Ettore Finazzi-Agrò, em estudo dedicado à obra rosiana, Considerar a violência significa, nesse sentido, pensar naquela coisa impensável que torna a força (vis) domínio sobre o outro, endereçando a potência rumo ao poder, transformando-a em pré-potência (isto é, “potência sobre” alguém), mudando ou corrompendo aquilo que é pura energia, vontade de fazer, em atitude violenta, em prática impura de subjugação e de submissão. (FINAZZI-AGRÒ, 2001, p. 184)
Completando o ritual de humilhação, Nhô Augusto é marcado a ferro. Para que se lembre do seu novo lugar nesse “palco de violência”, carregará em sua carne o “triângulo inscrito numa circunferência”. Símbolo de conotação possessiva, esse sinal é utilizado pelo Major Consilva para identificar seus animais. Após rolar ribanceira abaixo, Augusto Esteves é dado como morto pelos capangas do Major. Contudo, sobrevive e é acolhido por um casal de pretos velhos. Rebaixado à condição de nada, Esteves vira Matraga. Segundo Roberto DaMatta, “[...] quando está investido no papel de Matraga, o homem nada mais é na estrutura e na ordem social” (DAMATTA, 1997, p. 317). Enquanto Matraga, Augusto Esteves vê-se diante de uma nova realidade. Inserido num um espaço social diferente do qual estava habituado, procura afastar-se de tudo o que lhe remeta às tentações da vida anterior. Vivendo entre o medo e o anonimato, em meio à pobreza, ocupa-se com trabalhos solidários, apega-se a orações, vive sob o manto da humildade. Processo gradativo que culmina na recusa consciente das formas de violência — quer seja para com o Outro, quer seja para consigo —, forma de obtenção do perdão divino e busca do legítimo reconhecimento social. Inicia-se, então, a preparação para a hora e vez de Augusto Matraga. A relação com o Outro perde o tom de instrumentalização, transformando objeto em sujeito, proporcionando ao penitente Matraga a felicidade de perceber a gratidão verdadeira advinda daqueles que o orbitam. A aceitação social torna-se genuína, fazendo com que Augusto Matraga não queria retornar para o lugar onde ocupava uma posição de superioridade. Decide permanecer na “zona intermediária e alternativa que o ‘sertão’ representa na obra de Rosa, como lugar do nem lá nem cá [...]
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Volume 3
Tema geral: Línguas e Literaturas: Diversidade e Adversidades na América Latina
equivale ao limem, à margem, ao cangaço: aos universos invertidos onde as alternativas são possibilidades reais” (DAMATTA, 1997, p. 320-321). Humanizando-se, Matraga desiste do seu projeto de vingança, que incluía acabar com o Major Consilva e seus seguidores, honrando a morte do valoroso Quim Recadeiro e resgatando sua dignidade e poder; além de tirar a vida sua esposa e do seu amante. Contudo, o processo de renúncia de Matraga não está imune às tentações, que surgem como situações aflitivas tentando seduzi-lo. Uma provação significativa surge a partir de um convite feito pelo jagunço Joãozinho Bem-Bem. Convidado a ingressar no bando do renomado jagunço, Matraga reluta e acaba declinando à tão tentadora convocação — Mano velho, o senhor gosta de brigar, e entende. Está-se vendo que não viveu sempre aqui nesta grota, capinando roça e cortando lenha... Não quero especular coisa de sua vida p’ra trás, nem se está se escondendo de algum crime. Mas, comigo é que o senhor havia de dar sorte! Quer se amadrinhar com meu povo? Quer vir junto? — Ah, não posso! Não me tenta, que eu não posso, seu Joãozinho Bem-Bem... (ROSA, 2006, p. 372)
Ao dar entrada no bando de Bem-Bem, Matraga poderia reaver tudo o que haviam lhe tomado. Mais uma vez, valendo-se do poder proveniente da violência e amparado pelo poder do bando de Joãozinho Bem-Bem, Augusto Esteves alçaria vôos jamais imaginados. Sua recusa denota não apenas seu comprometimento com os novos princípios ético-religiosos, mas demonstra que o ser humano pode optar por mecanismos não violentos como solução para seus conflitos. Mesmo estando inserido em um meio social que, quase sempre, acaba legitimando a efetivação da violência, Matraga “rompe com ele, abrindo caminho para fora (e não mais para dentro da sociedade), tornando-se mais e mais individualizado” (DAMATTA, 1997, p. 325). Ao cortar o laço com sua antiga realidade social, Matraga torna-se indivíduo perante outros indivíduos. Lidar com as consequências que brotam no caminho por ele escolhido, após receber seu batismo de fogo, torna-se uma tarefa árdua para o renovado Augusto Esteves. Ainda assim, é importante frisar que o caminho trilhado possui veredas que retomam vias anteriormente não escolhidas e caminhos aparentemente já trilhados. Ironicamente, o personagem central do conto de Rosa é levado ao encontro daquilo que mais tentou se afastar durante seus dias de penitente: a violência. Acreditando ter findado seu ciclo ao lado de seus salvadores, Matraga decide partir em busca de novas experiências existenciais. Eis que se depara com Joãozinho Bem-Bem e seus homens prestes a executar um pobre velho. O mesmo receberá a punição no lugar do filho, que tirou a vida do jagunço Juruminho, à traição. Matraga intervém em favor do velho, pedindo para o “mano velho” poupar a vida daquela pobre criatura. Como a diplomacia e as palavras de apelo não surtiram efeito contra a lei lavrada pelos jagunços, restou a Augusto Esteves empunhar as armas em defesa do semelhante. Rompendo sua abnegação, lança mão da violência para reorganizar a ordem instaurada. Desta vez, não em proveito próprio do Eu, mas buscando preservar o direito de viver do Outro, salvaguardado sua integridade física. Prova maior de desprendimento pessoal e reconhecimento de que vida de um inocente deve ser preservada. Como um demônio, Augusto Matraga extermina um a um os sequazes de Bem-Bem, vindo a falecer juntamente com seu “mano velho” ao término de um honrado duelo de facas. Uma sensação de paz interior inunda o peito de Matraga, levando-o a crer que havia chegado sua hora e vez Então, Augusto Matraga fechou um pouco os olhos, com sorriso intenso nos lábios lambuzados de sangue, e de seu rosto subia um sagaz contentamento. Dai, mais, olhou, procurando João Lomba, e disse, agora sussurrado, sumido: — Põe a benção na minha filha... seja lá onde for que ela esteja... E, Dionóra... Fala com a Dionóra que está tudo em ordem! Depois, morreu. (ROSA, 2006, p. 389)
3. Conclusão Diante da realidade do Sertão recriado por Guimarães Rosa em suas obras — realidade que norteia a conduta dos personagens que habitam “A hora e vez de Augusto Matraga” e guia os muitos personagens que compõem os contos de Sagarana —, nos interessa compreender que a legitimação da
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violência decorre das múltiplas formas de percepção da ordem que se quer estabelecer. De instrumento legitimador de poder à tabua de salvação, a violência está presente nesse território ausente da lei instaurada pelo “direito codificado”. Assim, abre-se espaço para que leis pessoais sejam forjadas para beneficiar os que detêm o poder, em detrimento dos interesses de uma coletividade social. Mesmo em face da constante imolação ao qual se entregou o personagem, a relação com a violência ainda se torna possível, pois a mesma encontra-se em estado de latência, ansiosamente aguardando a um chamado. Valer-se da violência como forma de suplantar uma violência maior é o meio encontrado por Matraga para salvaguardar a vida de outrem. Sua atitude derradeira dignifica-o perante a sociedade e abre possibilidades, inclusive, para a leitura de um possível acolhimento celestial, mediante o comportamento mais humanizado iniciado após sua derrocada sócio-moral. Contudo — ainda que em nome de valores morais e religiosos —, valer-se da violência como instrumento mantenedor da ordem e da paz parece ir de encontro com a idéia de humanização, uma vez que toda e qualquer forma de violência tende a ferir os direitos humanos. Portanto, a possibilidade da criação de novos caminhos dentro da estrutura social é uma realidade possível. Todavia, rompendo com regras pré-estabelecidas, aquele que renuncia enquadrase na condição de “Matraga”, vivendo no limiar da transgressão ou da submissão às leis instauradas no Sertão. Ao optar pela tentativa de reestruturação do sistema vigente — inclusive reaplicando uso da violência para tal propósito —, tende-se a reduzir o espaço de ação dos detentores do poder e, consequentemente, se limpa o campo para a possível entrada da lei e da ordem legalizada. Ao executar Bem-Bem, Matraga, mesmo que inconscientemente, deixa sua parcela de contribuição para o fim das leis instauradas na ordem dos jagunços. Referências BUBER, Martin. Eu e Tu. São Paulo: Centauro, 2006, 152 p. DAMATTA, Roberto. “Augusto Matraga e a hora da renúncia”. In: Carnavais, Malandros e Heróis. Rio de Janeiro: Rocco, 1997, p. 305-334. FINAZZI-AGRÒ, Ettore. “A força e o abandono”. In: Um lugar do tamanho do mundo. Belo Horizonte: UFMG, 2001, p. 183-199. GALVÃO, Walnice Nogueira. As formas do falso. São Paulo: Perspectiva, 1972. 136 p. RÓNAI, Paulo. “Os vastos espaços”. In: Primeiras estórias. 4.ed. Rio de Janeiro: José Olympio, 1968. p. XXIX – LVII. ROSA, Guimarães. Sagarana. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2006. 416 p. ZUBEN, Newton Aquiles Von. “Eu e Tu, de uma ontologia da relação a uma antropologia do interhumano”. In: Eu e Tu. Paulo: Centauro, 2006, p. 29-51.
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PAISAGEM E LITERATURA EM MIA COUTO: O VIÉS DA IDENTIDADE Márcia Manir Miguel FEITOSA (Universidade Federal do Maranhão)
RESUMO: O presente trabalho tem por objetivo a abordagem da produção em prosa do escritor moçambicano Mia Couto, mais especificamente os romances Terra sonâmbula, publicado em 1992, e Um rio chamado tempo, uma casa chamada terra, lançado em 2002, à luz da teoria da percepção da paisagem, em que pese a interrelação entre espaço geográfico, representação literária e afirmação da identidade. Será dada ênfase ao estudo da categoria espaço em sua estreita identificação com a percepção, atitudes e valores do meio ambiente a partir de reflexões desenvolvidas pelo renomado geógrafo chinês Yi-Fu Tuan nas obras Topofilia: um estudo da percepção, atitudes e valores do meio ambiente e Espaço e lugar: a perspectiva da experiência. PALAVRAS-CHAVE: percepção; paisagem; espaço; identidade.
ABSTRACT: This work has the objective to approach the production in prose of the mozambican writer Mia Couto, more specifically the novels Terra sonâmbula, published in 1992, and Um rio chamado tempo, uma casa chamada terra, published in 2002, by the light of the theory of the perception of the landscape, that shows the relation between geographic space, literary representation and statement of identity. It will give emphasys to the study of the space category in its light identification with the perception, attitudes and values of the environment by reflexions developed by the renowned chinese geographer Yi- Fu Tuan on the masterpieces Topofilia: um estudo da percepção, atitudes e valores do meio ambiente and Espaço e lugar: a perspectiva da experiência. KEY WORDS: perception; landscape; space; identity.
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1. Introdução Desde o período pré-socrático, os estudos em torno da teoria da percepção têm sido palco de investigação cuidadosa, tendo atingido na modernidade seu apogeu, seja nos campos da Psicologia, Antropologia, Teoria da Arte, Arquitetura e Geografia. As investigações, na maioria das vezes, têm se concentrado na interrelação entre as comunidades humanas e seus ambientes, quer sejam naturais, quer construídos. Para o filósofo e geógrafo chinês Yi-Fu Tuan, um dos mais destacados estudiosos da percepção na modernidade, é preciso pensar a geografia humanística na sua composição afetiva, em outras palavras: é preciso levar em consideração o elo afetivo que une a pessoa ao lugar. Na obra intitulada Espaço e lugar: a perspectiva da experiência (1983), Tuan fundamenta suas reflexões em torno de como as pessoas sentem e conhecem o espaço e o lugar sob a perspectiva da experiência, em que pese o papel da cultura nas aptidões, capacidades e necessidades do homem. Assim, as discussões sobre a paisagem têm permeado questões sobre a subjetividade, a experiência e o simbolismo que, interrelacionados, explicitam a cultura e a individualidade. No âmbito da literatura, o enfoque sobre o estudo da categoria espaço sob o prisma da teoria da percepção da paisagem só mais recentemente tem sido objeto de pesquisa, haja vista os trabalhos produzidos pelas geógrafas Lívia de Oliveira e Solange Lima Guimarães. Já no tocante aos estudos sobre o espaço literário, é digno que destaquemos o conjunto de obras de Gaston Bachelard que, numa perspectiva filosófica e psicanalítica, tem contribuído para o avanço das especulações em torno desse assunto. Entretanto, entre os profissionais das Letras, pouca ainda tem sido a produção a respeito. Assim, o presente trabalho se propõe a analisar, à luz dessa teoria, a literatura produzida em Moçambique pelo já consagrado escritor Mia Couto, dada a riqueza e a plurisignificação do espaço vivenciado em seus romances, mais particularmente em Terra sonâmbula e Um rio chamado tempo, uma casa chamada terra. 2. Moçambique: O espaço do conflito Quando os portugueses chegaram a Moçambique nos fins do século XV, encontraram sociedades organizadas economicamente e configuradas em torno de uma grande diversidade cultural e linguística. Detentores de superioridade militar sobre as populações nativas, cujos chefes se imiscuíam em disputas internas, os colonizadores aproveitaram para ocupar as terras férteis e ricas em minerais, monopolizando o comércio do marfim, do ouro e das pedras preciosas. A estudiosa Enilce Albergaria Rocha destaca ainda que, ao se fixarem, os portugueses “iniciaram o processo de ‘missão civilizadora’ junto aos diferentes grupos étnicos com suas culturas específicas, introduzindo a cultura ocidental e portuguesa como modelo cultural”. (ROCHA, 2006, p. 44). Tal atividade missionária promoveu não só a introdução do cristianismo, como novos valores nas culturas locais, transformando-as e, de certa forma, moldando a mentalidade do povo moçambicano. Apesar da expansão do domínio português sobre o país ao longo dos séculos XVIII e XIX, vários grupos étnicos resistiram à colonização e à ideologia da assimilação e permaneceram vivos com suas tradições e modos de vida que remontam à sociedade feudal, com seus aspectos místicos e misteriosos. O início do movimento revolucionário anticolonialista nasce no coração das populações africanas oprimidas, sufocadas pela implantação do Capitalismo. Assim, em 1962, é criada a Frente de Libertação de Moçambique, a FRELIMO, representando, a princípio, as aspirações nacionais de independência por meios pacíficos. Sua base de sustentação eram as massas populares que repudiavam a exploração de que eram vítimas. Em 25 de setembro de 1964, a FRELIMO, em razão da luta armada pela libertação nacional, desenvolveu um projeto de nação que denominou de “sociedade nova”, com vistas à construção de um futuro para Moçambique. Ao lado da luta armada, reforça Enilce Albergaria Rocha, “se coloca desde 1969 para a FRELIMO, no centro de suas preocupações estratégicas, o
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amplo investimento no desenvolvimento cultural de Moçambique enquanto fator essencial e mola propulsora da libertação e da identidade nacional”. (ROCHA, 2006, p. 53). Finalmente, com a independência em 25 de junho de 1975, teve início um intenso processo de transformação estrutural do país. Entretanto, em diferentes regiões, continuaram os conflitos de natureza político-ideológica e, de forma paralela, se intensificavam as tensões externas em torno da guerra fria ao longo das fronteiras de Moçambique. Os dissidentes do regime que estava se implantando no país, de tendência socialista, passam a receber apoio dos portugueses despojados do poder, dos sul-africanos e dos rodesianos, dando início à investida armada em 1976, gerando uma guerra civil que semeou muitas mortes e desolação pelo país afora. Só em 1992, no “Acordo de Roma”, é que foi possível a assinatura de paz com o processo de negociação entre os grupos dissidentes. Nesse contexto desolador da guerra civil, agravaram-se a pobreza, o analfabetismo, as doenças, a orfandade infantil e o desamparo dos idosos. O grande fracasso da FRELIMO foi não ter sabido conciliar a valorização das culturas tradicionais feudais e a política de implementação de uma sociedade socialista, fundada na modernização com o desenvolvimento científico-tecnológico de raiz ocidental e as tradições culturais de Moçambique. O romance Terra sonâmbula (1992), de Mia Couto circunscreve-se no contexto do país pós-independência e levanta uma crítica contundente contra as identidades nacionais excludentes e coloca em xeque as fronteiras culturais territoriais que isolam indivíduos, famílias e populações. Já o romance Um rio chamada tempo, uma casa chamada terra, de 2002, se vincula a uma Moçambique pósguerra civil, ansiosa por querer reunir, em seu bojo, o mosaico de vozes de que é constituído o país na sua origem. Ambos serão analisados, nos capítulos que seguem, sob o viés da teoria da percepção da paisagem. 3. Terra sonâmbula: A paisagem da desolação A estrutura do romance Terra sonâmbula é curiosa: duas narrativas de viagem se alternam: os onze capítulos que narram a luta pela sobrevivência do menino Muidinga e do velho Tuahir e os onze cadernos, narrados em primeira pessoa, por Kindzu, que se encontra em errância numa Moçambique destruída pela guerra pós-independência. Sua trajetória parte do abandono de sua aldeia intolerante e violenta para tornar-se um “naparama” – o justiceiro da dor e defensor dos viventes, sem preconceito de raça, etnia, língua, aldeia ou região. Sua história é permeada por lendas, mitos e rituais, sonhos dos sobreviventes espelhados nos idosos, mulheres e crianças. Na tentativa de preservar a memória moçambicana e a tradição oral do contador de estórias, Kindzu resvala por uma Moçambique em conflito entre a opulência e a miséria, a ambição e o desprendimento. Na sua errância pelo país, Kindzu, que procura insistentemente por Gaspar, filho de Farida, depara-se, ao morrer, com seus cadernos nas mãos de Muidinga que nada mais é do que o filho desaparecido de sua amada Farida. A surpresa reside quando, no final da obra, quem narra a morte de Kindzu é o próprio Kindzu, o que comprova que a história construída pelos homens sobrevive para além da sua matéria. Mais adiante segue um miúdo com passo lento. Nas suas mãos estão papéis que me parecem familiares. Me aproximo e, com sobressalto, confirmo: são os meus cadernos. Então, com o peito sufocado, chamo: Gaspar! E o menino estremece como se nascesse por uma segunda vez. De sua mão tombam os cadernos. Movidas por um vento que nascia não do ar mas do próprio chão, as folhas se espalham pela estrada. Então, as letras, uma por uma, se vão transformando em páginas de terra. (COUTO, 2006, p. 218)
Quanto a Muidinga e Tuahir, os capítulos têm início no espaço do “machimbombo” (uma espécie de ônibus), onde estão presentes corpos carbonizados e onde Muidinga encontra os cadernos de Kindzu. Duas estradas os dois personagens percorrem: a real, transcorrida no machimbombo queimado e a imaginária, espaço da utopia vivenciada nas linhas escritas por Kindzu: “A lua parece ter sido chamada pela voz de Muidinga. A noite toda se vai enluarando. Pratinhada, a estrada escurta a estória que desponta nos cadernos...” (COUTO, 2006, p. 14).
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O sonho passa a ser o lugar ideal que o homem deve habitar. Bachelard, no livro A poética do espaço, reforça esse afirmação ao salientar que: Mesmo quando esses espaços estão para sempre riscados do presente, estranhos a todas as promessas de futuro, (...). Voltamos a esses lugares nos sonhos noturnos. E esses redutos têm valor de concha. E, quando vamos ao fundo dos labirintos do sono, quando tocamos nas regiões de sono profundo, conhecemos talvez uma tranquilidade ante-humana. O ante-humano atinge nesse ponto o imemorial. (BACHELARD, 1978, p. 203).
Uma das epígrafes que abrem o livro já anunciam que é no plano do sonho que será possível romper com as ruínas, com a guerra devastadora: “O que faz andar a estrada? É o sonho. Enquanto a gente sonhar a estrada permanecerá viva. É para isso que servem os caminhos, para nos fazerem parentes do futuro. (Fala de Tuahir)”. (COUTO, 2006, p. 07). Antes da descoberta dos cadernos de Kindzu por Muidinga, o que predominava era uma paisagem seca, morta, onde sequer havia a estrada. O narrador, posicionando-se de forma onisciente, narra na perspectiva de uma testemunha e assim descreve o primeiro capítulo, intitulado “Estrada morta”: Naquele lugar, a guerra tinha morto a estrada. Pelos caminhos só as hienas se arrastavam, focinhando entre cinzas e poeiras. A paisagem se mestiçara de tristezas nunca vistas, em cores que se pegavam à boca. Eram cores sujas, tão sujas que tinham perdido toda a leveza, esquecidas da ousadia de levantar asas pelo azul. Aqui, o céu se tornara impossível. E os viventes se acostumaram ao chão, em resignada aprendizagem da morte. (COUTO, 2006, p. 09)
Gradativamente, com a leitura cada vez mais atenta dos escritos de Kindzu, Muidinga passa da não-percepção da paisagem para a percepção utópica, conquistada durante o estado sonambúlico. Só a ele é dada a condição de acompanhar as transformações da paisagem, sobretudo quando da saída do refúgio representado pelo machimbombo e da possibilidade de chegada ao mar aberto: A paisagem prossegue suas infatigáveis mudanças. Será que a terra, ela sozinha deambula em errâncias? De uma coida Muidinga está certo: não é o arruinado autocarro que se desloca. Outra certeza ele tem: nem sempre a estrada se movimenta. Apenas de cada vez que ele lê os cadernos de Kindzu. No dia seguinte à leitura, seus olhos desembocam em outras visões. (COUTO, 2006, p. 109)
Com a experiência fantástica dos cadernos de Kindzu é que Muidinga e o velho Tuahir aprenderam a sonhar com a sobrevivência em um país marcado pela oposição cultural entre os que lutam pelo poder e os que se situam nas comunidades agrárias tradicionais. Como ressalta Enilce Albergaria Rocha: “Em Terra sonâmbula, a guerra desfaz as referências comunitárias: destrói as aldeias tradicionais, desestrutura as famílias e desmancha as diversas identidades coletivas, o ‘nós’ enraizado no seu entorno – a paisagem, a terra, a cultura.” (ROCHA, 2006, p. 70). 4. Um rio chamado tempo, uma casa chamada terra: A paisagem das tradições Tanto quanto Terra sonâmbula, esse livro de Mia Couto, publicado em 2002, portanto, na Moçambique pós-colonial, constitui o retrato das mudanças significativas por que tem passado seu país e o confronto de vozes que tem delimitado o corpus cultural de um povo sensivelmente marcado pelos longos anos de colonização. Como via de interligação entre a tradição oral africana e a tradição literária ocidental, oriunda da dominação portuguesa, Mia Couto vale-se de uma linguagem de recriação, de uma escrita mágica, “imbuída de culturas várias, força de coesão e de construção de uma matriz cultural moçambicana”, como argumenta Fernanda Cavacas (2006, p. 57). Para tanto, o escritor moçambicano se pauta na escrita formal normativa que tem a função de traduzir as emoções, os desejos e os conflitos de seu povo. O próprio Mia Couto destaca a necessidade de conciliar o continente europeu ao africano quando escreve: Necessito inscrever na língua do meu lado português a marca da minha individualidade africana. Necessito tecer um tecido africano e só o sei fazer usando panos e linhas européias. O gesto de bordar me ensina
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Tema geral: Línguas e Literaturas: Diversidade e Adversidades na América Latina que estou inventando uma outra ordem e nessa ordem esses valores iniciais de nacionalidade já pouco importam. (COUTO apud CAVACAS, 2006, p. 65)
Vera Maquêa parece sintetizar essa ambivalência da escrita de Mia Couto ao acentuar que o que encontramos em sua produção literária é “o caráter transnacional da literatura, que consegue ao mesmo tempo expressar problemas humanos fundamentais e trabalhar com a massa de sentidos específicos das circunstâncias históricas de Moçambique” (MAQUÊA, 2005, p. 170). A obra em questão revela justamente esse estado de coisas. Luar-do-chão, lugar onde se desenrola toda a ação do romance, é uma Ilha, sempre grafada com “I” maiúsculo, cercada de mistério e acontecimentos extraordinários, que se destaca por ainda não ter sido contaminada pelas civilizações estrangeiras e por guardar suas tradições ancestrais. Em situação de abandono e de decadência, dada a pretensa morte do grande guardião, o Dito Mariano, a Ilha aguarda em Mariano, o neto, não só a reconstrução da história de sua família de quem se distanciou, mas, e sobretudo, o descortinamento de uma nova forma de salvar sua terra e levar adiante uma história da condição humana. Assim, tendo retornado a sua terra natal por ocasião do suposto funeral do avô, Mariano, narrando em primeira pessoa, vai redescobrindo suas origens e resgatando a história da família, com curiosas e insólitas personagens e situações, como é o caso de Abstinêncio, seu tio, que usa um lenço que cresce durante a noite, ou o de seu pai, Fulano Malta, dono de uma gaiola na qual espera que um pássaro seja encarcerado; no entanto é a própria gaiola que se transforma em pássaro e voa pelo céu afora. Ou ainda o caso de sua mãe, Mariavilhosa, que se converte em água e se confunde com o rio. Não fosse a consciência mítica que essas imagens insólitas carregam da africanidade, poderíamos supor que estamos na presença de um universo surreal, desmaterializado, descorporificado. No que concerne especificamente à teoria da percepção da paisagem, há algo de especial nesse livro. A começar pela presença do rio que separa a Ilha da cidade, de onde retorna Mariano. Numa lancha que conduzirá parte da família ao funeral do avô, Mariano, alheio à sua identidade cultural, não dá o devido respeito ao rio, “o grande mandador”, responsável por separar a cidade – morada dos brancos – da Ilha – reduto do clã dos negros Malilanes (ou dos Marianos, na língua dos brancos). Quando me dispunha a avançar, o Tio me puxa para trás, quase violento. Ajoelha-se na areia e, com a mão esquerda, desenha um círculo no chão. Junto à margem, o rabisco divide os mundos – de um lado, a família; do outro, nós, os chegados. Ficam todos assim, parados, à espera. Até que uma onda desfaz o desenho na areia. Olhando a berma do rio, o Tio Abstinêncio profere: – O Homem trança, o rio destrança. Estava escrito o respeito pelo rio, o grande mandador. Acatara-se o costume. Só então Abstinêncio e meu pai avançam para os abraços. Voltando-se para mim, meu tio autoriza: – Agora, sim, receba os cumprimentos! (COUTO, 2003, p. 26)
A separação não é, pois, apenas geográfica, é também cultural. Segundo o Dicionário dos símbolos, o rio equivale “ao obstáculo que separa dois domínios, dois estados: o mundo fenomenal e o estado incondicionado, o mundo dos sentidos e o estado de não vinculação”. (CHEVALIER & GHEERBRANT, 1995, p. 780-781). Assim, o jovem Mariano, ao retornar ao seio da família, abandona o mundo fenomenal, simbolizado pela cidade, e adentra o mundo dos sentidos, onde é incumbido de promover o ritual de morte do avô e de desvendar os segredos antigos do clã. O elemento rio guarda ainda outros aspectos simbólicos. No que diz respeito à personagem Mariavilhosa, ele assume a configuração de vida e morte, à medida que é no rio que a personagem inicia e encerra sua vida. Foi justamente no rio que se deu a confirmação da trajetória de Mariavilhosa e Fulano Malta e é também nele que se estabelece o seu fim. Destaquemos a passagem em que Mariavilhosa retorna ao seu local de origem quando da morte: Talvez se tivesse transformado nesses espíritos da água, que anos depois, reaparecem com poderes sobre os viventes. Até porque houve quem testemunhasse que, naquela derradeira tarde, à medida que ia submergindo, Mariavilhosa se ia convertendo em água. Quando entrou no rio seu corpo já era água. E nada mais senão água (...) água era o que ela era, meu neto. Sua mãe é o rio, está correndo por aí, nessas ondas. (COUTO, 2003, p. 105)
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Na perspectiva do personagem Dito Mariano, o patriarca da família, o rio assume a conotação da fertilidade, haja vista que é no espaço rio que se dá consagração do ato amoroso entre Dito Mariano e Admirança. Ambos dormem juntos e, assim, cumprem o ritual da entrega da alma. O fruto desse amor proibido é uma criança que recebeu, na língua local, o nome de Madzi (água) e que vem a ser o jovem Mariano. Após a revelação de sua verdadeira origem, Mariano encontra sua identidade. Assim, o rio, ao participar das relações interpessoais, compartilha códigos e estabelece o elo entre a memória e a identidade. Tamanho é o vínculo entre Dito Mariano e o rio que somente será possível concluir os rituais de sua morte quando, à beira do rio, for realizado o seu enterro. Numa das revelações ao filho, ele deixa escapar a sua intimidade com o elemento: “Sabe, Mariano? Quando você nasceu eu lhe chamei de ‘água’. Mesmo antes de ter nome de gente, essa foi a primeira palavra que lhe deitei: madzi. E agora lhe chamo outra vez de ‘água’. Sim, você é a água que me prossegue, onda sucedida em onda, na corrente do viver.” (COUTO, 2003, p. 238) Outro espaço significativamente importante nesse livro é a Ilha Luar-do-Chão que, dizem, foi inspirado na Ilha de Inhaca, em Moçambique, reserva natural onde Mia Couto tem desenvolvido suas pesquisas na área da biologia. Para o geógrafo chinês Yi-Fu Tuan, a ilha exerce um papel especial na imaginação do homem, visto que “no mundo, muitas das cosmogonias começam com o caos aquático: quando a terra emerge, necessariamente é uma ilha (...) Em inúmeras lendas a ilha aparece como a residência dos mortos ou dos imortais.” (TUAN, 1980, p. 135). É justamente o que ocorre na obra: lá é que será enterrado Dito Mariano, o chefe supremo do clã dos Malilanes. Funcionando como uma espécie de templo ou santuário, a Ilha Luar-do-Chão será o lugar que abrigará as tradições de um povo sofrido, porém insubmisso aos tempos da colonização. Mas isso só acontecerá por meio do neto/filho que tomará para si a responsabilidade de evitar que o lugar se transforme em grande empreendimento turístico, como é o desejo de seu tio Ultímio, salvaguardando, especialmente, a casa, Nyumba-Kaya: morada absoluta dos vivos e dos antepassados. Sob o prisma da teoria da percepção da paisagem, essa morada detém papel relevante no contexto da obra, na medida em que deixa de ser simplesmente um espaço, para se tornar um lugar porque dotado de valor. No entanto, as relações entre espaço e lugar não podem ser definidas uma sem a outra. É o que sustenta Yi-Fu Tuan. Segundo o autor, “os arquitetos falam sobre as qualidades espaciais do lugar; podem igualmente falar das qualidades locacionais do espaço. (...) A partir da segurança e estabilidade do lugar estamos cientes da amplidão, da liberdade e da ameaça do espaço, e vice-versa.” (TUAN, 1983, p. 06). Considerada a maior de toda a ilha, constitui, na fala do narradorpersonagem, um corpo ou ainda uma mulher, matrona e soberana, que parece desafiar o recém-chegado da cidade. Compete a ele guardar todas as chaves da casa, como a única atitude possível diante do assédio pela disputas dos bens e da herança. Assim, preservada sua memória, ela passa a representar a própria Ilha, terra onde se cultuam as sagradas tradições e os princípios éticos que suscitam a doce lembrança de uma África originária. Uma das epígrafes que povoam o romance, enunciada pelo avô Mariano, resume bem a intrínseca relação entre o lugar e o sentimento: “O importante não é a casa onde moramos. Mas onde, em nós, a casa mora.” (COUTO, 2003, p. 53). 5. Considerações finais A aproximação entre a Literatura e a Paisagem não constitui empresa fácil, haja vista a complexidade existente na tentativa de interrelacionar os artifícios da representação literária com os princípios da Geografia Humanística, voltados para o processo de percepção, em que estão envolvidos fatores como os sentimentos e a experiência. Estudar a paisagem, na perspectiva que adotamos, implica observar a interrelação entre o indivíduo e o espaço e como essa relação se processa em cada pessoa, em cada personagem, inserido num contexto social que também é cultural e psicológico. Na análise empreendida dos romances de Mia Couto, importou-nos considerar a percepção da paisagem à luz dos personagens e, sobretudo, do narrador, em que pese seu caráter simbólico, permeado por atributos reais e imaginários, seja no âmbito dos desejos e medos, seja do verossímil e do sobrenatural.
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Constatamos, portanto, em Terra sonâmbula, que a paisagem assume ares diferenciados à medida que se verifica a conformação da identidade do povo moçambicano, aqui representado pelo jovem Muidinga, numa nação marcada pela guerra civil pós-independência. Da trajetória de uma paisagem inóspita e horrenda, vivenciada por Muidinga e Tuahir no machimbombo queimado e nos arredores, para uma paisagem de libertação, representada pelo mar aberto, somos conduzidos aos cadernos de Kindzu que procuram, de maneira extensiva, preservar a memória de um povo combalido pela miséria e pelos horrores da guerra. Extensivamente, então, a experiência de Kindzu interpenetra a vivência de Muidinga e assim vai sendo tecida a confluência entre a oralidade e a escrita, entre o presente e o passado. Como reforça Vera Maquêa: “são onze capítulos e onze cadernos, mas o que podemos perceber é que a simetria corresponde ao diálogo sem dualismo entre uma tradição oral e uma tradição escrita, pois que ambas se confundem.” (MAQUÊA, 2005, p. 174). Em Um rio chamado tempo, uma casa chamada terra, a presença da escrita que proporciona a perpetuação da memória africana novamente é suscitada, agora por um personagem-narrador que regressa à casa, qual o filho pródigo, para enterrar o avô que insiste em não morrer até que toda a história da Ilha Luar-do-Chão seja contada. O elemento responsável pela estruturação da narrativa são os bilhetes e cartas que o jovem Mariano recebe com o intuito de configurarem a história de seu povo e de si mesmo. Um dos aspectos mais significativos da obra é o papel singular da água, mais particularmente do rio. Vimos o quanto a história de vida de determinados personagens se fundamenta nos rituais tradicionais e nos rituais fúnebres em que o elemento rio está presente, a começar pela passagem da lancha da cidade para a Ilha até a decisão por enterrar o corpo de Dito Mariano às margens do rio. Poeticamente, assim expressa esse ato o narrador: “o enterro do sol, como o do vivente mal-morrido, requer terra molhada, areia fecundada pelo rio que tudo faz nascer.” (COUTO, 2003, p. 257). A casa, Nyumba-Kaya, constitui o lugar privilegiado do romance e nada mais é do que a própria terra, reduto do sonho de construção da nacionalidade. Para o jovem Mariano, a casa grande que ele avista quando do retorno à Ilha Luar-do-Chão está fisicamente inscrita dentro dele e se faz “única” e “indisputável”. A preservação, portanto, de todo o legado cultural, de todo o mosaico de vozes de que se nutre a nação moçambicana para a afirmação de sua identidade subjaz, simbolicamente, da percepção da paisagem desses dois romances em que se tece a mão dupla da tradição e da modernidade, do passado colonial ao presente de um país fragmentado em sua diversidade. Referências BACHELARD, Gaston. A filosofia do não; O novo espírito científico; A poética do espaço. Tradução de Joaquim José Moura Ramos et al. São Paulo: Abril Cultural, 1978. CAVACAS, Fernanda. Mia Couto: palavra oral de sabor quotidiano/ palavra escrita de saber literário. In: Marcas da diferença: as literaturas africanas de língua portuguesa. Rita Chaves e Tânia Macedo (orgs.). São Paulo: Alameda, 2006. CHEVALIER, Jean & GHEERBRANT, Alain. Dicionário de símbolos. Tradução de Vera da Costa e Silva et al. Rio de Janeiro: José Olympio, 1995. COUTO, Mia. Terra sonâmbula. Maputo: Ed. Ndjira, 2006. ______. Um rio chamado tempo, uma casa chamada terra. São Paulo: Companhia das Letras, 2003. MAQUÊA, Vera. Três romances de Mia Couto: horizontes moçambicanos. In: Diálogos críticos: literatura e sociedade nos países de língua portuguesa. Vilma Lia Martin (org.). São Paulo: Arte & Ciência, 2005. ROCHA, Enilce Albergaria. A narrativa ficcional e a identidade cultural: a guerra pós-independência em Moçambique na escrita de Mia Couto. In: Vozes (além) da África: tópicos sobre identidade negra, literatura e história africanas. Ignacio G. Delgado et al. (orgs.). Juiz de Fora, Ed. UFJF, 2006. TUAN, Yi-Fu. Espaço e lugar: a perspectiva da experiência. Trad. de Lívia de Oliveira. São Paulo: DIFEL, 1983. _____. Topofilia: um estudo da percepção, atitude e valores do meio ambiente. Trad. de Lívia de Oliveira. São Paulo, DIFEL, 1980. VECCHIA, Rejane. Terra sonâmbula: a sobrevivência da utopia. In: Abrindo caminhos: homenagem a Maria Aparecida Santilli. Coordenação e edição de Benilde Justo Caniato e Elza Miné. Coleção Via Atlântica, no 2. São Paulo: EDUSP, 2002.
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ANÁLISE DO ASPECTO (INTER) CULTURAL EM UM MANUAL DE PORTUGUÊS BRASILEIRO PARA ESTRANGEIROS Marcos dos Reis BATISTA (Universidade Federal do Pará)
RESUMO: O manual didático (MD) tem muitas funções no ensino-aprendizagem de línguas. Uma delas é ser fonte de informação sobre a cultura dos países em que a língua-alvo é a língua materna. Com isso, o MD se mostra como um campo importante para as investigações no ensino de línguas em uma perspectiva ou abordagem cultural e, também, intercultural. Assim, este trabalho tem como objetivo apresentar uma pesquisa que tem como propósito expor uma análise sobre como a(s) cultura(s) é (são) abordada(s) em um MD para o ensino do português brasileiro para estrangeiros intitulado “Novo Avenida Brasil 1”. Nesse MD, observamos e examinamos os assuntos e as atividades presentes, assim como apresentamos os aspectos da cultura brasileira (estereotipada ou não) veiculados nele. Por meio de uma pesquisa qualitativa (bibliográfica e analítica), expomos as considerações diante da problemática acerca do aspecto cultural no MD analisado. A partir dessa análise, entendemos que a cultura brasileira, nesse manual, ainda apresenta características consideravelmente informativas quanto ao cultural e traz poucas atividades que tratam do intercultural. Além disso, os aspectos (inter) culturais não são rígidos, isto é, são dinâmicos conforme a sua comunidade de fala, por isso o MD do aluno não tem como abordar todos os aspectos da cultura brasileira a não ser de modo geral, entretanto, o MD pode ser um instrumento delineador de um programa de ensino-aprendizagem. Consideramos que mais pesquisas nessa área são necessárias, pois devemos pensar em outras maneiras de explorar uma abordagem (inter) cultural satisfatória para o processo de ensino-aprendizagem de uma língua estrangeira ou segunda. PALAVRAS-CHAVE: interculturalidade; português língua estrangeira; cultura; ensino-aprendizagem de línguas.
RESUMEN: El manual didáctico (MD) tiene muchas funciones en el enseño-aprendizaje de lenguas. Una de ellas es ser fuente de informacion sobre la cultura del país donde la lengua-blanco es la lengua materna. Con esto (MD) se muestra como un campo importante para las investigaciones de enseño de lenguas en una perspectiva de abordaje cultural e intercultural. Este trabajo tiene como objetivo presentar una investigacion que tiene como proposito exponer un análisis sobre como la(s) cultura(s) son abordada(s) en un MD para el enseño de portugues brasilero para extranjeros titulado “Novo Avenida Brasil 1”. En este MD, observamos y examinamos los asuntos y las actividades presentes, asi como tambien presentamos los aspectos de cultura brasilera (estereotipada o no) introducidos en el. Por medio de una investigacion qualitativa (bibliográfica y analítica), exponemos las consideraciones delante a la problemática acerca del aspecto cultural en el MD analizado. A partir de este análisis, entendemos que la cultura brasilera, en ese manual, todavia presenta características considerablemente informativas en cuanto a la cultural y otras pocas actividades que tratan de lo intercultural. Ademas de eso, los aspectos (inter) culturales no son rígidos, esto quiere decir, son dinamicos conforme a la comunidad que habla, por eso el MD de alumno no tiene como abordar todos los aspectos de la cultura brasilera al menos sea de modo general, entretanto, el MD puede ser un instrumento delineador de un programa de enseño-aprendizaje. Consideramos que muchas investigaciones en esta área son necesarias, pues debemos pensar en otras maneras de explorar un abordaje (inter) cultural satisfactorio para el proceso de enseño-aprendizaje de lengua extranjera o segunda. PALABRAS-CLAVES: interculturalidad; portugues lengua extranjera; cultura; enseño-aprendizaje de lenguas.
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1. Introdução Nos últimos dez anos a área de ensino-aprendizagem de Português Brasileiro Língua Estrangeira (PBLE)1 desenvolveu-se de modo considerável. A institucionalização do Certificado de Proficiência em Língua Portuguesa para Estrangeiros (CELPE-Bras)2, a criação dos Postos aplicadores desse exame em vários países3, de cursos de graduação, de Pós-graduação lato sensu, de encontros nacionais (PLE-Rio e SIPLE), de WEB Grupos de professores e da Sociedade Internacional Português Língua Estrangeira (SIPLE) são exemplos evidentes desse desenvolvimento. Em virtude do crescente interesse de estrangeiros das mais diversas áreas de estudo em desenvolver atividades na Amazônia brasileira, o domínio do português do Brasil torna-se fundamental para o sucesso das atividades destes que muitas vezes falam apenas o inglês. Por isso, no ano de 2005 a Profa. Cláudia Silveira do Núcleo Pedagógico Integrado propôs o Projeto Português Língua Estrangeira (PPLE)4 ao Departamento de Línguas e Literaturas Estrangeiras, assim como ao Conselho do Centro de Letras e Artes. Sendo o referido projeto aprovado em ambas as instâncias. Em 2006, criou-se na UFPA o Grupo de Estudos de Português Língua Estrangeira (GEPLE), que além da busca de capacitação local, objetivava construir competências necessárias à criação de um curso básico de PLE à distância. Foi criado o Posto Aplicador do Exame CELPE-Bras que começou a funcionar em agosto do mesmo ano. Em meio às discussões no GEPLE acerca dos diversos pontos no ensino-aprendizagem, uma personagem chamou a atenção: o Manual5 para ensino de PLE. Quais são? Que tipo de metodologia esses se baseiam? Quem os publicam? Onde se pode encontrar? Que língua esses ensinam? Que abordagens são tratadas nesses? Entre outros tantos questionamentos. Isso gerou a necessidade de pesquisar junto à editoras e livrarias a oferta desses materiais. Nas reuniões do GEPLE foi discutida a adoção de um manual a ser empregado nos cursos a serem ofertados, foram elencados diversos requisitos para a adoção de um livro didático (LD), que por falta de espaço e tempo não serão descritos aqui. 2. Justificativa Entre as diversas abordagens, uma dessas chama a atenção de modo a despertar o estudo acerca do papel do LD de PBLE: a abordagem cultural. De que modo a cultura é abordada nestes materiais didáticos? Podemos apresentar algumas considerações acerca do cultural e do intercultura. Cultura pode ser entendida como o conjunto distintivo de atributos espirituais e materiais, intelectuais e afetivos que caracterizam uma sociedade ou um grupo social, engloba não somente as artes e a literatura, mas também os modos de vida, os sistemas de valores, as tradições e crenças e os direitos fundamentais do ser humano (CLAXTON, 1994, p. 6-7). O cultural é indissociável da língua, tanto no processo de aprendizagem, quanto na convivência do estrangeiro com a nova língua, ou seja, “Sempre que você ensina uma língua, você também ensina um sistema cultural complexo de costumes, valores, e maneiras de pensar, sentir e agir”. (BROWN Comumente usa-se o termo PLE para se referir ao ensino do Português Língua Estrangeira. Entretanto, neste pré-projeto, será tratado o Português falado no Brasil; por isso, utiliza-se a sigla PBLE (Português Brasileiro Língua Estrangeira), pois, aqui procura-se distinguir a língua falada – e, até escrita - em terras brasileiras da vertente falada em Portugal e em outras nações africanas. 2 Sua institucionalização entre os anos de 1993 e 1998. 3 Todas as informações acerca do exame CELPE-Bras poderão ser consultadas na página www.mec.gov.br/celpebras. 4 No âmbito do Projeto Português Língua Estrangeira na UFPA nunca se discutiu acerca da nomenclatura PLE ou PBLE. Esta última está sendo utilizada aqui conforme a nota 1 descrita acima. 5 Conforme Mezzadri (2205) e Balboni (2000), manual é um conjunto de materiais didáticos (livro-texto, livro de exercícios, guia pedagógico, CD - áudio, entre outros) organizados por uma editora e/ou independente (autor) com a finalidade de servir de suporte para o ensino de uma língua e/ou oferecer uma progressão de conteúdos para a aprendizagem de um idioma. 1
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2001, p. 64). Com isso, parte-se da hipótese que o manual de línguas possui potencial6 para a difusão do idioma de modo a conscientizar os aprendentes culturalmente e interculturalmente. Tal potência ajuda a construção de conexões educativas e processos de aprendizagem mútua entre os grupos culturalmente diferentes (FLEURI, 2003, p.10). Furtado (2005, p. 53) apresenta um dos papéis do componente cultural diante do EAL em que “o componente cultural media as interações, lançando a idéia de que os conhecimentos culturais partilhados pelos interlocutores são indispensáveis para o desenvolvimento do processo interacional, por meio da intercompreensão”. Laraia (2005) apresenta em seu livro Cultura: um conceito antropológico o desenvolvimento do conceito de cultura durante vários séculos. Entender cultura como fenômeno com muitas facetas e características nos ajudará a apresentar um quadro da atual situação de como os elaboradores de manuais tratam em seus trabalhos a cultura, ou melhor, as culturas. É partindo dessa situação – a cultura em um sentido plural – que o presente estudo se mostra como um espaço para reflexões diante do nosso objeto de estudo e trabalho. Ao tratar da intercultura, Desmeserets (apud FURTADO, 2001, p. 34) diz que “intercultura é a presença e a inter-relação em um mesmo tempo e em um mesmo espaço, de pessoas de diversas culturas que coexistem”. Para Alsina (1999, p. 74) a interculturalidade é como “as relações que se dão entre as diversas culturas em um mesmo espaço real, midiático ou virtual, que também teriam referencia a dinâmica que se dá entre (...) as comunidades culturais”. O intercultural vem a somar com a interação quando se trata da aprendizagem de uma nova língua. Com isso, podem-se ampliar horizontes pessoais e profissionais. Com isso, investigar os aspectos culturais – como a cultura ou as culturas brasileiras são tratadas em um manual para o ensino de PBLE – e os interculturais – a relação das atividades com a cultura dos alunos estrangeiros – se coloca como o caminho a ser traçado para o desenvolvimento deste trabalho. O interesse pelo tema partiu da convivência com o MD utilizado tanto nas aulas de PLE na UFPA, quanto às necessidades observadas no uso desses. Além disso, o elemento cultural faz parte intrinsecamente das atividades para o ensino de uma língua. Pode-se dizer que não existe ou não se fala de cultura sem considerar o instrumento lingüístico. Uma cultura vem a ser descrita através desse instrumento. Com base em Serragiotto (2007), podemos afirmar que existe um binômio línguacultura, segundo o qual existem algumas fortes relações que regulam esses dois elementos que se influenciam mutuamente, ligados de modo considerável pela natureza da relação deles. O LD é um recurso muito utilizado em um ensino de línguas formal. Mas, não tem todos os atributos e mecanismos para oferecer ao aluno todos os aspectos de uma nova língua. Segundo Cortazzi e Jin (1999, p. 199 apud MOURA, 2005), “apesar de alguns professores e alunos esperarem que o LD dê conta de todos os aspectos no processo de ensino-aprendizagem, muitos já enfatizam que seu papel é de ser um recurso, de onde grande parte pode ser aproveitada”. É justamente nesta “grande parte” onde se encontra a nossa preocupação. O LD não tem condições de apresentar de modo formativo e informativo a cultura dos povos que falam a língua que está sendo aprendida de modo exaustivo; porém, existe uma tentativa dos elaboradores em mostrar a cultura de modo amplo. Assim, o nosso objetivo é apresentar uma análise sobre a abordagem da cultura (culturas) em livros didáticos para o ensino do português brasileiro para estrangeiros. 3. O ensino-aprendizagem do português brasileiro como língua estrangeira No campo do EAL há uma vasta discussão acerca da nomenclatura quanto ao ensino das línguas como língua materna, língua segunda, língua estrangeira, língua primeira, língua terceira, língua primitiva, etc. Entender a abordagem de como a língua é ensinada torna-se algo importante tanto para Entende-se aqui Potencial como motivação para a aprendizagem de um novo idioma. Neste âmbito a motivação deve ser levada em conta na aprendizagem de uma língua com vista à aproximação do aluno com uma nova cultura. Por meio de uma reflexão diante dessas atividades pode-se começar a pensar acerca de como desenvolver a consciência cultura e intercultural do aprendente e, também, do docente utilizando os materiais didáticos de PBLE .
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o enfoque em sala de aula, como para a elaboração de materiais didáticos, quanto para a abordagem lingüística, linguageira, cultural, intercultural, sócio-discursiva, entre outras, pois as características do aprendente – dependente da sua situação diante da língua, se estrangeiro ou nativo ou envolvido em uma sociedade que não primeiramente é a sua como é o caso dos indígenas no Brasil – são primordiais para a elaboração de currículo e de percurso didático. Consideramos língua materna, primeiramente, como o idioma que uma criança em uma determinada sociedade aprende em casa, na convivência com os pais e outros familiares; por isso, o termo materno, de maternidade. Segundo Cuq (apud DÓRIA SILVA, p. 12) a expressão Língua Materna refere-se “à combinação de pelo menos duas séries de fatores: a ordem da aquisição e a ordem do contexto. Designar-se-ia desta forma a língua adquirida em primeiro lugar pelo falante em um contexto em que essa língua também é usada para comunicação”. A aprendizagem de um idioma como língua segunda se dá diferentemente da língua estrangeira. Uma língua é estudada como segunda no país onde essa é falada. Por exemplo, um brasileiro que vai à Itália para aprender italiano, estudará esse idioma como língua segunda, ou seja, estará imerso na língua, encontrará facilmente falantes nativos para exercitar o que está sendo adquirindo de modo formal na escola e estar envolvido vinte e quatro horas com aquela línguacultura7. Porém, um brasileiro que aprende italiano em Belém do Pará, aprenderá italiano como língua estrangeira, ou seja, fora da área onde esse idioma é falado. Ao considerar tais aspectos que distinguem língua estrangeira de língua segunda, Leffa (1988, p. 212) nos esclarece de modo bastante lúcido tal diferença: temos o estudo de uma segunda língua no caso em que a língua estudada é usada fora da sala de aula em que vive o aluno (exemplo: situação do aluno brasileiro que foi estudar francês na França). Temos língua estrangeira quando a comunidade não usa a língua estudada na sala de aula (exemplo: situação do aluno que estuda inglês no Brasil). Temos ainda diante dessa discussão acerca das concepções de língua estrangeira e língua segunda, outras variedades de classificações existem no EAL e, não é tão simples uma generalização por parte dos trabalhos na área da Lingüística Aplicada por parte dos pesquisadores (ALMEIDA FILHO e CUNHA, 2007). Segundo Cuq (2003, p. 150), “toda língua não materna é uma língua estrangeira” (apud SILVA, 2008, p. 12)8, a qual é “ensinada a pessoas que não são nativas de um país em que essa língua é a língua de comunicação” e que “não aprenderam essa língua antes de qualquer outra, nem simultaneamente a outra, como é o caso de pessoas bilíngües” (SILVA, 2008, p. 12). Dessa maneira, podemos considerar como língua segunda o idioma que o aprendente ou novo falante considera como a segunda língua que utiliza na sua individualidade. Podemos usar nosso caso como exemplo: temos como língua materna o português brasileiro e como língua segunda o italiano, que é utilizado nas pesquisas desenvolvidas na graduação e na pós-graduação9, na conversação com amigos nativos ou não desses idiomas, além da literatura e da música. Assim, apresentamos acima a dificuldade existente em diferenciar e classificar o que é língua estrangeira e língua segunda. Mas, acreditamos que com a exposição dos termos, já estamos cientes do que cada categoria de ensino representa. Com base nesse estudo e em outros autores que tratam do processo de EAL, consideramos o ensino do português brasileiro para estrangeiros no Brasil como português brasileiro como língua segunda (PBLS) e fora do país como português brasileiro como língua estrangeira (PBLE)10. Neste trabalho trataremos do português brasileiro para estrangeiros (PBE) em situação de ensino-aprendizagem do português dentro do Brasil (PBLS) ou fora do país (PBLE). Entende-se por língua-cultura, esse binômio, como a intrínseca relação entre ambos elementos na aprendizagem de um novo idioma. Nesse processo não se aprende apenas elementos lingüísticos (morfossintáticos, lexicais, etc.), mas elementos sócio-culturais que envolvem o lingüístico, o linguageiro e o cultural. 8 Texto original: Toute langue non maternelle est une langue étrangère. 9 Cf. Referências deste trabalho 10 Trataremos melhor desta questão quando nos detivermos na nomenclatura PLE, PBLE, PBSL, entre outras. 7
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4. Cultura, identidade e ensino Apresentamos algumas definições de cultura de autores como Lafuente (2005) e Samovar, Porter e Stefani (1998). Conforme Cuche (1996 apud MATTELART, NEVEU, 2004, p.11) “a noção de cultura é daqueles que suscitaram os trabalhos mais abundantes em ciências sociais”. Assim, nesta parte expomos alguns aspectos acerca do conceito de cultura para, posteriormente, adentrarmos em nossa análise propriamente dita. 4.1. A tentativa de conceituar “cultura” O termo cultura, apesar de sua apresentação singular, traz uma gama de pluralidade quando nos debatemos com a sua conceituação. Segundo Santos (2008, p. 23), existem duas concepções de cultura, a primeira remete aos aspectos de uma realidade da sociedade e a segunda faz referência mais especificamente ao conhecimento, às crenças e às idéias de um povo. Com base em Bosi (1992), o termo cultura vem do vocábulo latino culturus, que dá a idéia de porvir ou de movimento, de cultivo, de cultivar a terra, a relação entre os homens e a terra. Conforme as palavras do próprio Bosi (1992, p. 16) A terminação – urus, em cultura, enforma a idéia de porvir ou de movimento em sua direção. Nas sociedades densamente urbanizadas cultura foi tomando também o sentido de condição de vida mais humana, digna de almejar-se, termo final de um processo cujo valor é estimado, mais ou menos conscientemente, por todas as classes e grupos [...]
Segundo Balboni (1999, p. 25), cultura é a soma de alguns modelos culturais praticados por um povo para responder às necessidades naturais como nutrir, viver em grupo, se proteger de eventuais fenômenos da natureza, etc. isso vem ao encontro de Bosi (1992, p. 27) quando trata das condições diante das múltiplas formas concertas da existência coletivamente e subjetivamente, com isso temos a memória e o sonho, as marcas do cotidiano e outros aspectos que fazem parte do mundo intrapessoal e subjetivo. Trataremos mais a frente quanto à cultura como símbolo. Enfatizamos quanto ao texto de Bosi que a cultura está acima do tempo. Não podemos considerar a cultura somente desta época, essa (cultura) é ao mesmo tempo produto e processo social. Produto por ser fruto de uma mentalidade coletiva e processo por ser modificada ao decorrer das diversas fases da historia de uma sociedade. 4.2. Cultura segundo Lafuente Tudo o que está relacionado com a educação está relacionado com a cultura, sua aquisição, sua transmissão e sua dinamicidade. A cultura está na nossa sociedade, ou seja, em nós mesmos. Está nos níveis pessoal, familiar, profissional, afetivo, entre outros. As considerações apresentadas aqui estão baseadas no texto de Lafuente (2008)11. Para Banks (apud LAFUENTE, 2008) a cultura é um termo extremamente difícil de definir. Não nos damos conta de que estamos imersos nele. Segundo Mezzadri, nossa dificuldade de perceber a nossa cultura é comparada à água e ao peixe que está nela. Esse deve sair de sua água para poder entendê-la, assim o homem deve sai do seu meio cultural e procurar desenvolver um olhar de fora para buscar o entendimento desse objeto de estudo. Poderíamos dizer que é uma sedimentação da experiência histórica das pessoas e dos múltiplos grupos sociais sejam de caráter familiar, étnico, racial, genérico ou de status social. Segundo Kramsch (apud LAFUENTE, 2008) cada país tem sua própria cultura política e histórica, estilos intelectuais próprios, medos sociais, esperanças, orgulhos, significados e valores unidos a sua língua, sua cultura e sua história. Nessa perspectiva, a cultura se forma através da aprendizagem e do ensino cotidiano em todas as circunstâncias em que se desenvolve a vida humana. O processo de aquisição da cultura começa desde o nascimento e se estende por toda a vida, não é a toa que ouvimos de pessoas mais 11
Cf. Referências.
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velhas a expressão: na minha época não era assim... ou na minha época era assim.... Durante este tempo o indivíduo estabelece diferenças entre os muitos aspectos de sua cultura, alguns se mantém e outros são modificados. Hutchinson (apud LAFUENTE, 2008) afirma que se uma pessoa é colocada em um grupo concreto e observada depois, ela exibirá um comportamento que não pode ser distinguido ou diferenciado daquele que constitui a cultura do grupo em que se desenvolveu. De fato, se este indivíduo muda no segundo grupo portador de uma cultura diferente, então seu comportamento seria distinguível daquele que constitui sua primeira cultura. Cultura como riqueza acadêmica versus cultura popular. Banks (apud LAFUENTE, 2008) distingue os tipos de cultura, a alta cultura – definida como o produto resultante de um esforço e de um método - que é aquela que cuida das artes, teatro, museu, bibliotecas. Nessas instituições encontram-se os produtos culturais que são valorizados pela elite. Também trata da baixa cultura que é colocada pelo autor como cultura popular. As diversas manifestações consideradas “populares” estão inseridas nesta baixa cultura, tendo como exemplos o rock and roll e o calipson, assim como o folclore. Para Lafunte (2005, p. 6-7) a cultura também pode ser entendida como um vasto conjunto de peças do conhecimento armazenadas por um grupo social específico e classificadas em um tripé, a saber: cultura, subcultura e microcultura. Ainda segundo o autor, um indivíduo desse grupo somente possuiria e usaria parte desse conhecimento nesse conjunto social. A quantidade de informações, conhecimento, entendimento diante das regras sociais varia de acordo com a formação de cada indivíduo e também de acordo com cada subgrupo em relação à população local (regional ou nacional). Essas diferenças podem ser percebidas no vocabulário usado pelo cidadão, pela língua que ele utiliza. A língua consta de um sistema de sons, de uma sintaxe (gramática) e do léxico (vocabulário). Sendo assim, quem usa o mesmo código (a língua), pode se reconhecer como membro de uma determinada comunidade. Porém, nem sempre isso ocorre, podemos nos deparar com situações em que pessoas falam a mesma língua, mas por questões de sotaque, não reconhece o outro como membro desta (comunidade) ou, tem dificuldades em interagir com pessoas que utilizam um sotaque ou outro por conta dos estereótipos. Assim, quanto aos termos subcultura e microcultura, o classificaríamos como cultura regional e cultura pessoal, respectivamente, mas com uma ressalva: não se trata de uma hierarquia, mas de uma análise diante da cultura. No final do texto, o autor apresenta a seguinte analogia, conforme citação abaixo: Seguindo a analogia anterior estabelecemos a seguinte comparação: cultura=língua, subcultura=dialeto e microcultura=idioleto (LAFUENTE, 2007, p. 07) 12
Ele passa a fazer distinções utilizando outra nomenclatura que nos esclarece diante da problemática considerada neste trecho, porém, não entraremos na problemática língua/dialeto/ idioleto, pois nosso enfoque está na pluralidade da cultura. Cultura como um sistema de símbolos. Entende-se a cultura como um conjunto de estruturas conceptuais, o símbolo que para os membros de um grupo social constituem a realidade (GEERTZ, apud LAFUENTE, 2005) posto que todos compartilhem dessas estruturas. Tal concepção de cultura enfatiza a coerência de todo o sistema, do seu tratamento diante dos símbolos que se mostram como colaboradores da identidade dessa comunidade. Por exemplo, um paraense que não saboreia o açaí13 não é bem visto em uma reunião de amigos. É possível que nesta reunião social, ele possa ser visto como chato ou como alguém que não preserva (ou não respeita) um símbolo da cultura local. Texto original: Siguiendo la anología anterior establecemos la siguiente comparación: cultura=lengua, subcultura=dialecto y microcultura=idiolecto (LAFUENTE, 2007, p. 07) 13 “Açaí é o fruto da palmeira conhecida como açaizeiro (Euterpe oleracea Mart., Palmae), planta típica de várzea. É nativo da Amazônia, onde seu consumo data dos tempos pré-colombianos. O açaí é um alimento muito importante da dieta amazônica. Hoje em dia é cultivado não só na Região Amazônica, mas em diversos outros estados brasileiros, sendo introduzido para o resto do mercado nacional durante os anos 80 e 90” (texto extraído do portal açaí.com). 12
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Cultura como processo social. As diferenças culturais são os produtos do status, do poder e dos interesses políticos dos subgrupos e das instituições que se encontram na sociedade. Existe uma relação com os problemas da estrutura social e dos conflitos sociais. Quanto às mudanças culturais se aceitam, se aprendem, se recordam, se ignoram ou se esquecem dependendo da posição social dos integrantes da comunidade. Os fundamentos desta abordagem cultural são os seguintes: a) A variação sistemática da cultura em relação ao poder social; b) O conflito social como processo que desencadeia a variação dos tipos culturais e c) O papel humano no uso das ferramentas culturais (GIDDENS, apud LAFUENTE 2007). Cultura como motivação e elemento emotivo. Alguns estudos contemporâneos consideram a influência cognitiva e motivacional/emocional na cultura (LUTZ apud LAFUENTE, 2007). Aprendemos costumes. Mas, algumas questões são necessárias quando nos deparamos com esta problemática. Conforme Lutz (apud LAFUENTE, 2007) por que estamos ligados aos costumes emocionalmente? Como chegamos a desejar alcançar determinados objetivos como uma imposição cultural? Em nenhum momento somos obrigados a seguir pautas culturais que definem nosso grupo social, mas podemos ser levados pela evocação ao tradicional. Hoje, com o processo de globalização, percebemos a imposição da aprendizagem de línguas – como é o caso do inglês e do chinês em algumas empresas multinacionais – como imposição cultural. Pois, ao aprender determinada língua, o sujeito terá um sucesso. Nossa experiência nos mostra que muitos alunos, seja nos Cursos Livres de alemão e de português língua estrangeira ou no curso de Letras da Universidade Federal do Pará, vêem-se obrigados, porém satisfeitos ao ter que aprender uma língua para sucesso pessoal, para ter evidência na cultura onde estão inseridos. Essa situação pode ter conseqüências negativas no processo de aprendizagem do aprendente. A neurociência contemporânea demonstra que existe uma conexão entre as atividades das redes de neurônios e a aprendizagem cognitiva anterior. Assim, essas conexões cerebrais estão unidas ao nosso estado emocional. Por esta razão, a repetição de certas atividades cotidianas reforça nossas emoções e pensamentos (D’ANDRADE AND STRAUSS apud LAFUENTE, 2007). Portanto, ao concluirmos esta parte de “nossas reflexões”14 poderíamos dizer que cultura, geralmente, é considera um produto da atividade humana. Aprende-se e se transmite de geração em geração e, muitas vezes se inventa cultura. Cultura está intimamente ligada à formação de um povo, sua constituição quanto nação. É o caso do Brasil, a formação brasileira é complexa e cheia de altos e baixos. Com a invasão portuguesa, índios foram exterminados, negros escravizados e, ao mesmo tempo, houve a miscigenação entre brancos, escravos e índios e os imigrantes que aqui chegaram. Com toda essa complexidade, podemos considerar então que a cultura é o produto de um longo processo que culmina no Brasil de hoje. Um paraense reconhece outro pelo sotaque ou por hábitos locais. Entretanto, mesmo se tratando de paraense, há variação, a cultura de um belenense, seu modo de falar, expressões, alimentação é consideravelmente diferente de um paraense do sul do Pará, onde a formação está intimamente ligada aos povos do nordeste brasileiro e aos mineiros que se instalaram ali em virtude de grandes projetos na Amazônia. Podemos inferir que, a cultura muda de pessoa para pessoa e, evidentemente, de grupo para grupo. Pois, não compartilhamos os mesmos mundos subjetivos, muitas vezes possa parecer assim. Temos diferenças quanto às percepções da realidade e, por isso, não podemos tomar como referencial cultural somente um grupo social ou uma pessoa como símbolo de uma determinada cultura. Com base nisso, verificaremos que alguns grupos sociais estão sendo representados em manuais de português brasileiro para estrangeiros. Por fim, de maneira tanto individual, quanto coletiva, construímos um universo cultural, seja em nosso país, em nosso trabalho, em nossa própria casa. 14
O termo “nossa reflexões” está substituído os termos “monografia” e/ou “trabalho”.
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5. Língua-cultura Ao longo de nossos estudos sobre o ensino/aprendizagem de línguas estrangeiras (EALE), tem sido comum nos depararmos, em discussões e leituras, com a seguinte frase: é impossível ensinar uma língua estrangeira sem levar em consideração a cultura dos seus falantes nativos. Com base nos estudos de Serragiotto (2007), quando se fala de ensino de línguas, não faz sentido falar de algo abstrato. Não significa aprender somente regras e construções e, então, não é só o instrumento lingüístico que deve interessar àqueles que estudam. Um cidadão que possui um instrumento lingüístico deve-se também contextualizá-lo e então considerar a cultura onde tal instrumento é usado. Isso porque língua e cultura estão sempre se influenciando. Quando se pensa numa língua, pensa-se em um instrumento usado por um povo - ou por povos - para representar si mesmo, então por traz existe uma cultura – ou culturas - que suporta tal instrumento. Formar e informar os aprendentes da necessidade de desenvolvimento das habilidades culturais é importante. Pois, como já foi expresso anteriormente, uma língua não se caracteriza única e exclusivamente de estruturas morfossintáticas. Quanto mais se conhece da língua-cultura, mais se aprende em tal processo. Nesse processo de aquisição de um novo idioma, a progressividade do conhecimento do mundo da comunidade lingüística ajuda na interação de modo produtivo, evitando situações de engano e desembaraçosas. Byram e Fleming (2001) são categóricos ao afirmar que um conhecimento progressivo das pessoas que falam o idioma estudado é intrínseco na aprendizagem desse (...) sem a dimensão cultural, uma comunicação eficaz se vê dificultada pelo menos : a compreensão. Inclusive de palavras e expressões básicas pode ser parcial ou aproximada, e os falantes e ouvintes podem não conseguir se expressar adequadamente ou ofender seu interlocutor (BYRAM, FLEMING, 2001, p. 20)15.
Nessa perspectiva, a dimensão cultural é entendida como a ambientalização do aprendente no processo de ensino-aprendizagem de uma nova língua. Ou, seja, sem essa ambientalização, o aluno poderá correr o risco de usar de modo inadequado um discurso que não faz parte de uma dada situação, tendo como produto disso os choques culturais ou os confrontos desnecessários que podem alimentar ainda a estereotipização do estrangeiro no país onde esse se encontra. Assim, não se fala de cultura sem considerar o instrumento lingüístico. Uma cultura vem a ser descrita através dessa. Afirma-se então que existe um binômio língua-cultura, segundo o qual existem algumas fortes relações que regulam esses dois elementos que se influenciam mutuamente, ligados de modo considerável pela natureza da relação deles. A cultura no ensino lingüístico, com base nos pressupostos da interculturalidade e nos textos de Serragiotto (2007), deve-se levar em conta que as duas culturas (a do falante nativo e a do estudante) podem estar próximas e ao mesmo tempo podem estar extremamente distantes. Uma simples análise abre as possibilidades para o professor na abordagem do ensino de uma segunda língua mostra que o terreno para um diálogo e a construção de novos idéias sobre outros povos darão ao ensino um dinamismo considerável. É necessário estar atento e não cair no excesso de estereótipos, mas uma informação geral pode ser muito útil para a abordagem, no EALE e vem em contato com fatores culturais. Nesse modo a experiência de ensinar e o ensino tornam-se mais prazerosos e eficazes. É necessário que exista uma clara informação sobre os costumes e sobre os usos de um povo, analisando tais fenômenos, procurando não criar estereótipos que poderiam falsificar a interpretação, mas fornecendo mais sociótipos, segundo a definição de Balboni (1999), isto é, algumas caracterizações que derivam de uma generalização racional de estereótipos empiricamente verificáveis. Nesse panorama, Miquel (1997) nos alerta para a necessidade de uma prática de sala de aula que ajude o aluno a ter noções sobre o binômio língua-cultura, a autora destaca que Texto original: “Un conocimiento progresivo de las personas que hablan el idioma estudiado es intrínseco al aprendizaje de dicho idioma (…) Sin la dimensión cultural, una comunicación eficaz a menudo se ve dificultada: la comprensión, incluso de palabras y expresiones básicas puede ser parcial o aproximada, y puede que los hablantes y correspondientes no consigan expresarse adecuadamente, o incluso ofender a su interlocutor” 15
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Tema geral: Línguas e Literaturas: Diversidade e Adversidades na América Latina como professores de língua, não podemos nos conformar com que nossos estudantes se encontrem com problemas quando estão no país da língua-meta. Por isso, é conveniente que além de realizar em classe numerosos trabalhos interculturais que ajudem os estudantes a se orientar na nova cultura sem julgamento, realizemos boas descrições do que os romanos fazem (do ditado “in Rome, do what romans do” ou “aonde vais, faças o que vier”), para que realmente seja possível que o processo de ensino-aprendizagem permita ao estudante o conhecimento necessário para poder atuar de modo socio-culturalmente adequado na língua-meta e, também, como objeto secundário, porém, menos, lutar contra o etnocentrismo, contra os pré-juízos das diferentes culturas e fazer assim um meio viável para a comunicação entre os povos (tradução nossa)16.
Para fazer isso, deve-se levar em conta também os aspectos não-verbais de uma língua, porque esses também fazem parte da cultura e podem ser diferentes segundo algumas populações: a linguagem do corpo, a língua-objeto, a língua-ambiente (Balboni, 1999). Algumas considerações com base em Serragiotto (2007) e Balboni (1999) sobre a língua e a cultura no ensino são necessárias em nossa exposição. Por linguagem do corpo entende-se o movimento, a postura, a gestualidade, a expressão facial, o olhar, o tocar e a distância. Por linguagemobjeto entendem-se os sinais, os desenhos, os artefatos, o vestuário e o adornamento pessoal. Linguagem-ambiente é feita de cores, luzes, arquitetura, espaço, direções e elementos culturais que falam ao homem da sua natureza. Cada falante nativo assimila algumas experiências sociais individuais características da própria cultura. Cada sociedade acumula algumas regras segundo as quais, algumas considerações concretas são interpretadas abstratamente e são válidas entre os que se comunicam através do uso comum da mesma língua. Em um discurso comum entre culturas, um estereótipo significa aplicar às próprias dimensões culturais (comportamento, valores, convicções, etc.) a outra cultura, fazer ressaltar as diferenças sem levar em conta algumas motivações e o background cultural que as criou. O estereotipo se mostra ainda como a cristalização de hábitos de um determinado povo, como por exemplo, acreditar que todos brasileiros gostam de samba, amam carnaval, comem churrasco e jogam futebol. Como imaginar uma nação com mais de 190 milhões de personalidades agindo com os mesmos modos, será cair em uma mesmice eterna. 6. Algumas características da cultura Ainda sobre as características do que vem a ser Cultura, apresentamos as considerações de Samovar, Porter e Stefani (1998) para ampliar nossas considerações acerca do nosso objeto de estudos. Esses autores classificam seis características da cultura, a saber: A cultura é aprendida; a cultura é baseada em símbolos; a cultura é dinâmica; a cultura é integrada; a cultura é etnocêntrica e a cultura é adaptável. A cultura é aprendida, ou seja, ela é o legado que recebemos dos nossos ancestrais e é o ponto central do conceito de cultura e afirmam que, sem o conhecimento do grupo armazenado na memória, nos livros e em outros objetos, não teríamos a cultura. (BERWIG, 2004, p. 14). Nessa parte do texto, notamos que o conceito de cultura se mescla com o conceito de civilização, ou seja, civilização como “a avaliação histórica e positiva de que um determinado povo produziu e a cultura pode ser entendida como os aspectos característicos de um determinado grupo étnico” (VINOZZI, 2006, p. 12). Texto original: “Como profesores de lengua, no podemos conformarnos con que nuestros estudiantes se encuentren con los problemas cuando se desplacen al país de la lengua-meta. Por esa razón, es conveniente que, además de realizar en clase numerosos trabajos interculturales que ayuden a los estudiantes a orientarse en la nueva cultura sin juzgarla, realicemos buenas descripciones gramaticales que den buena cuenta de lo que “los romanos” hacen [del dicho “in Rome, do what romans do” o “donde fueras, haz lo que vieras”], para que, realmente, sea posible que el proceso de enseñanza/aprendizaje permita al estudiante el conocimiento de todo lo necesario para poder actuar de modo socio-culturalmente adecuado en la lengua meta y, también, como objetivo secundario, pero no menor, luchar contra el etnocentrismo, contra los juicios hacia las culturas distintas y hacer, así, más viable la comunicación entre los pueblos”. 16
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A cultura é baseada em símbolos, conforme já vimos no item cultura como um sistema de símbolos. Para Samovar, Porter e Stefani (1998), a cultura sem a língua é impensável (Cf. SERRAGIOTTO, 2008), porque é a linguagem que torna possível o intrincado sistema a que chamamos de cultura. Nosso cérebro e todas as nossas estruturas neurológicas associadas nos permitem usar símbolos num nível de sofisticação jamais compartilhado por qualquer outra criatura (BERWIG, 2004, p.15) A cultura é dinâmica, ou seja, ela não existe num vácuo; logo ela é passível de modificação. Segundo Laraia (2004), existem dois tipos de mudança cultural: uma que é interna, resultante da dinâmica do próprio sistema cultural, e uma segunda que é o resultado do contato de um sistema cultural com outro. Assim, podemos citar as trocas culturais, a colonização cultural imposta ou utilizada por meio do fenômeno da globalização que colabora com a mudança cultural em tempos modernos. A cultura é integrada, assim, se as regras sociais são alteradas, todo o resto é afetado. O tamanho das famílias, a ética profissional, os valores espirituais, a relação pais e filhos, a relação professor-aluno, entre outros que compõe a totalidade do conceito de cultura. A cultura é etnocêntrica. Sempre nos referimos aos outros de nossa janela pessoal, de nossa percepção cultural17. O etnocentrismo é a característica que está mais diretamente ligada à comunicação entre pessoas de diferentes culturas. Poderíamos definir etnocentrismo como um termo utilizado para a visão das coisas nas qual um grupo é o centro de tudo e todos os outros são avaliados e julgados com referência a esse grupo. Notamos isso quando recebemos um estrangeiro no Brasil, por exemplo. Sempre o julgamos partindo de nossa percepção. A cultura é adaptável. Assim, se a cultura é dinâmica, é natural que ela seja também adaptável, ou seja, ela se molda conforme outros aspectos. Berwig (2004:17) cita como exemplo a mudança dos papéis dos sexos no Brasil e em outros lugares do mundo que é um exemplo pontual desta adaptação. 7. Análise dos dados Neste capítulo, finalmente apresentamos a análise de nosso elemento que é uma unidade didática (UD) de um manual para o ensino do português brasileiro para estrangeiros. Para tanto, serão usados como suporte os trabalhos de Kuper (1999) e Glissant (2005), mas também faremos referências aos teóricos utilizados em nossa fundamentação teórica. 7.1. Elemento de análise Neste trabalho, escolhemos o livro do aluno. O elemento de análise desta pesquisa é a unidade nove do livro-texto do aluno do manual BEM-VINDO – A Língua Portuguesa no mundo da comunicação (doravante BV). Escolhemos esse manual por ele ser muito utilizado em cursos de português do Brasil para estrangeiros e a unidade nove por ele ter como título “O país e o idioma”. O livro do aluno também foi escolhido pela sua atualidade18 e sintetização19. 7.2. Bem-vindo – A Língua Portuguesa no mundo da comunicação O BV é um manual publicado pela SBS Editora de São Paulo. Sua primeira edição data de 2002 e é usado em diversos cursos de PLE20 pelo Brasil e em outros países dos quais se têm notícias. O manual é Conforme Berwig: (...) Percepção é o processo de selecionar, organizar e interpretar os dados sensoriais de uma maneira que permita dar sentido ao nosso mundo (...) O fato de sentirmos prazer ou repulsa diante da idéia de comer carne de boi, peixe, cachorro ou cobra depende do que nossa cultura nos ensinou sobre comida. (...) Laraia (2004) conclui dizendo, que embora nenhum indivíduo conheça totalmente seu sistema cultural, é necessário que tenha um mínimo de conhecimento partilhado para operar dentro desse sistema (...) A credibilidade pessoal é um outro traço perceptual afetado pela cultura. Pessoas que têm credibilidade inspiram confiança, sabem o que falam e têm boas intenções. (BERWIG, 2004:18-19) 18 Ano de 2004. 19 O livro aborda um amplo currículo para o ensino do português brasileiros para estrangeiros em apenas 26 unidades. 20 PLE é uma sigla comumente usada no campo do ensino de Português Língua Estrangeira. 17
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Tema geral: Línguas e Literaturas: Diversidade e Adversidades na América Latina composto de livro do aluno, cadernos de exercícios (para os públicos de origem asiática, anglo-saxônica e latina), livro do professor, caderno de respostas aos exercícios e de transcrição dos textos em áudio e 4 CDs.
7.3. O país e o idioma A unidade escolhida no manual BV foi a oitava. Ela tem como título “O país e o idioma”. Tem como enfoques gramaticais verbos regulares e alguns irregulares da voz passiva e o particípio passado. Quanto ao enfoque nocional-funcional, a unidade trata de aspectos relacionados aos símbolos nacionais (Bandeira Brasileira, Hino Nacional, etc.), as diferenças entre o português falado no Brasil e em Portugal e no campo comunicativo é abordada a ida ao restaurante. Esta unidade mostra o Brasil estereotipado. Em um texto presente na página 73, os autores procuram, em poucas palavras, descrever características físicas e culturais do país. O docente diante de todo e qualquer material deve fazer uso da criticidade que venha ao encontro dos objetivos do ensino. Na análise da referida unidade didáticaé necessário assumir o papel de professor crítico e verificar alguns posicionamentos dos produtores do livro como carregados de mitos, ideologias e pré-conceitos. As categorias que analisaremos nesta parte do trabalho são as seguintes: Cultura como riqueza acadêmica versus cultura popular; Cultura como um sistema de símbolos; Cultura como processo social; Cultura como motivação e elemento emotivo; Cultura está intimamente ligada à formação de um povo, sua constituição quanto nação; A cultura é aprendida; A cultura é baseada em símbolos; A cultura é dinâmica; A cultura é integrada; A cultura é etnocêntrica e A cultura é adaptável.
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Mitos - O texto apresenta os índios como os únicos habitantes da região norte; O Maranhão como o único estado em que se fala o português mais correto do Brasil; Outro mito é considerar que os imigrantes italianos, japoneses e alemães optaram por habitar a região sul em virtude de o clima parecer aos seus países de origem. Entretanto, os fatos históricos mostram que a colonização se deu primeiro nesta região e no sudeste em virtude das lavouras cafeeiras e a oferta de trabalho, além de questões políticas e, posteriormente, espalhou-se para outras partes do país. Ideologias - Os autores mostram neste texto que o brasileiro está satisfeito com a sua situação difícil financeira, pois a enfrenta com otimismo e alegria, ou seja, vende-se a idéia de uma nação feliz; No trecho “Região sudeste está uma das cidades mais conhecidas do mundo, verdadeiro cartão-postal do Brasil: o Rio de Janeiro com sua belíssima vista, a estátua do Cristo Redentor e... suas mulheres bonitas.” Passa a idéia de um comércio sexual; pois, a cidade do Rio de Janeiro está entre as capitais brasileiras onde há um considerável número de prostitutas segundo as autoridades brasileiras. Pré-conceitos - Acreditar que o Brasil é um país bom em virtude de não ter guerras nem grandes catástrofes naturais é se mostrar reducionista diante dos vários aspectos que envolvem o que vem a “ser um país bom”. Outras informações - O tratamento que o texto dá a região centro-oeste, a resume única e exclusivamente à capital federal – Brasília – e esquece de cenários importantes daquela região como o Pantanal Mato-Grossense (MT/MS), Caldas Novas (GO) e a Chapada Diamantina (MT) entre outras. “Um grande elo de união do nosso povo é que em todas as regiões do Brasil fala-se português!”. Os autores ignoraram a existência em território brasileiro de outros povos que usam outros idiomas, como os indígenas presentes em muitos estados da federação, além das populações que adotam o português brasileiro como segunda língua21. Nesta parte da unidade, a tentativa dos autores em apresentar o Brasil de modo sintético acaba se mostrando reducionista ao extremo. Outros estados importantes do país são ignorados, como o renomado desenvolvimento do estado de São Paulo; a primeira capital brasileira, que foi Salvador; as riquezas de Ouro Preto e Mariana no estado de Minas Gerais, a maior metrópole da Amazônia que é Belém do Pará,... As demais partes da unidade didática abordam a cultura como fatores lingüístico e econômico. Lingüístico ao tratar do Timor Leste, considerada a nação mais jovem a adotar o português como língua oficial e, econômica ao tratar do Mercado Comum do Cone Sul – o MERCOSUL. Um outro ponto que chama a atenção é a desconcertante disposição de textos que abrangem uma gama de temas. Conforme a lista abaixo: Uma pequena carta na página 78; Uma pesquisa acerca de informações (moeda, comida, população, etc.) sobre outras nações (Angola, Argentina, etc.) na página 79, além de um texto que exalta o sucesso da cachaça no exterior. A UD, em uma perspectiva organizativa quanto material didático, apresenta considerável gama de atividades com muitos temas: Formação do Brasil, Timor Leste, MERCOSUL, entre outros. Considera-se que, para um passo didático, os autores procuraram fornecer muitos aspectos gramaticais e nocional-funcionais. A UD aborda a cultura através de representações culturais, apresentando símbolos, idéias, mitos e pré-conceitos no que tange a língua e culturas brasileiras. Estas características vão ao encontro do trabalho de Kuper (1999:291) que trata dos aspectos culturais como maniqueísta, ou seja, aspectos da cultura brasileira – ou brasileiras – que tratam de características consideradas representativas do Brasil. O autor também destaca a discussão entre os antropólogos sobre as possíveis culturas, tanto a chamada “alta cultura” como a “cultura popular”, esta última tratada com simpatia por muito pesquisadores da área. Como os japoneses nas cidades de Tomé-Açu e Santa Izabel, ambas as cidades no Pará. Bem como a cidade de Ivoti no estado do Rio Grande do Sul onde se fala alemão como primeira língua, além dos surdos. 21
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8. Considerações O manual para o ensino de línguas, como já exposto acima, possuem considerável papel no ensino-aprendizagem de uma língua, seja materna, segunda ou estrangeira. Porém, a experiência mostra que muitas vezes em sala de aula o professor não se dá conta da potencialidade deste material didático. O manual é um espaço em que estão presentes diversas atividades que podem colaborar com a relação aluno-professor-língua. A cultura de uma língua está presente neste material e o docente deve ter ciência do seu papel quanto colaborador entre essa cultura e o ensino da língua. Neste contexto, entender a cultura como uma coisa livre da dinâmica que envolve a humanidade é tratar de um universo em si e dar voltas ao redor de um objeto amplo, ou melhor, incomensurável. Apesar do termo “cultura” aparecer como um vocábulo em número singular, o que está por trás desta palavra incomoda muitos estudiosos e é usada por pessoas – estudiosas ou leigas – em muitas situações. Situações estas em que não se pensa sobre o que vem a ser cultura. Conforme foram expostos acima, conclui-se que a UD analisada apresenta características referentes às representações culturais como mítica - O Maranhão como o único lugar em que é falado o português mais correto do Brasil - ideológica – o povo brasileiro é um povo feliz, mesmo sem dinheiro – pré-conceituosa –acreditar que o Brasil é um país bom pelo simples fato de não ter guerras e grandes catástrofes naturais. Como se viu a cultura ainda é tratada como uma simbologia que a mostra estática, livre de idéias novas e da dinamicidade existente no ser humano. Algo acabado e que dificilmente será mudado. Os estudos mostram que é impossível considerar a cultura de um povo somente pelos modelos que a mídia ou o próprio livro didático mostram. Os povos que falam a língua que está sendo estudada são compostos por centenas de milhares – ou até milhões – de personalidades. Acreditar que toda essa gente se comporta como um manual é esquecer a dinâmica humana. Nestes anos não existiam celular, internet e tantos recursos que hoje estão presentes na vida moderna. Por fim, o manual de português para estrangeiros deve ser tratado com criticidade. Com isso, se terá um ensino de línguas mais livre de estereótipos, preconceitos, mitos e muros que atrapalham o envolvimento do aluno com uma nova cultura. Referências BALBONI, Paolo Emilio. Parole comuni, culture diverse. Guida alla comunicazione interculturale. Veneza (Itália), Marsilio Editore, 1999. BERWIG, Carla Anete. Estereótipos culturais no ensino/aprendizagem de português para estrangeiros. Dissertação de Mestrado em Letras– Universidade Federal do Paraná, Curitiba, 2004. BOSI, Alfredo. Dialética da colonização. São Paulo: Companhia das Letras, 1992. BROWN, H. Douglas. Teaching by principles: an interactive approach to language pedagogy. Englewood Cliffs. New Jersey: Prentice Hall, 2001. BYRAM, Michael & FLEMING, Michael. Tradução de José Ramón Parrando e Maureen Dolan. Perspectivas Interculturales en el Aprendizaje de Idiomas. Madrid (Espanha): Editora Edinumen, 2001. CANALE, Michael; SWAIN, Merril. Fundamentos teóricos de los enfoques comunicativos. La enseñanza y la evaluación de una segunda lengua. Disponível em http://www.quadernsdigitals.net/datos_web/hemeroteca/ r_3/nr_46/a_673/673.html. Acesso em 16 fev. 2009. CLAXTON, Mervyn. Cultura y desarrollo. Disponível em: http://unesdoc.unesco.org/ images/0009/000970/097070s.pdf. Acesso em 10/11/2007. CUCHE, Denys. Tradução de Viviane Ribeiro. A noção de cultura nas ciências sociais. Bauru (São Paulo): EDUSC, 2002. DÓRIA SILVA, Renata de Cássia. Testes de nivelamento: uma proposta para o português Língua Estrangeira. 2008. 55f. Trabalho de Conclusão de Curso (Letras – Hab. Língua Portuguesa) – Faculdade de Letras, Universidade Federal do Pará, Belém, 2008.
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Anais do II Congresso Internacional de Estudos Linguísticos e Literários na Amazônia (CIELLA) FLEURI, Reinaldo Matias. Educação intercultural. São Paulo: DP& A Editora, 2003. FRANCO, David Vidán. La interculturalidad en el aula de ELE. Dissertação de Mestrado em formação de professores de Espanhol como língua estrangeira - Universidad de Barcelona, Barcelona (Espanha), 2004. FURTADO, Reginaldo da Costa. Uma abordagem (inter) cultural no ensino do FLE no Amapá: concepções e práticas do Manual Portes ouvertes. Dissertação (Mestrado em Letras) – Universidade Federal do Pará/ Universidade das Antilhas e da Guiana, Belém, 2005. GEERTZ, Clifford. Tradução de Alberto L. Bixio. La interpretación de las culturas. Barcelona (Espanha): Editorial Gedisa, 2003. GLISSANT, Eduard. “Crioulização no Caribe e nas Américas”. In: Introdução a uma poética da diversidade. Juiz de Fora, MG: Editora UFJF, 2005. HALL, Stuart. Identidade cultural na pós-modernidade. Rio de Janeiro: DP & A Editora, 2006. KUPER, Adam. Tradução de Mirtes Frange de Oliveira Pinheiros. Cultura: a visão dos antropólogos. Bauru, SP: EDUSC, 2002. LAFUENTE, Miguel Martínez. Integración de lengua y cultura en el aula E/LE: “hacia um enfoque intercultural”. Dissertação de Mestrado em Ensino do Espanhol como língua estrangeira - Universidad Antonio de Nebrija, Madrid (Espanha), 2005. LARAIA, Roque de Barros. Cultura: um conceito antropológico. Jorge Zahar, 2004. MATTELART, Armand; NEVEU, Érik. Tradução de Marcos Marcionilo. Introdução aos estudos culturais. São Paulo: Parábola Editorial, 2004. MIQUEL, Lourdes. Lengua y cultura desde una perspectiva pragmática: algunos ejemplos aplicados al español. In: Frecuencia L, vol. 5, Madrid: Editora Edinumen, 1997. MOURA, Renata Portela de. O lugar da cultura em livros didáticos de português como segunda língua. Dissertação (Mestrado em Lingüística Aplicada) – Universidade de Brasília, Brasília, 2005. PONCE, Maria Harumi; BURIM, Silvia Andrade; FLORISSI, Susanna. BEM-VINDO! A Língua portuguesa no mundo da comunicação – livro do aluno. São Paulo: SBS Editora, 2004. SANTOS, José Luís dos. O que é cultura? São Paulo: Editora Brasiliense, 1994. SERRAGIOTTO, Graziano. Il binômio língua-cultura. Disponível em http://win.liceoamaldi.it/formazione/ AT4%20Europa%20e%20intercultura/Il%20binomio%20lingua%20cultura.pdf. Acesso em nov. 2007. VINOZZI, Letizia. L’insegnamento di L2 come mediatore culturale. In: ILSA/Italiano a stranieri (Rivista quadrimestrale per l’insegnamento dell’italiano come língua straniera/seconda), N. 4. Roma/Atenas: Edilingua, 2006.
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PLANEJAMENTO E EXECUÇÃO DE ATIVIDADES INTERCULTURAIS NA AULA DE PORTUGUÊS PARA ESTRANGEIROS Marcos dos Reis BATISTA (Universidade Federal do Pará)
RESUMO: A sala de aula é um espaço de encontro, de pensar o mundo, de problematizá-lo, dentre muitas outras coisas. Quando se trata de ensino de língua estrangeira, o espaço físico é um detalhe se comparado à viagem que se pode fazer quando se começa a conhecer e a aprender uma nova língua. Nesse ambiente não se ensina somente o lingüístico. Mas, também o cultural. Este relato de experiência tem o propósito de apresentar o planejamento e a execução de aulas de português brasileiro para estrangeiros com ênfase no cultural, principalmente quanto às regras sociais e quanto aos aspectos folclóricos do Brasil e dos países de origem dos aprendentes. Assim, por meio das exposições dos alunos e do professor, percebeu-se encontros e conflitos entre as culturas presentes e que por meio de atividades interculturalmente planejadas, pode-se chegar ao diálogo, sem abandonar convicções a hábitos. PALAVRAS-CHAVE: interculturalidade; português língua estrangeira; ensino-aprendizagem de línguas.
RÉSUMÉ: La salle de classe est un espace de rencontre, de penser sur le monde, de le problématiser, et de réfléchir sur beaucoup d’autres choses. Quand se traite l’enseignement d’une langue étrangère, l’espace physique est un détail comparé à un voyage qui peut se faire quand on commence à connaître et à apprendre une nouvelle langue. Dans cette ambiance, on n’offre pas seulement l’enseignement linguistique ,mais aussi culturel. Ce rapport d’expérience a le but de présenter le planning et l’exécution de cours de Portugais Brésilien pour une correspondance culturelle, principalement en ce qui est des règles sociales et des aspects folkloriques du Brésil et des pays d’origines des apprenants. Ainsi, au moyen des expositions des étudiants et du professeur, on s’est aperçu de points de rencontres et de points conflits de cultures en présence, et au moyen d’activités interculturelles planifiées ,on peut aboutir au dialogue; sans abandonner ses convictions habituelles. MOTS-CLÉS: Interculturalité, portugais langue étrangère, enseignement-apprentissage de langues.
1. Introdução O objetivo de planejar atividades interculturais é o de relacionar hábitos/atitudes sociais dos falantes do português do Brasil como meio para o ensino dessa língua-cultura a aprendentes estrangeiros. Ao planejar atividades que tem como base a cultura, temos como objetivos específicos: expor os alunos a modelos de situação interacionais, como o encontro entre colegas de uma mesma faculdade; expor/criar versões desses modelos situacionais para cada língua-cultura (congolesa, haitiana, alemã e brasileira); apresentar, refletir, discutir e analisar todos os modelos expostos; e, dialogar a importância de se construir uma reflexão entre as diferentes culturas, buscando ressaltar a necessidade do diálogo entre falantes nativos e novos falantes (aprendentes). Este curto trabalho está dividido oito partes, conforme a seguir: Cultura e intercultura, Da intercultura ao ensino de línguas em uma perspectiva intercultural – a sensibilização diante do outro, Competência comunicativa intercultural, Desenho de atividades interculturais, Sugestões de atividades, conclusão, Referências e Anexos. Incluímos em nosso trabalho os itens Da intercultura ao ensino de línguas em uma perspectiva intercultural – a sensibilização diante do outro e Competência comunicativa intercultural buscando orientar o leitor a outros limites dos estudos da interculturalidade e ensino-aprendizagem de línguas. Mas, nosso intuito é de apresentar um pouco da nossa curta experiência no ensino-aprendizagem de português do Brasil para estrangeiros. 2. Cultura e intercultura O termo “cultura” faz parte dos estudos de diversos campos e é objeto de investigação de longa data. Tê-lo como objeto de estudo é incomensurável e desperta calorosas discussões. De uma perspectiva racista a uma perspectiva intercultural, muitas são as argumentações, as contraargumentações e as pesquisas que colaboram com o entendimento diante da problemática da cultura em nosso mundo. As palavras possuem uma história e de alguma maneira constroem a historia. O termo “cultura” tem origem no latim, significa o cuidado dispensado ao campo e ao gado e aparece nos fins do século XII para designar um trecho cultivável de terra (CUCHE, 2002, p. 19). Ao decorrer dos diversos momentos que a humanidade passou, a cultura passou – e, acreditamos que ainda passa – por consideráveis conceitualizações. Para os pensadores do Iluminismo a cultura é o acumulo e transmissão dos saberes pela humanidade ao longo da história (CUCHE, 2002, p. 21). No vocabulário Frances do século XVII cultura está muito próxima do termo “civilização”, que naquela época tem grande prestígio. Nesse âmbito, o primeiro termo evoca os progressos individuais e o segundo os processos coletivos. Porém, em nosso trabalho não nos ocuparemos na palavra “civilização”. No século XVII kultur aparece no alemão como uma transposição exata do vocábulo francês. Entretanto, trata-se de dois sentidos diferentes. A idéia germânica de cultura muda pouco no século XIX e tem forte influência do nacionalismo da nação alemã (CUCHE, 2002, p. 28). A idéia germânica considera a cultura como um conjunto de conquistas artísticas, intelectuais e morais que constituem o patrimônio de um povo, de uma nação. Na França, o termo se enriqueceu com uma dimensão coletiva e passou a ser considerada como um conjunto de caracteres de uma determinada comunidade, porém, em um sentido geral e impreciso (CUCHE, 2002, p. 29). Santos (2008) ajudam-nos a esclarecer a concepção de cultura na modernidade. Ele destaca duas concepções básicas, a primeira concepção remete aos caracteres de uma realidade social e, a segunda, refere-se mais especificamente ao saber, às idéias e às crenças de um povo (SANTOS, 2008, p. 23). O cultural é indissociável da língua, tanto no processo de aprendizagem, quanto na convivência do estrangeiro com a nova língua, ou seja, “Sempre que você ensina uma língua, você também ensina um sistema cultural complexo de costumes, valores, e maneiras de pensar, sentir e agir”. (BROWN
2001, p. 64). Com isso, parte-se da hipótese que o manual de línguas possui potencial1 para a difusão do idioma de modo a conscientizar os aprendentes culturalmente e interculturalmente. Tal potência ajuda a construção de conexões educativas e processos de aprendizagem mútua entre os grupos culturalmente diferentes (FLEURI, 2003, p.10). Furtado (2005, p. 53) apresenta um dos papéis do componente cultural diante do EAL em que “o componente cultural media as interações, lançando a idéia de que os conhecimentos culturais partilhados pelos interlocutores são indispensáveis para o desenvolvimento do processo interacional, por meio da intercompreensão”. Laraia (2005) apresenta em seu livro Cultura: um conceito antropológico o desenvolvimento do conceito de cultura durante vários séculos. Entender cultura como fenômeno com muitas facetas e características nos ajudará a apresentar um quadro da atual situação de como os elaboradores de manuais tratam em seus trabalhos a cultura, ou melhor, as culturas. É partindo dessa situação – a cultura em um sentido plural – que o presente estudo se mostra como um espaço para reflexões diante do nosso objeto de estudo e trabalho. Ao tratar da intercultura, Desmeserets (apud FURTADO, 2001, p. 34) diz que “intercultura é a presença e a inter-relação em um mesmo tempo e em um mesmo espaço, de pessoas de diversas culturas que coexistem”. Para Alsina (1999, p. 74) a interculturalidade é como “as relações que se dão entre as diversas culturas em um mesmo espaço real, midiático ou virtual, que também teriam referencia a dinâmica que se dá entre (...) as comunidades culturais”. O intercultural vem a somar com a interação quando se trata da aprendizagem de uma nova língua. Com isso, podem-se ampliar horizontes pessoais e profissionais. Com isso, investigar os aspectos culturais – como a cultura ou as culturas brasileiras são tratadas em um manual para o ensino de PBLE – e os interculturais – a relação das atividades com a cultura dos alunos estrangeiros – se coloca como o caminho a ser traçado para o desenvolvimento deste trabalho. Podemos, grosso modo, considerar as regras sociais - como sentar-se a mesa, apresentar-se a alguém ou como se dá o casamento em uma determinada sociedade – fazendo parte da primeira concepção. E, o folclore. As expressões artísticas fazendo parte da segunda. No ensino-aprendizagem de línguas, a sala de aula PE o laboratório para o professorpesquisador. É nesse ambiente que podemos verificar diversos mitos – que ouvimos ainda na formação, nos cursos de licenciatura – se tornarem realidade e, ainda mais, problemas que nos incentivam a produzir textos, nos fazem refletir sobre o quê ensinar, o porquê ensinar, o para quê ensinar. Em uma sala de aula de língua estrangeira, o encontro entre culturas é certo. Nesse ambiente, temos o professor de língua com sua cultura pessoal/coletiva e com seu modo de ensinar, os alunos com suas culturas pessoais/coletivas e seus modos de estudar/aprender e, os materiais didáticos, geralmente os manuais de língua, com seus conteúdos culturais. Ao pensar em um ensino de uma língua-cultura, é importante reconhecer que a sala de aula é um ambiente em que deve-se pensar sobre o que tratar como cultural. Para Carvalho (2009) “ensinar uma língua é ensinar cultura, não como uma quinta habilidade, que requer uma didática especial, mas como um elemento inerente à língua, que deve fazer parte da sala de aula desde o início do processo de aprendizagem”. Algumas questões nos são necessárias, como: O que ensinar quando o assunto é tratar de elementos culturais? E ainda, como partir de um ensino cultural para atividades que tem como finalidade o diálogo intercultural? Mais a frente trataremos da problemática do intercultural no ensino de línguas. Para pensar na língua-cultura-alvo requer uma reflexão diante dos estereótipos. Segundo Balboni (1999) esse são modelos culturais empiricamente verificáveis que são generalizados como representantes fieis de um determinado povo ou nação. Em nosso caso, o ensino do português Entende-se aqui Potencial como motivação para a aprendizagem de um novo idioma. Neste âmbito a motivação deve ser levada em conta na aprendizagem de uma língua com vista à aproximação do aluno com uma nova cultura. Por meio de uma reflexão diante dessas atividades pode-se começar a pensar acerca de como desenvolver a consciência cultura e intercultural do aprendente e, também, do docente utilizando os materiais didáticos de PBLE.
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brasileiro para estrangeiros, como tratar da cultura brasileira sem cairmos em estereótipos? Essa questão nos daria, quem sabe, uma ampla produção de textos e pesquisas. Cada cultura é o resultado de uma história particular (SANTOS, 2008, p. 12), ou seja, é a construção de um longo caminho. Ao tratarmos de cultura, estamos tratando de idéias, de cidadãos que constroem suas vidas em um ambiente e as transformam conforme essas idéias e discussões diante do que se construiu até determinado período na sociedade onde essas pessoas vivem. Então, cultura brasileira é o resultado de diversas histórias. Mas, para Santos essa história particular também incluiu relações com outras culturas – aqui entendemos também como povos – com os quais podem ter características bem diferentes (SANTOS, 2008, p. 12). A relação com outras culturas é evidente no Brasil quando nos atentamos diante de nossa história. Principalmente com relação aos povos africanos que aqui chegaram. A presença negra é muito forte, temos como exemplo o samba, que é uma das mais destacadas expressões culturais do país que é atribuída à estereotipada vivacidade do escravo negro. Conforme citado acima, quando tratamos de cultura, tratamos de sujeitos que possuem inúmeras características, essas pessoais e outras coletivas. Esses sujeitos possuem hábitos às vezes próximos e, muitas vezes, distantes. Nesse distanciamento temos o estranhamento, esse pode ser chamado de choque cultural ou de choque entre-culturas. Choque cultural é entendido como o conjunto de reações que um indivíduo pode experimentar ao entrar em contato pela primeira vez com uma cultura diferente da sua, cujo o grau de conhecimento pode ser quase nulo (OLIVERAS, 2000; ALSINA, 1999). Segundo alguns trabalhos recentes, sustenta-se que quanto maior for a distância entre a cultura do sujeito/aprendente daquela estrangeira mais evidente será o choque cultural. Em muitos países europeus, os estudos diante da cultura e ensino-aprendizagem de línguas tiveram forte impulso em virtude do fenômeno imigratório naquele continente. Em outras nações, como o Brasil, o tratamento ao ensino de línguas em uma perspectiva cultural e, também, intercultural, se dá pelo grande fluxo de pessoas que desejam pelos mais diversos motivos se integrar com a línguacultura brasileira. Trataremos então do que vem a ser o intercultural em nosso trabalho. Para o início da aprendizagem de uma língua nova, obter informações sobre o modo de vida dos falantes dessa colabora consideravelmente com o trabalho do aprendente. Conhecer as diversas características da comunidade onde se fala o idioma que está sendo aprendido diminui as chances de ocorrer conflitos entre o aprendente e os falantes nativos. Também é valido destacar que nem o manual de língua, nem toda a gama de informações levados pelo professor para a sala de aula será suficiente para esgotar as inúmeras situações de contato com a nova língua-cultura-alvo. Nesse ambiente de aprendizagem, de contato com pessoas de outras culturas, temos diferentes processos: a multiculturalidade e a interculturalidade. O multicultural é o processo pelo qual duas ou mais culturas convivem em um mesmo ambiente – como é o caso de muitas comunidades turcas na Alemanha -, mas, não há interação, ou essa é extremamente restritiva entre ambas (BALBONI, 1999; FLEURI, 2003). A interculturalidade é um processo pelo qual duas ou mais culturas conseguem interagir, mesmo com a presença de conflitos (BALBONI, 1999; CUCHE, 2002; ALMARZA e CALVO, 2002). A cultura como interculturalidade pode compreender uma língua, uma cultura nova desde este enfoque requer colocar nesta cultura em relação com a própria. Não é uma transmissão de informação. Leva consigo uma reflexão sobre as duas culturas (ZARATE, 1982; PORCHER, 1986; KRAMSCH, 1993). Para Balboni (1999, p. 17) para cada diferença cultural, funde-se uma nova realidade, ele considera o multicultural uma fase transitória, a espera de uma pseudo “homogeneização”. Porém, a interculturalidade é uma atitude constante, que considera a riqueza na variedade, que não se propõe à homogeneização e objetiva permitir a interação mais plena e fluída possível entre as diferentes culturas, ou seja, entre os diferentes sujeitos. Tratar o ensino de uma língua-cultura em um processo ou em um a perspectiva intercultural não significa abandonar os próprios valores e se tornar um membro de uma determinada cultura e, segundo Balboni (1999, p. 17) entrar em uma perspectiva intercultural significa: a) conhecer os outros;
b) tolerar as diferenças, menos em uma esfera de imoralidade que em nosso padrão não tendemos a aceitar; c) respeitar as diferenças que nos colocam como problemas morais, mas que reenviam somente às diferentes histórias das várias culturas, e d) colocar em discussão os modelos culturais onde crescemos. Para Geertz (2003, p. 89) define cultura como um entrelaçado semiótico transmitido historicamente de forma que nos permite comunicarmos e perpetuar o conhecimento, as crenças e as atitudes sobre o mundo. 3. Da intercultura ao ensino de línguas em uma perspectiva intercultural – A sensibilização diante do outro A mentalidade diante da interculturalidade age com o desejo de integrar as pessoas com a diversidade que distingue os aprendentes de uma nova-língua que vêem de outras culturas. Assim, se configura um processo de positiva hibridação por meio do qual cada pessoas supera o próprio centralismo cultural e adere a uma nova forma de agir diante do outro (MENEGALDO, 2007, p. 06). Menegaldo (2007) apresenta algumas coordenadas quando tratamos da didática intercultural, são esses: a) O senso das convenções: duas ou mais pessoas conseguem conviver de maneira pacifica porque aceitam em dividir normas e regras em comum; b) O senso de partilha: nasce do EU pelo desenvolvimento da autonomia, da auto-estima, da independência de pensamento e de escolha; c) Da tensão para a unidade: é fruto da conscientização de colaborar com outro ser humano e de repartir em comum direitos humanos. Ter atenção e estar aberta ao mundo e d) Capacidade de descentralização: quando uma pessoa supera o próprio ponto de vista como único possível e começa a entender que o relativismo cultural não a ajuda a interagir com o mundo. Antes de darmos continuidade, é interessante esclarecer o que vem a ser Relativismo cultural. Esse, segundo o Diccionario de términos clave de ELE (2009) é a atitude estudada por uma corrente de pensamento que postula a idéia de que cada cultura deve se entender dentro de seus próprios termos e destaca a impossibilidade de estabelecer um ponto de vista único e universal na interpretação das culturas. Na posição contrária, se situa o universalismo cultural que afirma a existência de valores, juízos morais e comportamentos com valor absoluto e, com isso, aplicáveis a toda a humanidade. A sensibilização quanto à interculturalidade não é inata, mas é o resultado de um processo formativo que o ensino de uma nova língua pode – e até certo ponto, deve – colaborar consideravelmente. Principalmente quando tratamos da troca em pessoas de diferentes mundos. Por isso, consideramos importante transcrever as considerações de Menegaldo (2007) acerca da sensibilização do intercultural. 4. Competência comunicativa intercultural Para colaborar com a nossa reflexão, tratamos para efeito de informação acerca da competência comunicativa intercultural. Cada língua nasce de uma cultura e é a expressão da sociedade que a produz. Por isso, essa expressa concepções de mundo, valores, modalidades de interação peculiares e, é uma entidade em contínua modificação (Menegaldo, 2007, P. 09). A diversidade lingüística constitui de um lado uma riqueza considerável e do outro, se coloca como um problema no momento em que a comunicação deve ser instaurada entre falantes de diferentes línguas (BALBONI, 1999; SERRAGIOTTO, 2006, MENEGELDO, 2007). Nessa situação, é necessário uma preparação quanto ao encontro entre diferentes culturas, uma preparação intercultural e, assim, desenvolver a competência comunicativa intercultural (OLIVEIRA SANTOS, 2004). Essa tem como fundamento a reciprocidade dos sujeitos envolvidos e sua adequação bilateral (EU e TU ou NÓS e VOCÊS) da comunicação. Conforme Oliveira Santos a abordagem comunicativa intercultural
Pode ser resumida como a força que pretende orientar as ações dos professores, alunos e de outros envolvidos no processo de ensino-aprendizagem de uma nova língua-cultura, o planejamento de curso, a produção de materiais e a avaliação da aprendizagem com o objetivo de promover a construção conjunto de significados para um diálogo entre culturas (2004, p. 154)
E pode ser desenvolvida por meio de atividades em sala de aula, materiais didaticos que tratem da relação entre a língua-cultura-alvo e o aprendente. Por isso, nos próximos tópicos deste trabalho, apresentaremos outras considerações acerca do cultural e do intercultural no ensino-aprendizagem de português brasileiro como língua estrangeira e reflexões quanto ao planejamento de atividades interculturais. Passaremos no próximo item a tratar do desenho de uma atividade intercultural. Com isso, pretendemos dar inicio as nossas projeções diante de um ensino intercultural. 5. Desenho de atividades interculturais Apresentamos nesta parte do trabalho o planejamento de uma atividade intercultural com alunos de português língua estrangeira no âmbito da Universidade Federal do Pará. Para a construção de atitudes interculturais, necessitamos a partir da sala de aula, desenvolver atividades que ajudem os alunos a conhecer de modo satisfatório a nova língua. para isso, faremos uso do modelo de interculturalidade de Byram (apud CALVO; ALMARZA, 2005) como base para a composição de planificação, ensino e posterior avaliação. Apresentamos o esquema desenvolvido por Calvo e Almarza ( 2005, p. 926-927): Conhecimento (que?): o que os membros de outra cultura ou grupo cultural ou social consideram ou percebem como significativo (identidade nacional e manutenção da comunidade nacional). Conhecimento de grupos sociais, seus produtos e praticas culturais no país nativo e no estrangeiro. Exemplos: conhecer as percepções sobre as regiões e as identidades regionais, as distintas línguas, etc. Dois níveis de conhecimento: – Conhecimentos de fatos/dados e – Apreciação de significado que são levados em consideração Atitudes: representam os aspectos afetivos e cognitivos da empatia: curiosidade e abertura, disposição para se deixar convencer por outra cultura. Exemplo: disposição para questionar os valores e as pressuposições das praticas e dos produtos culturais no próprio contexto. Comportamento: a cultura definida como comportamento compartilhado de um determinado grupo social se apresenta em parte por meio de normas e de convenções de comportamento. Essa classificação é de Calvo e Almarza (2005, p. 926-927) e, nos ajudam a entender alguns aspectos de uma análise e projeção de atividades com base no cultural e no intercultural. 6. Sugestões de atividades Com base em Calvo e Almarza (2005), apresentamos uma lista de temas que podem ser tratados em atividades interculturais: Tema 1: primeiras impressões: Conhecer os aspectos geográficos e históricos do país e da língua que está se aprendendo; Familiarizar os alunos com os nomes dos estados e cidades. Tema 2: espaços públicos: Ajudar os alunos a sintonizar com o novo contexto cultural;
Desenvolver um interesse para descobrir outras perspectivas e interpretações de fatos familiares. Tema 3: o mundo do trabalho: Conhecer e reconhecer aspectos da economia do país onde a língua que está sendo estudada é falada. Tema 4: os tabus da sociedade: Apresentar os temas polêmicos da sociedade. 7. Conclusão Consideramos que a sala de aula é um espaço de encontro, de pensar o mundo, de problematizá-lo, dentre muitas outras coisas. Quando o assunto é o ensino de língua estrangeira, o espaço físico é um detalhe se comparado à viagem que se podem fazer quando se começa a conhecer e a aprender uma nova língua. Nesse ambiente não se ensina somente o lingüístico. Percebemos no texto acima que os termos cultura e intercultura fazem parte de um complexo campo de estudos que temos para explorar e refletir diante da problemática do ensino do português brasileiro para estrangeiros. Consideramos que é preciso uma reflexão maior e o planejamento de atividades que possam desenvolver a conscientização diante de diferentes culturas, tanto a do aluno estrangeiro, quanto a cultura que ele está aprendendo. Com isso, facilitaremos a inserção do aprendente na nova língua e colaboraremos em diminuir conflitos entre as culturas presentes e que por meio de atividades interculturalmente planejadas, pode-se chegar ao diálogo, sem abandonar convicções e hábitos. Referências ABELLA, Rosa Maria Rodríguez. El componente cultural en la enseñanza/aprendizaje de lenguas extranjeras. Disponível em http://cvc.cervantes.es/literatura/aispi/pdf/18/18_239.pdf. Acesso em dez. 2008. ALSINA, Miquel Rodrigo. Comunicación intercultural. Barcelona: Anthropos, 1999. BALBONI, Paolo Emilio. La competencia comunicativa intercultural: um model. Perugia (Itália): Guerra Edizioni, 2006. BALBONI, Paolo Emilio. Parole comuni, culture diverse. Guida alla comunicazione interculturale. Veneza (Itália), Marsilio Editore, 1999. BERWIG, Carla Anete. Estereótipos culturais no ensino/aprendizagem de português para estrangeiros. Dissertação de Mestrado em Letras – Universidade Federal do Paraná, Curitiba, 2004. BROWN, H. Douglas. Teaching by principles: an interactive approach to language pedagogy. Englewood Cliffs. New Jersey: Prentice Hall, 2001. BYRAM, Michael & FLEMING, Michael. Tradução de José Ramón Parrando y Maureen Dolan. Perspectivas Interculturales en el Aprendizaje de Idiomas. Madrid (Espanha): Editora Edinumen, 2001. CARVALHO, Orlene Lúcia de Sabóia. Aspectos da identidade brasileira em livros didáticos de português para estrangeiros: um estudo lexical. Disponível em http://www.onda.eti.br/ revistaintercambio/conteudo/arquivos/1771.pdf. Acesso em jan. 2009. CUCHE, Denys. Tradução de Viviane Ribeiro. A noção de cultura nas ciências sociais. Bauru (São Paulo): EDUSC, 2002. FLEURI, Reinaldo Matias. Multiculturalismo e interculturalismo nos processos educativos. In: ensinar e aprender: sujeitos, saberes e pesquisa / Encontro Nacional de Didática e Pratica de Ensino (ENDIPE). Rio de Janeiro: DP&A Editora, 2000, p. 67-81.
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Anexo I Questionário (adaptado de ALMARZA & CALVO, 2002) Interculturalidade e ensino de línguas Nome: Experiência profissional: Centro de ensino: Materiais utilizados / manual de línguas O que significa “aprendizagem intercultural”? Quando nos encontramos entre duas culturas, tendemos a compará-la. Com isso, se produz uma aprendizagem desse modo? Que tipo de conclusão podemos ter quando fazemos comparações? E por que? O que significa dizer “ensinar língua é ensinar cultura”? Como podem os estudantes em um meio superficial, a sala de aula, ter acesso a códigos culturais de outra realidade? Se quisermos ensinar a língua de forma que os estudantes apreciem seus significados sociais e culturais. Que significados podem ser explícitos? Que significados podem ser entendidos de forma explicita? Como se pode ensinar uma perspectiva do outro (cultura estrangeira) em um contexto educativo que é por sua vez produto de suas próprias concepções e valores (cultura nativa)?
O que quer dizer ser culturalmente competente? Adquirir a cultura de forma que nos permita comportamentos que seguem a convenções sociais de uma determinada comunidade lingüística? Temos como objetivo final que nossos alunos desenvolvam outra personalidade? A competência intercultural se definiu como a habilidade de nos comportarmos de forma adequada e flexível de enfrentar com ações, atitudes e expectativas no encontro com representantes de uma cultura estrangeira. Como se pode conseguir isso? Ate que ponto é possível chegar a ser cognitivamente membros de outra cultura? Podem os adultos aprender a construir e ver o mundo por meio de olhos culturalmente diferentes?
Anexo II Diálogo para uma reflexão em sala de aula: “Johannes é belga, Steve é africano. Encontram-se em uma tarde de inverno: Johannes: Você quer um café? Steve: Não, obrigado, estou sem fome. Johannes: quer um CAFÉ? Steve: Não, obrigado. (breve intervalo) estou sem fome. (longo intervalo) Johannes: você quer beber alguma coisa? Steve: ah! Com certeza, faz frio. Johannes: que tal um café? Steve: tudo bem! Este exemplo é extraído do trabalho de Serragiotto (2008). Steve reage a pergunta inicial como se fosse oferecido a ele uma comida, quanto que na sua cultura (Haya, norte da Tanzânia) para as visitas são oferecidas folhas de café para mastigar, como símbolo de amizade, hospitalidade e riqueza. Conseqüentemente é natural que seja coerente que o café seja uma comida, e não uma bebida. a categorização de Johannes é diferente, café é uma bebida quente. Ou seja, é claro nesse exemplo a falta de conhecimento de ambas as culturas dos interlocutores.
às margens do jornal, às margens do Diário: forma literária e processo social em Triste Fim de Policarpo Quaresma Marcos Vinícius SCHEFFEL (Universidade Federal do Amazonas)
RESUMO: Triste Fim de Policarpo Quaresma é o romance mais conhecido da produção ficcional de Lima Barreto. Sua primeira publicação foi em 1911 em folhetins do Jornal do Comércio. Em 1915 veio a primeira edição em livro. O que nem todos sabem é que o romance apresenta um esboço nas páginas do Diário Íntimo e que muitos temas tratados nas crônicas reaparecem na (re)construção ficcional daqueles primeiros anos da República. Esse artigo pretende discutir o processo ficcional de Lima Barreto, ou seja, comparar os dados da realidade anotados no Diário Íntimo e nas crônicas publicadas em jornais - com a realização de um romance de acordo com os pressupostos realistas onde os elementos subjetivos deveriam ser expurgados. PALAVRAS-CHAVE: Lima Barreto – literatura brasileira – gêneros literários (diário, crônica, romance)
ABSTRACT: The sad end of Policarpo Quaresma is Lima Barreto’s best-known novel. It was published for the first time as a serialized novel in a newspaper called Jornal do Comércio. In 1915 it was published in book form. But not many people know that there is a draft of the novel in Lima Barreto’s Intimate Diary and that various themes explored in his chronicles reappear in the fictional (re)construction of the first years of the Brazilian Republic portrayed in Policarpo Quaresma. This paper aims at discussing Lima Barreto’s fictional process by comparing data from the reality, written down on the diary and on the chronicles published in newspapers, to writing a novel according to Realism aesthetics which presupposed that subjective elements should be eliminated. KEY WORDS: Lima Barreto – Brazilian literature – literary genres (diary, chronicle, novel).
Anais do II Congresso Internacional de Estudos Linguísticos e Literários na Amazônia (CIELLA)
A germinação do romance Um Diário Extravagante. É com essa frase que Lima Barreto abre o seu Diário Íntimo em 1903. O que teria de tão extravagante nesse Diário? O conteúdo faz lembrar qualquer outro diário: quem dá as cartas é Chronus, obrigando o autor do diário a manter os registros do dia a dia por mais insignificantes que possam parecer. Por isso, pode-se encontrar nessas páginas anotações que passam pelos desgostos na Secretaria de Guerra a confissões que custam muito caro a Lima Barreto – como as que se referem à desarmonia em seu lar. Até aí, não temos nada de extravagante. Será que os registros literários feitos pelo autor poderiam ser considerados extravagantes? Esses registros podem ser divididos em dois grupos: 1o os registros mais crus, ou seja, que não têm um trabalho ficcional, mas que demonstram determinada preocupação temática de Lima Barreto (funcionalismo público, imprensa, política, etc.); 2o os registros ficcionais – descrições de personagens, palavras-chave que definem momentos importantes do livro. Extravagante ou não, o Diário Íntimo de Lima Barreto é uma fonte inesgotável de pesquisa para aqueles que querem entender melhor o projeto ficcional do autor. Nele, estão os esboços dos principais romances do autor e também os projetos de romances inacabados ou romances abandonados pelo mesmo. Triste Fim de Policarpo Quaresma não foge a essa regra, tendo anotações importantes do romance que passam pelo Diário. Para analisar o aproveitamento dessas anotações ficcionalmente, deve-se levar em consideração os dois tipos de anotações que podem ter contribuído na escrita do romance. Do primeiro grupo, uma constatação: o autor praticamente não anota até 1910 nada de mais específico a respeito dos temas principais tratados no livro: a Revolta da Armada e o governo de Floriano Peixoto. No ano de 1904, as anotações mais importantes desse grupo referem-se ao ambiente da Secretaria de Guerra e ao bacharelismo fortemente criticado pelo autor em toda a sua obra. Do ambiente da Secretaria de Guerra, Lima Barreto observa a mania das demandas: Durante o meu primeiro ano de amanuense de Secretaria de Guerra, foi reclamada a baixa de quatro soldados que eram peruano, italiano, oriental e português. Eram freqüentes os decretos declarando sem efeito as promoções de alferes a tenente, por não existirem no exército oficiais com aqueles nomes. (BARRETO, 1961, p.45)
O hábito das demandas é ironizado no romance pelas figuras do general Albernaz e do contra-almirante Caldas. Militares remanescentes da Guerra do Paraguai (sem terem participado de uma única batalha) ambos ficam procurando brechas na lei para poderem tirar vantagens pessoais. Para realçar a nulidade de tais demandas, o autor procura mostrar a falta de afinidade de ambos com a carreira militar. Albernaz conta façanhas da Guerra do Paraguai, quando indagado se esteve lá usa sempre uma frase padrão para responder: “Não estive, mas o Camisão...” Já o contra-almirante Caldas fora deixado de lado pela Marinha, pois ficou meses procurando – pelos quatro cantos do país – o navio para o qual ele fora designado comandante. Detalhe: o navio já tinha sido afundado. Esses pseudomilitares freqüentavam com certa assiduidade a Secretaria de Guerra, como se pode ver nessa outra anotação do Diário: Quando eu fui amanuense na Secretaria de Guerra havia um tal B... coronel ou cousa que valha, que era um tipo curioso de idiota. Ignorante até à ortografia; jactancioso. A coragem dele e sua vibração pessoal só surgem quando veste a farda. É conveniente mesmo escrever alguma cousa a esse respeito. [grifo meu] O Exército, ou antes, os oficiais generais de mar e terra escaparam, pelas masorcas (sic) de novembro, de serem tomados de terror pânico. Gente habituada à guerra, e familiarizada com seus instrumentos, tomo como sendo canhão, em Porto Artur (Saúde), um tubo de poste telefônico quebrado e assestado. Bombas eram inofensivas peças de madeira, envolvidas pacificamente em fio de ferro. Almas doutro mundo! (BARRETO, 1961, p.48)
O culto às aparências encontra nesse militar corajoso quando veste a farda um tipo representativo da Primeira República. Ciente disso, Lima Barreto resolve trabalhá-lo ficcionalmente, deixando anotado no Diário que é conveniente escrever algo a respeito. Seria essa uma primeira anotação para o Triste Fim de Policarpo Quaresma? Parece muito pouco, mas não resta dúvida que a ignorância dos militares em relação aos armamentos é devidamente aproveitada no romance, bastando lembrar
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Tema geral: Línguas e Literaturas: Diversidade e Adversidades na América Latina
a cena em que o Major Quaresma faz cálculos matemáticos, em pleno conflito, para usar com mais precisão o canhão, sendo ironizado pelo Tenente Fontes: “– Ora, major, você pensa que está em um polígono, fazendo estudos práticos... Fogo para diante!” ( BARRETO, 1981, p.167) Além desse dado risível dos militares, também mexeram profundamente com Lima Barreto os incidentes da Revolta da Vacina. O autor não fez um registro dia a dia, pois temia que seu Diário fosse descoberto e resolveu escondê-lo durante a Revolta, segundo Lima Barreto o mesmo espírito de delação da Revolta da Armada colocava a liberdade de todos em perigo. Assim, o autor só retoma seus apontamentos quando a Revolta teve seu fim: Durante as masorcas (sic) de novembro de 1904, eu vi a seguinte e curiosa cousa: um grupo de agentes fazia parar os cidadãos e os revistava. O governo diz que os oposicionistas à vacina, com armas na mão, são vagabundos, assassinos, entretanto ele se esquece que o fundo dos seus batalhões, dos seus secretas e inspetores, que mantêm a opinião deles, é da mesma gente. Essa masorca (sic) teve grandes vantagens: 1a demonstrar que o Rio de Janeiro pode ter opinião e defendêla com armas na mão; 2a diminuir um pouco o fetichismo da farda; 3a desmoralizar a Escola Militar. (BARRETO, 1961, p.47-48)
As delações também foram comuns durante a Revolta da Armada. No romance, as delações servem para que os arrivistas, como Genelício e Armando Borges, possam alcançar os cargos desejados. Por outro lado, o clima de caça às bruxas é fator determinante para que Policarpo Quaresma seja executado. Nenhuns dos personagens arrivistas se arriscam a pedir pela vida de Quaresma por saberem que isso pode significar cair em desgraça aos olhos do regime. A observação sobre a Escola Militar também é relevante, pois se tratava de um dos principais redutos positivistas, um esteio da República. Na transposição ficcional, a importância dada à Escola Militar é confirmada na cena do romance em que Floriano Peixoto recebe conselhos dos cadetes da escola com a maior familiaridade e sem que haja um respeito pela hierarquia. Essas anotações menos trabalhadas ficcionalmente devem ter levado Lima Barreto a concluir que pouca coisa mudara entre 1893 e 1904. Na realidade, as duas revoltas tinham uma origem semelhante: a desilusão com a República – sentimento que é o ponto culminante no trajeto do major Quaresma. Porém, como mostrarei numa análise mais específica do romance, a desilusão do personagem principal necessitava que antes houvesse uma ilusão e também era necessário contrapor Quaresma com um quadro adverso. Assim, o romance pedia que se criassem personagens que tirassem proveito desse quadro antidemocrático. Além do fetichismo da farda era preciso destruir o fetichismo do doutor como demonstram várias anotações do Diário: O Barbosa Lima descompôs o Medeiros; não há negar que o Medeiros é vil como uma serpente, mas o Barbosa Lima tem sido de uma felicidade pasmosa, tendo sempre como adversário fofos literatos (no mau sentido!), que não podem arrancar-lhe aquela máscara de matemático e de filósofo. É um péssimo espírito esse Barbosa Lima, utópico, granítico, recheado de positivismo, cheio de idéias sentimentais, mas no fundo cruel e covarde moral. É uma das mais belas flores do bacharelismo do Exército, bacharelismo cheio de espírito de casta e fofa ciência. Convém debicá-lo. (BARRETO, 1961, p.43-44)
Novamente, Lima Barreto mostra que tem a clara intenção de combater determinado tipo: o bacharel. Numa ordem que se dizia democrática, o anel de doutor substituía os títulos de nobreza. Aliás, essa é a imagem que o personagem Coleoni, o italiano compadre de Policarpo Quaresma, fazia dos doutores no Brasil, considerando-os equivalentes aos barões da Itália. No Triste Fim de Policarpo Quaresma vários personagens sintetizam essa valorização do doutor, dois deles exercendo um papel fundamental no romance: Genelício e Armando Borges. Ao primeiro, estudante de direito e “escritor” de maçudos tratados de contabilidade é reservada a função de dar a notícia da loucura de Quaresma, quando ele manda uma petição solicitando a mudança da nossa língua para o tupi-guarani. Já no segundo Lima Barreto consegue concentrar uma série de elementos do bacharelismo e do arrivismo da época. Armando Borges é doutor, escreve em língua clássica artigos médicos, substituindo termos comuns por palavras em desuso. Não consegue ler
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os livros de sua área e nem os romances da mulher, tendo que se contentar com os açucarados romances de Paulo Kock – disfarçados em capas de outros livros. Como tentei demonstrar até aqui, esse primeiro grupo de observações deve ter dado subsídios necessários para construção ficcional de Lima Barreto. Claro que as relações não são diretas e os exemplos dos romances servem apenas para demonstrar que de alguma forma os temas são trabalhados ficcionalmente. A primeira idéia mais definida referente ao livro data de 16 de janeiro de 1905 e se confunde, de certa maneira, com outro projeto ficcional do autor: Clara dos Anjos: Um livro que pensei. Tibau, filho de uma rapariga que fugira da casa de seu pai em companhia de um valdevinos, que pouco depois a abandona, educa com grandes dificuldades esse filho, que chega a estudar medicina; mas, no terceiro ano, sem o adubo que era sua mãe, a planta fenece sem arrimo e, por fim, por recomendação de um colega, vai ser professor de história do Brasil, num colégio em Botafogo; o diretor, notando que era um desar para seu estabelecimento ter um professor sem título algum, arranja-lhe o de major da Guarda Nacional. Eis senão quando o Major Tibau, que do seu avô pouca notícia tivera, vêm a saber que ele tinha morrido no Porto deixando-lhe (e reconhecendo-o como neto) toda a sua fortuna: dois mil contos. No curso das suas lições de história, Tibau tinha adquirido um grande amor do Brasil e acariciara o sonho de uma Sociedade de Folclore, que se destinava a recolher os cantos, as tradições e a poesia popular da nossa terra. Cultivar e festejar as datas familiares com o sainete nacional e os respectivos manjares. Possuidor dessa fortuna, funda a sociedade, com a qual é explorado por jornalistas, poetas, estudantes, debicado pelos ministros e funcionários, a quem se dirigiu para pedir uma subvenção. Morre numa estalagem, às sete horas da noite, estalagem a que se acolhera com um preto velho, o Nicolau, que fazendo “ganchos”, ia-o fazendo viver; morre, mandando que lhe abram a porta e a janela, para ouvir melhor a cantilena da criançada ao luar. (BARRETO, 1961, p.86)
As diferenças entre esse apontamento e o romance são essenciais para se compreender os ganhos que o romance teve: 1) o romance não fornece a origem familiar de Quaresma, nem mesmo seu local de nascimento, levando o narrador a afirmar que o personagem não era tomado por sentimentos regionalistas e que amava o país por igual; 2) O amor de Tibau pelo folclore brasileiro é substituído por um sentimento exagerado em Quaresma que constata com tristeza que muitas tradições ditas nacionais, como o tangolomango, deitavam suas raízes na Europa, levando-o a acreditar que era preciso resgatar as tradições indígenas; 3) a morte do personagem não aparece no romance, mas sabese que ele foi executado “naquele tempo de carnificina” promovido pelo regime; 4) a mudança mais significativa: o nome do personagem que remete à idéia das várias sementes/idéias (poli + carpo) que não frutificaram, conforme assinalou Silviano Santiago (1982, p.163-181) Esse “livro pensado” fica sem mais nenhuma anotação significativa até 1910 – ano em que o autor faz um esboço geral do livro. A primeira anotação do romance mais trabalhada ficcionalmente faz uso de um recurso já empregado no Vida e Morte de M.J. Gonzaga de Sá: o uso de palavras-chave que mostram a clareza do autor em relação a um determinado ponto que deve ser tratado no romance: “Fuzilamento. Ilha das Enxadas. O enviado do marechal. Este, aquele. A leva. O batelão. Quaresma. [...] A presença do poente [?]. Soluço. Será o mar?” (BARRETO, 1961, p.141) Como se vê nesse apontamento, quase todo último capítulo já estava definido por Lima Barreto. As anotações não aparecem na ordem do romance que é a seguinte: Ilha das Enxadas. A leva. O batelão. O enviado do marechal. Fuzilamento. No romance, finda a Revolta da Esquadra, Quaresma é designado carcereiro na Ilha das Enxadas. Lá é testemunha da violência do regime, vendo que os prisioneiros eram levados num batelão para Ilha das Cobras onde eram executados. Indignado, Quaresma se manifesta contra essas atrocidades. O enviado do marechal (Floriano Peixoto) leva Quaresma para o mesmo destino dos prisioneiros, ou seja, o fuzilamento. A percepção do conteúdo crítico do romance era bastante evidente, como se pode observar numa anotação que praticamente sintetiza o problema de Policarpo Quaresma: “Ele não percebia que via com os olhos do sonho, não descontava a refração dessa atmosfera especial, para avaliar a realidade.” (BARRETO, 1961, p.142) A anotação define algo perceptível pelo leitor, mas que não é dito dessa maneira tão direta pelo narrador no romance. O leitor é levado a acompanhar a ação de Quaresma que leva a essa
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constatação quando já é tarde demais. A consciência da nulidade da causa por que lutara toda a vida começa a tomar corpo somente na Terceira Parte do romance, tendo o seu ponto máximo na carta remetida à irmã, quando constata que o melhor é não agir. Noutra anotação, Lima Barreto define características que irá atribuir a Floriano Peixoto: preguiça, fraqueza e o sentimento paternalista para com os alunos da Escola Militar. Novamente, reitera a idéia dos fuzilamentos. Mais adiante no Diário, Lima Barreto reorganiza os capítulos do livro, deixando claro que não havia ainda a importante divisão do livro em três partes. Assim, o fuzilamento de Quaresma está no Capitulo XV e não no quinto capítulo da Terceira Parte como ficou na versão definitiva do romance. A partir do material não utilizado ou alterado também se pode tirar conclusões importantes. Acredito que uma dessas idéias descartadas possa remeter a uma associação de Policarpo Quaresma a José do Patrocínio. Trata-se de Policarpo Quaresma ver a cidade do alto de um balão (BARRETO, 1961, p.142). Lima Barreto antipatizava profundamente com José do Patrocínio, pois acreditava que se exagerava na importância histórica dada a ele. No entanto, Patrocínio era conhecido pelas suas excentricidades: uma delas o projeto de um balão que jamais conseguira decolar. Em outro romance, Vida e Morte de M.J. Gonzaga de Sá, Augusto Machado acha entre os papéis de Gonzaga um conto do amigo sobre um homem que se dedicara a vida inteira a projetar um avião que ao final não decolara. Não estaria Lima Barreto apagando uma associação mais evidente e deixando para que o leitor constatasse que Quaresma fazia parte da geração de 1870 que alimentou sonhos Republicanos e que de repente se via lograda com a Primeira República? Outra idéia apagada é a de Quaresma ser nomeado procurador do Amazonas (BARRETO, 1961, p.142). A única referência no romance ao Amazonas é a paixão exacerbada de Quaresma pelo rio Amazonas, levando-o a “cortar” quilômetros do rio Nilo, principal rival do rio brasileiro em extensão. Além das palavras-chaves que rendem passagens do capítulo e das idéias descartadas, as anotações de 1910 terminam com uma série de histórias do folclore brasileiro recolhidas por Lima Barreto. Uma dessas histórias, “O macaco perante o juiz de direito”, é contatada pelo folclorista visitado por Quaresma e Albernaz (BARRETO, 1981, p.41-42). A escolha dessa história, dentre tantas outras recolhidas por Lima Barreto, está ligada ao próprio trajeto de Quaresma, com a diferença que nessa relação com os poderosos o personagem do romance não tem a mesma sorte do macaco. Acredito que uma análise mais minuciosa do Diário possa revelar outros elementos reaproveitados ficcionalmente no Triste Fim de Policarpo Quaresma. Essa percepção se renova a cada leitura do romance e do Diário. Algumas leituras indicadas por Lima Barreto no Diário podem constituir uma importante pista de outras idéias que nortearam o autor para escrita do seu romance, tratam-se de artigos de revistas brasileiras e francesas.O que discutiam tais textos? Como eles influenciaram o autor? Enquanto isso não é possível, vou analisar a visão histórica de Lima Barreto manifesta em duas crônicas suas. No prefácio da edição de 1956 do Triste Fim de Policarpo Quaresma, F. A. Barbosa comenta sobre a fixação do texto atual do romance. Em síntese, o livro tivera uma primeira edição publicada no Jornal do Comércio em 1911. Em 1915, Lima Barreto banca uma edição em livro pela Revista dos Tribunais. Segundo o crítico, é essa edição que serve como base para as edições atuais. Considerando as duas datas, poderia ser afirmado que as crônicas pouco contribuíram na elaboração do romance. Ao contrário do que aconteceu com o Vida e Morte de M.J. Gonzaga de Sá, onde crônicas inteiras são incorporadas à estrutura do romance, Triste Fim de Policarpo Quaresma não teria se aproveitado dessas observações do cotidiano. Esse não aproveitamento seria justificado exatamente pelas datas, pois as contribuições de Lima Barreto para imprensa se intensificam a partir de 1915, fase considerada como a da militância explosiva do autor que livre do funcionalismo público (aposentado) sente-se à vontade para dizer o que bem entende nas páginas do jornal. Apesar dessa questão cronológica, ainda assim seria possível analisar as crônicas comparandoas com a produção ficcional do autor, procurando nelas os temas que lhe interessaram em diferentes momentos, valendo-se dos diferentes suportes: romance e crônica. Essa tarefa com certeza traria um
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ótimo resultado, no caso do Triste Fim de Policarpo Quaresma, o leitor atento encontraria: a preocupação com a situação da agricultura brasileira, as reflexões sobre a língua portuguesa (em especial as críticas ao purismo), as críticas ao culto do bacharelismo, as visões do subúrbio e a velha implicância com as coisas antidemocráticas que aconteciam na República. Como se pode perceber a tarefa seria enorme, por isso me limito a analisar duas crônicas de Lima Barreto que acredito dialogarem diretamente com Triste Fim de Policarpo Quaresma. Ambas foram publicadas após a edição do romance, no entanto pelo seu caráter intimista – as duas crônicas são permeadas de recordações da infância do autor – elas supõem imagens gravadas na mente do autor referentes à Revolta da Armada. A primeira crônica – intitulada “O Estrela” – foi publicada em 23/05/1916, no Almanaque d’A Noite. Nela, Lima Barreto recorda que durante os episódios da Revolta de 93 – o autor não a chama de Revolta da Armada – seu pai, administrador da Colônia de Alienados da Ilha do Governador, trouxera-o para Ilha, com grandes dificuldades. A crônica é permeada de recordações – como as da escola em que estudava na época, da casa da família, das caçadas etc. A dificuldade com que seu pai cultivava uma horta devido ao ataque das formigas deve ter servido como base para a cena do Triste Fim de Policarpo Quaresma em que o major trava uma verdadeira batalha com as formigas. A crônica mostra o olhar puro do menino Lima Barreto que durante a invasão do local pelos revoltosos não conseguia perceber os perigos que ele e seu pai corriam. O cronista Lima Barreto lembrava que entre os revoltosos, além de militares, havia um dentista e um antigo paciente da Colônia de Alienados. Aqui o autor fixava uma impressão que tivera da Revolta: muitos dos participantes se viram de repente envolvidos nela. O que teria os levado a isso? Quanto ao dentista: “os azares da luta civil tinham-lhe dado um posto militar” (BARRETO, 2004, p.259-262). Apesar de ocorrer do outro lado da trincheira, esse não parece ser o azar do próprio Policarpo Quaresma no romance? Quantos não se viram de repente envolvidos numa batalha sem ter a noção exata dos reais motivos dela? A falta de consciência do sacrifício é associada no final da crônica com o sacrifício do boi Estrela. As próprias características do animal – paciência, resignação – associam-no às pessoas simples que tomaram parte nos episódios da Revolta. Outro detalhe do boi é o fato dele ser assinalado: “um velho boi negro, com uma mancha branca na testa.” Com facilidade, essas características do boi poderiam ser associadas à figura de Policarpo Quaresma: o serviço pela nação, a paciência (maturou suas idéias patrióticas por mais de vinte anos), a resignação (concluindo ao final do livro que o melhor é não agir). Para mostrar que a associação não é fortuita é interessante analisar a segunda crônica. Publicada na revista A.B.C, em 1920, a crônica “Homem ou boi de canga?”, retoma a Revolta de 1893. O clima de evocação das memórias do menino Lima Barreto é o mesmo, assim como o cenário e os personagens recordados: “todo esse quadro imarcescível me ficou gravado na memória até hoje, indelevelmente, como se fosse impresso à máquina” (BARRETO, 2004, p.247). Mas a impressão que realmente ficou marcada foi a do diálogo entre seu pai e o soldado ou cabo que não sabia o motivo pelo qual aqueles dois homens (Floriano e Saldanha) brigavam. Novamente, Lima Barreto evoca a imagem do boi, recorrendo a uma expressão popular “boi de canga”, ou seja, aquele que de tão acostumado a puxar o carro de bois se coloca na posição para executar o serviço mesmo quando não está com a canga. A percepção de alguém que se envolve num conflito sem ter a dimensão exata do seu alcance é matéria incorporada ao Triste Fim de Policarpo Quaresma. A própria ação do major ao final do romance quando toma parte do pelotão Cruzeiro do Sul é uma prova disso. Quaresma não é movido pelo mesmo interesse dos outros militares, quer dizer não pensava em promoções, mas era movido por aquele mesmo sentimento que já resultara em outros dois projetos fracassados. Porém, no caso da Revolta o golpe fora forte de mais e a consciência do personagem é despertada como mostrarei na análise do romance. Como se pode perceber essas duas crônicas preenchem exatamente uma lacuna deixada pelo Diário Íntimo: a abordagem da Revolta da Armada.
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Triste Fim de Policarpo Quaresma: forma literária e processo social Não resta dúvida que Triste Fim de Policarpo Quaresma é o romance de Lima Barreto mais reconhecido pela crítica literária. Em 1915, M. de Oliveira Lima rompia com o silêncio da crítica nos jornais e percebia no Major Quaresma o mesmo grão de loucura que movia D. Quixote. Com a retomada crítica de Lima Barreto promovida com a publicação da sua obra completa na década de 50, Lúcia Miguel-Pereira afirmava que o Triste Fim de Policarpo Quaresma e os contos publicados com o livro na edição de 1915 eram o melhor da produção ficcional de Lima Barreto. Para a crítica, a forma curta do conto, que de certa forma repercutia na divisão dos capítulos do romance, adequavase melhor a escassez de tempo de Lima Barreto, dando a noção do potencial ficcional do autor. Nos anos 70, o crescimento da procura pelos cursos de especialização em Literatura acabou influenciando a retomada crítica de Lima Barreto. Osman Lins lembrava que o romance era o setor mais sugestivo da obra de Lima Barreto (LINS, 1976, p. 32). Esse material entremeado à narrativa chamou a atenção de outras áreas do conhecimento no final dos anos 70 e começo dos anos 80, fazendo surgir críticas de orientação sociológica, histórica e de gênero. Assim, a obra de Lima Barreto permitia tanto a visão dos subúrbios no começo do século XX, como a visão das mudanças urbanísticas no Rio. Nessas leituras, as crônicas e o material confessional do autor foram altamente valorizados. Algumas dessas leituras conseguiram se apropriar de maneira adequada desse vasto material, com destaque para N. Sevcenko e Beatriz Resende. Há dois importantes ensaios sobre esse romance de Lima Barreto: “O significado de Lima Barreto na literatura brasileira”, de C. N. Coutinho e “Uma ferroada no peito do pé – dupla leitura de Triste Fim de Policarpo Quaresma”, de S. Santiago. O primeiro de orientação marxista vê como o principal problema de Quaresma a bizarrice das suas ações patrióticas, chocando-se com a mediocridade dos demais personagens, que vêem no patriotismo uma oportunidade para consecução de objetivos egoístas (COUTINHO, 1974, p. 42). Já S. Santiago identifica no romance uma dupla leitura, ou seja, Lima Barreto procurava oferecer ao leitor comum uma leitura facilitada (microleitura) e reservava ao leitor mais arguto uma segunda leitura. Nessa primeira leitura, a epígrafe de Renan – que abre Triste Fim de Policarpo Quaresma – é confirmada ao longo do texto. A epígrafe diz que o homem superior tenta transformar o ideal em realidade, sendo fadado ao fracasso. Por sua vez, a segunda leitura procurava desmentir alguns mitos importantes da história do Brasil – como o mito do gigante adormecido. Esse processo chamado pelo crítico de desmetaforização da palavra semente estava diretamente associado ao nome do personagem Poli (vários) + carpo (frutos). Frutos (sonhos) que apesar de toda luta do personagem não vingavam (SANTIAGO, 1982, p.175). Ambas as leituras apontam caminhos pertinentes, mas acredito que Triste Fim de Policarpo Quaresma mereça uma análise pormenorizada dos processos ficcionais adotados pelo autor. Pretendo aqui preencher algumas lacunas referentes à análise desse romance, delimitando possíveis caminhos para essa leitura mais pormenorizada. II Diferentemente dos dois primeiros romances escritos por Lima Barreto (Vida e Morte de M.J. Gonzaga de Sá é o terceiro somente na ordem de publicação), Triste Fim de Policarpo Quaresma é narrado em 3a pessoa. O livro traz uma epígrafe de Renan falando o como é inconveniente a vida comum para o homem superior. Seria Policarpo Quaresma esse homem superior? De um modo geral, as ações de Quaresma levam ao riso, bastando lembrar a inabilidade do personagem com o manejo da enxada ou o fato de Quaresma tropeçar na sua própria espada. Além do riso provocado no leitor, há também o riso que as atitudes de Quaresma provocam nos outros personagens, como acontece na Câmara do Deputados durante a leitura da petição para que o tupi-guarani passasse a ser nossa língua. Esse riso parece permitir que o trajeto do personagem possa ser completado, pois os mesmos são vistos como uma mera excentricidade pelos demais e não como um ato de revolta. Nesse sentido, o discurso de
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Quaresma também é desacreditado a partir do momento em que ele é internado no Hospício. Dessa forma, o discurso e as ações de Quaresma são duplamente desacreditados, pois são encarados como pertencentes a um tolo ou a um louco. Mas o que levou o personagem a querer realizar tais transformações no país? Quem é Quaresma? Quando nasceu? Onde nasceu? In media res o personagem é apresentado ao leitor e parece uma das figuras mais simples que poderia existir: funcionário público do Arsenal de Guerra que segue uma rotina diária há mais de vinte anos. Esses primeiros dados de tempo são essenciais para definir a origem das idéias de Quaresma. A data mais precisa do livro é a revolta da Armada de 1893 que resulta na morte do personagem. Subtraindo: 1) Quaresma se envolve na Revolta após seis meses de internamento no hospício e após estar há um ano se dedicando ao seu sítio. 2) a irmã de Quaresma é quatro anos mais velha que ele; 3) Armando Borges afirma que Quaresma era novo, pois ainda não tinha atingido os 50 anos; 4) os idéias patrióticas começaram em Quaresma antes dos vinte anos; Assim, pode-se afirmar que Quaresma nasceu entre 1845 e 1848 e que suas idéias patrióticas se desenvolveram por volta de 1870. Essas datas estão espalhadas ao longo do romance, exigindo certo esforço do leitor para montar o quebra-cabeça. A filiação de Quaresma a esse período cumpre um papel essencial no romance. Para N. Sevcenko, a Libertação dos Escravos e a Proclamação da República foram as grandes aspirações dos intelectuais da geração de 1870. Somente a concretização desses dois ideais já seria o suficiente para uma mudança de atitude, ou seja, esperava-se uma postura de construção de uma nova realidade. Segundo José Veríssimo, todos se diziam republicanos, crendo que a República fosse uma palavra mágica capaz de transformar tudo, de resolver todos os problemas sociais. Lopes Trovão, um dos mais combativos Republicanos, na época do Governo Provisório, já dizia: “Essa não é a República dos meus sonhos”. (SEVCENKO, 1999, p.86-93) Quaresma ainda alimenta os antigos sonhos de 1870 e não chegou ainda a se desiludir com a nova ordem. A biblioteca do personagem exemplifica o desejo de conhecer mais o país para que se pudessem fazer as transformações necessárias que acordariam o gigante adormecido. Assim, Quaresma procura estudar tudo que se refere ao Brasil, atitude que também foi típica da época, bastando lembrar o projeto de José de Alencar de escrever romances que cobrissem a história do país: horizontal (todo o território) e verticalmente (toda a história). Aliás, José de Alencar e os outros românticos também faziam parte da biblioteca do major. Não estaria no Romantismo o motivo das atitudes exageradas de Quaresma? Retomando uma anotação do Diário Íntimo não aproveitada no romance essa leitura parece tomar corpo: “Ele não percebia que via com os olhos do sonho, não descontava a refração dessa atmosfera especial, para avaliar a realidade.” (BARRETO, 1961, p.142) Não só o ver com os olhos do sonho, mas o partir para a ação e tentar transformar esse sonho em realidade são atitudes tipicamente românticas. Nessa forma de agir o limite entre o heróico e o patético são tênues, levando muitos escritores a ironizarem os sentimentos românticos nos personagens. Outra tendência tipicamente romântica de Quaresma é a supervalorização da natureza brasileira, levando-o a cortar quilômetros do Rio Nilo para que o Amazonas fosse o maior rio do mundo. Nessa busca pelo nacional, o próprio Quaresma não tem espaço para regionalismos, afastandose um pouco do projeto romântico, tanto é que a região em nascera é ocultada no romance. Quaresma é o Brasil? Pode-se dizer que Quaresma simboliza o projeto de um Brasil encarnado pela geração de 1870 e que passado mais de 20 anos ele alimenta os antigos sonhos de transformação, mesmo quando eles parecem ridículos aos demais. Como representante de um período de transição, Quaresma também compartilha dos novos ideais orientados pelo positivismo, daí uma crença do personagem nos aparatos científicos. Filiação científica ironizada durante a batalha na qual o personagem toma parte fazendo cálculos matemáticos para poder utilizar o canhão ou no levantamento de espécies vegetais e animais promovido no seu sítio. Assim, a trajetória de Quaresma serve para que um a um esses projetos, tanto os ufanistas quanto os científicos, sejam “postos abaixo” na estrutura do romance. Muitos desses projetos resistem
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até hoje ou foram retomadas em períodos de repressão, como o mito do gigante adormecido, ninguém segura esse país, o Brasil é o país do futuro, tudo se plantando dá etc. O leitor sabe desde o princípio que esses projetos conduzem ao fracasso, até porque o nome do livro já anuncia isso. Como afirma G. Lukács, a preocupação central do leitor de romances é a espera da evolução das personagens (LUKÁCS, 1968, p.70). Quanto a essa evolução de destinos humanos, é interessante notar que o trajeto de Quaresma começa a ser mostrado a partir do momento em que o personagem resolve colocar em prática tudo aquilo que estudara, sistematicamente, ao longo de 20 anos. Não que no período anterior o personagem não tivesse os seus arroubos patrióticos e que não fosse conhecido na repartição por suas idéias, mas é que nesse momento Quaresma resolve mudar o país. O que teria levado o major a acreditar que estivesse pronto para agir? Por que não agiu na transição da Monarquia para República? Duas explicações são possíveis: 1) a ação de Quaresma está ligada ao nome do personagem: Poli (vários) + carpo (frutos) e Quaresma que remete aos 40 dias que vão da quarta-feira de cinzas até a Páscoa (passagem, transformação). É antes de completar os cinqüenta anos que Policarpo Quaresma resolve por seus projetos em prática. Seus projetos frutificam; 2) Floriano Peixoto, ao contrário de Deodoro da Fonseca, conseguira manter a bancada do PRP mais compacta e tivera menos problemas para lidar com o Congresso. Ou seja: Quaresma achava que Floriano Peixoto pudesse promover as reformas necessárias. A segunda explicação parece mais pertinente e encontra desdobramentos importantes no próprio romance. Quaresma após os fracassos com seu projeto cultural e com a tentativa de se dedicar à agricultura acredita ter reunido elementos que possam ajudar para o engrandecimento do país. É o momento que Quaresma redige em Curuzu, cidade em que estava localizado o seu sítio, um memorial para ser entregue ao Marechal Floriano Peixoto. A crença de que Floriano possa realizar as transformações necessárias ao país e dar-lhe unidade não é privilégio de Quaresma. Em Curuzu, por exemplo, os dois partidos adversários se unem em torno da República, deixando as diferenças de lado (claro, que essa aliança visava manter o poder). Aqui há que se considerar uma transformação em Quaresma. Os dois projetos que resultam na elaboração desse memorial partiram das leituras idealizadoras da nação, a primeira ligada à nossa cultura e a segunda ligada à agricultura. Quanto à cultura o major constata que nada havia de original na maior parte das nossas manifestações culturais, daí a idéia de sugerir que o tupi-guarani fosse declarado nossa língua oficial. Quanto à agricultura, Quaresma visando comprovar suas teses havia escolhido o pior sítio e, além de enfrentar as saúvas, tem que enfrentar uma série de posturas municipais que dificultavam a vida do homem do campo. Ou seja: o memorial que é entregue ao Marechal Floriano Peixoto já não está mais relacionado àquela primeira visão pautada nas leituras ufanistas, mas tem por fundamento as constatações feitas em campo por Policarpo Quaresma. Tanto é que antes de partir para Revolta da Armada, Quaresma já havia se decidido a adubar o solo e importara máquinas estrangeiras para tentar dinamizar a produção no Sossego, ou seja, não acreditava mais no antigo mito da uberdade de nossas terras. Essa transição do discurso ufanista para um discurso pautado na experiência pode ser notada nesse diálogo travado com Floriano Peixoto que tem por tema o memorial escrito por Policarpo Quaresma: Vê Vossa Excelência como é fácil erguer este país. Desde que se cortem todos aqueles empecilhos que eu apontei, no memorial que Vossa Excelência teve a bondade de ler; desde que se corrijam os erros de uma legislação defeituosa e inadaptável às condições do país, Vossa Excelência verá que tudo isto muda, que, em vez de tributário, ficaremos com a nossa independência feita... Se Vossa Excelência quisesse... À proporção que falava, mais Quaresma se entusiasmava. Ele não podia ver bem a fisionomia do ditador, encoberto agora como lhe estava o rosto pelas abas do chapéu de feltro; mas, se a visse, teria de esfriar, pois havia na sua fisionomia sinais de aborrecimento mais mortal. Aquele falatório de Quaresma, aquele apelo à legislação, a medidas governamentais, iam mover-lhe o pensamento, por mais que não quisesse. O presidente aborrecia-se. Num dado momento, disse: Mas, pensa você, Quaresma, que eu hei de pôr a enxada na mão de cada um desses vadios?! Não havia exército que chegasse... (BARRETO, 1981, p.175)
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Nesse momento, as idéias de Quaresma passam a incomodar como se percebe pela atitude de Floriano Peixoto. Os projetos anteriores tinham como fonte uma literatura que distorcia a realidade e que tivera grande prestígio no país. O caboclo, por exemplo, só era bom enquanto literatura: idealizado e distante. Já o caboclo com uma enxada na mão passava a ser um perigo aos olhos do governo. Aliás, Lima Barreto punha a nu a situação do caboclo brasileiro com o personagem Felizardo, como se pode perceber no diálogo travado entre o caboclo e Olga: Bons dias, “sá dona”. Então trabalha-se muito, Felizardo? O que se pode. Estive ontem no Carico, bonito lugar... Onde é que você mora, Felizardo? É doutra banda, na estrada da vila. É grande o sítio de você? Tem alguma terra sim, “sá dona”. Você, por que não planta para você? “Quá sá dona!” O que é que a gente come? O que plantar ou aquilo que a plantação der em dinheiro. “Sá dona ta” pensando uma cousa e a cousa é outra. Enquanto planta cresce, e então? “Quá, sá dona”, não é assim. Deu uma machadada; o tronco escapou: colocou-o melhor no picador e, antes de desferir o machado, ainda disse: Terra não é nossa... E “frumiga”?... Nós não “tem” ferramenta... isso é bom para italiano ou “alemão”, que o governo dá tudo... Governo não gosta de nós... (BARRETO, 1981, p.120)
As descrições do caboclo Felizardo são similares a percepção crítica do narrador em relação ao Marechal Floriano Peixoto, principalmente no item inércia e falta de vontade. Inclusive o nome dos personagens são muito próximos e trazem em si antíteses: Felizardo – não tem nada de feliz; Floriano – não lembra em nada as flores. Essa identificação é importante, pois um dos apelidos do Marechal era caboclo: “ Eles vão ver o “caboclo”...” (BARRETO, 1981, p.154) O tempo em que Quaresma se dedica à agricultura é fundamental na sua transição do ufanista para o realista. Agora as idéias de Quaresma se pautavam numa experiência concreta e identificavam problemas que estavam diretamente ligados à ação ou a falta de ação do governo. A atitude de Floriano Peixoto, optando pela inércia, também se justifica pela necessidade de manter a ordem social da maneira que se encontra para atender ao principal pilar do seu governo: os cafeicultores. Numa prática recorrente nesse romance, a percepção crítica da realidade é deslocada para uma personagem feminina, como se pode ver nessa fala de Adelaide, logo após constatar que todo sacrifício do irmão à agricultura resultara em nada: “ É isto... Queres sempre ser a abelha-mestra... Já viste os grandes fazerem esses sacrifícios?... Vê lá se o fazem! Histórias... Metem-se no café que tem todas as proteções...” (BARRETO, 1981, p.130) Assim, antes do desapontamento final com o regime, com a noção de pátria, Policarpo Quaresma percebe que suas leituras ufanistas eram falhas. Ao longo do romance, o personagem é cercado por discursos que tentam desmentir aquilo que ele acreditava, porém não são esses discursos que o convencem, mas o contato com a realidade. Dessa forma, o memorial apresentado ao Marechal devia trazer soluções concretas e não projetos mirabolantes, no entanto esse texto é tachado como obra de um visionário. Outro ponto fundamental no trajeto de Quaresma é o posicionamento do narrador. A epígrafe de Renan que abre o livro é a visão que o narrador tem do personagem. Nos momentos de maior calor das idéias de Quaresma e de incompreensão dos demais para com seus projetos, o narrador tenta minimizar essas visões que encaram os gestos do personagem como ridículos, mostrando que elas eram frutos de um projeto apaixonado, de um homem fora da média: Desinteressado de dinheiro, de glória, de posição, vivendo numa reserva de sonho, adquirira a candura e a pureza d’alma que vão habitar esses homens de uma idéia fixa, os grandes estudiosos, os sábios, e os inventores, gente que fica mais terna, mais ingênua, mais inocente que as donzelas das poesias de outras épocas. (BARRETO, 1981, p.63)
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O narrador tentar preservar Quaresma do riso do leitor, ou pelo menos transformar num riso de simpatia pelos atos desinteressados do major. Para conseguir isso, o narrador trabalha com um jogo de oposições, contrastando as ações do personagem com o meio que o cerca. Assim, o personagem não é compreendido pela irmã, pelos companheiros do arsenal de Guerra, pelos demais militares, pelos políticos da pequena Curuzu etc. Exemplificando: 1) Adelaide não compreende como alguém pode se dedicar a vida toda aos livros e não virar doutor; 2) os companheiros do arsenal acham maçada a mania de Quaresma querer dar aulas de história e de geografia do Brasil; 3) os demais militares não entendem o porque Quaresma tem tantos livros em casa, reiterando o discurso da irmã do major: os livros seriam exclusividade dos doutores; 4) Os chefes políticos de Curuzu querem que Quaresma o seu apoio. Como ele se nega a tomar partido, sua atitude é vista pelos demais como oportunista. Pensam que Quaresma quer se projetar politicamente na cidade, vendo populismo nos atos de solidariedade do major para com os vizinhos mais pobres da região. Remetendo ao quadro histórico do período, toda essa hostilidade do meio demonstra uma tendência a competição social para se atingir posições privilegiadas. De certo modo, a República abrira a perspectiva da mudança de classe social e até mesmo incentivara essa prática. Conforme N. Sevcenko (1999), a República estimulou a permutação em larga amplitude dos grupos econômicos: fortunas seculares desapareceram e outras surgiram da noite para o dia, graças ao Encilhamento. Todos queriam enriquecer a qualquer custo. É o período que se acentua a política dos favores: nomeações, indenizações, subvenções, privilégios e proteções. Usufruem desse momento os grupos recémchegados à distinção social e os gentis-homens remanescentes do Império. A defesa do governo durante a Revolta da Armada abriu a possibilidade de ascender no funcionalismo público ou nas Forças Armadas, criando um clima de delações e suspeitas: Essas secretas esperanças [de ascensão] eram mais gerais do que se pode supor. Nós vivemos do governo e a revolta representava uma confusão nos empregos, nas honrarias e nas posições que o Estado espalha. Os suspeitos abririam vagas e as dedicações supririam os títulos e habilitações para ocupá-las; além disso, o governo, precisando de simpatias e homens tinham que nomear, espalhar, prodigalizar, inventar, criar e distribuir empregos, ordenados, promoções e gratificações. (BARRETO, 1981, p.143)
É também o período de perseguição aos jacobinos e aos excessivamente republicanos. Estaria Quaresma nesse segundo grupo? Parece-me que sim, Quaresma leva ao pé-da-letra o propósito da Constituição de 1891 de estabelecer um regime livre e democrático, visando o desenvolvimento do país. Dessa forma, Quaresma acreditava na importância do seu papel enquanto cidadão para contribuir com as mudanças necessárias ao país. A desilusão do personagem só se dá por completo quando todas as possibilidades de mudança da nação estão esgotadas: a possibilidade ufanista e a possibilidade realista. Já para os demais personagens, os que queriam tirar proveito da nova ordem, a desilusão acontece ao perceberem que não conseguiriam atingir os objetivos pessoais almejados, exemplo disso são o general Albernaz e o contra-almirante Caldas, durante a missa de 7o dia do senador Clarimundo (um republicano histórico), quando a Revolta da Armada chegava a seu fim: Coçou um dos favoritos e esteve um instante a olhar o ladrilho no chão. Albernaz avançou, meio sarcástico: Agora não; agora a autoridade está prestigiada, consolidada e uma era de progresso vai abrir-se para o Brasil... Qual o que! Onde é que você viu um governo... Mais baixo, Caldas! ... onde é que se viu um governo que não aproveita as aptidões, abandona-as, deixa-as por aí vegetar? Dá-se o mesmo com as nossas riquezas naturais: jazem por aí à toa! A sineta soou e olharam um pouco a nave cheia. Pela porta, via-se uma porção de homens, todos de negro, ajoelhados, contritos, batendo nos peitos, a confessar de si para si: mea culpa, mea maxima culpa. (BARRETO, 1981, p.199-200)
Como já afirmei, a desilusão desses militares para com a República deve-se ao fato de não conseguirem as promoções desejadas. Nota-se na fala de Caldas o desejo de realizar transformações parecidas com aquelas propostas por Quaresma, no entanto o mea culpa do rito religioso estabelece
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a responsabilidade desses personagens na consolidação do regime que agora era criticado. Albernaz e Caldas representam os militares que tiveram participação na Guerra do Paraguai e que perdiam espaço para os novos militares ligados ao positivismo. O primeiro ainda consegue garantir que seu filho entre na Escola Militar e que uma de suas filhas se case com um militar pertencente a esse grupo. Já o segundo é fadado a amargar o eterno escárnio, desde que se transformara num comandante procurando seu navio pelos quatro cantos cardeais do país. Outro dado marcante nessa passagem do livro é esse diálogo ocorrer justamente durante o velório de um republicano histórico, ou seja, aqueles que participaram ativamente da geração de 1870 e que tomaram parte na Proclamação da República. Não estariam sendo sepultadas com Clarimundo as perspectivas de mudança, de iluminação, de conhecimento? Não estariam todos os ideais ligados às transformações fadados ao fracasso? A participação de Quaresma na Revolta da Armada é o ápice da desilusão com o sistema, mas ao mesmo tempo abre a perspectiva de uma frutificação dos seus ideais no futuro. Quanto à primeira afirmação, sabe-se que Quaresma vem desde o começo do romance tomando uma consciência crítica da realidade. O projeto cultural levou-o ao hospício. O projeto agrícola levou-o a perceber as dificuldades de se viver da agricultura. A participação na Revolta da Armada leva-o a considerar que a noção de pátria era falsa e que toda a sua vida foi em vão. Mas como Quaresma chega a essa triste conclusão? Na terceira e última parte do romance, chegando ao Rio de Janeiro, o major procura Floriano Peixoto para colocar-se à disposição da pátria. A descrição de Floriano Peixoto desmente o apelido Marechal de Ferro. O que se vê é um homem mole, displicente, com um palito de dente no canto da boca e que permite aos subalternos uma intimidade impensável. No entanto, Quaresma não vê nada disso. O narrador frisa que ainda estava longe de perceber isto tudo. Mesmo quando o Marechal rasga um pedaço do Memorial, o fruto de anos de estudo e de um contato marcante com a realidade, Quaresma não se desilude. O segundo contato com o Marechal acontece durante à noite. Floriano aparece como se fosse um espectro, passeando pelos quartéis e vendo se estava tudo em ordem. Instado pelo Memorial, o Marechal, profundamente aborrecido, chama Quaresma de visionário. No terceiro capítulo da terceira parte, o fato mais marcante é o enterro da filha de Albernaz, Ismênia, a identificação de Quaresma com a moça é marcante. Quaresma acreditava no mito da pátria, Ismênia acreditava no mito do casamento. Ambos são tomados pelos demais como loucos. Ismênia é abandonada pelo oportunista Cavalcanti, Quaresma é abandonado pela pátria a quem dedicara todas as suas energias. No Diário Íntimo, a cena do enterro de Ismênia traz uma notação importante o vôo dos pombos que faz lembrar o poema de Raimundo Correia, “As Pombas”. A morte de Ismênia prenuncia o fim de Policarpo Quaresma, assim como a morte de Clarimundo prenunciava os fins dos sonhos republicanos. A alusão ao poema “As pombas”, poema escrito em 1883, reitera o tom de desilusão que logo tomará conta de Policarpo Quaresma. Os sonhos alimentados pelo major no azul da adolescência fogem céleres (o desapontamento do major acontece num período de menos de um ano) e não voltam mais. É justamente nesse capítulo que Policarpo Quaresma se desilude com Floriano Peixoto e que questiona o como empregara os dias de sua vida em nome de uma causa vã: Na verdade o major tinha um espinho n’alma. Aquela recepção de Floriano às suas lembranças de reformas não esperavam nem o seu entusiasmo e sinceridade nem tampouco a idéia que ele fazia do ditador. Saíra ao encontro de Henrique IV e de Sully e vinha esbarrar com um presidente que o chamava de visionário, que não avaliava o alcance dos seus projetos, que os não examinava sequer, desinteressado daquelas altas cousas de governo como se não o fosse!.. .Era pois para sustentar tal homem que deixara o sossego de sua casa e se arriscava nas trincheiras? Era, pois, por esse homem que tanta gente morria? Que direito tinha ele de vida e de morte sobre os seus concidadãos, se não se interessava pela sorte deles, pela sua vida feliz e abundante, pelo enriquecimento do país, o progresso de sua la- voura e o bem-estar de sua população rural? (BARRETO, 1981, p. 183)
A consciência de Quaresma parecia conduzi-lo a não agir mais. Somente o não-agir poderia garantir sua sobrevivência, o próprio personagem conclui isso em carta remetida à irmã. No entanto,
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o cenário de violência à sua volta atinge de cheio a sua consciência, levando-o a escrever uma carta onde manifestava o seu repúdio aos fuzilamentos praticados pelo governo de Floriano Peixoto. O último projeto de Quaresma fracassa, será? Não se pode esquecer que o livro é escrito em 3a pessoa, ou seja, alguém resolvera escrever sobre a vida do marechal Policarpo Quaresma achando nela um conteúdo exemplar. De que momento esse narrador escreve? A única indicação que existe é ao final do livro o ano de 1911 (BARRETO, 1981, p.215). Como encarar essa data? Lima Barreto tinha por hábito terminar seus livros com a indicação da data de término da escrita – como acontece com Clara dos Anjos e Os Bruzundangas – ou essa data é significativa como acontece com o prefácio do Recordações do Escrivão Isaías Caminha que permite o cálculo do período em que o personagem chegou ao Rio de Janeiro. Acredito que a segunda hipótese seja mais coerente, pois nesse período Lima Barreto esteve envolvido com a Campanha Civilista, tendo manifestado seu apoio a Rui Barbosa, e sempre foi notória a insatisfação do autor com os caminhos que a República tomara nas mãos dos militares. Triste Fim de Policarpo Quaresma servia como uma epígrafe a um sistema que tivera como frutos: o atraso do país, a violência e a morte dos sonhos. Referências CANDIDO, Antonio. A educação pela noite & outros ensaios. São Paulo: Ática, 1987. CARVALHO, José Murilo de. Os bestializados – o Rio de Janeiro e a República que não foi. São Paulo: Companhia das Letras, 1987.
COUTINHO, Carlos Nelson. O significado de Lima Barreto na literatura brasileira. In: Carlos Nelson Coutinho e outros. Realismo e anti-realismo na literatura brasileira. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1974. (pág. 1-56) BARRETO, Lima. Todas as crônicas de Lima Barreto; organização Beatriz Resende e Rachel Valença. Volume 1 e 2. Agir: Rio de Janeiro, 2004. ______. Triste Fim de Policarpo Quaresma; prefácio de M. Oliveira Lima. 25a ed. São Paulo: Brasiliense, 1981. ______. Diário Íntimo; prefácio de Gilberto Freire. São Paulo: Brasiliense, 1961. LUKÁCS, George. Ensaios sobre literatura. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1968.
SANTIAGO, Silviano. Vale Quanto Pesa – ensaios sobre questões político-culturais. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1982. SEVCENKO, Nicolau. Literatura como missão – tensões sociais e criação cultural na 1a República. São Paulo: Brasiliense, 1999. SCHEFFEL, Marcos Vinícius. Do registro diário à criação – o processo ficcional em Recordações do Escrivão Isaías Caminha e Vida e Morte de M.J. Gonzaga de Sá. Joinville/SC: Editora Letradágua, 2007.
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DE INSTRUTOR A EDUCADOR: UMA ABORDAGEM MULTICULTURAL Margarete de Oliveira Santos NOGUEIRA Isabel Patrícia Mercado de FAUSTINO (Casa Thomas Jefferson, Brasília)
RESUMO: Nesse artigo propomos mostrar aos professores que é possível trabalhar a língua estrangeira com uma abordagem intercultural. Para isso elencamos algumas sugestões que podem ajudar o professor a internacionalizar o seu ensino, e ao mesmo tempo, ajudar seus alunos a criar uma consciência global. A abordagem intercultural pressupõe a reformulação do papel do professor como educador até a modificação da sala de aula para torná-la um ambiente que reflita um encontro de culturas. A criação de projetos de classe, bem como a de projetos que envolvam toda a instituição voltados para o multiculturalismo e a consciência global também fazem parte de ações que podem ser desenvolvidas pelo educador. PALAVRAS CHAVE: abordagem intercultural, internacionalizar o ensino, consciência global, solidário, crítico.
ABSTRACT: This paper proposes to show teachers that it is possible to work with the acquisition of a foreign language along with an intercultural approach. A set of suggestions is proposed to help the teacher to internationalize his/her teaching, as well as help raise a global awareness in students. Suggestions start by rethinking the teacher’s role and continue on to modifying the language classroom in order to turn it into an environment that reflects an encounter of cultures. Both class and institutional projects, which respect multiculturalism and raise global awareness are proposed. KEY WORDS: intercultural approach, internationalize teaching, global awareness, critical.
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1. Introdução Este artigo tem como objetivo contribuir para a construção de uma visão mais crítica no diaa-dia pedagógico do professor de Língua Inglesa. Visa também promover uma maior conscientização dos professores de inglês para que estes possam engajar-se criticamente na prática efetiva da educação voltada a uma cidadania global. Propomos aqui algumas de sugestões simples que podem ajudar o professor a despertar no seu aluno um sentimento de cidadão do mundo, mas crítico e consciente das diferenças e contradições entre os países e que podem somar-se também a outros agentes transformadores da sociedade. 2. Justificativa Apesar de, nos últimos tempos, um número crescente de professores de línguas ter-se voltado para a instrução por conteúdos e para a pedagogia de projetos, com o objetivo de promover um envolvimento significativo do aluno com o aprendizado de língua (Stroller, 2002), muitos ainda fazem uso de didática tradicional em suas escolas. O papel da escola é difundir a instrução, transmitir os conhecimentos acumulados pela humanidade e sistematizados logicamente (Saviani, 1983). Essa metodologia valoriza o saber já produzido e não leva em consideração qualquer experiência que o sujeito possui. Portanto, não contribui para uma mudança social. Durante sua formação, o professor recebe um conjunto de regras e normas para ensinar a dar aula, e assim o faz passando adiante as regras e normas da língua inglesa, concentrando-se nos conteúdos das estruturas gramaticais da língua alvo, completamente desvinculados da realidade. O professor, então assume o papel de instrutor, aquele que adestra, o que põe em ordem, o que detém o conhecimento. Pela tendência crítico-social dos conteúdos, a forma e a quantidade deixam de ter um papel central na didática do professor. Pelo contrário, o que passa a ter importância são os conteúdos culturais universais, incorporados pela humanidade, e sempre reavaliados frente às realidades sociais. Os conteúdos não são só ensinados, mas se ligam ao seu significado humano e social através de projetos vivenciados pelos alunos (Mercado, 1995). Mas como adaptar esta tendência à didática do professor de inglês? Ao procurarmos uma didática apropriada, que se aproximasse mais à critica social dos conteúdos, nos deparamos com a Educação Global. O que é, afinal, Educação Global? Ela é definida como uma educação para uma participação responsável numa comunidade mundial interdependente. (The Philippine Council for Global Education – PPGE, 1990). A Educação Global prioriza o ensino baseado nos problemas e assuntos que atingem todas as nações, sem reconhecer fronteiras, e na interconexão de sistemas culturais, ecológicos, econômicos, políticos e tecnológicos. A Educação Global também se interessa em entender e apreciar os nossos vizinhos, cujas culturas são diferentes das nossas; enxergar o mundo através dos olhos e mentes dos outros; e compreender que outros povos do mundo muitas vezes têm necessidades e desejos similares aos nossos. Assim, o educando, ao se ver nos outros, se coloca, se informa e se forma no mundo. A seguir, listamos uma série de passos que o professor pode seguir a fim de internacionalizar o seu ensino, e, ao mesmo tempo, ajudar a criar uma consciência global em seus alunos. 3. Procedimentos Repensar o papel da língua inglesa A parcela de brasileiros que utilizam a língua inglesa para se comunicar dentro e fora do País é pequena. Entretanto, é inegável a importância de se aprender o inglês. Muitos têm discutido o papel da língua inglesa na sociedade, como língua internacional e até mesmo como língua franca. Para Crystal (1997), por exemplo, a língua inglesa está na hora e no lugar certo para tornar-se uma língua
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internacional. Por isso, o professor deve estar a par dessa discussão por meio de leitura de artigos em revistas especializadas, palestras e seminários e também promovê-la entre seus colegas. É bom lembrar que, em um passado não muito distante, a língua inglesa era considerada somente uma disciplina escolar, um sistema lingüístico ou a língua usada em países anglófonos. Reconsiderar o seu papel como professor A definição que o professor de inglês dá ao seu papel é tão importante quanto a definição que ele dá a sua área de atuação. Para tal, o professor precisa se perguntar: “Por que ensinar inglês?”. A resposta a essa pergunta determina o fazer pedagógico do professor. Se o professor se vê como centro do processo de ensino-aprendizagem e detentor do conhecimento e da experiência, e vê o aluno como um receptáculo ou reprodutor desse conhecimento, ele organizará sua aula baseada nas suas próprias crenças. Mas se o professor se vê como um educador, ele valorizará a capacidade do aluno de pensar e construir o seu próprio conhecimento, não o verá como um mero depositário das informações (Chalita, 2006). Além disso, o educador pode ainda se ver como um “educador global” que ensina inglês como língua estrangeira. Ou seja, um educador que está também dedicado a ajudar os educandos a tornarem-se cidadãos do mundo, bem como agentes transformadores da sociedade. Assim o professor torna o seu fazer positivo e motivador para todos os que estão, dentro e fora, do processo educativo. A Conferência Geral da UNESCO de 1974 delineou alguns objetivos na sua Recomendação sobre a Educação para a Compreensão e a Paz Internacionais, e A Educação Relativa aos Direitos do Homem e às Liberdades Fundamentais. No documento, ressalta-se a promoção de: - uma perspectiva global e uma dimensão internacional na educação em todos os níveis; - compreensão e respeito a todas as pessoas, suas culturas, valores e modos de vida; - conscientização da interdependência de todas as nações e seus povos; - uma educação para a paz, os direitos humanos, a democracia e a tolerância; - proteção e preservação do ambiente natural e do Patrimônio Mundial; - participação na resolução não violenta dos conflitos; - solidariedade para com as vítimas da violência e das catástrofes sociais e ecológicas. Assim, a forma como o professor organiza a sua aula e interage com seu aluno vai promover ou impedir que estas recomendações importantes se concretizem. Repensar o ambiente da sala de aula Um outro ponto importante que demanda a atenção do professor é o ambiente da sala de aula e o quanto este influencia no aprendizado dos alunos. A sala de aula deve refletir um encontro de culturas e por isso deve ser decorada com mapas-múndi, bandeiras, pôsteres, e fotos que mostrem pessoas, lugares e culturas diversas a cada novo assunto a ser abordado. O aluno, com certeza, se sentirá mais estimulado e curioso para aprender e refletir sobre diferentes culturas e compará-las com a sua própria. A sala de aula também deve ser um lugar onde a preservação do meio ambiente seja valorizada e exercitada. Um lugar onde o papel seja reciclado e usado com economia e onde também se economize energia. Integrar assuntos globais às lições Para permitir que a educação se volte para os temas globais mencionados acima, o professor deve tê-los em mente ao planejar a sua aula, além de, conscientemente, ensiná-los. Cabe a cada professor interessado em tornar-se um educador global escrever duas listas de conteúdos programáticos: uma
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com os conteúdos das estruturas gramaticais e outros aspectos lingüísticos da língua inglesa; uma segunda na qual se encontrem os objetivos globais dentre os quais poderá selecionar os tópicos que mais se ajustam aos tópicos lingüísticos que pretende trabalhar na sala de aula. Tendo definido os conteúdos programáticos, o trabalho do professor será o de organizá-los na forma que considere mais pertinente e efetiva, de modo que atinja ambos objetivos, tanto o de estruturas da língua quanto o global, de uma maneira integrada, agradável e criativa. Promover atividades voltadas para a Educação Global Um educador global envolve os seus alunos por intermédio de jogos que promovam a consciência planetária, e também usa as várias tecnologias para que o aluno entre em contato com o mundo defrontando-se com múltiplas culturas. A dramatização de assuntos internacionais é também uma ferramenta que pode ser utilizada pelo professor a fim de abordar temas como a educação para a paz, os direitos humanos, a democracia e a tolerância. Organizar atividades extracurriculares Atividades fora da sala de aula que promovam uma consciência global e ao mesmo tempo façam uso da língua estrangeira são uma excelente forma de se trabalhar os temas transversais e a interdisciplinaridade. São muitas as atividades que podem ser desenvolvidas. O avanço tecnológico e o acesso mais fácil a essas tecnologias aproximam os nossos alunos de outros. O projeto “amigos virtuais” é uma forma interessante de os alunos se comunicarem com pessoas de outras partes do mundo e trocar experiências culturais e lingüísticas. Muitas escolas organizam festivais internacionais em que os alunos e professores trazem suas pesquisas sobre vários países e suas culturas, propiciando assim intercâmbio de informação. Uma outra forma de entrar em contato com culturas diferentes é por meio de palestras e conversas com pessoas convidadas pela escola, assim como shows de música típica, mostra de cinema de diferentes países ou exibição de arte e trabalhos manuais. No Brasil, os alunos e professores muitas vezes se mostram alheios às causas internacionais ou ambientais. As atividades extracurriculares podem ser uma oportunidade de os alunos se informarem sobre e engajarem na criação de grupos de ação que contribuam e apóiem causas internacionais ou causas locais ambientais. Há também a possibilidade de viagens para participar de fóruns internacionais de jovens, que promovem a quebra de estereótipos, a discussão de temas globais, a aprendizagem sobre outros povos e a construção da amizade. Informar-se sobre Educação Global e áreas afins O professor que quer se tornar um educador que promova a consciência global e a compreensão internacional deve voltar-se para as diferentes áreas da educação global e se aprofundar mais nas diferentes áreas de: Educação para a Paz, Educação para os Direitos Humanos, e Educação Ambiental. 4. Conclusão Como educador global, o professor de língua inglesa terá sempre como objetivo incorporar ao seu trabalho assuntos que despertem em seus alunos a consciência global, o interesse por outras culturas e ao mesmo tempo ajude-os a refletir sobre sua própria realidade e identidade. Ao reunir o estudo das estruturas do sistema lingüístico do inglês e a questão do multiculturalismo, e outros temas da educação global, estamos facilitando o caminho para os educandos tornarem-se seres mais conscientes, solidários e críticos. Os passos aqui elencados são sugestões que podem conduzir o educador a repensar o seu ensino e torná-lo mais abrangente e internacional.
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Referências CHALITA, Gabriel. Educação, A solução está no afeto. São Paulo: Editora Gente, 2006. CONFERÊNCIA GERAL DA UNESCO, 1974. CRYSTAL, David. English as a global language. Cambridge: Cambridge University Press,1997. MERCADO, Luis Paulo L. A. Questão Dos Conteúdos Numa Metodologia Histórico-Crítica. Revista Educação, ano 3, número 3. Maceió/UFAL. Dezembro. 1995. pp. 27-39,1995. SAVIANI, Demerval. Escola e Democracia. São Paulo: Editora Cortez, 1983. STROLLER, Fredrika L. In: METHODOLOGY IN LANGUAGE TEACHING. Project work: a means to promote language and content. Cambridge: Cambridge University Press, 2002. THE PHILIPPINE COUNCIL FOR GLOBAL EDUCATION – PPGE, 1990.
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SELECIONAR LIVROS DIDÁTICOS PARA USO EM ESCOLAS DE IDIOMAS: UMA TAREFA NADA FÁCIL Maria Amélia Carvalho FONSECA (Centro Cultural Brasil - Estados Unidos- Belém-PA)
RESUMO: Selecionar livros didáticos para uso em escolas de idiomas envolve muito mais que o domínio do idioma a ser ensinado, a experiência do professor que assume esta tarefa e a identificação do público-alvo. Segundo Cunningsworth (1995), um bom modo de alcançar uma avaliação eficaz é levar em consideração que devemos fazer perguntas apropriadas e saber interpretar as respostas. Entendemos que estabelecer critérios objetivando avaliar livros didáticos traz múltiplos benefícios para alunos, professores e também para a instituição de ensino na qual o livro é utilizado. Uma avaliação criteriosa evitará o risco de selecionar um livro inapropriado o que poderá comprometer o processo de ensino e aprendizagem e a motivação de alunos e professores. Assim, neste artigo iremos refletir sobre a utilidade do livro didático e sobre a necessidade de avaliá-lo. Abordaremos, então, alguns requisitos e critérios que poderão ser utilizados ao avaliar e selecionar um livro didático antes de adotá-lo. PALAVRAS-CHAVE: livro didático; público-alvo; critérios.
ABSTRACT: Selecting textbooks for English language schools involves much more than knowing the target language, the experience of the teacher who undertakes the task and identifying the target-audience. According to Cunningsworth (1995), a good way of making effective assessments is taking into consideration that we must make the appropriate questions and know how to interpret the answers. We understand that establishing criteria aimed at assessing textbooks has many advantages to the students, teachers and to the institution where the book will be used. Applying the correct criteria avoids selecting the inappropriate textbook, which can harm the teaching and learning process, and student and teacher motivation. Therefore, in this paper we will reflect on the textbook use and the need of its assessment. After that we will address a few requirements and criteria that can be used in assessing and selecting a textbook before applying it. KEY WORDS: textbook; target public; criteria.
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1. Introdução O professor, no exercício de seu trabalho, muitas vezes é solicitado a avaliar materiais didáticos para o ensino de línguas em níveis diversos, para faixas etárias distintas e com objetivos diferentes. É com frequência que, para realizar esta tarefa, vale-se do seu domínio da língua, de sua experiência profissional, da experiência de seus colegas (trabalho conjunto), da identificação do público e, possivelmente, de algum formulário de avaliação fornecido pela instituição de ensino na qual leciona. No entanto, avaliar e selecionar livros didáticos para possível adoção em escolas de idiomas envolve muito mais do que isso. Cunningsworth (1995) menciona que devemos observar alguns aspectos que irão depender de nossos principais objetivos, das características dos alunos e do contexto em que estamos trabalhando. Observamos que o perfil e as necessidades tanto do aluno adolescente quanto do aluno adulto de língua estrangeira têm mudado no decorrer dos anos. Hoje, o aluno possui uma gama maior de informações das quais pode lançar mão para efetivar o seu aprendizado. Uma ferramenta muito útil no aprendizado de língua estrangeira nos dias de hoje é a WWW(World Wide Web) o que torna a exigência do aluno quanto ao material utilizado em sala de aula muito maior devido à facilidade de acesso que possui a outras ferramentas. Além disso, nós professores esperamos que os pesquisadores, autores e editores se esforcem ainda mais para lançarem no mercado materiais didáticos que atendam às expectativas do aluno e que contribuam para a sua motivação em aprender uma língua estrangeira. Deste modo, os professores e instituições para as quais trabalham devem manter-se informados sobre as tendências no ensino da língua para que possam analisar, selecionar e adotar um livro didático (LD) apropriado e atualizado. Esse material didático pode ser considerado uma grande vantagem da instituição que o adota e servir como fator motivador e influenciador na escolha do aluno por uma determinada instituição de ensino ao buscar um curso de idiomas. Observamos que nos últimos anos o LD realmente evoluiu, pois passou a oferecer mais recursos tanto para os professores como para os alunos. Em muitos daqueles que são acompanhados do livro do professor existe o cuidado do(s) autor(es) em informar sobre a metodologia utilizada auxiliando o tutor a fazer bom uso do livro. Curioso é que, mesmo diante de outras ferramentas de ensino, o LD é, ainda hoje, considerado como o maior componente dentre os materiais didáticos, pois é ele o elo entre o aluno, o professor e a instituição de ensino. 2. Por que utilizar o livro didático? A utilidade e o papel do LD são aspectos amplamente discutidos pelos teóricos. De acordo com Cloud et al (2000) “Os bons materiais de ensino não somente tornam o aprendizado mais fácil para os alunos, mas também facilitam a vida do professor. Como qualquer professor confirma é muito frustrante ensinar sem materiais apropriados: livros, gravuras, objetos, vídeos, música e internet. (Cloud et al, 2000, p.42)1 Brown (2007, p.193) afirma que “os livros didáticos são um tipo de texto, um livro para uso em um currículo educacional”2. Acrescenta que os livros didáticos são a forma mais comum de material de apoio para professores de línguas. Referimo-nos a Harmer (2001), Graves (2000), Richards (2002) e Cunningsworth (1995) ao mencionarmos algumas vantagens e limitações observadas na utilização do LD as quais resumimos nos quadros a seguir: “Good instructional materials not only make learning much easier for students but they also make teachers’ lives much easier. As any teacher … will confirm, it is extremely frustrating to teach without the appropriate materials: books, pictures, objects, videos, music and the internet.” (2000, p.42) 2 “Textbooks are one type of text, a book for use in an educational curriculum.” Brown (2007, p.193) 1
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Quadro 1: Vantagens na utilização do LD
Quadro 2: Limitações na utilização do LD
Harmer (2001) afirma que “usar livros didáticos apropriadamente é uma arte que se torna mais evidente com a experiência. Se o professor aborda o plano de aula com boa disposição, isso acontece naturalmente”(2001, p.306)3. Harmer (2007) reconhece que os livros didáticos algumas vezes não são interessantes e falta variedade, acrescentando que é preocupante quando o professor fica preso ao livro e o utilize como o único material em sala de aula, abordando as atividades somente no modo recomendado pelo livro. Nesta situação o livro se torna um problema e um fator desmotivador tanto para professores quanto para alunos. “Using coursebooks appropriately is an art which becomes clearer with experience. If teacher approaches lesson planning in the right frame of mind, it happens almost as a matter of course.” Harmer (2001, p.306)
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A atitude dos alunos em relação ao LD é frequentemente mais positiva do que a atitude do professor. Além disso, alunos se sentem mais seguros quando utilizam um livro, pois o LD permite que eles se preparem para o que será estudado e revisem o que foi estudado em sala de aula. A maioria dos alunos gosta de apreciar o visual geralmente atraente do material que eles adquiriram. De acordo com Cunningsworth (1995) “os livros didáticos são considerados um recurso para alcançar as metas e objetivos propostos levando em conta as necessidades do aprendente. Não devem determinar os objetivos nem tornarem-se os próprios objetivos. Estamos preocupados em ensinar a língua e não o livro”(1995, p. 7)4. Graves (2000) faz uma analogia entre um instrumento musical e um LD. Não importa se um instrumento é de altíssima qualidade, ele não pode tocar sozinho. Quanto mais preparado e talentoso for o músico, melhor será o som extraído daquele instrumento. Tal um instrumento musical, o LD não ensina sozinho, sendo tão-somente um utensílio que irá contribuir com o ensino e a aprendizagem. No entanto, enquanto o instrumento musical envolve apenas o artista, ensinar usando o LD depende também dos alunos. A autora enfatiza que alguns professores assumem a atitude de que quem ensina é o LD, em vez de serem eles, os professores, e acrescenta “nenhum LD foi escrito para o grupo de alunos que você ensina no momento, assim precisa ser adaptado de alguma forma.” (2000, p.176)5. Deste modo, o professor deve estar atento ao fato de que o LD deve ser conduzido por ele e não o contrário. 3. Por que avaliar o livro didático? Dentre as inúmeras razões de se avaliar cuidadosamente um LD podemos mencionar: - selecionar material a ser adotado; - identificar pontos fortes e fracos no livro; - selecionar o livro que seja mais apropriado para o público-alvo em questão; - não correr o risco de adotar um material que não atenda às necessidades dos alunos; - manter-nos atualizados sobre as metodologias utilizadas. Segundo Cunningsworth (1995), um bom modo de alcançar uma avaliação eficaz é levar em consideração que devemos fazer perguntas apropriadas e saber interpretar as respostas obtidas. Wallace (2000) aponta a importância que a finalidade exerce no processo de avaliação. Para este autor, antes de iniciarmos a avaliação devemos ter uma idéia das qualidades que fazem um bom livro ou um livro ruim. Partindo dessa idéia, as qualidades podem tornar-se critérios. Skierso (1991) in Celce-Murcia (1991) considera que a primeira pergunta a ser feita antes de iniciarmos a avaliação de um livro didático é “Quem são os alunos?” (idade, sexo, experiências, nível econômico e social, escolaridade, nível de proficiência na língua, razões para estudar a língua, interesses etc.). A segunda pergunta seria “Quem é o professor?” (experiência linguística, se é falante nativo ou não, experiência profissional etc.) De acordo com Cunningsworth (1995), sem dúvida, haverá elementos de comparação durante o processo de avaliação, principalmente quando os livros didáticos estão em concorrência para serem adotados ou o material em uso está sendo desafiado por um material novo no mercado. Assim, para ter um processo mais objetivo que conduza a resultados mais confiáveis deve-se aplicar um procedimento padrão e um conjunto de critérios comuns aos livros avaliados. Diante disso, existem alguns aspectos importantes a serem observados ao se avaliar livros didáticos: componentes do livro, organização, conteúdo linguístico, syllabus, gradação (sequência e estágios), habilidades, tópicos e assuntos e metodologia. “Coursebooks are best seen as a resource in achieving aims and objectives that have already been set in terms of learner needs. They should not determine the aims themselves or become the aims. We are concerned with teaching the language and not the textbook. Cunningsworth (1995, p. 7) 5 “No textbook was written for your actual group of students, and so it will need to be adapted in some way.” Graves (2000, p.176). 4
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a) Componentes do livro: Até alguns anos atrás, os componentes do livro se resumiam ao livro didático, ao manual do professor, ao livro de exercício e a fitas cassete. Hoje o LD vem acompanhado de CDs de áudio, DVDs, sites na internet, softwares para testes, livros de atividades extras, etc. Alguns materiais apresentam tantos recursos que cabe ao professor decidir qual deles será utilizado ou não para atender as necessidades dos alunos. Segundo Cunningsworth (1995), é importante observar como esses componentes se relacionam. Além de haver harmonia entre eles, devem ser direcionados ao mesmo objetivo. Embora atualmente exista uma grande variedade de recursos, o LD permanece como o item mais importante do pacote, pois é o material que serve de ponto de contato entre todos esses elementos agregados e o aluno. Já o papel do manual do professor, o chamado Teacher’s Guide, é fornecer idéias e sugestões para que o tutor faça o melhor uso possível do LD, dos componentes oferecidos e consequentemente de todo o curso. b) Organização: A maneira em que o livro é organizado é outro aspecto a ser considerado. A continuidade do material deve ser observada. O vocabulário e os tópicos gramaticais devem ser mostrados mais de uma vez, pois precisam ser reciclados para serem armazenados na memória de longo prazo. Devem também ser apresentados de forma contextualizada e ter a oportunidade de ser efetivamente colocados em prática. Espera-se que os bons cursos usem a reciclagem com reforço progressivo dos novos assuntos ensinados. Sabemos que um princípio básico da aprendizagem é apresentar primeiro o que é familiar e depois o que é novidade, relacionando o novo com o já conhecido. Wallace (2000) menciona outros aspectos a serem observados na organização do LD como: as diferentes seções do livro, a ordem apropriada dos tópicos linguísticos e do sistema de organização dos elementos do curso, isto é, se o livro é dividido em unidades e as unidades em seções. c) Conteúdo linguístico: Para Cunningsworth (1995) “Os livros didáticos tratam do ensino e da aprendizagem da língua em si, em alguns aspectos. Temas, tópicos, estratégias comunicativas, questões culturais são também importantes, mas os verdadeiros itens de língua ensinados – gramática, vocabulário e fonologia – formam a base de tudo que contribui para o complexo processo do ensino da língua”(1995, p.31)6.
Para tornar o ensino e a aprendizagem eficazes é necessário analisar a língua e dividi-la em unidades pequenas. Porém, não é fácil separar diferentes aspectos da língua de seu todo e dividi-los sem perder a autenticidade, pois, como sabemos, a língua é um fenômeno complexo que acontece simultaneamente em diferentes níveis. Assim, “é essencial reduzir a carga de aprendizagem em uma língua estrangeira a unidades assimiláveis e isso invariavelmente requer focalizar em diferentes aspectos da língua separadamente” Cunningsworth (1995, p.31).7 Por isso uma sequência didática pode ter o seu foco dividido parte no ensino de uma nova estrutura gramatical e parte em vocabulário. Os livros didáticos focalizam, então, em diferentes aspectos da forma e do uso da língua e os divide em unidades menores para facilitar o ensino. Gramática é considerada o principal componente de um curso de língua geral. Desta forma, é importante determinar quais os itens gramaticais devam ser incluídos e a que ponto expressam as necessidades do aprendente. “Coursebooks are concerned with the teaching and learning of the language itself, in some of its aspects. Themes, topics, communicative strategies, cultural issues and other factors are also important, but the actual items of language taught - grammar, vocabulary and phonology - form the foundation of everything else that contributes to the complex process of language teaching.” Cunningsworth (1995, p.31) 7 “It is essential to reduce the learning load in the foreign language to assimilable units, and this invariably entails focusing on different aspects of the language separately.” Cunningsworth (1995, p.31) 6
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Pesquisadores chegaram à conclusão que seria impossível haver comunicação sem algum conhecimento de vocabulário. Assim, vocabulário passou a ocupar um espaço maior no LD. Selecionar vocabulário não é tão simples quanto parece. É aconselhável observar se o LD apresenta o vocabulário de forma significativa e contextualizada e se os itens são reciclados sistematicamente. O ensino de fonologia é outro aspecto incluído na maioria dos livros atuais: articulação de sons separadamente, tonicidade de palavras e frases e alguns aspectos de entonação e ritmo. Naturalmente, estes pontos devem estar relacionados aos objetivos e ao contexto do curso. d) Syllabus: O foco do syllabus é em “o que ensinar” e em “que ordem ensinar”. Para Harmer (2001, p.295) “syllabus trata da seleção dos itens a serem aprendidos e a gradação desses itens em uma sequência apropriada”8. A seleção e a sequência do conteúdo deve ter como objetivo facilitar a aprendizagem. Existem diferentes tipos de syllabi apresentados pelos teóricos como: – Syllabus baseado no processo ou em tarefas (Process Syllabus or Task-based Syllabus): o conteúdo não é especificado com antecipação. É desenvolvido naturalmente de acordo com a situação de aprendizagem. Enfatiza mais o processo do que o produto e o fato de que a aprendizagem acontece naturalmente; – Syllabus baseado no conteúdo (Content-based syllabus): geralmente são baseados em quatro tipos de conteúdo: foco na forma ou estrutura, foco nas funções, foco em situações ou contexto e foco no tópico ou informação. O conteúdo do LD deve ser uma combinação desses fatores; – Syllabus Estrutural (Grammar syllabus): é o mais tradicional e enfatiza a estrutura gramatical da língua; – Syllabus Funcional (Functional syllabus): baseado em funções comunicativas como fazer pedidos, concordar, discordar etc. – Syllabus Situacional (Situational syllabus): baseado em situações autênticas (real-world situations); – Syllabus baseado em tópicos (Topic-based syllabus): baseado em informações. De acordo com Harmer (2001), existe ainda o Multi-syllabus syllabus: uma combinação dos itens de gramática, léxico, funções da língua, situações, tópicos, tarefas, habilidades e pronúncia sem haver predominância de algum desses elementos, pois eles se acomodam harmonicamente. O tipo de syllabus a ser utilizado irá depender principalmente do contexto e das necessidades do aprendente. e) Gradação: sequência e estágios. É muito importante observar a sequência, isto é, como o conteúdo é colocado em ordem no syllabus e como se processa a evolução do aprendente durante o curso. Os estágios também merecem atenção, pois trata de como o curso é dividido em unidades, o que será ensinado em uma unidade, além da relação entre o conteúdo ensinado e o tempo necessário para a aprendizagem desse conteúdo, a carga horária. f) Habilidades (Skills) Deve ser observado o modo que o LD lida com quatro habilidades (produção oral, “Syllabus design concerns the selection of items to be learnt and the grading of those items into an appropriate sequence.” Harmer (2001, p. 295)
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compreensão oral, produção escrita e leitura) e se há um equilíbrio entre elas. Este equilíbrio não é necessário em todas as situações de ensino, irá depender do foco do curso. Segundo Cunningsworth (1995) “O trabalho com as habilidades é um componente importante de qualquer LD que alega preparar os aprendentes para usar a língua em situações reais. Como em outros aspectos da análise e avaliação de material, o que você procura irá depender das suas necessidades e das necessidades dos aprendentes. O mais importante é procurar um equilíbrio entre as habilidades que irá refletir os objetivos do ensino e verificar se o LD fornece material para trabalho apropriado de integração das habilidades”(1995, p.85)9.
g) Tópicos e assuntos: Outro ponto importante a ser levado em consideração ao analisar o LD é se ele inclui tópicos interessantes e informativos de acordo como a idade e o nível do aprendente. Os alunos podem aprender melhor quando não estão concentrados em apenas aprender a língua-alvo, mas também em usar a língua para fazer outras coisas ou aprender outros assuntos. Tópicos reais irão despertar o interesse dos alunos mais facilmente que um tópico não real. Deve haver um grau de autenticidade no material. Deve-se observar se a linguagem usada é autêntica e se o material é culturalmente correto, isto é, não apresenta formas de preconceito em relação à raça, cor, etnia, sexo etc. Skierso (1991) in Celce-Murcia (1991) enfatiza que temas culturais são sempre apresentados nos livros didáticos e seria interessante se fossem autênticos. A autora acrescenta que “deve-se ser cuidadoso e utilizar material que não ofende, insulta ou provoca os alunos “(1991, p.434)10. h) Metodologia Embora alguns cursos não se referem às necessidades do aprendente abertamente, a abordagem utilizada sempre implica a metodologia usada. Richards (1990) afirma que “A metodologia pode ser caracterizada como as atividades, tarefas e experiências de aprendizagem selecionadas pelo professor para realizar a aprendizagem e como isso é usado dentro do processo de ensino e aprendizagem. Essas atividades são justificadas de acordo com os objetivos que o professor se propôs a alcançar e o conteúdo que ele se propôs a ensinar (1990, p.11)11.
De acordo com Cunningsworth (1995) “Qualquer que seja a abordagem, praticamente todos os materiais modernos de ensino de línguas assumem uma visão cognitiva do processo de aprendizagem (indutivo ou dedutivo), em que os aprendentes são considerados pessoas conscientes, pensantes, com individualidade e inteligência (1995, p. 101)12.
O exposto acima forma a base para adotarmos critérios de avaliação. Esta tarefa não é fácil e envolve casar o material didático com o contexto no qual será usado. Para tanto, estabelecer critérios irá facilitar essa tarefa, pois uma seleção bem sucedida está diretamente relacionada aos resultados obtidos através de análises e avaliações cuidadosas. “Skills work is an important component of any coursebook that claims to equip learners to use language in real situations. As in other aspects of materials analysis and evaluation, what you look for will depend on your needs and your learners’ needs. The most important points are to look for a balance of skills which reflects the aims of your teaching and to check that the coursebook provides material for appropriate integrated skills work.”Cunningsworth (1995, p.85) 10 “One must be cautious to use material which does not offend, insult or tease the student population.” Skierso(1991) in Celce-Murcia(1991, p.434) 11 “Methodology can be characterized as the activities, tasks, and learning experiences selected by the teacher in order to achieve learning, and how these are used within the teaching/learning process. These activities are justified according to the objectives the teacher has set out to accomplish and the content he or she has set out to teach.” Richards (1990, p.11) 12 “Whatever the approach, virtually all modern language-teaching materials take a cognitive view of the learning process (whether inductive or deductive learning is favored), in that the learners are seem as conscious, thinking people with individuality and intelligence.” Cunningsworth (1995, p. 101) 9
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4. Critérios para avaliação do LD Deve-se considerar critérios cuidadosos ao selecionar um LD. Cunningsworth (1995) menciona quatro estágios que devem ser seguidos durante o processo de avaliação e seleção de LD: a) Análise: procurar informações em categorias diferentes; b) Interpretação dos dados encontrados: a opinião e a experiência profissional são muito importantes nesse estágio; c) Avaliação: este estágio é mais subjetivo e será baseado nas expectativas do professor e do aprendente, preferências metodológicas, necessidades dos alunos, syllabus e preferências pessoais; d) Seleção: é a combinação entre as características identificadas nos estágios anteriores e as exigências de uma situação específica de ensino e aprendizagem. Assim, é preciso adotar um checklist, o que não é simples, pois diferentes critérios deverão ser usados em circunstâncias específicas, deste modo, deve-se escolher aqueles que atendam melhor às necessidades de alunos e professores. Pode-se também preparar um checklist apropriado para determinadas circunstâncias. Diante da variedade de critérios estabelecidos por diversos autores, apresentaremos os critérios apresentados por Skierso (1991) in Celce-Murcia (1991), Wallace (2000) e Harmer (2007) pela diversidade de itens, praticidade e flexibilidade que propõem. Skierso (1991) in Celce-Murcia (1991) apresenta os seguintes critérios: a) Dados bibliográficos b) Objetivos e metas c) Conteúdo/assunto d) Vocabulário e estruturas e) Exercícios e atividades f) Layout e características físicas. Os critérios propostos por Skierso (1991) são bastante resumidos. No entanto, cada item pode ser subdividido conforme a necessidade do avaliador. Os critérios apresentados por Wallace (2000) são baseados nos seguintes itens: a) Custo: o material pode ser bom, mas vale o que custa? b) Base/fundamento: O propósito do livro, os princípios metodológicos, e justificativa dos princípios, organização etc. c) Contexto: contexto e público-alvo. d) Nível: Nível do aluno naquele contexto. e) Relevância para as necessidades f) Facilidade e praticidade no uso: fácil e prático para usar, as unidades são adequadas para a carga horária. g) Layout e organização: ilustração, sinalização, seções. h) Conteúdo: incluído e omitido. i) Abrangência das atividades ou tarefas. j) Material de apoio para os alunos. k) Interesse/motivação. l) Material de apoio para o professor.
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Harmer (2007) menciona que podemos preparar as nossas próprias checklists ou usar checklists preparados por outros. Quando usamos checklists preparados por outros, estamos aceitando a visão do outro para o que é apropriado em nossa situação específica. No entanto, precisamos nos basear em alguns aspectos. O autor cita três estágios de procedimentos para avaliar um LD: listar as características que desejamos no LD, selecionando áreas de interesse, escrever descrições breves ou fazer perguntas de como o LD ideal iria tratar essas áreas, e usar essas descrições como itens de avaliação verificando se os livros que estamos analisando correspondem às nossas expectativas. A flexibilidade dos critérios propostos por Harmer (2007) é observada logo na forma como ele estabelece a checklist, dando ao avaliador a oportunidade de incluir itens e fazer perguntas de seu interesse. Assim, apresentaremos as possíveis áreas para consideração e algumas das possíveis perguntas para análise do LD recomendadas por Harmer (2007): a) Preço e disponibilidade: Quanto custa? Todos os componentes estão disponíveis? b) Materiais adicionais: Além do livro de exercício que outros materiais são oferecidos? c) Layout e design: O livro é atraente? O design facilita o uso do livro? d) Instruções: As instruções são claras? Os alunos podem utilizar o livro sem a ajuda do professor? e) Metodologia: Qual o tipo de ensino e de aprendizagem que o livro fomenta? f) Syllabus: É apropriado para os alunos? Cobre as áreas esperadas (gramática, vocabulário, funções etc.)? g) Habilidades linguísticas: As habilidades são bem equilibradas? As atividades são capazes de envolver os alunos? h) Tópicos: Contem variedade de tópicos? São apropriados para os alunos? São capazes de envolver os alunos? i) Culturalmente apropriado: É apropriado para o contexto cultural dos alunos? Não demonstra preconceito ao tratar de diferentes costumes, raças, etnias e sexos? l) Livro do professor: Possui livro do professor? É fácil de usar? Oferecem alternativas para as atividades do LD? Após analisarmos diferentes critérios propostos pelos autores, decidirmos por aqueles que mais se adéquam às nossas necessidades e adaptá-los à nossa realidade, se necessário, faremos, então, uma avaliação cautelosa que resultará na seleção do LD. 5. Considerações finais Entendemos que uma seleção bem sucedida está diretamente relacionada aos resultados obtidos através de análises e avaliações cuidadosas Devemos estar cientes de que um LD idealizado para atender a um mercado geral e amplo, não será perfeito para um grupo de alunos em particular. Porém, além de tentar encontrar o que melhor atende ao nosso contexto e público-alvo, devemos selecionar aquele que oferece possibilidades para adaptar ou suplementar material. Selecionar um LD envolve decisões estratégicas importantes, pois irá afetar o processo de ensino e aprendizagem e a proficiência na língua alvo de um grande número de alunos por um bom espaço de tempo. Além disso, por alguns anos será feito um investimento financeiro muitas vezes bastante elevado. É importante estar seguro de que o material selecionado é o melhor e o mais apropriado ao nosso contexto disponível no mercado no momento da seleção. Para se certificar de que o material irá funcionar adequadamente, uma boa idéia é pilotá-lo antes de adotá-lo definitivamente. É aconselhável analisar vários livros semelhantes e comparar os resultados.
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Assim, não corremos o risco de adotarmos um material inapropriado para o nosso públicoalvo, além disso, alunos e professores se sentirão motivados ao utilizarem o livro, o que trará benefícios também para a instituição de ensino. Referências BROWN, H. D. Teaching by Principles: An Interactive Approach to Language Pedagogy. 3 Ed. New York: Longman, 2007. CUNNINGSWORTH, A. Choosing Your Coursebook. Oxford, UK: Heinemann, 1995. CLOUD, N. et al., Dual Language Instruction: A Handbook for Enriched Education. Boston, MA: Heinle & Heinle, 2000. GRAVES, K. Designing Language Courses: A Guide for Teachers. Boston, USA: Heinle & Heinle Publishers, 2000. HARMER, J. How to Teach English. New Edition. Harlow, England: Longman, 2007. ______. The Practice of English Language Teaching. 3 Ed. Harlow, England: Longman, 2001. RICHARDS, J.C. The role of textbooks in a language program. New Routes, p.26 - 30, DISAL. April 2002. ______. The Language Teaching Matrix. Cambridge, UK: Cambridge University Press, 1990. SKIERSO, A. Textbook Selection and Evaluation. In: CELCE-MURCIA, Marianne. (editor). Teaching English as a Second or Foreign Language. 2 ed. New York: Newbury House, 1991. WALLACE, M. J. Action Research for Language Teachers. Cambridge, UK: Cambridge University Press, 2000.
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A CONSTRUÇÃO DE SENTIDO NA INTERAÇÃO ENTRE PESSOAS DE COMPETÊNCIAS COMUNICATIVAS DISTINTAS: ORALIDADE X ESCRITA Maria da Guia Taveiro SILVA1 (Universidade Estadual do Maranhão)
RESUMO: O presente trabalho tem como objetivo discutir a construção de sentido no discurso de pessoas com competências comunicativas visivelmente distintas no uso da linguagem em diferentes situações. A análise centra-se em dois fragmentos de discursos envolvendo interlocutores com formação lingüística diferente. Para tanto nos valemos da semântica discursiva como aporte metodológico. Os dois fragmentos mostram a interação discursiva de uma senhora com um médico e de um senhor com o médico em uma consulta. Os dois falantes pacientes são de origem rural e os episódios ocorreram em duas consultas médicas distintas. A análise está relacionada à construção de sentido estabelecida entre os interlocutores, mostrando a importância do contexto partilhado para a construção e significação da linguagem. Nesse contexto, tanto a cultura, o acesso a bens culturais, como a escrita, quanto as relações de poder são variáveis determinantes para a construção de sentido. PALAVRAS-CHAVE: sentido; língua materna; variação; discurso. 1
A autora é doutoranda em Lingüística pela Universidade de Brasília – UnB
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1. Introdução “O sentido varia mesmo quando o referente é o mesmo” (Frege)
Todo falante é competente no uso da sua língua natural, mas são as condições em que ele a utiliza que garantem a efetiva comunicação. A construção de um discurso de um falante, embora competente no uso da sua língua materna, vai depender da situação em que se dá essa construção discursiva. Essa situação é dada tanto pelo contexto cultural, situacional e interativo que são, todas, perpassadas pelas relações de poder. Assim, quando alguém fala, fala sempre de um lugar na sociedade, e sempre constrói um discurso que veicula uma ideologia e dependendo da cultura, do acesso a bens culturais e das relações de poder a construção de sentido pode ser determinada e o discurso ser mais ou menos valorizado socialmente. A construção de sentido, ou melhor, as construções de sentidos possíveis, aqui analisadas a partir de dois episódios, são vistas sob três dimensões – o contexto, a cultura e as relações de poder – como elementos essenciais para a compreensão de como se dá a produção de sentido entre falantes com competências discursivamente distintas. No jogo discursivo, os falantes usam o seu repertório sociolinguístico, que é construído a partir das interações que mantêm com outras pessoas nos diversos domínios sociais, podendo, os mesmos, estar situados em pólos opostos ou intermediários como: o rural, o urbano ou o rurbano (BORTONI-RICARDO, 2004) ou de um lado os detentores de poder e de outro os menos favorecidos. De acordo com alguns autores como Cagliari (2005) e Gnerre (1998), a língua é um instrumento de poder e discriminação, pois alguns modos de falar são mais valorizados socialmente do que outros e isso se intensifica, se tomamos para o nosso olhar o jogo discursivo travado entre uma pessoa com domínio da linguagem essencialmente estruturada pela cultura de oralidade e outra com domínio da linguagem da cultura letrada. O trabalho tem como objetivo destacar o significado como construção de sentido no discurso de pessoas com competências comunicativas distintas no uso da linguagem em diferentes situações. Para tanto nos valemos da semântica discursiva como aporte metodológico, que busca o entendimento entre o sentido e a intenção dos interlocutores nas interações comunicativas (DUCROT, 1972). O texto está organizado a partir de uma discussão teórica com autores como Koch (2003), com considerações sobre a fala e a escrita; Bagno (2007) e Bortoni-Ricardo (2004), que tratam da variação lingüística; Cagliari (2005) e Gnerre (1998), que fazem referência à língua e às relações de poder; Duarte e Oliveira (2004) e Frege (1978), que tratam dos nomes e seus significados; Ducrot (1972) e Guimarães (2007). sobre os operadores argumentativos e a significação; Bréal (1992), que numa perspectiva histórica da linguagem nos incita a pensar na exatidão das palavras e Labov (2008) que discorre sobre os padrões sociolingüísticos. 2. Referencial teórico 2.1 O discurso oral x discurso escrito e a produção de sentido Koch (2003) pontua que a fala e a escrita, apesar de constituírem duas modalidades de uso da língua e possuírem características próprias, utilizam o mesmo sistema lingüístico e não devem ser consideradas de forma dicotômica ou excludente. Contudo, o uso que se faz da linguagem nos diferentes contextos e situações pode acentuar essas características, valorizando uma em detrimento da outra. Uma análise da construção de sentido na interação discursiva não pode deixar de considerar esse fator, se o que se deseja é compreender como os interlocutores lançam mão do acervo lexical, baseados nas condições de uso da linguagem,
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marcados imperiosamente pelas relações de poder, pois quem fala – seja no discurso oral ou escrito – fala sempre de um lugar. Desta forma, veremos que, nos casos aqui analisados, enquanto uns falam como representantes do dialeto rural, marcadamente orientado pela cultura de oralidade, outros se expressam como representantes de uma cultura letrada, portanto, representantes de discursos valorizados socialmente, caracterizando assim, discursos distintos, que utilizam a mesma língua, o mesmo código, mas recorrem a estratégias significativas diferentes de acordo com a cultura de cada um, pois, o que caracteriza uma língua são os fenômenos sociais e históricos. Guimarães (2007) considera linguagem como “um fenômeno histórico que funciona segundo um conjunto de regularidades, socialmente construídas”, e essa construção de regularidades independe do pólo em que os usuários da língua se encontram, ela depende unicamente da construção de sentidos nos discursos por eles construídos. No Brasil, as variedades lingüísticas1 estigmatizadas constituem o repertório da maioria da população, que há séculos é negligenciada pelas ações políticas dos sucessivos regimes políticos, especialmente no que diz respeito à educação formal. Veiga (2001) ressalta que a falta de políticas adequadas que focalizem as classes dos desfavorecidos resulta em conseqüências desastrosas e a principal delas é a pobreza. Dentre os três itens básicos para a redução da pobreza no campo, citados por Sen (2000), é mencionado a redução do grau de desigualdade, com o acesso à terra e à educação, que representam os maiores indicadores de desigualdade. Assim sendo, a falta de oferta de escolas para os colonos ocasiona a elevação do índice de defasagem escolar (IBGE, 2007) e produz sérias implicações para os moradores da zona rural, uma delas é a construção ou manutenção de maior grau de desigualdade linguística, ou seja, a falta de acesso ao conhecimento da variação lingüística mais valorizada. Bagno (2007) afirma que os processos de mudança e variação das línguas vivas são incessantes e ininterruptos e isso tem conseqüências diretas para a construção de discursos e para a sua significação. Segundo Bortoni-Ricardo (2004), no Brasil, os dialetos das cidades litorâneas, criadas ao longo dos séculos XVI e XVII, como Salvador, Rio de Janeiro, Recife e Olinda, Fortaleza, São Luis, João Pessoa e Porto alegre, foram se legitimando e se tornaram dialetos valorizados em detrimento dos dialetos das comunidades de fala do interior do país, constituindo-se no discurso valorizado socialmente como “padrão”. A autora também esclarece que essas cidades estão voltadas geograficamente para a Europa e receberam, nos três primeiros séculos, um contingente imenso de portugueses, desenvolvendo, assim, falares mais próximos dos falares lusitanos do que os de comunidades mais interioranas. Isso demonstra a importância de se considerar o que se fala, como se fala, quando se fala, para quê e com quem se fala como aspectos imperativos para a compreensão da significação do discurso. Assim, a escolha lexical ou sintática depende mais das condições de produção do discurso do que de aspectos lingüísticos intrínsecos da língua, tradicionalmente postulados por quem vê a língua com significado em si mesma, porém os significados da língua são construídos socialmente. Duarte e Oliveira (2004 p.210) postulam que “os nomes são categorias lingüísticas caracterizáveis semanticamente por terem um potencial de referência”, ou seja, por geralmente serem “utilizados numa situação concreta de comunicação, com uma função designatória ou de nomeação”, construídas socialmente pelos interagentes. O sentido da linguagem é assim um sentido compartilhado e dependente do contexto de produção e das qualidades de interação, nos quais as palavras ganham sentido e passam a nomear o mundo e transmitir idéias com significados concretos. Para Frege (1978, p. 63), “o sentido de um nome [...] é entendido por todos que estejam suficientemente familiarizados com a linguagem ou com a totalidade de designações a que ele pertence”, mas é freqüente a falta de interação entre falantes causada pela diferença de variação, podendo, por isso, haver desencontros de significados e significantes em uma interação entre pessoas 1
Variação lingüista é entendida como um fenômeno constitutivo das línguas humanas e ocorre em todos os níveis.
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de situação sociocultural diferente. Para Cagliari (2005, p. 30), a linguagem existe porque se uniu um pensamento (significado) a uma forma de expressão (significante), e que “essa unidade de dupla face é o signo lingüístico”. Partindo do pressuposto de que “a língua que o indivíduo desenvolve é a que fica exposto” (ROSA, 2000, p. 24), pode-se afirmar que, numa interlocução, uma pessoa que não tem acesso à cultura letrada se vale de todo e qualquer referente que possa traduzir significados construídos e socializados no meio em que vive, e passa a fazer uso constante de comparações e/ou ilustrações na tentativa de expressar significados ao seu interlocutor, enquanto que o indivíduo que participa da sociedade estruturada pela escrita, lança mão de uma linguagem padronizada, baseada em referentes outros mais abstratos. Esse paradoxo pode representar um entrave para os interlocutores que não tiveram acesso à cultura letrada. Vejamos como o uso de ilustrações e até de metáforas concorre para a construção de sentido em dois exemplos de interação assimétrica, de um lado dois médicos com uma linguagem estruturada mais próxima da variação padrão, ou seja, os representantes do poder e de outro, duas pessoas com linguagem socialmente desvalorizada por ser estruturada na cultura de oralidade – geralmente a dos menos favorecidos: 2.2. Episódio 01 Um diálogo de um médico e uma paciente durante uma consulta. Após ser anunciado o nome da paciente ela entra no consultório: P – Boa tarde dotô. M – Senta aí e diz o que você tem. P – Dotô, eu num sei o que tê’u não. Sinto muita dor, parece que tem um côco no pé da mi’a barriga. M – Um côco no pé da barriga? Senhora, em primeiro lugar barriga não tem pé e muito menos pode ter um côco dentro dela... a senhora deve ter uma inflamação no ovário que causa as dores. P – O Sin’ô mi discurpe, viu? É qu’eu num te’u leitura e num sei falá cuma o Sin’ô não.
(Ao relatar-me esse episódio a senhora esclareceu que o médico simplesmente entregou a receita, ela a recebeu e saiu. Porém quando essa senhora se refere ao fato ocorrido, ela faz questão de dizer que ficou envergonhada e constrangida). No episódio 1, a interação discursiva revela, em marcas lingüísticas, uma assimetria entre os interlocutores – de mais poder e de menos poder, de mais letramento e de menos letramento . O contexto social e cultural do médico é mais letrado, porque é estruturado por práticas da cultura escrita e a linguagem utilizada por ele é mais próxima da variedade padrão, valorizada socialmente e tida como científica e técnica; por isso mesmo, perpassada por uma ideologia, socialmente legitimada. Embora esse fato não justifique o tratamento grosseiro que ele dispensou à paciente, pode-se até caracterizá-lo como mal educado, ele nos permite perceber que, nas interações discursivas, a questão do poder, dependendo do contexto situacional define as regras do jogo, mostrando que quem fala, fala sempre de um lugar ideologicamente situado. No caso analisado o médico mostrase como detentor do conhecimento e do poder para ditar as regras do discurso, mesmo não se fazendo entender. A falante paciente do episódio 1 é uma senhora de 58 anos, desprovida de bens financeiros, residente em uma região do interior do Maranhão, ou seja, reside no campo – um espaço social com vida e identidade cultural própria; com práticas compartilhadas e socializadas por seus moradores (INEP (2007b), mas que teve a coragem de procurar um médico para cuidar de sua saúde. No contexto rural maranhense muitas mulheres, principalmente as senhoras mais idosas, têm dificuldades para realizar consultas médicas devido a vários fatores. Um desses fatores é a ignorância da necessidade de cuidados específicos da saúde, apesar de realizarem tarefas que podem comprometer a mesma.
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Dentre as ocupações das mulheres maranhenses, que residem no campo, destaca-se a quebra de coco babaçu que é feita na maioria das vezes sentadas, no solo úmido, numa clareira que elas mesmas abrem nas proximidades do tronco das palmeiras /dos coqueiros que naturalmente lhes fornecem o produto alvo de suas buscas – o coco. Pois uma das riquezas naturais do estado do Maranhão é o coco babaçu. Os altaneiros coqueiros foram motivo de inspiração para o poeta maranhanse, Gonçalves Dias, que ao escrever a Canção do Exílio fez questão de mencionar: “Minha terra tem palmeiras...” No Maranhão, cerca de trezentas mil pessoas vivem da extração do coco babaçu e 90% delas são mulheres (PORTAL DO BABAÇU, 2008). Quebrar coco é um ofício aprendido e desenvolvido por muitos maranhenses desde a tenra idade. Ao participar do diálogo com o médico, a paciente moradora da zona rural (uma quebradeira de coco), faz uso da linguagem por ela utilizada e que faz muito sentido no meio em que vivem essas pessoas. Trata-se de um lugar onde há coqueiro (palmeira) com cocos caídos junto ao tronco (pé) onde ela provavelmente o recolhe (cata) para extrair (quebrar) a vagem (o bago). Termos esses, usados com seus pares e perfeitamente entendidos e, agora, transpostos para o jogo discursivo com o médico ao dizer: “[...] parece que tem um côco no pé da mi’a barriga”. Entre os seus pares, a falante se faz entender, estabelecendo, desse modo, uma interação com sentido compartilhado devido ao contexto e o conhecimento culturalmente construído. Porém, apesar do seu interlocutor, o médico, tê-la repreendido, ele demonstrou que entendeu perfeitamente o que a mesma quis dizer, por utilizarem um mesmo código lingüístico, embora tenham feito uso de variedades diferentes. Ademais, cabia a ele, ao médico, como um conhecedor e usuário de uma variação privilegiada, esforçar-se para compreendê-la e tratá-la com respeito e educação, pois foi o que ela fez. Pois mesmo sendo uma pessoa menos letrada, ela demonstrou ser mais educada. Para concluir a participação no diálogo (ou tentativa de interação), a interlocutora ratificou sua condição de “desfavorecida” e detentora de menos poder, deixando evidente que no contexto discursivo ela sentia-se ainda mais desfavorecida e bastante limitada para estabelecer a construção de sentidos do jogo discursivo empreendido pelo médico. É válido destacar também que, por algum motivo, que pode ser até por nervosismo, a interlocutora demonstrou disposição para dialogar com o médico ao cumprimentá-lo na chegada e por se desculpar ao sair, porém ela foi visivelmente ignorada nos dois momentos. Dessa forma, pode-se dizer que no episódio ora considerado houve “discriminação de forma explícita, com base nas capacidades lingüísticas medidas no metro da gramática normativa e na língua
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padrão” (GNERRE, 1998). Ademais, Labov (2008, p. 343) salienta que “quando o falante rural chega à cidade, descobre em geral que sua fala caipira é ridicularizada” e, nesse caso, o interlocutor foi além da ridicularizarão, o discurso dele denota ocorrência e evidência de abuso de poder. O paciente interlocutor do episódio número 2 é um senhor de 45 anos, de origem rural, participante das tarefas do campo, mas também já familiarizado com outras atividades próprias da classe trabalhadora – construção, obras. Nesse episódio o paciente é retentor de conhecimento lingüístico mais estruturado, ou seja, é mais letrado do que a paciente interlocutora do episódio número 1, vejamos se esse fato influenciou a construção de sentido estabelecida entre ele e o médico. 2.3. Episódio 02 Este excerto contém o relato de um senhor que em uma consulta viveu momentos de “desencontros de sentido” e teve dificuldades de responder alguns questionamentos feitos pelo médico: [...] D – O Senhor já evacuou hoje?
(Por não entender o significado da palavra ‘evacuar’ e sem saber o que responder, o paciente apenas fitou os olhos no médico por alguns segundos. O médico compreendendo o que estava ocorrendo, refez a pergunta) D – O senhor já obrou hoje?
(O paciente continuou sem entender nada novamente e pensou:) P – (O qu’é isso? Eu num trabáio in obra, num tô intendeno.)
(O interlocutor, mais uma vez, calado estava, calado ficou, então o médico, com aparente tranqüilidade, perguntou pela terceira vez) D – Você já “cagou” hoje? P – Ah, sim. Agora intindi dôtô o que o sin’ô qué sabê. [...]
No episódio 2, há a mesma relação contextual encontrada no anterior, o diálogo estabelecido entre os interlocutores revela a mesma relação de poder; por um lado, um médico integrante das classes favorecidas e por outro lado, um paciente representante das minorias – tanto econômica quanto culturalmente considerados desfavorecidos. De acordo com Cagliari (2005), todo falante usa sua língua conforme as regras próprias de seu dialeto, sendo este, o reflexo da comunidade lingüística a que pertence. Portanto, é natural que cada um dos usuários faça uso da variação que lhe é própria. Desta forma, o médico, inicialmente, permanece totalmente “imerso” na cultura letrada e seu discurso a princípio não produz os significados desejados, ou seja, não completa a interação lingüística. Já o paciente, mesmo sem falar, constrói um discurso, construindo sentidos por meio do seu silêncio, qual seja: ‘não entendo o que você está querendo dizer, por isso não respondo’. (O discurso não dito, muita vezes, comunica mais que o discurso verbal.) Apesar de o caso se revelar um pouco cômico, ele ilustra muito bem a distância social, cultural, econômica e discursiva que há entre interlocutores integrantes de contextos interacionais distintos. Esse fato revela a importância da cultura e do contexto lingüístico para a construção de sentido. Semelhantemente ao que aconteceu no episódio 1, no episódio 2 o paciente tentou relacionar as palavras, ou melhor, o discurso do médico - que não se fez entender - com conhecimentos lingüísticos próprios da sua cultura, especialmente, com conceitos relacionados ao seu mundo de trabalho (obra = construção), universo do qual participa. Mas mesmo assim ele se mostra inseguro, pois além de perceber distinção no modo de falar, ele se depara, também, com a barreira de significado e se resguarda no silêncio.
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Labov (2008, p. 343) ao fazer referência ao usuário do dialeto caipira diz que: Mesmo sendo um marcador de identidade local, e uma fonte de prestígio em casa, ele já pode ter consciência do caráter provinciano de sua fala antes de chegar na cidade. Em conseqüência disso, vemos frerquentemente uma rápida transformação dos traços mais salientes dos dialetos rurais à medida que os falantes se incorporam à vida urbana.
Comparado ao episódio1, o médico do episódio 2 pareceu bem mais amigável com o paciente. Ele aproximou-se de seu interlocutor ao refazer a pergunta e ao oferecer-lhe opções de vocábulo, com esse gesto o objetivo de ser entendido pelo paciente foi alcançado. 3. Conclusão Dos episódios aqui analisados, de uma forma geral, pode-se dizer que, aparentemente, há mais semelhanças do que diferenças entre eles por se tratar de duas consultas médicas, ou seja, o contexto geográfico situacional é o mesmo, porém do ponto de vista discursivo eles são muitos distintos. No primeiro, a interlocutora, paciente que inicia a interlocução não possui um repertório lingüístico compatível com o seu interlocutor – o médico, portanto ela não oferece outras opções de vocábulos para se fazer entender e o seu interlocutor não faz nenhum esforço para estabelecer uma interação ou demonstrar que entendeu o significado do discurso por ela proferido. No episódio dois, o paciente também não é detentor da cultura letrada, mas o seu interlocutor – o médico, ao entender a situação, adota uma postura social louvável – faz uso do seu repertório lingüístico alternativo, ou seja, usa termos que imagina serem eles compreendidos por seu paciente, pois o mesmo, em seu silêncio, revela a que cultura pertence – a de oralidade. Dessa forma, a maior diferença, na construção de significados, se deu pela postura dos detentores do poder, os letrados. No primeiro caso, apesar do que ocorreu, o significado foi construído imediatamente, embora esse fato não tenha sido evidenciado verbalmente, a postura discursiva adotada pelo médico foi intencional, o alvo dele era discriminatório e o mesmo foi alcançado. Já no segundo episódio, pode-se dizer que o discurso e o significado foram construídos de forma interativa, pois a intenção do médico era ser compreendido, expressar significado e, finalmente, ele alcançou êxito em seu objetivo, com isso ele ratifica que cabe a quem tem mais a oferecer, fazê-lo desde que se faça necessário e nesses dois casos é extremamente necessário que haja a construção de sentido nas interações dos interlocutores, pois por motivos distintos o interesse é óbvio para ambos: (a) aos pacientes lhes interessa a saúde e (b) aos médicos, o público alvo da profissão que exercem – os pacientes. Neste contexto, partindo da perspectiva da semântica discursiva de Ducrot (1972) e Guimarães (2007), que trata de questões no campo da semântica discursiva possibilitando entendimento entre o sentido e a intenção dos interlocutores nas interações comunicativas, e por entender que a linguagem é um fenômeno histórico, socialmente construído, consideramos que é perceptível na análise dos dois episódios, que a construção de significação da linguagem entre os interagentes depende fundamentalmente de como o contexto da interação é considerado, pois é dele que dependem todos os elementos significativos necessários para o texto ser compreendido; da cultura; do acesso a bens culturais, como a escrita; e das relações de poder (GNERRE, 1998). Ressalta-se que essas 3 dimensões concorrem igualmente para o estabelecimento de um discurso significativo , ou seja, uma dimensão quase não se sobrepõe à outra. Pode-se observar, também, que quando a relação discursiva que se estabelece no diálogo é assimétrica, chega a ser até opressora (no primeiro episódio), ratificando, dessa forma, que a língua é realmente um instrumento de poder e discriminação (CAGLIARI, 2005), esse mesmo episódio ratifica ainda que “[...] a forma do comportamento lingüístico muda rapidamente à medida que muda a posição social do falante (LABOV, 2008, p. 140). É claramente perceptível, por meio do discurso,
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que cada interlocutor se confirma em seu extrato social e de alguma forma, sem dizer, cada um deixa dito que tem consciência disso. Para Labov (2008, p 147) “a estratificação social e suas conseqüências são apenas um tipo de processo social que se reflete nas estruturas lingüísticas. Diante do exposto, para finalizar, consideremos a perspectiva histórica da linguagem como fenômeno humano e pensemos na pergunta de Bréal: “as palavras criadas pelos letrados e eruditos têm maior exatidão?”(1992, p.125). Referências BAGNO, M. Nada na Língua é por acaso: por uma pedagogia da variação lingüística. São Paulo: parábola Editorial, 2007. BORTONI-RICARDO, S. M. Educação em língua materna: a sociolingüística na sala de aula. São Paulo: Parábola editorial, 2004. BREAL, M. Ensaio de semântica. São Paulo: EDUC e Pontes, 1992. CAGLIARI, L. C. Alfabetização e lingüística. 8. ed. São Paulo, Scipione, 2005. DUCROT, O. O Dizer e o Dito. O princípio da semântica lingüística. São Paulo: Cultrix, 1972. DUARTE, I.; OLIVEIRA, F. Referência nominal. In: MIRA MATEUS, Mª H. Et al. Gramática da Língua Portuguesa 6ª Ed.,Lisboa: Editorial Caminho, 2004. FREGE, G. Lógica e Filosofia da linguagem. Seleção, introdução, tradução e notas de Paulo Alcoforado. São Paulo: Cultrix / Ed. da Universidade de São Paulo, 1978. GNERRE, M. (1998) Linguagem, escrita e poder. São Paulo: Martins Fontes, 2003. GUIMARÃES, E. Texto e Argumentação. Um estudo de conjunções do Português. São Paulo: Pontes, 2007 INSTITUTO BRASILEIRO DE GEOGRAFIA E ESTATÍSTICA. Síntese de Indicadores sociais: uma análise das condições de vida da população brasileira. Rio de janeiro: IBGE, 2007 160 p. INEP - INSTITUTO NACIONAL DE ESTUDOS E PESQUISAS EDUCACIONAIS ANÍSIO TEIXEIRA. Panorama da educação no campo. Brasília: INEP, 2007b. PORTAL DO BABAÇÚ.Disponível em: (www.portaldobabaçu.br) Acesso em: 19 out. 2008. KOCH, I. G. V. O texto e a construção dos sentidos. São Paulo: Contexto, 2003 LABOV, W. Padrões sociolingüísticos. Tradução: Marcos Bagno; Maria Marta Scherre; Carolina Rodrigues Cardoso. São Paulo, Parábola, 2008. ROSA, M. C. Introdução à Morfologia. São Paulo: Contexto, 2000. SEN, A. Desenvolvimento como liberdade. São Paulo, Companhia das Letras, 2000. VEIGA, J. E. da. O Brasil rural ainda não encontrou seu eixo de desenvolvimento. Revista Estudos Avançados, Brasília, v. 15, n. 43, p. 101-119, 2001.
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A QUESTÃO DOS GÊNEROS HÍBRIDOS: CONSIDERAÇÕES A PARTIR DE UMA ANÁLISE DE CASOS EM GÊNEROS PROMOCIONAIS Maria Lourdilene VIEIRA (Universidade Federal do Piauí / CAPES)
RESUMO: Neste trabalho, partimos de considerações teóricas da literatura de gêneros de discurso, utilizando, dentre outros, Bakhtin (2003 [1979]) e Bazerman (2005). Na abordagem da questão dos gêneros híbridos, tomamos por base Koch (2007 [2006]) e Marcuschi (2008) e, ainda (e, principalmente) Bhatia (1997). O objetivo é de analisar como se dá a construção do sentido do texto pautada em mais de uma estrutura genérica, considerando que texto geralmente é definido como um todo significativo construído em satisfação de um propósito comunicativo e que é esse propósito comunicativo que direciona o uso de um padrão genérico em detrimento de todos os outros. Consideramos que o uso de gêneros na formação de textos com mais de um propósito comunicativo proporciona estruturas cada vez mais elaboradas e complexas, de forma que, em certos casos, não seja possível uma classificação posterior em um gênero de discurso específico. PALAVRAS-CHAVE: Gênero híbrido; Gênero promocional; Sentido.
ABSTRACT: In this work, starting from theoretical considerations of the literature of genres of discourse, using, among others, Bakhtin (2003 [1979]) and Bazerman (2005). In addressing the issue of hybrid genres, taken as a basis Koch (2007 [2006]) and Marcuschi (2008) and also and mainly, Bhatia (1997). The objective is to examine how to give the construction of the meaning of the text based on a more generic structure, whereas the text is generally defined as a whole made significant satisfaction in a way that is communicative and communicative purpose that directs the use a generic standard to the detriment of all others. We believe that the use of gender in the formation of texts with more than one purpose provides communicative structures ever more elaborate and complex, so that in some cases can not be a classification later in a specific genre of discourse. KEY WORDS: Genre hybrids; Genre promotional; Sense.
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1. Introdução Os gêneros normalmente são definidos como formas tipificadas socialmente que normalizam as produções textuais nas mais diferentes situações de atividades humanas. Logo, as estruturas genéricas modalizam os diferentes propósitos comunicativos visados a partir de produções textuais, algo que faz com que a comunicação se torne possível quando enquadrada num padrão genérico préestabelecido socialmente. Neste artigo, trabalhamos com textos que não obedecem sistematicamente o que expomos anteriormente, ou seja, são textos que apresentam um sentido, mas um sentido constituído com mais de uma estrutura genérica: casos em que um texto pertencente a um gênero se apropria do modelo de outro gênero e casos em que são misturados ou imbricados padrões genéricos na constituição do texto, sem que seja possível uma classificação do texto em um único gênero, mesmo considerando a função e o propósito comunicativo (ou ainda as funções e os propósitos comunicativos). Desta forma, analisamos a construção de sentido em textos com mais de um padrão genérico. Para isso, utilizamos considerações teóricas acerca de gêneros, como Bakhtin (2003 [1979]), Bazerman (2005), Schneuwly & Dolz (2004) e, ainda, sobre a questão dos gêneros híbridos propriamente ditos, nos baseamos em Koch (2007 [2006]) e Marcuschi (2008) e principalmente Bhatia (1997). Casos que contêm gêneros híbridos normalmente são entendidos como aqueles em que aparece mais de um padrão de gênero ao longo da estrutura textual. O gênero híbrido, por sua vez, será aquele cuja forma é incorporada a uma outra estrutura (na estrutura textual propriamente dita) para construção do sentido textual pretendido numa dada situação comunicativa. 2. Fundamentação teórica 2.1. Gêneros de discurso A literatura de gêneros é complexa, diversificada e numerosa. Por isso, quando se pretende tratar de gêneros, é preciso enfrentar essa complexidade da literatura e fazer recortes e escolhas necessários àquilo que se busca mostrar ou demonstrar. Seguindo esse posicionamento, partimos, portanto, de Bakhtin (2003 [1979]) que muito nos tem ensinado e é, até certo ponto, o grande responsável pelos caminhos que norteiam até hoje os estudos de gêneros. Com Bakhtin, aprendemos a ver os gêneros como estruturas sócio-historicamente construídas e representativas das necessidades comunicativas das sociedades. Segundo seu posicionamento, cada esfera de atividade humana elabora seus tipos relativamente estáveis de enunciados, sendo que cada tipo será próprio e representativo de uma necessidade comunicativa e específica de determinada esfera. Ademais, cada tipo de enunciado é dotado de três partes que o constituem e o determinam enquanto gênero de discurso: conteúdo (temático), estilo (da linguagem) e construção composicional. São fatores que não possuem sentido se entendidos separadamente, pois na constituição do gênero estão indissoluvelmente ligados. O enunciado, como unidade real da comunicação discursiva, constitui a materialização das estruturas genéricas, algo que faz com que o estudo de gêneros seja pautado em enunciados que, embora concretos e únicos, como afirma Bakhtin, só se materializam a partir de uma estrutura genérica, o que os faz interdependentes. A existência de um se faz mediante a do outro. Bazerman (2005, pp. 22 e 23) - para quem linguagem é ação, ou seja, por meio dela podemos agir e interagir no meio social, sendo que essa ação de linguagem se dá por meio de estruturas inteligíveis interligadas umas às outras, os gêneros – entende textos como estruturas capazes de criar realidades, ou fatos sociais que, assim, constituiriam “ações sociais significativas realizadas pela linguagem”. Manifestam-se por meio dos gêneros que situados, tanto em relação a outros gêneros como a outros textos, “ocorrem em circunstâncias relacionadas”. Bazerman considera que “Juntos, os vários tipos de textos, se acomodam em conjuntos de gêneros dentro de sistemas de gêneros, os quais fazem parte dos sistemas de atividades humanas” (p. 22) (grifos do autor). Desta forma, é por meio
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dos textos que produzimos no dia a dia que agimos socialmente, e essas ações são organizadas e tipificadas pelas estruturas genéricas que direcionam nossas produções textuais. Logo, dentro dos sistemas de atividades humanas são os sistemas de gêneros que, divididos em conjuntos de gêneros (cada conjunto específico do contexto ou da situação), organizam a vida em sociedade. Considerando isso, o teórico afirma que Compreender esses gêneros e seu funcionamento dentro dos sistemas e nas circunstâncias para as quais são desenhados pode ajudar você, como escritor, a satisfazer as necessidades da situação, de forma que esses gêneros sejam compreensíveis e correspondam às expectativas dos outros. Compreender os atos e os fatos criados pelos textos pode ajudá-lo também a compreender quando textos, aparentemente bem produzidos, não funcionam, quando não fazem aquilo que precisam fazer. Tal compreensão pode ajudar a diagnosticar e redefinir sistemas de atividades comunicativas (...). Pode também ajudar a decidir quando é necessário escrever de forma inovadora para realizar alguma coisa nova ou diferente (...). Se, por um lado, isso pode levar a usos indevidos do texto, pode também oferecer os instrumentos para a reflexão sobre o papel da criatividade social em fazer coisas novas acontecerem de novas maneiras (pp. 22 e 23).
Quanto a isso, é importante considerarmos que os gêneros são estruturas inteligíveis, como já afirmou Bazerman, mas que estão a serviço dos indivíduos pertencentes a determinado grupo social. Logo, são esses mesmos indivíduos que precisam das estruturas genéricas para interagirem por meio da linguagem que agem sobre estas estruturas de forma ativa e criativa, ajustando-as às diferentes situações de comunicação. Eles não têm liberdade de criar estruturas totalmente novas, mas, em maior ou menor grau (de acordo com o gênero), podem agir sobre estas estruturas que não são definitivamente fixas e imutáveis. Bazerman direciona seu posicionamento para a pessoa do escritor, um indivíduo que, por trabalhar especialmente com textos, tem mais experiência e, por isso, uma maior flexibilidade tanto no que diz respeito ao entendimento dos textos, como na construção deles. Algo que possibilita a ele uma maior liberdade, já que, por conhecer mais e melhor determinado gênero, tem mais condições de inovar criativamente. Mesmo existindo as estruturas genéricas que guiam a construção dos textos, a criatividade pode agir no sentido de inovação, o que possibilita a introdução de “diferentes tópicos” e, principalmente, “diferentes atividades, padrões interativos, atitudes e relações” (BAZERMAN, 2005, p. 23). Com o pressuposto “de que é através dos textos que as práticas de linguagem materializamse nas atividades dos aprendizes”, Schnewly & Dolz (2004, p. 74) partem para explicar como se articulam as práticas e a atividade do aprendiz (Neste trabalho, tratam especificamente dos gêneros escolares). Sendo os gêneros fundamentais para as práticas de linguagem, os teóricos, seguindo a tradição bakhtiniana, caracterizam gêneros como instrumentos que fundam a possibilidade de comunicação. Tratam-se de formas relativamente estáveis tomadas pelos enunciados em situações habituais, entidades culturais intermediárias que permitem estabilizar os elementos formais e rituais das práticas de linguagem. Os locutores sempre reconhecem um evento comunicativo, uma prática de linguagem, como instância de um gênero. Este funciona, então, como um modelo comum, como uma representação integrativa que determina um horizonte de expectativas (...) (p. 74).
Com base em Bakhtin (2003 [1979]), também definem gêneros a partir da observação de três dimensões essenciais: 1) os conteúdos e os conhecimentos que se tornam dizíveis por meio dele, 2) os elementos das estruturas comunicativas e semióticas partilhadas pelos textos e reconhecidas como pertencentes ao gênero, 3) as configurações específicas de unidades de linguagem, traços, principalmente, da posição enunciativa do enunciador e dos conjuntos particulares de sequências textuais e de tipos discursivos que formam sua estrutura (p. 75).
Assim, essas dimensões, a nosso ver, correspondem, em outras palavras, ao que Bakhtin considera como partes constituintes dos gêneros de discurso: tema, estrutura composicional e estilo. Schnewly & Dolz acreditam que, por estas três dimensões serem determinantes dos gêneros,
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estes atravessam a “heterogeneidade das práticas de linguagem e [fazem] emergir toda uma série de regularidades no uso” (p.75). Os teóricos asseguram, desta forma, a estabilidade do gênero, embora não excluam possibilidades importantes de evoluções. Bakhtin (2003 [1979]), ao tratar de gêneros de discurso, faz uma distinção que, para nosso trabalho, é muito importante: a diferenciação entre gêneros primários e secundários. Gêneros primários correspondem a composições simples produzidas no cotidiano, sem a preocupação de uma elaboração formal; são exemplos deste tipo de composição principalmente gêneros orais como a conversa familiar ou ainda escritos como anotações, cartas e bilhetes. Quanto aos secundários, são representativos de uma elaboração formal mais aprimorada. Na sua constituição englobam e reelaboram outros gêneros (primários) que, quando passam a ser constituintes de um outro enunciado (mais complexo), perdem o vínculo com a realidade imediata e, naquela situação, não funcionam como um gênero do discurso, mas como partes constituintes de um outro enunciado. Essa diferenciação serve como ponto de chegada ao nosso intento: a questão dos gêneros híbridos. Considerando o que afirma o teórico sobre gêneros primários e secundários, poderíamos nos indagar se o fenômeno de hibridização só poderia acontecer, realmente, num gênero secundário. Para prosseguirmos, cabe a nós definirmos o que vem a ser, de fato, um gênero híbrido. 2.2. Intergenericidade ou gêneros híbridos Koch (2007 [2006], p. 114) trata do fenômeno de hibridização ou intertextualidade intergêneros e o define como “um gênero (...) [que assume] a forma de um outro gênero tendo em vista o propósito de comunicação”. Assim, há uma imbricação entre a forma estrutural de um gênero A, porém, com a funcionalidade, o propósito comunicativo de um gênero B; sendo que, dentro dessa mesma equação que propomos, é o gênero B quem passa a assumir o gênero A, ou seja, embora noutra estrutura, estrutura de A, permanece como gênero B, o propósito comunicativo é mantido, bem como a função. Marcuschi (2008) usa a expressão intertextualidade tipológica de Fix (1997, p. 97) que, segundo ele, designa “esse aspecto da hibridização ou mescla de gêneros em que um gênero assume a função de outro” (p. 165). O teórico propõe chamar essa denominação pessoalmente de intergenericidade, a qual, sob o seu ponto de vista, é a que mais traduz o fenômeno, já que há, sem dúvida, uma relação entre um gênero e outro, e essa é a condição para a ocorrência do fenômeno. Bhatia (1997) também trata desta questão e, como explicitam Koch (2007 [2006]) e Marcuschi (2008), acredita que nas atividades promocionais e publicitárias há um maior índice de acontecimentos deste tipo. Logo, considera que é pelo fato de as demandas por práticas discursivas se tornarem cada vez mais complexas que profissionais experientes utilizam tanto estratégias já estabelecidas, como e principalmente outras de caráter inovador, de forma a atingir cada vez mais uma variedade de objetivos complexos. É importante observar que essas formas e estratégias inovadoras tomam como base ou ponto de partida o já estabelecido dentro da comunidade profissional. Observando deste ponto, a criatividade e inteligência humanas aparecem como um fator de considerável relevância na constituição de enunciados com imbricação ou mistura de gêneros, o que faz com que Bhatia considere a existência de gêneros com mais de um valor genérico, sendo que, em vez de servir a um único propósito comunicativo, servem a vários, constituindo muito freqüentemente “um misto de propósitos complementares” (p. 10). O teórico apresenta, então, a questão dos gêneros promocionais, em que são feitas sempre promoções de caráter positivo acerca de produtos, marcas etc. Algo que faz com que o produtor seja inusitado no intuito de apresentar tal produto ou marca ao consumidor possível de uma forma cada vez mais criativa, como uma maneira de chegar ao que deseja: atrair o cliente. É por isso que afirma que “Os gêneros, nesse sentido, possuem uma tendência natural à imbricação e à mistura, pelo fato de que a maioria dos gêneros apresenta mais de um valor genérico” (BHATIA, 1997, p. 10) (grifos nossos).
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É isso que reconhece por gêneros híbridos, algo que, na verdade, é entendido de uma forma mais complexa e, ainda, de forma diferenciada daquilo que explicitam Koch (2007 [2006]) e Marcuschi (2008) acerca de tal fenômeno. Estes acreditam que há a apropriação, por parte de um gênero, de uma outra estrutura, para fins específicos na construção do sentido de um texto que, no entanto, permanecerá com o mesmo propósito e a mesma função, ou seja continua sendo o mesmo gênero de discurso de antes. Já Bhatia (1997) defende que a mistura ou imbricação de estruturas genéricas constituem um todo textual, cuja classificação em um gênero de discurso específico se torna complicada pelo fato de que possui propósitos comunicativos que se complementam. Bhatia ainda entende distintamente casos de mistura e de imbricação de gêneros; sendo que a mistura consiste na utilização de formas de gêneros diferentes na constituição de um outro – seria um caso de gênero misto. Já haveria imbricação de gêneros quando “encontramos dois ou mais padrões genéricos imbricados um dentro do outro” (p. 11). A diferença estaria no fato de que, no primeiro, há mistura de formas genéricas típicas e características, não necessariamente de gêneros inteiros, completos, mas de partes representativas e constitutivas de gêneros específicos; já no segundo caso, há a imbricação de estruturas genéricas inteiras na constituição de um todo. 3. Uma análise de gêneros híbridos Considerando o que vimos expondo até então, em que nos apoiamos em considerações de outros teóricos para constituição das nossas, antes de partirmos para a análise dos dados que dispomos, cabe-nos ressaltar que nossas considerações se constituem a partir daquilo que observamos no material que compõe o nosso corpus; já que procuramos observar como o sentido do texto é construído, embora possua estrutura e funcionalidade pautadas em mais de um padrão genérico. Procuramos, com isso, refletir acerca do que consideram teóricos como Bakhtin (2003 [1979]) e outros, acerca do fato de que todo texto só se constitui quando emoldurado na estrutura de um gênero, pois cada gênero de discurso manifesta uma intenção comunicativa diferente, daí a diferença entre um gênero e todos os outros. Já nos gêneros promocionais, utilizando a denominação de Bhatia (1997), em muitos casos não é possível a identificação do gênero a partir do texto pelo fato de existirem diferentes funções que ele desempenha, apresentando dois ou mais padrões genéricos. Diante desse quadro, não podemos identificar o texto enquadrando-o apenas no que Bakhtin considera como gêneros secundários, já que, ainda assim, continuaria o dilema: que estrutura genérica sobrepõe-se às demais para, assim, identificarmos o gênero? E quando todas parecem ter uma relevância equivalente, considerando os sentidos identificados no texto? É um caso complexo que carece de uma maior reflexão para melhores entendimentos e esclarecimentos posteriores. Procuremos, a partir de agora, através de textos que divulgam produtos, marcas etc., fazer uma análise de casos em que mais de um padrão genérico aparece estruturando os textos. Buscamos, com isso, dentre outros aspectos, observar como o uso de padrões genéricos interfere na constituição de sentido do texto e o que permanece da função exercida pelo gênero (que naquele contexto tem uma função híbrida) de acordo com o propósito comunicativo que desempenha na comunidade discursiva em que circula. É com base nisso que passamos a dialogar com a definição de gênero que o identifica como uma forma ou estrutura textual que corresponde a um propósito comunicativo específico. Vejamos já com base em (01), abaixo, que o uso de padrões genéricos, sobretudo em gêneros promocionais, não se dá de forma aleatória: faz parte da construção de um sentido pretendido previamente, que passa a ser construído já no momento em que se opta pelo uso de padrões genéricos determinados, tudo em função da divulgação específica de algo.
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Texto (01) – Revista Veja 06 de dezembro 2006.
Já numa primeira e superficial análise de (01), percebemos que ele exemplifica bem a definição de gêneros promocionais de Bhatia (1997), em que o texto é construído em função da divulgação de determinado produto, marca etc. Temos, nesse caso, a promoção do navegador portátil Easyroad da Magneti Marelli, onde, em todo o texto, somos apresentados aos padrões de qualidade e sofisticação do produto; há uma descrição minuciosa destes aspectos. Mesmo pelo que é apresentado ao longo do texto, pela estrutura composicional, estilo e temática, com base em Bakhtin (2003 [1979]), é difícil de avaliar o seu pertencimento a um gênero de discurso específico: trata-se de um esclarecimento através de um comunicado ou de apenas uma estratégia de marketing na construção de uma propaganda? Inicialmente, temos uma apresentação clara e objetiva que identificamos pertencente ao gênero comunicado, não somente pela estrutura textual, mas principalmente pelo estilo da linguagem e pela temática apresentada no texto: a marca Magneti Marelli esclarece ao leitor que a reportagem publicada pela revista na edição anterior estava até certo ponto errada e esclarece o porquê. Porém, considerando o conhecimento de mundo e enciclopédico disponível, entendemos que há aí a divulgação de um produto, embora num primeiro momento, haja a apropriação da estrutura de um outro gênero de discurso, um comunicado, e a venda de um produto, uma propaganda, apresentada na segunda parte do texto. O caso de (01) constituiria, evidentemente, o que Marcuschi (2008) chama de intergenericidade e Koch (2007 [2006]) de hibridização ou intertextualidade intergêneros se considerássemos que houve deveras uma apropriação da estrutura de um gênero em função de outro, cuja função do
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primeiro se sobressai, no caso da propaganda. Mas Bhatia (1997), quando trata desta questão, faz uma distinção mais complexa, em relação ao que chama de gêneros promocionais. Considerando o que afirma este teórico, estamos diante de um caso de mistura de gêneros ou de imbricação de gêneros? Ainda assim, a que gênero textual pertence tal texto? É suficiente o classificarmos apenas como mais um gênero promocional? Se considerarmos o que afirma Bhatia acerca de imbricação de gêneros, que consiste na junção de dois ou mais padrões genéricos num mesmo gênero, apontaremos, no texto, o critério de que há a estrutura de um comunicado, esclarecendo uma avaliação incompleta divulgada numa edição anterior da revista-suporte da propaganda. Em seguida há uma espécie de amostra das qualidades e benefícios que o produto em questão é capaz de oferecer, se enquadra mais num anúncio que tem em vista promover o produto em questão. Porém, devemos considerar que há uma estratégia profissional de promoção do produto, de direcionar o leitor inicialmente à crença de um propósito comunicativo do texto, através do uso de um comunicado que visaria esclarecer algo como ponto de partida. E, já no comunicado, temos a venda promocional do produto em questão, o que nos permite afirmar a existência, como já dissemos, de um gênero promocional, que possui, não uma, mas várias funções. Seu enquadramento no gênero propaganda não é suficiente, pelo fato de que é iniciado como comunicado, e, até certo ponto, isso é fato. A propaganda vem como um acessório do texto, já neste primeiro momento, somente no segundo é, de fato, apresentada. Vejamos o caso de (02): Texto (02) – Revista Veja 28 de maio 2008.
Em (02), somos levados a reconhecê-lo como um gênero promocional, já que, também, é difícil e complicado o seu enquadramento num gênero de discurso específico, pois demonstra características de informativo ou comunicado (textos que normalmente são entendidos como aqueles que visam apresentar uma informação ou fazer um esclarecimento sobre algo) e, ao mesmo tempo, sabemos ainda se tratar de uma propaganda da marca Ypê. Há o uso de estruturas próprias de outros gêneros, não somente da estrutura, mas, como vimos defendendo, do propósito comunicativo específico, mesmo com a função principal de propagar, de promover uma marca de produtos de
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limpeza. Mais uma vez, o leitor, ao se deparar com um texto deste tipo, pode entendê-lo como propaganda e assimilá-lo ainda pelo propósito comunicativo de informativo que, ao fazer isso, também, está a serviço da promoção da marca. Há mais de uma função no texto, principalmente, informar algo e promover a divulgação de uma marca. A identificação em um único gênero se torna, nessas condições, difícil. Quanto a isso Bhatia (1997) esclarece que Seja qual for a explicação, os gêneros muito dificilmente servem a propósitos únicos; eles apresentam um conjunto de propósitos, mas esse conjunto muito freqüentemente torna-se um misto de propósitos complementares. Não será errado alegar que esses mesmos propósitos apresentam “valores genéricos”, caso se possa identificá-lo separadamente (p. 10).
Diferentemente, em (03), embora o texto, seja apresentado sob a forma de um outro gênero discursivo, isso é feito já em função da propaganda: Texto (03) – Revista Veja 28 de maio 2008.
Somos apresentados à estrutura típica de um projeto imobiliário, geralmente feito quando é pretendida a construção de um imóvel. Pelo nosso conhecimento de mundo e conhecimento partilhado, sabemos que quando há a pretensão de compra de um imóvel que ainda vai ser construído, somos apresentados inicialmente a um projeto que mostra detalhadamente o que se almeja com a construção do imóvel. O profissional, nesse caso, aquele que elabora o texto da propaganda, tem em vista essa regra, bem como os pensamentos de seu cliente ao ser apresentado ao projeto e imaginar-se, a partir disso, em momentos agradáveis em família. Aproveita um destes momentos possíveis de serem imaginados por determinado cliente e o elabora na estrutura de um projeto imobiliário. Assim, divulga a imagem de uma construtora imobiliária. Deste modo, temos toda a estrutura de projeto imobiliário, porém, com uma outra função: a de divulgação promocional da imagem de uma construtora imobiliária. Logo, ao nos depararmos com um texto como esse, não o entendemos como um projeto, mas como uma propaganda, porque somos capazes de assimilar sua funcionalidade pelo contexto comunicativo em que estamos inseridos.
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Entendemos a sua lógica com o uso da estrutura de um projeto imobiliário, já que sabemos a funcionalidade deste gênero e por isso sabemos o seu propósito comunicativo. Este caso exemplifica bem o que postulam Koch (2007 [2006]) e Marcuschi (2008) sobre o fenômeno de intertextualidade intergêneros ou hibridização e intergenericidade, conforme denominam, respectivamente. Tendo em vista esse critério, entendemos o sentido da propaganda, mas a partir do que nos comunica o gênero cuja estrutura ela se apropria e está apresentada. É importante considerarmos que o propósito comunicativo do gênero projeto imobiliário é tomado a serviço do gênero propaganda. Na propaganda, claro, vai ter uma outra função, mas enquanto projeto imobiliário constrói a lógica da propaganda, a partir de seu propósito comunicativo que, neste caso, está a serviço da propaganda. Texto (04) – Revista Veja 16 de fevereiro 2005.
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Em (04) temos um texto divulgando o 15º Festival Mundial de Publicidade de Gramado: há informações acerca do evento e os critérios delimitadores da participação de possíveis candidatos. Assim, a estrutura do texto está dividida em partes, onde destacamos principalmente o título, o subtítulo, a apresentação do evento e de suas informações básicas e uma outra, em que são apresentados os critérios burocráticos direcionados a candidatos que queiram participar. Estes últimos, por sua vez, estão apresentadas na estrutura de um edital, em que são dispostos, em cada item específico, os critérios delimitadores do festival. Um caso de mistura de gêneros: mais de um padrão genérico em prol da construção de um sentido textual, mas com mais de uma função, mais de um propósito comunicativo. Neste caso, não faz parte da lógica constitutiva do texto trazer um edital com as normas do festival, mas um texto que promova o evento e já o apresente e mostre as normas para quem se interessa em participar. A estratégia toma como lógica a divulgação do evento e a convocação de participantes possíveis, já os informando acerca das normas, para que isso aconteça. A estrutura textual apresentada em (04) caracteriza, com base em Bakhtin (2003 [1979]), um gênero secundário, já que se trata de uma elaboração mais aprimorada que reelabora outros gêneros na constituição de sua estrutura. Mas a que gênero mesmo faz parte essa estrutura? As estruturas genéricas que conseguimos identificar no mesmo texto fazem parte, de acordo com o que postula Bazerman (2005), do mesmo conjunto de gêneros, que mantêm relações e fazem parte do mesmo ambiente ou esfera de atividade humana. O caráter de inovação reflete a criatividade humana de lidar com o pré-construído na constituição de coisas novas; novos padrões que são assimilados e aceitos justamente por se constituírem com base no já construído. Bazerman justifica isso como resultante do papel da criatividade social, que seria “fazer coisas acontecerem de novas maneiras” (p. 23). Já que não devemos forçar uma nomenclatura, muito menos inventar uma, utilizamos aquela usada por Bhatia (1997), de gêneros promocionais. Texto (05) – Fonte: Revista Veja 16 de fevereiro de 2005.
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Anúncios de venda afixados em visores traseiros de carros são muito comuns no cotidiano das sociedades modernas e capitalistas. Mas é incomum quando o anúncio diz justamente o contrário. O sentimento de posse e a vontade de permanecer com o veículo, demonstrados a partir do anúncio, acionam várias leituras da propaganda demonstradas pelo que conhecemos já sobre isso. Quando se afixa um anúncio de venda é por que há a vontade de se desfazer do veículo, e isso se dá por algum motivo, seja por que a máquina esteja velha, ou com defeito, ou por que se pretende comprar uma nova etc. Anunciar o contrário é dizer exatamente que não há a menor possibilidade de querer se desfazer do automóvel. Logo, isso deve ter um motivo, pois o proprietário demonstra estar bastante satisfeito. Já que a função da propaganda é promover determinado produto, quando usa a informação inversa de um anúncio de venda típico e comum numa comunidade discursiva, tem-se logicamente o efeito inverso. O propósito comunicativo do gênero anúncio de venda é assimilado inversamente, a partir do que se conhece normalmente que ele divulga. Ainda assim, tal propósito é assimilado para construção da lógica pretendida na construção da propaganda. A mistura acontece com gêneros que têm a mesma funcionalidade numa comunidade discursiva: tratam-se de dois gêneros que têm por função promover a venda de um certo produto, embora um seja bem mais simples que o outro. Porém, a estrutura do anúncio de venda simples é acionada para dizer o contrário daquilo que costuma comunicar: o que é comunicado é a não venda, enfatizada por uma frase de efeito posterior (NÃO VENDO – NEM ADIANTA INSISTIR). A função do anúncio de venda simples no contexto desta propaganda só é entendido em vista de sabermos o seu propósito comunicativo em outros contextos, em que costuma aparecer, num uso convencional. (05) ilustra um caso de hibridização ou intergenericidade (conforme Koch (2007 [2006]) e Marcuschi (2008), respectivamente): identificamos o gênero propaganda e, dentro deste, encontramos a estrutura de outro gênero que é usada na construção do sentido do texto. O propósito comunicativo, bem como a função do gênero propaganda, permanecem, embora, ao nos depararmos com o texto, assimilemos o outro gênero usado na sua construção. A única função do texto é divulgar, promover o modelo de carro apresentado pela propaganda. Contudo, é importante que consideremos o fato de que Bhatia (1997) entende a questão de mistura ou imbricação de gêneros híbridos, diferentemente de Koch (2007 [2006]) e Marcuschi (2008). Estes entendem o fenômeno como o fato de um gênero apropriar-se da estrutura de outro para o cumprimento de determinada função comunicativa. Bhatia vê essa questão de uma forma mais complexa. Quando faz suas considerações acerca disso, trata da questão dos gêneros promocionais e ressalta, sobretudo, a dificuldade de classificação de um gênero promocional (que são muitos e, ao mesmo tempo, estão interligados em cadeias de subgêneros que surgem a partir de uma base comum). A seu ver, há muitos exemplos de textos que se enquadram nestes gêneros que apresentam várias funções comunicativas, com propósitos comunicativos que se completam. Assim, geralmente são misturados ou imbricados diferentes padrões genéricos, algo que, numa análise, dificulta a classificação do texto, quanto ao seu pertencimento a este ou àquele gênero cujo padrão genérico aparece. Segundo Bhatia, são casos em que as funções comunicativas não se sobrepõem, mas se completam. Entendemos esse posicionamento e, em nossas análises, identificamos textos que exemplificam o que o autor defende: gêneros que apresentam mais de um padrão genérico, com mais de uma função comunicativa, algo que é resultante da mistura de padrões genéricos. Com isso, diante do texto, o interlocutor é levado a apreender mais de uma função a que se destina determinado texto. Em outros casos encontramos textos em que a função é, evidentemente, propagandística, porém, há o uso de um padrão genérico que aparece como estruturador do texto, mas permanece a
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função do texto inicial. O outro padrão aparece como suporte do sentido que é estruturado a partir desta apropriação, que sempre tem um propósito específico. O propósito comunicativo do gênero apropriado serve de base ao entendimento do sentido a ser veiculado pelo texto ‘apropriador’. Ou seja, na diversidade de textos que organizam o dia a dia da vida moderna, encontramos casos que ilustram o que defendem Koch (2007 [2006]) e Marcuschi (2008), caso que ilustram o que defende Bhatia (1997) e, certamente, deve haver casos que ainda não podem ser explicados por nenhum posicionamento. Quanto a isso, lembremos o que Bakhtin (2003 [1979]) afirma quanto à relativa estabilidade do gênero (a nosso ver, mais relativa que estável). Bazerman (2005), Schnewly & Dolz (2004), Bhatia (1997), bem como outros teóricos da literatura de gêneros, sempre ressaltam a questão da criatividade humana, que sempre atua no sentido de inovação, de modificação com base sempre no já construído. 4. Considerações finais Na definição de gêneros, não podemos afirmá-los como formas que mediam a constituição de um texto que se destina a comunicar algo, sem ressaltar o fato de que, como vimos, existem textos que são construídos justamente com o intuito de comunicar muitas coisas, textos com várias funções, vários propósitos. Ainda assim, conseguimos identificar ali estruturas genéricas mediando essa construção que, mesmo inovando, parte daquilo que já conhecemos. Sabemos que, na propaganda ou nos textos que visam à promoção ou divulgação de algo, a criatividade é um fator fundamental para a própria repercussão que o texto deverá ter na sociedade. Com isso, sentidos cada vez mais diferentes são construídos, baseados em lógicas cada vez mais interessantes e originais. Desta forma, consideremos finalmente que na constituição do sentido textual pretendido um único gênero pode não ser suficiente, por se ter mais de um propósito comunicativo e querer dá ao texto mais de uma função. Daí o uso de gêneros, o que dá origem a textos cada vez mais bem elaborados e mais complexos, sem que seja possível sua classificação posterior em um gênero de discurso específico. Consideremos, mais uma vez, o que Bhatia (1997) observa acerca dos gêneros promocionais, que estes visam um número cada vez maior e diversificado de interlocutores, num contexto em que os textos são produzidos de forma cada vez mais criativa. Algo que faz com que sejam desenvolvidas muitas e diferentes estratégias de composição, que partem com base no já construído e aceito pela sociedade, mas de forma diversificada e atrativa, em prol de objetivos que se misturam em vista dos diferentes propósitos e, consequentemente, dos diferentes gêneros. Referências BAKHTIN, M. Os Gêneros de Discurso IN: Estética da Criação Verbal. São Paulo: Martins Fontes, 2003 [1979], pp. 261-306. BHATIA, V. K. Genre analisis today (Trad. Benedito Gomes Bezerra). Revue Belge de Philologie et d’Histoire. Bruxelles, nº 75, pp. 629-652. BAZERMAN, C. Ato de Fala, Gêneros Textuais e Sistemas de Atividades: como os textos organizam atividades e pessoas IN: Gêneros Textuais, Tipificação e Interação (Orgs.: DIONISIO, A. P.; HOFFNAGEL, J. C.) São Paulo: Cortez, 2005, pp. 19-61. SCHNEUWLY, B. & DOLZ, J. Os Gêneros Escolares – das práticas de linguagem aos objetos de ensino IN: Gêneros Orais e Escritos na Escola. Campinas, SP: Mercado das Letras, 2004, pp. 71-91. KOCH, I. V. K. Gêneros Textuais IN: Ler e Compreender: os sentidos do texto. São Paulo: Contexto, 2007 [2006], pp. 101-122.
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Tema geral: Línguas e Literaturas: Diversidade e Adversidades na América Latina MARCUSCHI, L. A. Produção Textual, Análise de Gêneros e Compreensão. São Paulo: Parábola Editorial, 2008. VEJA, Revista. Editora Abril. Fev. de 2005; Dez. de 2006 e Mai. de 2008 (www.veja.com.br)
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JORNAL GAZETA OFFICIAL E A (IN)FORMAÇÃO DO LITERÁRIO NA BELÉM DO SÉCULO XIX Maria Lucilena Gonzaga COSTA (Universidade Federal do Pará)
RESUMO: A chegada ao Brasil da Família Real portuguesa ocasionou melhorias significativas à colônia, dentre as quais merece destaque a instauração da Imprensa, cuja colaboração foi importante para a liberdade de expressão e a independência dos brasileiros. Com a literatura na fase romântica surgiu, no Brasil, o romancefolhetim. A princípio, os folhetins eram traduzidos diretamente do francês, posteriormente, os escritores locais sentiram-se motivados a escreverem e publicarem suas obras em capítulos de jornais. Na província do Pará não foi diferente. Vários jornais paraenses auxiliaram na expansão da leitura e divulgação do conteúdo literário, entre eles há que se destacar a atuação da folha Gazeta Official, publicada entre 1858 a 1866. Nesse sentido, o objetivo maior deste trabalho é fazer uma compilação de textos relacionados à literatura e ao romance-folhetim encontrados no jornal Gazeta Official. PALAVRAS-CHAVE: Gazeta Official; literário; romance-folhetim; noticioso.
RESUMÈE : L’arrivée de la famille royale au Brésil, a conduit à des améliorations significatives pour la colonie, parmi lesquelles, il est intéressant de noter la création de la presse, dont la coopération est important pour la liberté d’expression et l’indépendance des Brésiliens. Avec la littérature romantique est venu au Brésil le roman-feuilleton. En principe, les feuilletons ont été traduits directement du français. Plus tard, les écrivains se sont sentis motivés pour écrire et publier leurs œuvres en chapitres, dans les sections des journaux. Dans la province du Para celà n’était pas différent. Plusieurs journaux paraenses ont contribué à l’expansion de la lecture et la diffusion de contenu littéraire, y compris la Gazeta Official, publiée entre 1858 à 1866. En ce sens, l’objectif de ce travail est d’établir une compilation des textes relatifs à la littérature et le roman-feuilleton dans le journal Gazeta Official. MOTS-CLÉS: Gazeta Official ; litteraire ; roman-feuilleton ; nouvelles.
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1. O Literário da época No século XIX, a visão que se tinha acerca da palavra Literatura era bem distinta da que se estabelece em nossos dias. Segundo Márcia Abreu (2003) a “autonomização” do termo Literatura se daria somente a partir de 1878, ano em que Antonio de Moraes Silva atribui em seu dicionário a concepção de literatura mais próxima da atual, já que anteriormente a essa data a Literatura era concebida como sinônimo de erudição e conhecimento. Assim, quando a Literatura foi concebida como “o conjunto das produções literárias d’uma nação, d’um país, d’uma época” 1 foi possível restringir sua significação para a área das Belas Letras. Nesse sentido, é possível perceber que a Gazeta Official destinava uma seção intitulada Litteratura2 para textos relacionados a comentários de livros, estudo sobre a poesia brasileira, poesia popular e seu caráter no Brasil, bem como textos políticos ou históricos. Ora, o literário ainda não estava relacionado à concepção moderna, conforme afirma Márcia Abreu: A definição moderna de literatura se fez no momento em que entraram em cena novos leitores, novos gêneros, novos escritores e novas formas de ler. Escritores e leitores eruditos interessavam-se fortemente em diferenciar-se de escritores e leitores comuns, a fim de reassegurar seu prestígio intelectual, abalado pela disseminação da leitura. Isso os levou a eleger alguns autores, alguns gêneros e algumas maneiras de ler como os melhores. Convencionaram chamar isso de literatura.3
Logo, conclui-se que até meados do século XIX não se podia considerar o termo literário ou literatura segundo a concepção atual, ou seja, na maioria dos casos a seção Litteratura de alguns jornais não tinha relação com o que poderíamos encontrar nos jornais de hoje. Nesse sentido, é necessário o estudo de algumas seções do jornal Gazeta Official, cujo proprietário era, também, dono da tipografia e da livraria Commercial, responsável por boa parte dos livros editados e vendidos em Belém. As informações coletadas demonstram que a seção Litteratura nem sempre correspondia às expectativas de encontrar contos, poemas, crônicas, narrativas folhetinescas etc. Essas, na maioria das vezes, eram localizadas nas colunas variedade, miscelânea, a pedido, crônica da semana e folhetim. Isso porque a terminologia da palavra literatura não era a mesma da que temos hoje. Segundo Sodré, além de o folhetim ser produto da Escola Romântica, era ele quem representava a parte mais atrativa dos jornais: O grande público iria sendo conquistado para a literatura principalmente pelo folhetim, que se conjugou com a imprensa e foi produto específico do Romantismo europeu, aqui imitado com sucesso amplo, nas condições do tempo. O folhetim era, via de regra, o melhor atrativo do jornal, o prato mais suculento que podia oferecer, e por isso o mais procurado. Ler o folhetim chegou a ser um hábito familiar, nos serões das províncias e mesmo da Corte, reunidos todos os da casa, permitida a presença das mulheres. A leitura em voz alta atingia os analfabetos, que eram a maioria.4
Na investigação da seção intitulada Literatura do Jornal Gazeta Official constata-se, como já foi mencionado acima, que há textos que, embora tenham sido publicados na referida seção, estavam ligados à história, política, moral, religião. Contudo, há que se considerar o valor da crítica não pelo critério de hoje, mas como prática de cultura escrita historicamente constituída no seu tempo. É possível localizar críticas literárias que, mesmo sendo de encômios, já se relacionavam com a definição de literatura que se tem hoje. Como se observa no fragmento: Há escritores literários que nenhum facto político distancia. Um pensador, um philosopho, um poeta, M. Michelet acaba de escrever um desses livros, que de mão em Cf. ABREU, Márcia. Letras, Belas-letras, Boas letras. In: BOLOGNINI, Carmen Zink. História da Literatura: o discurso fundador. Campinas-SP: Mercado de Letras, Associação de Leitura do Brasil(ALB): São Paulo: Fapesp, 2003.p. 28. 2 Além da coluna intulada “Litteratura”, o Jornal Gazeta Official apresentava em seu corpo outras como: “Variedade”, “Miscelânea” e “Folhetim”, para publicações literárias. 3 ABREU, 2003, loc. cit. 4 SODRÉ, Nelson Werneck. História da imprensa no Brasil. 3ª ed. São Paulo: Martins Fontes, 1983. p. 242-243. 1
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Tema geral: Línguas e Literaturas: Diversidade e Adversidades na América Latina mão, circulam o mundo, uma dessas obras de elevação e de delicadeza de sentimentos, que ninguém lê sem emoção de recordação ou da esperança. Esta nova obra tem por título: “O amor”; este título queria ser a emancipação moral pelo amor. Como diz o grande historiador nas primeiras linhas, a questão do Amor jaz immersa e obscura, sob as profundezas da vida humana. Ela sustenta-lhe as próprias bases e os primeiros fundamentos. A família se apóia sobre o amor, a sociedade sobre a família; o enunciado desta grande verdade se torna uma grande lição (...).5
Como se percebe, o fragmento apresentado na seção Literatura parece ser mais uma crítica elogiosa ao autor e à obra. Entretanto, o texto acima ainda não indicava uma acepção mais restrita ao termo Literatura, eis o motivo pelo qual, muitas vezes, nessas sessões, encontravam-se apenas tais escritos. Embora o termo Literatura não tivesse, ainda, ganhado um sentido restrito, era constantemente empregado na seção do Jornal Gazeta Official, o que nos leva a crer que se começava especular acerca do conceito inerente à palavra literatura/literário. Coincidentemente, é também a partir desse período que a terminologia “crônica” passa a ser empregada na Gazeta Official para ilustrar fatos curiosos ou corriqueiros que aconteceram ao decorrer da semana, pequenas anedotas contadas ao gosto do público ou do editor, as quais ganharam nuances pitorescas. Como se depreende no fragmento extraído da Crônica da Semana do Jornal Gazeta Official em que se percebe uma narrativa aparentemente banal em que o redator entretinha seus amados leitores. Amado leitor, venho hoje annunciar-vos um accontecimento deplorável, ai de mim! máo fado persegue-me; meo coração vive ainda succumbido depois desta desgraça fatalissima; as forças mo faltão; mesmo não scei: como referir-vos sem que as lagrimas pulem dos olhos. Quebrou-se minha luneta! O malvado gato que Fifina deo-me, foi quem fez- me esta peça; já com esta he a segunda, olhe, eu vou referi-las ambas. Um dia que este seo creado tinha sahido as três horas da madrugada, o que succede raríssimas vezes, porque a estas horas he que mais gosto do quente; o gato estava ainda desmamando-se em casa de Fifina, quando fui approximando-me a uma das janellas d’essa casa, vi a porta da rua aberta e a janela cerrada, e o bregeiro do gatinho por detraz da porta da janella, mal que sentia que eu ia passando faz assim: Miao, miao, miao. Ai de mim, como fiquei! Naquelle instante se tivesse de ser sangrado por um barbeiro, minhas artérias não lançavam nem uma gotinha de sangue. Tive muito medo.. muito medo! Pensei que erão cousas de outro mundo, alguns phantasmas...sim, algum phantasma.(...)6
Embora o termo Crônica da Semana desperte curiosidade, são as palavras Variedade e Folhetim, que melhor traduzem as páginas literárias da época, pois nessas sessões encontram-se narrativas literárias, romance, biografia, poemas que eram publicados quase diariamente nos principais jornais do país e apresentados ao público paraense por meio do Gazeta. O jornal Gazeta Official publicava, periodicamente, não só textos estrangeiros, principalmente folhetins, como também publicações de jornais de outros locais, como Pernambuco, Bahia, Rio de Janeiro, Lisboa. Mas o que o torna, de fato, relevante é a vasta fonte de literatura7 nele encontrada. Na pesquisa realizada comprova-se que é a partir de 1859 que o romance-folhetim ganha destaque nas primeiras páginas da Gazeta Official, quando se observa que no referido ano o periódico chegou a publicar até três folhetins simultaneamente. Na falta das páginas folhetinescas, os editores colocavam o título Folhetim na primeira página e substituíam a narrativa por alguma Crônica da Semana, talvez para atiçar ainda mais a curiosidade dos leitores. Jornal Gazeta Official, n° 21. 27/01/1859. Jornal Gazeta Official. n° 68, 29/03/1859. p.2. 7 Acepção do uso de literatura no sentido contemporâneo, ou melhor, no sentido moderno, haja vista nessas colunas também se encontrarem textos que não tinham relação com o literário atual. 5 6
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2. O literário na Gazeta Após a análise das informações literárias contidas na Gazeta, constatou-se que o leitor paraense, do século XIX, servia-se dos jornais, não só como meio de informação, mas também como difusor de cultura, comportamento e entretenimento, este último favoreceu a afirmação do romance entre nós, como explica Marisa Lajolo: Vários fatores contribuíram para a afirmação do romance como gênero de grande força. Um deles foi sua aliança com o jornal que o publicava em capítulos, sob a forma de folhetins. No final do século XVIII e começo do XIX, para um jornal conseguir anúncios, ele precisava – como precisa até hoje – dispor de leitores. A aritmética é simples, numa conta primária de adição e subtração: mais leitores = mais dinheiro. Menos dinheiro = menos anunciantes; menos anunciantes = menos dinheiro.8
Entre os impressos do século XIX, o jornal foi o meio mais acessível para a expansão e divulgação da produção literária, por isso esteve presente em muitos lares paraenses. Pela Gazeta Official é possível perceber o quanto o paraense estava ligado às novidades advindas da Europa e como essa influência estrangeira colaborou para a consolidação do romance brasileiro, como assinala Antonio Candido: Além dos fatores individuais, que se resumem geralmente com o nome de vocação, e da influência estrangeira, sempre decisiva, houve certamente por parte do público apreciável solicitação, ou pelo menos receptividade, a influir no aparecimento do romance entre nós. Provam-no a quantidade de traduções e abundante publicação de folhetins seriados nos jornais, não apenas do Rio, mas de todo o país. 9
Os textos literários encontrados no jornal Gazeta Official corroboram a existência, no Pará, de grande número de publicações, cuja contribuição para expansão e democratização da leitura foi significativa. Segundo Márcia Abreu, até meados do século XIX, a imprensa dedicava relativamente pouco espaço a comentários sobre livros, limitando-se a pequenas notas sobre lançamentos que se perdiam em meio a anúncios de saraus, peças teatrais e recepções oficiais10. No entanto, no jornal pesquisado encontram-se inúmeras informações acerca do literário, o que justifica a escolha não só pela Gazeta Official, mas também pelo tema deste trabalho. Na seção Variedade foram publicados trinta e dois textos, porém, nem todos podem ser ligados à categoria literária atual, haja vista a concepção que se tinha do vocábulo Literatura, naquela época. Foram compiladas três Chronicas da Semana, as quais justificavam a ausência dos romancesfolhetins na coluna. Três textos publicados na seção A Pedido, dos quais dois provavelmente retirados do Diabo Coxo, jornal de São Paulo. Apenas um texto foi classificado na seção Miscellânea. Por fim, foram encontradas quatro Chronicas da Semana dentro da coluna Folhetim, podendo ser uma forma de ludibriar o público pela falta das narrativas folhetinescas, ou porque tal espaço também abrigava as crônicas. Assim, quantitativamente, na seção “Litteratura” foram encontrados oito textos relacionados ao tema, sendo que o primeiro foi classificado, nesta análise, como uma crítica literária, haja vista o autor discorrer sobre um livro cuja temática do amor é reverenciada ao longo da seção. Essa crítica teve lugar em janeiro de 1859, vindo do Diário de Pernambuco e inaugurando a seção Litteratura, a qual posteriormente seria contemplada por romances-folhetins. Como se pode notar, a Gazeta Official trazia publicações de jornais de outros estados como da Bahia, do Rio de Janeiro, Pernambuco, Alagoas, entre outros. Textos que, na maioria das vezes, eram publicados sem autoria, com pseudônimos ou anônimos. Contudo, há que se considerar que nessa época, começava a surgir certa preocupação em relação à apropriação de obras literárias. LAJOLO, Marisa. Como e por que ler o romance brasileiro. Rio de Janeiro: Objetiva, 2004, p.35-36. CANDIDO, Antonio. Formação da Literatura Brasileira: momentos decisivos. 2 vol. 3 ed. São Paulo: Martins, 1969. p.120. 10 Cf. ABREU, Márcia. Rumos da Ficção no Brasil oitocentista. In: Moara: Revista dos cursos de Pós-graduação em Letras da UFPA. Nº 21, p. 7-31, jan./jun., 2004. 8 9
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Foi encontrada na Gazeta Official, uma reivindicação sobre um poema retirado de um almanaque de lembrança de 1860 e publicado no referido jornal, como sendo de outro autor. Observe: Figura 01 – Crítica do Gazeta Official – Poeta Marte
Fonte: Gazeta Official, n° 245. 02/11/1859. p. 02.
O texto acima apresenta certa preocupação com a autoria, pois, nesse período, era comum os autores não assinarem seus escritos, porém, vê-se que isso não foi o que aconteceu com o texto plagiado, uma vez que ele fora publicado com a assinatura do autor. No entanto, Socorro Barbosa adverte: Mas o fato de serem anônimos e não estarem ligados a um autor “célebre” não os torna menos importantes na reconstituição dos modos de ler da época. Nesse sentido, a crítica literária, mesmo que precária, presente nesses jornais da Corte e das províncias, pode dar pistas, não só dessa atividade propriamente dita, mas de como ela foi responsável pelo que aqui circulou influenciando e formando o gosto dos leitores.11
É o caso do texto intitulado Litteratura, extraído do Diário de Pernambuco, citado no início do segundo capítulo. O segundo texto é, mais uma vez uma crítica literária publicada na Gazeta, intitulada O drama Religioso em França, extraída, novamente, do Diário de Pernambuco, nela o autor faz indagações acerca da religiosidade no século XIX. Observe que nos fragmentos literários há um questionamento em relação à religiosidade que fora preterida não só do teatro francês, mas de todo o cenário europeu; outro ponto relevante é a literatura abarcar o drama religioso e o caráter profano estar tomando espaço no teatro moderno. LITERATURA O drama religioso em França I. Quero indagar porque motivo o drama religioso em França occupa tão pequeno lugar na nossa literatura. (1) Polejeuta Esther e Athalia”, eis os únicos grandes nomes do drama religioso que parece ter sempre tido uma obra de excepção. Porque está nossa condição o drama religioso? Será por culpa do gênio francez que parece mais inclinado a critica e a incredulidade do que a devoção?(…) Vem enfim as peças santas do seculo XVIII entre as quaes podem-se distinguir dous gêneros differentes; as peças de Corneille e de seus predecessores ou de seus contemporâneos, as peças de Racine e de seus sucessores.12 BARBOSA, Socorro de Fátima Pacífico. Jornal e Literatura: a imprensa brasileira no século XIX. Porto Alegre: Nova Prova, 2007. p. 72. 12 Jornal Gazeta Official, n° 25 e 30, dias 05 e 08/02/1859. 11
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Percebe-se, nos excertos em análise, que o crítico adota posição religiosa ao defender a ideologia cristã, nas obras literárias, quando se refere: “A influencia christã existe por toda a parte, graças a Deos, derramada na litteratura europea, de quem he a mais nobre e melhor inspiração”. Critica, ainda, a secularização das obras decorridas do Renascimento, observe: “Toda a Europa, no seculo XVI, soffreu a influencia do renascimento, e secularizou-se o melhor possível tanto em sua litteratura como em sua legislação, mas não houve revolução tão grande em parte alguma como no theatro” e acusa a modernidade de valorizar o profano. O crítico enaltece os jesuítas por cultivarem o teatro ligado à ideologia cristã o que demonstra claramente sua posição em relação à igreja: “Os jesuítas foram os poetas mais fecundos e mais hábeis desse theatro”, é possível inferir que tal crítica tenha sido publicada no Pará por causa da forte ideologia jesuítica presente na Província, na época. É possível perceber a contribuição dos jornais para com a Literatura, não porque destinavam uma seção especial para ela, mas pelo intercâmbio que havia entre os diários, ou seja, na impossibilidade de publicar determinado texto literário no Pará, os jornalistas se valiam de publicações de outras províncias ou até mesmo da Europa. Tudo para proporcionar ao leitor o contato com as novidades de fora e vender jornais, como assinala Socorro Barbosa: Pode-se dizer que a crítica literária nasceu nos periódicos brasileiros, primeiramente, a partir das notícias biobibliográficas, do lançamento de livros, muitas vezes retirada de outros jornais, alguns estrangeiros. De início, o foco de interesse eram as publicações estrangeiras e a notícia da sua repercussão nos países de origem, principalmente a França.13
No dia 24 de setembro de 1859, a Gazeta apresentou, nas primeiras páginas do nº. 213, na seção Litteratura, a terceira crítica literária a ser analisada, intitulada Rápido Estudo sobre a Poesia Brasileira. Assinado pelo Sr. J. C. Fernandes Pinheiro14, apresenta comentários a propósito da nova edição dos Suspiros e Saudades, pelo Sr. P. J. G. de Magalhães. Percebe-se, nesse ensaio, menos elogio, mais aprofundamento nas comparações e nas idéias abordadas por Fernandes Pinheiro, o que nos leva a crer que a literatura do Brasil ganha credenciamento no cenário nacional. Como se comprova no exemplo a seguir: LITTERATURA RAPIDO ESTUDO SOBRE A POESIA BRASILEIRA. A propósito da nova edição dos – Suspiros e Saudades – pelo Sr. D. J. G. de Magalhães. Não inspirarão sempre aos nossos poetas os esplendores da natureza brazilica, e com pezar confessamos que a originalidade não é o typo característico da poesia nacional. Indifferentes ás magnificências da terra americana, cerrando os olhos para lhos não deslumbrarem os brilhantes raios da constellação do cruzeiro, os nossos bardos continuavão, nas margens dos rios gigantescos, as estrophes começadas nas pittorescas ribas do Mondego. Inspiravão seus cantos o clássico Apollo e as Musas do Parnaso, e as tradições d’alemmar poderosamente actuavão em suas imaginações, a ponto de tornal-os extranhos ao torrão natal. Faziaos brasileiros o acaso de nascimento, portuguezas porem erão suas ideias. Verdade é, que aqui e acolá divisão-se alguns vislumbres de cor local, em Gregorio de Mattos, Botelho d’Oliveira, Anonymo Itaparicano, Brito Lima, e alguns outros poetas da primeira epocha. São porem ensaios fortivos, tentativas mallogradas, ou quiçá devaneios da musa, condemnados pelo gosto da epocha. 13 BARBOSA. Socorro de Fátima Pacífico. Jornal e Literatura: a imprensa brasileira no século XIX. Porto Alegre: Nova Prova, 2007. p. 71. 14 O Cônego Fernandes Pinheiro (1825-1876) foi um dos intelectuais brasileiros que mais se destacaram no aparelho cultural do Império, uma vez que teve uma vida intensamente dedicada às letras que compreende andanças por diversos campos institucionais do período. Se, naquele tempo, obteve uma posição privilegiada no “Império das letras”, a recepção da elite literária posterior não conservou esse mérito, oferecendo-lhe apenas um profundo silêncio. Na tentativa de resgatar tal personalidade de nosso passado cultural, esse trabalho procura estudar o Cônego Fernandes Pinheiro como crítico literário pioneiro das letras brasileiras, a partir da leitura e análise dos livros mais relevantes dele: o Curso elementar de literatura nacional (1862), as Apostilas de Retórica e Poética (1871) e o Resumo de história literária (1873); bem como de seus artigos e ensaios publicados nos principais periódicos românticos. Com isso, pretende-se reavaliar a obra desse importante intelectual oitocentista, posto à margem pelos estudos literários e, assim, contribuir para a historiografia literária do Romantismo brasileiro. In: MELO, Carlos Augusto de. Conego Fernandes Pinheiro (1825-1876) : um critico literário pioneiro do romantismo no Brasil. Disponível em: <http://biblioteca.universia.net/html_bura/ficha/params/id/22571397.html>. Acesso em: 20 ago. 2008.
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Tema geral: Línguas e Literaturas: Diversidade e Adversidades na América Latina (...) Imperceptivel e gradualmente desenha-se o typo brazileiro nos poetas da segunda epocha, que, segundo o nosso modo de entender, tem por balizas Claudio Manoel da Costa e José Bonifácio d’Andrada. Vejamos onde descobrimos esse typo, ou essa por local. (…) Voltando ao Sr. Magalhães, dhemos que os seus Suspiros Poeticos e Saudades, de que acaba de dar uma nova edição consideravelmente melhorada, exporgando-a d’alguns erros d’impressão, e addicionandolhe algumas novas producções, serão sempre considerados como um marco milliario, como a hegira da nossa regeneração literaria. Fora-lhe vaticinado este brilhante futuro por um dos nossos mais profundos pensadores, o Sr. Conselheiro F. de Salles Torres-Homem, que na ja citada Nictheroy assim se exprimia. “Este volume de poesias do Sr. Magalhães não é somente uma collecção de bellas harmonias; mas tambem um código de moral na sua expressão mais sublime, nas suas formas as mais ternas e consoladoras, e cuja luz allumia sem irritar, como o doce clarão, que a lua espalha sobre um dedalo de flores. Elle é proprio a applacar a necessidade d’emoções grosseiras, que a nossa epocha agita. O sopro do infurtunio, da religião e da philosophia animou esses cantos onde demos domina um doloroso enthusiasmo por tudo quanto é grande, bom e justo. Parece que a Providencia faz soffrer todos os poetas de génios, afim de que instruão os outros homens com a sublime melodia de seus gemidos: as creaturas mediocres sofrem menos; porque seja queixumes não téem harmonia, e são um desaccordo de mais entre os sons confusos do mundo moral. “Esta producção d’um novo genero é destinada a abrir uma nova era á poesia brasileira. Permita Deus que não fique solitaria no meio da nossa litteratura, como uma sumptuosa palmeira no meio do deserto”. Estas eloquentes palavras, produzidas em face da nova edição, servem de gracioso portil ao bello templo, alçado pelo genio do Sr. D. G. de Magalhães. J. C. Fernandes Pinheiro.15
É possível constatar a tentativa do crítico em construir uma critica literária brasileira. Contudo, ele afirma “que a originalidade não é o typo característico da poesia nacional”, haja vista os nossos escritores estarem influenciados pelo pensamento do colonizador português, isso porque “as tradições d’alem-mar poderosamente actuavão em suas imaginações, a ponto de tornal-os extranhos ao torrão natal. Faziam os brasileiros o acaso de nascimento, portuguezas porem erão suas idéias”. Embora Fernandes Pinheiro compare nossos árcades aos grandes escritores europeus, às vezes entronizando estes; outras, àqueles, ele argumenta que é a partir da segunda época de nossa literatura, ou seja, do Arcadismo, que as nossas letras começam a ganhar uma cor local. Observe: “Imperceptível e gradualmente desenha-se o typo brazileiro nos poetas da segunda epocha, que, tem por balizas Cláudio Manoel da Costa e José Bonifácio de Andrada”. O crítico comenta a ascensão de nossas letras com a obra Uruguay, de José Basílio da Gama, ao dizer que o autor é “Superior a Virgilio, quase um Homero e a Tasso, mostra-se o nosso illustre patrício da pintura dos caracteres”. Chega a comparar o poema de Basílio da Gama ao de Homero: “e podemos sem temor dizer, que o Uruguay é uma Illiada em miniatura”. Fernandes Pinheiro, ao se reportar aos Suspiros Poéticos e Saudades, garante que a obra é “um marco milliario, como a hegira da nossa regeneração” e adverte o público: “Este volume de poesias do Sr. Magalhães não é somente uma colleção de bellas harmonias; mas tambem um código de moral”. Entretanto, faz um apelo em relação ao novo estilo inaugurado no Brasil, em 1836, por Gonçalves de Magalhães: “Esta producção d’um novo gênero é destinada a abrir uma nova era á poesia brasileira. Permita Deus que não fique solitária no meio da nossa litteratura, como uma sumptuosa palmeira no meio do deserto”. Isso significa que a literatura brasileira ainda tinha nuances estrangeiras em virtude de uma série de fatores como a proibição de publicação, a carência de tipografia, a censura, a classe analfabeta, que iniciaram com a colonização nacional e se estenderam pelo longo período de nossa independência. A quarta crítica literária localizada na Gazeta, intitulada “Uma viagem a Grécia – A poesia popular – sua fonte próxima”, pertencente a A. R. de Torres Bandeira, trata da poesia popular e suas origens. No texto, observa-se, o questionamento do autor aos “antiquários e os sabedores das letras e das sciencias” sobre a preferência do público na escolha da contemplação dos países antigos. Começase a enaltecer as belezas da Grécia antiga, fonte de inspiração para muitos escritores. Observe: 15
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Anais do II Congresso Internacional de Estudos Linguísticos e Literários na Amazônia (CIELLA) LITTERATURA UMA VIAGEM Á GRECIA – A POESIA POPULAR – SUA FONTE PROXIMA. Não sabemos porque fatalidade somos arrastados sempre ou a maior parte das vezes para a contemplação desses quadros tão magníficos e elegantes que o mundo antigo nos offerece no vastíssimo theatro de suas bellezas artísticas. Sonhamos, por ventura, com um passado que fora mais fértil para as grandiosas concepções do engenho? Houve já uma época mais fadada para as conquistas da intelligencia e para os trabalhos do espírito? Respondam os antiquários e os sabedores das letras e das sciencias. Uma viagem de phantasia pela Grécia dos artistas, dos poetas e dos philosophos será melhor jornada para quem embevece ainda com as doçuras da belleza ideal, com as suavidades do bom gosto. Realmente, nenhum paiz chegou nunca a esse grao de elevação pasmos que tanto se deixa ver na historia grega, nessa historia que assinala os nomes de milhares de artistas e de investigadores zelosos e infatigáveis. (...) Tomada essa poesia no seu verdadeiro sentido, vemo-la grega em sua origem, nos seus primeiros esforços, no seu primitivo desenvolvimento: mas nada disto obstou a que mais tarde ella mesma começasse a ser cultivada com esmero e dedicação por outros povos, e no meio de outras nações. Assim, a poesia popular é de todos os tempos e de todos os lugares; surge com as tradições de uma sociedade qualquer; acompanha-a no seu movimento, reflete-se nella, assume as cores dessa Sociedade; reproduz as feições que mais a caracterisam, e não morre nunca, em quanto o espirito desse povo, stereotypado em suas instituições, e em seus costumes e crenças, viver em toda a sua força e enthusiasmo nativo. A differença que existe hoje no desenvolvimento dessa poesia, quando comparado com o que se lhe assignara na Grécia, é que, sendo a maior parte dos povos e das nações influenciadas por idéias muito diversas e por crenças inteiramente oppostas, o genio e o caracter dessa poesia popular são na actualidade baseados n’outras opiniões e tendências. (...) Prouvera a Deos que d’entre tantos ingenhos que por ahi se desnortêam, por vezes, em poesia de imitação ou de copia infeliz, e que seguem estradas que não immortalisam a ninguém, alguns com tempo se voltassem para esse ramo da poesia, que n’um paiz de tantas recordações como o Brasil, se abre magestoso em milhares de fontes inexhauriveis! Os poetas populares são – repetimol-o – de todos os tempos e lugares, e a nossa pátria tambem deve ter os seus: – que o tentem os que podem fazel-o, que o gênero de cultura há de superabundar de seiva e de gloria para os cultivadores. A. R. de Torres Bandeira. 16
Percebe-se a preferência do autor pela tradição ao apelar “divaguemos nos com toda a liberdade possível por um desses paizes de que a antiguidade nos falla com tanto enthusiasmo e vamos sentar-nos com o litterato e com o archeologo sobre as ruínas ainda famosas de algumas dessas nações ainda famosas de outras épocas”, ainda que o mundo já viva em plena modernidade. O autor propõe uma viagem à Grécia como fonte de inspiração para outros povos: “Assim a poesia popular é de todos os tempos e de todos os lugares”, uma vez que ela “surge com as tradições de uma sociedade qualquer”, pois “o gênio e o caracter dessa poesia popular são na actualidade baseados n’outras opiniões e tendências”. O crítico ainda reitera que em vez de alguns autores copiarem ou imitarem poesias sem originalidade, deviam se voltar para “esse ramo da poesia, que n’um paiz de tantas recordações como o Brasil, se abre magestoso em milhares de fontes inexauríveis!”. Apresentada pelo Sr. Franklin Doria17, a quinta crítica literária trata do “verdadeiro caracter” da poesia brasileira. O autor procura distinguir a literatura do Brasil da literatura de Portugal, Jornal Gazeta Official, nº 217, 29/09/1859, p.2 e 3 Franklin Américo de Meneses Dória, 1º e único barão de Loreto, (Ilha dos Frades, 12 de julho de 1836 — Rio de Janeiro, 28 de outubro de 1906) foi um advogado, político, orador, magistrado e poeta brasileiro, membro fundador da Academia Brasileira de Letras. Era casado com Maria Amanda Lustosa Paranaguá, filha de João Lustosa da Cunha Paranaguá. No mesmo ano de sua formatura, em 1859, publicou Enlevos, seu único volume de poesia, impregnado de lirismo, ao reproduzir estados de alma, e de caráter objetivo, nas descrições do cenário das belezas naturais da “ilha encantada” do poeta. Quase todas as poesias subordinam-se a esse caráter e ao estilo descritivo. Cedo abandonou o verso. E desde o aparecimento do seu primeiro livro só publicou, em poesia, um trabalho a tradução de Evangelina, de Longfellow, lido na presença do Imperador D. Pedro II. Disponível em:< http://pt.wikipedia.org/wiki/Franklin_D%C3%B3ria>. Acesso em: 20 ago. 2008. 16 17
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argumentando que embora as duas tenham sido “filhos do mesmo tronco; e por isso ao se separaremse, um para ficar na Europa d’onde saira, e outro para viver na America – no Brasil – unicamente seu, não se despediram inimigos”, cada uma tem suas peculiaridades, como afirma no excerto: LITERATURA I. A POESIA BRASILEIRA – SEU VERDADEIRO CARACTER – O QUE É ELLA E O QUE DEVE SER NO BRASIL. II. ENLEVOS PELO SR. FRANKLIN DORIA. Não há muito que deste mesmo lugar pronunciamos algumas palavras em relação a essa idea fecunda, quase indefinível, que a poesia revela, e que lhe serve de typo essencial em suas tão variadas manifestações, de todo o gênero e natureza. O que dissemos então á propósito do principio e de seo desenvolvimento pratico, em tal assumpto, era e é o nosso pensar intimo, a nossa inabalável convicção: – partimos do ideal para comprehender e apreciar a sua forma real e artística; e o que se nos figura desde muito a synthese completa da creação deste mundo, nós o fomos examinar de perto na analyse deliciosa mais simples das producções de engenho e dos rasgos soberbos da imaginação. (...) As épochas de renascença para as sciencias e para as letras vem-na brotar como criança tímida, mas que já se atira, pela educação que a espera, para futuros em que melhor se lhe desatem os risos e mais risonhos lhe alvoreçam os dias: – a poesia então períodos semelhantes, é sonhadora infantil, romanesca e louçãa, é virgem a mirar-se em sua própria formosura e a cantar, sem atavios e sem disfarce, a trova elegante dos seos primeiros amores. (...) A litteratura de um povo que se unira a principio a outro por um traço commum, pela filiação da linguagem, de certo tempo em diante começou a refazer-se de typos seus: não os foi buscar ao tempo visinho que já em parte estava desmoronando; mas, respeitando-lhe e venerando-lhe as memorias esparsas por tantos monumentos de artes, ergueu-se por sua vez – e hoje vai sua derrota com donaire e magestade. Eram irmãos e filhos do mesmo tronco; e por isso, ao se separarem-se, um para ficar na Europa d’onde saira, e outro para viver na America – no Brasil – unicamente seu, não se despediram inimigos; e ambos ainda hoje entendem-se no mesmo verbo que fallam, na expressão dos sentimentos que traduzem. Eis, posta de parte a periphrase, o que há de especial na litteratura brasileira: eis a nossa vida para as lettras e impreterivelmente para a poesia. Não somos, porem, dos que chamariam somente como tal a forma d’arte primitiva no Brasil, e que desejariam, talvez, reduzir toda a nossa poesia a esses rasgos da musa indígena, que estava em seu alvor de infância, quando tripudiava garrida e instinctiva em festas rústicas, ao som de seus instrumentos bellicos. Não! A índole da poesia brasileira não é esta: – a cor local, os traços e os caracteres individuaes, a phisionomia especial, – eis o que constitue e particularisa um povo em sua existência artística e litteraria – em sua poesia como sob qualquer outra relação. (...) Que muito não é para os poetas do Brasil o terem já de cantar o seu paiz independente, o poderem fazel’o com dignidade, á luz de uma civilisação como a que se nota n’este seculo! Cantem-se esses factos, essas proezas, essas acções heróicas dos nossos avós; recordem-se essas lições de valor patriotico: embeba-se a nossa poesia popular n’essa fonte das inspirações que por vezes podem apparecer bem vividas nos votos solemnes que se presta á verdade histórica; reproduzam-se mesmo pela forma lyrica e sob as condições do drama, não poucas dessas paginas em que lê a nossa vida social, desde o seu começo ; mas não se pretenda emprestar á litteratura e á poesia brasileira o caracter que, porventura, é mais americano do que especialmente pátrio. É dessa maneira que podemos comprehender a poesia como verdadeiramente nacional, como brasileira; e se o espaço nol-o permitisse, cremos que não nos seria difficil provar com evidencia o que há de justo na these, e no sentido em que a sustentamos. (...)18
Para o autor a índole da poesia brasileira é “a cor local, os traços e os caracteres individuaes, a phisionomia especial – eis o que constitue e particularisa um povo em sua existência artística e literária”. Como se percebe, são várias as tentativas de identificar a literatura brasileira e apartá-la da portuguesa, isso porque, naquela época, o Brasil tentava se firmar como nação independente e autônoma. O sexto texto apresenta como tema a mulher, mas é possível constatar, pela leitura, que o tema é preterido em favor de fatos históricos, como é possível observar no exemplo a seguir: ÉPOCAS DA VIDA DA MULHER. Nos torneiros, quando um cavalleiro se distinguia, quando a victoria o acompanhava, tanto no encontro da lança como na luta de espada, em três justas successivas, as damas juntavam as suas palmas às dos mais espectadores e quando elle corria à sua dama a entregar-lhe o premio do combate, prestando-lhe 18
Jornal Gazeta Official, nº 218, 30/09/1859, p.1 e 2
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Anais do II Congresso Internacional de Estudos Linguísticos e Literários na Amazônia (CIELLA) homenagem, recebia d’ella em recompensa um beijo na fronte. (...) Em França, n’um torneiro as damas enthusiasmaram-se tanto com as proesas dos justadores, que lhes atiraram para os recompensar com quasi tudo que tinham sobre si. Quando no fim do combate se viram de seio descoberto, braços nús, o vestido em desordem, os cabellos desatados sobre os hombros, tiveram um momento de pejo, mas percebendo depois que todas assim estavam largaram-se a rir d’ uma aventura, que sem que ellas se apercebessem, as tinha deixado apenas vestidas. Foi assim que a cavallaria dominou a Europa por espaço de três seculos, mas como tudo o que é humano vem a acabar, a cavallaria não podia deixar de morrer. Por um lado concorreo para isso a exaltação das suas homenagens, por outro a nova face que tomou a sociedade. Quando Carlos V em Bolonha no anno de 1530 abaixou a sua espada sobre uma multidão de homens para o fazer cavalleiro, juntando – Estote milites, estote milites, todos, todos, já não fazia mais do que aviltar a Cavallaria, cujo principal caracter era ser pessoal e deferida com toda a escolha. Os guerreiros retiram-se contentes julgando-se cavalleiros, e elles já não eram mais do que uma somma de instituição. Cervantes podia cobri-los de ridiculo. Grande instituição, disse, foi-o com effeito. Escola de humanidade, de desinteresse, de pundunor, de elegantes, é a ella que os opprimidos do seo tempo deveram o amparo, que as leis lhes não davam; é a ella, que nunca soffreu uma afronta, que hoje devemos a consciencia da dignidade pessoal, que os antigos não conheciam, porque Catão limpou o rosto quando Lentula lhe cuspio, e Caio Lectorio vinha mostrar em público as pizaduras, que o punho de Appio Cláudio lhe havia imprimido na face; é a ella em summa, que a sociedade moderna foi buscar a cortezia que a distingue, a lealdade que se chama honra, o sentimento de respeito e galanteria que tributa à mulher. Esta já não é um ídolo de tantas adorações, é força dize-lo, já não triumpha senão na lyra dos poetas ou no florete de alguns duelistas, que pelas susceptibilidades da sua alma, ou enthusiasmo do seo coração, são os cavalleiros de hoje; não obstante está ainda no throno que a cavallaria lhe conquistou, e em recompensa, se são menos faustosas as homenagens que se lhe dedicam, tambem são recompensadas de ternura e dignidade, e por ventura mais douradouras. A. X. RODRIGUES CORDEIRO.19
No texto em análise é nítida a influência européia. Em alguns momentos o autor enfatiza mais fatos históricos, como a cavalaria e o descobrimento da América, do que a temática feminina. Esses acontecimentos históricos direcionam ao espírito de aventura da época: “os governos estabelecendo-se em bases mais firmes e prestando mais apoio à segurança dos cidadãos, dispensaram o auxílio do cavalleiro”. Nesse elogio à mulher, é possível inferir que o autor toma a iniciativa de direcioná-lo a um público feminino, ou seja, há uma tentativa de focalizar uma leitora, quando diz que “é a ella em suma, que a sociedade moderna foi buscar a cortezia que a distingue, a lealdade que se chama honra, o sentimento de respeito e galanteria que tributa à mulher”. A sétima crítica encontrada trata mais uma vez da religiosidade católica, desprezada em favor de comportamentos profanos. O autor M. F. Baguenault de Puchessi defende os ideais cristãos e apresenta um livro “dedicado aos que duvidão e aos que crêem”: LITTERATURA O CATHOLICISMO APRESENTADO NA UNIÃO DE SUAS PROVAS. Por M. F. Baguenault de Puchessi. Este livro é dedicado aos que duvidão e aos que crêem. A primeira, poder-se-hia perguntar como chegará ao seu fim? Que provas terão de fazer do catholicismo os que crêem, e como os que duvidam serão sensíveis á estas provas? Duvidar mesmo, parece pedir uma energia q’ o nosso seculo não tem. (...) Infelizmente nos dias em que vivemos, nos tempos em que a fé é rara e vacilante, as almas escapam com facilidade do seu jugo, e mais que nunca ella tem tambem de reconduzi-las á sua lei. Nestas multidões que obstruem nossas igrejas nos dias de grandes festas, poder-se-hia facilmente contar aquelles que tem a gloria e o prazer de não ter jamais esquecido nem despresado o caminho das solemnidades catholicas.20
A crítica parece ser voltada para a moralidade das pessoas ausentes das igrejas, ou até mesmo àquelas que duvidam da doutrina católica. A religiosidade, caracterizada pelo Romantismo, parece ainda ser a tônica das críticas encontradas na Gazeta. Jornal Gazeta Official, n° 1, 13/01/1860, p. 2 Jornal Gazeta Official, n° 57,12/03 /1860, p.2 e 3
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Volume 3
Tema geral: Línguas e Literaturas: Diversidade e Adversidades na América Latina
O último texto da seção Litteratura, afasta-se do gênero crítica literária e aproxima-se do romance-folhetim, é o intitulado Typos Estrangeiros: O Zampognaro, trata-se de uma narrativa que apresenta uma seqüência incompleta semelhante a um folhetim. O texto, embora sem autoria, pressupõe ser uma narrativa italiana que conta a história de um “zampognaro”, o Pietro Zerbi, um músico pobre que vai à Nápoles, cidade mais católica do mundo, para passar o mês de dezembro – época da Imaculada Conceição e do Natal – tocando, a fim de ganhar o sustento da família composta pela esposa, os filhos e o pai cego. Pela localização e pelo teor do texto é possível inferir que havia uma tentativa de transferir os romances-folhetins para a seção Litteratura, o que reforça a idéia de que a Gazeta Official já destinava uma coluna especial para os textos literários, ao agregar a seção Folhetim à Litteratura. Dessa forma, há que se ressaltar a contribuição da Gazeta Official para a formação do leitor paraense, uma vez que foi possível constatar a quantidade de textos literários nela encontrados. É válido considerar, também, a importância dessa folha como veículo propagador da literatura na província do Pará. Na Gazeta Official, periódico noticioso e literário que circulou entre 1858 e 1866, foi possível constatar a grande quantidade de informação acerca da literatura, bem como a variedade de narrativas ficcionais que promoviam além de entretenimento e diversão ao público paraense, a expansão da leitura literária no século XIX. Assim, foi possível comprovar a contribuição histórico-literária da Gazeta para a (in)formação de um público leitor/escritor e consumidor de literatura na província do Pará, haja vista a gama de informação nela coletada, e a confirmação de que a literatura caminhava a passos largos para sua concepção atual e consolidação no Pará. Referências ABREU, Márcia. Os caminhos dos livros. Campinas, SP: Mercado de letras, ABL, 2003. ______. Letras, Belas-letras, Boas Letras. In: BOLOGNINI, Carmen Zink. História da Literatura: o discurso fundador. Campinas-SP: Mercado de Letras, Associação de Leitura do Brasil(ALB): São Paulo: Fapesp, 200 ______. Rumos da Ficção no Brasil oitocentista. In: Moara: Revista dos cursos de Pós-graduação em Letras da UFPA. Nº 21, p. 7-31, jan./jun., 2004. ALENCAR, José de. Como e por que sou romancista. Campinas: Pontes, 1990. BARBOSA, Socorro de Fátima Pacífico. Jornal e Literatura: a imprensa brasileira no século XIX. Porto Alegre: Nova Prova, 2007. BROCA, Brito. A Vida Literária no Brasil – 1900. Rio de Janeiro: José Olympio, 1995. CANDIDO, Antonio. Formação da Literatura Brasileira: momentos decisivos. 2 vol. 3 ed. São Paulo: Martins, 1969. FACIOLA, Rosana Assef. Os romances-folhetins dos jornais de Belém do Pará entre 1858 e 1870. Belém (Dissertação apresentada à coordenação do curso de pós-graduação do Centro de Letras e Artes da UFPA). Pará, 2005. LAJOLO, Mariza & ZILBERMAN, Regina. A formação da leitura no Brasil. São Paulo: Ática, 1999. LAJOLO, Mariza. A leitura rarefeita: Leitura e Livro no Brasil. São Paulo: Ática, 2002. _______. Como e por que ler o romance brasileiro. Rio de Janeiro: Objetiva, 2004. LUSTOSA, Isabel. O nascimento da Imprensa brasileira. Rio de Janeiro: Jorge Zahar. Ed., 2003. MEYER, Marlyse. As mil faces de um herói canalha e outros ensaios. Rio de Janeiro: Editora: UFRJ, 1998. _______. Folhetim: Uma história. São Paulo: Companhia das Letras, 1996. MONTEIRO, Benedito. História do Pará. Belém: Editora Amazônia, 2005. ROQUE, Carlos. História geral de Belém Grão-Pará. Atualização de textos: Antônio José Soares: Belém, Distribel, 2001.
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Anais do II Congresso Internacional de Estudos Linguísticos e Literários na Amazônia (CIELLA) SALES, Germana Maria Araújo. Um público leitor em formação. In: Moara Revista do curso de PósGraduação em Letras da UFPA, nº 23, p. 23-42, jan/jun/2005. SALLES, Vicente. Memorial da Cabanagem: esboço do pensamento político e revolucionário no Grão-Pará. Belém: CEJUP, 1992. SERRA, Tânia Rebelo Costa. Antologia do romance de folhetim (1839 a 1870). Brasília: Ed UNB, 1997. SODRÉ, Nelson Werneck. História da imprensa no Brasil. 3ª ed. São Paulo: Martins Fontes, 1983. ______, História da Literatura Brasileira. 10ª ed. Rio de Janeiro: Graphia, 2002. TINHORÃO, José Ramos. Os romances em folhetim no Brasil: 1830 a atualidade. São Paulo: Duas cidades, 1994. ZILBERMAN, Regina. Fim do livro, fim dos leitores? São Paulo: SENAC, 2001.
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Volume 3
JULIO CORTÁZAR: UM ANTROPÓFAGO LATINO-AMERICANO? Maria Luiza Teixeira BATISTA (Universidade Federal da Paraíba)
RESUMO: Neste trabalho, apresentaremos uma leitura da obra de Julio Cortázar à luz de Haroldo de Campos e Silviano Santiago. No texto, “Da razão antropofágica: diálogo da diferença na cultura brasileira”, Haroldo de Campos retoma o conceito de antropofagia literária, ampliando sua aplicação para a América Hispânica. Campos denomina os escritores latino-americanos como novos bárbaros, devoradores de outras literaturas e culturas. Neste sentido, Cortázar também é considerado um destes novos bárbaros que se apropriou do legado cultural universal em busca de uma maneira própria de expressão. Silviano Santiago também encontrou no escritor a presença do antropófago literário que aqui mencionamos. Santiago entende o conceito de leitura como um convite a praticar a escrita. O escritor se transforma em um devorador de livros e suas leituras estimulam seu processo de criação. Como é sabido, a leitura sempre esteve presente na vida de Cortázar e muitas destas ficaram sedimentadas na sua escrita. PALAVRAS-CHAVE: Julio Cortázar; antropofagia; Haroldo de Campos; Silviano Santiago
RESUMEN: En este trabajo, presentaremos un análisis de la obra de Julio Cortázar a la luz de Haroldo de Campos y Silviano Santiago. En su texto “Da razão antropofágica: diálogo da diferença na cultura brasileira”, Haroldo de Campos retoma el concepto de antropofagia literaria, aplicándolo también a los escritores de la América Hispana. Campos afirma que estos escritores son los nuevos bárbaros, devoradores de otras literaturas y culturas. En este sentido, Cortázar también es considerado uno de estos nuevos bárbaros que se apropió de la cultura universal en búsqueda de una manera propia de expresarse. Silviano Santiago también encontró en el escritor la presencia del antropófago literario que aquí mencionamos. Santiago entiende el concepto de lectura como una invitación a la práctica de escritura. El escritor se transforma en un devorador de libros e sus lecturas estimulan su proceso de creación. Como se sabe, la lectura siempre estuvo presente en la vida de Cortázar y muchas de estas quedaron sedimentadas en su escritura. PALABRAS CLAVE: Julio Cortázar; antropofagia; Haroldo de Campos; Silviano Santiago
Anais do II Congresso Internacional de Estudos Linguísticos e Literários na Amazônia (CIELLA)
1. Introdução Talvez Cortázar tenha sido um dos escritores argentinos mais estudados nas últimas décadas, muitos foram os trabalhos críticos onde se apresentam diversos enfoques e interpretações sobre a sua obra. Por este motivo, encaramos como um desafio analisar seus textos de maneira original. Nesta busca de novas perspectivas, nos deparamos com um dado curioso que nos levou a indagar sobre a relação que o escritor argentino manteve com escritores e críticos brasileiros, entre estes encontramos Haroldo de Campos. Encontramos, no capítulo de abertura da edição crítica de Rayuela publicada em 1991, um texto de Haroldo de Campos onde recorda que talvez tenha sido o primeiro crítico brasileiro a escrever sobre esse romance, referindo-se a um artigo publicado em 1967.1 Foi por causa deste texto que Haroldo de Campos e Julio Cortázar estabeleceram um primeiro contato que, em seguida, se transformou em um vínculo afetivo e profissional. É possível que date daquela época – final da década de 60 – os primeiros contatos entre Cortázar com seus colegas brasileiros, uma ponte por onde certamente os leitores de ambas as latitudes (Brasil e Argentina) continuam atravessando. Não somente um vínculo de amizade unia os dois escritores, para Campos, Cortázar fazia parte de um grupo denominado novos bárbaros, relendo o conceito de antropofagia oswaldiana. Neste sentido, nossa intenção neste trabalho é retomar e desenvolver a proposta do crítico brasileiro ao designar Cortázar um antropófago à moda brasileira. 2. Antropófagos latino-americanos No seu texto “Da razão antropofágica: diálogo da diferença na cultura brasileira”, Haroldo de Campos, retoma o conceito de antropofagia literária de Oswald de Andrade e o amplia ao resto da América Latina. Considera, não apenas os escritores brasileiros, mas também os escritores hispano-americanos como antropófagos literários. Para Campos, estes escritores, ao retornar as suas raízes buscando a diferença, ou seja, sua originalidade, se transformam em canibais, devoradores da cultural universal. Por sua vez, o canibal é também um antologista, um colecionador de textos literários, que deles se alimenta, extraindo os nutrientes necessários para renovar suas próprias forças (Cf. CAMPOS, 1992, p. 234-235). Estes escritores-canibais se apropriam do “legado cultural universal”, o re-elaboram e modificam, construindo assim um sistema novo (Cf. CAMPOS, 1992, p. 234). Deste modo, acabam inscrevendo a América Latina no cenário da literatura internacional. Entre estes canibais, ou novos bárbaros, como os definia Campos, encontramos a Octavio Paz, Jorge Luis Borges, José Lezama Lima, Severo Sarduy, Leopoldo Marechal e Julio Cortázar. O crítico acreditava que estes novos bárbaros latino-americanos se alimentava de bibliotecas como a Biblioteca de Babel de Borges.2 Eles esmiuçavam a tradição literária ocidental (e também oriental), transformando-a em um caldo substancioso, como resultado deste processo de nutrição, Lezama criolliza a Proust e intercomunica Mallarmé com Góngora: suas citações são truncadas e aproximativas como restos de uma digestão diluvial. Adán Buenosayres, de Leopoldo Marechal (com sua ‘Viaje a la Oscura Ciudad de Cacodelphia’), e Rayuela, de Julio Cortázar, dialogam, em turnos e planos diversos, com o Ulysses de Joyce, sem perder com isto a marca da circunstancia argentina (ainda quando, no caso de Cortázar, transmigrada, com nostalgias portenhas, para a París de Rive Gauche). (CAMPOS, 1992, p. 252)
Trata-se do artigo “O Jogo da Amarelinha”, publicado no Correio da manhã no Rio de Janeiro em 1967. Era na sua Biblioteca de Babel onde Borges se refugiava para ler e escrever. Muitos anos mais tarde já no final de sua carreira, o escritor argentino se propõe a registrar as leituras que foram imprescindíveis na sua vida. No prólogo de Biblioteca Personal, o escritor afirma: “A lo largo del tiempo, nuestra memoria va formando una biblioteca dispar, hecha de libros, o de páginas, cuya lectura fue una dicha para nosotros y que nos gustaría compartir. […] Deseo que esta biblioteca sea tan diversa como la no saciada curiosidad que me ha inducido, y sigue induciéndome, a la exploración de tantos lenguajes y de tantas literaturas.” (BORGES, 1998, p. 7-8)
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Assim, na opinião de Haroldo de Campos, a antropofagia latino-americana estabeleceu uma nova relação entre Europa e América Latina. Esta nova relação é exemplificada pelo fenômeno do boom da literatura latino-americana que aconteceu na década de 60. O boom foi uma forma de mostrar ao resto do mundo que os novos bárbaros latino-americanos há muito tempo vinham corrompendo o seu legado literário e cultural. Este fenômeno serviu de alerta para os europeus e norte-americanos, pois eles já ao podiam ignorar a presença destes maus selvagens, antropófagos, que silenciosamente vinham socavando as suas bases literárias (Cf. CAMPOS, 1992, p. 253-254). O boom seria, então, a concreção da proposta antropófaga de Oswald de Andrade. Foi através deste fenômeno que a literatura da América Latina se deslocou da periferia para ocupar um lugar mais próximo do centro. É certo que este foi um fenômeno bastante polêmico. O que para alguns críticos foi um marco na história de literatura com a descoberta de uma nova forma de narrar; para outros, o boom não passou de um jogo de marketing editorial, sustentado apenas pelo êxito de vendas. Houve ainda quem dissesse que foi um acontecimento passageiro por causa das deficiências estéticas dos romances que estavam nas suas listas (Veja: BLANCO AMOR, 1976, p. 13). Seja como for, temos que reconhecer que este fenômeno foi de uma importância fundamental para nossa literatura, pois, graças ao boom, a literatura latino-americana e seus escritores puderam se projetar no cenário literário mundial. Nas famosas listas do boom estavam vários escritores e seus romances, mas os que tinham maior destaque eram Julio Cortázar (pela publicação de Rayuela em 1963), Mario Vargas Llosa (com La ciudad y los perros, 1962), Carlos Fuentes (com La ciudad y los perros, 1962) e Gabriel García Márquez (com Cien años de soledad, 1967).3 Estes nomes passaram a ser considerados celebridades literárias e a estar nas capas de jornais e revistas, como Primeira Plana, uma importante revista literária da época. A mídia foi fundamental para tirar estes (e outros) escritores do anonimato, em pouco tempo eles se transformaram em estrelas, comparadas com as da música e do cinema. No entanto, o fenômeno do boom não só beneficiou a estes quatro protagonistas, serviu também para revelar novos escritores e relançar escritores já consagrados por uma elite leitora. O público descobriu escritores (como Borges, por exemplo) cujos livros já haviam sido publicados nas décadas anteriores, mas que eram desconhecidas do grande público. Dentro deste panorama, a tradução de textos em espanhol (e também em português) a outros idiomas foi um dos fatores importantes que contribuiu para chamar a atenção dos europeus e norte-americanos para a literatura que se publicava na América Latina. Isto favoreceu a conquista do público leitor de línguas não-hispânicas e também o reconhecimento da crítica estrangeira. Outro fator, não menos importante, foi a revolução cubana que obviamente atraiu a atenção do resto do mundo para esse país do continente. Vale também lembrar que muitos escritores do boom foram defensores da causa revolucionária, como é o caso de Julio Cortázar. Como já dissemos, Cortázar deve à publicação de Rayuela a ascensão da sua carreira literária, posto que suas obras anteriores eram pouco conhecidas até então. Foi a partir deste romance que o leitor descobre Bestiário (seu primeiro livro de contos, publicado em 1951) e Los Premios (seu primeiro romance, publicado em 1960), entre outros.4 Como uma de suas figuras principais, é interessante observar a opinião do escritor sobre este fenômeno. Cortázar entende o boom como uma toma de consciência do povo latino-americano com relação a sua própria identidade, isto, por sua vez, redundaria em uma forma de desalienação, no sentido marxista da palavra. Reconhece também o leitor como uma peça fundamental neste processo, toda vez que é a ele que se deve este descobrimento do escritor latino-americano.5 Nestas listas também se encontrava um escritor brasileiro, trata-se de João Guimarães Rosa e seu fabuloso romance Grande Sertão Veredas (1956). 4 No seu libro, Más allá del boom. Literatura y mercado, Ángel Rama apresenta um quadro onde expõe a quantidade de exemplares de Bestiario e Los Premios publicados antes e depois de Rayuela. Os números indicam que depois de 1963, todos os livros de Cortázar publicados antes deste período foram reeditados em tiragens muito maiores (Cf., RAMA, 1984, p. 87-88). 5 Tal opinião foi expressada por Cortázar em uma entrevista concedida a Ernesto González Bermejo em 1972 e reproduzida no livro, Revelaciones de un cronopio. Conversaciones con Cortázar (Cf. GONZÁLEZ BERMEJO, 1986, p. 148). 3
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Apesar de todas as polêmicas surgidas ao redor do boom, não podemos deixar de reconhecer que este trouxe benefícios à literatura latino-americana, pois foi através dele que o resto do mundo descobriu que na América Latina se escrevia literatura de qualidade. Se, como muitos críticos pensavam, os escritores latino-americanos só escreviam cópias de textos europeus, estas supostas cópias estavam atravessadas pelas circunstancias locais e pessoais. Deste modo surgiram textos novos que pouco ou nada deviam a sua suposta matriz. Desta perspectiva, não seria absurdo considerar Cortázar como um dos novos bárbaros mencionados por Haroldo de Campos. Assim como Borges, que se alimentou da sua Biblioteca de Babel, Cortázar se nutriu de muitos textos em busca de uma maneira particular de se expressar. Comparando as bibliotecas de ambos escritores, a do segundo chama a atenção por sua variedade de estilos; até chegou a ser mencionada em uma entrevista concedida a Luis Harss e registrada em Los Nuestros (1966); sua biblioteca também chama a atenção de Lezama Lima quem muitos anos mais tarde revela o que lá encontrou. Harss destacou o interesse de Cortázar pela literatura estrangeira, ao apontar a quantidade de livros em francês e inglês, em oposição ao escasso número de livros em espanhol e, principalmente, de literatura argentina (Cf. HARSS, 1981, p. 261). No entanto, na década de 60, quando foi concedida a entrevista, Cortázar já havia descoberto a literatura de seu país, e havia elegido a Horacio Quiroga, Roberto Arlt, Leopoldo Marechal e Jorge Lis Borges, por diferentes razões, como os seus mestres, como aqueles que lhe ensinaram a escrever. Nesta mesma entrevista, admite que, na sua juventude, costumava ler mais nestas duas línguas (francês e inglês) que em espanhol. Isto se devia ao gosto refinado e elitista que caracterizava a pequena burguesia portenha do começo do século XX, segmento social que pertencia. Depois, confessa que passou a interessar-se pelo que denominava “literatura de excepción” (literatura de exceção), ou seja, aquela que não chegou a se consagrar. Já Lezama Lima apontou a preferência eclética e até contraditória do escritor, pois, em sua estante, se podia encontrar um livro de Julio Verne ao lado de um de Roussel. Esta aparente disparidade pode significar que os livros parecem estar mesclados, como estão os elementos que compõem uma fórmula secreta e onde cada um é indispensável para o resultado final do produto. No fragmento citado a seguir, vemos que Lezama entende a leitura como um processo de nutrição, semelhante ao que disse Haroldo de Campos e que citamos anteriormente: Al lado de la galería aporética, la librería délfica soñada por Gracián. Cada libro por inexplicable, imprescindible. Julio Verne al lado de Roussel. Todo lo pensado puede ser imaginado. Toda imago deja huella. Hacer de tres no un cuarto sonido, sino un astro, decía un abate que tenía su gabinete de alquimia al lado de su celdilla de penitente. Encontrar los necesarios textos como alimento terrestre de lo único que podemos digerir, que cada cual necesita transformar para crecer. Todas esas lecturas semejantes al encuentro con la prostituta de Avignon llamada Jean Blanc (1477-1514) son, como evoca Cortázar en esa mezcla de lo lúdico y lo terrible, que es una de sus constantes más reiteradas, vivencias desprendidas de un cuadro de Masaccio (LEZAMA LIMA, 1996, p. 712).imprescindta e onde cada um nificar que os livros parecem estar mesclados como estao es, por diferentes razoes, como os seus m
Ao que parece, a estante de livros não faz parte apenas da decoração da sua casa; este objeto é recuperado pela memória quando o próprio escritor recorda sua infância em um subúrbio pobre de Buenos Aires. Confessa que sua relação com os livros começou desde muito cedo. E foram suas leituras da infância que o alimentaram, o fizeram crescer e desenvolver a sua intelectualidade. Diz Cortázar: Cada vez que veo las bibliotecas donde se nutren los niños bien educados, pienso que tuve suerte; nadie seleccionó para mí los libros que debía leer, nadie se inquietó de que lo sobrenatural y lo fantástico se me impusieron con la misma validez que los principios de la física o las batallas de la independencia nacional (Cortázar, 194, p. 81).
Se considerarmos este escritor argentino como um antropófago literário, observamos que a noção de alimentar-se de leituras está presente em muitos de seus críticos. Ao recordar Cortázar em um texto publicado logo após sua morte, Saul Yurkievich fala sobre sua paixão pela leitura: “las
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lecturas bien digeridas” (YURKIEVICH, 1997, p. 274), ou seja, processadas e analisadas. O crítico define os hábitos de leitura de Cortázar como uma bibliogula, um desejo de instrução inerente aos latino-americanos. Cortázar foi um glutão literário, assim como Borges também o foi. Graças a estes e outros vorazes leitores periféricos, transformados em escritores, se pode retirar a literatura da América Latina da periférica para colocá-la mais ao centro. Yurkievich reconhece o sentido antropófago da leitura, ao mencionar que estes leitores/ escritores se apropriaram de tudo o tinha valor na literatura universal, a digeriram e a transformaram; a usaram como uma forma de nutrição para seu próprio exercício de escrita. Neste sentido, o crítico confirma o caráter antropófago na literatura de Cortázar na seguinte passagem: Julio se formó como yo, por hibridación literaria, practicando esas antologías, como las de Borges, que compilan muestras de todo mundo y toda época, nutriéndose de sofisticados mejunjes librescos. De tales mezclas salen, por maceración, sus relatos. O bien la mezcolanza es, como en Rayuela o en los almanaques, el dispositivo que constituye la obra (YURKIEVICH, 1997, p. 276).
As leituras, como disse Jaime Alazraki, são o “suelo intelectual donde crece la obra de todo escritor” (ALAZRAKI, 1980, p. 260). Usando outra metáfora, diríamos que a leitura é o alimento que nutre o escritor e contribui para sua própria produção literária. Esta idéia de leitura como alimento é mencionada pelo próprio Cortázar quando recorda a época em que viveu nas pequenas cidades do interior da província de Buenos Aires, diz: “devoré millares de libros” (HARSS, 1981, p. 263). Esta afirmação ratifica o caráter nutritivo presente nos seus hábitos de leitura. Em outro momento, ao evocar suas leituras da adolescência, se auto-define como um leitor onívero (lector omnívero) capaz de devorar os mais variados tipos de literatura (Cf. PREGO GADEA, 1997, p. 67). E quando se refere a influencia de outros escritores nos seus textos, afirma que todos estes textos e seus escritores formam uma “especie de caldo cultural y vital” (CASTRO-KLARÉN, 1980, p. 33). Tudo o que leu e tudo o que está ao seu redor, somado a sua herança cultural, se constitui em um caldo, uma mistura substanciosa, que nutre sua vida e que ele não pode negar. Cortázar não tem nenhum pudor em admitir que diversas leituras atuaram sobre sua atividade literária, por este motivo não concorda com a teoria da angustia das influencias postuladas por Harold Bloom, onde aponta a influencia como um mal que aniquila toda possibilidade de originalidade. Para o crítico norte-americano, todo jovem poeta busca algo impossível de alcançar: a originalidade; além do mais, ele luta contra a influência dos poetas fortes, luta contra a grandeza do poema precursor (Cf. BLOOM, 1991, p. 18). A angustia das influências é, então, uma enfermidade que acomete o poeta que se sente inibido diante da importância de seus antecessores. A cura para dita enfermidade está na superação desta angustia que lhe impede de criar. Esta superação se dá na medida em que o jovem poeta consiga se distanciar do seu precursor (Cf. BLOOM, 1991, p. 22). Do ponto de vista de Bloom, é através da má leitura, ou do erro de interpretação dos grandes poemas, que o jovem poeta se afasta daqueles que, de uma maneira ou de outra, influenciaram seu trabalho, traçando assim seu próprio rumo. Ao que parece, Cortázar não sofre deste mal descrito por Bloom, não se angustia porque seus antecessores, que estão copiosamente citados nos seus escritos, influenciaram seu trabalho; também não teme que os críticos encontrem marcas de outros textos a sua literatura.6 A leitura faz parte do legado deixado pelos seus antecessores e estas leituras nutriram o escritor desde sua infância. Neste sentido, analisando textos sobre sua obra, não é difícil encontrar opiniões de estudiosos e críticos que mencionem esse desejo de alimentar-se com leituras e livros. Este é o caso de Davi Arrigucci Jr quando reconhece os escritos cortazarianos como um “texto, que se alimenta de outros textos” (ARRIGUCCI JR, 1973, p. 17). Do mesmo modo quando Lezama Lima afirma ser a leitura o alimento do escritor, que o transforma e o faz crescer, como citamos anteriormente. Falando sobre Rayuela, verdadeira antologia de seu conhecimento livresco, Jaime Alazraki afirma que: Todo lector de Rayuela percibe de inmediato el acaudalado bagaje de lecturas que forma el andamio intelectual con cuya ayuda Cortázar levanta su novela. Esas lecturas aparecen a lo largo del libro a veces 6
Na entrevista a Sara Castro-Klarén, Cortázar expõe sua opinião sobre este assunto. Veja: CASTRO-KLARÉN, 1980, p. 32-33.
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Anais do II Congresso Internacional de Estudos Linguísticos e Literários na Amazônia (CIELLA) como puntos de apoyo sobre los cuales hace palanca la obra; otras, simplemente como nervaduras invisibles o semivisibles que alimentan o sostienen sus páginas (ALAZRAKI, 1980, p. 259).
Ainda considerando Cortázar como um novo bárbaro, vale a pena observar o texto de Silviano Santiago que também encontrou nos escritores latino-americanos a presença do antropófago literário que buscava na literatura universal sua forma de expressão mais autêntica. O crítico brasileiro ressalta o conceito de leitura como um convite para praticar a escrita. O escritor latino-americano é um devorador de livros e a leitura de outros escritores estimula sua criação e é o princípio organizador da sua obra. O crítico parte da noção de textos legíveis e textos escrevíveis, tratada por Roland Barthes no seu livro S/Z.7 Os textos legíveis podem ser lidos, mas não escritos nem reescritos; enquanto que os textos escrevíveis incitam o leitor à produção, serve de impulso para o trabalho da escrita. Neste sentido, Santiago afirma: ...suas leituras [a dos escritores latino-americanos] se explicam pela busca de um texto escrevível, texto que pode incitá-los ao trabalho, servir-lhes de modelo na organização de sua própria escritura. [...] O segundo texto se organiza a partir de uma meditação silenciosa e traiçoeira sobre o primeiro texto, e o leitor, transformado em autor, tenta surpreender o modelo original em suas limitações, suas fraquezas, em suas lacunas, desarticula-o e o rearticula de acordo com suas intenções, segundo sua própria direção ideológica, sua visão do tema apresentado de início pelo original (SANTIAGO, 2000, p. 20).
Silviano Santiago entende a leitura como um processo de tradução de signos. Por este motivo afirma que o escritor ao ler, traduz, mas sua tradução não é literal; sua tradução é transformadora, pois nela entra em jogo a imaginação criadora do leitor/escritor que ao ler acaba traduzindo, interpretando, criticando e criando, ou seja, outorgando um novo significado ao texto lido. Aqui, o conceito de antropofagia se aplicaria neste processo de leitura/tradução. O leitor/escritor antropófago traduz a seu modo o texto lido; esta nova maneira de ver o suposto texto original lhe serve de suporte para sua escrita e seu trabalho de criação. Cortázar, como um grande tradutor, soube tirar proveito dos textos por ele traduzidos. Talvez seja por este motivo que observamos a incontestável presença de Edgar Allan Poe o de Marguerite Yourcenar na sua literatura, quem o escritor (e também tradutor) argentino traduziu magistralmente. Como tradutor, ele conhecia as sutilezas que envolvem o trabalho de passar um texto, uma frase, uma palavra de um idioma a outro. Gostava do jogo de palavras que transforma a tradução em outro texto, uma versão muitas vezes “más rica y más metafísica que el original” (CORTÁZAR, 1995, p. 36), como ele mesmo afirmou em um texto escrito nos anos setenta, mas só publicado em 1995 na revista Proa. 3. Considerações finais Para concluir nosso trabalho, falta dizer que se Cortázar foi um perseguidor, como muitos críticos assim o definem, foi um perseguidor de sua própria forma de expressão. Nesta busca, percorreu diversos caminhos, um destes foi o da leitura, pois se sabe que possuía um vasto conhecimento livresco. A leitura sempre esteve presente na sua vida; foi um leitor voraz, como ele mesmo confessa, e sempre admitiu que não tinha medo que os críticos reconhecem influencias de outros escritores na sua literatura, pois muitas de suas leituras ficaram, de uma forma ou de outra, sedimentadas no seu trabalho de escrita. No livro S/Z, Roland Barthes, ao analisar Sarrasine de Balzac, postula a existência de textos legíveis e escrevíveis, diz o crítico: “De un lado está lo que se puede escribir, y del otro, lo que ya no es posible escribir: lo que está en la práctica del escritor y lo que ha desaparecido de ella: ¿qué textos aceptaría yo escribir (re-escribir), desear, proponer, como una fuerza en este mundo mío? Lo que la evaluación encuentra es precisamente este valor: lo que hoy puede ser escrito (re-escrito): lo escribible. ¿Por qué es lo escribible nuestro valor? Porque lo que está en juego en el trabajo literario (en la literatura como trabajo) es hacer del lector no ya un consumidor, sino un productor del texto. […] Por lo tanto, frente al texto escribible se establece su contravalor, su valor negativo, reactivo: lo que puede ser leído pero no escrito: lo legible. Llamaremos clásico a todo texto legible.” (BARTHES, 2004, p. 1-2) 7
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O escritor argentino utiliza seus conhecimentos livrescos como fundamento de sua própria poética. No entanto, outros ingredientes entram no caldearão do matabelé (o primitivo descrito pelo próprio Cortazar em Para una Poética e que aqui utilizamos metaforicamente para designar o escritor).8 Ele é o novo bárbaro que devora o legado da cultura ocidental, o sintetiza e o transforma em um caldo substancioso que lhe serve de alimento, a maneira do escritor antropófago postulado por Haroldo de Campos. Referências ALAZRAKI, J. Cortázar en la época de 1940: 42 textos desconocidos. In: Revista Iberoamericana. No 110-111. Pennsylvania: 1980. p. 254-269. ARRIGUCCI JR, D. O escorpião encalacrado. São Paulo: Perspectiva, 1973. BARTHES, R. S/Z. Buenos Aires: Siglo Veintiuno Editores, 2004. BLANCO AMOR, J. El final del boom literario y otros temas. Buenos Aires: Ediciones Cervantes, 1976. BLOOM, H. La angustia de las influencias. Caracas: Monte Ávila Editores, 1991. BORGES, J. L. Biblioteca personal. Madrid: Alianza Editorial, 1998. CAMPOS, H. de. Da razão antropofágica: diálogo da diferença na cultura brasileira. In: Metalinguagem e outras metas. São Paulo: Perspectiva, 1992. p. 231-255. CASTRO-KLARÉN, S. Julio Cortázar, lector. In: Cuadernos Hispanoamericanos. Nº 364-366. Madrid: Ediciones Mundo Hispano, oct-dic 1980. p. 23-31. CORTÁZAR, J. Translate, traduire, tradurre: traducir. In: Proa. Nº 17. Buenos Aires: Editorial Proa, mayo/ junio 1995. p. 35-38. _____. Notas sobre lo gótico en el río de la Plata. In: Obra Crítica / 3. Madrid, Alfaguara, 1994 a. p. 77-88. _____. Para una poética. In: Obra crítica / 2. Buenos Aires: Alfaguara, 1994 b. p. 265-288. GONZÁLEZ BERMEJO, E. Revelaciones de un cronopio. Conversaciones con Cortázar. Buenos Aires: Editorial Contrapunto, 1986. HARSS, L. Cortázar, o la cachetada metafísica. In: Los Nuestros. Buenos Aires: Sudamericana, 1981. p. 252300. LEZAMA LIMA, J. Cortázar y el comienzo de la otra novela. In: CORTÁZAR, J. Rayuela. Edición Crítica. México: Fondo de Cultura Económica, 1996. p. 710-719. RAMA, A. Más allá del boom. Literatura y mercado. Buenos Aires: Folios Ediciones, 1984. SANTIAGO, S. Uma literatura nos trópicos. Ensaios sobre dependência cultural. Rio de Janeiro: Rocco, 2000. YURKIEVICH, S. Julio Cortázar: mundos y modos. Barcelona: Minotauro, 1997.
No texto Para una Poética, Cortázar compara o poeta ao homem primitivo (o matabelé), afirma que ambos “reconoce[n] y acata[n] las formas primitivas; formas que, bien mirado, sería mejor llamar ‘primordiales’, anteriores a la hegemonía racional, y subyacentes luego a su cacareado imperio.” (CORTÁZAR, 1994, p. 277)
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As construções do sentido de violência nas práticas culturais do Sertão Central do Ceará Maria Mônica Ramos de MELO (UECE/FECLESC) Claudiana Nogueira de ALENCAR (Orientadora/UECE/FECLESC)
RESUMO: Este trabalho é parte de um projeto mais amplo intitulado “As construções do sentido da violência das práticas culturais do Sertão Central do Ceará” que é uma proposta de investigação das práticas discursivas e práticas sociais vivenciadas no Sertão Central do Ceará a partir do estudo da constituição dos sentidos nos diversos jogos de linguagem reais do cotidiano e suas repercussões na vida social. Nosso objetivo é analisar os processos semânticos discursivos de nomeação e designação de gênero para entender como a prática cultural do forró “pé de serra” reifica sentidos para formas de violência cotidiana. Utilizamos como aparato teórico e metodológico a pragmática (WITTGENSTEIN, 1989) e a análise do discurso crítica (FAIRCLOUGH, 1992, 2003). Os dados coletados até o momento nos levam a entender que a linguagem corporifica a violência através dos atos de fala de nomeação e designação que constroem e reivindicam identificações tradicionais para homens e mulheres do campo, legitimando ideologias machistas. PALAVRAS-CHAVE: Discurso; Pragmática; Identidade; Violência.
RESUMEN: Este trabajo es parte de un proyecto más amplio titulado “La construcción de los significados de la violencia en las prácticas culturales del interior de Ceará Central” que es una propuesta de investigación de prácticas discursivas y prácticas sociales vivenciadas en el interior del Ceará Central el estudio de la formación significados de los distintos juegos de lenguaje real de la vida cotidiana y sus repercusiones en la vida social. Nuestro objetivo es analizar los procesos de semántic-discursivos de nombramiento y designación de gênero, para comprender como la práctica cultural del forró “pie de las montañas” reificaban significados de las formas de violencia cotidiana. Utilizarse como aparato teórico y metodológico, la pragmática (Wittgenstein, 1989) y análisis crítico del discurso (Fairclough, 1992, 2003). Los datos recogidos hasta el momento nos llevan a creer que la lenguaje corporifica la violencia a través de los actos de nombramiento y designación que constoren la demandan y identificaciones tradicionales para los hombres y mujeres del campo, haciendo la legitimación de las ideologías machistas. PALAVRAS-LLAVE: Discurso; Pragmática; Identidad; Violencia.
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1. Análise da conjuntura ou condições de produção (distribuição) Como a pesquisa está em fase inicial o que se percebe é que em Quixadá o público do forró pé-de-serra está mais voltado para os idosos, os quais em sua grande maioria não curtem o forró atual, pela questão das letras serem consideradas “imorais’, diferentemente do pé-de-serra, em que suas letras retratam principalmente o sertão”. As pessoas da cidade de Quixadá que apreciam o forró pé-de-serra podem escutar esse gênero musical, de segunda a sexta-feira, a partir das 17 horas, o programa forrozão na casa grande, na FM sitiá de Quixadá. No Bairro Campo Novo, há um local onde as pessoas podem apreciar esse gênero, além do Balneário Clube, que nas quintas-feiras também divulga o FPS. O forró pé-de-serra é caracterizado por ter como fonte de inspiração artística o universo rural do sertanejo e tem sua origem em meados da década 1940 no Nordeste, É tocado por trios de zabumba, sanfona e triângulo (SYLLOS; MONTANHAUR, 2002) dando característica timbrica singular à música e na dança é comum vermos o passo básico e variações simples, tais como giros simples da dama, não sendo muito freqüentes, estes tipo de passos.Luis Gonzaga, Jackson do Padeiro e Dominguinhos são exemplos de músicos que tocam FPS. O repertório de Luis Gonzaga demonstra a permanência de características relacionadas com a tradição. Esse repertório abrange aspectos que enfatizam as culturas caboclas das fazendas, cujas características afloraram como um resultado do projeto econômico colonial; precisamente o Nordeste tradicional se desenvolveu a partir de dois sistemas de economia: a plantação de canade-açúcar na região costeira e a criação de gado no interior. “Casa grande” e a “fazenda” foram os centros de decisões políticas, administrativas e de desenvolvimento da vida sociocultural. Em relação ao Nordeste, o estudo sobre as áreas culturais elaborados por Diegues Júnior (1960) representa uma importante ajuda para o pesquisador. Este autor destaca duas principais áreas culturais: O Nordeste agrário do litoral e do sertão nordestino. O primeiro na sua descrição, o mais caracterizado pela sua mistura étnicos entre europeus e africanos, relaciona-se com o plantio de canade –açúcar, é representado pela casa grande e o engenho, onde se concentravam os poderes político e socioeconômico. Cita Diégues Júnior: ... a economia açucareira, a princípio com o engenho é hoje com a usina, tornou-se o principal responsável pela formação da sociedade agrária, de linhas aristocráticas , de características patriarcais. (DIEGUES JUNIOR, 1960,p. 20)
Em torno do litoral agrário que compreende os Estados de Pernambuco, Alagoas, parte da Paraíba e do Rio Grande do Norte, Sergipe e Bahia, se formaram vilarejos, e depois cidades, como uma extensão dos engenhos, Assim a influência do ambiente rural do engenho penetrou nas novas áreas urbanas. As usinas, que os sucedera, ainda se mantiveram como o centro para o desenvolvimento das relações sociais, das descrições políticas, do crescimento demográfico. O continente africano, como principal força de trabalho, trouxe grande contribuição do processo de caracterização dessa região. O interior do Nordeste, extensão dos povoados litorâneos, foi, paulatinamente sendo ocupado por criadores de gado que ali encontraram uma área propícia a sua atividade. Assim surgiram as fazendas que se constituíram num outro ponto de evolução da vida social. O canal de comunicação foi o Rio São Francisco que faz a ligação entre os vários estados nordestinos. Desce o século XVI grupos pioneiros, criadores de gado, partiram da Bahia e de Pernambuco desbravando terras onde estabeleceram suas fazendas. Não se pode omitir o fato de que a diversificação cultural no Brasil tem sua origem no princípio formador de organização das relações sociais e políticas: o crescimento da família, a língua e a religião. Para Diegues Júnior (1960), estes dois últimos aspectos – língua e religião – são os principais elementos que configuraram a cultura brasileira, fazendo aparecer características específicas. A riqueza étnica, constituída à base da miscigenação, acrescidas a língua e a religião, são elementos
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indispensáveis para se entender melhor o processo de crescimento da música popular nordestina, isto é, o desenvolvimento da vida musical, nos engenhos e nas fazendas do sertão. Também se deve evidenciar a organização da vida social no mundo rural. Nesse sentido, os ritos do catolicismo brasileiro têm funcionalidade, pois promovem a solidariedade entre vizinhos, entre famílias e indivíduos. Uma capela existe na maioria das fazendas, se torna o centro da vida social: tudo ocorre em torno da capela: nas celebrações do padroeiro ou de outros santos importantes na vida dos grupos familiares, além de cada grupo eleger seu patrono cada família também escolhe o seu, que é festejado na data do nascimento. Na obra, a invenção do Nordeste e outras artes de Durval Muniz Alburquerque podemos entender que o Nordeste foi construído à partir de uma diversidade de discursos, os quais foram esteriotipando a região, seja na música, na literatura, ou em outras práticas discursivas.Uma dessas construções concebe o Nordeste como espaço da saudade, devido à imigração de milhares de habitantes para o Sul. Deixar suas terras significava buscar novos horizontes e deixar de ser “gente de alguém “ o Sul se tornava a esperança de uma vida melhor para essas pessoas. Aí então podemos perceber que já se cria uma imagem de uma terra não apropriada para viver.È construída também a imagem de Nordeste seco, onde a terra não produz por falta de chuvas. A música de Luís Gonzaga constrói imagens à respeito do nordestino, ou seja representa a identidade regional de seu povo. Os elementos ultilizados para essa construção são vários, dentre eles podemos destacar: o próprio tom da voz de Luís Gonzaga, sua forma de cantar, as expressões locais que ele ultiliza, os elementos culturais populares e principalmente os rurais, até mesmo o sotaque vai “significar” o Nordeste. Este último elemento funciona como um dos primeiros elementos que causa identificação e também esteriotipa a região e seus habitantes. Para Durval o sucesso de Luís Gonzaga foi fruto por um lado de um código de gosto que valorizava as músicas dançantes, as de natureza lúdica e, por outro lado, atendia o consumo crescente de signos nordestinos e regionais como signos da nacionalidade. Mas seu maior se dá entre os migrantes nordestinos que buscava resgatar os seus valores. Segundo Luís Gonzaga ele cantou as coisas positivas e também os problemas da região Nordeste. O cantor vê a seca como o principal problema da região. Essa música produz uma visão do Nordeste e se apropria de temas e imagens já cristalizados, ligados á própria produção cultural: a seca, o Padre Cícero, o cangaço, a questão da honra. Este Nordeste de povo sofrido, simples e resignado, devoto e capaz de grandes sacrifícios é reproduzido na música de Luís Gonzaga. A música gonzageana contribui para reforçar a percepção do Nordeste como sendo uma região à parte do país e uma oposição ao Sul. Em suas músicas o sertão é o lugar dos bons valores, dos tradicionais e a cidade é o local da perda desses valores. Enfim Luís Gonzaga foi o artista que legitimou o Nordeste como o espaço da saudade, não da escravidão, do engenho, das casas- grandes, mas a saudade do sertão, de sua terra, de seu lugar. 2. Revisão teórica Nesta pesquisa utilizarei a pragmática (WITTGENSTEIN, 1989) e a análise do discurso crítica (FAIRCLOUGH 1992, 2003) como aparato teórico Para Wittgenstein a linguagem se apresenta em segmentos múltiplos e diferenciados, sendo assim ela não pode ser concebida como uma estrutura lógica e formal. Wittegnestein entende a linguagem como uma forma de vida, ele diz que para cada situação usamos um jogo de linguagem, considerando a diversidade dos jogos, podemos falar em diversas formas de vida. O autor questiona “O que designam, pois, as palavras dessa linguagem? – O que elas designam, como posso mostrar isso, a não ser na maneira do seu uso?...” Nesta passagem entendemos que palavra tem uma designação de acordo com o seu uso.
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A análise do discurso se baseia no funcionalismo que utiliza a linguagem em uso, diferentemente do paradigma formalista no qual o discurso é definido como a unidade acima da sentença. A Teoria Social do Discurso é uma abordagem de Análise de Discurso Critica (ADC), desenvolvida por Norman Fairclough, que se baseia em uma percepção da linguagem como parte irredutível da vida social dialeticamente interconectada a outros elementos sociais (Fairclough, 2003a). Podemos compreender que a linguagem está ligada diretamente com o social. No entanto podemos dizer que a linguagem utilizada no forró, interfere diretamente na sociedade. Baktin apresenta (2002) o meio social como o centro organizador da atividade lingüística. Nesse sentido, Fairclough refuta naturalmente, o conceito saussuriano de parole, que vê a fala como atividade individual e que, portanto, jamais se prestaria a uma Teoria Social do Discurso. Aí a crítica que Fairclough faz a Saussure por ele vê a fala como uma atividade individual. Fairclough define discurso como forma de prática social, modo de ação sobre o mundo e a sociedade um elemento da vida social interconectada a outros elementos. Tal definição vai ser constituída pela Teoria Social do Discurso, a partir das idéias de Foucault (2003, p. 10) que destaca a face constitutiva do discurso, concebendo a linguagem como uma prática que constitui o social, os objetos e os sujeitos sociais. Devemos lembrar que a reflexão entre discurso e sociedade está inserida no contexto da modernidade tardia ou do novo capitalismo. A partir desse contexto, Giddens(2002) reflete sobre o conceito de identidades. As identidades são vistas por ele como uma construção reflexiva, em que as pessoas operam escolhas de estilo de vida, ao contrário das sociedades tradicionais, em que as possibilidades de escolhas são pré- determinadas pela tradição. Porém, um problema na Teoria de Giddens é que ele privilegia as “oportunidades” geradas pela globalização e não percebe que para a maioria só restam os “riscos”. É preciso sabermos que reflexibilidade refere-se à possibilidade de os sujeitos construírem ativamente suas auto-identidades, em construções reflexivas de sua atividade na vida social. Por outro lado, identidades sociais são construídas por meio de classificações e mantidas discursivamente. Assim, podemos perceber que se as identidades são construídas discursivamente, elas também podem ser contestadas no discurso. A questão da identidade está sendo extensamente discutida na teoria social. Hall (1992, p.07) resume o argumento da teoria da social da seguinte forma: “as velhas identidades, que por tanto tempo estabilizaram o mundo social estão em declínio, fazendo surgir novas identidades e fragmentando o indivíduo moderno até que enfrentamos atualmente é a chamada ‘crise de identidades’”. Hall percebe na história do conhecimento três concepções de identidade: a do sujeito do Iluminismo, a do sujeito sociólogo e a do sujeito pós- moderno. O sujeito do Iluminismo era muito “individualista”, consistia num núcleo interior. O sujeito sociológico tinha uma concepção “interativa” da identidade e do eu, e essa concepção da identidade é que desencadeiam a “interações” do eu com a sociedade. Todo o processo pelo qual o sujeito sociológico passou é que desencadeou a concepção de sujeito pós- moderno, conceptualizado como não tendo uma identidade fixa, essencial ou permanente. Na pós- modernidade, a identidade torna-se uma “celebração móvel”, formada e transformada continuamente em relação às formas pelas quais somos representados ou interpelados nos sistemas culturais que nos rodeiam (HALL,1987). Vemos aí que o sujeito fica disperso, não sabe ao certo que identificação, ele segue, não há uma unificação, ele segue diferentes identidades em diferentes momentos. Desse modo, podemos entender que a globalização, um dos fenômenos mais marcantes dessa época em que vivemos, causou um grande impacto na questão da identidade cultural. As sociedades modernas são, portanto, por definição, sociedades de mudança constante, rápida e permanente. Nesse contexto da globalização, o tempo e o espaço são também as coordenadas básicas de todos os sistemas de telecomunicações – deve traduzir seu objeto em dimensões espaciais e temporais. Quando se fala em cultura popular, é preciso compreender que com a globalização à visão que tínhamos à respeito do assunto precisa ser mudada, pois não se pode dizer que uma prática cultural permaneceu da mesma forma antes deste processo. Entendemos que as culturas populares passaram a estabelecer relações com os meios de comunicações, afim de se adequar a esse novo mercado.
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3. Análise Neste trabalho, trago uma pequena amostra de análise das canções do gênero Forró de Péde- Serra através da canção de Nelson Valença, com o título de “a mulher do meu patrão”. A MULHER DO MEU PATRÃO (1974) Eu tenho pena Da mulher do meu patrão Muito rica, tão bonita Ai meu Deus que mulherão Não tem meninas Para não envelhecer Mas nervosa sofre muito Por não ter o que fazer No atiço da panela, No batuque do pilão Tem somente quinze filhos Mais o xaxo do feijão Sarampo, catapora, Mais a roupa pra lavar Resfriando, tosse braba. Lenha para carregar Pote na cabeça Tem xerém para cozinhar Tira o leite da cabrinha, Tem o bode pra soltar Vivo com minha nega Num ranchinho que eu fiz Não se queixa não diz nada E se acha bem feliz Com tudo isso Ainda sobra um tempinho Um agrado um carinho Eu não quero nem dizer Com tudo isso Ainda sobra um tempinho E um moleque sambudinho Todo ano é pra nascer.
Ao analisar a letra desta música podemos perceber que ideologias são criadas e consolidadas através do discurso machista. Considerando o conceito de ideologia de Fairclourgh (2001,p.117), no qual ele diz que ideologias são significações/construções da realidade(o mundo físico, as relações sociais, as identidades sociais) que são construídas em várias dimensões das formas/sentidos das formas sentidos das práticas discursivas e que contribui para a reprodução ou a transformação das relações de dominação. Percebemos que na música quando ele se refere à mulher do patrão, ele a critica, “por não ter o que fazer”, isso já faz parte de uma ideologia a respeito da mulher, na qual acredita-se que a mulher tem a obrigação de ser doméstica e submissa. Vemos na segunda estrofe uma designação para o que seria considerado como a verdadeira mulher sertaneja, suas “obrigações” e a sua submissão, sustentado por um discurso machista. Quando ele diz que vive com a “nega” dele em um ranchinho e ela não se queixa de nada. Aí está explícita a submissão da mulher sertaneja. Quando o autor nomeia a mulher dele de “nega” designa uma mulher: simples, castigada pelo sofrimento e com muitos filhos, aspecto típico do sertanejo. Na última estrofe, percebemos que esta mulher com todos seus obstáculos se considera feliz, pois ela não percebe como sua vida poderia ser de outro modo, por conta da sua identidade ter
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sido construída da maneira tradicional. Logo, por esse padrão identitário tradicional pelo qual toda a carga de trabalhos domésticos é vista como obrigatoriamente responsabilidades do gênero feminino, sua forma de viver é aceita como fazendo parte da sua natureza, não só por personagem feminina, mas também tal padrão é considerado o desejável para a sociedade. Pode-se dizer, assim, que há uma naturalização desse sentido de submissão para o gênero feminino, um sentido que se torna ideológico na medida em que estabelece relações de poder social. Considerações finais Esperamos contribuir para uma mudança social, a parir da compreensão de que as formas lingüísticas como formas da cultura constroem identidades e estabelecem, muitas vezes, relações de dominação. Tais relações e identidades tradicionais devem ser questionadas e repensadas como ideologias construídas no discurso para que possamos pensar em uma sociedade mais justa. Esse projeto tem o apoio da UECE (Universidade Estadual do Ceará) e do Governo do Estado Ceará. Referências WITTGENSTEN, investigações filosóficas, São Paulo,Ed. Nova Cultural, 1989. HALL, Stuart, a identidade cultural na pós- modernidade, Trad. Tomaz Tadeu da Silva , Rio de Janeiro, Ed.DP&A,1997. RESENDE , Viviane Melo e RAMALHO, Viviane, análise de discurso critica,São Paulo,2006. RAMALHO, E. B. Luiz Gonzaga: a síntese poética e musical do sertão. São Paulo: Terceira Margem, 2000. v. 1. 190 p.
MARCAS DE IRONIA NO JORNAL DE TÍMON, DE JOÃO FRANCISCO LISBOA Maria Rita SANTOS (Universidade Federal do Maranhão)
RESUMO: Abordagem da ironia no Jornal de Tímon, de João Francisco Lisboa. Nessa obra, a ironia se irrompe do ajustamento entre atitude/situação. Por serem do mesmo tronco, os diversos processos de expressão irônica guardam um traço comum – a evocação da idéia do riso (sub-risos). Sem poder ser diferente o riso e o sorriso têm uma função social na proporção em que correspondem a algumas exigências da vida comum, de onde resulta a significação cultural e ou as dimensões sociais. A ironia tem assim a sua marca social permeada pela base cultural e revelada em seus vários níveis. O riso é uma ação polivalente, porque proporciona ao homem assumir várias posições face ao mundo. Assim, observa-se bem marcada/demarcada a ironia processada por Tímon, no seu Jornal – pretexto com base cultural, política e social. PALAVRAS-CHAVE: Níveis irônico; Social; Cultural; Político.
Anais do II Congresso Internacional de Estudos Linguísticos e Literários na Amazônia (CIELLA)
Tímon, para o Maranhão de sua época constrói uma arquitetura irônica ambivalente sim, pelo que agradável para se compreender o mau exercício político pela trilha da construção do riso carnavalesco que, não raro, explode em gargalhada (júbilo). Esse modo risível proposto por Tímon quer, antes de tudo, alcançar e expor a supremacia estabelecida para, alfim, diluí-la, revertê-la, invertê-la ou subertê-la em favor de uma mudança geral. Ou seja: condizente ou representativa do processo histórico vivenciado ou objetivado. Dessarte, o risível brota das malhas de um estado crítico e, por isso, sua base não é senão uma visão de mundo. Cada época ou cada indivíduo possui sua concepção de mundo e Tímon, pela sua expressão, incontestavelmente, comprova o afirmado. Desse modo, por via de uma estrutura lingüística, Tímon, ao apresentar a situação do seu momento, fá-lo para afirmá-lo ao mesmo tempo que a nega ou a renega pela sua atividade exclusivamente irônica. A cosmovisão de Tímon permite que o homem da sociedade por ele escolhida seja, a um tempo, sujeito e objeto do rísivel, pelo que, dominados e dominadores, dirigentes/dirigidos, nas suas respectivas ações políticas, são colocados alternada ou simultaneamente numa ou noutra posição no seio do processo-histórico. É a transposição lingüística do discurso cultural da época com vista a desestruturá-lo. Pelo exposto, depreende-se que todo texto que signi-faz o Jornal de Tímon, em análise, está de lés a lés eivado de atitude irônica. De outro modo: a totalidade textual em causa é um tecido de base extremamente irônica, onde a ironia é processada em vários graus e o título é já um primeiro indicativo. Ao longo da tessitura, apreende-se uma profunda estruturação parodística que eleva o texto ao estatuto de narrativa dialógica. Parodiar é apontar, no vigente, a dimensão do obsoleto nele contido, abrindo-se arestas para a manifestação da dúvida e daí possíveis questionamentos a propósito dos valores tradicionais. Enquanto parodiador, Tímon assume sua cultura para, por fim, recusá-la, o que se processa por meio da posição de confronto em que coloca as várias culturas (antigas e modernas) os vários regimes e facções políticas e os indivíduos. Um outro grau irônico tecido por Tímon é o humor. Este, na sua peculiar ação de inverter valores consagrados, posiciona-se bem mais sutil que a ironia satírica, mais sério que cômico, o que não impede a gestação do sorriso ou riso e, até mesmo, a gargalhada. Essa atitude, a um tempo séria e galhofeira, quer, antes de tudo, formar um ambiente de conscientização para reclamar uma eficaz mudança já visivelmente necessária, inadiável. Entrementes, é por meio da estrutura paródica que Tímon denuncia a derrota do poder instituído. É por meio deste esteriótipo intencional (paródia) que almeja agredir ou recusar os significantes, reforçando o significado ou vice-versa num querer mostrar que só é possível haver muito riso porque há, de fato, pouco siso. Em desprezo à repetição, a mostra do risível, estruturada por Tímon, ater-se-á apenas à parte dedicada aos “Partidos e eleições no Maranhão”. A propósito, veja-se este passo: Acordado este ponto, torna S. Exc. á roda dos amigos, e cuida-se de veras em metter mãos á obra. Na secretaria tinham apenas ficado dous officiaes mais moquencos e experimentados em crises taes; mandaramse vir mais alguns, e começou então aquillo a que a opinião maliciosa e desvairada tem chamado testamentos presidendeaes. (LISBOA, 1852, p. 111)
Considerando-se o contexto, observa-se o ajustamento do emprego dos adjetivos maquencos, experimentados, maliciosa e desvairada numa nítida atitude de descompromisso respeitante à afirmação/ negação. Expectativa de envolver o receptor em busca de adesão. No caso, em primeiro plano, pelo riso carnavalesco debochado, demolidor, escarnecedor, aderente e comprometido, por conta do estruturado perfil da ridicularização para garantir pela inevitabilidade o aval do receptor. Socorrendose dessa atitude comunicativa, Tímon sugere o alvo para onde o enunciado aponta. Ao mesmo tempo que diz, mobiliza-se também lingüisticamente no sentido de se desembaraçar da responsabilidade do que diz, quando utiliza a expressão aquillo a que. Assim, a relação texto/contexto faz brotar um novo texto a eles paralelo (atitude própria da paródia) que reclama decodificação. Essa espécie de sombra textual, que também é texto, pode perfeitamente ser vista sob vários ângulos, aparece com o ranço do paradoxal
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(comportamento paródico) e pela trilha do fato histórico. É um terceiro sentido emergente dos dois outros referidos anteriormente – texto/contexto. Esse modo de processar o texto denota a sutileza da confecção macrossintática de Tímon – ao mesmo tempo que afirma (registra por júbilo), nega (critica ou questiona para reflexão) no intuito de destruir ou inibir o mau exercício da atividade política e do consumo passivo da ideologia dominante, em favor do bom exercício político. A crítica referente ao binômio dominado/dominador é perceptível pela expressão definida ou determinada a opinião maliciosa e desvairada, onde o artigo definido a reclama importância na medida em que remete o leitor para informações antecedentes postas ou pressupostas que muito têm a ver com a contextualização (significação pelo contexto dado). O registro linguístico denota tratar-se de um juízo que, não obstante as conseqüências, ainda não é de todos (sociedade ou maioria desta), porém apenas dos mais perspicazes, e Tímon é um deles. A repassagem da idéia de loucura é para ressaltar o grau de conscientização política de alguns poucos, no que destoam da maioria – loucura/não-loucura. Posição antípoda da expectativa de, pelo menos, no futuro a maioria, pela conscientização política, venha a possuir o juízo “malicioso” e “desvairado” da minoria consciente, anulando assim o espaço da nãoloucura ou disso pelo menos se aproximando. Corroborando, notifique-se que o louco, o bobo e o palhaço, tanto na Antigüidade Clássica quanto na Idade Média, eram elementos que, pelo seu grau de conscientização, almejavam mais intensamente as transformações sociais. Mas, como tal pretensão era sempre recusada por meio de várias manobras, no mais das vezes os indivíduos mais sagazes de uma dada sociedade socorriam-se, por conta de suas pretensões, do recurso do estado de louco, bobo ou palhaço para mais comodamente agredirem e transgredirem o convencional senilizado e tudo por conta da (s) mudança (s) ambicionada (s). A análise supra conta ainda com o recurso do itálico, que destaca a expressão arrematante do trecho – testamentos presidenciaes. Dissimulando descompromisso ou imparcialidade (posição de cronista), Tímon afirma aquilo que exatamente pretende negar (inversão). A sua descrição-argumentativa do processo político aponta íntima relação entre a forma escolhida de dizer e a seleção conteudística, mostrando que o descrever possui o seu lado opcional, a sua dimensão de compromisso. Como se vê, os adjetivos inicialmente destacados e semanticamente considerados aparecem no texto, qualificando os designativos que configuram o mau exercício político atinente ao contexto. É nessa confluência que o texto vai signi-fazendo o contexto até que aquele seja a representação deste (concepção de mundo). Prosseguindo-se, segue a transcrição: O Snr. Montalvão de Mascarenhas, mal que se viu installado no governo e no paço, desapressado da importuna e constrangida hospedagem do seu illustre antecessor, fez consigo termo de verificar bem e conscienciosamente a sua posição política e particular, para dahi lançar as suas contas e proceder ulteriormente como dictassem os seus interesses, quero dizer, os da Província, dos quaes um bom presidente não sabe nem é capaz de separar os proprios. (LISBOA, 1852, p.129)
Aqui o peso irônico recai e é denunciado sobretudo pelos termos e expressões de verificar bem e conscienciosamente a sua posição política e particular. Os termos bem e conscienciosamente são usados em atitude de reforço para realçar única e exclusivamente o lado individual da ação representada, pelo que os termos para o diante política e particular não aparecem com marca opositiva individual x social, antes como, sinônimos (ações identitárias). Assim, a conjugação substantivo x advérbio denota consciência cuidadosa no plano individual referente à manutenção do processamento do mau exercício político (injusto e arrasador), e não consciência escrupulosa em relação ao bom exercício político ao nível social. O que ora se expende é ratificado ainda pelos termos interesses e Província, onde a inicial maiúscula do segundo substantivo evoca mais a idéia de coletividade que uma mera observação às regras ortográficas. Para tanto, basta que se coteje Província com o possessivo seus, que precede o primeiro termo em questão.
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A ação política é colocada, no seu desenvolvimento, de acordo com os interesses individuais e/ou com os interesses da elite minoritária (evocação do nepotismo) jamais de acordo com os interesses do povo e/ou da maioria deste. A expressão quero dizer é explicativa e aparece como ênfase à aura irônica previamente instaurada e esparramada no trecho. As vírgulas usadas antes e depois representam a compulsória entonação, o que auxilia infinitamente a repassagem da proporção atitudinal de Tímon. Em verdade, é um exemplo de infiltração da enunciação no enunciado como deve ser. O complemento restante do trecho: dos quaes um bom presidente não sabe nem é capaz de separar os próprios, enquanto parte da coordenação sintática para construção do sentido do enunciado, homologa a extensão irônica de Tímon, onde se apreende uma perfeita dissintonia intencional entre o posto e o pressuposto. Malgrado a noção opositiva, apreende-se a intenção reflexiva pelo confronto entre o bom e o mau presidente. A dimensão irônica agasalha ao mesmo tempo dois matizes que se interferem para melhor representar a intenção tímoniana – paródia e humor. Considerando-se a totalidade do trecho tem-se a revelação da verdade pelo relevo do aspecto negativo da situação (ação política). Trata-se de uma atitude cômico-séria. No dizer de Bergson é urna transposição lingüística. É, pois, neste limite que o cômico se irrompe e o risível se estrutura para escavar o espaço da ironia, do humor, da sátira, da paródia e em várias dosagens. Na expressão um bom presidente, o artigo indefinido (morfema) ao mesmo tempo que remete o discutível e confrontável para Montalvão de Mascarenhas, remete também para informações anteriores/posteriores constantes a nível de posto ou pressuposto respeitante ao teor caricatural de outras personagens detentoras do poder maior, confeccionadas por Tímon. É o cotejo do aspecto cômico com os demais aspectos encontráveis em tudo e em todos no jogo das relações homem/ homem/mundo. Por conta disso, é a paródia da paródia, isto é, coexistência de dois textos ou de duas tessituras paralelas interferentes e dependentes, que faz fluir para ser fruído o texto do texto, no texto, pelo texto. Vale destacar que Montalvão (protótipo do mau presidente), semelhantemente aos demais de sua estirpe, está sempre voltado para a ação política em favor de seus interesses. A política, assim exercida, vê nesses interesses os da comunidade, o que não é nem falso nem verdadeiro, na medida em que tem procedência na imprevisibilidade peculiar ao Homem. Por essa óptica, os interesses sociais são exclusivamente particulares dos governantes e é nessa concepção de homem público que repousa, primeiro o cerne da manutenção do mau exercício político. Montalvão de Mascarenhas é um modelo de governante que já existiu, existe e existirá, o que só depende do consentimento popular. Forma e motives não estão em questão e nem é preciso. A título da ampliação do que se pretende ratificar, segue o trecho: “Este de sua parte dedicouse de todo coração a resolver o seguinte problema: obter o diploma de bacharel com o menor estudo, e com a maior despeza possível.” (LISBOA, 1852, p. 149) O plano irônico aqui se apresenta com sabor visivelmente satírico. A encarnação do tipo serve para ridicularizá-lo de modo profundamente extensivo por conta do objetivo pré-estabelecido – retratar o mau exercício político para destruí-lo em favor de um procedimento novo e adequável aos anseios da maioria social. Assim, com base numa pintura exata da verdade concebida, o cômico flui, destacando-se, e tudo porque já se encontra embutido no modelo rascunhado. No caso vertente, o satirista Tímon percebe e estrutura o tipo, salientando a visível deformação com objetivo de garantir a sustentação de sua tese. Paralelamente, facilita a apreensão da totalidade em crítica (por comparação) em favor da conscientização e devida repreensão indispensáveis, dirigidas a dominadores e a dominados. Desse modo, o esboço do barechal (Afrânio) releva a má atitude dos governantes a propósito da cidadania. Em menor escala, releva também o mau do direito/dever político processado e efetuado pelos governados no tocante ao consumo passivo, pelo que endossante da ideologia dominante. No caso, diz respeito aos critérios da escolha de bolsistas da Província
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(protecionismo). Acresce-se ainda, como saliência do objeto ridicularizado, a visão falseada ou dissimulada do molde intelectual como reflexo da má atitude política no prioritário sistema de um governo sério educação/cultura/instrução. Assim é, pois, a partir do expendido, que o irônico se processo estruturando o cômico, que reclama o riso (júbilo pelo desejo de renovação). Trata-se, pois, de uma crítica pelas malhas do “fazer pouco”; logo, é troça. Esta, enquanto parte da sátira, é caricatura. A caricatura é uma amostra dolosa ou propositada da deformação para troçar e troçando ou ironizando, Tímon vai afirmando o esclerosamento da ideologia dominante por conta do escopo pretendido – desvelar a dimensão do mau exercício da atividade política. Por esta trilha aspira à morte desse mal (contra ideologia) efetivado por dominantes e dominados (cada um a seu modo) Em suma: a afirmação/negação simboliza o extermínio do mal potente, porque grassante ou contaminador pela falta de contestação, que é já uma forma de endosso. Mas não se deve esquecer que, à proporção que o satirista afirma, nega e vice-versa, numa visão invertida de mundo não é senão a estruturação do humor, que é um matiz irônico. No caso, a afirmação/negação requer o riso de júbilo no afã do renascimento. Ademais, é um modo de formar uma consciência que bem pode desembocar na formulação de uma contra-ideologia. Esta, uma vez intuída e endossada pela maioria social, bem pode trabalhar com mais eficácia na direção da reformulação aspirada. Numa operação desse quilate importa ressaltar que a retórica, enquanto argumentação utilizada por Tímon, prova ser um método possível e indispensável na comunicação ou na informação. Nessa altura é que se compreende quão valiosa e útil é a complexidade da linguagem. O Jornal de Tímon, enquanto comunicação política, é um texto satírico (irônico) por excelência e um excelente exemplo de estruturação argumentativa (rede de relações que fazem o texto), Por intermédio dos níveis maléficos enfocados é que Tímon, sustentando sua tese, dialoga com o leitor na esperança de persuadi-lo e arrancá-lo da passividade em que se encontra para, juntos, refletirem sobre o mal do caráter político em suas nuanças. No caso em discussão, a incompetência, acrescida de atitudes similares, a saber: vaidade, sandice, engodo, desmando, desrespeito, perdularismo, ganância – geradoras de crise – são postas em estado risível em favor de mudanças. Retomando o trecho, destaquem-se marcas linguísticas que testemunham a enunciação, corroborando assim o até agora discorrido: menos estudo e maior despeza. Esse jogo de contrários complementares (noção oximorizada), permitido pela complexidade da linguagem, instaura e sustenta uma dimensão irônica que, em primeiro tempo, se gradua satírica e, por último, pormenoriza-se caricatura, O primeiro nível remete para a fragilidade de conhecimento do bacharel (Afrânio), o que indica tratar-se de um bacharel arranjado, negociado (de direito, não de fato). Pelo despreparo, seu conjunto de atitudes mais as circunstâncias contextuais encarregam-se de tecer o volume caricatural que se lhe torna peculiar, assegurando a universalidade do riso daí resultante – riso carnavalesco. A segunda expressão menor despeza, enquanto parte do paralelismo já aventado, assinala prodigalidade, alienação e inércia com ranço de nepotismo, na medida em que recebia obséquios do governo da Província durante seu período de “estudante de direito” em Olinda. Assim, o bacharel é um tipo linguisticamente representado para reflexão de um dos níveis do mau exercício da atividade política. A utilização do termo obter também aponta na mesma direção, na medida em que é empregado no sentido do ganho fácil, “generosidade”, e não no sentido de progresso intelectual. O destaque que segue é um exemplo que encerra mais claramente uma particularidade curiosa constante na totalidade textual – a conjunção de dois ou mais degraus irônicos: “Desembargado que seja o novo presidente, ficão para logo sabidas como que por milagre a sua pátria natal, a sua família, as suas mais intimas relações, e toda a sua vida tanto publica como particular.” (LISBOA, 1852, p. 140) Pela estruturação sintagmática percebe-se o entrecruzamento de dois planos irônicos – o humor e a caricatura, confirmando de resto a profundidade e a extensão irônicas que se vem alegando no que diz respeito à feitura textual. No caso em exame, a enunciação se assinala em primeiro plano, sobretudo pela tendência à meticulosidade. O mal enfocado é mostrado a partir da interiorização factual. Com a ânsia da clareza,
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aponta o modo (ação) como o grupo ligado ao poder sempre recebia os presidentes nomeados (não eleitos) para a província. Entretanto, repare-se bem, a crítica objetivada (pedido de reflexão) não recai necessariamente sobre o grupo de apoio ou de sustentação do poder, mas antes sobre a maneira de tomada de atitudes do grupo em questão. É o particular processando o universal. Por conta disso, as atitudes enunciadas carregam um ressaibo de naturalidade (evocação da inerência do princípio do bem e do mal na natureza humana) como se fossem inalteráveis ou corretas, no que ganham um tempero de imparcialidade. Como transparência de sua intenção, linguisticamente, vale-se Tímon das expressões ficão para logo sabidas (= imediatamente) por milagre (= ardil, perversão, rapidez na sondagem). É o jogo que aponta todos os meios como válidos para se alcançar o desejado. O seguinte trecho complementa o afirmado: “Feito este primeiro estudo do homem, tratase de indagar os seus sentimentos politicos e moraes, o seu caracter, o seu genio, o grão de sua inteligencia, seus gostos, e mais que tudo o seu fraco.” (LISBOA, 1852, p. 140) A expressão inicial feito este primeiro estudo do homem (= observação cuidadosa ou anatômica dos ângulos humanos que por analogia servirão aos propósitos do inevitável ou indispensável grupo rondante do poder de qualquer regime político), aponta o maquiavelismo das ações desse grupo. Com o registro de sequência enunciativa fica comprovado que a realidade dessa ação política é mostrada pelo ranço das minúcia (s) e que, de fato, a crítica se investe de imparcialidade, como prossegue de forma indicativa a expressão trata-se de indagar. Aqui a partícula se ofusca a determinação do sujeito, emprestando ao fato comentado uma aura de retidão e justiça. Com tal procedimento, Tímon assume a atitude de moralista com o frontispício de um cientista sociopolítico. Essa visão de ares indiferentes mas com apego à particularidade (conforme utilização do artigo definido o (s) associado ao pronome possessivo seu) denuncia humoristicamente uma das manobras da ideologia dominante que procura sempre unificar e garantir os interesses da classe dominadora. No caso vertente, de conformidade com os dois trechos em questão, fica claro que os reais interesses sociais são logo, a partir de articulações dessa natureza, relegados ou arquivados em favor da potente minoria. Essa, de uma forma ou de outra, por esse ou aquele motivo, quando insistente e ininterruptamente assim age, é porque tem o endosso da maioria social. Quanto à nota caracitural, prende-se ao perfil de um tipo grupal que sustenta e é sustentado pelo poder. A forma como Tímon o retrata faz aflorar o ridículo nele incrustado, refletindo o grotesco da ação bajulatória. O conjunto expressivo e mais que tudo (= sobretudo, principalmente) norteia e assegura a direção ora afirmada. O destaque abaixo selecionado procura, num crescendo, sustentar a tese proposta por Tímon, pelo que atenta de modo sutil para a diferença entre ter/ser: O pobre do pretendente vivia entretanto a cortejar o seu partido, e não sahia de palacio, sendo força confessar que os nossos dignos presidentes o recebiam com muita deferencia, sem duvida dominados pela importancia da sua elevada posição social, quero dizer, pela sua riqueza, que como se sabe, é um grande elemento de ordem, e dá aos que a possuem o caracter, o nome, e todas as virtudes de homem de bem. (LISBOA, 1852, p. 158)
O adjetivo pobre precedido do artigo definido o, que o substantiva, reporta-se à personagem anteriormente delineada (coronel Santiago). É um tipo que funciona como referente da relação ter/ ser na visão de mundo repassada pela ideologia política do grupo detentor do poder. Paralelamente a Santiago, outras personagens são referenciadas na mesma tônica no propósito de reforçar o objetivo pré-estabelecido. A totalidade do sentido assim esboçada é mais uma variante do processo de estruturação do mau exercício político. A encarnação dessa tipologia objetiva apontar o seu grau de ultrapassagem do instituído e mostrar que tal prática se apresenta incompatível com os interesses da maioria social. Assim, o termo pobre é empregado para indicar a direção do nível do ser do coronel Santiago, o que pode ser comprovado tanto pelo rascunho das suas atitudes políticas como das mesmas atitudes referentes aos tipos a ele semelhante (que lhe completam e são por ele completados) traçados por Tímon para aclarar e sustentar a deformação política em causa (posição especular).
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A conjunção adversativa entretanto, reforçando a questão num propósito de afunilamento conclusivo, aponta a real mobilização dos aspirantes aos quadros dos partidos políticos (facções) e o posicionamento desses, face à questão ter/ser. Com tal aclaramento, Tímon pretende convidar o receptor para uma reflexão (dominados x dominadores) a propósito da formação e/ou ampliação dos quadros dos partidos políticos. Para tanto, sugere que o importante é buscar o Homem no homem em favor de um real compromisso e de um nível de abnegação partidária condizente com as aspirações da maioria social. A expressão sem dúvida (= seguramente) direciona para o rumo do aclaramento pretendido constatável na seqüência discursiva que condiciona alta posição social (lastro econômico ou plano de ter) ao plano do ser. Vale ressaltar que o sujeito ideologicamente assim construído e imposto não o é de fato, apenas está a ser, pelo que é um processo pernicioso para o desenvolvimento comunitário ou social. O ter e o ser não são planos incompatíveis, apenas são diferentes. Entrementes, na visão político-partidária aparecem sempre como se fossem necessariamente acoplados, isto é, aparentando atrelamento. Assim, não é o simples ter econômico que dá a dimensão do ser político do sujeito (humanização), numa proposta de poder temporal ou ideológico. A expressão denotativa de retificação logo a seguir quero dizer indica bem a sugestão oximorizada constante do paralelo estabelecido por Tímon para arrematar na impertinência da igualdade (riqueza = virtude) proposta como legítima pela classe dominante e assim consumida pelas classes dominadas. O emprego da expressão que como se sabe (= prática corrente) convida à reflexão de que não é necessariamente o poder econômico que dá ao homem as qualidades de Homem, no caso Homem público. Por essa vertente, salienta mais um grau de deformação do mau pensamento político, que é já o mau exercício político, quando afirma, para negar, que o homem de teres é o homem de bem. Como reforço, põe tal expressão em itálico no propósito de assegurar a carga irônica almejada numa expressão per contrarium. Assim, mostra que o cerne da questão do mau exercício político está na confusão que se faz entre homem de bens e homem de bem no instante da formação das agremiações políticas e do respaldo eufórico a elas dado pelo massa (aglomerado passivo, irracional e escravo). O destaque a seguir desenha um perfil das festas partidárias que se desenrolavam com nota de patriotismo e com marca de massificação: Repletos e esquentados, os nossos heroes, em número pouco mais ou menos de quatrocentos, inclusive os casacas, sahiram a percorrer as ruas, música na frente, atacando-se foguetes a cada canto, levantando-se de continuo desentoados vivas e morras, e apedrajando-se para completar o folguedo, as vidraças de uma ou outra casa habitada por adversarios. (LISBOA, 1852, p. 187)
O rascunho desse modo de festividade maranhense mostra a um tempo a repassagem e o consumo de ideologia faccionária dominante, marcando bem a sustentação da prática demagógica pela massa emocionada, a seu modo assegurada pelos dominadores por meio de achaques periódicos de paternalismo (período eleitoral). Na impossibilidade de ser diferente, uma das características da massa é se esquivar da procura de soluções dos problemas sociais devido a sua incapacidade de raciocinar. Por conta disso, a procura de soluções próprias do estado de povo é substituída pelo uso de estereótipos fornecidos pelo líder demagogo e também por assuadas ou revoltas apaixonadas. A referência à gritalhada em termos clicherizados e aos quebra-quebras convenientemente orientados reforçam a assertiva. O denotativo inclusive (= sobretudo) referindo-se aos casacas aponta o lado trabalhado da massa pelos demagogos para lhes servir de apoio e garantia nos instantes convenientes além de espelho para o restante da massa. A expressão de contínuo (= constantemente) aponta assinalando o caricatural numa dirigida manifestação de massa. O indicativo das presentes afirmações está logo no início com a expressão ironicamente definidora os nossos, que se reporta ao “heroísmo irresponsável” advindo das emoções da massa demagogicamente dirigida ou insuflada. A expressão para completar o folguedo dá a dimensão da responsabilidade e do malefício no desenrolar de um processo político cuja maioria social assim se reparte: de um lado, hábeis demagogos e, do outro, um contigente social imensurável adestrado convenientemente para consumir de maneira passiva a ideologia dominante. Desse modo, o referido
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contingente social retarda cada vez mais a sua própria ascensão de massa (ilógica e caótica) a povo (lógico, organizado) com capacidade de escolha e exigência. Além disso, a expressão em causa evoca e repassa uma aura carnavalesca clara no rascunho caricatural da única forma de “mobilização” da massa, que é sempre em favor de um “messias” ou indivíduo carismático. Repletos e esquentados são termos que somados carregam uma idéia de farmacon respeitante à massa (pão, vinho, divertimento), idéia aliás sugerida em todo trecho, porque se encontra recheando todo o texto em análise pelo poder da linguagem usada intencionalmente pelos demagogos. Esses objetivam alcançar a arruaça faccionária para mais comodamente transferir a responsabilidade dos passíveis acontecimentos para a orla da revolta popular. Trata-se; pois, de uma dupla manobra ou de um duplofarmacon – o farto banquete e o comício veemente com tempero de divertimento (liberação). É o grito e o estouro da boiada detectados e documentados posteriormente pelo também jornalista Euclides da Cunha na questão dos Canudos. O seguinte trecho procura fornecer de forma irônica a noção exata do dinamismo infrutífero das agremiações políticas que se formam sob o pretexto de solver os problemas sociais. Eis porque os nossos partidos, renovando a trama de Penelope com o fim moral de menos, fazendo e desfazendo, andando e desandando, n’um continuo e monotono vai-vem, se transformam, corrompem, gastam, e dissipam inutilmente, nos esforços incessantes e estereis da acção e reacção, ou do fluxo e refluxo que os leva, traz, arrasta, confunde, baralha e submerge. (LISBOA, 1852, p. 241)
A expressão eis porque introduz a mimésis da dinâmica do partidarismo (facção) no seio de uma sociedade pouco afeita à eficaz participação política. Para que a noção de dinanismo ganhe mais força na retratação, Tímon, em primeiro plano, a compara de modo inferiorizado com o mito de Penélope na sua longa espera. A expressão de menos remete a questão para o grau e a esfera de inferiorização. As formas gerundivas (com e sem prefixo) operam a intenção dinâmica pretendida por Tímon, onde o mal é rascunhado em princípio por uma óptica de inutilidade (mal = inútil) e a expressão n’um continuo garante a idéia de intermitência favorecendo a instauração do nível satírico. O substantivo vai-vem reforça a idéia de dinamismo emprestada à tessitura do desenho do perfil partidário. Pela falta de objetivo e programas definidos, a noção de partido é de pronto também inferiorizada, pelo que é conduzida apenas a idéia de facção. O advérbio inutilmente em acordo com o objetivo estereis mostra o estado estacionário e caótico no qual se encontram as agremiações políticas desde sua organização. São facções amplamente movimentadas, mas sem história. Os termos acção x reacção, fluxo x refluxo, com a ajuda dos prefixos, reportam-se ao tamanho das vicissitudes na prática do exercício político. Apontam, outrossim, o grau de circularidade infrutífera numa movimentação partidária e assinalam ainda a falta de seriedade e incompetência que norteiam as organizações que se propõem interessadas na solução dos problemas de ordem social. A utilização dos verbos no presente do indicativo completa a repassagem da idéia de dinâmica ineficaz. É apontando tais deformações que Tímon satiriza o mau exercício político em favor de uma reflexão que venha, de fato, reformular, em primeira instância, pela inibição do mau exercício da atividade política. Como se vê, é descendo à realidade dos fatos historicamente processados na comunidade que Tímon tece todo um conjunto irônico, onde vários matizes da ironia se interpenetram, se cruzam ou se conjugam para interpretarem o pretendido – a dimensão do mau exercício da atividade política (predominância). Referências AFANASlEV, V. Fundamentos de filosofia. Trad. Edney Silvestre. Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 1968. ALSTON, William P. Filosofia da linguagem. Trad. Álvaro Cabral. Rio de Janeiro, Zahar, 1972. ARISTÓTELES. Arte retórica e arte poética. Trad. Antonio Pinto de Carvalho. Rio de Janeiro, Ediouro, s/d. BAKHTIN, Mikhail. Marxismo e filosofia da linguagem. Trad. Michel Lahud et al. São Paulo, Hucitec, 1979.
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O ENSINO DE LÍNGUA INGLESA: A LEITURA DE GÊNEROS TEXTUAIS COMO PROPOSTA DE LETRAMENTO Marília dos Santos BORBA (Universidade Estadual de Santa Cruz)
RESUMO: Este artigo, de natureza exploratória e bibliográfica tem como tema central a utilização da teoria dos Gêneros Textuais nas aulas de língua estrangeira - LE em escolas públicas brasileiras com o propósito de Letramento. Apresenta reflexões acerca da importância do trabalho da leitura nas aulas de línguas, enfatizando seu papel social como instrumento primordial à formação de cidadãos com postura crítica e participativa. A fim de despertar interesse dos profissionais da educação desta área para novas formas de pensar sua prática pedagógica, uma abordagem teórica dos conceitos Gêneros Textuais e Letramento é descrita. Em seguida, um paralelo entre tais temas e a função social da leitura destaca como essas abordagens estão correlacionadas ao ensino de LE, bem como o papel fundamental do professor nesse contexto. Após tais discussões, tal estudo busca reforçar a necessidade do profissional de LE em redimensionar caminhos para contribuir de forma significativa ao letramento dos aprendizes. PALAVRAS-CHAVE: Gênero Textual; Letramento; Leitura.
ABSTRACT: This article, of exploratory and bibliographic nature has as main theme the use of Textual Genre theory in foreign language - FL classes of Brazilian public schools with the literacy purpose. It presents reflections about the importance of reading work in language classes, emphasizing social role of it, as an essential tool to the formation of a citizen with critical and active posture. In order to awake interest of education professionals in this area to new ways of thinking their pedagogical practice, a theoretical approach is described about Textual Genre and Literacy concept. Next, a parallel among these themes and reading social function detach how these approaches are related to English Language Teaching, besides fundamental role of teacher in that context. After these discussions, these study intends to reinforce the necessity of foreign language professional in changing ways in order to contribute of a significant way to the learners` literacy. KEY WORDS: Textual Genre; Literacy; Reading.
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1. Introdução O presente artigo trata da utilização da teoria dos gêneros textuais nas aulas de língua estrangeira em escolas públicas brasileiras com o propósito de letramento. Tenciona despertar o interesse de profissionais da área de línguas que buscam sempre repensar, inovar e melhorar a sua prática como verdadeiros educadores. Tal trabalho busca contribuir para uma reflexão acerca da importância de trabalhar a leitura em língua estrangeira bem como a sua função destacando o papel social que a própria leitura traz como ferramenta indispensável para formação de um cidadão crítico e participativo. Como professora de língua inglesa da rede de ensino público brasileiro, percebo a grande dificuldade que os aprendizes apresentam na compreensão e interpretação de textos, e, portanto, a imensa necessidade de dar atenção às suas necessidades, buscando tornar as aulas de leitura em Língua Estrangeira - LE mais significativas, interessantes e que representem aplicabilidade na vida cotidiana desses aprendizes, potencializando assim seu próprio aprendizado. A pertinência conceitual dos gêneros textuais e do letramento no processo da leitura em Língua Inglesa – LI se dá em decorrência do viés social da linguagem e da leitura, no qual texto e leitor dialogam construindo significados a partir de um engajamento discursivo (PCNs - Parâmetros Curriculares Nacionais Brasileiros, 1998), pois, o enunciado tem sentido através do outro. Para atingir este escopo, considero que os gêneros textuais por apresentarem a característica de manifestar concretamente a linguagem, ou seja, refletir o que acontece no cotidiano de leitura dos aprendizes, estes podem concorrer ao aluno o desenvolvimento desse engajamento discursivo e tornar as aulas mais interessantes e assim, ajudar a desenvolver com mais eficácia e significado a prática da leitura em LE. Outro motivo relevante que me inspirou a realizar este trabalho foi justamente a proposta apresentada pelos PCNs (2001). Esse documento sugere que ler e compreender uma língua estrangeira são um meio de acesso à cultura, à tecnologia e de abertura para o mundo e, que aprender a ler é aprender a comunicar-se, é ter uma leitura de mundo. Essas informações me levaram ao estudo da teoria dos gêneros. Segundo Rojo (2005), esse tema tem sido pesquisado devido, justamente, aos novos referenciais nacionais de ensino de línguas, que indicam os gêneros como objetos de ensino, e mostram a relevância de considerar as características dos mesmos na leitura e na produção de textos. Assim, também com a perspectiva de contemplar o conceito de letramento que é o estado ou condição de quem lê e escreve atendendo de maneira adequada às intensas demandas sociais através do uso amplo e diferenciado da leitura e da escrita (Soares, 2004), para o aprendiz do ensino fundamental, este trabalho busca construir uma nova dimensão pedagógica utilizando para tanto a leitura de gêneros textuais nas aulas de línguas, no intuito de propor transformações necessárias ao processo de ensino aprendizagem, além de proporcionar aos sujeitos nele envolvidos uma ampla “visão” de mundo para interagir no mundo social, como é destacado nos PCNs: “A utilização em sala de aula de tipos de textos diferentes, além de contribuir para o aumento do conhecimento intertextual do aluno, pode mostrar claramente que os textos são usados para propósitos diferentes na sociedade.” (PCN Língua Estrangeira 5ª a 8ª séries, 2001, p. 45). Portanto, considerando tais perspectivas e implicações, este artigo de natureza exploratória e de cunho bibliográfico busca refletir e discutir aspectos, no que tange ao processo de ensino aprendizagem de inglês como língua estrangeira, estabelecendo uma relação entre o conceito de letramento e gêneros textuais. Partindo de tais pressupostos, discorrerei inicialmente sobre o conceito de gêneros textuais, sua importância e utilização em aulas de leitura em LE. Em seguida, abordarei o tema letramento e a sua importância no contexto social. Na terceira parte, farei um paralelo entre gêneros, letramento e a função social da leitura, sinalizando como tais temas estão correlacionados ao ensino de língua estrangeira bem como o papel relevante do professor neste processo de ensino e aprendizagem. E, finalmente, apresentarei as considerações finais, onde serão discutidas algumas questões apontando conclusões e reflexões.
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2. Fundamentação teórica 2.1. O que são gêneros textuais? Estudos realizados por vários pesquisadores apontam o conceito de gênero textual como um paradigma de manifestação concreta da linguagem. Bakhtin (1997) declara gênero textual ou gênero discursivo como um “enunciado de natureza histórica, sócio-interacional, ideológica e lingüística, relativamente estável.” Esse conceito pioneiro compartilha com outras definições no decorrer dos anos, confirmando predições e contribuindo para novas análises. Segundo Swales (1990), gêneros textuais são eventos comunicativos, com propósitos compartilhados por membros de um determinado grupo, ou seja, uma comunidade discursiva. Bhatia (1993) define-os como um evento comunicativo reconhecível, caracterizados por uma variedade de propósitos comunicativos identificados e mutuamente compreendidos por membros da comunidade profissional ou acadêmica na qual ocorrem; são formas de ação tática, são ferramentas selecionadas adequadamente a serviço de algum objetivo. Marcuschi (2002), por sua vez, entende que são ações sócio-discursivas para agir sobre o mundo e dizer o mundo, constituindo-o de algum modo; noção propositalmente vaga para referir os textos materializados que encontramos em nossa vida diária e que apresentam características sóciocomunicativas definidas por conteúdos, propriedades funcionais, estilo e composição característica. Pode-se afirmar desta forma que gêneros textuais são eventos históricos de natureza social, ideológica e interacional que são construídos a partir da identidade cultural de determinado grupo que usa, reconhece e compartilha uma mesma linguagem. Assim, textos como cartas, bulas de remédio, notas fiscais, e-mail, anúncios, convites, cardápio, placas, etc., são exemplos de gêneros textuais, ou seja, são textos que refletem a vida real e que possuem um contexto social e cultural. No Brasil, o estudo das teorias de gênero tem ocorrido a partir de 1995, devido em parte aos novos referenciais nacionais de ensino de línguas (PCNs de língua portuguesa e estrangeira), que indicam os gêneros como objeto de ensino ou destacam a relevância de considerar as características dos gêneros na leitura e na produção dos textos (Rojo, 2005). Esses referenciais novos também mostram que o uso de textos que manifestam concretamente a linguagem, como é o exemplo dos gêneros textuais podem proporcionar ao aluno, o desenvolvimento de uma visão diferenciada em relação às aulas de leitura em LE. A relevância do estudo de tais eventos para o ensino, especialmente para o ensino de línguas é notória, pois funciona como um recurso da linguagem e também como contribuição ao trabalho realizado em aulas de leitura em LE mais especificamente. Isto porque, como já mencionado anteriormente, os gêneros textuais representam a linguagem da vida e da sociedade, por isso, refletem as intenções, os propósitos reconhecidos por determinada comunidade discursiva; comunidade discursiva que pode ser definida como um grupo social de estrutura cultural que compartilha atividades discursivas em comum. Essa característica de refletir a linguagem da vida e da sociedade permite utilizar fatores importantes e fundamentais que auxiliam na análise e interpretação de textos que podem tornar as aulas de leitura em LE muito mais significativas e interessantes. Dar atenção a aspectos como elementos do contexto em que o texto é produzido (assunto, propósito, destinatário, público-alvo, fonte, intenção e organização), podem sim ter muito mais sentido para os aprendizes de línguas, do que o ato de traduzir meramente o texto. Os gêneros discursivos, por assim dizer, só podem ser compreendidos dentro do contexto de sua produção. Como Swales (1990) destaca: um texto não pode ser interpretado apenas pela análise de elementos lingüísticos e sim, pelo seu contexto ou até mesmo sob a ótica de cultura dos participantes da comunidade discursiva. Argumenta que o conhecimento do texto em si não basta para quem precisa redigir. O conhecimento de gênero é que vai dar um norteamento significativo a essa prática, pois, depende de conhecimentos além daqueles relevantes ao próprio texto. Roxane Rojo (2005) também enfatiza que os gêneros não podem ser compreendidos, conhecidos ou produzidos sem referência aos elementos de sua situação de produção. Por isso, ao
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buscar a compreensão de um texto, os contextos social e cultural devem ser levados em consideração, devem ser analisados e fazer parte dos critérios para análise do mesmo. Dar atenção apenas aos aspectos lingüísticos ao interpretar um texto, pode não possibilitar o sucesso desse processo, é necessário perceber essas outras características que constituem o texto. Por isso, a escolha da utilização de gêneros textuais para aulas de leitura em LE pode permitir que o aprendiz perceba que ele pode utilizar elementos básicos para auxiliá-lo na própria prática de ler e de entender melhor qualquer texto, utilizando para tanto o que ele já traz consigo, o seu próprio conhecimento prévio, informação, experiência, cultura, etc. Essa maneira de trabalhar a leitura em LE pode também proporcionar ao estudante a idéia de capacidade em realizar algo, elevando sua autoestima e estimulando seu aprendizado. Em nossos contextos de ensino, podemos pensar em oferecer aos nossos estudantes esse tipo de prática de análise textual, em que o cenário social e cultural no qual o texto está inserido é fator preponderante no momento da compreensão do mesmo. Portanto, a utilização de gêneros textuais em aulas de línguas, como salienta Ramos (2000), funciona como uma ferramenta pedagógica de grande poder, já que permitem ao professor compreender o discurso através de seu propósito e contexto social além de seu conteúdo lingüístico, para ensinar de forma prática e objetiva aos aprendizes a reproduzir o seu próprio discurso. Assim, essa prática ganha sentido e favorece em potencial a postura participativa do aprendiz diante de um texto, mesmo quando escrito em língua estrangeira. Mesmo porque, o aprender a ler em outra língua significa desenvolver também a capacidade de “desconstruir” o texto a partir da utilização de sua própria faculdade como sujeito proprietário da linguagem, com o propósito de trazer significado real para os textos que se propõe interpretar sob a sua condição de leitor, ou seja, descobrir maneiras de (re)construir significados a partir do texto, e não utilizando a tradução palavra por palavra, termo a termo. Além disso, os gêneros textuais em aulas de leitura em LE podem facilitar a compreensão e análise de diferentes textos, pois, contemplam o princípio básico de que só se assimila bem algo, e mais rapidamente quando há sentido no que se está aprendendo e as necessidades estão claras, ou seja, a aprendizagem precisa apresentar-se sempre significativa. 2.2. O que é letramento? Para Magda Soares (2004), letramento é uma palavra nova no vocabulário da Educação e das Ciências Lingüísticas, surge no discurso de especialistas dessas áreas na segunda metade dos anos 80. Vários estudiosos como Cato (1986), Verdiani (1988), Kleiman (1995) fazem menção ao assunto, conceituando, diferenciando e ilustrando em suas obras publicadas. Toda palavra nova, pressupõe novos conceitos, novas maneiras de pensar. A palavra letramento surge a partir de um contexto das ciências da linguagem em que se busca compreender o fato, idéia ou maneira nova de conceber a escrita no mundo social, trazendo assim a necessidade de entendimento e utilização desta nova palavra. Contudo, não há apresentação de conceituações da palavra letramento em dicionários conhecidos da Língua Portuguesa como o Aurélio. Segundo Soares (2004), ela aparece no intitulado Dicionário Contemporâneo da Língua Portuguesa de Caldas Aulete, editado há mais de um século, onde é caracterizada como uma palavra “antiga, antiquada”, com o significado de “escrita”. Outras palavras do mesmo campo semântico sempre foram familiares: analfabetizado, analfabeto, alfabetizar, alfabetização, alfabetizado, letrado e iletrado. O termo letramento com o sentido que hoje lhe é atribuído foi retirado certamente da versão para o Português da palavra literacy, da Língua Inglesa, que etimologicamente vem do latim littera (letra), com o sufixo - cy, que denota qualidade, condição, estado, fato de ser, definido por Magda Soares: [...] literacy é o estado ou condição que assume aquele que aprende a ler e escrever. Implícita nesse conceito está a idéia de que a escrita traz conseqüências sociais, culturais, políticas, econômicas, cognitivas, lingüísticas, quer para o grupo social em que seja introduzida, quer para o indivíduo que aprenda a usá-la. (SOARES, 2004, p. 17)
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Assim, um indivíduo que se torna letrado é aquele que lê e escreve atendendo de maneira adequada e coerente as intensas demandas sociais através do uso amplo e diferenciado da leitura e da escrita. A capacidade de letramento é, contudo, algo inerente a qualquer ser humano, pois cada pessoa carrega consigo seus próprios conhecimentos prévios e de mundo e que permitem atingir este estado, o de tornar-se letrado. Magda Soares defende ainda que “letramento é, pois, o resultado da ação de ensinar ou de aprender a ler e escrever: o estado ou a condição que adquire um grupo social ou um indivíduo como conseqüência de ter-se apropriado da escrita” (2004, p. 18). Antes de novos estudos acerca do “letramento” serem realizados, o termo usado para o indivíduo que não conseguia exercer os seus direitos de cidadão em sua plenitude, não dispunha da tecnologia do ler e do escrever, o indivíduo marginalizado pela sociedade, e o que não tinha acesso aos bens culturais da humanidade, das sociedades letradas, era “analfabeto”. Hoje o termo emergente utilizado para as pessoas que são capazes de exercer esses direitos não é “alfabetizado”, mas, sim “letrado”. Com o surgimento do chamado letramento, a importância em se analisar a capacidade de um indivíduo “alfabetizado” usar a leitura e a escrita para uma prática social, tornou-se muito mais importante e significativa do que apenas a habilidade de codificar o próprio nome. Por exemplo, ler e entender um bilhete simples demonstra muito mais as habilidades e competências que um indivíduo necessita para ser considerado participante numa sociedade do que apenas decodificar as letras. Nesse âmbito, segundo as prescrições didáticas do MEC, as habilidades requeridas pela sociedade letrada para os alunos do Ensino Fundamental, deve ser o texto que é o primeiro ponto a se considerar. E este deve ser ponto de saída (leitura) e de chegada (escrita). O texto deve ser entendido como unidade comunicativa – e significativa – por excelência. Hoje, contudo, diante do surgimento e do intenso crescimento das novas tecnologias, já se pode falar em letramentos. 2.3. Gênero x Letramento: A Função Social da Leitura A proposta de utilizar gêneros textuais em aulas de leitura em LE, com o propósito de letramento, nos leva a necessidade de compreender o significado e a função social da leitura. Os conceitos de gênero e de letramento estão intimamente ligados, já que a leitura do primeiro contempla a finalidade do segundo. Como já mencionado anteriormente, os gêneros são eventos que refletem a linguagem num contexto real, isto é, o que acontece na vida cotidiana, influenciados pelo contexto social e cultural em que estão inseridos. O uso de textos com essas características em aulas de LE auxilia o aprendiz a se tornar um indivíduo capaz de exercer suas atividades sociais escrevendo e lendo de maneira adequada e coerente, que é o objetivo primordial do que se denomina hoje de letramento. No tocante ao processo de ensino aprendizagem de línguas voltada para a leitura é importante também perceber que ao propor-se a entender um texto em língua estrangeira, o indivíduo além de utilizar-se da idéia inconsciente de organização da língua que no caso, é a sua língua materna, vai também usar dos outros meios que são inerentes a qualquer tipo de linguagem (as noções sócio-discursivas, ideológicas, históricas, de constituição de sua própria identidade, etc.). Afinal de contas, a leitura é um processo de construção de significados através da interação dinâmica entre o conhecimento prévio do leitor, a informação sugerida pelo texto e o contexto da situação da leitura. É um processo ativo, uma interação entre texto e leitor, um processo comunicativo. De igual forma a leitura é uma dinâmica sócio-interacional, ou seja, um processo dialógico da linguagem, em que o sentido se dá com o outro, num processo de porvir. (Bakhtin, 1992). Portanto, é fundamental discutir o significado e a função social da leitura no intuito de redimensionar o cenário atual da sala de aula de línguas, no âmbito da prática de compreensão e produção textual. Inicialmente, vale lembrar o conceito da origem da palavra leitura que vem do grego legei, significa colher, recolher, juntar, que no latim transformou-se em lego, legis, legere, juntar horizontalmente
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as coisas com o olhar, vemos a dimensão da leitura como instrumento educacional essencial em sala de aula. Entretanto, a palavra interpretare também foi usada no sentido de ler, mas com um significado mais profundo, o de ler verticalmente, sair de um plano para outro, de forma transcendente. Nesse sentido, a leitura tem uma conotação muito além de uma simples decodificação, ultrapassa o passar de olhos por algo, mais, vai além do visualizar, aventurando-se no desconhecido para uma plena compreensão do sentido das coisas. Tal questão é fortalecida por Clarice Caldim (2003) quando enfatiza a função social da leitura como algo de natureza transformadora e renovadora na vida das pessoas, mostrando pontos comprovadores dessa ação: A função social da leitura é facilitar ao homem compreender – e, assim, emancipar-se dos dogmas que a sociedade lhe impõe. Isso é possível pela reflexão crítica e pelo questionamento proporcionadas pela leitura. A função social da leitura é formar um novo homem. Pela leitura, o ser humano não só absorve o conhecimento como pode transformá-lo em um processo de aperfeiçoamento contínuo. (CALDIM, 2003)
A aprendizagem da leitura, portanto, possibilita a emancipação e a assimilação dos valores da sociedade. A leitura como dimensão social, forma um ser humano mais crítico, reflexivo e transformador na construção de uma sociedade com uma identidade sócio-cultural enriquecida. Desta forma, enquanto oportunidade de enriquecimento e experiência, a leitura é fundamental na formação do indivíduo e do cidadão. E esta está posta como habilidade primordial do ensino de línguas estrangeiras modernas, especialmente, quando temos o objetivo de formar leitores em língua estrangeira. A necessidade de priorizar a habilidade da leitura no ensino de língua estrangeira é de extrema importância quando construímos sentido na utilização de diferentes tipos de textos contextualizados, atribuindo um caráter de prática social, “letramento em língua estrangeira”, a fim de atender as exigências das sociedades contemporâneas em constante mudança, no entanto não implica que o professor abandone as demais habilidades lingüísticas. Collins (2003) aborda novos papéis para o texto, que foram apresentados e pautados a partir de princípios elaborados após uma experiência realizada com professores e alunos da Rede Pública de São Paulo. Essas reflexões e indagações levantadas a partir dessa experiência a respeito da prática pedagógica em aulas de língua inglesa foram despertadas e analisadas com o propósito de re-estruturar e/ou re-construir o real papel do ensino de uma língua estrangeira. Esses princípios nos oferecem, assim, uma rica oportunidade para repensar a prática do professor que trabalha a leitura em LE. Nesse sentido, a autora citada fala a respeito, por exemplo, do significado de se aprender uma nova língua, ela afirma que aprender uma nova língua significa aprendê-la para alguns propósitos sociais específicos, ou seja, é possível aprender a comunicar-se em novos contextos sem ocorrer, contudo, contato com estes e haver o estímulo para a percepção das formas adequadas de comunicação. Outro fator importante levantado pela referida autora é a respeito da motivação voltada para as necessidades e desejos de aprendizagem que quando definidas e levadas como pontos importantes nesse processo, podem tornar o aprendizado da língua muito mais eficiente e significativo. Isto porque, é fundamental que o aprendiz possa perceber sentido e aplicabilidade no que ele está aprendendo para que assimile com mais rapidez. Aponta também o texto, do ponto de vista social, como uma unidade de sentido concreta, composta de escolhas feitas com o intuito de estabelecer a comunicação adequadamente no contexto em que o indivíduo está inserido, mostrando assim que é essencial perceber que as pessoas se comunicam através de textos pertinentes a diversos contextos de comunicação. Salienta que para a comunicação ocorrer adequadamente é necessário saber escolher bem o que comporá o texto a ser escrito, levando em consideração o contexto em que o próprio aprendiz está inserido. Com isso, a autora mostra o quanto é necessário conscientizar-se de que a aprendizagem da comunicação em diferentes contextos sociais e para diferentes finalidades, envolve compreender, produzir ou reconhecer textos pertinentes e relevantes socialmente. Discute ainda sobre o importante papel do professor em buscar estimular no aluno habilidades estratégicas, no âmbito cognitivo e na construção de conhecimentos sobre a gramática, ou
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seja, no plano lingüístico para que ele possa alcançar o sucesso em seu desempenho de compreensão e produção de textos, sempre sob a perspectiva de conscientização constante sobre a função social da linguagem, em seus vários aspectos. Portanto, os princípios apresentados por Collins (2003) corroboram com as idéias apresentadas aqui a respeito do trabalho com o texto em língua estrangeira. É essencial pensar o trabalho de leitura em LE como um meio de proporcionar ao indivíduo atuação social participativa, acesso a cultura, às tecnologias, “visão” de mundo; compreender que ler na outra língua, implica também atingir um nível de (re)construção de sentido que atenda a necessidade de entendimento de forma a apreender o enunciado do texto posto; observar como os elementos do contexto em que um texto é produzido, tais como: assunto, propósito, destinatário, fonte, muitas vezes não percebidos na aula em que se utiliza o texto, estão relacionados ao conceito de gêneros textuais e que estes são elementos que precisam ser observados e utilizados nas aulas de leitura em LE. Contudo, é comum o ensino de uma língua estrangeira ser visto por grande parte dos professores como um programa que tem por função ensinar sobre a língua em si, enquanto que as “habilidades a serviço de expressões sociais”, a verdadeira construção de conhecimentos, os ricos e importantes instrumentos de comunicação são deixados de lado, são descartados, como enfatiza Heloisa Collins: A concepção de uma língua estrangeira como um conjunto de habilidades a serviço de expressões sociais geralmente não faz parte da vivência do professor de línguas. Raramente encontramos práticas pedagógicas que focalizem o desenvolvimento de capacidades que permitam ao aluno “fazer coisas” socialmente importantes com o inglês. (COLLINS, 2003, p. 136)
Nesse sentido, a prática em sala de aula torna-se limitada a um ensino voltado para os aspectos puramente lingüísticos, formais que desconsidera o valor indispensável e significativo do trabalho com o texto. Diante da diversidade de gêneros textuais (anúncios, cartas, artigos, placas, e-mail, blogs, chats, etc.), cabe ao professor conscientizar o aluno de que é necessário analisar o contexto social e cultural do texto para melhor compreendê-lo. Então, devem ser adotados como critérios ações neste sentido, como por exemplo, analisar quais as possíveis razões do escritor ao discutir determinado assunto, qual a intenção do mesmo ao abordá-lo, ou seja, despertar o aprendiz a ler nas entrelinhas. Podendo-se, assim, ir mais além da decodificação, isto é, da leitura inicial, e o aluno deve sim, ser estimulado não só a assimilar o que o texto diz, mas também como e para que diz. Conforme Moita Lopes (2001) aponta: “A leitura é a única habilidade que atende as necessidades educacionais e que o aprendiz pode usar em seu próprio meio”. No presente estudo, observa-se que a leitura proporciona ao estudante a possibilidade de aumentar seus limites conceituais. E, partindo do princípio que através da leitura em uma LE, o aprendiz terá uma exposição de visões diferentes do mundo, de sua própria cultura e de si mesmo como ser humano, além de poder inferir neste contexto e contribuir de forma significativa no desenvolvimento da habilidade de ler em Língua Materna - LM. Paulo Freire fortalece essa idéia quando declara a seguinte assertiva: “Uma questão sociopolítica está implícita aqui, posto que esta proposta de ensino de leitura em LE pode auxiliar no desenvolvimento da capacidade de letramento global do aluno da escola pública, dando-lhe uma possibilidade a mais de lutar pela transformação social.” (FREIRE, 1974). Outro fator a ser considerado na aula de leitura em aulas de LE é sobre o que o aluno já traz de conhecimento a partir de sua experiência. De acordo com os PCNs, “o que é crucial no ensino de leitura é a ativação do conhecimento prévio do leitor, o ensino de conhecimento sistêmico previamente definidos para níveis de compreensão específicos e a realização específica da noção de que o significado é uma construção social.” (PCN Língua Estrangeira 5ª a 8ª séries, 2001, p. 90) Tal observação é extremamente válida, e favorece o sucesso do processo de ensinoaprendizagem, pois mostra ao aluno que, na verdade o texto não carrega o significado por si só. Mostra que ele, como leitor traz elementos importantes tais como conhecimento, informação, emoção, experiência e cultura para o texto escrito e que contribuem de maneira grandiosa ao processo de interpretação do texto, mesmo em língua estrangeira.
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Após todo esse arcabouço de observações, resume-se que a leitura é condição primordial para que o aluno possa compreender o mundo, os outros, suas próprias experiências e a necessidade de inserir-se no mundo da escrita, e por isso, torna-se imperativo desenvolver neste a capacidade da leitura e fazê-lo ir além da simples decodificação de palavras. Assim, presume-se que a função social da leitura é requisito básico para que o indivíduo ingresse no mundo letrado e possa construir seu processo de cidadania. A leitura é, portanto, um ato social, e como tal, uma questão de cidadania. 3. Considerações Finais Este trabalho buscou discutir e refletir dentro de um quadro teórico fundamentado nas conceituações sobre gênero e letramento, o processo de ensino aprendizagem em aulas de leitura em LE, voltado para compreensão e interpretação de texto. Tratou-se de discussões de conceitos muito caros ao professor de línguas, especialmente ao professor de leitura: gêneros textuais e letramento. Reforçou-se aqui a necessidade de se olhar para os textos usados em sala de aula não como textos que encerram em si o sentido, mas com olhos mais voltados para o contexto da produção deles, bem como a construção no social da compreensão e do sentido a eles atribuídos. Como já foram mencionadas neste artigo, algumas idéias sobre gênero textual enquanto instrumento social e cultural em potencial para as aulas de línguas, já vem sendo desenvolvidas em outros trabalhos que tem a preocupação de contemplar o conceito de letramento nos aprendizes utilizando o trabalho de leitura como ferramenta para este fim. No entanto, esta proposta buscou proporcionar reflexões e, portanto, uma contribuição para a questão da possibilidade em formar, em aulas de língua estrangeira, cidadãos realmente letrados. Além disso, o tema abordado neste artigo deixa clara a preocupação em fazer-se necessário e urgente a formulação de um programa de desenvolvimento de habilidades e funções de linguagem, em que as necessidades dos alunos sejam consideradas. Pois, a iniciativa da mudança, de imaginar novas formas de ver as coisas, principalmente, em relação ao papel dos textos em aulas de LE pode proporcionar resultados positivos aos alunos tornando-os mais interessados e motivados, e fazendo com que o aprendizado se apresente mais significativo e relevante em suas vidas especialmente quando contextualizado. Ao discutir sobre os conceitos indicados aqui e as reflexões que deles decorrem, acredito que este trabalho possa trazer aos professores que trabalham com leitura em aulas de LE, novas maneiras de pensar, de aplicar e de inovar a sua prática pedagógica no sentido de proporcionar aos aprendizes uma ampla visão da leitura, fazendo-os perceber que compreender e interpretar textos são demandas necessárias aos mesmos, primeiro de situarem-se enquanto sujeitos emancipados para interagir no meio social, pressupondo-se, portanto, detentores de capacidade de ler o “mundo”, e depois de serem leitores de textos para ingresso na universidade. São novas maneiras de pensar e inovar a prática pedagógica. Referências Bakhtin, M. M., (Mikhail Mikhailovich). Estética da criação verbal. São Paulo: Martins Fontes, 1997. ______ Marxismo e Filosofia da Linguagem. 6 ed. São Paulo. Hucitec. 1992. Bhatia, V. K. Analysing genre: language use in professional settings. New York: Longman, 1993. BRASIL. Parâmetros Curriculares Nacionais: terceiro e quarto ciclos do Ensino Fundamental: Língua Portuguesa. Brasília/ DF: MEC/SEF. 1998. ______ Secretaria de Educação Fundamental. Parâmetros Curriculares Nacionais: terceiro e quarto ciclos do ensino fundamental: língua estrangeira / Secretaria de Educação Fundamental. Brasília: MEC/SEF, 2001. CALDIM, C. F. A função Social da Leitura da Leitura Infantil. Enc. Bibli: R. Eletr. Bibliotecon. ci. Inf, Florianópolis, n 15, 1º Sem. 2003.
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Tema geral: Línguas e Literaturas: Diversidade e Adversidades na América Latina COLLINS, H. Re-estruturação e Re-culturação no Trabalho com o texto e a Gramática. In: CELLANI, M. A. A. (org.) Professores e Formadores em Mudança: relato de um processo de transformação da prática docente. Campinas, SP: Mercado de Letras, p. 133-146. 2003. FREIRE, P. Consciência e história: a práxis educativa de Paulo Freire (antologia). São Paulo: Loyola. 1979. LOPES, L. P. M. A função da Aprendizagem de Línguas Estrangeiras na Escola Pública. Oficina de Lingüística Aplicada: a natureza social e educacional dos processos de ensino/aprendizagem de línguas. Campinas, SP: Mercado das Letras, p. 127-136. 2001. MARCUSCHI, L. A. Gêneros Textuais: definição e finalidade. In: A. P. Dionísio, A. R. Machado e M. A. Bezerra, (orgs). Gêneros Textuais e Ensino. Rio de Janeiro: Lucerna, p 19-36. 2002. RAMOS, R. C. G. Gêneros Textuais: Uma Proposta de Aplicação em Cursos de Inglês para Fins Específicos. The ESPecialist São Paulo, v. 25, nº 2 p. 107-129, 2000. ROJO, R. Gêneros do Discurso e Gêneros Textuais: questões teóricas e aplicadas. In: J. L. Meurer, A. Bonini e D. Motta-Roth, (orgs). Gêneros: teorias, métodos, debates. São Paulo: Parábola Editorial, p. 184-207. 2005. SOARES, M. Letramento: um tema em três gêneros. 2.ed – Belo Horizonte: Autêntica. 2004. SWALES, J. M. Genre analysis: English in academic and research settings. Cambridge University Press. 1990.
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A Construção de Ideologias Machistas na Prática Cultural do Forró
Marília Pinheiro RIBEIRO
(Universidade
Estadual do Ceará /FUNCAP)
Claudiana Nogueira de ALENCAR (Universidade Estadual do Ceará)
RESUMO: Este artigo é parte de um projeto de pesquisa mais amplo e intitulado “As construções dos sentidos da violência nas práticas culturais do Sertão Central Ceará” que partiu do desejo de focalizar novas possibilidades de investigar e teorizar a linguagem, enfatizando o papel do lingüista e a contribuição do seu estudo para a vida social. De forma específica, procuramos analisar a construção identitária do gênero social e suas ideologias na presente prática cultural do forró, utilizando como aparato teórico-metodológico a Análise do Discurso Crítica (CHOULIARAKI & FAIRCLOUH, 1999, FAIRCLOUH, 1989, 1992, 2003, RESENDE & RAMALHO, 2006), para questionar de que maneira os sentidos construídos nas canções de Forró naturalizam e legitimam ideologias machistas. Partindo da idéia que as práticas culturais do Nordeste têm manifestado uma expressiva e crescente forma de violência lingüística, percebemos escolhas lingüísticas que violentam ao constituir sentidos negativos para as mulheres e para os homens. A análise sócio-discursiva nos permitiu depreender que o perfil identitário nas letras das canções de Forró baseia-se num discurso machista a partir da estratégia da estereotipização, reforçando relações de poder e assim inferiorizando a mulher ao designar o gênero feminino como submisso e vulgar. PALAVRAS-CHAVE: Discurso; Cultura; Identidade; Violência.
RESUMEN: Este artículo es parte de un proyecto de investigación más amplio, titulado “La construcción de los significados de la violencia en las prácticas culturales interior de Ceará Central”, que partió de la voluntad de centrarse en nuevas oportunidades para investigar y teorizar la lenguaje, haciendo hincapié en el papel y la contribución de los lingüistas de su estudio a la vida sicial. En particular, examinaré la construcción social de la identidad de género y sus ideologías en la práctica cultural de forró, utilizando como aparatos teóricos y metodológicos el análisis crítico del discurso (CHOULIARAKI y FAIRCLOUH, 1999, FAIRCLOUH, 1989, 1992, 2003, y RESENDE RAMALHO, 2006), a la pregunta de cómo se construye el significado de las canciones de forró naturalizan y legitiman ideologías sexistas. A partir de la idea de que las prácticas culturales del Noreste han mostrado una importante y creciente forma de violencia lingüísticos, vemos que las opciones violentas lingüística a ser negativo para las mujeres y los significados para los hombres. El análisis socio-discursivo nos permitió inferir que el perfil de la identidad de las letras de canciones forró están basadas en un discurso de la estrategia de los estereotipos sexistas, reforzando las relaciones de poder y, por tanto, inferiorizando las mujeres al nombrarlas de sumisas y vulgarres. PALAVRAS LLAVE: Discurso; Cultura; Identidad; Violência.
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Introdução Este trabalho parte de um projeto mais amplo intitulado “As construções dos sentidos da violência nas práticas culturais do Sertão Central do Ceara”. Partimos do desejo de investigar o sentido da violência e suas representações identitárias nas práticas culturais do Forró, através das manifestações dos discursos, considerando o uso da linguagem como uma prática social. O discurso é moldado pela estrutura social mais também é constitutivo da estrutura social (FAIRCLOUGH, 1989) e nisso consiste uma dialética entre discurso e sociedade. É através dessa dialética, que integramos nossas formas concretas de viver e produzir sentidos através de práticas de linguagem. O mundo moderno tardio, considerado como uma cultura de risco (GIDDENS, 2002) manifesta expressivas e crescentes formas de violência: violência simbólica, estrutural, física e psicológica. Desse modo, percebe-se em manifestações culturais escolhas lingüísticas que violentam no próprio ato de fala, construindo sentidos preconceituosos, através das designações e nomeações de gênero social. A violência na sociedade é uma questão preocupante. Odalia (1983, p. 9) afirma que, “a violência, no mundo de hoje, parece tão entranhada em nosso dia-a-dia que pensar e agir em função dela deixou de ser um ato circunstancial para se transformar numa forma do modo de ver e viver o mundo do homem”. A partir dessa realidade, decidimos investigar como os sentidos da violência são construídos nas práticas culturais do Forró, vivenciadas em Quixadá, cidade do Sertão Central do Ceará. As escolhas lingüísticas são vistas aqui como sentidos constituídos e reproduzidos nas vivências culturais do cotidiano, numa abordagem crítico-discursiva que procura enfrentar as relações entre linguagem e sociedade. Assim, procuramos trabalhar como uma versão de análise do discurso crítica que leva em conta a interação lingüística concreta de pessoas reais e que considera o sujeito não como o senhor soberano do seu discurso, muito menos o sentido como fruto de uma intenção. Ao contrário, nessa concepção, considera-se que todo sentido é historicamente constituído a partir de diversos fatores (sociais, culturais, econômicos, políticos) integrados na produção e interpretação lingüísticas. Por essa perspectiva de estudo, esperamos contribuir para a formação da consciência das relações de poder, através de um olhar crítico sobre a linguagem, dentro e fora do campo da lingüística. 1. O Forró como produto da indústria cultural Para discutir a relação entre o massivo e o popular nas práticas culturais vivenciadas em Quixadá, levaremos em conta o estudo de Oliveira (2007) que procura rediscutir o conceito de cultura popular e as teorias da recepção dos produtos culturais ou as apropriações do cultural, explicitando as demandas culturais, “resultantes inclusive da sobreposição das relações de consumo e da sobreposição da indústria cultural em todos os espaços sociais e no contexto cultural”(idem, p. 263). Oliveira (2007) discute as quatro posturas científicas e políticas que levaram o popular à cena: os românticos, os folcloristas, o populismo de esquerda e os gerentes do meio de comunicação. Os românticos, rompendo com a formalidade técnica prescrita pelas artes clássicas, idealizaram as culturas populares por seus aspectos informais, tentando resguardar o popular da contaminação trazida pela civilização moderna. Esse sentido romantizado do popular continuará com o pensamento folclórico do século XIX, pois os folcloristas acreditavam na cultura popular como manifestações tradicionais, que embora fazendo parte de um tempo presente, guardavam uma identidade sobrevivente e fiel a sua origem. No séc. XX, os populistas de esquerda criticaram as visões românticas e folclóricas tradicionais das culturas populares como sendo alienadas e ingênuas. Para o populismo de esquerda o popular na cultura seria marcado pela crítica e por uma tentativa de conscientização da população através da cultura. No entanto, em 1980, com a ascensão dos meios de comunicação, o popular passa a ser visto como sinônimo de popularidade: o que vende em massa, o que agrada as multidões.
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Esses estudos fundamentaram a análise das interações que se estabelecem entre a prática cultural do Forró vivenciada em Quixadá e considerada como expressão da estética e da cultura popular nordestina (SILVA, 2003) com a sociedade de consumo e com o processo de industrialização da cultura. O Forró é uma exemplificação de prática cultural que tem sofrido influência da mídia, transformado em produto vendável. Numa visão mais crítica do consumo e da vivência dessa prática cultural é preciso compreender como a produção do Forró passa a atender as demandas do mercado, popularizado para as massas como resultadas da industrialização da cultura, pela instauração e sustentação de um novo tipo de poder no contexto de globalização. A indústria cultural, segundo Adorno e Horkheimer (1985) impõem a milhões de pessoas que dela participam métodos de reprodução dos produtos culturais, em nosso caso de estudo as músicas do Forró, tornando inevitável a disseminação de bens padronizados para a satisfação de necessidades iguais. O contraste técnico entre poucos centros de produção e uma recepção dispersa condicionaria a organização e o planejamento pela dominação de grandes empresários que estabelecem formas e padrões para o “gosto pessoal” e para o consumo. Os padrões seriam resultados originariamente das necessidades dos consumidores: eis porque são aceitos sem resistência. Adorno e Horkheimer explicam, desse modo, o círculo da manipulação e da necessidade retroativa em um terreno no qual a técnica conquista seu poder sobre a sociedade, o poder que os economicamente mais fortes exercem sobre o social. A racionalidade técnica hoje é a racionalidade da própria dominação. Ela é o caráter compulsivo da sociedade alienada de si mesma. Para os autores (idem) os automóveis, as bombas e o cinema, a cultura, a arte, nesse novo contexto de reprodução artificial em massa, mantêm coeso o todo e chega o momento em que seu elemento nivelador mostra sua força na própria injustiça para qual serve. A técnica da indústria cultural levou-nos à padronização e à produção em série, sacrificando o que fazia a diferença entre a lógica da obra e a do sistema social. O Forró considerado uma expressão tipicamente nordestina também sofreu os efeitos da técnica, própria da Indústria Cultural. Foi Luiz Gonzaga juntamente com alguns parceiros como Humberto Teixeira e Zé Dantas que introduziram o Forró no Nordeste e no restante do país, a partir da década de 1940. Luiz Gonzaga cantava uma cultura nordestina, a política, a seca, amores, saudades e todo meio sócio-cultural em que fazia parte. Mais foi na década de 1990 que o Forró, considerado como manifestação regional e artesanal, assumiu uma feição massiva alcançando vários públicos. Desde o lançamento a banda “Mastruz com Leite”, por iniciativa do empresário Emanuel Gurgel, as bandas de Forró passaram a utilizar técnicas de produção e reprodução musical para as grandes massas, gerando o chamado Forró eletrônico. O Forró passou a usar uma linguagem mais repetitiva, a dança ganhou mais sensualidade, os instrumentos passaram a ser eletrônicas. Seus temas são marcados por bebedeiras, triângulo amoroso, sexo, amores impossíveis. O Forró eletrônico é, pois um produto da indústria cultural. Zan (2001, p.106) afirma que o produto cultural é um elemento através do qual a sociedade se objetiva, isto é, um processo pelo qual momentos da estrutura social, posições, ideologias conseguem se impor nas próprias obras de arte. O forró eletrônico, desse modo, acaba por assumir uma linguagem particular utilizando palavras de baixo calão, linguagem informal, focando um publico alvo jovem e criando todo um universo de consumo, de auto- afirmação, padrões de comportamento e de personalidade, enfim um estilo de consumo e formas de representação específica para homens e mulheres. A música funciona como um elemento de sociabilidade que converte jovens admiradores de um determinado gênero numa comunidade, constituindo sentidos para moldar comportamentos, vestuários e visões de mundo, condizentes com suas construções discursivo-musicais. Portanto, é preciso considerar mais de perto a esfera que sustenta toda a indústria cultural: o público - receptor. É com os olhos fitos nesse público que os compositores compõem as letras e músicas para que os seus receptores, acabem estabelecendo identificações, e construam uma identidade específica: a identidade de “forrozeiro”.
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2. Discurso como prática social Para Chouliaraki e Fairclough (1999) a Análise do Discurso Crítica está situada na ciência social crítica e na pesquisa crítica sobre a mudança social na sociedade moderna tardia. A Análise do Discurso Crítica defende uma relação dialética entre discurso e sociedade, para a promoção de uma mudança social. Fairclough (1992, trad, 2001) define o termo discurso numa concepção tridimensional. O autor por meio de seu modelo tridimensional propõe que as análises lingüísticas passem a considerar a parte social. O discurso deve ser visto como sendo simultânea (i) um texto; oral ou escrito, (ii) prática discursiva (produção, distribuição e consumo) (iii) prática social; nisso consiste uma relação dialética através da qual o discurso molda e é moldado pela estrutura social. Segundo Magalhães (2000, p.92) na prática social são considerados “três aspectos principais: o econômico, o político - ligado às noções de poder e de ideologias e o cultural - ligado a a valores e identidades culturais”. Fairclough (trad. 2001 a p117) apresenta a definição de ideologia como sendo: Construções da Significado/realidade (o mundo físico, as relações sociais, as identidades sociais) que são construídas em varias dimensões das formas/ sentidos das práticas discursivas e que contribuem para a produção, a reprodução ou transformação das relações de dominação.
Para Fairclough as ideologias são embutidas nas práticas discursivas, pois são muito eficazes quando se tornam naturalizadas e atingem o status de “senso comum”. Hegemonia para Fairclough (trad, 2001. p.122) é tida como: Liderança tanto quanto dominação nos domínios econômicos, político, cultural e ideológico de uma sociedade. Hegemonia é o poder sobre a sociedade como um todo de uma das classes economicamente definidas como fundamentais em aliança com outras forças sociais, mais nunca atingindo senão parcial ou temporariamente como um “equilíbrio” instável. Hegemonia é a construção de alianças e a integração muito mais simplesmente a dominação de classes subalternas, mediante as concessões ou meios ideológicos para ganhar consentimento. Hegemonia é um foco de constante luta sobre pontos de maior instabilidade entre classes e blocos para construir, manter ou romper alianças e relações de dominação/ subordinação, que assume formas econômicas, políticas e ideológicas.
Porém, entende-se a hegemonia como um domínio exercido pelo poder de um grupo sobre os demais, baseado no consenso e não no uso da força. Uma posição hegemônica passa pelo discurso e cria novas ideologias que são interpretadas, reproduzidas ou contestadas. O discurso tem alguns efeitos constitutivos e um deles é a construção de identidades sociais. Nesse sentido, podemos entender o conceito de identidade como uma representação de um discurso. Sendo representação, socialmente constituída, nossa identidade é a maneira como pensamos que as outras pessoas nos e vêem e nos avaliam. Em um nível estrutural, as identidades são idéias culturais sobre status sociais que ocupamos e ainda pensamos no eu ideal, ou seja, quem deveríamos ser e não realmente somos, se é que simplesmente somos. (JOHNSON, apud LIMA , 2007, p. 34). Para Fairclough (2003) o discurso figura de três principais maneiras como parte de uma prática social: como modos de agir, através dos gêneros textuais; como modos de representar, através dos discursos e como modos de ser, através de estilos. A cada um desses modos de interação entre discurso e prática social corresponde um tipo de significado: o significado acional, o significado representacional e o significado identificacional. Resende (2005, p. 28) define o significado acional como focalizando o texto como um modo de interação em eventos sociais. Já o significado representacional é mostrado como enfatizando a representação de aspectos do mundo em textos e o significado identificacional como se referindo à construção e à negociação de identidades no discurso. Neste trabalho, o significado acional nas letras das canções do Forró foi analisado por meio da intertextualidade. A intertextualidade enfatiza a dialogicidade, um conceito bakhtiniano que mostra que todo texto faz parte de uma cadeia dialógica, ou seja, responde e antecipa outros textos, articulando diversas vozes. Nossa análise procurou identificar, como indicou Fairclough (2003), quais vozes foram incluídas e quais foram excluídas nas composições das canções estudadas, isto é, que ausências significativas foram observadas.
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No que diz respeito ao significado representacional, analisamos a interdiscursividade, uma categoria que procura salientar a heterogeneidade do discurso. Segundo Resende (2005, p. 34) um mesmo aspecto do mundo pode ser representado através de diferentes discursos e “textos representando o mesmo aspecto do mundo podem, portanto, articular diferentes discursos, em relações dialógicas harmônicas ou polêmicas”. Neste trabalho procuramos estudar a heterogeneidade, mostrando os diversos discursos articulados nos textos das canções de Forró. Quanto ao significado identificacional analisamos os estilos, que constituem os aspectos discursivos das identidades, através da categoria avaliação. A avaliação inclui afirmações que apresentam juízos de valor com verbos de processo mental afetivo tais como: gostar, detestar etc. e presunções valorativas sobre o que é bom ou desejável (RESENDE, 2005, p. 36). Portanto, a Análise do Discurso Crítica é produtiva para estudarmos a prática cultural do Forró, pois suas categorias lingüísticas de análise apontam para o social, permitindo desvendar ideologias, posições hegemônicas e investigar como são interpretadas, reproduzidas ou contestadas identificações ou identidades produzidas por homens e mulheres nessa prática discursiva. 3. Análise Discursiva Crítica: Analisando as canções de Forró Como afirma Resende (2005, p. 143) há textos em que muitas vozes se articulam numa abertura para a diferença. Em outros são escassas as instâncias de discurso relatado e há uma redução da diferença com pequena visibilidade de vozes. No caso das letras de Forró estudadas observamos que há uma ausência significativa de vozes femininas, predominando hegemonicamente a voz do gênero masculino. Observemos nas cenas enunciativas abaixo como as vozes femininas não são apresentadas nem como interlocutoras, mas a mulher aparece como algo do qual se fala. A mulher é coisificada, sendo apresentada como um objeto pertencente ao homem em 1:“Por isso cuidado com seu mulherão”), apresentada como um prêmio: em 2 (“onde eu chego tem sempre uma namorada esperando”), ou como um ser sem vontade própria a mercê dos desejos do macho, como em 1 (bota a gata pra dançar)e em 3 (“você pode observar pulando a cerca e atacando as mulheres...É carinhoso saber conversar se tem mulher chorando vai logo consolar”). Em poucas canções em que a voz feminina é protoganizada (ver o texto 4), esta representada de forma submissa, suplicando o amor do homem que detém o poder sobre várias mulheres as quais se submetem a ele (“Ela fica com tudo e eu não levo nada”). Desse modo, em termos de representação dos atores sociais o homem é representado como uma figura central e a mulher como um acessório, um detalhe da forma de vida masculina. Vejamos as letras: (1) Abre o som do porta- mala, bota a gata pra dançar, desce mais uma cerveja, que hoje o bicho vai pegar. (2) Tenho fama se ser mulherengo chavequeiro e de Dom Juan. Onde eu chego tem sempre Uma namorada me esperando sou o bam, bam, bam (3) Eu estou preocupado com um ricardão tarado que está por todo lado você pode observar pulando a cerca e atacando as mulheres Não quer saber de nada ele quer é agarrar É carinhoso saber conversar se tem mulher chorando vai logo consolar Por isso cuidado com seu mulherão ele está por todo lado e vai pular o seu portão
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Anais do II Congresso Internacional de Estudos Linguísticos e Literários na Amazônia (CIELLA) (4) Não quero ficar nesse jogo de cartas marcadas Ela fica com tudo e eu não levo nada Só me resta saudade quando você se vai Não quero esse amor de metade, esse gosto de fel Essa coisa incerta, esse amor de motel Você vê minha vida eu quero bem mais. Eu quero dormir com você, te amar de manhã E na frente dela não te tratar como irmã Quero dizer pra essa outra que eu amo você
A análise da intertextualidade nos conduz a perceber a articulação dos discursos presentes nos textos das canções de Forró, nas quais predominam o discurso machista, quando representam o ator social “homem”. Nas letras analisadas “homem” tem que ser o “pegador”, construindo um sujeito do discurso dominador: o homem de verdade é aquele que chega nos lugares e encontra as mulheres que estão lá somente a sua espera. Tanto a texto (1) como o texto (2) representa a mulher como algo fácil, um ser que não apresenta recusas para o deleite sexual dos homens, pois, por meio desse discurso, elas estão sempre a espera do homem, prontas para satisfazer as suas vontades, como fossem simples objetos. Tal representação indica também a articulação do discurso da submissão feminina ao discurso machista, uma vez que a mulher é representada como um ser sem escolhas e sem vontade própria, cujo único desejo é satisfazer aos homens. Em termos de significado identificacional percebemos que o Forró eletrônico transformouse, nos dias atuais, em um estilo, um padrão de vida. No texto da canção (1) “Abre o som” percebemos o que acontece em locais abertos, como as praças, aonde alguns jovens chegam com seus carros e abrem o som do porta-malas para ouvir as músicas de forró, em disputas pela soberania do espaço, e nesse sentido, colocam o som mais alto numa disputa pela atenção das mulheres. Foi o que observamos em nossa pesquisa sobre o consumo do Forró em Quixadá, com observação-participante na Praça José de Barros, local onde se reúnem os jovens para “curtir” o Forró. A identidade é uma representação, socialmente construída. Segundo Lima (2007, p. 34), na construção de identidades, há valores culturais que fazem com que tenhamos a nossa auto-estima alta ou baixa, de acordo com as posições que ocupamos na sociedade. No caso do Forró, em termos de significado identificacional, os elementos lingüísticos avaliativos depreciam a identidade feminina e exaltam a identidade masculina através da voz do gênero masculino, que se auto avalia positivamente como um “macho”, um homem virilizado para várias mulheres, naturalizando as ideologias patriarcais, como em (2) “sou o bam, bam, bam”. Esta “voz masculina emite juízos de valor sobre as mulheres através de presunções valorativas depreciadoras do ‘eu” feminino, como podemos observar nas letras das canções abaixo: (5) Mulher quanto mais safada é que o homem gosta. Mulher quanto mais safada é que o homem gosta. (6) Mulher Não Vale Nem Um Real É hoje que eu vou encher a cara Pra me esquecer da fuleragem da mulher
Considerações finais Através desse “valor cultural” que é o Forró, os jovens acabam por construir uma identidade, e nessa construção, utilizam-se de escolhas lingüísticas que estereotipam e inferiorizam a mulher. Através dessa cultura de massa vemos uma construção de sentido de violência em relação ao significado: acional, representacional e identificacional, tanto para o gênero feminino quanto para o gênero masculino. A presente pesquisar objetivou admitir que as identidades construídas se da através dos processos de nomeação e designação para homens e mulheres onde são interpretadas e repetida
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na vivencias cotidianas, naturalizando sentido de violência através da legitimação de ideologias machistas. Fairclough vê a linguagem como uma prática que constitui o social, os objetos e os sujeitos sociais. Pois o discurso ele não é somente um resultado de uma prática, ele ajuda também constituí-lo. A analise não se esgota por aqui. Há vários outros focos que podem ser observados, analisados e que poderão contribuir com a discussão teórica e metodológica, e que, certamente, também contribuirão para as práticas discursivas, reflexivas e transformadoras. Referências AUSTIN, J. L. How to do Things with Words. Harvard University Press, 1962. _____. Quando Dizer é Fazer– Palavras e Ação. Trad. de Danilo Marcondes de Souza Filho. Porto Alegre, Artes Médicas, 1990. DIAS, Tatiana Rosa Nogueira. Práticas Identitária em relatos de mulheres vítimas de violências doméstica. Brasília, 2007. HALL, Stuart. A identidade cultural na pós-modernidade. Rio de Janeiro: DP & A Ed, 1997. LIMA, Higo da silva, SILVA, William Robson Cordeiro. O Forró como Produto da Indústria Cultural e a sua Influência nos Adolescentes, Natal, 2008. LIMA, Maria Cecília. Discurso e Identidades de Gêneros no Contexto da Escola. Brasília, 2007. MUSSALIN, Fernanda & Anna Christina BENTES (2001) (orgs.) Introdução à Lingüistica: Domínios e Fronteiras. Volume 2. São Paulo: Cortez Editora. PINTO, Joana Plaza. Estilizações de gênero em discurso sobre linguagem. Campinas, SP: [s.n.], 2002. RAMALHO, Elba Braga. Cantoria nordestina: musica e palavra. São Paulo: Terceira Margem, 2000. RESENDE, Viviane, RAMALHO, Viviane. Análise do Discurso Crítica. São Paulo: Contexto, 2006. WITTGESTEIN, Ludwig. Investigações Filosóficas (Philosophische Untersuchun-gen). São Paulo: Abril Cultural, 1984.
Anexos: Letras de canções analisadas Aviões do Forró - Abre o Som Abre o som do porta-mala bote a gata pra dançar desce mais uma cerveja que hoje o bicho vai pegar Sai da frente rapaz, sai da frente rapaz quando o Avião tá tocando todo mundo vai atrás Abre, abre, abre, abre, abre, Abre, abre, abre, abre, abre, Abre, abre, abre, abre, abre, Abre, abre, abre, abre, abre. Fiquei sabendo que a galera endoidou quando a guitarra chora todo mundo grita ôu!
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Anais do II Congresso Internacional de Estudos Linguísticos e Literários na Amazônia (CIELLA) Ôu! ôu! ôu! ôu! ôu! Ôu! ôu! ôu! ôu! ôu! Ôu! ôu! ôu! ôu! ôu!
Aviões do Forró - Amor de Motel Não quero ficar nesse jogo de cartas marcadas Ela fica com tudo e eu não levo nada Só me resta saudade quando você se vai Não quero esse amor de metade, esse gosto de fel Essa coisa incerta, esse amor de motel Você vê minha vida eu quero bem mais. Eu quero dormir com você te amar de manhã E na frente dela não te tratar como irmã Quero dizer pra essa outra que eu amo você Não quero sair por aí te chamando de amigo Quando na verdade você é minha vida Ela não é sua dona eu amo você. Não quero esse lance De bola dividida Vem ficar comigo Você é minha vida (Bis) Não quero esse amor de metade, esse gosto de fel Essa coisa incerta, esse amor de motel Você vê minha vida Eu quero bem mais. Eu quero dormir com você te amar de manhã E na frente dela não te tratar como irmã Quero dizer pra essa outra que eu amo você Não quero sair por aí te chamando de amigo Quando na verdade você é minha vida Ela não é sua dona eu amo você. Não quero esse lance De bola dividida Vem ficar comigo Você é minha vida (bis)
Aviões do Forró - Mulher Quanto Mais Safada Muler quanto mais safada é que o homem gosta. Mulher quanto mais safada é que o homem gosta. Ela faz e acontece bicho complicado Quando ela quer amar deixa agente apaixonado Com essas mulheres é só sofrer Sem essas mulheres não sei viver Mulher quanto mais safada é que o homem gosta.
Aviões do Forró - Mulher Não Vale Nem Um Real É hoje que eu vou encher a cara Pra me esquecer da fuleragem da mulher Eu hoje vou sair fazer zueira Quero acodar de bobeira dormindo num cabaré Essa mulher nao vale nem um real
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Tema geral: Línguas e Literaturas: Diversidade e Adversidades na América Latina Eu gosto dela e nao é da conta de ninguém Por isso agora eu digo Tô decidido! Se ela não ficar comigo não fica com mais ninguém Mas aí o coro come, a cobra fuma, o bicho pega Eu tô com essa danada e quem manda nessa bodega Piriri, Piriri, Pocotó, Pocotó...
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ORALIDADE E ESCRITA NA POESIA DE MANOEL DE BARROS
Marinei ALMEIDA∗ (Universidade do Estado de Mato Grosso)
RESUMO: Propomos nesta comunicação algumas reflexões sobre a relação oralidade e escrita em poemas do escritor brasileiro Manoel de Barros, reconhecido, atualmente, como um dos mais originais do país. O trabalho poético de Manoel de Barros resulta de uma constante experimentação poética, tendo como objetivo maior atingir o fôlego primeiro do nascimento de uma palavra. Tal trabalho é centrado, sobretudo, na criação de novas palavras, no reaproveitamento e resgate de outras em desuso, e por vezes no aproveitamento da linguagem oral e costumes culturais da região pantaneira, espaço que comparece, em grande parte da obra desse poeta brasileiro, como motivo de reflexão poética. Dessa maneira, a atenção deste trabalho recairá, sobretudo, na leitura da obra Livro de Pré-coisas (1985), a qual apresenta “releituras” de lendas e costumes da cultura oral, bem como da regional. PALAVRAS-CHAVE: Manoel de Barros; poesia; oralidade; escrita.
ABSTRACT: We propose, in this communication, to afford some considerations about the relation between orality and writing in some poems of the Brazilian writer Manoel de Barros, lately renowned as one of the most original writers of the country. His poetic work is the result of a constant poetic experimentation, one of his aims being the achievement of the original breath of the birth of a word. Such a work is centred, most of all, in the creation of new words, in the reuse and rescue of some words which fell in disuse, and, sometimes, in the exploitation of the oral language, as well as the cultural habits of the Pantanal, the geographical space which is conspicuously present in the work of this Brazilian poet, as a motive of poetic reflection. Thus, the aim of this paper will be chiefly the reading of Livro de Pré-coisas (1985), a book which presents “rereadings” of legends and habits of the oral, as well as the regional, culture of Pantanal. KEY WORDS: Manoel de Barros; poetry; orality; writing.
Anais do II Congresso Internacional de Estudos Linguísticos e Literários na Amazônia (CIELLA)
Desde o primeiro livro do poeta mato-grossense Manoel de Barros, Poemas concebidos sem pecado, de 1937, a viagem é motivo de descobertas para Cabeludinho, que anos depois viaja de trem para os “rios de janeiros” para fazer seus estudos. Nas duas obras seguintes, Face Imóvel (1942) e Poesias (1956) o cenário de seus poemas é composto por observações do mar, das pessoas e acontecimentos no Rio de Janeiro e em algumas vezes seus versos voam num retorno às lembranças da fazenda – chão de sua infância. Nas obras seguintes é constante a presença de um sujeito poético que percorre lugares ao encontro da matéria que compõe sua obra: a natureza humana, vegetal e animal. Além do tema da viagem, como acabamos de apontar, e das mudanças que ela provoca no viajante para toda a vida, em maior ou menor grau, outro tema que comparece com pertinência e insistência, dentre outras várias possibilidades oferecidas pelo conjunto das obras de Manoel de Barros, atravessada constantemente pelo trabalho metalingüístico, é a memória. Nos poemas de Manoel de Barros, o papel da memória é bastante importante para sua realização. Essa memória é constantemente revisitada e reinventada. Sua escrita, dessa maneira, talvez aponte para a afirmação de que se vive na linguagem o que, de certa forma, não se pode viver na vida ou no momento exato das experiências. Assim, o tempo funcionaria como aquela “maquininha” de construir histórias que permite a possibilidade de viver muitas vezes aquilo que se vive, “concretamente” apenas uma vez, ou aquilo que se poderia ter vivido. Nesse sentido, a poesia de Manoel de Barros significa, de certa forma, esse gesto de repetição que não cansa de dizer ou inventar um mundo de possibilidades que se abre ao leitor. E a memória funciona como um instrumento indispensável para empreender as mais diversas viagens através da escrita (ALMEIDA, 2008). Considerando, então, que há no “viajar sem porto a sede de uma inteligência sempre inquieta de novos horizontes” (BOSI, 1993, p.135), Manoel de Barros, em entrevista a José Castelo (1996, p. 12), nos conta que alguns anos de sua vida andou por vários lugares, pois havia um certo fascínio em mim por cidades mortas, casas abandonadas, vestígios de civilização. Um fascínio por ruínas habitadas por sapos e borboletas. Eu gosto de ver alguma germinação da inércia sobre ervinhas doentes, paredes leprentas, coisas desprezadas. As fontes de minha poesia, estou certo, vêm de errâncias desurbanas.
Essas casas abandonadas são como aquelas lembranças que adormecem sob o peso dos dias, mas que pelas mãos do poeta são acordadas sempre para que digam o que não terminaram de dizer. Essas borboletas e sapos nos seus mundos de ar e água são para o poeta, o invisível que ele quer e anseia por tornar visível e vivo pela sua poesia atravessada pelo crivo da linguagem. Esse gosto pela observação de pequenas coisas aflorado no jovem e curioso Manoel – espécie de um “turista aprendiz” - é que percorrerá várias imagens criadas no tecido textual da obra deste poeta, num claro diálogo com a experiência vivida. No entanto, de todas as experiências vividas, à volta e o contato com sua terra natal e, sobretudo com o Pantanal, é que marca definitivamente a arte criativa de Manoel de Barros. Lugar onde “árvores, bichos e pessoas têm natureza assumida igual” (BARROS, 2004, p. 9) e em cada fazenda desse lugar se encontra uma “ilha lingüística”, na opinião do poeta. O Pantanal, enquanto matéria prima, atravessa quase toda sua produção. Este procedimento já rendeu em Manoel de Barros, por inúmeras vezes, a classificação de “poeta ecológico”, “poeta pantaneiro”, e na grande maioria, suas obras constantemente são classificadas como “guia literário do Pantanal”. A nosso ver, esta classificação acaba por restringir e muito a grandeza, não só de seu trabalho como a da linguagem, mas também acaba por reservar um lugar inferior aos valores, aos costumes e às crenças de uma gente que se faz ouvir pela voz do poeta. Nesse sentido diríamos que a linguagem é o lugar do trabalho plástico dessas coisas, é o lugar da verbalização de um mundo que possui sua própria linguagem e que o poeta traduz. A obra Livro de Pré-coisas, publicada em 19851, objeto de nosso trabalho, é dividido em quatro partes. Na primeira, “Ponto de partida”, além da advertência aos viajantes-leitores, conforme 1
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Neste texto foi utilizada a 4ª edição, publicada em 2003.
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já comentamos, um “Narrador apresenta sua terra natal” que por meio da metalinguagem apresenta Corumbá - “Portão de Entrada para o Pantanal”, “cidade velha” em que “o tempo e as águas esculpem escombros nos sobrados anciãos” e “desenham formas de larvas sobre as paredes podres”, que “são trabalhos que se fazem com rupturas – como um poema” (BARROS, 2003, p.11). No decorrer da obra, observamos que tal ruptura se dá tanto com o tempo presente, como com a natureza completa e exuberante que o Pantanal oferece. Manoel de Barros rompe com esta natureza já construída e propõe uma outra. O poeta se comporta ora como uma testemunha, ora como um inventor dessa nova natureza, desse novo espaço. Não será por acaso que nessa obra está presente uma voz que narra e outra que conta, fornecendo elementos sobre essa “excursão poética”, proposta já de início. Nessa primeira parte nos deparamos com várias características típicas da escrita desse autor. Ao apontar um narrador para apresentar sua terra natal, inserindo, portanto, um elemento tipicamente do gênero narrativo, permite o alargamento do gênero poético. E no decorrer dessa obra, vemos que a voz do narrador ora se mistura, ora se assemelha a uma voz muito próxima à do contador oral, inclusive ao incorporar a linguagem local e o aproveitamento de “causos” e crendices da região “transfeita”. Começa por desenhar através da voz e do olhar do narrador, uma tela onde os elementos são incorporados: a natureza, o vegetal, o animal e o humano. Através desse olhar é que nos é aberto o “Portão de Entrada para o Pantanal”, e por meio desse olhar “transfazedor” é que essa natureza não nos é dada por completa e acabada, muito pelo contrário, esse Pantanal será poeticamente criado ou recriado através dos versos narrativos, dos causos, “das águas e de pedras”, dos “cuiabanos, papabananas, chiquitanos e turco”, além do silêncio e do “rumor de útero nos brejos” (BARROS, 2003, p. 12) que compõem a segunda parte da obra intitulada “Cenários”. Na terceira parte da obra nos é apresentada uma personagem emblemática, a qual comparecerá em várias obras vindouras de Manoel de Barros - Bernardo, que se mistura à própria natureza que o rodeia. Já na última parte intitulada “pequena história natural”, nos é dado a conhecer mais intimamente alguns bichos, pássaros e insetos. Suas vivências e presença se misturam ao corpo poético e pantaneiro da obra construído através da edificação da linguagem. Dessa maneira, propomos analisar aqui alguns elementos inseridos no Livro de pré-coisas2, tendo como objetivo principal algumas reflexões sobre o par oralidade e escrita na obra citada. 1. A arte de contar “as nossas coisas simples” Porque a maneira de reduzir o isolado que somos dentro de nós mesmos, rodeados de distâncias e lembranças,é botando enchimento nas palavras. É botando apelidos, contando lorotas. É, enfim através das vadias palavras, ir alargando os nossos limites. (Manoel de Barros)
Através destes versos retirados do LPC e que servem de mote da discussão empreendida por nós nesta parte do texto é que também nos autoriza retomar as palavras de Octavio Paz (1982, p. 43) extraídas do seu belíssimo texto “Linguagem”, texto citado em momentos anteriores, quando este estudioso compara a palavra a uma “ponte através da qual o homem tenta superar a distância que o separa da realidade exterior”, já que ela – a palavra -, na opinião de Paz, é o único testemunho da realidade do homem. Nesses versos, em epígrafe, observamos que além da utilização da palavra como meio de reduzir o isolamento e alargar os limites, há de considerar a importância dada à questão do “aproveitamento” de materiais da realidade na tessitura poética. Essa questão, na obra que ora lemos, inclui não somente “o contar lorotas”, mas, sobretudo a exposição e escolhas de elementos da (con) vivência do poeta no e com o seu espaço – o Pantanal. Recurso este que, como já afirmamos, não 2
Passaremos a nos referir com a seguinte abreviação: LPC, grafada em itálico e letras maiúsculas.
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diminui o valor deste poeta e nem vai ao encontro da classificação, que por várias vezes, lhe foi atribuída – a de poeta regional, ecológico, entre outras denominações, mas antes de tudo nos revela uma criação madura e bem resolvida esteticamente, sobretudo pelo rigor da utilização das palavras e criação de imagens inusitadas. Levando em conta que “uma obra, embora pertencendo ao ramo genérico cuja essência a escrita revela prioritariamente, pode participar também da natureza ou dos traços particulares de outros gêneros” (LEITE, 1991, p. 88), observamos, dessa maneira, que a obra, aqui analisada, apresenta gênero híbrido trazendo algumas marcas narrativas como, por exemplo, a presença de personagens – considerando nomes próprios, situações de diálogos que permeiam tais personagens -, a presença de um narrador, pequenos “causos” e lendas, o emprego de marcas lingüísticas do registro coloquial, além da demarcação de um espaço, o Pantanal. Estes últimos elementos, que apontamos, corroboram para o hibridismo do gênero, dialogando, dessa forma, com a literatura oral. Essa literatura – a ignorada irmã mais velha e popular da literatura oficial (CASCUDO, 1952, p.23) - tem no seu alicerce o uso da linguagem oral, a qual ainda age cantando, falando, representando, dançando no meio do povo, segundo Câmara Cascudo, pois “não há povo que possua uma só cultura, entendendo-se por ela uma sobrevivência de conhecimentos gerais” (Idem, p.27). Essa linguagem, “a nossa herança” (HAVELOCK, 1995, p. 27), faz parte de nós tanto quanto a habilidade de andar ereto ou usar as mãos, segundo Eric Havelock, por isso mesmo, “constitui um engano descartar tal herança, aplicando-lhe rótulos como primitiva, selvagem ou inculta.” (Idem, p. 27). No entanto, a relação entre a literatura escrita e oral possui o caráter de uma tensão mútua e criativa contendo uma dimensão histórica, afirma Haveloch (1995, p.18), e que por vezes essa tensão pode manifestar-se como tendência em favor de uma oralidade resgatada. A presença do uso da linguagem oral é uma constante no conjunto da obra de Manoel de Barros, como já afirmamos. A utilização dessa linguagem marcada por uma coloquialidade recai com certa ênfase em várias de suas obras, remetendo, dessa maneira para um espaço, sobretudo em LPC quando essas marcas coloquiais ficam latentes nas vozes trazidas na obra, através dos diálogos entre personagens e em algumas vezes na maneira de contar um “causo”, uma crendice. Inferimos que essa coloquialidade textual em Manoel de Barros, sobretudo nesta obra, “aponta para uma maior proximidade com um interlocutor e chama atenção para certa quebra da cerimonialidade, dita “culta”, (acrescentaríamos formal ou até padrão), da escrita” (LEITE, 1991, p. 95), quebra esta que revela o gosto e escolha “por um certo estatudo consonante com a oralidade” (Ibidem). Ao percorrermos os versos de LPC nos deparamos com o resgate de vários recursos característicos da oralidade, dos quais passamos a visitar. Como afirmamos, nesta obra comparece um sujeito que viaja e que conta sua aventura. Esse “eu”, que tomamos a liberdade de denominar como “eu-narrador”, ao adentrar pelo portão que o leva ao Pantanal e ao deparar com os ribeirinhos que ali vivem, vai registrando o que presencia. A essa voz que conta se misturam outras vozes, as dos habitantes daquele lugar. Logo na primeira parte de LPC comparece uma sábia recomendação de Pocito – um dos moradores da região pantaneira e conhecedor do lugar - que dá um conselho ao narrador que viajou “de lancha ao encontro de seu personagem” (BARROS, 2004, p.15): “Oive de mi, xará. Quem não ouve conselho, conselho ouve ele” (Idem, p. 16), para em seguida apresentar a esse narrador “o portão da Nhecolândia, entrada pioneira para o Pantanal”. E a partir dessas primeiras vozes que observamos no início dessa obra, comparecem outras que se mesclam a elas. Essa observação nos leva às reflexões que Walter Benjamin (1994) empreendeu ainda em 1936, sobre o narrador clássico no texto “O narrador. Considerações sobre a obra de Nikolai Leskov”, no qual ele discute o fim da arte de narrar. De maneira mais ampla, o teórico fala sobre a nossa crescente incapacidade de contar. Walter Benjamin afirma que a “arte de narrar está em vias de extinção” (Idem, p.197), por vários motivos. Um deles é causado pelo “declínio da aura” da arte tradicional. Outro motivo é a conseqüência trazida pela guerra, pois quando esta terminava o homem voltava vazio de experiências vividas. Segundo Benjamin,
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Tema geral: Línguas e Literaturas: Diversidade e Adversidades na América Latina São cada vez mais raras as pessoas que sabem narrar devidamente. Quando se pede num grupo que alguém narre alguma coisa, o embaraço se generaliza. É como se estivéssemos privados de uma faculdade que nos parecia segura e inalienável: a faculdade de intercambiar experiências (p. 197-198).
Para esse teórico, dentre os narradores, existem dois grupos que se interpenetram de múltiplas maneiras: aquele que viaja, pois segundo o povo, quem viaja tem muito que contar, portanto é aquele que sai do seu mundo individual e participa do mundo do outro, e o segundo grupo trata-se daquele que conhece suas próprias histórias e tradições. Levando em consideração o tema da viagem em obras de Manoel de Barros, bem como sua afirmação de que “o que escrevo resulta de meus armazenamentos ancestrais e de meus envolvimentos com a vida”,(BARROS, 1990, p. 315) podemos afirmar que não é por simples acaso a criação dessas vozes “narradoras” em LPC. Vimos a semelhança entre esses narradores que transitam nos dois grupos apontados por Walter Benjamin aos dois exemplos que trouxemos nos trechos, acima citados, o do “narrador” que viaja ao encontro de seu personagem e a figura de conselheiro, Poctio, que dá conselhos ao visitante. Pocito aqui toma para si o papel daquele narrador clássico, o sábio que dá conselhos, conforme Walter Benjamin aponta. A maneira simples de contar tem suas raízes na necessidade do homem se comunicar, e segundo Walter Benjamin na sua capacidade de intercambiar experiências. Dessa maneira, observamos em “Lides de campear”, poema inserido também na primeira parte de LPC, uma tentativa de compensar ou justificar o trabalho artesanal do pantaneiro, quando o poeta atesta sobre tal ofício: No conduzir de um gado, que é tarefa monótona, de horas inteiras, às vezes de dias inteiros – é no uso de cantos e recontos que o pantaneiro encontra o seu ser. Na troca de prosa ou de montada, ele sonha por cima das cercas. É mesmo um trabalho na larga, onde o pantaneiro pode inventar, transcender, desorbitar pela imaginação. (p. 33)
Por um lado este trabalhador se aproxima ao universo do homo-narratio, para reportarmo-nos novamente ao pensamento benjaminiano, no uso de sua capacidade inventiva de criar e transmitir suas experiências, as quais são inseparáveis do mundo que o rodeia. A enumeração dos verbos “inventar”, “transcender”, “desorbitar”, no infinitivo, traz uma movimentação ao trabalho monótono do pantaneiro, remete ao trabalho do homem ainda ligado ao trabalho manual, parecido ao do artesão e do próprio poeta, pois assim como este, “o pantaneiro vence o seu estar isolado, e o seu pequeno mundo de conhecimentos, e o seu pouco vocabulário – recorrendo às imagens e brincadeiras” (BARROS, 2003, p. 34). Nesse trecho é muito interesse notar a perspectiva adotada pelo poeta em relação à meditação desencadeada, a partir da própria construção da textura verbal, que remete ao ato de escrever enquanto trabalho de concretização. Dessa maneira, “Nos primórdios” (Idem, p.37) – poema inserido também na primeira parte de LPC – o “eu” que conta começa com o verbo “era”, utilizado no início da maioria das narrativas orais como fórmula usual: “era uma vez...”: Era só água e sol de primeiro este recanto. Meninos cangavam sapos. Brincavam de primo com prima. Tordo ensinava o brinquedo “primo com prima não faz mal: finca finca”. Não havia instrumento musical. Os homens tocavam gado. As coisas ainda inominadas. Como no começo dos tempos. (p. 37)
O verbo utilizado no pretérito “era” acompanhado pelo advérbio “só” remonta um tempo outro – o início de uma formação de sociedade ainda não nomeada, ainda não existente enquanto modelo, tal qual hoje concebemos. Remete, portanto, ao tempo mítico, ao tempo inaugural. O tom de contar se aproxima ao bíblico, mas atravessado de certa ironia: Logo se fez a piranha. Em seguida os domingos e feriados. Depois os cuiabanos e os beira-corgos. Por fim o cavalo e o anta batizado. Nem precisavam dizer crescei e multiplicai. Pois já se faziam filhos e piadas com muita animosidade. (p.37)
Apesar de apontar para um tempo passado, “Nos primórdios”, como atesta o título, essa voz que conta não é o do habitante daquela região, pois a construção sintática obedece ao padrão
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normativo das regras de construções frasais. No entanto, a temática escolhida e a maneira de exposição simples, com seqüência lógica, aproximam-se das narrativas orais. Sabemos que cada vez que se conta, ou se narra algo, é um acontecimento, situado de acordo com os fatores do meio e da cultura. Marca esta que apontamos como uma atualização do ato de contar nesta obra, assim como vamos perceber em outros “causos”, uma vez que o “Pantanal é muito propício a assombrações”. Um deles versa sobre os “lobisomens, que são uma espécie de assombração que bebe leite” (p.53). Assim, lemos nestes versos que: Houve quem tenha visto até lobisomen de chinelo. Vento que sopra na folha do rancho pode que seja. Passos no quarto da moça, imitando com passo de gente, já ouvi chamar de lobisomen. Parente de viúva aparece muito de noite. Pede mingau, pede vela e se vai. Às vezes até pede para a viúva acompanhá-lo do outro lado do mato, a fim que não fique extraviado o errante por esses cerradões de três pêlos. (...) Tem gente que não conhece lobisomem de vista. É muito difícil mesmo. Houve quem enviasse bilhete em pescoço de cachorro marcando encontro na hora que a lua tiver arta. Fazem caprichos. (p 53)
Outro “causo” é sobre a velha Honória que virou “serepente”, destino daquele que “termina de inteirar cem anos”, já que o “Pantanal tem muitos veios para esses indumentos” (p. 54). Foi o caso de uma velha Honória. Outubro ela sumiu de casa e tardou comprido. Dezembro apareceu de escamas na beira da vazante. Estava pisada na cacuncunda e os joelhos criaram cascão de tanto andar no tijuco. A língua muito fininha, ofídica, assoprava agora como no tempo de pegar a arca de Noé. Mesmo até raios de sol às vezes nela tremblavam. Hora teve que não se podia mais dizer se era ave estrupício ou peixe-cachorro. (p.53)
Percebemos, também aqui, certa atualização destes pequenos “causos” no ato de contar, realizado por meio do recurso da ironia, que é atravessado por outro elemento, o humor. A ironia e o humor são a grande invenção do espírito moderno, segundo Octavio Paz (2003, p.70-71). O humor nasce com Cervantes, lembra-nos Paz, e consiste em tornar ambíguo o que toca: “é um juízo implícito sobre a realidade e seus valores, uma espécie de suspensão provisória, que o faz oscilar entre o ser e o não ser.” (Idem, p. 71). No primeiro “causo”, o do lobisomen, Manoel de Barros retoma uma lenda popular conhecida em quase, ou, em todo o Brasil. No entanto, esse novo enredo toma uma fisionomia particular aqui, através do elemento da ironia, pois essa “assombração” é plenamente humanizada na descrição de suas ações: beber leite, entrar no quarto de moças, visitar viúvas fingindo ser parente. No segundo “causo”, o tom irônico também prevalece. Ao contrário das atitudes características humanas do primeiro, aqui a velha Honória recebe uma grande carga de animização como: criar escamas, ter língua “ofídica”, rastejar de joelhos ao invés de caminhar ereta. A ironia ganha uma carga maior, neste segundo “causo”, quando esta voz que conta traça uma comparação do acontecido com a velha Honória relacionada a outras lendas que tratam da transformação de pessoas em outras espécies. No entanto, essas pessoas transformadas voltam ao seu estado normal na resolução do feitiço ou do enigma ou até mesmo pelo término de um castigo ou por algum “gesto de amor”, mas aqui, a velha Honória não deseja voltar à sua forma inicial: Heróis gregos viraram de rochas de anêmonas de Água – freqüentemente. Porém desviraram logo, ao primeiro gesto de amor. Velha Honória parece que não pretende desvirar. Nem que a chamem de darling. (p.54-55)
A posição de quem conta fica bastante evidente ao situar-se ora num campo bastante criativo que aponta para uma subjetividade crítica nesses pequenos “causos”, por meio do par ironia e humor, ora no campo do mito, ao resgatar lendas da tradição popular, adequando-as ao espaço da região apontada.
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Câmara Cascudo, ao abordar sobre os elementos e temas da Literatura Oral (CASCUDO, 1952, p.31), começa por afirmar que por muito tempo acreditou-se ser esse tipo de produção (estória popular, anedota, ditado, adivinha, canto com letra) formado por elementos simples e reduzido à estrita função daquele uso e, como expressão local. Tal produção, também, serviria para o conhecimento dos vizinhos e entendimento dos estrangeiros ao apontar, por meio das estórias, características do lugar. No entanto, cada produção é constituída por “elementos justapostos, encadeados, formando o enredo, o assunto, o conteúdo.”, pondera Câmara Cascudo (Idem, p.31). Mesmo não se tratando de elementos novos e inéditos, essas ‘estórias’, sob várias nuances, aparecem em muitos outros lugares, próximos e distantes. A novidade, segundo esse estudioso, “consiste na forma tomada por esses elementos-temas para a combinação” (Ibidem) de cada uma delas. Essa combinação se dá pelos inúmeros elementos que o escritor lança mão em sua produção. O narrador desses “causos”, em LPC, não se comporta como simples transmissor daquilo que ouviu, não se coloca também como detentor de tal história, pois as modifica inserindo nelas elementos do cotidiano, como as ações da suposta assombração, o lobisomen, e por vezes, elementos que remetem ao espaço alagadiço e brejoso do Pantanal, como “beira da vazante”, citado no penúltimo trecho. Fatores estes que tornam responsáveis por denunciar no espaço uma região, e no tempo uma época, segundo Câmara Cascudo (Ibidem), marcando com isso um caráter universal nessa produção. Segundo Walter Benjamin, “quem escuta uma história está em companhia do narrador; mesmo quem a lê partilha dessa companhia” (1986, p. 213). Ato que se diferencia do estado solitário do leitor do romance, na opinião desse crítico. Assim, somos convidados, por várias vezes, a “ouvirler” outros pequenos “causos” e outras pequenas lendas distribuídas nas páginas do LPC, como se o “eu” que conta se dirigisse não somente ao seu narratário, aquele que está perto “ouvindo” a história nas páginas da obra, mas também aos seus leitores ou futuros leitores: “O caso eu aprendi de oitava, xará. Oive de mi” (p.80). Esse é outro elemento resgatado das fontes orais nessa obra e que, de certa maneira, traz o objetivo de fornecer um contexto sobre a formação humana, vegetal e animal do espaço pantaneiro. Em nossa opinião, algumas dessas pequenas “estórias” que lemos remetem a experiências e conhecimentos bastante particulares, os quais acreditamos que só podem ser contados ou transmitidos por uma pessoa que mantém ou manteve contato mais próximo com o interior daquela região e daquela cultura específica. No entanto, vale a pena ressaltar que toda essa carga de vivências, que insistimos em apontar, na produção desse poeta vem atravessado pelo trabalho crítico e subjetivo da linguagem, papel de todo escritor que se atreve a pisar no terreno movediço e oscilante das imagens, no mundo indizível da poesia, na constante fronteira da oralidade e a escrita. Octavio Paz afirma que “a verdade do poema apóia-se na experiência poética, que não difere essencialmente da experiência de identificação com a “realidade da realidade” (PAZ, 2003, p.50). Assertiva que respalda o que afirmamos acima e que reforça a nossa opinião de que a escrita de Manoel de Barros também é resultado de sua (con)vivência no e com aquele espaço, matéria de sua poesia. Encontramos em LPC, outras passagens que apontam para certas particularidades daquela região. E mais uma vez o ato contado é reatualizado e marcado pelo crivo do sujeito da enunciação, com o objetivo, nesta obra, de aludir à origem, hábitos, crenças e costumes de um determinado povo, conforme atestamos: Pois foi esse o povo ladino, sensual e andejo que um dia atravessando o rio Taquari, encheu de filhos e de gado o que se chama hoje, no Pantanal, a zona da Nhecolândia. (p. 75)
O ato de dormir em redes, por exemplo, é ainda hoje um costume bem típico do interior de Mato Grosso, ora para amenizar o enorme calor da região que constantemente chega a quarenta graus durante o dia, ora pela facilidade no aproveitamento do próprio material artesanal proporcionado pela cultura do plantio de algodão que, depois de colhido e transformado em fios resistentes, foram e são produzidos pelas mulheres, agora em menor escala, redes bordadas com vastas franjas, decoradas com motivos da região. Vejamos uma passagem em LPC:
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Anais do II Congresso Internacional de Estudos Linguísticos e Literários na Amazônia (CIELLA) Em 1926, o antropólogo Claude Lévy-Strauss, de viagem por ali, notou a pobreza dos móveis que encontrou no interior das residências. Dois ou três mochos na sala, arames de estender roupas nos quartos servindo de armário – e redes. Redes armadas por todos os cantos. Redes muitas de varandas artísticas, servindo de vasilhas de dormir e de sestear. (p. 74-75)
Outro elemento típico das regiões amazônica e mato-grossense, logo da região pantaneira, é o uso do guaraná em pó, substituindo, em determinados locais, sobretudo o rural, o café. Pelo positivo teor dos componentes ativos do guaraná, que ajudam no cansaço físico e mental no seu uso diário, muitas são as lendas referentes a esse produto, inclusive de atribuir ao guaraná certo poder afrodisíaco. O costume da utilização do guaraná, bem como de seus efeitos, ganha uma nova versão nesta obra. Após sabermos do costume típico da reprodução humana através do “hábito de sestear ao mormaço do meio-dia” sobre as redes, onde “se amulheravam e se afilhavam também”, pois “a blandícia do mormaço engendrava crianças” (75), gesto este apontado pelo ‘eu’ que narra como “coisa imanente e afrodisíaca, que muito deve ter influído nas tendências voyeurísticas daquele povo” (Idem), somos informados sobre o poder do guaraná: (...) bem como o hábito do guaraná que é bebida afrodisíaca, porém no seu ralar e não na substância da bebida. Eis que no ralar a mulher meneia os quadris. E o desejo dos homens provém do mover dos quadris. Coisa que eu não descreio. (p75)
Através da ironia, as potencialidades atribuídas ao guaraná ganham uma outra versão. A ironia é enfatizada pela última sentença que insere o consenso da voz que conta, marcada pelo pronome pessoal em primeira pessoa do singular “eu”: “Coisa que eu não descreio.” “Dos veios escatológicos”, a memória do “eu” que conta vai ao encontro de pequenos e corriqueiros acontecimentos e/ou comportamentos bastantes particulares da região rural de Mato Grosso. Assim lemos sobre uma vila que ainda não possuía instalações sanitárias como hoje conhecemos: Na Vila não se praticam latrinas. Donas desabavam em urinóis. E os homens no mato. Os porcos seguiam os homens pelos trilheiros que davam no mato. (...) Na hora do homem fazer força, quando a vaidade se acaba, justo aí chegavam os porcos famintos e, lhes entrando nos homens por debaixo, saíam com eles nas costas, quando lhes não prostravam na própria obra. (p. 73)
A estória popular, segundo aponta Câmara Cascudo, “é revelador dos dados imediatos de psicologia coletiva, humor, alegria, compreensão, sentido social e humano, crítica, sátira, consagração e repulsa” (CASCUDO, 1952, p261). O elemento do humor revela o lado psicológico desse “eu” que informa satirizando sobre pequenos atos desse povo “ladino” que um dia atravessou o Rio Taquari, ao mesmo tempo, esse contador acaba por atualizar esses atos, injetando nesse contar sua versão particular, ou melhor, esses atos contados se modulam a essa nova versão dada (BRUNER; WEISSER, 1995, p.144). Essa atualização de “causos” e de pequenos contos que afirmamos acima faz parte do trabalho poético e experiência de Manoel de Barros e se realiza aqui através da chamada memória semântica (Idem, p. 147), um dos três diferentes sistemas de transmissão da memória humana, que consiste na capacidade dessa memória conter uma função esquematizadora e extremamente eficaz, não somente de selecionar e organizar vastas quantidades “de material armazenado em padrões de significado, mas também de ‘girar em torno’ de esquemas já formados e reorganizá-los segundo as intenções e atitudes” (Ibidem). Portanto, esse sistema de memória além de fornecer um repertório, possui a capacidade de transformar, alterar, modificar tal repertório. Essa capacidade atribuída à memória semântica, sobretudo relacionada ao poeta, vem perpassada por um outro fator, a imaginação que, segundo Octavio Paz concebe, é “a condição necessária de toda percepção; e, além disso, é uma faculdade que expressa, mediante mitos e símbolos, o saber mais alto” (PAZ, 2003, p. 78), o do campo poético.
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Referências ALMEIDA, Marinei. “Entre vôos, pântanos e ilhas: Um estudo comparado entre Manoel de Barros e Eduardo White”. São Paulo: FFLCH – Universidade de São Paulo,2008. [Tese de Doutorado – 213f]. BARROS, Manoel. Gramática expositiva do chão – poesia quase toda. Rio de Janeiro: Civilização, 1990. _____. Poemas concebidos sem pecado. 4. Ed. São Paulo/ Rio de Janeiro: Record, 1999. _____. Livro de pré-coisas. 4.ed. São Paulo/Rio de Janeiro: Record, 2003, p., 9. BENJAMIN, Walter. Magia e técnica, arte e política: ensaios sobre literatura e história da cultura.7 Ed. São,m Paulo: Brasiliense, 1994. (Obras escolhidas; v. 1) BOSI, Alfredo. O ser e o tempo da poesia. São Paulo: Cultrix,1993. BRUNER, Jerome e WEISSER, Susan. “A invenção do ser: a autobiografia e suas formas”. In: OLSON, Davi; TORRANCE, Nancy. Cultura escrita e oralidade. São Paulo: Ática, 1995. CASCUDO, Luís da Câmara. Literatura Oral – Vol. VI. Rio de Janerio: José Olympio, 1952. CASTELO, José. “Manoel de Barros busca o sentido da vida”. In: O Estado de São Paulo. São Paulo: 03 de ago. 1996. Caderno 2, p. 12. HAVELOCK, Eric. “A equação oralidade - cultura escrita: uma fórmula para a mente moderna”. In: OLSON, Davi; TORRANCE, Nancy. Cultura escrita e oralidade. São Paulo: Ática, 1995. LEITE, Ana Mafalda. “Da poeticidade à narrática”. In: A Poética de José Craveirinha. Lisboa: Veja, 1991. PAZ, Octavio. O arco e a lira. (Trad. Olga Saravy). Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1982. _____. Signos em rotação. 3. Ed. São Paulo: Perspectiva, 2003.
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A REPRESENTAÇÃO DA POBREZA SOCIAL NA FICÇÃO BRASILEIRA DO OIAPOQUE AO CHUÍ Marisa de Assis SOUZA (Universidade de São Paulo)
RESUMO: Este estudo visa descrever a representação da pobreza social na ficção brasileira como um novo mapa no formato de cartomorfose literária, obtido a partir do conjunto dos fatos e dados presentes na urdidura da ação. Em poucos ela é descrita qual parte da paisagem humana, em certas ficções aparece sob a configuração de um compromisso ideológico, em outras é um desabafo da condição de quem a vivenciou, ou pode formar o equivocado tripé: pobreza, desigualdade social e vontade política como causas da criminalidade. É possível verificar que, às vezes, a ficcionalização da pobreza parece pouco verossímil. Essas possibilidades estão presentes nas obras de Erico Verissimo (O tempo e o vento), Carolina Maria de Jesus (Quarto de despejo), Paulo Lins (Cidade de Deus), Miltom Hatoum (Relato de um certo Oriente/Dois irmãos) –– realidades sociais do Brasil de 1750 aos dias atuais. PALAVRAS-CHAVE: Cartomorfose literária; Compromisso; Double Bind; Paisagem; Pobreza.
RESUMEN: Este estudio tiene como objetivo describir la respresentación de la pobreza social social en la ficción brasileña como en un nuevo mapa en el formato de la cartomorfose literaria, obtenidos de todos los conjuntos de los hechos y datos presentes na urdimbre de la acción. En algunas novelas se describe lo que el paisaje humano, en algunos de ficción aparece en la configuración de un compromiso ideológico, em otras es un desahogo de la condición de quienes han experimentado, o puede servir de mal trípede: pobreza, desigualdad social y voluntad política como causas de la delincuencia. Es comprobable que a veces, la ficcionilización de la pobreza no parece probable. Estas posibilidades están presentes en las obras de Erico Verissimo (O tempo e o vento), Carolina Maria de Jesus (Quarto de despejo), Paulo Lins (Cidade de Deus), Milton Hatoum (Relato de um certo Oriente/Dois Irmãos) –– la realidad social del Brasil em 1750 a la fecha actual. PALABRAS CLAVE : Cartomorfose Literaria; Compromiso; Double Bind; Paisaje; Pobreza
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1. Introdução Refletir a respeito das condições sociais dos desassistidos no contexto da literatura brasileira requer uma investigação em relação a certos aspectos do Brasil e da prosa editada no país a partir de 1960. Tal atitude implica um olhar que vai além de épocas e lugares, acima dos entusiasmos em face de uma região geográfica no contexto das sociedades contemporâneas, até finalmente, constatar como os autores conseguem inscrever sua obra no espaço sem fronteiras que é a Literatura. A elaboração de qualquer crítica começa desta tomada de consciência da estética textual. O pesquisador esquece os rótulos e lembra que toda arte em geral tem um caráter e uma destinação universal. Ao agir assim, o crítico ou ensaísta perceberá de maneira bem nítida a noção de que todo texto é sempre regional, à medida que ele é uma experiência do criador, porém incessante em seu compromisso com a universalidade do particular e a transformação do regional em universal –– fronteira de um mapa por fazer. Visto por esse ângulo, o estudo da representação ficcional da pobreza, seja ela do norte ou do sul, nacional ou estrangeira, não é um análise regionalista desse fato social. O intuito desta é outro, é o de verificar como alguns autores fizeram essa inclusão. Em poucos ela surge integrada a paisagem humana; em outros ela é retratada como compromisso ideológico, mais marcadamente do que outra coisa, em poucos, ela é um desabafo de um fato concreto experimentado. Por fim, existem aqueles que caem na armadilha de interpretar a pobreza, a desigualdade e vontade política como causas da criminalidade. Desse modo, a literatura transforma o perímetro da área ficcional no verbo transitivo direto –– fronteirar: tornar fronteiros os habitantes dos mais distantes lugares quando os dispõe frente a frente a pobreza, ou quaisquer outros fatos sociais como expressão limite de articulações culturais dinâmicas em suas mais diversas faces. Ao extrapolar o debate da distribuição da riqueza entendida restritamente ao fenômeno monetário, igualmente inclui dentro dos limites da nação, os aspectos político, religioso e social do país ao problema da penúria, da escassez. Dito ficcionalmente: de leste a oeste, dos pólos a linha do Equador as reiteradas caracterizações da pobreza desenham uma outra cartografia, diferente daquela elaborada para representar parte do mundo, até mesmo todo ele, de espaços menores de uma região ou cidade. Tampouco é uma cartografia militar de cunho estratégico. Mas, estranhamente é tudo isso. Transforma-se num mapa temático, no qual símbolos quantitativos e qualitativos do fenômeno a ser representado são mostrados em sua distribuição espacial. Curiosamente, “quase se concretiza na forma de um cartograma, cujo desenho denota a população e o uso do espaço onde estão inseridas”. Do mesmo modo, “assemelhase a uma anamorfose pela distorção de um espaço real retratado para se tornar proporcional a uma das variáveis que está sendo representada” –– as sequelas da desigualdade social e da concentração de renda. Assim sendo, o termo regionalista empregado para o estudo dos contrastes sociais presente na literatura torna-se obsoleto. O universo ficcional deve ser visto como um novo mapa no formato de cartomorfose literária, obtido a partir do conjunto dos fatos e dados descritos na urdidura da ação. Ele não pressupõe um centro, o percorrer de um ponto de partida para um outro de chegada, não se limita a descrever os aspectos que diferem o interior e a metrópole. Pelo contrário, o interesse maior desse tipo de caracterização é o conteúdo mostrado: o acesso às informações descritas pelo narrador, como este compõe um lugar para onde convergem as coisas simbólicas inseridas nas particularidades de um chão histórico. Mais do que isso, cartomorfose literária é um ambiente usado para a elaboração de situações atemporal ou não, que provocam interesse e concorrem para um determinado desenlace de uma época. Por um acaso, transforma-se no campo de debate de determinados temas de maneira exaltada ou diminuídas exageradamente no contexto criado e consequentemente se remete para um espaço cultural mais amplo que o narrador pretende chegar. Isto é, no espaço maior dos enredos desenrolam-se os conflitos humanos daqueles que vivem no mais diversos cantos do Brasil e do mundo. E, inserido nesse espaço maior, encontra-se o espaço menor. É nesse pequeno universo elaborado que as experiências de todos os personagens são remodeladas pela cartomorfose literária e lançam o indivíduo diante de um quadro, no qual os sujeitos
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são alocados em um espaço-tempo moldado por uma tensão entre a subjetividade individual e a coletiva. Os acontecimentos, conflitos e distinções –– fontes indiscutíveis dos interesses, moralidade, política, economia, lutas do cotidiano, discriminação e o preconceito –– aí se desenrolam de maneira dicotômica a realidade significativa e a modalidade que opera sobre as ações dos atores das histórias narradas. Lugar onde enunciado e enunciação se envolvem em processos representativos, responsáveis pela organização do desfecho do texto ficcional. Enfim, não segue necessariamente os limites das fronteiras estaduais, nacionais ou internacionais, pois seus critérios incluem múltiplos fenômenos cujo dinamismo implica uma delimitação e existência de elementos que dão certa homogeneidade a essas áreas. Em virtude das desigualdades locais, o alcance dessa crítica, o tipo de explicação que ela propõe tem por objetivo instigar o leitor a pensar a respeito das complexas relações existentes entre os temas retratados. Incitá-lo a observar a maneira como as pessoas reagem, ignoram ou se acomodam frente às instituições que tem a função de resolver as especificidades dos problemas desse mesmo complexo espacial num dado momento. A partir desse alerta, acompanhar, avaliar e fazer um diagnóstico da pobreza urbana ou não descrita na literatura brasileira é um desafio quádruplo, quando não se tem uma noção profunda do funcionamento do sistema público, das instituições financeiras, das estratégias de organização e desenvolvimento para locais completamente diferentes. Primeiro, porque os pobres constituem a maior parte da população urbana. Desse modo, no discurso nacional ela figura-se como sinônimo de povo. Segundo, enquanto categoria social se tornou alvo de teorias a respeito de seu papel nas sociedades em desenvolvimento. Terceiro, a freqüente representação da pobreza nas artes –– literatura, cinema e outros sistemas semióticos contribuem para demarcá-la negativamente como enunciação genuína, às vezes legítima das desigualdades sociais. Por fim, as formas elaboradas de representação da pobreza, propiciam um fascínio ambíguo, despertado por sua presença nos meios de comunicação, bem como nas artes. Indiretamente não só reforça, mas reconhece como autentico o quadro de exclusão pela espetacularização da miséria e dos fatos que ela gera, dentre eles o banditismo. Há séculos os escritores de diversas partes do mundo descrevem as condições de classe em seus textos; as acusações dos excluídos carregadas de ódio; neles incluíram mensagens moralistas; o sentimento de senhor da terra e de escravos, incapazes de desenvolver com seus subalternos relações liberais; as condições de vida do homem do campo e da cidade, as privações dos habitantes de bairros miseráveis e dos moradores de condomínios fechados de luxo; do providencialismo transformado em ferramenta para incitar o pobre à resignação na miséria, levando-o à aceitação dos problemas cruciais de sua existência, mediante a esperança de uma recompensa futura; a luta por geração de oportunidades e de um mapa da mina dos expedientes usados por seus personagens para alcançarem com facilidade um objetivo difícil ou custoso. Mais do que isso, o percurso temporal proporcionado pelo conjunto das obras permite a observação de um processo da primazia do relacional sobre o individual, do hierárquico sobre o igualitário. Na década de 1950, Josué de Castro usou a expressão círculo vicioso da miséria e da fome para explicá-las e enfatizar a relação entre o biológico e o social. Ela não compreende apenas a inanição, mas sim todas as formas visíveis e ocultas, reveladas pelos exames laboratoriais, ou pelos coeficientes de mortalidade de numerosas doenças, que não passam afinal de disfarces da fome. A fome constitui um fenômeno universal, uma expressão biológica de males sociológicos em íntima relação com as distorções econômicas (CASTRO, 1984, p. 115). Ela também atua sobre a estrutura mental humana e a conduta social quando alcança os limites da inanição. Contudo, autores mais recentes, entre eles, o antropólogo Luiz Eduardo Soares admite que “a duplicidade dos modelos culturais tende a ser vivida pela sociedade, como mensagem dupla (doublé bind), que gera práticas e valores contraditórios [...] multiplicando cenas potencias de humilhação” (SOARES, 2000, p.36-37). De um lado todos os indivíduos fazem parte de uma cidadania legal, mas, na prática os exclui e beneficia as elites. Esta condição produz uma outra face do panorama social brasileiro em relação à moradia, saúde, alimentação, e a violência na representação dos menos privilegiados.
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2. A pobreza como paisagem Dos sete volumes que compõem O tempo e o vento, O Continente, O Retrato e O Arquipélago contem não só o relato da história da família Terra Cambará, igualmente é redigida simultaneamente a história do Rio Grande do Sul como a do Brasil –– inicia com um episódio nas Missões Jesuíticas, em 1745 e acaba cronologicamente em 1945, com a queda de Getúlio Vargas, que representa o crepúsculo da dominação dos estancieiros gaúchos sobre o país. Ao longo da trilogia, sucedem-se as linhas de fronteira, que opunham lusos e brasileiros a espanhóis e a implantação lenta dos progressos técnicos da civilização. Um dos recortes possíveis desse romance se refere à formação da classe dominante do Rio Grande do Sul. Uma camada social que se fortaleceu no período colonial, estabelecendo-se economicamente durante o Império, mas chegou ao poder apenas com a República. Parte da história gaúcha, dos últimos decênios do século XVIII e de todo século XIX é descrito nos volumes de O Continente. O narrador delineia, principalmente, a origem da sociedade sul-rio-grandense sob o controle de uma elite audaciosa, guerreira e sanguinária em consequência das lutas fronteiriças e de revoluções fratricidas. Por conseguinte, a história do povo humilde, os sonhos triviais de Zé Borges de ter o seu trigal, possuir uma casa; de Maneco Terra obter o título de uma sesmaria; o desejo do negro Caré de montar seu próprio cavalo; como os índios das missões foram usurpados pelos jesuítas; as dificuldades financeiras dos trabalhadores tanto dos Amarais quanto dos Cambarás; a vida dos soldados que voltaram aleijados das inúmeras guerras e os estancieiros que tiveram suas terras griladas se perdem em meio à gênese da família Terra Cambará. O território gaúcho foi ocupado simultaneamente por ação privada e intervenção estatal. A primeira, nas bandas dos Campos de Cima da Serra, e comandada por aventureiros sorocabanos e lagunenses, estendeu-se rumo ao oeste e ao sul da região, em busca de planícies férteis para o pastoreio. A segunda, mais litorânea, por meio da imigração açoriana e do estabelecimento de fortificações militares pelo Estado português. Ambas encaminharam e se unificaram, no entanto, em um grande objetivo comum: a ocupação da terra e do gado selvagem alçado. Mais especificamente no primeiro volume de O Continente, as passagens estão marcadas de críticas sociais, principalmente em relação à violência e aos privilégios que originaram uma sociedade onde terra era sinônimo de desigualdade, isto por ser uma região esquecida pelas autoridades, permeada de disputas por espaços e fronteiras. A divisão indignava os pobres pelo fato de muitas sesmarias e empréstimos serem dadas sempre para os mesmos homens. Esses prosperavam, compravam escravos, pediam e conseguiam mais lotes, assim de pequenos lavradores ascenderam em grandes estancieiros. A terra era repartida para quem tivesse dinheiro, pudesse plantar, colher, ter escravos e povoar os campos. A justificativa para a falta de justiça e decência dada a Maneco Terra era que o governo fazia tudo que os grandes estancieiros pediam porque precisava deles. O Estado não podia manter guarnições muito grandes de soldados profissionais nas áreas da fronteira, então contava com esses fazendeiros, aos quais apelava em caso de guerra. Assim, transformados em coronéis e generais, eles vinham com seus peões e escravos para engrossar o exército da Coroa. Em recompensa de seus serviços recebiam às vezes títulos de nobreza, privilégios, sobretudo mais terras. (VERISSIMO, 2004a, 125-126). Isto é, o governador não cedia terras para qualquer um que fosse ao paço pedir terras, botavam-no para fora. O resto, o povinho continuaria mal assistido. Era claro que, quando havia uma questão entre esses graúdos e um pobre diabo, era sempre o ricaço quem tinha razão. Todavia, Padre Alonzo sempre via aquele pedaço de terra com um outro olhar. A brisa que soprava ao redor das missões exalava um suave perfume de macela. A paisagem não era trágica como certas regiões da Espanha. Pelo contrário, era pura linha de cores. As coxilhas verdes recobertas de macegas cor de palha aqui e ali transmitia a idéia de simplicidade e ingenuidade, uma aquarela pintada pela mão duma criança. Quando escrevia aos parentes e amigos, Alonzo não esquecia de elogiar a organização das reduções. A produção das lavouras e estâncias pertencia à comunidade. Do dinheiro apurado na venda de erva-mate e outros produtos que exportavam para o Rio da Prata, pagava
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impostos ao rei da Espanha, o governo era encarregado de dar assistência às viúvas sem arrimo. Muitos índios, além da língua nativa, falavam latim e espanhol. Eram músicos capazes de provocar lágrimas naqueles que os ouvissem. (VERISSIMO, 2004a, p.53-56). Para Alonzo, a comunidade dos Sete Povos era a gênese das mais belas civilizações de que o mundo teria notícia. Este aspecto persistirá em O Retrato, por meio de um discurso mais elaborado. O que move a história no plano político é a candidatura ao Senado do Marechal Hermes da Fonseca, desafeto do Dr. Rodrigo Cambará. As páginas dos dois volumes relatam as primeiras décadas do século XX: o momento em que os velhos oligarcas são substituídos por caudilhos ilustrados, entre eles o Dr. Rodrigo. Um diálogo entre este doutor e o positivista amigo, o Tenente Rubim termina por fazer uma aproximação entre o nordeste e o sul enquanto assistem à passagem dos desanimados grupos carnavalescos. Para Rubim os rapazes estavam sérios, solenes, marchavam numa cadencia quase militar. Rodrigo não gostou quando o amigo chamou o povo de triste, a cumprir um dever cívico ou religioso. Ele retruca da seguinte forma: passamos “a vida brigando desde os tempos do povoamento do Continente. Tivemos onze campanhas em setenta anos, veja bem, onze!. Não nos sobrou tempo para fazer música, dançar ou cantar. [...] Praticamente trabalhávamos com a enxada numa mão e a espingarda na outra”(VERISSIMO, 2004b, p.182). Isto é, o tema aos poucos muda: passa para a arte popular e a imaginação, os perigos constantes, os homens sempre lutando, as guerras de fronteiras e tratados, depois para as condições em que sempre viveu o povo gaúcho. Mesmo assim, os pobres e os miseráveis não fazem parte da sociedade descrita. Por fim os três volumes de O Arquipélago mostram não apenas a derrocada da família dirigente e a decadência política dos estancieiros gaúchos, como também a emergência vitoriosa dos novos grupos sociais, especialmente dos alemães e dos italianos. Em Encruzilhada, a última parte, tem um título que define a situação em que a família Cambará e o país encontra-se naquele final de 1945, eles estão numa encruzilhada da vida. A população que reside nos bairros imundos, desprovidos de quaisquer benefícios pouco aparecem, embora o narrador tenha conseguido ampliar as fronteiras do texto ao relacionar as dificuldades da aprovação de projetos para o desenvolvimento do povo gaúcho ao governo central, sediado no longínquo Rio de Janeiro. Por isso mesmo, o drama da sobrevivência social é deslocado para um outro registro, em que a carência é mais simbólica do que econômica. 3. A pobreza como desabafo Em O quarto de despejo (1993), Carolina de Jesus descreve a pobreza sob a configuração de desabafo. Registra por meio de uma narradora homônima em primeira pessoa todas as sequelas deixadas pela desilusão, do desamor e principalmente o desespero da fome. Nele a pobreza é um estado social de carência efetiva no qual é muito difícil lutar devido ao imediatismo do consumo e dos recursos que a narradora-personagem busca em seu dia-a-dia, para a manutenção de um barraco situado em uma favela, seu próprio sustento e dos três filhos. A falta de perspectiva de mudança da constante penúria, da condição social negativa, tem como base de sustentação a luta da protagonista contra a pobreza e a insatisfação pelo trabalho, realizado num constante recomeço. Hoje igual ontem, amanhã igual hoje. Nessa mesmice, o dinheiro e a personagem coisificam-se. O trabalho transforma o papel, o ferro, o plástico colhido do lixo em arroz, feijão e roupa. A pobreza é uma materialidade manifestada nos estados psicológicos contraditórios da narradora, ora alegria, ora ódio, em alguns momentos de plena satisfação, noutros, total revolta pelo eterno retorno às avessas: fome-trabalhosobrevivência, ao invés de alimento-ócio-prazer. Em Geografia da fome escrito em 1946, o tema era atual e próximo ao período da ambientação dos relatos de Jesus. Josué de Castro denunciava que a fome e a miséria constituíam um dos tabus da civilização, que nem a ciência e tecnologia foram capazes de eliminar. A sua compreensão do problema é o resultado da observação atenta de duas vertentes. Entendia que a fome não é, necessariamente, a falta de alimentos e tampouco é um fato natural. A primeira está relacionada à alimentação inadequada. A segunda é produto das relações econômicas que possibilitam apenas uma parcela da população ter acesso aos bens produzidos. Assim a fome decorre da ação do próprio homem.
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Carolina tem consciência da extensão de sua pobreza. Sabe que a condição financeira afeta não só a sua barriga, mas igualmente sua aparência. Ao tropeçar e cair, um homem ao vê-la suja, associa o tombo a fome. Mas ela sabe que a razão é outra, estava com muito sono. Então pensou em uma solução. Andaria com um cartaz preso em suas costas para explicar o motivo de sua sujeira. Há “duas semanas que eu não lavo roupa por falta de sabão. As camas estão sujas que até dá nojo” (JESUS, 1993, p.89). Não ficou revoltada com as palavras ouvidas, sua indignação era outra. Uma delas era a frase que repetia incessantemente em seu cérebro “Comida! Comida! Comida!” (JESUS, 1993, p.153). Uma obsessão que não conseguia controlar. Ela entrara na fase em que os interesses vitais e todos os outros desejos desapareceram e “o pensamento se concentra exclusivamente nas possibilidades de encontrar alimento” (CASTRO, 1984, p.136). A personagem sabia que a fome e suas consequências igualmente era um dos diversos motivos de sua aparência tão velha. Diante do espelho viu o quanto seu rosto era quase igual ao da falecida mãe. Estava “sem dente. Magra. Pudera! O medo de morrer de fome” (JESUS, 1993, p.153). Provavelmente isso fosse para a narradora-personagem a constatação mais dura de aceitar. Todavia, Carolina não opta pelo caminho curto e mais fácil para obter os bens necessários a sua família –– possibilidade já prevista por Castro. Para o médico e cientista social a fome “cria um meio social extremamente receptivo às atividades tanto do banditismo quanto do misticismo [...] as belas qualidades desaparecem como que por encanto nos períodos de fome” (CASTRO, 1984, p. 56). A fome e miséria desencadeariam certos fenômenos sociais tais como banditismo, prostituição, depravação carnal, tudo como conseqüência mais ou menos direta dos efeitos dissolventes da fome. O ser humano disciplinado, trabalhador, industrioso e honesto desaparece. Outras oposições são feitas por ela além da riqueza/pobreza, condomínio fechado/favela, brancos/negros, luxo/lixo. Trata-se da relação iguais/marginais. Em sua simplicidade consegue discernir a diferença entre a falta de políticas públicas e marginalidade. Era fácil atribuir a delinquência à população favelada, dela ser o lugar propenso a formação desse tipo de pessoas. Então se os dirigentes do país sabiam dessa estreita relação, por que Jânio Quadros, Juscelino Kubitschek e Adhemar de Barros não resolveram o problema?Assim como respostas, seus relatos eram uma espécie de “aviso aos pretendentes a política, é que o povo não tolera a fome. É preciso conhecer a fome para saber descreve-la [...] O Brasil precisa ser dirigido por uma pessoa que já passou fome. A fome também é professora” (JESUS, 1993, p.153). Por isso ela odiou todos eles e se pudesse os matava, os enforcava ou os queimava. Carolina deixou de ser a mulher resignada. Suas palavras expressam sua consciência a respeito das explicações hipócritas dadas não só aos favelados, mas igualmente a todos os destituídos da abundância. Com um olhar fixo na cidade de São Paulo e nos políticos que visitam as favelas durante as campanhas eleitorais, mas após a vitória não escrevem um projeto para humanizá-las, e de lá somem; Carolina faz um resumo que se presta ao Brasil: “Eu classifico São Paulo assim: O Palácio é a sala de visita. A prefeitura é a sala de jantar e a cidade é o jardim. E a favela é o quintal onde jogam os lixos” (JESUS, 1993, p.28). Em outras palavras, Brasília é a sala de visita, o Senado e a Câmara dos Deputados a sala de jantar, os governos estaduais e as prefeituras o jardim, e grande parte do país, o quintal onde tudo está por fazer. Não exclusivamente o problema da fome, mas do mesmo modo os políticos deveriam olhar para a criança, o negro, o velho, os pobres. Com certeza o dia 13 de maio fosse uma data de luta contra a todos os tipos de escravidão, falta de escola e professores qualificados, assistência médico-hospitalar, estradas de qualidade e seguras para o transporte de bens duráveis e perecíveis. Provavelmente o país não tivesse tantas favelas. Isto é, todo um conjunto de relações sociais e econômicas que determinam as ideologias, e por isso mesmo ultrapassa o discurso visível da revolta de uma favelada a relacionar falta de rede de esgotos e de abastecimento de água, da casa as escuras, dos desabrigados das enchentes, dos barrancos ameaçados de cair a qualquer hora. 4. A ausência de legitimidade da cidadania nas distinções de ordem social Tanto Relato de um certo Oriente quanto Dois irmãos de Miltom Hatoum mostra o lado aviltante da cidade de Manaus: os segredos familiares, processos diversificados da discriminação e do preconceito. As empregadas da casa destes romances conhecem de perto a dimensão do desprezo e da humilhação.
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Elas são submetidas a todo tipo de constrangimento, a constância de trabalhar sem salário em troca de um canto para morar e comida para os filhos. Materializam em si todos os significados do verbo servir. Estavam lá para prestar serviços de qualquer natureza, os patrões se consideravam uma dádiva de Deus, seus benfeitores, que haviam as retirado da orfandade. Em retribuição deveriam realizar as tarefas da casa como préstimo ao casal e aos seus filhos, em troca, tomar para si uma porção dos alimentos. Porém, jamais se misturariam, viveriam isoladas em seus quartinhos de fundo. Foi nessas condições que Anastácia Socorro chegou à casa de Emilie. Ela fora escolhida entre as demais meninas abandonadas nas salas da Legião Brasileira de Assistência. Dos diversos aspectos descritos pelo narrador relacionados ao contraste da condição social entre a empregada e o senhor, dois momentos isolados referentes a um mesmo ato apresentam a medida exata para essa distinção. A comilança dos patrões e a comilança de Anastácia e seus afilhados. Em algumas reuniões de sexta-feira havia cantoria, poemas místicos ou fábulas de Attar eram recitados, o Canto da Rosa era evocado, as conversas eram proferidas exclusivamente em árabe. Era o momento mais alegre e exótico do ritmo habitual da casa durante a ingestão de diversificadas iguarias. Mas, aos domingos, Emilie sempre reclamava de Anastácia, achava que ela comia igual a uma anta, e quando os parentes da empregada apareciam a patroa arrumava uma ocupação qualquer para todos eles. Como recompensa, “os fâmulos não comiam a mesma comida da família, e escondiam-se nas edículas ao lado do galinheiro, nas horas das refeições. A humilhação os transtornava até quando levavam a colher de latão à boca” (HATOUM, 1991, p.86). Embora ela nunca tivesse pago um tostão as empregadas e lavadeiras da casa, outros membros da família julgavam ter o direito de maltratar as serviçais. Algumas “entravam num dia e saiam no outro, marcadas pela violência física e moral.[...] Vozes ríspidas, injúrias e bofetadas também participavam deste teatro cruel no interior do sobrado” (HATOUM, 1991, p.86). Era um jeito estranho e novo de escravidão o qual Dorner, fotógrafo alemão freqüentador da casa bem resumira um dia. Para ele, o açoite vinha configurado na forma de humilhação e ameaça, as correntes e golilhas estavam presentes na comida e na integração ilusória à família do senhor. Em Dois irmãos, Nael, ex-residente de um velho bairro portuário de Manaus, palco de inúmeras cenas causadoras de revoltas e indignações, trinta anos depois volta, onde foi criado para tentar construir sua identidade. Por meio de sua narrativa é apresentada a discriminação sofrida tanto por parte dos patrões quanto dos vizinhos, ao ser considerado o filho da empregada e um dos filhos gêmeos da casa onde sua mãe trabalhava. Após a morte dos pais Domingas fora levada para o orfanato de Manaus. Ali aprendeu a ler, escrever, costurar, bordar, lavar banheiros e as roupas das irmãs. Um dia, foi levada para a casa de Zana e Halim. Anos mais tarde, quando quis sair de casa e passear um pouco a “patroa estranhou, mas consentiu, desde que Domingas não voltasse tarde” (HATOUM, 2000, p.74) Foi a única vez que mãe e filho deixaram a casa onde trabalhavam. Nunca foi reconhecida a posição de Nael como membro da família. Ele dormia num quartinho construído no quintal, fora dos limites da casa. Além disso, tinha de conviver com a idéia de aceitar aquilo que sobrava dos gêmeos –– roupas, livros e até uma vaga na escola, alcunhada Galinheiro dos Vândalos. E, no meio de tantas injustiças, ele presenciou anos a fio sua mãe ser explorada, impiedosamente, até seus últimos dia de vida. Os dois romances proporcionam ao leitor o sentido da representação de um grupo no espaço manauara. Presta-se, à descrição de muitos trabalhadores que em sua pobreza financeira e educacional caem na armadilha do serviço escravo, sem as garantias trabalhistas. Tornam-se sujeitos da double bind descrita por Soares: “você é um indivíduo e, portanto, um cidadão igual aos demais, sob a lei e as instituições do Estado; você não é um indivíduo como todos os outros e deve respeitar os limites de sua posição na rede hierárquica de relações interpessoais” (SOARES, 2000, p.37). O pobre, o subalterno, deve colocar-se em seu lugar, não acreditar na existência de igualdade entre as classes. Numa sociedade estratificada, em que os subalternos vivem numa privação e numa dependência cujo símbolo maior é a inadequação pecuniária do amor entre os moradores da casa e o ilegítimo Nael e Domingas devem aceitar a condição de excluídos sujeitos à margem da sociedade.
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5. A pobreza não pode ser o sinônimo da contravenção Explicar certas condutas violentas, muitas vezes sem motivo aparente, apenas pelas dimensões objetivas, como a pobreza e outras variáveis estruturais, não deixa de ser pertinente, mas é inadequado. A resposta para a violência e o crime não podem ser reduzidas ao costume que se tem de apontar a pobreza, a desigualdade e falta de vontade política como as três principais causas responsáveis pela criminalidade. É uma interpretação que dá margem ao engano. Viver em coletividade exige regras e renuncias, mas, na atualidade, esse princípio está alterado. As instituições que assegurariam esse pacto entraram em crise de legitimidade. Então, mediante a sensação de impunidade e o desejo de prazer total a própria sociedade dá origem a deprimidos e delinqüentes. Logo no início de Cidade de Deus de Paulo Lins uma frase chama atenção: “Antigamente a vida era outra aqui neste lugar”, os novos moradores levaram lixo, cães vira-lata, exus e pombagiras em guias intocáveis, no rosto e nos móveis as marcas das enchentes. Vinham em caminhões estaduais cantando “cidade maravilhosa, cheia de encantos mil”. A partir daí o leitor fica prevenido para o turbilhão dos fatos que envolvem a comunidade –– substantivo usado para amenizar a denominação da favela carioca. Mas, Zé Miúdo, assim que chega à Cidade de Deus faz o comentário definitivo e real para a denominação dada ao local. Conjunto o quê? Favela! Isso mesmo, mermo, isso aqui é favela, favelão brabo mermo. Só o que mudou foi os barraco, que não tinha luz, nem água na bica, e aqui é tudo casa e apê, mas os pessoal, os pessoal é que nem Macedo Sobrinho, que nem no São Carlos. Se é na favela que tem boca-de-fumo, bandido pra caralho, crioulo à vera, neguinho pobre à pamparra então aqui também é favela, favela de Zé Miúdo (Lins, 2004, p.219).
Com esse argumento o contraventor se determina não só no aspecto social, cultural, econômico e ideológico, mas igualmente a coletividade da favela em sua historicidade. Zé Miúdo, enquanto escarnece o conjunto e expõe suas vilezas (que são ao mesmo tempo o desdobramento das degradações do ambiente em que buscará galgar degraus na escala social), dentro de uma narração marcada pela tensão entre os métodos de brutalidade adotados por bandidos e policiais. Nesse ambiente, as notícias nos jornais do dia seguinte, era a recompensa esperada, uma vez que todo bandido tem que ser famoso para ser respeitado. Em poucos meses, cinco viaturas e dez camburões invadiram o novo bairro que figurava constantemente nas manchetes dos jornais em virtude dos contínuos assaltos, estupros e arrombamentos dentro e nas imediações da Cidade de Deus. Três tipos de indivíduos descritos pelo narrador caracterizam as várias faces da comunidade: os contraventores lá residentes, os policiais corruptos e os usuários vindos do asfalto. Zé Miúdo considerava o conjunto sua propriedade, o dono da rua, o rei, o jogo das armas. A violência para ele era natural, como se matar seis pessoas de uma só vez fosse algo a ser feito antes de dormir para o sono ser tranqüilo. Trata-se de uma violência ressimbolizada, um estilo do contraventor, usado como traço identificador, diferenciador de território. Miúdo tinha certeza que sua boca era a melhor de todas, até os playboys da Zona Sul o procuravam para comprar drogas. Ele atendia não só a Zona Sul, mas igualmente a Oeste, a Norte e os subúrbios da central. Estas condições o transformariam num homem rico em pouco tempo. (Lins, 2004, p. 218-219). Este tipo de perfil tanto agradava aos bandidos mais perigosos, quanto as jovens locais, por conquistarem uma posição de prestígio em virtude do conhecimento da violência de seus companheiros. Um recurso de expressão quanto uma estratégia de obtenção de visibilidade, sobretudo a partir da possibilidade da inserção de ambos no circuito de consumo com ressonância social. O local não era aterrorizado exclusivamente pelos bandidos. Policiais corruptos apanhavam alimentos nas lojas, padarias e mercados. Outros preferiam extorquir dinheiro dos moradores ou dos próprios bandidos, fazer negócio de uma parte das drogas e armas apreendidas. Além da Polícia Militar, os detetives e delegados da Polícia Civil também ganhavam suas comissões. Os policiais do bairro diziam que os coronéis ganhavam dinheiro. Os detetives acusavam os delegados. (Lins, 2004, p.217-218). Nesse embate de forças, bandidos e policiais corruptos criaram uma cartografia militar de
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cunho estratégico: quando e quem cercear, quanto tempo à parceria entre ambos seria conveniente e o momento certo para encerrar essa sociedade, via morte de algum membro dos dois lados. Essa relação ambígua faz que as camadas menos privilegiadas, constantemente tenham seus direitos negados. Isso fez surgir em 1980 uma representação do operário e do vigarista, da pobreza e da contravenção. Em A máquina e a revolta (2000) Alba Zaluar apresenta um estudo da Cidade de Deus real e desmistifica a inexistência de uma separação rígida entre bandido e trabalhador. Para a autora, ao contrário da polícia, o bandido tenta garantir a imunidade de sua área. Ao mesmo tempo “pode ser reconhecido como defensor do trabalhador [...] Diante da inevitável humilhação e da ausência de proteção policial e jurídica, o bandido transformar-se no vingador de seu povo” (ZALUAR, 2000, p.141). Em contrapartida, e por esse contrassenso no romance de Lins, a comunidade não se constrangia quando os marginais mais perigosos e os policiais corruptos eram assassinados de modo violento. Ao redor desses dois grupos gravitam os bicheiros, os matutos responsáveis de trazer bagulho e brizola boa na hora que eram solicitados, e proibir os assaltos nas redondezas para não chamar a atenção da polícia. Nesse caso, a prática de alguns roubos e furtos é simples reações à necessidade, pura resposta à fome, às doenças dos filhos, entre outras razões apontadas. Todavia Ana Rubro Negra após ser abandonada por Pouca Sombra, convida Joana e Nostálgica a deixar seus empregos. Ela chegara a conclusão que o retorno do trabalho de doméstica, prostituta, feirante e traficante de pequenas quantidades de droga era lento e muito pequeno. Seria melhor organizar uma nova estratégia. Combinaram de não falar na nova atividade a mais ninguém, de se alternarem nos mercados e agir nos dias de muito movimento. Com o passar do tempo “não eram mais aquelas, tinham dinheiro para levar uma vida que passava longe do campo da miséria, sem trabalhar em empregos que só fazem mal ao corpo e ao espírito. [...] trabalho pesado e dinheiro curto” (LINS, 2004, p.228). Nostálgica sempre argumentava que ela e suas comparsas não foram quem inventara aquele quadro de injustiça social, do racismo, o abandono da escola em detrimento do ingresso precoce no mercado de trabalho. Ela apenas queria “dinheiro para dar uma vida digna aos filhos [...] fazia de trinta a quarenta investidas nos mercados, sempre alcançando resultado positivo. Tiveram dinheiro para médico, dentista, alimentação e para o material escolar dos filhos. Não queriam mais do que uma vida digna” (LINS, 2004, p.228). Uma prática que mantiveram daí em diante por outras motivações. Aumentaram suas respectivas moradias, mudaram o vestuário, investiram em objetos de consumo tomados como símbolo de integração, status, prazer e poder. Logo, somente cada um desses sujeitos, dos três grupos acima pode conhecer o sentido de suas ações. Sob esse aspecto, a avaliação de Luiz Eduardo Soares e Alba Zaluar relacionados ao trabalho, ao banditismo, a contravenção e a violência são semelhantes. Para Soares (2000, p.27-35), o nó da história do Brasil é a aliança dos setores dominantes do campo e o da cidade, o acordo estabelecido pelas elites e o compromisso firmado pelas oligarquias. A transferência em massa das pessoas para as cidades, de modo caótico e em condições extremas de privações, exploração e miséria colaboraram para o quatro social do Brasil após a década de 1970. Portanto, a criminalidade não pode ser destacada unilateralmente, como única variável possível de definição em resposta para a miséria e a conservação das diferenças e suas consequências. Esse é o grande equívoco cometido por muitos. O propósito que orienta o fazer e o ter do trabalhador é a do ter, do possuir: casa, os mais variados bens duráveis, família, dinheiro, lazer, do acúmulo como condição para alcançar a felicidade. O contraventor tem os mesmos desejos. Desse modo, as ações de ambos convergem para um mesmo fim. Contudo, do ponto de vista do sistema de produção e distribuição, que por sua organização gera trabalhadores e marginais precisa ser modificado. Como afirma Zaluar (2000, 145), a lógica do bandido não pode prevalecer. O status do trabalhador, sujeito integrado, que possui objetivos definidos não pode ser rebaixado e qualificado como sinônimo de otário, que trabalha cada vez mais para ganhar cada vez menos. Desse modo, em alguns romances brasileiros, embora o discurso econômico esteja amenizado, não há uma separação definitiva das consequências do sistema capitalista. Isto é, se for pensado em 1970 em diante e mais contemporaneamente, é possível verificar que, às vezes, as
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tentativas de ficcionalizar a pobreza, no geral, parece inverossímil. Em cada época há um olhar e eventos sociais diferentes que compõem a ação ficcional. Dessa maneira, a reordenação da tradição literária brasileira mostra-se empenhada e interessada, o literato é de certo modo um historiador, um sociólogo à medida que observa e apreende o meio em que vive de um ponto de vista particular. Em cada tempo a construção de valores e registro daquilo que o Brasil já foi, como exemplo em O tempo e o vento, de Erico Verissimo; daquilo que grande parte do Brasil é em Quarto de despejo, de Carolina Maria de Jesus. A pobreza e a miséria no Brasil persistem como resultante de uma cruel concentração de renda, poder e propriedade que provoca a distância entre ricos e pobres. E, por isso mesmo desenvolveu uma ideologia explicativa da desigualdade social como algo inerente a toda e qualquer sociedade ou mesmo dos desígnios divinos. A inexistência de igualdade da cidadania em Dois irmãos e Relato de um certo Oriente, ambos de Miltom Hatoum até chegar a alteração do pacto de convivência social na sociedade contemporânea no espaço físico da Cidade de Deus, de Paulo Lins corroboram para uma idéia de um quadro nacional alarmente. Avaliá-los num mesmo mapa da pobreza, num mesmo tempo presente e como mera linha de norte ao sul do Brasil pode parecer equivocado, à medida que a representação do tema pelo ponto de vista da literatura requer interpretação dos exemplos negativos que a sociedade em geral lhes oferece. Saber que a solução para a pobreza urge intervenções radicais. Os governos precisam mergulhar na questão da miséria propriamente dita, mas igualmente no problema da saúde, moradia, segurança pública, educação. Brasília ser um centro de decisões radicais, os líderes assumirem compromissos com projetos e reformas de Brasil, de nação e não de governo. De um jeito ou outro, a observação do tema num único conjunto constitui um calidoscópio de fatos concretos da realidade nacional, cuja intenção é quebrar os limites da subdivisão do país. O intuito é fazer o caminho oposto do mapa dos complexos regionais brasileiro para a fronteira do mapa, e propagar-se para regiões além, mostrar que a pobreza não se restringe a uma ou outra unidade federativa brasileira, mas vê-la como um estado, uma condição de muitos a partir do século XVIII aos dias atuais. Nas últimas décadas, os mais ricos, em torno de 20% da população controlam entre 60% a 65% da renda nacional. Em virtude de tal situação a amplitude do campo de escolha de muitos é influenciada para roubar, não querer estudar ou trabalhar. Não quer dizer que a educação formal seja a garantia de emprego, mas, provavelmente afasta o indivíduo da contravenção. Por outro lado, a exclusão voluntária do processo modernizador converte aqueles que fazem uma opção pela transgressão num sujeito duplamente marginalizado, porque não participa do patrimônio cultural da humanidade, bem como pelo motivo de ser um contraveniente. Ficcionalmente todos os autores conseguem mostrar como a falta de ações sociais voltada para todos gerou situações diferenciadas e graus de periculosidade para enfrentar a pobreza. Em O tempo e o vento, em geral as mulheres rezam, outras se amasiam, algumas se suicidam. Nos romances de Hatoum as empregadas aceitam trabalhar sem um salário, resignam-se da perda de proteção daqueles que poderiam ampará-las e lhes dar o sentido de dignidade. Nael testemunhou na infância, as passagens vividas na casa da família libanesa onde foi criado. Seu ponto de observação é o quartinho dos fundos, no quintal do sobrado de Zana e Halim, onde vivia com a mãe Domingas, índia manauara aculturada e empregada da casa. O terreno compartilhado é o da casa familiar, onde as relações de poder e subserviência ditados pela aculturação sutil dos nativos manauenses, entre estes a mãe Domingas. A experiência relatada pela narradora-personagem e catadora de lixo em O quarto fechado é o produto da penúria por ela vivenciada. Enquanto escreve ela procura alguém que aceitasse publicar seu diário e por meio dos direitos autorais concretizarem seus sonhos. Soma-se a ele o desejo que outros dela tomem conhecimento, é a matéria da qual se nutre a narrativa. Não só conseguiria sair da favela, do mesmo modo proporcionaria aos filhos um outro padrão de vida, ao mesmo tempo sua obra seria uma denúncia contra a negligência do poder público, e por isso viabiliza a emergência de políticas sociais justas.
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Mas, a escolha de muitos moradores da Cidade de Deus foi à radicalização. Ela é desenhada na ação corrosiva da marginalidade que ambiguamente pode ser ou não produto da pobreza, do desejo de sair da condição social de miséria pela opção de métodos escusos, via mais cômoda para chegar mais rápido aos objetivos, porque o trabalho diário seria a permanência na condição de miserabilidade. Assim sendo, as manifestações desviantes iniciais de mulheres e crianças perdem o sentido e mostram indivíduos menos sensíveis, crédulos de agirem corretamente. A estilização realizada por Lins não atenua ou suaviza práticas classificadas como bárbaras ou cruéis. Pelo contrário adiciona-lhes novos sentidos. Homens, mulheres e crianças se envolvem na venda de drogas e armas, na prostituição, na realização de roubo em pequena e grande escala. A ação envolve políticos, polícia, milicianos, a classe média alta que alimenta o ciclo vicioso da venda e a compra de armas e drogas. A opção do autor pela espetacularização da violência e dos métodos de roubo como meio de suprir a falta ultrapassa a uma necessidade, reflexo da pobreza real. Na cartomorfose literária das páginas dos romances escolhidos há uma denúncia às inúmeras maneiras de riscar muitos indivíduos do mapa por meio de várias formas de exclusão. Mais do que isso, no contexto criado o tema da pobreza foi exaltado ou diminuído exageradamente para compor um centro simbólico inserido nas particularidades de um chão histórico, polarizado em torno de seus interesses fundamentais dos fatos de toda a ordem que consideram importantes relatar. Por esse motivo, os autores prestaram atenção ao que julgavam merecer consideração, para revelar determinados valores deles mesmos ou de suas respectivas épocas, e consequentemente se remetem, para um espaço cultural mais amplo que pretendem chegar. Mostraram o contingente fora do limite mínimo exigido para participarem do sistema produtivo em virtude da desqualificação profissional, transformados no plano exterior aos romances em dados estatísticos dos milhões de desempregados ou trabalhadores informais, dos miseráveis, da parcela da população impedida de ter um salário e dignamente usufruir de mercadorias e serviços para satisfação de suas necessidades. Referências CASTRO, Anna Maria de (Org.). Fome, um tema proibido. Últimos escritos de Josué de Castro. 2.ed. Petrópolis: Vozes, 1984. HATOUM, Milton. Dois irmãos. São Paulo: Companhia das Letras, 2000. ____ . Relato de um certo oriente. São Paulo: Companhia das Letras, 1991. JESUS, Maria Carolina. O quarto de despejo: diário de uma favelada. São Paulo: Ática, 1993. LINS, Paulo. Cidade de Deus. 3. ed. Lisboa: Caminho, 2004. SOARES, Luiz Eduardo. Uma interpretação do Brasil para contextualizar a violência. In: PEREIRA, Carlos Alberto Messeder [et al.] Linguagens da violência. Rio de Janeiro: Rocco, 2000. p.23-46. VERISSIMO, Erico. O Tempo e o vento: O continente. Vol. I. 3.ed. São Paulo: Companhia das Letras, 2004a. ____ . O Tempo e o vento: O retrato. Vol. II. 3.ed. São Paulo: Companhia das Letras, 2004b. ZALUAR, Alba. A máquina e a revolta: as organizações populares e o significado da pobreza. 2. ed. São Paulo: Brasiliense, 2000.
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DALCÍDIO JURANDIR: A AMAZÔNIA NA CONSTRUÇÃO DE UM PROJETO ESTÉTICO-IDEOLÓGICO Marlí Tereza FURTADO (Universidade Federal do Pará)
RESUMO: Este trabalho objetiva demonstrar que o autor Dalcídio Jurandir (1909/1979) em artigos que escreveu para a Imprensa, principalmente a imprensa comunista, se revela ideologicamente comprometido com a realidade brasileira e com ideais partidários. Esse comprometimento se refletiu em sua recriação artística do universo, tanto no ciclo Extremo Norte, composto de dez romances, quanto na obra Linha do Parque que se situa fora do ciclo, escrita sob recomendação do Partido Comunista Brasileiro. Para direcionar a reflexão, foram selecionados artigos que o autor escreveu para os periódicos de Belém (O Estado do Pará e Escola),e do rio de Janeiro (Diretrizes, Cultura Política). PALAVRAS-CHAVE: Dalcídio Jurandir, projeto estético, ideológico.
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Dalcídio Jurandir Ramos Pereira, nascido em Ponta de Pedras, no Marajó, em janeiro de 1919,ao falecer, no Rio, em junho de 1979, no deixou como legado o vasto e denso ciclo literário do Extremo Norte, composto de dez romances, listados conforme data da primeira publicação: Chove nos campos de Cachoeira (1941); Marajó (1947); Três casas e um rio (1958); Belém do Grão Pará (1960); Passagem dos Inocentes (1963); Primeira manhã (1968); Ponte do Galo (1971); Os habitantes (1976); Chão dos Lobos (1976); Ribanceira (1978). Como muitos escritores de sua geração, demonstrou força criadora e dedicação extremada a essa aptidão. Além de ter produzido o ciclo citado, colaborou ativamente com a imprensa, principalmente a comunista, em virtude de sua filiação ao Partido Comunista Brasileiro (PCB). Comumente, a bibliografia sobre o autor aponta que, no Pará, ele teria contribuído com os jornais O Imparcial, Crítica e Estado do Pará; com as revistas Escola, Guajarina e A Semana. No Rio,teria colaborado com O Radical, Diretrizes, Diário de Notícias, Correio da Manhã, Tribuna Popular, O Jornal, Imprensa Popular, com as revistas Literatura e O Cruzeiro, além dos semanários A classe Operária, Para Todos e Problemas. Por outro lado, aceitou a incumbência do PCB de se deslocar até o porto do Rio Grande para pesquisar com os portuários a fim de escrever sobre o movimento operário do início do século, conforme nos informa Dênis de Moraes (MORAES, 1994, p. 160): As revistas culturais frequentemente publicavam capítulos de romances, contos e poemas sintonizados com o realismo socialista. Pelo menos três romances foram escritos de encomenda, sendo os autores obrigados a conhecer de perto as condições de vida do proletariado para retratá-las com fidelidade. O paraense Dalcídio Jurandir foi mandado para a cidade gaúcha do Rio Grande a fim de preparar um livro sobre os portuários locais.
Dessas pesquisas, resultou o romance proletário Linha do Parque, que de certa forma historia o movimento operário do início do século XX, no Rio Grande do Sul. A encomenda explica a razão de Linha do Parque, quarta obra que publicou, não se enquadrar ao ciclo do Extremo Norte. Apesar de pronto em 1954, o livro foi publicado sem a chancela do Partido, em 1959, pois, curiosamente, o próprio PCB teria censurado a obra encomendada. Ainda é Dênis de Moraes (MORAES, 1994, P. 160) quem relata: Mesmo os romances de encomenda tropeçaram na censura partidária e custaram a ser editados. Alina Paim e Dalcídio Jurandir tiveram que mudar os seus, várias vezes, por “inconveniências”. [...] Linha do Parque adormeceu anos nas gavetas dos dirigentes e permaneceu inédito até 1959, o que permitiu a Dalcídio elaborar a versão final sem os rigores do início da década” (MORAES, 1994,p.162).
A informação de Dênis de Moraes nos leva à recepção das idéias zdhanovistas no Brasil, pelos filiados ao PCB, caso de Dalcídio Jurandir, Graciliano Ramos, Jorge Amado, Alina Paime outros, nas décadas de 40/50. O zdhanovismo, base do conhecido realismo socialista, se contrapunha à literatura realista, então considerada como recriadora do universo da burguesia decadente. Em contrapartida a isso, o realismo socialista propunha o retrato da sociedade regida pelo socialismo, em obras nas quais avultava um herói positivo, um líder operário. Se Dalcídio Jurandir se submeteu às regras zdhanovistas ao escrever Linha do parque, apenas uma análise detida dessa obra nos revelaria tal aspecto, é o que afirmamos em tese de doutorado sobre o autor (FURTADO, 2002). Nos últimos anos, a obra do autor tem sido alvo de estudos cujo resultado tem sido as muitas dissertações de mestrado e algumas teses de doutorado produzidas nas academias, principalmente no Curso de Mestrado em Letras da UFPA, onde foram defendidas, de 2000 para cá, cerca de quinze dissertações. Desses estudos, nenhum recai sobre Linha do Parque, um dos livros menos citado e estudado desse escritor. Ressalve-se a dissertação de mestrado de PERES (2006), defendida na Fundação Universidade Federal do Rio Grande (FURG), RS, com o título Linha do Parque, de Dalcídio Jurandir (a gênese do movimento operário no Extremo Sul do Brasil). É instigante em Dalcídio Jurandir essa aparente dicotomia entre o ciclo Extremo Norte, criado dentro do que se poderia chamar de realismo crítico, e o livro de fora desse ciclo, criado sob a possível concepção do realismo socialista. O instigante na realidade se torna intrigante ao
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estudioso, uma vez que a passagem de uma leitura para outra nos leva aparentemente a autores diferentes. Essa discussão, entretanto, não cabe aqui, momento em que procedemos ao levantamento da contribuição dalcidiana para a imprensa a fim de investigar o entrecruzamento dela com a obra ficcional que produziu. Dedicação equiparada à que demonstrou ao Partido, seu front ideológico, Dalcídio revelou ao seu projeto estético, a criação de um ciclo romanesco sobre a Amazônia paraense, e sua fidelidade a certos princípios desvelou-o um homem um tanto ascético, a ponto de viver pobremente em quartinho de pensão, sem se deixar afetar e parar de produzir. Em virtude desses pontos, percebemos que a investigação dos artigos assinados pelo autor para a Imprensa, de modo geral, e para a imprensa comunista, de modo particular, se torna um passo importante para se discutir, com mais propriedade, os aspectos ideológicos que nortearam o pensamento de Dalcídio Jurandir e como esse pensamento se desdobrou em sua recriação artística do universo, tanto em Extremo Norte, quanto em Linha do Parque. Isso posto, empreendemos o projeto de pesquisa Dalcídio Jurandir e o realismo socialista, cujo propósito se volta para três pontos: a contribuição escrita de Dalcídio Jurandir para a Imprensa; a obra Linha do Parque enquanto criação literária; a relação entre o autor de textos para a imprensa e o autor de textos fictícios, principalmente aquele encomendado pelo PC e deslocado do universo amazônico. Como já dissemos, neste texto, nos voltaremos para o primeiro ponto de nossa pesquisa, a contribuição dalcidiana para a Imprensa. Antes, gostaríamos de nos deter em um fato: em trabalhos anteriores verificamos que nas entrevistas que o autor concedeu em vida (a Eneida de Moraes e a Bastos Morbach, em 1960; a Antonio Torres, Haroldo Maranhão e Pedro Galvão, em 1976), demonstrou aguda consciência crítica sobre a realidade brasileira e revelou-se, também, consciente de seu ato criador, a ponto de falar em concessões e não concessões a enredos e técnicas fáceis (FURTADO, 2002). Hoje, reforçamos essa constatação com uma parte da correspondência pessoal do autor e vários artigos assinados por ele para a imprensa. Dalcídio revela, nesse material, que o profundo conhecimento que demonstrou a respeito da sociedade amazônica, no universo romanesco do ciclo Extremo Norte, não provém apenas de sua vivência e observação pessoal, mas de estudos publicados na época. Em cartas escritas para a esposa Guiomarina,por exemplo, nos dois períodos em que foi preso, em 1936 e em 1937, sempre lhe pediu livros. Em uma delas, de 37, solicita Fausto, de Goethe, em francês, com dois outros títulos, sem identificação de autor. Veja-se: “Manda dizer ao Flaviano procurar com Gentil Puget os livros Negros brasileiros e Religiões negras que preciso estudar aqui”. (NUNES, 2006). A contribuição dalcidiana para a imprensa se divide entre os gêneros poético e narrativo, desdobrando-se o último em várias formas: a crônica literária (esparsas tentativas); a reprodução de trechos de seus romances; o ensaio (utilizamos o termo para denominar os textos em que ele analisa aspectos e/ou fenômenos da realidade, além daqueles em que discute assuntos do PCB ou as premissas teóricas do Partido); crítica literária (geralmente seguindo seções dos jornais reservadas para tal, como a denominada Front literário, do jornal Diretrizes, assinadas entre 1942 e 1943; e reportagens. Ele assinou desde reportagens em que falados seringueiros e dos índios da Amazônia, como uma em que reporta a febre do movimento imobiliário do Rio, especificamente a construção do Edifício Internacional, na época símbolo de arrojo e inovação na construção civil. De parte do material para a imprensa (há textos a serem digitalizados) e da correspondência com Nunes Pereira (cartas, ainda não publicadas, mas prefaciadas por Paulo Nunes em 2004), os aspectos a serem ressaltados podem ser agrupados em três linhas: 1–consciência do fazer poético; 2–consciência social; 3–consciência ideológico partidária. No campo da consciência do fazer poético, desmembramos duas posturas, a do crítico literário e a do autor empenhado em um projeto estético, planejado a princípio em uma série de dez volumes (MORAES, 1960), e depois pensado em até doze livros. O crítico literário complementa o autor crítico. Assim de uma carta a Nunes Pereira, de 1945, destacamos trecho em que podem ser consideradas algumas preocupações suas:
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Anais do II Congresso Internacional de Estudos Linguísticos e Literários na Amazônia (CIELLA) Acho que deves reunir em livro as notas sobre o Arquipélago, antes tirando um pouco da gordura verbal, certas protuberâncias de estilo. [...]. É necessário dominar a exaltação panteísta. Acho que deves juntar ao livro notas sobre o número de municípios, população, áreas, principais produtos, mapa do desenvolvimento pastoril, sempre histórica, número de grandes propriedades e o estudo sobre o negro. Tudo isso num apêndice. Não esquecer a nova visão marajoara do petróleo. (NUNES, 2004).
Interessante que, apesar de ter escrito romances longos (de Extremo Norte os mais curtos têm entre 150 e 200 páginas), não caiu em contradição com o que recomenda ao amigo Nunes Pereira. Daí o estilo seguido no ciclo que fratura modelos naturalistas de descrição e minúcias da natureza local, o que demonstra, também, a fuga à exaltação panteísta, razão pela qual a crítica da época sinalizou o distanciamento de seus romances do regionalismo. Assim recebeu Fausto Cunha (apud NUNES, 2006) o romance Os Habitantes, antepenúltimo da série, publicado em 1976, sobre o qual escreveu um texto intitulado Uma ficção que dispensa vitórias-régias. O crítico literário precedeu em publicações o autor literário, pois a contribuição para jornais de Belém, parte dela datada em 1938, três anos antes da publicação do seu premiado livro Chove nos campos de Cachoeira, insere críticas a livros de Érico Veríssimo, Artur Porto e Osvaldo Orico. Merece destaque o que fala de Seiva, de Orico, por ocasião do discurso deste ao tomar posse na Academia Brasileira de Letras. Osvaldo Orico entrou na Academia com a manhã de sol de seu discurso. Me fez reconciliar com o apressado romancista da “Seiva”. “Seiva” é apenas estilo. Não tem humanidade, a força interior, o sentimento da terra que se encontram nos romances de Gorki, Knut Hansum, de Pearl Buck, na obra de Lins do Rego, Abguar Bastos. O autor não meteu os pés na lama das várzeas nem sujou as mãos no lodo da aninga, não ficou de molho num barracão das ilhas para ver e ouvir a terra em sua misteriosa e dramática profundidade com os seus bichos e o seu povo. O romancista de “Seiva” foi a Amazônia a bordo dum vaticano, de gravata, uma kodak, uma boa Brahma, muito bem posto como um bom turista. (JURANDIR, 1938)
Alguns de seus textos publicados n’O Estado do Pará, entre 1939 e 1941, demonstram que Dalcídio nada tinha desse turista de Kodak a tiracolo em suas andanças pelos interiores amazônicos. Reproduzimos parte de “Os viradores de madeiras”, de 14 de junho de 1939, que será incorporado esteticamente em Ribanceira, romance publicado em 1978, último do grande ciclo. Vejamos: Na minha viagem às ilhas pude ver de perto os trabalhos dos madeireiros. Madeira é nome que apaixona o povo das ilhas como foi a borracha no seu tempo (...)Andei pelas ilhas no casco, de reboque, em escaler, na montaria, em navio pontão. Peguei no remo de faia sob o solzão da baía de Curralinho quando um dos nossos remeiros, de baço inchado e peito comido pela febre, tinha um passamento e se vasava de disenteria. Andei pelo atoleiro do igarapé S. Roque e fui ver a rolação da coaruba no centro onde a onça deixa rastros o jaquiranaboia espeta o ferrão no marupaseiro. Ali os homens mergulham no mato e saem com os toros enormes amassando a terra que a chuva empapa nestes últimos dias de Maio. Os homens, silenciosos e sombrios quando entram no mato, se transfiguram desde o momento que começam a rolar os tóros nas estivas longas. Enchem de exclamações a floresta contra os paus bem criados de duas ou três toneladas. (...).Tamboriramba! E’ uma das interjeições selvagens com que eles dobram os paus encalhados ou caídos fora da estiva. Tamboriramba! é um grita heroico, uma grande voz humana saltando da terra onde se abatem os madeiros (...). (JURANDIR, 1939)
Além desse, há dois artigos em que ele fala sobre os festejos de junho, o primeiro intitulado “São João e vêm” (de 05 de junho de 1941) e “Chaminé, o pai de Francisco” (de 18 de junho de 1941) que aparecerão desenrolados no enredo de Chão dos Lobos, penúltimo romance da série e de 1976. A consciência do fazer poético, esse meter a mão na argamassa, chegou a fazer com que Dalcídio estabelecesse uma espécie de pacto com suas personagens, para exigir de si mesmo coerência entre o mundo que retratava e as concessões para publicar suas obras. Note-se o que disse quando negociava, em 1948, Três casas e um rio para ser publicado pelo Clube do Livro, como livro do mês: Submeto-me a isto porque Orígenes me sugeriu, por iniciativa dele, depois probabilidade de uma renda de trinta a quarenta contos porque o Clube do Livro poderá vender uns dez a quinze mil exemplares.
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Tema geral: Línguas e Literaturas: Diversidade e Adversidades na América Latina Como sempre fui muito panema. [...] Minhas personagens devem estar envergonhadas de mim. Afinal elas não sofreram, não amaram e nem morreram para serem negociadas assim. E isto, é o nosso regime do latifúndio e do imperialismo. (NUNES, 2004)
Ainda nas cartas, mas também em outros textos dirigidos à imprensa, sempre deixa clara a perseguição à técnica. Diz, por exemplo, que não quer repetir certos processos, que quer sempre parecer outro em cada romance e que sua literatura deve fazer o leitor pensar, ao contrário da leva folhetinesca da época, bastante representada por Escrich (Vicente Perez) cujos folhetins, ressalve-se, aparecem no primeiro romance dalcidiano sendo lido pela personagem Salu, grande leitor do gênero. Aliás, na obra literária dalcidiana, não somente algumas personagens, como também o narrador, quando extradiegético, aparecem enredadas por leituras do cânone, como outras se engendram ou se fascinam pelas narrativas orais, retiradas da tradição regional. A consciência social do autor, fundamento de todo seu pensamento, se esparrama não só em suas falas, mas se converte em textos etnográficos, como os que publicou em Cultura Política (1942), sobre a ilha de Marajó. O que disse a Nunes Pereira, “não esqueça que o fundamental, ou melhor, a estrutura social do Brasil está assentada, de maneira geral, no latifúndio e na submissão ao imperialismo” (NUNES, 2004) explica a elaboração dos vícios do latifúndio em sua obra, com o propósito de denúncia, sobretudo e mais de perto em Marajó, seu segundo romance, cuja recepção tem se voltado, insistentemente para a análise com escopo teórico da sociologia e da antropologia. Os artigos que escreveu para a imprensa belenense, nos anos 30, quando exerceu função de 2.º oficial na Diretoria Geral de Educação e Ensino Público do Estado do Pará, conjugam a consciência social e partidária do autor empenhado em discutir e solucionar problemas da educação no Estado. A colaboração com a local revista Escola demonstra e ratifica sua visão libertária. Destacamos um texto de agosto de 1934, sobre a criação do curso de piscicultura no Pará: O Governo criou o curso de piscicultura nas escolas do Salgado. [...]Com essa ato o Governo vai compreendendo o verdadeiro senso rural das escolas no interior. A adaptação do ensino rural ao ambiente em que se acha localizado, criando os «centros de interesse» no meio e nas tendências, é, em suma, o ideal do ruralismo por que tanto se bate o bom senso dos nossos sociólogos e dos que veem a solução do problema nacional na fixação definitiva das nossas populações rurais. Hoje mais do que nunca devemos encaminhar o nosso povo a fixar a sua realidade dentro do meio em que nasceu e trabalha, educando-se na sua própria atmosfera de atividades. A piscicultura nas escolas do Salgado vai ser o maior «centro de interesse» da curuminzada escolar. Acabouse a velharia didática, desfez-se o nevoeiro dos áridos programas, tudo se transforma em um núcleo vital, em colmeia inteligente e criadora, esboçando-se, promissoramente, a tão sonhada educação infantil do nosso caboclo. Os métodos da escola rural devem inspirar-se nas condições e necessidades do trabalho e do interesse das crianças na sua própria ambiência. (JURANDIR, 1934).
Note-se a possível atualidade da notícia com a possível atualidade da visão do autor, embebido das ideias do médico e pedagogo belga Jean Ovide Decroly (1871/1932) a quem cita em artigo de setembro de 35, na mesma revista, em texto que enfrenta todo o discurso tradicional, se colocando, tal como o fizera Decroly, contra o ensino religioso na escola: Todos nós sabemos que os modernos processos educativos não comportam mais os inúteis e vagos métodos de catecismo entre os alunos. Todos os mestres querem dar á criança a licção da própria vida e para isso só um método eficiente e humano é capaz de atingir os profundos objetivos da educação moderna. As crianças nada aproveitarão do catecismo. O que elas aprendem é a vida, o espetáculo do egoísmo e da miséria nas ruas e nos lares, a realidade em todos os seus aspectos de mentira, vicio e opressão. A criança deixa a escola e, ao encontrar a realidade que a envolve e brutaliza, vê o tremendo antagonismo entre o ensino e a vida. (JURANDIR, 1935).
Ainda em setembro de 1935, para a mesma revista Escola, o autor defende o conceito de educação correlato ao de liberdade e se insurge contra o que considera danoso, a correlação extremada
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entre educação e comportamento disciplinar, o que para ele importava sempre em “opressão, negação absoluta da personalidade, atrofia da consciência individual” (JURANDIR, 1935). A consciência partidária de Dalcídio Jurandir exigiu dele um compromisso acirrado com o Partido, ao que correspondeu com disciplina e obediência, a ponto de ter sido mal visto em alguns episódios polêmicos, como o da eleição da ABDE (Associação Brasileira de Escritores), em 1949. Também por isso aceitou a incumbência de escrever o livro sob encomenda do Partido,Linha do Parque, denominado por alguns de retrato do extremo sul. Independente da dicotomia norte/sul, o que se ressalta é sua opção pelo proletariado, daí alinhar-se a Jorge Amado e a autores surgidos a partir de 30 que optaram pelo romance proletário. Devemos relevar a presença da obra de Patrícia Galvão (Pagu), Parque industrial, de 1933, cujo título parece ter influenciado o autor paraense. Responder se Dalcídio seguiu as formas do realismo socialista de fato demanda um estudo centrado apenas no livro encomendado. Dois pontos nos fazem relativizar a obediência do autor à forma: a censura do Partido e a censura dos operários, informação dada pelo próprio escritor. “O livro não agradou. Os operários ficaram zangados porque eu não embelezei o quadro. Apareceu muita miséria. E eles ficaram zangados comigo. Mas é um livro em que eu tenho muita fé, como romance político”. (TORRES/MARANHÃO/GALVÃO, 1976). Há muito que retirar dessa fala para interpretação do pensamento do autor, mas fiquemos, por enquanto com o destaque à fé depositada por ele na obra como romance político, o que nos remete à distinção que fazia entre este livro e os demais do ciclo. Apenas para instigar o leitor: se o realismo socialista se contrapunha ao insistente retrato da burguesia decadente, Dalcídio insistiu pelo menos no retrato da decadência em todo o ciclo, a ponto de render vários estudos em que a palavra “ruína(s)” estabelece as relações paradigmáticas importantes para análise de sua obra.1Vale lembrar que o protagonista do ciclo é um mestiço pobre e culto que perambula pela Amazônia paraense, condoído com o drama do povo pobre. Termina o ciclo desempregado e indagando-se sobre a vida... Referência CUNHA, Fausto. Uma ficção que dispensa vitórias-régias. In: NUNES, Benedito (org.). Dalcídio Jurandir. Romancista da Amazônia. Literatura & Memória. Belém: SECULT; Rio de Janeiro: Casa de Rui Barbosa/ Instituto Dalcídio Jurandir, 2006. FREIRE, José Alonso. Entre construções e ruínas: uma leitura do espaço amazônico em romances de Dalcídio Juirandir e Milton Hatoum. Tese de doutorado. USP: 2006. FURTADO, Marlí Tereza. Universo derruído e corrosão do herói em Dalcídio Jurandir. IEL/ Unicamp: Campinas, 2002. Tese de doutorado. JURANDIR, Dalcídio. (texto sem título). In: Escola, setembro de 1935. JURANDIR, Dalcídio. Osvaldo Orico e o seu discurso na Academia. In: O estado do Pará, 12 de agosto de 1938. JURANDIR, Dalcídio. Os viradores de madeiras. In: O Estado do Pará. 14 de junho de 1939. JURANDIR, Dalcídio. São João e vêm. In: O Estado do Pará. 05 de junho de 1941. JURANDIR, Dalcídio. Chaminé, o pai de Francisco. In: O Estado do Pará. 18 de junho de 1941. JURANDIR, Dalcídio. Alguns aspectos da ilha de Marajó. In: Cultura Política, ano II, n.° 16, Rio de Janeiro, 1942. JURANDIR, Dalcídio. Mais de um milhão de cruzeiros por andar. Diretrizes. Rio de Janeiro, 16 de setembro de 1943. MALIGO, Pedro. Ruínas idílicas: a realidade amazônica de Dalcídio Jurandir. São Paulo: Revista USP, n.º 13, 1992. MORAES, Dênis. O imaginário vigiado: a imprensa comunista no Brasil (1947-53). Rio de Janeiro: José Olympio, 1994. 1
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Ver MALIGO (1992), FURTADO (2002) e FREIRE (2006).
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Tema geral: Línguas e Literaturas: Diversidade e Adversidades na América Latina NUNES, Benedito (org.). Dalcídio Jurandir. Romancista da Amazônia. Literatura & Memória. Belém: SECULT; Rio de Janeiro: Casa de Rui Barbosa/Instituto Dalcídio Jurandir, 2006. NUNES, Paulo (org.) Cartas amazônicas. A correspondência de Dalcídio Jurandir a Nunes Pereira (1940/1945?). Belo Horizonte, 2004. PERES, Carlos Roberto Cardoso. Linha do Parque, de Dalcídio Jurandir (a gênese do movimento operário no Extremo Sul do Brasil). Fundação Universidade Federal do Rio Grande (FURG), RS, 2006, dissertação de mestrado. TORRES, Antônio; MARANHÃO, Haroldo; GALVÃO, Pedro. Um escritor no purgatório. In: Revista Escrita, ano I, n.º 6, 1976.
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POLIFONIA NO HIPERTEXTO: UMA ANÁLISE DISCURSIVA Naira Augusta Pedroso de SOUSA (Universidade Federal do Pará/ Santarém)
RESUMO: O presente trabalho tem como objetivo abordar a importância de se trabalhar com o hipertexto, em ambiente escolar, no desenvolvimento de trabalhos voltados para a leitura, a partir de uma concepção de língua como lugar de interação; visto que a situação da leitura é amplamente discutida pelos estudiosos da linguagem, assim como também, é objeto de grande preocupação no que se refere à maneira como tornála mais prazerosa e atrativa, especialmente no âmbito educacional. O desenvolvimento de leitores críticos, capazes de ler qualquer texto e de desenvolver leituras produtivas, é um desafio que se apresenta ao profissional de Letras. Entende-se, para tanto, a necessidade de se criar novas formas de trabalhar com o texto, a fim de alterar a lamentável realidade de indivíduos que não encontram prazer na atividade da leitura, contribuindo na formação de leitores mais críticos e conscientes. Na pesquisa bibliográfica desenvolvida, foi analisado um hipertexto eletrônico, com uma temática polêmica: o aborto, abordando os aspectos discursivos existentes, como as formações ideológica e discursiva, a polifonia, o sujeito e a construção do sentido. Visando contribuir para a reflexão de práticas educacionais referentes à leitura hipertextual, abordaremos, nessa pesquisa, aspectos relevantes dos estudos sobre a Análise do Discurso e a Polifonia, a fim de mostrarmos em que medida esses conhecimentos podem ajudar na produção da leitura de hipertextos. PALAVRAS-CHAVE: Hipertexto. Análise do Discurso. Polifonia.
RESUMEN: Este trabajo pretende abordar la importancia de trabajar con el hipertexto en el medio escolar, el trabajo de desarrollo destinado a la lectura desde una concepción del lenguaje como un lugar de interacción, porque la situación de la lectura es ampliamente debatido por los estudiosos de la lengua y, además, es objeto de gran preocupación en lo que respecta a la manera de hacerlo más agradable y atractivo, sobre todo en la educación. El desarrollo de lectores críticos, capaces de leer cualquier texto y lecturas para desarrollar productiva, es un reto que se presenta a la bibliografía especializada. Se entiende, y por lo tanto la necesidad de crear nuevas formas de trabajar con el texto, a fin de cambiar la triste realidad de las personas que no encuentran placer en la actividad de la lectura por ayudar a los lectores en la formación de más crítica y consciente. Desarrollado en la literatura de investigación se revisó un hipertexto electrónico, con un tema controvertido: el aborto, abordar las cuestiones actuales del discurso, como el ideológico y formaciones discursivas, la polifonía, el tema y la construcción de significado. Para ayudar a la discusión de las prácticas educativas relacionadas con la lectura hipertextual, abordar esta investigación, aspectos importantes de los estudios sobre el Análisis de Discurso y polifonía, para mostrar en qué medida este conocimiento puede ayudar en la producción de la lectura de hipertextos. PALABRAS CLAVE: hipertexto; Análisis de Expresión, la polifonía.
Anais do II Congresso Internacional de Estudos Linguísticos e Literários na Amazônia (CIELLA)
1. Análise do discurso A Análise do Discurso (doravante AD) surgiu na França, na década de 60, do século passado, inserida num contexto marxista, num período em que a Lingüística estava se firmando. O nascimento da AD é regulado pelo materialismo histórico, pela psicanálise de Lacan e pela lingüística de caráter estruturalista. É numa abordagem estruturalista da linguagem que a Análise do Discurso vai se constituindo. No entanto, a Lingüística Saussureana não era suficiente para fundamentar os estudos discursivos, já que esta prioriza a língua em detrimento da fala. Era necessária uma teoria do discurso, mais ampla, para compreender as práticas discursivas. Segundo Orlandi (1986), existem duas vertentes de pensar a teoria do discurso. Uma de tendência americana e a outra européia. Atualmente, no entanto, não se fala apenas em uma escola de AD francesa ou americana, mas em várias análises do discurso. Conforme Maingueneau (1997), toda situação discursiva constitui-se em objeto de análise, devido as fortes relações sociais que vigoram na sociedade. No estabelecimento da AD, foi fundamental a influência de dois teóricos, Althusser e Foucault. O primeiro abordava suas reflexões voltadas para a questão da ideologia em relação com a sociedade, subjacentes ao texto. A linguagem aparece como um instrumento em que a ideologia se concretiza. O segundo teórico, Foucault, deteve seus estudos dirigidos ao Discurso. Nesse panorama de estudo do discurso, também foi de suma importância a colaboração de Pêcheux, um dos destacados estudiosos da AD, que desenvolveu os conceitos de Formação Ideológica e Formação Discursiva. Para este trabalho, escolhemos adotar a Análise do Discurso Francesa, analisando como os elementos que a constituem podem ser estudados conjuntamente para a produção da leitura de hipertextos. 1.1. Análise do discurso: Alguns conceitos fundamentais Quanto ao estudo da Análise do Discurso, alguns conceitos são fundamentais para que haja um melhor entendimento desta disciplina e para o desenvolvimento de nossa pesquisa. 1.1.1. Discurso Segundo Maingueneau (1976), o discurso foi introduzido nos estudos lingüísticos com os formalistas russos, que direcionaram a concepção de textos para um âmbito além da frase; mas esse avanço foi limitado pelos estruturalistas, seus seguidores, os quais estudavam a estrutura do texto “nele e por ele mesmo”, sem dar importância à sua exterioridade. No que tange à Análise do Discurso, não se abordava o estudo da gramática, mas o do discurso, da prática da linguagem, levando em conta o homem na sua história, considera os processos e as condições de produção da linguagem pela análise estabelecida pela língua com os sujeitos que a falam e as situações em que se produz o dizer. Desse modo, para encontrar as regularidades da linguagem em sua produção, o analista de discurso relaciona a linguagem à sua exterioridade. (ORLANDI, 2003: 16)
Diversos estudiosos colocam em destaque o discurso, conceituando-o. Maingueneau (1997: 50) afirma com propriedade a concepção de discurso, levando em consideração as teorias da AD: O discurso, bem menos do que um ponto de vista, é uma organização de restrições que regulam uma atividade específica. (...) À AD cabe não só justificar a produção de determinados enunciados em detrimento de outros, mas deve, igualmente, explicar como eles puderam mobilizar forças e investir em organizações sociais.
Um dos teóricos mais fecundos em AD no que concerne ao discurso foi Foucault. As contribuições desse estudioso no que se refere ao estudo do discurso foram férteis, pois concebe o
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discurso como prática que é gerada com a influência de outras práticas discursivas e não discursivas, além disso, introduz a noção de formação discursiva, que constitui um dos núcleos da articulação entre língua e discurso. Dentro dessa perspectiva, distingue enunciado de enunciação, esta ocorre quando alguém produz um conjunto de signos, é o momento em que o enunciado é executado, portanto é único, enquanto aquele se refere ao que antes chamava-se de sentença ou frase gramatical e caracterizase pela repetição, isto é, um mesmo enunciado pode se repetir em diferentes enunciações. O conceito de formação discursiva (FD) é utilizado pela AD para designar o lugar onde se articulam discurso e ideologia. Portanto, uma FD é governada por uma formação ideológica. 1.1.2. Ideologia Conforme Chauí (1980), o termo “ideologia” foi criado pelo filósofo Destutt de Tracy, em 1810, para nomear a faculdade de pensar, abordando as idéias numa relação do homem com o meio ambiente. Para Marx, a ideologia é carregada pelas idéias da classe dominante, reduz-se, dessa forma, ao aspecto da crítica ao sistema capitalista e à ideologia burguesa; refere-se, portanto, a um mecanismo de dominação da classe dominante sob a classe dominada, restringindo, assim, o conceito num ângulo social. Althusser (citado por FLÔRES, 2006: 129) afirma que a “ideologia representa a relação imaginária das pessoas com suas reais condições de existência.”. Inconscientemente, reproduzimos as condições para que tal relação imaginária se mantenha. Dentro desse contexto, o Estado tem interesse em que a ideologia se perpetue para que haja uma relação de dominação. Para isso, segundo Althusser, a classe dominante reproduz os mecanismos ARE - Aparelhos repressores de Estado, compostos pelo Governo, Exército, Polícia, Tribunais, funcionando de forma primeiramente repressiva e depois ideológica; além destes, existem os AIE – Aparelhos Ideológicos de Estado, que ao contrário dos primeiros, dependem da ideologia para funcionarem; fazem parte desses Aparelhos, a família, a escola, a religião, o sindicato, a cultura e outras instituições particulares que integram esse aparelho. A ideologia, portanto, se materializa nos AIE, pois os indivíduos dela participam e sua prática é por ela determinada. Althusser confirma essa questão, explicitando que os indivíduos são interpelados em sujeitos pela Ideologia, sendo, portanto, a ela assujeitados. Nessa concepção, o sujeito é o individuo porta-voz da ideologia. Logo, para que haja sujeitos, é necessária a ideologia, e esta, por sua vez, só existe no sujeito. 1.1.3. Sujeito A AD passou por três fases, segundo Pêcheux, e a noção de sujeito está relacionada conforme essas fases. Na primeira fase, denominada AD 1, o discurso é gerado por uma máquina discursiva. Nessa fase, de caráter estruturalista, o sujeito é concebido como construído no discurso. Na formação discursiva, o sujeito define o que pode e deve ser dito por ele. Tem-se a visão de uma FD homogênea e o sujeito é assujeitado, ele é comandado por uma ideologia, uma teoria ou uma instituição. Tem como característica a unicidade. Na AD 2, a formação discursiva começa a reconhecer a exterioridade, sofre influência de outras formações discursivas. Surge a noção de heterogeneidade discursiva e interdiscurso, “o exterior específico” de uma FD que aparece no interior desta FD. O sujeito, no entanto, continua assujeitado à FD com a qual ele se relaciona. Uma FD estabelece o que pode/deve ser dito a partir de certo lugar social. Nessa fase, o sujeito começa a ter mais liberdade, tem-se a noção de dispersão do sujeito, isto é, ele ocupa diferentes papéis consoante as diversas posições que ocupa no espaço interdiscursivo. Tanto na AD-1 como na AD-2, o sujeito é ideológico, não-individual; a ideologia se concretiza por meio dele. Na AD 3, esses conceitos se aprofundarão. A identidade discursiva é contaminada pela alteridade, pela heterogeneidade, pela influência do outro no discurso, existindo uma relação do
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discurso com outros discursos. De sujeito assujeitado abre-se para a alteridade, o reconhecimento da presença do discurso alheio. O sujeito é social, fruto da interação entre o eu e o tu. É a presença do outro que confere ao discurso um caráter heterogêneo. Inaugura-se, dessa maneira, uma nova tendência em AD. O sujeito passa a ser definido numa relação com o outro, como um sujeito descentrado, o outro passa a ser integrante de sua identidade. Assim como o discurso, o sujeito é heterogêneo. Para Pêcheux (1969), a noção de sujeito se determina pela posição, pelo local de onde se fala, falando do interior de uma formação discursiva coordenada por uma formação ideológica. Para Orlandi (2000), o sujeito se organiza como autor ao construir o texto. O autor é o local onde se edifica a unicidade do sujeito, desenvolvendo o seu projeto em plenitude. A concepção de sujeito também é discutida por Althusser, o qual expressa que o sujeito existente é o sujeito da ideologia e que não há outro. Já para Foucault, sujeito está diretamente relacionado com o discurso. Ser um sujeito é ocupar uma posição como enunciador, sendo os discursos caracterizados como enunciados. 1.1.4. Sentido A constituição de sentido, na AD, será manifestada pelas posições ideológicas em que as palavras são construídas. A AD considera como parte integrante do sentido, o contexto histórico social, considerando as condições em que o texto foi produzido. Para a AD, os sentidos são historicamente construídos. Vão se constituindo à medida que se constrói o próprio discurso, ou seja, o sentido não existe antes do discurso. O lugar ideológico determina o sentido do enunciado, sofrendo a sua influência. Os sentidos possíveis de um discurso, portanto, são sentidos demarcados, preestabelecidos pela própria identidade de cada uma das formações discursivas colocadas em relação no espaço interdiscursivo. (MUSSALIM, 2001: 131-2).
Para a AD, os conceitos de sujeito e sentido estão interligados, pois ambos são constituídos no discurso. De acordo com Pêcheux (1975 citado por BRANDÃO, 2002:62): O sentido de uma palavra, expressão, proposição não existe em si mesmo (isto é, em sua relação transparente com a literariedade do significante), mas é determinado pelas posições ideológicas colocadas em jogo no processo sócio-histórico em que palavras, expressões, proposições são produzidas (isto é, reproduzidos).
Embora apresentados distintamente, os conceitos de discurso, ideologia, sujeito e sentido ora se confundem, ora mantém uma profunda interdependência, sendo complicado falar de uma noção sem abordar a outra. É notório perceber a relação e a importância desses termos a fim de compreender mais claramente a Análise do Discurso. 2. Polifonia: Várias vozes no discurso O conceito de Polifonia foi estabelecido por Oswald Ducrot e está relacionado às várias vozes que permeiam um discurso. O termo, emprestado a Bakhtin, diz respeito ao “coro de vozes que se manifesta normalmente no discurso, visto ser o pensamento do outro constitutivo do nosso, não sendo possível separá-los radicalmente” (INGEDORE, 2004: 140). Entende Ducrot (1990) por Polifonia, a natureza de um diálogo cristalizado, em que várias vozes se sobrepõem umas às outras na enunciação. A relação dialógica e, portanto, polifônica é necessária para que a comunicação seja concretizada. A Polifonia, dessa forma, é caracterizada pela revelação explícita de vozes, aquelas em que o autor cita conscientemente uma mensagem, como também por outras vozes em que o autor não tem consciência, nem mesmo controle, mas que procedem do contexto social e de diversos meios que servem de referência, de imitação e de inspiração ao homem.
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Por meio desse conceito, Bakhtin apresenta que a base do processo comunicativo se estabelece no dialogismo, isto é, na relação com o outro. Um texto não existe por si mesmo, mas se constitui em uma resposta aos textos que o antecedem e, ao mesmo tempo, será responsável pelo surgimento de outros. A linguagem tem a propriedade de aglutinar em si a presença do EU e do OUTRO, a presença da diferença; e diluir o Eu e o OUTRO no Nós. Orlandi (2000) propõe uma enunciação como polifônica sob duas formas. Na primeira, a polifonia é manifestada se o discurso produzido apresenta mais de um locutor para o enunciado. Nesse caso, o locutor pode revelar-se como “eu” no texto, disfarçar-se na impessoalidade ou apresentar-se como responsável pela enunciação, como locutor. Outra possibilidade de ocorrer a Polifonia é quando se expõe mais de um enunciador num discurso, ou seja, mais de uma perspectiva de onde desenvolvem as enunciações. Pode existir, por exemplo, para um discurso, um enunciador que corresponda ao locutor e um enunciador genérico. Uma visão de mundo, uma corrente, um ponto de vista, uma opinião sempre têm uma expressão verbalizada. Tudo isso é discurso do outro (em forma pessoal ou impessoal) e este não pode deixar de refletir-se no enunciado. O enunciado está voltado não só para o seu objeto, mas também para os discursos do outro sobre ele. No entanto, até a mais leve alusão ao enunciado do outro imprime no discurso uma reviravolta dialógica”. (BAKHTIN, 2003: 300).
Maingueneau (1997) afirma em sua obra quando se refere à questão da heterogeneidade enunciativa, a crítica elaborada por Ducrot no que tange ao pressuposto de que há apenas um falante em cada enunciado, identificado como autor e locutor, simultaneamente. Para Ducrot, existem, na realidade, dois tipos de personagem, os enunciadores e os locutores, distintamente, caracterizando a Polifonia. Para o autor, não há unicidade do sujeito falante. Compreende-se por locutor aquele que é o responsável pelo enunciado, sem, no entanto, ele ser necessariamente o produtor físico enunciativo. É o que ocorre, por exemplo, numa empresa em que o funcionário assina um documento formulado pela gerência, sem ser ele o autor efetivo. Em outro caso, implica dizer que, embora um enunciado possua um autor, não se indica propriamente que também seja locutor. Guimarães explicita que no conceito de Polifonia para Ducrot a noção de história é excluída. Para ele, a concepção de historicidade refere-se ao momento presente da enunciação; enquanto que para Bakhtin, a noção de história é imprescindível. A alteridade, no discurso, pode ser apresentada através de duas maneiras, de acordo com Authier (citado por BRANDÃO, 1998: 125-130): a primeira refere-se a manifestação do discurso de forma explícita, ou seja, o Outro aparece através de marcas evidentes; como, por exemplo, no caso de um link, remete ao local de onde se retirou a colocação. As fontes da enunciação são colocadas e mostradas. Já na segunda maneira de manifestação do discurso, não se percebe a voz do Outro de maneira direta, é necessário sair da superfície para alcançar a profundidade, não se percebe imediatamente uma nova voz, pois a presença se dá sutilmente. A alteridade representa não apenas o reconhecimento do Outro, mas a chance de que ele se revele direta ou indiretamente. Por conta da importância e da constituição do Outro é que os links são instrumentos polifônicos. 3. Hipertexto: Conceito e perspectivas Historicamente, o surgimento do hipertexto apresenta dois períodos. O primeiro têm seu ícone em Vannevar Bush, em 1945. Essa primeira tendência tinha como objetivo proporcionar o acúmulo de informações por meio dos sistemas computacionais. O nome hiper, segundo seu criador, Theodore Nelson, deve-se à noção de extensão. A intenção dos pioneiros do hipertexto era, justamente, montar uma biblioteca em uma imensa rede, em que todos pudessem ter acesso na interação dos dados.
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O segundo momento despontou em meados da década de 80, com os princípios idealizados pelos criadores do hipertexto eletrônico. Neste período, que se prolonga até a atualidade, foi permitido um maior avanço tecnológico, ampliando ainda mais a interação com os usuários, especialmente pela utilização da hipermídia, aliando ao aspecto gráfico recursos não-verbais, como as imagens e os sons. Segundo Marcushi (1991, citado por INGEDORE, 2002: 63), o hipertexto constitui “um processo de leitura/escrita multilinearizado, multisseqüêncial e não determinado, realizado em novo espaço – o ciberespaço”. Ainda sobre o conceito de hipertexto, Leão (1999, citado por GOMES, 2006), o considera como: Um documento digital composto por diferentes blocos de informações interconectadas. Essas informações são amarradas por meio de elos associativos, os links. Os links permitem que o usuário avance em sua leitura na ordem que desejar. Através de estruturas interativas, o leitor percorre a trama textual de forma única, pessoal.
Lévy (citado por MARCUSCHI e XAVIER, 2005) define o hipertexto a partir de duas esferas: a técnica e a funcional. A técnica refere-se ao conjunto de nós interligados. Esses nós podem ser imagens, gráficos, páginas, palavras, os quais podem constituir hipertextos. Quanto ao aspecto funcional, o hipertexto diz respeito a um tipo de programa que tem o objetivo de oferecer dados e informações. Para este mesmo autor, o hipertexto é considerado como uma metáfora da comunicação humana, porque conecta palavras e frases que geram significados entre elas, estabelecendo uma rede de associações entre elas, no intelecto do leitor. Ingedore (2002: 64) propõe as essenciais características do hipertexto: 1. não linearidade (geralmente considerada a característica central); 2. volatilidade, devida à própria natureza (virtual) no suporte; 3. espacialidade topográfica, por se tratar de um espaço de escritura/leitura sem limites definidos, nãohierárquico, nem tópico; 4. fragmentalidade, visto que não possui um centro regulador imanente; 5. multissemiose, por viabilizar a absorção de diferentes aportes sígnicos e sensoriais, numa mesma superfície de leitura (palavras, ícones, efeitos sonoros, diagramas, tabelas tridimensionais); 6. interatividade, devido à relação contínua do leitor com múltiplos autores, praticamente em superposição em tempo real; . iteratividade, em decorrência de sua natureza intrinsecamente polifônica e intertextual; . descentração,em virtude de um deslocamento indefinido de tópicos, embora não se trate, é claro, de um agregado aleatório de fragmentos textuais.
Primo (2002, citado por RECUERO, 2004), levando em consideração o princípio de interatividade do hipertexto, divide-o em três formatos: Hipertexto potencial: é aquele em que os nós hipertextuais são criados pelo próprio programador da página, sendo que ao usuário só é facultado o seguimento do caminho sugerido por aquele e não há possibilidade de inclusão das idéias pelo hiperleitor. Hipertexto colagem: é aquele em que o programador/ autor viabiliza uma atuação mais ativa do usuário do que no hipertexto anterior. Na colagem, o internauta pode criar, embora não haja debate entre os envolvidos no processo. Hipertexto Cooperativo: é aquele em que há debate entre autor e usuário da página. Nesse sentido, a construção dos caminhos oferecidos é elaborada de forma coletiva. De acordo com o autor: “O que se vê hoje em dia nas páginas Web é a configuração de um hipertexto potencial ou colagem, devido ao baixo grau de interferência dos internautas nos hipertextos da Web”. (Primo, citado por RECUERO, 2004). Quanto ao princípio da não linearidade, Marcushi (2001 citado por GOMES, 2006) aponta a preocupação com a seqüência da leitura que, algumas vezes, é comprometida pelo fato de que o leitor, em geral, é acostumado a fazer a leitura de textos lineares, o que torna a leitura hipertextual
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fragmentada, caso o leitor não tenha facilidade em utilizar esse sistema eletrônico. Nesse caso, é necessário que haja um maior letramento por parte do leitor. A identidade do hipertexto virtual aparece sob a utilização de seus constituintes internos, chamados de nós e links. Os links são canais, dispositivos que permitem o acesso à leitura hipertextual. Eles são utilizados para construir o sentido no hipertexto. No que se refere aos tipos de hiperlinks, Ingedore (2002) explicita que existem os fixos e os móveis. Os primeiros são aqueles que não têm mobilidade, são constantes no site. Os segundos já se distinguem dos primeiros por apresentarem mobilidade e sua aparição na tela varia consoante o interesse do leitor. Eles exercem as funções dêitica por estabelecer e apontar caminhos para aquisição dos dados. Outra função exercida pelos links, diz respeito à função coesiva, ou seja, deve apresentar uma organicidade no conteúdo, através da utilização dos operadores ou conectivos para que a leitura seja orientada de maneira correta e coerente. A função cognitiva dos links relaciona-se à ativação do conhecimento humano, que norteia a pesquisa de acordo com a necessidade apresentada. O hiperleitor vai a busca do conteúdo desejado, construindo, cognitivamente, o sentido textual. Um aspecto importante na discussão dos links retrata a questão da autoria e leitura dos hipertextos. Conforme Possenti (2002, citado por CAVALCANTE, 2005: 163): [...] o hipertexto acabaria atribuindo ao leitor um papel similar ao do autor, na medida em que caberia em grande parte ao leitor organizar a seqüência do que vai ler (clicando ou não palavras-chaves, por exemplo, ou seja, indo ou não a um outro espaço, e tendo que decidir se volta ou não ao texto como o autor o teria disposto ou imaginado).
Ribeiro (2005) propõe a distinção entre hipertexto impresso e hipertexto eletrônico para evitar confusão quanto ao meio adotado pelo leitor; além disso, afirma sua posição ressaltando que os hipertextos são sempre textos, sejam eles verbais ou não; no entanto, alerta que nem todo texto é hipertexto, sendo que, para ela, a principal característica deste é a não-linearidade, independente do suporte empregado, isto é, impresso ou eletrônico. O aspecto novo se dá no que concerne ao próprio suporte e a velocidade com que se acessa os hipertextos eletrônicos, mas o hipertexto impresso já existia a mais tempo, por meio do uso das notas de rodapé, fotos, referências bibliográficas, permitindo uma completude na leitura textual, de maneira a deslinearizá-la. Sendo a tela do computador o suporte do hipertexto eletrônico, surgem com ele, novos leitores, os virtuais, que começam a ter contato com outros tipos de suportes, que não os manuais. Segundo Ribeiro (2005: 133): O suporte em que o texto se encontra também influencia a emergência de novos gêneros da escrita, e o leitor amplia seu leque de possibilidades de leitura À medida que entra em contato com esses suportes e gêneros reconfigurados, que por vezes são híbridos, “cruzamentos” de algo conhecido com alguma possibilidade nova, parcialmente estranhos, mas parcialmente reconhecíveis.
O hipertexto é considerado um texto, pois apresenta em sua constituição as condições de textualidade, como a coerência, coesão, informatividade, situacionalidade, intertextualidade, além de outras características já mencionadas. Esta última característica textual, permite admitir que se trata de textos que evocam outros, por isso, é essencialmente dialógico e polifônico. Para Bakhtin, o dialogismo é a condição de sentido do discurso, é um espaço interacional entre o eu e o tu e o eu e o outro, no texto/ hipertexto. Na constituição do sentido, é necessário levar em consideração a perspectiva de outra voz. No que tange à leitura do hipertexto, é importante que se saiba, preliminarmente, as informações as quais se pretendem obter, a fim de chegar ao caminho certo, afinal um link leva a outro e novas idéias são sugeridas e, nesse caso, ocorre uma “conexão de cascata”, desviando a continuidade temática do objetivo ao que o leitor se propôs. Remete-se, portanto, a uma questão da manutenção da coerência textual, visto às várias possibilidades de leitura oferecidas pelos links para a obtenção da informação. Com essas viabilidades, é possível atentar para o aspecto polifônico dos
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links que oferecem ao hiperleitor variados acessos, sendo que eles constituem a porta de entrada para o aquilo que se está procurando. Pode-se afirmar que a leitura hipertextual garante ao leitor navegar por vários caminhos, a fim de construir o sentido textual almejado, a leitura, dessa forma, constitui-se numa co-autoria, sem muitos limites entre leitor e escritor. O hiperleitor tem liberdade de decidir o trajeto da leitura consoante o que se dispõe a ler, no entanto, essa construção da leitura nunca é totalmente livre, visto que dependendo do tipo de hipertexto que se esteja acessando, o hiperleitor interage em maior ou menor grau. Expõe Marcuschi (1999, citado por INGEDORE, 2002: 70) que “a leitura do hipertexto é como uma viagem por trilhas. Ela nos obriga a ligar nós para formar redes de sentido”. O debate sobre a produção de leitura hipertextual é muito ampla e não se esgota nessa tese. São muitas as questões a serem discutidas com maior profundidade sobre esse conteúdo, mas o nosso propósito se limita a abordar as relações entre Hipertexto, Análise do Discurso e Polifonia, observando em que medida esses três fatores atuam durante a atividade de leitura. 3.1. Hipertexto: Uma análise discursiva e polifônica Existe uma interessante relação entre os conceitos que norteiam a Análise do Discurso, a Polifonia e a Produção de leitura dos Hipertextos. Mostraremos como eles se interelacionam por meio da análise de um hipertexto e como é importante observar essa relação para que haja uma leitura mais proveitosa e fecunda. A AD fornece uma série de ensinamentos no que tange à estrutura de um texto. Um deles, sem dúvida, está ligado a forma que o discurso pode ser construído para satisfazer as intenções lingüísticas do falante. Além disso, a compreensão e o entendimento do funcionamento dos conceitos que a ela se unem, como o discurso, sujeito, ideologia, sentido, formação discursiva e formação ideológica, muito contribuem para a realização de uma produção de leitura mais eficaz. Para a Análise do Discurso, todo discurso é híbrido ou heterogêneo, ou seja, constituído de muitas vozes. Essa heterogeneidade se manifestaria em dois planos, designados ambos por Bakthin, como Polifonia, mas que poderiam ser conceituados como heterogeneidade mostrada e heterogeneidade constitutiva (ou interdiscurso). Todo texto/ hipertexto, portanto, é constituído pela influência de outros, nesta ação interpelativa entre um enunciado e outros enunciados que constituem um discurso. Para demonstrar esses aspectos discursivos citados, faremos a análise de hipertextos eletrônicos, caracterizando-os e mostrando como eles possuem marcas discursivas e polifônicas em sua constituição. Os hipertextos abordados, nesta pesquisa, fazem parte do site www.brasilsemaborto.com.br, criado em 2006 por uma comissão de parlamentares com a iniciativa de desenvolver uma campanha nacional pela erradicação do aborto. Em sua página principal os links relacionados à temática abordada – o aborto – são variados e se agrupam nos seguintes hiperlinks: “Notícias”, “Artigos”, “Comitês Estaduais”, “Cadastro”, “Downloads” (música e folder da campanha), “Galeria de Imagens” e fale conosco, sendo que cada hiperlink, remete a hipertextos e, dependendo do interesse do leitor, uma nova página é aberta. No caso do link “Artigos”, por exemplo, há uma gama de outros links, que o levam a outros e todos eles se referem à mesma temática, garantindo a sua manutenção. Além desses links principais, há outros logo abaixo, na página, como: Lista de Candidatos que apóiam a campanha, outras Notícias, Depoimentos, Destaques e Faça sua Doação para a Campanha. Quanto à organização desses outros links, nota-se uma forte presença polifônica, especialmente nos hipertextos conativos que convidam o hiperleitor a desenvolver a leitura. Como no caso do hipertexto “Leia +”. Ao ser clicado, uma outra página vai ser aberta e outros hipertextos surgirão. Neste site, os tipos de links adotados são fixos e móveis. Estes últimos aparecem no Link “Notícias” e só ficam fixos se forem pressionados para serem lidos.
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Quanto ao princípio de interatividade proposto por Primo (2002 citado por RECUERO, 2004), podemos classificá-lo como hipertexto potencial, pois ao hiperleitor é possibilitado apenas seguir o trajeto da leitura proposto pelo programador da página, sem inserção de suas idéias no site, de forma ativa, como ocorre nos blogs, por exemplo. Não há uma liberdade plena na seqüência da leitura, justamente pela caracterização limitada dos links e do conteúdo abordados. A maioria dos links apelam para a polemicidade, o próprio assunto tem essa característica e divide a opinião pública quanto a sua execução. O discurso adotado pelo site, refere-se à manutenção da vida. Neste caso, o aborto é visto como um atentado à vida humana. Diante dessa concepção, os hipertextos expostos terão como principal sentido a divulgação dessa ideologia. Ela se concretiza, claramente, na linguagem empregada. Os links de caráter polêmico caracterizam bem esse aspecto ideológico, portanto, pode-se afirmar que se há uma defesa de uma ideologia, é porque há uma posição contrária a mesma tese, daí ser um dos aspectos que revelam a marca polifônica do discurso defendido. Embora a página eletrônica seja visitada por pessoas que se reúnem em torno de uma mesma formação ideológica, muitas delas também não a possuem de forma definida. A intenção, também, de retratar uma campanha contra o aborto consiste num forte apelo de convencimento dos que têm uma FI contrária a da que se prega e dos que têm dúvida sobre o seu posicionamento em relação ao assunto em questão. O lugar ideológico determina o sentido do enunciado, por isso a construção do referido sentido se dá em sintonia com a formação ideológica preestabelecida. Não sendo individual, o discurso não se separa das condições de produção que é produzido, nem das condições históricas e políticas que a ele se integram. Aprender a linguagem enquanto discurso é percebê-la muito além dos seus aspectos puramente lingüísticos. O discurso, como vimos, é contaminado pela alteridade, pela heterogeneidade, pela influência do Outro, por ideologias. Portanto, há no discurso uma heterogeneidade polifônica e ele nunca se apresenta como ideologicamente neutro. A polifonia pode ser apreendida, conforme afirma Maingueneau (1997) pela heterogeneidade mostrada, que representa, justamente, as manifestações discursivas explícitas no enunciado. No Link “Depoimentos”, percebemos a presença do discurso direto com a exposição da fala da própria pessoa que realizou o aborto, quando diz: “Eu me sinto uma assassina”; além desse enunciado, outros mais são revelados, por meio da utilização das aspas, recurso que caracteriza o discurso direto e são verdadeiros marcadores da alteridade. Embora assuma a responsabilidade do enunciado, a costureira, que é a própria locutora desse enunciado, acaba divulgando o discurso, que muitas vezes, fica na clandestinidade pela falta de coragem de algumas pessoas em assumir o ato de abortar. Como apregoa a Análise do Discurso, não há um único sujeito na enunciação, há diversas vozes que ressoam mediante uma formação ideológica comum, embora em diferentes formações discursivas, afinal as realidades e situações tecidas no hipertexto, nos mostram, claramente, esse panorama, em especial, no link “Depoimentos”. Neste link, a Polifonia é perceptível, destacando a participação de variadas pessoas, que socializam suas experiências sobre o aborto, umas, inclusive, representam a voz de várias outras pessoas, são porta-vozes do discurso de outras. O sujeito, na perspectiva da AD, é um elemento dotado de ideologia, ele é social, heterogêneo, acrescentamos, ainda, polifônico, pois seu discurso é construído, é determinado por uma série de fatores como a historicidade, a alteridade, a formação ideológica, que formam um todo discursivo, todas essas marcas de subjetividade são encontradas no hipertexto em questão. O sujeito do discurso se define não pelo que ele é, mas pelo que ele não é; o sujeito se define em função do outro. No discurso, o sujeito utilizando-se da palavra, materializa as forças sociais que o constituem. O sujeito apresentado no hipertexto em questão, é possuidor dessas características, ele não é único, individual, mas social, polifônico, repleto de ideologias, assumidas e notadas na produção do discurso empregado. Considerando a “Polifonia como um dos lugares de se observar a relação entre as diferentes formações discursivas e a constituição do texto em sua unidade”, conforme afirma Orlandi (2000: 58) , pode-se abordar que são variadas tanto as formações discursivas como as ideológicas que acessam o hipertexto. Explica-se, com isso, que a construção do sentido, também será distinta.
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Anais do II Congresso Internacional de Estudos Linguísticos e Literários na Amazônia (CIELLA) No hipertexto, o leitor torna-se co-autor do texto, pois enquanto evento comunicativo, o hipertexto é heterogêneo, intertextual e não-linear, características que o tornam polifônico e um espaço aberto para leituras possíveis, onde o leitor participa da redação do texto que lê (GOMES, 2006)
Tem-se o entendimento que na relação com o texto, todos são sujeitos da enunciação, o leitor tem a possibilidade de atribuir, portanto, o sentido que lhe aprouver diante da situação dada; além disso, ao passar de uma formação discursiva a outra, o hipertexto muda de sentido. A produção de sentidos é, certamente, a tese discursiva mais evidente no hipertexto, pois o sentido atribuído a ele vai depender da formação ideológica que o hiperleitor possui e, nesse caso, se a FI está em sintonia com o discurso preconizado pelo site, o sentido conferido aos hipertextos serão favoráveis, caso contrário, se a FI for oposta, o sentido concedido ao conteúdo do site será desfavorável, não haverá concordância com os hipertextos ali expostos. Para Ducrot (1987: 174), “o sentido é uma qualificação da enunciação, e consiste notadamente em atribuir à enunciação certos poderes ou certas conseqüências”. No que tange ao aspecto social da produção do sentido, é muito forte, principalmente, no setor religioso a presença do discurso favorável à manutenção da vida e a posição contrária da igreja quanto ao aborto. E em diversos links, isso é comprovado, como no caso do Link “Notícias”, em que algumas informações revelam o posicionamento desta instituição que é respeitada por uma ampla parcela da sociedade, o que se nota ser este um forte argumento para se propalar a ideologia do site. Como podemos observar, o hipertexto, em geral, possibilita a manutenção e a defesa da Formação Ideológica adotada no discurso através de inúmeros argumentos e também da polifonia, uma vez que os links são marcas polifônicas e vão levar o hiperleitor a um outro hipertexto que também compartilha da mesma Formação Ideológica. Exatamente por isso o hipertexto apresentase como um importante instrumento de ensino para a construção de leitores críticos, pois exige do hiperleitor a ativação de conhecimentos e um posicionamento para que possa navegar com sucesso pelos seus links e, assim, construir um percurso de leitura coerente. 4. Leitura, hipertexto e análise do discurso: Potencialidades para o ensino Não é nossa intenção desenvolver, aqui, propostas metodológicas sobre a produção de leitura dos hipertextos, mas sim, sugerir uma reflexão acerca de sua utilização no ensino da linguagem, com base nas teorias estabelecidas pela Análise do Discurso francesa e da Polifonia. Estudar um gênero do discurso, no caso desta pesquisa, o hipertexto eletrônico, é estudar a linguagem como realidade social, a sociedade e as forças sociais que agem na sua organização e que regem o comportamento do homem e suas formas de ver o mundo e de viver nele, além disso, é estudar o homem representado na linguagem. Falando em linguagem, ela se renova quando se renovam os meios. E com o advento das inovações tecnológicas, profundas mudanças ocorrem também no processo de ensino aprendizagem da língua na e fora da escola. Com o avanço e a constante utilização dos novos gêneros digitais, como o hipertexto, a produção de leitura também passa por um processo de mudança em sua realização, especialmente, com o amplo uso do computador. As práticas sociais são alteradas da mesma forma, mediante a relação existente entre a escrita e o suporte adotado, neste caso, o próprio computador. Xavier (2005) associa o hipertexto a um novo contexto social, a uma nova ordem mundial, a qual chama de Tecnocracia, e esta tendência nos desafia a atualizarmos nossos conhecimentos sobre o estabelecimento dos hipertextos na prática de ler e de escrever. Não há como passarmos despercebidos ou ignorar esse período histórico e atual da tecnocracia, uma vez que ele reflete diretamente no uso da língua e, conseqüentemente, no processo de ensino aprendizagem. Com o aparecimento de novos suportes e novos recursos, surgem também novos leitores e estes entram em contato com diversos gêneros discursivos, ampliando as possibilidades de leitura; além disso, viabiliza ao leitor o estabelecimento do letramento digital, ou seja, o leitor poderá explorar e ter acesso a outros gêneros com suportes diferentes, aprendendo ou reaprendendo a utilizá-lo.
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A produção de leitura dos hipertextos carrega em seu bojo a relação com outros componentes comunicacionais que auxiliam na compreensão textual como os sons, as imagens, os ícones animados ou não, as tabelas tridimensionais, em suma, todo esse aparato disponibilizado por esse gênero virtual; viabilizando, dessa forma, uma leitura sinestésica, que significa o envolvimento e o estabelecimento desses múltiplos recursos midiáticos, fornecidos pela leitura hipertextual. Na internet, apesar da confluência de imagem e som, a escrita é a base essencial para o seu funcionamento. Os indivíduos envolvidos no processo de produção da leitura são sujeitos ativos na construção dos seus próprios conhecimentos e a utilização dos hipertextos no contexto educacional oportuniza ao aluno/ leitor o acesso a novos meios de produzir a leitura, em que ele experimenta um certo grau de autonomia enquanto navega na informação, contribuindo para que a aprendizagem se efetue. A aquisição do conhecimento por meio da leitura do hipertexto é algo de muita importância, pois permite ao hiperleitor, ainda que de maneira virtual, está imerso em uma cadeia informativa simultaneamente com outros leitores, recebendo informações recentes e atuais. Assim como o texto impresso, o texto eletrônico exige de seus usuários mais do que uma mera decodificação das palavras, faz-se necessário interpretar adequadamente as questões que não estão explícitas. O hipertexto, portanto, é um espaço de construção de múltiplos discursos, de co-produção dos sentidos, em que várias vozes discursivas permeiam seu conteúdo, apesar de se perceber que a liberdade nessa produção é limitada. Em relação a produção de sentido, que é uma das teses mais profícuas da relação entre a AD e polifonia, referente ao hipertexto, ela funciona com base em determinados interesses e suposições, em que as formações discursivas e ideológicas semelhantes irão se confluir quando há um assunto abordado, conferindo aos hipertextos uma interpretação sintonizada com o padrão discursivo e ideológico estabelecidos. Numa outra perspectiva, a concepção de leitura vista como um processo de produção de sentidos, requer o conhecimento de que o sujeito-leitor, o sujeito-autor e os sentidos são historicamente determinados. É necessário que se considere que ler é um ato de interpretação, o qual se constitui no momento crítico de uma relação autor/texto/leitor. Este não reconhece sentidos, mas preenche lacunas e é interpelado pela posição-sujeito que o afeta; instaura seu próprio trabalho discursivo, des/construindo o texto lido e atribuindo sentidos que não são aqueles necessariamente esperados pelo autor. A construção de sentido, a interpretação é possível porque há o outro nas sociedades e na história. “É com esse outro que se estabelece uma relação de ligação, de identificação ou de transferência que possibilita a interpretação”. (PÊCHEUX, 1990: 45). É nessa direção que o interdiscurso se revela como o lugar do outro. Portanto, ler reveste-se em uma prática social que articula o interdiscurso, direcionando o leitor enquanto sujeito histórico, inscrevendo-se nas múltiplas possibilidades de interpretação, de evocação dos sentidos, o que caracteriza uma heteregoneidade provisoriamente estruturada. Como afirma Indursky (2001), ler “é mergulhar em uma teia discursiva invisível construída de já ditos para desestruturar o texto e (re)construí-lo, segundo os saberes da posição-sujeito em que se inscreve o sujeito-leitor”. Nas práticas de produção de leitura no âmbito educacional, Orlandi (1996) afirma que essas práticas devem favorecer ao aluno compreender que por meio de textos/hipertextos pode-se chegar a discursos e como estes, ao funcionarem de um modo ou de outro, produzem sentido. Inserir na prática educacional, a leitura de hipertextos, além de viabilizar o contato com novos gêneros textuais, permite um processo de desconstrução do hipertexto pelo sujeito-leitor; desconstrução esta que possibilita a produção de novos textos e leitura, não necessariamente com os mesmos sentidos esperados pelo sujeito-autor. De acordo com Morgado (1998) essas são algumas vantagens em trabalhar com o hipertexto: permitir diferentes níveis de conhecimento prévio, encorajar a exploração, permitir a visualização de subtarefas mais globais e a adaptação de informação aos estilos individuais da aprendizagem. Além dessas questões citadas pela autora, é importante que, no âmbito educacional, o professor desenvolva a criticidade em seu aluno por meio da leitura hipertextual. E isso pode ser
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Anais do II Congresso Internacional de Estudos Linguísticos e Literários na Amazônia (CIELLA)
trabalhado com a percepção das ideologias apresentadas, que, na maioria das vezes, não está dita explicitamente, mas estão colocadas de forma implícita. Essa tarefa é do professor, ajudar o aluno a perceber as informações subjacentes, encontradas em todo discurso. A presença da Formação Ideológica nos hipertextos é notória e pode, perfeitamente ser apresentada durante as aulas. A utilização do computador como suporte na produção da leitura é um atrativo para o aluno, desde que seja monitorada pelo professor, evidentemente; a fim de que haja um maior aprimoramento da pesquisa almejada. O trabalho com os gêneros digitais nas aulas de linguagem é de suma importância e deve ser direcionado para o desenvolvimento de leitores mais críticos, possibilitando a construção de cidadãos mais conscientes, formados por um processo de ensino aprendizagem norteado pela prática discursiva e polifônica da leitura. Referências BAKHTIN, M. Estética da criação verbal. Introdução e tradução e Paulo Bezerra; prefácio à edição francesa. 4 ed. São Paulo: Martins Fontes, 2003 (Coleção biblioteca universal). BRANDÃO, Helena H. Nagamine. Introdução à análise do discurso. 8 ed. Campinas, SP: Editora da UNICAMP, 2002 (Coleção Pesquisas). ______. Subjetividade, argumentação, polifonia: a propaganda da Petrobrás. São Paulo, Fundação Editora da UNESP, 1998. CAVALCANTE, Marianne Carvalho Bezerra. Mapeamento e produção de sentido: os links no hipertexto. In: MARCUSCHI, Luiz Antonio, XAVIER, Antonio Carlos (orgs.). Hipertexto e gêneros digitais: novas formas de construção do sentido. 2.ed. Rio de Janeiro: Lucerna, 2005. DUBOIS, Jean, et al. Dicionário de lingüística. São Paulo: Editora Cultrix, 1998 DUCROT, Oswaldo. O dizer e o dito. Campinas: Pontes, 1987. FLÔRES, Onici; GEDRAT, Doris; KARNOPP, Lodenir. Teorias do texo e do discurso. Canoas: Ed. ULBRA, 2006. GADET, Françoise; HAK, Tony (orgs.). Por uma análise automática do discurso: uma introdução à obra de Michel Pêcheux. Tradutores Bethânia S. Mariani...[et al]. 3 ed. Campinas, SP: Editora da UNICAMP, 1997. GOMES, Luiz Fernando. A interação na leitura de hipertextos educacionais: um estudo sobre as possibilidades didáticas da utilização do hipertexto. Campinas: UNICAMP Universidade de Sorocaba, 2006. Disponível em: <http://www.abed.org.br/seminário 2006/pdf> . Acesso em: 23 agosto 2007. KOCH, Ingedore Grunfeld Villaça. Desvendando os segredos do texto. São Paulo: Cortez, 2002. ______. Argumentação e Linguagem. 9 ed. São Paulo: Cortez, 2004. LEÃO, Lúcia. O labirinto da hipermídia: arquitetura e navegação no ciberespaço. São Paulo: Iluminuras, 1999. LUKIANCHUKI, Cláudia. Dialogismo: A linguagem verbal como exercício do social. Disponível em: <http://www.cefetsp.br/edu/sinergia/claudia.2htm>. Acesso em: 23 agosto 2007. MAINGUENEAU, Dominique. Novas Tendências em Análise do Discurso. 3 ed. São Paulo, Pontes: Editora da UNICAMP, 1997. MUSSALIM, Fernanda. Análise do Discurso. In: BENTES, Anna Christina; MUSSALIM, Fernanda (orgs.). Introdução à Lingüística: domínios e fronteiras, v.2.2 ed. São Paulo: Cortez, 2001. OLIVEIRA, Maria Leoneire C. O receptor na internet: Dimensões interativas. ECO/UFRJ, 1997. Disponível em: <http://www.comunica.unisinos.br/ties/textos>. Acesso em: 23 agosto 2007 ORLANDI, Eni Puccinelli. A linguagem e seu funcionamento: as formas de discurso. 4 ed. Campinas, SP: Pontes, 1996.
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Volume 3
Tema geral: Línguas e Literaturas: Diversidade e Adversidades na América Latina ______. A análise do discurso: algumas observações. In Delta, Vol. 2,n° 1,1986 ______. Discurso e leitura. 5 ed. São Paulo, Cortez; Campinas, SP: Editora da Universidade Estadual de Campinas, 2000. (Coleção passando a limpo). RECUERO, Raquel da Cunha. O interdiscurso construtivo como característica fundamental dos webrings. Intexto, Porto Alegre, v.10, 2004. RIBEIRO, Ana Elisa. Ler na Tela – Letramento e novos suportes de leitura e escrita. Lucena, 2005. XAVIER, Antonio Carlos. Leitura, texto e hipertexto. In: MARCUSCHI, Luiz Antonio, XAVIER, Antonio Carlos (orgs.). Hipertexto e gêneros digitais: novas formas de construção do sentido. 2.ed. Rio de Janeiro: Lucerna, 2005.
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A MEMÓRIA E TRADIÇÃO AMAZÔNICA NA COMPOSIÇÃO DAS NARRATIVAS DO ACERVO IFNOPAP Natasha Queiroz de ALMEIDA (Universidade Federal do Pará)
RESUMO: Contar histórias é o meio pelo qual as pessoas passam de geração em geração seus hábitos, crenças, costumes e comportamentos, sendo assim a mais antiga de todas as artes. No entanto, na tradição oral existe a tendência de muitas histórias serem perdidas. Nesse contexto, surgiu o projeto IFNOPAP, o qual busca o resgate da valorização da memória e da tradição amazônica paraense a partir da coletagem de narrativas orais populares que, atualmente, estão no formato digital, em virtude da necessidade de preservação deste rico material de pesquisa. Nestes tempos, no acervo IFNOPAP tem se desenvolvido um trabalho de classificação dessas narrativas, em temáticas e tipologia. Nesse respeito, alguns temas merecem destaque: narrativas de enterro, bestialidade, preconceito, drama familiar, mistério, sobrenatural, seres da floresta, seres do rio. Dentre os seguintes tipos: lendas, fábulas, conto, canção, piadas, ditos, parábolas. Este trabalho de classificação narrativa potencializa os estudos literários e afins, viabilizando o acesso a este material tão rico e diverso, de forma organizada e sistemática. PALAVRAS-CHAVE: memória; tradição amazônica; narrativas orais populares; temática; tipologia.
ABSTRACT: Telling stories is the way for what the people pass of generation to generation their habits, beliefs, customs and thus the oldest of all arts. However, it’s important to emphases that in the oral tradition exists the tendency of many stories are lost over the time. In this context, emerged the IFNOPAP project, which seeks the rescue of the valorization of the memory and of the Amazon from Pará tradition by a working collection of popular oral narratives which, nowadays, are in digital format, due to need to preserve this value material of search. In these times, the achievements IFNOPAP has developed a work of classification of the narratives listened, in thematic and typology. The impressive diversity thematic of the narratives has added the research and the academic interest in this area still is growing. Then, some issues deserve emphasis: narratives of burial, bestiality, prejudice, family drama, mystery, supernatural, beings of the forest, beings of the river. Of the following types: legends, fables, story, song, jokes, sayings, parables. This work of narrative classification enhances the studies based on production of a text about memory, theme or Amazon Tradition, enabling the access to this material of too value and diverse, so organized and systematic. KEY WORDS: memory; tradition of the Amazon; popular oral narratives; thematic; typology.
1. A memória e a tradição oral Contar histórias é o meio pelo qual as pessoas passam de geração em geração seus hábitos, crenças, costumes e comportamentos, sendo assim a mais antiga de todas as artes. De fato, conforme dito por Nicolau Sevcenko “a narrativa não é uma exposição do assunto. É o modo supremo da vida”. Sim, pois na transferência dessas histórias via oral, o elemento amazônida, enquanto elo entre sua cultura e sua sociedade no momento da performance da contação, acaba por transmitir em forma narrativa sua essência aliada a preservação dos hábitos, costumes e manifestações culturais. Tais narrativas são o resultado de um processo imanente à memória humana: a seletividade. Na mitologia grega, Zeus nada seria sem o canto mais que contemplativo das Musas, um canto memorial que o tirava do Esquecimento a Memória, nada desproposital; posto que o canto de glória era estrategicamente praticado e acabava por reafirmar as delícias de Zeus, enquanto supremo, a fim de que este não caísse no esquecimento. Desta feita, o caráter de seletividade presente na Memória jaz no próprio Esquecimento, posto que nada é esquecido ou “cai no esquecimento” à esmo, mas sim a anamnese (a rememoração) aplica-se ao mesmo discurso memorial ao tirar do esquecimento a historia oficial. As narrativas populares orais são um produto dinâmico do poder seletivo da Memória humana que, por sua vez, não lembra de tudo, sem selecionar nada; a isto se deve também a bendita excentricidade das narrativas orais populares quando do ato de contar, sugestionam pelo esquecimento de alguns aspectos narratológicos em detrimento de outros, a fim de acirrar emoções e reações no expectador da performance. Sempre a lembrança de Sêmele acompanhava o deus Baco; com tal freqüência e tão grande intensidade pensava em sua mãe que um dia, Baco resolveu procurá-la para conduzi-la com honras e pompas de deusa ao Olimpo. A memória é instigadora e motivacionalmente seletiva. Dada tal propriedade, a memória humana não é quantitativa, tal qual a de um computador que deleta ou salva tudo, antes é qualitativa. Nessa fenda entra o protagonista do filme Eternal Sunshine of the Spotless Mind: “Se eu tivesse um meio de apagá-la da minha mente...”. Ao descobrir que sua exmulher se submeteu a um tratamento experimental para apagá-lo de suas lembranças, o protagonista decide passar pelo mesmo processo. Porém, durante a experiência, ele percebe que não quer esquecêla, pois sua ex-mulher ainda encontra-se sobre um signo em sua mente representativo de elevado valor qualitativo; apesar de que nesta ficção cinematográfica um processo físico viabiliza o esquecimento, o total apagamento não é possível com a mente humana, assim como ocorre com o armazenamento de informações das máquinas. As narrativas de tradição oral, nada avessas a essa realidade, são representações da produção qualitativa de “uma série de relações imagéticas que atuam como memória afetivo-social de uma cultura” (SIMÕES, 2006, p. 119), que pelo seu imaginário organizam seu passado, constroem seu presente e articulam seu futuro. Nesta relação subjaz a tênue linha de complementaridade entre Memória e Tradição oral na literatura, sendo esta última um produto histórico de uma aprendizagem transmissível de geração para geração. No entanto, na tradição oral existe a tendência de muitas histórias se perderem com o passar do tempo: o Esquecimento em favor da Memória. Ainda assim, muitas destas narrativas são (re) contadas a cada contar, pois mesmo quando tratam do mesmo assunto, tornam-se de alguma forma singulares pelo elemento novo que carregam. Nesse contexto, surgiu o projeto IFNOPAP, o qual busca o resgate da valorização da memória e da tradição amazônica paraense por meio de um trabalho de coleta de narrativas orais populares que, atualmente, estão no formato digital, em virtude da necessidade de preservação deste rico material de pesquisa. 2. O acervo IFNOPAP: temáticas e tipologias narrativas Em tempos atuais, no acervo IFNOPAP tem se desenvolvido um trabalho de classificação das narrativas catalogadas, em temáticas e tipologia.
Vale lembrar que personagens e ações constantes nos relatos orais são como que tiradas da vida real, passada ou presente, baseadas em experiências vividas. Trata-se de experiência, parte do cotidiano dos nossos contadores, que, não raro, se ligam às narrativas advindas da tradição e da memória da comunidade, em que circulam. As narrativas orais constituem, portanto, espécie de verdade literal, e, sem que se negue o seu conteúdo ‘poético’ e ‘maravilhoso’, parte respeitável dos temas mais recorrentes é, na maioria das vezes, extraída de, ou articulado com, referências a acontecimentos reais. Assim sendo, não se pode desprezar a necessidade de uma classificação tipológica com visíveis elementos de configuração sóciocultural, considerando hábitos e práticas dos grupos predominantes, mas também, é possível fazer classificação que esteja determinada por modelos mais clássicos e, até, por sua conformação estrutural. As categorias e tipologia das narrativas não são estanques e as obras que as ilustram são susceptíveis de cruzamentos e múltiplas gradações; este juízo, sobremodo, justifica-se no caso das narrativas orais, sem se desprezar o fato de que, toda manifestação humana, por um ato volitivo ou não, pode ser o testemunho de desejos, sonhos e impulsos humanos. A cada momento, a cada leitura emergem motivos e mais motivos: alguns bem próximos do ar respirado pelos textos cânones, facilmente perceptíveis. Nesse respeito, Câmara Cascudo em seu livro A literatura Oral no Brasil enfatiza a interdependência entre as duas literaturas - a escrita, erudita, e a oral – e lembra que a persistência pela oralidade pode se dar, inclusive, pela fixação tipográfica; ou seja, as fontes contínuas da literatura oral podem ser explicitamente e predominantemente orais (estórias), a exemplo dos cantos populares, danças de roda, danças cantadas, jogos infantis, acalantos, cantigas anônimas, anedotas, adivinhações, lendas e outras formas de expressão, e também impressas (publicações populares, como os antigos folhetos e livretos originários principalmente de Portugal e de Espanha, com motivos correntes nos séculos XIII ao XVI, até a produção brasileira contemporânea, como o cordel. Senão, vejamos uma cantiga adaptada a voz de um de nossos contadores: Ele saudou ela: – Deus a salve Juliana1 em tua porta recostada Ela respondeu: – Deus o salve meu D. Jorge no teu cavalo montado. Aí, ela disse, respondeu para ele: – Eu soube meu D. Jorge que tu está para casar Ele respondeu para ela: – Quem te disse Juliana não te fiz desenganar2 os [banho] tão corrido e eu vim te convidar que hoje será a festa amanhã será o dia. Aí, ela cantou: – Esperai meu D. Jorge enquanto eu vou lá no sobrado buscar um cálice com vinho que para ti tenho guardado. Aí, ele cantou: – Juliana, Juliana não me vem com falsidade bem sabes que somos parentes, 1 2
os diálogos desta narrativa são cantados. expressão que corresponde a “não mentiu”
minha prima de minha alma. – Juliana, Juliana que puseste no teu vinho que estou com rédea na mão e já não enxergo meu Rosinho3 Não enxergava mais o cavalo. Aí, ele cantou: – Minha mãe agora pensa que tem o seu filho vivo Daí, ela cantou: -A minha também pensava que tu casavas comigo (e era, era dois primo mesmo?) Era! aí, ela, ela cantou: -Acabou-se, acabou-se, acabou-se já deu fim Meu D. Jorge subiu ao céu, parece um anjo Serafim Morreu, quando ele morreu.
Nesta narrativa, a que demos o titulo de “Juliana e Dom Jorge”, assistimos à retomada do tipo das cantigas medievais em que a donzela apaixonada se confronta com um amor impossível, visto que seu amado irá se casar. Assentado num diálogo entre dois amantes, é latente, qual aspecto de uma tradição, a atmosfera de uma sociedade patriarcal na voz de desabafo da mulher acerca da vida (terrível) que leva, cerceada por padrões e (pré)conceitos, tanto mais pela impossibilidade de se casar com o homem que ama pelo fato de este ser também seu parente, o primo. Na narrativa referida ainda desfila uma série de sentimentos humanos atemporais, tal como o notório ciúme que a donzela sente pelo iminente casamento de seu amado primo, o que culmina com um trágico final, com o calculado crime passional cometido pela mulher contra seu primo, numa tentativa desesperada de não vê-lo casar-se com outra. Em “Juliana e Dom Jorge” foi uma narrativa contada por uma informante do bairro do Jurunas, da região metropolitana de Belém. Mesmo sendo uma narrativa ambientada em pleno século XXI, os ares aspirados pela narrativa figura um cenário que remete em muito ao das cantigas medievais ou trovas do século XII em Portugal, em que tais poemas são provenientes também de uma tradição oral e eram comumente cantados. Para tanto, muitas são as similaridades entre a narrativa oral belenense e as cantigas portuguesas: o clamor a Deus em situações amorosas, a decepção amorosa e a expectativa frustrada da mulher e de sua mãe em relação ao casamento dos primos, a ênfase dada pelo próprio informante da narrativa quando menciona que os versos são cantados, a própria ambiência da narrativa assentada na relação imagética do amado chegando à casa em um cavalo. Este diálogo atemporal estabelecido entre textos de épocas e contextos culturais diferentes não são aleatórios. Antes, são registros documentais da presença do colonizador e seu saber, experiências, comportamentos trazidos também em seu imaginário, em que todas essas modalidades de saberes foram codificados pelo elemento amazônida, em particular, facilitando a absorção dos conhecimentos repassados. Foram detectados resquícios do colonizador ainda em determinadas contações muito similares aos contos de fadas, a exemplo de histórias como de João e Maria, ou da Chapeuzinho Vermelho, assim como o aparecimento de reis e princesas: Branca de neve versus Chapeuzinho Vermelho “É porque a Branca de Neve era mais, era mais elegante...” Era uma vez a Branca de Neve, estava na casa dela; aí Chapezinho Vermelho foi levar doce pra ela, aí estava envenenado. Aí ela morreu. Aí o príncipe ficou; aí ela beijou ela quando ela estava morta; aí ela sobreviveu; aí eles ficaram juntos. Aí depois disso ela, ela, ela conheceu a mãe dela. (— Ela não conhecia a mãe dela?) — Não. 3
nome do cavalo.
Aí, ela encontrou com os Sete Anões. Aí eles levaram ela pra uma casa. Aí ela cresceu, aí namorou. (— Ela namorou com quem?) — Com o príncipe. (— E onde ela conheceu o príncipe?) — Na mata. (— Foi? E como foi pra ela encontrar o príncipe?) Ela era pequenininha, aí ela encontrou com ele e começou a brincar. Aí depois ela cresceu, cresceu, cresceu; aí eles começaram a namorar. (— E aí, ela casou com ele?) — Casou. Aí foi quando ela desmaiou, dos docinhos que a,a moça levou pra ela. Aí ele beijou ela, aí ela sobreviveu. (— Quem foi que levou os docinhos envenenados pra ela?) — Foi a Chapeuzinho Vermelho. (— E ela queria matar a Branca de Neve? Por quê?) — É porque a Branca de Neve era mais, era mais elegante. (— É?!) Aí ela chegava na frente do espelho e falava: — Espelho, espelho meu, quem é a mulher mais bonita do que eu? Aí o espelho respondia que era, que era a Branca de Neve. (— Aí o Chapeuzinho Vermelho ficou com ciúme dela?) — Foi. (— E ela deixou os Sete Anões?) — Não, ela... os Sete Anões saíam pra trabalhar, aí ela... e todo dia, ela vinha; a Chapeuzinho Vermelho com uma coisa pra dar pra ela. (— Ela era amiga dela? Aí, depois, ela casou com o príncipe?) — [ Foi]. E desmaiou; depois eles ficaram juntos. Aí depois ela teve um nenenzinho. (— Era o quê? Menino, ou menina?) — Era menina. (— Como era o nome do nenê dela?) — Era Branca de Neve, também. (— Era Branca de Neve, também? Ela só teve uma nenê? E depois que ela casou,ela continuou morando com os Sete Anões?) — Aí o príncipe também.
Em outras narrativas, foi encontrada a forte influência de contos consagrados na cultura oriental, tal como o conto Ali Babá e os 40 ladrões. Tais influências acabam se mesclando com elementos da cultura amazônica na memória do narrador; um grande exemplo disto é de uma narrativa localizada no bairro do Coqueiro, em que o informante ao invés de mencionar na história a tradicional maçã envenenada, cita a pupunha, palmeira nativa da região Amazônica e que é consumida na forma de frutos, frutos esses que na narrativa estão envenenados: – Vou contar uma história, da pupunha, da maçã, aí era a maçã, aí põe a maçã, apanharam, aí os gnomos falou, o gnomo [guto] falaram “mas este pé de pupunheira é meu”, mas... – Aí, aí a bruxa falou: “mas eu vou enfeitiçar vocês por causa que não querem me devolver a nos sa casa de pupunha”.
Narrativas de grande destaque encontradas na pesquisa foram aquelas classificadas como de preconceito, posto que nestas o narrador fala com desdém da cor, nível intelectual ou nível social de outrem. Entretanto, mostram-se bastante atreladas à influência européia, posto que desde o ideal de beleza que entranha o pensamento do narrador-caboclo até valores de respeito e admiração apenas são considerados valorativos, quando se assemelham a valores culturais europeus. Desta feita, as pessoas louras, brancas e gordas são exaltadas em muitas narrativas, tal qual sinônimo de beleza, o que é um fato histórico e se torna atemporal, visto que em épocas passadas as formas arredondadas são muito mais valorizadas nas pinturas renascentistas, no retorno ao modo de pensar às formas estéticas greco-romanos, assim como a imagem da mulher de pele alva e fios de cabelo louros (DOMÍCIO FILHO, 1989). Essa transferência de valores pode ser contada como um forte aspecto da memória dos povos da Amazônia, em decorrência da preservação de uma tradição anterior e
remota, trazida pelos povos que aqui chegaram e estabeleceram parte de suas vidas e história. O que é facilmente perceptível na narrativa que segue: Adivinhação da princesa Quem adivinhasse, quem dissesse uma desse; uma que não tivesse no livro dela, casava com ela, né. Então, o pessoal da cidade... não tinha mais gente; ela era uma menina feinha né, pretinha né. Então, todos que viam ela, não queriam casar, né.
Algumas outras narrativas refletem o desdém do elemento nativo em detrimento do colonizador, o que também configura (pré)conceitos construídos num imaginário que parte de uma generalidade coletiva para o plano individual. Note: Uma lógica “Tu tens um aquário na tua casa?” Aí, o português perguntou, né? o que é lógica? Aí: — Olha, lógica, por exemplo, olha. Tu tens um aquário na tua casa? Aí, ele : — É, tenho, tenho sim. Aí, disse: — Se tu tens um aquário é porque tu tens criança. Aí, ele: — Oh, como é que tu sabes, rapaz? — Isso é lógica, é lógica isso. Aí, ele disse: — Olha, que ver outro exemplo: se tu tem crianças é porque tu, se tu tem criança na tua casa é porque tu tens filhos, né? Ele: — Mas é, e como é que tu sabes? Se tu já foi lá em casa? — Não, rapaz, isso é lógica. É lógica, cara. Ele disse: — Olha, eu vou te dar outro exemplo. Se tu tens filhos, provavelmente tu deve ser casado, né? Ele: — É, é mesmo. Como é que tu sabes, rapaz? Eu nem te convidei pro meu casamento. Aí, disse: — Isso é lógica, cara, lógica. Olha, um, um outro exemplo bem fácil, tu vai entender agora: Oh, se tu é casado, sinal que tu tem uma esposa e se tu tem uma esposa tu não é fresco, porra. Ele: — É, é mesmo, num sou fresco. Mas rapaz, como é que tu sabes, cara? — É lógica. Olha, toma, eu tenho um compromisso agora. Tu fica aí com o livro, certo? lendo. Aí, tu, tu me entrega amanhã. Tu passa lá em casa e leva. O Manoel ficou lá lendo o livro, quando ele chegou, quando ele viu veio se aproximando o Joaquim, né? — Oh, Manoel. — Oh, oh Joaquim. — O que é que tu estás a ler? — Ah, isso aqui é um livro de lógica. — O que é lógica?- o Joaquim perguntou. Aí, disse: — Lógica é, por exemplo, tu tens um aquário na tua casa? Ele: — Não, não, não tenho. — Então tu é fresco.
Outro grupo temático encontrado que merece realce diz respeito a uma narrativa específica: de bestialidade. Esta é particularmente interessante, em virtude de que o narrador menciona o relacionamento de um homem com a fêmea do boto, a bota; a comparação antropomórfica que o narrador faz entre a mulher, ao tentar explicar os motivos que levaram um dado pescador a ter
relações sexuais com uma bota, torna-se superiormente interessante, pois compara os seios femininos ao relevo do tórax do animal, bem como assemelha a genitália animal à humana. É fato dos estudos atuais que as narrativas desfilam sobre os mais diversos tipos e temas literários que se traspassam numa série de combinações temáticas e tipológicas. Quando aqui se menciona uma classificação temática das referidas narrativas, esta investigação pauta-se no conceito de Tema, pensado por Boris Tomachevski (1973, p.169), segundo o qual se trata da “significação de elementos particulares da obra na constituição de uma unidade”. Em virtude do fato de que toda obra literária possui uma unidade, quando construída a partir de determinado tema, que se desenvolve paulatinamente, em relação a essa pesquisa, em Literatura oral, a saber, a estrutura dessas narrativas orais, não se apresenta diferente; este pressuposto de tema foi observado, quando da execução do árduo trabalho de classificação das narrativas do campus de Belém, dada à variedade de temas possíveis no corpus estudado, bem como à complexidade das contações em si. Desse pressuposto decorrem várias conseqüências, pois considerando a escolha do tema de uma narrativa, com vistas à classificação, foi identificado um verdadeiro embate para a captação temática, mesmo para um simples leitor das narrativas. Isto porque Tomachevski delimitou categoricamente a função de um leitor, enquanto captador do tema, posto que mesmo depois deste deixar de ler a obra, ainda assim encontrará as significações dos elementos particulares da mesma: A figura do leitor esta sempre presente na consciência do escritor, embora abstrata, exigindo o esforço deste para ser leitor de sua obra. (...)a experiência literária, a tradição à qual se refere o escritor, revelamse-lhe como uma tarefa legada por seus antecessores, tarefa cuja realização exige toda sua atenção.
(TOMACHEVSKI, 1973, p. 170)
O exercício de classificação das narrativas, em questão, figurou como uma prática de apreensão oscilante entre a tradição literária e as particularidades da época, tanto do narrador quanto do leitor, ou quando se detinham a temas universais ligados à atualidade ou ao modo particular de vida do amazônida paraense. Sob este aspecto, urge destacar que a aplicação deste pressuposto teórico do russo Tomachevski mereceu considerável reflexão e adaptação a uma realidade literária não-pronta e não-canônica, como em geral, acontece nas obras literárias escritas; por se tratar de narrativas orais, as reflexões teóricas merecem um enquadramento específico, posto que há exaustivos estudos e pesquisa na teoria literária, com base nos textos escritos, e não oral. Logo, não é de se admirar que o referido formalista russo embase suas reflexões acerca do tema nas obras literárias, ‘na figura do leitor enquanto agente sempre presente na consciência do escritor’ e não de um contador, tal como é o caso de nossa pesquisa. Entretanto, optou-se pela conceituação teórica de Tomachevski (1973) em virtude da importância com que o autor teoriza sobre os tipos de tema e os critérios de escolha relativos ao assunto. Ademais, foi possível aplicar estas considerações na classificação das narrativas, pelo fato de que o acervo IFNOPAP não mais se constitui apenas de narrativas audíveis, posto que cerca de 2.000 destas já foram transcritas, viabilizando assim a aplicação de determinados critérios consagrados pela teoria literária na análise de sua estrutura particular. Outrossim, é inegável determinadas similaridades encontradas em Tomachevski (1973), no estudo inevitavelmente comparativo e conseqüentemente passível de adaptação entre narrativas orais e escritas: “É preciso sustentar o interesse, estimular a atenção do leitor. O interesse atrai, a atenção retém” (TOMACHEVSKI, 1973, p. 172). Não é diferente o que ocorre nas narrações orais analisadas; o elemento emocional é igualmente ou tanto mais marcante nas contações orais e este foi levado em conta na escolha e delimitação dos mais diversos temas encontrados no corpus; um ato heróico, um sentimento de indignação, um juízo de valor, a comicidade, o medo mórbido, a luxúria, um desejo de vingança, um ato de generosidade figuram em diferentes temas ou na formação de uma unidade composta de pequenos elementos temáticos dispostos numa certa ordem. Nesse contexto, o conteúdo emotivo destas contações está impregnado da identidade cultural dos povos amazônidas. O ato de contar não consiste apenas na narração em si, o narrador
inconscientemente se apropria e aplica elementos temáticos ao que se conta de forma ingênua e espontânea, episódios esses tidos como acontecimentos verídicos nos quais sempre se contam as origens de alguma coisa. E, ao lado das narrativas eruditas da Literatura canônica, têm-se as narrativas populares orais que são uma espécie da história de certa forma esquecida, transmitindo, em adição, os costumes, crenças, concepções de mundo e comportamentos sociais dos usuários de cada cultura, numa [...] forma de vivência e de reprodução cultural que tendem a permanecer vivas e fecundas, na medida em que sobreviverem no espaço amazônico, as condições essenciais desse ‘locus’, no qual a presença humana, do índio ao caboclo atual, encontraram meios para uma produção poetizante da vida. (SIMÕES, 2000, p. 60),
perpetuando-se. Tais narrativas são reelaboradas a cada contar, num processo comunicativo em que a experiência individual e coletiva se misturam, configurando uma tradição que se faz presente desde o início da formação da comunidade até os dias de hoje, por isso trata-se de um discurso essencialmente memorialista em seu sentido lato. O ato de reelaboração a cada narrativa contada é o que potencializa o acervo IFNOPAP, tamanha a diversidade de narrações que; mesmo tratando aparentemente de um mesmo tema, acrescentam elementos temáticos que as diferenciam de outros temas recorrentes acrescidos também de novos traços singulares da memória e tradição de um povo. Vale destacar a importância das narrativas orais nesse processo de consolidação cultural como difusoras de variadas práticas culturais, tais como crenças, festejos religiosos e profanos, culinária etc.; sobretudo, pelo imenso repertório de narrativas de tradição oral e dos relatos de experiência de vida, oriundos desses agentes que ajudaram a compor o variado repertório narrativo da Amazônia, para o qual, em base de pesquisa, localizamos os traços marcados e marcantes nas narrativas advindas da tradição e da memória da comunidade em que circulam. Nesse ínterim, a impressionante diversidade temática e tipológica das narrativas tem somado a pesquisa e o interesse acadêmico nesta área ainda em expansão. Para tanto, alguns temas merecem destaque: narrativas de enterro, bestialidade, preconceito, drama familiar, mistério, sobrenatural, seres da floresta (curupira, matinta perera), seres do rio (boto, cobra grande). Dentre os seguintes tipos: lendas, fábulas, conto, canção, piadas, ditos, parábolas. Este trabalho de classificação narrativa potencializa os estudos em função de produção de um texto sobre memória, tema ou tradição amazônicas, viabilizando o acesso a este material tão rico e diverso, de forma organizada e sistemática. Jakobson(1977) afirmava que, como a língua, a obra popular, sob certos aspectos, tem uma existência independente, em potencial. Mas, ao mesmo tempo, destacava que há impulsos determinados, pela circunstância, que animam os intérpretes das narrativas e acabam por promover uma criação individualizada. Estas inovações individuais, segundo o estudioso, correspondem, de qualquer maneira, também, a uma espécie de “requerimento” da coletividade. Enfim, o contador de história, espécie de arauto da comunidade, no momento da performance, é, sobretudo, aquele que representa a memória do grupo social. O acervo IFNOPAP torna-se, portanto, um registro testemunhal da memória e das tradições imanente ao colonizador que aqui chegou, somando ao elemento nativo de outrora, com impressões que transitam em uma nova ordem a partir de um mundo de encantamento, textualmente marcadas pelas formas cânones da gênese do discurso da narrativa oral – como, por exemplo: “era uma vez...” até expressões coloquiais de reafirmação da veracidade autoral de quem narra, como: “Isso eu vi...”, “É verdade porque aconteceu comigo!”, “Isso acontece mesmo”. É o modo de nossos contadores manterem vivos sua voz e sua cultura no imaginário descendente, não somente pela ato em si de narrar, mas também pela estratégias retóricas, aliada aos símbolos, alegorias, ritos, mitos e lendas acaba por conduzir o pesquisador deste espetacular corpus a tradução e cingimento do homem em sua totalidade.
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AS PRÁTICAS VOLTADAS PARA A MOTIVAÇÃO E AUTONOMIA DOS APRENDENTES NA LEITURA E ESCRITA EM LÍNGUA MATERNA Nelma do Socorro Santana QUEIROZ1 (Universidade Federal do Pará)
RESUMO: Este trabalho é o resultado de uma intervenção didática desenvolvida com alunos da quinta série de uma escola da rede estadual de ensino do Pará. O procedimento foi realizado paralelamente aos estudos sobre autonomia e motivação como disciplina do Mestrado em Lingüística da Universidade Federal do Pará. A realização da intervenção didática teve como impulso a problemática de leitura e escrita dos alunos da referida série e a dificuldade de trabalho dos professores com esses alunos que se encontravam em idade avançada para a série que cursavam e não apresentavam interesse e motivação para os estudos, o que afetava o trabalho dos professores e desencadeava no baixo rendimento da aprendizagem desses alunos. PALAVRAS-CHAVE: motivação; autonomia; sequência didática; leitura; escrita.
ABSTRACT: This work is the result of a didactic intervention developed with students of the fifth series of a school of the state net of teaching of Pará. The procedure was accomplished parallel to the studies about autonomy and motivation as discipline of the Master’s degree in Linguistics of the Federal University of Pará. The accomplishment of the didactic intervention had as pulse the reading problem and the students’ of the referred series writing and the difficulty of the teachers’ work with those students that were in age moved forward for the series that traveled and they didn’t present interest and motivation for the studies, what affected the teachers’ work and it unchained in the low revenue of those students’ learning. KEY WORDS: motivation; autonomy; didactic sequence, reading, writing. Mestranda em Lingüística, com graduação em Licenciatura Plena em Letras (Habilitação em Língua Portuguesa) na Universidade Federal do Pará e em Formação de Professores, na Universidade do Estado do Pará.
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1. Primeiras palavra Na certeza de que o desenvolvimento da competência comunicativa tanto da linguagem oral como da escrita passa por um processo de autonomização e motivação no seguimento do ensino/ aprendizagem, optou-se por desenvolver com esta turma a intervenção didática que será descrita nos tópicos seguintes deste artigo. O procedimento didático com a referida série não teve como foco apenas o despertar para a motivação dos estudos em si, mais que isso, procurou-se delimitar a atenção para a competência escrita e a oralidade, isso porque os alunos demonstravam pouca habilidade em relação à língua escrita, o que comprova a dificuldade dos demais professores em trabalhar com a turma em qualquer disciplina. Sendo assim, é relevante mostrar em primeiro lugar uma visão ampliada sobre alguns aspectos que envolvem a produção e aquisição da escrita em ambientes escolarizados, para posterior apresentação da sequência didática e seus devidos resultados. 2. A leitura e escrita em ambientes escolarizados: algumas considerações As pesquisas referentes à leitura e produção escrita nas escolas apontam para uma relevante mudança de concepção dos termos e posturas em ambientes escolares. Isto não significa dizer que já nos encontramos no patamar desejado para tal habilidade, visto que o processo é lento, depara-se com barreiras de diversas ordens, mas já apresenta resultados tímidos, entretanto satisfatórios. Em se tratando de leitura e escrita nas escolas, Silva (1998) argumenta sobre tal como um objeto de conquista ao relatar a dificuldade do trabalho dos profissionais da educação no seu ambiente de trabalho – a escola. Tudo isso pela falta de investimento em educação e pelos percalços do dia-adia que dificultam as condições de trabalho e de ensino/aprendizagem. Para o autor: (...) a inserção dos educandos no mundo da escrita não é uma questão de dom ou sacrifício, pois depende de trabalho, de instrumental de trabalho (livros) e de situações significativas de ensino-aprendizagem na esfera da escola. (Silva,1998: 20)
O autor reage contra o metodologismo e o dogmatismo vigentes nas escolas por parte dos professores que esterilizam a consciência dos educandos por meio de métodos ultrapassados que em nada acrescentam na preparação para a vida social dos educandos pela insignificância dos métodos pedagógicos adotados. Para agir contra essa postura, Silva (1998) afirma que: Podemos ter em mente uma formulação clara e precisa a respeito do leitor que educamos, de por que o estamos educando (...). Na ausência de experiências inovadoras, nascidas da comunhão dos professores no horizonte de busca de uma nova sociedade, a revolução qualitativa da educação brasileira – colocando-se aí o ensino da leitura e da escrita – não passará de uma veleidade ou ilusão. (Silva, 2008:24)
Nasce de tal concepção a necessidade de um ensino/aprendizagem de leitura e escrita como um processo que possibilita a participação crítica do homem em sociedade. Dito de outra forma, a apropriação de leitura e escrita não pode estar desvinculada da conscientização de indivíduos ativos na sociedade. Para tal finalidade, na contramão das dificuldades supracitadas, Silva (1998:25) afirma que “temos de buscar ou construir técnicas de ensino a partir daquilo que existe em nossa frente, isto é, da realidade concreta das escolas e das necessidades dos educandos”. 3. A importância da motivação e autonomia no ensino/aprendizagem da leitura e escrita em língua materna 3.1. Motivação O avanço nos estudos motivacionais no contexto de ensino/aprendizagem tem contribuído bastante para o desenvolvimento de teorias e estudos voltados para o contexto favorecedor da aprendizagem. Entre os pesquisadores que mais contribuíram para tal estudo, levando à mudança de
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paradigmas, estão Dornyei, Gardner, Julkunen, entre outros. Segundo Ribeiro (2006), as pesquisas voltadas para a situação de aprendizagem e para os fatores motivacionais que variam de acordo com o evento de aprendizagem, pouco foram desenvolvidas recentemente. Entretanto, estes autores vêm defendendo as situações de aprendizagem como interferentes no ensino/aprendizagem, o que possibilitou o desenvolvimento de algumas teorias neste sentido, como é o caso da relação entre os fatores motivacionais internos (“trait”) e fatores motivacionais externos ou situacionais (“state”) apresentados por Tremblay, Goldberg e Gardner (1995) apud Ribeiro (2006). Os fatores internos envolvem disposições estáveis e duradouras, ou seja, orientações motivacionais mais gerais, e diversas atitudes tais como, atitudes em relação à aprendizagem de línguas em geral, interesse por línguas estrangeiras, atitudes em relação à comunidade lingüística alvo, além de ansiedade e persistência nos estudos, e os fatores externos ou situacionais se referem a respostas ou condições transitórias e temporárias, ou seja, à condição motivacional em um determinado momento. (Ribeiro, 2006:33)
Nesta teoria os autores explanam com bastante propriedade como as atitudes dos sujeitos perante a aprendizagem influenciam positiva ou negativamente a aquisição do conhecimento dos alunos, de acordo com os fatores supracitados. Para Ribeiro (2006:33) “a interação entre esses dois fatores vai resultar na disposição do aluno para se dedicar aos recursos pessoais, tais como tempo e energia empregados nas tarefas de aprendizagem da língua”. Considerando os estudos de Ribeiro (2006), afirma-se que as pesquisas voltadas para a motivação direcionadas por Gardner (2001) apontam para três aspectos da motivação do aluno: o esforço, o desejo e as atitudes em relação à aprendizagem. Estes estudos unidos aos que investigam sobre a motivação interna e a motivação externa/situacional deram passagem para uma ampla discussão sobre a temática o que acarretou, e ainda acarreta, pesquisas direcionadas aos componentes motivacionais. 3.2. Autonomia A dedicação de pesquisadores voltados para os estudos sobre a autonomia no ambiente escolarizado tem logrado bastante êxito para as em educação. Entre os autores mais referenciados nesta área está Phil Benson que concebe a autonomia como “(...) uma capacidade multidimensional que assumirá formas diferentes para indivíduos diferentes, e até mesmo para o mesmo indivíduo em épocas diferentes”1 (2001:47). Outra definição relevante para o termo é a exposta por Dam (2000) quando afirma que autonomia é: O desejo e a capacidade do aprendiz de controlar ou supervisionar seu próprio aprendizado. (...) alguém se qualifica como aprendiz autônomo quando escolhe independentemente objetivos e propósitos e estabelece metas; escolhe materiais, métodos e tarefas, exercita a escolha e a finalidade ao organizar e desempenhar as tarefas escolhidas; e escolhe os critérios para a avaliação.2
Para Magno e Silva (2007) autonomia consiste em: Um processo e, portanto, o termo “autonomização” revela-se mais apropriado. Esse processo pode ser implementado gradativamente, com ou sem a ajuda de outrem (professor, colegas, parentes etc.) e pode levar a um saber de crescimento exponencial. Esse processo pressupõe fases, nem sempre nitidamente separadas, de conscientização, mudança de atitudes e transferência de responsabilidades.
Por meio dessas acepções há de se recorrer às considerações sobre o papel do professor como mediador do processo de autonomização dos alunos, em que as mudanças de atitudes e as responsabilidades no processo de aprendizagem dos alunos são influenciadas pala postura do professor. Texto original: “... a multidimensional capacity that will take different forms for different individuals, and even for the same individual in different contexts or at different times”. 2 Texto original: “The learner’s willingness capacity to control or oversee her own learning. (...) that someone qualifies as an autonomous learner when he independently chooses aims and purposes and sets goals; choice and purpose in organizing and carrying out the chosen tasks, and chooses criteria for evaluation. 1
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4. Os sujeitos: agentes no desenvolvimento da motivação e autonomia “O desenvolvimento da autonomia dos aprendentes depende do desenvolvimento da consciência do professor de seu papel no processo.” Leni Dam
A considerar que todo e qualquer processo de ensino/aprendizagem tem como foco o aluno e, por conseguinte, toda a prática do professor de línguas tem por finalidade o desenvolvimento das suas habilidades e competências comunicativas, argumenta-se em favor de um elemento motivacional que o favoreça. Sendo assim, opta-se por voltar o olhar, neste trabalho, para o papel do professor enquanto agente estimulador da autonomização do aluno. Baseada nos fundamentos epistemológicos de Leni Dam, Phil Benson, Paiva e outros, a resposta para a questão supracitada suscita um olhar para o estudo da autonomia docente, que se apresenta como o elemento de fundamental relevância no processo de motivação. Tal posicionamento é inspirado ainda nos pressupostos de David Little (2003), o qual argumenta em favor da importância do papel do professor no processo de autonomização do aprendente. Em se tratando de motivação, é relevante destacar que esta “é o esforço que a pessoa emprega na aprendizagem, seja por conta de um desejo ou da satisfação que o indivíduo sente em realizar tal tarefa” (Gardner, 1998 apud Ribeiro, 2006). Ribeiro (2006) afirma ainda que os componentes motivacionais situacionais fundamentados no ambiente social é a principal ênfase dos estudos atuais de Gardner. Dessa maneira, considera-se o papel do professor em sala de aula como um desses componentes responsáveis pela motivação do aluno. Sobre isto, a autora afirma: “A partir dessas discussões, deu-se início a uma abordagem na pesquisa em motivação centrada nos fatores situacionais (‘situated approach’) ou aspectos mais dinâmicos e próximos do aluno, tais como o professor e a sala de aula” (Ribeiro, 2006:30)
Dessa maneira, a Ribeiro reafirma o caráter decisivo do professor na motivação do aluno quando apresenta “os componentes relativos ao professor (personalidade, estilo e prática pedagógica)” (2006:31) como um dos três tipos de componentes relacionados ao contexto de aprendizagem relevante para a motivação do aluno. Em outras palavras, a atuação do professor em sala de aula é crucial para a motivação do aluno, tanto positiva quanto negativamente. Isto porque, ao se deparar com uma experiência frustrante no ambiente de ensino/aprendizagem, o aluno poderá ser afetado de maneira a bloquear sua motivação interna, ou mesmo desestimular sua autonomização. Esse fato vem retomar o posicionamento sobre a responsabilidade dos docentes em sala de aula em relação à motivação dos aprendentes. Algo que não se deve considerar como foco exclusivo, mas que pelos estudos de autores renomados e experiências do contexto escolar, vem nos apontar como um dos principais elementos no processo motivacional dos alunos. 5. Aplicação da seqüência didática em torno da habilidade de leitura e escrita: um relato da experiência Para melhor visualização desses aspectos no ambiente escolar, optou-se por apresentar um relato de experiência voltado para tais concepções teóricas. Após uma seqüência de situações que desencadearam no péssimo rendimento da turma 503 da escola “Otávio Meira”, Benevidaes/PA, em suas avaliações, decidiu-se, em comum acordo entre a professora de português e os alunos, modificar a metodologia com a qual estavam trabalhando a disciplina. Por meio de uma nova metodologia baseada nos estudos da motivação e da autonomia, se planejou e se desenvolveu todo o procedimento. Os alunos tiveram participação autônoma e fundamental na escolha dos passos da seqüência didática em sala de aula, o que pôde refletir em novas posturas no processo de ensino/aprendizagem.
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Acreditando que o ensino/aprendizagem de Língua Portuguesa tem por objetivo maior o desenvolvimento da competência comunicativa do aprendente, seja na língua oral e/ou escrita, isso se faz com a valorização das produções dos alunos em sala de aula e com a socialização dos frutos dessa aprendizagem, o que possibilita a aquisição da autonomia deles enquanto estudantes de língua e o despertar para a produção textual escrita e para o hábito de leitura. Fundamentados nos estudos de Schneuwly e Dolz (2004), a intervenção didática apresentada a seguir, a qual foi desenvolvida com a turma em questão, tem um caráter modular de aplicação em torno do gênero poema, cabendo a cada módulo os objetivos específicos que foram criados no decorrer da aplicação mediante as necessidades identificadas no desenvolvimento dos trabalhos dos alunos. Sobre isso, os autores assim se expressam: A modularidade é um princípio geral no uso das seqüências didáticas. O procedimento deseja por em relevo os processo de observação e de descoberta. Ele distancia-se de uma abordagem “naturalista”, segundo a qual é suficiente “fazer” para provocar a emergência de uma nova capacidade. O procedimento evita uma abordagem “impressionista” de visitação. Ao contrário, se este se inscreve numa perspectiva construtivista, interacionista e social que supõe a realização de atividades intencionais, estruturadas e intensivas que devem adaptar-se às necessidades particulares dos diferentes grupos de aprendizes. (Schneuwly & Dolz, 2004:110)
A intervenção didática contou com uma sequência de atividades em torno do gênero poema e se compôs em alguns módulos, a seguir: escolha do gênero e temáticas (amizade e respeito), apresentação do gênero, primeira produção, análise e reescrita da produção, estudo de conteúdos curriculares por meio dos poemas produzidos, entre outros. 5.1. Escolha coletiva da temática e gênero a serem trabalhados A primeira dimensão é a do projeto coletivo de produção de um gênero oral ou escrito, proposto aos alunos de maneira bastante explícita para que eles compreendam o melhor possível a situação de comunicação na qual devem agir; qual é, finalmente, o problema de comunicação que devem resolver, produzindo um texto oral ou escrito. (Schneuwly & Dolz, 2004:99)
Após a verificação do fracasso dos alunos em duas avaliações consecutivas, optou-se por mudar a metodologia aplicada em sala de aula. Tal procedimento aconteceu da seguinte forma: primeiramente, os alunos avaliaram a atuação dos envolvidos no processo (professora e alunos), expuseram suas insatisfações, dificuldades e anseios conformes suas necessidades. Posteriormente, sugeriram os procedimentos que melhor favoreciam sua aprendizagem. Em decorrência do fracasso nas médias, os alunos sugeriram à professora que desenvolvessem um trabalho paralelo que substituísse a média de participação na quermesse da escola, visto que eles, por falta de motivação, não o fizeram, ficando assim sem a devida pontuação. Acreditando e ajustando-se às sugestões de trabalho dos alunos, a professora decidiu desenvolver tal atividade que fora escolhida por eles mediante as alternativas expostas por ela para melhor direcionamento da seqüência. Para isso ela utilizou quatro perguntas básicas: Qual o gênero? Modalidade oral ou escrita? Qual a temática a ser abordada? Que material concreto iremos produzir? As decisões não foram tomadas aleatoriamente. Os alunos decidiram pela modalidade escrita do gênero poema devido suas dificuldades em escrever, o que refletia no péssimo rendimento nas demais disciplinas. As temáticas “amizade e respeito” surgiram das situações que levavam sempre a professora a resgatar a reflexão sobre esses valores em sala de aula. E a idéia de elaboração de um material concreto surgiu por parte da professora por acreditar que tal atividade deveria representar algo significativo para os alunos, de forma que eles pudessem recordar e refletir nos anos seguintes de estudo. Dessa maneira, optou-se pela elaboração de um livro com as composições dos poemas escritos pela turma. E assim, deu-se procedimento à intervenção.
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5.2. Apresentação do gênero poema Para esclarecer as representações dos alunos, podemos, inicialmente, pedir-lhes que leiam ou escutem um exemplo do gênero visado. (Schneuwly & Dolz, 2004:99)
Por meio da utilização do recurso didático retroprojetor, a professora apresentou para os alunos o gênero poema, especificando suas características, como por exemplo, o paralelismo, as rimas, estrofes e verso. Em seguida, os alunos rabiscaram os primeiros poemas. Um dos poemas apresentado à turma foi o seguinte: Me diz amizade Amizade Me diz como você é Me diz como você age Me diz como devo fazer para ser seu amigo Amizade Me diz como te encontrar Me diz se já tenho Me diz se já sou amigo Amizade Me diz quais os sentimentos que são encontrados Me diz como esses são vivenciados Me diz como eles são interpretados Amizade Me diz como devo fazer Para que você me entenda O que quero dizer Giovana Pereira de Souza
5.3. Produção inicial É assim que se definem o ponto preciso em que o professor pode intervir melhor no caminho que o aluno tem ainda a percorrer: para nós, essa é a essência da avaliação formativa. Dessa forma, a produção inicial pode “motivar” tanto a seqüência como o aluno. (Schneuwly & Dolz, 2004:101)
Nesse momento, houve preocupação por parte da professora em deixar os alunos à vontade para produzirem seus poemas, sem rigidez de forma, métrica e outros. A intenção nesse momento era deixar a criatividade e o ímpeto emocional fluir nos alunos, motivados pelo processo que se iniciara naquele momento. As primeiras produções se apresentaram de forma tosca, ou seja, sem refinamento na composição, o que não desmereceu o trabalho dos alunos, pois a professora, a todo o momento, tecia elogios de forma que os alunos se entusiasmavam com aquilo que estava sendo produzido. Para a melhor visualização da evolução das produções dos alunos, optou-se pela sequência de produções de um grupo de alunos que ao longo desse trabalho serão apresentadas. Como exemplo das primeiras produções, temos:
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Nas produções iniciais, é nítida a despreocupação com a forma do gênero, o que se observa na produção da aluna Larissa, bem como a dificuldade de escrita nos rabiscos do poema do Rodrigo. Entretanto, alguns alunos apresentaram o mínimo de refinamento na estrutura do poema como é o caso da produção do Cláudio. 5.4. Análise 1: confronto com poemas de autoria dos próprios alunos A produção inicial tem um papel central como reguladora da seqüência didática, tanto para os alunos quanto para o professor (...). Ao mesmo tempo, isso lhes permite descobrir o que já sabem fazer e conscientizar-se dos problemas que eles mesmos, ou outros alunos, encontram. (Schneuwly & Dolz, 2004:102)
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Após a primeira produção, a professora selecionou algumas estrofes de alunos que apresentaram a maior desenvoltura, como forma de incentivar os colegas e fazê-los observar o que estava sendo preciso melhorar em seus poemas em termos de rima, conteúdos e outros, o que os levou à segunda produção: Larissa
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Na segunda produção fica evidente a preocupação com o refinamento do texto, da estética do poema e o avanço na escrita dos alunos pela ausência de “garranchos” em ambos os poemas. Algo interessante, ainda na segunda produção, é a mudança considerável na escrita do poema da Larissa e do Rodrigo, comparados às primeiras produções. 5.5. Análise 2: uso do dicionário A releitura dos textos é feita, naturalmente, com o apoio de obras de referência, habitualmente disponíveis na sala de aula: dicionários, quadros de conjugação, manuais de ortografia etc. Os alunos deverão, portanto, estar familiarizado com a utilização desses diferentes meios. (Schneuwly & Dolz, 2004:118)
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Embora a identificação de um progresso tímido nas produções dos alunos, observou-se que eles continuavam apresentando dificuldades em termos de ortografia. Os alunos não sabiam escrever palavras básicas do seu cotidiano. Foi então que a professora, após analisar cada produção, destacou todos os desvios linguísticos e de vocabulário para que os alunos, em sala de aula e com o manuseio do dicionário pudessem identificar essas palavras e as suas devidas escritas. A atividade foi feita em duplas para que não houvesse tanta dificuldade em encontrar as palavras no dicionário. E assim os alunos reescreveram seus poemas. 5.6. Análise 3: auxílio dos colegas E revisão dos textos, do ponto de vista da ortografia, é um lugar ideal de colaboração (...). Em classe, essa colaboração pode assumir diversas formas: troca de textos entre dois alunos, cujas capacidades em ortografias são bastante próximas; colaboração entre um aluno que tem facilidade e um que encontra mais problemas... (Schneuwly & Dolz, 2004:119)
Após uma triagem das produções que já estavam em nível satisfatório, a professora propôs que os alunos com maior desenvoltura na produção auxiliassem aqueles que ainda se encontravam num estágio de maior dificuldade. Então, os alunos se dispuseram em duplas conforme a seleção feita pela professora seguindo o critério de aluno com maior desempenho de escrita com aqueles com menor desempenho. Nesse momento, foi ainda relembrado o procedimento de rima simples, pois muitos alunos sentiram dificuldades em estabelecer as rimas em seus poemas. E conforme a orientação da professora e o auxílio dos colegas, os alunos elaboraram a última versão dos seus poemas, como se pode observar no exemplo a seguir: Larissa
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5.7. Estudo dos pronomes e verbos “(...) o importante é que o aluno encontre, de maneira explícita, os elementos trabalhados em sala de aula e que devem servir como critério de avaliação” (Schneuwly & Dolz, 2004:107)
Para cumprir o programa curricular em andamento, a professora trabalhou pronomes com os alunos. O procedimento se deu da seguinte maneira: após a explicação do assunto por meio do livro didático, cada aluno, de posse do seu poema, identificou os tipos de pronomes existentes nos seus poemas e suas devidas utilizações em determinados ambientes desses poemas. Em seguida, os alunos fizeram uma lista coletiva dos pronomes mais utilizados nos poemas da turma e a identificação dos menos utilizados por eles. 6. Produção final: comparação das produções No momento da produção final, o aluno pode pôr em prática os conhecimentos adquiridos e, com o professor, medir os progressos alcançados. A produção final serve, também, para uma avaliação do tipo somativo, que indicará sobre os aspectos trabalhados durante a seqüência. (Schneuwly & Dolz, 2004: 98-99)
Após o procedimento de escrita e reescrita, entre outros, os alunos puderam elaborar a versão final dos poemas. Muitos não o fizeram, visto que seus poemas já se encontravam em estado satisfatório logo na terceira produção. Estes alunos estavam apenas encarregados de auxiliar os colegas com maior dificuldade. Em sequência, a professora redistribuiu todas as produções dos alunos de forma agrupada para que eles tivessem contato ao mesmo tempo com todas as suas produções e pudessem identificar os seus avanços. Exemplos das produções finais são os seguintes: Larissa Amor de uma amizade Amizade de um amigo É o respeito na amizade O amor de um abraço amigo Sempre traz felicidade É amigo quem respeita a amizade E o respeito de amigo todo mundo quer Mas a saudade de um abraço amigo Quase ninguém quer O amor de uma amizade Todo mundo quer Pois amigo do peito No amor, no respeito e na amizade Sempre traz felicidade.
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Rodrigo A força da amizade A amizade não se desfaz Como um laço entrelaçado Amizade só é feita Com um pouco de amor e respeito Quando alguém respeita o outro Não é só um roubo de amor É um roubo do coração do outro Como um gesto de amor A saudade de uma amizade Não é conosco um pano desfiado Nem como uma planta mal regada Pois nunca acaba a sinceridade Pois quando chega O amor se espalha E quando sai A tristeza quase mata
Cláudio Quero amizade Quero teu rosto em minha mente Teu abraço com respeito Tua amizade com respeito e carinho Sempre na minha frente Ah! Como gostaria de encontrar você, amizade Como no primeiro dia... E estar junto de ti E sentir o seu corpo fluir em minha companhia Me diz amizade Como os sentimentos são encontrados E pode ser que tudo um dia acabe E nos lembraremos pra sempre Com felicidade Pode ser que um dia se passe E se encontramos de novo Juntos vivemos um para o outro Para sempre com respeito e amizade
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A versão final dos poemas foram recolhidas e enviadas para a produção de um livro de poemas, resgatando um dos objetivos iniciais da sequência. Por sugestão da turma, o livro teve como título “Os nossos poemas” e foi apresentado à escola com coquetel de lançamento e, posteriormente, apresentado em outros eventos culturais do bairro. Após a sequência de atividades em sala de aula, a professora reservou espaço para o relato dos alunos sobre a análise comparativa das suas produções, em que eles puderam resgatar todo o procedimento realizado com a turma. Para isso, a professora utilizou um questionário e obteve respostas diferenciadas, como se observa a seguir:
Nesse momento é relevante darmos destaque para algumas considerações no que tange a tabela apresentada. Após três meses de intervenção didática diferenciada e fundamentada nos pressupostos da motivação e autonomia, pudemos comprovar resultados satisfatórios em termos de aprendizagem, visto que 96% dos alunos se sentiram mais motivados em desenvolver as atividades, 90% melhoraram as suas médias depois da nova metodologia e 100% considerou positiva a produção do livro, tanto para a motivação no estudo de língua materna, quanto para a motivação da leitura e escrita de textos, entre outros. Por outro lado, observou-se a efetiva mudança no processo de ensino/aprendizagem por meio das declarações dos alunos, o que nos leva a confirmar em termos de motivação e autonomia, o progresso deles enquanto alunos de português - língua materna. Tais declarações são expostas na tabela a seguir:
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5.8. Lançamento do livro: apresentação oral “A inserção dos educados no mundo da escrita não é uma questão de dom ou sacrifício, pois depende de trabalho, e instrumental de trabalho (livros) e de situações significativas de ensino/ aprendizagem na esfera da escola”. (Silva, 2008)
A intervenção didática foi finalizada com o lançamento do livro no último dia de aula do ano letivo, e contou com a organização completa dos alunos, onde foi apresentado o livro por meio de recitações dos poemas pelos próprios e finalizado com um coquetel organizado pelos mesmos, em um momento de bastante entusiasmo e satisfação pela conclusão do trabalho desenvolvido. 6. Em outras palavras Em outras linguagens, o caráter modular da intervenção didática aqui exposta baseada nos estudos de Schneuwly & Dolz (2004) assim se configuram: Estrutura da sequencia didática aplicada à turma 503 da Escola Otávio Meira, em Benevides/PA
5. Palavras conclusivas O trabalho aqui apresentado demonstrou a importância das concepções a cerca da motivação e autonomia nas metodologias aplicadas em sala de aula. Nesse contexto, é importante destacar que as concepções e relatos dos alunos em meio ao processo é algo de fundamental relevância, visto que são esses relatos que a todo o momento direcionam o trabalho do professor como colaborador ou facilitador da autonomia dos aprendentes mediante o processo de ensino/aprendizagem. Entre os relatos, exposições e questionamentos dos alunos ao longo da intervenção didática, houve uma que perdurou por muito tempo e demonstrou-se de significância fundamental, o que resume todo o esforço da professora em promover a motivação neles e com a qual muitos desses atores se alimentaram durante os momentos de dificuldades para a concretização desse trabalho: “Professora, a senhora ainda acredita em mim?”.
A resposta positiva a essa pergunta, que sempre esteve presente nas aulas relatadas é o que nos motiva a buscar sempre mais conhecimentos adequados e dedicação por intervenções didáticas que favoreçam mudanças dos alunos em termos positivos, para que eles se tornem verdadeiros sujeitos autônomos e motivados na busca pelo conhecimento.
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EDUCAÇÃO GLOBAL ATRAVÉS DO ENSINO DE LÍNGUAS Nilton HITOTUZI1 (Universidade Federal da Bahia)
RESUMO: Este trabalho visa apresentar o Modelo Dramático-Problematizador (MDP), um caminho alternativo para uma educação pelas línguas em que o aprendente transcende o mero aprendizado lingüístico. A composição do MDP se deu através de uma intervenção, nos moldes da Pesquisa-Ação, em uma escola da zona rural do município de Tefé, estado do Amazonas. Os 16 alunos do sétimo ano do Ensino Fundamental que participaram como co-pesquisadores durante o semestre escolar em que o MDP foi aplicado apresentaram um elevado nível de proficiência na língua-alvo (inglês) em relação ao seu nível inicial. Também se mostraram e relataram estar mais motivados a estudar inglês apesar de essa não ser a matéria preferida da maioria deles. Outro fator positivo, verificado durante e ao final da intervenção, foi a capacidade de o MDP propiciar ampla oportunidade para a reflexão sobre temas relacionados à realidade dos participantes. PALAVRAS-CHAVE: Modelo Dramático-Problematizador; educação global; ensino de línguas.
ABSTRACT: This paper aims at presenting the Dramatic-Problematizer Model (DPM), an alternative way towards an education through languages, in which the learner transcends the mere learning of linguistic items. The DPM was developed by means of a piece of action research carried out in a rural school in the municipality of Tefé, state of Amazonas. By the end of the experience, the 16 seven year students who took part in it displayed a high level of proficiency in the target-language as compared with their initial level. Furthermore, they also appeared and professed to be more motivated to studying English, despite the fact that it was not the favourite school subject of most of them. Another positive factor, which was verified during and by the end of the intervention, was the DPM instrumentality to provide plenty of opportunity for the learners to reflect on themes related to their reality. KEY WORDS: Dramatic-Problematizer Model; global education; language teaching. Bolsista da FAPEAM – Fundação de Amparo à Pesquisa do Amazonas e também vinculado à SEDUC-AM-Secretaria de Educação do Estado do Amazonas.
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1. Introdução Nos rincões do Amazonas, embora o avanço tecnológico tenha contribuído para o encurtamento das distâncias, ainda há muita dificuldade de acesso e escassez de material didático para uma educação global do jovem rurícola. Essa percepção somada à própria experiência de quem viveu e estudou na zona rural desse estado constituíram a “mola propulsora” da investigação por uma abordagem de ensino ampla o suficiente para abrigar possibilidades intra- inter- e transdisciplinares, objetivando uma educação abrangente, tendo como norte a reflexão sobre temas relacionados à realidade do aprendente e o desenvolvimento de seu senso crítico. Surgiu, então, o Modelo Dramático-Problematizador, resultante de uma experiência, pelo método da Pesquisa-Ação, realizada na zona rural de Tefé, um município do Amazonas, distante de Manaus, a capital do estado, há 516 km em linha reta e 633 km por via fluvial (IBGE, 2006). Especificamente, a intervenção concretizou-se na Escola Indígena Santa Cruz, em uma turma composta de 16 alunos do sétimo ano do ensino fundamental. Esses alunos, doravante chamados co-pesquisadores, estão divididos em três etnias: Kokama, Kambeba e Tikuna. Mas, falam o português como língua materna e poucos estudam a língua de seus ancestrais. Inglês foi a disciplina usada para a aplicação do MDP. Salienta-se, entretanto, a possibilidade de aplicação desse modelo no ensino de quaisquer disciplinas do currículo escolar. Na seqüência deste trabalho, serão apresentados sucintamente os pilares teóricos do MDP, a descrição do modelo, bem como alguns resultados parciais que lhe dão sustentação. 2. Os pilares teóricos do modelo dramático-problematizador São três os pilares teóricos do Modelo Dramático-Problematizador: o Drama-Processo, a Aprendizagem de Línguas através de Tarefas e a Pedagogia Crítica. O primeiro é fundamentalmente uma estratégia de ensino que pode ser utilizada como ferramenta intra- inter- e transdisciplinar dentro do ambiente escolar; isso, de certa forma, já era preconizado por Cecily O’Neill (O’NEILL, 1995; 2006), a professora de drama e autora que cunhou, na Inglaterra, o termo drama-processo (process drama). Já o segundo tem como princípio fundante a idéia de que a pessoa aprende fazendo. O terceiro, enfim, preconiza uma sala de aula em que as relações professor-aprendente e aprendente-aprendente sejam horizontais, movidas pelo diálogo problematizador. Envolve também trabalho colaborativo em busca de soluções para problemas propostos. A Pedagogia Crítica prioriza o desenvolvimento do senso crítico do aprendente. 2.1. O Drama-Processo Há algumas características deste primeiro pilar do MDP que o separam de outros gêneros teatrais. Enquanto em outros gêneros é comum a teia de sentidos ser elaborada e comunicada a uma platéia por um grupo abrangente de participantes (e.g. dramaturgo, diretor, figurinista, atores e muitos outros), no Drama-Processo (DP) é o professor juntamente com seus alunos que se investem desses papéis na produção e comunicação de sentidos para si mesmos. Com efeito, em uma sessão de drama-processo existe uma sinergia resultante da participação do professor e dos alunos, de forma improvisada, na realização das tarefas emergentes na construção do sentido, de modo tal que, como argumentam Bowell e Heap (2001), a atitude prevalece sobre a caracterização. Esse tipo de dramatização, normalmente não dramatizada, é inspirado no Drama Vivencial de Dorothy Heathcote (BOLTON, 1999; JOHNSON; O’NEILL, 1991; HITOTUZI, 2007). A professora Heathcote prima pela autenticidade da ação dramática; em seu drama, os participantes vivem a situação enquadrada. Creio que o melhor exemplo disso seja a brincadeira de criança. Quem já brincou de casinha pode compreender esse fenômeno. Nessa brincadeira não há roteiro pré-escrito (nem pós-escrito), os participantes não fingem ser um personagem (e.g. a mãe, o pai), simplesmente o são.
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Nesse sentido, o DP parece estar mais propício à aceitação por parte de alunos introvertidos, pois, além de não precisar alterar seu tom de voz, usar uma fantasia e agir artificialmente, como é comum em produções teatrais nas escolas, eles se concentram nas atitudes de seus personagens e os vivenciam com a participação do professor, que passa a ser o professor-em-cena. Essa técnica expõe o professor a compartilhar com seus alunos das incertezas típicas da produção de conhecimento aqui-e-agora verificada em dramas-processos. Isso o compele ao diálogo e ao trabalho com e não para o educando, o que pode fazer com este sinta-se mais à vontade para expressar seu pensamento e liberar sua verve criativa. Subjacente ao professor-em-cena está um princípio freireano e também jaspersiano, (para a devida creditação a Karl Jaspers, em quem Paulo Freire se inspira nesta questão particular), que considero importante para uma educação libertária: o diálogo, a horizontalização na relação educando-educador: A com B impelidos à ação interativa por uma matriz de “Amor, humildade, esperança, fé, confiança [e] criticidade” (FREIRE, 2007a, p. 115). É vestindo o manto do perito, outra técnica do repertório da professora Heathcote (BOLTON, 1999), que alunos, extrovertidos ou não, encontram o ponto de concentração1 no drama-processo. Destarte, na pele do arquiteto que agora produz a planta de uma escola para concorrer a uma licitação que poderá lhe projetar na vida profissional, não sobra nem tempo nem espaço para dramatizar, senão para viver o momento. Outra característica fundamental do DP é a oportunidade franqueada aos participantes para o desenvolvimento da solidariedade, da reflexão, do senso crítico, de habilidades para solucionar problemas, tomar decisões, enfim, de valores e habilidades que, em última análise, podem prepará-los para as situações do macro universo da vida, reconstruídas nos dramas-processos vivenciados no micro universo da sala de aula. 2.2. A Aprendizagem de Línguas através de Tarefas O segundo pilar, Aprendizagem de Línguas através de Tarefas (ALT), é, na realidade, um modo particular de se aplicar a Abordagem Comunicativa. A ALT surgiu no cenário do ensino de línguas na década de 1980 através de investigações no campo da Aquisição de Segundas Línguas (DUFF 1986; DOUGHTY; PICA, 1986), sendo difundida amplamente a partir do Projeto de Ensino Comunicacional (Communicational Teaching Project) executado por Prabhu (1987) em Bangalore, nesse mesmo período (WILLIS, 2004; VAN DEN BRANDEN, 2006). A ALT se fundamenta essencialmente no princípio: aprender fazendo; na sala de aula em que a abordagem é aplicada há uma tentativa de se usar a língua-alvo como é normalmente usada fora do ambiente escolar. Desse modo, o sentido prevalece sobre a forma. Entretanto, a estrutura de ALT proposta por Jane Willis em seu livro A Framework for Task-based Learning (WILLIS, 1996a) parece estabelecer um equilíbrio entre forma e sentido. A autora argumenta que essa estrutura satisfaz quatro condições básicas para a aprendizagem de uma língua estrangeira: (1) a exposição à língua-alvo, (2) seu uso de forma significativa, (3) a motivação para estudá-la e (4) a análise de sua forma (WILLIS, 1996b). Willis circunscreve a aprendizagem de línguas através de tarefas em uma estrutura triádica, como se pode observar na figura abaixo (Figura 1). Figura 1. Estrutura da Aprendizagem através de Tarefas, adaptada de Willis (1996a, p. 38).
A técnica de se buscar um ponto de concentração é repetidamente defendida por Spolin (2000) como importância para manter os alunos-atores concentrados no jogo dramático.
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A pré-tarefa é a parte preparatória para a execução da tarefa, onde o professor dá explicações sobre o caráter da tarefa e a forma de relato. É nesse espaço em que Willis (1996a, b) trabalha a primeira das quatro condições básicas à aprendizagem de línguas apresentadas anteriormente. Na concepção dessa autora, é fundamental que o aluno seja exposto a uma rica variedade do que ela chama real language, ou seja, textos orais ou escritos que não tenham sido editados ou produzidos com a finalidade de enfocar pontos gramaticais específicos, por exemplo. Desse modo, um texto extraído de uma revista ou jornal, um fragmento de noticiários de televisão ou rádio, a própria fala do professor em sala de aula, tudo isso pode se constituir língua real. Pelos processos envolvidos na segunda parte de sua estrutura, o ciclo da tarefa, Willis (1996a, b) abre espaço para o estudante de línguas experimentar e testar hipóteses, de trabalhar a língua de forma contextualizada, em várias situações, enfim, fazer uso da língua-alvo de modo significativo – a segunda condição básica para a aprendizagem de línguas. Essa etapa também propicia, segundo a autora, a terceira condição básica, isto é, a motivação para “processar” o insumo de forma significativa, bem como “para usar a língua para falar e escrever”2 (WILLIS, 1996b, p. 60). Para a autora, é o objetivo da tarefa que mais estimula a motivação. O desafio de obter resultados através da participação em jogos e tarefas de solução de problemas, por exemplo, já é em si um fator motivador. Outro fator apresentado pela autora consiste na possibilidade de comparação entre o resultado da tarefa proposta aos alunos e aquele de tarefa semelhante apresentada a eles através de gravações (WILLIS, 1996b). Sem deixar de oportunizar mais exposição e uso da língua-alvo ao aluno, o foco na forma, a terceira parte da tríade de Willis, constitui o espaço para a satisfação da quarta condição básica para a aprendizagem de línguas em sala de aula. Willis (1996b) tem consciência de que, no processo de aprendizagem de uma segunda língua, o aprendiz carece de momentos para a reflexão sobre a forma da língua, tanto para evitar o fenômeno da fossilização3 como para sistematizar e ampliar sua interlíngua4. Já na fase anterior, especificamente no espaço dedicado à preparação para os relatos, os alunos começam a dar ênfase à forma, naturalmente levados pela iminência da presença de espectadores as suas publicações. Uma observação mais detalhada da estrutura proposta por Willis parece indicar que essa última parte, o foco na forma, constitui o componente-chave do equilíbrio entre forma e uso. É importante pontuar, no entanto, que a concepção de aprendizagem de línguas do professor é crucial para o estabelecimento desse equilíbrio. Aparentemente, o professor que possui uma perspectiva heurísticodialógica5 do processo de ensino-aprendizagem de línguas se adapta mais confortavelmente a essa estrutura e suas demandas de aplicação de atividades nocionais no seu estágio final. Isto é, atividades que levam o aluno a perceber os fatos da língua, comumente conhecidas como consciousness-raising activities (RUTHERFORD, 1987; WIDDOWSON, 1990; WILLIS, 1990; NUNAN, 1991; WILLIS, D.; WILLIS, J. 1996). Ademais, esse perfil heurístico-dialógico do professor pode levá-lo a utilizar atividades de base lexical (WILLIS, 1990; LEWIS, 1993, 1997, 2000) para chamar a atenção do aluno para o aspecto formal da língua dentro da última parte da tríade proposta por Willis (1996a). De qualquer modo, independentemente da abordagem a que se recorra como meio de evitar a polarização radical entre forma e uso na sala de aula de línguas, a estrutura de aprendizagem através de tarefas desenvolvida por essa autora pode ser um importante ferramental à disposição do professor que acredita na existência das “[...] to process [...] to use the language, to speak and write.” A fossilização é caracterizada pela aprendizagem “defeituosa” de uma segunda língua. O fenômeno se verifica em certos traços, aparentes na fala do aprendiz, que se diferenciam da fala da comunidade lingüística da língua-alvo. A fossilização é estabelecida quando não há mais avanço no aperfeiçoamento da fala do aprendiz com relação à irregularidade lingüística verificada em sua interlíngua (SELINKER, 1972). 4 De modo sucinto, a interlíngua constitui toda a competência lingüística do aprendiz em relação à língua-alvo, compreendendo, portanto, todo o repertório da segunda língua que o aprendiz consegue utilizar, seja em nível produtivo ou receptivo. Esse conceito remonta ao texto Interlanguage, de Larry Selinker (SELINKER, 1972). 5 O termo está sendo usado para expressar o estilo de aprendizagem pela reflexão e descoberta colaborativa por meio da comunicação horizontal do professor com seus alunos e destes entre si. 2 3
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condições-chaves de aprendizagem aqui mencionadas e que almeje algum tipo de mudança no paradigma tradicional de ensino de línguas. Mesmo assim, é possível que apesar do respaldo de resultados de pesquisas com base em tarefas (CATHCART, 1986; MCCREARY, 1986 apud CHAUDRON, 1988; LONG, 1989, 1990; KANAGY; FALODUN, 1993; FOSTER; SKEHAN, 1996, 1999; SKEHAN; FOSTER, 1997, 1999; MEHNERT 1998; ORTEGA 1999; BYGATE, 1996, 1999, 2001; LYNCH; MCLEAN, 2001; LOCHANA; DEB, 2006; ROCHA, 2005; GUTIÉRREZ, 2005), a adoção da Aprendizagem de Línguas através de Tarefas em certos contextos escolares pode ainda ser um grande desafio. 2.3. A Pedagogia Crítica Por fim, a Pedagogia Crítica. Este terceiro pilar é fundamental para uma educação global do aprendente de línguas. É também pela via de uma pedagogia crítica que o professor pode encorajar e ajudar o aprendente a exercitar e desenvolver o senso crítico, sem o qual próprio professor está fadado ao descaso. Destarte, em um determinado contexto escolar, o primeiro passo para uma pedagogia crítica só será dado quando o próprio professor decidir aprender a pensar criticamente; essa decisão está normalmente associada ao compromisso. O compromisso com o aprendente e com a educação de modo geral é a mola propulsora que moverá o professor a se habilitar a dar o primeiro passo em direção a uma pedagogia crítica. Ontologicamente, entretanto, os seres humanos são comprometidos: alguns são comprometidos com a humanização, outros, com a desumanização. Essa é a visão de Freire (2006a). É possível, entretanto, que ainda haja um terceiro grupo: os humanistas paradoxais. Aqueles que, circunstancialmente, ora demonstram um compromisso radical com o homem de carne e osso, ora revelam-se inimigos desse mesmo homem. Não estaria essa oscilação encravada na própria natureza humana? Não é utópica a linearidade presumida na argumentação de Freire (2006a) - ser ou não ser comprometido com a humanização? Há de se argumentar que, mesmo não podendo manter-se sempre comprometidos com a humanização, dada a falibilidade do homem, os pró-humanização devem almejar essa linearidade. A utopia parece encaminhar as pessoas à perfeição, mesmo que esta jamais seja atingida. No processo, elas terminam fazendo, ou dando, o melhor de si, mesmo que o feito, ou o dado, esteja longe da configuração ideal. Com efeito, se potencialmente o professor está comprometido com o aprendente e a educação como um todo, esse primeiro passo em direção a uma pedagogia crítica se concretizará, então, quando ele próprio estiver exercitando e desenvolvendo o seu senso crítico. Um trabalho, portanto, interior, de auto-análise. Nesse início de jornada de autoconhecimento, pelo menos três perguntas podem ser trazidas à baila sem perder de vista a complexidade das mesmas: (1) “O que é senso crítico?”; (2) “Tenho senso crítico?”; e (3) “Como adquirir senso crítico?” A resposta à primeira pergunta já está envolta pela falta de consenso da parte de eminentes teóricos do pensamento crítico. Segundo Tenreiro-Vieira e Vieira (2000), tal divergência decorre da heterogeneidade de princípios investigativos por eles adotados. A autora admite, todavia, a existência de duas características fundamentais do senso crítico, filigranadas nas perspectivas dos especialistas consultados: a reflexão e a avaliação (ENNIS, 1985; PRESSEISEN, 1987; BEYER, 1988; NORRIS e ENNIS, 1989; SWARTZ e PERKINS, 1990; PAUL, 1993; HALPERN, 1996; PIETTE, 1996). A idéia de que o pensamento crítico envolve processos reflexivos e avaliativos é também verificada na caracterização freireana da consciência crítica: “1. Anseio de profundidade na análise de problemas. Não se satisfaz com as aparências. Pode-se reconhecer desprovida de meios para a análise do problema. [...] 4. Procura verificar ou testar as descobertas. Está sempre disposta às revisões.” (FREIRE, 2006a, p. 40-41). Essa filigrana também é encontrada em Carraher (1983), para quem o senso crítico é a capacidade de analisar e discutir problemas de forma inteligente e racional, associada à recusa de aceitação automática de opiniões próprias ou de outrem. Embora não pareça existir uma tipologia exata do perfil do pensador crítico (PIETTE, 1996), Carraher (1983) apresenta um resumo de sete características gerais que podem servir de parâmetro de verificação da presença ou ausência de senso crítico em uma determinada pessoa (Tabela 1).
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Tabela 1: Perfil do pensador crítico (adaptado de Carraher, 1983, p. xx).
A comparação das características do pensador crítico na Tabela 1 com as dez características da consciência crítica elaboradas por Paulo Freire (Tabela 2) revela a univocidade da interpretação desses dois autores com relação ao perfil de quem exercita o senso crítico: Tabela 2: Características da consciência crítica.
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Essas características apresentadas por Carraher (1983) e Freire (2006a) são categorias gerais. Enquanto que outros autores propõem categorias mais específicas. Ennis (1987), por exemplo, biparte as características do pensador crítico em habilidades e disposições e apresenta uma detalhada lista de itens sob esses dois rótulos. Por um lado, para um estudo aprofundado, provavelmente em nível superior, a proposta desse autor parece mais adequada. Por outro lado, as sete categorias gerais de Carraher (1983) podem ser mais apropriadas para estudos envolvendo alunos do Ensino Fundamental, por exemplo. Isso porque tais categorias gerais permitem ao pesquisador estabelecer subcategorias mais flexíveis e adequadas à realidade do grupo envolvido. Uma vez identificada a carência de senso crítico (se esse for o caso), resta a busca de uma resposta à terceira pergunta – “Como adquirir senso crítico?”. Segundo Carraher (1983, p. xx), essa não é uma habilidade inata, embora todos os seres humanos a tenham em potencial. Ele argumenta que, mesmo entre crianças de ressaltada inteligência, não se verifica senso crítico, já que o mesmo é dependente de “[...] amadurecimento intelectual e formalização do pensamento [...]”. Ao longo da vida, portanto, possivelmente, pela reflexão, vivência diária e leitura, a pessoa pode adquirir, exercitar e desenvolver seu senso crítico (CARRAHER, 1983). Para Freire (2006a, p. 39), a consciência crítica só é adquirida através de “[...] um processo educativo de conscientização”. Um processo educativo mútuo, em que se prima pelo diálogo, pelo respeito mútuo; em que a perspectiva do educando seja valorizada; em que não haja a anulação do outro pela imposição do ponto de vista do especialista. Uma educação, enfim, que não deposita conhecimento acabado no educando como um correntista deposita dinheiro em sua conta bancária (FREIRE, 2006a,b). Felizmente, essa pode ser uma analogia imprópria. Observe-se que, neste caso, a conta não questiona seu titular a respeito da origem do dinheiro, ou por que este valor e não outro, por exemplo; ela simplesmente aceita o depósito e, indiferente ao que se passa ao seu redor, revela o seu saldo e aceita outras operações mediante simples comandos. No caso do educando, os próprios “depósitos”, como argumenta FREIRE (2006b, p. 70), podem fazê-lo enxergar o emaranhado de contradições em que se encontra. Parece judicioso, pensar, como o educador Paulo Freire, que um processo educativo centrado na reflexão, na avaliação e na autonomia do educando (FREIRE, 2007b) seja adequado para o desenvolvimento e o exercício do senso crítico. O professor que almeja tornar sua práxis crítica terá, então, de fazer uso de sua autonomia e capacidade reflexiva para buscar – como sugere Carraher (1983) – na literatura, em outras fontes de informação, e na suas interações no e com o mundo a habilidade de pensar e agir como um autêntico pensador crítico. 3. O modelo dramático-problematizador Na intervenção feita na Escola Indígena Santa Cruz (EISC), adotou-se o procedimento de realizar um drama-processo para cada ciclo de atividades. Cada ciclo dividiu-se em sete estágios, conforme a Figura 2. No ponto de partida, chamado diálogo inicial aconteciam as discussões preliminares em torno de temas transversais (e.g. meio ambiente, saúde, questão agrária), e outras questões de caráter sociopolítico e cultural, objetivando a ampliação da capacidade de reflexão e criticidade dos copesquisadores. Esse também era o momento em que se estabeleciam as “regras do jogo”; eram esclarecidos os objetivos e eram projetados os possíveis locais de chegada. Deixava-se claro, entretanto, que, em um drama-processo, os resultados dependem do trabalho cooperativo construído em curso. Isso parece ser um fator positivo da abordagem, pois, ao exigir sinergia para a conclusão das tarefas, ela também exige compromisso.
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Figura 2: A estrutura do Modelo Dramático-Problematizador.
O início dos dramas-processos era sempre marcado pela apresentação e discussão de um prétexto. O drama-processo intitulado “Como resolver o problema da falta de segurança dos motores rabetas no porto da comunidade Nova Esperança?”, por exemplo, teve como pré-texto uma carta da Secretaria Municipal de Finanças, propondo liberação de verba mediante a apresentação, da parte da comunidade, de um plano simples e objetivo para a solução do problema. A partir desse pré-texto, já se começou a instigar os co-pesquisadores à reflexão crítica e à ampliação de seus conhecimentos através de questões, tais como: (a) Qual o real problema que estamos enfrentando no nosso porto? (b) Por que seres humanos se apropriam indevidamente dos bens de outros seres humanos? (c) Onde está a raiz do problema? (d) Existe tal “raiz”? (e) Um processo educativo de conscientização pode ajudar a amenizar o problema? (f) De imediato o que poderá ser feito? Nesse drama-processo, os co-pesquisadores, no papel de membros da comunidade, reunidos com o tuxaua (o professor-em-cena), foram unânimes em propor a construção de uma garagem flutuante para a solução imediata do problema. Orientados pelos planos dos episódios, em seguida, os co-pesquisadores realizaram alguns quadros vivos (tableaux vivant), envolvendo o tema abordado, objetivando a obtenção de um nível de distanciamento suficiente para que ocorresse o fenômeno da “ad-miração”, como sugere Freire (2006a, p. 43-44), a fim de que a realidade analisada pudesse ser vista de dentro em uma profundidade que lhes permitisse a compreensão de seu contexto total e de suas partes. Esse momento de contemplação, que caracteriza o distanciamento dos participantes das cenas improvisadas para o exercício da reflexão crítica, se repetia a cada novo episódio. O segundo estágio, a tarefa dramática, constituía o espaço discursivo dedicado à realização dos dramas-processos em português (L1). A qualquer momento, nessa tarefa, os participantes podiam sair de cena para se engajar em atividade crítico-reflexiva sobre os temas que fossem surgindo durante o processo de criação. Podia-se optar, ainda, por permitir que se completasse o drama para que, então,
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se procedessem às discussões. Em um drama-processo sobre o tema da invasão de terras indígenas, por exemplo, a todo instante os co-pesquisadores eram convidados a sair de cena para refletir sobre as decisões tomadas em cena com relação a um grupo de invasores sem teto que se negava a sair de suas terras. Tanto em cena quanto fora dela, as posições eram marcadamente antagônicas entre os grupos. Enquanto uns, compadecidos com a miséria dos invasores, estavam dispostos a compartilhar parte de suas terras com eles, outros demandavam a presença da força policial para retirá-los de lá, alegando que essa exceção lhes poderia custa mais outros lotes de terra no futuro. Esses momentos de reflexão estão reunidos na Figura 2 como o terceiro estágio do ciclo de atividades. Depois de realizado o drama-processo e feitas as pausas reflexivas, adentrava-se o quarto estágio. Isto é, o período dedicado à edição do insumo. Esse era um trabalho minucioso, pois o pesquisador fazia primeiramente uma edição em português do drama-processo produzido em sala de aula a partir das gravações em vídeo para, então, traduzir o texto editado para o inglês. Um dos problemas enfrentados pelo pesquisador consistia na adequação da linguagem a fim de manter o mesmo tom de informalidade que permeava o texto em português. Gerado o insumo na língua-alvo, partia-se para o quinto estágio, a tarefa comunicativa. Nesse estágio, se buscava capitalizar as técnicas de aprendizagem de línguas através de tarefas sugeridas por autores como Willis (1996a,b), Ellis (2003), Nunan (2004), Willis D. e Willis J. (2007), além de outros. Em seguida procedia-se a análise sistêmica6. É nesse estágio que se capitalizava a última parte da estrutura proposta por Willis (1996a). Aqui ocorriam os trabalhos de maior controle da forma da língua tanto em termos de pronúncia quanto da produção escrita. O último estágio, avaliação e reforço, era sempre reservado para avaliar tudo o que havia sido feito e replanejar o próximo ciclo de atividades. Além disso, era nesse interstício em que se aplicavam as avaliações para verificação do desenvolvimento da competência comunicativa dos co-pesquisadores. A esse conjunto de estágios que se repetia a cada ciclo de atividade se escolheu denominar Modelo Dramático-Problematizador. 4. Resultados parciais da pesquisa com o MDP Como etapa preliminar à intervenção na EISC, foi aplicado um pré-teste (Anexo I) a fim de se ter uma idéia do nível inicial de proficiência dos co-pesquisadores. As notas foram atribuídas usando-se uma escala de 0 a 10. A média do pré-teste (X = 2,3) confirmou a hipótese de que se estava diante de um grupo com minúsculo conhecimento da língua-alvo. Depois de dois meses de trabalho, os co-pesquisadores já davam sinal de desenvolvimento de sua competência comunicativa na língua-alvo. Em uma tarefa que objetivava a exploração discursiva do texto, por exemplo, eles foram solicitados a ler o texto base em silêncio e responder a três questões de compreensão de leitura, uma das quais sem nenhuma pista de resposta (Tabela 3). Tabela 3: Compreensão de leitura.
Conforme esclarecem os Parâmetros Curriculares Nacionais, “O conhecimento sistêmico envolve os vários níveis da organização lingüística que as pessoas têm: os conhecimentos léxico-semânticos, morfológicos, sintáticos e fonéticofonológicos. Ele possibilita que as pessoas, ao produzirem enunciados, façam escolhas gramaticalmente adequadas ou que compreendam enunciados apoiando-se no nível sistêmico da língua” (BRASIL, 1998, p. 29). 6
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As figuras 3, 4 e 5 demonstram que o percentual de acerto das questões de compreensão de leitura, com a exceção de dois respondentes (R), foi de 100%. Quiçá, esse alto percentual seja em decorrência de o texto estar vinculado à realidade dos co-pesquisadores e de ter sido produzido por eles mesmos juntamente com o pesquisador. Isso dá suporte à idéia de que, a menos que seja realizada uma atividade de pré-leitura adequada, não é desejável a exploração de textos distantes da realidade do aluno em contextos de aprendizagem de leitura. Na realidade, à base dessa reflexão, está o pensamento de Paulo Freire; esse educador considerava de suma importância a atrelagem da “letra” ao mundo circundante do educando e vice-versa no processo de letramento: “a leitura do mundo precede a leitura da palavra, daí que a posterior leitura desta não possa prescindir da continuidade da leitura daquele” (FREIRE, 2001, p. 11). Figura 3: Percentual de acerto da primeira questão (Q1) na tarefa de compreensão de leitura.
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Figura 4: Percentual de acerto da segunda questão (Q2) na tarefa de compreensão de leitura.
Figura 5: Percentual de acerto da terceira questão (Q3) na tarefa de compreensão de leitura.
O trabalho de familiarização dos co-pesquisadores com os símbolos do Alfabeto Fonético Internacional usados para representar graficamente os sons da língua inglesa também se revelou benéfico a eles. Ao final da intervenção, os co-pesquisadores já conseguiam ler pequenos textos auxiliados pelos símbolos fonéticos. Na realidade, a falta de energia elétrica e recursos tecnológicos foram cruciais na decisão de introduzir tais símbolos como elemento ancilar na produção oral da língua-alvo. O texto da Tabela 4 é parte de um roteiro de leitura feita pelos co-pesquisadores e registrada em vídeo. Tabela 4: Roteiro para leitura – apresentação pessoal.
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No que diz respeito à motivação dos co-pesquisadores para continuarem a estudar a línguaalvo, os resultados também parecem positivos. Enquanto que, inicialmente, mais da metade destes diziam não gostar de estudar inglês (Figura 6), ao final da intervenção, eles foram unânimes em afirmar o gosto pelo estudo da língua (Figura 7). Figura 6: Enquete inicial sobre a qualificação do estudo de inglês.
Figura 7: Enquete final sobre a qualificação do estudo de inglês.
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5. Conclusão A mudança de atitude dos co-pesquisadores com relação ao estudo da língua inglesa ao longo da intervenção foi atribuída à dinamicidade das atividades do Modelo Dramático-Problematizador. Não havia, com efeito, concentração apenas no fator lingüístico. As atividades ora requeriam produção artística, ora cálculos matemáticos, ora discussões sobre problemas sociais, ora produção de textos em língua portuguesa, enfim, eram exigidas dos co-pesquisadores ações conjuntas que extrapolavam as raias do conceito tradicionalmente aceito de ensino de língua estrangeira. Entretanto, no tocante ao conteúdo lingüístico, também houve avanço, conforme os resultados apontaram. Dessa forma, acredita-se que, embora os resultados da aplicação do MDP na EISC ainda não sejam conclusivos, há fortes indícios de que o modelo seja adequado para uma educação global em que se capitalize o ensino de línguas, o envolvimento do aprendente em reflexões sobre questões relacionadas à sua realidade e também a sua motivação para o estudo, principalmente, em áreas com pouco ou nenhum recurso tecnológico. Referências BEYER, B. K. Developing a scope and sequence for thinking skills instruction. Educational Leadership, v. 45, n. 7, p. 26-30, 1988. BOLTON, G. Acting in classroom drama: a critical analysis. Portland, Maine: Calendar Islands Publishers, 1999. [Edição Americana prefaciada por Brian Edmiston]. BOWELL, P.; HEAP, B. S. Planning process drama. London: David Fulton Publishers, 2001. BRASIL. Secretaria de Educação Fundamental. Parâmetros curriculares nacionais: terceiro e quarto ciclos do ensino fundamental: língua estrangeira. Brasília: MEC/SEF, 1998. BYGATE, M. Effects of task repetition: appraising the developing language of learners. In WILLIS, J.; WILLIS, D. (Eds.). Challenge and Change in Language Teaching. Oxford: Heinemann, 1996. cap. 13. p. 136-146. BYGATE, M. Task as context for the framing, reframing, and unframing of language. System, n. 27. p. 33−48, 1999. BYGATE, M. Effects of task repetition on the structure and control of oral language. In: BYGATE, M.; SKEHAN, P.; SWAIN, M. (Eds.). Researching pedagogic tasks: second language learning, teaching, and testing. London: Longman, 2001. CARRAHER, D. W. Senso crítico: do dia-a-dia às ciências humanas. São Paulo: Pioneira Thompson Learning, 1983. CHAUDRON, C. Second language classrooms: research on teaching and learning. Cambridge: Cambridge University Press, 1988. DOUGHTY, C; PICA, T. Information gap tasks: do they facilitate second language acquisition? TESOL Quarterly, v. 20, p. 305-325, 1986. DUFF, P. Another look at Interlanguage talk: taking task to task. In: DAY, R. (Ed.).Talking to Learn. Newbury House, 1986. ELLIS, Rod. Task-based language learning and teaching. Oxford: Oxford University Press, 2003. ENNIS, R. H. A logical basis for measuring critical thinking skills. Educational Leadership, v. 43, n. 2, p. 44-48, 1985. ______. A taxonomy of critical thinking dispositions and abilities. In: BARON, J. B.; STERNBERG, R. J. (Eds.). Teaching thinking skills: theory and practice. New York: W. H. Freeman and Company, 1987. FREIRE, P. A importância do ato de ler. 42ª ed. São Paulo: Editora Cortez, 2001. _____. Educação e mudança. 29. ed. Tradução de Moacir Gadotti e Lillian Lopes Martin. São Paulo: Paz e Terra, 2006a. ______. Pedagogia do Oprimido. 44. ed. São Paulo: Paz e Terra, 2006b. ______. Educação como prática da liberdade. 30. ed. São Paulo: Paz e Terra, 2007a. ______. Pedagogia da autonomia: saberes necessários à prática educativa. 36. ed. São Paulo: Paz e Terra, 2007b.
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DIREITOS HUMANOS NA CONTEMPORANEIDADE
Paolo TARGIONI (Instituto Cuiabá de Ensino e Cultura)
RESUMO: Um fluxo incessante de sensações percorre as veias dos habitantes da metrópole contemporânea; sensações ligadas a mil estímulos que vão sendo percebidos ao longo do cotidiano na cidade. Mais do que nunca, é presente uma sensação incontrolável de um sentimento irracional: o medo. As pessoas, apesar de estarmos numa das sociedades mais seguras da história da humanidade, sentem um medo irracional nunca experimentado antes. Temos níveis de segurança e de conforto que para nossos antepassados seriam um sonho; porém, sentimos uma fortíssima necessidade de estarmos cercados de segurança. Para isso procuramos lugares fechados, seguros, confortáveis, onde viver nossas vidas, fazer nossas compras, passar nossos dias e nossas noites; experimentamos lazer e companhia em doses graduais que não sejam prejudiciais a nossa tranquilidade. PALAVRAS-CHAVE: medo; metrópole; Kafka; direitos humanos.
ABSTRACT: An unstopping flux of sensations goes trough the veins of the inhabitants of the contemporary metropolis; sensations linked to thousands of stimulations which are felt during the day in the city. More than ever, an incontrollable sensation of an irrational feeling is present: the fear. People, even living in one of the surest society of human history, feel an irrational fear which was never felt before. We have sureness and comfort levels which for our grandparents would be a dream; but we feel a strong necessity of being enclosed of sureness. For this we look for closed places, sure, comfortable, where living our lives, doing our shopping, spending our days and night; experimenting pleasure and friendship in little doses which don’t be bad for our tranquility. KEY WORDS: fear; metropolis; Kafka; human rights.
Anais do II Congresso Internacional de Estudos Linguísticos e Literários na Amazônia (CIELLA)
Em “Na colônia penal”, um conto escrito em 1914, o escritor boêmio Franz Kafka, relata uma visita a uma colônia penal, em um indistinto país tropical, por parte de um “viajante”. Esse viajante é convidado a assistir a execução de um condenado por meio de uma máquina criada na própria colônia. O conto começa com um oficial relatando minuciosamente as maravilhas técnicas da máquina para o viajante, descrevendo-a como sua tecnologia nos mínimos detalhes, enfocando o discurso sobre a perfeição dessa peça de alta engenharia. Trata-se de uma máquina de tortura que irá infligir a morte a um soldado que se encontra acorrentado ao lado dos dois personagens e que, com sua mudez e inação, consegue ser o protagonista principal deste conto. A máquina irá torturar o soldado, culpado por não ter respeitado seu superior, escrevendo por meio de uma agulha em seu corpo uma frase até ele morrer por sangramento. Uma tortura incrível, por meio de uma máquina medieval que foi idealizada e construída por um antigo comandante do presídio e que foi usada durante anos para infligir as piores torturas aos condenados. Agora que o antigo comandante morreu e chegou à ilha um novo comandante com visões mais modernas e liberais sobre as penas e as leis, a máquina está sendo, aos poucos, abandonada. Só continua fiel a ela e à sua crueldade medieval o oficial, um dos três protagonistas da obra. Ele mostra a um viajante incrédulo a maravilha da técnica e o horror da crueldade dessa máquina a pedido do novo comandante. E o oficial, num momento de intimidade, pede-lhe para interceder por ele junto ao comandante para que possa continuar a utilizar essa máquina, usando o seu status de visitante, ou seja, alguém com uma visão do mundo mais aberta, para conseguir não fazer aposentar, por meio das reformas da lei penal, ele e a horrível máquina que ainda dá um sentido à sua vida. Frente à firme recusa do viajante, ele percebe que o seu mundo acabou, não existe mais. O mundo do antigo comandante, o mundo das torturas está sendo cancelado e ele não tem mais lugar na nova ordem das coisas que está sendo construída. Por isso, decide suicidar-se utilizando a própria máquina que daí para frente nunca mais será usada por ninguém, e o soldado condenado, agora livre, é a pessoa que o coloca na máquina e quem a põe em função para realizar a sentença. Uma guerra inspirou Kafka a escrever este conto, a Primeira Guerra Mundial que acabava de explodir. “Na colônia penal” relata a crueldade da tortura através de três vozes igualmente presentes e igualmente carregadas de humanidade. Humanidade no sentido etimológico do termo: o sentido mais humano, aquele humano que entra no eu, no bem e no mal em cada homem. E o bem e o mal são intercambiáveis, por isso temos um diálogo entre um oficial e um viajante, mas também a presença muda e quase idiota de um terceiro personagem, um soldado culpado de não ter respeitado a um seu superior. E como já sabemos é este personagem no final que resolve o impasse. O soldado, vítima ocasional da malvadez do homem, é, no começo, totalmente inerte frente aos olhares do oficial e do viajante, que passou a controlar as condições da colônia penal, poucos movimentos e nenhuma palavra até o momento final, o momento de reviravolta de cena. Se no começo olhamos o prisioneiro quase como espectador involuntário da cena e do diálogo entre o louco e o testemunho da sua loucura, a situação mudará totalmente no momento em que o algoz verá seus ideais e a realidade em que acreditava serem fortemente derrotados para sempre. A única razão de sua vida, uma realidade medieval, sendo superada enfim pela racionalidade e pela justiça de um sistema melhor estabelecido pelo novo líder da colônia. Será então o soldado, livre das correntes, a punir seu algoz da mesma punição que era destinada a ele, mas não o punir por vingança, mas pelo desejo do oficial: morrer por meio da “sua” lei. Como afirmamos anteriormente, Franz Kafka escreveu este conto num momento terrível da história mundial. Acabava de explodir uma guerra que deixou em chamas o continente europeu por vários anos e que teve repercussões, mais ou menos fortes, no mundo inteiro. É interessante notar o uso que ele faz dos personagens neste conto: o oficial é representado como um homem medieval, um homem que não pertence ao seu tempo e que usa métodos de justiça
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um pouco fora dos parâmetros do outro protagonista, o viajante. “Mas então ele juntava em sua pessoa todos os papéis? Era soldado, juiz, construtor, químico, desenhista?” (KAFKA, 1991, p. 113). Com essas palavras, o viajante direciona-se ao militar que estava contando sobre o antigo comandante, o antigo rei medieval da colônia, estupefato que não existisse uma divisão dos poderes ou uma divisão das tarefas em relação à justiça naquele lugar fora do mundo. Mas a naturalidade com que o soldado defende a “sua” lei chega a parecer incrível no momento em que o viajante pergunta como foi avaliada a defesa do condenado pelo tribunal, e o militar candidamente responde: “não foi-lhe deixada nenhuma possibilidade de se defender” (KAFKA, 1991, p. 114), sustentando a tese segundo a qual a culpa está sempre fora de dúvida. Um tribunal individual, onde o algoz é também juiz, legislador e superior em grau aos condenados, uma metáfora de uma sociedade bárbara, medieval, na qual está entrando um sopro de esperança graças às novas idéias trazidas de fora pelo novo comandante. Novas idéias que Kafka espera que cheguem também na Europa da Primeira Guerra Mundial, idéias que não chegarão tão cedo, mas que a partir daqueles eventos terríveis de morte e destruição levarão os homens a começar a pensar nas palavras direitos humanos. A partir do século XX, o homem passa a ser uma preocupação do direito internacional e não mais somente dos estados nacionais. Tiveram que passar pela história da humanidade duas guerras mundiais para que o rígido conceito de soberania dos estados fosse derrubado, mas em 1948 enfim a ONU aprovou a declaração universal dos direitos humanos, um documento fundamental no caminho do homem rumo à convivência pacífica, sobre o qual comentaremos mais profundamente no decorrer do texto. Voltando ao conto precedentemente analisado, é pertinente destacar o papel extremamente interessante desenvolvido pelo viajante: ele encontra-se por acaso passando na ilha e é convidado pelo novo comandante a visionar uma execução programada para o mesmo dia. O que parece incrível aos nossos olhos é que o soldado, o algoz em realidade, está feliz em poder demonstrar o funcionamento da “sua” máquina para alguém tão importante como um estrangeiro. O outro, o estrangeiro, aquele que não faz parte da comunidade, nesse conto é considerado uma pessoa quase superior, uma visão do estrangeiro bem diferente daquela que estamos acostumados nos dias de hoje. Retomaremos com certeza esse tema mais adiante. Este viajante, porém, neste conto tem um papel importante também porque parece poder interceder com o comandante a favor ou contra o uso da máquina de tortura. Parece quase que Kafka queria nos dizer, num momento em que guerra e ódio estavam percorrendo a Europa inteira, que somente graças ao encontro com os outros, as interações com os estrangeiros, aos relacionamentos entre povos e comunidades, poderia surgir uma sociedade mais justa e apta para se viver. Infelizmente os homens não perceberam a mensagem do escritor boêmio, precisaram ainda muitos anos, mais guerras e mais mortos para poder chegar àquela Declaração Universal dos Direitos Humanos, proclamada pela Assembléia Geral da ONU, em Paris, somente na data de 10 de dezembro de 1948. Declaração esta que definiu como um “padrão comum de realização para todos os povos e nações”, os direitos humanos e liberdades fundamentais, noções até então difusas apenas, de maneira não-uniforme, em declarações e legislações nacionais. Hoje, no começo do século XXI, costuma-se pensar e falar em direitos humanos dividindo-os em três gerações. No específico, fala-se em direitos de 1ª geração, quando nos referimos aos direitos relativos ao princípio da liberdade, os direitos civis e políticos; direitos de 2ª geração, aqueles inerentes ao princípio da igualdade, que são os direitos econômicos, sociais e culturais; e, direitos de 3ª geração, vinculados ao princípio da solidariedade, que se expressa no direito dos povos ao desenvolvimento com justiça social. A Declaração Universal, porém, proporcionou a certeza, segurança e possibilidade dos direitos humanos, mas não a sua eficácia, e, sobretudo não a sua aceitação completa por parte de todos.
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Anais do II Congresso Internacional de Estudos Linguísticos e Literários na Amazônia (CIELLA)
Temos, hoje em dia, uma grande parte da população mundial que ainda não sabe o que são os direitos humanos, que vive escravizada, que vive fora do padrão de vida esperado pelos constitucionalistas que pensaram e escreveram a declaração. Uma parte do mundo ainda vive em condições, para outros, absurdas, porém, ao mesmo tempo temos uma novidade: uma parte da população rica e bem sucedida, que goza de todos estes direitos e que, pelo que pode parecer absurdo abdicou voluntariamente de alguns deles. Quando Kafka escreveu seu conto a vida humana não tinha o valor que, aparentemente, tem hoje. A vida humana era pouca coisa em relação aos equilíbrios mundiais e às regras militares e civis. É indicativo que exatamente depois das duas guerras nasçam estes direitos. Mais estranho é o fato que 50 anos depois de terem nascido, eles estão abandonados pelos quais poderiam usar. O sociólogo polonês Zygmunt Bauman em sua obra “Fiducia e paura nella città” (BAUMAN, 2005) trata sobre a convivência humana nas grandes cidades e nas metrópoles e, analisando as fronteiras que as percorrem, oferece-nos uma análise interessante sobre esta situação de abandono voluntário dos direitos humanos. Segundo Bauman a metrópole é o maior laboratório de convivência que os seres humanos criaram, “viver na cidade significa viver junto, junto a estrangeiros” (BAUMAN, 2005, p.65), e isso leva a enfrentar os outros e se relacionar com as diferenças, com os outros e com quem tem costumes diferentes, mas ao mesmo tempo leva também a perceber fronteiras entre nós e os outros. Nós criamos fronteiras, dividimos o nós do outro, o eu do ele, mas fazemos tudo isso porque percebemos que existem diferenças, que existem pessoas que não são como nós, porém “Fredrik Barth, o grande antropólogo norueguês contemporâneo, percebeu que – contrariamente à errada opinião comum – as fronteiras não são traçadas para separar diferenças, mas, pelo contrário, é exatamente porque são traçadas fronteiras que de repente surgem as diferenças, que as percebemos e ficamos conscientes delas, aliás, vamos procurando diferenças exatamente para legitimar as fronteiras” (BAUMAN, 2005, p. 66). É por causa da construção de fronteiras e divisões que percebemos um certo perigo e um certo medo. O surgimento, por exemplo, dos shoppings nos faz perceber que existem pessoas que neles podem entrar ou sair e outras que não podem. Isso mostra as diferenças, a criação de fronteiras cria as diferenças, não o contrário. Segundo Bauman, “cada fronteira cria suas diferenças, que têm fundamentos e são relevantes” (BAUMAN, 2005, p. 66), ou seja, as diferenças entre os homens são naturais, existem naturalmente, nenhum de nós é exatamente igual a qualquer outro, mas aquele que nos faz descobrir que existem algumas diferenças que nos disturbam mais, que não podemos agüentar, são exatamente as fronteiras que criamos e que nos fazem perceberem mais essas diferenças. A metrópole e a proximidade com os outros nos faz sentir mais vulneráveis com certeza, “mais são reduzidos o espaço e a distância, maior é a importância que lhes atribuem as pessoas; mais é desvalorizado o espaço, menos protectiva é a distância e mais obsessivamente as pessoas que traçam e movem fronteiras” (BAUMAN, 2005, p. 65-66). Será só isso o que nos leva a fazer essas coisas? Que leva a traçar fronteiras, sentir diferenças, querer separar? Por que então traçamos fronteiras? Talvez por causa do desejo (consciente ou subconsciente) de se reservar um cantinho tranqüilo e sossegado num mundo que parece estranho, selvagem e que dá medo. No seriado americano LOST, um dos momentos mais importantes da segunda temporada é o momento em que os “outros” traçam uma fronteira que não deve ser ultrapassada, delimitando assim um lugar onde nossos heróis podem viver com tranqüilidade e paz. O mundo de LOST é um mundo feito de fronteiras, um mundo de divisões rígidas e claramente demarcadas, onde os protagonistas querem apenas tranqüilidade e paz, e onde eles só podem ter esta tranqüilidade e esta paz se não ultrapassarem as fronteiras impostas. No entanto, o mundo de LOST é um mundo onde as coisas mais interessantes e enriquecedoras acontecem quando algumas pessoas ultrapassam estas linhas imaginárias, linhas que são as fronteiras criadas. Quando eles entram no mundo dos “outros” encontram comida e outras coisas positivas, descobrem e entendem mais,
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enriquecem em várias coisas, desde bens materiais até conhecimentos. O mundo das fronteiras criado para distinguir os outros dos protagonistas é um mundo que serviria para oferecer tranqüilidade aparente (é isso que a maioria da comunidade pensa), mas que em realidade é o mundo do melhoramento. Graças às interações entre os dois grupos de iguais (nós e os outros) ambos têm melhorias e conquistas. Mas o mundo de LOST (e o mundo global também diríamos nós) é um mundo parecido com o oeste selvagem, onde qualquer um pode se comportar de uma maneira não esperada, irracional, por isso é melhor fugir ou ser o primeiro a atirar. Nesse sentido é que as fronteiras são importantes, para poder reduzir ao mínimo essas possibilidades de inesperado, de incomum, de diferente. As diferenças mais importantes são aquelas atribuídas às pessoas que ousam passar as fronteiras, que do nada aparecem em lugares onde não deveriam estar; os “outros” que em LOST entram escondidos no grupo, como Ethan, são representados como selvagens, animais que não deveriam estar por perto, e são mortos. No mundo de hoje, a comunidade de LOST é quase inexistente, mas os mesmos problemas são encontrados nas grandes cidades, “as cidades, nas quais vivem mais que a metade dos seres humanos, são de uma certa forma uns depósitos de lixo para os problemas criados e não resolvidos no espaço global” (BAUMAN, 2005, p. 68). A cidade é um refúgio para os diferentes, os estrangeiros, os outros, mas é sobretudo um lugar onde se localizam os problemas criados a nível global, que terão que ser resolvidos a nível local: o lamentável, mas famoso, 11 de setembro foi com certeza o resultado de contraste de forças globais, em que o incêndio teve de ser apagado pelos bombeiros da cidade, a migração para a Europa é uma conseqüência de movimentos globais, mas quem tem que resolver os possíveis problemas e conflitos que isso cria são as administrações locais. A globalização, ou economia global criou entre outros problemas uma quantidade enorme de gente “supérflua” que não pode mais viver como viviam seus predecessores (camponeses que não conseguem mais viver só com o trabalho da terra, artesãos que não vendem mais seus produtos) e que são obrigados a emigrarem. Para onde esses novos migrantes econômicos vão se não para o lugar que tudo acolhe e tudo resolve (ou pelo menos tenta)? A cidade, a metrópole, por meio de seus administradores locais, nova mãe acolhedora que nunca nega amparo a seus filhos, os filhos da globalização e de seus desvios. Essas pessoas vêm para a cidade trazendo a mensagem dessas forças misteriosas, dessas desventuras, desse perigo, da possibilidade de sermos nós mesmos, num futuro quem sabe próximo, como eles. Trazem consigo nosso pior pesadelo, a possibilidade de serem supérfluos, e nós de perdermos nossa posição e nossa segurança social. Lembram-nos, cada vez que as encontramos, algo que gostaríamos de esquecer: a fragilidade da natureza humana, a precariedade de nossas vidas e de nossas certezas. Os migrantes são entendidos como portadores da idéia de seres supérfluos, ou seja, pessoas cujas capacidades de trabalho não poderiam ser utilizadas da melhor forma, gente que seria melhor que fosse excluída, que seria melhor que desaparecesse. O progresso econômico sempre tornou muita gente supérflua (camponeses, artesãos, gente que fazia suas coisas de uma maneira menos dispendiosa, como não se faz agora), sempre aconteceu isso, mas agora está acontecendo algo novo. Antigamente esse tipo de pessoa ía da Europa para fora (Américas, Austrália), mas hoje que o mundo inteiro está produzindo supérfluos, e por esse motivo não existem mais lugares melhores (Américas) onde tentar a sorte, eis que todos querem ir a cidades de primeira linha. Cidades que infelizmente já têm seus próprios problemas e seus próprios “inúteis”, que não conseguiram nelas uma recolocação, e que irão se somando a esse novo exército de deslocados que chegam diariamente. Existe, para designar esse tipo de pessoa, uma palavra específica nos Estados Unidos: underclass, ou seja, quem está fora do sistema de classes, não está em cima ou embaixo, está totalmente fora dele. Essa palavra espalhou-se pelo resto do mundo de uma forma impressionantemente rápida, tão rápida como a velocidade com a qual muitas pessoas passaram a fazer parte deste novo grupo. A característica principal da underclass é que as pessoas que dela fazem parte não estão embaixo ou subindo, crescendo ou oscilando, quem está na underclass está fora, fora do sistema de classes, fora do ambiente, sem possibilidade nenhuma de entrar nele. Um excluído,
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parafraseando Eichendorff um good for nothing, um bom para nada obrigado a vagar sem colocação nenhuma no sistema de trabalho tradicional. Para se salvar da vista e do contato com essas pessoas, com esses problemas, nas cidades existe uma tendência geral a construir muros, fronteiras, proteções contra um eventual inimigo externo, além disso, criaram-se espaços proibidos, ou seja, espaços onde algumas pessoas não podem sentar, parar ou até não podem entrar, aqueles que o sociólogo americano Steven Flusty chama de interdictory spaces, espaços proibidos somente para alguns, “préclusos”. Proibidos não no sentido literal da palavra, mas porque as pessoas criam limitações para si mesmo em freqüentarem esses lugares. Um caso extremo são as americanas gated communities, ou como é conhecido aqui no Brasil os condomínios fechados (que são quase a mesma coisa), lugares onde ninguém pode entrar se não for convidado, que têm seguranças armados dia e noite. Esses lugares são o espelho, o reflexo desses guetos involuntários em que foram colocados os underclasses e os migrantes que sobraram: “estes guetos voluntários (...) são o resultado da aspiração a defender a própria segurança procurando ter só a companhia de seus semelhantes, e deixando longe os estrangeiros” (BAUMAN, 2005, p. 68). Uma prisão voluntária da qual, graças às televisões internas, por exemplo, os prisioneiros de si mesmo podem se defender de quem passar por perto, mas também ter uma visão do mundo no qual não se põe o pé, no qual não se passeia mais, não se vive mais. Uma prisão voluntária que é alimentada pelo medo dos outros, uma situação em que as pessoas abandonam voluntariamente alguns dos fundamentais direitos humanos de primeira geração, entre eles o mais importante, a liberdade. Liberdade de andar livremente na própria cidade, liberdade de passear sem medo, liberdade de não ser preso em suas próprias habitações (prisões com todo conforto, mas sempre com grades, gaiolas de ouro), liberdade de perceber que essas prisões não deixam entrar os “outros”, mas que também não os deixam sair. Segundo o antropólogo americano Richard Sennet, há um círculo vicioso nesta situação de condomínio fechado. As pessoas que neles se enclausurarem têm uma grande dificuldade (ou medo) em se relacionarem com os estrangeiros, ou os outros. Ao mesmo tempo, porém, eles freqüentam, nesses lugares, só os próprios semelhantes, e quanto mais freqüentam pessoas similares a eles menos têm disposição de conviver com os estrangeiros, com os diferentes, têm medo deles e por isso procuram a companhia dos próprios semelhantes. Uma situação de ansiedade, de medo e de recusa do outro. Uma situação de perda voluntária dos direitos humanos tão dificilmente conseguidos por nossos antepassados em nome de uma tranqüilidade aparente, de uma segurança fictícia. Eis, então, que surgem, por exemplo, as escolas fechadas onde nossos filhos não chegam a entrar em contato com essa gente, filhos das famílias “erradas”, e onde eles também aprendem a cultura do medo, da recusa do outro, da recusa do diferente e do abandono voluntário dos direitos humanos fundamentais em nome do novo deus da segurança e do zeramento do imprevisto. Referências BAUMAN, Z. Fiducia e paura nella città. Milão: Mondadori, 2005. BAUMAN, Z. Vita liquida. Roma: Laterza, 2006. CANEVACCI, M. La città polifonica. Saggio sull’antropologia della comunicazione urbana. Roma: SEAM, 1997. CASTEL, R. A insegurança social. O que é ser protegido? Petrópolis: VOZES, 2005. DA EMPOLI, G. Overdose. La società dell’informazione eccessiva. Veneza: Marsilio, 2002. DA EMPOLI, G. Fuori controllo. Tra edonismo e paura: il nostro futuro brasiliano. Veneza: Marsilio, 2005. GIDDENS, A. Il mondo che cambia. Bolonha: Il Mulino, 2000.
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Tema geral: Línguas e Literaturas: Diversidade e Adversidades na América Latina FOCAULT, M. Sorvegliare e punire. Turim: Einaudi, 2005. FLUSTY, S. Building Paranoia: the Proliferation of Interdictory Space and the Erosion of Spatial Justice. West Hollywood: Los Angeles Forum for Architecture and Urban Design, 1994. KAFKA, F. Racconti. Milão: BUR, 1991.
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MONTEIRO LOBATO: UM ESCRITOR A SER REDESCOBERTO NA SALA DE AULA Patrícia Aparecida Beraldo ROMANO (Universidade Federal do Pará)
RESUMO: Ao se estudar Literatura Infanto-Juvenil brasileira percebemos que ela, enquanto gênero, é vista antes e depois de Lobato. Foi ele quem encontrou o caminho criador de que nossa Literatura Infantil estava necessitando ao romper com as idéias de um ensino de literatura estereotipado e criar uma forma inovadora de produzir textos para as crianças na primeira metade do século XX. As aventuras da turma do Sítio do Picapau Amarelo e as traduções lobatianas de clássicos da literatura infantil são, hoje, no século XXI, a redescoberta, por parte de professores e de alunos, de que o jovem leitor continua a ter excelentes textos para lhe despertar o prazer de ler. Compete, portanto, ao professor, leitor de Lobato, mostrar ao aluno como descobrir, nos textos lobatianos, o lúdico mundo criado por esse artista da palavra que influenciou toda a geração contemporânea de escritores infanto-juvenis. PALAVRAS-CHAVE: Monteiro Lobato; jovem leitor; leitura.
ABSTRACT: Si estudia la literatura Infanto-Joven brasileña que percibimos que, mientras que clase, es antes y después visto Lobato. Quién era encontró la manera creativa de esa nuestra literatura infantil necesitaba al practicar una abertura con las ideas de una educación del estereotipado de la literatura y crear una forma innovadora para producir los textos para los niños por la mitad primer del siglo XX. Las aventuras del grupo de la granja pequeña del Picapau amarillo y de las traducciones de los lobatianas de obras clásicas de la literatura infantil son, hoy, en el siglo XXI, redescoberta, de parte de los profesores y de las pupilas, de quienes el lector joven continúa teniendo textos excelentes para que despierte el placer de leer. Compite, por lo tanto, al profesor, el lector de Lobato, demostrar a la pupila en cuanto a descubre, en los textos de los lobatianos, el mundo juguetón creado por este artista de la palabra que influenció a todo el contemporáneo de la generación de escritores infanto-jóvenes. PALAVRAS-CHAVE: Monteiro Lobato; lector joven; lectura.
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A Literatura Infantil brasileira encontrou em Monteiro Lobato seu maior nome até hoje. Graças a ele a criança passou a ser vista como pequeno leitor a quem não se deve exigir pouco, mas sim oferecer o que há de melhor: aprendizado misturado a diversão. Foi por isso que seu projeto de escrever para crianças em vez de continuar como escritor para adultos fez tanto sucesso numa época em que o pequeno leitor era visto como alguém que merecia uma literatura apenas voltada para a moral e os bons costumes. Em carta ao amigo Godofredo Rangel, em 1916, Lobato comenta: Ando com várias ideias. Uma: vestir à nacional as velhas fábulas de Esopo e La Fontaine, tudo em prosa e mexendo nas moralidades. Coisa para crianças. Veio-me, diante da atenção curiosa com que meus pequenos ouvem as fábulas que Purezinha lhes conta. Guardam-nas de memória e vão recontá-las aos amigos sem, entretanto, prestarem nenhuma atenção à moralidade, como é natural. A moralidade fica no subconsciente para ir se revelando mais tarde, à medida que progredimos em compreensão (A Barca de Gleyre 2º tomo – p. 104, apud COELHO, 1985, p.186).
E, de fato, em 1921, depois de já ter lançado A Menina do Narizinho Arrebitado, lá estava a obra Fábulas de Narizinho, mais tarde relançada apenas como Fábulas. Nessa obra, Lobato reconta, na voz de Dona Benta, uma coletânea de fábulas retiradas de Esopo, Fedro, Bábrio e La Fontaine, todas bastante “abrasileiradas”, bem ao gosto do escritor de Taubaté. Usando a técnica da avó Benta que conta aos netos as histórias, o autor permite a recriação das fábulas em linguagem acessível à criançada, mas sem perder a essência das histórias. Além disso, os comentários das personagens do sítio (acrescentados anos depois da primeira edição, em 1943), sempre livres para expressar sua opinião, dão a marca personalíssima de Lobato-- sua irreverência--, e contribuem para uma compreensão mais crítica desses textos, questionando, inclusive, a moralidade primeira das Fábulas, as “verdades absolutas” que elas vêm transmitindo através dos séculos. Essa mesma irreverência na forma de tratar esses textos vai aparecer na sua primeira grande obra para crianças: Reinações de Narizinho, cujo texto, como hoje o lemos, com todos os episódios, apenas apareceu em 1931, embora sua primeira publicação tenha acontecido em 1921, sob o título A Menina do Narizinho Arrebitado. Na obra de 1931, Reinações de Narizinho, no capítulo “Pena de Papagaio”, temos os episódios “Emília e La Fontaine” e “A formiga coroca”. Ambos reproduzem um exemplo bem interessante das fábulas introduzidas no mundo do Picapau Amarelo. Pedrinho, a convite de Peter Pan, vai viajar para o Mundo das Maravilhas com a turminha do sítio e o primeiro lugar aonde chegam é o País das Fábulas, também conhecido, segundo o texto lobatiano, como Terra dos Animais Falantes. Lá, encontram-se com o senhor La Fontaine, que toma nota da fábula “O Lobo e o Cordeiro”. O leitor, então, se depara com um vocabulário bem ao gosto da infância, carregado de coloquialismos e neologismos, como “senhor Lobência”, chamamento utilizado pelo cordeiro para se dirigir, ironicamente, ao lobo que o quer devorar. Este, por sua vez, é considerado, pelo narrador, como “curto de inteligência” ou “para ser mais franco, burro” (LOBATO, 2004a, p.138). Quando o lobo, finalmente, sem mais argumentos para convencer o esperto cordeirinho de que ele deve ser devorado, “resolveu empregar a força (...) e avançou para ele [o cordeirinho] de dentes arreganhados. E já ia fazendo –nhoc! quando o senhor de La Fontaine pulou da moita e lhe pregou uma bengalada no focinho” (LOBATO, ibid., p. 139). E assim, envolvidos pela mistura entre realidade e fantasia, que se interpenetram com absoluta naturalidade no estilo lobatiano, descobrimos que a turminha do sítio empreende conversa com o fabulista e vai acompanhar mais uma fábula, a da “A cigarra e a formiga”, que no texto lobatiano é intitulada “A formiga coroca”. Descobrimos também que La Fontaine gosta bastante das cigarras, pois dão-lhes “ideia de bom tempo, sol quente, verão”. Segundo ainda o fabulista, este inseto é um pouco boêmio como em geral todos os cantores.(...) Morrem cantando, como os cisnes [...]. ‘Já escrevi uma fábula sobre a cigarra e a formiga, que é outro inseto muito curioso, símbolo do trabalho incessante. Aqui temos um formigueiro onde vocês podem observá-las’ (LOBATO, ibid., p.140).
E, assim, vamos rever a famosa historinha já conhecida: a cigarra, exausta e faminta— entretanto, tísica na obra lobatiana, fazendo jus inclusive à observação primeira feita por La Fontaine
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de que ele achava a cigarra meio boêmia-- bate à porta da formiga, no texto, coroca, velha, “sem dentes, com ares de ter mais de mil anos (...) e rabugenta” (LOBATO, ibid., p.141), para pedir alguma comida, pois está faminta e com muito frio. Recebe, como também já sabemos, uma portada da velha formiga que afirma: – Bem me lembro. Cantava de nos pôr doidas aqui dentro. Muita dor de cabeça tive por causa da sua cantoria, sabe? Agora está tísica e não canta mais, não é isso? Pois dance! Cantou enquanto era moça e sadia? Pois dance agora que está velha e doente, sua vagabunda!(Id., ibid., loc.).
Quando então imaginamos o fim da fábula, vemos a recriação do texto por Lobato e a sugestão de uma leitura mais crítica da moralidade capitalista de que “o trabalho enobrece o homem”, de que “descuidar de determinadas obrigações pode trazer tristeza e faltas”, como diz a moral advinda de Esopo, pois o texto lobatiano vai apresentar-nos a boneca Emília intervindo na ação da fábula, já que Emília fica inconformada com os séculos em que a formiga dá portadas na cara da cigarra que paga caro apenas por ter feito opção de vida diferente da da formiga. Por que os que optam pelo trabalho com a arte merecem padecer de fome e frio? Trabalhar com arte não é também um tipo de trabalho? Não há a necessidade de que alguém preencha com arte a vida das pessoas? Trabalhar, trabalhar e trabalhar... para acumular. É apenas essa a moeda que move o indivíduo? Além disso, ao recriar a formiga como “coroca”, velha não somente na idade, mas na chatice, na modo ranzinza e frustrado de ser, Lobato tece crítica às pessoas que não vêem nenhuma importância na arte, que desconhecem os prazeres que ela proporciona e que, assim, proliferam o elogio à ignorância. Não podemos esquecer que a formiga não gostava do cantar da cigarra e que isso parece ser metáfora da anestesia a que as pessoas voltadas apenas para o trabalho mecânico se submetem. Vale lembrar aqui que La Fontaine foi grande fabulista por ter tratado com simplicidade e arte a verdade que se desvendava de seus textos. Preocupado em criar uma analogia entre os animais de suas fábulas e as pessoas que compunham a corte de sua época, La Fontaine foi considerado o maior fabulista da Literatura. Quando o narrador lobatiano afirma que La Fontaine via nas cigarras um inseto um pouco boêmio como os cantores em geral, gera para o leitor a possibilidade de discussão da boemia literária, tão cara aos românticos e aos artistas. O leitor de Lobato, então, descobre que Emília intervém na fábula para ajudar a cigarra a ajustar contas com a formiga. A boneca pede à cigarra que bata à porta da formiga novamente e quando essa atende às batidas, Emília a agarra pela perna seca e a puxa para fora, dizendo: – Chegou tua vez, malvada! Há mil anos que a senhora me anda a dar com essa porcaria de porta no focinho das cigarras, mas chegou o dia da vingança. Quem vai levar porta no nariz és tu, sua cara de coruja seca! (...) A cigarra cumpriu a ordem, e tantas portadas arrumou no nariz da formiga, que a pobre acabou pedindo socorro ao senhor de La Fontaine, seu conhecido de longo tempo. – Basta, bonequinha! (...) A formiga já sofreu a sova merecida. Pare, senão ela morre e estraga-me a fábula (LOBATO, ibid., p. 142).
Somos, então, capazes de perceber a habilidade de Lobato com o mundo infantil. Tudo isso se passa no Mundo das Maravilhas e a criança não se esqueceu disso. Embora possa parecer cruel, a formiga bateu por séculos na cigarra, assim, o castigo da formiga é insignificante diante do sofrimento a que esteve destinada a cigarra. E mais, os séculos e séculos de trabalho não ensinaram nada à formiga, apenas a tornaram o ser mecânico, repetitivo e insensível que ela é e continua a reproduzir e significar, a ponto de pedir socorro a seu criador. Tal qual o mundo a que Lobato pertencia e a que nós, com as devidas mudanças, para pior, diga-se de passagem, também pertencemos. Ninguém nos ensina os limites da sociedade mesquinha e utilitarista pequeno-burguesa que, como a formiga, pensa apenas na necessidade de acumulação; somente aprendemos a reproduzir, cega e caladamente, seus preceitos. Ninguém ou quase ninguém nos mostra que a arte deve fazer parte de nossa existência, porque tem poderes transformadores. Dificilmente temos Emílias assumindo nossas causas. Por que, então, não trabalhar Lobato na escola? Depois de Lobato, apenas as décadas de 70 e 80, com os escritores conhecidos como “Filhos de Lobato”, trouxeram para a sala de aula inovação e preocupação com uma literatura que despertasse a criança para a análise do mundo, já que as décadas
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pós-lobato foram fortemente influenciadas pela ditadura, sofreram limitações em todos os sentidos e a literatura infantil se voltou, mais uma vez, para a moralização e normas de comportamento. Somente por volta da metade da década de 70 é que os textos começam a questionar a realidade e os valores sobre os quais se assentava a sociedade e a nova literatura infantil passa a ser dirigida pela criatividade, pela experimentação linguística e pela consciência crítica, trabalho que primeiro tinha sido feito por Lobato em suas obras. Nomes de respeito surgem, como Ziraldo, Ana Maria Machado, Ruth Rocha, Lygia Bojunga Nunes, João Carlos Marinho e muitos outros que produzem até hoje, mas o nome de Lobato e suas obras parecem ser mais recuperados pela TV que inaugura uma nova série sobre a turma do Picapau Amarelo, na década de 801 e outra, agora, nos primeiros anos do século XXI, do que pela escola, cujo compromisso com o texto lobatiano deveria ser revisto. Embora de boa qualidade produtiva, a obra televisiva não é a obra literária e a rica linguagem lobatiana, por exemplo, não pode ser recuperada pela imagem. Muitos professores que se formaram naquela época tomaram contato com a obra de Lobato apenas pela telinha e quase nunca tiveram em mãos o texto propriamente dito. Ao trabalharem Lobato, quando isso acontece, recordam-se apenas das imagens e não das experiências vivenciadas com o texto. Assim ocorre também com as gerações seguintes à desses profissionais: muito pouco conhecem sobre o lúdico presente nos textos infantis de Monteiro Lobato. O professor precisa conscientizar-se de que os textos de Lobato faziam parte de um projeto maior que era o de “ampliar o universo cultural dos seus leitores” (CATINARI, 2006, p. 96). Alguns profissionais, certamente, escapam desse grupo e levam a saga do Sítio para a sala de aula, mas a grande maioria contribui para afastar as crianças de leituras tão prazerosas, lúdicas e enriquecedoras, já que as histórias do Sítio exigem, em primeiro lugar, o contato do professor com o texto propriamente dito. Dificilmente compreendemos Lobato através de fichas de leitura que apenas facilitam o trabalho do professor. Para apresentar esses textos em sala de aula, o professor deve ser leitor de Lobato, conhecedor do seu estilo e consciente de que seus textos estão preocupados em nutrir o pequeno leitor de conhecimento também. E esse conhecimento o professor deve dominar, pois é ele que, muitas vezes, “incomoda” o profissional, já que não basta apenas saber o enredo das aventuras, é necessário pesquisar sobre o conteúdo apresentado por Lobato. Além disso, esse profissional, hoje, deve perceber nesses textos algumas questões específicas da época de Lobato e ser capaz de contextualizá-las e explicá-las. Em tempos, cujos clássicos literários voltam à tona através de adaptações, questão bastante controversa, embora não mote desse texto, havemos de perguntar por que motivos os professores não retomam Peter Pan e Dom Quixote, por exemplo, via adaptação lobatiana. Seguindo a mesma linha das histórias contadas por Dona Benta à turminha do Sítio, inclusive já comentada quando começamos esse texto falando sobre as Fábulas, primeiro desses projetos, Lobato investe em mais 4 adaptações: Histórias de Tia Nastácia, narrativas que se originam todas do folclore, contos, historietas, anedotas, superstições, sabedoria popular e por aí vamos, cujas raízes são européias, africanas e indígenobrasileiras; as outras três são: adaptação da obra de Hans Staden intitulada As aventuras de Hans Staden, adaptação da história de Peter Pan, cujo subtítulo é A história do menino que não queria crescer e Dom Quixote das crianças, sobre a qual vamos nos deter. Várias são as adaptações para jovens desse clássico da literatura. Não discutiremos aqui o valor de se ler uma obra integral, em vez de qualquer adaptação, mas se o professor pode iniciar o leitor nesse clássico, através de uma linguagem mais atrativa, por que não escolher a adaptação lobatiana, tão rica em possibilidades exploratórias, que extrapolam as ações do texto quixotesco na medida em que a turminha do Sítio faz suas livres, divertidas e pertinentes intervenções, questionando uma série de assuntos interessantíssimos para se discutir na sala de aula? Veremos algumas dessas questões com a leitura de alguns excertos a seguir. Além disso, estamos no mundo textual-infantil de Monteiro Lobato, indiscutivelmente de qualidade literária, pois apresenta, intrinsecamente, valor estético. Por Entre os anos de 1950 a 1963, no começo da TV brasileira, houve a primeira série do Sítio do Picapau Amarelo, com roteiros de Tatiana Belinky, produzida pela antiga TV Tupi.
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mais que o texto lobatiano nasça do texto de Cervantes, é independente na sua composição artística e, por esse motivo apenas, a obra já se torna interessante e valiosa por si mesma. Assim, professores e alunos se depararão com o texto de Cervantes dentro da obra de Lobato a qual se faz interessante pelo mérito de manter-se fiel ao estilo lobatiano de consturção: uma produção estética, artística, criativa, que se justifica como valiosa leitura para os pequenos (e grandes, por que não?) leitores. Tudo dentro da mesma obra! Dessa vez, a iniciativa de conhecer o clássico recontado por Dona Benta é de Emília. Nos outros textos, em que os picapauzinhos se reúnem para ouvir histórias, em sua maioria, é sempre Dona Benta quem se coloca como a contadora oral interessada em “instruí-los”. Em Dom Quixote das Crianças, Emília, que adora mexer nos livros da biblioteca em busca de novidades trata com cuidado especial os da terceira e quarta prateleiras, que “ela via com os olhos, e lambia com a testa. Por isso mesmo eram os que mais a interessavam. Sobretudo uns enormes” (LOBATO, 2004b, p.7), entre os quais podia-se encontrar a edição de Dom Quixote, com ilustrações de Gustave Doré, cujos desenhos a boneca estava desesperada por ver e pouco se importou quando o livro-pedra despencou lá de cima da estante sobre o visconde, amassando-o. Vale lembrar que a bonequinha e o visconde somente conseguiram deslocálo graças à engenhosa ideia do visconde de usar uma alavanca. Fica aí uma primeira questão que já pode ser explorada pelo professor. Em seguida, numa demonstração de nenhuma piedade, afinal bonecas não têm coração, como lembra Tia Nastácia, Emília avisa que, quando Pedrinho chegasse, ele consertaria o visconde, afinal, “Criaturas de sabugo têm essa vantagem” (LOBATO, ibid., p.8) e passa a ler em paz os dizeres da primeira página do livrão: “O engenhoso fidalgo Dom Quixote de La Mancha, por Miguel de Cervantes Saavedra”, cujo “a”, de Saavedra, repetido, é logo cortado pela boneca numa demonstração de desrespeito ao livro e, ao mesmo tempo, mote de discussão sobre a língua escrita da época da tradução do texto que figurava lá na estante de Dona Benta. Mais à frente, a senhora avó corrigirá a boneca quando essa explica que cortou o segundo “a” porque se considera “inimiga pessoal da tal ortografia velha coroca que complica a vida da gente com coisas inúteis. Se um “a” diz tudo, para que dois?” (idem, p. 9). Ao que Dona Benta retifica: – Você devia respeitar essa edição, que é rara e preciosa. Tenha lá as ideias que quiser, mas acate a propriedade alheia. Esta edição foi feita em Portugal há muitos anos. Nela aparece a obra de Cervantes traduzida pelo famoso Visconde de Castilho e pelo Visconde de Azevedo. (...) O Visconde de Castilho foi dos maiores escritores da língua portuguesa. É considerado um dos melhores clássicos, isto é, um dos que escreveram em estilo mais perfeito. Quem quiser saber o português a fundo, deve lê-lo – e também Herculano, Camilo e outros. – O português perfeito é melhor que o imperfeito, vovó? – indagou Narizinho (LOBATO, ibid., p. 9-10).
Embora não se advogue aqui que a Literatura deva estar a serviço pura e simplesmente da discussão gramatical ou de qualquer outro mote, é impossível que um professor não aproveite, depois da leitura e discussão da obra com os alunos, dos comentários muitos sobre questões da língua falada e da língua escrita, português não-padrão e padrão. Enfim, trata-se de uma forma lúdica de chegar até mesmo a essas discussões. E então, após várias interrupções da turminha e esclarecimentos por parte de Dona Benta, finalmente ela começa a narração da história de Dom Quixote. Vejamos: – Num lugar da Mancha, de cujo nome não quero lembrar-me, vivia, não há muito, um fidalgo dos da lança em cabido, adarga antiga e galgo corredor. – Ché! – exclamou Emília. – Se o livro inteiro é nessa perfeição de língua, até logo! Vou brincar de esconder com o Quindin. Lança em cabido, adarga antiga, galgo corredor... Não entendo essas viscondadas, não... (LOBATO, ibid., p.10).
E depois de Pedrinho ter mostrado que sabia o que significavam os vocábulos, ou ao menos tentado mostrar isso, pois engasga em “adarga antiga”, Dona Benta percebe a necessidade de rever a linguagem usada para a narração, afinal corria o risco de perder seu público: –Meus filhos, – disse Dona Benta, – esta obra está escrita em alto estilo, rico de todas as perfeições e sutilezas de forma, razão pela qual se tornou clássica. Mas como vocês ainda não têm a necessária cultura para compreender as belezas da forma literária, em vez de ler vou contar a história com palavras minhas.
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Anais do II Congresso Internacional de Estudos Linguísticos e Literários na Amazônia (CIELLA) (...) E Dona Benta começou, da moda dela: –Em certa aldeia da Mancha (que é um pedaço da Espanha), vivia um fidalgo, aí duns cinquenta anos, dos que têm lança atrás da porta, adarga antiga, isto é, escudo de couro, e cachorro magro no quintal – cachorro de caça. –Para que a lança e o escudo? – quis saber Emília. –Era sinal de que esse fidalgo pertencia a uma velha linhagem de nobres, dos que antigamente, na Idade Média, usavam armaduras de ferro e se dedicavam à caça como sendo a mais nobre das ocupações (LOBATO, ibid., p.10).
Assim, Dona Benta consegue que o público conheça o clássico, ouça-o com atenção e, quem sabe, futuramente, leio-o novamente na versão castilha da linguagem. Marisa Lajolo, especialista em Lobato, lembra em um de seus artigos, que essa “tática” de Dona Benta já fora apresentada por Lobato em Reinações de Narizinho, a propósito da obra Pinocchio. Vejamos em Reinações o que o narrador nos esclarece: A moda de Dona Benta ler era boa. Lia “diferente” dos livros. Como quase todos os livros de crianças que há no Brasil são muito sem graça, cheio de termos do tempo da onça ou só usados em Portugal, a boa velha lia traduzindo aquele português de defunto em língua do Brasil de hoje; onde estava, por exemplo, lume, lia fogo; onde estava lareira, lia varanda. E sempre que dava com um botou-o ou comeu-o, lia botou ele, comeu ele – e ficava o dobro mais interessante. Como naquele dia as personagens eram da Itália, Dona Benta começou a arremedar a voz de um italiano galinheiro que às vezes aparecia no sítio em procura de frangos; e para o Pinocchio inventou uma vozinha de taquara rachada que era direitinho como o boneco devia falar (LOBATO, op. cit.a, pp.106-107).
Vemos em Lobato, então, até a discussão sobre a própria maneira de conceber a linguagem para o público leitor- criança/adolescente, de forma a prendê-lo ao texto, mas sem pieguices ou infantilidades. Além disso, Lobato jamais se esquece de que esse tratamento dado à linguagem não implica um conteúdo reduzido ou retalhado. Ao contrário, voltando a Dom Quixote das crianças, percebemos a quantidade de informações que serão oferecidas aos pequenos leitores sobre os mais diversos assuntos, a fim de ampliar o repertório cultural desse pequeno leitor e isso é sempre feito de forma jocosa, agradável, brincalhona, lúdica, portanto. Podemos perceber vários assuntos a serem trabalhados com os alunos. Assinalamos, a seguir, alguns: 1) Referência a outros escritores: Depois de lermos o Dom Quixote, havemos de procurar o Orlando Furioso, do célebre poeta italiano Ariosto – e vocês vão ver que coisa tremenda eram os tais cavaleiros andantes (LOBATO, op. cit.b, p.11).
2) A proposta de Cervantes: Cervantes escreveu este livro para fazer troça da cavalaria andante, querendo demonstrar que tais cavaleiros não passavam duns loucos. Mas como Cervantes fosse um homem de gênio, sua obra saiu um maravilhoso estudo da natureza humana, ficando por isso imortal. Não existe no mundo inteiro nenhuma criação literária mais famosa que a sua (LOBATO, ibid., p.11).
3) Significados de muitas terminologias dignas de discussão por parte do professor e que podem, inclusive, ser exploradas em outras disciplinas, como é o caso da expressão “cavaleiros andantes”, motivo de dúvida de Narizinho, cujo esclarecimento fica, novamente, por conta de Dona Benta: Chamavam-se assim, Porque viviam a cavalo, sempre a correr mundo atrás de aventuras. E tais e tantas foram suas aventuras, que os poetas começaram a contá-las em seus poemas, como esse de Ariosto; e os prosadores também [bom momento para explorar também o que vem a ser prosa e poesia]; de modo que a literatura daquele tempo era só de cavalaria andante, como hoje é quase só de bandidos e policiais (Id., ibid., loc.).
Nessa mesma linha, outra terminologia interessante é a que se refere a “ser armado cavaleiro”: – Ser armado cavaleiro é coisa diferente de um cavaleiro armar-se com armaduras e armas. Ser armado cavaleiro é receber o grau de cavaleiro andante, dado por outro cavaleiro. E nisso ia pensando Dom Quixote pelo caminho. Era-lhe absolutamente indispensável encontrar um cavaleiro que o armasse cavaleiro (Id., Ibid., loc.).
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4) Ou ainda o método da sangria, bastante utilizado na época em que se passa a narrativa de Cervantes e que aparece na obra na boca do patrão que explora uma criança e tenta diminuir o que deve ao menino, lembrando-lhe de que: Não te devo tanto assim, meu caro—contestou o patrão. –Esqueces de levar em conta que te forneci três pares de sapatos e ainda paguei as três sangrias que te fez o barbeiro quando estiveste doente (LOBATO, ibid., p.17).
5) Vale ainda lembrarmos dos episódios em que a turminha demonstra, de fato, ter entrado na história da loucura do cavaleiro Quixote. Dois são célebres e abrem para a discussão sobre o que vem a ser esse mundo, por que não dizer, fantástico, da loucura, em que nos perguntamos, de fato, sobre quem são os loucos e quem são os sãos. Ou ainda, se em Cervantes, Dom Quixote vive como os cavaleiros dos livros que lia, Emília vive a mesma “loucura” do Cavaleiro da Mancha. Vejamos o exemplo: Emília continuava a dar vira-cambotas. Depois foi buscar um cabinho de vassoura e disse que era lança, e começou a espetar todo mundo. E botou um cinzeiro de latão na cabeça, dizendo que era o elmo de Mambrino. Por fim montou no visconde, dizendo que era Rocinante”. (...) Nesse momento, Dona Benta voltou. – Que barulhada é esta, meninos? – É inveja, Dona Benta!–Berrou Emília – Esses dois não me aturam mais, de inveja pura, puríssima – e ria-se, ria-se... – Inveja de quê? – perguntou Narizinho. – Tinha graça termos inveja duma maçaroca de pano de Cr$ 1,50 o metro... – Inveja, sim! –berrou Emília. – Sou de pano, sim, mas de pano falante, engraçadinho paninho louco, paninho aqui da pontinha. Não tenho medo de vocês todos reunidos. Aguento qualquer discussão. A mim, ninguém me embrulha nem governa. Sou do chifre furado –bonequinha de circo. Dona Quixotinha... Dona Benta arregalou os olhos. Emília parecia realmente louca. – Nastácia, acuda! – gritou ela. – Depressa um chazinho de erva-cidreira. Ainda por alguns minutos Emília esteve naquela crise de cambalhotas e fanfarronadas de todo o tamanho. Depois, subitamente sossegou. Só então Dona Benta pôde retomar o fio da história, mas enquanto falava ia espiando a boneca com o rabo dos olhos. Positivamente Emília estava mudada. Seria mesmo loucura? (LOBATO, ibid., p.64).
Um pouco mais à frente, na narrativa, esse episódio referente à influência da loucura de Dom Quixote na boneca se completa. Tia Nastácia grita para Dona Benta: – Sinhá, Emília parece louca. Entrou na cozinha montada no Rabicó, toda cheia de armas pelo corpo, com uma lança e uma espada, e uma latinha na cabeça que diz que é o “ermo” de Mambrino, e começou a me espetar com a lança gritando: Miserável mágico! Por mais que te pintes de preto e ponhas saias, não me enganarás! Pérfido! Infame encantador! E uma porção de coisas assim, sem pé nem cabeça. E a diabinha me espetaria de verdade com a lança, se eu não jogasse no quintal umas cascas de abóbora. Rabicó foi voando para cima das cascas e levou consigo a louquinha. E o pobre Visconde atrás, Sinhá – isso é o que dá mais dó! O pobre Visconde barrigudo, carregando uns saquinhos que ele diz que é alforje... Dona Benta foi espiar pela janela e de fato viu as estrepolias que a Emília del Rabicó estava fazendo no quintal. Vestidinha de cavaleira andante, toda cheia de armaduras pelo corpo e de elmo na cabeça, avançava contra as galinhas e pintos com a lança em riste, fazendo a bicharada fugir num pavor, na maior gritaria. Até o galo, que era um carijó valente, correra a esconder-se dentro dum caixão (LOBATO, ibid., p.75).
Não podemos terminar sem lembrarmos a consciência que emana da obra de que ouvir a história de Dom Quixote, ainda mais recontada por Dona Benta, não é a mesma coisa que lê-la, na íntegra, numa boa tradução e isso Lobato coloca na fala da senhora avó-contadeira de histórias, que lamenta aos ouvintes: – É uma lástima (...) eu estar contando só a parte aventuresca da história do cavaleiro da Mancha. Um dia, quando vocês crescerem e tiverem a inteligência mais aberta para a cultura, havemos de ler a obra inteira nesta tradução dos dois viscondes, que é ótima (LOBATO, ibid., p.85)
Dona Benta é leitora competente e, portanto, não tem dificuldades para transitar entre a língua escrita e a oral. Consciente de seu papel de narradora oral das aventuras de Quixote para a
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turminha sabe que o mais importante é que essa ponte instigue os jovens a mais tarde chegarem ao texto integral. Essa se faz também uma das preocupações de Lobato como adaptador da obra de Cervantes. Quando Dona Benta explica mais uma vez a recepção da obra pela turminha do Sítio, não podemos deixar de notar algo interessante para os nossos dias, que é o comentário feito sobre o estilo machadiano de escrever. Diz Dona Benta sobre Dom Quixote: – É que ela está escrita em português que já não é bem o nosso de agora. Hoje usamos a linguagem mais simplificada possível [estamos na década de 30 do século XX!], como a de Machado de Assis [hoje, no século XXI, o nosso aluno estranharia tal comentário, já que para ele a linguagem e o estilo machadianos geralmente representam certa dificuldade], que é o nosso grande mestre. Os escritores portugueses, que chamamos clássicos, usavam uma forma menos singela, mais cheia de termos próprios, mais rica, mais interpolada... (Id., Ibid., loc.).
Enfim, parece-nos que diante de tantas opções equivocadas de leituras pelas quais passam nossos jovens, por que motivos não retomarmos Monteiro Lobato? Não há roteiro de leitura pronto que dê conta de trabalhar a riqueza de informação e a preocupação formativa presentes nos textos lobatianos. O melhor roteiro será a leitura do professor-leitor competente, interessado em buscar no dicionário e em enciclopédias termos e conceitos desconhecidos e preparar seu projeto de leitura e discussão da obra, começando por ler Lobato com a performance2 merecida (entenda-se aqui entonação de voz e diferenciação de voz para cada personagem). Essa é uma das funções do professor, ele deve se colocar no papel de Dona Benta e ajudar o aluno a compreender o estilo lobatiano começando com uma leitura oral de uma das obras. Os nossos professores devem se lembrar da lição de Harold Bloom na Introdução a sua coleção Contos e Poemas para crianças extremamente inteligentes de todas as idades: “Declamar um poema ruim é uma experiência de dar vergonha, ler em voz alta uma história maisou-menos é tão ruim quanto” (BLOOM, 2003, p.22). Vale ainda lembrarmos o que salienta Lajolo a respeito da “estratégia” de contar de Lobato/Dona Benta: [...] talvez se possa especular que, para Monteiro Lobato, contar a história de um livro é uma estratégia para superar a transitória incapacidade de os jovens entenderem um clássico na íntegra. Talvez por isso Dona Benta não se nivela a seus ouvintes nem rebaixa a história que conta: conta-a mantendo, muitas vezes, alguns termos do original, talvez como estratégia para educar linguística e literariamente seus ouvintes. Contar a história é uma estratégia para que o mais cedo possível as crianças possam ler Cervantes se não no original castelhano, ao menos em uma boa e integral tradução para o português brasileiro e contemporâneo delas (LAJOLO, 2009, s/p).
Essa estratégia pode ser o caminho de acesso aos textos lobatianos. Nada neles é gratuito, há sempre uma preocupação muito evidente entre o lúdico, a fantasia e a possibilidade de aprender com isso. “Os conhecimentos fluem numa grande brincadeira, na qual participam adultos, crianças, seres fantásticos, personagens da vida ‘real’ e da vida ‘literária’, enfim todos! Todos envolvidos nessa busca incessante de descobrir e saber” (CATINARI, op. cit., p. 102). Na verdade, como professores, deveríamos apresentar Lobato ao aluno a fim de que ele descobrisse o prazer que é lê-lo sem compromisso, sem provas para responder ou explicações para serem dadas. Afinal, ler literatura é isso, é deixar-se levar pelo texto, simplesmente porque gosta do que lê e porque curte. Assim seria o ideal para descobrir-se leitor do texto lobatiano. Mas como, infelizmente, leitores assim estão ameaçados de extinção e professores capazes de despertar leitores em potencial também, que ao menos esses profissionais percebam o papel que lhes cabe de resgatar esse nome tão fundamental dentro de nossa história literária, lendo-o e trabalhando-o em sala, pois é direito do aluno conhecer essa herança cultural tão próxima a ele. Enfim, terminamos fazendo referência, mais uma vez, à estudiosa Marisa Lajolo de que “Nesse Dom Quixote das Crianças, o leitor encontra material bastante rico para reflexão sobre questões de leitura, de leitura dos clássicos, da adequabilidade de certas linguagens a certos públicos, do papel a ser representado pelo adulto responsável pela iniciação dos jovens na leitura” (LAJOLO, 2002, p.103), e, na escola, vale lembrar, esse papel é do professor. Segundo Zumthor, “A performance é então um momento da recepção: momento privilegiado, em que um enunciado é realmente recebido” (ZUMTHOR, 2007, p.50).
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Tema geral: Línguas e Literaturas: Diversidade e Adversidades na América Latina Referências BLOOM, H. Contos e poemas para crianças extremamente inteligentes. Rio de Janeiro: Objetiva, 2003. CATINARI, A. F. Monteiro Lobato e o projeto de educação interdisciplinar. Dissertação de Mestrado. Rio de Janeiro, RJ: Faculdade de Letras/UFRJ, 2006. COELHO, N. N. Panorama Histórico da Literatura Infantil/Juvenil: das Origens Indoeuropéias ao Brasil Contemporâneo. 3 ed. São Paulo: Quíron, 1985. LAJOLO, M. Do mundo da leitura para a leitura do mundo. 6 ed. São Paulo: Ática, 2002. ______.Monteiro Lobato e Dom Quixote: viajantes nos caminhos da leitura. Disponível em www.unicamp.br/ iel/site/graduação/quixote.rtf. Acesso em 18 mar. 2009. LOBATO, M. Reinações de Narizinho. 48 ed. São Paulo: Brasiliense: 2004a. ______. Dom Quixote das Crianças. 27 ed. São Paulo: Brasiliense, 2004b. ZUMTHOR, Paul. Performance, recepção, leitura. São Paulo: Cosac Naify, 2007.
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AS FOLHAS LITERÁRIAS DO JORNAL DO PARÁ (1862-1878) Patrícia Carvalho MARTINS (Universidade Federal do Pará) Germana Maria Araújo SALES (Orientadora / Universidade Federal do Pará)
RESUMO: O presente estudo objetiva evidenciar o papel do Jornal do Pará (1862-1878) como suporte para publicação de prosas de ficção, mostrando os espaços reservados à circulação de um número significativo de textos ficcionais distribuídos pelas colunas Litteratura, Variedade, Folhetim, Miscellanea, Gazetilha e Transcripção. Teoricamente recorremos à Historiografia Literária, para auxiliar na inserção de pesquisas à margem do cânone literário ou vistas em segundo plano. Para o desenvolvimento deste estudo em análise, o exame de material primário, fontes do passado literário da região, além de publicações atuais que trazem resultados do trajeto literário no período oitocentista, nos são de grande importância para traçar uma evolução na literatura do contexto regional paraense, possibilitando um diálogo que envolve a literatura brasileira no século XIX, a imprensa periódica e suas relações com o meio social. PALAVRAS-CHAVE: Jornal do Pará; prosas de ficção; imprensa; século XIX.
ABSTRACT: This study aims to highlight the role of the Journal of Pará (1862-1878) as support for the publication of prose drama, showing the spaces reserved for the movement of a significant number of fictional texts distributed by columns Literature, Variety, Folhetim, Miscellanea , Gazetilha and Transcription. Theoretically we use the Literary Historiography, to assist in the integration of research outside the literary canon or seen in the background. To develop this study into consideration, the examination of primary materials, sources of the literary past of the region, and publications that bring results of the current literature in the nineteenth path, we are of great importance to trace an evolution in the literature of the regional Para´s context, allowing a dialogue involving the Brazilian literature in the nineteenth century, the periodical press and its relationship with the social environment. KEY WORDS: Journal of Pará; prose drama; press; nineteenth century.
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1. Introdução A Belém oitocentista tinha grande destaque no cenário nacional. Conforme, Laurence Hallewell, no início do século XIX, Belém fazia parte dos cinco maiores portos do Brasil, portanto, teve intensa participação nos processos sócio-culturais do Brasil oitocentista. Por isso, trabalhos como este ganham cada vez mais importância não só pelo papel de identificar a formação literária da nação, mas também para auxiliar nas pesquisas em fonte primária em outros estados também, pois a divulgação de estudos em jornais contribui para um melhor entendimento do processo de produção, circulação e recepção da literatura no Brasil durante o século XIX. Vários fatores da necessidade da pesquisa nos jornais oitocentista para a literatura já foram comentados, como observou TINHORÃO (1995, p. 37), considerando-se o papel desempenhado pela imprensa periódica na difusão dos primeiros ensaios de autores brasileiros nas áreas dos novos gêneros literários do conto, da novela, e do romance, a partir do início da década de 1830, ‘a história literária do Brasil ganharia pelo menos 10 anos, se se escrevesse tomando para referência os jornais e não os livros’
Ou ainda como registra BARBOSA (2007, p. 28 e 29), Uma pesquisa em jornais evita, portanto, tomar a ‘obra’ final – impressa em livro – como definitiva e a única passível de investigação (...) Essas pesquisas trazem ao presente as práticas culturais mais próximas daquilo que foram no passado, revelando toda a sua riqueza e peculiaridades. Além disso, possibilitam rever e avaliar com maior rigor as práticas literárias de várias províncias brasileiras da época, que viram reproduzir-se nos seus jornais e folhetins o mesmo movimento que se dava nos do Rio de Janeiro (...) E se a maioria desses escritos foi olvidada na formação do cânone, a pesquisa em jornais da época pode trazê-los ao presente e reconstituir de forma mais verossímil e não-anacrônica a vida literária do periódico
No século XIX, o jornal era o principal veículo de informação e alcançava diversos seguimentos sociais, portanto assumia variados papéis, como informar, instruir, entreter. Sobre essas funções, LAJOLO (2004, p. 34) afirma que “Além de serem muito mais baratos, os jornais induziam a uma leitura parcelada, aos pedaços, à qual talvez estivessem mais habituados os leitores disponíveis naquele tempo”. Outro papel dos periódicos oitocentistas era de integrar grupos de pessoas para ler ou escutar a leitura do jornal, principalmente quando eram os instigantes capítulos dos romancesfolhetins, semelhante ao que atualmente fazem os telespectadores em suas salas pela espera do próximo capítulo da telenovela preferida. No Pará, um dos periódicos de maior duração do século XIX foi o Jornal do Pará, publicado em Belém entre 1862 e 1878 e dirigido por Cypriano José dos Santos. Este jornal serviu de suporte para divulgação de assuntos políticos, comerciais e, também literários. No periódico, de 1867 a 18781, foi encontrado um significativo número de textos em prosa de ficção, entre poesias, textos filosóficos e religiosos. Esses diversos textos circularam em variadas colunas, destinadas as publicações literárias, espaços que são tratados no título como folhas literárias. As folhas literárias do Jornal do Pará mostram os principais espaços em que circulavam as prosas de ficção, o material catalogado e algumas observações sobre os autores e as produções biográficas encontradas no periódico. Portanto, pretende-se registrar e divulgar a participação do periódico paraense oitocentista na construção da Literatura Brasileira. 2. Procedimentos Metodológicos A primeira medida para a construção deste trabalho foi a escolha do periódico que seria objeto de estudo. O Jornal do Pará se destacou por sua longa permanência na intensa concorrência da imprensa paraense oitocentista, além ter possibilitado grande espaço para publicações de prosa de ficção em duas páginas. No acervo na Biblioteca Pública Arthur Vianna- CENTUR só estão disponíveis os números a partir de 1867, reunidos nos rolos de 16 à 28, arquivo 01 e gaveta 06.
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A etapa seguinte foi a catalogação, passo importante para identificar a localização das prosas, facilitando futuras pesquisas neste jornal. Esta medida foi desenvolvida no setor de microfilmagem da Biblioteca Pública Arthur Vianna – CENTUR, e as informações resultaram em tabelas já estruturadas pelo projeto “Lendo o Pará: publicação do romance-folhetim nos jornais de Belém do Pará na segunda metade do século XIX”. Foi catalogado um total de 90 (noventa) textos no Jornal do Pará. Entre tantos registros, encontraram-se diversos gêneros, como lendas, textos religiosos e filosóficos, poesias, e um significativo número de prosas de ficção, que levaram as etapas seguintes, a de seleção dos textos para compilação, seguindo critérios como: i) obras completas (muitos textos eram interrompidos ou substituídos devido à recepção das mesmas ao público leitor ou até mesmo do desconhecimento do real autor); ii) prosas de ficção publicadas de forma seriada, forma que deu início ao romance de folhetim; iii) textos que circularam no cenário nacional, por meio dos diálogos entre os diversos periódicos oitocentistas. A próxima medida foi desenvolvida em três momentos: i) compilação dos textos selecionados, a qual foi realizada no espaço de microfilmagem do Centur, utilizando o recurso de manuscrever as prosas selecionadas ou uso de palmtops adquiridos pelo projeto para facilitar o trabalho das compilações; ii) digitação dos textos compilados, desenvolvida na sala de pesquisa reservada ao projeto no prédio de Pós-graduação do Curso de Letras; iii) análise, de acordo com os critérios hitórico-sociológicos na Literatura. 3. O Jornal do Pará O Jornal do Pará foi um periódico de grande repercussão na imprensa paraense2 do século XIX. Publicado entre 1862 a 1878, uma longa duração para a época, era produzido por uma importante tipografia oitocentista: a de Santos & Irmãos. Substituiu, o Jornal Treze de Maio3 (1840 - 1844), permanecendo na mesma editora familiar Santos, o mais importante jornal lançado após a cabanagem, fundado por Honório José dos Santos, o qual, de acordo com HALLEWELL (2003, p. 121), ainda com a chamada Typographia de Santos e Menor, fez em 1839, “a primeira publicação importante local, o Ensaio corográfico sobre a povíncia do Pará, de Antônio Ladislau Monteiro Baena” O primeiro número do jornal foi publicado em 04 de novembro de 1862 e o último número em 10 de novembro de 1878, completando, portanto dezesseis anos em circulação, tempo desafiador para a grande concorrência e variedade de periódicos no século XIX. Sua produção era diária, exceto às segundas-feiras, dias imediatos aos santificados e de festa nacional. Entre os assuntos publicados, encontramos informações políticas, noticiosas, comerciais e literárias. No século XIX, o jornal era o principal veículo de informação e alcançava diversos seguimentos sociais, portanto assumia variados papéis, como informar, instruir, entreter. Sobre essas funções, LAJOLO (2004, p. 37) afirma que “Além de serem muito mais baratos, os jornais induziam a uma leitura parcelada, aos pedaços, à qual talvez estivessem mais habituados os leitores disponíveis naquele tempo” O idealizador e fundador do primeiro jornal impresso no norte do Brasil e quinto do país, O Paraense, foi Filipe Alberto Patroni. O Paraense (1822-1823) defendia os fundamentos da Constituição e o corpo político do Reino Unido e combatia o arbítrio da administração militar portuguesa. Foi um periódico que surgiu às vésperas da Independência, praticando um jornalismo liberal, passou a ser identificado como um importante agente da idéia da Independência do Brasil, o que contribuiu para o fim do jornal. 3 O nome do jornal refere-se a data em que os Cabanos foram obrigados a deixar Belém. 2
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Figura 1 - Página inicial do Jornal do Pará
O Jornal do Pará, como órgão oficial, tinha um forte caráter político, contudo, publicava diversos assuntos, não só por ser uma característica típica do periódico oitocentista, mas também para agradar o disputado público. Entre informes, notícias oficiais, anedotas, propagandas, avisos de reuniões e festas, a presença de textos literários era constante no periódico estudado. Portanto, não fugiu a prática da publicação em periódicos do século XIX, como observa LAJOLO (2004, p. 36)
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Tema geral: Línguas e Literaturas: Diversidade e Adversidades na América Latina para um jornal conseguir anúncios, ele precisava – como precisa até hoje – dispor de leitores (...) A receita para conseguir mais leitores foi contratar escritores que produzissem romances que interessassem ao público: os folhetins que publicados aos pedaços, mantinham os leitores em suspense por muitos e muitos números de jornal.
Não só a Literatura, como é concebida na atualidade, mas distintos textos identificados como literários apareciam em colunas especializadas que hoje não seriam considerados como tal, observando que os termos modificam seus significados com o passar do tempo, como atenta Márcia Abreu (2003, p.15): (...) no momento em que o termo passa a ser empregado na acepção moderna, a palavra literatura associase a algumas obras, alguns escritores, alguns leitores, algumas formas de ler, excluindo a maior parte da produção e das pessoas. Optei, por isso, pelo termo belas letras, que guarda a indefinição do período, permitindo que se considere um conjunto amplo de escritos
No Jornal do Pará teremos este conjunto amplo de escritos, que apareceram de diferentes formas e conteúdos pelas folhas literárias, que se destinavam a publicar não somente as prosas de ficção, mas também textos de interesse dos leitores, que incluíam tudo que se entendia por bellas letras. 3. As folhas literárias As “folhas literárias” aparecem no Jornal do Pará (1862-1878) em colunas como Litteratura, Variedade, Folhetim, Miscellanea, Gazetilha e Transcripção. Não eram somente narrativas o que traziam esses espaços literários, entre as prosas de ficção, apareciam artigos sobre a terra, a agropecuária, meteoritos, religião, textos de instrução, religioso ou informação. A esse respeito BARBOSA (2007, p. 31) afirma: Inúmeros são os textos das colunas Literatura que se debruçam sobre a questão do que chamavam de ‘instrução pública’, digamos, a versão moderna para o século XIX das Bellas-letras e da Ilustração (...) Observa-se que a matéria literária propriamente dita – o romance, o conto, a poesia e a crônica – está presente no jornal, mas em outras colunas, cujos nomes estão longe de significar algo atualmente. Variedade, Miscelânea, Folhetim, etc.; essas, por sua vez, não trazem sempre o literário.
Diante das secções que divulgam textos literários nessa folha noticiosa, a secção em que mais se fez presente a prosa de ficção, tanto em quantidade quanto em variedade de gêneros, foi a Variedade, resultado comprovado pelo seguinte gráfico: Gráfico 1: Quantidade de Gêneros por Secções no Jornal do Pará
Entre os gêneros que circulam nesse espaço, há a constante presença do conto. Essa preferência pelo conto no periódico do século XIX, momento de consolidação deste gênero, pode ser
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explicada pelo fato de possuir as mesmas características do romance em uma extensão menor. Como justifica BARBOSA (2007, p.22), “isso se deu pela facilidade de ser publicado de uma só vez, como pela ‘simplicidade do entrecho’ e a ‘linguagem singela e corrente, acessível a todos’. MOISÉS (2003, p. 94) atenta para a característica de que “ao conto não interessa a personagem mas o drama que o de que participa (...) importam, isso sim, as características básicas das personagens que desencadeiam o episódio central da narrativa”, portanto, além de ser uma ficção curta, facilita a identificação do público leitor com as situações vividas. Não se sabe ao certo a origem do conto, porém este gênero perdura com sucesso até os dias atuais. No século XIX, MOISÉS (2003), afirma que: Entrando o século XIX, o conto vive uma época de esplendor. Além de se tornar ‘forma artística’, ao lado das demais até então consideradas, sobretudo as poéticas, passa a ser vastamente cultivado: abandona o estágio de ‘forma simples’, paredes-meias com o folclore e o mito, para ingressar numa fase em que se torna produto literário (...). A publicação de obras no gênero cresce consideravelmente na segunda metade do século XIX (p.34)
Essa ocorrência maior do conto deve-se também ao fato de que “a quase tudo que é traduzido atribui-se o formato de pequenos contos, tornando a prosa narrativa o estilo preferido e preponderante dos periódicos”, diz BARBOSA (2007, p. 48). De metas claras em provocar o leitor com uma só impressão, e linguagem objetiva, “de imediata compreensão para o leitor”, o conto teve fácil aceitação, pois alcançava todas as classes sociais e permitia uma leitura breve, consentindo aos ávidos leitores a possibilidade de passar para outra narrativa em pouco tempo. Outras possíveis explicações estão ligadas as próprias preferências dos envolvidos na produção e circulação do Jornal do Pará. Poderia ser predileção do editor, por facilitar as publicações dos números, ou até mesmo que alguns contos fossem escritos pelos próprios tipógrafos na necessidade de imprimir diariamente narrativas em suas páginas; ou até mesmo por gosto dos assinantes e leitores do jornal. Além do conto, foram identificados outros gêneros que também se destacaram no século XIX, como a novela, o romance, a crônica. Contudo, as classificações dos textos que circulavam no período oitocentista se confundiam bastante, seja por estruturas semelhantes ou por critérios inapropriados. Lucia Miguel Pereira (1992, p.27) define o romance, a novela e o conto como os três tipos de ficção em prosa. A autora diferencia em poucas palavras os três gêneros focalizando não só em quantidade de páginas, mas também em características dos personagens e do núcleo da trama. As prosas de ficção catalogadas totalizaram 85(oitenta e cinco) 4 e estão distribuídas nas seis colunas já referidas e detalhadas a seguir por espaço de circulação e gênero. A primeira coluna literária encontrada5 no Jornal do Pará foi a Litteratura. Localizava-se em geral na primeira ou segunda página, apareceu em 20 de janeiro de 1867 com o texto Direito de Propriedade, que tratava de reflexões sobre a relação do homem e a propriedade. Continuou mostrando textos como Aerolite, com algumas considerações sobre um suposto meteorito, até apresentar a primeira novela6 intitulada Helena, sem autoria, a primeira prosa de ficção encontrada nesta pesquisa. Não mostra a fonte da qual foi retirada, contém apenas a informação de que se trata de uma obra extraída. O enredo se passa em Paris, mas ainda por esta informação não se pode dizer que seja uma história originalmente francesa, apresenta a narrativa de uma condessa que se via em um conflito misterioso ocasionado por sua irmã gêmea, da qual desconhecia a existência. Outra prosa com título feminino que apareceu no jornal do Pará foi Júlia, de F. M. Supíco, o qual foi um jornalista, investigador e político português, que viveu entre 1830 e 1911, fundou o Foram excluídas as lendas e alguns textos religiosos devido ao recorte da descrição dos gêneros distribuídos pelas secções literárias, o total catalogado foi de 90 prosas de ficção. 5 Apesar do Jornal do Pará ter sido publicado de 1862 a 1878, a pesquisa foi realizada a partir da disponibilidade do acervo na Biblioteca Pública Arthur Vianna – CENTUR, que é de 1867 a 1878. 6 Vale lembrar que a categorização das prosas de ficção encontradas está seguindo a classificação do próprio Jornal do Pará. 4
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quinzenário de literatura moral e religiosa Tempo (1852 – 1859). Nesse mesmo período foi diretor do Correio Michaelense (1858), e fundador e diretor político do jornal literário-político Santelmo (18591860). Como proprietário, editor e redator do semanário A Persuasão (1862-1911), desempenhou as funções de porta-voz distrital do Partido Regenerador. Deixou uma vasta colaboração tanto à imprensa quanto à literatura regional e nacional. Contudo, não é mais reconhecido atualmente, está à margem das consagradas Histórias da Literatura Brasileira. A secção Litteratura continuou apresentando temas femininos, com obras como Um amor de mulher; A vara de açucenas; Fragmento de um livro Inédito; A orfã, as quatro narrativas sem identificação de autoria; temas familiares como Virtude Laureada, de Victoria Collona, que se acredita ser um pseudônimo de alguma escritora brasileira, segundo BLAKE (1902, p. 383); e Deveres Maternos, de A. Silva, além de alguns textos religiosos, que reunidos distribuem-se em oito contos; uma crônica; dois romances; e uma novela. A coluna Variedade é a segunda que surge e, como já foi destacado, foi a mais recorrente. A primeira narrativa trazida para este espaço é A noviça, em seguida a Ponte dos Noivos e a Carteira, todas sem autoria e tratando de assuntos românticos, bem característicos do estilo preferido da época. Como assegura TINHORÃO (1994, p. 19 e 20), quando essas histórias começam a ser postas ao alcance do grande público (...) através da publicação em rodapés dos jornais, ou sob a forma de folhetins distribuídos a assinantes ou vendidos de porta em porta (colportage), o romantismo se populariza de vez, aproveitando o sentimentalismo exagerado, a visão estereotipada da vida, a atração pelo fantástico, o interesse pelo exótico, o fascínio pelas situações dramáticas e apaixonantes, a crítica subjetiva às injustiças sociais, e a tendência à comovida contemplação da desgraça humana
Passaram-se vários números do jornal sem o espaço Variedade, precisamente 137 edições, para não competir com o grande folhetim Memórias de um Sargento de Milícias, de Manuel Antonio e Almeida, publicado na secção Folhetim, em 03 de outubro de 1867, do número 225 ao 297. Ao reaparecer, a coluna divulga Evangelina, um conto que narra uma linda história de amor em dez capítulos publicados em um só dia, assinado por Luciano Santos. Ainda em 1867 segue outra grande narrativa neste espaço, Rivais e Amigas, de Alberto Coutinho Jr, contada em oito capítulos que retratam tramas, descobertas e desfechos inesperados. Nos anos seguintes continua a divulgação de narrativas com personagens femininos no núcleo central, como As Filhas do Céu, de F. M. Supíco; Rosetta,de José Ivo; Seus Olhos, de Pietro de Castelgandolfo; Haiva, de Mery; Entre Flores, de Candido Leitão; Uma Visão, do Dr. Aureliano José Lessa (1828 – 1861), que segundo BLAKE (1883, p. 247)) foi “amigo e contemporâneo do laureado poeta M. A. Álvares de Azevedo, era com ellle, (...) que o mesmo Álvares de Azevedo tencionava publicar o livro intitulado Três Lyras”; A Condessinha, sem autoria; Leopoldina, sem autoria; Cecília, sem autoria; Lídia, sem autoria; e Rosa e Margarida Fantasia por Henrique Muger, de A. J. H. Essa temática da heroína e do mocinho que combate o vilão, o qual pode ser uma personagem ou uma situação que impede o final feliz entre o casal romântico, deve-se ao fato da popularização dos periódicos oitocentistas, como registra TINHORÃO (1994, p. 13), “os romances-folhetim representam no Brasil, assim como na França, uma abertura dos jornais no sentido de conquista de novas camadas de público, principalmente feminino”. Neste mesmo espaço aparecem autores hoje não reconhecidos, mas de grande prestígio no século XIX, e que foram destacados por Sacramento Blake (1893), em seu Dicionário Bibliográfico Brasileiro, como o baiano Eduardo Ferreira França (1809 – 1857), com o texto O Thesouro, que apesar da formação médica contribuiu consideravelmente à literatura em seu tempo; e D. Emilia Augusta Penido (1840 – 1886), amante das letras e das artes, não só produziu variados textos como também produziu diversos quadros. Dedicou-se a religiosidade católica, por esse motivo, em suas obras, há sempre relações com temas morais e religiosos, como o conto A Beneficência Delicada, publicado em 1875 no Jornal do Pará e que já havia sido divulgado no Jornal das Famílias7, em 1874. 7
Informação retirada do site http://www.caminhosdoromance.iel.unicamp.br/, acessado no dia 05/06/08
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Entre autores hoje consagrados aparecem o escritor português Ramalho Ortigão (1836-1915), com a obra Memórias de um Bom Rapaz. Ortigão, além de escritor foi também crítico literário do Jornal do Porto e colaborou na Revista Contemporânea e na Gazeta Literária. Das narrativas divulgadas no espaço Variedade, chegou-se ao resultado de: cinqüenta e um contos; nove crônicas; dois romances; e uma novela. Esses espaços voltados para a prosa de ficção apareciam muitas vezes num mesmo dia. Mostrando assim num mesmo número do jornal histórias distintas. Como exemplos dessa prática no Jornal do Pará, têm-se as prosas Rivais e Amigas e Evangelina, publicadas na coluna Variedade no mesmo período em que foi divulgado Memórias de um Sargento de Milícias, na coluna Folhetim. No Jornal do Pará, a coluna Folhetim aparece uma única vez, no dia três de outubro de 1867, publicando a importante obra à Literatura Brasileira Memórias de um Sargento de Milicias, de Manuel Antônio de Almeida (1830 – 1861). Segundo Sacramento Blake, “E’ um dos mais bellos livros, que eu conheço, escriptos na língua portugueza8” (1900, p.13). Este romance, já havia sido propagado, também anonimamente, no jornal carioca Correio Mercantil, do qual o autor foi um dos últimos redatores, e foi publicado em livro no ano de 1854, com a autoria identificada. Ainda assim, nesta edição em folhetim de 1867, não há menção de autoria e aparece assinado apenas por um brasileiro. “A republicação desses romances de folhetim sob forma de livro era um gambito óbvio para o comércio editorial, que os franceses dominaram quase imediatamente” (HALLEWELL: 1995, p.140).Além de que o fato de uma publicação em livro retornar para o formato folhetim, em capítulos diários, comprova a aceitação da circulação dos romances-folhetins entre os leitores, como também o custo barato torna a obra mais acessível. Como já elencamos, havia também o espaço Transcripção presente nos periódicos com o objetivo de divulgação literária. Nesse espaço encontramos três narrativas: um conto moral A mãe de família, sem autoria; o Evangelho, de J. J Rousseau; e reflexões A Semana, sem autoria, totalizando: dois contos e uma crônica. Até o ano de 1876, a coluna Gazetilha trazia apenas informações gerais, contudo neste ano divulgou cinco contos: Conto de Schimid “As Flores”; Conto de Schimid “A Mãe Piedosa e seus Filhos”; O cofrezinho; Conto de Schimid; e Um Príncipe entre os negociantes Americanos. Nos anos seguintes não apareceram mais prosas de ficção nesta secção. Muitas prosas de ficção eram carregadas de valores e ideologias. TINHORÃO (1994, p. 15 - 16) diz: Esses pequenos dramas familiares, que os romances mais tipicamente românticos viviam a focalizar apenas como ‘histórias de amor’, escondiam, pois, outros problemas ligados à preservação da ordem social baseada no pacto burguês (...) como o romantismo privilegia o indivíduo e o singular, e pretendia negar à razão, o quadro de tensões reais se agrava literalmente.
Miscellanea, uma coluna presente em quase todos os jornais da época, também aparece uma única vez no Jornal do Pará, no dia 08 de outubro de 1876 com a crônica História de uma pitada de tabaco, sem autoria. O gráfico abaixo demonstra essa constante dos “ilustres conhecidos desconhecidos” que publicaram suas prosas de ficção no Jornal do Pará, na segunda metade do século XIX. Gráfico 2: Porcentagem de autoria no Jornal do Pará (1862-1878)
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Fiel a fonte original.
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Das 85 (oitenta e cinco) prosas de ficção catalogadas, 56 eram sem autoria, enquanto que apenas 29 apresentavam autoria. Lembrando que mesmo identificadas, muitas destas autorias não são reconhecidas, seja por que as obras foram assinadas com pseudônimos, prática comum na época, ou porque o nome do autor se perdeu no tempo por não fazer parte das pesquisas Literárias. Diante desses dados, observou-se que a maioria dos textos publicados neste jornal eram sem autoria, fato semelhante ao que ocorreu em outros locais, como justifica BARBOSA (2007, p. 32). Desde os primórdios da imprensa brasileira, observa-se uma tendência forte ao anonimato ou ao uso indiscriminado do pseudônimo, tanto nos jornais da Corte como naqueles existentes nas províncias a partir da segunda década do século XIX (...) uma das razões, a mais óbvia talvez, diz respeito à necessidade de proteção, seja da autoridade, seja da reputação, ou até mesmo, no caso das mulheres, de algum pai ou marido ciumento.
Esta ocorrência pode ser explicada pelo fato de que a publicação de prosas em jornais era visto por alguns críticos como subliteratura; ou pela questão de que a “autoria” poderia influenciar no consumo, afastando ou atraindo o leitor para a obra, afinal as pessoas escrevem para serem lidas; ou para garantir que o texto recebesse mais importância que o nome do autor; ou até mesmo pela constante circulação dos textos divulgados entre os jornais da época, muitas prosas eram extraídas de outros periódicos. 4. Considerações Finais Neste estudo foi possível ratificar a participação da imprensa oitocentista na facilitação do acesso as leituras das prosas de ficção, por meio da disponibilização de diversos espaços reservados para a circulação literária. Não fugiu ao esperado e aos resultados verificados em outras pesquisas de mesmo cunho histórico literário em outros estados. Demonstrando que no estado do Pará, a estreita relação da literatura com os periódicos oitocentistas, também se deu de forma semelhante ao contexto mundial da literatura no século XIX. Sobre essa relação estreita entre imprensa e literatura, LAJOLO & ZILBERMAN (1998, p. )afirmam que Imprensa e literatura são formações discursivas diferentes, emanadas de lugares sociais igualmente distintos; mas ambas integram o mesmo sistema da escrita. Não se confundem, posto sejam intercomunicantes. E o fato de a imprensa, durante um certo tempo e em certos casos, financiar a literatura é, talvez, a manifestação mais visível desta intercomunicabilidade.
O periódico paraense Jornal do Pará – mesmo com seu caráter de órgão oficial- trouxe não só informações noticiosas, políticas e comerciais, mas possibilitou diferentes colunas para a publicação de narrativas ficcionais, de variados gêneros, mesmo tendo a predominância em suas páginas de textos mais curtos, como os contos, e de cunho moralista, coerente com o conservadorismo adotado por este jornal oitocentista. As informações apresentadas neste estudo têm importância para que futuras pesquisas não só quanto a História Literária no Pará, mas no Brasil do século XIX. Afinal, a evidência dos variados espaços disponibilizados no Jornal do Pará a divulgação de materiais literários, ratifica a participação dos periódicos não só nos modos de produção, publicação e circulação da Literatura oitocentista, mas também nos diálogos literários e na construção da Literatura Brasileira. Referências ABREU, Márcia. (org). O Caminho dos Livros. Campinas, SP: Mercado de Letras, Associação de Leitura do Brasil (ALB); São Paulo: Fapesp, 2003. ______. Cultura Letrada: Literatura e Leitura. São Paulo: Editora UNESP, 2006. BARBOSA, Socorro de Fátima Pacífico. Jornal e literatura: a imprensa brasileira no século XIX. Porto alegre: Nova Prova, 2007.
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Anais do II Congresso Internacional de Estudos Linguísticos e Literários na Amazônia (CIELLA) BLAKE, Augusto Victoriano Alves Sacramento. Dicionário Bibliográfico Brasileiro. Vol 1. Rio de Janeiro: Tipografia Nacional, 1883. ______. Dicionário Bibliográfico Brasileiro. Vol 2. Rio de Janeiro: Imprensa Nacional, 1893. ______. Dicionário Bibliográfico Brasileiro. Vol 6. Rio de Janeiro: Imprensa Nacional, 1900. ______. Dicionário Bibliográfico Brasileiro. Vol 7. Rio de Janeiro: Imprensa Nacional, 1902. CANDIDO, Antonio. Formação da literatura brasileira. 2vls. São Paulo: Martins, 1964. ______. “A Timidez do romance” In: A educação pela noite e outros ensaios. São Paulo: Ática, 1987. CARNEIRO, Daniel Augusto Moraes. A tipografia e a divulgação e publicação literária no Pará. Trabalho de Conclusão de Curso apresentado ao departamento de Língua e Literatura Vernáculas, da UFPA. Belém, 2003. HALLEWELL, Laurence. O Livro no Brasil. São Paulo: T.A. Queiroz, 1995. LACERDA, Lilian de. Álbum de Leitura: memórias de vida, histórias de leitoras. São Paulo: Editora UNESP, 2003. LAJOLO, Marisa. Como e por que ler o romance brasileiro. São Paulo: Objetiva, 2004. LAJOLO, Marisa & ZILBERMAN, Regina. A Formação da leitura no Brasil. São Paulo: Ática, 1998. MEYER, Marlyse. Aspectos da mulher no folhetim do século XIX: seduzidas e abandonadas. In: Seminário Nacional Mulher e Literatura. Natal: UFRN: Editora Universitária, 1995 (p. 103- 111). MOISÉS, Massaud. Dicionário de Termos Literários. São Paulo: Cultrix, 1992. ______. A Criação Literária: Prosa I. 19 ed. São Paulo: Cultrix, 2003. NADAF, Yasmin Jamil. Rodapé das Miscelâneas – O Folhetim nos jornais de Mato Grosso, Rio de Janeiro, Sete Letras, 2002. SALES, Germana Maria Araújo. Um público leitor em formação. In: Moara Revista do curso de Pós-Graduação em Letras da UFPA, nº 23, p. 23-42, jan/jun/2005. TINHORÃO, José Ramos. Os romances em folhetim no Brasil: 1830 a atualidade. São Paulo: Duas Cidades, 1994. VASCONCELOS, Brena de Cássia Farias. Memória do Livro e da Leitura no Pará do século XIX. Relatório técnico Científico vinculado ao projeto de pesquisa História do Romance Brasileiro: século XIX, da UFPA. Belém, 2004.
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A HESITAÇÃO E A CONSTRUÇÃO DE IMAGEM NO GÊNERO ENTREVISTA∗ Patrícia de Castro JOUBERT (Universidade Federal do Pará)
RESUMO: Este trabalho investiga o funcionamento da hesitação em uma entrevista televisiva. Partindo-se do pressuposto de que a hesitação, além de ser um fenômeno de processamento, influi no andamento do discurso, assume-se que, no tipo de interação analisada, suas diferentes formas de manifestação contribuem para a projeção da imagem do locutor como um sujeito inseguro em seu dizer, em constante preocupação com as suas escolhas lexicais e sintáticas, que devem ser favoráveis à reconstrução de uma imagem nacional. Trata-se de um estudo de caráter empírico-indutivo, que assume o tratamento da linguagem em seu uso, e que se desenvolve segundo os princípios teóricos da Análise da Conversação. PALAVRAS-CHAVE: hesitação; projeção de imagem; Análise da Conversação.
RESUMÉ: Ce travail analyse le fonctionnement de l’hésitation dans une interview télévisée. En considerant l’hesitation plus qu’un phénomène de traitement, qui influe sur le cours du discours, on conçoit que dans le type d’interaction analysée, ses différentes formes de manifestation contribuent à la projection de l’image du locuteur comme un sujet pas sûr de soi-même, souvent soucieux de ses choix lexicaux et syntaxiques, qui doivent être favorables à la reconstruction d’une image nationale. Il s’agit d’une étude empirique-inductive, dans laquelle le language est analysé dans son contexte de l’usage, et qui s’appuye sur l’approche théorique de l’Analyse de la Conversation. MOTS-CLÉS: hesitation; projection d’ image; Analyse de la Conversation.
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1. Considerações iniciais A conversação é uma atividade de produção de sentido planejada localmente. Sua análise põe em evidência o movimento de constante elaboração e re-elaboração das ações verbais, realizadas pelos interactantes ao longo da enunciação. A não-disponibilidade de tempo prévio pelo falante, para o processamento de informações linguísticas e não-linguísticas, faz dessa atividade um espaço em permanente constituição, permeado por diferentes fenômenos de fala, dentre os quais está a hesitação (TOSCANO, 1999, p. 29). Durante o projeto interativo que desenvolve com o ouvinte, o falante, quase que simultaneamente, processa cognitivamente e profere o seu dizer, tomando por base as restrições impostas pela situação conversacional. A hesitação é, por excelência, o fenômeno de fala que indicia esta dupla ação realizada pelo falante, motivada pela necessidade de planejamento em tempo real. Ela é o laboratório que permite observar de perto a (não-) harmonização entre certas escolhas linguísticas e o requerido interacionalmente. Tomando por base a sua funcionalidade em situação interativa de entrevista, a hesitação também pode ser apontada como fenômeno que contribui à projeção da imagem discursiva de um sujeito inseguro, produzida a partir da fala de um locutor, que, estando tenso, deixa entrever em seu texto certa preocupação na realização de escolhas lexicais e sintáticas adequadas ao seu propósito interativo. É baseado nestas considerações que se investiga o funcionamento da hesitação no gênero entrevista televisiva, a partir de uma orientação textual-discursiva, guiada pelos princípios da Análise da Conversação, tais como discutidos por Marcuschi (1999), (2006) e Preti (2004). 2. Do corpus ao objetivo da pesquisa Interessa a este estudo observar uma entrevista televisiva, com objetivo de identificar a imagem discursiva construída a partir do fenômeno da hesitação presente na fala do entrevistado. A entrevista selecionada foi transmitida no dia 4 de maio de 2008, no programa Fantástico, e tem a duração de quinze minutos. O entrevistado é o jogador Ronaldinho. O tópico da entrevista, conduzida por Patrícia Poeta, é o suposto envolvimento do jogador com travestis na Barra da Tijuca, fato divulgado como escândalo nacional uma semana antes da emissão. A transcrição deste corpus obedeceu às normas propostas por Marcuschi (1999a). Para a sinalização dos segmentos de fala produzidos entre risos, foi adotado o símbolo utilizado por Toscano (1999). As hesitações foram destacadas em negrito. 3. Estrutura de participação A estrutura de participação envolve a presença tanto de interlocutores ratificados quanto de interlocutores não-ratificados. No caso dos programas televisivos, existem aqueles ouvintes que constituem testemunha ao vivo da fala e que, portanto, são co-participantes, e aqueles que participam apenas de modo secundário (“a plateia”), já que não podem dirigir suas vozes ao locutor (GOFFMAN, 2002, p. 126). Seguindo este princípio, considera-se que, na entrevista analisada, além do entrevistador e do entrevistado, há a presença de uma audiência que, embora não se faça presente fisicamente, tem um papel fundamental para o encontro conversacional, visto ser o ouvinte a quem realmente se projeta o dizer. Nesse sentido, pode-se afirmar que, no espaço em que ocorre a entrevista, o jardim da casa do jogador, acontece uma encenação, na qual a entrevistadora, embora responsável pela condução da interação, simula ser a verdadeira ouvinte endereçada. Nesta representação, ela “assume” o lugar de ouvinte, fazendo crer que é a ela que Ronaldo se justifica. Há, portanto, um jogo em que a fala é conduzida como se fosse direcionada a um único ouvinte, uma vez que os outros ouvintes não dividem o mesmo espaço físico de seu locutor. Nesse jogo, Ronaldo profere ao vivo seu dizer à entrevistadora, tentando alcançar diretamente o público.
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4. O gênero entrevista Observa-se que a entrevista é um gênero primordialmente oral e altamente padronizado que implica certos papéis e expectativas normativas. Trata-se de um evento comunicativo que abarca uma série de outros eventos ou subgêneros (HOFFNAGEL, 2OO5, p. 180). Independente de suas especificidades, a entrevista envolve necessariamente pelo menos dois sujeitos, um que é o entrevistador, outro que é o entrevistado, cada um com papéis específicos: cabe ao primeiro estabelecer o tópico da entrevista e fazer perguntas de acordo com esse tópico; ao segundo, responder de acordo com o tópico estabelecido (MARCUSCHI, 2000 apud HOFFNAGEL, 2005). No geral, a entrevista é baseada em relações de assimetria, em que o centro de interesse é o entrevistado, cabendo-lhe, portanto, a maior parte dos turnos conversacionais. Sendo previamente elaborada, conta com um roteiro de perguntas para o qual são esperadas respostas. É, no entanto, no decorrer da interação que toma vivacidade, conforme as necessidades comunicacionais que vão se impondo (HALPERÍN, 1995 apud ANDRADE, s/d). Para efeito deste trabalho, assume-se que o papel “primitivo” da entrevista é o de formar opinião, uma vez que já não há mais espaço para se acreditar em uma concepção de linguagem neutra; e que é sabido que os programas televisivos trazem pessoas de referência no cenário nacional, responsáveis por ditar, mesmo que sutilmente, certas ideias e comportamentos. Não se pode esquecer também que os programas televisivos, antes de chegarem à tela pública, são editados segundo o olhar de sujeitos, que, por um motivo ou outro, escolhem certas cenas, em detrimento de outras. No caso da entrevista de Ronaldo concedida ao Fantástico, nota-se que seu objetivo é reconstituir a autoimagem do jogador, abalada nacionalmente após o escândalo público envolvendo possível consumo de drogas e relação sexual com travestis. Mais do que informar o público brasileiro, acredita-se que a entrevista, neste caso, se projeta como um palco de autodefesa pública, em que qualquer palavra mal utilizada pode ser fatal. 5. A hesitação A hesitação vem sendo caracterizada como atividade textual-discursiva que se manifesta linearmente como ruptura na materialidade da frase, em pontos sintáticos e prosódicos não previstos. Trata-se de uma atividade de processamento, e não de formulação, que coloca em evidência as estratégias cognitivas realizadas pelos falantes para resolver problemas de processamento on line entre forma e conteúdo. Este indício de problema, portanto, denuncia o trabalho realizado pelo falante e provoca no texto um ralentamento (MARCUSCHI, 1999b, p. 163). Presente em todas as línguas, este fenômeno apresenta como particularidade o caráter prospectivo, que sugere a relação com lexemas/sintagmas que ainda vão ser proferidos. Logo, diferentemente da correção, por exemplo, ela não opera como alternativa a um problema de formulação textual, mas sim como uma pista da busca de solução almejada pelo falante; nem introduz conteúdos proposicionais para a progressão textual, já que na maioria dos casos se dá por meio de elementos funcionais (MARCUSCHI, 1999b, p. 163). 5.1. Aspectos formais Formalmente a hesitação materializa-se por meio dos seguintes fenômenos: a) fenômenos prosódicos (pausas e alongamentos vocálicos), b) expressões hesitativas (ah, éh, mm...), c) itens funcionais (artigos, preposições, conjunções, pronomes, verbos de ligação), d) itens lexicais (substantivos, advérbios, adjetivos, verbos), e) marcadores discursivos acumulados (ah, ontem eu tava lá assim sabe... sei lá...) e f) fragmentos lexicais (palavras iniciadas e não concluídas) (MARCUSCHI, 1999b, p. 164). Fragmento1 Entrevistadora: você pode contar pra gente o que que aconteceu naquela noite? Ronaldo: bom hum... aconteceu que: eu fiz uma uma grande besteira éh::... na minha vida pessoal né: eu
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Anais do II Congresso Internacional de Estudos Linguísticos e Literários na Amazônia (CIELLA) acho que... éh:: isso: todos nos tamos éh: estamos sujeitos a a errar e eu cometi um grande erro de buscar esse esse programa... éh e:: chegando: ao local eu eu... comprovei que que se tratava de de de travesti e eu tentei éh:: concluir ali de modo que ( ) pudesse voltar pra casa já:... arrependido obviamente de ter feito aquela escolha e::: e não consegui e daí que começou toda a:: extorsão né
O texto acima corresponde à primeira cena da entrevista de Ronaldo ao Fantástico. Neste fragmento é perceptível a dificuldade que o entrevistado tem em esclarecer o que aconteceu na noite do escândalo. Há uma alta incidência de hesitações realizadas por meio de fenômenos prosódicos (a::, e:::), de expressões hesitativas (hum, éh), de itens funcionais (a a,esse esse, que que, de de de), e de item lexical (já) que revelam a busca de palavras pelo locutor, para responder da melhor forma ao tópico estabelecido. 5.2. Tipos de hesitação Quanto ao tipo de manifestação, a hesitação pode ser classificada em: a) pausas nãopreenchidas, b) pausas preenchidas, e c) repetições hesitativas. O primeiro tipo refere-se aos silêncios prolongados, decorrentes de rupturas em lugares não previstos pela sintaxe e pelo fluxo da fala. O segundo tem como traço a ocorrência de marcadores conversacionais (éh, mm, ah), de alongamentos vocálicos com características hesitativas e de marcadores conversacionais acumulados. O terceiro tipo corresponde a repetições julgadas não-relevantes semanticamente, manifestas, geralmente, por meio de itens formais (MARCUSCHI, 1999b, p. 167). Fragmento 2 Entrevistadora: quando você abordou a pessoa lá na Barra da Tijuca você sabia que se tratava de um travesti? Ronaldo: não eu me sinto muito envergonhado até de falar hum: desse assunto até porque éh foi uma questão muito pessoal éh a minha vida normalmente eu costumo... não abrir pra: pra::: pra imprensa mas foi um ato: isolado um ato: completamente estúpido da minha parte e que: estou completamente arrependi:do envergonha:do e e que:: infelizmente aconteceu daquela maneira
Neste fragmento, observa-se a presença de hesitação por meio de pausas não-preenchidas (eu costumo... não abrir), de pausas preenchidas (hum:, pra: pra:::, ato: isolado um ato:, que:, que::), e de repetições hesitativas (pra: pra::: pra, e e). Todas estas manifestações dão à fala do locutor um ritmo lento, a partir do qual ele ganha tempo para processar o seu dizer. 5.3. Funcionalidade Em um de seus estudos, Marcuschi (2006) aponta dois papéis funcionais para a hesitação, um cognitivo e outro discursivo. O papel cognitivo, assinalado como primordial, corresponde à própria atividade de processamento da fala, em que a hesitação figura muito mais como um índice problemático de formulação do que como uma atividade formulativa. O papel discursivo, por sua vez, diz respeito a interferências que a hesitação promove na enunciação discursiva, ligadas a diversos condicionamentos pragmáticos. Assim, por exemplo, é possível que, em certos contextos interacionais, a hesitação funcione ora como estratégia de manutenção de turno, ora como mecanismo que sinaliza a entrega do turno ao ouvinte de maneira disfarçada. Sobre as alterações que a hesitação promove no nível discursivo, Preti (2004), analisando o discurso dos idosos, afirma que é comum a presença do fenômeno em conversações que envolvem a manifestação de posições conflitantes entre diferentes gerações, isto é, em conversações que se passam entre um documentador jovem e um informante idoso. O aparecimento de repetições hesitativas, de pausas e alongamentos, num contexto em que se deseja expressar uma opinião contrária, sem que isso traga constrangimento do ouvinte, denuncia a procura por certos ‘eufemismos salvadores’. Na entrevista em questão não se evidenciam conflitos de valores entre os interlocutores. Entretanto, ampliando-se a reflexão realizada por Preti ao corpus analisado, tendo em vista o
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funcionamento da hesitação em seu interior, tem-se que a procura por palavras ou expressões adequadas pode ocorrer também em contextos interacionais tensos, cujo tópico conversacional mostra-se desconfortável para o falante. E, nesse caso, não se trata de buscar palavras que evitem conflitos ideológicos, mas sim de encontrar as palavras adequadas a (re-) construção de uma certa imagem do locutor. Fragmento 3 Entrevistadora: e você pretende entrar na justiça processar alguns dos travestis? Ronaldo: não não... eu:: me ( )/ processaria né na na minha consciência ] Entrevistadora: ((risos)) Ronaldo: ta: tá ainda: peSAda cum cum cum esse ato né cum esse ato estú:pido que eu tive... num: fim de noite chegando em ca:sa éh:... tá certo que eu tinha: brigado: com a minha namorada mas uma briga BOba também e:... foi um ato realmente impensado no qual eu to... MAS do que arrependi:do to envergonhado a/e e... mas isso também me me: me aproxi:ma das pessoas porque... eu sofri isso na minha vida inte:ira... como jogador e como jogador bem su/sucedido que eu sou né de de de se:r realmente colocado numa outra esfera né: eu sou um ser humano eu sou uma pessoa... por trás do personagem que eu carrego:: eu tenho minhas fraquezas tenho meus medos... tenho:: enfim: tudo que uma pessoa normal tem então de alguma forma o Ronaldo o fenômeno desculpa eu falar... como terceira pessoa mas é: eu eu eu:.. eu ( ) aproveito dessa situação pra me aprov/me aproximar mais das pessoas... e dizer que eu sou... um ser humano e que eu erro e que: enfim tenho minhas fraquezas e: esse momento foi um momento: trá:gico que eu tive uma decisão::. a pior decisão: na minha vida pessoal
Neste trecho, o entrevistado nega a possibilidade de processar os travestis, mesmo tendo sido vítima de extorsão armada por eles, afirmação feita em outro momento. Entretanto, ao responder ao questionamento realizado, Ronaldo deixa entrever mais uma vez em seu texto certa preocupação na escolha de suas palavras. Isso acontece porque a entrevista é um gênero altamente padronizado, que exige do falante um maior controle de suas palavras. No caso da entrevista referida (envolvendo questões de verdade ou mentira), esta exigência torna-se muito maior, pois o que está em jogo é a reconstituição de uma autoimagem. Ronaldo, como embaixador da UNESCO e fenômeno do futebol, não pode ter associadas, a sua imagem pública, suspeitas de uso de drogas e de homossexualidade. Sendo assim, ele precisa ponderar suas palavras para que não causem um efeito contrário ao pretendido. Uma tese interessante que pode ser bastante útil à leitura da hesitação neste tipo de contexto é a de Blanche-Beveniste (1990 apud Marcuschi, 1999b). Para a estudiosa, toda hesitação tem um referente que não é dado adiantadamente, mas construído por aproximação sucessiva no discurso. Desta forma, a enunciação se dá numa constante interação com o conteúdo enunciado, impedindo, portanto, o isolamento do objeto produzido pela atividade de língua (o enunciado) da atividade de produção dessa língua. No fragmento em questão, por exemplo, observa-se que as pausas preenchidas e as repetições revelam certo adiamento na proferência de algumas palavras, o que prenuncia o cuidado na seleção de uma lexia adequada. Palavras como pesada, estúpido e pior são no texto pontos de chegada para estes tipos hesitativos, e caracterizam a condição de arrependimento de Ronaldo diante das próprias atitudes, gesto que é fundamental a sua ‘absolvição’ pública. 6. A projeção de imagem a partir da hesitação O cuidado na seleção de palavras e estruturas sintáticas é percebido ao longo de quase toda entrevista de Ronaldo. É este cuidado que provoca no texto o aparecimento excessivo de hesitações, que, por sua vez, acabam contribuindo para projetar a imagem do locutor como um sujeito inseguro em seu dizer. Os elementos não-verbais presentes na interação reforçam esta leitura.
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No fragmento 1, em que a entrevistadora pede um esclarecimento sobre o episódio ocorrido na Barra da Tijuca, o entrevistado manifesta dificuldade em realizar tal explicitação. A dificuldade em responder não advém da falta de conhecimento do assunto, mas pelo fato de este ser delicado; afinal, trata-se de desmentir publicamente o envolvimento sexual com travestis, acusação que denigre a imagem do jogador. Neste mesmo trecho, Ronaldo bem mais do que contar o episódio ocorrido, se posiciona no lugar de um sujeito arrependido de seus atos. É interessante observar que o questionamento feito pela entrevistadora aparece logo após a apresentação de uma sequência de cenas em que são narrados e visualizados alguns momentos da vida do jogador e algumas polêmicas nas quais já esteve envolvido. A apresentação é finalizada com o anúncio do escândalo ocorrido, uma semana antes, na Barra da Tijuca, onde o jogador teria supostamente se envolvido com travestis. A cena seguinte, na qual se enquadra o fragmento, contrasta com as anteriores, pois nela o sujeito, ora apresentado como “Fenômeno”, dá lugar à figura de um homem simples e inseguro, sentado com uma postura curvada, e com olhar baixo. A postura curvada aliada à vestimenta simples (camiseta, short e sandálias) faz lembrar um réu que, mesmo culpado, pede clemência a seus julgadores. Há, portanto, um alinhamento entre o que é dito verbalmente e aquilo que é expresso por meio do não-verbal, demonstrando que a postura que o corpo assume mantém relação direta com a atividade de fala e a situação social que abriga essa atividade (STEINBERG, 1988 apud TOSCANO, 2002). Ronaldo figura nesse contexto como um culpado, mas que, contraditoriamente, também não deixa de ser vítima. É culpado por ter buscado o programa com os travestis, e vítima por ter sido alvo de extorsão dos travestis. O olhar baixo, de certa forma, confirma a insegurança do locutor que, durante maior parte da conversação, não encara os olhos de seus ouvintes. No fragmento 2, a entrevistadora, por meio da pergunta feita, parece estar atrás de um melhor esclarecimento sobre o acontecido, pois as palavras do locutor no fragmento 1, permeadas de hesitações e pouco objetivas, não foram suficientes para tanto. Ronaldo tem, portanto, a chance de dar maior consistência à própria versão do acontecido, negando o testemunho do travesti Andréia, segundo o qual, ele teria ciência de estar se envolvendo num programa com travestis. Entretanto, mais uma vez isso é feito de forma pouco consistente. As hesitações novamente deixam perceber o desconforto da situação para o entrevistado. No fragmento 3, que se constitui como um dos pontos mais significativos da entrevista, o locutor reforça a condição de sujeito arrependido de seus atos. Para fazer isso, Ronaldo abstém-se do status de ‘Fenômeno’, assumindo que, tal como seus ouvintes, tem fraquezas, e por isso também erra e se arrepende. É óbvio que, como seus ouvintes, também ele deseja o direito de ser perdoado. Durante a conversação, Ronaldo também procura se autoafirmar como um sujeito heterossexual, portanto, incapaz de se envolver com travestis. Trata de desmentir, tal como observado no fragmento 2, a ideia de que, na noite do escândalo, sabia que estava diante de travestis e não de mulheres. O fragmento 4 também tem como centro o mesmo tópico. Nele chamam atenção não só a quantidade de hesitações, mas também os elementos que servem como seus referentes. Elas adiam a enunciação de palavras como travesti, heterossexual e relação, que funcionam como termos-chave à negação de uma identidade homossexual e à defesa de uma masculinidade pelo locutor. Fragmento 4 Entrevistadora: e sabe por que que eu pergunto pra você Ronaldo porque a a o o travesti Andréia deu uma entrevista contando que no iNIcio você não sabia que se tratava de um travesti mas depois quando foram chamados os outros dois você sim já sabia que eram travestis é verda:de ou mentira? Ronaldo: não eu nenhum momento soube: que era que era travesti eu sou completamente: heterossexual e e:: e eu acho que isso num num tem dúvida... mas éh: isso pouco me importa também que ela fala ou que deixa de falar importante é que... éh: éh o meu erro: criou um problema: muito grande né uma repercussã:o mundial e que:... graças a Deus também os fatos éh:: e tudo o que eu que eu falei no meu depoimento ( ) delegado Carlos éh: tá sendo investigado e tá sendo (comprovado)... isso: de alguma
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Tema geral: Línguas e Literaturas: Diversidade e Adversidades na América Latina maneira mínima éh... me conforta Entrevistadora: Ronaldo você teve relação com os travestis? Ronaldo: não num tive: éh::: relação... porque... na hora que eu percebi: que: num era o que eu buscava:.. eu tirei meu time de campo
No fragmento 5, Ronaldo se deixa cair na armadilha de suas próprias palavras. Tentando mostrarse como um sujeito dotado de razão e consciente de seus atos, em um lapso, acaba revelando que, na noite do escândalo, havia consumido álcool, o que de certa forma fragiliza a afirmação de que estava sóbrio. Estar sóbrio para locutor, neste contexto, significa ter a certitude de suas ações, e, por consequência, ter a capacidade de relatar com maior exatidão os fatos. Fragmento 5 Entrevistadora: você tava sóbrio aquele dia né? Ronaldo: tava Entrevistadora: estava estava ] Ronaldo: tava ] Entrevistadora: num tinha bebi::do... Ronaldo: não Entrevistadora: tava só/ ] Ronaldo: eu tinha bebido um pouqui:nho depois do jogo do flamengo mas... nada que: que: me tirasse né:.. a capacidade de de de... de raciocinar
No final da entrevista, o tópico, que antes se projetava para o escândalo do passado, volta-se para as perspectivas profissionais do jogador, para as suas futuras atividades. É nesse momento que se percebe o reaparecimento de um novo Ronaldo, que reassume a posição de ‘Fenômeno’. É bastante visível a baixa incidência de hesitações em seu texto, proferido de uma maneira menos tensa e mais à vontade. O sujeito projetado textualmente nada mais tem a ver com aquele que estava inseguro de suas palavras, pois mais do que nunca ele se mostra dono de seu dizer. Fragmento 6 Entrevistadora: então vamos falar de futuro aqui quais são os seus próximos passos? você pensa em voltar pra Euro:pa ficar aqui no Brasi:l... Ronaldo: meu contrato com o Milan acaba agora em junho... depois estarei livre... éh: pra negociar com clu:bes e enfim mas eu não quero: negociar com clube sem saber a minha real condição física então até o final da minha recuperação eu vou ficar focado só na na fisioterapia e: depois quando tiver bom e tiver seguro de voltar a jogar... aí eu vou escolher meu caminho que acho que na minha cabeça já ta meio que traçado Entrevistadora: ah é e qual é o caminho? tem que contar pra gente Ronaldo: ((risos)) bom é o meu grande sonho né mas enfim temos que... conversa:r mas isso muito mais lá na frente e eu não tenho pressa eu acho eu tenho certeza que: as por/as portas do:... do Flamengo podem estar abertas pra mim quando quando eu tiver bom
No mesmo fragmento, registra-se, ainda, a presença do riso, tanto na fala da entrevistadora quanto na de Ronaldo, que aponta para um final de conversação mais espontâneo ou menos tenso. Trata-se de uma estratégia não-verbal que parece aliviar a tensão e o desconforto vivenciados pelo locutor ao longo da conversação. 7. Considerações finais Esta pesquisa objetivou analisar o funcionamento do fenômeno da hesitação em uma entrevista televisiva. Para tanto, admitiu-se este fenômeno não só como o indício de processamento de formas e
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conteúdos pelo falante, mas também como fator que contribui à projeção da imagem do locutor no texto. Considerando-se os trabalhos de Marcuschi (1999), (2006) e de Preti (2004), discutiram-se as características gerais da hesitação, assim como suas implicações no andamento discursivo. Na análise do corpus, apostou-se no pressuposto de que, em situações interacionais tensas, com tópicos desconfortáveis para o locutor, há uma maior incidência de hesitações no texto conversacional. Desse modo, a partir da observação do funcionamento da hesitação na entrevista, constatou-se a projeção da imagem de um sujeito preocupado quanto ao que deveria falar e como deveria falar, já que qualquer escolha lexical/sintática não adequada poderia ratificar a imagem negativa difundida nacionalmente a partir do escândalo com os travestis. A hesitação observada no corpus funciona, portanto, como indício do processo de busca de palavras/construções adequadas à reconstrução de uma imagem pública favorável: sujeito heterossexual, que como qualquer ser humano erra, se arrepende e também merece ser perdoado. Referências ANDRADE, M.L.C.V. Estratégias pragmático-discursivas e controle situacional em entrevistas. Disponível em: www. fflch.usp.br/dlcv/lport/pdf/maluv010.pdf Consultado em: 02 de janeiro de 2009. GOFFMAN, E. Footing. In: (orgs.) RIBEIRO, B. T. & GARCEZ, P.G. Sociolingüística Interacional. São Paulo: Edições Loyola, 2002. HOFFNAGEL, J. C. Entrevista: uma conversa controlada. In: DIONISIO, A. P. et alii (org.) Gêneros textuais e ensino. 3ºed. Rio de Janeiro: Editora Lucerna, 2005. MASCUSCHI, L. A. Análise da conversação. 5º ed. São Paulo: Ática, 1999a. ______. A hesitação. In: NEVES, M. H. M. (org.) Gramática do Português falado. São Paulo: editora da Unicamp, 1999b. ______. Fenômenos intrínsecos da oralidade: hesitação. In: JUBRAN, C.C.A.S; KOCH, I. V. Gramática do português falado culto no Brasil. Campinas: Unicamp, 2006. PRETI, D. A hesitação no discurso dos idosos. In: PRETI, D. Estudos de língua oral e escrita. Rio de Janeiro: Lucerna, 2004. TOSCANO, M. E. S. A construção do texto falado e a construção dos sentidos: o caso da correção. Tese de doutorado. USP/São Paulo : 1999. ______. Aspectos não-verbais da dinâmica interacional: a entrevista de televisão. Moara: revista dos cursos de pós-graduação em Letras. Belém, nº 17, p. 49-59, jan/jun, 2002.
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ORALIDADE E ESCRITA EM CONTEXTOS DIVERSOS
Paula de Carvalho FERREIRA1 (Universidade Federal do Piauí)
RESUMO: Este artigo tem por objetivo descrever e analisar os usos de oralidade e de escrita na escola e na comunidade. O corpus é um recorte de uma dissertação de mestrado em desenvolvimento, e foi obtido a partir de uma pesquisa etnográfica, por meio da técnica de observação participante. A pesquisa constatou que o educando nas suas relações sociais, através de um exercício constante de usos da língua ou da linguagem expressa emoções, pensamentos e dialoga com o seu semelhante, constituindo assim um processo sociointerativo e comunicativo. Esses usos no contexto escolar restringem-se a atividades de escrita pautadas no exercício mecânico da cópia ou de resposta do livro didático, como “verdades” prescritas para serem digeridas por quem adentra aquele ambiente formal de ensino. O espaço reservado às atividades de oralidade é relegado ao plano do silêncio, pois o professor em um gesto canônico suprime essa atividade enquanto gerada pelo aluno. PALAVRA-CHAVE: Oralidade. Escrita. Usos. Escola. Comunidade.
ABSTRACT: This paper seeks for describing and analyzing the uses of speaking and writing inside the school and in the community. The corpus is part of a Masters degree thesis under development and was obtained through an ethnographic research with the use of the participant observation technique. The research found that the student, within his general social relationships, expresses emotions, thoughts, and dialogues through a constant usage of the tongue or the language as a communicative and socio-interactive process. Theses uses of tongue and language in school are restricted to writing activities based on the mechanical exercise of copying or answering the school book, as truths which were prescribed so that they can be digested for those who come into the formal teaching environment. The room for speaking activities is suppressed by the silence which is imposed through the teacher scanonic gesture of suppressing this activity from the student. KEY WORDS: Speaking. Writing. Uses. School. Community. 1
Mestranda do Programa de Pós-graduação Mestrado Acadêmico em Letras da Universidade Federal do Piauí.
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1. Introdução Oralidade e escrita é um tema bastante pesquisado, mas que ainda não se esgotou, nem tampouco se pretende neste breve artigo atingir tal proeza. A verdade é que essa dicotomia constitui as duas faces de uma língua, cujo funcionamento ocorre viabilizado pelas regras que as estruturam. Por sua vez, quando se pensa a escrita a partir da fala, diz-se que a escrita é a representação da fala, pensamento compartilhado inclusive pelo principal representante da Lingüística Moderna, Saussure (1975, p.34) quando afirma que a “Língua e a escrita são dois sistemas de signos: a única razão de ser do segundo é representar o primeiro”. Contudo, se sabe que a escrita não comporta todos os recursos expressivos da oralidade. Então, para se fazer representante da fala, a escrita tem que ter suas próprias estratégias, e mesmo assim, ainda não consegue atingir tal pretensão. Pois um sistema de escrita não é uma mera transposição dos elementos sonoros da língua, mas sim, um sistema que dispõe de regras previamente convencionadas, para tentar grafar um som natural em um suporte viabilizador de escrita (MASSINI-CAGLIARI, 1997). O presente artigo descreve e analisa os usos de oralidade e de escrita no contexto escolar e comunitário. Os resultados apresentados, analisados e discutidos neste artigo são oriundos de uma pesquisa desenvolvida na Unidade Escolar “Ambiental Quinze de Outubro” e na comunidade de fala da Vila Risoleta Neves, no ano de 2008. Ambas localizadas na zona Norte da cidade de Teresina-PI. Para atender aos objetivos propostos, o texto está estruturado em partes: a primeira parte contém uma reflexão sobre oralidade e escrita enquanto, dicotomia e trata ainda do evento comunicativo; na segunda verifica-se o conceito de escrita e de oralidade, apresentando-se em seguida, uma síntese do tratamento aferido a essa relação bem como uma nova perspectiva de estudo que contempla os aspetos sociais e lingüísticos, em contextos naturais de uso da língua na perspectiva Etnográfica; na terceira parte são analisados e descritos os dados da pesquisa, e na quarta, são apresentadas as conclusões do trabalho, além de algumas considerações finais sobre os usos de oralidade e de escrita aqui analisados. 2. Considerações iniciais sobre oralidade e escrita Definida previamente como uma oposição, a relação entre oralidade e escrita foi compreendida até 1980 (MARCUSCHI, 2001), como dois sistemas distintos cujo resultado foi considerar a oralidade inferior à escrita. Para isso, alegava-se dentre outros fatores que a oralidade é dependente do contexto imediato de produção, enquanto a escrita possui certo grau de autonomia sobre este contexto. Desse modo, a oralidade poderá sugerir uma aproximação entre os falantes, enquanto a escrita, um distanciamento. Daí a oralidade exigir dos atores a presença face-a-face, o que é dispensado na escrita, exigindo-se nesta, em contrapartida, mais precisão e autonomia para suprir os recursos que a conversa presencial requer dos interlocutores, tal como o uso dos paralingüísticos: expressões faciais, gestos e tonicidade da voz. O contexto de usos da língua é uma possibilidade de investigação dos elementos lingüísticos e nao-lingüísticos que a vertente dicotômica de estudo sobre essa relação não considera. Com isso, surge a corrente que defende o continuum entre ambas, a qual não se prende somente aos elementos constituintes de cada modalidade. Neste caso específico, a abordagem da oralidade e da escrita destaca o papel dos sujeitos usuários dessas duas modalidades de uso da língua, sem dissociá-las. Considera-se assim a existência de um continuum, conforme proposto por Tannen (1982a apud MARCUSCHI, 2001). Nesta perspectiva, o usuário da língua perpassa por ambientes diversos de emprego da língua que variam desde uma saudação cordial a um amigo a uma entrevista formal de emprego. A este respeito, assevera Marcuschi (2001, p.23), que se deve considerar “um continuum de relações entre modalidades, gêneros textuais e contextos socioculturais” para que se possa questionar o modelo dicotômico até então dominante.
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Nesse sentido, o sujeito que participa de eventos tanto de oralidade como de escrita tende a fazer uma adequação da linguagem que ora será informal, como por exemplo: a conversa entre amigos em um jantar, e ora será formal, como a linguagem que se usa em uma assembléia da associação de moradores de um bairro. Conforme se pode ler a seguir: A linguagem diferente é empregada em situações diferentes, de modo que podemos dizer que uma língua não é uma coisa uniforme [...] Toda a gente é multidialetal e multiestilística, no sentido de que adapta o seu estilo de falar à situação social em que se encontra. É intuitivamente claro, por exemplo, que um rapaz não fala da mesma maneira com os seus professores, com os seus pais, com a namorada ou com os amigos no recreio. [...] (STUBBS, 1987, p. 51).
Os eventos comunicativos de oralidade e de escrita documentam os múltiplos estilos lingüísticos, através dos quais os usuários de uma língua se comunicam. Esses eventos possuem suas regras inerentes de organização, evidenciando conseqüentemente que a comunicação humana é ritualizada a partir das regras e dos limites que os caracterizam. Veja-se o caso da conversa telefônica, como é exemplificado no texto de Saville-Troike (1984), que é um tipo de diálogo cuja abertura se dá pelo início do toque do aparelho físico. No nosso caso, pode-se acrescentar que durante a conversa, há outras regras típicas de telefonemas como a expressão ‘alô, tá me ouvindo?’. E ao término da comunicação, há o fechamento por meio das despedidas. Devido aos limites e à organização estabelecidos nos eventos comunicativos, pode-se observar os diferentes comportamentos dos falantes e as variedades de linguagem ou língua por eles utilizados, os quais variam conforme varia o evento, seja ele já conhecido da comunidade ou que virá a sê-lo. De acordo com Saville-Troike (1984, p.134), o “evento comunicativo é uma entidade limitada de alguns tipos”, havendo indicação dessa limitação de tal sorte que se sabe quando se inicia e quando se encerra um evento comunicativo. Dito isso, se vê que o evento comunicativo comporta os seguintes componentes, que são: Um gênero (piada, história, palestra, cumprimentos e conversas), o tópico, ou foco referencial, o propósito ou função, ambos do evento em geral e em termos de objetivos interacionais dos indivíduos participantes, o cenário, incluindo o local, hora do dia, estação do ano, e aspectos físicos da situação (ex: tamanho do cômodo, organização da moradia), os participantes incluindo suas idades, sexo, etnia e classe social, ou outras categorias relevantes e suas relações uma com a outra, a forma de mensagem incluindo canais vocais e não vocais, e a natureza do código que é usado (por exemplo: que mensagem e que variedade), o conteúdo da mensagem, ou a superfície que nivela as referencias denotativas. Sabe-se o que é comunicado, a seqüência de atos ou ordenação de atos de discurso comunicativo incluindo revezamento ou sobreposição de fenômenos, as regras de intenção ou que propriedades deveriam ser observadas e as normas de interpretação, incluindo o conhecimento comum, as pressuposições culturais relevantes ou entendimentos compartilhados que permitem inferências particulares para serem desenhadas sobre o que é para ser tomado literalmente ou descontado (SAVILLE-TROIKE, 1984, p. 137).
O autor esclarece que nestes eventos há mudanças, principalmente nos turnos de fala. Logo, é possível se perceber em um evento a oscilação dos tons de vozes, das variedades de linguagem, dos papéis dos participantes, seguindo seu grau de importância no evento. Para tanto, em eventos comunicativos, transmitem mensagens tanto pela forma verbal quanto pela não-verbal, empregam-se códigos, a língua em suas modalidades oral e escrita. Ao realizarem a comunicação não-verbal é fundamental a observação de fatores como o silêncio e os fatores paralingüísticos, pois em uma situação como esta, o silêncio poderá ter algo a dizer. Gestos como ficar de pé ou sentar-se podem também comunicar aspectos ritualizados dos eventos, sobretudo dos religiosos. No cenário dos eventos comunicativos, é importante destacar a mudança de papéis dos participantes. Tais papéis não são fixos e junto com a sua dinamicidade tem-se a mudança dos questionamentos, a qual segue às regras estabelecidas, conforme as ações a serem praticadas. Por conseguinte, os participantes já conhecem a rotina do evento e sabem que, por exemplo, quando o padre diz “oremos”, durante a celebração de uma missa, tal expressão requer deles, o ato de levantar-se.
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Nesse sentido, pode-se dizer que os limites ou regras de um evento são os indicadores comportamentais dos falantes de uma língua e que estas regras ora abrem-no, ora fecham-no. Á despeito disso, leia a citação de Saville-Troike: Formal ritual events in a speech commnity have clearly defined boundaries than informal ones because thee it a high degree of predictability in both verbal and non-verbal content of routines on each occasion and they are frequently set off from events which precede and follow by changes in vocal rhyhm, pitch, and intonation (SAVILLE-TROIKE, 1984, p.135-36).
Considerando que cotidianamente, os falantes de uma língua ao realizarem atividades diversas, interagem ao mesmo tempo, através desses eventos comunicativos na forma oral e escrita, convém que se conceitue, discutindo o que vem a ser cada uma dessas partes da língua. 2.1. Oralidade e escrita Nos parágrafos que se seguem, serão tratados os conceitos de escrita e de oralidade bem como do tratamento aferido à relação oralidade-escrita, além de relatar a abordagem etnográfica nos estudos sociolingüísticos. As sociedades que adotaram um sistema de escrita, antes de conhecê-lo, transmitiam e comunicavam suas idéias, pensamentos e valores predominantemente pela modalidade oral da língua. Porém, à medida que avançaram em suas formas de comercialização, sentiram a necessidade de somar aos seus inventos, outro elemento cultural, no caso a técnica da escrita, o que lhes possibilitou lançar um novo olhar sobre o mundo e suas relações com os seus semelhantes. Inclusive, as transações comerciais de compra e venda passaram a ser controladas pelo registro escrito, assim como o prolongamento das informações como um todo. Dessa forma, assevera Cagliari (1989, p.112), que a “escrita seja ela qual for, sempre foi uma maneira de representar a memória coletiva, religiosa, mágica, científica, política, artística e cultural” de um povo”. Do exposto pode-se conceituar a escrita conforme Martinet (1975, p.4), como sendo “signos picturais ou gráficos correspondentes aos signos vocais da linguagem”, usados pelas sociedades há bastante tempo. Enquanto Higounet (2003, p.9-11), compreende-a como algo além de um instrumento, conforme se segue: a “escrita é mais que um instrumento. Mesmo emudecendo a palavra, ela não apenas a guarda, ela realiza o pensamento que até então permanece em estado de possibilidade”, embora o autor admita que a escrita é a possibilidade de materializar o pensamento, esta consiste conforme suas palavras, no “estudo de uma técnica”. Enquanto a escrita é um invento cultural inspirado, em alguns casos, na modalidade oral da língua, esta última é uma maneira natural e primitiva usada pelo homem para se comunicar e, segundo Marcuschi (2001, p.25-26), “manter-se integrado em processo de comunicação a partir das produções diversas de textos orais e escritos”. Daí, ser a oralidade a forma inicial de se comunicar idéias, pensamentos, identidades e valores de um grupo social, o que significa que, antes de ir à escola apreender as habilidades de leitura e de escrita, o educando há tempo que interage oralmente, no interior do grupo do qual faz parte. Por ser um elemento cultural e ter surgido sob o controle de pessoas abastadas, a escrita sempre tem um lugar de destaque nas sociedades que a adotam e serviu desde seu surgimento, como um divisor de status social. A conseqüência disso é melhor entendida, quando se verifica a dicotomia fala-escrita, em que à fala são atribuídos aspectos que a caracterizam quase sempre como de estrutura menos complexas do que as estruturas da escrita. A fim de se visualizar essas atividades com seus atributos ao longo do tempo, veja-se no quadro a seguir, uma sinopse dos estudos sobre a relação oralidade e escrita, baseada nos estudos do Prof. Marcuschi (2001).
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Quadro 1: Sinopse da relação oralidade e da escrita
Fonte: Arquivo pessoal.
A partir da construção desse quadro pode-se aferir que é através da concepção dicotômica da língua que se tece as características peculiares à fala e à escrita, sem se admitir um vínculo entre ambas. Neste sentido, há uma análise centrada no código e nos elementos lingüísticos, a qual deu origem a primazia da escrita sobre a oralidade e também o estabelecimento de uma norma lingüística única, onde se percebe a fala como o lugar do erro e a escrita como o bom uso da língua. Por sua vez, a corrente culturalista dividiu os povos em civilizados e primitivos. Tal fato ocorreu porque a forma de refletir sobre a língua consistiu em identificar as transformações das sociedades usuárias ou não de um sistema de escrita. Pensar a língua a partir dos seus aspectos variacionista é perceber que, em se tratando de usos da língua, enquanto um conjunto de normas concorrentes, não há porque se mostrar as diferenças entre as duas modalidades que a constituem, mas sim mostrar que, por meio da variação, uma das normas lingüísticas estabelecer-se-á como padrão, uma vez, que todos elas não podem ocupar tal posto. Os falantes de uma língua vivem em processo constates de comunicação e interação. Então, não se pode dissociar da língua esse caráter dialógico, isto é, da linguagem compartilhada pelos atores engajados em contextos comunicativos e sociointeracional, que concede à língua, um valor dinâmico, através do qual a diversidade textual é produzida em co-autoria para que se extraia o discurso e o sentido. Por fim, embora a escrita, ao longo de sua trajetória, tenha conseguido se sobrepor à fala, esta sempre será uma forma de comunicação que não se deixa substituir por nenhuma espécie de tecnologia. Logo, onde a modalidade escrita estiver, terá ao seu lado, a sua contraparte, a fala, a
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oralidade. Neste caso, não se deve atribuir valor diferenciado a nenhuma delas, mas, antes, reconhecer que ambas são formas de comunicação adequadas às circunstâncias reais de uso da língua. Eis aí, o continuum entre a fala e a escrita, por exemplo, ao se tratar de uma conferência dirse-á que há ali uma modalidade oral da língua bem próxima da escrita. Em situação contrária, como por exemplo, diante de um texto escrito, que pode ser uma carta pessoal ou um bilhete, tratar-se-á de uma escrita bem próxima da fala (MARCUSCHI, 2001). Haja vista se considerar agora o continuum entre as modalidades de uso da língua e a compreensão que se teve da linguagem como interação, nos contextos reais de uso da língua, a Etnografia é uma abordagem teórica que visa subsidiar os estudos desses usos bem como os cenários de interação e comunicação entre os falantes da língua. A Etnografia, enquanto instrumento de pesquisa lingüística, consiste conforme Erickson (1988, p. 01), em “documentar e analisar aspectos específicos das práticas da fala” numa perspectiva natural de uso da língua. Assim, a obtenção dos dados ocorre, via de regra, por meio da técnica de observação participante in loco, em que o observador convive com a comunidade pesquisada. Portanto, o trabalho necessita da confiança estabelecida entre ele e os sujeitos, de modo que, os dados representem a realidade por eles vivida (cf. EZPELETA et al.1986). A escolha desta metodologia deve-se à viabilidade da construção, conforme Rockwell et al. (1986, p.35), “do processo teórico simultâneo à pesquisa empírica [...] que é importante para a construção de novos objetos de conhecimentos”, a partir da documentação da realidade estudada, bem como pela própria inserção do pesquisador na comunidade dos sujeitos, situação esta que melhor lhe permite ver o seu objeto de estudo, a cultura, e os valores sociais do grupo em estudo, que se complementam, conforme John Ogbu (1980, apud ROCKWEL et al. 1986, p. 43) com a “ecologiacultural” servindo para associar aos aspetos educacionais formais, os aspectos econômicos a partir da “unidade adequada para um estudo etnográfico, o bairro”. Nesse sentido, faz-se necessário um estudo centrado no foco do significado segundo a perspectiva de Erickson (1988, p. 8), que admite “[...] identificar os significados, do ponto de vista dos atores nos eventos observados.” Dessa forma, o referido autor diz que: A etnografia está especialmente interessada naqueles aspectos do significado que não podem ser obtidos diretamente de informações. Isto envolve usar a observação direta para gerar inferências em relação a ações habituais, julgamentos e avaliações, em que estariam fora do julgamento consciente, tais como o uso habitual de ironia ou indiretividade metafórica, ou inferências sobre julgamentos ou avaliações em relação ao uso de vários dialetos ou registros em uma situação particular (ERICKSON, 1988, p. 8).
Então, a partir da compreensão de usos da língua em contexto natural de ocorrência, criouse a contraparte dos estudos dedicados à língua, enquanto forma abstrata e descontextualizada, mostrando assim, que: A unidade fundamental de observação é a situação, a cena do desempenho da fala em que o pesquisador deve utilizar a observação participante ou o gravador para documentar um uso que ocorre naturalmente e então verificar as influências sobre o significado social das escolhas estilísticas [...] (ERICKSON, 1988, p.9).
Daí a necessidade de se estudar as situações de interação verbal e não-verbal, onde os atores tendem a obedecer às regras de estilização nos eventos de fala, tal como levantar um brinde, realizar votos de casamento, e outros. (cf. ERICKSON, 1988). Assim, tais eventos são manifestações da competência comunicativa do indivíduo que interage no interior de uma sociedade. A Etnografia, na sociolingüística, tem por objetivo, segundo Erickson (1988, p.12), “identificar como se distribui a competência comunicativa dentro de uma população pesquisada”. Corroborando com essa idéia, Costa (1988), diz que: “[...] uma língua ou fala comporta não apenas aspectos exclusivamente lingüísticos, mas também aspectos socioculturais de modo que língua e sociedade não estão numa mera relação de causa e efeito de direção única, mas numa relação de mútua determinação [...]” (COSTA, 1988, p.10).
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O que leva Costa (1996), a entender que a sociolingüística à medida que constata, de forma sistemática, a relação entre língua e sociedade no interior do contexto social dessas relações, ocupa-se de investigar temas voltados para os dialetos, bilingüismo, multilingüismo, diglossia, variação lingüística, atitude lingüística, de língua padrão, de identidade lingüística, de competência comunicativa, de eventos comunicativos, de evento de escrita, de intenção verbal, de uso e valores da fala e da escrita. 3. Análise dos dados A linguagem compreendida como uma atividade verbal está relacionada com as demais atividades realizadas diariamente pelas pessoas, nos diversos lugares e no interior das relações sociais. Ir ao banco, à igreja, ao mercado, à feira, ao botequim tomar uma dose de pinga com os amigos são atividades sociais, que exigem dos falantes da língua, um conhecimento variado das modalidades estilísticas, as quais são mediadas tanto pela oralidade como pela escrita, segundo as conformidades das circunstâncias comunicativas. Neste sentido, o presente corpus foi coletado em atividades de oralidade e de escrita nos contextos escolar e comunitário, durante o processo de interação entre os sujeitos do universo pesquisado. A seqüência para análise dos dados segue dois pontos a se considerar: a oralidade no contexto escolar e comunitário e os usos de escrita nestes referidos contextos. 3.1. A oralidade no contexto escolar e comunitário No primeiro ponto selecionado para análise: a oralidade no contexto escolar e comunitário observou-se que no contexto escolar, a oralidade não constitui o ponto de partida para uma reflexão consciente do educando. Isso se evidencia na fala da professora, conforme se lê a seguir, que se dirige aos seus alunos em sala de aula, durante as atividades de aprendizagem de leitura e de escrita da língua portuguesa: “Vocês têm toda liberdade para conversar, mas aqui dentro não... lá fora”. Porém, na comunidade, a situação é diferente porque o grupo social vive em situação de comunicação e interação. Assim é comum a conversa na porta de rua, na partida de futebol, nos templos religiosos, como mostram os exemplos a seguir: Exemplo1: conversa de porta de rua
Cunhada: – é dia de domingo? Ela faz é todo dia comida especial... essa daí.... Dona da casa: – hum ((risos)) Cunhada: – não tem dia marcado não... a compra dela é pesada.. de tudo... Dona da casa: – no dia que me dá vontade... ó... no dia que me dá vontade... qu’eu gosto de cozinhar e faço ligeiro demais... Filho: – mãe... queimou o feijão... Mãe: – queimou fie? Menino.. eu fui d’agorinha lá... deixa lá... depois eu vou ajeitar...
Nesse evento, o propósito da comunicação é a manutenção da integração social das pessoas por meio de um diálogo informal. Neste caso, trata-se de um evento informal, cuja mensagem se dá oralmente em tempo real e face-a-face. Os interlocutores estão discutindo sobre problemas familiares, tipos de comidas, compras, local de moradia. O recorte acima descrito, registrou uma discussão sobre comida em dias especiais, sendo que no cerne da discussão, o filho da proprietária da casa trouxe um papeiro com feijão queimado, que havia sido deixado pela sua mãe no fogo. Exemplo2: partida de futebol “A pelada”. O exemplo 2 retrata uma partida de futebol, a famosa “pelada”. A pelada é realizada tanto por adultos como por jovens e crianças na faixa etária dos 10 anos de idade. Neste tipo de interação, o grupo mantém-se coeso em atividade de lazer. A forma de mensagem aqui empregada também é oral. O recorte que se faz, contempla duas dessas peladas: uma de jovens, realizada na quadra da própria comunidade, e outra, de adultos, realizada na quadra do Parque da Cidade, situado ao lado da Vila Risoleta Neves.
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Anais do II Congresso Internacional de Estudos Linguísticos e Literários na Amazônia (CIELLA) Partida juvenil
Jogador jovem1 – foi mal, ô Marcos. Jogador jovem2 - Quem foi? Jogador jovem3 – Joga aqui pra trás. Jogador jovem4 – Vou já Jogador jovem2 – ei, tá doido? Jogador jovem1 – vem pegar Jogador jovem3 – aqui, Adriano. Partida adulta
Jogador adulto1 – dexa... dexa... Jogador adulto2 – pra ele... pra ele Jogador adulto3 – ei... ei... ei pra cá Jogador adulto4 – solta.. solta.. solta Jogador adulto5 – caralho.. rapa Espectador – mas rapa... não precisa... precisa... nem isso aí rapa Jogado adulto6 – aqui.. ô.. aqui ô... Espectador – ó que diaba... o é que ele quer segurar o Cascão... oia... ele de vez em quando segura o Cascão....
A pelada é realizada pelos membros da comunidade somente pelo prazer de brincar com a bola e com os amigos, conforme afirma o organizador do evento “a maioria aqui são os meninos da Risoleta... também aqui faz o complemento aqui da nossa pelada e também se não fosse eles não teria o jogo”. Os eventos mostrados nos exemplos 1 e 2, permitem aos usuários da língua portuguesa falada, no Brasil, o emprego de uma linguagem informal, por se tratar de usos da oralidade em contextos também informais, cuja finalidade é manter o grupo interagindo em meio ao seu convívio social. Após a descrição e análise dos usos de oralidade, passa-se ao item seguinte que aborda os usos da escrita na escola e na comunidade. 3.2. Os usos da escrita no contexto escolar e comunitário Com base em Basso (1974), (Lima (1996, p. 126), ao observar eventos de escrita, constatou que, a aula é um evento de escrita cuja mensagem se dá de forma oral e escrita, onde “O professor tem o monopólio da fala. (...) O aluno só deve falar quando solicitado pelo professor. Não é permitido aos alunos conversarem entre si. Devem copiar textos escritos do quadro de giz e dos livros-textos”. Dessa forma, compreende-se que na escola, o educando faz uso de uma escrita canônica por meio de exercícios repetitivos em que ele terá que copiá-la do quadro de acrílico ou do texto-lição, como se exemplifica abaixo: Exemplo1: Aula de língua portuguesa em uma turma de 7ª série da educação de jovens e adultos. Tema: Estudo de texto “Ah! Que saudades que eu tenho.. da Aurora, da Ingred e da Curitiba dos anos 70!”. A partir de certo número de 10 questões, a professora selecionou algumas, para serem respondidas por escrito. Observem as questões retiradas do livro-texto e as respostas dos alunos: Q1. Pode-se afirmar que o texto tem um tom confessional? Justifique sua resposta: R. Sim, era uma época dos anos 70 que jovens tinham participação na política e no regime militar e faziam movimentos estudantis. Q2. O texto mostra que o autor fala de Curitiba de forma ufanista. Retire do texto um trecho que demonstre tal afirmação. R. Se em nosso peito bate um coração que ama, este coração jamais haverá de negar o amor a essa terra. Se Curitiba não nos serviu de berço com certeza servirá de túmulo. Q3. Retire do texto um trecho que comprove que o autor era um jovem participante ativo dos movimentos políticos de sua época, citando o que era Regime Militar.
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Tema geral: Línguas e Literaturas: Diversidade e Adversidades na América Latina R.Tivemos o privilégio de pertencer a uma geração de jovens com intensa participação político-social. Campeava o regime militar. (Informante E)
Para proceder com essa atividade de escrita, o aluno dispõe do livro-texto, lápis, caneta esferográfica e de um caderno. Em seguida, de forma individual, passa a transcrever para seu caderno tanto as perguntas como as respostas. À despeito desse tipo de atividade explana o texto a seguir: A compreensão é considerada, na maioria dos casos, como uma simples e natural atividade de decodificação de um conteúdo objetivamente inscrito no texto ou uma atividade de extração de conteúdos. (...) Os exercícios de compreensão raramente levam a reflexões criticas sobre o texto e não permitem expansão ou construção de sentido, o que sugere a noção de que compreender é apenas identificar conteúdos. Esquecese a ironia, a análise das intenções, a metáfora e outros aspectos relevantes nos processos de compreensão (MARCUSCHI, 2000, p. 49).
No que diz respeito à metáfora, conforme sugere Marcuschi, percebe-se que no texto proposto para estudo pela professora, os termos “Aurora” e “Ingrid” são referências às mulheres com quem o “eu-poético” teria se envolvido em tempos de juventude. No entanto, não há na atividade proposta, nenhum questionamento que leve o aluno a verificar tais pistas para o estabelecimento de um sentido mais amplo ao texto. Em um paralelo que faz entre esses dois nomes femininos presentes no título do texto-lição, há uma metáfora, em que comportamentos sociais são relatados, consoante o que se lê a seguir: [...] bons tempos e não tão bons costumes, em que cada universitário namorava uma Ingrid e possuía uma Aurora. Ingrid, a donzela loura, casadoura, seios fartos e naturais, fogo contido vigidiadíssima pelos pais, que permitiam o namoro no sofá da sala, nas quartas feira e sábados [...] A Aurora, em vaivém percorria a Riachuelo e fazia o que Ingrid negava. Figura pequena, doce, sofrida e, eufemisticamente, diziam que tinha vida fácil! (VENTURI, 2007, p.04).
Disso, depreende-se que o ensino de língua portuguesa centra-se consoante Landsmann (2006, p.43), em “propriedades internas do sistema de escrita, seus conectores, sua sintaxe e sua semântica enquanto sistema notacional”, enquanto as propriedades instrumentais que remetem ao uso da escrita para atingir objetivos particulares, segundo a situação de uso nos quais são impressos aspectos culturais, esses passam despercebidos na prática docente. Exemplo2: Aula de língua portuguesa em uma turma de 3ª série da educação de jovens e adultos Tema “Frase”. A sistematização desse assunto ocorreu de forma mecânica, onde primeiro a professora registra-o no quadro de acrílico e simultaneamente, os alunos copiam-no, conforme se demonstra a seguir em: ‘Atividade de português’: Frase é a reunião de palavras com sentido completo. Observe: Que maravilha! Que belo dia! Esse tipo de frase é chamado de palavra-frase. Classificação da frase - as frases estão classificadas em: Afirmativa: expressa uma afirmação. Ex. Hoje, vou ao cinema. Negativa: expressa uma negação. Ex. Hoje, não vou ao cinema. Exclamativa: expressa uma admiração, espanto, dor, susto. Ex. Nossa, como você cresceu! Interrogativa: expressa uma pergunta. Ex. Como é o nome do seu filho? Imperativa: expressa ordem, pedido. Ex. Alice, leia este livro. Ex. feche a porta, por favor.
Na leitura que fez das frases escritas, a professora demonstrou pouco entusiasmo com a entonação. Então, ela alerta: “Olhem, tem que ver a voz quando fala”. Durante toda a aula, o silêncio imperou na sala, para dar lugar ao exercício da cópia. Concluída a primeira parte da atividade, veio o feedback a seguir, que constitui resposta de uma informante:
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Anais do II Congresso Internacional de Estudos Linguísticos e Literários na Amazônia (CIELLA) 1.Classifique as frases em afirmativa, negativa e imperativa: a) Nina gosta de ir ao cinema. (afirmativa ) b) Não quero estudar aqui. (negativa) c) Saia da frente do quadro, menina. (imperativa) d) Cristina, você comprou o vestido?(Interrogativa) e) Como você está elegante, Ana! (exclamativa) f) Que dia é hoje? (interrogativa) 2.Sublinhe as palavras-frases a) Tudo, ponto! b) Para que ler este livro? c) Que linda árvore! d) Que cão lindo! e) Que beleza! 3.Escreva uma frase: a) Exclamativa (eu vou hoje a Festa!) b) Interrogativa (será se eu vou sair amanhã?) c) Imperativa (menino vai pegar aquela pra mim) (Informante A)
Em relação ao item 3 do exercício de feedback, como se observa a resposta acima, é de uma aluna, que a professora não procurou tomar conhecimento. Vejamos o que essa aluna, doravante denominada aluna A manifesta em sua resposta. Como está copiada acima, todas as frases são iniciadas com letras minúsculas, constituindo segundo a norma padrão da língua, erro ortográfico, como o é também a grafia da palavra Festa, com letra maiúscula no final da primeira frase. O enunciado da frase (c) está incompleto, possivelmente por que seu sentido depende do contexto de fala. Isso acontece provavelmente por negligência da professora, ou por esta aula não se constituir no que se considera ensino de língua materna, enquanto um ponto de reflexão sobre a língua, como demonstra a resposta (c). Nesta resposta, há no enunciado, um aspecto pragmático intrínseco ao pronome dêitico (aquela), através do qual o interlocutor dirige o seu olhar para localizar o objeto na realidade referida. O item três foi escolhido para análise por ser, na atividade proposta pela professora, uma escrita autêntica do aluno, conforme consta no enunciado do referido item. Sendo os demais transcritos de um texto base. Salvo o item 3 comentado acima, toda a atividade desenvolvida na aula, inclusive o exercício teve seu conteúdo obtido pelo viés da cópia numa perspectiva tradicional dos estudos da língua materna, centrada apenas em aspectos gramaticais, que são questionamentos feitos, conforme assevera Travaglia (2001): O ensino de gramática em nossas escolas tem sido primordialmente prescritivo, apegando-se a regras de gramática normativa que, [...] são estabelecidas de acordo com a tradição literária clássica, da qual é retirada a maioria dos exemplos. Tais regras e exemplos são repetidos anos a fio como formas “corretas” e “boas” a serem imitadas na expressão do pensamento (TRAVAGLIA, 2001, p. 101).
Mediante as atividades de escrita (cópia) analisadas no curso deste texto, elas permitem considerar que, o código escrito apreendido pelo educando na escola, não atende aos anseios dele, junto as suas vivências de uso da escrita no seu grupo social, podendo inclusive ajudar a promover o analfabetismo funcional, conforme pondera Ferreiro: Iletrismo que é o novo nome dado a uma realidade muito simples: a escolaridade básica universal não assegura a prática cotidiana da leitura, nem o gosto de ler, muito menos o prazer pela leitura [...] É claro que estar “alfabetizado para continuar no circuito escolar” não garante estar alfabetizado para a vida cidadã. As melhores pesquisas européias distinguem cuidadosamente parâmetros como: alfabetizado para rua, alfabetizado para o jornal, alfabetizado para livros informativos, alfabetizados para a literatura (clássicos ou contemporâneos), etc. a esta lista temos de agregar agora: alfabetizado para o computador e para a Internet (FERREIRO, 2005, p. 16-17).
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Na comunidade, por seu turno, o uso que o educando faz da escrita, contempla uma função maior de anseio do grupo social. Para tanto, o educando troca correspondência entre os membros do grupo social do qual faz parte. A esse respeito, veja o depoimento a seguir: ... eu gostava MUITO é de escrever cartinha... assim quando eu comecei a namorar com ele ( ) eu fazia aquelas cartas imendada ( ) eu comprava um caderno... rasgava .. tirava as folhas ficava imendano fazia aquelas cartas BEM grandona de 2, 3 metro ( ) e eu não sei de onde... eu acho que tinha muito coisa errada ..mas foi uma coisa que sempre gostei de fazer carta....ler .. eu acho que era tudo errado qu’eu já começava assim.. dizeno qu’eu gostava dele .. as veis eu botava música na carta.. uma música que nesse tempo era do Revelação.. e eu botava muito... pegava na televisão aí comprava um cd e botava e ficava ouvindo e escrevia pra ele.. minhas carta mais era com música.. eu terminava dizeno qu’eu amava ele.. amava... amava .. do mei pro fim era só te amo... (Informante A. L).
Também, em suas atividades de comercialização, registra e controla o estoque de mercadorias, faz anúncio de produtos e serviços em geral, e recebe informações diversas por meio da escrita, sobretudo preces religiosas e meizinha. Os exemplos que se seguem mostram esse multiuso da escrita pelos informantes dessa pesquisa, em seu contexto comunitário: Exemplo3: Propósito da escrita, divulgar produtos e serviços A falta de trabalho formal leva os informantes dessa pesquisa a criarem formas alternativas de renda. Por conseguinte, o comércio é a atividade que mais se destaca. De forma precária, reservam um lugar na própria residência, para comercializar produtos e serviços, conforme consta na figura 1: Figura 1: Anúncio de produtos e serviços
Fonte: pesquisa direta. Exemplo4: Propósito da escrita, prece religiosa A religião predominante na comunidade de fala, é a católica. Para congregar vão aos domingos, à noite, à igreja da própria vila. Nesse evento, têm às mãos, um livrinho de preces religiosas. Após a celebração, levam-no consigo e geralmente colocam-no junto a algum símbolo cristão. A figura 2, ilustra uma prece junto a um terço, na parede da casa. Figura 2: Prece religiosa
Fonte: pesquisa direta.
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Exemplo5: Propósito da escrita, carta pessoal A carta pessoal, segundo depoimentos, vem sendo substituída pela tecnologia do telefone, mas, ainda assim, um ou outro informante pratica esse tipo de escrita. Na figura 3 podemos visualizar uma carta pessoal.
Figura 3: Carta Pessoal
Fonte: pesquisa direta. Na figura acima, a autora expressa seus sonhos para o futuro. Na verdade, essa carta é um desabafo pessoal, em que a autora expressa seus desejos por uma vida melhor.
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4. Considerações finais A partir da análise sobre os usos de oralidade e de escrita compreende-se que um grupo social possui a seu dispor as duas modalidades da língua, variando conforme o contexto de emprego de ambas. Todavia, a maior liberdade de expressão oral ainda predomina fora do contexto escolar, possivelmente porque, a escola não procura sistematizar o estudo da oralidade para a compreensão da escrita. Sendo comum, o fato de o professor priorizar esta última, via de regra, pelo simples ato de pôr o educando para copiá-la do quadro de acrílico ou do livro didático, sem a sua contraparte, a oralidade. Disso infere-se que a influência da dicotomia oralidade e escrita, ainda encontra lugar central no contexto escolar, uma vez que fora ela o divisor inicial entre essas modalidades, de modo que, à oralidade é atribuída e/ou reconhecida como o lugar do erro, já que a escrita é considerada o bom uso da língua. Nesse sentido, a escrita que a escola propõe-se a ensinar ao educando, tende a não atingir aos seus anseios de comunicação e de interação social, além disso, rompe com alguns objetivos propostos nos Parâmetros Curriculares Nacionais, tais como: expansão do uso da linguagem em instâncias privadas, utilização dos diferentes registros, inclusive os mais formais, conhecimento e respeito das diferentes variedades lingüísticas do português falado, entre outros. Deixando de cumprir esses objetivos, a escola permite que o educando saia do contexto escolar sem refletir sobre as várias formas de emprego da língua, conforme esperado na sua atuação na esfera social, na qual desenvolve atividades diversas, utilizando, sobretudo, a linguagem oral e escrita para tal fim. Nesse sentido, o aluno não toma conhecimento e muito menos vivencia atividades como o seminário, o debate, a palestra, a conversa informal, entre outros considerados como atividades características da escola, através das quais, sistematizaria a oralidade como ponto de partida para o estudo crítico dos elementos intercambiáveis entre oralidade e escrita. A contraface disso está em seu dia-a-dia, pois ao realizar atividades diversas, o educando pratica em sua comunidade, no interior do seu grupo social, os usos das atividades da língua oral e escrita. Usos estes que passam negligenciados pela escola, que prefere resumir o aprendizado das atividades de leitura e de escrita em um constante exercício de cópia, conforme depõe a informante: “... a não ser as cópias no colégio que a professora passa né... ela trabalha muito com escrita... a professora de português... ela gosta muito de passar muitas coisas sobre.. sobre o texto e aí às vezes ela manda a gente copiar várias coisas .. aí vai ficando cada vez melhor a escrita...”. Dessa forma, a escola deixa de sistematizar os aspectos da oralidade imbricados na escrita e vice-versa, os quais ajudariam na conscientização do educando sobre os valores sociais das práticas de oralidades e das práticas de escrita sem privilegiar a nenhuma dessas modalidades no seu processo de ensino-aprendizado. Portanto, o que se constata na escola, é uma concepção de escrita divulgada pelos manuais didáticos, de onde o aluno extrai freqüentemente respostas prontas. Assim, o educando não terá a linguagem empregada durante uma partida de futebol como objeto de reflexão em que ele possa avaliar os tipos de expressões empregadas naquela situação. Já em relação à escrita que pratica em sua comunidade, não a terá como algo reconhecido pela escola, porque tem arraigada a idéia de que a verdadeira escrita é aquela ensinada na e pela escola. Dessa forma, constata-se que os usos de escrita escolar são desvinculados dos aspectos sociais trazidos pelo aluno para a sala de aula. Conseqüentemente a dinâmica da língua não está sendo considerada no processo de ensino-aprendizagem das atividades de leitura e de escrita. É importante ressaltar a ausência de um espaço para construção das atividades lingüísticas numa perspectiva dialógica, entre professor e aluno, enfim em toda a comunidade escolar. Vale destacar que, na distribuição dos papéis sociais, na escola, a linguagem ocorre de forma assimétrica, onde aquele que possui o poder de autoridade, é quem fala, no caso, o professor, e o aluno, por sua vez, só escuta, reproduz, portanto copia. Nesse sentido é muito elucidativa a afirmação de Gnerre (1985, p.16), quando declara que “[...] a linguagem constitui o arame farpado mais poderoso para bloquear o acesso ao poder.”
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CHICO BUARQUE DE HOLLANDA: A PALAVRA E O POETA Paula Cristhiane da Silva OLIVEIRA (Universidade Federal do Pará)
RESUMO: O presente trabalho visa mostrar a relação íntima entre poeta e palavra. Esta relação será analisada a partir das composições de Chico Buarque de Hollanda. Buscando, também, mostrar a habilidade que este musicista tem ao lidar com elas, fazendo destas a principal matériaprima de seu trabalho. A palavra torna-se nas canções de Chico material poético e a extensão de seu ser que busca materializar seus ideais políticos, filosóficos e amorosos. Pois, esta é a sua arma e o seu escudo de luta, principalmente no período da Ditadura Militar, época de repressão e censura. Neste período a palavra transforma-se em instrumento de resistência. Dentro da poética de Chico a palavra assume um papel importante, ela é carregada de força e de sentido. Chico faz desta relação uma atitude política. PALAVRAS-CHAVE: Palavra; poeta; música; política; sociedade.
ABSTRACT: The present work aims at to show to the close relation between poet and word. This relation will be analyzed from the compositions of Chico Buarque de Hollanda. Searching, also, to show the ability that this amateur musician has when dealing with them, making of these main raw material of its work. The word becomes in the songs of poetical material Chico and the extension of its being that it searchs to materialize its ideals politicians, philosophical and loving. Therefore, this is its weapon and its shield of fight, mainly in the period of the Military dictatorship, time of repression and censorship. Into this period the word is changedded into resistance instrument. Inside of poetical of Chico the word it assumes an important role, it she is loaded of force and direction. Chico makes of this relation an attitude politics. KEY WORDS: Work; poet; music; politician; society.
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1. Introdução Este artigo tem por finalidade servir como fonte de estudos para aqueles que se interessam por música, poesia e por Chico Buarque de Hollanda. E mostra a relação de Chico com a palavra e a importância deste artista no cenário nacional das três décadas de ditadura. O presente trabalho. Cabe neste momento justificar a escolha de Chico Buarque de Hollanda como fonte de análise desta pesquisa, tal escolha deve-se, primeiramente, ao de fato de ser um dos maiores nomes do cenário artístico de nosso país, destacando-se na música popular e também literariamente (embora nenhuma análise será realizada sobre a produção literária de Chico). É importante observar que certas apreciações referentes às canções lhe aproximam muito da poesia, devido à maestria e cuidado com que foram compostas. Portanto, este trabalho objetiva analisar a produção musical de Chico Buarque registrando e reconhecendo tais obras como elementos artísticos, poéticos, políticos e ideológicos. Bem como reconhecer o caráter contestatório e de interação social que a música pode assumir, identificando as múltiplas utilidades que as composições desempenham nas práticas sociais e na tradição cultural de uma nação. 2. Palavra e poeta A palavra é a arma que o poeta possui para expressar de modo particular seu olhar sensível diante das inquietações do seu eu diante do mundo. A palavra é para o poeta o seu instrumento de resistência. A sua razão de ser, é por ela que o poeta tece o seu estado de espírito. E, neste sentido, Frei Betto define Chico como palavra: Chico é todo ele palavra. Esse é o seu reino, a sua matria, a razão de seu viver. Por isso a preserva tanto. Conhece o seu valor e cuida de não desperdiçá-la. Nele também o verbo se faz carne, e música, e texto e protesto. Por isso, preza tanto o espaço que o abriga: o silêncio, onde aprendeu com os monges a lapidar significantes e significados. (FERNANDES, 2004, p.53)
Chico faz da palavra a extensão do seu eu, é ela que materializa o espírito sofrido, insatisfeito, questionador ou incontrolavelmente feliz do poeta. A palavra eterniza o poeta e é por ela que se rompe o silêncio. Poeta e palavra se fundem como mesma substância de uma arte que é capaz de dar cores, formas, odores e vida aos nossos sentimentos ou a nossa capacidade de criar. A relação entre a palavra e Chico é definida por Júlio C. Valadão Diniz: A palavra, matéria de sua prima criação como poeta, toma a forma de flecha, aguda arma de grave consistência, que, lançada pela voz como arco. Ilumina com força e suavidade o mundo lírico e dramático de sua arte. A palavra do artífice funciona como uma estética da ética de seu criador [...]. (FERNANDES, 2004, p.263).
O poeta não existe sem palavra. A palavra é a essência de sua obra. Os versos são a matéria final do seu labor criativo. Chico tem consciência do que a palavra representa para ele, tanto que compôs uma canção intitulada “Uma palavra” na qual vai definindo as potencialidades e a sua relação com o mundo real. Palavra prima Uma palavra só, a crua palavra Que quer dizer Tudo Anterior ao entendimento, palavra
Esta canção exemplifica a força que a palavra possui e o que representa para o poeta, ela é tudo, está crua, vem antes do entendimento. Uma palavra que comporta o eu do poeta, que engendra a grandeza da vida, que é a matéria-prima da obra poética, pode ser dócil ou agressiva, pode está no silêncio ou no barulho, permeia o coração do pensamento, tem inúmeras feições que variam de acordo com a moldura que a suporta (verso/prosa). Sobre esta canção Valadão faz o seguinte comentário:
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Tema geral: Línguas e Literaturas: Diversidade e Adversidades na América Latina Uma palavra conduz a voz que se cala de um poeta já mudo, que se confessa sujeito e objeto da escrita, seu criador e sua criatura, escrevendo e sendo escrito. Essa voz dominada pela letra refugia-se na serenidade de sua interpretação da canção e permite que a força da enunciação verbal a substitua no centro do palco. A música é concebida num movimento cadenciado, de poucas alternações, repousada numa linha melódica suave e retraída na contenção dos acordes. (FERNANDES, 2004, p.265)
Outra canção que também estabelece a relação do poeta com a palavra é “A voz do dono e o dono da voz”, composta em 1981, na qual o compositor estabelece a difícil relação do músico com as gravadoras. Temos a oposição entre o criador, que vira criatura após atrelar-se a uma gravadora e aos produtores musicais. Diante desta situação quem é o dono da voz? Será que a voz pode ter outro dono que não seja o seu criador? Será que é possível uma gravadora capturar a voz de um artista e silenciá-la se assim o desejar? Até quem sabe a voz do dono Gostava do dono da voz Casal igual a nós, de entrega e de abandono De guerra e paz, contras e prós ... E o dono foi perdendo a linha – que tinha E foi perdendo a luz e além E disse: Minha voz, se vós não sereis minha Vós não sereis de mais ninguém.
As gravadoras têm grande influência sobre o cantor, tanto que nosso poeta usa a palavra para denunciar esse algoz cruel, Chico faz do seu instrumento de trabalho o seu órgão de defesa, os dois últimos versos mostram a sua rebeldia (Minha voz, se vós não sereis minha / Vós não sereis de mais ninguém) é categórico ao afirmar que a voz lhe pertence e que não será de mais ninguém. A voz e o dono são um casal que compartilham os bons e maus momentos, a entrega de um para o outro é tão intensa que não podem pertencer a mais ninguém. A poética é construída a partir das experiências circunstanciais das quais o poeta não pode separar-se. O poeta está inserido num período histórico-cultural, perpassa as transformações temporais e sociais, essa experiência pessoal estabelece a relação que o poeta tem com mundo e constrói as concepções políticas, humanas e religiosas que farão parte de sua poética. É por essa experiência factual que percebemos na poética de Chico a palavra como instrumento de rebeldia e de denúncia diante das mazelas sociais. É pela palavra que o poeta transubstancia o seu estado de espírito em poesia. É por ela que o poeta profetiza o futuro, que revive o passado, que canto os amores, que chora o presente e que sonha com o futuro. A palavra é o instrumento mediador entre o poeta e a sociedade, é por ela que se estabelecem as relações sociais, que o homem vive civilizadamente. É por ela que Chico desvela a realidade e rompe o silêncio. Chico é um artista das palavras, são elas que constituem seu mundo, um espaço construído por símbolos que representam os sentimentos, as frustrações, as esperanças. Os poetas nomeiam o mundo e os sentimentos, eles conseguem dizer o que pensamos e sentimos, lançam um olhar sobre a realidade e vêem o que não vemos, são sensíveis e apreendem do mundo as mais íntimas impressões transpondo-as para a superfície do papel: “[...] o poeta fornece a possibilidade de expressão simbólica as percepções, afetos e sentimentos não formulados e confusamente vividos; faculta a possibilidade de uma tradução desse mundo desarticulado em palavra, ofertando-nos o acesso ao mundo do simbólico.” (MENEZES, 2002, p.241). 3. Música, poesia e política A música e a poesia têm a capacidade de trazer a possibilidade utópica de transformação política e social, esta competência posiciona os dois estilos no campo do engajamento e da transformação como instrumento de mudança, sempre imbuída da temática lírico-amorosa, tornando-se porta-voz
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de uma consciência política e preocupada com os acontecimentos sociais. É o poeta que materializa os anseios dos cidadãos, ele é o dono da palavra portadora de indignação, de sofrimento, de amor, de paixão, de esperança, de coragem, enfim dos sentimentos humanos que norteiam a vida. Sendo o poeta dono da palavra e portador de consciência questionadora, ele faz da sua arte a extensão do seu eu. Exteriorizando o seu discurso político e engajado. Exerce simultaneamente uma função lírica e politizada por meio das canções de protesto, é o que Chico faz na canção “Agora falando sério”: Agora falando sério Eu queria não cantar A cantiga bonita Que se acredita Que o mal espanta Dou um chute no lirismo Um pega no cachorro E um tiro no sabiá Dou um fora no violino Faço a mala e corro Pra não ver a banda passar ... Agora falando sério Eu queria não cantar Falando sério Agora falando sério Preferia não falar Falando sério
Esta canção refaz a trajetória de Chico, na qual assinala o fim da fase de bom moço: cantar as coisas belas e ter lirismo ingênuo. Estes sentimentos são abandonados, refugiando-se do engano e do desencanto para o silêncio. Deste silêncio surge uma radicalização da imagem do intelectual de resistência. A partir da reconstrução da imagem do poeta, há um deslocamento das composições para um lirismo autêntico. Autenticidade que o leva a “falar sério” a tratar da problemática que acedia o homem. O poeta faz da palavra o seu instrumento de luta contra a opressão e a censura que corporifica em malandros, prostitutas, marginalizados, pivetes, operários e poetas delirantes a imagem das vítimas do sistema político-econômico. Chico não é apenas o portador da voz mediadora das insatisfações sociais e das reivindicações políticas que perpassaram as décadas de 60 e 70, mas é também referência de habilidade técnica e refinamento estético, é símbolo do paradigma músico/letrista. Chega as décadas de 80 e 90 transformado em clássico pelos ouvintes e pela crítica. Chico é todo palavra e musicalidade, sobre esta relação ele próprio afirma: “Com a maioria das músicas que eu faço, eu faço letra e música juntas. Nunca uma música pronta, nunca uma letra pronta, para ser depois completadas. É um momento uma criação só. Mesmo que depois eu vá acertar as pontas, todas elas nascem com letra e música juntas.” (SANT’ANNA, 2004, p. 2004). A música popular brasileira passou a ser o campo de tensão de intérpretes e autores que usavam a palavra como meio de participação política. É neste cenário que Chico ganha sentido e importância, sua obra sintetiza o imaginário popular, não por ser popular, mas por compreender o Brasil/brasileiro. Afonso Romano de Sant’Anna o compara a Carlos Drummond de Andrade, dizendo que ambos têm a essência romântica. Romantismo que se caracteriza pela espontaneidade e pela sensibilidade do homem brasileiro: “[Chico] Síntese do que se passa na música brasileira atual, síntese do que ocorre no inconsciente, na alma do brasileiro hoje: desencanto/esperança.” (2004, p. 163)
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4. A palavra profética Adélia Bezerra de Menezes (2002, p. 124) chama Chico de profeta embriagado, em sentido bíblico “aquele que denuncia, que contesta o poder, apontando as injustiças”. O profeta não é aquele que somente anuncia o futuro, é também aquele que denuncia o presente. A voz do poeta revela a crueldade do presente. Um presente que se confronta com o passado, trazendo um sentimentalismo nostálgico que se apodera do poeta: saudades do passado que parecia belo e medo do presente que se apresenta terrível na proporção que perdemos o domínio de nossa vida para “roda viva” (Cf. AGUIAR, 1993, p.41). Uma das canções que exemplifica a postura profética do poeta é “O que será”: O que será que será Que andam suspirando pelas alcovas Que andam sussurrando em versos e trovas Que andam combinando no breu das tocas Que anda nas cabeças, anda nas bocas Que andam acendendo velas nos becos Que estam falando alto pelos botecos Que gritam nos mercados, que com certeza Está na natureza, será que será O que não tem certeza nem nunca terá O que não tem conserto nem nunca terá O que não tem tamanho
Esta canção procura dá voz aos marginalizados. Evoca das sombras para a luz a face dos que não tem direito ao sol. A canção traz um questionamento sobre o que há no pensamento dos párias de nossa sociedade, sobre o futuro desconhecido aos amantes, aos poetas delirantes, aos bandidos, aos infelizes. O poeta/profeta coloca-se ao lado dos desfavorecidos, que não tem tamanho, sentido, nem juízo. É com espírito profético que interpretamos a letra desta música e abstraímos questionamentos que perfazem os espíritos insatisfeitos com sua situação e sentem-se inseguros diante do futuro estranho que lhes é apresentado. A postura profética de Chico é mais intensamente concretizada por meio da posição de denunciador que assume na canção “Apesar de você” na qual toma a palavra como meio de delatar os abusos de poder do regime militar. Esta palavra precisa de outro que a ouça com a finalidade de persuadi-lo. A relação íntima entre o poeta e a palavra se caracteriza pela junção destes dois elementos: um não existe sem o outro. Todos possuem a palavra, mas o poeta faz dela a extensão do seu eu. A palavra age sobre o leitor, é carregada de ideologias que mantêm interrelação entre emissor e receptor, utilizando o signo lingüístico como meio de modificar o outro. Este é o propósito de Chico ao se apropriar das palavras para expressar os versos: “Quando chegar o momento / Esse meu sofrimento / Vou cobrar com juros, juro” nos quais declara claramente a sua indignação frente aos desmandos do governo, denunciando as injustiças e corajosamente desafiando os algozes sociais e profetizando atitudes contraditórias e vingativas: “Vou cobrar com juros, juro”. O poeta utiliza a palavra como forma de expressar indignação, tristeza, medo, injustiça, mas é usada também para demonstra felicidade: “Você vai ter que ver / Amanhã renascer / E esbanjar poesia”. Poesia aqui tem sentido de beleza, de pureza, de prazer, de liberdade. Mesmo que esta felicidade seja a esperança de um futuro próximo ou uma promessa que apenas anime os espíritos. O poeta necessita da palavra, ela é sua riqueza, seu bem maior. Assim, o mundo do poeta é constituído por palavras que encontram no poeta a combinação perfeita e harmônica capaz de construir um mundo imaginário que ganha proporções do mundo real na fantasia humana da qual todo ser necessita para apaziguar os conflitos internos.
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5. O poder das palavras e a sua função social A palavra vincula a dinâmica social entre os indivíduos, as palavras vinculam as ações humanas. Assim, toda relação que o indivíduo/sujeito tem com outro indivíduo/sujeito passará forçosamente pela palavra. E munido desta arma o poeta torna-se um ser dotado de poder, capaz de transformar e interagir com o mundo que o cerca e com os seres que se apropriam de suas palavras. A palavra constitui a própria interação social, é por meio dela que abstraímos o sentido da vida que nos remete para nossas ações ou para nossa inércia. O poeta forma e é formado por palavras que adquirem proporções reais, sintetizam os valores e representam as imagens humanas. As relações sociais se estabelecem por meio de palavras, pois o homem é um ser social que necessita destas para instituírem as relações que norteiam a civilização. A palavra é um elo de ligação entre os homens. Desta forma, seu uso é indispensável para realizar as mobilizações sociais e promover as participações políticas que visem o bem comum: [...] o ser humano não e apenas um animal que vive, é também um animal que convive, ou seja, a ser humano sente a necessidade de viver mas ao mesmo tempo sente também a necessidade de viver junto com outros seres humanos. E como essa convivência cria sempre a possibilidade de conflitos é preciso encontrar uma forma de organização social que torne menos graves os conflitos e que solucione as divergências, de modo que fique assegurado o respeito à individualidade de cada um. (DALLARI, 1984, p. 16)
Os seres humanos possuem a mesma natureza, por isso deveriam usufruir dos mesmos direitos, entretanto, a sociedade é dividida em classes e as decisões sobre o que acontece com a sociedade fica restrita a uma pequena parcela que detém grande concentração de riquezas e possuem a eloqüência como arma de manipulação sobre a população carente que desconhece seus direitos e seus deveres. É por esta situação que possuir a palavra não é apenas saber usá-las adequadamente, mas utilizá-la com função social, fazendo valer o direito de ouvir e ser ouvido com a finalidade de promover igualdade social. Os poetas, que a partir da década de 60, envolveram-se com a causa social conscientes da capacidade de decisão que todo homem possui, passaram a retratar de temas sociais, as composições poéticas não tratavam só das inquietações pessoais dos poetas correlação ao mundo, mas do homem como parte de um todo, que tem a competência de influenciar socialmente, já que está inserido dentro da sociedade e toda decisão tomada neste ambiente exerce alguma conseqüência sobre todos. Cada indivíduo sofre influência da sociedade em que vive mas, ao mesmo tempo, exerce alguma influência sobre ela. O simples fato de existir, ocupando um espaço, sendo visto ou ouvido [...]. Por isso, todos os problemas relacionados a convivência social são problemas da coletividade e as soluções devem ser buscadas em conjunto, levando em conta os interesses de toda a sociedade. (DALLARI, 1984, p. 21)
Levando-se em conta o papel do homem na sociedade, não se pode aceitar que decisões que comprometem a vida de todos sejam tomadas por poucos. Cabe a todo cidadão tomar para si sua responsabilidade como membro da comunidade e participar da vida coletiva, respeitando as necessidades individuais e coletivas. É imbuído desta consciência que o poeta toma a palavra e faz dela sua arma para defender os interesses da população que são iludidos por discursos carregados de ideologias elitistas camufladas por palavras rebuscadas ou pela pressão psicológica. É tomando para si a postura de cidadão e membro da comunidade que Chico usa sua arte como meio de atuar socialmente nas decisões que afligem o povo. Tal atitude o torna um poeta social que utiliza a palavra para desenhar melodicamente a sociedade, extraindo das palavras a sonoridade e a expressividade que cada uma possui e que combinadas compõe canções poéticas. Em “Cálice”, de 1973, há o jogo verbal construído a partir do substantivo “cálice” que se assemelha a forma verbal imperativa “cale-se” e que analisadas sob óticas diferentes podem expressar informações distintas. Porém, na canção o caráter contestador do poeta é óbvio em todos os versos: Pai, afasta de mim esse cálice Pai, afasta de mim esse cálice
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(refrão)
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Tema geral: Línguas e Literaturas: Diversidade e Adversidades na América Latina Pai, afasta de mim esse cálice De vinho tinto de sangue. Como beber dessa bebida amarga Tragar a dor, engolir a labuta Mesmo calada a boca resta o peito Silêncio na cidade não se escuta. De que me vale ser filho da santa Melhor seria ser filho da outra Outra realidade menos morta Tanta mentira, tanta força bruta. Como e difícil acordar calado Se na calada da noite eu me dano Quero lança rum grito desumano Que e uma maneira de ser escutado. Esse silêncio todo me atordoa Atordoado eu permaneço atento Na arquibancada pra a qualquer momenta Ver emergir o monstro da lagoa.
No refrão, o verso “Pai, afasta de mim este cálice” pode ser entendido como o desejo do poeta em não participar do sofrimento de seus confrades ou pode ser interpretado como a vontade de afastar de si aqueles que aspiram seu silêncio. Para o poeta tragar a dor, engolir a labuta, acordar calado são formas de demonstrar a repressão contra a liberdade individual de manifestar a opinião sobre aquilo que nos incomoda. A canção é exemplo de uso da palavra como forma de participar socialmente, seja artística ou legalmente este é um direito garantido a todos e do qual o poeta faz uso, assegurando seu dever de cidadão e de poeta social que tece a palavra a favor de sua liberdade de expressão. 6. Conclusão Para concluir este trabalho é importante fazer uma última reflexão em torno dos objetivos traçados no início desta pesquisa e seu desenvolvimento, ressaltando os aspectos mais importantes referentes à obra de Chico. Inicialmente a proposta que compunha a elaboração deste trabalho era verificar as características e as relações pertinentes as letras das músicas de Chico Buarque enfatizando o caráter social e político que a música adquire na vida dos homens, podendo ser usada como fonte de informação histórica e ideológica e como instrumento de formação de cidadãos conscientes e ativos de sua sociedade por meio de poesias cantadas que revelam as múltiplas utilidades que podem exercer nas práticas sociais. Para isto, traçou-se a relação do poeta com a palavra, examinando a importância desta na sociedade e para o poeta. A investigação da relação entre música e função social deteve-se em relacionar o desempenho comunitário que as canções podem executar assumindo um compromisso social e político. Vimos que Chico é um importante letrista e músico, sua habilidade com a palavra lhe deu o título de poeta popular. E por fazer da palavra um utensílio de cunho político-cultural, foi definido como poeta social. Também foi adjetivado por artesão da linguagem, por causa do jogo vocabular e sonoro que em suas mãos adquirem formas e imagens a partir dos signos lingüísticos. Para consolidar a proposta inicial constatamos a relação íntima de Chico com as palavras que com ele ganham a dimensão poética, social, utópica e saudosista. A palavra pertence ao poeta, ele faz dela a extensão do seu eu. Utiliza sua matéria (sonora/escrita) para perpetuar sua existência e como forma de imortalizar-se, podendo vencer os obstáculos do tempo e do espaço.
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Referências AGUIAR, Joaquim. A poesia da canção. São Paulo: Editora Scipione, 1993. DALLARI, Dalmo de Abreu. O que é participação política. São Paulo: Abril Cultural / Brasiliense, 1984. FERNANDES, Rinaldo de (org.). Chico Buarque do Brasil: textos sobre as canções, o teatro e a ficção de um artista brasileiro. Rio de Janeiro: Garamond, 2004. MENEZES, Adélia Bezerra. Desenho Mágico: poesia e política em Chico Buarque. 3ª Ed. São Paulo: Ateliê Editorial, 2002 SANT’ANNA, Afonso Romano de. Música popular e moderna poesia brasileira. 4ª Ed. São Paulo: Editora Landmark, 2004.
Anexo AGORA FALANDO SÉRIO Chico Buarque - 1969 Agora falando sério Eu queria não cantar A cantiga bonita Que se acredita Que o mal espanta Dou um chute no lirismo Um pega no cachorro E um tiro no sabiá Dou um fora no violino Faço a mala e carro Pra não ver banda passar Agora falando sério Eu queria não mentir Não queria enganar Driblar, iludir Tanto desencanto E você que está me ouvindo Quer saber o que está havendo Com as flores do meu quintal? O amor-perfeito, traindo A sempre-viva, morrendo E a rosa, cheirando mal Agora falando sério Preferia não falar Nada que distraísse O sana difícil Como acalanto Eu quero fazer silêncio Um silêncio tão doente Do vizinho reclamar E chamar polícia e médico E a síndico do meu prédio Pedindo para eu cantar Agora falando sério Eu queria não cantar Falando sério
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Tema geral: Línguas e Literaturas: Diversidade e Adversidades na América Latina CÁLICE Gilberto Gil & Chico Buarque – 1973 Pai, afasta de mim esse cálice Pai, afasta de mim esse cálice Pai, afasta de mim esse cálice De vinho tinto de sangue Como beber dessa bebida amarga Tragar a dor, engolir a labuta Mesmo calada a boca, resta o peito Silêncio na cidade não se escuta De que me vale ser filho da santa Melhor seria ser filho da outra Outra realidade menos morta Tanta mentira, tanta forca bruta Como é difícil acordar calado Se na calada da noite eu me dano Quero lançar um grito desumano Que é uma maneira de ser escutado Esse silêncio todo me atordoa Atordoado eu permaneço atento Na arquibancada pra a qualquer momenta Ver emergir o monstro da lagoa De muito gorda a porca já não anda De muito usada a faca já não corta Como e difícil, pai, abrir a porta Essa palavra presa na garganta Esse pileque homérico no mundo De que adianta ter boa vontade Mesmo calado o peito, resta a cuca Dos bêbados do centro da cidade Talvez o mundo não seja pequeno Nem seja a vida um fato consumado Quero inventar o meu próprio pecado Quero morrer do meu próprio veneno Quero perder de vez tua cabeça Minha cabeça perder teu juízo Quero cheirar fumaça de óleo diesel Me embriagar até que alguém me esqueça A Voz do Dono e o Dono da Voz Chico Buarque - 1981 Até quem sabe a voz do dono Gostava do dono da voz Casal igual a nós, de entrega e de abandono De guerra e paz, contras e prós Fizeram bodas de ace......tato de fato Assim como os nossos avós O dono prensa a voz, a voz resulta um prato Que gira para todos nós O dono andava com outras doses A voz era de um dono só Deus deu ao dono os dentes Deus deu ao dono as nozes Às vozes Deus só deu seu dó
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Anais do II Congresso Internacional de Estudos Linguísticos e Literários na Amazônia (CIELLA) Porém a voz ficou cansada após Cem anos fazendo a santa Sonhou se desatar de tantos nós Nas cordas de outra garganta A louca escorregava nos lençóis Chegou a sonhar amantes E, rouca, regalar os seus bemóis Em troca de alguns brilhantes Enfim a voz firmou contrato E foi morar com novo algoz Queria se prensar, queria ser um prato Girar e se esquecer, veloz Foi revelada na assembléia-atéia Aquela situação atroz A voz foi infiel, trocando de traquéia E o dono foi perdendo a voz E o dono foi perdendo a linha que tinha E foi perdendo a luz e além E disse: Minha voz, se vós não sereis minha Vós não sereis de mais ninguém
O QUE SERÁ (A FLOR DA TERRA) Chico Buarque - 1976
O que será, que será? Que andam suspirando pelas alcovas? Que andam sussurrando em versos e trovas? Que andam combinando no bréu das tocas? Que anda nas cabeças, anda nas bocas? Que andam acendendo velas nos becos? Que estão falando alto pelos botecos? E gritam nos mercados que com certeza Está na natureza. Será, que será. O que não certeza, nem nunca terá? O que não tem conserto, nem nunca terá? O que não tem tamanho? O que será, que será? Que vive nas idéias desses amantes? Que cantam os poetas mais delirantes? Que juram os profetas embriagados? Está na romaria dos mutilados? Está na fantasia dos infelizes? Está no dia a dia das meretrizes? No plano dos bandidos, dos desvalidos? Em todos os sentidos. Será, que será. O que não tem decência, nem nunca terá? O que não tem censura, nem nunca terá? O que não faz sentido? O que será, que será? Que todos os avisos não vão evitar? Por que todos os risos vão desafiar?
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Tema geral: Línguas e Literaturas: Diversidade e Adversidades na América Latina Por que todos os sinos irão repicar? Por que todos os hinos irão consagrar? E todos os meninos vão desembestar? E todos os destinos irão se encontrar? E mesmo o Padre Eterno, Que nunca foi lá, Olhando aquele inferno Vai abençoar O que não tem governo, nem nunca terá? O que nao tem vergonha, nem nunca terá.? O que não tem juízo? O que será, que será, que será, que será....
UMA PALAVRA Chico Buarque - 1989
Palavra prima Uma palavra só, a crua palavra Que quer dizer Tudo Anterior ao entendimento, palavra Palavra viva Palavra com temperatura, palavra Que se produz Muda Feita de luz mais que de vento, palavra Palavra dócil Palavra d’água pra qualquer moldura Que se acomoda em balde, em verso, em mágoa Qualquer feição de se manter palavra Palavra minha Matéria, minha criatura, palavra Que me conduz Mudo E que me escreve desatento, palavra Talvez, à noite Quase-palavra que um de nós murmura Que ela mistura as letras que eu invento Outras pronúncias do prazer, palavra Palavra boa Não de fazer literatura, palavra Mas de habitar Fundo O coração do pensamento, palavra
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O PROCESSO ARGUMENTATIVO no editorial
Paulo da Silva LIMA (Universidade Federal do Pará)
RESUMO: Neste trabalho abordam-se questões referentes ao processo argumentativo no editorial. Apresentamse teorias da argumentação com base nos fundamentos retóricos de Aristóteles. A partir disso, percebe-se que os mesmos aspectos estudados por tal autor na Grécia antiga, ainda hoje podem ser identificados em textos de ordem argumentativa. Assim, identificam-se no corpus recursos retóricos e lingüísticos que servem para demonstrar que o editorial é um texto altamente argumentativo, já que o mesmo traz em sua essência a presença da ideologia pertencente à uma instituição jornalística. Palavras-chave: Retórica; Argumentação; Editorial.
Abstract: The article deals with issues relating to the argumentative process in the editorial. The argumentation theories are shown in this work based on the rhetorical principles by Aristotle. On this account, these same aspects once studied in ancient Greece can still be identified in argumentative texts today. Thus, it’s necessary to identify the rhetoric and linguistic resources in the corpus to demonstrate that the editorial is a highly argumentative text, since it brings in its essence the presence of an ideology which belongs to a journalistic institution. Keywords: Rhetoric; Argumentation; Editorial.
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Introdução Desde a Grécia antiga, as pessoas sempre tiveram a consciência de que a palavra pode se transformar em uma importantíssima ferramenta para a obtenção do respeito, da credibilidade e, em conseqüência disso, do poder. Foi a partir disso que, tendo suas origens com Górgias e posteriormente sendo estudada por Aristóteles, surgiu a retórica, uma disciplina que desde o seu nascimento se transformou em um campo de estudo de muita importância para as diversas áreas do conhecimento. Essa relevância da retórica que surgiu na Antigüidade e que perdurou durante todas as épocas continua muito forte nos dias atuais. Isso porque, nos recentes estudos que se fazem sobre a argumentação, encontram-se as mesmas técnicas retóricas que eram utilizadas nos ensinamentos de Aristóteles. Passando-se a encarar a retórica como uma área que pode estar presente em vários tipos de discurso, pode-se dizer que ela também tem possibilidades de ser identificada no discurso jornalístico, em nosso caso, no editorial. Por isso, pensando em discurso como algo que é utilizado para persuadir e convencer alguém sobre determinados fatos, pode-se afirmar que o editorial é um gênero textual altamente argumentativo, já que ele traz em sua essência a opinião e a posição ideológica da entidade jornalística a que pertence, discorrendo a respeito dos principais assuntos que são retratados no dia-a-dia de uma sociedade. Sendo assim, este trabalho tem como objetivo abordar questões referentes à retórica e aplicalas a um corpus para demonstrar como se dá o processo retórico-argumentativo no editorial. 1. As partes da retórica segundo Aristóteles 1.1. Invenção A invenção é a primeira parte que compõe a retórica e, portanto, tem a função de levar o orador a se valer dos argumentos e dos demais meios para que consiga provar a tese que vai defender. Dessa forma, uma das primeiras atitudes que precisa tomar antes de iniciar um discurso argumentativo, é pô-lo dentro do gênero a que pertence. De acordo com a concepção dos antigos gregos, os gêneros oratórios podem ser divididos em três partes. Assim haveria o Judiciário, baseado em valores que se referem ao justo e ao injusto, cujo público seria o tribunal. Por isso, sua função restringe-se a acusar ou defender. Além disso, esse tipo de gênero refere-se ao tempo passado, já que nele busca-se solucionar fatos que já ocorreram. Por outro lado, o gênero Deliberativo, fundamentado em valores correspondentes ao útil e ao nocivo, teria como público a assembléia ou senado e, assim, seria responsável por aconselhar e desaconselhar em assuntos que dizem respeito à cidade, como impostos, importações, paz, guerra, etc. Nesse gênero o tempo que predomina é o futuro, pois sua ação propõe-se a decisões e projetos para ações posteriores. O Epidíctico é o gênero que, inspirado em valores que dizem respeito ao nobre e ao vil, voltase para o público que assiste discursos pomposos, orações fúnebres, etc. Esse tipo de gênero tem a função de reverenciar o homem ou apenas uma classe dele, como pessoas mortas ou lendárias. Por isso, refere-se ao tempo presente, já que mesmo fazendo menção ao passado e ao futuro, o orador é admirado exatamente no instante em que profere o seu discurso. Os três gêneros do discurso oratório também apresentam diferenças quanto ao tipo de argumento que é usado em cada um deles. Por isso, no judiciário são empregados com freqüência os raciocínios silogísticos ou entimemas, pois nesse tipo de gênero que se refere às leis, há a presença de um público que é familiarizado com o assunto que é abordado. Por outro lado, no deliberativo, cuja função é presumir o futuro por meio de ocorrências já sucedidas, é mais propício que os argumentos sejam fundamentados em exemplos, pois o auditório desse gênero é composto por pessoas muito ágeis e pouco instruídas. No epidíctico, devido à platéia já possuir conhecimento a respeito dos fatos, recomenda-se o uso do argumento de amplificação e, com isso, a função do orador será a de dar importância e valor ao discurso que será proferido.
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Segundo (Reboul, 2004, p. 43), os três gêneros do discurso oratório podem ser apresentados no seguinte quadro:
Após ter-se definido o tipo de gênero a que se remeterá o discurso, o orador se incumbirá de encontrar os argumentos que sustentarão sua tese. Assim, de acordo com Aristóteles, há três espécies de argumentos que podem ser usados no ato da persuasão. O primeiro deles, de conduta emocional, denomina-se ethos. Este, portanto, refere-se ao caráter que deve ser assumido pelo orador para que consiga ter crédito perante o auditório, pois sem a confiança do público se torna difícil o alcance de uma boa argumentação. O segundo tipo de argumento, também de ordem emocional, denomina-se pathos. Este se define como o conjunto de sentimentos que o orador, por meio de seu discurso, deve provocar na platéia. Por isso, quem profere uma fala necessita saber utilizar bem o lado psicológico e tentar se adequar aos diversos tipos de público. Somente assim, conseguirá despertar no auditório as emoções que possam ajudá-lo a consolidar seu discurso. Diferentemente dos dois já citados, o logos tem o caráter racional e é uma espécie de argumento que se identifica exatamente pela materialização da argumentação que compõe o discurso. Por isso, nesse tipo de argumento encontra-se o entimema (silogismo) que se fundamenta no método dedutivo, com base em premissas prováveis. Há também a presença de argumentos indutivos que, por meio do exemplo, fazem menção a acontecimentos do passado para que sejam finalizados os futuros. Para consolidar uma argumentação o orador também pode se valer de provas extrínsecas e intrínsecas. As primeiras são mostradas anteriormente à invenção e se referem às confissões, leis, etc, ou seja, compõem todo um conhecimento exterior sobre o que se vai argumentar. Por outro lado, as provas intrínsecas fazem parte do método pelo qual o orador apresenta seu discurso e, por isso, são de inteira responsabilidade de quem emite um argumento. É interessante ressaltar também que as provas extrínsecas podem ser invertidas e transformadas em poderosos e eficazes argumentos de uma explanação intrínseca. 1.2. Disposição Diferentemente da invenção, a disposição pode ser classificada como um plano-tipo ao qual o orador usa como auxílio para produzir seu discurso. Assim, a disposição divide-se em quatro partes, sendo que cada uma delas desempenha papel essencial na construção de um ato argumentativo. A primeira parte da disposição recebe o nome de exórdio, pois é a partir dele que se inicia a fala do orador e sua função seria a de domesticar o auditório, ou seja, causar-lhe interesse em ouvir o discurso. Mais precisamente é o exórdio que tem a finalidade de deixar o auditório dócil, atento e benevolente. Tornar o auditório dócil seria precisamente deixá-lo em condições para aprender e compreender aquilo que será exposto. Por isso é interessante que o orador exponha seus argumentos de forma clara e breve. Deixar a platéia atenta seria basicamente mostrar que o assunto a ser tratado traz algo de interessante e por isso o público deve se sentir excitado para ouvir o que o orador tem a falar. Para tornar o auditório benevolente, seria necessário que o orador usasse com toda sapiência o seu ethos e, com isso, demonstrasse à sua platéia um caráter de alguém que merece ser ouvido. Assim, numa argumentação falada ou escrita, o exórdio possui uma função essencial, pois é ele a parte pela qual o orador inicia seu discurso.
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Seguindo com as partes da disposição, encontramo-nos diante da narração, isto é, o momento em que se expõe de forma bastante objetiva os fatos que dizem respeito à causa, levando-se sempre em consideração os argumentos que se referem a uma defesa ou a uma acusação. É pertinente afirmar que na narração o logos desempenha papel muito mais importante do que o ethos e o pathos. Sendo assim, a narração deve apresentar três características que são a clareza, a brevidade e a credibilidade. Nesse sentido, a clareza deve ser expressa de forma que os argumentos sejam bem organizados e bem empregados, havendo freqüentes retornos para recuperar e dar continuidade à argumentação. Para demonstrar brevidade, é necessário que o que possa ser constatado como inútil seja eliminado. Dessa forma, fatos sem importância e circunstâncias que nada esclarecem devem apenas ser usados para mostrar que na realidade retratam apenas aquilo que se deve estar falando. A credibilidade deve ser alcançada por meio da enunciação do fato e suas causas, relatando as finalidades entre o autor e seu caráter, ou seja, sobre o que se sabe e a respeito dele. A terceira parte da disposição é denominada de confirmação e sua função seria a de refutar e destruir os argumentos adversários por meio de um conjunto de provas. Na confirmação judiciária, a amplificação também desempenha papel importante, pois por meio dela é possível que se possa ampliar qualquer tipo de debate. Por isso, o logos, mesmo recorrendo ao pathos, desempenha função essencial na confirmação. Além disso, é interessante ressaltar que a narração e a confirmação podem muitas vezes estar juntas em um discurso, pois pode ser que uma argumentação seja regida em forma de narração, mas cada seqüência constituindo uma prova. De qualquer forma, essas duas partes da disposição possuem papel importante no discurso de um orador, mas ele não é obrigado a utilizá-las de forma sucessiva, pois o importante é que o locutor consiga persuadir sua platéia. Há também uma parte da disposição, a digressão, que consiste em distrair, mostrar piedade ou até de indignar o auditório. Ela é bastante usada com o intuito de provocar um relaxamento e pode ser instaurada entre a confirmação e a peroração. Para completar a disposição faz-se necessário a peroração, ou seja, aquilo que é posto no final do discurso. É também uma parte que demonstra suas divisões e por isso pode se apresentar de forma extensa. Portanto, sua divisão compreende primeiramente a amplificação, que consiste em demonstrar a gravidade de algum fato. Em seguida vem a paixão, ou seja, momento cujo objetivo é causar piedade ou indignação na platéia. Por fim, tem-se a recapitulação, isto é, parte em que se resume a argumentação. Para Aristóteles, além dessas duas partes já retratadas, a retórica também é composta pela Elocução e pela Ação. No entanto, neste trabalho não se dará ênfase a essas partes da retórica, pois com a exploração da invenção e da disposição, os aspectos relacionados à Elocução conseqüentemente também foram analisados. Quanto à Ação, por o corpus ser um texto impresso, vê-se que não há possibilidade de aplicá-la à presente pesquisa. 2. Análise de um editorial AS CAUSAS ESTRUTURAIS DA TRAGÉDIA Desastres de aviação, dizem os especialistas, sempre têm mais de uma causa. Com a tragédia do Airbus da TAM não é diferente. As causas são a incompetência, desídia, leviandade, ganância e corrupção presentes no sistema de transporte aéreo brasileiro. Perto desses fatores estruturais, eventuais falhas técnicas, ou do piloto, na origem da catástrofe de anteontem em Congonhas são dados acessórios. Essencial é o descalabro que permite o funcionamento a plena carga do maior aeroporto brasileiro numa área já abarcada pelo centro ampliado de São Paulo; a recusa das companhias aéreas em reduzir as suas operações ali, ou ao menos desconcentrá-las dos horários de pico; a submissão cúmplice da Agência Nacional de Aviação Civil (Anac) aos interesses das empresas que dominam o setor; a calamidade administrativa, a politicagem e a fraude endêmica na Empresa Brasileira de Infra-Estrutura Aeroportuária (Infraero). Tudo isso sob os olhos - e a responsabilidade objetiva - de um governo cujo presidente só quer ouvir o som da própria voz e continua a repetir hoje o que, horas antes do terrível acidente, admitiu fazer no passado - “a quantidade de coisas que eu falei e falava porque era moda falar, mas que não tinha substância para sustentar na hora em que você pega no concreto”. E que traça ele próprio o retrato
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Tema geral: Línguas e Literaturas: Diversidade e Adversidades na América Latina acabado de sua gestão ao confessar que “em determinados cargos (...) a gente faz quando pode e, se não pode, deixa como está para ver como é que fica”. No dia 29 de setembro do ano passado, 154 pessoas morreram no que foi, até às 18 horas e 45 minutos de anteontem, o maior desastre aéreo da história brasileira. Desde os 154 mortos da tragédia da Gol até as duas centenas de mortes desta terçafeira, descontado o palavrório entorpecedor de todos quantos têm parte com os problemas da aviação comercial no País - e com as possíveis soluções para eles -, continuou-se na estaca zero em matéria de “pegar no concreto” para melhorar os padrões de segurança de vôo no território. Para todos os efeitos práticos, “deixou-se como está para ver como é que fica”. Nesse quadro de falência dos poderes públicos e de voracidade de interesses privados, Congonhas - sem as chamas, os corpos e os destroços - é a síntese das incompetências e irresponsabilidades que marcam a administração pública brasileira. Em abril de 2005, um brigadeiro, Edilberto Teles Sirotheau Corrêa, denunciou a “obsessiva prioridade” dada pela Infraero “às obras que proporcionam ‘visibilidade’, em detrimento das necessidades operacionais”. De fato, gastaram-se R$ 350 milhões para modernizar esse shopping center no qual se transformou o terminal do aeroporto que, já em 2005, registrava 228 mil pousos e decolagens, 33 mil a mais do que o desejável pelos critérios internacionais. Em janeiro último, o Ministério Público Federal pediu à Justiça a interdição da pista principal de Congonhas. No mês seguinte, um juiz federal proibiu aviões de grande porte, como Boeings e Airbuses, de operar no aeroporto enquanto os problemas da pista não fossem sanados. Uma instância superior invalidou a decisão, considerando-a drástica demais e fonte de impactos econômicos negativos. Enfim, ao custo de R$ 19,9 milhões, a Infraero contratou o conserto da pista - e a liberou escandalosamente antes de nela serem acrescentadas as ranhuras transversais que asseguram o escoamento da água das chuvas e aumentam a aderência dos pneus dos aviões ao solo, facilitando a freada e reduzindo o risco de derrapadas como a que, na segunda-feira, arrastou por 150 metros, até o gramado próximo, um turboélice com uma vintena de pessoas a bordo, muito mais manejável do que um Airbus capaz de levar cerca de 180 pessoas. (Outro episódio, negado pela TAM, foi a arremetida, também na segunda-feira, de um aparelho da companhia, cujo comandante desistiu do pouso no último momento devido ao alagamento da pista.) As obras do grooving só poderiam começar na próxima quarta-feira. Pode ser que tenha contribuído para a tragédia do vôo 3054 um erro na manobra de pouso ou uma pane no sistema de freios do Airbus. Mas é certo que o desfecho seria outro se a pista tivesse plenas condições de segurança. Não as tinha e ainda assim era usada, em última análise, por incompetência, desídia, leviandade, ganância e corrupção. (O Estado de São Paulo, 19/07/2007)
Considerando as partes da retórica, tem-se inicialmente a invenção, fase em que o orador recorre aos argumentos e a outros meios para provar a sua tese. Assim, vê-se que no texto em análise o autor, objetivando um acordo pelo qual pudesse garantir a adesão dos leitores, recheia-se de conhecimentos e recursos, construindo, assim, um bom repertório a respeito das prováveis causas que poderiam ter ocasionado a tragédia do Airbus da TAM. Como bem assinala o texto, o autor mostra ter repletos conhecimentos sobre as limitações espaciais do aeroporto de Congonhas. Também demonstra saber que a ANAC, desrespeitando a segurança dos passageiros, permite de maneira irresponsável que as empresas operem os vôos em grande quantidade. É na invenção também que o orador deve aderir ao tipo de gênero que possa se adequar melhor a seu discurso. Como já comentado na parte teórica, os gêneros retóricos se classificam em judiciário, deliberativo e epidíctico. O editorial desta análise se enquadra melhor dentro do gênero judiciário, já que seu autor constantemente passa a acusar as possíveis causas e os responsáveis pelo acidente aéreo. Além disso, outro fator que leva a perceber as características do gênero judiciário nesse texto é a referência ao tempo passado, pois o autor emite suas acusações com o intuito de encontrar quem ou o que, de fato, teria causado o episódio já ocorrido. De acordo com os princípios aristotélicos, após o orador ter se preparado para a defesa de sua tese, fase que corresponde à invenção, faz-se necessário o início da disposição, momento referente ao planejamento e à organização do discurso, dando-se início a sua execução. Assim, como já exposto na fundamentação teórica, a disposição se compõe de quatro partes, sendo que a primeira é o exórdio, período inicial do discurso.
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Tomando-se o primeiro parágrafo do texto, observa-se que o autor cumpre exatamente a função do exórdio, pois, ao afirmar que, segundo os especialistas, as tragédias de avião ocorrem sempre por mais de um motivo, ele tenta excitar os leitores a quererem saber quais seriam as causas que teriam feito com que o Airbus da TAM explodisse matando tantas pessoas. Ainda na seqüência, o autor apresenta mais uma característica do exórdio, expondo de maneira clara e breve os seus argumentos e repassando, de forma geral, a finalidade de seu discurso. É o que acontece quando se afirma que as causas de tal tragédia seriam a incompetência, a desídia, a leviandade, a ganância e a corrupção; fatores que se fazem presentes no sistema de transporte aéreo do Brasil. Um outro fator referente ao exórdio que pode ser levado em consideração para que o auditório possa ser seduzido pelas palavras do orador corresponde ao ethos, caráter que o locutor deve assumir para alcançar a confiança de seu público. No primeiro parágrafo, percebe-se que o autor demonstrase preocupado e interessado em que se faça justiça em relação à morte das pessoas. Assim, ele usa argumentos pertinentes em suas acusações; além disso, ele demonstra ter plenos conhecimentos a respeito de tudo o que está acontecendo de errado com a aviação deste país. Uma outra questão que envolve o caráter desse autor diz respeito ao lugar de onde ele enuncia, já que ele representa a voz do jornal O Estado de São Paulo, uma das grandes empresas jornalísticas do Brasil. Notadamente isso faz com que o autor tenha crédito em sua argumentação. A segunda parte da disposição recebe o nome de narração. Esta se refere ao momento em que o orador apresenta objetivamente os fatos que condizem com as causas que proporcionam o assunto a ser defendido. Nessa fase o logos passa a assumir uma importância maior que o ethos e o pathos. No corpus observa-se que o autor apresenta, numa seqüência bastante definida, aqueles fatos que teriam ocasionado a tragédia com o avião da TAM. Pode-se perceber isso quando é afirmado no segundo parágrafo que: “Tudo isso sob os olhos - e a responsabilidade objetiva - de um governo cujo presidente só quer ouvir o som da própria voz e continua a repetir hoje o que, horas antes do terrível acidente, admitiu fazer no passado”. Em cada um dos parágrafos o autor expõe argumentos que condizem com a sua tese. Assim, em todas as partes as idéias são bem distribuídas e tornam o editorial um texto breve, já que todos os argumentos harmonizam-se num mesmo contexto. Isso pode ser percebido quando se faz referência ao acidente anteriormente acontecido com o avião da GOL e também quando são referidos os investimentos que foram gastos para a modernização do aeroporto de Congonhas. Apesar de esses fatos pertencerem ao passado, eles estão diretamente relacionados ao contexto da argumentação do jornal O Estado de São Paulo. Passado o período da narração, o orador vale-se da confirmação, parte em que se refutam e se destroem os argumentos adversários utilizando-se para isso um conjunto eficaz de provas. Aqui o logos assume uma função essencial. No corpus, após a afirmação do autor de que as causas da tragédia seriam a incompetência, a desídia, a leviandade, a ganância e a corrupção que estão imbuídas no setor aéreo, ele expõe as provas que sustentam a sua tese afirmando que o governo é culpado e cita a frase de Lula em relação a tal problema. Isso pode ser identificado no seguinte trecho: “a quantidade de coisas que eu falei e falava porque era moda falar, mas que não tinha substância para sustentar na hora em que você pega no concreto [...] a gente faz quando pode e, se não pode, deixa como está para ver como é que fica”. Isso mostra que o autor está confirmando que o governo é incompetente para reger o sistema aéreo brasileiro, já que o seu representante maior, o presidente da república, não sabe o que fazer diante da grave situação. Em seguida o autor usa mais um argumento que confirma sua tese e diz que desde o acidente da Gol e também com o da TAM, ouve-se o que ele denomina de “palavrório entorpecedor” daqueles que têm uma parcela de culpa nos problemas da aviação civil. Por isso, fica clara a afirmação de que tudo ficou na mesma e que nenhuma providência mais séria foi tomada para que se evitasse o acontecimento do dia 19 de julho de 2007. Numa argumentação ainda mais densa, o autor deixa transparecer que o acontecimento com o Airbus teve um conjunto de culpados incompetentes e gananciosos que não se importam com a vida de seres humanos. Por isso, o autor escreve no 3º parágrafo: “Nesse quadro de
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falência dos poderes públicos e de voracidade de interesses privados, Congonhas - sem as chamas, os corpos e os destroços - é a síntese das incompetências e irresponsabilidades que marcam a administração pública brasileira”. A disposição também é composta pela digressão, fase em que orador tenta distrair ou indignar o auditório. No corpus, vê-se a presença da digressão no final do terceiro parágrafo quando o autor menciona que, no início do ano em que aconteceu o terrível acidente, o Ministério Público Federal teria pedido à justiça que a pista principal de Congonhas fosse interditada e logo no mês seguinte os aviões de grande porte, igualmente ao do vôo 3054, foram proibidos de operar até que os problemas da pista fossem sanados. Mas, como se afirma no editorial: “Uma instância superior invalidou a decisão, considerando-a drástica demais e fonte de impactos econômicos negativos”. Isso dá a entender que o autor tenta indignar o leitor em relação ao descaso do governo que, interessado somente na questão financeira, arrumou um jeito de fazer com que o decreto do juiz fosse anulado, já que a não operação de Boeings e Airbuses poderia causar impactos econômicos negativos. Isso também mostra que o autor quer que o público possa aderir à tese de que não há preocupação com a vida dos passageiros, mas somente com o dinheiro que deles se pode faturar. Completando a disposição, tem-se a peroração, isto é, aquilo que se coloca no fim do discurso. Nessa parte o orador tem como objetivo demonstrar a gravidade dos fatos, causar indignação na platéia e também recapitular e resumir sua argumentação. Assim, nas linhas finais do editorial, o autor expõe os problemas da pista de Congonhas, onde foram gastos mais de R$ 19 milhões pela Infraero e mesmo assim o serviço principal que era a implantação das ranhuras transversais não foi feito, sendo a pista liberada para pousos e decolagens. Com isso, utilizando-se do pathos, o conjunto de sentimentos que o orador deve provocar na platéia, o autor apresenta a gravidade dos fatos e mostra a sua indignação em relação a tamanha irresponsabilidade por parte da Infraero, já que se as ranhuras tivessem sido feitas, talvez não teria acontecido a tragédia. De forma eficiente e recorrendo às funções da peroração, o autor faz a seguinte afirmação nos dois últimos períodos do texto: “[...] é certo que o desfecho seria outro se a pista tivesse plenas condições de segurança. Não as tinha e ainda assim era usada, em última análise, por incompetência, desídia, leviandade, ganância e corrupção”. Assim, o autor recapitula e resume o que foi mencionado no primeiro parágrafo quando afirmou que as causas de um acidente têm sempre mais de um culpado e que, segundo ele, seriam a incompetência, a desídia, a leviandade, a ganância e a corrupção dos que dirigem e se beneficiam do sistema aéreo brasileiro. Considerações finais Pelo que se abordou acima, pode-se dizer o editorial apresenta um alto nível de argumentatividade, mostrando que, nesse gênero opinativo, a empresa jornalística expõe sua própria ideologia em relação aos assuntos tratados no respectivo periódico. Assim, pela abordagem das partes da retórica, viu-se que o texto cumpriu bem os fundamentos aristotélicos, já que foi verificada a presença da invenção, da disposição e da elocução. Entende-se, assim, que durante o uso da linguagem há, conseqüentemente, o uso da argumentação. Por isso, pode-se dizer que a argumentatividade é um processo inerente à própria linguagem. Isso porque, ao falar, o ser humano expressa seu modo de pensar, de agir, de viver, de resolver certas situações e, com isso, impõe os seus desejos e sua ideologia. Assim, para conseguir conquistar a adesão do outro, o locutor tem de se valer das técnicas argumentativas, mesmo que ele não perceba isso. Dessa forma, aquele que souber utilizar melhor os princípios da argumentação terá muito mais chance de conseguir persuadir o seu interlocutor e, assim, implementar os seus desejos e suas aspirações por meio da linguagem. Deve-se ressaltar também que as propostas aristotélicas são cruciais no exercício da análise de textos argumentativos. Por isso, como se observou neste trabalho, desde a Antigüidade os princípios
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de Aristóteles vem sendo de grande valia para o entendimento do processo argumentativo. Assim, ao ser feita a abordagem das partes da retórica, pôde-se perceber que elas estão, ainda hoje, presentes nos textos de ordem argumentativa. Portanto, ficou bem clara toda a importância do editorial no contexto do jornalismo, já que nele se expõe a posição ideológica da empresa jornalística a respeito dos fatos que mais repercutem na sociedade. É também por meio desse gênero que muitos leitores passam a assumir determinados pontos de vista e a tomar certas atitudes dentro do meio social. Assim, o editorial é entendido como um texto, cujos argumentos são altamente carregados de intenções e finalidades, características essas que são capazes de transformar o leitor em um forte aliado na imposição de certas ideologias dentro da sociedade. Referências Amossy, Ruth. Imagens de Si no Discurso: A Construção do Ethos. São Paulo, Contexto, 2005. ARISTÓTELES. Arte retórica e Arte poética. São Paulo: Difusão Européia do livro, 1964. BELTRÃO, Luiz. Jornalismo Opinativo. Porto Alegre: Sulina, 1980. FIORIN, José Luiz. Linguagem e ideologia. São Paulo: Ática, 2004. FRANCO, Carlos Alberto di. Jornalismo, ética e qualidade. Rio de Janeiro: Vozes, 1995. MAINGUENEAU, Dominique. Análise de textos de comunicação. São Paulo: Cortez, 2005. MOSCA, Lineide. Retóricas de Ontem e de Hoje. São Paulo: Humanitas, 2001. ORLANDI, Eni. Análise de discurso – Princípios e Procedimentos -. São Paulo: Pontes, 2003. PERELMAN, Chaïn; TYTECA-OLBRECHTS, Lucie. Tratado da argumentação. São Paulo: Martins Fontes, 2005. PONTE, Cristina. Para entender as notícias: Linhas de análise do discurso jornalístico. Florianópolis: Insular, 2005. REBOUL, Olivier. Introdução à retórica. São Paulo: Martins Fontes, 2004. PLEBE, Armando; EMANUELE, Pietro. Manual de retórica. São Paulo: Martins Fontes, 1992. SOUSA, Jorge Pedro. Introdução à análise do discurso jornalístico impresso. Florianópolis: Letras Contemporâneas, 2004.
O PRÓPRIO E O ALHEIO EM EL DELIRIO DE TURING: REALISMO MÁGICO E FICÇÃO CYBERPUNK NO ROMANCE DE EDMUNDO PAZ SOLDÁN Rodolfo Rorato LONDERO (Universidade Federal de Santa Maria)
RESUMO: O objetivo deste trabalho é analisar o romance El delirio de Turing (2003), do escritor boliviano Edmundo Paz Soldán, principalmente a partir da sua relação com a ficção cyberpunk, subgênero da ficção científica surgido originalmente no contexto norte-americano dos anos 1980. Esta relação aparece, desde já, nas epígrafes da obra, onde um escritor cyberpunk (Neal Stephenson) é citado: na verdade, duas obras deste escritor, Nevasca (1992) e Cryptonomicon (1999), surgem como referências intertextuais em El delirio de Turing. Mas Paz Soldán, como integrante da geração McOndo – uma paródia globalizada a Macondo de García Márquez –, também trava um intenso diálogo com seus antecedentes latino-americanos, os escritores do realismo mágico. É nesse embate entre o próprio e o alheio (Carvalhal), entre as referências literárias latino e norte-americanas, que buscaremos compreender a obra de Paz Soldán. PALAVRAS-CHAVE: Ficção cyberpunk; Realismo mágico; Literatura comparada;
ABSTRACT: The objective of this paper is to analyze the novel El delirio de Turing (2003), by Bolivian writer Edmundo Paz Soldán, mainly in it relationship with the cyberpunk fiction, subgenre of science fiction appeared originally in the North American context of 1980’s. This relationship appears, at once, in the epigraphs of the work, where a cyberpunk writer (Neal Stephenson) is quoted: actually, this writer’s two works, Snow Crash (1992) and Cryptonomicon (1999), appear as intertexts in El delirio de Turing. But Paz Soldán, as member of McOndo generation – a globalizated parody of García Márquez’s Macondo –, also maintain an intense dialogue with their Latin-American antecedents, the writers of magic realism. It is in that collision between the own and the alien (Carvalhal), between Latin and North American literary references, that we will understand Paz Soldán’s work. KEY WORDS: Cyberpunk fiction; Magic realism; Comparative literature;
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As palavras de Mario Vargas Llosa na contra-capa da edição argentina de El delirio de Turing (2003) são animadoras: “Edmundo Paz Soldán é um dos melhores escritores da nova geração”. Mas como pensar nessas palavras ditas pelo mestre peruano do realismo mágico ao considerar quem elas elogiam, isto é, um escritor boliviano que tem como referência não só a ficção científica em geral1, mas também uma de suas tendências contemporâneas conhecida como cyberpunk – uma das epígrafes de El delirio, por exemplo, é citada de Nevasca2 (1992), do escritor cyberpunk Neal Stephenson –, ou seja, uma antítese, pelo menos aparentemente, das referências populares e folclóricas de quem elogia? As personagens principais de El delirio, que se revezam a cada capítulo, exemplificam essa antítese, além de oferecerem um resumo da obra: Miguel Sáenz, criptoanalista de codinome Turing, é um empregado ordinário da Caixa Negra (um departamento de inteligência para crimes cibernéticos), mas, num passado recente, ajudou o então governo ditatorial a encontrar guerrilheiros esquerdistas; Ruth Sáenz, esposa de Miguel, é uma historiadora especializada em criptoanálise que não aceita o passado criminoso do seu marido; Flavia, filha de Miguel e Ruth, posta num blog sobre cultura hacker; Albert, antigo chefe e mentor de Miguel, agoniza num hospital, delirando sobre suas antigas reencarnações, todos criptoanalistas famosos: Edgar Allan Poe, Georges Painvin, o próprio Alan Turing, entre outros; Ramírez-Graham, norte-americano descendente de pai boliviano, é o atual chefe da Caixa Negra; o juiz Cardona busca encarcerar Miguel e Albert, os verdadeiros responsáveis pela morte de sua prima, uma militante de esquerda; Kandinsky é o codinome de um jovem hacker perseguido pela Caixa Negra devido aos ataques dirigidos a GlobaLux, empresa transnacional que monopoliza o setor energético de Río Fugitivo, cidade boliviana fictícia onde ocorrem os eventos do romance. Todas essas personagens distanciam-se dos fundadores de cidades esquecidas, dos profetas do sertão, dos bruxos do vodu que pontuam o realismo mágico. Mas, como prova definitiva da antítese que discutimos, lembremos que Paz Soldán pertence à geração McOndo, idealizada por Alberto Fuguet e Sergio Gómez a partir da coletânea homônima de 1996 que apresenta, como título-manifesto, um evidente trocadilho entre a Macondo de García Márquez e a rede mundial de lanchonetes McDonald’s. Na apresentação de McOndo (1996), lemos que [o] nome (marca registrada?) McOndo é, claro, uma piada, uma sátira, uma talha. Nossa McOndo é tão latino-americana e mágica (exótica) como a Macondo real (que, de qualquer forma, não é real, mas sim virtual). Nosso país McOndo é maior, superpovoado e cheio de contaminação, com auto-estradas, trem, TV a cabo e quartos de motel. Em McOndo há McDonald´s, computadores Mac e condomínios, além de hotéis cinco estrelas construídos com dinheiro lavado e malls gigantescos3.
O que os integrantes da geração propõem é “desconstruir” (FUGUET, 2005, p. 103) a América Latina como imaginada pelos escritores do realismo mágico – para enfatizarmos um termo citado por Fuguet numa releitura recente da geração. Portanto, no lugar das figuras folclóricas do realismo mágico, surgem os ícones da cultura globalizada, reflexos do neoliberalismo que atingiu a América Latina a partir da década de 1990. Ainda em sua releitura, apresentada ironicamente como “apontamentos sobre McOndo e neoliberalismo mágico”, Fuguet acrescenta o seguinte: Mas McOndo (isto é, uma América Latina global, misturada, diversa, urbana, do século 21) já estava explodindo na TV, na música, na arte, na moda, no cinema e no jornalismo. Nossa tese, ou, para ser exato, nosso argumento era bem simples: a América Latina conturbada, desordenada, é bastante literária, sim, quase uma obra de ficção, mas não é um conto folclórico. É um espaço volátil onde o século 19 se mistura ao século 21. Mais do que mágico, sugerimos, esse lugar é peculiar. O realismo mágico reduz uma situação complexa demais a mera curiosidade. A América Latina não é curiosa (FUGUET, 2005, p. 106-107). Ver, neste sentido, Brown (2007). Tradução brasileira de Snow Crash. 3 Tradução livre do original: “El nombre (¿marca-registrada?) McOndo es, claro, un chiste, una sátira, una talla. Nuestro McOndo es tan latinoamericano y mágico (exótico) como el Macondo real (que, a todo ésto, no es real sino virtual). Nuestro país McOndo es más grande, sobrepoblado y lleno de contaminación, con autopistas, metro, tv-cable y barriadas. En McOndo hay McDonald´s, computadores Mac y condominios, amén de hoteles cinco estrellas construidos con dinero lavado y malls gigantescos”. 1 2
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Contrária ao exotismo imposto à literatura latino-americana, a geração McOndo busca uma literatura integrada ao mundo, mas ainda assim diferente. Na verdade, no contexto da geração, mesmo a expressão “literatura latino-americana” apresenta problemas terminológicos, pois [p]ara esses escritores, afastar-se da literatura do boom significa não só abolir o realismo mágico, já transformado num lugar-comum do exotismo latino-americano de exportação, mas também dar prioridade à pergunta sobre a identidade pessoal em detrimento da tradicional discussão sobre a identidade latinoamericana (embora evidentemente uma redefinição da América Latina esteja em jogo quando se reivindica que é preciso ir além do “indígena, folclórico, esquerdista” para entendê-la) (VIDAL, 2005, p. 173).
Ou como afirmam Fuguet e Gómez na apresentação de McOndo: “Os contos de McOndo se centram em realidades individuais e privadas. Suponhamos que esta é uma das heranças da febre privatizadora mundial”4. Esses escritores distanciam-se, portanto, da identidade latino-americana para oferecerem identidades individuais, mas assimiladas ao processo de globalização. Logo, “já não se quer uma literatura chilena nem latino-americana, mas mundializada, com a qual qualquer jovem em qualquer país do mundo capitalista possa se identificar” (VIDAL, 2005, p. 174). Aproximamos agora do destino desta discussão inicial, pois onde encontramos essa literatura do mundo capitalista? Nossa resposta acha-se na ficção cyberpunk, vista desde já como “[...] a expressão literária suprema, se não do pós-modernismo, então do próprio capitalismo tardio” (JAMESON, 2006, p. 414; grifo do autor). De fato, por ser a expressão literária do capitalismo tardio, ou seja, do capitalismo multinacional, globalizado, encontramos a ficção cyberpunk em vários cantos do mundo, desde na Polônia – “Szkota” (1996), de Jacek Dukaj – até no Peru – Mañana, las ratas (1984), de José B. Adolph. E aqui retornamos e justificamos as referências de Paz Soldán citadas no início deste artigo. Apesar de nunca indicarem explicitamente essa relação – exceto na já citada epígrafe de El delirio –, os integrantes da geração McOndo sempre se mostraram próximos dos temas do imaginário cyberpunk. Ao comentarem uma das referências da coletânea McOndo, Fuguet e Gómez citam alguns termos próprios do universo cyberpunk: Sua inspiração mais próxima é outro livro: Cuentos con Walkman (Editorial Planeta, Santiago de Chile, 1993), uma antologia de novos escritores chilenos (todos com menos de 25 anos), que irrompeu ante os leitores com a força de um recital punk. (...) Como diz a orelha que anuncia a quarta edição, a moral walkman é “uma nova geração literária que é pós-tudo: pós-modernismo, pós-yuppie, pós-comunismo, pós-babyboom, póscamada de ozônio. Aqui não há realismo mágico, há realismo virtual”5.
Punk, pós-modernismo, realidade virtual, palavras que também encontramos no discurso cyberpunk. Surgido na década de 1980, no contexto social e tecnológico norte-americano, o cyberpunk também é uma geração pós-tudo, principalmente pós-modernismo (o pastiche e a implosão de gêneros) e pós-comunismo (a queda do Muro de Berlim)6. Mas mesmo diante dessas referências, um escritor como Paz Soldán não descarta totalmente seus antecessores do realismo mágico, como percebemos nesta reflexão da personagem Ramírez-Graham entre Cem anos de solidão (1967) e os mistérios em torno da personagem Albert: Já havia lido e desfrutado, e também havia rido muito ao ver que seus companheiros a tomavam como uma versão da extravagante e exótica vida na América Latina. Yes, they do things differently down there, lhes dizia, but it isn’t exotic. Pelo menos não era assim Cochabamba em suas férias. Havia festas e drogas Tradução livre do original: “Los cuentos de McOndo se centran en realidades individuales y privadas. Suponemos que ésta es una de las herencias de la fiebre privatizadora mundial”. 5 Tradução livre do original: “Su inspiración más cercana es otro libro: Cuentos con Walkman (Editorial Planeta, Santiago de Chile, 1993), una antología de nuevos escritores chilenos (todos menores de 25 años), que irrumpió ante los lectores con la fuerza de un recital punk. (...) Como dice la franja que anuncia la cuarta edición, la moral walkman es ‘una nueva generación literaria que es post-todo: post-modernismo, post-yuppie, postcomunismo, post-babyboom, post-capa de ozono. Aquí no hay realismo mágico, hay realismo virtual’”. 6 As questões ecológicas (“pós-camada de ozônio”) são preocupações tardias dos escritores cyberpunks, principalmente de Bruce Sterling em Tempo fechado (1994). Entretanto, o universo pós-apocalíptico descrito em várias obras do gênero revela, desde os anos 1980, preocupações semelhantes. 4
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Anais do II Congresso Internacional de Estudos Linguísticos e Literários na Amazônia (CIELLA) e televisão e muita cerveja, como em seus anos em Chicago. Nenhum velho amarrado a uma árvore, nenhuma bela adolescente ascendendo aos céus. E agora que vivia aqui, fuck, sua imaginação o traía: acaso García Márquez teria algo de razão7 (PAZ SOLDÁN, 2005, p. 172).
Numa sociedade governada por transações virtuais operadas a partir de códigos “indecifráveis”, pois pertencem ao mundo das máquinas, dos computadores, um criptoanalista como Albert adquire poderes sobrenaturais, como os bruxos de O reino deste mundo (1949), obra inaugural do realismo mágico: “Isto é, o hacker se torna um tipo de mago ou guru que tem acesso a conhecimentos que meros mortais são incapazes de atingir”8 (BROWN, 2006, p. 116). Também observamos essa relação desde a obra que lança os fundamentos da ficção cyberpunk: o título Neuromancer (1984), do primeiro romance de William Gibson, “[...] é um trocadilho entre neuro e mântico, criando mágicos cibernéticos, unindo a força racional da neurociência com as potências desconhecidas da magia” (LEMOS, 2002, p. 205). Mas a relação torna-se mais próxima, pelo menos do realismo mágico (mas sem que existam referências intertextuais declaradas), no segundo romance de Gibson: em Count Zero (1986), entidades do vodu haitiano são acessadas através do ciberespaço. Diante desse quadro, não nos surpreendemos com alguns escritores chilenos que definem suas obras como “Magic Realism 2.0”, ou seja, um upgrade do realismo mágico baseado em gêneros considerados não-convencionais pela literatura latino-americana, como a ficção científica e a fantasia (MUÑOZ ZAPATA, 2007, p. 10). Tudo isto indica que, mesmo diante da revolução informática, “García Márquez teria algo de razão”. Mas retornemos mais uma vez à citação de Nevasca como epígrafe de El delirio: o intertexto mais evidente entre as obras é confirmado por Brown ao comentar as personagens desta última: “Personagens constantemente acessam a internet, conversam em IRCs, e jogam no Playground – um mundo de realidade virtual inspirado no Metaverso de Neal Stephenson, de seu bem-conhecido romance Nevasca, um romance referido por Paz-Soldán numa epígrafe”9 (BROWN, 2006, p. 118). Entretanto, outras relações se destacam, principalmente se considerarmos que as duas obras apresentam paródias da ficção cyberpunk. Na verdade, para Person (1998), Nevasca é pós-cyberpunk e, como já indicamos em outro momento (LONDERO, 2007, p. 127), existe algo de pós-cyberpunk nas recepções tardias do gênero realizadas pela literatura latino-americana. Porém, enquanto as duas obras assemelham-se pelas paródias, El delirio se difere pela alternativa utópica que oferece, inexistente na “celebração neoconservadora do presente” (JAMESON, 2007, p. 132) festejada pela ficção cyberpunk. Mas vejamos cada caso, começando pelas paródias: El delirio, por exemplo, parece ironizar o sucesso comercial do universo cyberpunk10 ao descrevê-lo como um jogo de computador chamado “Playground”: Ali, qualquer indivíduo, por meio de uma quantia mensal básica – vinte dólares que poderiam se converter em muito mais de acordo com o tempo de uso –, criava seu avatar ou utilizava um dos que o Playground colocava à venda, e intentava sobreviver num território apocalíptico governado com mão de ferro por uma corporação. O ano em que transcorria o jogo era 201911 (PAZ SOLDÁN, 2005, p. 80-81). Tradução livre do original: “La había leído y disfrutado, y también se había reído mucho al ver que sus compañeros la tomaban como una versión de la extravagante y exótica vida en América Latina. Yes, they do things differently down there, les decía, but it isn’t exotic. Por lo menos no era así Cochabamba en sus vacaciones. Había fiestas y drogas y televisión y mucha cerveza, como en sus años en Chicago. Ningún abuelo amarrado a un árbol, ninguna bella adolescente ascendiendo a los cielos. Y ahora que vivía aquí, fuck, su imaginación lo traicionaba: acaso García Márquez tenía algo de razón”. 8 Tradução livre do original: “That is, the hacker becomes a kind of wizard or guru who has access to knowledge that mere mortals are unable to attain”. 9 Tradução livre do original: “Characters constantly access the internet, chat on IRCs, and play in the Playground – a virtual reality world inspired by Neal Stephenson’s Metaverse in his well-known novel Snow Crash, a novel Paz-Soldán references with an epigraph”. 10 Ao comentar a expansão do cyberpunk para além dos limites do gueto da ficção científica, Moreno afirma como isto “[...] esvaziou o conteúdo revolucionário do movimento e o transformou em um rótulo a mais, que pouco a pouco foi gerando todo tipo de clichês que desembarcaram, como culminação do processo evolutivo, no cinema comercial de Hollywood” (MORENO, 2003, p. 8). 11 Tradução livre do original: “Allí, cualquier individuo, por medio de una suma mensual básica – veinte dólares que podían convertirse en mucho más de acuerdo al tiempo de uso –, creaba su avatar o utilizaba uno de los que el Playground ponía a la venta, e intentaba sobrevivir en un territorio apocalíptico gobernado con mano dura por una corporación. El año en que transcurría el juego era 2019”. 7
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Um cenário apocalíptico dominado por corporações multinacionais é o que encontramos em várias obras do gênero, desde Neuromancer até Synners (1991), de Pat Cadigan. 2019 também é o ano em que transcorre o enredo de Blade Runner (1982), filme-referencial do imaginário cyberpunk. Mas tudo isso é, no romance de Paz Soldán, elementos de um jogo de computador que cobra taxas mensais de seus usuários. Já em Nevasca, ao invés de parodiar o cenário, investe-se contra uma figura transformada em mito pela ficção cyberpunk: Na comunidade global de hackers, Hiro é um nômade talentoso. Este é o tipo de estilo de vida que soava romântica para ele até cinco anos atrás. Mas, à luz mortiça da idade adulta, que é para os vinte e poucos anos o que a manhã de domingo é para a noite de sábado, ele consegue ver com clareza o que isso realmente significa: ele está duro e desempregado (STEPHENSON, 2008, p. 25-26).
Na década de 1990, ou seja, no pós-cyberpunk, o hacker perde sua aura romântica: “Longe de serem solitários alienados, as personagens pós-cyberpunk são freqüentemente membros integrados na sociedade (i.e., eles têm trabalhos)”12 (PERSON, 1998, p. 11). Ou como explicam Arthur e Marilouise Kroker num artigo sobre a morte do cyberpunk: os anos 1990 são “[...] o fim da fase carismática da realidade digital e o começo da lei de ferro da estandardização tecnológica”13 (KROKER; KROKER apud MORENO, 2003, p. 69). Ou seja, o ciberespaço não é mais um lugar de resistência adotado por hackers revolucionários, mas um veículo de expansão do capitalismo. Entretanto, curiosamente, em El delirio persiste a aura romântica em torno do hacker, mas atravessada por uma releitura marxista: No mesmo instante, a emoção ainda em sua pele, Kandinsky voltaria a ingressar no site do Citibank. Desta vez, não roubaria números de cartões de crédito; destruiria a página de boas-vindas aos clientes, e a trocaria por uma foto de Karl Marx e um grafite proclamando a necessidade de resistência. É o nascimento do ciberhacktivismo de Kandinsky14 (PAZ SOLDÁN, 2005, p. 136).
Para Gabilondo, “a apropriação utópica do ciberespaço como a fronteira final para hackear, terrorismo contra o sistema, etc., é nada mais que um pensamento libertário desejoso”15 (GABILONDO apud BROWN, 2006, p. 128). Entretanto, para além do pensamento libertário, o ciberhacktivismo de Kandinsky adota uma postura autenticamente marxista, principalmente ao criticar o discurso anarquista contemporâneo que “[...] parece valorizar uma vida do presente e do cotidiano, uma concepção de temporalidade bastante diferente das estratégias de luta anti-capitalista em largaescala como parece impor a perspectiva d’O Capital”16 (JAMESON, 2007, p. 213). Ou seja, ao invés de um ataque organizado ao sistema capitalista, o anarquismo contemporâneo, por desacreditar em manifestações como tal, propõe enclaves utópicos no interior desse sistema, convivendo em simbiose. Identificamos esse tipo de anarquismo no conceito de Zona Autônoma Temporária (ou TAZ, sigla em inglês de Temporary Autonomous Zone) proposto por Hakim Bey: para ele, “a TAZ é uma espécie de rebelião que não confronta o Estado diretamente, uma operação de guerrilha que libera uma área (de terra, de tempo, de imaginação) e se dissolve para se re-fazer em outro lugar e outro momento, antes que o Estado possa esmagá-la” (BEY, 2006, p. 14; grifo do autor). No entanto, o que nos chama a atenção é uma das possíveis origens desse conceito:
Tradução livre do original: “Far from being alienated loners, postcyberpunk characters are frequently integral members of society (i.e., they have jobs)”. 13 Tradução livre do original: “[...] el fin de la fase carismática de la realidad digital y lo comienzo de la ley de hierro de la estandarización tecnológica”. 14 Tradução livre do original: “Al rato, la emoción todavía en su piel, Kandinsky volverá a ingresar al sitio del Citibank en la red. Esta vez, no robará números de tarjetas de crédito; destruirá la página de bienvenida a los clientes, y la reemplazará por una foto de Karl Marx y un graffiti proclamando la necesidad de la resistencia. Es el nacimiento del ciberhacktivismo de Kandinsky”. 15 Tradução livre do original: “the utopian appropriation of cyberspace as the final frontier for hacking, terrorism against the system, etc. is nothing but wishful libertarian thinking”. 16 Tradução livre do original: “[...] would seem to valorize a life in the present and in the everday, a conception of temporality rather different from the strategies of large-scale anti-capitalist struggle as the perspective of Capital would seem to impose them”. 12
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Anais do II Congresso Internacional de Estudos Linguísticos e Literários na Amazônia (CIELLA) Recentemente, Bruce Sterling, um dos principais expoentes da ficção científica cyberpunk, publicou um romance ambientado num futuro próximo e tendo como base o pressuposto de que a decadência dos sistemas políticos vai gerar uma proliferação de experiências comunitárias descentralizadas: corporações gigantescas mantidas por seus funcionários, enclaves independentes dedicados à “pirataria de dados”, enclaves verdes e social-democratas, enclaves de Trabalho-Zero, zonas anarquistas liberadas etc. A economia de informação que sustenta esta diversidade é chamada de Rede. Os enclaves (e o título do livro) são Ilhas na Rede [Islands in the Net , no original] (BEY, 2006, p. 8).
Piratas de dados, como traduziram Islands in the Net (1988) no Brasil, é um romance de Bruce Sterling, escritor apontado como ideólogo do movimento cyberpunk. Frisamos isto para destacar o mútuo interesse entre o gênero e a política de esquerda: na verdade, encontramos uma referência dúbia ao marxismo nas páginas do pequeno jornal de divulgação do movimento (Cheap Truth #4), mais precisamente numa resenha de A terceira onda (1980), a “bíblia do cyberpunk” redigida por Alvin Toffler: “A formação marxista de Toffler teve seus paradigmas fixados desde cedo; ele concorre para ser o Marx do século XXI, só que desta vez dará certo”17. Observamos na citação tanto uma admiração quanto uma descrença pelo marxismo, posições que também identificamos em El delirio – apesar de líder revolucionário, ou justamente por isso, Kandinsky também tem as mãos “manchadas de sangue” (PAZ SOLDÁN, 2005, p. 334; grifo do autor) –, embora esta obra não abandone o marxismo enquanto proposta válida diante do anarquismo contemporâneo, pois vejamos sua crítica às “ilhas na rede”: Uma manhã se despertará dizendo que tudo havia sido um sonho magnífico, mas sonho, enfim. Se despedirá de Iris e lhe agradecerá por haver lhe mostrado o caminho. Ele também teria agora uma utopia pirata: era certo, havia que reclamar o que lhe correspondia, atacar o Playground até pôr-lo de joelhos; havia que se reapoderar do espaço virtual, e não somente deste, mas também do espaço real. Havia um Estado, havia corporações contra as quais devia lutar. De nada servia refugiar-se numa ilha na rede18 (PAZ SOLDÁN, 2005, p. 135).
Apesar das referências ao anarquismo de Bey, sendo “utopia pirata” uma delas19, o que percebemos nesta reflexão da personagem Kandinsky é um retorno à prática política real, se assim podemos nos expressar em contraposição à prática política virtual, às “diversas formas de governo e organização social” (PAZ SOLDÁN, 2005, p. 135) disseminadas pelas comunidades virtuais apresentadas a Kandinsky pela personagem Iris. Para um marxista como Jameson, conceitos semelhantes ao de TAZ enganam ao separarem infra-estrutura e superestrutura, economia e política (JAMESON, 2007, p. 219) – real e virtual, para ressaltarmos um paralelo revelador entre a posição de Jameson e o nosso objeto de estudo. Mas deixemos este debate por um momento e continuemos a estabelecer as relações entre El delirio e a ficção cyberpunk. Já indicamos anteriormente as paródias deste gênero realizadas por essa obra, sugerindo inclusive proximidades entre ela e o pós-cyberpunk em geral, mas devemos também enfatizar suas semelhanças com um tipo de ficção cyberpunk denominada por Sterling como nowpunk – termo cunhado a partir de obras do gênero que surgiram na virada do século, ambientadas no presente, ao invés de num futuro próximo. Este é o caso de Reconhecimento de padrões (2003), de Gibson, e também de El delirio. Entretanto, essa presentificação paradoxal da ficção científica, ou seja, de um gênero conhecido principalmente por suas extrapolações do futuro, não é um fenômeno recente, como pode parecer. Encontramos antecessores do nowpunk em alguns contos de um autor clássico como Ray Bradbury: em “Sim, a gente se encontra na beira do rio” Tradução livre do original: “Former Marxist Toffler had his paradigms set early; he aims to be the Marx of the twentyfirst century, only this time it’ll be done right”. 18 Tradução livre do original: “Una mañana se despertará diciendo que todo había sido un sueño magnífico, pero sueño al fin. Se despedirá de Iris y le agradacerá haberle mostrado el camino. Él también tenía ahora una utopía pirata: era cierto, había que reclamar lo que les correspondía, atacar el Playground hasta hacerlo ponerse de rodillas; había que reapoderarse del espacio virtual, y no sólo de éste sino también del espacio real. Había un Estado, había corporaciones contra las cuales se debía luchar. De nada servía refugiarse en una isla en la red”. 19 Sobre esse assunto, ver nosso artigo (LONDERO, 2008a). 17
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(1969), por exemplo, moradores discutem o abandono de uma pequena cidade devido à construção de uma rodovia. Pode não parecer um conto de ficção científica, mas verificamos neste exemplo a definição do gênero proposta por Asimov: “O importante em matéria de ficção científica, até mesmo fundamental, é aquilo que efetivamente a fez surgir, ou seja, a percepção das mudanças produzidas pela tecnologia” (ASIMOV, 1984, p. 18). Já Fernandes, ao “esticar os limites das definições clássicas do termo [ficção científica]”, classifica positivamente Reconhecimento de padrões: “[...] o livro de Gibson atende a dois requisitos básicos: 1) é uma obra de ficção; e 2) trata em algum nível de uma ciência (informática)” (FERNANDES, 2006, p. 100). Contudo, o debate em torno da presentificação da ficção científica ganha relevo a partir de Baudrillard e seu artigo “Simulacros e ficção científica” (1987), onde é posta em dúvida a qualidade extrapolativa do gênero num mundo pautado por “façanhas” tecnológicas (viagem à lua, clonagem, etc.): A partir daí, alguma coisa deve mudar: a projeção, a extrapolação, essa espécie de desmedida pantográfica que constituía o encanto da ficção científica são impossíveis. Já não é possível partir do real e fabricar o irreal, o imaginário a partir dos dados do real. O processo será antes o inverso: será o de criar situações descentradas, modelos de simulação e de arranjar maneira de lhes dar as cores do real, do banal, do vivido, de reinventar o real como ficção, precisamente porque ele desapareceu da nossa vida (BAUDRILLARD, 1991, p. 154-155).
Baudrillard cita Crash (1973), de J. G. Ballard, como exemplo dessa ficção científica voltada para o estranhamento do cotidiano. Na verdade, numa introdução posterior à publicação do seu romance, Ballard segue uma linha de raciocínio muito próxima da de Baudrillard: Além disso, sinto que o equilíbrio entre ficção e realidade mudou de modo significativo nas últimas décadas. Cada vez mais seus papéis são invertidos. Vivemos num mundo regido por ficções de todos os tipos – o consumo de massa, a propaganda, a política conduzida como um ramo da propaganda, o pré-esvaziamento, operado pela televisão, de qualquer resposta original à experiência. Vivemos no interior de uma enorme novela. Hoje é cada vez menos necessário ao escritor inventar o conteúdo ficcional de seu romance. A ficção já está aí. A tarefa do escritor é inventar a realidade (BALLARD, 2007, p. 8).
“Inventar a realidade” é o que propõe o nowpunk, mas Gibson já fazia isso antes de Reconhecimento de padrões, como mostra Siivonen: “Em Gibson, a tecnologia não mais opera como um signo de legitimação da concepção científica de mundo característica do gênero. Mais ainda, a própria tecnologia é o alienígena, a alteridade ‘estranha’ que ameaça o ser humano”20 (SIIVONEN, 1996, p. 234). A tecnologia não é apenas signo de legitimação da ficção científica, mas da própria sociedade ocidental. Neste sentido, ao apresentá-la como estranha, Gibson reinventa a realidade. Mas qual é a reinvenção de Paz Soldán? Tal qual Gibson, a tecnologia também surge aqui como elemento estranho? Na verdade, em Paz Soldán, o estranhamento não advém de tecnologias, mas de paradigmas tecnicistas. Comecemos pela cibernética e já podemos observá-la no cyber de cyberpunk: “O prefixo ciber vem de cibernética, a ciência do estudo do controle de processos de comunicação entre homens e máquinas, homens e homens e máquinas e máquinas” (LEMOS, 2002, p. 204). Para controlar tais processos de comunicação, a cibernética traduz qualquer sistema (vivo ou não) em termos de informação, ou seja, num conjunto de acontecimentos probabilísticos: desde os sinais do código Morse até as moléculas do código genético. É por isso que a personagem Miguel pensa consigo: “Tocas tua pele cansada, cheia de rugas. Tu também és informação que vai se degradando irreversivelmente”21 (PAZ SOLDÁN, 2005, p. 147). Mas se tudo pode ser traduzido em termos de informação, mesmo o corpo humano, então não há distinções entre o homem e a máquina. Este é o paradigma proposto por um famoso teórico da cibernética: o matemático Alan Turing, referência fundamental para compreendemos o romance de Paz Soldán e a personagem Miguel, cujo codinome é Turing. Em “Computadores e inteligência” (1950), Tradução livre do original: “In Gibson technology no longer operates as a sign for the legitimacy of the scientific conception of the world characteristic of the genre. Far more, it is technology itself that is the alien and ‘uncanny’ otherness threatening humankind”. 21 Tradução livre do original: “Tocas tu piel cansada, llena de arrugas. Tú también eres información que se va degradando irreversiblemente”. 20
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por exemplo, Alan Turing começa se perguntando: “Podem as máquinas pensar?”. Para responder positivamente essa pergunta, o matemático procura semelhanças entre a mente pensante (humana) e a mente programada (máquina) e as encontra reduzindo a primeira à segunda: No processo de tentar imitar a mente humana adulta, temos de refletir bastante sobre o processo que a levou até o ponto onde se encontra. Cumpre atentar para três componentes: (a) O estado inicial da mente, isto é, ao nascer; (b) A educação que recebeu; (c) Outras experiências, que não as descritas como educação, a que foi submetida (TURING, 1973, p. 77).
Logo, “em outras palavras, o cérebro humano é também programado, pela genética, pela educação e pela experiência” (APTER, 1973, p. 77). Este é o delírio de Turing: um mundo onde tudo é programação, onde tudo é informação. Porém, um mundo imaginado assim não é exclusivo do paradigma cibernético, como demonstra Pfohl numa analogia reveladora: Em outras palavras, a cibernética substitui um modelo simplista de comando em uma só via por uma visão do processo de mandar e receber mensagens como algo mediado pela influência da própria prática comunicativa: essa seria uma influência das letras, dos ícones e das imagens em movimento. Não fique surpreso se aqui você achar semelhanças entre a cibernética, com o seu imaginário de comunicadores descentrados, amarrados a um fluxo de redes de feedback escriturais, textuais e providos de textura, e a imagem da vida social oferecida por certas versões da teoria pós-estruturalista. A cibernética e o pensamento pós-estruturalista emergiram em tempos e espaços historicamente relacionados (da metade para o final do século XX). Os dois estão genealogicamente relacionados, tanto no campo material quanto no imaginário. Quando estudados criticamente, cada um também sugere (potencialmente) imagens nas quais se reflete e se repete uma sensibilidade ao poder (PFOHL, 2001, p. 108-109).
De fato, existem várias similaridades entre a cibernética e o pensamento pós-estruturalista. Se para a cibernética tudo é informação, para o pós-estruturalismo tudo é texto: Anderson, por exemplo, explica como o pensamento estruturalista surge da exorbitação do conceito de linguagem proposto por Saussure, culminado na sentença pós-estruturalista derridiana “não há nada fora do texto”, “nada antes do texto, nenhum pretexto que não seja texto” (DERRIDA apud ANDERSON, 1984, p. 48). Podemos imaginar o Metaverso de Stephenson, que também encontramos em El delirio, como uma versão ficcional dessa sentença: “O Metaverso é uma estrutura ficcional feita de código. E o código é simplesmente uma forma de fala – a forma que computadores compreendem” (STEPHENSON, 2008, p. 198). Porém, sua representação máxima ainda são aquelas cenas de lugares e pessoas “codificados” (Fig. 1) que assistimos na série cinematográfica Matrix (1999 e 2003), não por acaso considerada “o auge do cyberpunk cinematográfico” (MORENO, 2003, p. 118): Figura 1 (Warner Bros., 1999, Matrix)
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Na Matrix, tudo é texto, e fora da Matrix não há nada, somente o “deserto do real”. De algum modo, isso nos remete às alucinações da personagem Albert: Rostos. Passam em frente a mim. Se sentam. Esperam. Me esperam... Seus gestos são códigos. Suas roupas são códigos. Tudo é código... Tudo é escritura secreta. Tudo é palavra escrita por um Deus ausente... Ou hemiplégico... Ou um torpe demiurgo... Um incontinente demiurgo...22 (PAZ SOLDÁN, 2005, p. 38).
Se tudo é palavra escrita por um Deus ausente, então onde está o autor? Morto, como declara Barthes em “A morte do autor” (1968): “A escritura é esse neutro, esse composto, esse oblíquo aonde foge o nosso sujeito, o branco-e-preto onde vem se perder toda identidade, a começar pela do corpo que escreve” (BARTHES, 1988, p. 65). Na verdade, desde Lévi-Strauss, o estruturalismo se empenha categoricamente em excluir o sujeito de qualquer campo de conhecimento científico (ANDERSON, 1984, p. 44). Já em Foucault, não nos alarmamos ao verificar um discurso auto-replicante, acima do sujeito, como revelam as palavras eloqüentes que abrem a aula inaugural de 1970: Gostaria de me insinuar sub-repticiamente no discurso que devo pronunciar hoje, e nos que deverei pronunciar aqui, talvez durante anos. Ao invés de tomar a palavra, gostaria de ser envolvido por ela e levado bem além de todo começo possível. Gostaria de perceber que no momento de falar uma voz sem nome me precedia há muito tempo: bastaria, então, que eu encadeasse, prosseguisse a frase, me alojasse, sem ser percebido, em seus interstícios, como se ela me houvesse dado um sinal, mantendo-se, por um instante, suspensa. Não haveria, portanto, começo; e em vez de ser aquele de quem parte o discurso, eu seria, antes, ao acaso de seu desenrolar, uma estreita lacuna, o ponto de seu desaparecimento possível (FOUCAULT, 2007, p. 5-6).
Empregando mais uma vez Nevasca como analogia, os discursos são “idéias virais”, “informações auto-replicantes”, enquanto os sujeitos são “hospedeiros” dessas idéias, dessas informações (STEPHENSON, 2008, p. 368-369). Mas também notamos no discurso de Foucault aquela ojeriza por começos, origens, que reencontramos no pós-estruturalismo. Um exemplo é a crítica derridiana ao conceito de valor de uso elaborado por Marx, ou melhor, ao valor de uso enquanto origem deturpada pelo valor de troca: “Em sua iterabilidade originária, um valor de uso está de antemão prometido, prometido à troca e para além da troca. Ele está de antemão lançado no mercado das equivalências” (DERRIDA, 1994, p. 216). Como em todo estruturalismo, existe aqui uma aplicação da lingüística saussureana – pois também não é a linguagem um “mercado das equivalências”? –, mais precisamente da relação arbitrária entre significante e significado: sob esse ponto de vista, é possível equiparar a experiência de comer filé e a experiência de dirigir no campo, para nos valermos de um exemplo dado por Jameson (JAMESON, 1997, p. 41). Portanto, mesmo sendo posterior a uma fantasmagoria do valor em si (DERRIDA, 1994, p. 213), mesmo sendo uma ilusão adâmica, o valor de uso é, para Marx, um argumento fundamental contra a lógica do mercado, contra a transformação de tudo em qualquer coisa. Observamos essa lógica em El delirio, como afirma Brown: Paz Soldán emprega as possibilidades pós-humanas dos hackers como um canal para explorar uma realidade metafórica onde teorias pós-estruturalistas sobre interconexões entre linguagem e realidade culminam num mundo onde as pessoas são seus números PIN, os corpos dos hackers se dissolvem em seus avatares virtuais e as ditaduras se re-codificam como governos democráticos dedicados à política neoliberal23 (BROWN, 2006, p. 118).
Onde tudo é linguagem, tudo é cambiável, nada é particular. Para aproveitarmos a analogia assinalada por Brown – também indicada noutro momento do seu artigo24 –, há uma evidente relação Tradução livre do original: “Rostros. Pasan frente a mí. Se sientan. Esperan. Me esperan... Sus gestos son códigos. Sus ropas son códigos. Todo es código... Todo es escritura secreta. Todo es palabra escrita por un Dios ausente... O hemipléjico... O un torpe demiurgo... Un incontinente demiurgo...”. 23 Tradução livre do original: “Paz Soldán employs the hacker’s posthuman possibilities as a conduit for his exploration of a metaphorical reality where poststructuralist theories on the interconnections of language and reality culminate in a world where people are their PIN numbers, hackers’ bodies melt into their virtual avatars and dictatorships re-codify themselves as democratic governments dedicated to neoliberal policy”. 24 Sobre a personagem Montenegro, um fictício ex-ditador boliviano, Brown afirma que “Paz Soldán alude aqui ao governo boliviano de Hugo Banzer, ditador eleito de maneira democrática posteriormente, usando a personagem de Montenegro, um ditador sangrento que desfruta de sucesso democrático semelhante e que aparece em vários romances de Paz Soldán” 22
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entre o período pós-ditatorial latino-americano e o neoliberalismo quando Richard define a passagem do antagonismo ditatorial (direita versus esquerda) ao pluralismo democrático-neoliberal como uma “cadeia passiva de diferenças que se justapõem, indiferentemente, uma às outras, sem confrontar seus valores para não desapaziguar o eixo de reconciliação neutro da soma”25 (RICHARD, 1999, p. 321322). A linguagem, a política, o mercado é essa reconciliação neutra onde as particularidades (valores de uso) abrandam suas diferenças perante uma universalidade (valor de troca) regulada por palavras, votos e dinheiro. Ou como afirma Adorno, especificamente sobre o mercado: “Acima e além de todas as formas específicas de diferenciação social, a abstração implícita no sistema de mercado representa a dominação do geral sobre o particular, da sociedade sobre os seus membros cativos” (ADORNO apud JAMESON, 1997, p. 63). Mas é em outro romance de Stephenson que notamos mais uma característica do estruturalismo: em Cryptonomicon (1999), a personagem Lawrence – não por acaso, amiga fictícia da personagem Alan Turing, ponto de partida desta rede de relações – é assim descrita: O problema básico de Lawrence era que ele era preguiçoso. Ele havia entendido que tudo era mais simples se, como o Super-homem com sua visão raio-x, você olhasse através das distrações cosméticas e visse o esqueleto matemático subjacente. Uma vez encontrada a matemática da coisa, você saberia tudo sobre ela, e você poderia manipular o conteúdo de seu coração com nada mais que um lápis e um guardanapo. Ele viu isso na curva das barras prateadas do seu instrumento de percussão, viu isso no arco catenário de uma ponte e no tambor capacitador da máquina de computação de Atanasoff e Berry 26 (STEPHENSON, 2002, p. 10).
Da mesma forma que Lawrence abusa de seus “esqueletos matemáticos”, o estruturalismo abusa de suas estruturas, produzindo um efeito semelhante ao da personagem, ou seja, uma indiferença pelo conteúdo de suas abstrações, sejam elas “barras prateadas de um instrumento de percussão” ou “arcos de uma ponte”: “O que é importante na análise estruturalista, em geral, é o fato de que ela separa o conteúdo real da história e se concentra integralmente na forma” (GONÇALVES; BELLODI, 2005, p. 138). Anderson denomina essa característica do estruturalismo como “atenuação da verdade” e indica novamente o pós-estruturalismo de Derrida como ponto culminante: para o filósofo francês, a linguagem é “[...] um sistema puro e simples de significantes flutuantes, sem absolutamente nenhuma relação determinável com qualquer referente extralingüístico” (ANDERSON, 1984, p. 53). Desde que descubramos as estruturas ou as “linhas de código” que governam o universo, pouco importa o que elas representam: Todas as respostas deveriam conduzir a somente uma: se o programa que faz funcionar o universo for matemático, haveria um algoritmo primeiro do qual derivam os demais. Se o programa for computacional, se trataria de três ou quatro linhas de código, responsáveis por explicar tanto as marés como as manchas do leopardo e a multiplicidade de linguagens e os movimentos de tua mão direita e o vôo das moscas e o nascimento das galáxias e Da Vinci e Borges e os cabelos pegajosos de Flavia e a sombra que projetam os salgueiros-chorões e Alan Turing27 (PAZ SOLDÁN, 2005, p. 238-239).
(BROWN, 2006, p. 116). Tradução livre do original: “Paz Soldán alludes here to the Bolivian governments of Hugo Banzer, the democratically elected former dictator, using the character of Montenegro, a bloody dictator who enjoys similar democratic success and who appears in many of Paz Soldán’s novels”. 25 Sobre esse assunto, ver nosso artigo (LONDERO, 2008b). 26 Tradução livre do original: “The basic problem for Lawrence was that he was lazy. He had figured out that everything was much simpler if, like Superman with his X-ray vision, you just stared through the cosmetic distractions and saw the underlying mathematical skeleton. Once you found the math in a thing, you knew everything about it, and you could manipulate it to your heart’s content with nothing more a pencil and a napkin. He saw it in the curve of the silver bars on his glockenspiel, saw it in the catenary arch of a bridge and in the capacitor-studded drum of Atanasoff and Berry’s computing machine”. 27 Tradução livre do original: “Todas las respuestas deberían conducir a una sola: si el programa que hace funcionar el universo fuera matemático, habría un algoritmo primero del que derivan los demás. Si el programa fuera computacional, se trataría de tres o cuatro líneas de código, responsables de explicar tanto las mareas como las manchas del leopardo y la multiplicidad de lenguajes y los movimientos de tu mano derecha y el vuelo de las moscas y el nacimiento de las galaxias y Da Vinci y Borges y la cabellera pegajosa de Flavia y la sombra que proyectan los sauces llorones y Alan Turing”.
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Tema geral: Línguas e Literaturas: Diversidade e Adversidades na América Latina
Este pensamento de Miguel é semelhante ao de Lawrence – o que não nos surpreende, considerando o tema-comum das duas obras: a criptoanálise. Mas a realidade se esvanece definitivamente numa referência intertextual de El delirio (PAZ SOLDÁN, 2005, p. 221): o conto “A formiga elétrica” (1969), de Philip K. Dick. Neste conto, a personagem Garson Poole descobre que é um andróide e, ao se examinar, encontra um rolo de fita que funciona como um “dispositivo fornecedor de realidade” (DICK, 2005, p. 90). Mexendo nessa fita, Poole produz efeitos surreais, como patos que surgem no meio da sala, desmentidos por sua parceira Sarah que nada percebe: – Não eram de verdade – disse Sarah. – Ou será que eram? Pois como é que... – Você também não é de verdade – retrucou. – Não passa de um elemento de estímulo na minha fita de realidade. Uma perfuração que pode desaparecer com verniz. Será que você existe noutra fita de realidade ou numa que tenha realidade objetiva? (DICK, 2005, p. 102)
Ao fim do conto, Poole é destruído e, junto com ele, toda a realidade! Aqui, como no estruturalismo, a realidade é reduzida a um rolo de fita, a um texto. Mas diante deste panorama do estruturalismo que esboçamos até então, o que El delirio oferece como alternativa? Devemos agora regressar ao apelo de Kandinsky, ou seja, ao retorno do real e, conseqüentemente, do marxismo, derrotado pelo estruturalismo no início da década de 1960 (ANDERSON, 1984, p. 38). De fato, a conjugação entre realidade e marxismo realizada por Kandinsky nos parece uma resposta ao delírio de Turing, ou seja, ao estruturalismo latente de Miguel. O retorno do marxismo é, portanto, o retorno do sujeito, do particular e do referente. E mesmo esse retorno revela laços de parentesco com o realismo mágico, pois algo (um simulacro?) da Revolução Cubana ressurge no horizonte de Río Fugitivo. *** Ao longo deste artigo analisamos o romance de Paz Soldán a partir das suas relações com a ficção cyberpunk e com o realismo mágico. A primeira aparece, desde logo, nas epígrafes da obra, onde um escritor do gênero é citado: na verdade, duas obras de Stephenson, Nevasca e Cryptonomicon, surgem como referências intertextuais em El delirio. Mas como integrante da geração McOndo – uma paródia dos tempos de globalização a Macondo de García Márquez –, Paz Soldán também dialoga com seus antecedentes latino-americanos, propondo críticas e releituras das obras do realismo mágico. Nesse embate entre o próprio e o alheio (CARVALHAL, 2003), é difícil saber quem é quem devido ao posicionamento ambíguo do autor diante das referências literárias latino e norte-americanas: enquanto o alheio da ficção cyberpunk torna-se próprio no mundo globalizado, o próprio do realismo mágico torna-se alheio, artigo de exportação. Toda essa discussão acaba por desencadear outro embate, entre o estruturalismo e o marxismo. Se no embate anterior não reconhecemos o que é e o que não é nosso, aqui uma tradição marxista latino-americana parece responder a uma invasão estruturalista neoliberal. Claro, uma leitura possivelmente “corrigida” pelas ambigüidades da obra. Referências ANDERSON, P. A crise da crise do marxismo: introdução a um debate contemporâneo. Trad. Denise Bottmann. São Paulo: Brasiliense, 1984. APTER, M. J. Cibernética e psicologia. Trad. Francisco M. Guimarães. Petrópolis: Vozes, 1973.
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POESIA BRASILEIRA E MÚSICA ATONAL
Rodrigo de Albuquerque MARQUES (UECE-FECLESC)
RESUMO: Este artigo procurar apontar o diálogo entre a poesia brasileira da década de 1950 e 1960 e as vanguardas musicais ligadas à Segunda Escola de Viena. Em diversos textos teóricos e poéticos do concretismo, Augusto de Campos, Haroldo de Campos e Décio Pignatari dissertaram sobre a linguagem poética e a linguagem musical de compositores como Schoenberg, Webern, Pierre Boulez e Stockhausen. Ao mesmo passo, João Cabral de Melo Neto publicou, em 1963, o livro “Serial” que vem estruturado formalmente com alguns elementos da música dodecafônica. PALAVRAS-CHAVE: literatura comparada – concretismo – João Cabral de Melo Neto – música atonal
ABSTRACT: This article analyses the dialogue between the Brazilian poetry (1950 to 1960) and musical vanguards (Second School of Vienna). In many texts, Augusto de Campos, Haroldo de Campos and Décio Pignatari discourse about poetry language and musical language of composers such as Schoenberg, Webern, Pierre Boulez and Stockhausen. At the same time, João Cabral de Melo Neto published in 1963, the book “Serial” that is formally structured with some elements of the dodecafone music. KEY WORDS: comparative literature – concretism – João Cabralde Melo Neto – atonal music
Anais do II Congresso Internacional de Estudos Linguísticos e Literários na Amazônia (CIELLA)
A música de vanguarda européia que desagregou o sistema tonal no início do século XX não se inseriu de forma efetiva e radical no debate estético da primeira fase do modernismo literário brasileiro. No entanto, o diálogo entre literatura e música de vanguarda seria retomado nos anos de 1950 a 1970 pela poesia de João Cabral de Melo Neto e pelos concretistas tanto em textos teóricos quanto em textos poéticos. Mário de Andrade, sem dúvida, foi, dentre os modernos, quem mais se dedicou à música, tanto que seu “Ensaio sobre a música brasileira” regeu uma geração inteira de compositores nacionalistas: Mozart Camargo Guarnieri, Oscar Lorenzo Fernandes, Radamés Gnattali, Francisco Mingnone (Chico Mororó), José Siqueira, Frutuoso Viana, Cláudio Santoro, Guerra Peixe, Edino Krieger etc. A influência que Mário exerceu sobre a música de concerto brasileira no século XX é imensa e deve-se muito às críticas que escreveu no Diário de São Paulo e às pesquisas de música brasileira. Ele mesmo compôs peças, inclusive uma ópera intitulada Pedro Malazarte, mas é a sua obra teórica que efetivamente conjuga sua participação na música moderna brasileira como a mais importante ao lado de Villa-Lobos. Em “A escrava que não é Isaura”, ainda em sua obra imatura, o pai de Macunaíma dedicou duas seções intituladas “Simultaneidade ou Polifonismo” e “A música da Poesia”. Mário empreendeu aí uma relação entre a pluralidade dos acontecimentos sincrônicos da vida moderna, cada vez mais dinâmica, e a poesia, a exigir do poeta uma simultaneidade de vozes semelhante à polifonia musical, capaz de alcançar o que ele chamou de EFEITO TOTAL FINAL ou SENSAÇÃO COMPLEXA TOTAL FINAL: “Num soneto passadista dá-se concatenação de idéias: melodia. Num poema modernista dá-se superposição de idéias: polifonia”. (ANDRADE, 1980, p. 269). Tais reflexões poderiam apontar para a simultaneidade de tons, que foi um dos artifícios usados para driblar ou exaurir o sistema tonal, mas Mário de Andrade se deteve, ficando mesmo como exemplos de melhor música: João Sebastião Bach e Mozart. Evidente que Mário de Andrade sabia da experiência dodecafônica de Schoenberg, se não fosse assim, o último capítulo de sua Pequena História da Música não mencionaria alguns dos principais próceres da música européia de então como o próprio Schoenberg, Stravinsky, Kreneck, Bela Bartok e Webern, além, incrível, Ezra Pound que, segundo Augusto de Campos, nunca foi lembrado por Mário de Andrade como poeta, mas sim como o compositor da obscura anti-ópera Le Testament. Também em artigo crítico no Diário de S.Paulo, publicado na sua coluna “Música”, de 28 de maio de 1935, Mário de Andrade, ao comentar um concerto com peças de Camargo Guarnieri, mostrou-se bem simpático aos trechos atonais1. Porém, no primeiro tempo modernista, sob a batuta dos que fizeram a Semana de 22, a busca por uma música nacional conduziu as experiências dos nossos compositores. O movimento nacionalista começou, na realidade, um pouco antes, com Alberto Nepomuceno e Alexandre Levy e se cristalizou na obra de Villa-Lobos. Mário de Andrade ocupou-se seriamente dos fundamentos de uma música genuinamente brasileira sem exotismos ou xenofobismo, num primitivismo desinteressado, isto por achar que o momento histórico exigia uma nacionalização urgente não só da música, mas da arte em geral, como diz em “Ensaio sobre a música brasileira”: O período atual do Brasil, especialmente nas artes, é o de nacionalização. Estamos procurando conformar a produção humana do país com a realidade nacional. E é nessa ordem de idéias que justifica-se o conceito de Primitivismo aplicado às orientações de agora. É um engano imaginar que o primitivismo brasileiro de hoje é estético. Ele é social. Um poeminha do Pau Brasil de Oswald de Andrade até é muito menos primitivista que um capítulo da Estética da Vida de Graça Aranha. Porque este capítulo está cheio de pregação interessada, cheio de idealismo ritual e deformatório, cheio de magia e de medo. O lirismo de Oswald de Andrade é uma brincadeira desabusada. A deformação empregada pelo paulista não ritualiza “Mas o cromatismo levado assim às suas últimas conseqüências atonais, torna esta esplêndida composição duma aridez ainda por demais inacessível à maioria. Sem a menor alusão política, é uma obra... da oposição... O próprio ritmo chega a ser atonal!... Estou me referindo ao curioso tema do terceiro tempo, que o compositor faz passar por acentuações diferentes, como se ele não as criasse dentro duma forma dinâmica determinada. Aliás pela sua “objetividade” musical, o tema se presta admiravelmente a isso, e pertence às mais raras invenções do compositor”. (ANDRADE, 1993, p. 312).
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Tema geral: Línguas e Literaturas: Diversidade e Adversidades na América Latina nada, só destrói pelo ridículo. Nas idéias que expõe não tem idealismo nenhum. Não tem magia. Não se confunde com a prática. A arte é desinteressada. (ANDRADE, 1972)
Ora, se a questão é a nacionalização de nossas artes, o atonalismo poderia esvaziar a discussão, porque ele reportaria a problemas exclusivos da linguagem musical e não inferiria nada que pudesse motivar a projeção de uma identidade nacional na música. E foi justamente este o cerne da polêmica aberta por Camargo Guarnieri em 1950 quando publicou e distribuiu a famosa “Carta aberta aos músicos e críticos do Brasil”, contrapondo-se justamente à educação promovida pelo mentor da “Música Viva”, o maestro alemão radicado no Brasil Hans-Joachim Koellreutter, que usava a técnica dodecafônica e outros processos compositivos nos seus núcleos de ensino de música no Rio, São Paulo e Bahia. Segundo Guarnieri, “O dodecafonismo, é assim de um ponto de vista mais geral, produto de cultura superadas, que se decompõem de maneira inevitável, é um artifício cerebralista, anti-nacional (grifo nosso), anti-popular, levado ao extremo, é química, é arquitetura, é matemática da música – é tudo o que quiserem – mas não é música!”. Talvez por isto as vanguardas musicais do início do século não tenham atraído tanto a atenção de Mário de Andrade e dos primeiros modernistas, mais voltados a um critério sociológico, não-formalista, para a arte naquele começo de século XX. O curioso é que a carta de Camargo Guarnieri reforça a posição de Mário de Andrade. Há quem diga que Camargo Guarnieri escreveu o libelo motivado por ciúmes, uma vez que Koellheutter havia publicado recentemente um artigo sobre Mário de Andrade na revista Fundamentos e aproveitado trechos do Banquete no Boletim Música Viva, enciumando Guarnieri que se julgava exclusivo a Mário. Outros afirmam que a divergência Guarnieri/ Koellheutter surgiu de uma briga entre as esposas de ambos. O fato é que a sombra de Mário de Andrade e também de Villa-Lobos atravessou toda a década de 1930, trilha sonora do Estado Novo, e chegava agora à década de 1950 a servir de tese ao jogo dialético que se abriu com a atuação de Koellheutter e que se esgarçou com a carta de Guarnieri. No campo literário, a discussão alcançou os concretistas. Como visto, foi preciso esperar a década de 1950 para o debate amadurecer. Isto também só se tornou possível graças a uma série de circunstâncias que fez a poesia ainda mais permeável a outras artes, de modo que nos parece difícil compreender este momento, décadas de 1950 e 1960, sem uma perspectiva comparada entre literatura, artes plásticas, música de vanguarda, música popular, cinema, teatro e dança. Nos textos teóricos dos concretistas, avivam nomes de músicos coetâneos ou ligados a Segunda Escola de Viena, principalmente de Webern e de Pierre Boulez. Foram essenciais aqueles textos para a música brasileira de então. Um dos últimos manifestos musicais do século XX no Brasil, o “Música Nova”, brotou justamente do terreno concretista, publicado na revista Invenção, numa linguagem que denuncia a procedência noigandres do texto. Assinaram o manifesto os seguintes músicos: Rogério Duprat, Julio Medaglia, Damiano Cozzela, Régis Duprat, Gilberto Mendes, Sandino Hohagen, Willy Correia de Oliveira e Alexandre Pascoal. Deste elenco, dois nomes tiveram participação direta no Tropicalismo: Rogério Duprat e Julio Medaglia, este último musicou alguns poemas concretos; Gilberto Mendes foi outro que também aproveitou textos concretos para suas composições, como o famoso “Coca-cola” de Décio Pignatari. Não é desconhecida a colaboração concretista para a música popular brasileira na década de 1960, principalmente para a tropicália. Caetano Veloso e Tom Zé, por exemplo, fizeram parcerias ou beberam nas idéias dos paulistas. Basta um pequeno excerto do manifesto para perceber a sua autoria, bem próximo do estilo sincopado dos irmãos Campos e de Décio: música nova: compromisso total com o mundo contemporâneo: desenvolvimento interno da linguagem musical (impressionismo, politonalismo, atonalismo, músicas experimentais, serialismo, processos fono-mecânicos e eletroacústicos em geral), com a contribuição de debussy, ravel, stravinsky, schoenberg, webern, varèse, messiaen, schaeffer, cage, boulez, stockhausen. atual etapa das artes: concretismo: 1) como posição generalizada frente ao idealismo; 2) como processo criativo partindo de dados concretos; 3) como superação da antiga oposição matéria-forma; 4) como resultado de, pelo menos, 60 anos de trabalhos legados ao construtivismo (klee, kandinsky, mondrian, van doesburg, suprematismo e construtivismo, max bill, mallarmé, eisenstein, joyce, pound, cummings) - colateralmente, ubicação de elementos extra-morfológicos, sensíveis: concreção no informal.
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Pela proposta aventada neste manifesto dá para avaliar a sintonia entre música e literatura na década de 1960, a ponto de os músicos assinarem algo que não fora redigido por eles, mas sim por um grupo de poetas. No excerto acima, depois de afirmar o “compromisso total com o mundo contemporâneo” e listar as etapas da linguagem musical e seus respectivos representantes a partir do impressionismo, o manifesto começa uma enumeração de princípios sem antes esbarrar numa palavra que abre os dois pontos: “concretismo”; opõe-se ainda, generalizadamente, ao idealismo, propondo um processo criativo a partir de dados concretos com a superação da oposição matéria-forma, além de reforçar a paideuma do movimento: Mallarmé, Joyce, Pound e Cummings. Na realidade, o manifesto constitui a materialização de uma convergência que já vinha se estruturando na década passada. Já em 1953, a série “poetamenos”, publicada na noigandres nº. 2, trazia uma experiência de Augusto que entrançava poesia concreta e a música da Segunda Escola de Viena, mais especificamente a klangfarbenmelodie (melodia de timbres) de Webern. “poetamenos” foram escritos com tipos gráficos coloridos e para serem lidos com vozes alternadas ou simultâneas a fim de propiciar um efeito semelhante à mudança de timbre weberniana2. A década de 1950, a partir daí, viu os nós da música de vanguarda e da poesia serem atados pelos concretistas. Destacam-se os seguintes artigos publicados na imprensa paulista: “pontos-periferia-poesia concreta” (Augusto de Campos); “poesia e paraíso perdido”, “a obra de arte aberta”, “evolução de formas: poesia concreta”, “da fenomenologia da composição à matemática da composição” (Haroldo de Campos); “poesia concreta: pequena marcação histórico-formal” (Décio Pignatari). Em todos estes artigos o pesquisador poderá encontrar diversos pontos de encontro e desencontro entre a linguagem musical e a linguagem concretista. Uma das portas de abertura para que as idéias dos músicos inventivos do início do século XX adentrassem no universo literário foi a retomada de Mallarmé e do seu poema Um lance de dados. “Na verdade, a re-visão de Um Coup de Dés é relativamente recente e só tomou corpo com a divulgação, já na segunda metade do século, dos grandes tratados sobre o poema” (CAMPOS, 2006, p. 24). Entre nós, restou aos concretos e a Mário Faustino o review ao poeta francês. No prefácio de Un Coup de Dés, o próprio Mallarmé fala da influência que a música exerceu na estrutura do poema: “Sua reunião se cumpre sob uma influência, eu sei, estranha, a da Música ouvida em concerto; encontrando-se nesta muitos meios que me parecem pertencer às Letras, eu os retomo.” (CAMPOS, 2006, p. 152). Mais tarde, a influência se reverteria, pois alguns músicos apontariam justamente Un Coup de Dés como decisivo para suas orientações estéticas. Igor Stravinsky, em conversa com Robert Craft, comenta sobre a influência de Mallarmé na música do século XX e em especial na obra de Pierre Boulez: (Estes aspectos daquela peça são entretanto secundários, diante de sua forma; sempre mais próximo das idéias de Mallarmé sobre permutação, Boulez está agora se acercando de um conceito de forma não diferente da idéia que aparece em Um Coup de Dés. Não só a paginação da partitura dessa Terceira Sonata para Piano se parece com a “partitura” de Um Coup de Dés como, no próprio prefácio do poema, as idéias de Mallarmé parecem descrever a sonata também: “...interrupções fragmentárias de uma frase capital introduzidas e continuadas desde o título. Tudo se passa por redução, por hipótese; evita-se a narrativa”. Mallarmé pensava, certamente, que estava tomando idéias emprestadas da música, e ficaria surpreso, sem dúvida, ao saber que, sessenta anos depois, seu poema tinha fertilizado as duas artes; a recente publicação de Le Livre de Mallarmé (com seus surpreendentes diagramas de forma matemática, deve ter sido uma estranha confirmação para Boulez). (STRAVINSKY, 2004, p. 24)
Pierre Boulez e Webern são os compositores mais citados nos textos teóricos do concretismo. Em “pontos-periferia-poesia concreta”, publicado originalmente no “Suplemento Dominical” do Jornal do Brasil, Rio de Janeiro, 11.11.1956, Augusto de Campos praticamente complementa o pensamento de Stravinsky e afirma que o processo compositivo de Mallarmé se compara com o da série de Schoenberg por não haver hierarquia entre as partes de Un Coup de Dés, semelhante ao que acontece à música serial que não possui um centro harmônico único: Un Coup de Dés fez de Mallarmé o inventor de um processo de composição poética cuja significação se nos afigura comparável ao valor da “série”, introduzida por Schoenberg, purificada por Webern e, através Quem quiser conhecer alguns dos poemas da série basta acessar o endereço eletrônico http://www2.uol.com.br/ augustodecampos/poemas.htm e conferir três poemas: “Lygia fingers”; “eis os amantes” e “dias dias dias”.
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Tema geral: Línguas e Literaturas: Diversidade e Adversidades na América Latina da filiação deste, legada aos jovens músicos eletrônicos, a presidir os universos sonoros de um Boulez ou um Stockhausen. A esse processo definiríamos, de início, com a palavra estrutura, tendo em vista uma entidade onde o todo é mais que a soma das partes ou algo qualitativamente diverso de cada componente. (CAMPOS, 2006, p.31).
Desta tradição recuperada, Mallarmé, Cummings, Ezra Pound, Apollinaire, James Joyce, Oswald de Andrade, Sousândrade arquitetou-se a reação àqueles poetas da mesma geração (45) que se voltaram a temas clássicos e que recuperaram outra tradição moderna: Fernando Pessoa, Garcia Lorca, Jorge de Lima, T. S. Eliot, Paul Valéry, Hart Crane, Dylan Thomas. Após os agitados anos 20 e o decênio de 30, a literatura brasileira entrava num momento mais espiritualizado, retomando metros tradicionais, temas universais e formas fixas. Esta dicção deixava no ar um travo arcaizante, mormente se comparado com a inquietação formal daqueles que fizeram a Semana de Arte de 22. Tal direção da poesia brasileira motivou, além de simpatizantes em todo o país, inclusive com a proliferação de inúmeros grupos e revistas nas diversas regiões, um movimento contrário, manifestado, sobretudo, por Haroldo de Campos, Augusto de Campos e Décio Pignatari, e antes por João Cabral de Melo Neto, que pontuaram sua atuação por uma poética construtivista, com princípios retirados da arquitetura, da engenharia e das artes geométricas, deixando de lado floreios verbais e a textura discursiva e onírica dos poetas de 45. No dizer da professora Iumna Maria Simon: Em tais circunstâncias, quais os alvos do ataque vanguardista do grupo Noigrandes? Em contraposição a que forças se definiu sua perspectiva? O aparecimento da poesia concreta não pode ser definido senão contra o pano de fundo especificamente artístico-literário, no qual segundo Haroldo de Campos, em evocação recente, “a conservadora Geração de 45, com seus jogos florais, era nossa adversária natural”. Como privilegiasse a dicção elevada e os tons solenes, voltando ao cultivo de temas e formas classicizantes, entregue à magia lírica e verbal, a poesia da chamada Geração de 45 passara a representar um retrocesso para criadores empenhados em intensificar a participação contemporânea da poesia. Combatê-la era uma forma de recusar o tradicional e recuperar, sonhava-se, a radicalidade do momento mais “revolucionário” da poesia de 22 – a “poesia-minuto” de Oswald de Andrade (SIMON, 1995, p. 343).
Não é à toa, que as reflexões em torno da música de vanguarda adentrassem na discussão literária concretista, a música atonal poderia realmente contribuir para desarticular a postura classicizante que predominou em muitos textos poéticos da geração de 45, não todos decerto, mas o suficiente para irritar artistas já acostumados com certa dissonância. Um soneto como o que vem a seguir, de Ledo Ivo, publicado em 1949, exemplifica bem a “magia lírica e verbal”: SONETO DE ABRIL Agora que é abril, e o mar se ausenta, secando-se em si mesmo como um pranto, vejo que o amor que te dedico aumenta seguindo a trilha de meu próprio espanto. Em mim, o teu espírito apresenta todas as sugestões de um doce encanto que em minha fonte não se dessedenta por não ser fonte d’água, mas de canto. Agora que é abril, e vão morrer as formosas canções dos outros meses, assim te quero, mesmo que te escondas: amar-te uma só vez todas as vezes em que sou carne e gesto, e fenecer como uma voz chamada pelas ondas.
Este soneto encontra alguns correspondentes na estrutura da música tonal. A música tonal encena em si a concepção do tempo através da tensão e do repouso com que são combinadas as notas,
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engendrando uma narrativa capaz de sugerir um núcleo dramático que pode ser assim resumido: situação de equilíbrio – tensão – repouso (volta ao equilíbrio). A mesma evolução pode ser vista no soneto citado: nos dois quartetos, a calma, o equilíbrio: “Agora que é abril, e o mar se ausenta,/ secando-se em si mesmo como um pranto”; no primeiro terceto, uma agitação gradativa: “assim te quero, mesmo que te escondas”; no último terceto, um final contundente, expressivo, que resolve a tensão: “amar-te uma só vez todas as vezes/ em que sou carne e gesto, e fenecer/ como uma voz chamada pelas ondas”. O poema apresenta uma linearidade, início, meio e fim bem definidos, alicerçado num centro temático único, no caso, a melancolia do mês de abril, em versos decassílabos cheios de aliterações, rimados alternadamente, provocativos de uma sonoridade de câmara, como se também pudessem ser solfejados, cantarolados, assobiados. Por sua vez, o que a música atonal empreendeu foi justamente desarticular o centro harmônico, diluir a lógica discursiva da escala diatônica, o que resultou numa música que se contenta com sua própria linguagem para realizar-se, seu interesse está nela mesma e não na expectativa de se chegar ao fim das tensões, uma nota não puxa a outra, e nela, cada parte, cada nota, soa qualitativamente igual. O tempo é percebido com a multiplicidade dos movimentos concomitantes, neste sentido, cria-se um registro único: tempo-espaço a modelar a execução e a apreciação desta música. Aí reside a ponte para o concretismo, já que no concretismo, assim como no atonalismo, a própria linguagem é o foco de interesse: “o poema concreto é um objeto em e por si mesmo, não um intérprete de objetos exteriores e/ou sensações mais ou menos subjetivas” (CAMPOS, 2006, p. 216). As partes de um poema concreto não diferem qualitativamente do produto final, não há hierarquia entre elas, não há uma organização sintática de causa e efeito: “o núcleo poético é posto em evidência não mais pelo emcadeamento sucessivo e linear de versos, mas por um sistema de relações e equilíbrios entre quaisquer partes do poema” (CAMPOS, 2006, p. 72). A música atonal, juntamente com o ideograma chinês, a sintaxe joyceana e a poesia de Mallarmé constituem os principais pilares teóricos e práticos que fundamentam a investida concreta. Outros temas musicais serviram de inspiração, se é que se pode falar em inspiração neste caso: melodia de timbres; a música eletrônica; o dodecafonismo; a música de Webern, de Scelsi, de Cage, de Boulez, de Stockhausen etc. E quanto a João Cabral de Melo Neto que sempre afirmava estar à margem da Geração de 45 e de não concordar com os rumos que ela tomou, será que dialogou também com algumas idéias da música de vanguarda?3. Não obstante tantas relações indispensáveis ao repertório prático de um poeta, como as questões de ritmo, rima, prosódia, o autor de Educação pela pedra se dizia antimusical. Em uma de suas entrevistas, João Cabral de Melo Neto declarou: O grande poeta brasileiro, não só de agora, mas de qualquer época, é Carlos Drummond de Andrade. Foi ele quem me convenceu, com Alguma poesia, de que eu também poderia ser poeta. Sempre fui antimusical, e na minha adolescência essa postura era incompatível com a poesia. No colégio, tinha um imenso enjôo dos versos tipo ‘Ora, direis, ouvi estrelas’, com esse ritmo chatíssimo (SECHIN, 1999, p. 326).
Quando Chico Buarque musicou algumas passagens de Morte e Vida Severina, de início, João Cabral ficou receoso: “Dei autorização porque achei uma coisa antipática dizer que não podia. Depois, recebi um disco com a música, que eu guardei em casa e nunca ouvi, porque realmente eu tinha medo” (SANT’ANNA, 2004, p. 189); mais tarde, reconheceria o trabalho de Chico Buarque: “Hoje, eu estou resignado a tirar das minhas ‘Poesias Completas’ o auto de Natal ‘Morte e Vida Severina’, pois creio Em entrevista a Suênio Campos: “Que balanço faz agora, cinqüenta anos depois, da chamada Geração de 45?”. Resposta: A geração representou o papel dela. Depois veio outra que a substituiu... Mas eu nunca fui adepto da Geração 45, fui sempre um pouco à margem dela”. Em seguida, “Não acha que há uma unidade forçada entre poetas tão díspares como Ledo Ivo, Geraldo Vidigal, Péricles Eugênio e Bueno Rivera?”. “Acho que não. Daí, talvez, é que está em eu nunca ter acreditado na Geração 45 não via nada de incomum nesses poetas. “O que destoava nessa geração?” “Acho que foi uma reação contra a Geração de 30 (Carlos Drummond de Andrade, Cecília Meireles, Manuel Bandeira, Joaquim Cardoso etc). era uma tendência esteticista que eles tinham, mas confesso que eu não aceitava aquilo”. (CAMPOS, 2001. p. 40).
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que ele pertence mais ao Chico Buarque do que a mim” (SANT’ANNA, 2004, p. 190). Em 1973, na mesma entrevista dada a Afonso Romano de Sant’Anna, o poeta pernambucano conclui: “Acho que seria da maior importância que os cantores populares musicassem os poemas mais musicáveis ou menos musicáveis de nossos poetas modernos (SANT’ANNA, 2004, p. 192). Deste modo, a imagem de um João Cabral distante da música pode ser relativizada e mais ainda se procurarmos o livro Serial, publicado em 1963, cujo título remete justamente às experiências de Schoenberg, lembrando indiscutivelmente a música dodecafônica. Antonio Carlos Secchin, em João Cabral: a poesia do menos, analisa este livro dividindo-o em suas partes constitutivas, restando uma análise surpreendente do rigor formal com o qual o livro se estrutura. Organizado sob o número 4 e seus múltiplos, Serial se assemelha a uma produção em massa, como se João Cabral de Melo Neto houvesse encontrado uma forma para escrever poemas em série, condicionados a um rigor matemático e técnico em que o espaço para o improviso ou o acaso surge igualmente planejado. Melhor argumentando, o poeta criou um conjunto de regras e obstáculos para o seu fazer, preenchendo assim as lacunas de seu plano com quartetos. Semelhante sistema se afina ao dodecafonismo de Schoenberg. Em Serial, cada poema obedece ao projeto previamente traçado, não só no que diz respeito às rimas, à métrica, às estrofes, ao itálico de algumas palavras e aos signos que separam estrofes (trevos, travessões e números) e mesmo à temática. O numeral 4, como bem observou Antonio Carlos Sechin, não possui um centro unitário, como o algarismo 3, por exemplo, (1-1-1). No número 4, temos (1-11-1). Nenhuma destas unidades representa o centro. E é justamente nesta descentralização que se baseia Serial. A ausência de centro também foi uma das estratégias usadas por Schoenberg para fugir do movimento cadencial de tensão e repouso que caracteriza o sistema tonal. Na música proposta pelo dodecafonismo shoenbergano, o músico valia-se da escala cromática, pois “a escala cromática é a base de um campo sonoro sem centro, em que nenhum centro teria precedência sobre outro” (WISNIK, 1989. p. 178). Com isto, não iremos encontrar nos dezesseis poemas de Serial o uso de refrão que possa motivar o retorno do leitor a algo anteriormente lido, embora cada parte do poema seja uma paráfrase do próprio conjunto, isto é, cada poema é dividido em quatro partes iguais, por sua vez composta de quadras, que volteiam sobre um mesmo tema. Com o descentramento, João Cabral dá uma nova função à estrofe de quatro versos, que sempre serviu à narração e ao raciocínio poético, sendo a quadra a preferida dos trovadores populares, junto com o dístico (cf. SPINA, 2002). Fica evidente a confluência da poesia de João Cabral de Melo Neto com os últimos suspiros vanguardistas da poesia brasileira, fechando o ciclo aberto pelos modernistas de 1922. A influência de Cabral na poesia concreta também é evidente, sobretudo na tentativa de superação das aporias da linguagem poética através de criações que reproduziam ou imitavam até certo ponto os próprios processos produtivos do sistema industrial. Com este resumo, encerramos o presente artigo que poderá servir de índice para um aprofundamento do intricado diálogo entre artes diversas no biênio 1950 e 1960, em especial literatura e música. Referências ANDRADE, Mário de. Ensaio sobre a música brasileira. 3ª ed. São Paulo: Vila Rica; Brasília: INL, 1972. (in http://www.ufrgs.br/cdrom/mandrade/mandrade.pdf) ______. Música e jornalismo 0 Diário de São Paulo. São Paulo: Hucitec: Edusp, 1993. ______. Obra Imatura. 3ª Edição. São Paulo, Martins; Ed. Itatiaia, 1980 Belo Horizonte, IV, 300p. CAMPOS, Augusto de. Mallarmé/ Augusto de Campos, Décio Pignataria, Haroldo de Campos. São Paulo: Perspectiva, 2006. CAMPOS, Augusto de; PIGNATARI, Décio; CAMPOS, Haroldo de. Teoria da Poesia Concreta. 4ª. Ed. São Paulo: Ateliê Editorial, 2006.
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Anais do II Congresso Internacional de Estudos Linguísticos e Literários na Amazônia (CIELLA) MANIFESTO MÚSICA NOVA. In http://www.latinoamerica-musica.net/historia/manifestos/3-po.html. SANTA’ANNA, Afonso Romano de. Música Popular e moderna poesia brasileira. 4ª ed. São Paulo: Landmark, 2004. STRAVINSKY, Igor; CRAFT, Robert. Conversas com Igor Stravinsky. São Paulo: Perspectiva, 2004. SECHIN, Antonio Carlos. João Cabral: a poesia do menos. 2ª. ed. Rio de Janeiro: Topbooks, 1999. SIMON, Iumna Maria. “Esteticismo e participação: as vanguardas poéticas no contexto brasileiro (19541969)” in PIZARRO, Ana (org.). América Latina: palavra, literatura e cultura. São Paulo: Memorial da América latina; Campinas: Ed. UNICAMP, 1995. v. 3. SPINA, Segismundo. Na madrugada das formas poética. 2ª. Edição. São Paulo: Ateliê Editorial, 2002. WISNIK, José Miguel. O som e o sentido. São Paulo: Companhia das letras, 1999.
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A RECEPÇÃO CRÍTICA EM DARANDINA E OS CIMOS DE PRIMEIRAS ESTÓRIAS Rosalina Albuquerque HENRIQUE (Mestranda em Letras — Universidade Federal do Pará) Prof. Dr. Sílvio Augusto de Oliveira HOLANDA (Orientador – Universidade Federal do Pará)
RESUMO: A produção literária de João Guimarães Rosa destaca-se no cenário da Literatura Brasileira pela habilidade em valorizar o mundo do sertanejo por meio da recriação e tradução poética de sua linguagem, que se deve a anos de dedicação aos estudos das Letras, de contatos com os sertanejos, mascates, garimpeiros, praças de polícia, caçadores, vaqueiros, bichos e paisagens mineiras, transcriando-os em ficção universal a expressar a condição humana e seus conflitos fundamentais. O autor mineiro trata o homem, seja pelo viés da loucura, seja pelo devaneio da imaginação de uma criança, como um eterno criador em contato com a realidade mágica como sendo um entrelaçar do mundo de fantasia e da realidade, a vitória do irracional sobre o racional, narrando o inenarrável. Dessa forma, esse trabalho se propõe a realizar uma análise da recepção crítica acerca de narrativas rosianas selecionadas do livro Primeiras Estórias (1962) — “Darandina” e “Os cimos” —, tendo como base textos críticos de estudiosos já consagrados da recepção rosiana como os de Paulo Rónai e os recentes de Ana Paula Pacheco. PALAVRAS-CHAVE: João Guimarães Rosa; “Darandina”; “Os cimos”; recepção crítica.
ABSTRACT: The literary production of João Guimarães Rosa stands in the scenario of Brazilian Literature by the ability to enhance the world of men from backlands through recreation and poetic translation of his language, which is due to years of dedication to the study of literature, contacts with means from backlands, mascates, miners, squares of police, hunters, vaqueiro, animals and landscapes of Minas Gerais, turned them into fiction to express the universal human condition and its fundamental conflict. The mineiro author treats the man, is the bias of madness is the dream of the imagination of a child, as an eternal creator in touch with reality magic, an interlacing of the world of fantasy and reality, the victory of the irrational over the rational, telling the untellable. Thus, this study is to conduct an analysis of rosianas narratives of the book The third bank of the river and other stories (1962) — “Much Ado” and “Treetops” —, based on critical texts of recognized scholars of the rosiana reception such as Paulo Rónai and the recent Ana Paula Pacheco. KEY WORDS: João Guimarães Rosa; “Darandina”; “Os cimos”; reception criticism.
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1. Introdução Em Primeiras Estórias, infância, velhice e loucura, as abstrações que se constituem como universos de desrazão e lugares do Outro na sociedade, são privilegiadas como condicionantes da sabedoria. Os protagonistas dos contos mergulham no mundo do imaginário, deixando-o significar [...], nas muitas estórias por que se multiplicam uma única estória que recupera o mito do itinerante que viaja em busca do conhecimento e que sabe que o resultado da busca não se encontra no final da viagem, mas no tempo e espaço da travessia (ALVES, 2000, p. 489).
Escrever sobre João Guimarães Rosa (1908-1967), um escritor de contos (Sagarana, Primeiras Estórias e Tutaméia), novelas (Corpo de Baile) e romance (Grande Sertão: veredas), consagrado pela crítica, é certamente enveredar-se “com o risco certo de perder-se mais de uma vez e com a recompensa não menos certa de se encontrar seguidamente a si mesmo nos muitos atalhos” ( RÓNAI, 1972, p. LVIII) deixados por ele em suas obras. Em Grande sertão: veredas (1956), obra que antecede Primeiras Estórias (1962), o escritor Guimarães Rosa exibe uma rica capacidade de expor os aspectos de seu mundo e de uma memória inventiva que sempre contemplou o grande mistério: a realidade. O romance tem como fulcro o amor de Riobaldo por Diadorim, um sentimento que despertaria enormes conflitos em Riobaldo, e, além das aventuras e indagações metafísicas abordadas no livro, o romance brasileiro, intencionalmente, passou pela mais radical experimentação linguística, diferente de tudo em nossa literatura. Passado um período de seis anos, em 1962, quando João Guimarães Rosa assume a Chefia da Divisão de Fronteira do Itamaraty publica, em agosto, Primeiras Estórias, que é um livro de contos, sendo esta obra traduzida para o alemão, especialmente por Curt Meyer-Clason. E, em 1965, os seus livros eram traduzidos na Alemanha, Canadá, Estados Unidos, Espanha, França, Itália, Portugal e Polônia. O título do livro Primeiras Estórias chama atenção pelo fato do autor preferir estórias rejeitando a palavra “histórias”, pois, não interessavam os fatos registrados e sim o modo como essas narrativas foram planejadas. 2. Fundamentação Teórica Quando nos referimos à recepção crítica da obra de João Guimarães Rosa, entendemos que o suporte teórico para esse estudo seja o da Rezeption-sästhetik [Estética da Recepção] formulado por Hans Robert Jauss (1921-1997), em 1967, na sua famosa aula inaugural com o título de Literaturwissenschaft [A história da literatura como provocação à teoria literária], na Universidade de Constança. Este afirma que “[a] história da literatura é um processo de recepção e produção estética que se realiza na atualização dos textos literários por parte do leitor que os recebe, do escritor, que se faz novamente produtor, e do crítico, que sobre eles reflete” (JAUSS, 1994, p. 25). Nesse sentido, estudar o mundo forjado pelo autor de Tutaméia não é tarefa fácil, uma vez que requer, acima de tudo, ultrapassar o entendimento primário por meio de uma leitura balizada por aparatos teóricos. Portanto, ficam assinalados, para os nossos estudos, os exames críticos de autores renomados como Paulo Rónai e de estudos recentes como os de Ana Paula Pacheco, no que tange aos contos “Darandina” e “Os cimos”, de Primeiras Estórias, objeto de nossa análise. O primeiro estudioso aponta a existência de um espírito lúdico na obra literária de Guimarães Rosa, vendo-o “espreitar com malícia brincalhona, as reações da crítica a certas inovações explosivas, assim como exultar ante a agudeza de alguns intérpretes que conseguiram captar-lhe as mensagens, muitas vezes propositadamente veladas” (RÓNAI, 1973, p. XX), porque, como o próprio autor de Corpo de Baile afirmou, “tudo, absolutamente tudo, correspondia a intenções, era calculado” (RÓNAI, 1973, p. XX). Desse modo, ele divide as vinte e uma narrativas de Primeiras Estórias em diversos subgêneros explicando-os: [...] o conto fantástico, o psicológico, o autobiográfico, o episódico cômico ou trágico, o retrato, a reminiscência, a anedota, a sátira, o poema em prosa... [...] multiplicidade decorrente não só do tema, senão também da personalidade do narrador, manifesto ou oculto (RÓNAI, 1972, p. XXXII).
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Este crítico húngaro, em artigo sobre Sagarana, não antevia a vocação de Guimarães Rosa para a escrita de contos curtos, vendo-a tão somente para o romance. No entanto, o interesse pela língua, registrando matizes e modalidades até então desconhecidas do público leitor, cria palavras não-dicionarizadas, recupera o significado de outras, empresta termos de línguas estrangeiras e estabelece rupturas sintáticas. Dessa forma, as narrativas rosianas fazem resplandecer a linguagem, sua principal inspiração na construção de suas estórias. Sobre isso, Rónai revela que, em “Darandina”, os “neologismos, trocadilhos, onomatopéias e inversões estão a serviço de uma esfuziante comicidade — o que lembra que os processos sintáticos do autor não devem ser avaliados fora do clima de intencionalidade” (RÓNAI, 1972, p. LIII). Todavia, não é só de elementos linguísticos que o autor mineiro povoa os vastos espaços enigmáticos por onde perpassam as suas estórias. Também observa-se nestas, personagentes agrupados em duas categorias, a de loucos e a de crianças. A loucura, nos primeiros, “solta fogos de artifícios, escancara horizontes” (RÓNAI, 1972, p. XXXV), levando-os a instantes de exaltação do seu estado de devaneio, em que a falta de lucidez preencheria a Vida, tal como ocorre no conto “Darandina”. Já sobre as crianças, como os personagens de “As margens da alegria” e de “Os cimos”, Guimarães Rosa apresenta a mágica do descobrimento pelos “olhos virgens nos mistérios do mundo [e das] excitantes descobertas” (RÓNAI, 1972, p. XXXVI). No conto, “As margens da alegria”, que proemia o volume, se insinua um encontro da alegria por meio de uma experiência humana à medida que o Menino passa pela perda, pela decepção e pela constatação do impossível. Em “Os cimos”, narrativa que encerra a obra, por sua vez, revelase a face do sofrimento da criança causado pela doença da mãe, o que no entanto, não o cega para a descoberta da beleza da vida presente na formosura de um tucano que todas as manhãs, e sempre no mesmo horário, se aproximava da casa onde o menino estava hospedado para comer as frutas de uma árvore. Tanto neste conto quanto em “Os cimos”, a experiência do ideal com a do factual, se dá por meio de uma aproximação destas com a realidade, vista em episódios cotidianos de morte, de dor, de práticas de violência e da destruição do espaço histórico em detrimento de uma nova cidade em vias de construção, que pelas descrições do narrador e pela fala dos personagens, nos faz inferir que seja Brasília. Frente a estas rápidas mundanças sociais, a temática da violência, da política e da sociadade patriarcal emoldurou a recriação simbólica do mundo adentrando no tempo mítico,“esboroando as fronteiras entre um e outro” (PACHECO, 2006, p. 40), destarte, retira-se o mito de uma função apenas mitificante, para alcançar uma dimensão histórica-social. Ana Paula Pacheco, em Lugar do mito, declara acerca de “As margens da alegria”, a existência neste conto da “fantasia do maravilhoso em coordenadas bem próximas — ainda que sob a sutileza da alusão” (2006, p. 32-33), uma vez que segundo André Jolles (1976), o conto maravilhoso trabalha separado da representação realística. No entanto, Guimarães Rosa vale-se disso mesclando real e irreal, para marcar, num período histórico plausível, a ameaça que a industrialização traria aos locais mais afastados dos centros urbanos do país e para o sertão, ao lado do maravilhoso que dá o desejo de fazer o mundo melhor sem deixar de lado a atualidade problemática. Ali fabricava-se o grande chão do aeroporto — transitavam no extenso as compressoras, caçambas, cilindros, o carneiro socando com seus dentes de pilões, as betumadoras. E como haviam cortado lá o mato? — a Tia perguntou. Mostraram-lhe a derrubadora, que havia também: com à frente uma lâmina espessa, feito limpa-trilhos, à espécie de machado. Queria ver? Indicou-se uma árvore: simples, sem nem notável aspecto, à orla da área matagal. O homenzinho tratorista tinha um toco de cigarro na boca. A coisa pôs-se em movimento. Reta, até que devagar. A árvore, de poucos galhos no alto, fresca, de casca clara... e foi só o chofre: ruh... sobre o instante ela para lá se caiu, toda, toda. Trapeara tão bela. Sem nem se poder apanhar com os olhos o acertamento — o inaudito choque — o pulso da pancada. [...] Voava, porém, a luzinha verde, vindo mesmo da mata, o primeiro vaga-lume. Sim, o vaga-lume, sim, era lindo! — tão pequenino, no ar, um instante só, alto, distante, indo-se. Era, outra vez em quando, a Alegria (ROSA, 1962, p. 6-7).
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A criança, do conto “Os cimos”, para fugir do sofrimento passa a enxergar o mundo com outros olhos, os do imaginário, por causa disso, une pela imaginação a Mãe curada à visão ascensional do pássaro (o tucano); o macaquinho em trajes festivos e os lugares por onde passou, tudo em um só espaço e tempo. Essa ensaísta esclarece que “[o] ideal reaproximado do real é uma poética dessa personagem, e do escritor, que aposta numa educação do homem, num aprendizado da natureza (também a humana) pelo estético” (PACHECO, 2006, p. 259). Logo, o protagonista confere à palavra um poder mágico, ao transformar o seu universo em poesia, transfigurando tudo ao seu redor em beleza. Esta personagem, por seu turno, compreende que pode ser o gerador de sua própria alegria por meio da visão ascensional do tucano, que faz erguer o sol ensinando-o “a sobrevivência e gratuidade da beleza, a despeito da morte que espreita” (PACHECO, 2006, p. 37), desvela-se, tanto neste conto como em “As margens da alegria”, um sofrimento particular relacionado a perdas efetivas, das quais ultrapassa os percalços impostos a ele, nesse sentido, o fim último é a travessia, com a finalidade de conquistar a alegria: A uma das árvores, chegara um tucano, em brando batido horizontal. Tão perto! O alto azul, as frondes, o alumiado amarelo em volta e os tantos meigos vermelhos do pássaro — depois de seu vôo. Seria de ver-se: grande, de enfeites, o bico semelhando flor de parasita. Saltava de ramo em ramo, comia da árvore carregada. Toda a luz era dele, que borrifava-a de seus coloridos, em momentos pulando no meio do ar, estapafrouxo, suspenso esplendentemente. No topo da árvore, nas frutinhas, tuco, tuco... daí limpava o bico no galho. E, de olhos arregaçados, o Menino, sem nem poder segurar para si o embrevecido instante, só nos silêncios de um-dois-três. No ninguém falar. Até o Tio (ROSA, 1962, p. 175).
Mesmo não sendo um artista propriamente dito, o menino realiza essa viagem até a alegria em decorrência de sua sensibilidade imaginativa, reinventando o seu mundo com um olhar subjetivo, construindo um novo mundo, agora mais satisfatório: Ao quarto dia, chegou um telegrama. O Tio sorriu, fortíssimo. A Mãe estava bem, sarada! No seguinte — depois do derradeiro sol do tucano — voltariam para casa [...]. O Menino sorriu do que sorriu, conforme de repente se sentia: para fora do caos pré-inicial, feito o desenglobar-se de uma nebulosa” (ROSA, 1962, p. 175).
Apropriando-se do estudo do conto já exposto, o enredo de “Darandina”, ao contrário, desenvolve uma ideia de apreensão do mundo não pelo viés da beleza, mas pela visão da loucura. Paulo Rónai, em “Vastos Espaços”, chega a afirmar que o protagonista “tem seus pontos de contato com o autor, de quem, partilha (e exagera) as fantasias verbais e o pendor filosofante” (RÓNAI, 1972, p. LIII) da loucura de um homem, aparentemente comum, o qual consegue realizar uma façanha surpreendente, escalar uma palmeira sem dificuldade e instalar-se no seu topo, resistindo as tentativas de diálogo com as autoridades da cidade que se esforçam para retirá-lo da árvore. Esse homem, agora no ápice, assemelha-se ao Menino de “Os cimos” quando, numa visão ascensional do voo de uma ave, se entrega à graça deste animal, sendo um momento de deschão. Em “Darandina”, o narrador, que está em primeira pessoa, é influenciado pelas concepções propagadas por um homem ensandecido e, no exame deste personagem e de seu comportamento, identifica as várias faces do ser humano sob as quais se esconde a sua essência — enquanto sujeito social, gerenciador de suas próprias atitudes e opiniões. Evidentemente, o sentido da estória parece querer desagregar, diga-se de passagem, a ideia mais segura de que as pessoas possuem a respeito da compreensão do mundo e da vida: E era um revelar em favor de todos, instruía-nos de verdadeira verdade. A nós — substantes seres subaéreos — de cujo meio ele a si mesmo se raptara. [...] De mim, não pude negar-lhe, incerta, a simpatia intelectual, a ele, abstrato — vitorioso ao anular-se — chegado ao píncaro de um axioma (ROSA, 1962, p. 140).
É estabelecendo conceitos, por exemplo, sobre a realidade circundante, entre elas a palmeira, dos quais o sujeito dito hebefrênico1 inaugura novos conceitos, como se pode observar: “Uma palmeira é Em 1871, Edwald Hecker expôs uma análise mais detalhada sobre o hebefrênico (do grego. hébe, mocidade + phrén, inteligência, alma), que define a pessoa em estado de esquizofrenia — expressão usada pelo psiquiatra suíço Eugène Bleuler, em 1911, para substituir à antiga denominação “demência precoce” — que significa cisão da mente. Esta cisão é
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uma palmeira ou uma palmeira ou uma palmeira?” (ROSA, 1962, p. 136). É uma árvore, contudo, ao dizer “ou uma palmeira”, o conectivo coordenativo de alternação “ou” dissipa a dúvida, pois uma palmeira já não é mais uma palmeira e não a conclui, reiterando de novo o conectivo “ou”: “ou uma palmeira?”. Diante disso, evidencia-se como um cidadão consegue por em dúvida verdades inquestionáveis, fazendo um verdadeiro duelo verbal acerca de novos conceitos: “Viver é impossível!...” (ROSA, 1962, p. 140) e “O amor é uma estupefação...” (ROSA, 1962, p. 144). O relato prossegue, propositadamente, escrito de modo cômico, pois em “Darandina” há diversas situações engraçadas provocadas pela forma como as palavras são proferidas pelo protagonista da estória e também pelas palavras empregadas por João Guimarães Rosa. Porém, o tom de comédia, que é o clima geral deste conto, deve-se a uma nova atribuição a este sujeito enlouquecido. Ele deixa de ser um simples humano para ser um “homem empalmeirado” (ROSA, 1962, p. 139): “Eu nunca me entendi por gente!...” (ROSA, 1962, p. 139); “Querem comer-me ainda verde?!”; (ROSA, 1962, p. 142); “Minha natureza não pode dar saltos?...” (ROSA, 1962, p. 146). Nesse sentindo, expressando um jogo de opostos: razão e loucura, vinculado a uma linguagem lúdica em direção a uma poética em que as rimas, as assonâncias e as aliterações se fazem presentes em Primeiras Estórias, entende Johan Huizinga (18721945) a função lúdica da poesia da seguinte maneira: A poesia se exerce no interior da região lúdica do espírito, num mundo próprio para ela criada pelo espírito, no qual as coisas possuem como fisionomia inteiramente diferente das que apresentam na “vida comum” e estão ligadas por relações diferentes das da lógica e da casualidade (1971, p. 133).
Lúdico e criador, o autor de Primeiras Estórias desfruta de seus conhecimentos da medicina psiquiátrica para expor a esquizofrenia de um homem, longe de ser apontado como louco. A esquizofrenia é o caminho pelo qual este personagem em sua insanidade sã, está longe de sinalizar uma ruptura absoluta com a razão, uma vez que em seu devaneio se abre uma trilha do desdobramento para aprendizagem de uma nova percepção da vida, a medida que, conforme Michael Foucault (19221984), “a loucura só existe em cada homem, porque é o homem que a constitui no apego que ele demonstra por si mesmo e através das ilusões com que se alimenta” (1978, p. 24). O pensador francês, que lecionou filosofia e história no Collège de France (1970-1984), no livro História da loucura: na Idade clássica (1961), aborda as ideias, as práticas, as instituições, a arte e a literatura referentes à loucura na história do mundo ocidental, acrescentando que “a loucura é um momento difícil, porém essencial, na obra da razão; através dela, e mesmo em suas aparentes vitórias, a razão se manifesta e triunfa. A loucura é, para a razão, sua força viva e secreta” (FOUCAULT, 1978, p. 35). Logo, a maior prova da existência da razão é a presença da loucura. Sendo assim, a riqueza literária de João Guimarães Rosa, em especial na obra Primeiras Estórias, no que tange aos contos selecionados “Darandina” e “Os cimos”, estimula cada vez mais o trabalho da exegese. Segundo Thomas Stearns Eliot (1888-1965), a função da crítica é a elucidação das obras de arte e a correção do gosto que envolve uma escolha precisa e final do estudioso da palavra literária cuja tarefa é a de decidir “quais as espécies de crítica que são úteis e quais as que são ociosas” (ELIOT, 1997, p. 37) para que não haja obscurecimento sobre uma obra, mas sim um julgamento adequado. Para o autor de Grande sertão: veredas, a crítica [d]eve ser um diálogo entre o intérprete e o autor, uma conversa entre iguais que apenas se servem de meios diferentes. Ela exerce uma função literária indispensável. Em essência, deve ser produtiva e co-produtiva, mesmo no ataque e até no aniquilamento se fosse necessário (LORENZ, 1991, p. 76).
Essa conversa entre receptor e autor, ideia defendida por Guimarães Rosa, para o teórico da Estética da Recepção a arte literária não é um sistema acabado, fixo e imutável e coloca-se em oposição aos formalistas e aos estruturalistas que se distanciaram do subjetivismo da obra, além do que, ignoraram o “leitor em seu papel genuíno, imprescindível tanto para o conhecimento estético característica da doença que atinge as várias funções psíquicas como pensar e sentir, sugerindo uma perda da personalidade. Doença que consiste na dissociação da afetividade, no entanto, a inteligência permanece intacta, registrando tudo o que se passa diante do indivíduo que está enfermo.
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quanto histórico: o papel do destinatário a quem, primordialmente, a obra literária visa” (JAUSS, 1994, p. 23). Por conseguinte, Hans Robert Jauss nega uma estrutura já completa em que não há uma discussão entre o texto e o leitor que significa assim, a morte do sujeito na interpretação de uma dada produção escrita. De modo favorável a este ator por muito tempo nebuloso até a chegada dos estudos jaussianos em que a literatura passou a ser analisada a partir do ponto de vista deste, Hans-Georg Gadamer (1900-2002), em seu Wahrheit und Methode [Verdade e Método] declara que “[o] sentido de um texto supera seu autor não ocasionalmente, mas sempre. Por isso a compreensão não é nunca um comportamento somente reprodutivo, mas é, por sua vez, sempre produtivo” (2002, p. 444). Ora, isto está vinculado ao horizonte do intérprete tanto o de expectativa estética quanto o de expectativa da experiência, todavia é inexistente o sujeito que ler e outro que vive em sociedade. É somente um sujeito havendo em conjunto o histórico e o social que realiza a dialética consciente na operação em dois horizontes. Fazendo uma reconstrução do horizonte passado (da época original que o autor lançou a obra) distanciando-se do presente de seu horizonte próprio para poder encontrar os caminhos que o escritor fez na realização do texto, as suas escolhas e, como também as suas devidas interpretações; só assim com base a uma “pré-compreensão” poderá, no caso o crítico, colocar-se em expectativa de apreciação da tríade hermenêutica (compreender, interpretar, aplicar). Em relação ao esboço acima, o conceito de horizonte de expectativas pode ser definido como um sistema intersubjetivo ou estrutura de espera. Ligado à Hermenêutica que não se fixa à imanência do texto, sem a mediação do leitor, ela “não é uma ciência hermética mas um instrumento precioso na prática da vida, na medida em que, pela compreensão dialógica na experiência do texto, ela permite ao mesmo tempo a experiência do outro” (JAUSS, 1982, p. 29). Cada leitura é a concretização de um sentido trazendo à tona a que pergunta a obra responde porque, como já afirmou o filósofo alemão Gadamer, a ação da reconstrução da questão nos permite compreender o sentido de uma dada produção escrita como sendo a resposta do nosso ato de questionar. Então, voltamos à concepção da obra literária como algo não terminado e, sim sempre em estado móvel, transitiva pois, segundo Jauss, a relação entre literatura e leitor possui implicações tanto estéticas quanto históricas. A implicação estética reside no fato de já a recepção primária de uma obra pelo leitor encerrar uma avaliação de seu valor estético, pela comparação com outras obras lidas. A implicação histórica manifesta-se na possibilidade de, numa cadeia de recepções, a compreensão dos primeiros leitores ter continuidade e enriquecer-se de geração em geração (JAUSS, 1994, p. 23).
Portanto, quando o intérprete realiza uma leitura torna-se também em um “autor” ressignificando, em sua época, muitos dos aspectos da obra litéraria assinalando as relações do texto literário com o período do seu aparecimento. 3. Conclusão A recepção crítica de João Guimarães Rosa evidencia uma genialidade acompanhada de sua dedicação à linguagem. O crítico Paulo Rónai, quanto a esse último aspecto, assinalou o interesse desse escritor por línguas, tendo em vista amostras de uma inventividade, no emprego de neologismos, reinventando palavras, e no empréstimo de vocábulos estrangeiros, incorporando-os ao ritmo poético e lúdico em suas obras de ficção. Conhecedor e investigador de muitas expressões idiomáticas, Rosa cria uma linguagem poética para um mundo chamado sertão, sendo definido dessa maneira pelo personagem Riobaldo de Grande sertão: veredas — “O sertão é o mundo” —, submetendo a linguagem a experimentações incansáveis. Tendo em vista que as várias interpretações acerca da obra rosiana, que ampliou os horizontes da vivência brasileira, abriram novas possibilidades de estudo sobre os percursos da linguagem diante de uma experiência humana, posto que a obra Primeiras Estórias é povoada por seres loucos, velhos,
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infantis, etc., em que o escritor Guimarães Rosa, meditando sobre a palavra, em cada narrativa, permite ao leitor descobrir a si mesmo, já que, para o autor, a literatura deveria nascer da vida. Parafraseando-o, “precisamos também do obscuro” (RÓNAI, 1973, p. XXI), que é a imprevisibilidade: a própria realidade, que é o ser humano em busca constante de uma aprendizagem que impulsiona o menino, o personagem de “Darandina”, e o escritor para a descoberta de novas veredas, encontrando-se e perdendo-se em muitos outros caminhos. Referências ALVES, Maria Theresa Abelha. Primeiras Estórias: a alteridade “inventada no feliz”. In: Seminário Internacional Guimarães Rosa. Belo Horizonte: PUC Minas CESPUC, 2000. p. 489-493. BOLSANELLO, Aurélio; BOLSANELLO, Maria Augusta. Conselho: análise do comportamento humano em psicologia (A velhice, vol. IV). Curitiba: Educacional Brasileira, 1981. 287 p. ELIOT, T. S. A função da crítica. In: Ensaios de Doutrina Crítica. Trad. Fernando Moser. 2 ed. Lisboa: Guimarães, 1997. p. 35-49. [Ortografia lusitana] FIGURELLI, Roberto. Hans Robert Jauss e a estética da recepção. Revista Letras. Curitiba (UFPR), v. 37, p. 265-285, 1988. FOUCAULT, Michel. História da loucura: na Idade clássica. Trad. José Teixeira Coelho Neto. São Paulo: Perspectiva, 1978. 551 p. GADAMER, Hans-Georg. Verdade e método. 4. ed. Trad. Flávio Paulo Meurer. Petrópolis: Vozes, 2002. 731 p. HUIZINGA, Johan. Homo Ludens. São Paulo: Perspectiva e EDUSP, 1971. 243 p. JAUSS, Hans Robert. A história da literatura como provocação à teoria literária. Trad. Sérgio Tellaroli. São Paulo: Ática, 1994. 78 p. _____. Limites e tarefas de uma Hermenêutica Literária. In: Por uma hermenêutica literária. Trad. Maurice Jacob. Paris: Gallimard, 1982. p. 11-29. JOLLES, André. Formas Simples. Trad. Álvaro Cabral. São Paulo: Cultrix, 1976. 222 p. LORENZ, Günter W. Diálogo com Guimarães Rosa. In: COUTINHO, Eduardo F. (org.). Guimarães Rosa. 2. ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1991. p. 62-97. MARTINS, Nilce Sant’Anna. O léxico de Guimarães Rosa. São Paulo: EDUSP, 2001. 536 p. PACHECO, Ana Paula. Lugar do Mito: Narrativa e Processo Social nas Primeiras Estórias de Guimarães Rosa. São Paulo: Nankin, 2006. 271 p. RÓNAI, Paulo. Perfil de João Guimarães Rosa. In: Seleta de João Guimarães Rosa. Rio de Janeiro: José Olympio, 1973. p. XVII-XXI. _____. Os vastos espaços. In: ROSA, João Guimarães. Primeiras estórias. 6. ed. Rio de Janeiro: J. Olympio, 1972. p. XXIX-LVIII. ROSA, João Guimarães. Primeiras estórias. Rio de Janeiro: J. Olympio, 1962. 176 p. _____. Correspondência com seu tradutor alemão Curt Meyer-Clason. Belo Horizonte: UFMG; Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2003. 447 p. _____. Primeiras estórias. Rio de Janeiro: Nova Fornteira, 2005. 213 p. SANTOS, Julia Conceição Fonseca. Nomes de personagens em Guimarães. Rio de Janeiro: INL, 1971. 264 p.
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GUIMARÃES ROSA E A CRÍTICA ITALIANA: O CASO DE ETTORE FINAZZI-AGRÒ Sílvio Augusto de Oliveira HOLANDA (Universidade Federal do Pará)
RESUMO: A presente comunicação é um estudo interpretativo da recepção crítica de Guimarães Rosa pela crítica italiana recente, procurando cingir-nos ao período compreendido entre 1998 e 2007. Nesse período, que é posterior ao lançamento das mais importantes traduções de textos rosianos para a língua italiana, devidas ao labor e senso poético de Edoardo Bizzarri, saíram, em Língua Portuguesa, muitos estudos acerca da poética rosiana e suas implicações. Entre os intérpretes, destaca-se, sem dúvida alguma, o professor Ettore FinazziAgrò, da Universidade de Roma. Segundo este autor, haveria, subjacente à produção rosiana, uma espécie de lógos trágico. Com base em George Steiner, o professor italiano rediscute a relação entre mito e romance moderno, tema bastante comum na crítica brasileira acerca de Grande sertão: veredas, para defini-la como a “dolorosa tomada de consciência de que aquilo que nos aguarda é apenas o atormentado, humano aguardar” (FINAZZI-AGRÒ, 2002, p. 123). No livro Um lugar do tamanho do mundo (2001), relendo trecho do célebre parágrafo inicial — “Lugar sertão se divulga: é onde os pastos carecem de fechos...” (ROSA, 1956, p. 9) —, o pesquisador busca examinar tempos e espaços na ficção rosiana. Ao tratar da segunda categoria, lê o espaço como oblíquo, indefinido, num definir e abolir, dialeticamente, de fronteiras. Então, o espaço da obra se situa no âmbito da tensão exatidão vs. precisão e “se dispõe [...] no interstício que se recorta entre contar e ouvir, na fenda que corre entre a pergunta e a resposta.” (FINAZZI-AGRÒ, 2001, p. 55) PALAVRAS-CHAVE: Guimarães Rosa, crítica italiana, Ettore Finazzi-Agrò.
RÉSUMÉ: Il s’agit d’une étude de la réception critique de Guimarães Rosa par la critique italienne récente, dans la période entre 1998 et 2007. Au cours de cette période, après le lancement des plus importantes traductions de textes de Guimarães Rosa pour l’italien, en raison de la main-d’œuvre et de sens poétique de Edoardo Bizzarri, en portugais, de nombreuses études sur la poétique rosiane et de ses implications ont été publiées. Parmi les interprètes, on doit mettre en évidence sans doute le professeur Ettore Finazzi-Agrò, de l’Université de Rome. Selon cet auteur, il ya, sousjacent à la production rosiane, une sorte de logos tragique. À partir de George Steiner, le professeur italien rediscute les relations entre le mythe et le roman moderne, thème très commun dans les critiques à propos de Grande sertão: veredas, à fin de la définir comme “douloureuse prise de conscience de ce qui nous attend est seulement le tourmenté, l’attente de l’homme” (FINAZZI-AGRÓ, 2002, p. 123). Dans le livre Um lugar do tamanho do mundo (2001), en faisant la relecture du paragraphe premier — “Lugar sertão se divulga: é onde os pastos carecem de fechos...” (ROSA, 1956, p. 9) —, le chercheur veut examiner le temps et l’espace dans la fiction rosiane. Pour répondre à la deuxième catégorie, lire l’espace comme oblique, de durée indéterminée. Ensuite, le domaine de l’œuvre se situe dans la tension vs précision. la précision et “se dispõe [...] no interstício que se recorta entre contar e ouvir, na fenda que corre entre a pergunta e a resposta.” (FINAZZI-AGRÒ, 2001, p. 55) MOTS-CLÉS: Guimarães Rosa, critique italienne, Ettore Finazzi-Agrò.
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1. Breve discussão sobre Hermenêutica e Estética da Recepção O ato de compreensão não é um ato puramente contemplativo no qual o intérprete deveria simplesmente apagar sua subjetividade e esquecer sua posição histórica para aceder à percepção objetiva de uma coisa. O ato de compreensão se orienta sempre segundo uma orientação prévia das perguntas. (JAUSS, 1988, p. 52)
Se admitirmos que a obra literária não existe exclusivamente per se, destinada essencialmente ao leitor, sem cuja participação aquela não existiria, poderemos compreender diversos problemas da crítica literária sob uma ótica diversa. O sentido, assim, não proviria apenas das relações internas dos componentes de uma dada obra, numa concepção que radica o estudo literário exclusivamente na linguagem, deixando de lado relações outras. Pode-se, abandonando o estruturalismo, tentar redefinir o problema da leitura e da experiência estética com base numa perspectiva tridimensional (compreender, interpretar e aplicar) que, sem subestimar a linguagem, nos permita pensar a obra em sua incompletude fundamental, em seu nexo com o leitor que a anima pela interpretação. Tome-se a idéia de leitor como categoria de análise, sujeito hermenêutico, que é, ao mesmo tempo, produtor e lugar de manifestação de sentido. No caso de obras extremamente complexas, tem-se reduzido o estudo crítico a um atomizante exame de partes da obra, fonemas ou seqüências fonêmicas, certas estruturas frasais, escolhas lexicais. Tais operações analíticas, ainda que dotadas de algum valor, ressentem-se, no plano de uma compreensão global da obra, de uma incapacidade de ver como um todo, totalidade essa que não decorre apenas de uma soma ou justaposição de blocos de texto ou é tão-somente expressão direta de uma vontade autoral. Para a compreensão global de dada obra, nenhum dado deve ser descartado liminarmente, contudo é necessário eleger sentidos, dentre tantos possíveis, alguns vindos de longa tradição. Pensese, por exemplo, em como interpretar a obra baudelairiana, pelo recurso à mera justaposição de pontos de vista, como prova desta ou daquela teoria sobre a modernidade ou sobre a alegoria. Como obras tão complexas e inovadoras não ficam interditas à compreensão do leitor? Por meio de que recursos literários, a obra transgride aquilo que busca circunscrever a percepção humana ao óbvio? Buscar a hermenêutica para compreender a obra literária conduz-nos a perceber distinções fundamentais, tais como entre livro e mundo, objeto interpretado e sujeito interpretante. Há diversas possibilidades e concepções de hermenêutica, sendo necessário circunscrever o seu alcance. Nesse sentido, este trabalho se funda na teoria hermenêutica postulada por Jauss, que, em muitos aspectos, remonta às teses básicas de Gadamer. Ao buscar a formulação teórica desta, o pensador de Konstanz, sem abandonar a defesa de uma reformulação teórica da história literária, acresce novos temas à sua reflexão inicial, o que lhe permitirá não só elaborar um conceito novo de leitor, mas também problematizar a experiência estético-literária sob a perspectiva tripartida de aisthesis, poeisis e katharsis. Sem esgotar a discussão, vale referir que o pensamento jaussiano, no plano hermenêutico, não se limita a um desdobramento parcial, um epigonismo teórico, já que se estabelecem algumas discordâncias em relação ao autor de Verdade e método. Tais discordâncias derivam, fundamentalmente, do diverso entendimento quanto à relação obra e tradição nos dois pensadores. Jauss, postulando que o sentido literário está sempre em renovação, não admite, como Gadamer, uma plenitude de sentido advinda da tradição em que se funda a obra literária, postura que não historiciza a experiência estética. O pensamento de Jauss, entre 1967 e 1997, passou por diversas reformulações, no sentido de precisar conceitos, ampliar temas inicialmente postos, afirmar pontos de vista pelo confronto com outros teóricos, como Adorno e Barthes. Assim, a Estética da Recepção não pode circunscreverse às posições do final da década de 1960, às postulações relativas à história literária. Ao longo do tempo, nuançando posições antes assumidas, o teórico buscou aproximar a experiência estética da hermenêutica literária, para ela carreando elementos, inclusive, do texto bíblico. Não se trata de, no plano empírico, de mera renovação da sociologia da literatura, visto que a experiência estética é descrita em termos teoréticos. Exigir levantamentos factuais, com a pretensão
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de opor uma crítica rigorosa a Jauss, é confundir a Estética da Recepção com a sociologie de la lecture defendida por Robert Escarpit. O leitor jaussiano não é carecente de objetividade ou produto otimista de uma crença na renovação do mundo pela arte. Se, por vezes, Jauss, como Schiller, sustenta uma estetização do mundo, tal defesa não é unilateral ou miopia diante das condições concretas de produção e circulação de bens artísticos nas sociedades modernas. Talvez haja otimismo teórico em Jauss, mas ele não é o Candide da teoria literária moderna, que ele ajudou a forjar segundo uma nova égide. O estético, em Jauss, funda uma nova forma de historicidade, dependente dos intérpretes, que rompe com a idéia de arte como algo completamente desligado do mundo. Para surpresa de alguns críticos, o fundador da Estética da Recepção não é idealista; é antes um crítico de Platão, cujo dualismo recusa sob a inspiração direta de Walter Benjamin. A obra de arte literária impõe como premissa ao hermeneuta a sua própria condição estética, premissa diversa daquela que se manifesta na hermenêutica jurídica ou teológica. Assim, sem sair do campo da Literatura para o da Estética filosófica, é preciso pensar como a obra de arte literária elabora ficcionalmente a sua própria condição de obra, mormente nos casos de maior elaboração formal e temática. Postulamos que esta abordagem nos permitiria examinar obras básicas de nossa história literária ocidental sob nova luz, numa confluência de elaboração estética e de crítica. Assim define recepção como: Uma análise da experiência estética do leitor ou de uma coletividade de leitores, presente ou passada, deve 1) considerar os dois elementos constitutivos da concretização do sentido — o efeito produzido pela obra, que é função da própria obra, e a recepção, que é determinada pelo destinatário da obra — e 2) compreender a relação entre texto e leitor como um processo que estabelece uma relação entre dois horizontes ou que opera sua fusão. (JAUSS, 1991, p. 259)
2. Ettore Finazzi-Agrò, intérprete de Guimarães Rosa A primeira tradução de Guimarães Rosa para a língua italiana se deu em 1963, quando a Nuova Academia publicou a versão de Edoardo Bizarri para o conto “Duelo” (“Il duello”). A essa primeira tentativa se seguiriam os textos de Corpo de Baile (1964) e Grande sertão: veredas. Tais obras, circulando em um meio editorial sólido, despertaram o interesse da crítica, que logo soube apontar a presença de imagens e motivos dantescos em Guimarães Rosa, somando-se ao debate, já em curso, suscitado por outras traduções para diversas línguas ocidentais. No período entre 1998 e 2007, que é posterior ao lançamento das mais importantes traduções de textos rosianos para a língua italiana, saíram, em português e em italiano, muitos estudos acerca da poética de Guimarães Rosa. Entre os intérpretes, destaca-se, sem dúvida alguma, Ettore Finazzi-Agrò, professor titular da Universidade de Roma (La Sapienza). Alguns desses estudos foram publicados no Brasil na forma de livros ou artigos, suscitando o interesse da crítica especializada por este diálogo com os meios acadêmicos estrangeiros. Não se pretende, nesta comunicação, discutir a recepção crítica desencadeada pelos trabalhos de Edoardo Bizarri, com quem Guimarães Rosa manteve longa e proveitosa correspondência. Buscase, sim, examinar a crítica italiana recente acerca do autor de Sagarana, basicamente os trabalhos desenvolvidos por Ettore Finazzi-Agrò a partir de 1998, ano em que a revista Scripta traz a lume o artigo “O tamanho da grandeza — Geografia e História em Grande sertão: veredas”. Desde esta data até o presente, o professor da Universidade de Roma vem contribuindo para os estudos rosianos, insistindo numa interpretação trágica de alguns dos mais importantes textos do autor mineiro. Essa leitura, no âmbito da crítica brasileira, já havia sido aventada pelo trabalho clássico de Sônia Andrade: A vereda trágica do Grande Sertão: Veredas, de 1985. Vale esclarecer que a perspectiva trágica, a que se alude aqui, se vincula a uma espécie de dialética espacial “inconclusa e inconcludente” e à idéia de uma lógica do “caráter disforme de.qualquer lógica, a impossibilidade de qualquer limite” (FINAZZIAGRÒ, 2001, p. 88). Reunindo artigos dispersos, em Um lugar do tamanho do mundo (2001),.Ettore Finazzi-Agrò propõe uma releitura do célebre parágrafo inicial de Grande sertão: veredas — “Lugar sertão se divulga:
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é onde os pastos carecem de fechos...” (ROSA, 1956, p. 9), a fim de examinar tempos e espaços na ficção rosiana. Ao tratar da segunda categoria, interpreta-a como dimensão oblíqua, indefinida, num definir e abolir de fronteiras. Assim, o espaço da obra se situaria no âmbito da tensão exatidão vs. precisão e “se dispõe [...] no interstício que se recorta entre contar e ouvir, na fenda que corre entre a pergunta e a resposta.” (FINAZZI-AGRÒ, 2001, p. 55). No segundo capítulo do livro, sob a rubrica de “Passagens, passeios, passos em volta” (p. 4972), a atenção do crítico italiano se volta, sobretudo, para três textos: Grande sertão: veredas, “O espelho” e “Meu tio o iauaretê”, numa tentativa de apreender o duplo como elemento básico da poética rosiana em que a obra se constitui como obra-mundo, misto de acabamento formal e impureza. O tema da ambiguidade, presente nos estudos consagrados de Antonio Candido e Walnice Nogueira Galvão, vai além do estudo do romance, para se constituir em modo de leitura do texto rosiano, corroído pelo duo-habitare (duvidar) que se manifesta na escrita romanesca: A nossa travessia da obra de Guimarães Rosa nos pode devolver polida e ainda resplendente do seu significado originário: “duvidar”, produto etimológico de um duo-habitare, de um residir no duplo, de um estar na ambiguidade. Com efeito, é ainda este o sinal oblíquo, o signo ambivalente, sob o qual se desenvolve a sua escrita; é este o tom e o sentido de um mundo procurando certezas e encontrando apenas a dúvida, ou seja, a duplicidade mascarada daquilo que é verdadeiro. De fato, não se pode ler de outro modo Grande sertão: veredas, senão como domínio do “certo no incerto”, como lugar universal da dúvida: como espaçamento infinito de uma interrogação irresoluta, enfim — coalhando-se, por um lado, no espaço textual e tornando-o, por outro, um espaço fluido, nebuloso, escorregadio, em que cada coisa está “dentro da outra”, numa vertigem sem fim. (FINAZZI-AGRÒ, 2001, p. 60)
O romance rosiano é, então, definido como habitação do duplo. Essa interpretação permitirá ao crítico esquivar-se a qualquer dogmatismo teórico e recusar a facilidade das chaves esotéricas e alegóricas propostas para a decodificação do texto rosiano, como se vê na tese de doutorado de Francis Utéza: João Guimaräes Rosa: méthaphysique du Grand sertao. (1990) apresentada à Universidade Paul Valéry (França). Procurando defender sua interpretação, Finazzi-Agrò lança mão de uma distinção cara à Literatura Comparada atual, a que opõe centro a periferia, em cujo jogo dramático e dual o caos pode mesclar-se à ordem, assim relativizando demarcações absolutas e exigindo uma crítica diferente da usual. Outra alternativa encenada pela escrita crítica foi estabelecer contraposições entre Grande sertão: veredas e outros textos, menores, de Guimarães Rosa. Assim, a mescla entre caos e ordem, aliada a uma estrutura “geminada”, pode ser uma hipótese de leitura original para a interpretação de “O espelho”, conto presente em Primeiras Estórias. Nesta narrativa, a busca por um eu absoluto nos conduziria a uma espécie de abismo do nada: A procura narcisista de um Eu original, central e absoluto, revela-se uma queda no abismo do nada; revelase, melhor ainda, um ato diabólico — faustiano — de entrega a uma alteridade invisível (“Seria eu um... desalmado?”), em relação à qual a única salvação, a única possibilidade de se tornar de novo visível, está no cruzamento passional, no deixar-se deslizar na impermanência dos instintos. (FINAZZI-AGRÒ, 2001, p. 65)
“O espelho”, nessa perspectiva, revelaria a vacuidade ou a duplicidade demoníaca do centro: Só na dimensão infantil, então, na dimensão “marginal” da meninice (e da velhice, e da loucura...) em que vige apenas uma lógica (do) eventual, é possível encontrar o sentido momentâneo da existência, entender a sua precariedade em que a morte está de casa: é por isso que a primeira e a última estória nos colocam diante de uma criança aprendendo a viver através da morte, identificando-se e crescendo através do sofrimento e da perda. (FINAZZI-AGRÒ, 2001, p. 65-66)
Outra obra a receber a atenção do crítico italiano é “Meu tio o Iauaretê”, que, lida sob a perspectiva de um contraponto entre caos e ordem, revelará mais do que analogias com o Grande sertão: veredas, uma vez que “Aqui, como já em “O espelho”, temos a ver com um personagem que descobre em si, debaixo de sua aparência humana, de seus hábitos “civilizados”, “a persistência do animal” (FINAZZI-AGRÒ, 2001, p. 65-66)..Tal descoberta, aliada à forma de confissão-testemunho,
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desencadeará, no protagonista, uma indagação acerca de problemas como a identidade, o que acaba por estabelecer semelhanças entre este texto e “O espelho” e Grande sertão: veredas, interpretado como texto atópico e questionamento do centro nacional. A discussão em torno de Grande sertão: veredas, na Itália, de modo geral, incidiu nas relações entre o autor mineiro, James Joyce e Dante Alighieri. O próprio tradutor italiano, Edoardo Bizarri, indicou algumas fontes dantescas para passagens rosianas. Quanto a essa última filiação, a reflexão crítica de Finazzi-Agrò minimiza tal perspectiva comparativista para pôr em relevo a atitude do escritor diante do espaço e o problema da origem, abrindo uma nova proposta hermenêutica na tradição crítica rosiana. Em Um lugar do tamanho do mundo, já citado, o crítico da Universidade de Roma dedica um capítulo (V) a “Meu tio o iauaretê”, Mio zio il giaguaro em italiano, sob essa perspectiva hermenêutica de ênfase no espaço, nas margens. Retomando o paralelo entre esta narrativa e Grande sertão: veredas, apontam-se convergências já muito discutidas, como a sua forma particular de interlocução, coincidência de nomes, etc., para, em seguida, minimizá-las, em nome da dificuldade de estabelecer uma linguagem adequada ao assunto. Assim, Finazzi-Agrò recupera estudos clássicos dedicados ao texto, como os trabalhos de Haroldo de Campos e Walnice Nogueira Galvão, para pensar o tema da origem obscura, o que, de fato, representa uma leitura original, advinda de um processo de recepção do autor fora do Brasil: “Meu tio o Iauaretê” é uma queda sem salvação dentro da Voz; é, portanto, uma invocação, o apelo fascinante e terrível do fundamento, de uma Origem que se esconde nas profundezas caóticas da natureza, lá onde as espécies, as raças, as línguas se misturam num todo inextricável, numa wilderness [imensidão vazia, deserto] indevassável. Homem-selvagem, homem-fera, o protagonista do conto nos conduz, através da sua fala, até às fontes secretas da Fala; através da sua história (ou, rosianamente, através da sua estória), nos leva até à própria raiz da História. (FINAZZI-AGRÒ, 2001, p. 128)
O espaço ficcional torna-se, assim, caótico e sem fronteiras, como se o protagonista ocupasse um “lugar” anterior a qualquer diferença ou contradição. Esse estado pré-lógico pode ser identificado no trecho abaixo: Nhem? Ah, eu tenho todo nome. Nome meu minha mãe pôs: Bacuriquirepa. Breó, Beró, também. Pai meu me levou pra o missionário. Batizou, batizou. Nome de Tonico; bonito, será? Antonho de Eiesús... Despois me chamavam de Macuncôzo, nome era de um sitio que era de outro dono, é — um sítio que chamam de Macuncôzo... Agora, tenho nome nenhum, não’careço. Nhô Nhuão Guede me chamava de Tonho Tigreiro. Nhô Nhuão Guede me trouxe pr’aqui, eu nhum, sòzim. Não devia! Agora tenho nome mais não. (ROSA, 1969, p. 144, § 58)
Assim, sob a perspectiva de uma “demanda incessante dos confins” (FINAZZI-AGRÒ, 2001, p. 128), a poética que a interpretação italiana identifica no conjunto da obra rosiana se constitui como uma interrogação em relação às fronteiras. Nesse sentido, tem-se uma reflexão “topológica”, apoiada antes na Literatura Comparada e na Filosofia que na Antropologia, como ocorre em Walnice Galvão. Vale ressaltar que essa interrogação dos espaços fronteiriços é acompanhada de uma discussão sobre a linguagem rosiana, em sua contínua resistência ao lugar-comum. Sobressai, ainda, na recepção italiana, a aproximação entre Guimarães Rosa e Joseph Conrad, romancista representativo da atitude moderna diante do espaço: Guimarães Rosa leva-nos também para esse “heart of an impenetrable darkness”; também ele nos conduz, através de uma Voz fascinante e assombrosa, até esse “lugar de trevas”, só que, neste caso, não há, como na novela de Conrad, uma preparação ao encontro, um movimento de aproximação, assim que o leitor é [...] situado desde o início dentro de uma fala outra em que o interlocutor — o portador da nossa civilização — é inaudível ou se pode ouvir só através das palavras “selvagens”, “bárbaras”, desse outro. (FINAZZI-AGRÒ, 2001, p. 136)
Evidentemente, tal aproximação deve ser retomada, uma vez que a crítica brasileira buscou outros caminhos, até mesmo a ligação com o protagonista Gaspar Ilóm de Hombres de Maíz (1949), romance de Astúrias, como propõe Lúcia Sá em “O índio muda de voz” (1992).
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Voltar ao texto rosiano de 1961, sob o ângulo italiano, permite deslocar a interpretação nacional acerca do sobrinho do iauaretê para outras possibilidades de leitura, que, ainda que contradigam o já aceito, propõem outras perguntas à resposta que é a obra. O fascínio pelo híbrido que FinazziAgrò identifica na escrita rosiana atinge também Riobaldo, ponteador de opostos, contudo perdura a consciência da impossibilidade de redefinir os limites entre o humano e o não-humano. Eh, agora cê sabe; será? Hã-hã. Nhem? Aã, pois eu sai caminhando de mão no chão, fui indo. Deu em mim uma raiva grande, vontade de matar tudo, cortar na unha, no dente... Urrei. Eh, eu — esturrei! No outro dia, cavalo branco meu, que eu trouxe, me deram, cavalo tava estraçalhado meio comido, morto, eu ’manheci todo breado de sangue sêco... Nhem? Fêz mal não, gosto de cavalo não... Cavalo tava machucado na perna, prestava mais não... (ROSA, 1967, p. 150)
Conclusão Pressupôs-se, ao longo do texto, que, tanto em seu caráter artístico quanto em seu aspecto histórico, a obra literária se constitui pela relação dialógica entre literatura e leitor, relação que Jauss definiu como função de comunicação com o receptor e relação de pergunta e resposta (JAUSS, 1994, p. 22). Vista sob essa perspectiva teórica dialógica, a crítica italiana acerca de “Meu tio o iauaretê”, pela voz de Finazzi-Agrò, retomou, sob outro viés, a tradição que se formou sobre esta narrativa. Os problemas relativos à interlocução, ao processo compositivo, à relação de alteridade e de morte, às fronteiras culturais foram elucidados sob uma nova perspectiva que só fez ressaltar a importância deste texto rosiano, em cujos limites a finitude humana é pensada à maneira dos grandes trágicos gregos, num conflito schopenhaueriamente irresolúvel entre a civilização e a barbárie, entre a natureza e a cultura. Referências ANDRADE, Sônia Maria Viegas de. A vereda trágica do Grande Sertão: Veredas. São Paulo: Loyola, 1985. 104 p. CAMPOS, Haroldo de. A linguagem do Iauaretê. In: Metalinguagem. Petrópolis: Vozes, 1967. p. 47-53. FINAZZI-AGRÒ, Ettore. O tamanho da grandeza — Geografia e História em Grande sertão: veredas. Scripta, Belo Horizonte, v. 2, n. 3, p. 108-114, 1998. FINAZZI-AGRÒ, Ettore. A força e o abandono: violência e marginalidade na obra de Guimarães Rosa. In: HARDMAN, Francisco Foot. Morte e Progresso. Cultura Brasileira como Apagamento de Rastros. São Paulo: Ed. da UNESP, 1998. p. 81-94. FINAZZI-AGRÒ, Ettore. Um lugar do tamanho do mundo. Belo Horizonte: UFMG, 2001.
201 p.
FINAZZI-AGRÒ, Ettore. Aporia e passagem: a sobrevivência do “trágico” em Guimarães Rosa. Scripta, Belo Horizonte, v. 5, n. 10, p. 122-128, 2002. FINAZZI-AGRÒ, Ettore. O lógos trágico na obra de João Guimarães Rosa. FINAZZI-AGRÒ, Ettore; VECCHI, Roberto (orgs.). Formas e mediações do trágico moderno: uma leitura do Brasil. São Paulo: Unimarco, 2004. p. 155-160. FINAZZI-AGRÒ, Ettore. A voz de quem morre: o indício e a testemunha na narrativa brasileira contemporânea. In: FANTINI, Marli (org.). A poética migrante de Guimarães Rosa. Belo Horizonte: Ed. UFMG, 2008. p. 36-44. GALVÃO, Walnice Nogueira. Mitológica rosiana. São Paulo: Perspectiva, 1978. 128 p. GALVÃO, Walnice Nogueira. “O impossível retorno”. In: Mínima mímica. São Paulo: Companhia das Letras, 2008. p. 11-40. JAUSS, Hans Robert. Levels of identification of hero and audience. New Literary History, Charlotteville, v. 5, n. 2, p. 283-317, inv. 1974.
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Tema geral: Línguas e Literaturas: Diversidade e Adversidades na América Latina JAUSS, Hans Robert. L’esthétique de la réception: une méthode partielle (postface). In : Pour une esthétique de la réception. Trad. Claude Maillard. Paris: Gallimard, 1991. p. 243-262. JAUSS, Hans Robert. Pour une herméneutique littéraire. Trad Maurice Jacob. Paris: Gallimard, 1988. 457 p. JAUSS, Hans Robert. A História da Literatura como provocação à Teoria Literária. Trad. Sérgio Tellaroli. São Paulo: Ática, 1994. 78 p. JAUß, Hans Robert. Literaturgeschichte als Provokation. 14. Aufl. Frankfurt: Suhrkamp, 1994. 251 p. ROSA, João Guimarães. Grande Sertão: Veredas. Rio de Janeiro: J. Olympio, 1956. 594 p. ROSA, João Guimarães. Meu tio o Iauaretê. Senhor, Rio de Janeiro, v. 3, n. 25, p. 66-77, mar. 1961 (Incluído em Estas estórias). ROSA, João Guimarães. Estas Estórias. Rio de Janeiro: José Olympio, 1969. 231 p. SÁ, Lúcia. O índio muda de voz. Gaspar Ilóm e “Meu Tio o Iauaretê”. Romance-Languages-Annual, West Lafayette, n. 4, p. 564-569, 1992.
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ARTHUR AZEVEDO E OS SEUS CONTOS LIGEIROS: COTIDIANO E (IN)FIDELIDADES NA BELLE ÉPOQUE FLUMINENSE Tatiana Oliveira SICILIANO (Doutoranda em Antropologia Social pelo PPGAS – Museu Nacional – UFRJ)
RESUMO: O maranhense Arthur Azevedo (1855-1908) veio para o Rio de Janeiro em 1873, onde fez carreira e residiu até sua morte. Mais conhecido como teatrólogo, também foi contista, jornalista, cronista e funcionário público, sendo colega de Machado de Assis no Ministério da Viação. Assim como Machado, Arthur estava inserido no “campo” intelectual da época e participou da fundação da Academia Brasileira de Letras. Arthur Azevedo escreveu quatro livros de contos: Contos Possíveis (1889), Contos Fora de Moda (1894), Contos Ephemeros (1897), Contos em Verso (1909, que saiu após seu óbito). A coletânea Contos Ligeiros, organizada e editada por Magalhães Jr em 1974 – que subsidia este trabalho – selecionou parte da “série” de contos, publicadas semanalmente na coluna “Contos Ligeiros”, entre agosto de 1906 e outubro de 1908, em O Século. Os enredos bem humorados retratavam dimensões da vida cotidiana, como as interações sociais e os amores – lícitos ou ilícitos – dos habitantes da cidade do Rio de Janeiro, entre o Segundo Reinado e as duas primeiras décadas da República. Esta comunicação privilegiará alguns contos que exploram situações jocosas de (in)fidelidades. Dentro dessa concepção, serão investigados aspectos dos contos como sinais, no sentido utilizado por Ginzburg, do padrão discursivo e performativo da relação entre gêneros nessa época e das novas possibilidades de individualização proporcionadas pela urbanização. Ao seguir as trilhas dos personagens, procuraremos desvendar alguns dos “indícios” da dinâmica da ação social, interpretando o significado atribuído pelos atores sociais. Palavras-chave: Arthur Azevedo; contos; (in)fidelidades; Rio de Janeiro.
ABSTRACT: Arthur Azevedo (1855-1908) was born in Maranhão and came to Rio in 1873, where lived until his death. He is more famous as a theater author, but he was also a story teller, journalist, poet and civil servant, who worked in Ministério da Viação in the same division that Machado de Assis. As Machado, Arthur was inserted in the intellectual “field” and participated in the foundation of the “Academia Brasileira de Letras”. Arthur Azevedo wrote four books of short stories: Contos Possíveis (1889), Contos fora de moda (1894), Contos Efêmeros (1897), Contos em verso (1909, published after his death). Contos Ligeiros, organized and edited by Magalhães Jr in 1974, select the “series” of stories, published in the weekly column “Contos Ligeiros”, between August 1906 and October 1908, in the newspaper O Século. The plots portrayed humorous aspects of daily life such as social interactions and loves - licit or illicit – of the Rio de Janeiro residents, of the end of XIX’s and early of XX’s. This communication is focused in the short stories that explore funny situations of infidelity. It will be investigated aspects of stories such as signs, in the sense used by Ginzburg. Following the tracks of the characters, we can discover some “evidences” of social action dynamics and the meaning given by social actors. KEY WORDS: Arthur Azevedo, short stories, loyalties, Rio de Janeiro.
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1. Apresentando o enredo “Como sou um contador de histórias e tenho que inventar um conto por semana, sendo, aliás, menos infeliz que Scherazada, porque o público é um sultão Shariar menos exigente e menos sanguinário que o das Mil e Uma Noites, sou constantemente abordado por indivíduos que me oferecem assuntos, e aos quais eu não dou atenção, porque em geral não têm idéia aproveitável” – Arthur Azevedo, “Assunto para um conto” em Contos Ligeiros (1974)
O maranhense Arthur Azevedo (1855-1908) veio para o Rio de Janeiro em 1873, cidade onde fez carreira e residiu até a sua morte. Irmão do romancista Aluísio Azevedo e mais conhecido por sua extensa produção teatral, Arthur foi, além de teatrólogo, contista, cronista e funcionário público. Trabalhou no Ministério da Viação, no mesmo setor que Machado de Assis e , assim como o autor de Dom Casmurro, participou do “campo literário” da época: foi um dos fundadores da Academia Brasileira de Letras e um autor bastante popular, tornando-se conhecido através do teatro e da imprensa. O jornalismo teve um papel fundamental na posição de Arthur no universo letrado; o literato publicou crônicas, críticas teatrais, quadrinhas, versos, contos e peças, por mais de 35 anos, em diversos periódicos como O País, Diário do Rio de Janeiro, Diário de Notícias, Novidades, Vida Moderna (que ajudou a fundar), O Álbum (o qual dirigiu), A Estação (em que colaborou ao mesmo tempo em que Machado de Assis publicara alguns de seus contos e novelas), A Noticia, Mequetrefe, Correio da Manhã, O Século. Aliás, é importante ressaltar a importância da imprensa como espaço de experimentação literária para os escritores daquela época, era a atividade que empregava os “homens de letras” e divulgava, pela primeira vez, suas obras. Arthur Azevedo não foi exceção, muitos de seus contos e versos saíram primeiro nas letras de forma da imprensa, para depois serem publicados em edições encadernadas, como as de Contos Possíveis (1889), Contos Fora de Moda (1894), Contos Ephemeros (1897), Contos em Verso (1909, cuja publicação saiu após sua morte), Sonetos e Peças Lyricas (sem data), Rimas (também publicado pouco após o seu óbito, em 1909). O presente trabalho irá privilegiar um tipo específico de ficção, o conto, que assim como o romance, conduz o leitor a um “mundo imaginário”, que ele sabe ser irreal, mas o vivencia como uma “ilusão de realidade” (Cf Cohn, 1999)1. Nádia Battella Gotlib, em Teoria do Conto, define alguns aspectos formais que caracterizam o gênero: a concisão, nada pode sobrar ou faltar e a “unidade de efeito”, ou seja, devem “flagrar momentos especiais da vida” (2006:63,82-82). A discussão desses “momentos especiais da vida” flagrados por Arthur Azevedo é o que pretendemos fazer a partir dos contos urbanos2 da série “Contos Ligeiros”. Semanalmente, aos sábados3, entre agosto de 1906 e outubro de 19084, saía publicado na primeira página do jornal O Século um conto5, na coluna “Contos Ligeiros”, sob a assinatura A.A. A coluna foi estreada na semana de inauguração de O Século6, em 25 de agosto de 1906 com “Instantâneos”. Tal conto trazia um episódio de infidelidade feminina, cuja escapulida da esposa fora descoberta pelo marido, na sala de espera do barbeiro, através de uma fotografia publicada na revista O Malho. Em uma mesma trama, encenada no Rio de Janeiro da Belle Époque, Arthur Azevedo mescla Ian Watt já apontava, no clássico A Ascensão do Romance (1990[1957]), como o nascimento da prosa de ficção foi marcado pela correspondência da vida com a literatura no século XVIII, ou seja, pelo efeito de verossimelhança na narrativa, cujo objetivo era provocar a empatia e o envolvimento do leitor. 2 Barbosa Lima Sobrinho define o conto urbano como “um conto que toma por tema a cidade, com seus variados aspectos, interesses e problemas e também com as suas figuras” (1956:61). 3 No decorrer dos dois anos de contribuição de Arthur Azevedo em O Século, houve semanas em que o conto ou não foi publicado ou não saiu no sábado, mas em outro dia da semana. 4 Os contos, aqui discutidos, foram retirados do volume Contos Ligeiros, organizado por Raymundo Magalhães Jr e publicado em 1974 e dos microfilmes de O Século, disponíveis para consulta na Biblioteca Nacional. 5 Em alguns números de O Século, Arthur Azevedo escreveu seus contos em forma de versos. Tal interpenetração de gêneros, sinaliza uma liberdade criativa por parte do autor e lhe confere um estilo. 6 O primeiro exemplar do jornal saiu em 20 de agosto de 1906, uma segunda-feira. A contribuição de Arthur Azevedo em O Século, não se limitava a sua publicação semanal de contos em “Contos Ligeiros”, o autor também escrevia, às quartasfeiras, sainetes (pequena peças teatrais) para a coluna “Teatro a vapor” localizada na primeira página do veículo. 1
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diálogos conjugais, amores proibidos, inovações da modernidade, como o instantâneo fotográfico, e ressalta o papel da mídia como divulgadora de informações. “Instantâneos”, assim como o resto da série publicada no jornal, era uma ficção que se nutria de cenas localizáveis no dia-a-dia da Capital Federal e os seus personagens, eram tipos que muitos leitores poderiam reconhecer como parentes ou vizinhos. “Pequetita” - o último conto publicado na coluna “Contos Ligeiros” em 24 de outubro de 1908, dois dias após o óbito do autor - também fazia uso dos mesmos ingredientes narrativos, mesclava cotidiano familiar com o fluxo dos acontecimentos da época, que figuravam nas páginas dos jornais. O conto relatava, a partir de um “drama familiar”, as divergências de opinião em torno da vacinação contra a epidemia de varíola. Embora a doença ameaçasse as aspirações cosmopolitas da Capital Federal, o seu combate através da vacinação, a despeito da forte campanha governamental, não possuía adesão popular e nem era aceito homogeneamente pelas camadas médias7. Mas, de que maneira o “contador de histórias” Arthur Azevedo buscava encantar o leitor de O Século, que como ele mesmo disse em “Assunto para um conto”8, era menos exigente do que o sultão Shariar de Mil e uma noites? Como o autor convidava o público a “passear” pelos “bosques” de sua “ficção”?9 O discurso narrativo de Arthur era construído tendo em mente um leitor. E, como sublinha Umberto Eco, é fundamental entender o papel desse leitor na elaboração de um texto por ele ser “um ingrediente fundamental não só do processo de contar uma história, como também da própria história” (2009:7). Assim, cabe indagar quem era o leitor dos “contos ligeiros”? Seu texto literário era publicado no jornal para um público que o consumia em meio às principais notícias do dia e que buscava, simultaneamente, entretenimento e informação. Ao se comparar com Sherazade, em Mil e Uma Noites, Arthur Azevedo indica, de certa forma, como via seu ofício de “contador de histórias” para um meio de comunicação que tem como característica a novidade e a velocidade. Assim, como a heroína da obra persa, para “manter-se vivo” perante os leitores, era preciso surpreendê-los contando uma nova história a cada semana. E por que não se valer, na sua prosa, das características próprias ao meio jornalístico, como a rapidez e a referencialidade? Esse era o recurso adotado por Arthur para “inventar um conto por semana”, manejava a referencialidade fazendo constantes alusões a periódicos e acontecimentos do cotidiano e seus contos eram narrados em linguagem coloquial e de forma breve e ligeira, como o próprio nome da coluna sugeria. Os contos de Arthur Azevedo, às vezes narrados em versos, e em geral na terceira pessoa10, não só embaralhavam as fronteiras do gênero literário, mas transformavam assuntos banais em temas, como uma anedota de salão ou mesmo a falta de assunto para um conto. A introdução do conto “Os dois leões” 11, publicado em novembro de 1907, é um exemplo de como Arthur usava a sua hipotética falta de criatividade como mote criativo para atender a demanda por rapidez da imprensa, através de uma de suas características mais marcantes, o humor. Dessa vez narrando em primeira pessoa, é rindo de si mesmo que ele inicia o dito conto: “os fazedores de contos vêem-se muitas vezes atrapalhados com a falta de assuntos; é mais difícil do que se pensa encontrá-los na vida corrente, entretanto, às vezes acontecem casos, como o que eu vou contar, que não dão ao escritor mais trabalho que não seja pô-los em prosa sem lhes fazer a menor alteração”. O caso, em questão, se baseava na graça dos mal entendidos da linguagem e no jogo de verbos antônimos, prender e soltar: uma senhora veio interceder por seu marido militar, de nome Leão, que estava preso por indisciplina. O comandante prometeu soltar o Leão, mas a esposa do comandante pede que o Leão (nesse caso o cachorro) seja Os positivistas, por exemplo, apesar da crença na ciência e no progresso, rejeitavam o princípio da vacina, a inoculação de bacilos vivos ou “enfraquecidos” da doença, nos seres humanos. 8 Publicado na coluna “Contos Ligeiros” do jornal O Século em abril de 1908 e cuja introdução serve de epígrafe a este trabalho. 9 Aqui tomo de empréstimo não apenas a expressão de Umberto Eco “passeio nos bosques da ficção”, mas sua concepção de que o “texto é uma máquina preguiçosa” que demanda trabalho do leitor. Ver Eco, 2009. 10 Alguns contos ligeiros de Arthur Azevedo são narrados na primeira pessoa, especialmente os que fazem alusão a situações sugeridas, pelo autor, como “reais”. O mistério, intencional ou não, reside no fato de não sabermos se a situação realmente ocorreu, ou autor se utilizava de um artifício ficcional, inventando uma história que dizia ser real, para aumentar a sensação de verossimelhança e provocar uma maior empatia do leitor. 11 Disponível nos microfilmes da Biblioteca Nacional. 7
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preso para não atacar a visita que saía. A mulher do Leão (militar) fica indignada com a nova ordem de prisão, que pensa ser para seu marido, e vai tomar satisfação com o comandante e a sua esposa. Só depois de muitos mal entendidos é que as duas mulheres, a do comandante e a do militar preso, percebem (e se divertem com) a ironia da história, trata-se de dois diferentes Leões, o nome do militar e o nome do cão, e nenhum deles é, de fato, o referido animal. Como destacou Barbosa Lima Sobrinho “a doutrina de Artur Azevedo, aliás, é que tudo se conta: ‘o caso é saber como contar’” (1956:71). E Arthur, em suas histórias, apresentava situações da vida cotidiana da cidade do Rio de Janeiro, como os namoros, as cenas conjugais, as infidelidades, as paixões, as transgressões, as amizades, as viagens nos bondes com um ritmo de ação muito próximo a cena teatral, colocando o leitor no papel de espectador e brindando-o com um desfecho sempre surpreendente. É como se o leitor pudesse simplesmente observar a vida alheia através de uma janela enquadrada pela pena do autor. Não raro Arthur se valia da inversão para provocar tensão e, depois, o afrouxamento pelo riso. Em “História de um dominó”, publicado em 09 de fevereiro de 190712, no mês do carnaval, o autor se utiliza do jogo da inversão e da tênue fronteira entre os mundos “real” e “ficcional” para provocar tensão e riso. Por sugerir se tratar de uma história real inicia o conto em primeira pessoa: “Perdoem-me os leitores se eu, de ordinário alegre, venho contar-lhes uma história triste, num dia em que todos estão predispostos ao riso; mas... que querem? Tenho uma natureza especial: o carnaval entristece-me (...)”. Depois inicia a narração da história, “(...) Saibam os leitores que conheço um homem, o Abreu, que é o mais triste dos homens: só se compraz na solidão e no silêncio, não tem amigos, vive só, e nunca ninguém o viu rir, nem mesmo sorrir. Entretanto, esse casmurro, em chegando o carnaval, veste dominó e sai à rua mascarado. Isso são favas contadas todos os anos. Ano passado um vizinho teve a curiosidade e a pachorra de mascarar-se também para acompanhálo a certa distância, e o observar o que ele fazia” (Azevedo, 1974:55)
Bom, o que esse vizinho curioso - que é o informante na história narrada por Arthur – descobre? Que o Abreu se fantasiava de dominó para ver, à distância, a sua mulher, que o havia abandonado para “amancebar-se com um sujeito que ele supunha ser seu amigo”. Todo ano, desde que descobriu que ela assistia o carnaval em frente à casa do alfaiate, Abreu não perdia um carnaval escondido sob seu dominó alugado. E Arthur finaliza: “os leitores com alguma pachorra, poderão certificar-se de que este conto não é inventado”. Esse trabalho privilegiará alguns contos que exploram situações jocosas de (in)fidelidades, dentro do universo dos 86 contos publicados na coluna “Conto Ligeiros”13. No entanto, é importante compreender o contexto que servia de moldura às criações de Arthur Azevedo. Como destacou Gilberto Velho, “a condição do artista como sujeito criador só pode ser devidamente compreendida se pudermos avaliar o espaço sócio-cultural (tradições, costumes, padrões, valores) em que se move, não como um autômato, mas como um reinventor de códigos e linguagens” (2006:140). Arthur Azevedo escreveu esses contos, entre 1906 e 1908, no horizonte da Belle Époque fluminense, dezessete anos após a proclamação da República e em uma época de florescimento da capital federal, na qual houve um intenso afluxo de investimentos estrangeiros, propiciando transformações nos hábitos pessoais e sociais e nas formas de sociabilidade. As mais importantes se deram na gestão do presidente Rodrigues Alves (1902 a 1906): a urbanização do Rio de Janeiro, aos moldes parisienses, por Pereira Passos, a modernização do porto por Lauro Müller e o saneamento por Oswaldo Cruz. Como vitrine do país, a Capital Federal, na concepção de seus dirigentes, deveria mostrar-se como símbolo da modernidade ao olhar estrangeiro e se apresentar aos demais estados como exemplo de “ordem” e “progresso” (cf Neves, 1991). Todavia, a maior parte dos assuntos abordados na série de Contos Ligeiros se refere às múltiplas dimensões das relações entre homens e mulheres, explorando não apenas o cotidiano conjugal entre O referido conto consta da coletânea Contos Ligeiros organizada por Raymundo Magalhães Jr. Raymundo Magalhães Jr retirou 53 títulos da série, composta por 86 contas, para compor a coletânea Contos Ligeiros, publicada em 1974. 12 13
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os casados, mas também os flertes e as encenações femininas e masculinas adotadas no jogo da conquista. Assim, são assuntos para os contos desde os diálogos banais à mesa do jantar entre os cônjuges, até as cenas de brigas, dúvidas, ciúmes e descobertas de traição. Também são encenados os ardis e os estratagemas empregados por homens e mulheres para flertarem, namorarem, casarem ou, simplesmente, experimentarem um affair. No caso específico dessa comunicação, somam 20 contos que falam diretamente de infidelidades conjugais, em sua maioria, de forma jocosa. Pretendese investigar certos aspectos de alguns desses contos que permitam a identificação dos “sinais” e “indícios”, no sentido utilizado por Ginzburg em “Sinais. Raízes de um paradigma indiciário” 2007[1986]14, do padrão discursivo e da plasticidade dos scripts que modelavam a construção do feminino e do masculino nessa época. Há modelos de comportamento distintos e esperados para as mulheres e para os homens, e podemos olhá-los nas perspectivas da época, da cultura ou do grupo social a que pertencem. Os personagens e as tramas, inventadas ou não, por Arthur não são retirados do vácuo, mas refletem as preocupações, as práticas, as crenças e os valores de um tempo. A sensibilidade artística não é apartada da “ação coletiva” (Becker, 1977) e para entender os significados de uma criação é preciso se ter em conta os padrões culturais, que lhes serve como referências. Assim, a cultura deve ser entendida, como propôs Geertz (1989[1973]), como um contexto. 2. Narrativas de [in]fidelidade: o jogo da conquista encenado 2.1. Primeiro ato: o narrador introduz a cena Rolland Barthes em Fragmentos de um discurso amoroso descreve o discurso, como “discursus” que significa, originariamente, “ação de correr de cá para lá; são idas e vindas, ‘caminhos’, ‘intrigas’”(2007[1977]:XVIII) . Nosso propósito será analisar as “idas e vindas” dos amantes descritos em alguns dos contos da coluna “Contos Ligeiros”. Seguindo a trilha de Barthes (op. cit) que adverte que o discurso dos amantes só existe através da linguagem e que essa deve ser entendida no “seu sentido ginástico ou coreográfico”, “através do gesto apanhado em ação”. Vamos acompanhar os personagens, “o[s] amante[s] em ação” (idem), para depreendermos, daí, os códigos amorosos e a vivência dos “amores proibidos”, em suas várias ações, sensações e sentimentos.15 A coreografia dos amantes retratados por Arthur Azevedo é temperada com o molho da jocosidade. E, em várias situações, o riso é provocado pela abordagem inusitada dos comportamentos que amedrontam, no caso, as infidelidades conjugais. É a proximidade com a fronteira do perigo, é o seu risco “poluidor” (Douglas, 1976[1967]) que torna as narrativas sobre “(in)fidelidades” engraçadas. Afinal, elas produzem um tipo de riso, que lembra o escritor Rabelais, tão bem analisado por Mikhail Bakhtin (1996), liberador e integrador, que dissipa o medo e une as ambivalências. O humor também, de certa forma, sublinha a criatividade e a engenhosidade dos personagens em suas tentativas de burlar as regras, em proveito próprio. No caso, as mulheres, que mesmo mais vigiadas e mais sujeitas a sanções pela transgressão, arrumavam um jeito de viver sua sexualidade fora dos cânones sociais. Outra importante questão é indagar sobre quais modelos de família se apóiam os contos? Ao longo do século XIX, com a formação de um Estado nacional e a urbanização das cidades, o amplo poder do pai na esfera familiar foi se reduzindo, várias prerrogativas jurídicas lhe são retiradas e muitas de suas funções passam a ser desempenhadas por instituições governamentais. A política higienista A inspiração de Ginzburg na interpretação dos textos literários alerta para o trabalho “arqueológico” que deve ser feito em sua análise, visto que uma compreensão mais ampla só é possível após minuciosa investigação e observação de fragmentos que não pareceriam relevantes à primeira vista, após seguirmos as “pegadas” deixadas pelos escritos; e desvendarmos os “sinais” de como os personagens dos textos se comportavam, namoravam, brigavam, se divertiam, enfim, viviam e se relacionavam. 15 Devo creditar ao trabalho de Maria Filomena Gregori (1993) a sugestão do uso de Fragmentos de um discurso amoroso de Barthes (2007[1977]), bem como a idéia de tratar os contos como encenações. 14
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(Costa, 2004[1979]) alterou significativamente a organização familiar a partir de sua intervenção nos cuidados da infância. Desse modo, o “modelo da família patriarcal”, tão bem analisado por Gilberto Freyre (2003[1936]), vai aos poucos se afrouxando. A cidade perde, paulatinamente, suas feições coloniais, faz investimentos em infra-estrutura e transportes, cresce em população, abriga novas profissões e ofícios, o que permite certa mobilidade social e resulta no surgimento de uma camada média e de uma pequena burguesia. Isso possibilita a circulação e a emergência de idéias européias, novos estilos de vida e modos de sociabilidade, que também afetam os modelos familiares e os padrões de sensibilidade, especialmente os femininos. Os novos comportamentos femininos e as mudanças nos padrões familiares aparecem nas narrativas de Arthur. Os personagens pertencem, em geral, às camadas médias emergentes e as famílias são estruturadas a partir de casais com, no máximo, dois filhos. A família diminui e são vários os episódios que retratam casais sem filhos, situação em que se encontra a maioria das protagonistas infiéis. Pode-se ler, nas entrelinhas, o posicionamento do autor quanto à importância dos filhos para a preservação da família. É como se a ocupação com os filhos desviasse às esposas das possíveis transgressões, por lhes sobrar menos tempo para “aventuras”. 2.2. Infidelidades masculinas encenadas Flagrante de infidelidade: problemas conjugais Primeira encenação “Decididamente, há um Deus para os maridos que enganam as suas mulheres”. É assim que Arthur Azevedo fecha o conto “A Ama-seca”, publicado em 01 de setembro de 1906. Romualdo, o protagonista da trama, era “um rapaz sério, incapaz de cometer a mais leve infidelidade conjugal”, mas quando sua mulher viaja para Juiz de Fora para assistir ao pai doente, começa a, depois do trabalho, “dar uns passeios pelos arrebaldes” para “iludir a saudade”. Em uma dessas andanças pega o bonde do Leopoldo e tem “a fortuna ou a desgraça de se sentar ao lado da mulatinha mais dengosa e bonita do Andaraí”. Consuma a conquista amorosa com Antonieta, que era ama-seca, e dez dias depois se farta dela, com “remorsos de haver enganado” D. Eufêmia, “aquela santa”. D. Eufêmia, por sua vez, volta inesperadamente de Juiz de Fora, furiosa por ter perdido a ama-seca de sua filha na Estação da Barra, que se ligara a um passageiro do trem. Conta para o marido e avisa que já mandou colocar anúncio no Jornal do Brasil. Quando Romualdo volta do trabalho, a esposa diz que a ama-seca já havia sido contratada. Ela tem nome e descrição física (jeitosa e com cara de sapeca) semelhantes a Antonieta, com quem tivera um affair. Romualdo treme, fecha os olhos para não ver “o escândalo”, mas se depara com outra Antonieta. Foi salvo, que alívio!!! Segunda encenação Em “Barca”, publicado em 01 de dezembro de 1906, Arthur inicia o conto com a seguinte frase. “Há maridos e mulheres, dizem as más línguas, que passam o verão em Petrópolis para fazer das suas à vontade. Não sei se isso é exato quanto às mulheres; quanto aos maridos, tenho certeza de que o é”. D. Senhorinha, “uma esposa exemplar”, passava o verão em Petrópolis e o marido, que descia todos os dias para trabalhar, aproveitava para “fazer das suas à vontade”. João Saraiva, que era um rico comerciante, gozava a liberdade visitando uma francesa, na Rua do Riachuelo, que “lhe dava volta ao miolo” e com freqüência o fazia perder a barca de volta. Quando isso ocorria, João Saraiva mandava um telegrama à esposa avisando que perdera a barca por causa do trabalho. Como era freqüente que João Saraiva perdesse a barca passou a escrever somente barca no telegrama. D. Senhorinha, que “tinha a mais cega confiança no marido,” nem desconfiava de suas peripécias. Um dia, D. Senhorinha recebeu em Petrópolis um telegrama escrito “barca” às duas da tarde. Como a barca da Prainha só saía às 16:00 horas, a mulher desconfiou e no dia seguinte pediu explicações ao marido. Esse lhe deu uma justificativa “esfarrapada”, que ela fingiu aceitar. No dia seguinte, ao chegar ao escritório, um furioso João Saraiva ralha com o empregado que mandou expedir o telegrama
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mais cedo e reclama que sua antecipação poderia dar “cabo da [sua] tranqüilidade doméstica”. Dona Senhorinha, por sua vez, desceu imediatamente e “nunca mais quis saber de vilegiaturas, receando que o marido continuasse a perder a barca”. Marido incorreto, lição feminina Terceira encenação Em “A nota de cem mil-reis”, publicado em 07 de setembro de 1907, o Cavalcanti era apresentado como “um marido incorreto, para não empregar um adjetivo mais forte”. Pois, não ganhava nem o suficiente para prover o sustento de sua família e, assim mesmo, arrumou uma cocotte como amante. Margarida, a esposa de Cavalcanti, por ser uma hábil costureira, complementava o orçamento doméstico. Como “trabalhava bem e barato”, “sua fama correu de boca em boca”, ela ganhou “freguesia certa”, que lhe dava rendimentos, em certos meses, perto de trezentos mil-réis. O marido, não só “não reclamou, aprovou” e um dia ainda foi além, pediu a esposa dinheiro para dar à amante. Margarida (descrita como “a pobre senhora”), que desconhecia o destino do dinheiro, “não manifestou a menor contrariedade: foi ao seu quarto, abriu a gaveta onde guardava o fruto de seu trabalho, e tirou a nota de cem-mil réis ainda nova”. No entanto, antes de entregar a cédula ao marido, olhou-a com vagar para dela se despedir e notou que alguém havia escrito em letra miúda “nunca mais a verei, querida nota!”. D. Margarida acrescentou a lápis, “nem eu”. No mesmo dia, D. Margarida recebeu uma cliente nova, para um vestido de seda “riquíssimo”, uma francesa que lhe disse ser casada com um banqueiro e que lhe entregou um envelope com cem-mil réis. Ao citar seu nome para o marido, Cavalcanti “empalideceu”, pois percebeu se tratar da sua cocotte. Margarida estranhou o espanto do cônjuge e lhe perguntou se conhecia a francesa ou seu marido. Cavalcanti respondeu que não. Margarida abre o envelope e tira a nota e percebe que era a mesma que dera a Cavalcanti pela manhã, identificara pelo “nem eu” que ela havia acrescentado à cédula. Confronta Cavalcanti e ele lhe dá uma “desculpa esfarrapada”. Dona Margarida “não engole a pílula” e vai à casa da cliente para investigar. Descobre que Madame Leveau era uma cocotte, freqüentada por seu marido e se separa de Cavalcanti, abrindo uma casa de modista, bem sucedida. **************** As duas primeiras encenações, que exemplificam outros contos da coluna “Contos Ligeiros”, sinalizam certa complacência, e até uma expectativa quanto à infidelidade masculina, desde que eventual, sem prejuízo à harmonia e ao bem-estar familiar. Basta ver a forma com que Arthur Azevedo abre o conto “Barca”: “há maridos e mulheres, dizem as más línguas, que passam o verão em Petrópolis para fazer das suas à vontade. Não sei se isso é exato quanto às mulheres; quanto aos maridos, tenho certeza de que o é”. A certeza das escapulidas dos maridos e a dúvida quanto ao comportamento feminino, já ressalta o quanto a prática era mais atribuída, por ser conseqüentemente mais tolerada, ao homem. A finalização do conto “A ama-seca” confirma tal impressão, se há um Deus para os maridos que enganam as suas esposas é porque esse pecadilho pode ser perdoado com arrependimento, um pouco de sentimento de culpa e algumas “ave-marias”. Afinal, como sublinha Rosa Maria Araújo, naquele contexto, “mesmo o marido fiel, freqüentemente, pretendia ser um domjuan. O tipo ideal do homem casto era praticamente inexistente (...)” (1993:56). O papel masculino abrigava uma maior elasticidade quanto ao exercício da sexualidade fora do leito conjugal, desde que não houvesse um apaixonamento e isso não comprometesse o seu cotidiano conjugal (cujos deveres sexuais estavam inclusos), nem os seus deveres de provedor. E é, por isso, que Cavalcanti, no terceiro conto é tão criticado. Classificado como “marido incorreto” e recebe, no final da história, uma lição da mulher. Naturalmente, em relação às condutas sexuais, tratava-se de um duplo padrão moral, mais rigoroso para as mulheres e mais frouxo para os homens. Não que as mulheres não traíssem seus maridos. Tanto a literatura16, como os registros jurídicos, pesquisados por Rosa Araújo (opus cit), 16
A literatura ocidental, entre meados do século XIX e XX, está repleta de personagens femininas que têm amantes.
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apontam para a existência de transgressões conjugais exercidas pelo sexo feminino, mas elas eram punidas de forma diferenciada tanto social, como legalmente. O casamento, que após o advento republicano tornou-se ato civil e regulado pelo Estado (decreto no181, 24/02/1890), previa a monogamia e a indissolubilidade. No entanto, as penalidades em relação ao adultério, que constavam do Código Penal, eram vistas como crimes contra a segurança da “honra e honestidade da família” e, portanto, “um ultraje público ao pudor”17. Conforme o Código Penal brasileiro de 1890 (que substituiu o de 1830, o primeiro após o Brasil independente), os homens só seriam considerados adúlteros e, portanto punidos (com prisão de 1 a 3 anos), caso tivessem “concubina teúda e manteúda”. Já as mulheres poderiam ter prisão celular de até três anos, desde que pegas em flagrante (Araújo, 2003; Corrêa,1981 e Kosovski, 1997). E quanto à relação entre homens e mulheres nas cenas, seja com suas esposas, seja com suas amantes? Nota-se que os homens infiéis, tanto nos contos, como na historiografia (Del Priori, 2006 e Araújo, 1993), em geral, tinham relações sexuais com moças de classe social mais baixa e de outra cor (como no caso de Antonieta de “A ama-seca) ou com prostitutas18. E em relação a suas legítimas esposas, qual era o comportamento desses homens que tinham casos extraconjugais? Mesmo a moral da época sendo mais flexível aos homens, eles não gozavam de liberdade irrestrita. Tanto que tentavam esconder os casos de suas legítimas esposas, temerosos de vê-las magoadas e de “perderem sua tranqüilidade doméstica”. A conseqüência da escapulida seria uma cena conjugal, uma briga ou mesmo um fingir que não viu, como foi o caso de D. Senhorinha. Mas, o fingir que não viu, não era deixar continuar o caso, era vigiar mais de perto, para interromper as escapulidas do marido, como o fez D. Senhorinha, que desceu imediatamente da cidade imperial, sem querer saber mais de vilegiaturas. Portanto, elas não eram passivas, dentro de suas possibilidades, nos seus discursos e atos, marcavam sua posição dentro da relação conjugal. Como advertiu Chalhoub (1986), as mulheres das camadas populares tinham mais liberdade de se separarem de seus maridos, por gozarem de renda. Foi o caso de D. Margarida. O fato do marido não cumprir a sua parte no acordo matrimonial, lhe deu a arma para que ela se separasse dele. 2.3. Infidelidades femininas em ação Mulher ardilosa, marido tolo Primeira encenação Em “Ingenuidade”, publicado em 27 de outubro de 1906, Ernestina, casada com Friandes, era objeto de desejo do Vaz. Não porque ela “tivesse todas as aparências de uma senhora honesta”, mas porque seu marido era “um pax vobis, que estava mesmo a pedir que o enganassem”. Vaz “perseguiu incessantemente” Ernestina por quatro meses, conseguiu uma “entrevista”, mas “ficou atrapalhado por não saber onde levar a moça”. Na casa de Ernestina não era possível, pois a tia Chiquinha – uma “velhinha desconfiada e esperta – ali morava. E o Vaz, apesar de ter 30 anos, ainda vivia “sob o teto e às sopas do pai”. Vaz lembrou-se de um amigo e lhe pediu ajuda para “arrumar um ninho”, pois não poderia levá-la a um hotel suspeito, “seria abusar de sua inocência”. O amigo duvidou da inocência da moça, mas indicou-lhe a casa de uma senhora que alugava um quarto mobiliado, arejado e com entrada discreta, como Vaz queria. Assim, ele e Ernestina poderiam entrar sem ser vistos. No dia da entrevista o Vaz entrou primeiro e ela depois e lá permaneceram por uma hora e meia, “porque uma virtude não cai com a mesma facilidade que as paredes do Hospital da Penitência” (que havia Madame Bovary, de Gustave Flaubert, seria a personagem feminina infiel mais conhecida. No Brasil, o adultério e a sua possibilidade são bastante explorados na literatura de Machado de Assis e o próprio Arthur Azevedo é autor de inúmeros contos e pequenas peças de teatro que abordam a infidelidade feminina. 17 Aliás, o adultério só viria a ser descriminalizado muito recentemente, em 28 de março de 2005, pela lei nº 11.106. 18 Entre as prostitutas, havia dois grupos: as cocottes e as polacas. As primeiras freqüentavam lugares luxuosos e eram amantes dos homens da elite e das camadas médias alta. Já as segundas, eram mulheres pobres, que se vendiam por pouco. Ver Del Priori, 2006.
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desabado nessa época). Ernestina mostrou-se arrependida de ter subido “a escada infame” e tentou resistir, deveria manter-se fiel aos seus deveres conjugais, coitado do seu pobre marido que tinha tanta confiança nela e, ademais, que juízo o Vaz estaria fazendo? Mas, no final cedeu e Vaz tentou acertar, com a senhora que alugava o quarto, uma exclusividade. Ela lhe respondeu que não poderia, pois duas vezes na semana um cavalheiro e uma dama já haviam tomado o quarto para si. Mas, que, nos demais dias, o quarto poderia ser dele. Vaz ficou curioso e em um dos dias no qual o quarto estaria ocupado, postou-se atrás de uma árvore, “magnífico ponto de observação”, para dar uma olhada no casal. Qual foi a sua surpresa quando descobriu que a dama era Ernestina Friandes que se encontrava com um senhor com todas as aparências de respeitável. A partir dali, convenceu-se que “o ingênuo fora ele, nunca mais se fiou na ingenuidade das mulheres”. Segunda encenação Em “A conselho do marido”, publicado em 02 de setembro de 1907, a cena se passa no meio do oceano Atlântico, entre os dois hemisférios, a bordo de um “paquete”. Dois passageiros um de quarenta anos e o outro de vinte e cinco conversam entusiasticamente. O mais velho diz ao mais novo que “um homem, todas as vezes que for provocado pela mulher, seja a mulher que for, deve mostrar que é homem!”. O mais jovem lhe pergunta se faria a mesma coisa se fosse a mulher de um amigo. O mais velho responde que maior perigo se corre fazendo que nem o José do Egito, e que é preferível tirar proveito da fama, do que ser acusado por algo que não cometeu. O mais jovem lhe pergunta se ele acha que um homem tem direito sobre a mulher do próximo. O mais velho responde que sim, desde que ela lhe provoque. O mais velho, nessa hora, aproveita para fazer uma alusão a sua própria esposa e diz que, mesmo que ela não quisesse vir, ficaria tranqüilo. O rapaz indaga se nunca nenhum de seus amigos a desejou. O mais velho disse que sim, mas ela lhe contou e ele deu um escândalo, meteu-lhe bengaladas em plena Rua do Ouvidor. Logo após esse diálogo, o mais velho cai no sono, “aquele sonos de bordo, antes do jantar, que duravam pelo menos duas horas”. O mais jovem levantase e vai ao seu compartimento, bate a porta e uma linda mulher o recebe. Ela se chama Mariquinhas e lhe pergunta, “- consultaste o meu marido?”. Ele responde que sim e que ele aconselhou a fazer que nem o José do Egito, “amigos, amigos, mulheres à parte”. E a cena acaba com o rapaz fechando o ferrolho da cabine. Pega em flagrante Terceira encenação Em “Como o diabo as arma”, publicado em 18 de janeiro de 1908, o Sr. Paulino, apesar de ser “o mais irrepreensível marido desta cidade em que são raríssimos os maridos irrepreensíveis” e ser casado com uma “senhora ainda bonita e frescalhona”, mais jovem do que ele, que “orçava pelos quarenta”, um dia se muda e se depara com uma linda vizinha, que “lhe [dá] volta ao miolo”. O Sr. Paulino a espia pela janela, por trás das venezianas, notando que ela é livre “como os pássaros”, recebendo por vezes algumas “misteriosas visitas”. Fato que o anima a esperar que uma “oportunidade fortuita o [favoreça]”, que não demorou muito “o diabo a armar”. Ele voltava do emprego de guardalivros em uma casa comercial importante e viu passar a bela vizinha na avenida, resolve segui-la, tomando atrás dela o bonde para o Leme. Senta ao seu lado, que gentilmente lhe abre um espaço. Paulino cobre o rosto com A Notícia e murmura a moça que precisa falar-lhe. Ela responde, “-Pois fale”. Ele responde que ali não, na casa dela e pergunta-lhe quando pode ser. Ela diz, que quando ele quiser e ele não perde a oportunidade de sugerir o dia seguinte, pedindo que seja mais tarde, quando a rua estivesse “completamente deserta”. Ela responde que o esperaria às dez e meia. Eles se despedem. No dia seguinte, ao chegar à casa da vizinha, ela lhe pergunta o porquê de tanto mistério. Ele lhe responde que de fronte moram uns amigos. Ela espontaneamente pergunta se o seu amigo era o tal Paulino. Ele indaga se ela o conhece. Ela diz que nunca o viu, mas que tem visto os amantes de sua
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mulher, pois, assim que o tal Paulino sai para o trabalho, os amantes entram. Ele se surpreende com o plural e ela lhe contesta ter visto mais de um, um loiro alto rosado. É o Gouveia, exclama ele. Ela continua com a descrição do outro amante, um baixinho, corpulento, com bigode e pince-nez azul. Ele responde que deve ser o Magalhães. Dois amigos, ele acrescenta. Após ouvir o relato, ele se senta sem ânimo em uma cadeira, tonto, com “as faces pegando fogo”, temendo ter uma congestão. Ela corre a buscar água de colônia para reanimá-lo. E temendo ter sido inconveniente quer saber se o tal Paulino era amigo dele. Eis a resposta: “– O tal Paulino sou eu, minha senhora; sou eu em carne e osso. Se não viesse a sua casa, jamais saberia o que se passa na minha, e continuaria sendo um marido ridículo sem o saber! Para alguma coisa me serviu essa aventura amorosa!”. Paulino, no dia seguinte, põe sua mulher para fora de casa, corta a cara do Gouveia com chicote e, no final do conto, só não havia espancado o Magalhães porque ele se escondera. **************** Em “Ingenuidade” e “A conselho do marido” parece que o autor está falando do humor da inversão e de seu potencial criativo. Ernestina Friandes encena o papel de “mulher ingênua”, embaraçada com o desenrolar de seu primeiro caso amoroso. Vaz a persegue por muito tempo e ela só concede a entrevista quatro meses depois. Mostra-se para ele como uma moça inocente, cora, preocupa-se com sua reputação, parece culpada por estar traindo a confiança de seu “pobre marido”, demora a ceder. Valoriza a conquista, se estende no jogo performático. O tempo todo usa de esperteza para transmitir a impressão que desejava causar e fazer o que queria, sem que os demais soubessem. Só depois Vaz descobre ser pura dissimulação, o ingênuo fora ele em acreditar. Embora, a apresentação dos personagens, na abertura do conto, deixe claro que Vaz não desejou Ermestina por “todas suas aparências de mulher honesta”, mas porque seu marido, Friandes, estava a pedir. Também pedia para ser enganado, o marido de Mariquinhas em “A conselho do marido”. Ele foi personificado como um senhor de quarenta anos, cujo nome e a profissão não foram revelados, embora ficasse claro que ele possuía dinheiro, por estar em um “paquete” em alto mar entre dois oceanos. O marido de Mariquinhas - vamos assim denominá-lo - no diálogo com seu amigo bem mais jovem, que tinha cerca de vinte cinco anos e cujo nome também não foi revelado, fora enfático ao defender o papel do homem conquistador caso qualquer mulher o tentasse, não importando seu estado civil ou com quem ela fosse casada. Homem que era homem tinha que cumprir o seu papel. Quanto aos maridos traídos, esses que cuidassem de suas esposas ou as escolhesse melhor para casar. Vangloriou-se, inclusive, de sua escolha, tinha plena confiança em sua mulher. Dorme a sono solto. E, ironicamente, o rapaz mais jovem aproveita para divertir-se com Mariquinhas (a única que é apresentada pelo nome, embora só apareça no final), trancado em sua cabine, “a conselho do marido”. No subtexto, por sua tolice e crença na “honestidade” feminina, mereceu ser enganado. Na terceira encenação, Sr. Paulino, o marido quando ia concretizar sua primeira “aventura amorosa” com a bela vizinha, descobre, acidentalmente, por essa, que sua esposa o trai com dois de seus amigos. Perde o interesse pelo affair, a defesa da “honra” fala mais alto, precisava tomar providências para não ser mais um “marido ridículo”. No dia seguinte, põe a mulher para fora de casa e surra um dos seus amigos, só não chicoteia o outro por esse ter fugido. A trama também destaca o que poderia ocorrer com a mulher, caso ela fosse descoberta. De esperta, poderia ser estigmatizada. Tratava-se de um jogo arriscado, pois sempre alguém poderia ver e contar, o que acabou ocorrendo. É certo que a mulher de Paulino (ela não foi nomeada no conto) também poderia ter sido mais cautelosa e, a exemplo de outros contos, encontrado os seus amantes longe de casa, para não levantar suspeitas. Pagou pelo descuido. Mas, o conto também sinaliza o “duplo padrão moral”. Paulino descobriu os amantes da esposa por uma amante potencial. E tal fato, em nenhum momento, atenuou sua indignação. 2. Ato final Roland Barthes em Fragmentos de um discurso amoroso, em capítulo intitulado “Sedução”, chama a atenção para a existência de palavras comuns ao amor e a guerra: “conquistar, seduzir, de capturar”
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(2007[1977]:301). Tal advertência sublinha certas questões presentes nas narrativas amorosas: trata-se de um jogo, onde alguém enuncia, propõe algo em direção ao outro e visa tomar o controle. Há um conquistador e um conquistado, um sedutor e um seduzido, um capturador e um capturado. Mas, como toda ação, é sempre um gesto, uma intenção, pressupõe o risco de não funcionar. O sedutor pode tanto não conseguir seduzir, como acabar envolvido e se tornar o objeto da sedução. O sedutor Visconde de Valmont, protagonista de As relações Perigosas de Chordelos de Laclos (2002[1782]), talvez seja o melhor exemplo literário de como a imponderabilidade da paixão pode inverter o conquistador em conquistado19. Os contos de Arthur Azevedo não apresentam trama tão sofisticada como o romance epistolar de Laclos, mas abordavam, através do humor, algumas questões “boas para se pensar”: as relações entre os gêneros e os discursos da conquista. Discurso, aqui entendido conforme a concepção de Barthes (op. cit), como “dis-cursus”, caminhos, intrigas, idas e vindas. As mulheres que protagonizam os contos de Arthur, longe de serem passivas são, assim como os personagens masculinos, autoras de suas falas. Não que no jogo “dis-cursivo” estejam em simetria, em relação aos homens. As condições de possibilidade, de fato, não são iguais no contexto da época. Mas, o que merece destaque é a capacidade criativa dos personagens femininos, em relação às possibilidades que tinham. Ernestina Friandres talvez seja o melhor exemplo, pois, em seu jogo discursivo, transformou o Vaz de capturador em presa inocente. O “empoderamento” masculino na conquista também é posto em xeque, o marido de Mariquinhas, mostra que o “papel de homem”, muitas vezes, residia mais na fala, do que na ação. Referências ARAÚJO, Rosa Maria Barboza. A vocação do prazer. A cidade e a família no Rio de Janeiro republicano. Rio de Janeiro: Rocco, 1993. ARIÉS, Philippe. “O amor no casamento”. In:ARIÈRES, Philippe; BÉJIN, André (orgs). Sexualidades Ocidentais. Contribuições para a história e para sociologia da sexualidade. São Paulo: Ed. Brasiliense, 1987[1985]. AZEVEDO, Arthur. Contos Ligeiros. Rio de Janeiro: Bloch Editores, 1973. BAKHTIN, Mikhail. Cultura Popular na Idade Média e no Renascimento. O Contexto de François Rabelais. São Paulo, Huicitec; Brasília: Editora UNB,1996. BARTHES, Roland. Fragmentos de um discurso amoroso. São Paulo: Martins Fontes, 2007[1977]. BECKER, Howard. “A arte como uma ação coletiva”. In: VELHO, Giberto (org). Arte e Sociedade. Rio de Janeiro: Zahar, 1977. BOURDIEU, Pierre. Razões práticas. Sobre a teoria da ação. Campinas: Papirus, 2005[1994]. CHALHOUB, Sidney. Trabalho, lar e botequim. O cotidiano dos trabalhadores no Rio de Janeiro da Belle Époque. São Paulo: Ed. Brasiliense, 1986. COHN, Dorrit. The distinction of fiction. Baltimore; Londres: The Jonhs Hopkins University Press, 1999. CORRÊA, Mariza. Os crimes da paixão. São Paulo: Ed. Brasiliense, 1981. COSTA, Jurandir Freire. Ordem Médica e Norma Familiar. Rio de Janeiro: Graal, 2004[1979]. DOUGLAS, Mary. Pureza e Perigo [1967]. São Paulo: Perspectiva, 1976. Ao escrever para Marquesa de Merteuil sobre a Sra. de Tourvel, a sua mais recente e mais difícil conquista, descreve a amante (Sra. de Tourveul) como um tipo raro de mulher, “delicada e sensível, cuja única preocupação [era] o amor, e que no próprio amor só [via] o amante” (op. cit:254). Em resposta ao Visconde, a Marquesa adverte que, embora o amigo ainda não tivesse percebido, aquelas expressões eram “sintoma[s] infalív[eis] de amor” (idem:256). O fim trágico dos amantes é conhecido: manipulado pela Marquesa, o Visconde sacrifica seu romance com a Sra. de Tourvel e só depois percebe que perdeu o amor de sua vida. 19
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O ENSINO DE LÍNGUA PORTUGUESA E O DESENVOLVIMENTO DE COMPETÊNCIAS E HABILIDADES Teresa Cristina NASCIMENTO (Universidade Federal do Amazonas – ICET)
RESUMO: A partir dos anos 60, principalmente, os estudos empreendidos no âmbito da Lingüística passaram a influenciar o ensino de Língua Portuguesa. Na última década do século XX, verifica-se ampla produção científica sobre gêneros textuais; o interacionismo sócio-discursivo, proposto por Bronckart (1997-1999), seguido de significativa literatura desenvolvida nessa vertente, revela-se capaz de nortear a transposição didática das teorias que abordam os gêneros textuais, para seu uso na sala de aula. Assim, ao ensino de língua materna subjaz a visão de linguagem como instrumento pelo qual o homem age e se posiciona, política, social, cultural, ética e esteticamente, frente aos discursos que circulam na sociedade. Nessa perspectiva, o objetivo principal do ensino de Língua Portuguesa centra-se no desenvolvimento de habilidades e competências de uso da língua e da reflexão sobre esse uso, por meio de situações que propiciem a realização de operações de contextualização, tematização, enunciação e textualização. PALAVRAS-CHAVE: gêneros; interacionismo sócio-discursivo; ensino; habilidades; competências.
ABSTRACT: Specially throughout 60 years, linguistics researches have influenced Portuguese language teaching. In the last decade of 20th century, considerable quantity of studies about genre have been published; based on social discursive interactionism proposed by Bronckart (1997-19990) and on relevant essays about the theme it is possible to make genre theories didactic transposition in order to use them on classrooms. According to that approach language is the way individuals interact with and act on the social environment where they live, considering political, cultural, ethic and esthetic aspects. Therefore, the basis for Portuguese language teaching and learning process is skills and competence development, focused on the language usage and reflections about it, using contextualization, thematization, enunciation, and textualization procedures. KEY WORDS: genres, social discursive interactionism; teaching; abilities; competences.
Anais do II Congresso Internacional de Estudos Linguísticos e Literários na Amazônia (CIELLA)
1. Introdução No âmbito da Lingüística e da Lingüística Aplicada, uma das vertentes mais profícua são os estudos sobre o ensino de Língua materna. Esse evidente interesse justifica-se em função de esse componente curricular, por questões históricas, políticas, sociais e culturais, ter se caracterizado por práticas pedagógicas que abordam a língua de forma reducionista, fragmentada e descontextualizada, por meio de frases e palavras isoladas, visando-se tão somente à assimilação de inúmeras regras prescritas pela Gramática Tradicional. Tanto o material didático como as aulas e as avaliações são compartimentadas em gramática, redação e literatura, como se não fossem umas partes das outras. A preocupação em se ensinar a Gramática Tradicional revela um postura em que se elege a forma da língua como o objeto de ensino, com um fim em si mesmo, ou seja, “Peca-se, muitas vezes, por se desviar o foco de formação: dos usos da língua para o saber sobre a língua” (BUNZEN; MENDONÇA, 2006, p. 17). Provenientes de um processo de escolarização consoante com esse contexto, os alunos brasileiros têm revelado, em diversas circunstâncias, que não são capazes de usar a língua, autônoma e produtivamente, para compreender, analisar, questionar, modificar e integrar participativamente a sociedade em que vivem. Avaliações de nível nacional, como o Sistema de Avaliação da Educação Básica (SAEB) e o Exame Nacional do Ensino Médio (ENEM) revelam que os alunos concluem o Ensino Médio sem desenvolverem satisfatoriamente as competências e habilidades esperadas1. A partir do quadro brevemente delineado, este artigo pretende discorrer sobre a abordagem da Língua Portuguesa norteada pela transposição didática das teorias sobre os gêneros textuais, balizada pelo interacionismo sócio-discursivo proposto por Bronckart (1997/1999), na medida que viabilizam, por meio de operações de contextualização, enunciação, tematização e textualização, o desenvolvimento de competências e habilidades, incluindo o estudo das dimensões pragmática e discursiva da língua, nas quais se manifestam as relações entre as formas lingüísticas e o contexto em que são usadas. Primeiramente, apresenta-se, em linhas gerais, apontamentos sobre a trajetória percorrida pelo ensino de Língua Portuguesa; em seguida, sobre os gêneros textuais e as implicações para o ensino de língua materna daí decorrentes; posteriormente, aborda-se a proposta do interacionismo sócio-discursivo na perspectiva da noção de gênero que se espera ser aplicada ao ensino. Discorre-se, então, sobre as operações supracitadas, relacionando-as ao trabalho formativo com a língua, “fundado na consciência ou competência discursiva, que é também uma competência reflexiva e criativa.” (BRONCKART, 2004 apud CRISTÓVÃO; NASCIMENTO, 2005, p.45). Finalizando, à conclusão relacionam-se algumas considerações sobre o que foi exposto. 2. Os (des) caminhos dos textos na Educação Básica Como anteriormente apontado, a fragmentação tem permeado o ensino de língua materna, destinando-se às aulas de redação o papel de trabalhar com a produção escrita, momento em que o aluno teria oportunidade de expressar suas idéias, desenvolver a criticidade, refletir sobre o mundo em que vive e sobre possíveis formas de atuar nele, exercitando a cidadania, constituindo-se como sujeito, ao posicionar-se, por meio da linguagem, frente aos discursos com que se depara cotidianamente. Entretanto, percebe-se que o direcionamento dado às atividades nesses momentos colaboram apenas para manter as relações de poder já instauradas na sociedade. Propõe-se o estudo de “características” dos textos, interpretações para as quais só existe uma resposta, dada por autores de livros didáticos, ou a produção escrita, a partir de um tema previamente determinado pelo professor. Mendonça (2001, p. 243), ao analisar esse contexto, refere-se a “políticas de fechamento”, discursos sobre língua autorizados, que, ao adentrarem a escola, direcionam o trabalho do professor, determinando o que deve ser e como deve ser trabalhada a disciplina Língua Portuguesa. Estudo apresentado por Bunzen ( 2006) confirma essa prática, ao apresentar a trajetória percorrida pela abordagem textual nas salas de aula de língua materna2. Para uma reflexão crítica sobre o SAEB e o ENEM ver MARCUSCHI (2006) O autor focaliza a produção textual no Ensino Médio, e este artigo, em função do objetivo a que se propõe alcançar, aborda o ensino de língua materna de uma perspectiva mais geral.
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De acordo com o referido autor, até o fim do Império, os textos literários predominavam no âmbito escolar, apresentados como modelos para escrita e ponto de partida para o desenvolvimento da oratória, da declamação e da pronúncia “certa”. Percebe-se nitidamente nessa postura a herança do currículo imposto nas escolas desde a Idade Média – estudo da gramática, retórica e lógica – cuja influência persiste até os dias atuais. Na década de 1970, em função da LDB nº 5692/71, o ensino de língua materna, concebida então como código, focaliza o aspecto comunicacional dos textos, entendidos como uma mensagem a ser decodificada. A abordagem adotada, de acordo com esses conceitos, ainda que considere a comunicação, mostra uma visão reducionista da interação verbal. Além disso, nessa mesma linha de conduta didático-pedagógica, as “políticas de fechamento” supracitadas conduziram o ensino de Língua Portuguesa, a partir da inclusão obrigatória da prova de redação nos vestibulares, a uma prática de exploração de temas e técnicas de redação, um trabalho “destituído de qualquer valor interacional, sem autoria e sem recepção.” (ANTUNES, 2003, p. 26). Nota-se a possibilidade de se ampliar a visão de trabalho com a língua materna, de modo a desenvolver competências e habilidades necessárias ao uso da língua em situações de interação, principalmente a partir dos pressupostos teóricos advindos de pesquisas realizadas tanto pela Lingüística, como pela Lingüística Aplicada, que propiciaram a emergência da abordagem construtivista, interacional e funcional. O texto, concebido ora como processo ora como produto, assumiu o lugar de unidade, e o gênero, de objeto de ensino / aprendizagem nos documentos oficiais. Contudo, mais uma vez, reduziu-se a prática pedagógica à identificação e classificação de mecanismos de coesão e de fatores de coerência, enfatizando-se a metalinguagem, deixando de lado o desenvolvimento de habilidades relacionadas à construção do sentido textual, descartando-se a análise da diversidade de contextos em que a língua se manifesta. Ainda, nota-se a ênfase conferida à estrutura composicional de diversos gêneros, dado que ratifica a constante tendência escolar em se colocar contra as ações com ou sobre a linguagem, produzindo a monoleitura autorizada pelas “políticas de fechamento”. A análise dos (des) caminhos trilhados pela prática pedagógica que norteia o trabalho de Língua Portuguesa revela “que não é apenas uma questão de mudança nos objetos de ensino, mas de (re) discutir as crenças e os valores impregnados nos nossos modos de ensinar língua materna” (BUNZEN, 2004 apud BUNZEN, 2006, p. 143). 3. Gêneros textuais e ensino de Língua Portuguesa A definição de gênero tem sido vastamente discutida, podendo-se afirmar, conforme Marcuschi (2006), que existem hoje várias teorias sobre o assunto. A palavra “gênero” tem sido utilizada desde Platão, empregada para distinguir as categorias literárias (lírico, épico e dramático), inicialmente bem sólidas. Entretanto, tais categorias foram se ampliando e, com a crítica do Romantismo à estética clássica, entraram em crise. Na última década do século XX, os estudos sobre gênero passaram a se orientar por novas concepções, a partir da proposta de Bakhtin (2003) em considerar todos os enunciados, orais ou escritos, que atendam a um propósito comunicativo, um gênero do discurso, um enunciado de natureza histórica, sócio interacional, ideológica e lingüística, relativamente estável. Sob essa ótica, todas as atividades humanas relacionam-se à utilização da língua, o que se traduz em significativa diversidade de gêneros. Uma vez situado na relação com as práticas sociais e com as atividades discursivas no interior da cultura, o gênero mostra-se variável, pois se molda segundo as ações humanas. Nesse sentido, à medida que a sociedade se transforma, novos meios e modalidades de interação tornam-se necessários, por isso os gêneros desenvolvem-se de maneira dinâmica e novos gêneros surgem como desmembramentos de outros, de acordo com as necessidades ou as novas tecnologias como o telefone, o rádio, a televisão e a internet. Um gênero dá origem a outro e assim se consolidam novas formas com novas funções de acordo com as atividades que vão surgindo. (MARCUSCHI, 2005, p. 22)
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Nessa perspectiva, a dinamicidade e a plasticidade dos gêneros conduzem a uma linha de estudo contrária ao enfoque dado à forma ou a à estrutura, pois esse enfoque estabelece um formalismo reducionista, materializado na busca por taxionomias permanentes, correndo-se o risco, como adverte Bunzen (2006, p. 155) de “enfatizar uma tipologia genérica em nossas aulas e na produção de materiais didáticos, deixando de lado a diversidade das práticas sociais e as condições de produção sócio-histórica dos gêneros”. Uma categorização definitiva dos gêneros, disponibilizada em livros didáticos, de forma acabada e pronta, configura-se como proposta pertinente à prática pedagógica ainda presente nas escolas, onde os mecanismos de controle do discurso e do sujeito agem contra a heterogeneidade e imprevisibilidade do discurso, inviabilizando a criatividade, a reflexão e as ações dos alunos. Apesar de dinâmicos e variáveis, os gêneros têm identidade, são formações interativas, materialização de uma ação social tipificada, que se estabelece por meio da recorrência de situações que os tornam reconhecíveis. “Em suma, os gêneros não são superestruturas canônicas e deterministas, mas também não são amorfos e simplesmente determinados por pressões externas” (MARCUSCHI, 2005, p. 19). Essas noções revelam que realizar, em sala de aula, um trabalho com gênero significa explorar os modos de atuação sócio discursiva em dada cultura, o que transcende a perspectiva meramente lingüística ou mesmo textual. Infere-se, portanto, que o processo de ensino-aprendizagem de língua materna que adota os gêneros como objeto de ensino permite que o sujeito aluno utilize atividades de linguagem que “envolvam tanto capacidades lingüística ou lingüístico-discursivas, como capacidades propriamente discursivas, relacionadas à apreciação valorativa da situação comunicativa e como, também, capacidades de ação em contexto.” ( ROJO, 2001, p. 39) 4. Uma proposta para transposição didática Os Parâmetros Curriculares Nacionais – PCN (BRASIL, 1998) para o ensino de Língua Portuguesa revela orientação fundamentada na teoria bakhtiniana dos gêneros discursivos e, como explica Rojo (2000, p. 9), “em releituras didáticas dessa teoria” feitas por pesquisadores do Grupo de Genebra. Alguns textos, produtos desses estudos, estão reunidos em Schneuwly e Dolz (2004). Em tal arcabouço teórico, apesar de a teoria dos gêneros ter se configurado, sob diversificadas perspectivas, como objeto de muitos estudos, permanece, segundo Cristóvão e Nascimento (2005, p. 35), “dificuldade de conceituação, utilização e aplicação didática e pontos nebulosos nas proposições teóricas”. As autoras apresentam reflexões – em que grande parte das considerações aqui apresentadas se orientam - sobre possíveis contribuições do interacionismo sócio-discursivo em relação à transposição didática de estudos de gêneros textuais para seu uso em sala de aula. Para Bronckart (1997/1999, p. 101), os fatos de linguagem devem ser interpretados como “traços das condutas humanas, socialmente contextualizadas”, a fim de se conceber a linguagem como instrumento semiótico por meio do qual o homem existe e age. Admitindo que pela “reapropriação, no organismo humano, dessas propriedades instrumentais e discursivas de um meio sócio-histórico” (op. cit., p. 27) emergem as capacidades conscientes que conduzem a uma ação de linguagem, o interacionismo sócio-discursivo se insere nas abordagens que integram as dimensões psicossociais. Nesse sentido, as ações de linguagem se apresentam, “externamente, como resultante da atividade social operada pelas avaliações coletivas e, internamente, como produto de apropriação – pelo agente produtor – dos critérios dessa avaliação” (CRISTÓVÃO; NASCIMENTO, 2005, p. 37). Com relação ao processo de ensino-aprendizagem de língua, o modelo psicológico delineado pelo interacionismo sócio-discursivo propõe que o indivíduo internaliza, gradativamente, esquemas representativos e comunicativos, a partir dos quais a linguagem opera todas as faculdades mentais. Os esquemas representativos são construídos pela interação do sujeito com o contexto físico e social; os esquemas comunicativos, pela interação verbal. Nesse sentido, “as unidades lingüísticas funcionam em interação com o contexto extralingüístico.” (op. cit., p. 38).
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A noção de contexto da perspectiva cognitiva vai além da cognição individual, direcionandose para a interação social; assim, os parâmetros que exercem influência sobre os textos são extraídos desse contexto e, conforme propõe Bronckart, são distinguidos em três conjuntos, referindo-se: à interação; ao ato material de enunciação e ao contexto referencial. Em uma atividade de linguagem, materializada em textos orais ou escritos, o primeiro conjunto de parâmetros contextuais relacionase ao lugar social do agente, à finalidade e às relações entre os parceiros dessa atividade. O locutor, os interlocutores e o lugar de tal atividade referem-se ao segundo conjunto de parâmetros; o contexto referencial associa-se às macroestruturas semânticas, conteúdo referencial disponível na memória dos agentes. O trabalho com gêneros, no âmbito escolar, em conformidade com o interacionismo sóciodiscursivo, parte, primeiramente, da análise das relações que as ações de linguagem estabelecem com os parâmetros do contexto social em que estão inseridas; a seguir das capacidades que essas ações põem em funcionamento, como também das condições que viabilizam a construção dessas capacidades e, posteriormente, da arquitetura interna dos textos relacionada aos sentidos aí produzidos pelos elementos da língua. O objetivo da prática pedagogia é colaborar para que se chegue ao domínio dos gêneros, de modo que o indivíduo possa empregá-lo como instrumento propiciador de melhor relação com os textos, pois, compreendendo como utilizar um texto pertencente a um dado gênero, os agentes produtores e receptores poderão agir com a linguagem de forma mais produtiva e autônoma, mesmo ao se depararem com textos pertencentes a gêneros até o momento desconhecidos. Portanto, essa abordagem na sala de aula revela-se significativa, pois “o ensino de línguas deve formar o aluno para maestria em relação aos modelos preexistentes, mas também deve, progressivamente, e explorando a reflexividade dos alunos, desenvolver suas capacidades de deslocamento, de transformação dos modelos adquiridos. (BRONCKART, 2004 apud CRISTÓVÃO; NASCIMENTO, 2005, p. 47). Ainda, focalizando a proposta de Bronckart (1997/1999) para a transposição didática da teoria dos gêneros na perspectiva do desenvolvimento de competências e habilidades, considera-se que o autor situa as ações de linguagem em dois níveis – sociológico e psicológico. O primeiro é concebido como “uma porção da atividade de linguagem do grupo, recortada pelo mecanismo geral das avaliações sociais e imputada a um organismo humano singular”, e o segundo, como “o conhecimento disponível em um organismo ativo sobre as diferentes facetas de sua própria responsabilidade na intervenção verbal” (op. cit.; p. 99). No primeiro nível, percebe-se que a situação social de produção do enunciado determina a base de orientação para a ação da linguagem a ser materializada na produção textual, para as escolhas dos elementos semânticos e sintáticos de uma língua, os quais revelam como o enunciador construiu essa base. No nível psicológico, percebe-se o modo como o agente, na sua ação verbal, mobiliza tanto os parâmetros do contexto de produção quanto os relativos ao conteúdo temático, determinando as formas de gestão e a linearização do texto. Nessa perspectiva, Cristóvão e Nascimento (2005, p. 43) afirmam que: Assim, as atividades de linguagem decompostas em ações de linguagem delimitadas por julgamentos sociais (BRONCKART, apud SCHNEUWLY E DOLZ, 1997/2004) necessitam de uma base de orientação a partir da qual o agente-produtor toma decisões para a escolha do gênero disponível na intertextualidade, o que pressupõe diversas capacidades da parte do agente: adaptar-se às características do contexto e do referente (capacidades de ação), mobilizar modelos discursivos (capacidades discursivas) e dominar as operações psicolingüísticas e as unidades lingüísticas (capacidade lingüístico-discursivas) (DOLZ & SCHNEUWLY, 1997/2004, p. 74) para sua utilização - decisões estratégicas que lhe permitem a adoção e a adaptação de um gênero ( já existente) às condições de sua utilização e aos valores particulares do contexto sóciosubjetivo e do conteúdo temático que a ele estão indexados.
A concepção e a abordagem da língua orientadas pelo interacionismo sócio-discursivo conduzem à compreensão de gênero como unidades psicológicas que são as ações de linguagem, durante as quais capacidades são mobilizadas e operações psicológicas são realizadas pelo usuário da língua, a fim de que sentidos sejam construídos, tanto na produção quanto na recepção de textos. As ações ocorrem em um processo de interação constante, do sujeito para o meio em que ele se insere e vice-versa; os níveis pragmáticos e lingüísticos encontram-se, desse modo, associados, formando uma
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rede em espiral, em que todos os elementos que compõem um texto apontam para uma prática social, materializada nos enunciados. Portanto, o trabalho em sala de aula pautado na teoria dos gêneros, faz-se por meio de situações que propiciem o desenvolvimento das capacidades e das habilidades dos alunos, expondo-os à diversidade de gêneros com os quais eles se deparam, propondo-lhes práticas de linguagem significativas. Essas práticas contemplam operações de contextualização, enunciação, tematização e textualização. 5. Operações realizadas nas ações de linguagem O processo de construção de sentidos, seja na compreensão ou na produção de textos, orais e escritos, comportam, de acordo com o interacionismo sócio-discursivo, quatro operações, que sugerem um percurso que toma como ponto partida o reconhecimento e análise do contexto de produção, circulação e recepção do texto e o reconhecimento do gênero – a contextualização. Em seguida, identifica-se o tema abordado – tematização; depois, reconhecem-se os valores e os posicionamentos que o texto veicula em relação ao tema desenvolvido – enunciação. Finaliza-se com o estudo das seqüências discursivas que constituem o texto – textualização3. Diante do exposto, ressalta-se o fato de a compreensão e a produção de textos não ocorrer linearmente, sendo, portanto, possível, começar a interação com um dado texto por qualquer uma dessas quatro operações. Entretanto, a seqüência em que foram apresentadas propõe uma progressão, da dimensão pragmática para a lingüística. A operação de contextualização consiste em reconhecer a situação comunicativa de interação verbal, considerando-se que um texto, além dos interlocutores empíricos, envolve a construção de imagens que esses interlocutores fazem de si mesmos e um do outro. Desse modo, identificase o sujeito que e para quem fala em um enunciado, situando-os sócia, cultural e historicamente, construindo, assim, os significados daí depreendidos. Ainda, essa operação busca responder onde e quando ocorre a enunciação, baseando-se em informações presentes no texto, tais como a referência bibliográfica, a fonte, o suporte. A escolha das variedades lingüísticas presentes em um texto relacionase a esses dados, na medida que ajudam a compor a imagem dos interlocutores; a percepção do momento histórico de produção do texto remete aos valores sociais, culturais, econômicos, políticos, religiosos e filosóficos a que o enunciado pode se referir explícita ou implicitamente, dos quais ele é uma manifestação. Por meio dessa operação, o aluno pode desenvolver habilidades de relacionar o tratamento dado a um tópico discursivo aos gêneros, suportes, variedades lingüísticas, objetivos da ação de linguagem e às prática sociais que as requerem. Assim, também se desenvolve a habilidade de participar das diversas situações de interação, de reconhecer semelhanças e diferenças entre as ações de linguagem. A operação de tematização é o reconhecimento de um tópico discursivo, do tema abordado no enunciado. Estabelece-se relação entre o título ( e os subtítulos se houver) e o texto, hierarquizando os tópicos e subtópicos desenvolvidos; atenta-se para as pistas encontradas no texto, constrói-se sentidos, identificando informações mais ou menos relevantes, por meio de informações verbais e não-verbais. Sons, imagens, gráficos e tabelas são relacionados a informações verbais explícitas ou implícitas. Essa operação contribui para que se desenvolva a habilidade de compreender a organização temática de textos de diferentes gêneros, de inferir significados, correlacionar aspectos temáticos, de avaliar a consistência de informações em um texto e de adequar a organização temática de um enunciado aos contextos de produção, circulação e recepção. Ainda, desenvolve-se a habilidade de usar os recursos lexicais e semânticos como estratégia de produção de sentido e focalização temática A noção de ação de linguagem revela-se na visão do texto como entidade lacunar, ou seja, é necessário que, no processo de interação, o interlocutor preencha as lacunas do texto, construindo significados, apoiando-se nas pistas que o próprio enunciado traz. Com a noção de gênero, descarta-se a idéia de tipos de textos, amplamente abordados em materiais didáticos, apresentados aos alunos como narração, descrição e dissertação. O termo tipologia textual designa “uma espécie de seqüência teoricamente definida pela natureza lingüística de sua composição” ( MARCUSCHI, 2002, p. 22) e abrange as categorias narração, relato, descrição, exposição, argumentação e injunção.
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A operação de enunciação trata-se do reconhecimento dos propósitos e das funções sócio-comunicativas do gênero, dos posicionamentos enunciativos das vozes do texto, às quais se refere Bronckart (1997/1999) como vozes sociais, identificando-as como vozes de grupos, instituições, pessoas e personagens de outros textos, presentes em um dado enunciado. Entendese que um texto não se constrói apenas com um enunciador empírico mas com outros, com os quais se dialoga, trazendo para enunciação outros textos, cujas palavras são citadas, parafraseadas, parodiadas ou apenas lembradas. Desse modo, vozes locutoras participam de interlocuções dentro do texto, exigindo do ouvinte/leitor um posicionamento crítico diante dessas construções. Por meio dessa operação, desenvolve-se a habilidade de perceber e empregar os mecanismos de representação das vozes em textos de diferentes gêneros. Por exemplo, o locutor pode referir-se a si mesmo através de formas verbais e pronomes de 1ª pessoa, ou pode se insinuar por meio de modalizações e da argumentatividade. Os recursos lingüísticos – entonação, sinais de pontuação, adjetivos, substantivos, expressões de grau etc – são meios de expressão, pistas do posicionamento enunciativo das vozes do texto; ainda, desenvolve-se a habilidade de identificar as seqüências discursivas ( narração, relato, descrição, exposição, argumentação, injunção) usadas pelos locutores em um texto e os feitos de sentido assim produzidos. O diálogo com outros enunciados também propicia o desenvolvimento da habilidade de reconhecer e usar estratégias de intertextualidade e metalinguagem na compreensão e produção textual. A operação de textualização consiste em organizar seqüencialmente o conteúdo temático do texto, considerando-se o gêneros, o suporte, os interlocutores, as intenções e os posicionamentos enunciativos diante do tema. Nesse sentido, é preciso tomar decisões sobre como ordenar o conteúdo do enunciado, como introduzir e retomar tópicos discursivos, a fim de garantir a progressão e a unidade temática. Assim se desenvolve a habilidade de estruturar e articular os enunciados do texto. De modo geral, os gêneros são constituídos por mais de uma seqüência discursiva, portanto, ao trabalhar os diversos gêneros, o aluno orientado nesse sentido, passa a usar as estratégias de textualização dos discursos narrativo, de relato, descritivo, expositivo, argumentativo e injuntivo. Pertinente a cada discurso, aprende-se a manejar os mecanismos de coesão, os marcadores de progressão textual, os valores dos tempos e modos verbais na produção de sentidos, as estratégias de ordenação temporal e de organização lingüística do enunciado. Ressalta-se que o interesse que norteia essa operação, assim como as supracitadas, não é a nomenclatura, e sim o reconhecimento dos processos que originam os mecanismos e recursos presentes nas ações de linguagem. Depreende-se que a abordagem de língua por meio da operações apresentadas colaboram para o desenvolvimento de competências e habilidades referentes ao uso da língua em situações de interação. Esse uso, concebido aqui como ações, permite ao indivíduo compreender interpretar o meio em que vive a partir dos discursos com que se depara; mais ainda, permite-lhe atuar e agir participativa, reflexiva e ativamente nesse meio. 6. Últimas considerações Neste artigo, apresentou-se o objetivo de discorrer sobre a abordagem da Língua Portuguesa norteada pela transposição didática das teorias sobre os gêneros textuais, balizada pelo interacionismo sócio-discursivo proposto por Bronckart (1997/1999). Essa intenção pautou-se na premissa de que tal arcabouço teórico pode ser um meio pelo qual se viabilize, por meio de operações de contextualização, enunciação, tematização e textualização, o desenvolvimento de competências e habilidades dos alunos, necessárias à efetiva participação e inserção social. Contextualizado o cenário em que tem se desenvolvido o ensino de língua materna, percebeu-se a persistência de práticas pedagógicas centradas em memorização de nomenclaturas, com foco na metalinguagem como um fim em si mesmo; essas práticas instituídas por um discurso autorizados, normatizam o que deve ser e como deve ser o ensino de Língua Portuguesa. Ainda, silenciam as vozes dos alunos e negam-lhe oportunidades de reflexão e de autoria.
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Nesse sentido, recorrendo-se ao referencial teórico norteador deste estudo, infere-se um contexto em que ocorrem as ações de linguagem na prática escolar. Nesse contexto percebem-se vozes enunciativas que remetem à manutenção de das relações de poder instauradas na sociedades, como adverte Soares (1985), não há uma escola para o povo, mas sim contra o povo. Vive-se em uma sociedade em que as ações de linguagem são muito mais que ler, escrever, ouvir e falar. É por meio dessas ações que o indivíduo constrói seu conhecimento não somente relativo à Língua Portuguesa, mas também os demais saberes, divididos em componentes curriculares na escola, e presentes m várias situações cotidianas, fora da escola. E como o conhecimento do ser humano não se circunscreve nas limitações dos currículos escolares, o desenvolvimento de habilidades e competências é fundamental para construção de todos os conhecimentos. As operações apresentadas mostram que o aluno desenvolve habilidades como relacionar, comparar, inferir, organizar, agir, atuar. Ainda que relacionadas ao ensino de língua materna e à abordagem dos gêneros textuais, ressalta-se que todas as ações de linguagem estão materializadas nos gêneros e que essas ações são requeridas cotidianamente, nas mais diversas instâncias da vida. Portanto, ensinar Língua Portuguesa é como propiciar o desenvolvimento de habilidades para o exercício pleno da cidadania. Referências ANTUNES, I. Aula de português: encontro e interação. São Paulo: Parábola Editorial, 2003. BAKHTIN, M. Os gêneros do discurso. In: Estética da Criação Verbal. 3. ed.São Paulo: Martins Fontes, 2003. BRASIL. Ministério da Educação. Secretaria de Educação Fundamental. Parâmetros curriculares nacionais: 3º e 4º ciclos: língua portuguesa. Brasília: MEC/SEF, 1998. BRONCKART, J. P. Atividades de linguagem, textos e discursos. Por um interacionismo sócio-discursivo. Trad. Anna Rachel Machado e Péricles Cunha. São Paulo: EDUC, 1997/1999. BUNZEN, C.; MENDONÇA, M. Sobre o ensino de língua materna no ensino médio e a formação de professores: introdução dialogada. In: BUNZEN, C.; MENDONÇA, M. ( orgs.). Português no ensino médio formação do professor. São Paulo: Parábola Editorial, 2006. BUNZEN, C. Da era da composição à era dos gêneros: o ensino de produção de texto no ensino médio. In: BUNZEN, C.; MENDONÇA, M. ( orgs.). Português no ensino médio e formação do professor. São Paulo: Parábola Editorial, 2006. CRISTÓVÃO, V. L. L.; NASCIMENTO, E. L. Gêneros textuais e ensino: contribuições do interacionismo sócio-discursivo. In: KARWOSKI, A. M.; GAYDECZKA, B.; BRITO, K. S. (orgs.). União da Vitória: Kaygangue, 2005. MARCUSCHI, B. O que nos dizem o SAEB e o ENEM sobre o currículo de língua portuguesa para o ensino médio. In: BUNZEN, C.; MENDONÇA, M. ( orgs.). Português no ensino médio e formação do professor. São Paulo: Parábola Editorial, 2006. MARCUSCHI, L. A. Gêneros textuais: configuração, dinamicidade e circulação. In: KARWOSKI, A. M.; GAYDECZKA, B.; BRITO, K. S. (orgs.). União da Vitória: Kaygangue, 2005. _____. Gêneros textuais: definição e funcionalidade. In: DIONÍSIO, A.P. et al. Gêneros textuais e ensino. Rio de Janeiro: Lucerna, 2002 MENDONÇA, M. C. Língua e ensino: políticas de fechamento. In: MUSSALIN, F. C.; BENTES, A. C. (orgs.). Introdução à lingüística: domínios e fronteiras. São Paulo: Cortez, 2001. ROJO, R. A concepção de leitor e produtor de textos nos PCNs: ‘Ler é melhor que estudar’. In: FREITAS, M. T.; COSTA, S. R. ( orgs.). Leitura e escrita na formação de professores. São Paulo: Musa/UFJF/INEPCOMPED, 2001.
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Tema geral: Línguas e Literaturas: Diversidade e Adversidades na América Latina _____. Os PCNs, as práticas de linguagem ( dentro e fora da sala de aula) e a formação de professores. In: ROJO, R. (org.) A prática d linguagem em sala de aula: praticando os PCNs. São Paulo: EDUC; Campinas: Mercado de Letras, 2000. SCHNEUWLY, B.; DOLZ, J. Gêneros orais e escritos na escola. Trad. Roxane Rojo e Glaís Sales Cordeiro. São Paulo: Mercado de Letras, 2004. SOARES, M. B. Linguagem e escola: uma perspectiva social. São Paulo: Ática, 1985.
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E FOI QUANDO SHAKESPEARE CAIU NO BOI-BUMBÁ: NO LIMIAR ENTRE ARTE E CULTURA POPULAR Thales Branche Paes de MENDONÇA (Universidade Federal do Pará)
RESUMO: Partindo do questionamento acerca de que maneira a cultura artística estabelece relação com a cultura popular e considerando as diferenças relativas aos processos pelos quais esses dois sistemas culturais diferenciados geram seus produtos, este trabalho de pesquisa visa discutir essa aproximação. Para tanto, será tomado como objeto de estudos o espetáculo teatral “O Boi do Romeu no curral da Julieta”, roteiro e adaptação de Wlad Lima, trabalho que integra o repertório do grupo de teatro Palhaços Trovadores, que sob a direção de Marton Maués desenvolvem pesquisa, fundamentalmente, na linguagem do palhaço e da cultura popular. A leitura do espetáculo teatral será realizada considerando aspectos referentes ao projeto estético desenvolvido pelo grupo e elementos constituintes da totalidade semiológica do objeto estético teatral, tais como texto dramático, indumentárias e elementos sonoros. Busca-se, enfaticamente, por meio da leitura do espetáculo teatral, compreender de que maneira se estabelece o espaço limiar entre arte e cultura popular. PALAVRAS-CHAVE: Arte; cultura popular; teatro.
ABSTRACT: Based in questions about in which way the artistic culture establish a relation with the popular one, and also, considering the differences related to the process through these both different cultural systems generate their products, the presented paper entend to discuss this resulting approximation. In order to do that, it will be taken as a study object the theatrical show “O Boi Romeu no curral da Julieta” — screenplay and adaptation by Wlad Lima. This play is part of Palhaços Trovadores’ repertoire which, directed by Marton Maués, develops a research, fundamentally, about the clown language and also about the popular culture. The reading of this theatrical show will be done considering aspects related to the aesthetic project, developed by the group, and elements which constitute the semiological totality of the theatrical aesthetic object, such as the dramatic text and the visual and sonorous elements. It is supposed to reach, through this reading, the comprehension about in which ways it is established a threshold between art and popular culture. KEY WORDS: Art, Popular Culture, Theater.
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Introdução ou canto de chegada Lá vem meu boi, lá vem! Pelas ruas de Belém!1
Assim começava o espetáculo! Nós, quinze palhaços, cantávamos a toada que nos apresentava ao público. Um dos palhaços tocava a barrica, o outro tocava a matraca e todos cantavam e dançavam com energia buscando capturar de qualquer maneira todo passante. Nessa ocasião, em junho de 2006, os Palhaços Trovadores, grupo que integrei como ator / palhaço e músico durante dois anos, estreava a re-montegem do espetáculo O Boi do Romeu no Curral da Julieta, uma re-leitura do clássico de Shakespeare “Romeu e Julieta”. O espetáculo contava a história de Romeu e Julieta, a partir de uma inserção do drama no contexto do folguedo junino do Boi-Bumbá, ou seja, em vez de Romeu e Julieta terem seu amor ameaçado pela briga de famílias rivais, no espetáculo dos Palhaços Trovadores, os amantes têm sua história ameaçada pelo fato de pertencerem a bois rivais, simulando as tradicionais “rixas” existentes entre grupos de Bois-Bumbás diferentes. Mas até então, eu não sabia bem o que era exatamente tradicional na dinâmica dos Bois-Bumbás. Na verdade, eu nunca havia visto uma apresentação de qualquer Boi, aquilo tudo era muito novo para mim, e, com a graça do repente, eu percebi que gostaria de saber mais sobre aquele mundo de fitas coloridas e toadas que eu desconhecia. Assim, deparei-me com a inquietação que me move até hoje toda vez que me proponho a desenvolver um trabalho no campo da arte ou da academia. Este artigo representa uma parte do trabalho de conclusão de curso que foi resultado, inicialmente, de minha inquietação como ator na experiência de aproximação do teatro e da cultura popular. Inquietação que logo se tornou um encanto profundo. Encanto que ainda persiste até hoje e que me comove toda vez que eu sinto o mês de junho chegar, mas que, neste momento, está a serviço de estudos a respeito da cultura e das diferentes linguagens que se cruzam no trânsito cultura popular e teatro. Leitura do Espetáculo “O Boi do Romeu no Curral da Julieta” Após as elaborações teóricas que encaminharam que tipo de olhar este trabalho desenvolve na reflexão acerca das relações entre arte e cultura popular, foi possível notar que para compreender essa relação de maneira a perceber a amplitude histórica e social do contato, é fundamental que se parta do princípio de que tanto a arte, quanto a cultura popular representam processos históricos e sociais que se explicam na discussão em torno do conceito de cultura. A partir dessa discussão, é possível identificar arte e cultura popular como sistemas culturais diferenciados, sendo a arte um produto cultural que se estabelece na cultura artística, por meio de uma temporalidade que remonta o tempo industrial característico das sociedades modernas. Por outro lado, a cultura popular que não é apenas um produto, mas, sobretudo, um processo pelo qual se estabelecem diversos produtos, se realiza em um tempo comunitário, característico de uma temporalidade outra, que não a das sociedades modernas. Nesse sentido, a cultura popular, contemporaneamente, representa um território de constante fricção entre temporalidades distintas, o que configura uma realidade que não pode ser desprezada no momento da leitura desse sistema cultura específico. Estabelecida a discussão geral, foi encaminhada uma discussão mais específica em torno da relação entre teatro e cultura popular, tomando como foco principal alguns aspectos que fazem referência ao projeto estético do grupo de teatro Palhaços Trovadores2, considerando-se, fundamentalmente, a apropriação de elementos da cultura popular, o que, como já foi discutido na Canção “Reunida”, da autoria de Toni Soares, Ronaldo Silva, Ruy Baldez e Júnior Soares. Os Palhaços Trovadores são um grupo de teatro que, em Belém do Pará, completou dez anos de atividade no ano de 2008. A partir da figura do professor da Escola de Teatro e Dança da Universidade Federal do Pará (ETDUFPA) e diretor artístico dos Palhaços Trovadores, Marton Maués, o grupo foi formado em 1998, em uma oficina ministrada pelo diretor que, voltando de um período em que participou de uma oficina com o grupo de palhaças Maria das Graças (RJ), trouxe consigo o treinamento técnico de palhaço aplicado ao teatro, realizando um trabalho pioneiro em Belém. 1 2
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primeira seção deste capítulo, representa uma apropriação de elementos formais da cultura popular, ou seja, referências que dizem respeito, sobretudo, à formatação de uma matriz estética, não alterando a dinâmica processual do trabalho do grupo. Neste texto, será desenvolvida uma leitura de um dos espetáculos teatrais montados pelos Palhaços Trovadores. Para tanto, é necessário, que se estabeleça, minimamente, alguns parâmetros para a leitura do objeto. Sendo assim, é preciso ressaltar que é da natureza do evento teatral a movimentação de diferentes linguagens para a elaboração do sentido em sua totalidade. Isso significa dizer que “A síntese dos elementos artísticos faz o espetáculo e é em função dele que se deve pensar o teatro.” (MAGALDI, 1994, p.12). A premissa de Magaldi é fundamental para que se estabeleça um parâmetro básico para a leitura do espetáculo teatral que será apresentado: para que se possa realizar uma leitura, minimamente, efetiva do espetáculo teatral, é necessário que se considere a totalidade semiológica do objeto em questão. Sendo assim, na realização da leitura do espetáculo teatral serão considerados aspectos referentes, em primeiro plano, ao texto dramático, aqui encarado como um dos elementos que compreendem a totalidade semiológica do objeto em questão, ressaltando-se, na discussão, problemáticas relativas à formatação de enredo, personagens e ação, como elementos constituintes da estrutura do texto dramático. Buscando abranger com mais eficiência o conjunto semiológico do espetáculo teatral, serão considerados, também, elementos visuais e sonoros, como elementos que compõem o sentido da obra teatral. Após estabelecer que a leitura do espetáculo teatral se dará por meio da discussão de texto dramático e de elementos visuais e sonoros, torna-se válido enfatizar que a leitura acompanhará a elaboração teórica desenvolvida no trabalho de pesquisa que originou este artigo. Desse modo, não serão considerados aspectos minuciosamente técnicos da constituição do espetáculo teatral, mas sim, materialidades estéticas que funcionam como referência aos sistemas culturais existentes no mundo. Em suma, o espetáculo teatral será lido como um objeto cultural, produto de um processo histórico e sociológico que determina a sua formatação plástica. A leitura que será encaminhada a seguir tomará os elementos constituintes do espetáculo teatral citados como materialidades que remontam à idéia de teatro como cultura, ou seja, em meio ao “caos do mundo” de referências que se cruzam a todo o momento. Após as necessárias preliminares teóricas, é possível iniciar a discussão. Tratarei, nesse momento, do espetáculo teatral O Boi do Romeu no Curral da Julieta, adaptação e roteiro da atriz, diretora e professora de teatro Wlad Lima, com direção de Marton Maués. O Boi do Romeu no Curral da Julieta foi o terceiro espetáculo montado pelos Palhaços Trovadores, tendo sido estreado em junho de 1999, e remontado em junho de 2007, ocasião na qual pude participar ativamente do processo de remontagem do espetáculo. Desde então, o espetáculo está no repertório do grupo, ou seja, pode ser apresentado a qualquer momento, bastando a realização de poucos ensaios de manutenção, necessários apenas para a afinação de aspectos técnicos. Como o próprio título já anuncia, no espetáculo, tem-se uma adaptação da famosíssima tragédia de Shakespeare “Romeu e Julieta”, porém com o sentido de adaptação levado ao extremo. O “Romeu e Julieta” dos Palhaços Trovadores é uma comédia, representada, obviamente, por palhaços em tempos de São João, mais precisamente em meio à atmosfera competitiva e colorida dos Bois-Bumbás. Os personagens que vivem o drama da peça, naturalmente, equivalem aos principais personagens do drama original “Romeu e Julieta”, com algumas diferenciações básicas que, como já foi dito, ao serem introduzidas fazem com que o texto original seja transportado de um contexto completamente distinto de uma Verona de séculos atrás para a atmosfera dos festejos do mês de junho. Em vez de a história apontar duas famílias rivais como obstáculo principal para a união do casal apaixonado, o que se tem são dois grupos de Boi rivais, o Boi Capuleto e o Boi Montechio. A rivalidade de famílias, provavelmente, comum ao contexto original em que foi escrito o drama, é substituída pela rivalidade de Bois diferentes, característica comum à dinâmica dos Bois-Bumbás em Belém e, provavelmente, em todo o Brasil. Desse modo, a peça acaba por ser atualizada e, se é
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que existe esse termo, “regionalizada”, sem desprezar o texto original, mas com inserções advindas da cultura popular. Para que se continue a discussão, leia-se o prólogo do Boi do Romeu no Curral da Julieta: A todos os donos da casa É necessário anunciar Que a história que aqui vai ser contada É tema universal, de interesse popular Romeu e Julieta, os “amantes de Verona”, Neste boi são brincantes Cada qual com sua persona. Pularam fogueira com juras de amor E no ato de lutar pelos seus sonhos Encontraram destino trágico e muita, muita dor. Fiquem senhoras e senhores Com esta espetacular trama Que conserva ainda hoje Risos, lágrimas e muita fama3
A partir do prólogo, é possível apontar alguns aspectos que denunciam o que até o presente momento deste trabalho tenho chamado de aproximação / relação entre arte / teatro e cultura popular. Observe-se que, estruturalmente, o prólogo remonta à uma tradição clássica de construção do texto dramático, ou seja, a presença do prólogo como elemento constituinte do texto dramático de um espetáculo teatral contemporâneo é uma clara referência à uma tradição que faz parte de um sistema cultural dominante, afinal os prólogos marcaram a estruturado texto dramático neoclássico, tendo, conseqüentemente, sido utilizados amplamente pelo próprio Shakespeare, matriz primeira da adaptação construída por Wlad Lima na criação do roteiro do Boi do Romeu no Curral da Julieta. Contudo, apesar do prólogo apresentar, basicamente, a mesma função do prólogo neoclássico, antecipando a ação principal que será representada, tem-se, no texto, algumas indicações que apontam para um sistema cultural outro, que não o erudito, ou considerado na cultura ocidental, texto canônico de Shakespeare. Ao estabelecer como interlocutores os “donos da casa”, aqui há uma clara referência às toadas de apresentação do Boi-Bumbá que, na tradição popular, apresentam-se nas ruas, às portas, ou nos terreiros montados por aqueles que os convidam, os donos da casa. A referência ao Boi-Bumbá, como manifestação popular, é declarada no decorrer do texto, afinal os amantes de Verona, “nesse Boi são brincantes / cada qual com a sua persona”. Assim, o texto dramático aponta para um lugar completamente ambíguo do ponto de vista das referências à sistemas culturais distintos que são realizadas. A ambigüidade presente no prólogo estende-se para diversos aspectos que constituem a totalidade semiológica do espetáculo teatral em questão. Naturalmente, esses aspectos não poderão ser abordados integralmente neste trabalho, como de costume, um doloroso recorte deverá ser feito a fim de exemplificar e comprovar o que se constata nos primeiro minutos da leitura do Boi do Romeu no Curral da Julieta. O terreno ambíguo em que se apresenta o prólogo faz com que, no nível da materialidade estética, elementos que representam a cultura artística e a cultura popular não só se aproximem, como estabeleçam uma relação orgânica. A organicidade entre cultura artística e cultura popular é evidente quando os elementos encarados, tradicionalmente, como dicotômicos se harmonizam. No fundo, o próprio texto do prólogo já anuncia a harmonização de realidades distintas, afinal “a história que aqui vai ser contada / é tema universal de interesse popular”. O “universal”, freqüentemente representativo da cultura dominante, harmoniza-se com o “popular” e gera-se um produto cultural, em sua materialidade estética, com referências notadamente ambíguas.
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Prólogo do espetáculo teatral O Boi do Romeu no Curral da Julieta, a adaptação e roteiro de Wlad Lima.
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A fim de se perceber de que maneira é possível compreender o terreno ambíguo em que o texto dramático discutido se insere, vale buscar uma referência interpretativa em Victor Turner, antropólogo fundamental para a constituição da Antropologia da Performance. Ao analisar a estrutura de ritos de passagem em tribos africanas, Turner (1974), aponta, em seu texto, as fases que Van Gennep definiu para os ritos de passagem, ou transição. Segundo Gennep, esses ritos dividiriam-se em “separação, margem (ou “límen”, significando “limiar” em latim” e agregação.” (TURNER, p. 116). Sendo assim, ao explicar a divisão estabelecida por Gennep, Turner (1974) afirma que: A primeira fase (de separação) abrange o comportamento simbólico que significa o afastamento do indivíduo ou de um grupo, quer de um ponto fixo anterior na estrutura social, quer de um conjunto de condições culturais (um “estado”), ou ainda de ambos. Durante o período “limiar” intermédio, as características do sujeito ritual (ou “transitante” são ambíguas; passa através de um domínio cultural que tem poucos, ou quase nenhum dos atributos do passado ou do estado futuro. Na terceira fase (reagregação ou incorporação), consuma-se a passagem. (Idem, p. 116-117)
Obviamente, é evidente que a realidade que Turner estudou é completamente diferente da que discuto neste trabalho, mas é possível, em certo nível, estabelecer uma certa equivalência entre o que acontece nos ritos de transição discutidos por Turner e a dinâmica de apropriação de elementos da cultura popular existente no trabalho dos Palhaços Trovadores. Definidos a partir de uma tradição artística situada na lógica da cultura artística individualizadora (BOSI, 1992), no tempo industrial das sociedades modernas (AYALA, 2002), os produtos culturais gerados pelo trabalho dos Palhaços Trovadores movimentam uma separação dos padrões que dizem respeito à sua realidade original quando incorporam na sua materialidade estética elementos da cultura popular. Trata-se, portanto de uma reorganização da forma que gera um estado de ambigüidade similar ao do sujeito ritual ou transitante discutido por Turner. Naturalmente, a ambigüidade apresentada diz respeito à imagem material do produto cultural, mas é fato que, nesse aspecto, já é possível perceber a condição limiar do sujeito transitante, a liminaridade. Os atributos de liminaridade, ou de personae (pessoas) liminares são necessariamente ambíguos, uma vez que esta condição e estas pessoas furtam-se, ou escapam à rede de classificações que normalmente determinam a localização de estados e posições num espaço cultural. As entidades liminares não se situam aqui nem lá; estão no meio e entre as posições atribuídas e ordenadas pela lei, pelos costumes, convenções e cerimonial. (TURNER, 1974, p. 117)
A leitura do Boi do Romeu no curral da Julieta viabiliza, em diversos aspectos, a observância da liminaridade, vale ressaltar que se a liminaridade é a característica de um sujeito transitante, num movimento adaptativo da teoria discutida por Turner, o grupo Palhaços Trovadores, como representante do um pólo da cultura artística no processo de diferenciação existente, entra numa condição limiar ao agregar em seus produtos culturais, sua obra, elementos da cultura popular, o que o torna sujeito em liminaridade. Estabelece-se, então, uma condição ambígua que poderá ser justificada em diferentes aspectos do espetáculo teatral em questão. Desde sua composição visual, o espetáculo teatral já anuncia a franca relação de apropriação de elementos da cultura popular. Em relação aos elementos visuais que se fazem evidentes no cenário e nas indumentárias, é possível perceber que a proposta de identidade visual do espetáculo foi montada a partir da referência imagética das festas de São João, populares em todo o Brasil, afinal trata-se, no espetáculo, de uma narrativa que se passa em meio ao Boi-Bumbá. Desse modo, o colorido característico dessa manifestação popular específica e das festas de São João em geral, é predominante na composição dos elementos visuais do espetáculo. Tratase de uma busca constante de “imitar”, ou recriar elementos visuais que se referem à cultura popular, algo que o conceito de cultura especular proposto por Fernandes (2007) elucidada de maneira clara.
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Figura 1 – Formação inicial da cena que apresenta os palhaços
Como se pode observar na leitura da imagem anterior, as indumentárias são feitas de chitas, com estampas floridas e extremamente coloridas, fazendo referência às roupas usadas nas quadrilhas de São João. As indumentárias estabelecem, também, uma relação com o drama ao identificar, dependo da estampa, a família / grupo de Boi-Bumbá a que pertence cada um das personagens. Na imagem, verifica-se a predominância de uma estampa representando os Capuleto. O palhaço que está em primeiro plano segurando o guarda-chuva preto, por representar Romeu Montechio, portanto, do bloco rival, utiliza uma estampa diferente dos demais. O cenário consiste basicamente em dois caixotes que funcionam como base para os dois mastros que servem como extremidades nas quais as bandeirinhas de São João são armadas. Em geral, os cenários dos espetáculos teatrais montados pelos Palhaços Trovadores apresentam uma formulação muito simples, o que se explica pelo fato de todos os espetáculos serem montados com vistas à apresentação tanto em teatros, quanto em logradouros públicos, como praças e ruas. A preferência pelo uso de elementos cenográficos em geral, ao mesmo tempo em que representa uma semelhança com as manifestações populares de caráter dramático, que, a exemplo do Boi-Bumbá, não apresentam o uso de cenário ou outros elementos cenográficos, também denunciam uma realidade material do teatro que se faz na cidade de Belém. Em geral, as condições materiais do fazer teatral na cidade são extremamente precárias para os grupos locais. Os grupos não possuem recursos financeiros suficientes para a construção de espetáculos com grande parafernália técnica. Isso decorre por uma grande carência de editais de fomento da produção em artes cênicas, e por um número escasso de teatros na cidade em relação à quantidade de grupos em atividades. Essa dificuldade material aproxima o fazer teatral de grupos como os Palhaços Trovadores de, por exemplo, grupos de Bois-Bumbás na cultura popular. Nos dois casos, realizar a atividade que se pretende é sempre uma grande luta, porém essa aproximação de caráter contextual e processual não é o foco deste trabalho, portanto, não me prolongarei mais nesse assunto.
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Em relação ao texto dramático construído por Wlad Lima para o espetáculo, observa-se uma forte proposta de tentativas de se criar relações de equivalência entre alguns personagens da trama original e outros tradicionais do folguedo do Boi-bumbá. Assim, por exemplo, o pai de Julieta é o Coronel, amo do Boi Capuleto, e Julieta, conseqüentemente, é a Catirina do Boi, sendo citada na peça tanto pelo nome da personagem de Shakespeare, quanto pelo nome da personagem popular. Quanto à personagem Julieta / Catirina, é interessante perceber que ao se criar a relação de equivalência entre duas personagens separadas pelo tempo, acaba-se por construir um sentido novo para a leitura do drama. Observe-se a primeira fala de Julieta / Catirina no espetáculo: Ai, ai, ai que vida chata! Da ponta do meu nariz até o infinito o que vejo é boi e vaca. Desses bois não cheiro nenhum pedaço, nem vontade de comer eu tenho, mas se um bom bife eu comesse, me enfeitaria de rosas e do terreiro só sairia ao amanhecer. Ah! Se minha madrinha deixasse. Mas quem mataria esse desejo?4
Na narrativa tradicional do Boi-Bumbá, Catirina, que está grávida, sente desejos de comer a língua do boi do patrão de seu marido, o nego Chico. No drama de Shakespeare, Julieta é uma adolescente que sonha em se casar e é totalmente obediente aos pais. No trecho da fala da personagem do espetáculo, a convergência simbólica das duas personagens faz com que Julieta assuma uma face sutilmente erotizada, pois o tédio adolescente só poder ser transfigurado pela satisfação do desejo, da carne. O exposto acima pode ser confirmado na cena em que Julieta / Catirina vê Romeu pela primeira vez. Amor à primeira vista, como pede o protocolo e, quando no quase toque da aproximação do casal, Romeu abre o guarda-chuva que tinha em mãos, gerando uma imagem muito sugestiva do que seria uma ereção, simbolicamente representada pelo guarda-chuva que se abre na aproximação com sua amada / desejada. Obviamente, esse conteúdo acaba sendo, de certo modo, velado, primeiramente, pela figura do palhaço que, ao menos em senso-comum, é um ser que não pode falar sobre sexo, possivelmente, pela presença marcante do fiel público infantil. No entanto, não se pode negar que uma construção nova de sentidos só foi possível pelo cruzamento das duas narrativas. E por falar em cruzamento de narrativas, nota-se também, na formatação da cena, um elemento sonoro muito significativo na construção do humor. Ao Julieta / Catirina avistar Romeu, os dois entram em um transe apaixonado, nesse momento, um dos palhaços toca na escaleta (instrumento de sopro) o tema do clássico longa-metragem “Romeu e Julieta”, de Franco Zeffirelli, em uma clara alusão ao sentido de amor extremamente sublimado, que logo é quebrado pela “ereção” de Romeu. Portanto, fica evidente o constante jogo de referências entre diversos sistemas culturais diferentes, o que, cada vez mais, gera uma estética em liminaridade no espetáculo teatral. Considerando as referências apresentadas na leitura do espetáculo teatral em questão, existe um tripé básico no jogo de citações que configuram a forma limiar do espetáculo. Tem-se, em linhas gerais, a linguagem da tradição circense do palhaço, a matriz considerada canônica de Shakespeare e os diversos elementos da cultura popular que são incorporados. Porém, vez ou outra, à semelhança do que acontece na referência sonora do filme de Zeffirelli, signos pertencentes a outros núcleos culturais são trazidos à cena, na maioria das vezes com o objetivo de se fazer, sobretudo, graça. Tomando como exemplo a personagem da Ama, observa-se uma construção sensivelmente erotizada da personagem. Vale ressaltar que se trata de um espetáculo teatral de palhaços, dessa maneira, a erotização existente, se dá por meio do cômico, do ridículo. Assim, tem-se uma Ama com imensos seios e nádegas postiços, uma peruca loira e um sinal [enorme] próximo da boca, uma franca citação de uma das personalidades mais eróticas do cinema americano, Marylin Monroe, o resultado da brincadeira que traz a cena um signo da cultura de massa, inevitavelmente, é o riso. 4
Primeira fala de Julieta / Catirina no espetáculo teatral O Boi do Romeu no curral da Julieta, a adaptação e roteiro de Wlad Lima.
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Figura 2 – Cena de contato com o público, no primeiro plano a Ama, interpretada pela palhaça Pipita (atriz Cleice Maciel)
Agora tratando da cena em que a Ama / Marylin, após um pequeno diálogo, se despede de Julieta e, claro, do público, a personagem dispara: “Agora dá licença, que eu vou ver o meu orkut!”. Novamente, se propõe uma relação com um signo completamente distante da realidade do drama original, uma citação que tem, como efeito no espetáculo apenas o riso do público, e não qualquer tipo de contribuição para o desenvolvimento do drama. Ressignificações de imagens já existentes são propostas em vários momentos pelo espetáculo, principalmente pela mudança de tom que se opera quando se conta uma tragédia em meio às cores e fitas do Boi-Bumbá e pela voz, e corpo, do clown, que é um ser “ingênuo e ridículo; entretanto, seu descomprometimento e aparente ingenuidade lhe dão o poder de zombar de tudo e de todos impunemente” (BURNIER, 1994, p. 208). A partir daí, a tragédia, intrinsecamente ligada ao drama original, é fundida com a comicidade presente no trabalho dos clowns. Assim, tomando como exemplo as cenas de luta e morte entre Teobaldo Capuleto e Mercuccio, os personagens lutam empunhando espadas de plástico e dançando valsa. Após a morte de Mercuccio, o melhor amigo de Romeu, o Montechio apaixonado mata Teobaldo ao ritmo da capoeira. A cada golpe que acerta um dos oponentes nas lutas, por um mecanismo no figurino, caem fitas vermelhas imitando sangue e, claro, os palhaços choram feito crianças, em um claro desvirtuamento do tom trágico do texto original. Figura 3 – Cena da morte de Mercuccio, interpretado pelo palhaço Bumbo Tchelo (ator Marcelo Vilela)
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No momento das mortes, os palhaços sentam no chão, abaixam a cabeça, retiram o nariz [de palhaço] e dizem para a platéia: “Morri!”, como se fosse necessário. Entrega-se o jogo e o público é avisado de que o que se está vendo não é vida, mas sim teatro. Semelhante acontece nas cenas de morte de Romeu e Julieta, tomando como exemplo o suicídio de Julieta ao encontrar seu Romeu supostamente morto, o público assiste a patética cena de Julieta dançando um estranho balé com a língua do Boi que se estica absurdamente saindo da boca do animal. Ao fim da dança, Julieta se enforca com a língua do Boi, dando fim à sua vida. E, assim, quando o público deveria assistir ao momento máximo da tragédia shakesperiana, ele acaba se deparando com mais uma cena cômica que desvirtua o sentido original da peça, rindo da morte, algo que pode soar um tanto mórbido, mas que é permitido a partir da ótica subversora do palhaço e da cultura popular. Figura 4 – Cena do suicídio de Julieta, interpretada pela palhaça Neguinha (atriz Alessandra Nogueira)
Essas passagens remontam procedimentos cômicos que Bakhtin em A cultura popular na Idade Média e no Renascimento (1993) mapeou com bastante profundidade na obra de Rabelais, autor que empreendeu grande pesquisa em relação ao riso popular em sua obra. Segundo Bakhtin, Rabelais, à semelhança do que acontece em relação aos Palhaços Trovadores, tomou a cultura popular como fonte, o que o conferiu o título de “porta-voz do riso carnavalesco na literatura mundial” (p. 11). O sentido de carnaval diz respeito, sobretudo, à inversão dos padrões das sociedades na Idade Média, o que era realizado com eficiência pela prática da comicidade nessa empreitada: “O mundo infinito das formas e manifestações do riso opunha-se à cultura oficial, ao tom sério, religioso e feudal da época” (p. 3). Sendo assim, o riso popular atuava como força subversora das estruturas sociais, o que era observado com bastante clareza em procedimentos cômicos como as paródias. No momento em que a palhaça Neguinha (atriz Alessandra Nogueira) representa o suicídio de Julieta, uma das cenas mais clássicas da história do teatro ocidental, nota-se com muita clareza o tom de paródia. Ou seja, a palhaça Neguinha desvirtua com graça o sentido trágico original do texto shakesperiano. É o teatro subvertendo a sua própria tradição erudita. Subversão que acontece por meio da linguagem de forte relação com a cultura popular. Ao encaminhar o final desta leitura, é interessante perceber a morte como o tema que une a tragédia de Romeu e Julieta, no texto original de Shakespeare, e o drama popular do Boi-Bumbá. Afinal, no drama popular, resguardadas as infinitas variações, em geral, a ação dramática é encaminhada pela busca do Nego Chico de alguém para ressuscitar o Boi preferido do Coronel, o dono da fazenda onde Chico trabalha. Diferentemente da história de Romeu e Julieta, em que os amantes invariavelmente
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terminam mortos, no drama popular, o Boi sempre ressuscita, o que transforma a coisa em uma grande festa ao final. A morte une e ao mesmo tempo separa os dois objetos culturais encarados como representantes de pólos opostos das relações de poder: de um lado a cultura dominante, e do outro, a cultura subalterna. Na região limiar desse embate, os Palhaços Trovadores contam a história de Romeu e Julieta a partir da matriz fundamental do Boi-Bumbá. Nessa zona ambígua, como resolver o conflito do “final da história?” Eis a solução da arte: Agora começa o fim Deste amor entusiasmado De Romeu e Julieta E por nosso boi enfeitado As coisas não morrem fácil Quando se tem boa memória O teatro é sempre útil Pra perpetuar a história Quando se junta na arena Shakespeare e trovadores palhaços Para esta platéia divina Sobram corações estraçalhados Mas dizem as lendas juninas Que antes desta tragédia amorosa Todos os bois pareciam galinhas De duas patas brincando roda Descubram agora vocês... Que quatro patas são estas Que dançam o boi outra vez!? Felicidade, felicidade O outro ano logo chega Trazendo os Trovadores A esta casa (rua) com certeza5
A despeito do que propõe o texto original de Shakespeare, no fim das contas Romeu e Julieta são ressuscitados, sem muitas explicações, sem muitas reflexões, leituras psicanalíticas ou barthesianas do acontecido. Tudo se torna uma grande festa e é a inspiração popular que move o desfecho do objeto estético, a contragosto [ou não]e Shakespeare. Acredito que já não há espaço para leitura, talvez fosse melhor esperar chegar junho e ir assistir o Boi na praça. Figura 5 – O Boi Capuleto “bumbando”
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Epílogo do espetáculo teatral O Boi do Romeu no curral da Julieta, a adaptação e roteiro de Wlad Lima.
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Conclusão ou canto de partida E é chegado o momento da indispensável “conclusão”, e como se trata de uma conclusão de um artigo originado de um Trabalho de Conclusão de curso de Graduação, definitivamente acredito que “conclusão” é uma palavra muito forte, arrisco dizer que é até um tanto pretensiosa. Porém, isto é um trabalho acadêmico, portanto é necessário concluir, ou ao menos, como é o que vou fazer, apontar conclusões preliminares, algo entre a constatação da hipótese e canto de partida depois da “contação” de uma história que identifico, também, como minha. E lá se foi a neutralidade científica... No tecer deste trabalho, buscou-se uma reflexão acerca do tema da aproximação entre arte e cultura popular. A idéia de que existe uma aproximação entre os dois planos já deixa clara uma concepção preliminar que aqui se sustentou: arte e cultura popular não podem ser encaradas como sendo a mesma coisa, por mais que ambas tenham seus princípios estéticos e sentidos de beleza. Foi fundamental perceber, desde o início da prosa, que a investigação passava por dois núcleos culturais de naturezas distintas, que também estabeleciam relações distintas na estrutura social das sociedades modernas. Desse modo, investigar a aproximação entre arte e cultura popular, desde o início deste trabalho significou perceber que é necessário identificar com clareza as diferenças de sistemas culturais diferenciados, para que não se caia no erro de, por uma falsa premissa de “igualdade para todos”, acabar cometendo incoerências teóricas, e o que é pior, ideológicas. Cultura popular e cultura artística diferenciam-se do ponto de vista do processo pelo qual essas culturas estabelecem relação com o mundo, ou seja, são dois modelos culturais ideologicamente diferenciados. Portanto, considerar processo e ideologia na leitura das culturas é um passo fundamental para a compreensão das mesmas, de modo que é só a partir da leitura desta realidade que se pode determinar, com alguma margem de acerto, de que maneira uma cultura se relaciona com o mundo. Daí a necessidade de se pensar o processo no momento de atribuir a esse ou àquele objeto cultural o título de manifestação da cultura popular. Esse problema básico orientou a hipótese de que na aproximação entre arte e cultura popular, o que poderia haver, já que os processos pelos quais se realizam essas culturas são diferentes, é uma apropriação e agregação de elementos da cultura popular no corpo estético dos produtos culturais resultantes do processo da cultura artística. Em outros termos, a cultura popular serviria de matriz imagética, ou poética, da cultura artística, o que significa dizer que a relação que se estabelece é, sobretudo, no viés da materialidade dos produtos culturais. Tomando como base o trabalho dos Palhaços Trovadores essa hipótese pôde ser comprovada. Na leitura do projeto estético assumido pelo grupo e do espetáculo teatral O Boi do Romeu no Curral da Julieta ficou evidente que a cultura popular é, sobretudo, uma das matrizes estéticas que compõem as diversas tessituras semiológicas existentes no espetáculo, havendo também, como foi ressaltado, como matriz estética no trabalho dos Palhaços Trovadores e no espetáculo teatral discutido, a matriz erudita de Skakespeare. Assim, a cultura popular é uma das fontes de inspiração imagética, musical e poética, o que, nas relações estabelecidas com os outros sistemas culturais referidos no espetáculo, gera um produto cultural de caráter limiar, entre o “lá” e o “cá” da cultura. A relação se estabelece, na verdade, não entre arte e cultura popular como processo, mas entre arte e cultura popular como produto, em seus elementos icônicos. Este trabalho pôde rastrear apenas essa conclusão, o que representa, provavelmente, somente aquilo que é declarado na superfície das coisas. Esta pesquisa ainda não pôde considerar outros aspectos que poderiam, também, funcionar como pontos de aproximação, como por exemplo, os mesmos Palhaços Trovadores que apresentam seus espetáculos cobrando cachês justos da Secretaria de Cultura do Estado do Pará na Estação das Docas, demarcando uma relação francamente mercadológica, apresentam seus espetáculos, a pedido dos integrantes, em suas comunidades, nas periferias, sem cachê, sem luz, sem glamour. Dessa forma, o mesmo produto cultural, na dinâmica em que se processa o trabalho dos Palhaços Trovadores é consumido por públicos diferenciados, em espaços diferenciados, e a partir de funcionalidades igualmente diferenciadas, o que, possivelmente, pode acarretar um trânsito por temporalidades também diferenciadas de relação com o mundo.
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Outra questão passível de ser aplicada a essa discussão diz respeito ao funcionamento do grupo que, como em uma espécie de escola, se aprende imitando os mais experientes. Os palhaços mais velhos servem de modelo aos mais novos, que, frequentemente, desenvolvem por aqueles um grande respeito. Lembro com saudade das inúmeras histórias de palhaçadas passadas que o Marcelo Vilela, palhaço Bumbo Tchelo, contava e recontava enquanto nos maquiávamos, e assim, se dava o aprendizado, no cotidiano, na relação que se estreitava a cada dia, entre gargalhadas e picuinhas de família. Essa dinâmica aproxima significativamente a realidade do trabalho de grupo em teatro do que existe na cultura popular, principalmente na paixão que se desenvolve por algo tão difícil de se realizar no mundo-cão do capitalismo selvagem. Porém, esses são aspectos que dizem respeito a uma outra discussão, outros objetivos, justificativa e metodologia, em suma, essa é uma outra história. Referência AYALA, Maria Ignez Novais. Cultura popular e temporalidade. Ensaio originado do texto-base da conferência “Diferentes temporalidade da literatura oral e popular”, apresentada em Gramado, 26/06/2002, no GT Literatura Oral e Popular da ANPOLL, em seu XVII Encontro Nacional. BAKHTIN, Mikhail Mikhailovitch. A cultura popular na Idade Média e no Renascimento: o contexto de François Rabelais. Tradução: Yara Frateschi Vieira. São Paulo: HUCITEC; Brasília: Editora da Universidade de Brasília, 1993. BOSI, Alfredo. Dialética da colonização. São Paulo: Cia das Letras, 1992. BURNIER, Luiz Otávio. A arte do ator: da técnica à representação. Campinas: editora Unicamp, 2001. FERNANDES, José Guilherme dos Santos. O boi de máscaras: festa, trabalho e memória na cultura popular do boi Tinga de São Caetano de Odivelas, Pará. Belém: EDUFPA, 2007. MAGALDI, Sábato. Iniciação ao teatro. São Paulo: Ática, 1994. MAUÉS, Marton Sérgio Moreira. Palhaços Trovadores: uma história cheia de graça. Dissertação de Mestrado apresentada na Universidade Federal da Bahia, Escola de Teatro, Programa de Pós-Graduação em Artes Cênicas, Salvador, BA, 2004. TURNER, Victor W. O Processo Ritual: Estrutura e Antiestrutura. Tradução: Nancy Campi de Castro. Petrópolis: Vozes, 1974.
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A FORMA E O PAPEL DAS REVISTAS NA PRODUÇÃO DE SENTIDOS DA ESCOLARIZAÇÃO DOS ROLE-PLAYING GAMES (RPGS) Thomas Massao FAIRCHILD (Universidade Federal do Pará)
RESUMO: Neste trabalho investigo o papel das revistas na história da leitura de impressos de role-playing game (RPGs) no Brasil. Caracterizo as principais revistas de RPG brasileiras e comento as funções que exerceram, sobretudo nos anos 1990, como antecipar e divulgar lançamentos, ajudar leitores a localizar livros ou a entrar em contato etc. Em seguida, analiso um dado que ilustra como o suporte revista possibilita certas estratégias de formação de consumidores ao favorecer percursos de leitura que não coincidem com as demarcações textuais do material que veicula. Busco mostrar que a recente escolarização dos RPGs reedita algumas dessas estratégias de captação de público e não está desvinculada do movimento de sua expansão comercial, bem como dos processos de diferenciação identitária pelos quais uma comunidade discursiva constrói para seus próprios membros, RPGistas, uma posição de leitores “expertos”. PALAVRAS-CHAVE: leitura de revistas; suporte; formação de leitores; escolarização.
ABSTRACT: In this paper we investigate how magazines took part in the history of reading of role-playing game (RPG) publications in Brazil. We start by a description of the main Brazilian RPG magazines and a commentary on the functions they have exercised, chiefly in the 1990’s, such as announcing upcoming or recent releases, helping readers find books or get in touch etc. Afterwards, we analyze an example that illustrates how the physical support “magazine” has allowed certain consumer habit-forming strategies by favoring reading paths that override the textual borderlines of the material it carries. We show that the recent approach of RPGs to school reruns some of these audience capturing strategies and, thus, relates to a movement of commercial expansion of RPGs as well as to processes of identitary differentiation through which a discursive community constructs to its own members, role-playing gamers, a position as expert readers. KEY WORDS: magazine reading; textual support; reading instruction; scholarizing.
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1. A escolarização em revista Pelo menos desde 2002, quando se realizou no MartCenter, em São Paulo, o I Simpósio RPG & Educação, a história dos role-playing games enlaçou-se explicitamente com os rumos da escola. De lá para cá foram realizados outros eventos similares em pelo menos três capitais do país1 e surgiram títulos de RPG cujos temas, ilustrações e formatos têm um forte pendor pedagógico, aproximando-se de modelos cuja presença na escola consolidou-se há mais tempo – em especial, os livros de literatura infantil e os paradidáticos. A isto se soma uma recente produção acadêmica voltada para a temática dos role-playing games, em sua quase totalidade vinculada ao campo da Educação2, e que também precisa ser entendida como parte do processo que vem produzindo a entrada desses materiais em sala de aula e no discurso escolar. O debate em torno desses jogos é importante por algumas razões. Em primeiro lugar, porque se trata de uma classe de profissionais – escritores, tradutores, ilustradores, editores – que passou a reivindicar certo poder decisório em relação à escola. Em seguida, porque no esteio dos debates sobre o RPG avançam certas premissas sobre o ensino que ainda precisam ser examinadas à luz do arcabouço teórico de que dispomos nas diversas áreas que dialogam com a Educação – como a de que a um texto de qualidade corresponde uma leitura de qualidade, por exemplo. O aspecto mais instigante desse processo, em todo caso, parece ser o fato de que ele demonstra as condições em que um determinado objeto pode chegar a ser considerado escolar. Tenho me interessado por descrever esse processo de escolarização como um processo essencialmente discursivo, realizado pela produção de enunciados que se encadeiam num trançado histórico, e que diz respeito tanto ao registro do objeto que se escolariza quanto ao dos sujeitos que se constituem pelo fato de se pronunciarem (ou deixarem de se pronunciar) a respeito. Em minha tese de doutorado (FAIRCHILD, 2007), buscava compreender a escolarização dos role-playing games fundamentalmente como um efeito produzido por leituras de impressos de RPG. Evitava, portanto, descrever esse processo como um movimento autônomo, acionado por uma “carência” da escola ou pela “inventividade” de alguns jogadores; procurava antes relacioná-lo a outros efeitos de sentido produzidos historicamente na leitura dos role-playing games. Uma das conclusões a que isto tem levado é a de que a escolarização reedita dois movimentos preconfigurados em discursos antecedentes: de um lado, reproduz idéias-feitas sobre a relação da escola com o seu mundo “exterior” e o lugar supostamente ocupado pelos objetos culturais que podem fazer parte dela; de outro, é a reaparição de uma forma pela qual se empreendeu a captação de jogadores iniciantes nos primeiros anos do RPG no Brasil. Este segundo aspecto será mais explorado neste trabalho. Ele sugere que a escolarização se alinha com outros movimentos de expansão do público leitor-consumidor dos jogos de RPG e, ademais, demonstra a continuidade de um processo inerente ao discurso do role-playing gamer, que é a produção de uma diferença imaginária entre o jogador experto e o novato. Grande parte da inventividade das propostas de escolarização do RPG parece resultar do fato de que, em certo momento, colocou-se nesta última posição o professor da Escola Básica. Neste texto discutirei um aspecto específico da história da leitura dos impressos de RPGs: as possibilidades de leitura implicadas nas revistas especializadas que circularam durante o decênio de 1990 (isto é, a primeira década de role-playing games no Brasil) e a forma como essas leituras de periódicos podem ter se relacionado à leitura e circulação dos livros de RPG. Interessa-me, em especial, a constituição da revista como dispositivo de produção do leitor-consumidor de RPG, pelo qual se concretizam narrativas iniciáticas cuja função é, antes de tudo, a de “rarefazer” o discurso do jogador, no sentido que lhe dá Foucault (2003). Veremos, ao fim, que a escolarização não deixa de funcionar como dispositivo de uma “comunidade discursiva” que disputa a palavra sobre o RPG e, logo, sobre a leitura, o mundo livresco e, por extensão, a cultura escolar. Simpósio RPG & Educação, em São Paulo (2002, 2003, 2004, 2006); Colóquio RPG & Educação, em Curitiba (2004); Simpósio Histórias Abertas, no Rio de Janeiro (2003, 2004). 2 Em ordem cronológica: Mota 1997; Bettochi, 1999; Braga, 2000; Higuchi, 2000; Martins, 2000; Pavão, 2000; Lorenz, 2002; Fairchild, 2004; Fairchild, 2007; Mattos, 2007, Schimdt, 2008. Neste último trabalho, Schmidt faz um levantamento mais extensivo de publicações a respeito do RPG no Brasil. 1
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2. Entre o periódico e o permanente: a forma e o papel das revistas de RPG As revistas especializadas em RPG do Brasil datam de meados dos anos 1990. São, portanto, ligeiramente mais jovens que os primeiros livros a surgirem no mercado nacional. Com efeito, desde 1989 havia coleções de “aventuras-solo” no país e os primeiros grandes manuais de regras para o RPG “de mesa” – GURPS e Tagmar – datam de 1991. Apenas em 1994 surge uma revista intitulada Dragon, que a partir do número 3 passou a chamar-se Dragão Brasil. No mesmo ano é lançada a revista Dragão Dourado, da qual infelizmente não dispusemos de nenhum exemplar, e no ano seguinte Dragon Magazine. A revista Dragon/Dragão Brasil (Trama/Talismã/Melody) vem sendo publicada até hoje. É de uma revista eclética, que, embora predominantemente voltada para os RPGs, sempre reservou espaço para assuntos afins como card games, jogos eletrônicos, comics e mangás, seriados televisivos, filmes, livros etc. Já nos anos 1990 veiculava textos de autoria e assunto bastante variados, inclusive textos escritos por jogadores, autores e editores de RPG brasileiros. Outras revistas seguiram um padrão semelhante, embora aparentemente com menor repercussão e longevidade: The Universe of RPG (Ediouro, 1995), Role-Playing (Escala, 1996-1997), Só Aventuras (Trama, 1997), Saga (Escala, 1997), Grimorium (Escala, 2000) e Arkhan (Escala, 2002)3. Em 1995, a revista Dragon Magazine foi lançada pela editora Abril juntamente com outros produtos que incluíam o jogo para iniciantes FirstQuest e a aguardada versão nacional de Advanced Dungeons&Dragons. Diferentemente de suas antecessoras, Dragon Magazine publicava apenas textos referentes ao universo de Dungeons&Dragons e aos produtos comercializados pela editora Abril, representante nacional da empresa americana TSR. Era, presumivelmente, uma vitrine de divulgação dos lançamentos da editora e, ao mesmo tempo, veículo para textos que apoiassem os jogadores na tarefa de aprender a jogar com os livros da franquia. Seu aspecto diferia ligeiramente do dos demais periódicos – a começar pelas capas, que não traziam manchetes, mas apenas o logotipo da revista e reproduções de pinturas oriundas de outros títulos da editora – o que de fato tornava seus exemplares externamente parecidos com livros. Por outro lado, a editora Abril comercializou muitos livros de RPG na forma de kits mensais vendidos em bancas de revistas, aparentemente apostando na conquista de um leitor mais habituado às coleções periódicas do que à compra de obras avulsas. Esta reversibilidade entre o periódico e o permanente será uma marca típica do universo dos impressos de RPG. Ainda nos anos 1990 a editora Trama lançou alguns títulos, entre eles os populares Arkanun e Grimório, como números especiais da revista Dragão Brasil. Um caso semelhante é o da coleção MiniGURPS, lançada pela editora Devir a partir de 1999, na qual se incluem algumas das obras mais explicitamente voltadas a um público escolar: O Descobrimento do Brasil, O Quilombo dos Palmares, Entradas e Bandeiras, As Cruzadas, O Resgate de “Retirantes” e No Coração dos Deuses. Cada um desses títulos tem cerca de 60 páginas, espessura média de uma revista, e seu próprio caráter colecionável lembra os suplementos que muitos periódicos lançam ocasionalmente – enciclopédias, coleções de filmes e outros brindes. Enfim, um ponto extremo da ambigüidade do suporte do role-playing game é uma publicação mais recente: a revista D20 Saga, veiculada entre 2003 e 2004 pela editora Mantícora. Esta revista sui generis se autodescrevia como um “suplemento bimestral” e, embora preservasse traços comuns aos periódicos, como a presença de uma coluna de opinião e peças publicitárias, assemelhava-se também ao formato livro em diversos aspectos – desde a baixa periodicidade e o acabamento mais caro, com capa cartonada e encadernação com lombada, até a natureza de boa parte dos textos. Isto tudo sugere que o role-playing gamer pode ser um leitor herdeiro de outras práticas de leitura que não apenas aquelas relacionadas ao mundo dos livros, e que seria justo lembrar o parentesco que os RPGs mantém não apenas com as bibliotecas, mas também com o mundo da imprensa periódica e as bancas de jornal. Esta reversibilidade entre o periódico e o permanente encontra expressão no interior das revistas de RPG. Pode-se afirmar que elas oscilam entre duas vocações: a de veicular textos que tenham Trata-se de revistas das quais conseguimos exemplares dispersos, graças à colaboração dos jogadores que atuaram como informantes durante minha pesquisa de Doutorado.
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como assunto os jogos de RPG, como reportagens, resenhas e classificados, assemelhando-se portanto às revistas especializadas em outros assuntos; e o de veicular textos que sejam efetivamente material para jogar RPG, no que constam descrições de cenários, enredos para aventuras, mapas, listas de monstros e armas etc., assemelhando-se aos próprios livros de RPG. Os textos que têm como assunto jogos de RPG incluem, esquematicamente: a. Artigos. Tratam de situações comuns na prática do mestre e dos jogadores4 em geral. Dentre outras coisas, encontramos artigos que se propõem a explicar o que é RPG e a introduzir o leitor iniciante nos fundamentos desse tipo de jogo; textos que comentam a aplicação de regras específicas e se destinam a jogadores mais experientes; textos que comentam situações engraçadas ou embaraçosas que podem ocorrer durante uma partida; textos que tratam de dúvidas comuns sobre regras ou impasses que o mestre pode encontrar; textos comentando problemas de tradução em livros de RPG etc. b. Reportagens. São textos que dão notícia sobre eventos e convenções de role-playing gamers, lançamentos de livros, jogos de computador, filmes ou quadrinhos ligados a temas ou marcas de RPG etc. Podemos incluir aqui, também, aqueles textos do tipo que celebra a vida e obra de uma personalidade de interesse, freqüentemente motivados pela aproximação de um aniversário ou pelo ressurgimento de uma obra no mercado. No caso das revistas de RPG os nomes contemplados por tais honras geralmente são de autores de RPG ou de literatura, cineastas, quadrinistas ou ilustradores. Assim, por exemplo, na revista Dragon Magazine nº 4 encontramos um texto sobre a obra de L. Ron Hubbard, um escritor estadunidense de ficção científica. Poderíamos incluir nesta categoria, ainda, aqueles textos que se dedicam a narrar a história ou a ancestralidade do RPG. Nessa linha, encontraremos na revista Arkhan nº 3, por exemplo, uma reportagem sobre a história dos war games, tidos como precursores do RPG. c. Entrevistas e depoimentos com grandes nomes do universo dos role-playing games, às vezes por ocasião da sua vinda ao Brasil ou do lançamento de um produto. A título de exemplo: a revista Dragão Brasil nº 24 traz uma entrevista com Clyde Caldwell, célebre ilustrador da editora americana TSR; o nº 25 traz uma entrevista com Luiz Eduardo Ricon, um dos autores de O Desafio dos Bandeirantes – primeira obra a propor a introdução de elementos da história do Brasil no lugar da temática anglo-saxônica dos jogos tradicionais. d. Resenhas ou traduções de livros de RPG e outros produtos de interesse. Há uma série de textos que descrevem e recomendam livros de RPG ou obras afins. Textos desse tipo normalmente anunciam os lançamentos nacionais, mas também acompanham as publicações estrangeiras e organizam assim o campo das expectativas do jogador brasileiro. Tal é o caso da resenha encontrada na Dragão Brasil nº 11, que trata dos Clanbooks de Vampiro, cuja versão brasileira, por aquela época, estava nos prelos da Devir Livraria. Algumas vezes esses textos trazem trechos de uma obra traduzidos, como a ficha de uma personagem ou a descrição de uma parte do cenário. Textos similares comentam o lançamento de miniaturas, cartas e outros produtos afins, ou tratam de romances, filmes e séries televisivas que de alguma maneira poderiam interessar ao jogador de RPG. Nesse quesito, por exemplo, a revista Só Aventuras nº 1 traz uma resenha do livro Entrevista com o Vampiro, de Anne Rice, que inspirou tanto o filme homônimo quanto o então recém-lançado RPG Vampiro: a Máscara. e. Seções de cartas e classificados. Normalmente tratam-se de comentários sobre artigos e reportagens pregressas, elogios ou protestos sobre a orientação da revista, sugestões ou indagações sobre textos futuros, relatos de situações vividas pelos leitores etc. Na revista Dragon Magazine, cartas de leitores eram publicadas na seção “Conselhos do Sábio” e Numa partida de RPG fundamentalmente há dois papéis: o de mestre, aquele responsável por conduzir oralmente o enredo de uma aventura, e o de jogador, a quem cabe “interpretar” as ações de uma personagem – isto é, narrar as decisões desta personagem perante as situações apresentadas pelo mestre.
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tratavam especificamente de dúvidas sobre aplicação de certas regras; na revista Dragão Brasil havia uma seção chamada “Louse Slayers” em que eram publicadas especificamente cartas de leitores corrigindo a revista. Também se encontram em revistas anúncios de venda, compra e troca de itens variados – livros de RPG, cards, cartuchos de videogame, jogos de computador etc. Entre esses classificados há textos convocando jogadores para formar grupos ou trocar material e idéias, o que nos dá um vislumbre da oferta e demanda dos materiais de RPG e de algumas modalidades da sua circulação na era pré-internet. f. Enfim, serão textos tipicamente encontrados em revistas os anúncios publicitários de distribuidoras, importadoras, lojas e editoras – dos quais analisaremos um exemplo logo a seguir. A presença desses textos em revistas de RPG sugere que elas se propuseram a exercer um leque de funções muito variado, dentre as quais poderíamos supor: criar um primeiro vínculo com leitores que ainda não são jogadores de RPG (uma vez que o preço de uma revista é menor que o de um livro); evidenciar formas de acesso a livros de RPG e outros materiais necessários para jogar (através de classificados e anúncios publicitários, por exemplo); auxiliar ou instruir sobre a leitura de livros de RPG (condição para que sejam compreendidos, e logo para que sejam comprados); favorecer o contato entre jogadores (também condição de plausibilidade para a compra de livros); garantir certa homogeneidade no discurso dos jogadores (pela regulação da interpretação de regras, pelo uso codificado de certos termos etc.); promover a circulação de alguns dizeres relacionados à identidade do role-playing gamer (como datas e nomes de publicações consideradas importantes, ou narrativas “ontológicas” como a da invenção dos RPGs etc.); garantir a própria continuidade da revista pela veiculação da idéia de que lê-las é, também, parte dessa identidade do RPGista (para manter-se atualizado acerca de lançamentos, para compreender “corretamente” certos textos, para estar a par de eventos como feiras e encontros) etc. Como vimos, ao lado dos textos elencados acima é possível encontrar em revistas de RPG material mais similar ao que se encontraria em livros, de modo que também podemos imaginá-las tendo alguma participação nas mesas de jogo. Em relação a esse tipo de material, o que se encontra com mais freqüência são: a. Roteiros de aventuras, isto é, textos dirigidos ao mestre que propõem as linhas gerais de um enredo, geralmente na forma de uma seqüência de cenas. É comum que tragam descrições de personagens, monstros, armas, relíquias e outros itens que figuram na trama, bem como mapas e ilustrações. Também é freqüente que dêem dicas ao mestre sobre como conduzir a partida – por exemplo, indicando descrições que podem ser lidas em voz alta, ou sinalizando informações que não devem ser reveladas aos jogadores até um ponto específico do enredo etc. b. Descrições de cenários ou regras adicionais. Uma partida de RPG pressupõe a construção de uma narrativa situada num mundo de ficção. Há livros que se dedicam à descrição desses mundos, segundo um esquema bastante característico que normalmente inclui a apresentação de “raças” ou “clãs” e suas relações de amizade ou hostilidade; personagens notórias como governantes, heróis e vilões; almanaques de criaturas selvagens e monstruosidades; compêndios de armas, talismãs, objetos mágicos; relações de localidades de interesse etc. Os textos publicados em revistas normalmente consistem em adições pontuais a esses livros, como a descrição de uma cidade, fortificação, região selvagem etc., ou dos efeitos de uma determinada magia, substância, habilidade, arma etc. c. Contos e histórias em quadrinhos. Alguns livros de RPG incluem contos e outras formas de narrativa que não deixam de atuar também como casos específicos de descrição de um determinado mundo ficcional. De certa forma, esses textos também exemplificam a aplicação de uma técnica narrativa que tem em sua base as combinações de elementos das categorias dadas pelo próprio sistema de regras, de forma que sua leitura pressupõe o estabelecimento de ligações com outros textos normalmente encontrados no mesmo suporte.
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Textos dessa natureza ilustram a maneira como os suportes revista e livro são capazes de se sobrepor com bastante freqüência quando se trata de role-playing games. Mas é preciso notar que, embora os gêneros de textos veiculados em livros e revistas por vezes sejam os mesmos, a leitura não pode ser: o material publicado em revistas é sempre pontual e insuficiente para uma leitura completamente autônoma; tem apenas caráter acessório ou alternativo às regras presentes nos livros de uma determinada franquia. Para que esses textos tenham serventia ao jogador, portanto, é preciso que ele possua ou ao menos conheça certos livros. Daí podemos depreender outras funções que as revistas de RPG parecem ter procurado exercer, como possibilitar o aumento do estoque de material de consulta de um jogador de forma mais barata que pela compra de livros ou visibilizar a produção escrita de jogadores ao mesmo tempo em que se lhe confere um caráter exemplar, normativo. Talvez mais importante do que isto sejam os papéis de criar, para o iniciante, a primeira necessidade da busca de um livro pelo contato com textos que são apenas parcialmente compreensíveis na ausência daqueles; e recriar constantemente, para o jogador mais experiente, a necessidade da busca contínua de livros “atuais”. Em suma: aos curiosos e iniciantes, a revista mostra-se como uma decisão mais fácil que a compra de um livro caro e extenso, mas ao mesmo tempo cria o primeiro compromisso do leitor com algo que ele só encontrará posteriormente nesses livros; aos experientes, acena com o risco de sua descensão à patente de novato, já que não cessa de evidenciar a diferença entre essas duas condições pelo noticiário de lançamentos e modificações nas regras, grandes atuações dos bons mestres e tropeços dos maus etc. Na quarta parte deste texto analisaremos um pequeno conjunto de textos encontrados em dois exemplares da revista Dragon/Dragão Brasil de 1994, ilustrando de maneira mais concreta o ponto que nos interessa, qual seja, o papel das revistas na formação de um mercado leitor-consumidor amparado em um discurso identitário do role-playing gamer. Antes disso, no entanto, é preciso fazer algumas considerações teóricas sobre o próprio ato de ler revistas. 3. As particularidades do suporte revista A palavra “suporte” é utilizada por Roger Chartier para designar a forma material como qualquer texto necessariamente se dá a ler. Com esta noção, Chartier se afasta das perspectivas que encaram o texto como realidade abstrata, puramente lingüística, e se aproxima das perspectivas que têm como objeto a dimensão discursiva da linguagem. Contra a representação, elaborada pela própria literatura, do texto ideal, abstrato, estável porque desligado de qualquer materialidade, é necessário recordar vigorosamente que não existe nenhum texto fora do suporte que o dá a ler (...) (CHARTIER, 1988, p. 127).
A implicação mais imediata dessa noção de suporte é a de que a leitura de um determinado texto não é determinada unicamente pelos elementos lingüísticos que ali se encontram – por exemplo, as escolhas lexicais, os conectores interfrásticos, a organização tópica, ou mesmo aspectos como a distribuição de itálicos, o uso de aspas etc. –, mas também pela forma do suporte no qual esses elementos estão materialmente depositados – por exemplo, na maneira como a forma física do impresso aproxima ou afasta, emparelha, dispõe de maneira simétrica ou não certas seqüências de elementos, conforme ainda veremos. Essa postura tem como premissa fundamental a revisão da forma como se concebe a relação entre texto e leitor dentro de certas perspectivas. Os textos que se prestam a escrever a história são tomados como portadores de um sentido que é indiferente à materialidade do objeto manuscrito ou impresso através do qual se dá, constituído de uma vez por todas e identificável graças ao trabalho crítico. Uma história do ler afirmará, contra esse postulado, que as significações dos textos, quaisquer que sejam, são constituídas, diferencialmente, pelas leituras que se apoderam deles. (CHARTIER, 1998, p. 78)
Com efeito, algumas abordagens pautam-se na premissa de que a leitura consiste numa operação de decifração e extração de sentidos, do que decorre a idéia de que o texto seja um repositório
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no qual um ou alguns sentidos predeterminados se encontram em depósito. As teorias lingüísticas da enunciação, como a semântica argumentativa, a leitura de Bakhtin nos anos 1960 e o surgimento da análise do discurso nos anos 1970 são alguns dos movimentos teóricos responsáveis por depor a noção de “recepção” e introduzir o problema da interpretação do enunciado lingüístico. A história da leitura parece encontrar-se um pouco tardiamente com esta problemática, mas ao mesmo tempo a leva adiante investigando questões específicas da leitura como o circuito de produção e distribuição do livro, as práticas de editores e livreiros etc. Resulta dessa conjugação o postulado de que a leitura é uma forma de apropriação na qual os sentidos não são extraídos ou decodificados, mas produzidos. Se os estudos lingüísticos nos auxiliam a compreender em maior detalhe o funcionamento do enunciado, a história da leitura fornece bons aportes para compreender sua materialidade histórica quando se trata de estudar o texto impresso. Nas palavras de Chartier: Antes de mais nada, dar à leitura o estatuto de uma prática criadora, inventiva, produtora, e não anulála no texto lido, como se o sentido desejado por seu autor devesse inscrever-se com toda a imediatez e transparência, sem resistência nem desvio, no espírito de seus leitores. Em seguida, pensar que os atos de leitura que dão aos textos significações plurais e móveis situam-se no encontro de maneiras de ler, coletivas ou individuais, herdadas ou inovadoras, íntimas ou públicas e de protocolos de leitura depositados no objeto lido, não somente pelo autor que indica a justa compreensão de seu texto, mas também pelo impressor que compõe as formas tipográficas, seja com um objetivo explícito, seja inconscientemente, em conformidade com os hábitos de seu tempo. (CHARTIER, 1998, p. 78)
A noção de suporte de escrita também incita a revisão do papel atribuído ao autor, e coloca em xeque as interpretações que se fiam na suposição de um perfil psicológico, de uma trajetória biográfica ou da evolução de um projeto estético. O estudo do suporte mostra que, se há um autor que divisa seu leitor e organiza estratégias para enlaçá-lo na leitura que deseja dar à sua obra, há também os editores que determinam a forma como este texto chegará às mãos do leitor – e mesmo se chegará. Darnton comenta este ponto com humor: “Para os franceses do século XVIII, a literatura – ou a República das Letras, como diriam eles – certamente incluía Voltaire e Rousseau. Mas também incluía Pidansat de Mairobert, Moufle d’Angerville e uma legião de outros escritores que desapareceram da história literária” (1990, p. 145). O editor é a figura responsável por escolhas determinantes para a leitura, como a do tipo e tamanho das letras a serem utilizadas na impressão, as dimensões e peso do papel, a quantidade de texto em cada página (logo, a extensão e densidade do livro), e em casos extremos, dos quais a Bibliothéque Bleue é o exemplo cabal, a omissão de certos trechos, a substituição de alguns termos por outros, a introdução de divisões inexistentes no texto original etc. O leitor almejado pelo editor pode não ser o mesmo desejado pelo autor; pode ocorrer que editor e autor tenham vivido em épocas ou locais completamente diferentes. Mais do que causar uma série de acidentes no percurso de uma leitura, estes aspectos do suporte são constitutivos da leitura e podem incidir inclusive sobre os elementos lingüísticos do texto, introduzindo aí interrupções, segmentações ou aproximações imprevistas pelo autor. Uma última implicação do conceito de suporte de escrita é a dissolução da idéia de leitura como processo decomponível em porções “cognitivas” e porções “físicas”. O gesto de leitura não é uma realidade à parte das operações mentais que o acompanham; a leitura “não é somente uma operação abstrata de intelecção; ela é engajamento do corpo, inscrição num espaço, relação consigo e com os outros” (CHARTIER, 1999, p. 16); é “prática encarnada em gestos, em espaços, em hábitos” (ibid., p. 13). No caso da leitura de revistas, essas considerações nos levam a indagar sobre os efeitos de sentido desencadeados pela forma material do impresso, os movimentos favorecidos pelo seu manuseio e a maneira como os textos se organizam sobre as superfícies que, a cada gesto, tornamse visíveis ou desaparecem. A esse respeito, Barzotto (1998) observa que a maioria dos trabalhos que analisam revistas tomam como dados textos ou seções isoladamente (por exemplo: análise de todas as capas, ou editoriais, ou entrevistas etc. de uma revista durante o período da ditadura no Brasil),
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ou elegem um determinado assunto e analisam os textos que o abordam (por exemplo: análise da maneira como certa revista tratou a invasão americana ao Iraque). Em ambos os casos, os estudos deixam de lado a possibilidade de estudar os efeitos de sentido que se estabelecem entre os diferentes textos veiculados pelo mesmo suporte justamente por estarem presentes no mesmo suporte. Posicionando-se de maneira a contrapor seu estudo sobre a leitura de revistas aos trabalhos que adotam essa perspectiva, Barzotto afirma: “Para considerar a forma do portador de texto como partícipe na produção de sentidos é preciso romper com os limites que informam o próprio texto, dado que uma leitura a eles condicionada pode deixar de tomar em consideração sentidos que podem ser suscitados em um texto, justamente porque a forma do veículo em que é publicado imprime-lhe uma tensão tal que contribui para que alguns sentidos sejam forjados e outros negligenciados.” (BARZOTTO, 1998, p. 110)
É nessa linha que conduziremos a análise seguinte, buscando mostrar como os efeitos de sentido propiciados pelo suporte revista alinham-se, na leitura de impressos de RPG, com o postulado geral de que o ato de ler seja equiparado ao ato de consumir – no que se baseia, em grande medida, a própria periodicidade da leitura de revistas e livros de RPG. 4. De expertos para novatos: a iniciação do role-playing gamer através de revistas Uma das principais preocupações nos primeiros momentos da formação de um mercado de impressos de RPG deve ter sido a de fomentar o contato entre jogadores de RPG, porque leitores solitários dificilmente manteriam o interesse por esse tipo de livros. Assim surge uma personagem prototípica, presente em muitos textos de revistas dos anos 1990: o leitor principiante, que comprou ou está pensando em comprar um livro de RPG, provavelmente se empenhará na empresa solitária de lê-lo mas talvez jamais encontre parceiros com quem começar a jogar. Esta figura foi e ainda é um dos principais canais de intermédio entre o discurso identitário do role-playing gamer e a exterioridade discursiva de um mundo imaginariamente desavisado (e curioso) acerca dos RPGs. Podemos imaginar que esse leitor novato dificilmente se tornará um freqüentador assíduo dos RPGs enquanto, de fato, não romper seu isolamento. Ao que parece, muitos textos encontramos em revistas estão interessados em garantir que isso aconteça – de algumas maneiras e não de outras. Tomemos um exemplo concreto. No primeiro número da revista Dragon/Dragão Brasil (1994), à página 6, encontramos um artigo intitulado “O passo decisivo”, cujo subtítulo é “Tornar-se um legítimo RPGista é mais fácil do que você pensa. Só depende do primeiro passo”. O artigo dirige-se a um leitor que supostamente se deparou com dificuldades em aprender a jogar RPG, antecipando assim uma das possíveis razões da compra da revista, e apresenta algumas instruções para quem deseje aprender a jogar role-playing games. A primeira instrução é esta: (1)Compre um jogo (sozinho ou com um grupo de amigos), estude o manual de regras e reúna os amigos à volta de uma mesa para a primeira partida. (...) (Dragon nº 1: 6)
O texto também lança um alerta ao leitor, prevendo a possibilidade de uma experiência desagradável: (2)Uma forma totalmente errada de começar a jogar é quando você resolve visitar os points – shoppings ou livrarias onde vários grupos se reúnem nos finais de semana para suas partidas de RPG. Pedir para participar de um grupo desses é um grande erro: a partida só flui bem quando os jogadores conhecem as regras (que geralmente não podem ser ensinadas em poucos minutos). Você só vai atrapalhar tudo ou se sentir “jogado pra escanteio”. (idem)
Este alerta postula rapidamente a diferença entre os jogadores experientes e os novatos, atribuindo-lhes até mesmo um isolamento geográfico. Sobre isso teríamos de retomar igualmente a ocorrência da palavra “legítimo” no subtítulo do texto. Vale a pena notar duas coisas: a primeira é
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que a iniciação no mundo dos RPGs apresenta-se como ingresso numa cadeia de atos de leitura, mas também de consumo; a segunda é que esta segregação aparece como algo a ser preservado – isto é, que não há ou não deve haver um “desejo” de acolhida por parte dos expertos (você será “jogado pra escanteio”), ou ainda, que esta acolhida não pode acontecer a não ser em situações específicas, de certa forma ritualizadas, como encontros, feiras e oficinas de RPG. Muitos outros textos encontrados em revistas de RPG reproduzirão o mesmo tipo de alerta, cuja continuidade se encontra hoje, sob formas um pouco novas, na interpelação aos professores. Trata-se, ao que parece, de um afunilamento: questão de minimizar os pontos de contato entre um discurso “interno” à comunidade dos role-playing gamers e a “exterioridade” que essa própria comunidade ajuda a construir, de tal forma que as passagens sejam todas estreitas, visíveis, em alguma medida controláveis. É provável que toda comunidade discursiva encontre-se sob pressão de um imperativo semelhante: não conversar com os “de fora” a não ser em tais e tais circunstâncias, de tais e tais formas. O artigo prossegue listando títulos de RPG já lançados no país, de forma a orientar o jogador iniciante em seu “passo decisivo”. (3)A princípio, você deve descartar os jogos que não têm versões em língua portuguesa, a não ser que o seu grupo domine o inglês, por exemplo. Começando pelos mais fáceis de aprender, temos: Classic Dungeon e Dragon Quest, ambos da Grow; Aventuras Fantásticas e Dungeoneer, da Marques Saraiva; e, é claro, o famoso Hero Quest, da Estrela. (...) Os títulos a seguir exigem um pouco mais de tempo e paciência para você aprender, mas em compensação, poderão cativá-lo para sempre. São eles: Dungeons&Dragons, da Grow, o mais clássico dos RPGs; GURPS, da Devir, que dispõe de livros suplementares para enriquecer o jogo e Vampiro: a máscara, também da Devir, um RPG de terror, mais apropriado para adultos. Se você deseja prestigiar o produto nacional, já existem três RPGs totalmente criados no Brasil: Tagmar; O Desafio dos Bandeirantes e Demos Corporation. Como você pode ver, opções não faltam, agora é só começar a aventura! (idem, negritos no original)
A primeira observação em relação à escolha do livro é um comentário sobre a leitura em língua estrangeira. É moeda corrente a idéia de que os primeiros role-playing gamers do país foram estudantes intercambistas que aprenderam a jogar nos Estados Unidos e de lá trouxeram os primeiros livros ao Brasil. Ler em inglês, com efeito, é uma das características ao mesmo tempo assumidas pelo enunciador deste texto, presumivelmente um jogador experiente, e subtraídas ao iniciante – já que, apesar das ressalvas, o texto elenca apenas livros publicados no Brasil. Ter acesso a livros estrangeiros e conseguir lê-los, dessa forma, é tanto uma prerrogativa do expert quanto um veto ao principiante. Mas há nesta passagem outro aspecto importante. Trata-se de uma certa preocupação em distinguir, dentre todos os impressos de RPG disponíveis, duas categorias de materiais: aqueles que seriam mais “fáceis”, apropriados à inépcia dos principiantes, e aqueles “difíceis”, que precisariam ser abordados com maior cautela. Esta distinção entre livros para novatos e livros para expertos projeta materialmente a repartição de papéis no discurso do role-playing gamer. Podemos imaginar que ela está presente, em primeiro lugar, como uma estratégia de comercialização: basta observar outro aspecto da revista para compreender como isto pode se dar. O texto que viemos analisando encontra-se numa página que fica à esquerda do leitor. A página oposta, à direita, é integralmente ocupada por um anúncio de uma livraria especializada em RPGs, no qual podemos ver um amplo catálogo de títulos à venda, o endereço da loja principal e de duas filiais, um número de telefone e um formulário para pedido de compra de livros por correio. O aspecto de maior interesse em relação a este texto é o fato de que o catálogo de títulos da loja corresponde exatamente à lista de jogos apresentados no artigo como sugestões ao iniciante. A situação será a mesma nos números subseqüentes da revista Dragon. No mês seguinte, o título da seção à página 6 será “Aventuras-solo: a iniciação ideal”, acrescido do subtítulo “A maneira mais fácil de ingressar no mundo do RPG podem ser os livros-jogos”. Desta vez o texto aparecerá intercalado à reprodução da capa de um livro, que ocupa cerca de um quarto do espaço da página, na porção inferior à direita. O artigo inicia-se com uma longa citação desta obra em que um narrador, dirigindose a uma personagem-leitor em segunda pessoa, relata um confronto com monstros dentro de um
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labirinto. O texto citado fornece algumas opções de ação, correspondentes à escolha de determinados parágrafos numerados aos quais o leitor deve prosseguir para continuar a leitura. A essa altura o articulista intervém, explicando: (4)O trecho acima foi extraído do livro O templo do terror, da série Aventuras Fantásticas, editada no Brasil pela Marques Saraiva.
Segue-se um breve comentário sobre cada opção oferecida pelo livro, mostrando que apenas uma seria bem-sucedida, e assim explica-se o funcionamento dos livros de aventura-solo. No decorrer do artigo, o autor faz indicações de diversos outros títulos similares, recomendando-os ao jogador iniciante. (5)O destaque vai para as séries Aventuras Fantásticas, Lobo Solitário, Livros-Jogos e Mistérios de Sherlock Holmes. Escolha o que mais lhe agradar, e vá em frente!
A página à direita é novamente ocupada por um catálogo da mesma livraria especializada em RPGs, e continua mostrando os principais títulos do mercado nacional, mas é ligeiramente diferente do que foi veiculado pelo número anterior da revista. A presente versão foi acrescida de um quadro contendo uma relação de livros importados, à esquerda, e outro quadro, na coluna central, com uma extensa lista de livros do tipo aventura-solo. O título que encabeça o quadro, “LIVROS JOGOS PARA AVENTURAS-SOLO EM PORTUGUÊS”, retoma duas expressões utilizadas também no título e subtítulo do artigo na página à esquerda, “aventuras-solo” e “livros jogos”, e é seguido, na linha de baixo, por um cabeçalho em que se lê “Editora Marquês-Saraiva [sic] (Série Aventuras Fantásticas)”, no qual dois outros elementos presentes no texto à esquerda, os nomes da coleção (destacado em negrito) e da editora, são retomados. Segue a lista dos títulos, dentre os quais não deixaremos de encontrar O templo do terror. Isto faz supor que, numa leitura possível, o leitor se valeria destas pistas para constituir sentidos que não se apresentariam senão nas circunstâncias dadas pela própria forma do impresso, no qual os dois textos aparecem lado a lado. Isto nos levaria a repensar a própria noção de texto, já que a “coerência” desta leitura resulta da aplicação de um princípio de “coesão” textual, normalmente postulado como critério delimitador da unidade textual, a elementos que estão situados em textos distintos. O mesmo poderia ser dito em relação ao conceito de gênero5. Mais importante, em todo caso, é que o próprio fato de os elementos correferentes estarem situados em textos diferentes é o que garante boa parte do seu efeito persuasivo. Basta imaginar, em contraste, como nos portaríamos se as “dicas” aos iniciantes estivessem na própria peça publicitária e não numa seção distinta. Esta breve análise mostra uma das formas como revistas especializadas em RPG exerceram o papel fundamental de fomentar a criação de grupos de jogadores de RPG, condição fundamental para que houvesse um mercado consumidor para os livros de RPG que, então, apenas começavam a ser comercializados no Brasil. Neste exemplo, o que primeiro notamos foi a forte tônica comercial. Seria importante considerar, por outro lado, que essas estratégias de comercialização não se sustentariam a não ser enquanto ancoradas em um discurso identitário no qual se cristalizam algumas promessas de retorno ao leitor. Este retorno está relacionado a um elemento que já destacamos em ambos os artigos analisados: a repartição entre materiais destinados aos jogadores principiantes e livros restritos ao manuseio dos jogadores experientes. Esta cisão, ao que parece, não apenas responde por uma cautela das editoras em criar demanda para os produtos que coloca em circulação, mas também concede uma espécie de “lucro” ao leitor na própria idéia de que, ao tornar-se um role-playing gamer, ele estará adentrando o círculo hermético de um conhecimento cuja circulação social não é livre, mas depende de certos rituais de transmissão (“você vai se sentir posto para escanteio”). Dados como este sugerem a conveniência de desvincular as noções de texto e gênero da noção de enunciado. Isto implicaria, no entanto, revolver o conceito bakhtiniano de enunciado, definido (dentre outros aspectos) por ter como fronteiras a “troca de interlocutores” (BAKHTIN, 1997), talvez o aproximando da idéia de “função enunciativa” que aparece em Foucault (1986), isto é, uma função capaz de transformar segmentos descontínuos em enunciados contínuos de uma formação discursiva que se mantém sempre “invisível” (ou, pelo menos, não coincide com qualquer denominação institucional, tal como “discurso pedagógico”, “discurso médico” ou “discurso da ciência”, por exemplo). 5
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É interessante notar que, a princípio, esta é uma promessa ligada tão-somente ao prazer de jogar RPG. Não tardará, contudo, para que tal noção de hermetismo se associe à idéia geral de escolaridade como forma prototípica de “iniciação” socialmente válida. A associação dos RPGs à escola, em todo caso, traria consigo uma contradição que ainda está por se resolver: a necessidade de renunciar, ainda que parcialmente, a dois pilares sobre os quais a comunidade discursiva dos roleplaying gamers havia se construído: o prazer de jogar RPG e o próprio controle discursivo sobre este signo-RPG, bem como o das narrativas identitárias a ele relacionadas.6 A solução que vem sendo encontrada para este impasse dá continuidade ao processo que analisamos por meio de artigos e das peças publicitárias publicados em revistas dos anos 1990. É que sempre existiram, dentre os materiais de RPG, alguns mais suscetíveis a receber inovações (como regras simplificadas ou temas menos típicos do cardápio do RPGista) sem que os jogadores de maior quilometragem sentissem que a qualidade dos livros “principais” estivesse ameaçada: os materiais destinados a iniciantes. Estes, de fato, sempre parecem ter sido concebidos como profanáveis pela inabilidade dos novatos, abertos a leituras que não propriamente as de um “legítimo” RPGista. Tem sido justamente nesta forma de materiais simplificados, para iniciantes, que os projetos de escolarização do RPG tem se materializado no diálogo com professores e educadores, rapidamente assumindo formas semelhantes às das publicações de literatura infantil e dos paradidáticos. Essa maleabilidade do jogo para iniciantes parece equilibrar as renúncias identitárias do perito em RPGs, pois de certa forma protege o controle discursivo exercido sobre a leitura de outros títulos perante os quais o leitor continua não bem-vindo até que tenha trespassado a faixa da “inexperiência”. E isto coloca uma questão muito importante, com a qual encerraremos estas reflexões. 5. Concebemos o professor como um constante novato? Podemos concluir que um dos elementos decisivos para a irrupção de um discurso sobre a escolarização dos RPGs foi a existência anterior de um discurso em que todos os papéis essenciais acionados na escolarização estavam pré-configurados, a saber: a distinção entre materiais para se aprender a jogar RPG e materiais para jogar RPG, a oposição entre novatos e expertos e a suposição de um percurso iniciático mediando a passagem de uma posição para a outra. Como vimos, livros e outros materiais de RPG com uma função “didática” nem sempre estiveram relacionados à idéia de escolarização, mas de fato surgiram antes, na forma de materiais destinados a principiantes, com fortes objetivos comerciais e identitários. Mais importante: parece que o projeto de escolarização não pode se definir enquanto não incidiu exclusivamente sobre estes materiais considerados “fáceis” pelos jogadores, garantindo assim que outra categoria de obras permanecesse alheia à urgência de apresentar justificativas escolares para sua forma ou conteúdo. Isto sugere algo de importância fundamental: que a escolarização pode estar atrelada ao desejo de um leitor de não abrir mão de sua relação com uma determinada classe de textos e de uma forma de lê-los, já que, quanto mais os projetos didáticos se proliferam no terreno dos materiais destinados a principiantes, menos a didatização ameaça afetar os textos com os quais este leitor tem um vínculo mais decisivo. Guardadas as peculiaridades do universo dos RPGs, considerações desta natureza talvez sejam análogas às que vêm sendo feitas sobre outros materiais impressos, porque dizem respeito à leitura e ao papel das letras em nossa sociedade, bem como à posição que a escola ocupa em relação a isso – uma posição que, como os role-playing gamers nos têm mostrado, pode ser convocada a qualquer momento a assumir. Por conta disso, encerro este artigo com uma série de perguntas que generalizam o que foi problematizado aqui. Estas perguntas tomam como escopo principal ora os próprios role-playing games, ora leitura, ora a escola. A primeira é colocada do ponto de vista daqueles Isto se tornaria particularmente notório a partir do assassinato de uma estudante em Ouro Preto, em 2001, supostamente durante uma partida de RPG. É possível que o discurso sobre a escolarização do RPG tenha se intensificado, na primeira metade dessa década, também como forma encontrada por jogadores, autores e editores de retomar a palavra num momento em que as esferas da mídia e da justiça passaram a inserir o RPG nos seus discursos sobre a causa dos comportamentos violentos, da criminalidade e do “anormal”.)
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que se interessam pelos role-playing games e outros objetos culturais em torno dos quais se organizam comunidades discursivas. É a seguinte: Em que medida o fato de estar dialogando com sujeitos situados “fora” do círculo dos RPGistas, como professores e pedagogos, é suficiente para modificar a forma como este objeto, o RPG, é percebido desde dentro do círculo – de forma que se possa supor que a escolarização de fato traz algo de novo também para aqueles que a postulam (e que portanto se trata, realmente, de um diálogo)?
A pergunta seguinte coloca-se do ponto de vista daqueles que se interessam pela leitura e pela formação dos leitores: De que forma o que se tem visto com relação aos role-playing gamers pode ser pensado como sendo comum a outras comunidades de leitores que se organizam em torno da identificação a um determinado tipo de leitura? Isto é, de que forma as práticas discursivas de acolhimento aos novatos não funcionam, em muitos outros casos, como uma forma de permitir que um leitor permaneça realizando leituras medianas dos textos que lê, mas ainda assim incorpore a alcunha de “experto” apenas por ter acesso a uma amostra de textos cuja circulação e comentário são bastante controlados por ele mesmo?
Enfim, do ponto de vista daqueles que se interessam pela escola, teríamos de indagar: De que forma a acolhida dos RPGs na escola depende do fato de ela não apenas atender a uma demanda identitária do role-playing gamer, mas também assentar-se sobre uma formação discursiva já presente na escola, na qual estão instaurados elementos como, por exemplo, a pressuposição da dependência do professor em relação a outros profissionais para a elaboração de materiais didáticos? De que forma, ainda, a incorporação momentânea de novos objetos que portem o emblema do “novo” preenche a ausência de uma discussão mais séria a respeito dos problemas enfrentados pela escola ou das especificidades do ensino de cada disciplina – discussão sem a qual apenas tende a se preservar a urgência pela incorporação de “novos novos-objetos” e a manutenção do professor na posição constante de novato, instado a cada momento a inteirar-se de novidades cujo maior efeito pode ser, simplesmente, anestésico?
Referências BAKHTIN, M. M. Os gêneros do discurso. In: Estética da criação verbal. Tradução de Maria Ermantina Galvão G. Pereira. São Paulo: Martins Fontes, 1997. BARZOTTO, V. H. Leitura de revistas periódicas: forma, texto e discurso. Um estudo sobre a revista Realidade (1966-1976). Campinas: 1998. Tese (Doutorado) — UNICAMP — Instituto de Estudos da Linguagem. BETTOCCHI, E. Aventuras visuais na Terra de Santa Cruz. Concepção do projeto gráfico para um livro de RPG ambientado no Brasil colonial. Rio de Janeiro, 1999. Monografia (Especialização) — UERJ. BRAGA, J. M. Aventurando pelos caminhos da leitura e escrita de jogadores de role-playing game (RPG). Caxambu. 23ª reunião anual da ANPED, GT 16 – Educação e Comunicação, 2000. CHARTIER, R. História cultural: entre práticas e representações. Tradução de Maria Manuela Galhardo. Lisboa: Difel, 1988. ______. Do livro à leitura. In: CHARTIER, R. (org.). Práticas da Leitura. Tradução de Cristiane Nascimento. São Paulo: Estação Liberdade, 1998. ______. A ordem dos livros. Leitores, autores e bibliotecas na Europa entre os séculos XIV e XVIII. Tradução de Mary Del Priori. Brasília: Editora Universidade de Brasília, 1999. DARNTON, R. O beijo de Lamourrette. Mídia, cultura e revolução. Tradução de Denise Bottmann. São Paulo: Companhia das Letras, 1990. FAIRCHILD, T. M. Leitura de impressos de RPG no Brasil: o satânico e o secular. São Paulo: 2007. Tese (Doutorado) — USP — Faculdade de Educação. FOUCAULT, M. A arqueologia do saber. Tradução de Felipe Baeta Neves. 2. ed. Rio de Janeiro: ForenseUniversitária, 1986.
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Tema geral: Línguas e Literaturas: Diversidade e Adversidades na América Latina HIGUCHI, K. K. RPG: o resgate da história e do narrador. In: CHIAPPINI, Ligia. (Coordenação geral). Outras linguagens na escola. Publicidade. Cinema e TV. Rádio. Jogos. Informática. São Paulo: Cortez Editora, 2000. LORENZ, Rosemeri Martins. Significações da violência em narrativas de RPG. São Leopoldo, 2002. Tese (Mestrado) — UNISINOS. MARTINS, Luís Antônio. A porta do encantamento: os jogos de interpretação (RPGs) na perspectiva da socialização e da educação. Campinas, 2000. Tese (Mestrado) — UNICAMP — Faculdade de Educação. MATTOS, A. Z. Centralização ou dispersão dos sentidos? Uma análise do discurso do RPG Vampire: the Masquerade. São Paulo: 2007. Dissertação (Mestrado) — USP — Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas. MOTA, S. M. R. Roleplaying game: a ficção enquanto jogo. Rio de Janeiro, 1997. Tese (Doutorado) — PUC-RJ — Departamento de Letras: 1997. PAVÃO, A. A aventura da leitura e da escrita entre mestres de Role-Playing Game (RPG). São Paulo: Devir, 2000. SCHMIDT, W. L. RPG e educação. Alguns apontamentos teóricos. Londrina: 2008. Dissertação (Mestrado) — UEL — Centro de Educação, Comunicação e Artes.
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AS INTERCESSÕES ENTRE LITERATURA E CINEMA A PARTIR DE UMA LEITURA DO ROMANCE EM CÂMERA LENTA Veridiana Valente PINHEIRO (PIBIC / Universidade Federal do Pará) Tânia Sarmento PANTOJA (Orientadora – FACL / Universidade Federal do Pará)
RESUMO: Com o objetivo de observar as ressonâncias de um determinado período histórico/cultural, o da ditadura militar de 1964, o trabalho em questão parte da relação entre literatura e cinema e de seus efeitos, na composição do romance Em Câmera lenta (1977), do paraense Renato Tapajós, em particular a maneira como o autor utilizou técnicas do cinema para compor a narrativa e de que forma, essa estratégia ficcional faz emergir a resistência na medida, em que um dos aspectos de resistência é o discurso utilizado pelo autor para composição do romance. PALAVRAS-CHAVE: Literatura; Cinema; Ficção.
ABSTRACT: Aiming to observe some historical and cultural resonances of 1964 Brazilian Military Dictatorship, this work parts from the relation between literature and cinema and its effects in the composition of novel Em camera lenta (1977) by the Brazilian writer Renato Tapajós, in particular the way the author of the film techniques used to compose the narrative and how this fictional strategy is emerging as the resistance, in which one aspect of resistance is the speech used by the author for composition of the novel. KEY WORDS: Literature; Cinema; Fiction.
Anais do II Congresso Internacional de Estudos Linguísticos e Literários na Amazônia (CIELLA)
1. Considerações iniciais1 Tomo a relação entre literatura e cinema como fundamento para analisar a composição do romance Em Câmera lenta (1977), do paraense Renato Tapajós, em particular, como os efeitos dessa relação ligados à constituição das impressões de realidade se articulam com vistas a remeter a um determinado aspecto da história do país: o regime militar de 1964 e os mecanismos de repressão impostos aos indivíduos ligados à resistência. Michel Foucault analisa a repressão como sendo uma poderosa “mecânica do poder”, tratando-o como uma questão propriamente histórica, como podemos perceber no fragmento a seguir: “se falam com tal profusão e há tanto tempo, é por que essa repressão está bastante firmada, possui raízes sólidas, pesa sobre o sexo de maneira tão rigorosa” (FOUCAULT, 1988. p. 15). Para esclarecer melhor o que entendo como sendo tais mecanismos repressivos, tomo o conceito foucaultiano de dispositivo, tal qual encontramos em suas obras a História da Sexualidade e a Microfísica do Poder2. Inicialmente, dispositivo aparece em História da sexualidade, como traço essencial que permite ao analista estabelecer relações entre poder, sexo e a história do ocidente. Posteriormente, se faz presente em Microfisica do Poder, para dar conta de como se constituem os aparatos jurídicos do tribunal, das prisões e das punições cotidianas, refletindo como tais aparatos moldam as estruturas cognitivas do sujeito, com vistas a disciplinar o individuo para a vida em sociedade. Funcionando como instrumento de análise os dispositivos são as estratégias, as estruturas, os mecanismos e as ferramentas de coerção e disciplina. Dessa forma, o poder assume aspectos repressivos, na medida em que aparecem processos de rupturas que visam a negação do poder. Nesse sentido, é da historicidade citada anteriormente que destaco determinados aspectos repressivos, como as prisões, as torturas, os assassinatos e as perseguições policiais que comprometiam a integridade moral, física e psicológica dos militantes de esquerda que realizaram a resistência ao regime ditatorial de 64 e que se fazem presentes na narrativa de Em câmera lenta. 2. O lento olhar em câmera sobre a coerção e a disciplina Em uma primeira incursão da obra, tomei como ponto de partida o título da narrativa. Sua sugestividade através do titulo Em Câmera Lenta, propõe desenvolver a idéia de que dará sentido a um conjunto de aspectos ocorridos, sob o olhar em ressonâncias 3 para só serem decifrados a partir de um viés histórico. Assim, quando analisamos a expressão “em câmera” descobrimos a ação que circula a narrativa, reforçada pela escolha da preposição “em”, que auxilia na demonstração, de forma simbólica, do movimento da câmera, que podemos conceber como: “um olho pelo fato de, de maneira objetiva, registrar o mundo pró-filmico sem transformá-lo. [...] “é um nome para a maneira como olhamos e como conhecemos a um dado momento” (AUMONT, 2003. p. 40-41). Nesse sentido, câmera é um instrumento de propulsão do real, que será desvelado, através do olhar revolucionário do personagem Ele que busca descrever os fatos milimetricamente, ocorridos como em um filme, em que os confrontos entre os militares e os militantes no período da ditadura militar de 64 e as palavras são transformados em imagens visuais pelo leitor. O presente trabalho é fruto das investigações realizadas nos projetos de pesquisa Narrativa de Resistência: Formas, Performances e trajetos na Amazônia; Leituras da Ditadura: Discursos ficcionais e não-ficcionais da resistência ao Regime Militar de 1964, ambos coordenados pela Profª. Tânia Sarmento-Pantoja. Especiais agradecimentos são dirigidos a Katyane Cabral Marinho, Graduada em Letras e voluntária no segundo projeto referido, a minha orientadora Tânia SarmentoPantoja, ao professor colaborador Augusto Sarmento, ao Carlos Augusto Carneiro Costa mestrando em Literatura da USP - Universidade do estado de São Paulo 2 Em suma o dito e o não dito são os elementos do dispositivo. O dispositivo é a rede que se pode estabelecer entre estes elementos (FOUCAULT, 1989. p. 244) 3 Este conceito permite determinar a emergência de aspectos relacionados ao processo de resistência do objeto estudado em um dado período histórico, especificamente aqui neste trabalho o da ditadura militar de 1964. 1
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Em Câmera Lenta tem inicio, com apresentação de um discurso autoral-biográfico e apresenta também um history do romance, salientando as principais discussões abordadas, entre elas, aspectos morais e políticos são apresentados na narrativa e a forma como o romance denuncia a violência repressiva e a tortura vivida pelos militantes no período da ditadura de 1964 no Brasil. Dando continuidade a esta análise verificamos o adjetivo “lenta”, entendido aqui como algo que anda ou procede um acontecimento, ou seja é este adjetivo que molda todo o olhar produzido pela câmera pois, é ela que controla a velocidade dos acontecimentos principalmente em relação à demarcação do tempo consciente e inconsciente da narração durante a focalização do personagem Ele. A narrativa do romance parte de uma simulação: uma voz bio-gráfica que finge ser o autor do romance dá início à narrativa. A técnica narrativa utilizada para constituir essa voz é a do narrador focalizador4, que assume duas focalizações: a primeira é a partir do olhar do personagem Ele, em que a voz é propriamente autoral, a segunda é a partir do olhar do pai da personagem Ela. Esses sujeitos da focalização encadeiam-se, assumindo ora um, ora outro a voz do discurso, ou seja, além de encadeados esses “olhares” se deixam perceber como se fosse um olhar através de uma câmera cinematográfica. No primeiro capitulo é apresentada a cena de um confronto urbano contra a policia em que o líder é atingido e uma companheira é pega pelos militares. O militante ferido é levado para um aparelho5, como descrito no seguinte fragmento: “Se eles vierem e atirarem as balas pegarem no peito, na cabeça. [...] agora não dá mais para fazer nada nem por ela nem por ninguém e o que fecha a garganta é o cerco, as armas sem nome, as mãos sem nome, as peles vazias que se movem como se fossem gente, o isolamento; cada dia mais perto, há quinze dias nunca admitiria isso, embora já o soubesse há muito tempo [...] Nada deu certo [...] mas pouca gente entendeu, nem podia entender e agora estamos sozinhos, vinte, trinta, sei lá.” (TAPAJOS, 1977. p. 14).
A partir desta cena que observo também como é mostrada a exterioridade da solidão sofrida pelos militantes nos aparelhos através do olhar do focalizador Ele. Tal solidão é observada como uma metáfora do inicio da decadência do movimento. Assim, a narrativa vai sendo descrita com a abertura de questionamentos como estes: por que lutamos? Que resultados terá a nossa luta contra o regime? Por que a luta só terá sentido com a morte dos revolucionários? E, esses questionamentos são lançados ao leitor como uma espécie de reflexão de análise sobre a ação do grupo armado e, ao mesmo tempo sobre a vida e o propósito que levou pessoas a abrirem mão de sua vida para lutarem contra o regime militar. As personagens centrais da ação da narrativa são Ele, Ela, o Venezuelano e Marta. O Venezuelano assume a liderança do grupo de estudantes, mas, é outro personagem, Ele, que assume um papel de grande importância no romance, pois, na medida em que o narrador direciona a focalização do discurso para este personagem, a forma cinematográfica é apropriada pela forma literária, particularmente quanto ao aspecto da focalização. Desse modo, a relação entre cinema e literatura se realiza aqui especificamente no nível da expressão. E, se propaga através dos diversos âmbitos significativos da narrativa do romance, muito especialmente o âmbito da relação entre ficção e história. Esse processo de apropriação tem como efeito entre outras coisas o de tornar mais evidente a impressão de realidade. Como num filme as imagens que vão se constituindo no romance adquirem maior capacidade de envolver e, em algumas situações, de chocar o receptor da obra. Um exemplo de como se dá tal conexão é a cena em que através do olhar do personagem Ele o narrador descreve a decolagem de um avião: “o avião correu pela pista e ele, prendendo a respiração, observou a beleza daquela corrida, a força contida se transformando em vôo, a massa de alumínio vibrando, transfigurada numa ave feroz, de músculos distendidos, agressiva. Sentiu a mão de Marta em seu braço, a voz dela vindo de muito longe” (TAPAJOS, 1977. p. 27). Como o próprio nome sugere, à posição adotada pelo narrador para narrar a história, ao seu ponto de vista. O foco narrativo é um recurso utilizado pelo leitor para enquadrar a história de um determinado ângulo ou ponto de vista. (FRANCO, 2003, p. 41) 5 Local onde os militantes se refugiavam para se esconder do militares, ou seja, é um esconderijo camuflado que servia para evitar que fossem presos pelos militares. 4
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Como dito anteriormente a impressão de realidade se torna mais densa a partir do recurso narrativo adotado. A descrição em detalhes de cenas com nitidez de cor e a descrição do espaço também se faz presente no fragmento abaixo: “A avenida ladeada de mangueiras, como um grande túnel, eu lembro. No meio da tarde, o sol filtrado pela copa das árvores, os poucos carros e as pessoas que passavam, sem pressa carregando calor. Casas antigas de grandes janelas abrindo diretamente para a rua, alguns jardins cercados por antigas grades, as grandes portas de madeira” (TAPAJÒS, 1977. p. 28)
A riqueza de detalhes faz da leitura do romance uma “viagem” que se constituem como se fossem imagens cinematográficas, que tornam reconhecíveis, elementos de um bairro de Belém do Pará, da década de 60: a Cidade Velha. É como se o leitor estivesse vendo através de um filme, e demarcando cada detalhe, dispostos e ordenados em seqüenciais cinematográficas. Tais seqüências são descrita em ordem linear dos acontecimentos descritos, ou seja, primeiro o formato da rua comparada a um túnel, segundo os objetos que a embelezavam como a copa das árvores dando uma outra tonalidade aos raios de sol, refletido nas pessoas que transitavam sem pressa a avenida ladeada composta de casas antigas ornamentadas de lindos jardins. Além disso, a idéia de fingimento, produto do flerte entre literatura e cinema é percebido no âmbito do discurso com o uso de uma espécie de vocativo: “Como em câmera lenta”, como se observa a seguir: “Como em câmera lenta: ele percebeu que a rua estava bloqueada por uma batida policial. Olhou para os lados e percebeu que não havia por onde escapar: atrás, outros carros já paravam, cortando a possibilidade de manobrar e fugir pela contramão. Parou o carro lentamente. Um policial aproximou-se e pediu os documentos. Ele os entregou; o policial; o policial examinou-os lentamente. Estavam em ordem. Com os documentos nas mãos, o policial deu a volta no carro, olhou pela janela onde ela estava, examinando o interior do carro para ver se havia algo de suspeito. Ela sorriu timidamente, como que acanhada com o exame. No banco traseiro, um outro companheiro segurava uma maleta escura; o policial pediu para ver o que tinha na maleta e na maleta tinha uma metralhadora; ela se voltou para trás. Sua mão descreveu um longo arco em direção ao banco traseiro, mas interrompeu o gesto e desceu suavemente na abertura da bolsa, escondida entre os dois bancos da frente, um pouco atrás do freio de mão.”(TAPAJOS, 1977. p. 56-57).
A citação acima também nos mostra situações diretamente relacionadas aos elementos históricos igualmente apropriados pela narrativa literária. O fragmento resulta de uma re-memoração do personagem Ele, relatando o dia em que um policial estava fazendo revista de rotina na rua e os militantes, sem saber da situação, são abordados e termina ocorrendo um violento confronto entre eles. Desse modo, encontramos Em Câmera Lenta – além de aspectos relacionados às questões políticas do final dos anos 60, as ações armadas da guerrilha sobre a violência da repressão e da história interior o romance – a descrição da vida na clandestinidade: seu cotidiano, sua vida pessoal, seus amores, suas crenças, seus medos, seus gestos. Um olhar penetrante na vida e na intimidade dos jovens militantes que enfrentaram e se imolaram na guerra contra a ditadura militar. Nesse sentido, tais técnicas cinematográficas descritas acima dão-nos a possibilidade de leituras referentes à emergência da resistência no romance. O uso da cinematografia é um recurso utilizado pelo autor para que o leitor “veja” de uma forma “psico-imagética”6 os acontecimentos narrados pelo escritor, assim a ficção aproxima-se do real, como observado no seguinte fragmento da narrativa: “Como em câmera lenta: o policial pediu para ver o que tinha na maleta e na maleta tinha uma metralhadora; ela se voltou para trás. Sua mão descreveu um longo, em direção ao banco traseiro, mas interrompeu o gesto e desceu suavemente na abertura da bolsa, escondida entre os dois bancos da frente, pouco atrás do freio de mão. O rosto impassível olhava para a maleta que o outro segurava, mas os dedos se fechavam sobre a coronha do revólver que estava na bolsa. E num movimento único, corpo, rosto e braço giravam novamente, o cabelo curto sublinhado o levantar da cabeça, os olhos, agora duros, apanhado de relance a imagem do policial que bloqueava a porta” (TAPAJÒS, 1977. p. 25-26). 6
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É a partir desse termo, que defino a imagem mental que pode ser produzida pelo leitor durante a leitura do romance.
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É a partir deste fragmento que observamos também que essa forma “psico-imagética” se funde aos mecanismos de punição e vigília, descritas por Foucault, “o terror enquanto suporte do exemplo: medo físico, pavor coletivo, imagens que devem ser grafadas na memória dos espectadores, como a marca na face ou no membro do condenado”.(FOUCAULT, 2008. p. 91). Os dispositivos de repressão se destacam no romance de Renato Tapajós, porque os acontecimentos narrados vão se tornando mais reais na imaginação do leitor, aproximando-o do que realmente aconteceu em um dado momento da história do país. 3. Considerações finais Assim, utilizando aspectos cinematográficos o autor apresenta a visão ficcional através da qual a linguagem literária, ao flertar com a linguagem cinematográfica, trás a tona um conjunto de aspectos que podem ser compreendidos como próprios dos dispositivos de repressão7. Essa proximidade entre literatura e cinema visa, entre outros aspectos, a busca por uma sensação de realidade, mas como se trata da ficcionalização de um real insólito, pela catástrofe e pela imensidade do trauma que carrega, essa sensação de realidade é, ao mesmo tempo, rasurada pela fragmentação, este produto das técnicas de narração e focalização anteriormente descritas. É nesse lusco-fusco, nessa fenda entre literatura e cinema, entre a sensação de realidade pretendida e ao mesmo tempo desfigurada que o discurso ficcional se impõe para mostrar o “jogo de rarefação” comum a todo discurso, segundo Foucault (1996. p. 70). No romance de Tapajós tal processo de rarefação tem a função de re-fazer, tornar menos densa as imposições a que estão sujeitados certos personagens, não somente do ponto de vista da individualidade, como também da sua presença no tecido social da qual fazem parte. É dessa maneira que o personagem Ele se apropria do discurso da narrativa para falar em nome de uma sociedade que protesta contra o regime autoritário. Ao se apropriar da narrativa enquanto voz, Ele provoca a diluição da densidade dos discursos envolvidos. Nesse processo, a linguagem cinematográfica é apropriada pela literatura, com o intuito de transcender a realidade em que os discursos que precisam ser des-densificados estão rarefeitos, como observado na descrição do seguinte fragmento do romance: “E, no entanto, eu via tudo através de uma intensa elaboração: até as coisas mais banais tinham um encanto quase mágico. Não é a distancia nem o tempo. Era a maneira de ver, de revestir os gestos com uma gravidade solene e emprestar as vozes um eco literário [...] Toda beleza era triste por que não decifrada – a avenida, a praça e a praia, aparência de um mundo subterrâneo. Um mundo desconhecido, um mundo que eu precisava conhecer, para transformá-lo. Ou destruir-me. [...] (TAPAJÒS, 1977. p. 30-31).
Nesse sentido, a resistência é produto desse convite perscrutador que Ele faz ao leitor. Assim, Em Câmera lenta não é só uma narrativa de resistência, funciona também como “eco” das incertezas e ambigüidades dos militantes que de forma selvagem renunciaram as suas vidas, sua família, seus anseios, para lutarem por uma visão utópico-ideológica em que acreditavam naquela época. Referências AUMONT, Jacques. Dicionário teórico e critico de cinema. Tradução Eloisa Araújo Ribeiro. São Paulo: Papirus, 2003. BONNICI, Thomas; ZOLIN, Lúcia Osana (orgs.). Teoria literária: abordagens históricas e tendências contemporâneas. Maringá: Eduem, 2003. BOSI, A. Narrativa e Resistência. In: _. Literatura e resistência. São Paulo: Companhia das Letras, 2002, p. 118. BUARQUE, Aurélio. Minidicionário da língua portuguesa. Coordenação de edição, Margarida dos Anjos e Marina A tortura é antes de tudo um choque, uma surpresa, capaz de causar no indivíduo torturado medo, tendo ele a sensação o tempo todo de ser vigiado ou perseguido. (MATOSO, 1986. p. 11)
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Anais do II Congresso Internacional de Estudos Linguísticos e Literários na Amazônia (CIELLA) Ferreira. 4ª edição. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2001. FOUCAULT, Michel. A ordem do discurso. Edições Loyola. São Paulo. 1996 FOUCAULT, Michel. Vigiar e Punir: nascimento da prisão. Tradução de Raquel Ramalhete. 35ª edição. Rio de Janeiro: Vozes, 2008 – 288 p. FOULCALT, Michel. A Microfísica do Poder. Organização e tradução de Roberto Machado. Rio de janeiro: Edições Graal, 1979. MATOSO, Glauco.O que é tortura. Nova cultural: brasiliense. São Paulo. 1986. TAPAJÒS, Renato. Em câmera lenta: romance. Ed. Alfa-Omega. 2ª edição. São Paulo. 1977.
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DA PÁGINA DE PAPEL AO PAPEL HIGIÊNICO: TEXTOS FECAIS NA OBRA DE RUBEM FONSECA E PATRÍCIA MELO Vinícius Carvalho PEREIRA (Universidade Federal do Rio de Janeiro)
RESUMO: Alardeia-se frequentemente o fim da literatura, substituída pela apoteose do audiovisual, a despeito da inverdade dessa afirmação. Em paralelo à permanência de modelos tradicionais, os avanços tecnológicos dão ensejo a inovadoras possibilidades literárias, prescindindo inclusive do suporte físico do papel. Como prova disso, observa-se o crescimento da literatura on-line, valendo-se do digital inclusive como mecanismo próprio do processo de enunciação. Nesse contexto, destacam-se as obras “Copromancia”, de Rubem Fonseca, e Jonas, o copromanta, de Patrícia Melo, as quais, ironizando as falsas profecias do fim da literatura, mostram estar a arte da palavra em todo o lugar, inclusive nas fezes que seus protagonistas tomam por literárias. Desse modo, seja no papel, na Internet ou mesmo na latrina, este trabalho investiga como a metáfora das fezes na obra dos autores supracitados promove uma reflexão acerca das mudanças do literário quanto à própria materialidade do texto e sua enunciação na contemporaneidade. PALAVRAS-CHAVE: literatura; suporte físico; fezes; copromancia
ABSTRACT: The end of literature is stated by some, however untrue such utterance is, as if this art could be substituted by audiovisual technologies. As well as traditional literary models continue to exist, technological innovations permit new artistic possibilities, even dismissing the physical support paper provides. As a proof of that, one can attest the rise of online literature, which uses digital features as mechanisms of enunciation itself. Thus, emphasis is given to “Copromancia”, by Rubem Fonseca, and Jonas, o Copromanta, by Patrícia Melo, which make fun of the prophecies concerning the end of literature, proving that the art of words is everywhere, even in fecal matter, as it is stated by the narrators of such texts. Therefore, be it on paper, on the Internet or even in the toilet, this work investigates how the metaphor of faeces in the aforementioned narratives can lead to a reflection on the changes of literature concerning texts materiality and their enunciation processes. KEY WORDS: literature; physical support; faeces; copromancy.
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1. A literatura não morreu “Un arabe qui va chier n’emporte pas une poignée de papiers, mais un peu d’eau dans une vieille boîte de conserve... L’occidental est tellement entiché de paperasserie qu’il s’en fourre jusque dans le cul”. Michel Tournier
Seja sob o rótulo de pós-modernidade, de hiper-modernidade (LIPOVETSKY, 2004) ou de modernidade líquida (BAUMAN, 2001), para citar apenas os mais célebres termos, encontrase uma era de fluidez e incertezas, como sugere a terminologia cunhada por Bauman. Enquanto a modernidade foi marcada pela crença racionalista nos poderes da ciência e da lógica como mecanismo de compreender o mundo, a pós-modernidade depara-se com a falência desses ideais. A razão, eleita como sólido pilar das ações humanas desde o fim da Idade Média, esvai-se hoje entre os dedos e mostra-se deformável, maleável e relativa. Sem balizas fornecidas pelo esclarecimento, as quais paradoxalmente impedem o homem de pensar de forma autônoma, já que pode confiar suas dúvidas ao poder inexorável da razão, o homem pós-moderno vive o impasse da dúvida. Noções de certo e errado, feio e belo, naturalizadas na vida em sociedade, revelam-se meros construtos culturais, de modo que o indivíduo contemporâneo deve escolher em que narrativa quer acreditar. Perdido no labirinto dos relativismos, o sujeito não pode fazer mais do que se abandonar à vertigem da dúvida. Nesse contexto de fim das grandes metanarrativas (LYOTARD, 1986), situa-se a polêmica obra de Artur C. Danto (2006), Após o fim da arte, que, dado seu título, suscitou interpretações simplistas e deturpadoras de sua tese sobre os limites da história na arte contemporânea. Leituras apressadas das teorias do autor fomentaram as discussões alarmistas de que a arte chegava ao fim, profetizando um inverossímil futuro em que não haveria mais artistas. Todavia, Danto (2006) esclarece em seu livro que o fim da arte não seria o desaparecimento da produção da arte, ao contrário do que dizem os que alardeiam o declínio da literatura. Em vez disso, a teoria do fim da arte aponta para o ocaso das definições fechadas do que seja ou não artístico, ampliando-se ao infinito as possibilidades no trabalho estético. Trombeteira do apocalipse, a mídia alardeia o fim da literatura, a morte dos livros, o sepulcro da leitura como a conhecemos, sendo substituída pela apoteose do audiovisual. A profecia é antiga, tendo surgido com a invenção do cinema e culminado na segunda metade do século XX, quando da popularização do aparelho televisor e, posteriormente, quando os personal computers invadiram os lares de todo o mundo, prometendo acesso fácil e instantâneo a todo tipo de informação. Essa falsa predição é fruto do charlatanismo de uma série de Nostradamus da contemporaneidade, que apelam à doxa e aos impactos das afirmações cataclísmicas para veicular seus próprios interesses. A literatura, prática inerente à condição humana, só pode ter seu fim anunciado em profecias irracionais, não baseadas em critérios científicos, racionalistas ou empíricos, visto que apenas o desaparecimento do gênero humano acarretaria a morte da arte da palavra. Sintomas do mal-estar na modernidade (ROUANET, 1993), os prognósticos do óbito da literatura denunciam muito mais a crise dos critérios científicos e da razão – inclusive no meio acadêmico, que por vezes também anuncia o fim da literatura – que do trabalho estético com a palavra. Distintamente desse charlatanismo alarmista, Após o fim da arte advoga por uma nova era em que são improcedentes as discussões do que seria artístico ou não. Continuam existindo o artista, a obra e a recepção; o que desaparece são as narrativas definidoras do estatuto artístico dos objetos, normatizando técnicas, tendências e materiais. A teoria de Danto seria, pois, (...) um meio algo dramático de declarar que as narrativas mestras que primeiro definiram a arte tradicional, e depois a arte modernista, não só chegaram a um fim, mas que a arte contemporânea não mais se permite ser representada por narrativas mestras de modo algum. Aquelas narrativas mestras inevitavelmente excluíam certas tradições e práticas artísticas como “além dos limites da história” – uma frase de Hegel à qual recorri mais de uma vez. É uma das muitas coisas que caracterizam o momento contemporâneo da arte – ou o que denomino o “momento pós-histórico” – em que não há mais limites da história. Nada se
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Tema geral: Línguas e Literaturas: Diversidade e Adversidades na América Latina encontra interditado (...). O nosso é um momento, pelo menos (e talvez unicamente) na arte, de profundo pluralismo e total tolerância. Nada está excluído (DANTO, 2006, p.XVI).
Sem previsão de morte, a arte em geral e a literatura, mais especificamente neste trabalho, continuam sendo produzidas após o que Danto anunciou como o fim da arte, referindo-se ao ocaso das narrativas que a regulam. Desse modo, no presente momento, em vez de pós-modernismo, talvez seja mais apropriado utilizar uma forma plural, “pós-modernismos”, para tentar dar conta da multiplicidade de facetas que assumiu a produção cultural após a década de 50. Assim, de fato há uma mudança nos paradigmas segundo os quais concebemos o fenômeno literário, tanto no que tange à própria tessitura textual quanto à sua produção e recepção. Porém, não está morta a arte da palavra, tem apenas uma nova forma de ser, em paralelo à tradicional impressão em offset sobre papel branco. Nesse contexto, as potencialidades surpreendentes dos avanços tecnológicos dão ensejo a inovadoras possibilidades literárias, prescindindo inclusive do suporte físico do papel. Como consequência, os próprios processos de enunciação mudam, visto que a seleção do canal influencia a constituição da mensagem, bem como sua recepção (JAKOBSON, 1995). No entanto, a influência da tecnologia de ponta sobre a forma de se produzir, fruir e conceber a literatura não é prerrogativa da pós-modernidade. Muito antes, Gutenberg já revolucionara a arte da palavra com sua prensa de tipos móveis. Ela substituiu o manuscrito pelas cópias idênticas, introduziu o livro portátil, criou o caderno com páginas numeradas, índices e sumários, para dizer pouco. Tais alterações técnicas revolucionaram o conteúdo da cultura, no que se refere a quem produz e a quem tem acesso aos seus frutos: é quando surge a noção de autor e se amplia o número virtual de leitores (PELLEGRINI, 1999, p.15).
Permitindo narrativas mais longas e densas, facilmente reprodutíveis graças à nova tecnologia, a invenção alemã trouxe contribuições significativas para o próprio processo da enunciação, menos preso às antigas restrições de produção e circulação do livro. De maneira análoga, o atual império do audiovisual, em que as subjetividades pós-modernas se acostumam a uma série ininterrupta de bombardeios informacionais que afetam todos os sentidos, especialmente a audição e a visão, traz mudanças profundas à maneira como concebemos literatura. Nesse contexto, podem-se citar as sabidas alterações sofridas pelo literário graças à influência da televisão, do cinema e, mais modernamente, da Internet. Porém, como o desenvolvimento tecnológico é ininterrupto e cada vez mais veloz, muitas dessas contribuições já podem ser consideradas pretéritas, se comparadas com a tendência cada vez maior de abandonar o papel como suporte do literário. Embora muito do que se produz hoje no meio digital possa, com custos mais altos e menor possibilidade de divulgação, ser impresso, como se faz tradicionalmente desde o invento de Gutenberg, a revolução computacional influenciou sobremaneira o próprio processo de enunciação, surgindo uma poética exclusivamente virtual. É o caso de obras literárias interativas e hipertextuais, bem como aquelas que se constroem holograficamente como realidade virtual e cuja realização não é possível sem o apoio da tecnologia digital. Todavia, como uma das maiores características da pós-modernidade é o pluralismo de tendências, muitos autores negam ou ignoram a literatura digital. Outros, como Rubem Fonseca ou Patrícia Melo, ao criarem personagens que leem textos escritos por Deus em suas fezes, apontam para o fato de que o corpo é o locus por excelência da produção artística, visto que o somático fala e seu discurso pode ser trabalhado esteticamente. A propósito de textos fora do papel, redigidos e veiculados em outras superfícies, Rubem Fonseca propõe, desse modo, uma ruptura absolutamente pós-moderna: questionar o passado voltando a ele, em um pastiche historiográfico. Assim, seu conto “Copromancia” (2001) aponta, no plano do conteúdo, para uma tradição textual anterior ao próprio papiro: a escrita do corpo. Se a pele é milenarmente usada como superfície textual na tatuagem, o ficcionista mineiro aponta para uma impensada, ainda que antiga, modalidade literária, criando personagens que escrevem e leem fezes, falas corporais enunciadas pelos intestinos.
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De forma semelhante, Patrícia Melo também se vale da metáfora das fezes para questionar as certezas que permeiam o estudo literário, como a noção de autoria, a conceituação dos elementos da narrativa, ou mesmo o fato de que livros devam ser impressos em papel. Escrevendo um romance sobre um plágio às avessas do conto “Copromancia”, a autora dialoga diretamente com Rubem Fonseca, que se torna seu personagem na narrativa de Jonas, o copromanta, texto de papel sobre a textualidade do excreta. Escatológica – nas múltiplas significações que esse adjetivo permite –, essa forma fecal de encarar o texto ora indaga o suposto fim da literatura (eskhátos, em grego, designa o fim das coisas), ora chama atenção para o papel das fezes como signos a serem decodificados (skatós, em grego, indica os excrementos). Mostrando a impertinência das teorias que advogam a crise da literatura, a hecatombe dos artistas e demais profecias alarmistas, a escrita do expurgo intestinal, tema a ser investigado neste trabalho, revela a renovação de antigas possibilidades estéticas como arte contemporânea. Tais textos provam, pois, ser improcedente o fim da literatura, visto que a arte da palavra está em todo o lugar, inclusive nas fezes que seus protagonistas tomam por literárias. 2. Uma escrita visceral Em 2001, Rubem Fonseca, autor famoso por seus escritos marcados pelo erotismo, pelo brutalismo e pela abjeção, publicou Secreções, excreções e desatinos, título que explicita desde a capa o conteúdo da obra: trata-se de catorze contos que narram, um a um, experiências assustadoras e fascinantes envolvendo as excreções humanas. No livro, há textos sobre urina, catarro, sangue, bafo, saliva, flatulências, espermatozoides, tumores, menstruação e fezes, sendo este último produto do metabolismo o tema da presente pesquisa. Ademais, vale ressaltar o caráter metalinguístico do próprio título, que aponta para a textualidade inerente a essas falas corporais: secreções e excreções, dizeres somáticos inescapáveis, são também desatinos, ou seja, algo que não se pode controlar, como um texto que se produz a despeito da vontade do sujeito. O corpo fala, pois, por si só. O próprio vocábulo “desatino” provém da raiz tin-, que remete ao verbo “tinir”, ligado às noções de falar, murmurar e tagarelar, segundo o Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa (2001). Tal obra reafirma na contemporaneidade a possibilidade de uma literatura que prescinda do papel, recorrendo não ao meio digital, mas aos rejeitos do corpo como veículo da arte; afinal, o narrador de “Copromancia”, primeiro conto do livro, revela-se um autor-exegeta de textos fecais. Nesse sentido, interroga-se indiretamente a primazia do papel como suporte do texto literário: embora o livro não prescinda dessa superfície branca contra a qual se imprimem as letras negras, o narrador-personagem faz e frui literatura na superfície alva da latrina, contra a qual se choca a escura massa fecal. Para ele, papel com algum valor literário há de ser, pois, o higiênico, sendo possível haver literatura a despeito das conformações tecnológicas desenvolvidas na contemporaneidade. O título “Copromancia” é por si só irônico e auto-referente, como prova a análise etimológica desse neologismo fonsequiano. Radical derivado do grego, mancia indica adivinhação ou profecia, ideia também presente nos vocábulos cognatos “astromancia” (sinônimo de astrologia) e “quiromancia” (arte divinatória de ler o futuro nas linhas e nos sinais das mãos). Por sua vez, o radical também grego copro denota o sema de “fezes”, de modo que o conto versa sobre a adivinhação a partir da leitura de excrementos, prática de agouro criada de forma jocosa e satírica por Rubem Fonseca. Vê-se, portanto, que o título exige análise minuciosa para ser compreendido, assemelhando-se às fezes a que remete. Ao longo do conto, o narrador em primeira pessoa, autor de textos jornalísticos, depara-se com a importância de analisar outros textos que produz; estes, contudo, são compostos de matéria fecal e lidos diariamente na louça do vaso sanitário logo após seu uso, como há muito o homem já faz com a borra de café que se deposita na porcelana das xícaras. Desse modo, confirma-se o primado dos textos do corpo, em detrimento do invento de Gutenberg ou mesmo da apoteose do audiovisual e do digital. A abjeção da leitura do copromante contrapõe-se à forma metafísica como tal modalidade semiótica se impõe, visto que o narrador passa a refletir sobre sua matéria fecal a partir de um
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pensamento religioso, durante uma costumeira leitura de jornal no toalete, como se observa na passagem abaixo: Mas o certo é que estava pensando em Deus e observando as minhas fezes no vaso sanitário. É engraçado, quando um assunto nos interessa, algo sobre ele a todo instante capta a nossa atenção, como o barulho do vaso sanitário do vizinho, cujo apartamento era contíguo ao meu, ou a notícia que encontrei, num canto de jornal, que normalmente me passaria despercebida, segundo a qual a Sotheby’s de Londres vendera em leilão uma coleção de dez latas com excrementos, obras de arte do artista conceitual italiano Piero Manzoni, morto em 1963. As peças haviam sido adquiridas por um colecionador privado, que dera o lance final de novecentos e quarenta mil dólares (FONSECA, 2001, p.7).
Iniciando o conto com indagações sobre os motivos que teriam levado Deus a criar as fezes, o narrador chega à ambígua conclusão de que “Deus fez a merda por alguma razão” (FONSECA, 2001, p.10). Desconstruindo ainda mais o pensamento religioso-filosófico, as divagações sobre a criação divina dialogam com o cogito cartesiano, na máxima “Ergo, a merda” (FONSECA, 2001, p.7), acompanhada por um sinal de interrogação que confirma a desestabilização do pensamento de Descartes. Se pensar racionalmente provava a existência do homem e de Deus para o filósofo francês, para o personagem de “Copromancia” (2001) é o ato de defecar que desempenha papel tão importante. Ainda no que se refere ao contexto em que o narrador começa a dar atenção às suas fezes, é mister chamar atenção para o recurso de verossimilhança utilizado por Rubem Fonseca, que mistura ficção e realidade na passagem supracitada. Para tanto, o ficcionista lança mão da célebre exposição de Piero Manzoni, que de fato ocorreu em Londres, em 1961. O artista italiano, decidido a quebrar a austeridade da arte erudita, preencheu noventa latas com sua matéria fecal, lacrando-as e rotulando-as com o sintagma Merde d’artista (“Merda do artista”), que dá nome à obra. Além da ideia de posse entre “merda” e “artista”, ratificada pela arte visual a que estavam vinculadas essas palavras, há ainda uma possível relação adjetival entre tais vocábulos, dessacralizando não só a obra de arte como seu criador. Por fim, a decisão de Manzoni de vender essas peças literalmente a peso de ouro – ditando os preços pela cotação do dia – e o valor absurdo que se dá a tudo o que se diz arte são ironizados por Fonseca ao dizer a alta quantia paga por um “colecionador privado”. Nesse sentido, é importante perceber que a “privada” é o destino que se convenciona dar à matéria fecal cotidiana, a que não se atribui valor artístico algum. Da leitura do jornal à leitura das fezes, o conto se desenrola em um jogo de ambiguidades entre as esferas textual e excrementícia. Tal aproximação entre a escrita literária e o bolo fecal é identificável em uma série de passagens, como a que segue: Os meus duzentos e oitenta gramas diários de fezes continham, em média, cem bilhões de bactérias de mais de setenta tipos diferentes. Mas o caráter físico e a composição química das fezes são influenciados, ainda que não exclusivamente, pela natureza dos alimentos que ingerimos. Uma dieta rica em celulose produz um excreto volumoso. O exame das fezes é muito importante nos diagnósticos definidores dos estados mórbidos, é um destacado instrumento da semiótica médica. Se somos o que comemos, como disse o filósofo, somos também o que defecamos (FONSECA, 2001, p.10).
É importante perceber que o vocábulo “celulose” ratifica tal leitura, visto identificar a substância que dá consistência às fezes e às fibras de que são feitas as folhas do papel no qual se escrevem os textos. Assim, a “dieta rica em celulose” pode ser entendida como a importância das muitas leituras para que se possa produzir um texto literário de consistência – ou um excreto volumoso. Afinal, a composição das fezes – e dos textos – depende daquilo que se ingere, seja comida ou leitura. Em lugar de reafirmar a noção de gênio inspirado, típica do século XIX, Rubem Fonseca reconhece a importância e a inevitabilidade da influência de outros autores sobre qualquer escrita. Embora talvez pareça exagerado aplicar conceitos da Teoria da Literatura para descrever as elucubrações do narrador a respeito de seus textos fecais, ele mesmo emprega termos caros à crítica literária quando se refere ao seu excreta, ratificando a textualidade de seus expurgos intestinais.
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Anais do II Congresso Internacional de Estudos Linguísticos e Literários na Amazônia (CIELLA) Toda leitura exige um vocabulário e evidentemente uma semiótica, sem isso o intérprete, por mais capaz e motivado que seja, não consegue trabalhar. Talvez o meu Álbum de fezes já fosse uma espécie de léxico, que eu criara inconscientemente para servir de base às interpretações que agora pretendia fazer. (...) Não vou detalhar aqui os métodos que utilizava, nem os aspectos semânticos e hermenêuticos do processo (FONSECA, 2001, p.13).
Não satisfeito com sua escrita no vaso sanitário, o narrador se dedica à composição de um Álbum de fezes, em que registra fotos e regras referentes à secreta hermenêutica fecal, as quais, de tão veladas, sequer podem ser enunciadas no correr da narrativa. No entanto, texto sobre o texto, o Álbum se revela um construto metalinguístico, tal qual o conto, discorrendo sobre os percalços da literatura excrementícia. Tal semelhança entre “Copromancia” e o Álbum de fezes se mostra um truque narrativo sutil, expresso na seguinte passagem, que relata a confissão do protagonista à amada sobre sua leitura fecal: “Contei-lhe tudo e minha narrativa foi acompanhada atentamente por Anita, que amiúde consultava o Álbum que mantinha nas mãos” (FONSECA, 2001, p.16). Ao mesmo tempo em que conta à mulher amada sobre a copromancia, o narrador fá-lo ao leitor, que tem em mãos Secreções, excreções e desatinos, como a moça tem o Álbum de fezes. Vale lembrar que Anita, inicialmente, confunde o texto que tem em mãos com um dicionário de música, o que confirma o caráter artístico dos textos de dejetos. O livro de Rubem Fonseca revela-se, então, uma espécie de Álbum de fezes, como o mencionado no conto, sendo cada texto dedicado a uma coletânea de imagens de sua respectiva temática excrementícia. Ainda no que tange à composição do Álbum de fezes, o narrador reconhece a impossibilidade de reproduzir com perfeição de forma pictórica, fotográfica ou mesmo linguística o seu excreta, pois as cores e odores são inefáveis e irreprodutíveis – cada texto tem uma textura própria, logo paráfrase alguma lhe faz jus. Na dificuldade de descrever, por exemplo, o aroma do bolo fecal, o narrador realiza uma digressão, aproximando-se do discurso filosófico. Kant estava certo ao classificar o olfato como um sentido secundário, devido a sua inefabilidade. Escrevi no Álbum, por exemplo, este texto referente ao odor de um bolo fecal espesso, marrom-escuro: odor opaco de verduras podres em geladeira fechada. O que era isso, odor opaco? A espessura do bolo me levara involuntariamente a sinonimizar: espesso-opaco? Que verduras? Brócolis? Eu parecia um enólogo descrevendo a fragrância de um vinho, mas na verdade fazia uma espécie de poesia nas minhas descrições olfativas (FONSECA, 2001, p.9).
À guisa de teórico da literatura, o narrador reflete sobre as condições de confecção da análise do texto fecal. Sendo assim, percebe que, para se aproximar da multiplicidade do literário, a crítica de literatura tem de encerrar em si muito da dicção poética. Desse modo, “fazia uma espécie de poesia nas [suas] descrições olfativas”, precisando inclusive recorrer a figuras de expressão, como a sinestesia de “odor opaco”. A respeito desse tropo, é interessante fazer uma remissão à metafísica platônica, questão central no pensamento kantiano, segundo a qual os sentidos seriam enganadores e múltiplos, escondendo a unicidade da essência e da verdade. Olfato e visão, portanto, fundidos nessa expressão, são apenas manifestações distintas de uma essência única, tal qual papel e fezes seriam formas materiais diferentes para uma mesma ideia perfeita e singular: a literatura. A segunda parte do conto, dedicada ao tema do vaticínio, inicia-se a partir da memória do narrador sobre um texto jornalístico que teria redigido para uma revista, quando ainda não havia descoberto a escrita de suas fezes. Tal matéria consistia em um ensaio chamado “Artes adivinhatórias”, em que astrologia, quiromancia e outros métodos de previsão do futuro eram denunciados como fraudes e meios de ganhar dinheiro fácil. Todavia, pouco depois da publicação do texto, uma das profecias que ouviu enquanto o elaborava cumpriu-se: a morte de sua mãe. Anos mais tarde, após reencontrar aquela revista e perceber a exatidão da presciência da perda materna, o narrador descobre que pode antever situações vindouras a partir do que expulsa de seu sistema digestivo, criando a copromancia. Além dos já referidos múltiplos significados de “escatologia”, há outros elementos que aproximam defecar e prever nesse conto, como a aruspicação, técnica que permitiu o presságio
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da morte da mãe do narrador. Tal arte divinatória consiste na predição do futuro pelo exame das entranhas de vítimas sacrificadas, o que remete à leitura do porvir a partir do que sai dessas entranhas e acaba na louça sanitária. Sendo a etimologia um campo do saber constantemente revisitado no conto, como seu próprio título anuncia, ao combinar de modo inusitado radicais gregos de campos semânticos radicalmente distintos, uma análise mais atenta da seleção vocabular e suas origens pode potencializar a leitura aqui pretendida. Assim, “fezes”, “fazer”, “fecundidade”, “feitiço” e “profecia” derivam da mesma raiz latina, de modo que toda feitura, seja de textos fecundos, de fezes ou de profecias, é semelhante em algum ponto. Por fim, o conhecimento do futuro é oriundo da interpretação de sinais específicos, o que se aproxima da leitura, seja de excremento, páginas ou vísceras de vítimas sacrificiais. Tal qual hermeneuta do bolo fecal, o narrador afirma: Demorei algum tempo, para ser exato setecentos e cinquenta e cinco dias, mais de dois anos, para poder desenvolver meus poderes espirituais e livrar-me dos condicionamentos que me faziam perceber somente a realidade palpável e afinal interpretar aqueles sinais que as fezes me forneciam. Para lidar com símbolos e metáforas é preciso muita atenção e paciência. As fezes, posso afirmar, são um criptograma, e eu descobrira os seus códigos de decifração (FONSECA, 2001, p.13).
Ao longo do conto, o leitor percebe também a importância de atentar para a linguagem cifrada do texto – fino excremento – que lê. Tal contato com o literário pode levar tanto tempo quanto os setecentos e cinquenta dias de que fala o narrador, mas o prazer que dele obtêm os copromantes é compensador. Refletindo sobre si mesma, a escrita fonsequiana especula no espelho (vocábulos de mesma raiz latina, speculum) as múltiplas possibilidades artísticas de quaisquer bolos de celulose. Por meio da abjeta e inusitada metáfora, o ficcionista zomba de sua arte, ao mesmo tempo em que a dignifica como sendo tão humana quanto as funções fisiológicas. Escrevendo no papel suas impressões sobre o excreta, como o copromanta que redige um Álbum de fezes, Rubem Fonseca alude, ainda que metaforicamente, a outras possibilidades de escrita do literário. Se a pós-modernidade aponta para uma pretensa morte da literatura, o autor de Secreções, Excreções e Desatinos potencializa as múltiplas facetas que a arte da palavra pode tomar, mesmo que redundando na jocosa imagem de uma latrina literária. Desse modo, a corporalidade dessa variante semiótica, ao remontar a modalidades escritas anteriores à própria invenção da imprensa, nega com veemência as apocalípticas previsões de um fim da literatura. O que há, na verdade, como afirmou Danto (2006), é um borramento (palavra do campo semântico fecal) dos limites entre arte e não-arte, literatura e não-literatura, que só vem a fecundar (da mesma raiz latina que “fezes”) o debate estético. Visceral, a escrita de Rubem Fonseca é produto de atividade intestinal de alta qualidade, agradando até mesmo aos olfatos mais refinados e aos leitores mais exigentes. 3. Jonas, o plagiário plagiado Famosa por sua ficção urbana, povoada por uma galeria de marginais, loucos e homens avessos à moral, Patrícia Melo foi acusada diversas vezes de sobreviver no mercado literário às custas de imitar os moldes da escrita de Rubem Fonseca, cuja influência sobre as obras da autora é inegável. Marcada por uma perscrutação do que há de mais humano – e mais abominável – em cada um de nós, seus livros realmente lembram os do autor de Secreções, excreções e desatinos, não só no plano do conteúdo, mas também no que diz respeito à forma, como se percebe em suas frases curtas, sintaxe direta, linguagem crua e diálogos sem travessões ou aspas, integrados ao fluxo da narrativa. Valendo-se desse tipo de intriga literária como mote para um novo livro, a autora publicou em 2008 Jonas, o copromanta, uma direta alusão ao conto “Copromancia” de Rubem Fonseca, escritor que se torna personagem no romance de Patrícia Melo, embaralhando-se as fronteiras entre autoria e plágio, narrador e personagem, mestre e discípulo. Assumindo como sua a dicção do eco das narrativas
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fonsequianas, a autora subverte as acusações de plágio que já lhe foram imputadas, incriminando o Rubem Fonseca fictício de copiar seu personagem. Ao optar por tal enredo, a autora tangencia ainda outro ponto nodal do suposto fim da literatura nos dias atuais, associado às questões de direitos autorais e copyright. Na era da Internet, em que tudo é copiado e distribuído em uma questão de segundos, torna-se difícil controlar reproduções ilegais de obras artísticas, problema que, por exemplo, tem conduzido rapidamente à bancarrota a indústria fonográfica. Essa questão é explicitamente abordada no romance de Patrícia Melo, como se percebe no trecho abaixo. E você poderia ao menos tirar uma cópia do conto? Não sabia que é crime xerocar mais do que trinta páginas? Do que você acha que os autores vivem? De brisa? Talvez ela estivesse totalmente cooptada pelo escritor. Agora defendia os interesses dos autores, não dos leitores (MELO, 2008, p.68).
Se um romance como plágio pode prejudicar os direitos autorais do autor vitimado pela cópia, a reprodução xerográfica que Jonas, o personagem supostamente plagiado, perpetra também é daninha à renda do artista. Nesse sentido, as fezes, forma de escrita privilegiada em “Copromancia” e Jonas, o copromanta, revelam sua superioridade como modalidade semiótica, visto que, produzidas na intimidade da latrina, só ali podem ser apreciadas, estando infensas à difusão instantânea da web. Atravessado por tais questões, o livro de Patrícia Melo conta a história de Jonas, um solitário arquivista da Biblioteca Nacional que leva uma vida pacata e sem muitas emoções como carimbador de documentos. Para preencher seu enorme vazio existencial, Jonas se dedica nas horas vagas à literatura e à arte de adivinhação do futuro pela leitura das fezes, a copromancia, sendo ambas intimamente ligadas à profissão do protagonista, que lê incessantemente os livros que manuseia. Como nos contos e romances de Rubem Fonseca, o personagem principal de Jonas, o copromanta é alguém essencialmente ligado à esfera da escrita, tendo nos grandes clássicos sua maior companhia. No entanto, a íntima relação de Jonas com a literatura vai além do que se espera de um ávido leitor ou mesmo de um comum autor, visto que o protagonista se dedicava, em suas horas vagas, à reescritura de suas obras preferidas, insatisfeito com o curso que os enredos por vezes tomaram nas mãos de seus autores originais. Admito que sou um leitor obsessivo e que, com frequência, reescrevo diletantemente as histórias de meus escritores preferidos. Não que eu seja crítico ou plagiador, ou pior que tudo isso, fraco de imaginação. Reescrevo-as por uma questão de justiça. Alguns personagens merecem destinos melhores. Raskolnikof, por exemplo, jamais deveria ter ido para a Sibéria, e muito menos se casado com a chata da Sônia. No meu Crime e castigo, que se chama Crime sem castigo, Raskolnikof, além de matar as duas velhas inúteis, comete mais uma série de assassinatos e torna a humanidade melhor, como aliás era seu projeto inicial. E minha Lolita não acaba num fim de mundo à toa. Ela dopa e castra o pedófilo Humbert Humbert, tendo antes a inteligência de roubá-lo (MELO, 2008, p.10).
Jonas brinca de copidesque de livros de artistas consagrados, embaralhando as esferas de autor e personagem. Ao desrespeitar as fronteiras entre as obras, o protagonista do romance ora analisado ratifica a lúdica ironia de sua criadora, acusada por vezes de meramente reescrever Rubem Fonseca. Nesse sentido, é reveladora a fala de Jonas, que justifica suas operações intertextuais não por ser “crítico ou plagiador, ou pior que tudo isso, fraco de imaginação”. Na verdade, cria seu próprio texto no eterno processo de recriação e reedição que é a escrita. Mesmo o Rubem Fonseca real, travestido em personagem na escrita de Patrícia Melo, advoga em “Intestino grosso” (FONSECA, 1975), uma de suas primeiras narrativas, pela prática da reescritura como regime textual e possibilidade de literatura. Aliás, segundo a personagem principal do conto, um escritor sendo entrevistado, a reescritura não é uma ideia a ser defendida, mas um fato inescapável no processo autoral. Não estou dando conselhos. Mesmo porque o sujeito pode tentar escrever a Comédie Humaine aplicando à sua ficção as leis da natureza ou a Metamorfose, rompendo essas mesmas leis, mas cedo ou tarde ele acabará
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Tema geral: Línguas e Literaturas: Diversidade e Adversidades na América Latina escrevendo o seu livro, dele. Cedo ou tarde, acabará sujando as mãos também, se persistir (FONSECA, 1975, p.174).
Tentando reescrever Balzac ou Kafka, o sujeito cedo ou tarde acaba escrevendo seu próprio livro, o que prova que toda escritura não passa de reescritura. Sendo o ato da escrita algo que suja as mãos, segundo o excerto acima, pode-se dizer que, ao (re)compor um romance sobre a leitura de fezes a partir da obra de Rubem Fonseca, Patrícia Melo suja as mãos não só na tinta da pena, mas na latrina em que se debruçam os protagonistas de “Copromancia” (FONSECA, 2001) e Jonas, o copromanta (MELO, 2008). Ainda no que diz respeito ao protagonista do romance ser um entusiasta das belles lettres, secretamente brincando de autor ou co-autor de releituras de obras famosas, o próprio personagem Rubem Fonseca reconhece Jonas como um artista. A princípio, isso sugeriria uma auto-afirmação como artista por parte da própria autora do romance, também ela de certa forma uma (re)escritora aficionada pelo autor de Secreções, excreções e desatinos. No entanto, definir Jonas como artista não seria apenas dignificar sua prática de reescritura de clássicos, mas também confirmar o estatuto artístico daquilo que o bibliotecário expele no vaso sanitário e admira embevecido, em busca de significações ocultas. Assim, o reconhecimento do fecal como artístico apreende os excretas de Jonas como o informe a que se dá forma, na contínua labuta da estética. Tal qual em “Copromancia”, em Jonas, o copromanta as fezes são entendidas como textos corporais e corpora textuais, que, como os tradicionalmente impressos em papel, têm sintaxe, semântica e morfologia própria, requerendo cautelosa exegese para sua decifração. Tal acolhimento dos (re)escritos de Jonas – e, consequentemente, de sua criadora – como arte por parte do Rubem Fonseca fictício fica claro na passagem a seguir: Abri o embrulho e logo vi as esvoaçantes mechas de cabelos ruivos da Vênus de Boticelli estampando a capa de Secreções, excreções e desatinos, o mesmo livro que eu estava lendo. Novinho em folha. Um terror gélido percorreu minha espinha. (...) Abri o livro e deparei com a dedicatória: “Ao Jonas, meu caro colega de ofício, um forte abraço. Rubem Fonseca (MELO, 2008, p.15).
Recebendo de presente o livro cujo primeiro conto é “Copromancia”, obra em que se inspira Patrícia Melo para compor seu romance, Jonas se sobressalta ao perceber que sua vida em muito se assemelha à matéria narrada por Rubem Fonseca no primeiro texto de Secreções, excreções e desatinos. Porém, no que tange ao presente ganho por Jonas, há ainda um pequeno detalhe digno de atenção: a dedicatória. Ao chamar o arquivista da biblioteca de “colega de ofício”, Rubem Fonseca o dignifica também como escritor, colega de profissão e de folha ofício, superfície em que geralmente se inscreve a labuta autoral. Todavia, mal sabe o célebre escritor que Jonas não é seu colega de (folha) ofício, mas de latrina. Autor e leitor de textos fecais, como o protagonista de “Copromancia”, Jonas descobre logo no início da narrativa que Rubem Fonseca escreveu um conto que narra seu idiossincrático hábito de interpretação do excremento. Como o narrador-personagem do conto, Jonas alia intimamente o hobby literário e a leitura de suas fezes, visto que ambos consistem na decifração de um código e na exegese de um texto, seja ele impresso no papel ou na latrina. Segundo Jonas, quem possui dons divinatórios é por natureza um decifrador, um apaixonado, um jogador nato. Portanto, é fundamental, quando se vai prever o futuro, dominar também o principal axioma da criptografia, que é considerar todas as possibilidades. É uma luta. Nós e eles. O futuro e nós. O segredo e a revelação. O significado e o signo. A forma e o conteúdo. (...) Li num manual de criptologia que uma simples oração como esta última, de apenas trinta e cinco letras, tem cinquenta nonilhões de formas possíveis de rearranjos. Um mar sem fim. Três os. Quatro emes. A lógica pura não dá conta de tudo. Por isso, precisamos ser imaginativos, dois es. Sem criatividade, três is, ficamos sem chão, dois as (MELO, 2008, p.81).
A relação entre literatura e a exegese fecal vai mais além, sendo usada por Jonas como uma modalidade semiótica que permite a visão do futuro e do passado, inclusive empregada como método
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de decifração em sua louca investigação quanto ao suposto plágio operado por Rubem Fonseca diante da copromancia. O que o bibliotecário, leitor obcecado por seu ídolo, não percebe, mas que um leitor atento de Jonas, o copromanta vê com clareza, é que alguns textos fecais do protagonista não falam sobre o futuro e o passado das personagens, mas sim sobre a própria enunciação do romance. Desse modo, por exemplo, Jonas acha que determinada porção de excremento significa “fim”, sugerindo que houvesse terminado o papel de Rubem Fonseca como guia à verdade sagrada da copromancia. Todavia, o protagonista ignora outra significação desse “sintagma fecal”: mais do que relacionado ao desenrolar da narrativa, é no plano da narração que ele deve ser interpretado, pois anuncia o fim do romance, que acaba de atingir seu anticlímax quando a obsessão pelo famoso autor é substituída pelo fanatismo por Zoé, última personagem a ser introduzida na narrativa. Corrobora tal leitura a presença da palavra “fim” em letras maiúsculas na última página do romance, recurso gráfico que não aparece nas demais obras literárias publicadas pela Companhia das Letras e traduz para o português o que os hieróglifos fecais de Jonas haviam lhe revelado. Assim, o fim previsto pelo personagem pode realmente ser visto pelo leitor de Jonas, o copromanta, o que indica que, apesar de aparentemente absurda, a leitura de textos fecais pode ter consistência, mesmo que só no universo ficcional. Assim, diferente das malogradas previsões do fim da arte e da literatura, pretensamente soterradas pela apoteose do audiovisual, o vaticínio expelido pelo ânus tem algum grau de acerto, além de alto valor estético. Destacando o caráter textual das fezes, leitura corpórea que Jonas valoriza tanto quanto os grandes clássicos que reescreve, o narrador chega mesmo a equacionar o conto fonsequiano aos expurgos intestinais que analisa com avidez na latrina: Além disso, já tinha planos para aquele resto de noite: ia analisar com cuidado o conto-plágio de Rubem Fonseca. Talvez algo tivesse me escapado nas leituras anteriores, e na linguagem de códigos não se desprezam nem os menores detalhes, afinal são eles, muitas vezes, a chave de todo o enigma (MELO, 2008, p.29).
Nota-se nesse caso a seleção vocabular empregada por Jonas ao se referir ao texto de seu possível perseguidor como sendo repleto de códigos e enigmas, para os quais se faria necessária uma chave. De maneira semelhante, ao se remeter à linguagem enunciada pelo ânus, o bibliotecário a define como “Criptográfica. Códigos. Signos” (MELO, 2008, p.28), analogamente à descrição da linguagem do conto fonsequiano. Tal formulação, no entanto, misteriosa como as fezes ainda não trazidas à luz, carrega em si a ambivalência peculiar às falas do baixo ventre: igualar “Copromancia” à matéria fecal de Jonas pode, por um lado, ser lido como um rebaixamento da ficção de Rubem Fonseca, tal qual na frequente metáfora desbocada do senso comum. Contudo, uma leitura mais atenta, que considera o apreço de Patrícia Melo pela ficção do autor e a preocupação de seu romance em ratificar as fezes como mais uma possibilidade de literatura fora do papel, percebe que tal equação vem apenas a valorizar a escrita do ânus. Em oposição à literatura no papel, que se faz no contraste com a branca pureza da superfície, a arte das fezes prescinde do alvo e do imaculado, fazendo da sujidade sua linguagem e usando o papel apenas como utensílio a limpar seu rastro. Ademais, Jonas imita o personagem de “Copromancia” (ou seria o inverso?), não só no processo de leitura dos excretas, mas também na confecção de um Álbum de fezes. Prática de escrita sobre o literário fecal, tal álbum em muito se assemelha a um manual de crítica ou Teoria Literária, discorrendo sobre as formas, gêneros e significações das massas expelidas pelo ânus. No entanto, em Jonas, o copromanta, o Álbum de fezes ganha uma dimensão muito maior, confundindo-se com a própria confecção do romance. Enquanto “Copromancia” apenas menciona a existência do álbum, descrevendo-o superficialmente, o livro de Patrícia Melo é ilustrado por uma série de desenhos de fezes em formatos mil sobre folhas pautadas. Embora o leitor saiba absurdas as obsessões do protagonista, sente-se em algum momento da leitura instigado a tentar decifrar os escritos intestinais, tornando-se também um copromanta. Para tal, Jonas apresenta inclusive uma espécie de alfabeto das fezes, baseado na criptologia copta e na egípcia, como se para permitir a exegese e a apreciação de suas obras de arte intestinais.
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Por fim, percebe-se que o romance de Patrícia Melo vem apenas a ratificar o estatuto artístico que Rubem Fonseca dá às fezes, elegendo-as como imagem poderosa na desconstrução das certezas e na apreensão da (malcheirosa?) essência humana. Desse modo, o fictício Rubem Fonseca de Jonas, o copromanta, ao explicar ao protagonista sua predileção pela temática escatológica, afirma: A escatologia – não a religiosa – sempre interessou aos escritores. Se você não é um preconceituoso fisiológico, um antibiológico, não terá pudor de escrever sobre isso. É da nossa natureza. Eu escrevo sobre o ser humano, e tento abordá-lo em todos os seus aspectos, não apenas do ponto de vista da bondade, do amor e da redenção, mas também em seu aspecto animal, primitivo (MELO, 2008, p.105).
Trecho ambíguo, “é da nossa natureza” pode ser lido em diferentes camadas de significação, mudando-se o referente para que aponta o pronome “nossa”. Em um primeiro nível de leitura, o sintagma “nossa natureza” pode ser compreendido como se referindo à natureza humana, que, por mais que se arvore distinta dos animais, sempre tem de se render aos baixos chamados da pressão intestinal. Escrevendo sobre o homem, Patrícia Melo e Rubem Fonseca narram sobre o que ele tem de melhor e pior, mais puro e impuro, seguindo a máxima de Terêncio (2008), segundo o qual “Sou humano, logo nada do que é humano me é estranho”. No entanto, em uma segunda camada de significação, a estrutura “nossa natureza” pode ser entendida como se remetendo à natureza do escritor, que tem como ofício despir-se de preconceitos no ato narrativo. Assim, para abordar o homem em todos os seus aspectos, a natureza do verdadeiro artista o leva a transcender os limites impostos pelos meios e materiais, como o papel ou a tela de cristal líquido. Ousando e provando a imortalidade da literatura, forma de expressão artística que precisa apenas do homem e de seu corpo (corpo somático, corpo textual e corpus textual) para existir, o artista Rubem Fonseca e o personagem Rubem Fonseca, criado por Patrícia Melo, revelam que a arte da palavra é também um rejeito a ser inexorável e continuamente “excorporado”, seja pela boca ou pelo ânus. 4. Considerações finais Alardeia-se frequentemente o fim da literatura, substituída pela apoteose do audiovisual, a despeito da inverdade dessa afirmação. Em paralelo à permanência de modelos tradicionais, os avanços tecnológicos dão ensejo a inovadoras possibilidades literárias, prescindindo inclusive do suporte físico do papel. Como prova disso, observa-se o crescimento da literatura on-line, valendo-se do digital inclusive como mecanismo próprio do processo de enunciação. Em oposição a tais teorias alarmistas de que a pós-modernidade assistiria à morte da produção artística, suplantada pelo audiovisual, a literatura contemporânea prova haver apenas mudança no que se entende por arte da palavra. Nesse sentido, podem-se identificar duas correntes significativas em resposta a tais falsas profecias: enquanto alguns autores inovam, acoplando à escrita técnicas peculiares ao audiovisual e à computação, outros se voltam a formas de escrita anteriores mesmo ao papel e às tecnologias audiovisuais, como o corpo à guisa de suporte de signos. Nesse segundo grupo destacam-se Rubem Fonseca e Patrícia Melo, promovendo em “Copromancia” e Jonas, o copromanta uma discursividade somática que se configura não só como literatura sobre o excreta, mas como uma verdadeira escrita fecal. Assim, na escrita do/no corpo, a literatura revela não temer a revolução da tela. Com recursos mais do que audiovisuais, a latrina se vale do olfato, além da visão e da audição, para seduzir os leitores. Negando o alardeado fim da literatura, supostamente tombada sob a égide do audiovisual, Rubem Fonseca e Patrícia Melo promovem uma reavaliação do próprio estatuto do literário, questionando uma das características físicas mais comuns à sua estrutura canônica: o suporte no papel. Para isso, remetem a formas de escrita anteriores ao papiro e ao próprio alfabeto, criando uma literatura fecal, escrita por Deus nas entranhas humanas, passível de exegese e análise profunda, de acordo com os preceitos hermenêuticos da Teoria Literária.
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LIVROS DIDÁTICOS DE PORTUGUÊS: INSTRUMENTOS DE NATURALIZAÇÃO OU MUDANÇA LINGUÍSTICA? Yana Liss Soares GOMES1 (Universidade Federal do Piauí)
RESUMO: Neste artigo buscamos uma reflexão acerca dos discursos do livro didático de Língua Portuguesa (LDP) com relação às variações linguísticas. Nosso objetivo é analisar como o LDP, enquanto uma instância discursiva social contribui para a naturalização e/ou manutenção das relações hegemônicas e ideológicas com relação ao aspecto da variação linguística. Optamos por uma análise crítica do discurso na perspectiva da Teoria Social do Discurso, segundo Fairclough (2001). Tal escolha se justifica pelo fato desse tipo de análise possibilitar uma investigação descritiva e interpretativa das condições sociais de produção discursivas, colocando em evidência as produções ideológicas e hegemônicas expressas através dos livros didáticos de Português. PALAVRAS-CHAVE: Livro didático; Discurso; Ideologia; Hegemonia. 1
Mestranda em Letras pela Universidade Federal do Piauí – UFPI. Email: profletras2007@hotmail.com
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1. Introdução Antigamente, os estudos linguísticos acreditavam e defendiam uma homogeneidade linguística. Contudo, graças a pesquisas sociolinguísticas, atualmente sabe-se que toda língua é um fenômeno social caracterizada pela variação, isto é, pela heterogeneidade. Sendo assim, a língua portuguesa não é homogênea como muitos defendem, pelo contrário, ela é marcada por inúmeras variedades linguísticas. O problema é que ainda há um desconhecimento muito grande por parte da sociedade brasileira, inclusive do próprio sistema educacional, com relação às diversas variações da língua. Portanto, no cenário educacional, o livro didático de Português (LDP) se apresenta como um sujeito social que pode servir para naturalizar e/ou transformar as relações discursivas da sociedade brasileira. Diante desse quadro, nosso objetivo principal é analisar como o livro didático de Português, enquanto veículo de comunicação se apresenta como instância discursiva social, que contribui para naturalizar ou transformar as relações hegemônicas e ideológicas com relação ao aspecto da variação linguística. Com relação à metodologia utilizada, optamos por uma análise do discurso crítica (ADC) na perspectiva da Teoria Social do Discurso segundo Fairclough (2001), uma vez que a mesma propõe um olhar diferenciado, visto que analisa o discurso sob uma ótica tridimensional: o texto, a prática discursiva e a prática social. Considerando as análises empíricas entre o linguístico e o social de maneira dialética, pois o discurso é visto como uma forma de prática social, isto é, como uma forma de ação sobre o mundo. Esta análise se justifica pelo fato do livro didático ser uma referência muito forte, sobretudo na escola pública, posto que na maioria das vezes, ele se apresenta como o único ou o principal material usado pelos professores, durante suas aulas de língua materna. Portanto, um instrumento extremamente valioso de pesquisa nas mãos de um analista crítico do discurso que busca identificar as concepções ideológicas e hegemônicas das práticas discursivas presentes nos discursos dos LDPs. 2. Fundamentação teórica: a Teoria Social do Discurso Aqui, estudaremos o discurso, enquanto prática discursiva, numa perspectiva discursiva crítica e ao mesmo tempo dialética entre o discurso e a estrutura social. Portanto, faremos uso do aparato teórico metodológico da Teoria Social do Discurso, isto é, de uma abordagem da Análise de Discurso Crítica (ADC) desenvolvida por Norman Fairclough. De acordo com Chouliaraki e Fairclough (1999, p.1 apud MAGALHÃES, 2005) a ADC surge como uma “uma necessidade urgente de teorização e de análise críticas da modernidade posterior que possam não apenas iluminar o novo mundo que está emergindo, mas também indicar as direções alternativas não realizadas existentes” diante dos avanços tecnológicos na informação e na mídia ocorridos nas últimas três últimas décadas do século XX. Segundo Resende e Ramalho (2006, p.11) a ADC é “uma proposta que, com amplo escopo de aplicação, constitui modelo teórico-metodológico aberto ao tratamento de diversas práticas na vida social”, na qual o discurso é visto como fruto das práticas discursivas produzidas socialmente. Para Fairclough (2001, p.91) o discurso “é uma prática, não apenas de representação do mundo, mas de significação do mundo, constituindo e construindo o mundo em significados”. Dessa forma, o discurso se constitui não como uma atividade individual, mas sim social, isto é, como uma forma de ação, portanto ele contribui para a construção das relações sociais hegemônicas e ideológicas. O autor prossegue explicando que a prática discursiva é uma ponte mediadora entre o texto e a prática social: A conexão entre o texto e a prática social é vista como mediada pela prática discursiva: de um lado, os processos de produção e interpretação são formados pela natureza da prática social, ajudando também
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Tema geral: Línguas e Literaturas: Diversidade e Adversidades na América Latina a formá-la e, por outro lado, o processo de produção forma (e deixa vestígios) no texto, e o processo interpretativo opera sobre ‘pistas’ no texto (FAIRCLOUGH, 2001, p. 35-36).
Resende e Ramalho (2005) compreendem as práticas discursivas como os processos de produção, distribuição e consumo do texto, socialmente relacionados a diferentes ambientes, ou seja, a diversos contextos, cuja natureza é variável mediante aos diferentes fatores sociais e tipos de discursos. Fairclough, em 1989, elaborou um modelo tridimensional de ADC que fora aprimorado posteriormente, no qual o discurso é considerado em três dimensões: texto, prática discursiva e prática social. Nesse modelo, a análise é, portanto, dividida em três etapas, como se pode observar na figura 1. Figura 1 – Modelo tridimensional de Fairclough
Fonte: Resende; Ramalho (2006, p.28)
Esse modelo de análise é pormenorizado em categorias. Na análise textual, investigam-se o vocabulário, a gramática, a coesão e a estrutura textual; já na análise das práticas discursivas, participam as atividades cognitivas de produção, distribuição e consumo do texto, em que se observam as relações dialógicas entre o texto e as relações entre ordens de discurso, ou seja, a interdiscursividade. Dito isso, Fairclough (2001) retoma o termo foucaultiano “ordem de discurso” de uma instituição ou sociedade que são respectivamente, a totalidade de práticas discursivas produzidas nesses dois ambientes para mostrar que as práticas sociais que são construídas em obediência a algumas ordens institucionais ou sociais. Segundo ele as ordens de discurso como “facetas discursivas das ordens sociais, cuja articulação e rearticulação interna têm a mesma natureza” (FAIRCLOUGH, 2001, p.99). Quanto à análise da prática social, ela se relaciona aos aspectos ideológicos e hegemônicos na instância discursiva, em que se observam os aspectos do texto que podem ser investidos ideologicamente e as orientações da prática social, procurando investigar como o texto se insere em focos de luta hegemônica, colaborando na articulação, desarticulação e rearticulação de complexos ideológicos Para Fairclough (2001) as ideologias são significações construídas nas convenções sociais podendo assim ser naturalizadas e automatizadas. Portanto, elas servem para a produção ou para a transformação das relações de dominação. No entanto, o autor prefere entendê-las como instrumentos de transformação das práticas discursivas e das dominações nelas presentes. Com relação à definição de hegemonia, esta se apresenta de forma bastante complexa, em Fairclough (2001), primeiramente ela aparece vinculado à liderança e dominação, depois como forma de poder, construção de aliança e foco de luta, o que ele chama de luta hegemônica (articulação e desarticulação dos elementos sociais). O foco principal destacado por Fairclough é a mudança discursiva em relação à mudança cultural e social. Por isso, reconhecer as maneiras como a hegemonia é instaurada nas práticas discursivas pode ser um caminho para a transformação, posto que possibilita uma desarticulação
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e rearticulação desses elementos envolvidos nas práticas socais, transformando ou reestruturando as relações de dominação que se dão através das relações hegemônicas, e que estão presentes numa determinada comunidade discursiva. 3. Procedimentos metodológicos Neste trabalho, faremos uma análise discursiva na perspectiva da Teoria Social do Discurso proposta por Faircloug (2001), uma vez que a mesma propõe um olhar diferenciado, analisando o discurso sob uma ótica tridimensional: o texto, a prática discursiva e a prática social, enfocando suas respectivas categorias analíticas. Com relação aos textos, serão analisadas a estruturação deles nos livros didáticos analisados, o vocabulário, a organização dos elementos gramaticais e a coesão e coerência entre as unidades e capítulos com relação à variação linguística. No que se refere à prática discursiva verificaremos questões relacionadas com a produção, distribuição, consumo, ou seja, com o contexto em que os discursos são produzidos. Por fim, no que diz respeito à prática social serão avaliados as concepções ideológicas e hegemônicas presentes nos discursos dos LDPs. O corpus deste trabalho é composto por livros didáticos de língua portuguesa: um do 6º ano (que corresponde a 5ª série do Ensino Fundamental) e outro de 5ª série, pertencentes a uma mesma ordem de discurso, isto é, livros produzidos numa mesma comunidade discursiva, no caso a editora Moderna, como podemos visualizar a figura 2. A escolha por livros adotados pela 5ª e 6ª série se justifica porque segundo os PCNs (1998) de Língua Portuguesa é nessas séries que são trabalhadas as primeiras noções de variação linguística. Portanto, momento ímpar na formação de estudantes conscientes sobre a heterogeneidade linguística da sua língua materna. Figura 2 – Capas dos livros didáticos analisados
Fonte: LDP1 Editora Moderna (2002), LDP2 - Editora Moderna (2007)
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Em resumo, todos esses procedimentos metodológicos de análise serão organizados em dois momentos: uma análise textual, em que faremos uma breve descrição, dos textos levando em consideração a estrutura organizacional e coesão com relação à abordagem da variação linguística e uma análise interpretativa das ordens do discurso, isto é, da produção, distribuição e o consumo dos livros didáticos no contexto educacional brasileiro, bem como investigaremos as concepções ideológicas e hegemônicas das práticas discursivas produzidas socialmente. 4. Análise discursiva em livros didáticos de Língua Portuguesa O Livro didático de Língua Portuguesa constitui-se como um meio de comunicação veiculado ao meio social. Dessa forma, é importante que analisemos não apenas como o livro didático de Português trabalha com a variação linguística, mas, sobretudo como as relações ideológicas e hegemônicas que se encontram naturalizadas em seus discursos. 4.1. Análise do LDP1 O livro didático de Português 1 (LDP1) tem como título - Português: leitura, produção e gramática adotado na 6ª série do Ensino Fundamental de autoria de Leila Lauar Sarmento, cuja 1ª edição é do ano de 2002. A primeira preocupação foi analisar a estrutura organizacional dos textos do LDP1, isto é, a composição do livro em unidades e capítulos que abordassem a questão da variação linguística. Nesse percurso, observou-se que o mesmo destina praticamente todos os seus capítulos, apenas à caracterização e ao reconhecimento dos elementos gramaticais em frases, oração e nos textos. Somente no último capítulo, mas precisamente na antepenúltima página que o LDP1 trata da variação linguística (ver figura 3). Figura 3 – Definição da variação linguística
Fonte: LDP1 (2000, p.226)
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No entanto, ao observar a figura acima, verifica-se que o LDP1 apenas diferencia o uso da linguagem nas modalidades oral e escrita. Esse fato nos chamou atenção, posto que o livro apenas menciona as variações linguística, mas não as define, muito menos as caracteriza. Dessa forma, podese afirmar que ele não trabalha com as variedades linguísticas geográficas, históricas, sócio-culturais e estilísticas. Ele simplesmente apresenta a linguagem oral de forma diferenciada da escrita. Em seguida, o LDP1 correlaciona as diferenças existentes entre a linguagem informal (coloquial) e linguagem formal (culta) com a questão da adequação às situações mais ou menos formais, fazendo uma associação às mudanças linguística diante de um contexto formal ou informal. Ele mostra que em conversa com autoridade ou numa entrevista, por exemplo, usa-se a linguagem formal (ver figura 4), enquanto num diálogo com uma criança emprega-se a linguagem informal. Figura 4 – Diferenças entre a linguagem formal e informal
Fonte: LDP1(2000, p.227)
No que se refere ao vocabulário, isto é, a termologia utilizada no LDP1 pode-se afirmar que existe uma confusão com relação ao emprego de alguns termos na busca de definição de variação linguística. Além disso, as informações acima apresentadas na figura 4 mostram que na concepção do livro, as variações se resumem às modalidades orais e escritas, assim como ao contexto formal e informal. Outro ponto a destacar diz respeito à coerência e coesão entre os textos das unidades e capítulo, pois o LDP1 praticamente não menciona a questão da variação linguística, e quando o faz apenas a coloca no último capítulo, depois de abordar em todos os capítulos das unidades anteriores, os elementos da gramática normativa. Portanto, não existe uma coerência, muito menos coesão, à medida que o livro analisado defende, em quase todo o livro, o uso de uma única variedade linguística, no caso àquela padronizada (considerada culta) por nossa sociedade e, somente no final, diz superficialmente que a língua portuguesa apresenta outras variedades de uso da língua. Depois de fazermos uma descrição da organização estrutural dos textos, passemos agora para a análise interpretativa, através da qual pudemos fazer uma contextualização dos LDP1 com relação à produção, circulação e consumo pelas editoras brasileiras, assim como a identificação das concepções ideológicas e hegemônicas presentes nas práticas discursivas produzidas socialmente. Dito isso, o LDP1 parece retratar bem a tradição editorial brasileira no que diz respeito à elaboração das propostas didáticas de ensino de língua portuguesa. Ele insiste em manter um modelo idealizado homogêneo de língua extremamente conservador (BAGNO, 2007). Sendo assim, o livro analisado naturaliza algumas ordens discursivas presentes na sociedade brasileira com relação ao aspecto linguístico, de quê “existe uma língua culta”, um modelo padrão a ser usado por todos. Contudo, isso fica apenas no discurso porque na realidade os falantes do português usam as diferentes modalidades, variedades e dialetos, validando a heterogeneidade linguística. O LDP1 é produzido por uma das maiores editoras de circulação nacional, mas pelo menos no ano de 2002 (edição analisada), observou-se que ele não se preocupou em conscientizar e, portanto promover uma transformação nas ordens discursivas vigentes com relação às variedades de uso da
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língua portuguesa. Pelo contrário, ele enfatizou demais, através de inúmeros exercícios, os elementos da gramática normativa (da variedade culta). Segundo Marcushi (2005, p.22) o livro didático de português apresenta “uma dedicação tão intensa aos exercícios, à reprodução de informações”. Por outro lado, é preciso destacar que o LDP1 em seu discurso reconhece a questão da adequação linguística, quando na figura 4 afirmou que a linguagem formal não é melhor do que a linguagem informal ou vice-versa, ambas são válidas, desde que haja uma adequação da mesma à situação de comunicação, isto é, ao contexto comunicativo. O livro analisado, em seus discursos, busca naturalizar uma língua única, um modelo idealizado. No entanto, é um mito achar que existe uma unidade linguística no Brasil, esse mito “é essencial para sustentar outro mito igualmente poderoso: o mito da unidade nacional” (BAGNO, 2005, p.56). Diante de tais constatações, observa-se que o livro analisado contribui para a manutenção e naturalização das relações ideológicas e hegemônicas típicas da sociedade brasileira no aspecto linguístico. Portanto, não oferece subsídios suficientes aos professores e alunos para uma conscientização dos mesmos, sobre a existência da variação linguística da valorização dos diferentes usos da língua, principalmente daqueles usados pelos alunos. 4.2. Análise do LD2 O segundo livro de Português analisado (LDP2) cujo título é Português (6° ano que hoje corresponde a 5ª série), uma obra coletiva concebida, desenvolvida e produzida do Projeto Araribá, 2ª edição do ano de 2007, Observando a organização estrutural dos textos no livro, em unidades e capítulos, verifica-se que o LDP2, diferentemente do LDP1, aborda a variação linguística no primeiro capítulo, como se pode ver na figura 5. Ele inicia o estudo da língua explicando que irá trabalhar com variedade padrão, regional e linguagem formal e informal. Figura 5 – Estudo da língua e suas variedades linguísticas
Fonte: LDP2 (2007, p.32)
Com base na figura acima, percebemos que há uma restrição no LDP2, pois em seus discursos, ele reconhece a existência de apenas três variedades linguísticas: a variedade padrão, as variedades regionais e as gírias (que não aparece na figura 6, mas foi apresentada depois). Desse modo, a questão da variação se apresenta de forma parcial, pois alguns elementos são ignorados, como por exemplo, a variação histórica, pois a língua também muda ao longo dos tempos, alguns vocábulos surgem outros desaparecem. Em seguida, o LDP2 se preocupa em conceituar as variedades linguísticas (ver figura 6), definindo-as como as diferentes formas de manifestação vocabular na pronúncia, isto é, na fala. No entanto, ele não explica que ela pode ocorrer na escrita, apesar de ocorrer com menor frequência.
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Figura 6 – Definição de variedades linguísticas
Fonte: LDP2 (2007, p.33)
A seguir, o LDP2 se preocupa, não apenas em mencionar a existência das variedades linguística do Português, mas de conceituá-las. Na figura 8 ele caracteriza a variedade de uso linguístico padronizada, explicando que a mesma é a trabalhada nas escolas e em outras situações formais, como: escritura de trabalhos escolares, artigos de jornais, revista, palestras, leis e etc. O LDP2 após caracterizar a variedade padrão, traz o seguinte lembrete ao professor de português: a variedade padrão é apenas uma entre as muitas variedades linguísticas, e que seu emprego das variedades está relacionado ao contexto comunicativo. Figura 8 – Caracterização da variedade padrão
Fonte LDP2 (2007, p.33)
Com relação às variações regionais, o livro analisado explica que são os diferentes falares das regiões brasileiras, fazendo referência à fala usada pelo personagem que faz uso do dialeto do interior do estado de Goiás, usando expressões como: ôxi, oropá, bichin (ver figura 9). Figura 9 – identificação da variedade linguística regional
Fonte LDP2 (2007, p.33)
Em seguida, o LDP2 se preocupa com a diferenciação e o reconhecimento da linguagem formal da linguagem informal (ver figura 6). Ele mostra que o uso dessas duas formas está associado aos contextos mais formais (palestras, seminários, entrevistas de emprego) ou menos formais (conversas com pessoas que temos certa intimidade).
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Figura 10 – Reconhecimento da linguagem formal e informal
Fonte LDP2 (2007, p.34)
Ao finalizar o capítulo que trata a variação linguística, o LDP2 ainda conceitua as gírias, como sendo expressões típicas de determinados grupos sociais. Além disso, apresenta um breve resumo dos conceitos trabalhados (ver figura 11) para depois trabalhar exercícios afim de o leitor exercitar e identificar as diferentes variedades estudadas. Figura 11 – Reconhecimento das gírias e resumo dos conceitos estudados
Fonte LDP2 (2007, p.35)
No que se refere ao uso do vocabulário, verificou-se que o LDP2, assim como o LDP1, usa uma termologia equivocada, posto que reconhece apenas a variedade padrão, a variedade regional, esquecendo-se da existência de variações históricas (mudanças que ocorrem na língua no decorrer dos tempos) e sociais (mudanças linguísticas ocorridas devido à fatores sociais, como diferenças de classes sociais, faixa etária, escolarização, sexo etc.). Contudo, a maioria dos LDPs empregam os termos relacionados à variação de forma equivocadas ou de maneira incompleta. Desse modo, conforme Bagno (2007) falta-os uma base teórica linguística consistente. Além da parte descritiva, a análise interpretativa das ordens do discurso que norteiam a produção, circulação, distribuição e o consumo do livro didático elaborado pela editora em análise, fizeram-nos perceber a existência de alguns equívocos cristalizados no que se refere aos fenômenos da variação, mas precisamente com relação à naturalização ideológica da existência de uma língua homogênea. Na verdade, segundo Bourdieu (1982, apud FAIRCLOUGH, 2001, p.94) “a ordem sociolinguística de uma determinada sociedade pode ser estruturada, pelo menos parcialmente como um mercado onde os textos são produzidos, distribuídos e consumidos como mercadorias”. Portanto, os discursos do LDP2 são influenciados pelas ordens discursivas de da sociedade da qual faz parte, talvez isso explique alguns preconceitos que ainda existam diante do uso de algumas variedades linguísticas, principalmente daquelas usadas pelas pessoas que moram no campo, ou que são menos
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favorecidas economicamente, que na maioria das vezes não tiveram acesso à educação de qualidade, ou quando muito, nem chegam a frequentar as escolas. Outra questão diz respeito ao não reconhecimento das variações sociais, que segundo Fairclough (2001), dentre as variedades linguísticas, elas representam como ninguém, os diferentes aspectos do contexto social e linguístico, já que elas terminam por reproduzir as relações ideológicas de poder (que se matem de forma hegemônica). Diante disso, observou-se nos discursos do LDP2 que ele de certo modo, ainda mantém o discurso ideológico de “uma unidade linguística”, uma vez que aborda a questão da variação linguística somente no primeiro capítulo, não havendo uma correlação entre os textos e os conteúdos dos demais capítulos. No entanto, verificamos que o LDP2, já consegue transformar algumas ordens discursivas que mantiveram sua hegemonia na sociedade brasileira por muito tempo, à medida que ele não apenas reconhece, mas, sobretudo caracteriza, exemplifica algumas variedades de uso da língua portuguesa. Enfim, o livro analisado não ignora a heterogeneidade linguística. 5. Considerações finais Entender o discurso como prática social implica compreendê-lo no contexto histórico e social. Nessa perspectiva, o discurso é visto como um momento dialético da prática social, em que há uma nova articulação dos elementos sociais de forma reestruturar, transformar ou destituir os elementos ideológicos e hegemônicos vigentes em uma determinada comunidade discursiva. Nesse sentido, os LDPs analisados representam uma pequena amostra da qualidade dos livros didáticos usados pelos professores de português, em que na maioria de seus textos faz uso do discurso de uma língua única. Mesmo apesar de reconhecerem a existência de variações na língua, eles são orientados por propostas didáticas que de alguma maneira, ainda naturalizam uma homogeneidade linguística, uma vez que não há uma correlação entre o conteúdo apresentado no capítulo destinado às variações linguísticas com os demais assuntos dos livros, o conteúdo da variação aparece nos livros de forma Isolda, no LDP1 no último capítulo e no LDP2 no primeiro. Nesse contexto, a produção, distribuição e consumo dos livros didáticos reproduzem as contradições da própria sociedade brasileira numa tentativa de defender uma utópica unidade linguística. Desse modo, os LDPs analisados apresentam-se como uma instância de produção discursiva da própria sociedade, na qual estão inseridos. Dito isso, os LDPs analisados colocam em evidência as relações discursivas da nossa sociedade e apesar de não serem na mesma proporção, acabam por naturalizar as concepções hegemônicas e ideológicas defendidas pelo grupo social mais favorecido economicamente. Todavia, é preciso reconhecer que o LDP2, talvez por ser mais atual do que o LDP1, se apresenta como um instrumento que promove algumas mudanças nas ordens discursivas vigentes, visto que não se limita em reconhecer a existência da diversidade linguística, como faz o LDP1, o LDP2 preocupa-se em caracterizar e exemplificar algumas variedades linguísticas. Para finalizar, entendemos que os discursos, fruto das práticas discursivas podem reestruturar, transformar e de destituir os elementos ideológicos e hegemônicos vigentes em uma determinada prática social. Nesse sentido, acreditamos que o livro didático de português, enquanto sujeito social pode servir não somente, para mudar a realidade linguística atual, mas principalmente propiciar profundas transformações com relação às construções discursivas hegemônicas e ideológicas, que infelizmente ainda norteiam o ensino de língua, materna com relação à superioridade de uma determinada variedade linguística sobre as demais variedades de uso do português. Referências BAGNO, Marcos. Nada na língua é por acaso: por uma pedagogia da variação linguística. São Paulo: Parábola, 2007. ______. Dramática da língua portuguesa: tradição gramatical, mídia e exclusão social. 2 ed. São Paulo, 2005.
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Tema geral: Línguas e Literaturas: Diversidade e Adversidades na América Latina BRASIL, Ministério da Educação e do Desporto. Secretaria de Educação. Parâmetros Curriculares Nacionais: terceiro e quarto ciclos do Ensino Fundamental (5ª a 8ª séries) de Língua Portuguesa. Brasília: MEC/SEF, 1998. FAIRCLOUGH, Norman. Discurso e Mudança social. Tradução Izabel Magalhães. Brasília: Editora da UNB, 2001. MAGALHÃES, Izabel. Introdução: a análise de discurso crítica. Revista DELTA vol.21. São Paulo, 2005. Disponível em: http://www.scielo.br/scielo.php?pid=S0102-44502005000300002&script=sci_arttext. Acesso em: 10/01/09. MARCUSHI, L. A. Oralidade e ensino de língua: uma questão pouco falada. In: DIONÍSIO, A.P.; BEZERRA, A. O livro didático de Português: múltiplos olhares. 3 ed. Rio de Janeiro: Lucerna, 2005. p.21-34. RESENDE, Viviane de Melo; RAMALHO, Viviane. Análise de discurso crítica. São Paulo: Contexto, 2006. ______. Análise de Discurso Crítica, do modelo tridimensional à articulação entre práticas: implicações teóricometodológicas. Revista Linguagem em (Dis)curso, volume 5, número 1, 2005
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SOBRE O II CIELLA
O Congresso Internacional de Estudos Linguísticos e Literários na Amazônia (CIELLA) é um evento bianual que resultou do bom desenvolvimento e projeção de um tradicional encontro intitulado Jornada de Estudos Linguísticos e Literários (JELL), promovido pelo Programa de Pós-Graduação em Letras da Universidade Federal do Pará (UFPA) durante 10 anos consecutivos. O II CIELLA foi realizado na UFPA, em Belém, nos dias 06, 07 e 08 de abril de 2009 e teve como tema principal “Línguas e Literaturas: diversidade e adversidades na América latina”. O objetivo do encontro é integrar os pesquisadores da área de estudos linguísticos, literários e culturais implicados na discussão de problemas característicos do contexto latino-americano e na busca de soluções diferenciadas, oportunizando o diálogo com os demais atores sociais envolvidos, de modo a favorecer a elaboração de propostas político-educacionais diversificadas.
www.ufpa.br/ciella
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PÚBLICO ALVO Como evento acadêmico, o II CIELLA volta-se para professores universitários, pesquisadores, estudantes de Graduação e Pós-Graduação de instituições locais, nacionais e internacionais. Assinalamos que o evento caracteriza-se também por estabelecer um diálogo com profissionais e gestores interessados nas repercussões econômicas, políticas e socioculturais dessas pesquisas. Além disso, abre-se, de forma pioneira, na região norte, para estudantes de Ensino Médio, participantes do Programa Institucional de Bolsas de Iniciação Científica Júnior da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado do Pará. Essa dinâmica, congregando vários atores sociais, permite estabelecer intercâmbio efetivo entre a academia e as comunidades envolvidas, garantindo maior circulação dos resultados de pesquisas. CARACTERÍSTICAS DO EVENTO Por se tratar de um evento com fortes características interdisciplinares, o II CIELLA explora tanto o universo linguístico quanto o literário e o cultural. Nesta segunda edição, Língua, Literatura e Cultura serão abordadas sob vários aspectos. Da perspectiva da Linguística, as discussões serão centradas especialmente nas seguintes questões (ver detalhamento nos subtemas): 1. Efeitos de situações de plurilinguismo e contato, tanto de um ponto de vista social quanto cultural e linguístico. 2. Aspectos tipológicos, principalmente das línguas indígenas sul-americanas, bem como a sua contribuição para o debate sobre universais linguísticos. 3. Avanços e contribuições que a tecnologia proporciona na compreensão, estudo e ensino de línguas. 4. Usos concretos da língua na relação com as estruturas e demandas sociais. 5. Aspectos relativos à textualização da interação humana e às relações entre oralidade e escrita. 6. Relação entre língua e sociedade, considerando-se seus vários aspectos: sociolinguístico, aquisição, ensino/aprendizagem, etc. No campo literário, os temas indicam um diálogo com os domínios das ciências sociais, da história e de outras ciências, em especial aquelas voltadas para os estudos culturais e as manifestações artísticas nas diferentes sociedades: 7. Relações entre literatura, sociologia e antropologia, tendo em vista as contribuições decorrentes da interdisciplinaridade. 8. Literatura e as tradições orais. 9. Unidade e a diversidade literária, especialmente na América Latina. 10. Regimes de produção e circulação do livro, bem como práticas de leitura no contexto latino-americano. 11. Reflexões sobre epistemologia, história e crítica da produção literária. 12. Relação entre literatura e outras artes. TEMA GERAL DO II CIELLA Línguas e Literaturas: Diversidade e Adversidades na América Latina.
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SUBTEMAS Para o II CIELLA, foram definidos 6 subtemas voltados para a área de Estudos literários e culturais e 6 outros dedicados à área de Estudos Linguísticos. As propostas de intervenção dos participantes às diferentes modalidades da Programação se inscreveram no âmbito de um desses subtemas: I. SUBTEMAS DA ÁREA DE ESTUDOS LITERÁRIOS E CULTURAIS 1. História do livro e das práticas de leitura O texto, manuscrito ou impresso, lido silenciosamente ou em voz alta, encarna-se em suportes materiais e submete-se a regimes de produção e circulação que possuem uma dimensão histórica e social. As práticas de leitura, por sua vez, encarnam-se em gestos, hábitos e lugares, também marcados pela historicidade e por partilhas de natureza social. Assim sendo, o presente subtema pretende reunir sessões temáticas que se dediquem: i) ao estudo dos regimes de produção e circulação das obras, nos quais estão implicados autores, livreiros, impressores, etc.; ii) às relações entre os suportes materiais do texto literário e sua recepção pelas diferentes comunidades de leitores; iii) aos lugares sociais em que o livro é dado a ler, como bibliotecas e gabinetes de leitura; iv) às práticas de leitura propriamente ditas; v) aos suportes materiais dos textos, sejam eles manuscritos, impressos, ou dispostos na tela de um computador. 2. Literatura, diferenças culturais e relações de poder O campo dos estudos culturais envolve toda discussão acerca das relações entre cultura e sociedade, a partir da luta pelo poder existente entre os diversos grupos sociais, ou mesmo entre sociedades, notadamente as tensões presentes nas formas e nas instituições e práticas culturais. A par desse princípio dos estudos culturais, serão agrupadas nesse subtema sessões temáticas que envolvam a discussão sobre hegemonia e identidade nacional, culturas populares e indústria cultural, produção de hierarquias sociais e políticas a partir das relações culturais, comunicação e práticas sociais, memória e narrativas nacionais, e afins. A abordagem pode considerar: i) a interdisciplinaridade, evidente no tripé comunicação, sociologia e antropologia; ii) a construção do nacional; iii) hegemonia e diversidade cultural; iv) o cânone literário e o popular. 3. Epistemologia, história e crítica literária A história do objeto literário se funda sobre o princípio do passado como portador de valor. Mas esse passado sempre é visto pelas lentes do presente que, por meio do exercício da escritura, organiza, fabrica e valora a produção literária, a partir de determinados pressupostos teórico-epistemológicos. Tendo isto em vista, o presente subtema tem por objetivo reunir sessões temáticas sobre poéticas escritas e orais, práticas historiográficas, a recepção crítica de obras, sempre plurais e móveis, bem como sobre as teorias da literatura que, associadas ou não ao discurso histórico, constituem e fundam as categorias de análise e percepção a partir das quais a produção literária é discutida. A abordagem pode considerar: i) a construção de poéticas orais e/ou escritas; ii) o papel do intelectual no conhecimento literário; iii) recepção crítica de obras literárias; iv) historiografia e teorias da literatura. 4. Literatura e tradição orais As poéticas orais permaneceram, por longo tempo, alijadas dos estudos literários. Quando muito, foram objeto de estudos das ciências sociais, notadamente a antropologia. A partir dos anos de 1970, no entanto, alguns estudiosos, como Paul Zumthor, dedicaram pesquisas à oralidade, afirmando a natureza artística e etnográfica do texto oral. Hodiernamente, o texto poético oral não se restringe ao seu caráter verbal, atentando-se, também, para seu caráter translinguístico, enquanto narração (gestos, pausas, entonações, movimentos corporais), e para seu caráter de tradição, como condutor
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de imaginário intercultural e da memória coletiva, mesmo a despeito da realização intersubjetiva desta. Por outro lado, não se deve perder de vista que a relação oral/escrito antes de ser excludente é complementar, fato este que nos remete à gênese ocidental da Literatura. Essas são as reflexões que serão abordadas nas sessões temáticas organizadas no âmbito do presente subtema. A abordagem pode considerar: i) marcas translinguísticas em poéticas orais; ii) matrizes narrativas orais em obras literárias; iii) relação oralidade e escrita; iv) tradição etnográfica e história oral. 5. Relações literárias latino americanas: unidade e diversidade A história colonial na América Latina concorreu para a caracterização da produção cultural e literária do continente sob dois enfoques: por um lado a afirmação de modelos eurocêntricos, próxima à emulação; de outro lado, a negação desses modelos, na esteira dos nacionalismos românticos. Sem polarizar as escolhas, alguns autores latino-americanos, como Angel Rama, Edouard Glissant, Garcia Canclíni e Silviano Santiago optaram por uma mediação entre o local e o supostamente universal, ao elaborarem os conceitos de transculturação narrativa, de poética da diversidade, de culturas híbridas, de supra-regionalismo e de entre-lugar, como saída para compreender a produção literária latino-americana como uma vertente inclusiva. Os trabalhos apresentados nas sessões temáticas organizadas em torno deste subtema versaram sobre a tensão entre esses conceitos e modelos, assim como indicar leituras alternativas que apontem para a mediação literária. A abordagem pode considerar: i) poéticas oriundas de movimentos migratórios; ii) relação entre local e universal na construção do entre-lugar; iii) diálogos literários entre produção literária brasileira e produção literária da Hispano-América; iv) transculturalidades na produção literária. 6. Literatura e outras artes Na perspectiva de Jakobson, a poesia e, por extensão, a literatura é o uso artístico da linguagem. Quais são as relações dessa arte linguageira com as outras artes, quais são as representações recíprocas, como se operam as transposições da literatura para as outras artes e vice versa, quais são os limites desses processos de trans-semiose: essas grandes questões e suas múltiplas ramificações constituem o objeto das sessões temáticas que este subtema agrupa. II. SUBTEMAS DA ÁREA DE ESTUDOS LINGUÍSTICOS 7. Plurilinguismo e línguas em contato O plurilinguismo impõe-se atualmente como um tema fortemente mobilizador. Para muitos, constitui uma proposta incontornável para preservar a riqueza e a diversidade linguístico-culturais em um mundo globalizado; para outros, não passa de uma utopia anti-uniformização em prol de grupos minoritários fadados ao desaparecimento ou ainda de um vetor de interesses político-econômicos diversos. Em uma América Latina que representou a si mesma, nos últimos séculos, como exclusivamente monolíngue, (re)descobrem-se as múltiplas situações de contato entre línguas como desafio para as políticas públicas, principalmente as educacionais, e para as tentativas de manutenção e revitalização de línguas ameaçadas. Tratando tanto das situações de contato entre línguas (nos casos de comunidades tradicionais indígenas, fronteiriças, de migrantes, de falantes de línguas de sinais etc.) quanto das situações de plurilinguismo no sistema escolar, as sessões temáticas aqui reunidas permitiram abordar essas questões na perspectiva: (i) da descrição linguística, (ii) das políticas educacionais, (iii) das experiências de ensino/aprendizagem e (iv) das experiências de manutenção e revitalização de línguas. 8. Descrição linguística, tipologia e universais A comparação das gramáticas das línguas revela padrões sistemáticos de variação entre estas. Pesquisa em tipologia e universais evidencia esses padrões e possibilita a formulação de universais
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sobre línguas e, com isso, a expansão do debate em torno de explicações para universais linguísticos (ex. CROFT, 2003). O objetivo das sessões temáticas organizadas em torno deste subtema é abordar diferentes aspectos da descrição de línguas naturais, podendo referir-se a questões de (i) fonologia, (ii) morfologia e sintaxe e (iii) semântica, em uma perspectiva tipológico-universal ou não. 9. Tecnologia(s) e estudos de línguas Aplicações tecnológicas constituem atualmente um forte recurso para o estudo de línguas tanto na área da descrição quanto na de ensino/aprendizagem. Com este subtema, pesquisadores são convidados para uma discussão sobre as interações entre tecnologia, linguística e ensino/aprendizagem de línguas, focalizando em questões como: (i) preparação de corpora para o estudo de línguas; (ii) bases de dados para armazenamento e recuperação de dados linguísticos; (iii) instrumentos e métodos experimentais para análises linguísticas e tratamentos estatísticos; (iv) tecnologias da informação e da comunicação no ensino de línguas maternas e estrangeiras. 10. Gêneros discursivos, oralidade e escrita Pensar a linguagem enquanto forma de manifestação do que inexoravelmente caracteriza o humano e, portanto, singulariza-o como homo sapiens, é pensar a própria natureza desse homem que se (re)vela por meio de suas práticas e se constitui enquanto sujeito em sua necessária relação com o mundo e com o outro. Essa entidade psicossocial faz-se na e pela linguagem, num jogo em que o texto se configura como o próprio lugar da interação e os interlocutores, como participantes ativos na construção das representações que fundam a comunicação. Em assim sendo, investigar as formas sociocomunicativas constitutivas de nossas atividades diárias parece ser de importância vital à explicitação e compreensão do modus faciendi que nos permite a socialização e o trânsito pelas variadas situações sociais do dia-a-dia. Importa, então, discutir os usos concretos da língua em sua necessária relação com as estruturas e demandas sociais, bem como aspectos relativos à textualização da interação humana. Incluem-se aqui sessões temáticas que versem sobre: (i) gêneros do discurso; (ii) interação verbal no mundo off-line e no virtual; (iii) relação entre oralidade e escrita; (iv) produção e compreensão do texto oral, do texto escrito e do texto eletrônico. 11. Língua, Sociedade e Identidade Considerando-se a dinâmica das relações sociais nos processos criativos de uso das línguas e nas práticas de produção textuais, o presente subtema abre espaço para sessões temáticas que versem sobre as inter-relações entre sociedade e linguagem, tanto do ponto de vista das análises discursivas quanto dos estudos sociolinguísticos, enfocando questões como: (i) variação e usos linguísticos; (ii) mudança linguística; (iii) estudo do léxico; (iv) práticas identitárias; (v) práticas discursivas. 12. Línguas, linguagem e apropriação linguageira O presente subtema abrange os diversos fenômenos envolvidos na apropriação de uma ou de várias línguas, oralmente ou por escrito, quaisquer que sejam o status sociopolítico dessa(s) língua(s), os processos de aquisição/aprendizagem considerados e o contexto didático-metodológico em que ocorrem. Incluem-se, portanto, aqui sessões temáticas voltadas para: (i) a aquisição da linguagem; (ii) o desenvolvimento das competências interacionais; (iii) as práticas de letramento na escola e fora dela; (iv) a seleção e organização dos objetos didáticos; (v) a elaboração e exploração de materiais didáticos; (vi) as modalidades de ensino e de aprendizagem de línguas; (vii) a avaliação e a certificação das competências linguageiras.
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MODALIDADES DE PARTICIPAÇÃO As atividades do evento foram organizadas para permitir que a discussão sobre os subtemas escolhidos seja bastante diversificada, podendo acontecer em forma de debates entre profissionais da área ou até como relatos de experiência. As modalidades são as seguintes: 1. CONFERÊNCIAS (SOMENTE CONVIDADOS) Seis conferencistas convidados abordaram temas como: Teoria e Análise Linguística; Tipologia e Diversidade Linguística; Linguística Histórica e Comparativa; Plurilinguismo e Pluriletramentos; Estudos Culturais e Literatura; Imaginário Amazônico e Construção da Identidade. 2. DEBATES (SOMENTE CONVIDADOS) Quatro debates reuniram pesquisadores, profissionais e/ou responsáveis políticos convidados, de instituições nacionais e internacionais, em torno de questões da atualidade, como: (1) Línguas/culturas ameaçadas de extinção; (2) A renovação do ensino da língua materna no Brasil: avanços, obstáculos e perspectivas; (3) Narrativa latino-americana contemporânea; (4) Literatura e identidade nacional. Foi reservado um tempo para os ouvintes intervirem. 3. MESAS-REDONDAS (SOMENTE CONVIDADOS) Oito mesas redondas, animadas por um mediador, contaram, cada uma, com a participação de 4 pesquisadores, convidados com base nos resumos recebidos, apresentando trabalhos com tema afim e enfoques diferenciados. Foi reservado um tempo para os ouvintes intervirem. 4. SESSÕES DE COMUNICAÇÃO (ABERTO PARA INSCRIÇÕES) Foram definidos 12 subtemas em torno dos quais foram organizadas as diferentes sessões de comunicação. Nelas, os participantes – professores, pesquisadores e alunos de pós-graduação – inscreveram comunicações de resultados de pesquisas acadêmicas. Cada apresentação teve duração de 20 minutos e houve 10 minutos para discussão. 5. PAINÉIS (ABERTO PARA INSCRIÇÕES) As apresentações de painéis são destinadas mais especificamente a divulgar trabalhos de Iniciação Científica de alunos da graduação (Bolsas institucionais PIBIC-CNPq e voluntários) e do Ensino Médio (Programa Institucional de Bolsas de Iniciação Científica Júnior – PIBIC JÚNIOR). 6. SESSÕES DE RELATOS DE EXPERIÊNCIAS (ABERTO PARA INSCRIÇÕES) Pesquisadores, profissionais de diversas áreas e educadores do Ensino Básico puderam apresentar relatos de experiências de trabalho em torno das temáticas do Congresso. O objetivo dessas sessões é de discutir problemas no andamento de pesquisas ou no encaminhamento de propostas de intervenção e de partilhar soluções experimentadas ou sucessos obtidos. Cada relator teve 10 minutos para apresentar sua experiência e houve 10 minutos para discussão. 7. LANÇAMENTO DE LIVROS (ABERTO PARA INSCRIÇÕES) Nestas sessões, seguidas de assinatura das obras, cada autor dispôs de 45 minutos para apresentar e discutir com o público sua obra.
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8. MINICURSOS Minicursos, com duração total de 4h cada, foram ministrados pelos pesquisadores convidados. Obs.: Um mesmo apresentador pôde inscrever uma comunicação, um relato de experiência e um livro para lançamento (unicamente trabalhos acadêmicos), se assim o desejasse. Obs2.: Foi autorizada a apresentação de trabalhos em co-autoria, desde que pelo menos um dos autores esteja presente no evento. Para submeter o resumo à apreciação da Comissão Científica, recomendou-se o seguinte: cada um dos autores devia preencher o formulário de cadastro em seu nome, mas apenas um submetia o resumo. Os outros autores deveriam inscrever uma observação no campo “resumo”: Trabalho apresentado com Fulano – nome completo. PUBLICAÇÃO DE TRABALHOS Os trabalhos aceitos pela Comissão Científica foram publicados nos Anais do evento, que estão disponibilizados no site do evento. Uma seleção dos melhores artigos foi destinada à publicação de um número especial da Revista Moara (Qualis B2 Nacional). Os artigos foram remetidos em arquivo anexado para o e-mail 2ciella@gmail.com, de acordo com as normas da revista expressas em “Normas para publicação” (válidas para conferências, mesas-redondas, comunicações, painéis e relatos de experiência). NORMAS PARA PUBLICAÇÃO DE TRABALHOS NOS ANAIS Para serem incluídos nos Anais do evento, os textos devem impreterivelmente respeitar as seguintes normas: 1. Redigir o texto em português, inglês, francês ou espanhol. 2. Utilizar margens de 3 cm. à esquerda, 2 cm. à direita, 3 cm. na margem superior e 2 cm. na margem inferior em formato de papel A4. 3. O texto digitado deve ter entre 4 mil e 8 mil palavras, incluindo os anexos. 4. Digitar o texto em Word for Windows (edição 6.0 ou superior), fonte Garamond, corpo 12, espaçamento simples entre linhas e parágrafos, em modo justificado. 5. Entre partes do texto e entre texto e exemplos, citações, tabelas, ilustrações etc, utilizar espaço duplo. Para fazer isso, basta redigi-los na segunda linha após o parágrafo anterior. 6. Para texto citado com mais de três linhas, adentrar o texto em 2 cm. e utilizar fonte Garamond, corpo 10. 7. Para texto citado com menos de três linhas, usar aspas no próprio corpo do texto. 8. Para notas de rodapé, usar fonte Garamond, corpo 10. 9. Utilizar paragrafação automática. 10. Apresentar o texto na seguinte sequência: título do artigo, nome(s) do(s) autor(es), resumo na língua do artigo e em alemão, francês, espanhol ou inglês, palavras-chave em português e na outra língua do resumo apresentado, texto, referências e anexos. 11. Digitar o título do artigo centralizado na primeira linha da primeira página com fonte Garamond, tamanho12, em formato negrito, todas as letras maiúsculas. 12. Digitar o(s) nome(s) do(s) autor(es) de forma completa na ordem direta, na segunda linha abaixo do título, com alinhamento à direita, seguido do nome completo da Instituição de filiação, entre parênteses. Letras maiúsculas devem ser utilizadas apenas para as iniciais e para o sobrenome principal. 13. Os resumos devem ser antecedidos pela expressão RESUMO em maiúsculas, seguida de dois pontos, na terceira linha abaixo do nome do autor e sem adentramento. O texto dos resumos segue na mesma linha e deve ficar entre 100 e 150 palavras. Digitá-lo em fonte Garamond, corpo 11. 14. As palavras-chave devem ser antecedidas pela expressão PALAVRAS-CHAVE em maiúsculas, seguida de
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Anais do II Congresso Internacional de Estudos Linguísticos e Literários na Amazônia (CIELLA) dois pontos, na segunda linha abaixo do resumo e duas linhas acima do início do texto. Utilizar entre três e cinco palavras-chave com fonte Garamond, tamanho 11, separadas por ponto e vírgula. 15. Digitar os títulos de seções com fonte Garamond, tamanho12, em negrito. O título da introdução deve ser redigido na terceira linha após as palavras-chave. Os demais títulos, duas linhas após o último parágrafo da seção anterior (pular linha). Os títulos de seções são numerados com algarismos arábicos seguidos de ponto (por exemplo, 1. Introdução, 2. Fundamentação teórica). Apenas a primeira letra de cada subtítulo deve ser grafada com caracteres maiúsculos, exceto nomes próprios. 16. Digitar a primeira linha de cada parágrafo de texto com adentramento. 17. As referências no texto devem ser indexadas pelo sistema autor data. Para citar, resumir ou parafrasear um trecho da página 36 de um texto de 2005 de Pedro da Silva, a indexação completa deve ser (SILVA, 2005, p. 36). Quando o sobrenome vier fora dos parênteses deve-se utilizar apenas a primeira letra em maiúscula. 18. Citações no meio do texto sempre devem vir entre aspas e nunca em itálico. Use itálico para indicar ênfase ou grafar termos estrangeiros. 19. Exemplos de corpora analisados devem vir no padrão de citação. 20. Caso seja necessária transcrição fonética, o autor deve enviar a fonte utilizada juntamente com seu artigo, a fim de que a mesma possa ser instalada para editoração do artigo. 21. Notas devem ser digitadas em rodapé em sequência numérica. Se houver nota no título, marcar com asterisco (*). Não se deve usar nota para citar referência 22. Tabelas, quadros, ilustrações (desenhos, gráficos etc.) devem ser entregues prontos para a editoração eletrônica. Não se admitem ilustrações xerocopiadas. Elas deverão ser devidamente escaneadas e inseridas no texto. Os títulos de figuras devem ser digitados com fonte Garamond, tamanho 12, em formato normal, centralizado. Tabelas, quadros, ilustrações devem ser identificados por legendas. 23. Os anexos devem ser entregues prontos para a editoração eletrônica. Para anexos que se constituem de textos já publicados, o autor deve incluir referência bibliográfica completa. 24. As referências devem ser antecedidas da expressão Referências, em negrito. A primeira referência deve ser redigida na segunda linha abaixo dessa expressão. As referências devem seguir a NBR 6023 da ABNT: os autores devem ser citados em ordem alfabética, sem numeração, sem espaço entre as referências e sem adentramento; o principal sobrenome do autor em maiúsculas, seguido de vírgula e iniciais dos demais nomes do autor. Se houver outros autores devem ser separados uns dos outros por ponto e vírgula; título de livro, de revista e de anais, em itálico; título de artigo: letra normal, como a do texto; se houver mais de uma obra do mesmo autor, seu nome deve ser substituído por um traço de cinco toques; mais de uma obra do mesmo autor no mesmo ano, use uma letra (a, b, ...) após a data. Ordene referências de mesmo autor em ordem decrescente. Exemplos: FERREIRA, M. Morfossintaxe da Língua Parkatêjê. Munique: Lincom-Europa, 2005. FURTADO, M. T. A visão da Amazônia em Euclides da Cunha, Ferreira de Castro e Dalcídio Jurandir. In: XX JORNADA NACIONAL DE ESTUDOS LINGUÍSTICOS – GELNE, 2004, João Pessoa, Paraíba. Anais... João Pessoa, 2004. p.1869-1874. MAGNO E SILVA, W. Estratégias de Aprendizagem de Línguas Estrangeiras – Um Caminho em Direção à Autonomia. Intercâmbio, vol. XV. São Paulo: LAEL/PUC –SP, 2006. Disponível em: Acesso em: 5 set. 2007. PESSOA, F. C. As relações interpessoais nos domínios do contar e fazer contar as narrativas populares da Amazônia paraense. In: MARINHO, J. H. C.; PIRES, M. S. O.; VILLELA, A. M. N. (orgs.). Análise do discurso: ensaios sobre a complexidade discursiva. Belo Horizonte: CEFET-MG, 2007, p. 139-157. SALES, G. M. A. Um público leitor em formação. Moara, Belém, v. 23, p. 23-42, 2006.
INSTITUIÇÃO ORGANIZADORA UFPA – Instituto de Letras e Comunicação (ILC) – Programa de Pós-Graduação em Letras Cidade Universitária Professor José da Silveira Netto Rua Augusto Corrêa, 01 – Guamá – 66.075-900, Belém (PA) Fone/Fax: (91) 3201.7499 E-mail: mletras@ufpa.br Site: http://www.ufpa.br/mletras
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Site oficial do II CIELLA
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