Anais do II Congresso Internacional de Estudos Linguísticos e Literários na Amazônia - Volume 2

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Edição eletrônica

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP) Biblioteca do ILC/UFPA-Belém-PA Congresso Internacional de Estudos Linguísticos e Literários na Amazônia (2.: 2009: Belém, PA) Anais [do] II Congresso Internacional de Estudos Linguísticos e Literários na Amazônia [recurso eletrônico] / Congresso Internacional de Estudos Linguísticos e Literários na Amazônia ; organização, Myriam Crestian Chaves da Cunha, Jorge Domingues Lopes. –– Belém: Programa de Pós-Graduação em Letras da UFPA; Curitiba: CRV, 2010. 3v. : il. Conteúdo: v. 1, 2 e 3 – Línguas e Literaturas – Diversidade e Adversidades na América Latina. Modo de acesso: Word Wide Web: <http://www.ufpa.br/ciella/> Congresso realizado na Cidade Universitária Professor José da Silveira Netto da Universidade Federal do Pará, no período de 6 a 8 de abril de 2009. ISBN 978-85-8042-640-3 1. Lingüística – Discursos, ensaios e conferências. 2. Literatura – Discursos, ensaios e conferências. 3. Estudos Culturais – Discursos, ensaios e conferências. I. Cunha, Myriam Crestian Chaves da (Org.). II. Lopes, Jorge Domingues, (Org.). III. Título. I. Título. CDD-20.ed. 410



UNIVERSIDADE FEDERAL DO PARÁ Carlos Edilson de Almeida Maneschy Reitor Horácio Schneider Vice-Reitor Marlene Rodrigues Medeiros Freitas Pró-Reitora de Ensino de Graduação Emmanuel Zagury Tourinho Pró-Reitor de Pesquisa e Pós-Graduação Fernando Arthur de Freitas Neves Pró-Reitor de Extensão Edson Ortiz de Matos Pró-Reitor de Administração João Cauby de Almeida Júnior Pró-Reitor de Desenvolvimento e Gestão de Pessoal Erick Nelo Pedreira Pró-Reitor de Planejamento Flávio Sidrim Nassar Pró-Reitor de Relações Internacionais

INSTITUTO DE LETRAS E COMUNICAÇÃO Luiz Roberto Vieira de Jesus Diretor Geral Rosa Maria de Sousa Brasil Diretora Adjunta PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM LETRAS Sílvio Augusto de Oliveira Holanda Coordenador Marília de Nazaré de Oliveira Ferreira Vice-Coordenadora



COMISSÃO ORGANIZADORA DO EVENTO Dr. José Guilherme dos Santos Fernandes Presidente da comissão organizadora Docente do Programa de Pós-Graduação em Letras

Dra. Myriam Crestian Cunha Coordenadora do Programa de Pós-Graduação em Letras

Dra. Carmen Reis Rodrigues Docente do Programa de Pós-Graduação em Letras

Dra. Gessiane Lobato Picanço Bolsista de Desenvolvimento Científico Regional (FAPESPA/CNPq), afiliada ao Programa de Pós-Graduação em Letras

Dra. Valéria Augusti Bolsista de Desenvolvimento Científico Regional (FAPESPA/CNPq), afiliada ao Programa de Pós-Graduação em Letras

ORGANIZAÇÃO DOS ANAIS Myriam Crestian Cunha Jorge Domingues Lopes Secretaria do PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM LETRAS Eduardo Antonio Ribeiro de Brito (Secretário) Amanda Faustino de Pinho (Bolsista)

UFPA / Instituto de Letras e Comunicação Programa de Pós-Graduação em Letras Cidade Universitária Professor José da Silveira Netto Rua Augusto Corrêa, 01, Guamá CEP 66.075-900, Belém - PA Fone-Fax: (91) 3201-7499 E-mail: mletras@ufpa.br Site: www.ufpa.br/mletras


Apresentação

O

Congresso Internacional de Estudos Linguísticos e Literários na Amazônia (CIELLA) é um evento bianual que resultou do bom desenvolvimento e projeção de um tradicional encontro intitulado Jornada de Estudos Linguísticos e Literários (JELL), promovido pelo Programa de Pós-Graduação em Letras da Universidade Federal do Pará (UFPA) durante 10 anos consecutivos. O II CIELLA tem como tema principal “Línguas e Literaturas: diversidade e adversidades na América latina”. O objetivo do encontro é integrar os pesquisadores da área de estudos linguísticos, literários e culturais implicados na discussão de problemas característicos do contexto latinoamericano e na busca de soluções diferenciadas, oportunizando o diálogo com os demais atores sociais envolvidos, de modo a favorecer a elaboração de propostas político-educacionais diversificadas. Como evento acadêmico, o II CIELLA volta-se para professores universitários, pesquisadores, estudantes de Graduação e Pós-Graduação de instituições locais, nacionais e internacionais. Assinalamos que o evento caracterizase também por estabelecer um diálogo com profissionais e gestores interessados nas repercussões econômicas, políticas e sócio-culturais dessas pesquisas. Além disso, abre-se, de forma pioneira, na Região Norte, para estudantes de Ensino Médio, participantes do Programa Institucional de Bolsas de Iniciação Científica Júnior da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado do Pará. Essa dinâmica, congregando vários atores sociais, pretende estabelecer intercâmbio efetivo entre a academia e as comunidades envolvidas, garantindo maior circulação dos resultados de pesquisas. Comissão Organizadora do II CIELLA


© 2010 Programa de Pós-Graduação em Letras da UFPA A reprodução parcial ou total desta obra é permitida, desde que a fonte seja citada. COMISSÃO CIENTÍFICA Abdelhak Razky, UFPA Ana Carla dos Santos Bruno, INPA Andrea Ciacchi, UFPB Christophe Golder, UFPA Daniel dos Santos Fernandes, IDEPA / Faculdade Ipiranga Germana Maria Araújo Sales, UFPA Heraldo Maués, UFPA Joel Cardoso da Silva, UFPA José Carlos Chaves da Cunha, UFPA José Carlos Paes de Almeida Filho, UnB Lindinalva Messias do Nascimento Chaves, UFAC Luís Heleno Montoril del Castilo, UFPA Maria Aparecida Lopes Rossi, UNITAU Maria do Socorro Galvão Simões, UFPA Maria Risolêta da Silva Julião, UFPA Mário César Leite, UFMT Marcello Moreira, UESB Marília de N. de Oliveira Ferreira, UFPA Marilúcia Barros de Oliveira, UFPA Marli Tereza Furtado, UFPA Sidney da Silva Facundes, UFPA Sílvio Augusto de Oliveira Holanda, UFPA Simone Cristina Mendonça de Souza, UF de Viçosa Thomas Massao Fairchild, UFPA

COMISSÃO DE APOIO Coordenação: Thayana Albuquerque. Adriana Oliveira, Adrielson Barbosa, Alex Moreira, Alice Oliveira, Aline Silva, Aline Souza, Ana Maria de Jesus, Ana Paula Silva, Anny Linhares, Brenda Lima, Bruna Pimentel, Carla Guedes, Crystian Alfaia, Daniele Chaves, Edimara Santos, Eduardo Lopes, Elma Lima, Eveline Nascimento, Fabiana Silva, Gézika Ferreira, Glaciane Serrão, Jonatas Silva, Josemare da Silva, Joyce Costa, Jucineide Ribeiro, Kelly Souza, Layse Oliveira, Maria Elisabete Blanco, Maria Iracema Lima, Marla de Abreu, Martha Luz, Maxwell Maciel, Mayara Rocque, Michela Garcia, Natália Magno, Nathalia Carvalho, Nilsineia Simões, Ordilene Souza, Patrícia Martins, Patrick Pimenta, Paulo Alberto dos Santos, Phillippe Souza, Priscila Castro, Rafaela Margalho, Raicya Coutinho,Samara Queiroz, Sara Costa, Shirlene Ribeiro, Shirley Silva, Tayana Barbosa, Thiago Nascimento, Thiago Souza, Wladimilson Mota.

WEBMASTER Samuel Marques Campos (samcampos81@gmail.com)

PROJETO GRÁFICO, EDITORAÇÃO ELETRÔNICA E CAPA Jorge Domingues Lopes (jdlopes@ufpa.br)

Todas as informações contidas e apresentadas nos artigos deste livro são de inteira responsabilidade de seus respectivos autores, bem como as opiniões neles expressas, que não refletem necessariamente as do Programa de Pós-Graduação em Letras ou da Comissão Organizadora do II CIELLA.


Sumário 471

Cordel e oralidade no Pará no período da Segunda Guerra Mundial Geraldo Magella de MENEZES NETO

481

Alofones nasais em línguas tupi Gessiane Lobato PICANÇO

489

Oralidade e escrita na Nueva corónica y buen gobierno, de Felipe Guamán Poma de Ayala – Um gênero que emerge nas dobras da conquista da América Giane da Silva Mariano LESSA

497

Língua portuguesa como uma língua estrangeira: Reflexões de uma experiência com um aluno indiano Gilmara dos Reis RIBEIRO Maria Luiza F. da Silva PIMENTEL

509

Ciclo da castanha e latifúndios na Amazônia em Safra, de Abguar Bastos Gilson da Conceição Vitor FARIAS

517

Pratiques d’enseignement de l’écriture en première année du secondaire à Feira de Santana, au Brésil Girlene Lima PORTELA Clémence PRÉFONTAINE Gilles FORTIER

531

Índios e europeus: o choque cultural no Caramuru, obra de Santa Rita Durão Giselda da Rocha FAGUNDES

541

Rap: O movimento de reação do negro na sociedade brasileira contemporânea Giselda da Rocha FAGUNDES

561

O chat no ensino-aprendizagem de espanhol para universitários: Estratégias e possibilidades Greice da Silva CASTELA

573

Por uma análise performativa e social das construções de identidade e violência no repente Gustavo Cândido PINHEIRO Claudiana Nogueira de ALENCAR

581

Os múltiplos ecos do mito de narciso no conto Laços de família, de Clarice Lispector Iandra Fernandes Pereira CALDAS Antonia Marly Moura da SILVA

591

A estrutura das narrativas de enterro amazônicas Ingrid Sinimbú CRUZ Regina CRUZ Socorro SIMÕES

603

Constituição de saberes na formação continuada de professores alfabetizadores Isabel Cristina França dos Santos RODRIGUES Maricilda Nazaré Raposo de BARROS


611

Sob o traçado do imaginá(rio): Narrando a identidade amazônica Ivone dos Santos VELOSO

617

A importância da linguagem na edificação e manutenção da ordem institucional e os desafios para o exercícIo da atividade jurídica Ivy de Assis SILVA

627

Escrever na era da internet Izabel Cristina Rodrigues SOARES Lilia Silvestre CHAVES

637

Godinho Tavares & Cia: Livros a vista e pelo menor preço Izenete Garcia NOBRE

645

O exercício com léxico em sala de aula: Uma reflexão enunciativa Jacqueline JORENTE

655

Mulheres à frente do seu tempo: Conceição, Noemi e Maria Moura Jairo José Campos da COSTA

667

A historiografia da imagem: Pinheiro Chagas entre tempos Jane Adriane GANDRA

675

A seleção de informações e o tratamento dos temas no discurso dos alunos da 3ª série do ensino fundamental a partir de uma abordagem etnográfica colaborativa Jane Miranda ALVES

693

O professor de inglês diante do mundo tecnológico: O computador como acesso a práticas contextualizadas Jerônimo Coura SOBRINHO Roberto-Márcio dos SANTOS

703

Vivências musicais relatadas nos romances Vencidos e degenerados, de Nascimento Moraes, e O Mulato, de Aluízio Azevedo, na São Luís do final do século XIX João Costa GOUVEIA NETO Edwar de Alencar CASTELO BRANCO

713

O Espelho: A dúvida como método Johann Raphael Gomes GUIMARÃES

721

A inter-relação do ensino-aprendizagem de FLE e a exploração didática da literatura Jorge Domingues LOPES

739

A interação com o arquivo: Saramago se apropria de Ricardo Reis Jorge Luiz MENDES JÚNIOR

747

Representações da doença e percepções do atendimento na interação profissional-cliente em contextos de serviços de saúde José Carlos GONÇALVES

761

Relato sobre o projeto de pesquisa Representações da doença e percepções do atendimento na interação profissional-cliente em contextos de serviços de saúde José Carlos GONÇALVES

773

O gênero notícia policial em Teresina: Algumas considerações sócio-discursivas José Nilson Santos da COSTA FILHO


785

Narrativas orais de castanhal: Do nordeste brasileiro ao nordeste paraense José VICTOR NETO

795

Desvendando Homero Jovelina Maria Ramos de SOUZA

803

A carteira de meu tio: Ficção e história em Joaquim Manuel de Macedo Juliana Maia de QUEIROZ

813

O leitor, a metamorfose e o silêncio em Meu tio o Iauaretê Loíde Leão dos SANTOS Sílvio Augusto de Oliveira HOLANDA

821

O trabalho com o insólito no microrrelato de Augusto Monterroso Luciana Aparecida da SILVA

829

A antropofagia entre a oralidade e a escrita na moderna literatura brasileira, o caso de Benedicto Monteiro Luciano FUSSIEGER

837

O naturalismo presente no romance Tentação, de Adolfo Caminha Luena Mitié Takada BARROS Márcio de SOUSA E SILVA

843

SOBRE O II CIELLA




Ir para o Sumรกrio


CORDEL E ORALIDADE NO PARÁ NO PERÍODO DA SEGUNDA GUERRA MUNDIAL Geraldo Magella de MENEZES NETO (Universidade Federal do Pará)

RESUMO: O presente trabalho analisa a importância da literatura de cordel como fonte de informação das camadas populares acerca dos acontecimentos da Segunda Guerra Mundial. Para a análise será considerada a relação oral/escrito, já que a leitura dos folhetos de cordel era realizada na maioria das vezes de uma forma coletiva, em um período onde a taxa de analfabetismo era elevada. A estrutura narrativa dos folhetos, em forma de poesia, facilitava a compreensão e memorização acerca dos assuntos tratados, sendo o cordel um mediador entre o oral e o escrito. As fontes utilizadas são os folhetos de cordel produzidos pela editora Guajarina, editora de maior sucesso no norte do Brasil na primeira metade do século XX, folhetos que estão disponíveis no acervo Vicente Salles do Museu da UFPA, em Belém. PALAVRAS-CHAVE: Literatura de cordel; Oralidade; Segunda Guerra Mundial

RESUMEN: Este trabajo analiza la importancia de la literatura de cordel como fuente de información de las clases populares sobre los acontecimientos de la Segunda Guerra Mundial. Para la análisis será considerada la relación oral/escrito, ya que la lectura de los folhetos de cordel era realizada en la mayoría de las veces de una forma colectiva, en un período donde el índice de analfabetismo era elevado. La estructura narrativa de los folhetos, en forma de poesia, facilitaba la comprensión y memorización de los asuntos tratados, siendo el cordel un mediador entre oral y escrito. Las fuentes utilizadas son los folhetos de cordel producidos pela editora Guajarina, editora de mayor éxito en el norte de Brasil en la primera mitad del siglo XX, folhetos que están disponibles em el acervo Vicente Salles del Museo de la UFPA, em Belém. PALABRAS-CLAVE: Literatura de cordel; Oralidad; Segunda Guerra Mundial


Anais do II Congresso Internacional de Estudos Linguísticos e Literários na Amazônia (CIELLA)

1. Introduçã Este trabalho resulta de um processo de dois anos de pesquisa acerca da literatura de cordel no Pará. Apesar da pesquisa ser voltada para a área de História, o trabalho com o cordel permite a chamada interdisciplinaridade, já que a literatura popular é analisada por pesquisadores de variadas áreas como Letras, Antropologia, Sociologia, Comunicação. Os folhetos de cordel utilizados na pesquisa estão localizados no acervo Vicente Salles do Museu da UFPA, em Belém. Esses folhetos foram recolhidos pelo pesquisador Vicente Salles ao longo de suas pesquisas sobre o cordel nas décadas de 1970 e 1980. O cordel é um folheto com poemas rimados, que trata de temas diversos, que vão de romances, histórias de valentia, humor, oração, até aos últimos acontecimentos. Os folhetos são impressos em tipografias, em papel de tipo frágil, que não demandava muitos custos para os poetas. As capas são caracterizadas pelas xilogravuras, desenhos feitos em madeira, que retratavam o tema abordado no cordel. O número de páginas varia, podendo ser de 8, 12, 16, 24 e até mesmo 48 páginas. O cordelista é aquele que escreve cordel em versos. Já o cantador e o repentista são aqueles que produzem versos de forma oral, geralmente em desafios e pelejas, quando duas pessoas se enfrentam na cantoria, partindo de um determinado tema. Eles utilizam instrumentos musicais, como o violão. Segundo Joseph Luyten, a literatura de cordel compreende a parte impressa e, como tal, representa menos que 1% da poesia realmente feita no nível popular; o restante é apenas cantado por violeiros, trovadores ou cantadores. (LUYTEN, 2005, p. 14). O nome “cordel” vem da Península Ibérica. Isso porque havia o costume, na Espanha e em Portugal, de se colocarem os livretos sobre barbantes (cordéis) estendidos, em feiras e lugares públicos, de forma semelhante à roupa em varal. (LUYTEN, 2005, p. 13). Existem outros nomes para o cordel, como romances, “livrinhos” e folhetos. A expressão “literatura de cordel” foi criada mais tarde pelos estudiosos desse tipo de poesia popular. A origem do cordel no Brasil remonta ao final do século XIX, no Nordeste. O primeiro poeta a imprimir folhetos de forma regular foi Leandro Gomes de Barros, considerado hoje como o “pai do cordel”.2 Segundo Ruth Terra, “a partir de temas da tradição oral e de acontecimentos do momento ele criou a literatura popular escrita do Nordeste.” (TERRA, 1983, p. 40). 1

2. A literatura de cordel no Pará: a editora Guajarina No Pará, nos parece que a tradição do cordel está diretamente relacionada com a migração nordestina ocorrida primeiramente em larga escala no final do século XIX e início do XX. Nesse contexto, os migrantes nordestinos vão trazer costumes e difundi-los pela Amazônia. O gosto pelo cordel deve ter sido um desses costumes, criando, segundo Vicente Salles, “um mercado consumidor de poesia em potencial.” (SALLES, 1971, p. 95). Em 1914, com a criação da editora Guajarina, do pernambucano Francisco Lopes, o cordel vai se espalhar por todo o Pará e a região amazônica. Para Vicente Salles, a editora Guajarina foi o maior fenômeno editorial do Pará e seguramente um dos maiores do Brasil, no campo da literatura de cordel. (VICENTE, 2000, p. 9). A grande quantidade de folhetos produzidos por esta editora demonstra o sucesso obtido, já que muitos folhetos têm várias edições. Os folhetos da editora de Francisco Lopes podiam ser adquiridos em Manaus (Amazonas); Rio Branco e Xapuri (Acre); Santarém e Marabá (Pará); São Luís, Caxias, Amarante e Icatu (Maranhão); Teresina e Parnaíba (Piauí); Fortaleza e Juazeiro (Ceará); Natal (Rio Grande do Norte) e Campina Grande (Paraíba), cidades onde se localizavam os agentes da Guajarina, responsáveis pela irradiação nas proximidades, feita por vendedores ambulantes. (SALLES, 1985, p. 152). Fui bolsista de iniciação científica do projeto de pesquisa “Literatura de cordel e experiências culturais em Belém do Pará nas primeiras décadas do século XX”, coordenado pela Profa. Dra. Franciane Gama Lacerda, da Faculdade de História da UFPA, no período entre março de 2007 e março de 2009, bolsa esta financiada pelo PARD-UFPA. 2 Leandro Gomes de Barros nasceu em Pombal-PB em 1865, e faleceu em Recife-PE em 1918. Iniciou a publicação de seus versos por volta de 1893. Sobre a vida e obra de Leandro Gomes de Barros, ver Viana (2009). 1

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Tema geral: Línguas e Literaturas: Diversidade e Adversidades na América Latina

A Guajarina publicava folhetos de poetas do Nordeste, como Leandro Gomes de Barros e João Martins de Athayde, muitas vezes sem a autorização dos autores, o que era uma espécie de “pirataria”. Uma estratégia para os poetas evitarem esse tipo de “pirataria” era colocar os seus retratos nos folhetos, o que fez Leandro Gomes de Barros a partir de 1917. Já o editor nordestino Pedro Batista, proprietário das obras de Leandro Gomes de Barros após a sua morte, alertava nos folhetos aos chefes de polícia que Francisco Lopes publicava folhetos de Leandro sem a sua autorização. (SALLES, 1985, p. 159). A Guajarina vai publicar também folhetos de poetas nordestinos radicados no Pará e de poetas paraenses. Os que obtiveram maior sucesso, denominados por Vicente Salles como a “primeira geração” são: Ernesto Vera, Dr. Mangerona-Assu, Apolinário de Sousa, Arinos de Belém e Zé Vicente. É importante ressaltar que a maioria desses poetas utilizava pseudônimos: Ernesto Vera era pseudônimo de Ernani Vieira; Dr. Mangerona-Assu era Romeu Mariz; Arinos de Belém era José Esteves; e Zé Vicente era Lindolfo Mesquita. Vicente Salles não aponta razões específicas para esse procedimento, entretanto admite que havia naquele tempo certa reserva ao trabalho da editora Guajarina e àqueles intelectuais “menores” – ou de “meia-tijela” – que giravam em torno das iniciativas de Francisco Lopes; parte da intelectualidade nortista não se identificava com a literatura popular nordestina e opunha-lhe uma resistência surda ou total indiferentismo. (SALLES, 1985, pp. 165-166). 3. O cordel como jornal popular Os folhetos de cordel, além de ser um meio de lazer das camadas populares, são um meio de informação. O cordel, principalmente nas primeiras décadas do século XX, se constitui como o “jornal do povo”, já que os jornais não eram acessíveis à maior parte da população que era analfabeta, e o rádio ainda estava num processo de expansão. Joseph Luyten é um autor que trabalha com a ideia de que o cordel, mais especificamente os folhetos noticiosos, constitui um sistema de Jornalismo Popular, resguardadas as suas características de aperidiocidade, âmbito restrito e estruturação poética. (LUYTEN, 1992, p. 13). Os folhetos noticiosos são os que tratam de acontecimentos de grande repercussão, que vão desde acontecimentos locais como crimes, assassinatos, até acontecimentos nacionais e internacionais, como a ascensão de Getúlio ao poder em 1930, o golpe do Estado Novo, a morte de Lampião, a Segunda Guerra Mundial. A principal fonte do poeta para escrever os folhetos noticiosos eram os próprios jornais. Só que os poetas não utilizavam a mesma linguagem do jornal, pois as camadas populares não poderiam compreender aquele tipo de linguagem mais formal. O poeta então transforma essa linguagem do jornal em uma linguagem popular. Ricardo Noblat nos explica esse processo: [...] O poeta apreende um acontecimento com sua sensibilidade, empresta-lhe a perspectiva da sua cosmovisão e o retransmite numa linguagem popular, dentro do campo de referência dos seus leitores. Narra os principais fatos da sua cidade, região, país e mundo; interpreta-os; opina sobre eles; reflete e ajuda a formar a opinião pública ao seu redor. (NOBLAT, apud LUYTEN, 1992, p. 49).

O público confia no poeta, no que ele escreve, pois o poeta convive com as camadas populares, partilha da mesma realidade. É mais fácil acreditar no poeta, que o povo conhecia, do que alguém distante, como os jornalistas das grandes mídias. Mark Curran adota a ideia de Joseph Luyten, de que o poeta de cordel é uma espécie de jornalista popular. Contudo, ele vai mais além, dizendo que o cordelista é também “historiador popular”. Para o autor, “o cordel como crônica poética e história popular é a narração em versos do ‘poeta do povo’ no seu meio, ‘o jornal do povo’.” (CURRAN, 2001, p. 20). O cordel é história popular porque relata os eventos a partir de uma perspectiva popular. Vicente Salles, ao analisar o sucesso da editora Guajarina na divulgação da literatura de cordel no Pará, também demonstra a importância dos folhetos como fonte de informação das camadas populares:

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Anais do II Congresso Internacional de Estudos Linguísticos e Literários na Amazônia (CIELLA) Mostra significativa da importância do cordel, para a informação popular dos grandes acontecimentos nacionais e mundiais, é dada pelos folhetos que tratam dos fatos correntes e de grande repercussão, como a guerra européia de 1914-18 e o envolvimento do Brasil no conflito, torpedeamentos e naufrágio de navios, o assassínio do general Pinheiro Machado etc. A história mundial e a do Brasil, bem como os acontecimentos locais marcantes, se tornam acessíveis ao povo, graças à literatura de cordel. (SALLES, 1985, p. 153).

Walmir de Albuquerque Barbosa, um autor da área da comunicação, faz uma análise do cordel na Amazônia. O autor aponta que os cantadores nordestinos que faziam excursões pelas capitais (Belém e Manaus) e pelas principais cidades do interior vão exercer um papel muito importante na disseminação do cordel. A penetração do cordel para o interior, no beiradão, fica a cargo do regatão e até mesmo dos agentes nos barracões dos seringais, que o acrescentaram como mais um item entre as mercadorias. (BARBOSA, 1996, p. 11). Barbosa destaca a importância do cordel como fonte de informação nos locais mais distantes dos grandes centros: Os folhetos, com sua perenidade, podiam chegar aos mais longínquos rincões, substituindo o jornal, inacessíveis para esse contingente, não só pela linguagem, mas pela maneira fragmentária que expunham os fatos no dia-dia. O folheto tinha a virtude de encerrar a narrativa completa sobre o fato acontecido. (BARBOSA, 1996, pp. 21-22).

Os autores citados nos apontam a importância dos folhetos de cordel como fonte de informação das camadas populares. Mas como se dava esse contato entre o cordel e o povo? Como o cordelista sabia que o assunto tratado no folheto iria atrair a atenção das pessoas, tendo certeza de que elas iriam comprar o folheto? Para responder essas e outras questões vamos recorrer à ideia da oralidade, dentro do contexto da Segunda Guerra Mundial. 4. A oralidade no cordel: o contexto da Segunda Guerra Mundial Durante a Segunda Guerra Mundial, a imprensa vai tratar diariamente dos assuntos relativos à guerra. Nas grandes mídias, como o jornal e o rádio, os acontecimentos da guerra eram as primeiras notícias a serem divulgadas, sobrepondo as notícias regionais. Tal profusão de notícias fez com que, segundo Eric Hobsbawm, muitos lugares como os campos de batalha do Ártico, da Normandia, de Stalingrado, ou de “assentamentos africanos, na Birmânia e nas Filipinas” se tornassem “conhecidos dos leitores de jornais e radiovintes”. Tal faceta desses meios de comunicação permite dizer ainda, de acordo com Hobsbawm, que a Segunda Guerra Mundial foi também uma “aula de geografia do mundo.” (HOBSBAWM, 1995, p. 32). Ainda em relação à imprensa na época da guerra, o entrevistado Elias José Tuting nos fala acerca do jornal Folha Vespertina: Quando era de tarde saía a Folha Vespertina, espalhavam por todo o Pará, corriam com aquele jornal, iam lá, tinha um preto lá que agora eu esqueci o nome, era o preto Matinta, ele era jornaleiro, era analfabeto, mas ele lia aquele cabeçalho e saía gritando os acontecimentos, as coisas lá. (TUTING, 2008).

As memórias do senhor Elias nos sugerem que havia uma relação de oralidade na venda dos jornais. Quando saíam as últimas notícias, o jornaleiro fazia a leitura das manchetes. Mesmo os analfabetos, e os que não tinham condições de comprar o jornal, já que o período da guerra era um período de crise, tomavam conhecimento dos acontecimentos da guerra. Além da imprensa, a temática da Segunda Guerra Mundial vai ser alvo de outro veículo de comunicação, que não faz parte da grande mídia, mas que vai dar aos acontecimentos da guerra igual importância: os folhetos de cordel. Para se ter uma ideia disso, Vicente Salles afirma que, em dezembro de 1942, a Editora Guajarina reúne num só volume encadernado 12 folhetos sobre a Segunda Guerra Mundial.3 Esse número, ao que tudo indica foi muito maior. No Acervo do Museu da UFPA, por Os folhetos são os seguintes: Nascimento do Anti-Christo, de Abdon Pinheiro Câmara; A guerra da Itália com a Abyssinia, de Zé Vicente; A batalha do Sarre, de Arinos de Belém; O afundamento do vapor allemão “Graff-Spee”, de Zé Vicente; A Allemanha

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Tema geral: Línguas e Literaturas: Diversidade e Adversidades na América Latina

exemplo, encontramos dois folhetos humorísticos de Arinos de Belém: O Testamento de Hitler e Mussolini, o Ditador. Também encontramos referências aos folhetos sobre a guerra na revista Pará Ilustrado, de janeiro de 1943, a qual trazia o seguinte anúncio: “Leiam: A Alemanha metida num saco. Efusiante folheto de Zé Vicente, à venda em Belém”. (PARÁ ILUSTRADO, 09/01/1943, p. 32). Portanto, não temos ideia da quantidade de folhetos produzidos sobre a guerra. Essa grande quantidade de folhetos de cordel sobre a Segunda Guerra Mundial demonstra o interesse da população pelo assunto, pois o poeta só escrevia folhetos de interesse do público, pois só teria lucro se o que era tratado atraísse consumidores. A literatura de cordel tem muita importância no estado do Pará na década de 40, uma vez que boa parte da população não tinha acesso à escolaridade. De fato, de acordo com dados do IBGE, em 1940, 59% das mulheres e 46,55 % dos homens no Pará não sabiam ler nem escrever. (O LIBERAL, 26/05/2007, p. 6). Através destes dados podemos perceber que grande parte da população paraense era analfabeta. Logo, essas pessoas não tinham o hábito de ler jornais ou revistas. Mesmo para os alfabetizados era difícil comprar esses veículos de informação num período de crise como o da Segunda Guerra Mundial. Poucos tinham acesso aos jornais e revistas, sendo mais difícil esse acesso para as pessoas de fora da capital, Belém. Ana Maria de Oliveira Galvão, ao analisar a relação entre oralidade e cordel em Pernambuco, nos explica como se dava o contato das camadas populares com o cordel: A primeira instância de leitura/audição de folhetos era, de modo geral, o momento em que as pessoas iam à feira e ouviam o vendedor: leitura competente, declamada ou cantada em voz alta, interrompida no momento do clímax do enredo. Uma vez adquiridos ou tomados de empréstimo, os folhetos eram geralmente lidos em grupo, em reuniões que congregavam grande número de pessoas, na casa de vizinhos e familiares. (GALVÃO, 2002, p. 119).

Em Belém, a venda de folhetos ocorria em locais como o mercado do Ver-o-Peso, a Praça Pedro II, na feira de São Brás, e a feira da Marambaia. (SALLES, 1985, p. 160). No interior do Pará, principalmente na zona bragantina, os folhetos eram vendidos nas estações rodoviárias e nas feiras, locais de encontro de folheteiros e consumidores. Muitas vezes o poeta cordelista é seu vendedor ambulante, apregoando-o, como no Nordeste, recitando ou cantando as estórias contidas no folheto. (SALLES, 1985, p. 161). Um detalhe interessante no comércio do cordel é que mesmo os analfabetos adquiriam os folhetos. Para explicar o fato dos analfabetos comprarem os folhetos, Ruth Terra utiliza as ideias de Geneviève Bollème sobre os livros populares na França dos séculos XVI ao XIX: Pode-se comprar os livretos sem saber ler, para fazê-los serem lidos ocasionalmente, e para adquirir qualquer coisa que seria como um objeto mágico, o papel que fala. É certo que o livro adquire um poder, um valor, e é considerado assim, precisamente pelo seu caráter ‘reservado’; porque só pode ser lido por quem o possui e detém o saber, saber encoberto, guardado em segredo. Ter um livro [...] é prender nas mãos um pouco deste saber.” (BOLLÈME, apud TERRA, 1983, pp. 35-36).

Os folhetos tinham um valor para essas pessoas. Mesmo não sabendo ler, ter um folheto era como que “prender nas mãos um pouco do saber.” O folheto poderia ser lido por alguém que soubesse a qualquer hora, por exemplo, numa reunião familiar, ou com os vizinhos. O poeta Juraci Siqueira, por exemplo, relata que na sua infância fazia a leitura do cordel para os vizinhos no município de Afuá, quando seu pai trazia folhetos das viagens que fazia para Belém. (SIQUEIRA, 2007). Esse relato, mesmo sendo de um período após a guerra, quando a editora Guajarina não existia mais, reforça a ideia de que a leitura do cordel sempre era acompanhada de um público. Ana Galvão aponta que o fato dos folhetos serem lidos predominantemente de maneira coletiva tornava-os mais próximos daqueles que apresentavam pouca intimidade com o mundo da escrita.(GALVÃO, 2002, p. 123). O cordel se tornava um meio de informação das camadas populares, daqueles que não eram comendo fogo, de Zé Vicente; A Allemanha contra a Inglaterra, de Zé Vicente; A guerra da Alemanha e da Polônia, de Arinos de Belém; A batalha da Alemanha contra a Rússia, de Zé Vicente; O fim da guerra, de Zé Vicente; O Japão vai se estrepar! , de Zé Vicente; O Brasil rompeu com eles, de Zé Vicente; As escrituras e a guerra atual, de Apolinario de Sousa. (SALLES, 1985, pp. 238-239).

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alfabetizados. As capas e as xilogravuras dos folhetos ajudavam nesse sentido, pois antecipavam aos leitores/ouvintes o tema a ser tratado no folheto de cordel. Também é importante ressaltar que o público consumidor de cordel provavelmente se expandiu no período da Segunda Guerra Mundial. A partir de 1942, milhares de nordestinos vieram para a Amazônia, no processo conhecido como a “Batalha da Borracha”, com o objetivo de fornecer a maior quantidade de borracha possível para os Aliados. Esses nordestinos eram prováveis consumidores de folhetos de cordel, já que, além de trazerem esse costume da terra natal, dificilmente teriam acesso a jornais e ao rádio nos seringais. Sabendo do interesse da população pelo tema, como o poeta iria abordar a Segunda Guerra? Como o poeta se posicionaria diante dos acontecimentos sem ir contra o Estado Novo, regime que imperava no Brasil na época, que impunha a censura e perseguia os opositores? Nesse sentido, dividimos a produção de folhetos sobre a Segunda Guerra Mundial em dois períodos: o primeiro é o período compreendido entre 1939 e 1941; o segundo é entre 1942 e 1945. O período entre 1939 e 1941 é marcado pelas vitórias do Eixo na guerra. Até o final de 1941 a Alemanha ocupava a maior parte da Europa, e estava invadindo a União Soviética. O Japão ocupava várias ilhas do Pacífico e atacou a base norte-americana de Pearl Harbor. Tropas alemãs e italianas ocupavam o norte da África, alastrando a guerra para outro continente. O Brasil nesse contexto adota a postura de “neutralidade” diante da guerra. Esse período de “neutralidade” é caracterizado por uma divisão dentro do governo brasileiro em tomar uma posição. O Ministério de Getúlio Vargas estava dividido: de um lado estava Oswaldo Aranha, ministro das Relações Exteriores, que era favorável a uma aliança com os Estados Unidos, ao lado dos Aliados; já do outro lado estavam Eurico Gaspar Dutra, ministro da Guerra, e Góes Monteiro, chefe do EstadoMaior do Exército, que eram favoráveis a uma aliança com o Eixo. Essa divisão interna sobre qual a melhor posição a ser tomada não aparecia na imprensa, já que a mesma sofria censura do DIP (Departamento de Imprensa e Propaganda). Não interessava ao governo tornar públicas essa divisão, e sim dizer que o país era um só, unido e coeso. Nesse sentido, a imprensa divulgava os acontecimentos da guerra, mas não cobrava do governo uma atitude de envolvimento no conflito, ao contrário, elogiava a posição de neutralidade, de que o Brasil deveria se manter distante da guerra. Os folhetos de cordel também vão adotar esse discurso. Apesar de alguns poetas demonstrarem simpatia a um dos lados em conflito, eles se limitam a relatar os acontecimentos, sem fazer cobranças ou críticas ao Estado Novo. Vicente Salles aponta que os temas da guerra nos folhetos “mostram a habilidade do poeta em informar seus leitores e, de alguma forma, contribuir para a formação da opinião pública”. (SALLES, 1985, p. 239) Arinos de Belém, por exemplo, era defensor do Eixo. No folheto “A batalha do Sarre”, ele descreve assim o regime nazista: Mas o hitlerismo somente quer do seu povo a grandeza, liberdade, crença, as artes, barriga cheia, riqueza, trabalho honesto, alegria, inteligência e nobreza. (BELÉM, s/d, p. 14)

O poeta faz um elogio ao regime nazista. Segundo Arinos, o regime alemão seria caracterizado por se preocupar com o povo em diversas questões, como a liberdade, que estaria relacionada a não pertencer a uma sociedade comunista, portanto o nazismo seria um regime de liberdade; barriga cheia, preocupação em alimentar o povo, não deixá-lo morrer por falta de alimentos; trabalho honesto e riqueza, que estariam diretamente associados á alegria, o nazismo proporcionaria a riqueza do povo através do trabalho, o que traria alegria e não sofrimento; inteligência e nobreza, relacionados com crença e as artes transmitindo uma ideia de que o povo alemão era superior aos outros, que tinha uma inteligência acima dos demais e que era um povo nobre, pois tinha um sangue ariano. Nessa estrofe Arinos de Belém revela a sua defesa em relação ao nazismo alemão.

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Já o poeta Zé Vicente era um defensor dos Aliados. No folheto “A batalha da Alemanha contra a Rússia”, ele tenta profetizar como vai terminar o conflito: Vai o nazismo acabar o comunismo também, pois depois da grande guerra há de ficar só o Bem, a grande Democracia que somente nos convem. (SALLES, 1985, p. 245)

Nessa estrofe percebemos a posição de Zé Vicente: ele é contra o nazismo e o comunismo. A posição de Zé Vicente é totalmente oposta a de Arinos de Belém, o poeta é a favor da Democracia, que para ele é o Bem. O poeta considera como democracia países como Inglaterra, França e Estados Unidos. Alemanha e União Soviética não eram democracias, mas regimes de extrema-direita e extremaesquerda. O melhor para o mundo seria o nazismo acabar/o comunismo também, já que eram regimes extremados e não-democráticos. Zé Vicente retrata a batalha entre Alemanha e União Soviética, mas não é partidário de nenhum dos dois. Segundo a perspectiva do poeta, a destruição dos dois regimes seria a melhor solução, pois ficaria só a democracia que somente nos convem, o que seria o melhor para a humanidade. Note-se aqui que o poeta não faz qualquer referência ao Brasil, pois se dissesse que o Brasil não era uma democracia o folheto poderia ter sido censurado. Zé Vicente também faz referência à situação do Brasil nesse período em que a guerra acontecia na Europa, no folheto “A Allemanha comendo fogo”: Mas aqui do nosso lado barulheira ninguém faz, quem quizer meter o peito a gente empurra p’ra traz, pois no nosso continente o programa é haver paz. (VICENTE, 25-7-45, p. 16)

Nesse primeiro instante da guerra, quando o Brasil está num estado de neutralidade, os poetas tinham certa liberdade de escolha, poderiam ser favoráveis ao Eixo ou aos Aliados, desde que não fizessem críticas ao Estado Novo. Com isso, a população que entrava em contato com os folhetos, teria duas escolhas para torcer durante a guerra, já que os poetas assumiam posições divergentes: os Aliados ou o Eixo. Essa liberdade de escolha seria limitada aos Aliados a partir de 1942. O período 1942–1945 é marcado pelo contra-ataque dos Aliados e a conseqüente derrota do Eixo. O exército alemão perde a Batalha de Stalingrado, seguindo-se depois a uma contra-ofensiva soviética. Os Estados Unidos vencem as batalhas contra o Japão no Pacífico, sendo a mais importante a Batalha de Midway. Os Aliados ocupam a Itália em 1943, e em 1944 iniciam a libertação da França. Em maio de 1945 os soviéticos chegam a Berlim e a Alemanha se rende. Em setembro, após ser atingido por duas bombas atômicas, o Japão assina a rendição, terminando assim a Segunda Guerra Mundial com a vitória dos Aliados. O ataque japonês à base norte-americana de Pearl Harbor em 7 de dezembro de 1941 vai levar o Brasil a um alinhamento incondicional aos Estados Unidos e aos Aliados. Em 28 de janeiro de 1942, durante a III Conferência dos Chanceleres o Brasil rompe relações diplomáticas com os países do Eixo (Alemanha, Itália e Japão). A declaração de guerra, após os afundamentos de navios mercantes, vai ocorrer em 22 de agosto do mesmo ano. Zé Vicente publica então o folheto “O Brasil rompeu com eles”, explicando todo o processo que envolveu a ruptura de relações com o Eixo, desde o ataque japonês à base de Pearl Harbor até a Conferência dos Chanceleres no Rio de Janeiro em janeiro de 1942. Outro motivo que o poeta indica para o rompimento de relações com o Eixo diz respeito a questões que se explicavam pela ideia de um confronto entre o bem e o mal, entre a verdade e a mentira, entre a luz e a escuridão. Tal oposição por esse olhar do poeta explicava o conflito quase como um jogo entre “mocinhos e bandidos” em que estes eram representados pelo Japão, pela Itália e Alemanha, e aqueles pelos Aliados:

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Anais do II Congresso Internacional de Estudos Linguísticos e Literários na Amazônia (CIELLA) Vamos agora lutarAs nações totalitarias É contra a Barbaridade.querem o direito esmagar. O Brasil nessa missãoJapão, Itália, Alemanha, age agora de verdade,querem o mundo escravisar, pois vai bem alto gritarmas a nação brasileira pelo bem da humanidade.tal não pode tolerar. (VICENTE, 20-6-43, p. 1)(VICENTE, 20-6-43, p. 2)

A partir de 1942, o Brasil se posicionava ao lado dos Aliados. Não haveria escolhas, quem apoiasse o Eixo seria considerado traidor. Os folhetos publicados passam então a ser totalmente favoráveis aos Aliados. Arinos de Belém, para não correr o risco de ser considerado traidor e ser preso, não publica mais folhetos elogiosos ao nazismo, só voltando a escrever já no final da guerra, publicando dois folhetos satirizando Hitler e Mussolini, os dois líderes totalitários: “O Testamento de Hitler” e “Mussolini, o Ditador”, reflexos da nova posição tomada pelo Estado Novo. 5. Considerações finais Após uma análise sobre alguns folhetos produzidos sobre a Segunda Guerra Mundial percebemos que o assunto era de interesse da população paraense, incluindo-se aí as camadas populares, o que demonstra a importância da literatura de cordel, pois mesmo os analfabetos, através dos folhetos, tomavam conhecimento dos eventos da guerra. A grande quantidade de folhetos produzidos sobre a guerra demonstra que a população tinha interesse no assunto, pois os poetas só publicavam folhetos que atraíssem consumidores. É importante ressaltar que os poetas escreviam os folhetos num contexto de limites e possibilidades: enquanto podiam manifestar suas preferências, assim o faziam. Contudo, após o envolvimento do Brasil na guerra, não havia mais possibilidades, tinham que produzir folhetos exaltando o Brasil e repudiando o Eixo. Apesar disso, seus versos não são menos importantes, pois como “jornalistas populares” cumpriam sua função de informar os últimos acontecimentos, transformando a linguagem mais culta do jornal para uma linguagem mais compreensível às camadas populares, atendendo à demanda da população, cada vez mais ávida por assuntos referentes às batalhas da Segunda Guerra Mundial. Outro ponto importante é a questão da oralidade: a leitura do folheto era realizada na maioria das vezes de forma coletiva, o que nos sugere que muitos tinham acesso aos folhetos, mesmo num contexto em que a maioria da população não tinha escolaridade. O folheto de cordel se constituía em um mediador entre o oral e o escrito. Assim, os assuntos referentes à guerra não ficavam restritos aos meios governamentais ou aos círculos das elites, sendo objeto de interesse também pelas camadas populares. Referências BARBOSA, Walmir de Albuquerque. O cordel na Amazônia. Manaus: Editora da Universidade do Amazonas, 1996. BELÉM, Arinos de. A batalha do Sarre (1º Fascículo). Belém: Guajarina, s/d. CURRAN, Mark J. História do Brasil em cordel. 2ª Ed. São Paulo: Edusp, 2001. GALVÃO, Ana Maria de Oliveira. Oralidade, memória e a mediação do outro: Práticas de letramento entre sujeitos com baixos níveis de escolarização - o caso do cordel (1930-1950). In: Revista Educação e Sociedade. Campinas, vol. 23, nº 81, Dezembro de 2002. HOBSBAWM, Eric. Era dos Extremos: o breve século XX: 1914-1991. São Paulo: Companhia das Letras, 1995. LUYTEN, Joseph Maria. A notícia na literatura de cordel. São Paulo: Estação Liberdade, 1992.

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Tema geral: Línguas e Literaturas: Diversidade e Adversidades na América Latina ______. O que é literatura de cordel. São Paulo: Brasiliense, 2005. O LIBERAL, edição de 26 de maio de 2007. PARÁ ILUSTRADO, edição de 9 de janeiro de 1943. SALLES, Vicente. Guajarina, folhetaria de Francisco Lopes. In: Revista Brasileira de Cultura. Rio de Janeiro, jul./set. 1971, nº 9, pp. 87-108. ______. Repente e cordel, literatura popular em versos na Amazônia. Rio de Janeiro: FUNARTE/Instituto Nacional do Folclore, 1985. SIQUEIRA, Juraci. Palestra realizada na Academia Paraense de Letras, em 2 de outubro de 2007. TERRA, Ruth Brito Lêmos. Memória de lutas: literatura de folhetos do Nordeste (1893-1930). São Paulo: Global Editora, 1983. TUTING, Elias José. Entrevista concedida em Belém, 12 de agosto de 2008. VIANA, Arievaldo. Leandro Gomes de Barros – Pioneiro de cordel e inspirador d’O Auto da Compadecida. Artigo no site da ABLC (Academia Brasileira de Literatura de Cordel) Disponível em: <http://www.ablc.com.br/ comercial/comercial.htm.> Acessado em 15 mar. 2009. VICENTE, Zé (1898-1975). Zé Vicente: poeta popular paraense. Introdução e seleção Vicente Salles. São Paulo: Hedra, 2000. VICENTE, Zé. A Allemanha comendo fogo. Belém: Guajarina, edição de 25-7-45. ______. O Brasil rompeu com eles. 2. ed. Belém: Guajarina, 20-6-43

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ALOFONES NASAIS EM LÍNGUAS TUPÍ•

Gessiane Picanço (Universidade Federal do Pará)

RESUMO: Na mairoria das línguas Tupí, consoantes nasais são frequentemente descritas como exibindo algumas diferenças alofônicas. Os padrões mais comuns envolvem nasais plenas alternando com outras parcialmente oralizadas, ou seja, pré- ou pós-oralizadas e médio-nasais. Este estudo apresenta uma comparação de aspectos fonéticos desses alofones nasais, plenos e parcialmente oralizados, em doze línguas Tupí. A intenção é verificar até que ponto esses sons são foneticamente distintos ou, contrariamente, quanto de similaridade fonética é compartilhada por alofones semelhantes em línguas diferentes. PALAVRAS-CHAVE: Nasais; Alofonia; Similaridade Fonética; Tupí.

ABSTRACT: Nasal consonants are often reported to exhibit allophonic differences in the majority of Tupian languages; the most common ones are plain nasals and partially oralized nasals (i.e. pre-/post-oralized nasals and medionasals). In this study, a comparison of plain and partially nasal allophones is offered for 12 Tupian languages, on the basis of their phonetic similarity. This is done with a view to determining to what extent these sounds are phonetically distinct across Tupian languages, and how much phonetic similarity is shared by corresponding allophones in different languages. KEY WORDS: Nasals; Allophony; Phonetic Similarity; Tupí.


Introdução Ladefoged & Maddieson (1996) definem um segmento nasal como aquele que envolve dois gestos articulatórios principais: abaixamento do véu palatino e obstrução na cavidade oral. Ainda de acordo com os autores, os movimentos do véu palatino (elevação e abaixamento) são independentes dos movimentos de articuladores orais. Um par como [b] e [m] diferem entre si somente pela posição do véu: i. [b]: obstrução na cavidade oral, véu palatino elevado; ii. [m]: obstrução na cavidade oral, véu palatino abaixado. Por serem tais movimentos independentes, diferentes combinações destes podem gerar uma variedade de segmentos nasais, resultando em duas categorias principais: nasais plenas ou parcialmente nasais. Diferenças alofônicas envolvendo a produção de consoantes nasais são bastante comuns em quase todas as línguas das dez famílias Tupí, mostradas na Figura 1. Figura 1: Famílias do tronco Tupí (RODRIGUES, 1986)

Os alofones descritos são geralmente classificados em duas categorias principais: nasais plenas, aquelas produzidas com o véu palatino abaixado ao longo de toda a duração da consoante, e nasais parcialmente oralizadas, nas quais o movimento do véu palatino é des-sincronizado em relação à obstrução na cavidade oral, resultando em um segmento complexo com um componente oral e outro nasal como, por exemplo, [bm] ou [mb]. Nasais parcialmente oralizadas, por sua vez, podem ser pré-oralizadas (ou seja, o abaixamento do véu ocorre após a obstrução oral), pós-oralizadas (a elevação do véu palatino ocorre antes da obstrução), e médio-nasais (a combinação das duas anteriores). As línguas Tupí variam quanto ao tipo de alofone produzido. Por exemplo, em Mundurukú, família Mundurukú, consoantes nasais exibem as variantes plenas [m, n, ŋ] e as pré-oralizadas [bm, dn, gŋ] (Picanço, 2005; Crofts, 1985). Em Karo, família Ramarama, as nasais podem ser plenas [m, n, ŋ], pré-oralizadas [bm, dn, gŋ] e pós-oralizadas [mb, nd, ŋg] (Gabas Jr., 1988). Já Karitiana, família Arikém, apresenta o padrão mais complexo de alofones nasais dentro do tronco Tupí, incluindo nasais plenas [m, n, ɲ, ŋ], pré-oralizadas [bm, dn, gŋ], pós-oralizadas [mb, nd, ŋg], e médio-nasais [bmb, dnd, gŋg] (Wiesemann, 1978; Storto, 1999; Demolin et al., 2006). Em grupo menor de línguas, são as oclusivas orais que podem ser parcialmente nasalizadas. Esse é o caso em Awetí, família Awetí, na qual oclusivas surdas /p, t, k/ tem variantes fonéticas pré-nasalizadas [mp~mb], [nt~nd], e [ŋk~ŋg] (Emmerich & Monserrat, 1972). Língua após língua de todas as famílias Tupí, o analista enfrenta o desafio de como caracterizar fonologicamente os padrões envolvendo sons nasais. A decisão é tipicamente tomada independentemente, com base em argumentos distribucionais. Alguns tratam os alofones nasais como consoantes orais subjacentes que sofrem alguma regra de nasalização, como em (1a); outros os tratam como nasais que são, também através de uma regra, oralizados, como em (1b). De uma forma ou de outra, obtém-se os mesmos tipos de realizações fonéticas. (1) Nível fonológico a. /b/  [m] / _v

Nível fonético [m] – nasalização plena


 b. /m/  

[bm] / v_ v

[bm] – nasalização parcial

[m] / _ v

[m] – nasalização plena

[bm] / v_ v

[bm] – nasalização parcial

O principal objetivo deste estudo é verificar até que ponto esses sons nasais, ou parcialmente nasais, são foneticamente distintos ou foneticamente semelhantes. Vários aspectos fonéticos das consoantes nasais são examinados em 12 línguas Tupí, distribuídas nas sete famílias abaixo.1 (2) Línguas Tupí investigadas a. família Awetí: Awetí b. família Arikém: Karitiana c. família Mondé: Gavião e Suruí d. família Mundurukú: Mundurukú e Kuruaya e. família Ramarama: Karo f. família Tupari: Makurap, Ayuru e Tupari g. família Tupi-Guaraní: Tenharim e Tembé 1. Padrões fonológicos Os alofones nasais discutidos aqui restrigem-se às realizações fonéticas das consoantes nasais em três pontos de articulação: bilabial, alveolar e velar, /m, n, ŋ/,2 que mais comuns dentre as línguas Tupí. A tabela abaixo resume esses segmentos e suas respectivas representações fonéticas. Tabela 1. Alofones nasais.

Os alofones nasais são geralmente definidos de acordo com a qualidade oral/nasal de vogais vizinhas, com exceção de nasais plenas que podem ou não ser condicionadas por uma vogal oral, dependendo da língua. 1 Agradeço a colaboração de Denny Moore, Ana Carla Bruno, and Hein van der Voort por me concederem gravações de seus arquivos pessoais de algumas dessas línguas. 2 A distribuição fonológica da velar nasal [ŋ] varia de língua para língua; por exemplo, [ŋ] pode ocorrer tanto em posição de ataque ou de declive de sílaba em Awetí (Emmerich & Monserrat, 1972), mas é restrita à posição de declive em Mundurukú, e não é fonêmica em Gavião (MOORE, 1984).


Além do condicionamente fonológico, os alofones nasais podem também sofrer influência de fronteiras morfológicas, mas com certas diferenças; por exemplo, as médio-nasais emergem somente em fronteira de morfema em Makurap, enquanto que em Karitiana o mesmo tipo é propriedade do próprio segmento. Todos esses aspectos são discutidos nas seções seguintes. 2. Nasais plenas Nasais plenas são sons nasais comuns, [m, n, ŋ]; são frequentemente encontrados antecedendo vogais nasalizadas, mas podem também ocorrer em contextos orais como, por exemplo, em Awetí, Mundurukú, Tembé e Suruí. As figuras abaixo ilustram uma nasal bilabial plena [m] em Tupí, tanto no início da palavra (Figura 2), quanto intervocalicamente (Figura 3). Figura 2: Nasal [m] na palavra Suruí [mra:] ‘cachorro do mato’.

Figure 3: Nasal plena [m] na sequência [ʔama] em Aweti [ʔamaʧitu] ‘algodão’.

Karitiana difere de outras línguas Tupí por exibir nasais plenas caracterizadas por uma explosão oral precedendo vogais nasais (Demolin; Haude; Storto, 2006), conforme demonstrado na Figura 4. Mundurukú e Tembé também podem apresentar um padrão semelhante de realização das nasais, mas este não é tão forte nem tão sistemático quanto em Karitiana. Figura 4: Palavra Karitiana [mbãm] ‘apertar’ (Figura retirada de Demolin et alli, 2006).


3. Nasais pós-oralizadas Nasais pós-oralizadas são sequências de nasal + oclusiva, [mb, nd, ŋg], que resultam da falta de sincronia entre os movimentos de elevação do véu palatino e soltura da articulação oral. Esse padrão serve geralmente ao propósito de evitar que a nasalidade se espalhe para uma vogal oral (MADDIESON; LADEFOGED, 1996). Esses segmentos fonéticos formam dois padrões em línguas Tupí, embora somente um desses seja descrito na literatura: o de uma nasal seguida de uma oclusiva vozeada, [mb, nd, ŋg]. O segundo padrão consiste de nasais seguidas por oclusivas surdas, [mp, nt, ŋk]. Sequências [mb, nd, ŋg] são encontradas tanto no início da palavra, quando seguidas por vogais orais, quanto intervocalicamente, se a primeira é nasal e a segunda é oral. Nasais pós-oralizadas são alofones regulares em Makurap (BRAGA, 1992), Karitiana (STORTO, 1999) e Ayuru. Elas emergem intervocalicamente em Tenharin, mas somente ocasionalmente em Karo, e não ocorrem em Mundurukú, Kuruaya ou Tupari (ALVES, 1991). As figuras a seguir ilustram casos de nasais pós-oralizadas. No padrão normal, o componente nasal é seguido por outro oral e vozeado, como na Figura 5, que mostra a sequência [ŋg]. Figura 5: Sequência [ŋg].

[ŋ]

[g]

No outro padrão, há também uma porção oral na realização da nasal. No entanto, a elevação do véu palatino implica em suspensão de vozeamento, enquanto a articulação oral é mantida. O resultado é uma sequência como [ŋk], mostrada na Figura 6. Figura 6: Sequência [ŋk].

[ŋ]

[k]


4. Nasais pré-oralizadas Alofones nasais pré-oralizados são parecidos com os alofones pós-oralizados, exceto que desta vez a parte oral precede o componente nasal, conforme ilutrado na figura abaixo. Esses segmentos são encontrados em Mundurukú e Karo, quando precedidos por uma vogal oral, e também em posição intervocálica, como ocorre em Karitiana (STORTO, 1999) e Makurap (BRAGA, 1992). Figura 7: Nasal pré-oralizada [bm].

[b]

[m]

5. Médio-nasais Alofones médio-nasais consiste em uma sequência oral + nasal + oral como, por exemplo, [bmb]. Esses sons são encontrados em algumas línguas Jê (ex., Kaingang (Wiesemann, 1978)) e em uma única língua Tupí: Karitiana (STORTO, 1999; DEMOLIN et alli, 2006). A Figura 8 mostra um exemplo de médio-nasal típica em Karitiana. Figure 8: Karitiana médio-nasal [ndn] em [kidnda] ‘coisa’ (Demolin et alli, 2006)

Makurap também manifesta segmentos médio-nasais, foneticamente semelhantes aos reportados para Karitiana, como demonstrado na Figura 9. A diferença entre as duas línguas é que as médio-nasais de Karitiana são propriedade do próprio segmento, enquanto que em Makurap esses sons resultam de um processo morfo-fonológico: uma oclusiva surda ao final do morfema é vozeada quando seguida por uma soante (BRAGA, 1992). Assim, a sequência [dnd] em [ndidndaʔ] ‘cacau’ é resultado do composto {nit + na}, mas, do ponto de vista fonético, a sequência é idêntica aos alofones de Karitiana.


Figura 9: Makurap [ndɨdndaʔ] ‘cacau’.

[d]

[n]

[d]

6. Conclusão Em geral, as línguas Tupí exibem mais alofones nasais do que tem sido descritos para línguas individuais. Os padrões observados neste estudo são os seguintes: i. Nasais plenas podem ou não apresentar explosão oral. ii. Nasais pré-oralizadas são mais estáveis, sendo sempre realizados como sequências oclusiva oral + nasal (ex., [bm]). iii. Alofones pós-oralizados, por outro lado, variam mais, especialmente em termos do componente oral que pode ser vozeado (ex., [mb]) ou desvozeado (ex., [mp]). iv. Médio-nasais são regularmente encontrados em Karitiana, mas são também observados em Makurap, como resultado de um processo morfo-fonológico. v. Em todos os casos, oralização parcial parece servir para preservar o contraste entre vogais orais e nasais. Referências Alves, Poliana (1991). Análise Fonológica Preliminar da Língua Tupari. Dissertação de Mestrado. Universidade de Brasília. Braga, Alzerinda (1992). A fonologia segmental e aspectos morfofonológicos da língua Makurap (Tupi). Dissertação de Mestrado. Campinas, SP: Instituto de Estudos da Linguagem, Universidade Estadual de Campinas. Demolin, D., Haude, K.; Storto, L. (2006). Aerodynamic and acoustic evidence for the articulations of complex nasal consonants. Revue Parole, 39/40, 177–205. Emmerich, C.; Monserrat, R.M.. (1972). Sobre a fonologia da língua Aweti (Tupi). Boletim do Museu Nacional – Antropologia, 25. Rio de Janeiro. Gabas Jr., Nilson (1988). Fonologia da Língua Karo. Dissertação de Mestrado. Campinas, SP: Instituto de Estudos da Linguagem, Universidade Estadual de Campinas. Maddieson, I.; Ladefoged, P. (1996). The Sounds of the World’s Languages. Blackwell, UK. Moore, Denny (1984). Syntax of the Language of the Gavião Indians of Rondônia, Brazil. Tese de Doutorado, CUNY, USA. Picanço, Gessiane (2005). Mundurukú: Phonetics, Phonology, Synchrony, Diachrony. Tese de Doutorado, University of British Columbia, Canada. Rodrigues, A. D. (1986). Línguas Brasileiras: Para o Conhecimento das Línguas Indígenas. São Paulo: Loyola. Storto, Luciana (1999). Aspects of a Karitiana Grammar. Tese de Doutorado, MIT, USA. Wiesemann, U. (1978). Os dialetos da língua Kaingang and Xokleng. Arquivos de Anatomia e Antropologia, 3.


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ORALIDADE E ESCRITA NA NUEVA CORÓNICA Y BUEN GOBIERNO, DE FELIPE GUAMÁN POMA DE AYALA – UM GÊNERO QUE EMERGE NAS DOBRAS DA CONQUISTA DA AMÉRICA Giane da Silva Mariano LESSA (UNIRIO/UFRRJ)

RESUMO: Este estudo pretende mostrar algumas características do desenvolvimento e da criação da Nueva Corónica y Buen Gobierno de Felipe Guamán Poma de Ayala – uma crônica alternativa às crônicas de autores europeus, escrita por um índio ladino, que ao longo de sua vida, foi intérprete, escrivão, informante etc., viajando por todo o vice-reinado do Peru e compilando as narrativas orais de diversos povos, cumprindo também o papel de etnógrafo. Ao escrever do lugar de indígena, oferecendo-nos uma descrição densa das práticas culturais pré-colombianas e mudando a perspectiva dos objetivos unicamente pessoais para a perspectiva das necessidades coletivas, Guamán Poma interferiu no conteúdo do gênero crônica, alterando-o e nele instaurando outra contingência ideológica. O autor andino se apropriou de vários tipos de discurso que circulavam na colônia, no século XVI e inseriu desenhos, feitos por ele, mesclando as iconografias cristã e andina, com o objetivo de reivindicar justiça e a implementação do que poderia vir a ser um bom governo. Além disso, inseriu em sua obra glossas de mais de dez línguas nativas, chamando a atenção para a diversidade cultural do mundo andino. Ao fazê-lo, Guamán Poma inaugurou um gênero, um lugar e identidades híbridos que, acima de tudo, representa um ato de resistência e subversão à ordem colonial que se estabelecia como hegemônica. PALAVRAS-CHAVE: crônica; resistência; oralidade; escrita


Anais do II Congresso Internacional de Estudos Linguísticos e Literários na Amazônia (CIELLA) 1. Introdução

Estima-se que a Nueva corónica y Buen Gobierno terminou de ser escrita em 1615 (Adorno, 1991), configurando-se como um dos mais raros e provavelmente o mais importante documento escrito por indígenas que produziram sua versão da conquista, entre os quais se destacam Titu Cusi Yupanqui e o mestiço Inca Garcilazo de La Vega. Essa crônica, alternativa às dos cronistas espanhóis, cujos lugares de enunciação e perspectiva étnica lhe eram opostos, tem 1200 páginas, das quais 398 são desenhos feitos pelo próprio autor (ALFARO, s/d.). Guamán Poma terminou de escrever sua obra por volta dos 80 anos de idade e partiu a pé de Huamanga, serra peruana, em direção a Lima para entregar seu manuscrito às autoridades competentes e pedir licença para sua publicação (QUISPE-AGNOLI, 2006). Felipe Guamán Poma de Ayala, por um lado foi privilegiado por ter pertencido a uma elite local, por outro, por sua capacidade de falar vários idiomas nativos, aprendeu o castelhano e ocupou o posto de intérprete da Conquista. Foi essa habilidade um dos fatores que viabilizou, ao final de sua vida, a escrita de sua própria crônica, com objetivos entre os quais se destacam: 1) preservar a memória indígena e registrar sua versão dos acontecimentos: [...] la dicha historia es muy verdadera como conviene al sujeto y personas de quienes trata y que además del servicio de vuestra magestad, que resultará {de} imprimirse la dicha historia comenzándose a celebrar y hacer inmortal la memoria y nombre de los grandes señores antepasados, nuestros abuelos como lo merecieron sus hazañas (…) (POMA DE AYALA, 2005, p. 13); 2) instaurar um debate sobre a natureza humana dos índios e sua cristandade, legitimando-as: Y otros dijeron que los indios eran salvajes animales, si así fuera no tuvieran la ley ni oración ni hábito de Adán y fueran como caballos y bestias, y no conocerían al Creador, ni tuvieran sementeras y casas y armas, fortalezas, y leyes y ordenanzas y conocimiento de Dios, y tan santa entrada. (IBIDEM, p. 50); 3) denunciar, por meio da escrita e de desenhos, as práticas que se diziam cristãs e não o eram: (…) los españoles, teniendo {estos} letra y voz de profetas y de patriarcas, apóstoles, evangelistas y santos, enseñándoles así mismo la Santa Madre Iglesia de Roma, yerran y mienten con la codicia de la plata, no siguen por la ley de Dios ni del Evangelio ni de la predicación. Y de los dichos españoles se enseñan los dichos indios de este reino malas costumbres (…) (IBIDEM, p. 52). 4) dar a conhecer as práticas culturais e saberes desconhecidos pelos espanhóis: [...] contaban los domingos diez días, y un año, y los meses de la luna treinta días, y miraban el andar del sol, y el ruedo del sol y luna, sembrar la sementera coger el fruto y romper la tierra, y podar, y regar, y de otros beneficios que se hacen entendían los filósofos y astrólogos indios; y de ello hasta hoy los entienden los viejos y los mozos (…) lo supieron por quipos, cordeles y señas, habilidad de indio (IBIDEM, p. 58). 5) propor o que poderia vir a ser um bom governo: “ y así esta crónica es para todo el mundo y cristiandad hasta los infieles se debe varlo para la dicha buena justicia y policía y ley del mundo” (POMA DE AYALA, 2005, p. 941).

Não se sabe como, a “Nueva Corónica y Buen Gobierno” chegou à Espanha e de lá foi levada para a Biblioteca Real da Dinamarca. Em 1908 o pesquisador dinamarquês Richard Pietschrman a descobriu e a deu a conhecer ao mundo. Em 1936 foi publicado um facsímile da obra em Paris. A crônica só começou a ser estudada, portanto, na segunda metade do século XX e somente nas duas últimas décadas ingressa na academia (Adorno 2002). 2. O gênero crônica Na idade Média, convencionou-se chamar “crônicas” a um conjunto de textos históricos, que relatavam os grandes feitos dos monarcas. A origem das crônicas e da história medieval se encontra nos pleitos judiciais relativos à propriedade da terra, em que se viram envolvidos os mosteiros medievais.

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No século XVI, essa denominação adquiriu outro significado, caracterizando uma iniciativa particular, com fins políticos pessoais, que tinha como objetivo levar a informação mais completa possível sobre o que ocorria nas Índias. As crônicas constituíam relatos epistolares, estruturados por um conjunto de operações retóricas, em que os acontecimentos eram recriados numa estrutura narrativa; conformando, portanto, exemplos de testemunhos, que serviam de provas das façanhas dos seus protagonistas, dirigidas ao rei (Gonzáles Boixo, 1999). Os cronistas não tinham propriamente a intenção de fazer história ou produzir criação literária, embora esses textos possam ser estudados dos pontos de vistas literário e/ou histórico. Ao reivindicar autoridade de seus testemunhos e fornecer informação sobre as colônias, eles procuravam persuadir e influenciar seus destinatários para a obtenção de prestígio, terras, bens e posições políticas. De acordo com Binotti (1992) as crônicas são textos muito marcados ideologicamente, no sentido de que seu discurso sempre tem uma finalidade pragmática de persuasão ou de justificativa. Seus autores usavam estratégias retóricas para engrandecer seus méritos pessoais com a finalidade de obter recompensas. As crônicas se configuravam, portanto, como “um processo de contínua reescritura, marcada por uma manipulação ideológica constante” (BINOTTI, 1992). O gênero crônica chegou à América, com os colonizadores, junto com todo o arcabouço simbólico e ideológico que destacava a escrita como um valor de inquestionável superioridade cultural – fronteira que separava povos civilizados de incivilizados, cristãos de hereges, e estabelecia uma hierarquia cultural e social que, em última instância justificava e legitimava a dominação. Unindo indissoluvelmente a palavra sagrada à escrita, o cenário letrado na época da conquista se apresentava por um lado como um conjunto de narrativas e, por outro, como um conjunto de documentos produzidos por letrados e juristas, de modo que as crônicas muitas vezes se constituíam como cartas legais, reunindo textos jurídicos de várias naturezas (QUISPE-AGNOLI, 2006, p. 213). Guamán Poma conheceu as obras dos cronistas espanhóis, utilizando-as, inclusive, como fontes escritas, reproduzindo fragmentos da versão de alguns cronistas como Augustín de Zárate, baseando-se nos textos de Frei Bartolomé de Las Casas, criticando autores como Domingo de Santo Tomás etc., (PEASE apud POMA DE AYALA, 2005). Desse modo, o autor andino apresenta um discurso crítico, unindo vários discursos de ordem legal e cristã. Guamán Poma se apropriou do gênero, mas o alterou, na medida que compilou e introduziu as narrativas orais dos povos indígenas: por relaciones y testigos de vista que se tomó de las cuatro partes de estos reinos, (…) a unas historias sin escritura no más de por los quipos y memorias y relaciones de los indios antiguos de muy viejos y viejas, sabios, testigos de vista para que den fe de ello” (Poma de Ayala, 2005, p. 13).

e para sacar en limpio estas dichas historias hube tanto trabajo por ser sin escrito ni letra alguna sino nomás de quipos y relaciones de muchos lenguajes, ajuntando con la canche, cana, charca, chinchaysuyo, andesuyo, collasuyo, condesuyo, todos los vocablos de indios, que pasé tanto trabajo por ser servicio de Dios nuestro señor y de su sacra católica magestad rey don Felipe el tercero” (Ibidem, p. 17).

Outros exemplos de fontes orais se encontram na transcrição de línguas indígenas: “Escogí la lengua e fracis castellana, aymara, colla, puquina, conde, yunga, quíchua, inga, uanca, chinchaysuyo, yauyo, andesuyo, condesuyo, collasuyo, cañari, cayampi, quito” (POMA DE AYALA, 2005, p. 17), exemplificadas nos glossários que o autor insere ao longo de sua escritura: “Diciembre. Cápac Inti Raymi. Que en este mes hacían la gran fiesta y pascua solemne del sol, que como dicho es, que todo el cielo de los planetas y estrellas, y cuanto hay es rey el sol; y así Cápac quiere decir rey, Inti: sol, raymi: gran pascua [...]”(IBIDEM, p. 192). Ao mudar a perspectiva dos objetivos unicamente pessoais para a perspectiva das necessidades coletivas, Guamán Poma interferiu no conteúdo do gênero crônica, alterando-o e nele instaurando outra contingência ideológica. A mudança fundamental que diferencia, porém, a Nueva corônica y Buen Gobierno das demais crônicas da época, inclusive das crônicas de outros indígenas, é a inserção do

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registro iconográfico nos desenhos, consolidando o esforço de interculturalidade e dando a conhecer um simbolismo abstrato, incompreensível para o público europeu. Nesses desenhos ele mistura códigos artísticos europeus e iconografia cristã com iconografia quéchua (ADORNO, 1987). Os desenhos, além de denunciar injustiças, descrever e narrar a história dos povos précolombianos e colonial, apresentam os sistemas de notação andinas: os quipus e os tocapus. Os primeiros eram cordões que combinavam tamanho, espessura, distância, quantidade de nós, distância e espessura dos nós, cores, comprimento para produzir significados. Eles se distinguiam em quipus contáveis e estatísticos e quipus narrativos. Havia ledores de quipus que interpretavam essas combinações, eram homens velhos – os quipucamayoc. Os segundos eram as formas geométricas compostas em molduras quadradas ou retangulares dos tecidos e vestidos que expressavam conceitos diferentes, como: estratégias de guerra, lugares míticos, diferenciavam classes sociais e as categorias a que pertenciam e sua significação podia mudar com o contexto (QUISPE-AGNOLI, 2006). O autor indígena narrou as histórias dos povos andinos, que conformavam o repertório de narrativas anônimas, saberes, tradições, formas de ser e estar no mundo, incorporando a eles cosmovisão e categorias culturais ocidentais, incorrendo, consequentemente, num processo de transculturação. Esse ato se configura como um de seus legados: o processo de elaboração da crônica em si é um patrimônio intangível que carrega outros tipos de patrimônios, frutos da mescla, do diálogo entre culturas que um índio se dispôs a estabelecer, transfigurando-se no patrimônio físico: o livro. As mudanças que ocorreram no registro de língua e culturas ágrafas para o texto alfabético acabaram por resultar em transformação e hibridismo. A Nueva Corónica y Buen Gobierno emerge desse cruzamento de saberes, da integração da nova língua, inscrevendo-os no gênero crônica, que, como ressaltado anteriormente, cumpria funções comunicativas, sociais e políticas específicas. Ao escrever sua crônica de outro lugar de enunciação, Guamán Poma alterou aquelas funções comunicativas, subvertendo a ordem discursiva que imperava naquele contexto. Nessa pugna dialógica, vale lembrar que em toda sociedade a produção do discurso é ao mesmo tempo controlada, selecionada e redistribuída por certo número de procedimentos que têm por função conjurar seus poderes e perigos, dominar seu conhecimento aleatório, esquivar sua pesada e temível materialidade (Foucault, 2000, ps. 8 e 9).

Nesse sentido, Guamán Poma subverte o poder retirando do hegemônico os elementos que contribuíram decisivamente para que ele pudesse construir as bases de um ato contra-hegemônico. O gênero que Guamán Poma inaugura emerge dos e nos conflitos de forças emanadas das culturas em confronto, dos equívocos inerentes à tradução dessas culturas e línguas tão distantes e, sobretudo, da tensão gerada entre a oralidade e a escrita e todo seu arcabouço simbólico e ideológico. Como memória, a crônica emerge também como resistência às práticas coloniais que naturalizavam seus valores e categorias culturais como sinônimos de civilização, em detrimento dos valores dos povos subalternizados, caracterizando-os como inferiores, destituídos de tudo o que lhes poderia conferir civilidade. 3. Oralidade X escrita Ao mesmo tempo em que adquiria valor cultural e histórico, a escrita se associava ao sagrado, assumindo o papel de portadora da voz divina e se estabelecia como verdade, que em última instância, servia ideologicamente à consolidação do poder político colonial na América. A superioridade que a escrita adquiria sobre a oralidade foi um dos fatores usados para justificar a dominação (LA ROSA, 1995/1996). Essa premissa se alinhava às demais diferenças culturais e aos sucessivos equívocos de interpretação que ocorriam entre as culturas espanholas e as administradas pelo Império Inca, conduzindo muitas vezes indivíduos à tortura e à morte. Possivelmente, a cena em que o rei Atahualpa foi morto porque não pôde “ouvir” o que dizia o livro sagrado cristão, atirando-o ao chão, é a que melhor ilustra o fosso entre as culturas espanhola e a incaica: “o encontro de cristãos-espanhóis com o penúltimo descendente da monarquía inca, o

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rei Atahualpa, adquiriu dimensões legendárias de coragem, astúcia e terror no mundo ocidental, e significou uma ruptura abrupta, violenta e irreversível [...]” (SUBIRATS, 1994, p. 202). O rei Atahualpa foi condenado à morte após ter atirado o livro sagrado cristão ao chão, porque este não lhe dizia nada. Essa história ilustra também a diferença extrema entre as formas de registro que se confrontavam: oralidade e escrita, que, segundo Pacheco (1992) constituindo uma pugna secular na América Latina. A escrita suplantava violentamente a oralidade e as formas de notação andinas, como sinônimo da palavra divina e poder. E era por meio desse novo tipo de notação que os índios perdiam suas terras, eram condenados à morte e tinham suas culturas aniquiladas. Guamán Poma compreendeu e se apropriou da ideia medieval de livro: “uma arca de depósito na qual se depositam aquelas coisas que pertencem à informação e à claridade de entendimento, para significar informação essencial ou coisas ou figuras (VENEGAS, 1540/1983 apud Quispe-Agnoli, 2006, p. 162. Compreendeu também que esse objeto era sagrado e poderoso, pois a escritura sagrada era fruto das práticas ideológicas cristãs da Conquista. Compreendeu por fim que, para os espanhóis, a escritura era o único meio que podia fazer durar no tempo e no espaço e que ao estar fixada num recipiente ou portador de signos tangíveis, serve para preservar a memória do esquecimento, dá permanência ao conhecimiento e cumpre assim a função histórica de relacionar passado, presente e futuro. Além disso, dá coerência e ordena a informação (QUISPE-AGNOLI, 2006, p. 157).

Guamán Poma vai fixar, portanto, as memórias dos povos andinos e suas reivindicações entrelaçando oralidade e escrita. É importante ressaltar, entretanto, que a oralidade não se insere no discurso de Guamán Poma, meramente como reflexo das culturas andinas, como os desenhos, invocações, orações em língua indígena, cantos que remetem a rituais etc. O autor mistura essas oralidades com outros gêneros orais coloniais, tais como: eclesiásticos: missas, sermões, orações; seculares: diálogos entre diferentes personagens espanhóis e índios; interrogatórios com o objetivo de produzir testemunhos (QUISPE-AGNOLI, 2006, p. 222). A introdução, tanto de práticas culturais e narrativas orais, quanto de glossas em outras línguas insere a multiplicidade de vozes, traduzindo e dando a conhecer aos espanhóis e ao mundo ocidental uma nova visão e organização de mundo, diferentes categorias culturais, saberes e conhecimentos. Esses fatores operam como recursos argumentativos em favor dos índios, como construtos identitários e como construção e registro de memória. Ao inserir vários aspectos da oralidade em sua crônica, Guamán Poma força a escrita, abrindo lugar para as narrativas e sistemas de notações andinos, causando estranheza e, ao mesmo tempo, compelindo o leitor a buscar compreensão para aquilo que sua visão ocidental não tem alcance. Lembrando que “as maneiras de resistir vão variar conforme os modos pelos quais o poder impõe códigos de assujeitamento” (GONDAR, 2003, p. 35), Guamán Poma se apropriou da tecnologia da escrita, utilizando o mesmo instrumento e tecnologia que serviram para justificar e instituir a nova ordem para denunciar o abuso de poder. Ao apoderar-se dos meios de registro e dos saberes necessários para escrever um livro, Guamán Poma se desloca de seu lugar subalterno para um outro lugar: o lugar da ação, da intervenção, da mudança, devolvendo ao contexto da época o gênero crônica transformado e alterado com as inscrições do Novo Mundo. A crônica de Guamán Poma se apresenta, portanto, como resistência, alterando concepções de mundo, misturando saberes, dobrando-se e emergindo no inesperado, ali onde não se havia previsto, incorporando saberes exóticos aos seus, devolvendo-os removidos, recriados, produzindo um novo conhecimento sobre si mesmo e sobre os colonizadores. Guamán Poma emerge como subjetividade nos interstícios do poder e sua crônica insurge ali onde se dá a dobra, a fissura do poder (DELEUZE, 1996). A força criadora de Guamán Poma surge na necessidade de produzir novos significados sobre o passado e sobre o presente, projetando-se para o futuro, isto é, no seu esforço para que

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houvesse vida futura. O autor indígena penetrou e deixou-se penetrar pela nova ordem, na cultura que se impunha, construindo memórias híbridas, dobrando as forças da conquista e da inquisição. 4. Algumas considerações No contexto em que vivemos atualmente, a produção de conhecimento intercultural insurge em meio às forças opressivas do Império (HARDT, M. & NEGRI, 2002) e as demandas coercivas do “Globaritarismo” (SANTOS, 2000) e os conflitos por elas gerados, é por isso que em tempos de crise identitária e da quebra, agora definitiva, da onipotência do conhecimento acadêmico para a solução de problemas sociais básicos, é preciso buscar [na memória de Guamán Poma, por exemplo] novas sínteses entre saberes. Não se trata mais de ‘estudar a natureza do homem primitivo’ ou ‘os produtos da ignorância popular’, mas de reconhecer o saber quase clandestinamente oculto nas entrelinhas de nossas narrativas populares, numa postura de abertura para aprender com o outro1.

E é por essa razão que a crônica de Guamán Poma repercute e incide no presente, como exercício de deslocamento de nossos lugares, de transgressão e rupturas de fronteiras e de hibridismo e como exercício da diferença e respeito à diferença. Mas não só, é fundamental ressaltar o enfrentamento entre saberes ocidentais e indígenas no debate instaurado por Guamán Poma e que nessa instância dialógica, novos saberes são produzidos sobre as culturas envolvidas. Nesse sentido, resistir é produzir conhecimento sobre o outro e sobre si mesmo, descolonizando o olhar sobre a realidade que se quer descrever e compreender. Podemos pensar a escrita da crônica como um gesto que nos permite escolher a mudança e a re-criação de nós mesmos como instrumento de ação, como instrumento de projeto de futuro. Essa obra, adormecida durante 3 séculos parece ter acordado para fazer-nos despertar e nos incita a resistir de forma criativa, a perguntar sobre outras temporalidades e saberes possíveis e a experimentar outras formas de ser e estar no mundo. Referências ALFARO LEGORIO, M. A. Consuelo. Identidad étnica en el texto de Guamán Poma. Universidade Federal do Rio de Janeiro. Departamento de Letras Neolatinas, no prelo. S/d. ALFARO LEGORIO, M. A. Consuelo. Textualidade, imagem e mestiçagem na crônica de Guamán Poma. Universidade Federal do Rio de Janeiro. Departamento de Letras Neolatinas, no prelo. S/d. BAKHTIN, M. Marxismo e filosofia da linguagem. São Paulo: HUCITEC, 1929/1986. Tradução de Michel Lahud e Yara Frateschi Vieira. BINOTTI, Lucía. Prólogos Italianos a Crônicas de La Conquista. Centro Virtual Cervantes, AIH. Actas XI, 1992. DELEUZE, Gilles. Foucault. São Paulo, Brasiliense, 2006. FOUCAULT, M. A ordem do discurso. São Paulo: Loyola, 2000. GONDAR, Jô. Memória, poder e resistência. In: GONDAR, J. E BARRENECHEA, M. Memória e Espaço: trilhas do contemporâneo. Rio de Janeiro: 7 Letras, 2003. GONDAR, Jô. Quatro proposições sobre memória social. In: GONDAR, Jô; DODEBEI, Vera. O que é memória social. Rio de Janeiro: Contra Capa Livraria LTDA., 2005, p. 24. GONZALES BOIXO, José Carlos. Hacia uma definición de lãs crônicas de índias. Anales de Literatura Hispanoamericana, 1999, 28: 227-237. ISBN: 0210-4547 HARDT, M. e NEGRI, A. Império. Rio de Janeiro: Editora Record, 2002. POMA DE AYALA, Felipe. Nueva Corónica y Buen Gobierno. Lima: Fondo de Cultura económica, 2005. 1

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Nestor Ganduglia in http://es.geocities.com/uruguayoculto/magico/montevideo1.htm, vivitado em 25/03/2009

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Tema geral: Línguas e Literaturas: Diversidade e Adversidades na América Latina QUISPE-AGNOLLI, Rocío. La fe andina en la escritura: resistencia e identidad en la obra de Guamán Poma de Ayala. Lima: Fondo Editorial UNMSM, 2006. SANTOS, M. Território e sociedade entrevista com Milton Santos. São Paulo:

Fundação Perceu Abramo, 2000.

SUBIRATS, Eduardo. El continente vacío. México: Siglo Veintiuno Editores, 1994. TILKIN GALLOIS (org.). PATRIMÔNIO CULTURAL IMATERIAL E POVOS INDÍGENAS – EXEMPLOS NO AMAPÁ E NORTE DO PARÁ. IEPÉ, 2006. VENEGAS, Alexo. Primera parte de las diferencias de libros que hay en el universo. Barcelona: Puvill Libros, 1540/1983 apud QUISPE-AGNOLLI, Rocío. La fe andina en la escritura: resistencia e identidad en la obra de Guamán Poma de Ayala. Lima: Fondo Editorial UNMSM, 2006.

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LÍNGUA PORTUGUESA COMO UMA LÍNGUA ESTRANGEIRA: REFLEXÕES DE UMA EXPERIÊNCIA COM UM ALUNO INDIANO Gilmara dos Reis RIBEIRO1 Maria Luiza F. da Silva PIMENTEL2 (Universidade Federal do Pará/Campus de Santarém)

RESUMO: O presente artigo aborda a experiência da aplicação do ensino de língua portuguesa, para um aluno indiano, fazendo uma reflexão sobre as possíveis abordagens adotadas para essa aplicação, em um curto período de dois meses de aula. A importância desse artigo dá-se por tecer possíveis vieses entre a teoria aprendida no Curso de Licenciatura Plena em Letras e a prática do ensino de Português, como língua estrangeira. PALAVRAS-CHAVE: Português; Estrangeiro; Ensino; Aprendizagem; Reflexão. ABSTRACT: This paper shows as experience of the application of the Portuguese language teaching as a foreign language for an Indian student. This experience was done in two months. So this article is important because it can show an experience which the teacher did not have any practice with the Portuguese language teaching as a foreign language but she could transfer her linguistic knowledge acquired in the academy to her practice with the Indian student. KEY WORDS: Portuguese; Foreigner; Learning-teaching; Reflection. Acadêmica do 8º semestre do curso de Letras, da Universidade Federal do Pará. Professora experimental de Língua Portuguesa para estrangeiro. E-mail: gilreis_mara@hotmail.com. 2 Professora de Língua Portuguesa, Linguística e Especialista em Língua Inglesa da Faculdade de Letras, da Universidade Federal do Pará. Orientadora do presente Artigo. E-mail: maiza@ufpa.br. 1


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1. Introdução A iniciativa de dar aula de português para estrangeiro surgiu pela necessidade de auxiliar um missionário indiano a se familiarizar com a língua dos falantes com os quais passaria a conviver, neste caso, os brasileiros. A proposta então foi oferecer aulas de português de segunda-feira a sábado, com duração de duas horas de aula por dia, num curto período de dois meses de aulas, a fim de ensinar o idioma ao aprendiz de forma objetiva para que apresentasse resultados imediatos, haja vista, este ter de viajar sozinho para Brasília para fazer um curso intensivo de Língua Portuguesa, o que urgia o reconhecimento básico da língua, então “o alvo almejado pelo aluno é que determinou as bases do curso” (KUNZENDORFF, 1997, p.32). O objetivo de propor essas aulas com a ajuda de um falante de Língua Portuguesa sem o intermédio de uma língua comum ao conhecimento do aluno e do professor foi justamente o de estabelecer o contato direta e integralmente com o idioma a se estudar, a fim de que o aluno fosse mais motivado a querer aprender o português e compreendê-lo de imediato. A princípio a ideia de dar aula de português para estrangeiro pareceu-me assustadora, pois pensei na dificuldade que seria trabalhar as aulas sem saber se o aluno estaria entendendo, e em como falar de modo que o ajudasse a conhecer a Língua Portuguesa. As expectativas dele também não ficaram atrás, uma vez que depositava em mim uma esperança de ajudá-lo a se comunicar, e por este viés, ajudá-lo a se relacionar com seus companheiros de casa. A expectativa de suprir essa necessidade básica do indivíduo foi o que mais me assustou. A primeira dificuldade encontrada foi em eu não saber falar o inglês, língua de domínio do aluno, e, depois disso, a dificuldade com a falta da prática pedagógica, por não saber por onde começar. Posteriormente, o dilema: Como ensinar Língua Portuguesa sem tornar o ensino gramaticalista, tendo em vista o que discutimos na academia sobre a inviabilidade desse método? 2. Aplicação do ensino de Língua Portuguesa para o estrangeiro indiano: relato As aulas de português para o indiano tiveram a duração de dois meses (oito semanas), somando o equivalente a noventa e seis horas (96 h/a). Os assuntos foram abordados conforme a necessidade comunicativa do aprendiz, a saber: a apresentação do aluno, as letras do alfabeto e seus respectivos fonemas, as classes de palavras (verbo, preposição, pronomes pessoais, etc.) e textos de grau de dificuldade simples. Na primeira semana trabalhamos a construção de diálogos, os quais continham perguntas sobre o aluno para que à medida que fossem lidas e respondidas por ele, pudessem ser preenchidos os textos, como por exemplo, o “Diálogo de Apresentação”, partindo do princípio de que o aluno é um falante, e como tal conhece as estruturas básicas de uma língua. O resultado disso dependeu um pouco da boa percepção do aluno que observando gestos ou palavras-transparentes pôde compreender o contexto e corresponder ao que foi proposto, neste caso, a apresentação. Após explicar a estrutura do diálogo de apresentação e praticá-lo, passamos à verificação do reconhecimento do alfabeto por parte do aluno, que demonstrou estranheza quanto às letras d, j, z e x (grifo nosso) e a relação destas com seus respectivos fonemas. O que precisou que trabalhássemos a escuta e a repetição dos referidos fonemas, e exigiu dele certa atenção e empenho para exercitar o fonemas durante e depois das aulas. Por outro lado, percebi que apesar de possuir dificuldades para pronunciar esses fonemas, o aprendiz de Língua Portuguesa conseguia ler, mesmo que não soubesse o significado do que lia. Tendo em vista que o aluno estrangeiro foi um professor de língua inglesa no seu país de origem, o que facilitou o aprendizado e o tornou aluno-exemplo, até diria autodidata, por ter conhecimentos básicos do funcionamento de uma língua, foi preciso apenas trabalhar a variedade dos fonemas das letras dentro do texto. Para isso, tive como base a obra de Guilhermina Corrêa (1998,

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p. 12), que orienta a trabalhar o ensino de língua partindo do mais complexo para o mais simples e depois percorrer o caminho inverso, ou seja, partir do texto às letras, depois ao contrário, explorando aí as ocorrências fonêmicas. Apesar da obra de Corrêa (1998) ser voltada para a alfabetização de língua materna, essa dinâmica do ensino de língua foi válido para tornar as aulas menos exaustivas e frustrantes. Além disso, estudamos textos do tipo diálogo e narrações, esmiuçando-os a fim de demonstrar a finalidade comunicativa. Nesse momento, pareceu crucial abordar classes gramaticais, em especial os verbos, imprescindíveis para a construção textual e os pronomes pessoais presentes no texto citado. O estudo dos textos abordados seguiu conforme à necessidade de comunicação do aluno, e à sua urgência em reconhecer, como por exemplo, os verbos ser e estar, falar, rezar, morar, etc., bem como as outras classes de palavras. Trabalhamos dos textos às pequenas sentenças e das sentenças aos textos de diálogos e narrativas, sem cairmos na superficialidade da língua. Devido ao curto tempo de estudo, nas aulas abordamos como atividades de fixação apenas sentenças e textos simples e a produção de textos, como narração de fatos vivenciados, descrição de ambiente do país de origem do aluno, etc., e não pudemos adentrar na exploração de textos complexos, como orienta Corrêa (1998, p. 12). De acordo com Soares (1991, apud CUNHA, 2002, p.108-9), é necessário para a produção textual, abordar situações usuais, escrever aquilo que é usado na coloquialidade e realizar uma abordagem gramatical vinculada ao uso da língua. Dessa forma, o aluno estrangeiro precisa ser motivado a ter clareza acerca do seu objetivo comunicativo, sua intenção ao escrever e depois falar, ou vice-versa, tendo sempre em vista o seu interlocutor para qual a enunciação é dirigida. A primeira semana de aulas foi um pouco difícil para o aluno indiano porque ele conhecia da Língua Portuguesa poucas palavras e suas classes, o que resultou, por exemplo, na dificuldade em se expressar por desconhecer verbos e seus tempos, mas à medida que avançávamos no estudo a comunicação se tornava melhor, pois com o passar das aulas o aluno ampliava seu repertório lexical de Língua Portuguesa. Não nos detemos às questões da língua que não eram necessárias, como o uso dos sinais de pontuação, os quais são de seu conhecimento, haja vista que tínhamos apenas dois meses de aula. O método trabalhado também teve como base o livro didático Falar... Ler...Escrever português: um curso para estrangeiros de Emma E. O. F Lima e Samira A. Iunes, publicado em 1999 pela editora EPU, que consiste na exploração do texto oral e escrito. A partir dessa obra que tem “a intenção de proporcionar a um público estrangeiro um método ativo, situacional para a aprendizagem da língua portuguesa, visando à compreensão e expressão oral e escrita em nível de linguagem coloquial correta” (LIMA; IUNES; 1999, p.9), trabalhamos as aulas apenas as adaptando à realidade do aluno e evitamos trabalhar atividades de mero preenchimento de lacunas, atentando, por este viés, para a necessidade de ele exercitar o que aprendia para que se defrontasse com suas dificuldades, para então as trabalharmos, afinal é preciso conhecer o problema e buscar solucioná-lo. Apesar de nas aulas serem produzidas apenas sentenças e textos de grau de dificuldade simples, estes, no entanto, foram produzidos pelo aluno evidenciando a sua realidade e necessidade comunicativa. Ainda em relação às classes gramaticais, estas foram conduzidas levando em consideração a função de sentido (semântica) que desempenham em cada texto, uma vez que os contextos influenciam no sentido delas, daí não dá para se trabalhar regras fechadas de conceituação, salvo raras exceções. Dessa forma, seguimos o método de abordagem das classes gramaticais inseridas no corpo dos textos, utilizando “em vez da memorização de regras e sua aplicação, a exploração dos recursos expressivos da língua em aquisição para a construção do texto” (JUDICE, 2000, p.62). Não se pode abolir das aulas o uso ou a abordagem do funcionamento da gramática da língua estrangeira, mas urge que se mencione os elementos lingüísticos dentro do seu espaço de uso e que se considere que eles fazem parte de um modelo de postura social (MORITA, 1998, p.62-3).

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Além da abordagem dos verbos, é válido citar o uso das preposições, as quais causavam dúvida no aluno, o que nos fez deparar com o caso do uso da preposição de, que dá ideia de posse, matéria, etc., respectivamente como em “A casa de seu irmão é feita de alvenaria” e a confusão com a preposição para, que expressa noções como destino, finalidade, destinação, etc., respectivamente como em “Ele foi para a casa do irmão ligar para o amigo para avisar que está bem” (grifo nosso). O fato de segundo Lima e Iunes (id., ibidem), a abordagem gramatical contextualizada tornar a progressão ativa, devido obedecer, “não só ao nível de dificuldade, mas também à urgência e necessidade do problema gramatical”, permitiu esclarecer essas dúvidas. O meu papel enquanto professora foi estar atenta à necessidade de aprendizagem do aluno, observando-o, ouvindo-o, colhendo sugestão do que trabalhar, levando em consideração seus conhecimentos lingüísticos e sua necessidade de comunicação. De imediato trabalhamos muitos exercícios, inclusive a produção de textos para aplicar o que havia estudado, dessa forma, os exercícios funcionaram como suporte à aprendizagem e ao meu trabalho, porque era aí que podia comprovar o rendimento das aulas, bem como podia trabalhar em cima dos problemas observados, como a falta de coesão e coerência devido à inserção de elementos inadequados, ou a falta de outros adequados, por exemplo. Quanto às atividades aplicamo-as a partir de possíveis situações como: o que poderia acontecer se saísse de casa e precisasse falar com alguém; pedir informações. Além disso, abordamos o dia-a-dia do aluno, o diálogo com seus companheiros de casa, suas necessidades imediatas de comunicação, e exploramos questões norteadoras para abordar os verbos, os diferentes sentidos das preposições, as concordâncias e coerências, etc., como por exemplo, o que, para que, quem, com quem, o que quer dizer isso, que intenção tenho ao dizê-la. Dessa forma, as atividades puderam “inscrever-se em contextos de comunicação relevantes; apresentar enunciados que permitam aos aprendizes perceberem claramente seu objetivo” (JUDICE, 2000, p. 58). A oralidade também foi de grande relevância, pois se nas aulas de Língua Portuguesa para brasileiros é necessário haver a participação oral da classe discente em termos de colaborar na construção do conhecimento e de partilhar experiências com os colegas, mais do que nessas aulas, é de crucial importância o diálogo durante as aulas de português para estrangeiros, uma vez que assim se pode confirmar a assimilação da sistematização da língua estudada. Além disso, a reescritura de textos escritos após a leitura de correção ajudou a fixar o aprendizado ainda mais. 3. O material didático de Português para o ensino de Língua Estrangeira Ter um material didático preparado, como apoio para o ensino de Língua Estrangeira foi até certo ponto motivador, por entendê-lo como fruto de pesquisa e experiências de profissionais dessa área de ensino, o que foi de grande ajuda para uma aprendiz na arte do ensino. Mas, apesar de nossas aulas estarem embasadas no Livro Didático de Português (LDP) de Lima e Iunes (1999) a ordem das aulas obedeceu à necessidade do aluno, levando em consideração seu centro de interesse, até porque o livro não é tão atual. Não nos prendemos ao LDP no sentido cronológico, mas extraímos dele o que melhor favorecia à proficiência lingüística do aluno. Partimos da autonomia para planejar e ministrar as aulas, tornando o LDP apenas um apoio no processo ensino-aprendizagem. Para Morita (1998, p. 61), é sempre necessário repensar o material didático de língua estrangeira, tendo em vista que nenhum material atende completamente às necessidades e interesses dos aprendizes, até porque cada aluno representa uma realidade e perfil diferentes. A autora propõe então que o material didático seja passível de alterações, modificações, substituições e intervenções pelo professor, atuando dessa maneira como apoio ao professor e ao aluno e não “o dono da aula” (id., ibidem, p. 64).

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Então, nesta experiência o livro foi explorado a partir do que podia ajudar no desenvolvimento cognitivo do aluno. 4. A (s) abordagem (s) ou método (s) utilizado (s): da prática à teoria Antes de iniciar as aulas de Português para um estrangeiro, ao me perguntar que método eu utilizaria para ensinar o Português, um dos questionamentos levantados foi: Qual a melhor abordagem? Após o encerramento das aulas surge uma outra dúvida: A Abordagem utilizada atendeu a necessidade comunicativa do aluno a partir de um método com base lingüística? Para responder essas perguntas, evidenciaremos comentários de alguns teóricos do ensino de língua estrangeira sobre possíveis abordagens desse ensino, tecendo um paralelo com a abordagem empregada nesta experiência, e neste caso, uma experiência (prática) que precedeu a teoria (MATOS, 1997, p. 16). Apoiados em teorias de cunho lingüístico, alguns professores de língua estrangeira, aplicam suas aulas a partir da Abordagem Comunicativa, mas segundo Neves (1996, p. 70) “com um pé” nas abordagens tradicionais devido ao mito que entende que o ensino de língua deve estar amparado no ensino da gramática, por ser esta a melhor maneira de sistematizar os conhecimentos lingüísticos. Por outro lado, ensinar a língua estrangeira a partir da Abordagem Tradicionalista, método tão criticado, mas também majoritariamente utilizado, consistiria em dar ênfase “ao ensino de gramática de forma dedutiva, através de explicações de regras gramaticais, feitas na língua do aprendiz” (NEVES, 1996, p. 70). Nesta experiência, não se pode dizer que essa abordagem foi utilizada, tendo em vista que a única língua de contato aluno/professor foi a língua estudada. Em relação à língua de contato, é válido ressaltar que a aplicação poderia ter enveredado totalmente para a Abordagem Direta, a qual “proíbe” o uso da língua nativa do aprendiz (id., ibidem, p. 71), se ao contrário do que ocorreu, o fizéssemos de forma imposta, ou a qualquer custo. Como já foi citado o objetivo, de ter como professora uma falante nativa do Português, sem intermediação da Língua Inglesa, por exemplo, foi promover o contato direto e integral com a língua estudada, o Português, mas não como uma regra, com punições em caso de o aluno utilizar sua língua materna, o indiano, ou o inglês, segunda língua do aluno. Vale a isso acrescentar que o desconhecimento, por parte da professora, de uma língua intermediária ajudou para que nesse ensino fosse inserida a Abordagem Direta, mesmo que inconscientemente. A Abordagem Direta, no entanto, nesta experiência, contribuiu sim a partir do momento que durante as aulas ao depararmos com a confusão e dificuldade fonética, “os sons e as sentenças são associados ao significado e à função” (NEVES, 1996, p. 71), e isso ajudou o indiano a perceber as diversas possibilidades de função e semântica dos vocábulos dependendo do contexto, como, por exemplo, o uso de palavras homógrafas. Por isso, Neves (ibidem, p. 71), dizer que essa abordagem propõe o ensino de gramática a partir das estruturas extraídas do texto e os esclarecimentos são feitos por meio de paráfrases, sinônimos, demonstrações. Dessa forma, em comparação com o método tradicionalista, o ensino de gramática nessa abordagem é indutivo, ao contrário da Abordagem Tradicionalista, que enfoca um ensino dedutivo. 4. 1. As habilidades – ouvir e falar Para falar da habilidade – ouvir – passamos a discutir sobre a Abordagem Estrutural ou Áudio Lingual, a partir da qual o ensino de língua estrangeira, deveria, por exemplo, ao se deparar com a dificuldade do aluno em pronunciar certos fonemas, como foi o caso do aluno indiano com os fonemas d, j, z e x, exercitar a habilidade de ouvir e falar de maneira mecânica, apenas pela repetição de termos, ou textos, mas primou-se, no entanto, pela abordagem desses fonemas no corpo do texto.

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Foi necessário frisar os fonemas, ouvi-los, repeti-los, mas sempre levando em conta a sua função de sentido, a sua importância para a compreensão da mensagem. Por essa abordagem conceber o ensino de Língua Estrangeira, neste caso, a Língua Portuguesa, como “formação de hábito através de estímulo e resposta e intensa repetição” (1996, p. 71), Neves diz que essa constante atividade de repetição é cansativa e não corresponde à realidade do aluno, o qual necessita não decorar diálogos, mas criá-los em diversas e irrepetíveis situações comunicativas, todavia, em alguns casos, a repetição dos fonemas é necessária para que a comunicação possa ocorrer sem interferências e falhas, meramente pelo exercício da oralidade. Assim sendo, treinar a oralidade pela habilidade da escuta é importante sim, mas como algo concreto, natural e não forçado ou irreal. 4.2. As habilidades – ler e escrever Em relação à metodologia utilizada no ensino de português ao indiano, cumpre salientar ainda, a importância da prática escrita. A cobrança de atividades escritas, extra-aula, contribuiu também para que o aluno, sem a presença do professor, pudesse pesquisar, arriscar ao construir, por exemplo, uma descrição do seu lar. No que tange à aquisição da escrita Cariello (2000, p.47), afirma que uma das melhores maneiras de o conseguir é a partir da “leitura atenta e com registro pormenorizado das formas”. A respeito da eficácia da escrita para o ensino de língua estrangeira, Bastos (1996, p. 200) enumera três potenciais desenvolvidos com a prática escrita, então citando Ann Raimes (1983, s/p) diz que ele “nos chama a atenção para o fato de que o aluno, ao escrever, está livre das pressões da comunicação face a face, podendo, portanto, aventurar-se, correr riscos no novo sistema lingüístico, durante a sua luta por sentido”. Dessa maneira, a autora nos chama a atenção para a grande contribuição da escrita no processo ensino/aprendizagem de língua estrangeira, pois por ser “regida por regulamentos próprios” (BASTOS, 1996, p.200), a escrita exigirá do aprendiz atenção e habilidade discursiva até mais do que no ato da fala, uma vez que a oralidade conta com o auxílio dos gestos e da expressão facial para a transmissão e compreensão da mensagem, o que não ocorre na escrita, a qual não dispõe da presença do leitor no momento da produção textual, o que segundo a autora exigirá clareza, concisão, objetividade do produtor do texto, neste caso o aluno estrangeiro, que para alcançar esses objetivos desenvolverá sua capacidade de raciocínio, e consequentemente o potencial cognitivo. Além de ser um grande motivador para a criatividade do aluno ao usar o sistema linguístico estudado, o grau de dificuldade da produção escrita sem a interferência do professor fixa ainda mais o que é estudado durante a produção e no momento da correção. Outro potencial desenvolvido com a prática da escrita é o potencial Comunicativo, que por sua vez, é aprimorado pelo uso de estratégias que visam à compreensão da mensagem, como a escolha de termos apropriados e paráfrases por parte do estrangeiro. Este potencial tenderá a aproximar o aluno da realidade lingüística do professor, escrevendo seu texto livremente por analogias, o que levará o professor a dar esclarecimentos de possíveis lacunas como no texto, a saber: “Na Índia pessoas não gostam usar pouca roupa. Eu vi no Brasil as pessoas gostam pouca roupa” (trecho de conversa com o indiano), em que o verbo gostar é utilizado como verbo transitivo direto, por analogia com o verbo estar, um dos primeiros verbos a ser estudado no ensino de língua estrangeira (grifo nosso). O potencial afetivo, também proposto pela autora como suscitado com o exercício da escrita, é desenvolvido a partir do momento que o aprendiz é levado a superar suas limitações expressivas, sua tolerância, então se vê obrigado a mergulhar no estudo do novo sistema lingüístico, consultar dicionários, gramáticas, questionar, sem se deixar frustrar numa primeira tentativa mal sucedida ao se explicar, se comunicar oralmente, principalmente porque no diálogo, o falante não tem tempo para analisar a mensagem antes de dizê-la ao seu interlocutor, no entanto, a escrita permite ao aprendiz essa maior liberdade e tempo na construção de seu texto.

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4.3. A influência da Abordagem Comunicativa nas aulas de Português para o indiano Por fim, passando à Abordagem Comunicativa, a qual, mesmo que não intencionalmente, foi a majoritariamente utilizada, levantaremos algumas características desse tipo de ensino aplicado à língua estrangeira. Como aluna de Licenciatura trabalhar com o ensino de línguas utilizando Abordagem Comunicativa é o mais recomendado, mas às vezes a inexperiência leva-nos a realizar na prática o que tanto questionamos na academia sobre o ensino desvinculado do contexto, seja ele escrito, ou vivencial, e isso era algo que eu não gostaria de experimentar nas aulas de Língua Portuguesa para o indiano. Neves (1996, p. 72), afirma que Abordagem Comunicativa entende que o ensino de língua estrangeira deve realizar um “resgate da língua como um todo, da forma como ela ocorre na comunicação”, flexível, dinâmica e inovadora. Por isso, tendo como objetivo proporcionar um primeiro contato com a língua, objeto de estudo, não com a finalidade de incutir no aluno o sistema lingüístico em toda a sua complexidade, mas com a pretensão de aproximá-lo das pessoas do dia a dia dele, a fim de quebrar a barreira lingüística, as aulas tiveram como objeto de estudo a língua falada no cotidiano, o que não fugiu muito à regra do ensino de Língua Estrangeira que na maioria das vezes “pretendem proporcionar ao estrangeiro a aprendizagem de nossa língua, visando a compreensão e expressão oral, em nível de linguagem coloquial” (KUNZENDORFF, 1997, p. 20). Segundo Neves (1996, p. 73), o ensino de língua estrangeira a partir da Abordagem Comunicativa, compreende as habilidades: ouvir, falar, ler e escrever, com as competências: gramatical, sociolingüística, discursiva e estratégica. A Abordagem Comunicativa, então, exige que a competência gramatical seja importante para o aluno compreender estruturas e regras de pronúncia apenas visando à clareza na Comunicação. A competência sociolingüística para que leve em consideração com quem ou para quem fala no ato comunicativo. A competência discursiva será necessária para que o aluno estrangeiro busque ser coeso e coerente e a competência estratégica será importante para que o aluno possa fazer uso não apenas de textos verbais, como também não verbais, como a expressão facial e gestos, a fim de “se compensar as quebras na comunicação” (NEVES, 1996, p.73). Em relação a essa última competência, é imprescindível registrar a sua eficiência, como pudemos vivenciar durante as aulas, principalmente por não termos uma língua de contato em comum, o que nos exigia muita sensibilidade para compreender o que o outro, neste caso, o aluno, perguntava, e responder com veracidade. Em relação aos princípios da Abordagem Comunicativa, enunciados por Neves (ibidem, p. 73-4), podemos ressaltar que estes foram utilizados nesta experiência de ensino, quando percebemos que houve: 1) A integração das competências supracitadas; 2) A percepção das necessidades comunicativas do aprendiz, o qual precisava se comunicar com os outros moradores do lugar em que estava hospedado, e que poderia contribuir com o ensino/aprendizado, ao evidenciar quais as dificuldades encontradas e que situações mais sentia impossibilidade de compreender e ser compreendido, o que exigia do professor estar atento às suas necessidades de aprendizagem, levando em consideração as possíveis situações que encontraria no seu dia a dia. 3) O aproveitamento dos conhecimentos lingüísticos do aluno, como no caso do indiano que associava rapidamente tendências morfêmicas como no uso de verbos, no tempo passado, por exemplo, o que foi aprimorado pelo seu autodidatismo, o que é importante porque demonstra que o aluno estrangeiro tem consciência da sua responsabilidade no ensino/aprendizado de língua estrangeira. 4) A integração da cultura com o conhecimento e observações do aprendiz como, por exemplo, o estilo de roupas usado no país em que passaria a viver. Considerando-a um método eficiente para o ensino de Língua Estrangeira, Neves (1996, p. 74) enumera algumas características da Abordagem Comunicativa, das quais algumas já foram citadas, mas é válido reforçar, a saber.

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Na Abordagem Comunicativa a língua é estudada dentro de um contexto e não do ponto de vista da forma, daí a necessidade de estudar diálogos tirados da realidade do aprendiz. Este, por sua vez, é visto do ponto de vista social, como membro e interlocutor de um grupo, por isso, vivenciará situações variadas e precisará ser elemento ativo e criativo nas conversações. Um dos meios de o aluno ser ativo também no processo ensino/aprendizagem é ele contribuir com o plano de aula. Nesta experiência, o aluno indiano propunha que trabalhássemos as dificuldades que encontrava no dia a dia, se, por exemplo, precisasse costurar um botão na sua camisa, como deveria solicitar que o ajudassem. Dessa forma, o papel do professor é, e foi, “o de co-comunicador e orientador” (id.,ibidem, p.74) do processo ensino/aprendizagem. O professor de língua estrangeira então precisa elaborar atividades avaliativas que motivem o aluno a fazer uso da suas estratégias de aprendizagem e comunicação, como um aprendiz ativo. A isso vale acrescentar a fala de Kunzendorff (1997, p.35), que diz que o aluno deve “ser o elemento central do processo ensino/aprendizagem”. Por este viés, ele é quem deve definir os objetivos das aulas de Língua Estrangeira tendo como base para isso suas próprias necessidades. Kunzendorff (1997, p.38) acrescenta ainda que a descentralização do professor no ensino ganha uma nova dimensão, uma postura alinear, a qual considera primeiramente a aprendizagem e secundariamente o ensino. E a participação ativa do aluno indiano, como já foi citado, acelerou o aprendizado também por ele ser adulto e ter consciência da necessidade de se familiarizar com o idioma do seu novo país. Então antes mesmo das aulas iniciarem já havia traçado seus objetivos, portanto exigindo que o professor suprisse “as suas necessidades pessoais e particulares” de comunicação (id., ibidem, p.32). Para finalizar, tudo o que foi comentado sobre a Abordagem Comunicativa, fazendo uso da ideia de Neves (1996, p. 74), ensinar língua estrangeira embasado em material didático da Abordagem Comunicativa, não significa obter sucesso certo. É necessário, todavia, considerar o material didático um apoio no processo ensino/aprendizagem e não como algo que se deve seguir à risca sem levar em consideração as necessidades, as dificuldades e o conhecimento do aluno estrangeiro. Pois, como acrescenta Neves (1996, p. 74), utilizar um material com base na Abordagem Comunicativa pode resultar numa aplicação estrutural. Então, o que define que abordagem se utiliza é o objetivo que se tem em mente ao utilizar o material didático. Então, o professor de outro idioma que não o seu, necessita “ter capacidade para experimentar, avaliar, incrementar, adequar e, até mesmo, criar métodos e técnicas” (KUNZENDORFF, 1997, p.36) para aplicar em suas aulas. 4.4. Atividades avaliativas durante as aulas de Língua Estrangeira Em relação às atividades avaliativas, que nesta experiência deram base para a aprendizagem e ensino, pode –se atribuir a elas os esclarecimentos e os preenchimentos de lacunas do que seria importante abordar na aula seguinte. Rivers (1975, p. 284 apud KUNZENDORFF, 1997, p.31), afirma que a finalidade dessas atividades é a de “indicar ao professor e ao aluno as áreas firmes e as fracas: os resultados dos testes irão mostrar quais são as partes do trabalho que devem ser ensinadas e estudadas novamente e quais os pontos que necessitam de prática adicional”. Para isso não basta seguir um roteiro apenas com fins quantitativos, mas sim é necessário analisar o nível de aprendizagem do aluno para então dar prosseguimento nos conteúdos, e principalmente reforçando durante as aulas as práticas oral e escrita dos elementos complexos da língua estudada até que não restem dúvidas (KUNZENDORFF, 1997, p.31). E por ser o aluno indiano um falante adulto de duas línguas (o idioma de seu país e o Inglês) e entender com mais facilidade as estruturas complexas do sistema linguístico, qualquer que seja ele, cabe ao professor, segundo a autora, explorar e esclarecer todo e qualquer aspecto linguístico, a fim de aprimorar no aprendiz o domínio da língua que está estudando.

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Em relação como a escrita é avaliada, Bastos (1996, p.202) acrescenta que não é aceitável a atitude do professor que ao avaliar a produção escrita do aluno evidencie as marcas da falta de coerência gramatical, e rejeita o texto do aluno estrangeiro sem levar em consideração a mensagem que procura transmitir e sem perceber o grau de evolução de um falante estrangeiro ao conseguir ser entendido pelo professor apesar de algumas lacunas ainda serem notórias no texto escrito. Por conseguinte, segundo Júdice (2000, p. 56-7), o professor não deve analisar apenas o número de erros que o texto apresentar, sem considerar a trajetória seguida para a aquisição da língua estrangeira, como se esperasse, durante as aulas, do aprendiz o mesmo desempenho de um falante nativo dessa língua. Apoiada na sugestão de Raimes (1983, s/p) a autora orienta que a correção do texto escrito deve vislumbrar uma leitura pela compreensão global do conteúdo, uma análise de como foram organizadas as ideias e se existe lógica no texto, daí então a avaliação da escrita ser feita em torno do vocabulário, estrutura, ortografias utilizadas, “sendo assim, qualquer trabalho escrito deve ser avaliado quanto a conteúdo, organização, vocabulário, o uso da língua e mecânica” (BASTOS, 1996, p.202). Dessa forma, a avaliação precisa criar uma interação concreta, reconstruir, progredir, proporcionar ao estrangeiro um contínuo mergulho no idioma estudado (JUDICE, 2000, p. 57). Cariello (2000, p.50), por sua vez, reforça que a “correção” da produção escrita precisa ser feita com o auxílio da análise do próprio aluno. Como sugestão e relato de experiência, então afirma que geralmente devolve ao aluno estrangeiro os trabalhos com a indicação dos erros e instiga-o a descobrir que tipo de erro está assinalado. E essa atitude, segundo ela, ativa as competências linguística e estratégica do aprendiz. Na experiência com o indiano, as atividades eram corrigidas oralmente e por escrito, com a interpelação do aluno e posterior reescritura, a fim de demonstrar a clareza na comunicação após os ajustes no texto produzido. Júdice (2000, p.56) afirma que a avaliação das atividades, com o auxílio do aluno, ajuda-o a dialogar construtivamante com o professor e a ser consciente do seu papel no processo de aquisição de uma nova língua. O papel do professor, por sua vez, será “observar como o aprendiz interage na língua-alvo em diversas situações não ensaiadas e semelhantes àquelas da vida real” (id., ibidem, p.58), para isso precisará criar, elaborar, aplicar atividades que atendam ao perfil e realidade do seu aluno, e assim este se percebendo no ato comunicativo “ensaiado” possa interagir na sua realidade. 5. Aquisição Lexical do aluno estrangeiro Uma das principais dificuldades para se comunicar através da construção de textos orais ou escritos em outra língua é o desconhecimento de vocábulos e suas referidas classes, por isso a capacidade de expressão do estrangeiro é a princípio limitada. Segundo Biderman (1998, p.73), a transmissão da informação dá-se através do léxico, dos vocábulos que formam a mensagem, por isso a importância do reconhecimento do léxico para a ocorrência da comunicação (id., ibidem, p.75). Por outro lado, o contato direto com o outro idioma através da convivência com falantes nativos da língua–alvo ajuda a concretizar o conteúdo estudado e assim gradativamente abre caminhos para a interpretação e inferência do estudante estrangeiro, o que não ocorreria se o contato com a língua estudada se desse apenas no decurso das aulas. Nesse sentido, a realidade e seus interlocutores ajudam a amenizar o grau de dificuldade da comunicação por causa da ausência de vocábulos, então termos desconhecidos são representado na oralidade por gestos ou referentes (BIDERMAN, 1998, p.75). Para Turazza (1998, p.97), como estratégia comunicativa o falante então se apropria do “código pictórico” para se fazer entendido e interagir com os outros.

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Não se pode, em se tratando de aquisição lexical, cair na utopia de que um curso de língua estrangeira apresentará ao aprendiz todo o vasto léxico dessa língua, pois isso não ocorre nem mesmo com falantes nativos, mas as aulas precisam, no mínimo, suprir às exigências, e ou urgências, de comunicação do aluno de maneira prática (BIDERMAN, 1998, p.75). Turazza (1998, p.93-4), por sua vez, afirma que o léxico é um dos elementos linguísticos mais necessários para a comunicação por possuir duplamente as funções social e cognitiva. Então, quando faltam as palavras e o conhecimento lexical é limitado, a melhor maneira de conhecer o vocabulário do país estrangeiro é pelo método da imersão. O confronto linguístico com outros falantes dá a possibilidade ao estudante estrangeiro de desenvolver estratégias de aquisição lexical (id., ibidem, p.98) e de comunicação. A título de citação, é válido relatar que o indiano para demonstrar que precisava de uma agulha para pregar o botão de sua camisa, levou, a quem pediria ajuda, a camisa e o botão solto. Essa experiência fixou de forma mais efetiva os vocábulos camisa, agulha, botão e a relação destes com seus significados e funções. É imprescindível lembrar os diversos sentidos de determinados vocábulos. Para abordar essa variação de sentido Turazza (1998, p.102), orienta o ensino a partir de materiais autênticos, mas o curto período de aula para o indiano não nos permitiu explorar a variação linguística de maneira bem consistente.Todavia, cumpre salientar a importância dessa variação relacionada a elementos lexicais, forma e sentido, como uma manifestação particular de cada povo sistematizar seus conhecimentos de mundo através do uso de sinônimos, antônimos, hiperônimos, etc (id., ibidem, p.106). Não se pode, nem se consegue, decorar dicionários, e fora de uma situação linguística real, a aquisição lexical não ocorre, por isso segundo Turazza (1998, p.110), “adquirir um novo vocabulário é apreender, compreender e interpretar marcos de conhecimentos de grupos antropo-socio-culturais”, é aprender através das palavras (id., ibidem, p.113). Por isso o aluno indiano dizer que ampliou sua capacidade de inferência, maneira por ele escolhida para conseguir se comunicar. Então, segundo a autora citada, a aprendizagem do léxico do país estrangeiro é percebida a partir do momento que o aprendiz desenvolveu sua capacidade de produzir paráfrases lingüísticas e discursivas, e assim, o aluno age na realidade pela estratégia de interpretação em vez de compreensão dos sentidos intrínsecos aos vocábulos. (TURAZZA, 1998, p.113-4). 6. Considerações Finais Este trabalho tem a sua importância por relatar uma experiência pioneira para uma acadêmica do curso de Licenciatura Plena em Língua Portuguesa, que foi ensinar sua língua materna em apenas oito semanas de aulas, sem possuir formação específica para esse ensino. Além disso, este trabalho também levanta pressupostos para a necessidade de um curso preparatório para professores de Língua Portuguesa darem aulas para estrangeiros, haja vista a carência dessa formação. Em conversa informal após o encerramento das aulas, o aluno admitiu, em se tratando de um falante nativo, entender menos o que ouve deste do que no que diz respeito às conversas em português com estrangeiros, devido possuir um léxico ainda em expansão, o que tem certa implicação ao ouvir um falante de língua materna que possui um vocabulário mais amplo. O aluno estrangeiro afirmou ainda que ampliou seu grau de inferência, dessa forma, ao ouvir alguém falar, ele parte de suposições e interpretações para compreender e interagir com seu interlocutor. É certo que o aluno estrangeiro ao final de dois meses de aulas não está dominando a Língua Portuguesa nas habilidades: ouvir, falar, ler e escrever fluentemente, mas levando em conta o curto período de aulas, pode-se dizer que ele adquiriu e/ou adaptou sua competência lingüística de forma promissora. Apoiada na ideia de Kunzendorff (1997, p.30) pode-se atribuir essa adaptação da competência de forma promissora à eficiência das aulas individuais de Língua Estrangeira, por permitirem ao professor auxiliar o aluno a superar suas dificuldades com mais especificidade, e prosseguir as aulas obedecendo ao seu grau e ritmo de percepção cognitiva, sem esperar por outros alunos. Por isso a importância do professor estabelecer sua metodologia de ensino a partir dos objetivos do aluno.

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Dessa forma, a teoria de que urge ser o professor mais do que um mestre auto-suficiente, detentor de todo conhecimento, um monitor que está aberto a compartilhar conhecimentos com o aluno num ato cooperativo, é válida não só para o ensino de língua materna aos seus falantes, como também para falantes estrangeiros. O ensino de língua estrangeira, no entanto, segundo Matos (1997, p. 16) exige um plano de aula ainda mais criativo, por necessitar da parte do professor dedicação e responsabilidade ainda maiores, pois precisará disso para conduzir os aprendizes ao pleno desenvolvimento da competência linguística, para que assim se tornem usuários da língua aptos a toda e qualquer situação comunicativa. Apesar da inexperiência da acadêmica na arte de ensinar, as aulas puderam demonstrar para ela que é necessário que o professor tenha antes mesmo que uma carga de experiência na arte docência, a capacidade de observação e análise a fim de que possa trabalhar as dificuldades do aluno, como um mediador da aprendizagem e procurar tornar o aluno de língua um falante comunicativo e proficiente, seja ele estrangeiro ou nativo. Em suma, a aplicação bem sucedida do ensino de língua estrangeira exige um profissional, não somente professor, mas também, um pesquisador que elabore um método que leve em consideração para quem, o que, como e por quê se ensina (KUNZENDORFF, 1997, p.35). Sem levar em conta esses pontos, que são importantes também no ensino de língua materna, as aulas não atenderão às necessidades comunicativas do aluno estrangeiro. Referências BASTOS, H. M. L. A Escrita no Ensino de uma língua estrangeira: Reflexões e Prática. In: OLIVEIRA E PAIVA, V. L. (org.). Ensino de Língua Inglesa: Reflexões e experiências. Campinas, São Paulo: Pontes; Minas Gerais: Departamento de Letras Anglo Germânicas – UFMG, 1996, p. 199-211. BIDERMAN, M. T. C. O vocabulário fundamental no ensino do Português como segunda língua. In: SILVEIRA, R. C. P. (org). Português Língua Estrangeira: Perspectivas. São Paulo: Cortez, 1998, p. 73-91. CARIELLO, G. Escrita e autonomia: o problema das interferências na escrita de futuros professores de Português. In: JUDICE, N. (org.). Português/Língua Estrangeira: leitura, produção e avaliação de textos. Niterói: Intertexto, 2000, p.45-54. CORRÊA, G. P. Alfabetização com base lingüística. Belém: Gráfica e Editora Universitária, 1998. CUNHA, D. A. C. Atividades sobre os Usos ou Exercícios Gramaticais? Uma análise do Discurso Reportado. In: DIONÍSIO, A. P.; BEZERRA., M. A. (orgs.). O Livro Didático de Português: Múltiplos Olhares. 2 ed. Rio de Janeiro: Lucerna, 2002. p. 102-112. JUDICE, N. Avaliação: um instrumento de diálogo. In: JUDICE, N. (org.). Português/Língua Estrangeira: leitura, produção e avaliação de textos. Niterói: Intertexto, 2000. p. 55-64. KUNZENDORFF, J. C. Considerações quanto ao ensino de Português para estrangeiros adultos. In: ALMEIDA FILHO, J. C. P.; LOMBELLO, L. C. (orgs.). O ensino de Português para estrangeiros: pressupostos para o planejamento de curso e elaboração de materiais. 2ed. Campinas, SP: Pontes, 1997, p.19-39. LIMA, E. E. O. F.; IUNES, S. A. Falar.. Ler... Escrever... Português: um curso para estrangeiros. São Paulo: EPU, 1999. MATOS, F. G. Quando a Prática precede a teoria: A criação do PBE. In: ALMEIDA FILHO, J. C. P.; LOMBELLO, L. C. (orgs.). O ensino de Português para estrangeiros: pressupostos para o planejamento de curso e elaboração de materiais. 2.ed. Campinas, SP: Pontes, 1997, p.11-7. MORITA, M. K. (Re) Pensando sobre o material didático de PLE. In: SILVEIRA, R. C. P. (org). Português Língua Estrangeira: Perspectivas. São Paulo: Cortez, 1998, p. 59-72. NEVES, M. S. Os Mitos de abordagens tradicionais e estruturais ainda interferem na prática em sala de aula. In: OLIVEIRA E PAIVA, V. L. (org.).Ensino de Língua Inglesa: Reflexões e experiências. Campinas, São Paulo: Pontes; Minas Gerais: Departamento de Letras Anglo Germânicas – UFMG, 1996, p.69-80. TURAZZA, J. S. O Léxico em língua de interface: dificuldades de aquisição de vocabulário. In: SILVEIRA, R. C. P. (org.). Português Língua Estrangeira: Perspectivas. São Paulo: Cortez, 1998, p. 93-119.

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CICLO DA CASTANHA E LATIFÚNDIOS NA AMAZÔNIA EM SAFRA, DE ABGUAR BASTOS Gilson da Conceição Vitor FARIAS (Universidade Federal do Pará)

RESUMO: A produção da borracha na Amazônia chamada de Ciclo da borracha terminou no início do século XX por causa da queda dos preços. Outros produtos como a castanha foram utilizados e surge o que podemos chamar de Ciclo da castanha, tempo em que os donos de castanhais ganharam muito dinheiro porque os produtos eram vendidos aos mercados internacionais. Mas as pessoas que coletavam as sementes estavam sempre em dívida com seus patrões. Abgaur Bastos publicou em 1937 Safra, romance que apresenta aquele tempo e a situação do trabalhador submetido aos donos de terra que faziam suas leis nas pequenas localidades da floresta amazônica. Sendo assim este texto pretende observar como esta realidade é apresentada na narrativa. PALAVRAS-CHAVE: Literatura; Ciclo da castanha; Latifúndio; História; Amazônia

ABSTRACT: The production of rubber in Amazonia called Ciclo da Borracha finished in the beginning of 20th because of fall of prizes. Others products like Brazilian nuts were used and appeared what we can call Ciclo da castanha, when the owner of lands where were that trees got much money because it were sold to international market. But who collected the nuts was always in debt to your bosses. Abguar Bastos published in 1937 Safra novel that show that time and the situation of workers subdued to the owner of land that did the laws in little cities of Amazon forest. So this text intends to observe how this reality is showed in the novel. KEY WORDS: Literature; Ciclo da castanha; Latifúndios; History; Amazonia


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1. Introdução Ao falar de Literatura da Amazônia logo se imagina uma paisagem com rios e florestas, onde estão presentes seus mitos e mistérios. Mas ao conhecer o que foi produzido sobre esta região, principalmente no século XX, podemos observar que por trás dos encantos da selva existem pessoas numa realidade não muito distante dos outros povos do Brasil, pois a exploração do homem, a miséria, a ocupação de grandes extensões de terras e os desmandos de políticos, também fazem parte da vida desta população. A obra Safra é um caso no qual a Literatura tenta discutir os problemas sociais de Coarí, evidenciando a história da Amazônia e a conjuntura social de uma pequena localidade próximo ao rio Solimões na área central do estado do Amazonas. Sendo assim este texto faz a aproximação do romance com a realidade observando a questão dos latifúndios criados na região a partir do século XIX por causa da extração de produtos silvícolas. 2. Safra: retrato da injustiça e dos desmandos Abguar Bastos, escritor paraense não muito conhecido pelo grande público, mas de vasta obra na Literatura Brasileira, publicou em 1937 o romance Safra, narrativa que mostra a situação do pequeno extrativista da Amazônia que colhe castanha para sobreviver, subjugado pela realidade política do local. A narrativa tem como personagem central Valentim, um pequeno extrativista preso por matar um homem que roubou parte de sua produção. Ele ficava o dia inteiro numa cela diferentemente dos outros prisioneiros que durante o dia andavam soltos pela vila para fazer serviços domésticos ás autoridades sem ser pagos por isso. Valentim queria passar o Natal com sua família, mas apesar do pedido feito ás autoridades por Aninha, sua mulher, e por Chico Polia, um soldado que se sensibilizou com a sua situação, nada pôde ser feito por ele. Tudo o que acontecia na vila estava ligada a realidade política daquele local, pois a prefeitura era dominada por grupos políticos de dois donos de castanhais da região, Leocádio e Dalvino. Eles eram donos de largas extensões de terra e produtores de castanha, por causa disso a inimizade, já que ambos esperavam o prejuízo vindo do adversário, seja pelo roubo do produto ou pelo fechamento dos rios. Valentim, antes de ser preso, trabalhava para Leocádio, mas o outro grupo político estava no poder, se a polícia permitisse que o extratior fosse solto iria desagradar Dalvino. A cidade vivia de suas próprias leis já que o governo estadual não dava importância para a localidade. A cadeia vive escorada, para não cair. Quando o juiz é novato exige que os presos nela permaneçam. Logo a Prefeitura manda dizer que o estado continua em atraso com suas contribuições, e não há verbas para sustentar os reclusos, porque a função policial é do estado e não do Município. Então o Juiz consente que eles trabalhem para os particulares. (BASTOS, 1958, p.14/15)

A indignação de Valentim diante da lei era saber que outros presos como ele estavam soltos. A cadeia, que era uma escola abandonada, não tinha fiscalização e alguns prisioneiros de justiça não voltavam para passar a noite na prisão. Ele estava sendo punido por um crime, mas os outros também deveriam pagar por seus crimes, o que não acontecia. No romance há um capítulo em que Valentim e Chico Polia conversam sobre a injustiça no mundo, já que este tipo de prisão que tem um motivo político acontece em qualquer lugar. Chico Polia considerava haver muita coisa errada neste mundo. E quando via os mosquitos e os besouros voltarem do mato e, com as asas imundas, voarem sobre a cabeça de Valentim, tinha a impressão de que o prisioneiro era um grande detrito, caído num intestino monstruoso. E Chico Polia ficava surpreso ao descobrir que este intestino se localizava na displicente e rancorosa sociedade, de que fazia parte. Tais vísceras não sentiam estremeções quando na fossa das “necessidades”, homens e vermes se misturavam. (BASTOS, 1958, p.8)

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Os donos dos castanhais não eram apenas grandes produtores, mas pessoas poderosas que mandavam na localidade como se fosse propriedade deles. Comerciantes e autoridades rendiam-lhes obediência como troca de favores, por isso jamais podiam ser contrariados. 3. Ciclo da castanha e formação dos latifúndios na região amazônica A extração dos produtos da floresta não só mudou a economia e a densidade demográfica da região como as relações sociais. Na produção da castanha havia várias categorias de trabalhadores, dentre essas estava o castanheiro, também chamado de extrativista, responsável pela quebra do ouriço, coleta das sementes transporte para o depósito. Ele ganhava por hectolitro do produto, porém as ferramentas, comida e remédio eram vendidos por preços altíssimos pelos donos de castanhais deixando o trabalhador com uma dívida que nunca poderia ser paga. Emmi (1999) num estudo sobre as oligarquias e as ocupações de terra na cidade de Marabá no estado do Pará apresenta como era a relação entre os coletores de castanha e donos de castanhais. A referência ao processo produtivo no castanhal questiona a essência do processo de apropriação do excedente, especialmente no que concerne à forma e à vigência dessa apropriação. A apropriação do excedente se daria por meio de troca desigual entre a castanha coletada e as mercadorias adquiridas no barracão, no monopólio da compra da castanha acrescido a mecanismo de forçar dívidas antecipadas e difíceis de serem saldadas, além da fraude na medida do hectolitro. É o dono do castanhal quem estima, estipula o preço do hectolitro que será trocado não por dinheiro, mas por mercadorias do barracão, que serão vendidas por preços muitos superiores aos seus custos. Além disso, a troca desigual é obrigatória e antecipada, porque quando castanheiro vai para o castanhal, ele já recebeu a mercadoria/dinheiro que deverá trocar pela castanha coletada. E raramente o produto do seu trabalho é avaliado de maneira que seja suficiente para cobrir o valor do aviamento, ficando este preso por dívidas ao dono do castanhal, devendo saldar compromissos na próxima safra. (EMMI, 1999, p.72/73)

No romance os preços das castanhas não são apresentados, mas as relações da compra e venda são as mesmas, o narrador também mostra como funcionava este complicado sistema e a concorrência entre trabalhadores para sobreviver naquela região. Valentim está sentado, à espera que o menino traga a canoa grande de atrás do abrigo. Fica espiando o rio pensando como poderá vencer naquela vida de castanheiro; como poderá um dia, entrar no navio-grande como passageiro, ir dar o seu passeio, aliviar as pernas e o pensamento... Ele sabe que é mais um prisioneiro do novo ciclo: o da castanha, tão cheio de peculiaridades. Sabe que está enredado e que na vila, nos sítios, nos rios, a luta é incessante. Sabe que a concorrência se desenvolve entre dois grupos poderosos: de um lado os extratores, de outro os comerciantes, em conjunto com os castanheiros pequenos-proprietários e os castanheiros latifundiários. À família dos comerciantes pertencem o arrendatário de safras, o pequeno e o grande-aviador, todos com a função de comprar e revender a castanha. O arrendatário de safras compra a castanha nos paióis e vende-a no navio-grande. Os aviadores instalam seus estabelecimentos numa das capitais: Manaus ou Belém. E há, também, o “atravessador” que troca ou compra pequenas partidas de amêndoa para revendê-las ao pequeno aviador. São compradores ambulantes, que operam no período das safras, em canoas ligeiras ou à sombra dos batelões. (BASTOS, 1958, p.120)

Apesar da castanha ser comercializada no mercado internacional os coletores do produto viviam na miséria por causa de um sistema injusto de compra e venda. Se eles não tinham poder de compra as pessoas destas localidades que poderiam fazer serviços a eles não tinham oportunidades, pois o dinheiro não circulava no local. Há um capítulo inteiro na narrativa sobre a pobreza na região, onde também é mostrado o cotidiano daquelas pessoas que viviam nas imediações de Coari. Nessas incríveis cidades lacustres pouco se via dinheiro. A troca dos produtos se fazia com gêneros, sapatos, fazendas, armas, chumbo, pólvora, miudezas, remédios e cachaça. (BASTOS, 1958, p.32)

A miséria é apresentada também pelos costumes de alguns personagens. China, por exemplo, era uma prostituta que se entregava apenas aos presos, mesmo que eles não lhe pagassem, ela cuidava de suas feridas e ás vezes se prostituía na cidade para comprar cigarro a eles. Paulino Surdo era um

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homem que não matava morcegos, pois, segundo ele, um desses animais o salvou de uma doença que deixava sua barriga cheia de água. Um grupo crianças chefiado por Manduca, filho de Valentim, tinha o vício de comer barro, é evidente que este vício na verdade era a fome num lugar onde pouco se tinha. A ignorância e a falta de escolas no local faziam com que as pessoas tivessem estas atitudes, já que elas viviam num lugar completamente abandonado pelo poder público. A ocupação de terras na Amazônia data do período de colonização do país, mas se acentua no ciclo da borracha, tempo em que os seringalistas se apossavam de terras da união para explorar a seringa, matéria prima da borracha. A criação dos latifúndios não foi de forma harmoniosa, pois muitos lugares onde os vegetais estavam pertenciam a tribos indígenas. Abguar Bastos apresentou uma parte deste processo de ocupação da região, com enfoque bastante realista ao mostrar a devastação da floresta, já no século XIX, e a guerra contra as tribos indígenas para que os nativos deixassem o local. Nunca o mato foi tão animado. Nunca o mato cheirou tanto a suor. Nunca o mato foi menos mato, tão retumbante era o fragor das pisadas humanas, entre canos de rifles, terçados, tigelinhas, facas, facões, latas e fogos. Nunca o mato viu tanto esplendor de aço e folha-de-fandres. Jamais ouviu tanto estrépido de bichos a fugirem das balas e dos cachorros. Viam-se nas margens dos rios, espantados e imóveis, veados, capivaras, onças, queixadas, e outros espécimens da fauna perseguida. Batalhões da araras e papagaios também passavam em debandada. Não eram só os bichos que fugiam. Também os índios. No Madeira, no Purus, no Juruá, no Acre, no Solimões. A vida do índio era correr. (BASTOS, 1958, p.33)

O ciclo da borracha foi um período que se caracteriza pela exploração e exportação deste produto aos mercados internacionais. Tempo de muita prosperidade para as famílias dos produtores da região amazônica que terminou por causa do cultivo das sementes da seringueira no sudeste da Ásia, o que fez os preços da borracha amazônida despencarem. Com o fim do ciclo da borracha muitas terras foram abandonadas: voltaram a ser da união ou ficaram sem proprietários. Sem escolha, foram utilizados outros produtos da floresta entre eles a castanha. Surge assim o novo ciclo com a mesma infraestrutura, porém a relação entre os produtores e o governo, referente ás terras, era outro. Os castanhais, na maioria, eram áreas públicas. Os empresários faziam um contrato com o governo chamado arrendamento, que permitia a exploração das castanhas em troca de replantio de mudas e construção de estradas. Mas os arrendatários alegavam não haver vantagem em investir numa terra que não lhes pertencia. Os governos não tomavam nenhuma providência diante deste fato e os contratos continuavam a ser renovados. Não é fácil saber precisamente as dimensões destas terras que eram utilizadas, mas pelo que é apresentado no romance, podemos observar que não eram pequenos espaços, pois cada produtor era responsável por uma parte do rio. Essas grandes áreas de terra administradas pelos empresários da castanha remontam ao feudalismo, já que um há um grupo de pessoas que trabalha para alguém num sistema de semiescravidão. Como o livro foi escrito na década de 30 do século XX, o final deste sistema de produção não é apresentado no romance, porém a História mostra que a diminuição da extração da castanha da floresta teve conseqüências desastrosas para a natureza e para os trabalhadores daquela região. A partir da década de 50 o governo concedeu terras aos donos de castanhais sem beneficiar os trabalhadores. Loureiro (2002) apresenta a maneira como estas terras foram concedidas com o apoio dos políticos no Estado do Pará. Com o anúncio da abertura da Belém-Brasília, inúmeros empresários da fora da região começaram a comprar as terras próximas da estrada, esperando a valorização delas. Por seu lado os empresários regionais ficaram temerosos de perderem o controle sobre os castanhais nativos, arrendados por eles. Até então, a quase totalidade dos castanhais encontrava-se sob a condição de serem “castanhais do povo”, como eram

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Tema geral: Línguas e Literaturas: Diversidade e Adversidades na América Latina conhecidos os castanhais situados em terra pública. Empresários e políticos influentes da região se aliaram e pressionaram para que o Governo do Estado do Pará lhes transferisse a posse e o uso dos castanhais. O governo usou então, um tipo de contrato idêntico a um que existiu na Europa, na Idade Média, - o aforamento perpétuo. Pelo aforamento, o Estado transferia os castanhais para senhores de classe rica e para políticos importantes. Observe que a medida foi aprovada por lei (Lei Estadual nº 913, de 04.12.1954). Isso significa que os castanhais - que eram do povo – foram transferidos para particulares, com aprovação dos deputados (que são os representantes do povo). (LOUREIRO, 2002, p.61).

Nos anos 70 a compra de terras na Amazônia se torna ainda mais fácil devido ao empréstimo concedido pelo governo federal para esta finalidade a juros baixos. Nessa mesma época os castanhais começaram a ser derrubados para se tornarem pastos. A partir dos anos 70 começou a derrubada dos castanhais o que implicava no desperdício de uma grande riqueza social, que a natureza havia dado de graça. Deve-se levar em conta que uma castanheira vive 300 anos, o que significa uma produção da qual muitas gerações poderiam se beneficiar Foi um crime ecológico e social sem precedentes. Quase 3 milhões de hectares de terra com abundantes castanhais foram desmatados ou queimados para colocar pasto; algumas áreas foram ocupadas por imigrantes nordestinos que desconheciam o valor da castanha, não sabiam como explorá-la e vinham do Nordeste á procura de terra. E tudo isto se passou às vistas do governo federal e do Estado do Pará. De um lado, o governo federal não promoveu a reforma agrária, dando terras, água irrigada, crédito aos nordestinos no próprio Nordeste. De outro, deixou que os castanhais fossem derrubados ou queimados por fazendeiros e imigrantes que vieram para a Amazônia. (LOUREIRO, 2002,p.62/63).

4. Influências artísticas de uma época A obra de arte focaliza o que a própria História tem dificuldade de observar. O romance com características de denúncia e discussão dos problemas sociais, atuais daquela época, contribui também para compreensão de um contexto social que existe na Amazônia nos dias de hoje. O escritor não foi o único a fazer isso, pois além de seus contemporâneos modernistas houve quem escrevesse sobre a Amazônia desde o século XIX. Romances que apresentam uma dada região problematizando ou exaltando determinado lugar foram denominadas de regionalistas. Estas obras começaram a surgir na época do romantismo com o objetivo de buscar uma identidade nacional. Obras com esta temática sempre estiveram presentes na Literatura Brasileira. Com o passar do tempo o regionalismo passou a ser execrado, principalmente pelos estudiosos, já que um trabalho artístico não pode se ocupar apenas das características e dos costumes de um local. Isso provoca certo preconceito aos romances regionalistas, mas se for observado o estilo antes do tema, vê-se que muitas narrativas podem ser consideradas grandes obras literárias. Leite (1994) faz um panorama das obras regionalistas do país e observa algumas, que por influência de Euclides da Cunha se tornaram um instrumento de denúncia, principalmente as dos escritores amazônidas. Mas há também o Euclides de À margem da história. Sem o brilho de Os sertões, há ensaios aí que aprofundam algo fundamental para o regionalismo: o seu lado popular. Num deles, “Terra sem história” analisa e desvenda, pouco a pouco a “mais criminosa organização do trabalho que se conhece” – do seringueiro – que “ trabalha para escravizar-se”: quanto mais trabalha, mais deve, deixando o seu dia de suor na venda do patrão, “eterno hóspede de sua própria casa”. Como no livro anterior, a descrição do cenário, aparentemente isolada, aponta simbolicamente, para a condição desse homem que desde o início, aparece retratado indiretamente na instabilidade do Rio Amazonas, na inconstância de suas margens, no seu traçado indefinido, na sua história revolta, desordenada, incompleta. Determinista, este ensaio fala da preguiça e da lascívia, da bebedice do homem fruto do meio. Mas, subitamente, o que parecia puro naturalismo repetindo teses já gastas vira uma poderosa denúncia social. O paraíso tropical se transforma num espaço diabólico, onde quem chega deixa a consciência, como dirá mais tarde Macunaíma, também bebendo na fantasia popular. A conclusão surpreendente é que a culpa não é mais do clima ou do meio, mas do homem que escraviza outro homem por cobiça. Desse manancial sai, por exemplo, a obra de Alberto Rangel, Inferno Verde (1908). Infelizmente esta dele apanha mais a exuberância superficial do palavreado. Mas o regionalismo amazônico muito beberá daí para frente na fonte euclidiana, no que tem de alegoria e de realismo. (LEITE, In PIZARRO., 1994, p.627/628).

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Segundo Coutinho (1969) houve quatro gerações de regionalistas na Amazônia. A primeira, na qual se destacam Inglês de Souza e José Veríssimo, destinava-se a apresentar o homem e seus costumes. A segunda, influenciada por Euclides da Cunha e que tem como destaque Alberto Rangel mostrava a Amazônia com um tom cheio de admiração e tristeza, onde o homem é subjugado de todas as formas, tanto pela sua realidade como pela natureza. A terceira, que gerou uma geração de ensaístas, sociólogos e folcloristas, como Raimundo Morais e Alfredo Ladislau, tem um propósito mais “ufanista” uma forma de se contrapor ao estilo da geração anterior. A quarta representada Dalcídio Jurandir e Abguar Bastos, já na época do Modernismo brasileiro, era mais documental, se preocupava em focalizar não só a paisagem mas o social, o humano e o econômico. Abguar Bastos é um dos fundadores do Modernismo no Pará, foi ele quem escreveu o manifesto que convidava outros escritores da Amazônia à nova arte, o Flamin’açu. Suas narrativas datam da década de 30, período em que a escola modernista já não tinha o tom de euforia da primeira fase. A geração posterior queria mostrar e discutir os problemas do Brasil. Sendo assim ao falar sobre Amazônia Abguar Bastos não falava sozinho, houve autores que também apresentaram as mazelas das outras regiões do país. Toda essa realidade cultural além das influências anteriores podem ter sido decisivas na hora de seu enfoque. Ele quis mostrar uma localidade da região amazônica, um povo que vivia na floresta na qual está a dificuldade de sobreviver num lugar sem lei onde o descaso dos governantes é bastante visível. Imbuído de suas influências e consciente da temática que era usada pelos escritores de sua época ele reconstrói em seu livro uma localidade e o seu contexto social. Primeiramente ele cuida do cenário, a floresta amazônica e seus rios. Depois, ele focaliza a realidade política do local onde os donos de terra fazem as leis. Em terceiro lugar ele observa as pessoas que vivem naquele local, que além dos problemas particulares sofrem com o abandono das autoridades, como é o caso de Valentim que apesar de sua vida difícil tem que se preocupar com o filho, Manduca, portador de epilepsia. Apesar da narrativa possuir uma característica que se aproxime do real, é uma ficção. Sendo assim muitas outras coisas podem ser observadas nas obras literárias, inclusive o discurso do artista. Silviano Santiago no ensaio Vale quanto pesa contesta a posição dos artistas que apresentam esta temática na sua obra de arte, pois segundo ele os escritores são de uma classe social que não tem as mesmas necessidades do povo que ele focaliza. Assim sendo o discurso ficcional, antes de refletir sobre os problemas do país, da nação ou da região em perspectivas diferentes e complementares, em visões até mesmo antagônicas, antes de refletir sobre as aspirações multifacetadas e contraditórias da população em geral, o discurso ficcional é réplica (no duplo sentido: cópia e contestação) do discurso de uma classe social dominante que quer enxergar melhor nos acertos e desacertos, que quer se conhecer a si mesma melhor, sobre por onde anda e por onde anda o país que governa ou governava, que se quer consciente das suas ordens e desordens, ou ainda de sua perda gradual e crescente de prestígio e poder face aos novos grupos ou transformações modernizadoras na sociedade. (SANTIAGO, 1982, p.28)

Apesar de ter nascido na região e de saber de seus problemas Abguar Bastos não era uma pessoa que vivia na floresta e sobrevivia de seus produtos, ele era um intelectual que observou uma dada realidade e a publicou, assim como muitos outros fizeram. Por ser de outra classe social e viver em uma outra cidade o escritor apresentou de forma artística a realidade dos povos da floresta amazônica. Safra não é documentário, não é uma reportagem jornalística e não é um texto científico que tenta dar conta do que aconteceu na Amazônia no início e meados do século XX. Mas a temática sobre o local e a tentativa de apresentar a sua maneira a realidade é interessante por marcar uma parte do processo da ocupação das terras na região, assunto não muito fácil de encontrar nos livros de História do Pará e do Brasil.

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5. Conclusão Não é função da Literatura estudar o contexto social de uma localidade nem analisar um período histórico, mas ao observar Safra e outros romances pode-se afirmar que a ficção mostrou de forma profunda o que se passava na região. O escritor não apresentou dados estatísticos sobre a economia e nem documentos sobre os costumes da população, mas pelo que aconteceu com os personagens da obra pode se compreender não só a situação do trabalhador, como a estrutura política de muitas cidades da região na época do ciclo da castanha. As influências do escritor e a forma como muitos de sua época escreveram seus romances contribuiu para que Abguar Bastos fizesse um trabalho que revela a verdadeira Amazônia, por isso Safra é importante. Além disso, o romance apresenta características únicas do movimento modernista do país. É importante observar também que literatura marca a maneira como um povo vive e a sua condição no mundo e no caso da Literatura da Amazônia o cenário, os mitos e convivência do homem com a natureza é de extrema importância, mas se não forem observados sua História e seu contexto social se torna difícil conhecer a realidade da região. Referências BASTOS, A. Safra. 2ed. Rio de janeiro: Conquista, 1958. BARTHES, R. O grau zero da escritura. Tradução de Anne Arnichand e Álvaro Lorencini. São Paulo: Cultrix, s/d. CARDOSO, F.H.; MÜLLER, G. Amazônia: expansão do capitalismo. 2ed. São Paulo: Braziliense, 1978. COUTINHO, A. A literatura no Brasil: Era Modernista. 6.ed. São Paulo: Global, 2001. V.5. EMMI, M. F. A Oligarquia do Tocantins e o domínio dos castanhais. 2.ed. rev. e amp. Belém: UFPA/NAEA, 1999. GUIMARÃES, A. P. Quatro séculos de latifúndio. 4.ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1977. IANNI, O. A luta pela terra: história social da terra e da luta pela terra numa área da Amazônia. Petrópolis, RJ: Vozes, 1981. LEITE, L C. M. Velha Praga? Regionalismo Brasileiro. In: Pizarro, A. (org.). América Latina: Palavra Literatura e cultura. São Paulo: Memorial: Campinas: UNICAMP, 1994. p. 665-702. V.2. LOUREIRO, V. R. Amazônia: História e análise de problemas ( do período da borracha aos dias atuais). Belém: Distribel, 2002. SANTIAGO, S. Vale quanto pesa: ensaios sobre questões político-culturais. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1982.

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PRATIQUES D’ENSEIGNEMENT DE L’ÉCRITURE EN PREMIÈRE ANNÉE DU SECONDAIRE À FEIRA DE SANTANA, AU BRÉSIL Girlene Lima PORTELA (Universidade Estadual de Feira de Santana) Clémence PRÉFONTAINE Gilles FORTIER (Université du Québec à Montréal)

RÉSUMÉ: Afin de mieux connaître les pratiques d’enseignement de l’écriture en première année du secondaire à Feira de Santana, au Brésil, nous avons procédé à l’administration d’un questionnaire à choix multiples auprès de quatre enseignants et nous avons observé 38 heures d’enseignement. Cet article décrit ces pratiques dans deux écoles secondaires et met en relation les réponses au questionnaire et les observations. Il semble que l’écriture y soit peu pratiquée, peu encadrée et qu’elle ne fasse pas véritablement l’objet d’un enseignement. Nous pourrions préciser que les enseignants ne semblent pas comprendre la nécessité d’expliquer aux élèves le processus d’écriture et de leur enseigner des stratégies efficaces pour écrire des textes. MOTS-CLÉS: Écriture; enseignement secondaire; Brésil.

ABSTRACT: In order to describe the teaching practices of writing in middle school at Feira de Santana, Brazil, we proceeded to the administration of a multiple-choice questionnaire to four teachers and we observed 38 hours of teaching and connected the answers to the questionnaire and the observations. This article describes their practices in two middle schools. It seems that the writing is practised little there, little framed and that it is not the subject truly of a teaching. It seems that teachers do not include/understand the need for explaining to their students the process of writing and to teach them effective strategies for writing.


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1. Introduction La situation de l’enseignement et de l’apprentissage de l’écriture au Brésil a changé récemment de façon significative, tout comme l’ensemble de l’éducation, puisque l’accès y est maintenant universel aux niveaux secondaire et universitaire. Toutefois, l’enseignement semble continuer de connaître de sérieuses difficultés relativement à la qualité, à l’égalité et à l’utilisation adéquate des ressources (BROCK et SCHWARTZMAN, 2004). Elle demeure problématique selon une étude réalisée par le Ministério de Educação e Cultura (1999), à laquelle ont participé des bureaux d’éducation de divers états brésiliens. Cette étude conclut que dans l’échantillonnage des 17 814 enseignants qui pratiquent dans la région Nord-Este, où se trouve la ville de Feira de Santana, 10,5 % d’entre eux n’ont pas de formation spécifique pour enseigner la langue. Par ailleurs, 50 % des élèves échouent au concours vestibular qui vérifie la qualité de textes écrits pour l’admission à l’université). Brock et Schwartzman (2004) affirment qu’un grand nombre d’élèves brésiliens terminent leurs études sans avoir appris à lire et à écrire. La nécessité de chercher des solutions à la situation problématique de l’enseignement et de l’apprentissage de la langue écrite au Brésil a déjà fait l’objet de recherches (SCHWARTZMAN, 2004; CHIAPPINI, 1998; GARCEZ, 1998). Oliveira et Schwartzman (2002, cités par Schwartzman, 2004). Ces études précisent que la plus grande difficulté en éducation vient peut-être de l’insuffisance de la formation initiale des enseignants. Toutefois, aucune de ces études ne s’est intéressée spécifiquement à la description ni à l’observation des pratiques d’enseignement de l’écriture au secondaire, ce que nous avons fait. Nous les avons décrites et observées pour un échantillon de quatre enseignants de première année du secondaire, dans deux écoles publiques de la ville de Feira de Santana, de l’état de Bahia, au Brésil. Malgré le caractère réduit de l’échantillon, nous pouvons donner tout de même un aperçu de la réalité qui pourrait être étudiée plus largement à partir des constats que nous faisons. 2 Contexte Dans le contexte scolaire brésilien, l’enseignement de la lecture et surtout de l’écriture a peu d’importance parce que l’enseignement de la langue est principalement centré sur une démarche magistrale qui privilégie le littéraire (REUTER, 1996; SIMARD, 1990), ainsi que l’enseignement de la fonction référentielle du langage. L’activité pédagogique à l’école brésilienne est marquée par le manque de planification pédagogique, ainsi que par l’inadéquation entre les stratégies d’enseignement et les contenus à enseigner. La conception de l’enseignement de la langue de la plupart des enseignants est purement instrumentale et la rédaction constitue une activité isolée. Dans cette perspective, les conditions dans lesquelles l’enseignement de l’écriture est pratiqué au Brésil, alliées au manque de compétences didactiques des enseignants, ont rendu très difficile l’enseignement de l’écriture et, selon Garcez (1998), les enseignants se sentent désorientés devant des conditions d’enseignement aussi floues. Le taux d’échec très élevé en écriture au concours vestibula peut s’expliquer par les situations suivantes: le manque de formation des enseignants, le fait qu’ils ne participent que rarement à des séminaires, colloques ou congrès et qu’ils n’ont pas l’habitude de s’abonner à des revues spécialisées ni d’en lire. Par ailleurs, les enseignants ont accès à peu de matériel didactique intéressant et ils ne disposent pas d’une ambiance de travail adéquate. Il faut aussi considérer l’accès difficile aux programmes de 2e et 3e cycles dans les universités, ce qui ne favorise pas l’inscription des enseignants à des études supérieures. Les enseignants ne sont pas stimulés à développer un enseignement systématique de la production écrite, car souvent ils n’en comprennent pas les avantages pour l’apprentissage de leurs élèves. L’un des obstacles au bon développement de la compétence écrite des élèves brésiliens est leur manque d’occasion d’écrire, car dans la grande majorité des cas, ceux-ci admettent n’écrire que rarement chez eux ou à l’école (GARCEZ, 1998). Par ailleurs, les élèves brésiliens ne disposent pas du temps nécessaire pour répondre aux exigences d’une production écrite de qualité. L’école brésilienne ne stimule pas les élèves à développer de bonnes stratégies d’apprentissage comme faire des lectures

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préalables dans des sources variées, réfléchir sur ces lectures, participer à des débats, écrire à partir d’une thématique présente dans les textes lus, etc. Pour les élèves, la production de textes se fait dans un faux contexte: ils écrivent pour l’enseignant (seul lecteur, quand il lit les textes); la situation de l’usage de la langue est ainsi artificielle. On peut se demander quelle motivation l’élève aurait à écrire un texte que personne ne lira ou bien qui sera lu par une seule personne, qui le corrigera et lui donnera une note. Ces mêmes difficultés, pour l’enseignant et pour l’élève, ont d’ailleurs été soulignées par Garcia-Debanc et Fayol (2002) pour d’autres contextes. Une autre carence du cours de portugais vient du caractère autosuffisant du matériel utilisé pour l’étude de la langue, ce qui n’incite pas les élèves à consulter d’autre matériel, comme des dictionnaires, grammaires, anthologies ou œuvres intégrales, etc.. Notre recherche vise à décrire les pratiques d’enseignement de l’écriture en première année du secondaire à Feira de Santana, au Brésil. 3. Cadre théorique Le texte a longtemps été considéré comme un produit et, actuellement, sous l’influence de la psychologie cognitive, comme un processus qui tient compte de la planification, de la mise en texte et de la révision. La didactisation du processus d’écriture représente un grand défi pour les chercheurs en didactique de l’écriture et pour les enseignants de langue. Processus d’écriture. Les composantes du processus d’écriture que sont la planification, la mise en texte et la révision ont été définies par Hayes et Flower (1980; 1981) et revues par Hayes (1995; 1998; 2004) et par Hayes, Flower, Schriver, Stratman et Carey (1987). Depuis quelques années, il s’y ajoute des considérations pour le scripteur en tenant compte de sa motivation à écrire par exemple (DESCHÊNES, 1988; HAYES, 1995; REUTER, 1996). Ainsi, la planification, qu’on peut aussi nommer préécriture, peut être définie comme l’étape où se fait l’analyse de la situation de communication, l’analyse des consignes, la recherche de la documentation, la recherche et l’organisation des idées, l’élaboration mentale ou par écrit du plan (CORNAIRE et RAYMOND, 1994; LECAVALIER, PRÉFONTAINE et BRASSARD, 1991). La mise en texte implique le respect des règles de cohérence d’un texte, des caractéristiques du type de texte à produire et des contraintes linguistiques (FAYOL, 1996). Quant à elle, la révision implique le retour sur les aspects microstructurels et macrostructurels du texte. Elle peut être réalisée avec l’aide des pairs, ce qui aide grandement les scripteurs (PRÉFONTAINE, 1998). Au delà de ces composantes qui décrivent le travail du scripteur, il importe également de considérer l’importance du contrôle que le scripteur doit exercer sur son processus. Didactique de l’écriture. « La didactique traite des grands principes de l’enseignement et des diverses manières d’enseigner, indépendamment des contenus disciplinaires ». Dans le champ de l’éducation, « la didactique s’intéresse à ce qui se passe entre un enseignant, des élèves et des savoirs particuliers ». (SIMARD, 1997, p. 2- 3). C’est cet intérêt qui nous mène à nous intéresser aux relations établies entre les enseignants et leurs élèves, au moment de l’enseignement de l’écriture. L’enseignant devra respecter le rythme individuel des élèves, leurs connaissances antérieures et, à partir d’une observation préalable de ces éléments, définir la meilleure façon d’intervenir pour développer une production écrite de bonne qualité et susciter leur motivation face à la production écrite (VIAU, 1999). Il est par ailleurs fondamental que l’enseignement de l’écriture soit explicite (PRÉFONTAINE, 1998) et accompagné de modelage de la part de l’enseignant, ce qui évitera que les élèves soient soumis à cette pensée magique qui prône que si l’élève connaît la langue, il sait automatiquement l’utiliser pour écrire (REUTER, 1996).

Pour favoriser les apprentissages, il est fondamental que l’enseignant cherche à comprendre les stratégies d’apprentissage de l’élève en considérant ses composantes affectives, cognitives et métacognitives. Il y a une logique inhérente au contenu de l’enseignement qu’il faut connaître, aussi

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bien que les différents mécanismes de construction graduelle de la connaissance et les conditions de réutilisation de ces connaissances. Il est essentiel de rendre les scripteurs conscients de leurs capacités et de leurs responsabilités face à la production de textes de bonne qualité. Par ailleurs, si les élèves travaillent en sous-groupes avec l’aide de l’enseignant, celui-ci portera son attention sur le développement des habiletés cognitives et métacognitives des élèves, au travers de la motivation. Ceci leur donnera la possibilité d’avoir le contrôle des tâches qu’ils doivent réaliser (VIAU, 1999). Cette didactisation de l’écriture suppose une conscience à la fois du processus d’écriture et de l’encadrement pédagogique nécessaire pour favoriser les apprentissages des élèves. 4. Méthodologie Nous avons réalisé une recherche qualitative, avec comme intention de « produire et analyser des données descriptives » (TAYLOR et BODGAN, 1984, p. 5, cité par DESLAURIERS, 1991, p. 6). Cette recherche nous a permis de connaître les pratiques des enseignants autant par leurs réponses à un questionnaire à choix multiples que par l’observation qui a été faite de cours qui portaient sur l’écriture. Participants. Notre recherche a été réalisée dans deux écoles publiques du secondaire, à Feira de Santana, au Brésil. La première école compte 280 enseignants et 2 004 élèves; la deuxième école compte 123 enseignants et 1 985 élèves. Parmi les enseignants de ces deux écoles, 16 enseignent le portugais. Parmi eux, quatre ont volontairement accepté de faire partie de notre recherche: ils enseignaient seulement au secondaire et ils avaient en moyenne 43 élèves dans chacun de leurs groupes. Ces quatre enseignants avaient entre 11 et 39 ans d’expérience d’enseignement dont, en moyenne, 18 ans d’expérience au secondaire. Instruments de recherche. Afin de recueillir les données nécessaires à la connaissance des pratiques d’écriture scolaire, nous avons utilisé des instruments adaptés à l’approche descriptive: un questionnaire à choix multiples1 et une grille d’observation directe (DE ROBERTIS et PASCAL, 1987; MAYER et OUELLET, 2000). Les pratiques d’enseignement de l’écriture présentées ici proviennent des réponses à la section 2 du questionnaire à choix multiples, qui portait strictement sur les pratiques d’écriture scolaire. Questionnaire à choix multiples. Le questionnaire à choix multiples comprenait 32 questions avec des sous-questions; il constitue une adaptation d’un questionnaire en français validé. La section 2 comportait cinq questions. Ce questionnaire a été complété par les enseignants préalablement à l’observation des cours. Grille d’observation directe. La grille d’observation directe contenait les mêmes items que ceux qui se trouvaient dans la section 2 du questionnaire. Nous avons observé des cours de portugais pendant trois semaines, soit 38 heures. L’observation que nous avons réalisée a été enregistrée sur vidéocassette. 4. Résultats Nous présenterons d’abord les résultats de la section 2 du questionnaire, qui visait à décrire les pratiques d’écriture scolaire, puisque les questions contenues dans cette section correspondent à la préoccupation de recherche à laquelle se limite le présent article. Par la suite, nous présenterons les résultats de nos observations. Finalement, nous comparerons ces résultats obtenus de deux sources complémentaires. Résultats provenant du questionnaire. Nous présentons les résultats obtenus aux questions qui portent sur les contenus suivants: l’identification de l’intention d’écriture et des destinataire (Question 11), la planification de la production écrite (Question 12), la rédaction du Il n’est pas possible de présenter le questionnaire dans sa totalité à cause de son ampleur. Le lecteur trouvera, dans les tableaux, les questions qui ont été considérées ici.

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brouillon (Question 13), la révision/correction du brouillon (Question 14) et la mise au propre (Question 15). La question 11 avait pour objectif de révéler des pratiques des enseignants quant à l’identification de l’intention d’écriture et des destinataires dans le processus d’écriture. Le tableau 1 rapporte la répartition des réponses des enseignants à la question 11. TABLEAU 1: Répartition des réponses des quatre sujets à la question 11 qui portait sur l’identification de l’intention d’écriture et des destinataires

Légende: J: jamais; R: rarement; F: fréquemment; N/A: ne s’applique pas. Intention d’écriture – Deux enseignants ont dit discuter fréquemment avec leurs élèves de l’intention d’écriture et deux autres ont dit le faire rarement. Deux enseignants ont dit laisser fréquemment leurs élèves déterminer leurs intentions d’écriture en équipe et deux autres ont dit le faire rarement. Destinataires – Deux enseignants ont dit présenter fréquemment à leurs élèves les principales caractéristiques des personnes auxquelles s’adresse le texte; l’un a dit le faire rarement et l’autre, qu’il ne le faisait jamais. Deux enseignants ont dit discuter fréquemment avec leurs élèves des caractéristiques des destinataires et les deux autres ont dit le faire rarement. Deux enseignants ont dit laisser fréquemment leurs élèves identifier seuls les principales caractéristiques des personnes auxquelles s’adresse le texte; un autre dit le faire rarement et un autre dit ne jamais le faire. Entraide – Deux enseignants ont dit demander fréquemment à leurs élèves d’identifier en équipe les caractéristiques des destinataires du texte, un a dit ne le faire que rarement et l’autre, ne jamais le faire. Les quatre enseignants déclarent autoriser rarement l’entraide entre leurs élèves. Ces résultats démontrent que peu de pratiques des enseignants se préoccupent de la discussion préalable à la préparation d’une activité d’écriture, autant pour ce qui concerne l’intention d’écriture que les destinataires. Pour ce qui est d’autoriser les élèves à s’entraider, les enseignants déclarent à l’unanimité que cette activité n’est pas courante dans le contexte étudié. Relativement au lien entre l’intention d’écriture et le destinataire, certains chercheurs soutiennent qu’il faut reconnaître l’importance du rôle du scripteur en interaction avec son lecteur potentiel. Ce facteur est directement lié aux objectifs que se fixe un scripteur afin d’atteindre son public cible, qu’il soit individuel ou collectif. Ainsi, accepter l’argumentation de l’auteur peut dépendre davantage de la forme par laquelle elle est appréhendée par le récepteur que de la logique même de cette argumentation. Dans les pratiques d’écriture, il faut donc préparer l’élève à mieux définir son rôle de scripteur, à visualiser son destinataire, à définir son intention d’écriture, parce que c’est à partir de l’image que le locuteur se fait du destinataire, au moment de la production du discours, qu’il utilise l’un ou l’autre mécanisme assimilateur.

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Tout scripteur possède des intentions qui doivent être exprimées clairement pour que le destinataire en comprenne bien le sens. Le développement de cette habileté constitue une des responsabilités de l’école, stimulée par l’incitation à la lecture (DE BEAUGRANDE et DRESSLER, 1981; HALLIDAY et HASAN, 1976; HAYES, 1995). La question 12 avait pour objectif de révéler les pratiques des enseignants quant à la planification de la production d’un texte, la recherche des idées et la préparation d’un plan. Le tableau 2 rapporte la répartition des réponses des enseignants à la question 12. TABLEAU 2: Répartition des réponses des quatre sujets à la question 12 qui portait sur la planification de la production écrite

Légende: J: jamais; R: rarement; F: fréquemment; N/A: ne s’applique pas. Recherche documentaire– Pour l’activité de recherche documentaire, un enseignant dit proposer fréquemment d’en faire à la bibliothèque, deux disent faire rarement cette proposition et un autre dit ne jamais faire cette proposition. Tous les enseignants demandent fréquemment de la faire à la maison. Instruments d’aide – Trois enseignants ont dit fréquemment lire à leurs élèves un ou des textes pouvant suggérer des idées à propos du thème du texte qu’ils leur demandaient d’écrire; un autre a dit le faire rarement. Trois enseignants ont déclaré rarement présenter un film ou une vidéo; un enseignant a dit ne jamais le faire. Deux enseignants ont dit fréquemment présenter un document audio; les deux autres ont dit le faire rarement. Les quatre enseignants ont affirmé rappeler fréquemment la disponibilité des instruments d’aide. Plan – Deux enseignants ont dit proposer fréquemment un plan que les élèves doivent suivre, les deux autres, rarement. Un enseignant a dit proposer fréquemment un plan que les élèves peuvent modifier, trois enseignants ont dit le proposer rarement. Les quatre enseignants ont dit qu’ils participaient rarement à l’élaboration d’un plan collectif avec tous les élèves. Deux enseignants ont dit demander fréquemment la préparation d’un plan individuel, les deux autres ont dit le faire rarement. Un enseignant dit demander fréquemment la préparation d’un plan en équipe, les deux autres disent que cela ne s’applique pas et un enseignant n’a pas répondu. Entraide – Deux enseignants ont dit autoriser fréquemment l’entraide entre leurs élèves, un autre a dit l’autoriser rarement et un enseignant n’a pas répondu. La recherche documentaire se fait donc fréquemment à l’extérieur de la classe et rarement à la bibliothèque de l’école. Présenter un document audio est plutôt rare, probablement parce que le matériel nécessaire pour présenter une vidéo est soit compliqué à obtenir ou non disponible. Le recours à des instruments d’aide semble une pratique très bien établie et fréquemment réalisée.

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Dans leurs pratiques, lorsque les enseignants proposent un plan, ils ne conçoivent pas que celui-ci puisse être modifié. Cette pratique est contraire aux recherches sur le processus d’écriture (HAYES, 1998, 2004) qui montrent que le plan est un instrument dynamique entre les mains du scripteur: il doit pouvoir être modifié par le scripteur en tout temps. Très rarement l’enseignant participe à l’élaboration d’un plan avec ses élèves. Les enseignants sont également partagés quant au fait d’autoriser leurs élèves à s’entraider dans la planification d’un texte. Relativement à la planification des textes, il faut souligner que l’intervention de l’enseignant est très importante pour aider les élèves dans la tâche d’écriture, car l’encadrement de la planification repose non seulement sur la capacité à relever une erreur sur le plan linguistique dans les copies des élèves mais surtout, sur sa capacité à proposer une démarche de planification qui tienne compte à la fois du contexte de production et de l’habileté particulière du scripteur (Préfontaine, 1998). En somme, il faut intégrer la correction de la langue écrite au processus de production du texte (PREFONTAINE et FORTIER, 2004). La question 13 avait pour but de révéler les pratiques des enseignants quant à la rédaction du brouillon. Le tableau 3 rapporte la répartition des réponses des enseignants à la question 13. TABLEAU 3: Répartition des réponses des quatre sujets à la question 13 qui portait sur la rédaction du brouillon

Légende: J: jamais; R: rarement; F: fréquemment; N/A: ne s’applique pas. Recherche documentaire – Deux enseignants ont dit qu’ils proposaient fréquemment de faire une recherche documentaire à la bibliothèque et à la maison; deux autres ont dit le faire rarement. Un enseignant a dit qu’il proposait fréquemment de faire de la recherche documentaire sur Internet et les trois autres ont dit le faire rarement. Entraide – Deux enseignants ont dit autoriser fréquemment l’entraide entre leurs élèves et deux ont dit le faire rarement. Trois enseignants ont dit demander fréquemment à leurs élèves de travailler en équipe, un dit ne le faire que rarement. Aide de la part de l’enseignant – Un enseignant a dit apporter fréquemment de l’aide à tous ses élèves; trois enseignants ont dit le faire rarement. Instruments d’aide à l’écriture – Trois enseignants ont dit rappeler fréquemment la

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disponibilité des instruments d’aide; un a dit le faire rarement. Un enseignant a dit faire utiliser rarement le traitement de texte et une grille de correction; les trois autres enseignants ont répondu ne s’applique pas. Deux enseignants ont dit proposer rarement l’utilisation de stratégies d’autocorrection et deux autres ont dit que ce genre de correction ne s’applique pas dans leurs classes. Lieu de la rédaction du brouillon – Trois enseignants ont dit demander rarement d’écrire le brouillon en classe seulement; un autre a dit que cela ne s’applique pas. Deux enseignants ont dit qu’ils demandaient fréquemment d’écrire le brouillon en classe et à la maison; un autre a dit le faire rarement; un enseignant n’a pas répondu. Sur la demande d’écrire le brouillon uniquement à la maison, tous les enseignants ont dit ne s’applique pas. Intervention de l’enseignant sur le brouillon – Deux enseignants ont dit qu’ils ramassent fréquemment le brouillon pour le lire, un autre dit le faire rarement et un autre dit que cela ne s’applique pas. Relativement à la rédaction du brouillon, les enseignants proposent à leurs élèves uniquement des instruments d’aide de type dictionnaire ou grammaire: ils ne proposent pas aux élèves de recourir à d’autres types d’aide comme le traitement de texte, une grille de correction ou des stratégies d’autocorrection, qui d’ailleurs ne font pas partie du matériel disponible dans les écoles où notre recherche a été réalisée. C’est lors de la rédaction du brouillon que les élèves ont besoin du plus d’aide possible (LECAVALIER, PRÉFONTAINE et BRASSARD, 1991). Toutefois, les enseignants sont partagés quant à l’autorisation de l’entraide entre les élèves: la moitié dit le faire fréquemment, les autres rarement. Par contre, ils sont trois sur quatre à demander fréquemment à leurs élèves de travailler en équipe. Le travail en équipe conduit forcément – d’après nous – à de l’entraide. Les enseignants participant à notre recherche semblent comprendre différemment le travail en équipe. Relativement au lieu de la rédaction, il est intéressant de constater que cela peut se faire fréquemment en classe et à la maison pour deux enseignants. La question 14 avait pour but de révéler les pratiques des enseignants quant à la révision/correction du brouillon. Le tableau 4 rapporte la répartition des réponses des enseignants à la question 14. TABLEAU 4: Répartition des réponses des quatre sujets à la question 14 qui portait sur la révision/correction du brouillon

Légende: J: jamais; R: rarement; F: fréquemment; N/A: ne s’applique pas. Aide de la part de l’enseignant – Un enseignant a dit fréquemment apprendre à ses élèves à bien évaluer les textes de leurs pairs, un autre a dit le faire rarement et les deux autres ont dit que cela ne s’applique pas. Un enseignant a dit apporter fréquemment de l’aide à tous ses élèves, alors que les trois autres ont dit le faire rarement. Entraide – Un enseignant dit fréquemment autoriser l’entraide entre ses

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élèves, deux autres disent le faire rarement et un autre mentionne que cela ne s’applique pas. Les quatre enseignants ont dit fréquemment demander à leurs élèves de travailler en équipe. Instruments d’aide à l’écriture – Les quatre enseignants ont dit qu’ils rappelaient fréquemment la disponibilité des grammaires et des dictionnaires. Un enseignant a dit ne jamais favoriser l’utilisation du traitement de texte, les trois autres ont répondu que cela ne s’applique pas. Un enseignant a dit qu’il favorisait fréquemment l’utilisation d’une grille de correction, les trois autres ont dit que cela ne s’applique pas. Deux enseignants disent fréquemment proposer des stratégies d’autocorrection, un autre enseignant dit le faire rarement et l’autre a dit que cela ne s’applique pas. Lieu de la révision/correction du brouillon – Un enseignant dit demander rarement de réviser/corriger le brouillon en classe seulement; un dit ne jamais le faire et les deux autres enseignants disent que cela ne s’applique pas. Trois enseignants disent fréquemment demander de réviser/corriger le brouillon en classe et à la maison; un autre enseignant dit le faire rarement. Un enseignant dit rarement demander à ses élèves de réviser/corriger le brouillon uniquement à la maison; un autre dit ne jamais le faire et deux enseignants disent que cela ne s’applique pas. Pour ce qui est de la façon de travailler (entraide entre les élèves, en équipe), nous trouvons une certaine contradiction dans les réponses obtenues, car d’un côté les quatre enseignants disent demander à leurs élèves de travailler en équipe, tandis que d’un autre côté, certains disent qu’ils n’autorisent pas l’entraide entre les élèves, ni ne leur apprennent à bien évaluer les textes de leurs pairs. Ainsi, nous constatons que la majorité des enseignants ne demandent pas à leurs élèves de réviser/ corriger le brouillon des textes qu’ils rédigent. Les enseignants brésiliens auraient tout intérêt à comprendre que la révision se fait en observant les objectifs à atteindre, la représentation du problème qui va de la détection du problème jusqu’à sa résolution, comme le soutiennent Hayes et al. (1987). Pendant la révision, le scripteur procède au diagnostic de son texte en vérifiant tout à la fois les aspects discursifs et linguistiques de sa production (BOUDREAU, 1992; PRÉFONTAINE, 1998). C’est une pratique inspirée de ces théories que l’on n’a pas retrouvée dans les classes des enseignants de première secondaire interrogés. La question 15 avait pour but de révéler les pratiques des enseignants quant à la mise au propre. Le tableau 5 rapporte la répartition des réponses des enseignants à la question 15. TABLEAU 5: Répartition des réponses des quatre sujets à la question 15 qui portait sur la mise au propre

Légende: J: jamais; R: rarement; F: fréquemment; N/A: ne s’applique pas.

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Entraide – Deux enseignants disent autoriser fréquemment l’entraide entre leurs élèves; les deux autres disent le faire rarement. Trois enseignants disent fréquemment demander à leurs élèves de travailler en équipe; un dit le demander rarement. Aide de la part de l’enseignant – Les quatre enseignants sont unanimes: ils apportent fréquemment de l’aide à leurs élèves. Deux enseignants disent apporter fréquemment de l’aide à tous leurs élèves; les deux autres enseignants disent ne le faire que rarement. Instruments d’aide à l’écriture – Les quatre enseignants disent rappeler fréquemment la disponibilité des instruments d’aide. Un enseignant dit favoriser fréquemment l’utilisation du traitement de texte; un autre dit le faire rarement; un autre dit que cela ne s’applique pas et un autre a mis un point d’interrogation vis-à-vis cette sous-question. Un enseignant dit fréquemment favoriser l’utilisation d’une grille de correction; les trois autres enseignants disent que cela ne s’applique pas. Un enseignant dit fréquemment proposer des stratégies d’autocorrection; deux disent le proposer rarement et un autre enseignant dit que cela ne s’applique pas. Lieu de la mise au propre du texte – Un enseignant dit fréquemment demander d’écrire le propre en classe seulement; les trois autres disent qu’ils le demandent rarement. Deux enseignants disent fréquemment demander d’écrire le propre en classe et à la maison; les deux autres enseignants disent que cela ne s’applique pas. Un enseignant dit rarement demander d’écrire le propre uniquement à la maison; trois enseignants disent que cela ne s’applique pas. Si les enseignants disent accepter d’apporter de l’aide à leurs élèves, certains d’entre eux admettent rarement autoriser l’entraide entre leurs élèves ou le travail en équipe. Même si les quatre enseignants disent rappeler fréquemment la disponibilité des instruments d’aide, certains d’entre eux disent ne pas avoir l’habitude de favoriser l’utilisation du traitement de texte ou d’une grille de correction ni de proposer des stratégies d’autocorrection ou même de demander d’écrire le propre en classe ou à la maison. Observations. Nos observations nous ont permis de comprendre que les enseignants n’ont pas l’habitude d’enseigner l’écriture; ils donnent des tâches qui ne sont pas expliquées et qui, surtout, ne font pas l’objet d’enseignement de stratégies d’écriture. Lorsqu’il a été question d’écriture en classe, les élèves ont le plus souvent comblé des lacunes dans des exercices, avec des mots et expressions, ou encore avec des caractéristiques d’histoire littéraire. Par exemple, relativement à la préécriture, nous avons observé qu’un enseignant a expliqué aux élèves qu’ils devraient reprendre le contenu du cours précédent (les niveaux de langue) pour construire des poèmes. Dans un autre cas, pour aider les élèves à produire un texte, l’enseignant leur a demandé de former des groupes et il a distribué des textes comme source d’informations. Il a demandé aux élèves de lire et de discuter, en groupe, le contenu et la forme des textes pour ensuite en produire un nouveau sur la même thématique. Cette situation est toutefois exceptionnelle, car la plupart du temps, ce que les enseignants qualifient d’activité d’écriture se limite à la réalisation d’exercices de grammaire ou de littérature, proposés par les manuels scolaires. Pour ce qui est de la mise en texte, rédaction du brouillon et de la révision/correction du brouillon, les enseignants apportent peu d’aide et ne proposent que rarement l’entraide entre pairs. Ils proposent peu aux élèves d’utiliser des instruments d’aide (grammaire, dictionnaire, etc.), d’ailleurs presque absents dans les classes. Bref, les cours sont plutôt magistraux et ne demandent pas la participation des élèves. La seule occasion où nous avons vu de l’activité du côté des élèves, c’est lorsqu’un élève (presque toujours le même) a pris en note des questions dictées par l’enseignant, parfois écrites au tableau, et qu’il y a répondu. Il y a parfois eu des discussions en groupe, mais même assis en équipe, les élèves ne s’entraident pas. Ils sont assis ensemble, mais ils ne travaillent pas ensemble. Évidemment, il y a des cas isolés d’intérêt et d’acceptation des cours, mais le plus souvent, les cours semblent suivre le rituel suivant: les élèves doivent former un groupe, discuter un texte proposé par l’enseignant et répondre aux questions, les lire à haute voix, après l’insistance de leur enseignant (sauf trois rares exceptions). Cela se répète pratiquement à tous les cours. De façon générale, l’entraide n’est pas suggérée aux élèves et le dialogue n’a pas sa place dans les classes observées, pas plus le dialogue entre l’enseignant et ses élèves que le dialogue entre élèves. Comparaison des résultats obtenus par le questionnaire et les observations. Pour ce qui est des données obtenues concernant l’activité de l’écriture scolaire, malgré que trois enseignants

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parmi quatre disent que fréquemment ils font faire de la recherche d’idées, qu’ils proposent de « faire une recherche documentaire à la maison, à la bibliothèque ou sur Internet; de rappeler la disponibilité des instruments d’aide », nos observations révèlent que dans seulement deux cours sur 38, deux enseignants seulement ont demandé de faire une recherche dans des revues ou dans des dictionnaires, à la maison. Les réponses données au questionnaire par les enseignants fournissent un très bon portrait de la réalité, parce que certaines pratiques sont effectivement rares: faire identifier l’intention d’écriture et les destinataires, présenter élèves les principales caractéristiques des personnes auxquelles s’adresse le texte, laisser les élèves identifier seuls ou en équipe les principales caractéristiques des personnes auxquelles s’adresse le texte et faire une recherche documentaire à la bibliothèque. Nos observations ont confirmé ces affirmations. Par ailleurs, les deux enseignants qui ont dit faire fréquemment ces activités ne les font en réalité pas plus souvent que leurs collègues qui ont dit ne les faire que rarement ou jamais. Peut-être y a-t-il là un effet de la désirabilité. Pour ce qui est de l’aide apportée par l’enseignant, malgré que les données obtenues par le questionnaire nous apprennent que trois enseignants parmi quatre disent «accepter d’apporter de l’aide à leurs élèves» ou qu’ils apportent « habituellement de l’aide à tous leurs élèves », nous n’avons jamais observé ces pratiques. Nos observations en classe confirment l’exactitude des réponses des quatre enseignants lorsqu’ils ont répondu ne s’applique pas aux affirmations suivantes, « écrire le brouillon uniquement à la maison », « faire une recherche documentaire sur Internet ou à la bibliothèque », « l’utilisation du traitement de texte ou une grille de correction », « proposer des stratégies d’autocorrection », « écrire le brouillon en classe ou à la maison », « réviser/corriger le brouillon en classe ou à la maison », « écrire le propre en classe ou à la maison », « écrire le propre en classe ou à la maison », « ramasser le brouillon pour le lire et le commenter». En effet, nous n’avons jamais observé de telles pratiques. Selon nos observations, les élèves arrivent tôt et doivent attendre souvent plus de 30 minutes avant que le cours ne commence, souvent parce que les enseignants arrivent en retard. Quand finalement le cours commence, les élèves ne sont pas motivés. Certains lisent des revues, d’autres font des activités variées, quelques-uns parlent aux collègues et il y en a qui ne veulent même pas répondre à une question formulée par les enseignants. Par contre, si l’on considère la quantité d’élèves dans une classe (en moyenne 42), la quantité des cours que les enseignants donnent par semaine (60 heures pour la plupart) ainsi que les difficiles conditions de travail dans les écoles (manque de chaises, manque de table pour que l’enseignant puisse y déposer son matériel de travail, manque de matériel de travail – copies de textes ou livres pour les élèves, papier, etc.), on peut mieux comprendre les contradictions que nous avons observées entre les réponses fournies par les enseignants à nos questionnaires et la réalité dans leurs classes. Les données recueillies permettent de constater que, dans la réalité éducationnelle de Feira de Santana, les élèves ne semblent pas écrire suffisamment pendant les cours de langue et de rédaction, car il n’y a pas eu de discussion concernant des thèmes capables de déclencher une pratique de l’écriture, où l’on puisse observer des étapes bien définies de lecture, de discussion, de planification, de rédaction et de révision, suivies de la réécriture de textes produits à partir d’instructions précises. Selon nos observations, nous avons constaté une déconnexion entre l’enseignement de la langue (règles grammaticales), de la lecture et des types de texte. Des pratiques d’écriture ont été constatées pendant deux cours seulement. Dans plus de 20 cours (sur 38), les élèves font, pour la plupart, des exercices de grammaire ou des exercices liés à la littérature brésilienne et portugaise, selon les suggestions des manuels scolaires. Les données obtenues nous amènent à conclure qu’il y a là nécessité d’une intervention pédagogique, en considérant un cadre conceptuel plus systématique pour mieux cerner les activités d’écriture à l’école.

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Discussion Les résultats que nous avons obtenus nous permettent de constater que les pratiques d’enseignement de l’écriture au Brésil, du moins pour les enseignants observés, ne reflètent pas une grande connaissance du processus d’écriture ni de la didactique de l’écriture. Relativement à l’étape de la planification dans le processus d’écriture, nous avons constaté que la majorité des enseignants ne présente pas à leurs élèves les principales caractéristiques des personnes auxquelles s’adresse le texte ni ne les laisse identifier seuls ou en équipes ces caractéristiques. Ainsi, la pratique de l’écriture par les élèves ne se déroule pas comme un processus d’interaction entre le scripteur et son destinataire. Or, la nécessité de prendre en compte les destinataires et l’intérêt pour l’intention d’écriture devraient faire l’objet de réflexion par le scripteur dès qu’il reçoit une tâche d’écriture (PREFONTAINE, 1998). De façon plus précise, relativement à l’identification de l’intention d’écriture et des destinataires, nous constatons que les pratiques suggérées dans le questionnaire ne correspondent pas aux pratiques les plus fréquentes des enseignants. Ceci peut s’expliquer par la grande difficulté des enseignants de pratiquer ce qu’ils ne connaissent vraisemblablement pas. Par ailleurs, les scripteurs devraient faire de la recherche documentaire avant de commencer à écrire, dans la plupart des productions écrites scolaires, afin de se familiariser avec le thème de leur texte. Visiblement, les enseignants n’ont pas l’habitude de proposer aux élèves de faire cette recherche. Selon les enseignants observés, cette recherche documentaire se fait plutôt rarement à la bibliothèque mais toujours à la maison. La quasi absence d’activités de recherche documentaire s’explique également par le fait que la lecture qui est faite en salle de classe n’a pour but que de connaître le niveau d’intonation des élèves ou de donner lieu à des exercices d’interprétation de textes proposés dans des manuels scolaires et non de faire de la recherche documentaire. Relativement à la mise en texte, une pratique des enseignants nous inquiète: ils disent faire faire de la recherche documentaire à cette étape, mais lorsque les élèves sont concentrés sur la mise en texte, c’est-à-dire la transposition de leurs idées en phrases, avec une préoccupation continuelle sur la langue, ce n’est plus le moment de faire de la recherche documentaire (LECAVALIER, PREFONTAINE et BRASSARD, 1991). La révision, quant à elle, doit être comprise comme un moment d’échanges, de modification des parties du texte, au travers des corrections au niveau de la langue et des idées. Malheureusement, nos résultats montrent que la majorité des enseignants demande rarement aux élèves de se faire aider dans la révision de leurs textes. Ainsi pratiquée à Feira de Santana, la révision n’atteint pas son but principal qui est d’aider le scripteur à faire une comparaison entre l’intention et le produit (FITZGERALD, 1987; HAYES et FLOWER, 1981; SCARDAMALIA et BEREITER, 1986). Quant à l’utilisation d’Internet par les élèves, il faut préciser que la grande majorité d’entre eux n’ont pas de téléphone chez eux. Il leur serait donc difficile de procéder à une recherche sur Internet. Quant à l’utilisation du traitement de texte en classe par les élèves, la quantité d’ordinateurs disponibles dans les écoles est insuffisante pour leur permettre d’y recourir. Il est donc clair que la recherche sur Internet et l’utilisation de l’ordinateur en classe ne sont pas des pratiques courantes dans les écoles publiques de Feira de Santana. En somme, l’utilisation de l’ordinateur est sans doute très limitée à l’école comme à la maison. Relativement à la quasi absence d’entraide entre les élèves, il est regrettable qu’elle ne soit pas pratiquée dans les écoles de première année du secondaire à Feira de Santana, parce que, dans un contexte d’entraide qui suppose des échanges et de la collaboration entre les pairs, les élèves acquièrent des habiletés essentielles au développement de leur autonomie. Dans cette perspective, il serait souhaitable que les élèves travaillent davantage en sous-groupes avec l’aide de l’enseignant, qui porterait son attention sur le développement des habiletés cognitives et métacognitives des élèves, pour faire naître leur motivation, leur donnant la possibilité d’avoir le contrôle des tâches qu’ils doivent réaliser.

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5. Conclusion En synthèse, nous pourrions dire que, d’une manière générale, les enseignants feirenses (de Feira de Santana) que nous avons observés n’ont pas l’habitude de faire pratiquer l’écriture scolaire dans leurs classes et encore moins de l’enseigner. En effet, en ce qui concerne l’enseignement du processus d’écriture, nos résultats montrent que les enseignants que nous avons observés ne comprennent pas l’importance de l’ensemble du processus. En fait, les enseignants de première secondaire de Feira de Santana que nous avons observés n’enseignent pas l’écriture à leurs élèves, c’est-à-dire qu’ils ne les informent pas des compétences à développer, ne leur proposent pas de consignes claires et précises, ne les font pas réfléchir aux processus de mise en texte, de révision et d’évaluation de leur textes et ne leur font pas réaliser plusieurs productions écrites. Cette situation est inquiétante, car les pratiques rapportées par les enseignants montrent qu’ils engagent trop peu souvent leurs élèves dans une démarche d’écriture fondée sur la résolution de problèmes qui doit être planifiée (HAYES, 1995). Les difficultés auxquelles font face les enseignants, par rapport à l’enseignement du portugais et de l’écriture, peuvent aussi être reliées au genre de pédagogie adoptée par la grande majorité des enseignants: les enseignements semblent se limiter à des aspects formels et ne visent aucunement à aider les élèves à activer leurs connaissances antérieures, ni à stimuler de nouvelles idées. En réponse à la question de recherche qui était de savoir comment des enseignants que nous avons observés enseignent l’écriture en première année du secondaire à Feira de Santana, nous pourrions dire que les enseignants feirenses que nous avons observés n’enseignent pas formellement l’écriture, car les cours de langue sont plutôt basés sur des contenus de littérature et sur des exercices de grammaire du portugais, sans aider les élèves à utiliser leurs connaissances sur la langue pour écrire des textes. Références BOUDREAU, G. Les processus cognitifs en production de textes au post secondaire. In G. Roy, R., (dir.), Vers un triple regard sur le français écrit des étudiants de collèges et d’universités (p.109-151). Sherbrooke: Éditions du CRP. 1992. BROCK, C.; SCHWARTZMAN, S. The Challenge of Education in Brazil. Oxford: Symposium Books. 2004. CHIAPPINI, L. A circulação de textos na escola: Um projeto de formação-pesquisa. São Paulo: Cortez., 1998. CORNAIRE, C.; RAYMOND, P. Le point sur la production écrite en didactique des langues. Anjou (Québec): Centre éducatif et culturel, 1994. DE ROBERTIS, C.; PASCAL, H. L’intervention collective en travail social. Paris: Le Centurion. 1987. DESCHÊNES, A.-J. La compréhension et la production de textes. Sillery: Presses de l’Université du Québec. 1988. FAYOL, M. Apprendre à produire des textes. In C. Barré-De-Miniac (dir.), Vers une didactique de l’écriture (p. 131-153). Paris, Bruxelles: De Boeck & Larcier s.a. et INRP. 1996. FIORIN, J. L. Elementos de Análise do Discurso. São Paulo: Contexto. 1996 FITZGERALD, J. Research on revision in writing. Review of Educational Research, 57(4), 481-506. 1987. GARCEZ, L. H. do C. A escrita e o outro. Brasília: Editora Universidade de Brasília. 1998. GARCIA-DEBANC, C.; FAYOL, M. Apports et limites des modèles du processus rédactionnel pour la didactique de la production écrite. Dialogue entre psycholinguistes et didacticiens. Pratique, 115-116, 37-50. 2002. HALLIDAY, M. A. K.; HASAN, R. Cohesion in spoken and written English. Londres: Longman. 1976. HAYES, J. R. What triggers revision? In Linda Allal, Lucile Chanquoy; Pierre Largy (dir.) Revision. Cognitive and instructional processes (p.9-20). Boston/Dordrecht/New York/London: Kluwer Academic Publishers. 2004. ______. Un nouveau cadre pour intégrer cognition et affect dans la rédaction. In A. Piolat et A. Pélissier (dir.), La rédaction de texte (p. 51-101). Lausanne, Paris: Delachaux et Niestlé. 1998.

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ÍNDIOS E EUROPEUS: O CHOQUE CULTURAL NO CARAMURU, OBRA DE SANTA RITA DURÃO Giselda da Rocha FAGUNDES (Universidade Federal do Pará)

RESUMO: O poema de Durão surpreende ao descrever por meio da verossimilhança, principalmente nos Cantos I e II, um choque cultural que se estabeleceu no Brasil por ocasião do descobrimento: de um lado os portugueses, do outro os índios Tupinambás, cada um com seus costumes, crenças, enfim, com culturas diferentes, e diferenças estas que amedrontaram tanto uns quanto outros. Por isso, o que se pretende com este trabalho é mostrar que a passividade e agressividade dos indígenas que estão registradas no poema sob os olhos de Diogo Correia, o aclamado Caramuru, torna esses bravos guerreiros, juntamente com Diogo, através do fantástico das características árcades, os heróis do Brasil. Na obra de Santa Rita Durão, verifica-se a fidelidade do autor as correntes literárias que envolviam a Europa no século XVIII, das quais se destaca a neoclassicista, que buscava imitar grandes epopéias como “Os Lusíadas” de Camões, e o neoquinhentismo, com a descrição do indígena tal qual na literatura de viajantes do século XVI. O saudosismo com que retrata a terra em seus por menores, o sentimento nativista, o bucolismo... Razão e natureza estão sempre juntas mostrando as belezas e encantos do qual se lembra o poeta e, esta viagem fantástica sobre nossos antepassados serve para mostrar-nos uma vez mais que literatura não é apenas uma distração e que, com ela pode-se entender o porquê de certas atitudes, boas e/ou ruins, da sociedade e através dela uma época pode transcender. PALAVRAS-CHAVE: Índios, Europeus, cultura. ABSTRACT: The poem of Durão surprises when describing by means of the probability, mainly in Cantos I and II, a cultural shock that if established in Brazil for occasion of the discovery: of a side the Portuguese, of the other the indians Tupinambás, each one with its customs, beliefs, at last, with different cultures, and differences these that had rightened one how much others in such a way. Therefore, what he intends yourself with this work is to show together that the passivity and aggressiveness of the aboriginals who are registered in the poem under the eyes of Diogo Leather strap, the acclaimed Caramuru, becomes these brave warriors, with Diogo, through fantastic of the characteristics árcades, the heroes of Brazil. In the workmanship of Saint Rita Durão, it is verified allegiance of the author the literary chains that involved the Europe in century XVIII, of which if it detaches the neoclassicista, that it searched to imitate great epics as “the Lusíadas” of Camões, and the neoquinhentismo, with the description of the aboriginal such which in the literature of travellers of century XVI. The saudosismo with that it portraies the land in its for minors, the nativista feeling, the bucolismo... Reason and nature are always together showing to the beauties and enchantments of which if it remembers the poet and, this fantastic trip on our ancestor serves to show a time more to us than literature is not only one distraction and that, with it the reason of certain attitudes, good can be understood and/or bad, of the society and through it a time can exceed. KEY WORDS: Indians, Europeans, culture.


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1. Introduçã Frei José de Santa Rita Durão (1722 – 1784), saudoso de sua terra natal, o Brasil, e seguindo as correntes arcadistas e neoclassicista ou neoquinhentista que encantavam europeus e brasileiros no século XVIII, escreveu o poema épico “Caramuru” (filho do trovão), que trata do descobrimento da Bahia no século XVI feito por Diogo Álvares Correia, o Caramuru. O poema de Durão surpreende ao descrever, através da verossimilhança, principalmente nos Cantos I e II, um choque cultural que se estabeleceu no Brasil por ocasião do descobrimento: de um lado os portugueses, do outro os índios Tupinambás, cada um com seus costumes, crenças, enfim, com culturas diferentes, e diferenças estas que amedrontam tanto uns quanto outros. Pensamentos e atitudes mal interpretadas pelos portugueses com relação, aos indígenas é o que mais me chamou atenção na brilhante obra de Durão, e então busquei esclarecer as minhas duvidas sobre o mito criado sobre os índios e que está presente no épico. Por isso, o que se pretende com este estudo é mostrar que a passividade e agressividade dos indígenas que estão registradas no poema sob os olhos de Diogo Correia, o aclamado Caramuru, torna esses bravos guerreiros, juntamente com Diogo, através do fantástico das características árcades, os heróis do Brasil. No trabalho o referencial teórico foi construído a partir da leitura dos autores: KOTHE (1997), CÂNDIDO (1957), CASTELLO (s/d) e FIGUEIREDO (1949), dentre outros autores, além de Santa Rita Durão. 2. Os índios europeus Sabemos que através de textos literários pode-se entender, conhecer ou buscar entendimento sobre fatos de determinada época da história, e na obra de Santa Rita Durão, o fato escolhido para que se desenvolvesse a criatividade do poeta foi a chegada de Diogo Álvares Correia que no poema ganha o nome de Caramuru (o filho do trovão ) nome este que lhe é dado por Gupeva chefe da tribo dos Tupinambás nativos habitantes da terra nova: o Brasil. Levados ao Brasil por uma tempestade em auto mar os tripulantes da nau em que navegava Diogo não tiveram uma boa impressão dos habitantes da terra que ao verem um náufrago em estado terminal juntam-se para comer-lhe as carnes do corpo moribundo nas seguintes estâncias do canto I: VXI

Mas vendo a Sancho um náufrago que expira Rota a cabeça numa penha aguda Que ia trêmulo a ergue-se e que caíra Que com voz lastimosa implora ajuda; E vendo os olhos que ele em branco vira Cadavérica a face a boca muda Pela experiência da comuã sorte Reconhecem também que aquilo é morte. XVII Correm depois de crê-lo ao pasto horrendo E retalhando o corpo em mil pedaços Vai cada um famélico trazendo Qual um pé qual a mão qual outro os braços: Outros na crua carne iam comendo Tanto na infame gula eram devassos Tais há que as assam nos ardentes fossos Alguns torrando estão na chama os ossos.

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Tema geral: Línguas e Literaturas: Diversidade e Adversidades na América Latina XVIII Que horror da humanidade ver tragada Da própria espécie a carne já corrupta Quando não deve a Europa abençoada A fé do Redentor que humilde escuta ? Não era aquela infâmia praticada Só dessa gente miseranda e bruta Roma e Cartago o sabe no noturno Horrível sacrifício de Saturno. (Durão. P, 22-23)

“Que selvageria que ato anti-humano!” Pensavam com certeza os europeus repletos de medo de serem os próximos a servirem de comida a aquela gente que não tinha vergonha de andar como vieram ao mundo: XX Na boca em carne humana ensangüentada Anda o beiço inferior todo caído Porque a têm toda em roda esburacada E o lábio devis pedras embutido Os dentes que é beleza que lhe agrada Um sobre outro desponta recrescido Nem se lhe vê nascer na barba o pêlo Chata a cara e nariz rijo o cabelo XXI Vê-se no sexo recatado o pejo Sem mais do que a antiga gala que Eva usava Quando por pena de um voraz desejo Da feia desnudez se envergonhava Vão sem pudor com bárbaro despejo Os homens como Adão sem culpa andava; Mas vê-se alma Natura o que lhe ordenas Porque no sacrifício usam de penas. (Idem. p, 24)

Semelhante a descrição que Durão apresenta no épico sob os olhos de Diogo é a descrição dos índios em FIGUEIREDO (1949.p.99)“Andavam nus,... Ornamentavam-se pintando o corpo de preto e encarnado; (...)esfuracando as faces, os lábios e as orelhas por onde introduziam contas de várias cores e penduricalhos.” Os índios mais pareciam animais, aos olhos de Diogo e dos outros náufragos, do que pessoas: XXV Levavam desta forma os desditosos Das fadigas marítimas desfeitos Por pingues ter os pastos horrorosos Sendo que nas carnes míseras refeitos. Feras! Mas feras não, que mais monstruosos São da nossa alma os bárbaros efeitos. E tem corrupta razão mais furor cabe, Que tanto um bruto imaginar não sabe. (DURÃO. P. 26)

Não sabiam os europeus que por terem conseguido chegar ainda com vida a praia onde se encontravam os índios, após um naufrágio, esses seriam considerados muito corajosos, e isto os levaria a morte, mas não como um ato cruel, irracional e sem propósito, como explicita KOTHE (1997. p, 269) “... a antropologia obriga a falar de uma ética indígena, em que o morto continua a viver naqueles que o devoram, como uma homenagem a sua bravura, etc...”.

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Como um ser humano estava ligado, a crendices dos membros da tribo Tupinambá, que acreditavam que comendo um bravo guerreiro, alguém que teve um ato de valentia, esses incorporariam o espírito do guerreiro, que continuaria a viver dentro do Tupinambá, e que daria mais força e coragem a ele. O espírito era algo considerado extremamente superior ao corpo, à matéria física. Depois do herói morto, o corpo apodreceria, e o espírito desapareceria junto com o corpo, se este não fosse comido, e o ato de comer um homem deveria ser considerado uma honra, visto que o índio daria ao morto a vida de volta através dele mesmo, incorporando em si a identidade, a bravura, e todas as outras qualidades de herói. Porém para alguém que estava vendo os índios pela primeira vez, não sabia nada de seus costumes e logo no primeiro contato viu a cena de um banquete do qual o prato principal era um homem, o medo e a preocupação eram muito justos. Assim tentou recriar Durão, aquela que seria a cena do primeiro encontro entre índios e europeus no litoral da Bahia, e que trouxe em suas estrofes, informações valiosas sobre o choque cultural existente entre estes dois lados tão diferentes no modo de pensar e agir. 3. Europeus e índios Se por um lado os índios carregam consigo a terrível e temível forma de canibais, por matarem e comerem os mortos, em nome de algo do qual acreditam fielmente, que designação seria dada aos europeus que antes mesmo de chegar a terra, e de saber dos costumes indígenas, já começaram a destruí-los: LXXXVIII Ouviu o céu piedoso a infeliz gente: E quando o fero a maça já levanta, Que esmague a fronte ao mísero paciente, Trovão se ouve fatal, que tudo espanta. Treme a montanha e cai a rica ingente E na ruína as árvores quebranta: Mas o rumor marcial, que então se ouvia. (DURÃO. p, 34)

E a matar quase impiedosamente, com requintes de muita crueldade. XC Era Sergipe, o príncipe valente Na esquadra valerosa, que atacava: Varão entre os seus bom, manso e prudente, Que com justiça os povos comandava, Armava o forte chefe de presente Contra Gupeva, que cruel reinava Sobre as aldeias, que em tal tempo havia No recôncavo ameno da Bahia XCI Por toda a parte o bahiense é preso; É trucidado o bruto nigromante, Muitos lançados são no fogo aceso; Rendem-se os mais ao vencedor possante. Ficara em vida, todavia, ileso O mísero europeu, que ali em fragante Faz desatar o bom Sergipe, e manda Á escravidão, no seu país mais branda.

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Tema geral: Línguas e Literaturas: Diversidade e Adversidades na América Latina XCII Mas a gente infeliz, no sertão vasto, Por matos e montanhas dividida É fama que uns de tigres foram pastos Outra parte dos bárbaros comida Nem mais houve notícia ou leve rasto Como houvesse perdido a amada vida; Mas há boa suspeita e firme indicio; Que evadiram o infame sacrifício. (Idem. P. 35)

O ataque de príncipe Sergipe aos índios à beira da praia na Bahia, é considerado uma coisa boa, pois já que um índio mata um homem, para alimentar-se (pensamento europeu), porque não matá-los também, antes que se vire comida para eles? E esta pode ser considerada uma das desculpas para a matança indiscriminada de índios que ocorreu não só na Bahia, mas sim em todo Brasil. O contraste evidenciado por Durão através de sua narrativa verossímil é muito grande; o europeu desconhecido o indígena, que era um povo de costumes considerados muito primitivos, se comparados aos costumes europeus, que não eram melhores, mas sim evoluídos, e o indígena desconhecia o europeu e seus costumes também. Acostumados a defender seu território da invasão de seus iguais, os índios rebelaram-se contra os estrangeiros. Mal sabiam eles que não teriam a menor chance diante dos apetrechos bélicos dos viajantes, como foi notado também por KOTHE (1997.p.240). ...Se ele ousa se rebelar tomando nas mãos flechas e tacapes, isso apenas serve para demonstrar que suas armas são não armas diante dos canhões, fuzis, cavalos espadas e armaduras...

Muitos foram mortos e serviram de comida para outros índios, (seguindo a crença descrita na primeira parte do desenvolvimento deste trabalho) alguns conseguiam, se escondendo, escapar da “superioridade europeia”, e houve, ainda, aqueles que com medo de morrer, entregavam-se nas mãos dos viajantes, e eram escravizados, por serem considerados inferiores, quase animais. Esta visão está de acordo com o que diz KOTHE (idem. p, 239-240). “Se os índios não tinham alma, pois não a reconheciam então podiam ser escravizados como animais de carga ou mortos, sem que o europeu precisasse ter dores de consciência(...).”

O imaginário na literatura de Santa Rita Durão chega muito próximo de uma realidade brasileira, que ele não viveu se não por escritos que tratavam de sua terra natal, mas nem por isso deixou de mostrar a verdade (verossimilhança) do Brasil em seu poema; os índios, assim como aconteceu com os outros povos colonizados por europeus, tiveram que, por fim, renderam-se para não morrerem, submetendo-se as vontades de transformação por parte dos colonizadores, deixando de lado seus costumes, crenças, sua identidade... Foram denominados: “... O dominado tende a adotar como sua a língua a cultura e a visão de mundo do dominador,... por reconhecer uma real superioridade do senhor”. (idem.p.241). 4. Tal era o povo rude Diogo Álvares Correia foi lançado por Santa Rita Durão ao ser clamado pelos índios como Caramuru, o filho do trovão, que na sua ingenuidade viram um trovão sair das mãos de Diogo ao invés de um tiro disparado por uma arma. Neste momento achou-se que Tupã (Deus dos indígenas) teria mandado uma espécie deus para defender-lhes; O Caramuru. Porém, um dos feitos mais louváveis (se não o mais louvável) do filho do trovão foi, após adquirir a confiança do chefe Gupeva e dos outros Tupinambás, reconheceu que os índios, ao contrário do que ele próprio pensava, eram “pessoas normais”, que não viviam ao relento como animais selvagens, que possuíam família e dela cuidavam, assim como cuidavam também dos demais membros da tribo:

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Anais do II Congresso Internacional de Estudos Linguísticos e Literários na Amazônia (CIELLA) LIX Qualquer delas, com mole volumosa, Corre direita em linhas paralelas; E mais comprida ao lado que espaçosa, Não tem paredes ou colunas belas. Um ângulo no cume a faz vistosa, E coberta de palmas amarelas, Sobre árvores se estriba, altas e boas, De seiscentas capaz, ou mil pessoas. LX Qual o velho Noé na imensa barca Que a bárbara cabana que tudo imita, Ferozes animais, provido, embarca, Onde a turba brutal tranqüila habita, Tal o rude tapuia na grande arca; Ali dorme, ali come, ali medita, Ali se faz humano e, de amor mole, Alimenta a mulher e afaga a prole. LXI Dentro da grã choupana, a cada passo Pende de lenho a lenho a rêde extensa; Ali descanso toma o corpo lasso, Ali se esconde a marital licença. Repousa a filha no materno abraço Em rede especial, que tem suspensa; Nenhum se vê (que é raro) em tal vivenda Que a mulher de outrem nem a filha ofenda. (DURÃO, p, 48-49)

Diogo ganha tal grau de intimidade que chega a presenciar o nascimento de uma criança na tribo. Diferente dos partos vistos por ele na Europa, neste a mãe da à luz sem a ajuda, nem de parteira, nem de marido, de ninguém. O marido, só minutos depois de o filho nascer, apresenta-se, onde está a esposa em trabalho final de parto, e tomando a criança nos braços inicia com ela uma conversa, dizendo como ela deve ser, e dá-lhe um nome. A tribo se junta ao redor do recém – nascido e festeja mais um nascimento: LXII Ali chegando a esposa fecunda A têrmo já feliz, nunca se omite De pôr na rede o pai a prole amada, Onde o amigo e parente o felicite; E como se a mulher sofrera nada, Tudo ao pai, reclinado, então se admite. Qual fora, tendo sido em morto sério Seu próprio e não das mães e puerpério. LXIII Quando na rede encosta o termo infante, Pinta-o de negro todo e de vermelho; Um pequeno arco põe, flecha volante, E um bom cutelo ao lado; e, em tom de velho, Com discurso patético e zelante, Vai-lhe inspirando o paternal conselho: Seja forte, diz, (como se o ouvisse) Que saiba vingar, que não fugisse

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Tema geral: Línguas e Literaturas: Diversidade e Adversidades na América Latina LXIV Dá-lhe depois o nome, que apropria Por semelhança que ao infante iguala, Ou com que o espera célebre algum dia Senão é por defeito que o assinala. A algum na frente o nome se imprimia, Ou pinta no verniz, que tem por gala; E segundo a figura se lhe observa Dão-lhe o nome de fera, fruto ou erva. LXV Trabalha entanto a mãe, sem nova cura, Quando o parto conclui; e em tempo breve, Sem mais arte que a provida natura, Sente-se lesta e sã, obusta e leve. Feliz gente, se unisse com fé pura A sóbria educação, que simples teve! Que o que a nós nos faz fracos, sempre estimo, Que é, mais que pena ou dor, melindre e mimo. (DURÃO. P, 49-51)

É muito interessante a descrição que Durão faz por meio de sua personagem, o Caramuru, de modo de agir das famílias da tribo e de sua união com os demais membros da tribo, ao contar sobre um nascimento, de como a criança se junta à família para procurar comida, de como os pais agem quando o filho está doente, indo pedir ajuda aos mais experientes, procurando uma cura, e qual a decisão tomada pelos índios se a criança não tem cura: LXVI Vai com o adulto filho à caça ou a pesca O solícito pai pelo alimento; O peixe à mulher traz e a carne fresca E á tenra prole a fruta por sustento A nova provisão sempre refresca E dá nesta fadiga um documento, Que quem nega o sustento a quem deu vida, Quis ser pai, por fazer-se um parricida. LXVII Que se acontece que a enferma se venha, Concorre com piedade a turba amiga, E por dar-lhe um remédio, que convenha, Consultam-no entre si com gente antiga; Buscas quem de erva saiba ou cura tenha, Que possa dar alivio ao que periga, Ou talvez sangram, numa febre ardente, Servindo de lecenta um lindo dente. LXVIII Mas vendo-se um mortal já na agonia, Sem ter para o remédio outra esperança, Estima a bruta gente ação mui pia, Tirar-lhe a vida com a maça ou lança Se morre o tenro filho, a mãe seria Estimada cruel, quando a criança, Que com pouco antes ao mundo dela veio, Não torna ao seu lugar no próprio seio.

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Anais do II Congresso Internacional de Estudos Linguísticos e Literários na Amazônia (CIELLA) LXIX Tal era o povo rude... (DURÃO. P, 51-52)

Como quaisquer outros povos de que se tem notícia, os índios tinham a sua vida própria, que foi brilhantemente exposta por Durão em sua obra e que foi sintetizada dos seguintes modos por Antonio Cândido e por Aderaldo Castello: A fantasia a que se abandona e com efeito precedida pela descrição dos costumes, das técnicas, dos ritos, tão exata quanto possível no seu tempo. O sacrifício ritual, o sobreposto, o conselho dos varões, as danças, os combates, a estrutura das tabas, a própria construção das malocas são tratados em estrofes significativas. (CÂNDIDO, 1957. p, 181-182) E o elemento indígena se faz presente em toda a extensão da obra, de baixo da preocupação objetiva e imparcial do poeta de nos oferecer informações sobre lendas, tradições, hábitos e costumes, instituições e valor guerreiro do indígena(...). (CASTELLO. s/d.p, 173)

Diferentes ou parecidos em algumas coisas, os indígenas e os europeus foram vítimas (a principio) de interesses particulares, ora de uns, ora de outros, e de diversos mal-entendidos ao longo da história da colonização do Brasil. O saudosismo e o sentimento nativista do poeta uniram uns aos outros numa grande obra brasileira, mas do que um poema épico é uma declaração de amor à pátria. 5. Considerações finais Na obra de Santa Rita Durão, verifica-se a fidelidade do autor às correntes literárias que envolviam a Europa no século XVIII, principalmente o movimento neoclassicista, que buscava imitar grandes epopéias como “Os lusíadas” de Camões, e o ressurgimento do quinhentismo, denominado neoquinhentismo, com a descrição do indígena, tal qual na literatura de viajantes do século XVI. O saudosismo a retratar a terra em seus por menores, o sentimento notivista do poeta, o bucolismo... Razão, natureza e verdade estão sempre juntas, mostrando as belezas e encantos do qual se lembra o poeta. Esta viagem fantástica sobre nossos antepassados, serve para mostrar-nos uma vez mais que literatura não é apenas uma distração, e que com ela pode-se entender o porquê de certas atitudes, boas ou ruins, de uma sociedade, e somente através dela uma época pode transcender. Muito se perdeu e muito se aprendeu com a chegada dos europeus ao Brasil, porém há de ficar para sempre a lição de que as aparências enganam, e a primeira impressão nem sempre é a que fica, que o seu inimigo de hoje, pode ser seu amigo amanhã, como aconteceu com Diogo e o Tupinambás, história esta imortalizada na singular obra de Durão. Referências BOSI, Alfredo. História Concisa da Literatura Brasileira. São Paulo: Cultrix, 1986. CÂNDIDO, Antônio. Formação da Literatura Brasileira: Momentos Decisivos. 1º Volume. São Paulo: Editora Martins, 1957. CASTELLO, J. Aderaldo. Manifestações Literárias da Era Colonial. (1500-1808/1836). 1º Volume. São Paulo: Cultrix, s/d. COUTINHO, Afrânio (dir). A Literatura no Brasil. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1976. DURÃO, José de Santa Rita. Caramuru. Trad. Hernani Cidade. 2ª. Ed. Rio de Janeiro: Editora Agir, 1961. Série Nossos Clássicos. FIGUEIREDO, Lima. Índios do Brasil. 2ª. Ed. São Paulo: Livraria José Olympio, 1949.

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Tema geral: Línguas e Literaturas: Diversidade e Adversidades na América Latina KOTHE, Flávio René. O Cânone Colonial: ensaio. Brasília: Editora da Universidade de Brasília, 1997. MOISÉS, Massaud. História da Literatura Brasileira. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1976.

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RAP: O MOVIMENTO DE REAÇÃO DO NEGRO NA SOCIEDADE BRASILEIRA CONTEMPORÂNEA Giselda da Rocha FAGUNDES (Universidade Federal do Pará)

RESUMO: O rap de protesto, produzido na periferia, é o elemento do Hip Hop que mais utiliza o material verbal em sua composição, nesse sentido, a análise de sua estrutura revela, além do conteúdo político-ideológico, uma forma de identificar e valorizar a história e a realidade cultural do povo afro-brasileiro. Além disso, o rap configura-se como um gênero que muito bem ilustra a interação verbal, pois a linguagem se apresenta como um ato social pelo qual os membros de uma sociedade interagem. Com base na teoria dos gêneros da Mikhail Bakhtin, algumas letras de rap nacionais foram analisadas visando identificar, por meio dos elementos lingüísticos e estratégias discursivas, como a carnavalização, de que forma se apresenta a imagem social no negro na atualidade, acentuando os ideais que determinam o rap como principal agente conscientizador do Movimento Hip Hop. PALAVRAS-CHAVE: gêneros discursivos; negro; rap; carnavalização.

ABSTRACT: The rap of protest, produced in the periphery, is the element of the Hip Hop that more uses the verbal material in its composition, this direction, the analysis of its structure discloses, beyond the politicianideological content, a form to identify and to value the history and the cultural reality of the people afroBrazilian. Moreover, rap is configured as a sort that very illustrates the verbal interaction well, therefore the language if it presents as a social act for which the members of a society interact. On the basis of the theory of the sorts of the Mikhail Bakhtin, some national letters of rap had been analyzed aiming at to identify, by means of the linguistic elements and discursivas strategies, as the carnavalização, of that it forms if it presents the social image in the black in the present time, accenting the ideals that determine rap as main conscientizador agent of the Movement Hip Hop. KEY WORDS: Discursivos sorts; black; rap; carnavalização.


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1. Introdução Embora seja considerado recente, o estudo dos gêneros textuais e suas aplicações têm-se tornado extremamente popular nos últimos anos, o que vem contribuindo para o desenvolvimento do campo de estudos lingüísticos aplicados ao discurso. Dialógica por natureza, a linguagem, seja pensada como língua ou como discurso, não pode ser considerada como ideologicamente neutra, pois nela estão impressas as contradições e choques de valor típicos de uma sociedade de classes. Por isso as transformações sociais por que todas as comunidades passam refletem-se na língua, encontrando na palavra seu principal meio de veiculação. O gênero canção, especificamente representado no gênero musical rap, foco deste trabalho de pesquisa, situa-se na linha tênue que liga oralidade e escrita, além de apresentar posicionamentos de classe e de grupo, particularmente dos negros das favelas do Rio de Janeiro, rappers que carregam a herança dos negros nova-iorquinos, um dos iniciadores do Movimento Hip Hop. O rap é um estilo musical e um gênero textual inserido neste interessante movimento cultural e filosófico, o Hip Hop, que surgiu na Jamaica, mais ou menos na década de 60, cresceu no Bronx, e chegou ao Brasil aproximadamente vinte anos depois. O movimento foi criado com a intenção de tirar o jovem das drogas, das brigas de gangues e centralizar a energia que seria usada para a violência, para a criação artística. O rap, que representa a população socialmente excluída, pode auxiliar na compreensão do sistema de signos verbais e extraverbais que refletem a realidade de nossa sociedade, assim como a relação entre a linguagem e a sociedade, já que com o uso da palavra se pode interagir, impor regras, registrar informações, transmitir conhecimentos, expressar sentimentos e idéias. Para a elaboração deste trabalho foram analisadas uma música do grupo Apocalipse 16 e uma do grupo Racionais MC’s. Das demais composições foram retirados alguns fragmentos que ilustram mudanças no discurso sobre alguns fenômenos sociais presentes no gênero e relativos à realidade do negros no Brasil. Será focalizado o conteúdo social expresso nos textos a fim de evidenciar que o rap trata de questões atuais que envolvem a sociedade neoliberal e suas contradições. Espera-se que a consciência da diversidade étnica e social brasileira seja um poderoso incentivo ao convívio mais harmônico entre os indivíduos, no qual o preconceito seja tema de reflexão. 2. A inter-relação discursiva entre o “eu” e o “outro”. O enunciado ganhou grande destaque nos estudos de Bakhtin sobre linguagem, uma vez que, até então, o termo era entendido sob outra terminologia. Era a pura e simples frase. O autor descreve o enunciado como uma unidade de comunicação verbal em que interagem enunciador e enunciatários, uma representação de discursos (interdiscursos) reais entre indivíduos sociais num dado contexto, uma representação de discursos entre seres que fazem uso da mesma língua, em uma situação de comunicação que se enquadra em tempo e espaços distintos, o que distingue, ainda, cada enunciado, tornando-os únicos. O conceito que se tinha até Bakhtin era o de que a comunicação se dava entre um locutor, aquele que diz, e um ouvinte, aquele que ouve apenas, porém, nos estudos de Bakhtin (2003), o ouvinte é reconhecido como um ser não mais passivo no processo de comunicação, mas um ser que por possuir uma compreensão verbal e extraverbal do que lhe está sendo dito, capaz de dialogar com o locutor respondendo ao enunciado deste, ou seja, há, então, uma constante inversão de papéis, em que ora um é o locutor, ora o outro, e o mesmo ocorre quanto a quem será o ouvinte no processo comunicativo. Este sempre terá, no processo/jogo interativo, o que Bakhtin (2003, p.290) chama de: atitude responsiva ativa (...); toda compreensão é prenhe de resposta e, de uma forma ou de outra, forçosamente a produz: o ouvinte torna-se o locutor. A compreensão passiva das significações do discurso ouvido é apenas o elemento abstrato de um fato real que é o todo constituído pela compreensão responsiva ativa e que se materializa no ato real da resposta fônica subseqüente.

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A resposta no enunciado é fundamental para que ambos os participantes de um discurso possam posicionar-se sobre o que está sendo dito/ouvido, concordando, discordando, (inter)agindo no processo comunicativo. O enunciado para acontecer precisa, primeiramente, estar inserido em um determinado contexto sócio-histórico, em uma situação específica concreta de comunicação. Sendo assim, podemos dizer que cada enunciado é único, pois seu significado advém especificamente daquele momento, adquirindo outra significação em outro contexto, independente de serem os mesmos participantes do discurso. Por conseguinte, o enunciado deve ser concreto, a materialização do real, em que dois ou mais sujeitos diferentes valem-se de seus pressupostos, ou dos pressupostos de outros sujeitos de várias vozes sociais, para dialogar por meio de construções lingüísticas, como entendem Barros e Fiorin (2003, p.70) ao dizer que a teoria bakhtiniana (...) radica no conceito de discurso entendido como um mecanismo dinâmico, do qual vocábulo algum pode ser compreendido em si mesmo, já que todos os termos de um texto vêm inseridos em múltiplas situações, em diferentes contextos lingüísticos, históricos e culturais; assim, para Bakhtin, um texto possui sempre um sentido plural.

A essa pluralidade dos sentidos dos textos, que envolve várias vozes na sua construção e várias percepções expressivas/sociais na sua leitura, Bakhtin chama de dialogismo. O dialogismo em Bakhtin é entendido como a condição de sentido do discurso, o espaço de interação/negociação entre (inter)locutores. Barros e Fiorin (2003, p. 70) bem se posicionam a respeito: ... língua nenhuma constitui um sistema semiótico homogêneo. As línguas são, inversamente, mesclas nunca inteiramente resolvidas e homogeneizadas de dialetos, socioletos, idioletos, jargões, normas e registros diversos, desse conjunto multifário e contraditório derivando a multitextualidade do discurso.

O enunciado é uma unidade de comunicação verbal, que Brait e Melo (2005) dizem assemelharse a frases ou a seqüências frasais somente no sentido de que são organizadas sintaticamente, pois o enunciado é muito mais que isso, ele tem significados diferentes dependendo de fatores verbais e pragmáticos, o que o torna único. Estes se diferenciam das frases que enquanto obtêm uma significação quando expressas isoladamente, adquirem várias significações distintas quando em uma situação de comunicação real, concreta, igualmente distinta. Assim, ...frase, unidade entendida como modelo, como uma seqüência de palavras organizadas segundo a sintaxe e, portanto, passível de ser analisada “fora do contexto”. O enunciado, nessa perspectiva, é concebido como unidade de comunicação, como unidade de significação necessariamente contextualizado. Uma mesma frase realiza-se em um número infinito de enunciados, uma vez que esses são únicos, dentro de situações e contextos específicos, o que significa que a “frase” ganhará sentido diferente nessas diferentes realizações “enunciativas”. (Brait e Melo, p..63)

O conjunto de signos que compõem um enunciado dotado de sentido é entendido como enunciado concreto, pois, como define Bakhtin, todo enunciado é concreto. Cada palavra que forma um enunciado possui um significado variando em diversas situações comunicativas e dependendo, ainda, de fatores pragmáticos no meio comunicativo, entre eles, tudo pode ser usado para compreender o sentido do discurso, até as roupas usadas pelos sujeitos participantes é de extrema importância em se tratando de enunciação, que é o meio em que ocorre o enunciado, em que ele se torna concreto. Nesse sentido, dizem Brait e Melo (2005, p.67-68): (...) a enunciação, por sua vez, aparece (...) como estando situada justamente na fronteira entre a vida e o aspecto verbal do enunciado; ela, por assim dizer, bombeia energia de uma situação da vida para o discurso verbal, ela dá a qualquer coisa lingüisticamente estável o seu momento histórico vivo, o seu caráter único. Dessa maneira, o conceito de enunciação está diretamente ligado a enunciado concreto e à interação em que ele se dá.

São os enunciadores e enunciatários que moldam, a seu modo, o discurso por intermédio dos enunciados formulados, lingüisticamente, a partir de um conhecimento prévio do falante sobre sua língua, que advém do contato lingüístico com outros falantes, possibilitando-lhe uma troca de experiências, de aprendizado. A palavra, como bem expressa Miotello (2005, p.201),

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Anais do II Congresso Internacional de Estudos Linguísticos e Literários na Amazônia (CIELLA) sempre é a palavra do outro, palavra alheia, e o EU vai buscar as palavras que usa não no dicionário ou nas gramáticas, mas nos lábios alheios e em contextos alheios; esse alheio é a alteridade. Garante o outro como social, qualquer que seja esse outro, como fora de mim, no campo do excedente, desde que diferente do EU. O excedente da visão estética, do qual trata Bakhtin(...) é o mundo exterior que, ao mesmo tempo em que me determina (não me obriga), proporciona, pela própria existência concreta do meu corpo, um excedente de minha visão para com o outro, o qual, dialogicamente revisto e ressuscitado ao longo de minha vida, constitui o que podemos chamar aqui de individualidade.

Por conseguinte, sobre as relações dialógicas, podemos dizer que elas não ocorrem no plano apenas lingüístico, mas quando há a presença de dois ou mais sujeitos diferentes interagindo em uma situação concreta. A perspectiva enunciativa, que valoriza o “eu” formado por “outros” – o “eu” social em processo de inter-relação discursiva com o(s) “outros”(s)” – será a base teórica que dará subsídios às reflexões e análises advindas desse trabalho, que trata do discurso sobre as condições de vida e de poder do negro na sociedade brasileira, exposto explícita e implicitamente nas músicas de cantores negros ou não, do estilo musical rap, considerado polêmico ao longo do seu processo de transformação por qual passou desde o seu surgimento. 3. O gênero canção A canção é um recurso expressivo do qual vários artistas utilizam com diversas finalidades para expressar sentimentos como amor, ódio, felicidade; para ilustrar situações; demonstrar indignação, revolta, subversão. Cada gênero musical tem características que o definem, entretanto, elas não são exclusivas deste ou daquele, apenas há uma incidência maior de determinados aspectos em uns do que em outros. Os gêneros musicais, assim como os gêneros discursivos, são heterogêneos. A música é uma das formas de expressão comunicativa mais antiga de que se tem notícia. Nem todos gostam de um mesmo estilo/gênero musical, todavia, é fato que quase todos gostam de algum estilo ou alguma música. Segundo Costa (2005, p.108) para o compositor e lingüista Tatit “Uma canção é uma fala camuflada em maior ou menos grau” por meio da qual podemos ouvir e damos voz às mais variadas vozes sociais, as quais ganham, em meio musical, “efeitos especiais” que não apenas de um texto falado “a seco”. O gênero musical rap, como objeto de estudo, vem sendo cada vez mais trabalhado, não só em sala de aula, para leitura e análise de textos, mas também como singular fonte de pesquisa da própria sociedade que o fez surgir, a qual está em constante processo de mudança e que, por meio da música, encontra mais uma forma de transparecer e aparecer, convidando a refletir sobre a sociedade brasileira que estamos formando e na qual vivemos, especialmente no que diz respeito à imagem do negro. Este trabalho visa, cabe ressaltar, a analisar músicas de rap – gênero musical que teve origem entre grupos de negros e hispânicos – a fim de verificar qual a condição social em que os negros se encontram na sociedade brasileira contemporânea. Intenciona-se, assim, detectar “quem é o negro”, hoje, no Brasil, pela voz do próprio negro. 4. O hip hop no brasil O Hip Hop veio da periferia nova-iorquina na década de 80 via indústria fonográfica, e segue a mesma corrente filosófica do movimento norte-americano: dar oportunidade aos jovens e denunciar as desigualdades sociais e raciais. Mas devido as necessidades locais serem diferentes daquelas dos Estados Unidos, a filosofia do movimento Hip Hop brasileiro agregou elementos da cultura brasileira à sua composição, como o samba e a capoeira para atrair os jovens dos bairros pobres dos grandes centros urbanos. O rap surgiu no Brasil em 1986, na cidade de São Paulo. Os primeiros shows de rap eram apresentados no Teatro Mambembe pelo DJ Theo Werneck. Na década de 80, as pessoas não

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aceitavam o rap, pois consideravam este estilo musical como sendo algo violento e tipicamente de periferia. O registro inicial do rap brasileiro é a coletânea Hip Hop Cultura de Rua, esta trouxe faixas dos grupos Thaíde e DJ Hum (produzidas por Nasi e André Jung, do grupo de rock Ira!), MC Jack, Código 13, entre outros. Debutava no Brasil o estilo musical baseado em falas ritmadas despejadas por cima de bases dançantes tiradas de discos de funk, com eventuais scratches (os arranhões, efeito que os DJs obtêm ao fazer o disco ir para frente e para trás no prato). No entanto, a estética discursiva típica do rap já havia sido usada, um ano antes, para a confecção de um grande sucesso de rádio: Kátia Flávia, que o carioca Fausto Fawcett gravou com os Robôs Efêmeros. Os scratches também já haviam aparecido em disco em Estação Primeira (87), da banda paulistana Gueto. Na década de 1990, o rap ganha as rádios e a indústria fonográfica começa a dar mais atenção ao estilo. Os primeiros rappers a fazerem sucesso foram Thayde e DJ Hum. Logo a seguir começam a surgir novas caras no rap nacional: Racionais MCs, Pavilhão 9, Detentos do Rap, Câmbio Negro, Xis & Dentinho, Planet Hemp e Gabriel, o Pensador. O rap começava, então, a ser utilizado e misturado por outros gêneros musicais. O movimento mangue beat, por exemplo, presente na música de Chico Science & Nação Zumbi fez muito bem esta mistura. Nos dias de hoje, o rap está incorporado no cenário musical brasileiro. Saiu da periferia para ganhar o grande público. Dezenas de cds de rap são lançados anualmente, sendo que a sua essência de denunciar as injustiças, vividas pela pobre das periferias das grandes cidades é a tônica desse gênero musical. Figura 01: Elementos do Hip Hop.

O movimento Hip Hop no Brasil vem ganhando cada vez mais status entre as classes menos favorecidas da sociedade que vêem nos seus elementos uma forma de lutar por seus direitos de modo pacifico e de mostrar para as demais classes sociais brasileiras e autoridades políticas que a periferia pode chamar suas atenções por outro meio que não o crime, e ainda, dizer por meio de suas formas de expressão que, o que se quer é apenas a chance de viver com dignidade, que há anos lhes é negada. 5 As letras de rap e a realidade social do negro Embora tenha sido reconhecido como um estilo musical violento e condicionado à periferia ou a festas alternativas nas regiões centrais das capitais brasileiras, atualmente o rap está sendo incorporado cada vez mais à classe privilegiada da sociedade, o que evidencia uma passagem de condição de gênero estereotípico de periferia para gênero que denota prática social e lingüística de prestígio sócio-econômico. Contudo, grupos como os Racionais MC’s e Apocalipse 16 fazem questão de continuar à margem da mídia, o que para muitos é um jeito de manterem sua autenticidade, trazendo em suas músicas a temática do negro, sua realidade, os protestos contra a discriminação e a miséria. Uma das principais funções do rap dentro do movimento Hip Hop é de denunciar as privações por que passa a população que vive principalmente nas favelas dos grandes centros urbanos, e que é de maioria negra. Utilizando o ritmo e poesia como instrumento de reação ao sistema político, econômico e social vigentes, o discurso violento contra a classe imediatamente superior expresso

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nas letras de alguns rappers é resultado de uma recusa explícita da condições precárias vividas pelas comunidades ligadas ou não ao movimento Hip Hop. Rappers como MV Bill e grupos como Racionais MC’s, fiéis à filosofia desse movimento, põem em evidência o cotidiano do povo negro das favelas marcado pela violência, pelo tráfico de drogas e pela falta de oportunidade de terem uma vida segura, ou de seguirem outra vida que não a do crime. Assim se posicionam frente à sociedade que discrimina e oprime: Mas muitos não progridem porque na verdade assim querem Ficam inertes, não se movem, não se mexem Sabem por que se sujeitaram a essa situação? Não pergunte pra mim, tire você a conclusão Talvez a base disso tudo esteja em vocês mesmos E a conseqüência é o descrédito de nós negros Por culpa de você, que não se valoriza Eu digo a verdade, você me ironiza Conclusão da sociedade é a mesma Que, com frieza, não analisa, generaliza E só critica, o quadro não se altera e você Ainda espera que o dia de amanhã será bem melhor Você é manipulado, se finge de cego Agir desse modo, acha que é o mais certo Fica perdia a pergunta, de quem é a culpa Do poder, da mídia, minha ou sua? As ruas refletem a face oculta De um poema falso, que sobrevive às nossas custas A burguesia, conhecida como classe nobre Tem nojo e odeia a todos nós, negros pobres Por outro lado, adoram nossa pobreza Pois é dela que é feita sua maldita riqueza. (Beco sem saída- Racionais MC’s) MV Bill está em casa pode acreditar terrorismo a voz do excluído ta no ar Mais um guerreiro do Rio de Janeiro buscando alternativas pra sair do coma brasileiro Considerado loko por se realista, maluco eu não me iludo com vidinha de artista Guiado por Jesus tenho minha missão, guerreiro do inferno, traficante de informação Chapa quente favelado é o nome, falo pelo menor que nunca teve danone Como você, sei que é difícil de entender, você nunca sofreu como eu lá na CDD Não acredito que o povo é contente, quem ri da própria miséria não e feliz, está doente, Que não sente que está sendo massacrado, drogado e sempre embriagado Não represento o hip hop só falo pelo pobre, que sempre se fode guiado pelo IBOPE Televisão ilusão tudo igual, faz você gastar seu dinheiro no carnaval Faz meu povo ser ridicularizado, inferiorizado, engraçado, hospitalizado Tá tudo errado, orgulho foi roubado, as marcas de um passado que não foi cicatrizado. (A voz do excluído – MV Bill)

As letras das músicas de Racionais MC’s e MV Bill não são as únicas letras sobre os negros que evidenciam a “imagem” desse povo na atualidade, como ele vem reagindo à discriminação e ao preconceito. O grupo Apocalipse 161, na música Muita Treta, evidencia na primeira estrofe a violência policial sofrida pela população menos favorecida, a violência entre os próprios iguais (pessoas de semelhante “raça” ou condição social) e ainda a revolta contra o processo neoliberal pelo qual passa o Brasil. Eis a estrofe: É muita treta viver num lugar onde ninguém te respeita Onde a polícia rola e deita em cima dos humildes Ela espanca uma pá de cidadão de bem Ela pega o menor e joga ele na FEBEM É muita treta o presidente traidor que a gente tem Que se vendeu ao opressor por um baixo preço 1

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O nome do grupo foi inspirado na música “Apocalipse 16”, do grupo 509-E.

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Tema geral: Línguas e Literaturas: Diversidade e Adversidades na América Latina Traidor que deixa o inimigo levar a riqueza Do seu próprio berço Graças a ele o gringo vem aqui e monta empresa Escraviza mão de obra E o povo fica com o pior fica com as sobras É muita treta ver a paz cada vez mais distante Ouvir tiros e saber que são meus manos se afogando No próprio sangue.

A revolta com a situação política nacional é também uma presença forte e marcante, pois o governo, desde a época da colonização, é tido como mercenário, acusado de ser o maior responsável pela crise em que o país se encontra, pois devido a abertura para a implantação de indústrias norteamericanas, como a do cigarro e a de bebidas alcoólicas, que precisam de operários qualificados para trabalhar, deixou de dar emprego aos menos favorecidos (negros pobres) que não tinham condições financeiras para fazerem parte deste grupo de mão de obra qualificada, fato que colaborou para que o quadro de desigualdades sociais ficasse cada vez mais acentuado. O crescimento do racismo e a situação de pobreza levaram as pessoas mais humildes a procurar ganhar a vida tirando a vida do outro em acertos de contas que definem os “líderes de favelas, pois ser um bandido, atualmente, em muitas comunidades pobres, principalmente as que têm o tráfico de drogas como elemento da realidade, é sinal de respeito e status social. “Ser bandido” transforma os negros da sociedade contemporânea em líderes detentores do poder deste novo mundo que insurge das/nas drogas. Nele, o povo negro, assumindo o papel de contraventor das normas e padrões socialmente impostos geralmente pelos brancos, faz suas próprias leis. E são admirados; não discriminados. Admira-se o negro “bom de tiro”, “corajoso”, “líder”, que mata sem piedade, que anda de relógio Rolex de ouro, que tem carro e dá ordens. Assumindo a postura neoliberal de retenção de capital e de poder, de individualismo, os negros, na atualidade, no Brasil, encontraram no “ser bandido” a forma de assumir um espaço social antes destinada aos brancos e aos ricos. Na verdade, não é só a questão econômica que está em jogo; é a questão do poder, mais genérica. A “linguagem da bandidagem”, ratificada pelo rap, assim como as roupas e acessórios do “malandro”, como gostam de ser chamados, são instrumentos de poder, uma vez que traduzem a imagem do negro corajoso, do líder. A música Negro Drama, do grupo Racionais MC’s, é um texto que dá a noção de proximidade, de realidade vivida, da vida real. Mais que isso, da vida pobre nas favelas, do negro pobre. A vida é mostrada como real em que há idéia de subverter a ordem: o que é típico do escrito (discurso do branco, gente letrada, com orientação escolar) passa a ter influência da fala (discurso do negro letrado, sem orientação escolar). A ortografia, concordância e acentuação, não seguem os parâmetros da gramática normativa. Essa inadequação no uso das regras da norma culta se dá intencionalmente, para caracterizar uma parcela excluída da sociedade, ou fruto de fato da insuficiência de letramento desta classe, no sentido de escrever de acordo com o padrão culto da língua. De qualquer forma, há intenção de manter o “dialeto social dos excluídos”, assim como a presença de palavras obscenas ou grosseiras que tanto pode ser intencional, caracterizando a parte excluída da sociedade, como pode advir do contexto social em que vive esta classe. O negro pode estar fora dos atuais padrões de modernização eletrônica, pode não ter tido uma educação de qualidade, todavia, é cada vez mais comum encontrarmos, nas ruas, entre as pessoas de classe social elevada, jovens usando roupas e acessórios usados pelos negros de grupos de rap, e até mesmo se expressando por meio de gírias criadas nas periferias. Como é notado no trecho: Problema com escola, Eu tenho mil, Mil fita, Inacreditável, mas seu filho me imita, No meio de vocês, Ele é o mais esperto, Ginga e fala gíria, Gíria não dialeto.

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É crescente também o gosto pela música feita pelos negros, o rap, que dá status e torna os negros evolvidos com o submundo do crime, como foi o caso do gangstar rap 2Pac, exemplos de audácia a serem seguidos dentro e fora das comunidades menos favorecidas, com é ilustrado no trecho a seguir: Esse não é mais seu, Hô, Subiu, Entrei pelo seu rádio, Tomei, Se nem viu, Mas é isso ou aquilo, O que, Senão dizia, Seu filho quer ser preto, Rhá, Que ironia, Cola o pôster do 2 Pac ai, Que tal, Que se diz, Sente o NEGRO DRAMA, Vai, Tenta ser feliz.

No trecho que corresponde à última estrofe da música Negro Drama há uma espécie de desabafo do negro para com as autoridades brasileiras, colocando-as com responsáveis pelo meio que ele encontrou para tentar sobreviver, uma vez que o governo nada fez a fim de mudar a realidade pobre e sem condições dignas de vida, das pessoas que moram nas favelas e, atualmente, as pessoas envolvidas com o tráfico, com a marginalidade, são as que obtêm o poder nas favelas, o que está sendo chamado de “poder paralelo”, pois nessas comunidades são os bandidos quem investem em saneamento e educação, segundo a letra deste rap. Os governantes “não fazem a sua parte” e, por isso o próprio integrantes do poder paralelo usam o dinheiro que conseguem com roubos e com o tráfico de entorpecentes - consumidos por pessoas de classes mais elevadas economicamente - como forma de dar aos filhos e demais entes queridos tudo o que eles não tiveram. Os negros viram ser-lhes usurpada a “vida digna” pela classe branca e é dessa classe que vai tirar seu luxo, sua riqueza, sendo apenas um “vagabundo nato”: Ae, Na época dos barraco de pau lá na pedreira Onde vocês tavam? O que vocês deram por mim? O que vocês fizeram por mim? Agora tá de olho no dinheiro que eu ganho Agora tá de olho no carro que eu dirijo Domorou, eu quero é mais Eu quero é ter sua alma Aí, o rap fez eu ser o que sou Ice Blue, Edy Rock e Klj, e toda a família E toda a geração que faz o rap A geração que revolucionou A geração que vai revolucionar Anos 90, século 21 É desse jeito Aí, você sai do gueto, Mas o gueto nunca sai de você, morou irmão Você tá dirigindi um carro

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Tema geral: Línguas e Literaturas: Diversidade e Adversidades na América Latina O todo mundo tá de olho ni você, morou Sabe por quê? Pela sua origem, morou irmão É desse jeito que você vive É o negro drama Eu não li, eu não assisti Eu vivo o negro drama, eu sou o negro drama Eu sou o fruto do negro drama Aí dona ana, sem palavra, a senhora é uma rainha, Rainha Mas ae, se tiver que voltar pra favela Eu vou voltar de cabeça erguida Porque assim é que é Renascendo das cinzas Firme e forte, guerreiro de fé Vagabundo nato!

O rap como movimento de reação do negro na sociedade contemporânea surge com bastante força expressiva e repercussão a fim de mostrar que a pessoa negra precisa ser respeitada pelos brancos. Negros e brancos são iguais enquanto seres humanos, dotados de vícios e virtudes, porém diferentes na visão discriminatória e preconceituosa de uma sociedade que há séculos os oprime e os força a se submeterem a condições sub-humanas de sobrevivência em favelas, e acaba por tornar pessoas simples e humildes em ansiosos consumistas em buscam o poder e os bens que os brancos têm, caindo na vida do crime. 6. Considerações finais Surgindo nas periferias como grito de cólera contra o sistema sócio–político-econômico da sociedade capitalista, o rap vem passando por intensas transformações. Essas, no rap nacional, evidenciadas no ritmo e, principalmente, nas letras, contribuíram para que esse gênero, que continha em seu discurso uma afronta ao governo e sistemas vigentes, passasse a apresentar o negro como alguém respeitado e imitado graças ao crime e ao tráfico de drogas, uma das poucas opções daqueles que não têm oportunidades de viver uma vida honesta. A situação caótica em meio à violência que emerge nas grandes cidades e a aparente falta de perspectivas na vida dos jovens negros das comunidades brasileiras menos favorecidas voltou a atenção para o discurso revolucionário do rap a fim de mostrar à sociedade, principalmente à classe hegemônica, que o estímulo para tamanha onda de criminalidade partiu desta mesma classe discriminatória e preconceituosa que aos poucos foi deixando de reconhecer os direitos do negro como ser humano e passou a tratá-lo como um “animal” perigoso, devendo ser mantido longe do convívio social, em favelas. Uma vez não sendo respeitados, passaram a não respeitar também, a roubar, a tirar vidas. Acharam que esse caminho da criminalidade era o único que lhes restava, o único dado a eles pelos brancos. O rap chega à sociedade brasileira não somente como a voz do oprimido que apenas espera que as autoridades nacionais tomem providências para tirar a população negra, os pobres, da miséria, mas sim como a voz daqueles cansados de esperar ações governamentais e da sociedade em geral para com ele. No discurso de grande parte das músicas de rap, o processo de valorização do negro tem raiz em sua condição histórica submissa e inferiorizada, e sua ratificação na posição de “bandido do tráfico”, que irá tratar com violência e sem compaixão aqueles que sempre assim o fizeram com ele.

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Referências BAKHTIN, M. Estética da criação verbal. 4ª ed. São Paulo: Martins Fontes, 2003. BARROS, D. L. P. de; FIORIN, J. L. (Org.). Dialogismo, polifonia, intertextualidade: em torno de Bakhtin. 2. ed. São Paulo: EdUSP, 2003. BRAIT, B. & MELO, R. Enunciado, enunciado concreto e enunciação. In.: BRAIT, B.(org.) Bakhtin: conceitos-chave.São Paulo: Contexto, 2005. COSTA, N. B. da. As letras e a letra: o gênero canção na mídia literária. In.: BEZERRA, M. A., DIONÌSIO, Â. P. & MACHADO, A. R. (orgs.) Gêneros textuais e ensino. 4ª ed. Rio de Janeiro: Lucerna, 2005. FIORIN, J. L. Elementos de análise do discurso. 14ª ed. São Paulo: Contexto, 2006. GREGOLIN, M. do R. V. Nas malhas da mídia: agenciando os gêneros, produzindo sentidos. In.: BARONAS, R. L. (org.) Identidade cultural e linguagem. Campinas: Pontes,2005. LETRAS DE MÚSICAS. Disponíveis em: <http://www.vagalume.uol.com.br>. Acesso em: 17fev.2008. MIOTELLO, V. Ideologia. In.: BRAIT, B. (org.) Bakhtin: conceitos-chave. São Paulo: Contexto, 2005. SANTOS, D. L. dos. Ideologia do cotidiano no gênero rap. Trabalho de conclusão de curso. UFPA, Junho/2005. SECAD. Secretaria de Educação Continuada, Alfabetização e Diversidade. Educação anti-racista: caminhos abertos pela lei federal nº 10.639/03. Brasília: Conselho Editorial da Coleção Educação para Todos, 2005. STAM, R. Bakhtin: da teoria literária à cultura de massa. São Paulo: Ática, 1992. TRAVAGLIA, L. C. Gramática e interação: uma proposta para o ensino de gramática no 1º e no 2º graus. 11ª ed. São Paulo: Cortez, 2006. ZENI, B. O negro drama do rap: entre a lei do cão e a lei da selva. 2004. Disponível no site do Instituto de Estudos Avançados da USP. Visitado em 19 jan: 2008.

I. ANEXO Beco Sem Saída – Racionais Mc’s Às vezes eu paro e reparo, fico a pensar qual seria meu destino senão cantar um rejeitado, perdido no mundo, é um bom exemplo irei fundo no assunto, fique atento A sarjeta é um lar não muito confortável O cheiro é ruim, insuportável O viaduto é o reduto nas noites de frio onde muitos dormem, e outros morrem, ouviu ? São chamados de indigentes pela sociedade A maioria negros, já não é segredo, nem novidade Vivem como ratos jogados, homens, mulheres, crianças, Vítimas de uma ingrata herança A esperança é a primeira que morre E sobrevive a cada dia a certeza da eterna miséria O que se espera de um país decadente onde o sistema é duro, cruel, intransigente Beco sem saída ! Mas muitos não progridem porque na verdade assim querem Ficam inertes, não se movem, não se mexem Sabe por que se sujeitaram a essa situação ? não pergunte pra mim, tire você a conclusão

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Tema geral: Línguas e Literaturas: Diversidade e Adversidades na América Latina Talvez a base disso tudo esteja em vocês mesmos E a consequência é o descrédito de nós negros Por culpa de você, que não se valoriza Eu digo a verdade, você me ironiza A conclusão da sociedade é a mesma que, com frieza, não analisa, generaliza e só critica, o quadro não se altera e você ainda espera que o dia de amanhã será bem melhor Você é manipulado, se finge de cego Agir desse modo, acha que é o mais certo Fica perdida a pergunta, de quem é a culpa do poder, da mídia, minha ou sua ? As ruas refletem a face oculta de um poema falso, que sobrevive às nossas custas A burguesia, conhecida como classe nobre tem nojo e odeia a todos nós, negros pobres Por outro lado, adoram nossa pobreza pois é dela que é feita sua maldita riqueza Beco sem saída ! – É, meu mano KL Jay. O poder mente, ilude, e domina a maioria da população, carente da educação e cultura. E é dessa forma que eles querem que se proceda. Não é verdade? – É, pode crê ! Nascem, crescem, morrem, passam desapercebidos E a saída é esta vida bandida que levam roubando, matando, morrendo, entre si se acabando Ei mano, dê-nos ouvidos! Os poderosos ignoram os direitos iguais Desprezam e dizem que vivam comos mendigos a mais Não sou um mártir que um dia irá te salvar No momento certo, você pode se condenar Não jogamos a culpa em quem não tem culpa Só falamos a verdade e a nossa parte você sabe de cór Atravesse essa muralha imaginária em sua cabeça, sem ter medo de falhas Se conseguiram derrubar uma muralha real, de pedra você pode conseguir derrubar esta Leia, ouça, escute, ache certo ou errado mas meu amigo, não fique parado Isso tudo vai ser apenas um grito solitário Em um porão fechado, tome cuidado, não esqueça o grande ditado : Cada um por si ! Siga concordando com tudo que eu digo (normal) Pois pra você parece mais um artigo (jornal) Esse é o meu ponto de vista, não sou um moralista deixe de ser egoísta, meu camarada, persista, É só uma questão: será que você é capaz de lutar? É difícil, mas não custa nada tentar – Ei cara, o sentido disto tudo está em você mesmo. Pare, pense, e acorde, antes que seja tarde demais O dia de amanhã te espera, morô? Edy Rock, KL Jay, Racionais!

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Anais do II Congresso Internacional de Estudos Linguísticos e Literários na Amazônia (CIELLA) Beco sem saída ! (podicrê, né não ?) Beco sem saída ! (aí mano) Beco sem saída ! (certo !) Beco sem saída ! Beco sem saída ! Beco sem saída ! Beco...beco...beco sem saída, beco sem saída, beco sem saída!

A voz do excluído – MV Bill Mv Bill está em casa pode acreditar terrorismo a voz do excluído tá no ar (tá no ar) Mais um guerreiro do Rio de Janeiro, buscando alternativa pra sair do coma brasileiro Considerado loko por ser realista, maluco eu não me iludo com vidinha de artista Guiado por Jesus tenho minha missão, guerreiro do inferno traficante de informação Chapa quente favelado é o nome, falo pelo menor que nunca teve danone Como você, sei que é difícil de entender, você nunca sofreu como eu lá na CDD Não acredito que o povo é contente, quem ri da própria miséria não é feliz esta doente, Que nem sente que esta sendo massacrado, drogado e sempre embriagado Não represento o hip-hop só falo pelo pobre, que sempre se fode guiado pelo IBOP Televisão ilusão tudo igual, faz você gastar seu dinheiro no carnaval Faz o meu povo ser ridicularizado, inferiorizado, engraçado, hostilizado tá tudo errado, orgulho foi roubado, as marcas de um passado que não foi cicatrizado. o que você vai fazer agora pra mudar, a regra, o que você vai fazer agora pra mudar, a real Nascido e criado na CDD, nascido preto perseguido até morrer Me ver na prisão é o desejo da madame, mais eu não tenho AP de um milhão em Miami Comprado, imobillhado com o dinheiro do povo, eu olho pra tv e me cinto mais um bobo Contaminado e dominado pelo medo, aqui cadeia é pra puta, pobre e preto Sujeito homem, não sou homem sujeitado, e tô condicionado a ser manipulado, Por ninguém, minha atitude vai além, falo por milhões, compreendido por menos de cem da CDD a baixada fluminense, se gerou conflito meu amigo então pare e pense FHC não da nada pra favela, só da carnaval, miséria,

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Tema geral: Línguas e Literaturas: Diversidade e Adversidades na América Latina polícia e novela Que coisa mais linda mais cheia de graça,famílias disputando seu almoço na praça FMI vai achar sensacional, quem gosta de miséria é intelectual M-V-B-I-L-L, Preto na mente, na roupa e na pele Cidade Negra, CDD tá no ar, na hora de cobrar a chapa pode esquentar. [Refrão] Muita treta – Apocalipse 16 é muita treta viver num lugar onde ninguém te respeita onde a policia rola e deita em cima dos humildes ela espanca uma pá de cidadão de bem ela pega o menor e joga ele na febem é muita treta o presidente raidor que a gente tem que se vendeu ao opressor por um baixo preço traidor que diexa o inimigo levar a riqueza do seu próprio berço graças a ele o gringo vem aqui e monta empresa escravisa mão de obra e o meu povo fica com pior fica com as sobras e muita treta ver a paz cada vez mais distante ouvir tiros e saer que são meus manos se afogando no próprio sangue é uita treta ver a educação restrita os manos morrendo na fita então por isso reflita insista por melhores condições pro seu povo e para você para isso é necesário um correto proceder de que adianta pousar de arma na mão vender droga pros irmão que estão morrendo elas ruas ou denro da risão é muita treta ver certos manos subirem no palco para de consciência e de luta e nos bastidores traem suas mulheres e filhos com prostitutas traem nosso povo mentindo de novo se venderam pelo dinheiro se venderam pela fama pela grana mas alerto a deus não se engana por isso não meto marra de ladrão não pago de otário com arma na mão não vendo ilusão pros meus irmão mas prego a revolução de forma não violenta infelizmente querer paz é uita treta... é muita treta a farsa da comemoração dos 500 anos de enganação 500 anos de exploração mentira de desigualdade o que o branco portugues fez com meu povo foi cruel e covarde os indios morreram e os pretos que não estão nas celas estão nas favelas meu verso tem poder é o arrastão do gueto que bota playboy pr correr o governo promove o racismo e a segregação mas cedo ou tarde o poder voltara para nossa mão pois na biblia tem essa frase escrita bem aventurados aqueles que tem sede de justiça sejam eles brancos ou pretos pois serão recompensados por deus serão satisfeitos

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Anais do II Congresso Internacional de Estudos Linguísticos e Literários na Amazônia (CIELLA) e só pra complementar eu vou terminar dizendo que é muita treta o pacto que o governo fez com o capeta norte-americano que instalou a industria que mata milhões por ano me refiro ao álcool me refiro a nicotina destruição dos meus mano destruição das mina eu vou dizer e você pode acreditar a maior treta de todas vai ser quando Jesus Cristo voltar muita treta é o sangue que corre no meio da favela troca de tiro corpo no cão cartucho de escopeta moleque desaparece da área depois é encontrado morto outro irmão sem perdão executado acerto de conta inimigo traído com ambição te jogando na lama muita treta é a mãe que passa fome agoniada por seu filho viver no poder que passa por cima se se importar com você o presídio lotado já não cabe mais ninguém nos raios vitima da podridão sistema mercenário o sonho que não se realiza poder matando vida controle de população criação de homicidas o compasso seduz peço paz chamo a luz o meu caminho é guiado por ch e um homem chamado Jesus é muita treta mano é muita treta muita treta... mano, vichh é muita treta.

Negro Drama – Racionais MC’s NEGRO DRAMA, Entre o sucesso, e a lama, Dinheiro, problemas, Inveja, luxo, fama, NEGRO DRAMA, Cabelo crespo, E a pele escura, A ferida a chaga, A procura da cura, NEGRO DRAMA, Tenta vê, E não vê nada, A não ser uma estrela, Longe meio ofuscada, Sente o Drama, O preço, a cobrança, No amor, no ódio, A insana vingança, NEGRO DRAMA, Eu sei quem trama, E quem tá comigo, O trauma que eu carrego, Pra não ser mais um Preto Fudido, O drama da Cadeia e Favela, Tumulo, sangue,

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Tema geral: Línguas e Literaturas: Diversidade e Adversidades na América Latina Sirene, choros e velas, Passageiro do Brasil, São Paulo, Agonia que sobrevivem, Em meia zorra e covardias, Periferias,vielas e cortiços, Você deve tá pensando, O que você tem a ver com isso, Desde o início, Por ouro e prata, Olha quem morre, Então veja você quem mata, Recebe o mérito, a farda, Que pratica o mal, me vê, Pobre, preso ou morto, Já é cultural, Histórias, registros, Escritos, Não é conto, Nem fabula, Lenda ou mito, Não foi sempre dito, Que preto não tem vez, Então olha o castelo e não, Foi você quem fez Cuzão, Eu sou irmão, Dos meus truta de batalha, Eu era a carne, Agora sou a propria navalha, Tim..Tim.. Um brinde pra mim, Sou exemplo, de vitorias, Trajetos e Glorias, O dinheiro tira um homem da miséria, Mas não pode arrancar, De dentro dele, A Favela, São poucos, Que entrão em campo pra vencer, A alma guarda, O que a mente tenta esquecer, Olho pra traz, Vejo a estrada que eu trilhei, Mococa, Quem teve lado a lado, E quem só fico na bota, Entre as Frases, Fases e varias etapas,

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Anais do II Congresso Internacional de Estudos Linguísticos e Literários na Amazônia (CIELLA) De quem é quem, Dos Manos e das Minas fraca, Hum.. NEGRO DRAMA de estilo, Pra ser, E se for, Tem que ser, Se temer é milho, Entre o gatilho e a tempestade, Sempre a provar, Que sou homem e não um covarde, Que Deus me guarde, Pois eu sei, Que ele não é neutro, Vigia os rico, Mais ama os que vem do Gueto, Eu visto Preto, Por dentro e por fora, Guerreiro, Poeta entre o tempo e a memória, Hora, Nessa história, Vejo o dolar, E varios quilates, Falo pro mano, Que não morra, e tambem não mate, O Tic Tac, Não espera veja o ponteiro, Essa estrada é venenosa, E cheia de morteiro, Pesadelo, Hum, É um elogio, Pra quem vive na guerra, A PAZ Nunca existiu, No clima quente, A minha gente soa frio, tinha um Pretinho, Seu caderno era um Fuzil, Um Fuzil, NEGRO DRAMA, CRIME, FUTEBOL, MÚSICA, CARALHO, EU TAMBÉM, VO CONSEGUI FUGI DISSO AI, EU SO MAIS UM, FOREST CAMP é MATO, EU PREFIRO CONTAR UMA HISTORIA REAL,

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Tema geral: Línguas e Literaturas: Diversidade e Adversidades na América Latina Vou CONTA A MINHA.... Dai um filme, Uma negra, E uma criança nos braços, Solitária na floresta, De concreto e aço, Veja, Olha outra vez, O rosto na multidão, A multidão é um monstro, Sem rosto e Coração, Hey, São Paulo, Terra de arranha-céu, A garoa rasga a carne, É a Torre de Babel, Famíla Brasileira, 2 contra o mundo, Mãe solteira, De um promissor, Vagabundo, Luz, Câmera e Ação, Gravando a cena vai, O Bastardo, Mais um filho pardo, Sem Pai, Hey, Senhor de engenho, Eu sei, Bem quem é você, Sozinho, se num guenta, Sozinho, Se num guenta a peste, e disse que era bom, E a favela ouviu, la tambem tem Whiski, e Red Bull, Tênis Nike, Fuzil, Admito, Seus carro é bonito, Hé, E eu não sei fazer, Internet, Video-cassete, Os carro loko,

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Anais do II Congresso Internacional de Estudos Linguísticos e Literários na Amazônia (CIELLA) Atrasado, Eu to um pouco se, To, Eu acho sim, Só que tem que, Seu jogo é sujo, E eu não me encaixo, Eu so problema de montão, De carnaval a carnaval, Eu vim da selva, So leão, So demais pro seu quintal, Problema com escola, Eu tenho mil, Mil fita, Inacreditavel, mas seu filho me imita, No meio de vocês, Ele é o mais esperto, Ginga e fala giria, Giria não dialeto, Esse nao é mais seu, Hó, Subiu, Entrei pelo seu rádio, Tomei, Se nem viu, Mais é isso ou aquilo, O Que, Senão dizia, Seu filho quer ser Preto, Rhá, Que irônia, Cola o pôster do 2 Pac ai, Que tal, Que se diz, Sente o NEGRO DRAMA, Vai, Tenta ser feliz, Hey bacana, Quem te fez tão bom assim, O que se deu, O que se faz, O que se fez por mim, Eu recebi seu Tic, Quer dizer Kit, De esgoto a céu aberto, E parede madeirite, De vergonha eu não morri, To firmão, Eis-me aqui,

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Tema geral: Línguas e Literaturas: Diversidade e Adversidades na América Latina Voce não, Se não passa, Quando o mar vermelho abrir, Eu sou o mano Homem duro, Do gueto, Browm, Obá, Aquele loko, Que não pode errar, Aquele que você odeia, ama nesse instante, Pele parda, Ouço Funk, E de onde vem, Os diamante, Da lama, Valeu mãe, Negro Drama, Drama, Drama. Ae, Na época dos barraco de pau lá na pedreira Onde vocês tavam? O que vocês deram por mim ? O que vocês fizeram por mim ? Agora tá de olho no dinheiro que eu ganho Agora tá de olho no carro que eu dirijo Demorou, eu quero é mais Eu quero é ter sua alma Aí, o rap fez eu ser o que sou Ice blue, edy rock e klj, e toda a família E toda geração que faz o rap A geração que revolucionou A geração que vai revolucionar Anos 90, século 21 É desse jeito Aí, voce saí do gueto, Mas o gueto nunca saí de voce, morou irmão Voce tá dirigindo um carro O mundo todo tá de olho ni você, morou Sabe por quê? Pela sua origem, morou irmão É desse jeito que você vive É o negro drama Eu não li, eu não assisti Eu vivo o negro drama, eu sou o negro drama Eu sou o fruto do negro drama Aí dona ana, sem palavra, a senhora é uma rainha, rainha Mas ae, se tiver q voltar pra favela Eu vou voltar de cabeça erguida Porque assim é que é Renascendo das cinzas Firme e forte, guerreiro de fé Vagabundo nato!

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O CHAT NO ENSINO-APRENDIZAGEM DE ESPANHOL PARA UNIVERSITÁRIOS: ESTRATÉGIAS E POSSIBILIDADES Greice da Silva CASTELA (UNIOESTE / PG-UFRJ)

RESUMO: Esse relato de experiência constitui um breve recorte de minha investigação de mestrado defendida na UFRJ. Indagamos aqui quais são os recursos e estratégias utilizadas por estudantes de Espanhol como Língua Estrangeira (E/LE) na interação em um Chat espanhol com hispano-hablantes. A escolha do corpus se justifica por ser um intercâmbio comunicativo real na língua meta, na qual os estudantes não costumam ser inseridos ao longo da graduação e que exige rapidez na compreensão e na escrita das mensagens, o que contribui para a prática na língua alvo. Analisamos a interação em espanhol de onze universitários do sexto semestre na graduação em Letras (Português-Espanhol) em uma universidade pública no Rio de Janeiro com participantes de um canal ‘Amistad’ de um chat espanhol. O questionário aplicado ao final da interação revelou que os estudantes, por unanimidade, consideram que os graduandos em Letras devem ter contato com esse tipo de interação. PALAVRAS-CHAVE: Chat; estratégias interacionais; Espanhol como Língua Estrangeira.

RESUMEN: Ese relato de experiencia constituye un breve recorte de mi investigación de máster defendida en UFRJ. Indagamos aquí quales son los recursos y estrategias que estudiantes de Español como Lengua Extranjera (E/LE) utilizan en la interacción en una charla virtual española con hispano hablantes. La elección del corpus se justifica por ser un intercambio comunicativo real en la lengua meta, en el que no se suele insertar los estudiantes a lo largo de la graduación y que exige rapidez en la comprensión y en la escritura de los mensajes, de manera que contribuye para la práctica en la lengua meta. Analizamos la interacción en español de once universitarios del sexto semestre en la graduación en Letras (Portugués-Español) en una universidad pública en Rio de Janeiro con participantes de un canal ‘Amistad’ de una charla virtual española. El cuestionario aplicado al final de la interacción reveló que los estudiantes, por unanimidad, consideran que los graduandos en Filología deben tener contacto con ese tipo de interacción. PALABRAS-CLAVE: Charla virtual; estrategias interactúales; Español como Lengua Extranjera.


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1. Introdução Neste trabalho descrevemos as estratégias interacionais e o sistema escrito utilizados por estudantes brasileiros de E/LE e usuários da língua espanhola na interação quase sincrônica ocorrida durante sete horas de participação em um Chat espanhol. São aqui analisados recursos e estratégias empregados por graduandos, que cursam o sexto semestre do curso de Letras (Português-Espanhol) em uma universidade pública do Rio de Janeiro, no uso não convencional da escrita. Participaram desta pesquisa onze aprendizes de E/LE, sendo nove mulheres e dois homens com idades entre vinte e trinta e três anos. O tempo que cada aluno foi exposto ao ensino do espanhol antes de ingressar na universidade é bastante distinto, já que três estudantes nunca tiveram aulas para aprenderem essa língua-meta, dois a estudaram na escola durante dois anos, outros dois no prévestibular de seis a oito meses, um teve contato com a língua durante um ano em um curso de idiomas e dois a estudaram tanto na escola quanto em cursos de idioma ao longo de quatro anos e nove anos e seis meses. A escolha do corpus se justifica por ser um intercâmbio comunicativo real na língua meta, na qual os estudantes não são inseridos ao longo da graduação. Além disso, por ser síncrona exige rapidez na compreensão e na escrita das mensagens, o que contribui para a prática do E/ LE. A sala de ‘bate-papo’ do jornal eletrônico El País foi escolhida por este ser o jornal de maior circulação na Espanha e o primeiro a apresentar uma versão eletrônica no país. Além disso, esse Chat em língua espanhola não é exclusivo dos assinantes do jornal, podendo ser acessado por internautas de todo o mundo. Como essa sala de bate-papo apresenta vinte e sete canais limitamos as interações ao canal # ‘Amistad’ porque este não possui um tema pré-determinado e costuma reunir o maior número de participantes desse Chat –cerca de 60 simultaneamente-, além de concentrar predominantemente usuários adolescentes e jovens. Não foi especificado um tema para a interação, os alunos deveriam interagir através dos computadores do laboratório de informática da universidade como se estivessem sozinhos em casa. Cada aluno permaneceu cerca de uma hora por dia no canal e entrou no Chat de uma a três vezes de acordo com sua disponibilidade de horário. Como os ‘diálogos’ em uma sala de ‘bate-papo’ pela Internet ocorrem mediados pelo computador, com a participação de um software específico, para utilizar esse Chat basta acessar o site do jornal através do endereço eletrônico www.elpais.es, clicar em Chat na página principal, escolher um canal, digitar um nickname, também conhecidos como nick ou login, que pode ser o nome, apelido ou pseudônimo pelo qual a pessoa se identifica no ‘diálogo’ e pulsar em entrar. O login pode ser trocado durante o ‘diálogo’ ou a cada nova entrada no Chat, funcionando como uma máscara por trás da qual se revelam ou se ocultam identidades. Permanecem registrados avisos de entrada e saída de logins da sala, bem como a mudança de nick durante o ‘diálogo’. Os nicks em uma sala de ‘bate-papo’ são reconhecidos pelos participantes da interação, que muitas vezes buscam esse espaço para trocar idéias, passar o tempo de modo agradável e/ou iniciar relacionamentos de amizade ou amorosos. Em muitos casos, tenta-se suprir a virtualidades dos ‘diálogos’ on-line através de pedidos de envio de fotos e do MSN que permite também a comunicação oral na rede. Para enviar uma mensagem, que pode ser lida por qualquer participante que esteja no canal nesse momento, basta digitá-la e clicar na opção enviar. Os ‘diálogos’ podem ocorrer na página do canal entre dois participantes ou até entre todos, já que a visualização das mensagens para ali enviadas é permitida a todos os que estão no canal. Além disso, pode-se optar por interagir com uma única pessoa através da abertura de um privado, que é uma pequena janela aberta na tela de duas pessoas, que não impede o envio de mensagens para página do canal nem a leitura das mesmas. Cada usuário pode interagir em quantos privados quiser, desde que estejam dentro do mesmo canal, sem que mais ninguém saiba com quem se está interagindo nem o conteúdo desse ‘diálogo’.

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Tema geral: Línguas e Literaturas: Diversidade e Adversidades na América Latina

Nos privados a interação ocorre entre dois participantes, indaga-se a aparência física, gostos e ocupações do usuário, respeitam-se os turnos1 de fala, há pouco scroll2, poucas digressões e interrupções abruptas de temas, as intervenções são mais elaboradas e, verifica-se uma presença mais atuante do interlocutor. Para salvar os ‘diálogos’ foi necessário utilizar o recurso de selecionar, copiar e colar num arquivo do Word, já que não estão disponíveis ícones para impressão nem para gravação da janela do canal. Ao final da participação na sala de ‘bate-papo’ cada acadêmico respondeu um questionário sobre a interação nesse gênero discursivo. Os estudantes registraram suas impressões sobre o uso da língua na sala de ‘bate-papo’, para eles: (1) o uso da língua no Chat espanhol não difere da escrita empregada em Chats brasileiros que também apresentam “muita abreviação, gírias, construções incompletas” (Leo); (2) “é um uso mais livre” com “pouca preocupação com o uso correto da língua”, já que há apresenta mudanças ortográficas e ausência de sinais pontuação e de acentuação (Guapa/ Priscila e Grazi/Brasile); (3) o Chat utiliza “uma linguagem extremamente coloquial ou uma oralidade sendo representada graficamente” (Micole); (4) “não é um uso formal” (amira/Caetano); (5) revela “a diversidade lingüística, as mudanças de vocábulos de uma região para outra, as diferentes construções” (rubia) e (6) mostra que “os próprios falantes nativos têm problemas sintáticos e gramaticais” (Mantis). Estas impressões refletem algumas inquietações generalizadas sobre o efeito que a Internet exerce na linguagem e na língua espanhola. A representação que a sociedade faz da língua considera que qualquer mudança lingüística é uma corrupção da língua. O medo da degradação da linguagem devido às novas tecnologias não é algo novo, já ocorreu, com o aparecimento do rádio e da televisão, por exemplo (GARCÍA TERÁN, 2004; YUS, 2001; MAYANS, 2002a). Algumas pessoas receiam que as variações ortográficas presentes na escrita no Chat se incorporem em outros gêneros escritos e orais. No entanto, o importante é saber adequar a fala e a escrita à situação comunicativa, considerando quem são os interlocutores. Como afirma García Terán (2004, p. 23), “com o Chat ocorre o que ocorre com qualquer código: se usa entre iguais e não fora desse âmbito”. Essa autora considera que os modelos de língua fornecidos pelas instituições de ensino e pelos pais dos adolescentes garantem que a norma estándar seja empregada em outras situações. As impressões generalizadas sobre a língua e seu uso revelam que as pessoas geralmente confundem domínio da língua com o domínio da variante de prestigio e evidenciam a existência de valores sociais atribuídos à comunidade que a utiliza e que a definem como detentora de maior ou menor prestígio. “A língua é um conjunto de variantes” (NEVES, 2003, p. 20), sendo assim a línguapadrão “nada mais é do que uma das variantes da língua em uso” (NEVES, 2003, p. 95). O padrão lingüístico que não está calcado na observação dos usos, não constitui um padrão real. Atualmente, o uso do sistema escrito está cumprindo com sua função na interação via computador, sendo constantemente adaptado e negociado por seus usuários, já que reflete as mudanças na própria comunidade virtual. Observamos que os usuários do Chat não parecem considerar a língua na perspectiva da gramática normativa, julgando as formas lingüísticas com critérios de ‘certo’ e ‘errado’, somente um estudante explicita essa preocupação em uma de suas mensagens: (1) [10:35] MICOLE no sé se escribi cierto.

Como afirma Baralo Ottonello (2004, p. 407) “o grau e o nível de correção que nos proponhamos virá determinado pelos objetivos e necessidades dos alunos e pelos requerimentos do contexto acadêmico em que se leve a cabo a instrução”. Consideramos o uso do sistema escrito no Chat adequado a essa situação, sendo uma variante lingüística que possibilita a comunicação mediada pelo computador (CMC). López Quero (2003) sugere que o Chat não apresenta turnos de fala porque o software impõe a seqüencialização das mensagens por sua ordem de envio para a tela. Discordamos dessa posição por considerarmos como turno na sala de ‘bate-papo’ qualquer mensagem enviada para o canal. A presença dos nicks dos usuários na tela indica a ocorrência de turnos que constituem a trama de ‘conversas’ paralelas que o canal comporta. 2 Scroll é o movimento vertical da tela que se produz pelo envio de mensagens para o canal. 1

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2. Ortografia e unidades de segmentação da escrita na interação no Chat A escrita constitui um conjunto de convenções socialmente aceitas, que estabelece “o conjunto de normas que regem os usos da língua” (BLANCHE-BENVENISTE, 2002, p. 27). Considerar a escrita como instrumento de transposição da oralidade é ignorar o peso que a história e a cultura sempre exerceram sobre o código escrito. A ortografia é um dos procedimentos gráficos e históricos associado a modelos de representação da língua (BLANCHE-BENVENISTE, 1998). Se por um lado, a ortografia estabiliza a escrita e agiliza a leitura, por outro, oculta a variação, a força ilocucionária e os aspectos prosódicos, difundindo uma falsa idéia de estabilidade e de homogeneidade da língua (BLANCHE-BENVENISTE, 2002; LARA, 2002). A escrita apaga as marcas sexuais, geográficas e sociais que são reveladas através da voz (VANDENDORPE, 1999). Na sala de ‘bate-papo’ tenta-se fazer com que a escrita – enquanto dispositivo gráfico de comunicação - cumpra a mesma função que a fala na interação. Os participantes do Chat tentam reconstruir o que a escrita e a ortografia escondem através do uso de um sistema ortográfico que rompe com o sistema normativo e revitaliza recursos fonológicos, silabográficos, acronímicos e ideográficos presentes ao longo da história da escrita. Seus usuários tentam marcar, através do uso de determinados recursos, a variação como sinal de identidade, rompendo com a ‘neutralidade’/ ausência de variação que a escrita normativa imprime aos enunciados. Assim, tenta-se indicar graficamente o que a escrita apaga ao representar somente a variante de maior prestígio. Considerando que no Chat o uso da língua escrita está muito marcado por traços que remetem à oralidade (JONSSON, 1997), os estudantes de E/LE que interagem no canal de Chat estão expostos sistematicamente a esse uso. Da mesma maneira, os aprendizes estão submetidos às mesmas condições de produção (alta interatividade, velocidade na troca das mensagens e pouco planejamento) que geram tais traços. Estas considerações nos conduzem a necessidade de comparar o sistema escrito utilizado neste gênero por supostos hispano-falantes e pelos estudantes de E/LE, assim como as estratégias que ambos empregaram durante a interação. Nossa representação da língua relaciona-se aos hábitos da escrita tipográfica em prosa cujos dispositivos estão convencionalizados dentro da história da escrita, no entanto constituem esse novo gênero, no qual assumem novas funções. As variações ortográficas estão presentes ao longo da história da escrita. Mayans (2002b) ressalta que as variações ortográficas presentes nas salas de ‘bate-papo’ são intencionais, não se devem nem a descuidos nem à ignorância do código normativo. Para esse autor, o uso transgressor do código escrito possui como causas: (a) funcionar como uma fonte de humor, cujo principal modelo é o registro oral coloquial e (b) constituir um dos fatores identitários e individualizadores utilizados no Chat para construir discursivamente o usuário. Por tanto, “a tão freqüente ‘incorreção normativa’ que observamos nos chats é, na realidade, uma de suas características mais genuínas e não, de nenhum modo, um defeito” (Mayans, 2002b, p. 8). Por outro lado, Noblia (2004, p.375) considera que os participantes dos Chats não seguem as normas convencionais da escrita devido à rapidez exigida pela interação e aos recursos alternativos que se seus usuários utilizam “para garantir o controle interacional e discursivo”. Consideramos como variações ortográficas a ausência de acentos gráficos, a não utilização de maiúsculas no inicio de enunciados ou nomes próprios, a omissão de sinais de pontuação e a supressão ou troca de grafemas em um vocábulo. No Chat, a pontuação e as maiúsculas perdem sua função convencionalizada ao longo da história da escrita em prosa. 2.1. Ausência de acentos gráficos Pelo que indica a observação dos enunciados do canal de Chat analisado, a ausência de acentuação constitui uma norma nesse sistema escrito. Omitir a acentuação gráfica permite aumentar a velocidade de produção e recepção das mensagens, já que diminui o número de toques durante sua digitação sem, contudo, comprometer seu sentido. Em geral, os estudantes alternam o uso de

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acentos gráficos, ora empregando-os ora apagando-os como mostram os exemplos (1), (2) e (3) abaixo. Durante a interação no canal aberto somente uma aluna de nick ‘kalika’ optou por não utilizar acentos em nenhuma de suas mensagens e outra de nick ‘Micole’ preferiu utilizá-los em todos os seus enunciados. Cabe ainda ressaltar que verificamos a ausência de convenções para substituir acentos. (1) [08:40] grazi Nacho, donde estás?????? (2) [09:04] rubia como??? [09:04] rubia diablo no sé lo que dices (3) [10:15] Anita de dónde eres [10:20] Anita de donde eres chorizo?

A estudante de nick ‘rubia’ foi a única que não utilizou sinais de acentuação nos privados em que interagiu, exceto em um enunciado. Todos os demais alunos os empregaram em suas mensagens, revelando a tentativa de utilizar a variante de prestigio que aprendem na universidade. Consideramos, portanto, que deixaram de acentuar algumas palavras (precisamente cinquenta na interação nos canais privados) por descuido ou por não dominarem as regras de acentuação da escrita. Constatamos que a ausência de ausência de sinais de interrogação foi mais recorrente nos pronomes interrogativos e exclamativos (‘que’, ‘cual’, ‘como’, ‘donde’, ‘cuanto’), em palavras com acento diferencial (‘mi’, ‘se’, ‘si’, ‘tu’, ‘solo’), em palavras oxítonas (como, por exemplo, ‘adios’, ‘estas’, ‘estudie’, ‘trabaje’, ‘tambien’, ‘portugues’, ‘profesion’, ‘filologia’, ‘engañaria’, ‘despues’) e proparoxítonas (como ‘linguistico’, ‘proxima’). A seguir expomos alguns enunciados, enviados pelos estudantes em privados, em que há vocábulos que não foram acentuados: (1) [11:12] Priscila

cual es tu profesion?

(2) [10:22] Leo ES SOLO UN INTERÉS LINGUISTICO... CUAL ES EL SENTIDO... (3) [09:46] Andy Y tu como ers? (4) [09:53] Andy Que feo! estas charlando y trabajando al mismo tiempo... (5) [09:26] Anita bien, de donde eres? (6) [09:36] Grazi no, aún no, a mi tb me gustaba

Também ocorreram dois casos de hipercorreção, ou seja, em dois enunciados os alunos utilizam acentuação gráfica em sílabas que não são tônicas: [09:33] Priscila qué haces ahora en la oficina, adémás nde hablar conmigo? (2) [10:30] MICOLE no hay problema. es qué tampoco sé en inglés.

2.2. Ausência de maiúsculas Essa variante presente na escrita das mensagens do Chat não é algo novo na história da escrita. Segundo Blanche-Benveniste (2002), posteriormente ao surgimento das separações gráficas, foram introduzidos sinais de pontuação e maiúsculas no início das orações, as quais somente se estabilizam no século XVI com a invenção da imprensa. Nas salas de ‘bate-papo’ as letras maiúsculas, por um lado, nem sempre são utilizadas e, por outro, adquirem novos papéis. Constatamos que os alunos alternam o uso de maiúsculas, ora utilizando-as ora empregando minúsculas em seu lugar (exemplos 1 e 2), sendo que na maioria dos casos suprimem-se as maiúsculas das mensagens (exemplos 3 e 4). Nos enunciados dos estudantes de nicks ‘ZORRO’ E MANTIS’ não foi possível analisar essa freqüência de uso devido ao emprego de caixa alta em todas as mensagens. (1) [09:33] rubia no, soy de brasil, no soy Pedro...]

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Anais do II Congresso Internacional de Estudos Linguísticos e Literários na Amazônia (CIELLA) (2) [11:09] Guapa

yo vivo en Río de Janeiro

(3) [09:29] MICOLE micole para josu de dónde eres (4) [10:20] Anita de donde eres chorizo?

Assim como há uma preferência pelo uso de minúsculas em comparação com a utilização de maiúsculas, os estudantes também, geralmente, optam por apagar sinais de pontuação ou por modificar sua função no enunciado. 2.3. Ausência de sinais de pontuação A pontuação contribui para a oralização dos enunciados escritos, “as escritas modernas representam alguns traços prosódicos da fala mediante signos de pontuação que não são ‘lidos’, mas que indicam como se deve ler o que está escrito” (OLSON, 1998, p.116). No Chat, a pontuação perde essa função, que é assumida por outros recursos gráficos e, geralmente, desaparece. Os sinais de pontuação mais empregados pelos estudantes de E/LE na interação foram: a reticência com valor de pausa (exemplo 1) ou de alongamento fonético (exemplo 2), o ponto de interrogação somente no final de pergunta (exemplo 3) embora também fosse suprimido muitas vezes (exemplo 4) e o ponto de exclamação somente marcando fim de um enunciado exclamativo (exemplo 5). O ponto final, a vírgula e o ponto e vírgula quase sempre foram apagados. Cabe ainda destacar o emprego do hífen pelo aluno de nick ‘MANTIS’ com a função de separar o nick do interlocutor ao qual se dirige da mensagem que lhe envia (exemplo 6). (1) [10:07] Leo y entonces... estudias... trabajas ?? (2) [08:58] rubia diablo... (3) [11:28] Guapa

cómo estás ?

(4) [10:07] MICOLE Hola Mat de dónde eres (5) [10:05] Mary ADIOS! (6) [09:45] MANTIS SOL - QUE ES ESOOOOOOO???

Além de deslocar o uso convencional de marcas tipográficas (acento, maiúsculas e pontuação) ocorre também a troca sistemática de grafemas nos casos em que não há correspondência unívoca fonema-grafema no sistema de escrita alfabética do espanhol3. Dois grafemas podem representar um único fonema ou um grafema pode não corresponder a nenhum fonema. Na comunicação síncrona as reduções ortográficas de palavras estão relacionadas à semelhança fonética com padrões informais de fala (JONSSON, 1997). Permutas fonéticas são comuns no Chat, contribuem para uniformizar o sistema fonético consonantal e favorecem a rapidez na digitação de mensagens. Verificamos que: (1) Com relação à acentuação os oito estudantes que participaram da interação no canal privado oscilaram o uso de sinais gráficos. No canal aberto sete alunos oscilaram a representação da acentuação, dois acentuaram todas as palavras e um estudante a não acentuou nenhuma; (2) Quanto ao uso de maiúsculas, nove estudantes ora o empregaram ora não o utilizaram. Apenas dois alunos que participaram somente do canal aberto acentuaram todas as palavras; (3) Os enunciados dos estudantes oscilam em relação à representação dos sinais de pontuação nos canais aberto e privado; (4) Somente um aprendiz alternou o uso dos grafemas ‘i’ e ‘y’ no canal privado. 3

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O espanhol é uma das línguas que mais co-relaciona fonema e letra.

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2.4. Troca de Ø por ‘h’ Na interação em Chat de língua espanhola é comum ainda que o grafema ‘h’, atualmente sem correspondência fonêmica, não seja marcado. Esse apagamento do grafema ‘h’ somente foi verificado na grafia da palavra ‘hola’ realizada pelo estudante de nick ‘ZORRO’, sendo mantido em outros vocábulos pelos aprendizes. (1) [09:40] ZORRO OLA,YAISA (2) [09:41] ZORRO OLA.BETH (3) [10:17] ZORRO OLA,PIPI

Outro apagamento freqüente no Chat é a supressão de vogais. 2.5. Supressão de vogais O apagamento vocálico também denominado de ‘fuga das vogais’ pode ser visualizado nos enunciados de estudantes de E/LE verificamos nas palavras ‘ers’ (eres), ‘com’ (como) e ‘dgo’ (digo): (1) [09:54] Mary DE DÓNDES ERS AIDA? (2) [09:39] amira No dgo mi edad (3) [09:40] amira Y tu cmo eres?

Julgamos que esse tipo de alteração ortográfica ocorreu por descuido devido à necessidade de rapidez na digitação e envio das mensagens. Verificamos que: (1) Somente um aprendiz oscila o grafema ‘h’ e seu apagamento no canal aberto; (2) A ‘fuga das vogais’ ocorreu em algumas palavras utilizadas por dois alunos exclusivamente no canal aberto, um aprendiz somente no canal privado e dois estudantes em ambos os canais; (3) Os estrangeirismos foram identificados nas mensagens de dois alunos, um no canal aberto e outro no privado, sendo empregados apenas na escolha dos nicks ‘Mary’ e ‘Andy’ e na interação com um anglófono. Dos onze universitários, cinco não empregaram nenhuma das estratégias observadas no quadro XII. Cabe ainda ressaltar que as variações ortográficas podem ser decorrentes de falta de domínio das regras e léxico da língua meta e/ou influência da língua materna, como verificamos a seguir. 2.6. Falta de domínio da língua meta : Os enunciados dos alunos produzidos durante a interação no Chat evidenciam alterações ortográficas que revelam influências da língua materna no uso da língua meta, falta de domínio gramatical e/ ou lexical. Como sugere Baralo Ottonello (2004) os ‘erros’ dos aprendizes não se explicam somente através de uma Análise Contrastiva, já que nem todos podem ser atribuídos à língua materna. A interferência da língua materna na língua meta ocorre, sobretudo, quando há oposição em alguma área da gramática dessas línguas. Segundo Corder (1967) o ‘erro’ consiste em: um procedimento utilizado por quem aprende para aprender, uma forma de verificar suas hipóteses sobre o funcionamento da língua que aprende. Cometer erros é uma estratégia que empregam as crianças na aquisição de sua L1 e do mesmo modo os aprendizes de uma língua estrangeira (apud FERNÁNDEZ LÓPEZ, 2004, p. 421).

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Os ‘erros’ dos aprendizes de uma língua estrangeira (LE) revelam processos inconscientes. São inevitáveis e necessários, visto que contribuem para revelar o processo de aprendizagem e os processos psicológicos envolvidos, indicam as maiores dificuldades na LE, apontam o nível da competência comunicativa dos estudantes e os aspectos que se necessita trabalhar nas aulas (BARALO OTTONELLO, 2004). É importante ressaltar que o denominado ‘desvio’ ou ‘erro’ é, em realidade, uma variação (Neves, 2003). “A linguagem não existe a não ser na interação lingüística, isto é, no uso (..) No tratamento escolar, a variação não pode ser vista como ‘defeito’, ‘desvio’, e a mudança não pode ser tida como ‘degeneração’, ‘decadência’” (NEVES, 2003, p. 20). O bom uso refere-se tanto à composição dos enunciados quanto à sua adequação social à situação. A seguir apresentamos alguns enunciados que exemplificam variações que os estudantes empregaram no uso do sistema escrito na língua meta: a) uso de ‘ss’: (1) [08:41] kalika que passa? (2) [09:45] Andy No me assusta

b) troca de 1ª pessoa por 2ª pessoa: (1) [11:21] Priscila

estabas chateando contigo y ahí vino otra persona chatear conmigo...

c) mescla de tratamento formal e informal: (1) [09:39] rubia si, claro... tu edad esta en tu nombre, desculpe... (2) [09:34] Grazi y la tuya, tb es bonita? [09:35] Grazi está en el trabajo?

d) concordância nominal: (1) [10:06] Leo sí.... hay muchas brasileños en este chat no ?

e) concordância verbal: (1) [09:39] Grazi No se, los hombres nunca se quejaron, y les gustan mucho de mi aparencia (2) [08:54] rubia mira, te importas en hablar en la pantalla principal?...

f) léxico: (1) [10:24] MICOLE podemos ir la tela principal? (2) [10:12] Anita cuanto perjuicio...

g) regência verbal: (1) [09:37] rubia a mi me gustaria conocer a españa... (2) [10:24] MICOLE podemos ir la tela principal?

h) ausência do objeto direto: (1) [10:30] MICOLE no hay problema. es qué tampoco sé en inglés. (2) [09:46] Andy Dime primero

i) uso de infinitivo: (1) [10:13] MICOLE sí. para entrenarmos la lengua española.

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j) uso da conjunção ‘si’: (1) [10:35] MICOLE no sé se escribi cierto.

k) conjugação do verbo: (1) [11:05] Guapa

sou de Brasil

l) pronome obliquo: (1) [09:49] Caetano Y a tu Kevin?

Santos Gargallo (2004) aponta como principais causas dos ‘erros’ cometidos pelos aprendizes de uma língua estrangeira: (a) distração; (b) interferência de outra língua como a materna; (c) tradução de frases feitas da língua materna; (d) hipergeneralização e aplicação incompleta das regras da língua meta e (e) mecanismos empregados como estratégias de comunicação. Além das variações ortográficas explicadas pela simplificação do sistema, pela rapidez do envio e pelo registro coloquial desta prática escrita contemporânea, registramos ainda a troca de letras ou alterações na escrita convencional das palavras que remetem diretamente a fenômenos de variação e organização discursiva da fala coloquial. 2.7. Ausência de espaçamento entre palavras Outro recurso que também rompe a noção de palavra enquanto unidade de segmentação da escrita e, conseqüentemente, interfere no processo de leitura é a ausência de espaços em branco para separá-las. Essa estratégia foi utilizada por dois alunos: (1) [08:32]kalikachicosvamosacharlar (2) [10:04] ZORRO ANNAKALI,ERESSABORSA,CALIENTE

No Chat, são ou não utilizados espaços em branco como forma de separação entre as palavras. Esse recurso adquire nova função nessa interação, ao romper com as fronteiras dessa unidade da escrita contribui para atrair a atenção dos participantes do canal e/ou facilitar a visualização na tela dos enunciados de quem utiliza essa estratégia. 2.8 Enunciado dividido em mais de uma mensagem No Chat freqüentemente um enunciado longo é dividido pelo usuário que, para reter a atenção do interlocutor, o envia em várias partes sucessivas. O desmembramento de um enunciado longo em enunciados curtos (contendo de 5 a 13 palavras) possibilita mensagens mais espontâneas e menos revisadas, evita pausas prolongadas entre turnos e assegura sua manutenção, contribuindo para a interação e evitando que o enunciado torne-se obsoleto pela emissão de outras mensagens pelos demais usuários (FONSECA, 2001). Essa estratégia se mostrou presente nas mensagens de oito estudantes. A seguir exemplificamos a fragmentação de enunciados em duas ou mais mensagens sucessivas: (1) [08:47] grazi No te vayas [08:47] grazi Raulll.... (2) [09:15] rubia diablo [09:16] rubia estás hablando con alguien en privado??? [09:16] rubia por eso no me contestas????

Diferentemente dos outros participantes do canal, os alunos não percebem a interação com uma finalidade estritamente conversacional, mas a vêem como uma oportunidade de treinar o uso da língua meta com hispano-falantes e de esclarecerem dúvidas sobre léxico ou cultura com seus

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interlocutores. Como evidencia-se nas respostas dadas ao questionário, tendo indicado como pontos positivos da interação no canal de Chat: (1) o contato com hispano-falantes; (2) conhecer pessoas de outros países; (3) melhorar o vocabulário; (4) aprender estruturas da língua meta como expressões idiomáticas de outros países; (5) ter pensar em espanhol; (6) demandar expressar-se com rapidez no idioma estudado; (7) possibilitar o esclarecimento de dúvidas; (8) descobrir curiosidades sobre a língua e diferentes países; (9) interagir na língua meta de maneira informal e descompromissada e (10) aprender como se interage no Chat. Cabe ressaltar ainda que alguns educadores consideram que a interação no Chat permite exercitar a escrita e auxilia na organização das idéias (NEVES, 2003b). No entanto, cinco alunos também apontam pontos negativos nesta interação: (1) dificuldade de chamar a atenção no canal aberto; (2) dificuldade de interagir por não conhecer a linguagem e os símbolos utilizados na sala de ‘bate-papo’ espanhola; (3) desconhecer a nacionalidade dos participantes e (4) o uso da língua “com pouquíssima atenção, com abreviações, falta de acentuação e pontuação, algumas gírias” (Micole) devido à rapidez exigida pela interação para elaboração e envio das mensagens. 3. Considerações finais O suporte influencia a interação no Chat acarretando uma escrita espontânea com funcionamento de conversação coloquial e repleta de grafias consideradas marginais na escrita alfabética. Desta maneira, o idioma empregado na sala de ‘bate-papo’ analisada não corresponde totalmente à tradição escrita assentada ao longo da história da língua castelhana. No entanto, a representação de fenômenos da oralidade atua no Chat como uma forma de promover o engajamento discursivo de seus participantes. Considerando que “as variações não são aleatórias e sim sistemáticas, no caso dos usos lingüísticos” (MARCUSCHI, 2004, p. 30), identificamos como regularidades na interação realizada no canal de Chat analisado variações ortográficas na língua castelhana observadas nas estratégias reunidas sob a denominação de ‘Ortografia e unidades de segmentação da escrita’. Constatamos que nessa interação os interlocutores criam, em comum acordo, códigos discursivos para veicular significados. A análise dos dados corrobora a afirmação de Araújo e Melo (2003, p. 58): De fato, não estamos em presença do desconhecimento do uso da língua, mas de um uso deliberadamente informal, econômico e criativo da mesma, com o objetivo de fazer a comunicação mais expressiva, mais atrativa, mais flexível, mais lúdica e inclusive mais eloqüente; um uso deliberadamente coloquial, que captura alguns elementos da oralidade e que se apropria deles em um processo dinâmico, criador e desafiante, revelador de uma identidade efusiva que se expande na e pela comunicação.

Como não podemos nos antecipar as mudanças na língua, somente constatá-las após terem ocorrido, não é possível prever se os recursos e as variantes verificadas no sistema escrito do Chat espanhol se consolidarão na escrita tradicional da língua, mas como sugere John Paolillo (1999) “se queremos entender de verdade como Internet vai configurar nossa língua, é essencial que tentemos entender como se utilizam em Internet as distintas variedades da língua” (apud CRYSTAL, 2002, p. 35). Como cada detalhe da interação está organizada estruturalmente e as mensagens dos usuários se adaptam ao contexto ao mesmo tempo em que o reformulam, nada pode ser descartado por ser considerado acidental ou não pertinente (MAYANS, 2002a). Como sugere Marcuschi (2004, p. 62) “certamente, a escola não pode passar à margem dessas inovações sob a pena de não estar situada na nova realidade dos usos lingüísticos. Neste sentido, o letramento digital deve ser levado a sério, pois veio para ficar”. Considerando que “as formas da língua e as formas típicas de enunciados, isto é, os gêneros do discurso, introduzem-se em nossa experiência e em nossa consciência conjuntamente e sem que sua estreita correlação seja rompida” e que “selecionamos as palavras segundo as especificidades de

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um gênero” (BAKHTIN, 1997, p. 312), podemos deduzir que os estudantes não reproduzirão as variações ortográficas utilizadas no canal de Chat e as demais formas típicas deste gênero em outros gêneros que utilizam para comunicar-se na língua meta. No entanto, este gênero pode contribuir para a aprendizagem da língua estrangeira, visto que o uso do Chat como atividade de E/LE pode ajudar os estudantes no desenvolvimento da competência comunicativa, proporciona o contato com elementos sociais e lingüísticos autênticos e exige velocidade no processo de leitura/ interpretação e produção escrita das mensagens. Além disso, o Chat: É um meio muito sugestivo e com muitas possibilidades para a experimentação com a comunicação e com a língua e, também com algumas aplicações na aula de espanhol como o desenvolvimento da agilidade na conversação, a prática da leitura, a interação imediata com os falantes, a análise dos erros na expressão, na ortografia e na redação. Desenvolve a intuição de significados implicados nas intervenções quase orais. E, sobretudo, é uma maneira de submergir-se na língua ludicamente (RODRÍGUEZ MARTÍN, 2001, p. 216).

Verificamos que durante a interação nesse gênero a preocupação com os ‘erros’ cedeu lugar à motivação de uma interação ‘real’ e contribuiu para que os alunos se sentissem capazes de interagir na língua estrangeira. Além disso, as mensagens enviadas foram utilizadas para aula a fim de mostrar a representação de fenômenos da oralidade por hispano-falantes, comentar os equívocos lingüísticos cometidos pelos acadêmicos durante a interação e discutir a norma culta e o espanhol coloquial. Por fim, cabe ressaltar que o questionário realizado com os estudantes revelou, por unanimidade, que estes consideram que os graduandos em Letras (português-espanhol) devem ter contato com esse tipo de interação, já que: (1) é uma experiência nova; (2) permite praticar a língua meta; (3) possibilita o contato com outras culturas; (4) permite interagir com hispanofalantes; (5) possibilita indagar a respeito do país dos participantes; (6) é uma situação autêntica de comunicação na língua meta; (7) mostra a língua espanhola em um uso bastante informal e (8) aumenta o vocabulário. Referências ARAUJO e SÁ, M. H.; MELO, Silvia. Del caos a la creatividad: los chats entre lingüística y didactas. In: LÓPEZ ALONSO, C.; SÉRÉ, A. (eds.). Nuevos géneros discursivos: los textos electrónicos. Madrid: Biblioteca Nueva, 2003.p.45-61. BAKHTIN, M.M. Os gêneros do discurso. In: Estética da criação verbal. São Paulo: Martins Fontes, 1997. p. 279-326. BÉGUELIN, M. J. Unidades de lengua y unidades de escritura. Evolución y modalidades de la segmentación gráfica. In: Relaciones de (in)dependencia entre oralidad y escritura. FERREIRO, E. (Org.) Barcelona: Gedisa editorial, 2002. p. 31-51. BLANCHE-BENVENISTE, C. La escritura, irreductible a un ‘codigo’. In: FERREIRO, E.(org.). Relaciones de (in)dependencia entre oralidad y escritura. Barcelona: Gedisa editorial, 2002. p.15-30. ______. Algunas características de la oralidad. In: Estudios lingüísticos sobre la relación entre oralidad y escritura. Editorial Gedisa: Barcelona, 1998. p.19- 64. BARALO OTTONELLO, M. La interlengua del hablante no nativo. In: SÁNCHEZ LOBATO, J.; SANTOS GARGALLO, I. (orgs.). Vademécum para la formación de profesores: Enseñar español como segunda lengua (L2)/ lengua extranjera (LE). Madrid: SGEL, 2004. p. 369-390. CRYSTAL, D. El lenguaje e Internet. Madrid: Cambridge University Press, 2002. DIAS, M. C. P. Português falado/ português escrito: implicações e interferências na interação através de redes. In: GÄRTNER, Eberhard; HUNDT, Christine; SCHÖNBERGER, Axel (eds.). Estudos de lingüística textual do português. Frankfurt am Main: TFM, 2000, p. 231-250.

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POR UMA ANÁLISE PERFORMATIVA E SOCIAL DAS CONSTRUÇÕES DE IDENTIDADE E VIOLÊNCIA NO REPENTE Gustavo Cândido PINHEIRO1 Claudiana Nogueira de ALENCAR2 (UECE/FECLESC) RESUMO: Este trabalho é parte de um projeto mais amplo intitulado “As construções dos sentidos da violência nas práticas culturais do Sertão Central do Ceará” que pretende investigar as práticas discursivas e práticas sociais da violência no referido local. Nosso objetivo é analisar os processos semântico-discursivos de nomeação e designação de gênero, para entender como a prática cultural do repente reifica sentidos para as formas de violência cotidiana. Neste trabalho, pretendo explorar a nomeação e designação de gênero em uma abordagem crítica do discurso. Explorarei também os aspectos pragmáticos da linguagem, levando em consideração os atos de fala que podem corporificar a violência, naturalizando ideologias machistas. Com isso farei uma relação da análise do discurso com as ciências sociais, considerando o contexto da modernidade tardia em que o sujeito pós-moderno é conceptualizado como não tendo uma identidade fixa essencial ou permanente (HALL, 1997). A pesquisa utiliza como aparato teórico-metodológico, a Pragmática (WITTGENSTEIN, 1989), (PINTO, 2002), (AUSTIN, 1962) e a Análise do Discurso Crítica (FAIRCLOUGH, 1992, 2003). Os dados coletados até o momento mostram que a linguagem das práticas culturais em questão corporifica a violência através dos atos de fala de nomeação e designação, tais como: “cabra macho como eu por essas bandas não há igual”, “no meu terreiro quem canta de galo sou eu”. Essas designações constroem e reivindicam identificações tradicionais legitimando ideologias machistas e preconceituosas, através das quais diversas formas de violência são corporificadas, contribuindo para a formação das relações sociais de poder. PALAVRAS-CHAVE: Discurso; Pragmática; Identidade; Violência.

RESUMEN: Este trabajo es parte de un proyecto más grande titulado “La construcción de los significados de la violencia en las prácticas culturales del interior de Ceará Central” que visa investigar las prácticas discursivas y prácticas sociales de la violencia en esa zona. Nuestro objetivo es analizar los procesos semántico-discursivo de nombramiento y designación de gênero, para comprender la forma en que la práctica cultural de repente reificaban significado a las formas de violencia cotidiana. En este trabajo, tenemos la intención de explorar el nombramiento y designación de género en una abordaje crítico del discurso. Explora también los aspectos de la pragmática del lenguaje, teniendo en consideración los actos de habla que pueden externalizar la violencia, naturalizando las ideologías sexistas. haré una relación del análisis del discurso con las ciencias sociales, teniendo en cuenta el contexto de la modernidad tardía en la que el sujeto de la postmodernid se conceptualiza como no tenendo una identidad fija o esencial o permanente (HALL, 1997). El búsqueda utiliza como aparato teórico-metodológico, la Pragmática (WITTGENSTEIN, 1989), (PINTO, 2002), (AUSTIN, 1962) y Análisis crítico del discurso (Fairclough, 1992, 2003). Los datos recogidos hasta ahora demuestran que la ilinguaje de las prácticas culturales en cuestión corporifica la violencia a través de actos de habla de la designación y el nombramiento, como por ejemplo: “macho cabrío como yo en este lugar no hay igual”, “en mi terrero quien canta de gallo soy yo “. Estos nombramientos fomenta las identificaciones tradicionales, legitimamdo ideologías prejuiciosas y sexistas, que a través de diversas formas de violencia están consagrados, lo que contribuye a la formación de relaciones sociales de poder. PALAVRAS-LLAVE: Discurso; Pragmática; Identidad; Violencia. Estudante de Graduação do Curso de Letras da Faculdade de Educação, Ciências e Letras do Sertão Central, na Universidade Estadual do Ceará e bolsista, FUNCAP. 2 Professora doutora do curso de Letras da Faculdade de Educação, Ciências e Letras do Sertão Central, na Universidade Estadual do Ceará. 1


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Introdução Neste trabalho, pretendemos explorar a nomeação e designação de gênero em uma abordagem discursiva tridimensional que considera o discurso como texto, prática discursiva e prática social (FAIRCLOUGH, 2001, p.100). Nessa perspectiva, Fairclough propõe uma abordagem que reúne tanto a análise de discurso orientada linguisticamente quanto o pensamento social e político relevante para o discurso e a para linguagem, “na forma de um quadro teórico que será adequado para o uso na pesquisa científica social, e especificamente, no estudo da mudança social” (FAIRCLOUGH, 2001, p. 87). A proposta da abordagem crítica objetiva, pois, desmistificar discursos que foram constituídos e que estão embutidos no senso comum de tal forma que se tornam naturais. Utilizamos também neste trabalho as noções de performatividade tanto de John Austin, quanto de Joana Plaza Pinto para tentar observar como através da repetição histórica dos atos de fala se constroem identidades para o sujeito nordestino. Procuramos delimitar a pesquisa em um dado jogo de linguagem, a produção de repentistas consagrados e repentistas do sertão central cearense para analisar as construções dos sentidos da violência, bem como as identidades sociais que são construídas para homens e mulheres na referida prática cultural. Abordaremos também os atos de fala, tentando perceber, através da performatividade, como atos de fala violentos podem se constituir em formas de violência física. Desse modo, estudamos a violência no Nordeste, entendendo-a como fruto de discursos que foram historicamente construídos e que designações como cabra macho nordestino fazem parte de uma tradição imagético- discursiva que foi construída na literatura, na música, na arte, que atravessa os nossos falares cotidianos. Ancorados na Análise do Discurso Crítica que tem por objetivo “desnaturalizar” ideologias e levando em consideração o contexto histórico social da modernidade tardia em que foram produzidos os Repentes, este trabalho ousa tentar intervir numa pratica discursiva a fim de modificar formações ideológicas e, consequentemente, alterar formas de vida social. 1. Machismo nordestino Não é de hoje que o sujeito nordestino é considerado machista, essa é uma característica vista como a própria “forma de ser” do nordestino, tradicionalmente narrado como um valente, um cabra da peste. Nesse sentido, percebemos uma apologia da violência em práticas culturais nordestinas, através das quais os sujeitos são identificados cotidianamente como sujeitos violentos . Essa constatação é preocupante, pois nos indica uma sociedade com mecanismos discursivos bastante violentos de produção de sujeitos. A imagética discursiva do sertanejo é historicamente construída em várias manifestações tanto na literatura, quanto na música e nas demais artes. Esses discursos são legitimados, transformando fenômenos históricos, relativos em eternos imutáveis e naturais, quando atos de violência são legitimados pelo código de moralidade popular. Já foi naturalizado que ser valente no nordeste é algo desejável, uma exigência comum em certos contextos, como valores arraigados em nossa cultura. Isso se dá de tal modo que os que não se identificam com esse discurso machista são discriminados, denominados pejorativamente de covardes, mulherzinhas. É famosa a máxima: “o sertão não é lugar de homens fracos”. Nesse sentido, pode-se afirmar que a violência, apresentada na sociedade contemporânea como um complexo problema social de difícil solução, não existe em si, uma vez que o que define as práticas humanas como praticas de violência são as construções de sentidos.

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2. O repente Considera-se que origem do Repente é árabe e foi introduzido no Brasil a partir dos portugueses como herança dos trovadores medievais (MOTA, 2002). Trovador, na lírica medieval, era o artista de origem nobre que compunha trovas, rimas. Os poemas eram sempre cantados e acompanhados de danças e de instrumentos musicais como a cítara, a viola, a lira ou a harpa. No Brasil, a tradição medieval ibérica dos trovadores deu origem aos cantadores, ou seja, poetas populares que vão de região em região, com a viola nas costas, para cantar os seus versos “de repente”, em desafios com outros cantadores. Não importa a beleza da voz ou a afinação, o que vale é o ritmo e a agilidade mental que permite encurralar o oponente apenas com a força do discurso. Essas figuras do improviso cantado atraem famílias inteiras das redondezas de uma comunidade. Conforme Ramalho: [...] Integrados pela identidade com o mundo rural, pelo linguajar especifico da região, pelos mesmos sentimentos da religiosidade e da moral tradicional cristã, os ouvintes de cantoria comportam um universo muito heterogêneo em termos de status social, mas conseguem manter-se unificados diante dos poetas cantadores, certamente porque lhes representam, simbolicamente, a memória viva de sua cultura. (RAMALHO 2000: 90).

O Repente é considerado um dos melhores exemplos de cultura popular, aquele sentimento bem romantizada, como é comum nos discursos dos repentistas. “Nós somos os porta vozes da cultura popular nordestina”. O que seria esse popular? Manifestações culturais produzidas por e para camadas de menor poder aquisitivo? Práticas rurais ou urbanas? Irei problematizar esse conceito, e tentar perceber até que ponto essa cultura resguarda esse popular, será que ela não sofre influência da mídia e da cultura de massa? O Repente, segundo o cantador quixadaense João de Oliveira, vem passando por diversas mudanças sociais. A urbanização da cantoria hoje é fato. O cantador afirma ainda que houve uma inversão geográfica: o Repente que se dava essencialmente na zona rural, ao contrário de hoje, quando de cem cantorias realizadas, apenas dez são na zona rural. O Ceará é um dos principais centros do Repente. Em festivais de cantoria está atrás apenas de Pernambuco, seguidos da Paraíba e Rio Grande do Norte. Atualmente o sertão central do Ceará congrega um grupo de profissionais liberais que têm em comum a paixão pelos improvisos dos poetas cantadores. Informalmente organizados, atuam como animadores culturais dessas manifestações dos nossos poetas populares. Promovem e se fazem presentes às várias cantorias que se estendem na região do sertão central, apoiando os profissionais da viola e atuando como intermediários entre os outros setores da sociedade onde têm penetração. A partir dessa consideração, delimitamos a pesquisa nessa região que também tem sido ponto de encontro de vários cantadores renomados, graças ao Festival Internacional de Trovadores e Repentistas do Sertão Central que aconteceu durante dois anos seguidos em Quixadá e Quixeramobim, em 2004 e 2005. O evento colocou a região no cenário da cantoria nacional. Quixadá, situada no Sertão Central do Ceará, é também berço do ilustre repentista, Cego Aderaldo. É certo que ele nasceu em Crato, no Cariri cearense, mas veio morar em Quixadá ainda criança, a cidade que adotou como sua. Aos 18 anos aconteceu um acidente que lhe tirou a visão. A partir desse trágico momento de sua vida, passa a ser cantador, tornando-se o maior cantador e repentista que já passou pelo nordeste (MOTA, 2002) e deixando uma legião de seguidores de seu estilo, que se autodenominam representantes e porta vozes da cultura do nordeste brasileiro, cantando ao seu público tanto os eventos do mundo real em que vivem, quanto às fantasias que povoam as suas imaginações. Pela observação- participante feita na cidade de Quixadá-CE, percebemos que a circulação do Repente se dá em Rádios, Bares, Casas de Família, convites feitos aos cantadores para aniversários

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e comemorações variadas. Atualmente a divulgação do Repente na cidade é feita pelas seguintes emissoras de Rádio: AM Monólitos 5970, com os repentistas João de Oliveira e Sebastião Gomes, de 05h00min as 06h00min; AM Cultura 1080, com Guilherme Calixto e Valdir de Lima, de 17h00min as 18h00min; FM Central 104, com Adriano de Freitas, de 17h30min as 18h30min. Existem também bares que são frequentados diariamente pelos repentistas. Dois deles tem maior destaque: o Bar da Felicidade, que fica na Rua Epitácio Pessoa e o Bar do Martin, na Rua Rui Maia. No que diz respeito ao consumo desse gênero cultural, foram realizadas também entrevistas com pessoas que gostam e se identificam com o Repente, e estas afirmaram que os programas de cantoria são escutados com frequência, porém por um seleto grupo. Segundo o cordelista e repentista quixadaense Miguel Peixoto, o consumo de tais manifestações culturais em Quixadá-CE é insuficiente. Para ele o público ouvinte se reduz a cada dia. 3. Aparato teórico O presente trabalho busca fundamentação teórica nas seguintes áreas: Análise do Discurso Crítica, Pragmática, Ciências Sociais e Estudos sobre a violência. Em cada uma delas, estudamos os efeitos de sentidos na produção das identidades sociais e selecionamos as categorias teóricas necessárias para respondermos a seguinte questão de pesquisa: como são interpretadas, reproduzidas ou contestadas identidades ou identificações para homens e mulheres nas práticas discursivas do Repente, vivenciadas em Quixadá-CE? Wittgenstein em Investigações Filosóficas (1989) afirma que o “falar da linguagem é parte de uma atividade ou de uma forma de vida”, ou ainda “representar uma linguagem significa representar uma forma de vida”. Como Wittgenstein utiliza a forma plural (formas de vida) “podemos considerar que assim como há inúmeros jogos de linguagens, há inúmeras formas de vida”. Quanto à diversidade desses jogos de linguagem, ilustramos com alguns exemplos: representar teatro, resolver um enigma, traduzir de uma língua para outra, resolver um exemplo de cálculo aplicado, pedir, agradecer, maldizer, saudar, improvisar um repente, e outros. O cantador ilustra bem esse conceito de linguagem como forma de vida, pois faz da sua linguagem, o Repente, seu estilo e sua maneira de viver. Em minhas visitas a locais onde acontecem cantorias em Quixadá e demais localidades, percebi varias particularidades. Esse jogo de linguagem do Repente e da cantoria realiza-se em forma de eventos comumente visitados pelo gênero masculino. Há também uma espécie de saudosismo na fala dos repentistas e cantadores, uma espécie de sentimento romantizado do Repente. Fala-se muito bem dos repentistas de antigamente, com lembrança de um tempo bom, e um sentimento de revolta, com relação ao repente atual, por falta de incentivos por parte, das autoridades locais. Da Pragmática, trataremos, mais especificamente, dos atos de fala para verificar quais são as relações entre os sentidos corporificados na materialidade linguística (atos de fala violentos) das praticas discursivas da cultura dita popular. Para Austin (1962) a linguagem não tem uma função descritiva, mas uma função perfomativa. Ao falar o homem realiza atos por meio da linguagem. Concebe a linguagem como uma atividade construída pelos/as interlocutores/as, ou seja, é impossível discutir linguagem sem considerar o ato de linguagem, o ato de estar falando em si a linguagem não é assim descrição do mundo mais ação. Desse modo, ao considerar quer dizer algo é fazer algo, Austin desenvolve a noção de performatividade, criando o conceito de ato de fala e desdobrando-os em três atos simultâneos, a saber: um ato locucionário, ou seja, o “dizer algo”, “o que inclui o proferir certos ruídos, certas palavras em determinada construção, e com um certo significado”; um ato ilocucionário, que é o ato de fazermos algo ao proferir uma sentença, quando ao enunciá-la estamos perguntando ou respondendo, dando alguma informação, ou garantia ou advertência, anunciando uma intenção, pronunciando uma sentença, marcando um compromisso, fazendo um apelo ou uma crítica etc. e um ato perlocucionário ou perlocução, que é o ato de produzir certos efeitos ou consequências sobre os sentimentos, pensamentos, ou ação dos interlocutores (Austin, 1962, p. 85).

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Utilizarei aqui também a noção de identidades performativizadas de Joana Plaza Pinto, ela que vai criticar o conceito tradicional de identidade, e com isso propor uma reutilização do termo. Cameron (1995) combate fortemente a posição que defende que falantes agem de acordo com o que são, assumindo em sua crítica que o que falantes são depende de como agem. O sujeito é então um ser performativizado, repetindo as ações para marcar sua identidade no tempo. Para Pinto (2002) falantes têm que marcar suas identidades assídua e repetidamente, sustentando o ‘eu’ e o ‘nós’. A repetição é necessária para sustentar a identidade precisamente porque esta não existe fora dos atos de fala que a sustentam. Nesse sentido estudamos a performatividade dos atos de fala, por meio dos quais são construídas e reivindicadas identificações tradicionais e novas identidades, que muitas vezes se configuram como violentas. Para Judith Butler (1997) o ato de fala de nomeação é considerado como um ato violento na medida em que torna o corpo vulnerável a uma identificação linguística que funciona como uma marca, uma identidade da qual o sujeito não consegue se livrar. Tentamos, desse modo, perceber possíveis formas de violência que se configuram no próprio ato de fala. Nessa linha de investigação que considera a linguagem como uma prática de homens e mulheres no mundo, Fairclough (1992, 2003) propõe uma análise crítica do discurso cujo objetivo seria o de “desnaturalizar” ideologias que foram embutidas de tal modo nos discursos, ao ponto, de assumirem o lugar do senso comum. O programa consiste em desmascarar as proposições implícitas compreendendo-as em diferentes graus de “naturalização”. Ideologias como a do machismo que cristaliza e reproduz relações desiguais de poder. Fairclough (1992) vê a linguagem como parte da sociedade e não algo externo a ela. A linguagem, para ele, é processo social e um processo socialmente condicionado por outros fatores sociais não-lingüísticos. A relação entre linguagem e sociedade é, portanto, interna e dialética. Dessa forma, sua teoria social do discurso procura identificar a significação da linguagem na produção, manutenção e mudança das relações sociais de poder. Ele explica que o discurso figura de três principais maneiras como parte de praticas sociais, relação entre textos e eventos: como modo de agir, como modos de representar e como modos de ser. A cada um desses modos de interação corresponde um tipo de significado. O significado acional focaliza o texto como modo de (inter)ação em eventos sociais (...) o significado representacional enfatiza a representação de aspectos do mundo - físico, mental, social - em textos (...) e o significado identificacional, por sua vez, refere-se á construção e à negociação de identidades no discurso (...) ( RESENDE E RAMALHO, 2006, p.60)

Fairclough (1999) analisa o discurso no cenário atual, identificado como pós-moderno, no qual percebemos constantes reconfigurações das noções de tempo e espaço, marcado pela a crise de valores e identidades. Sobre essa crise de valores e identidades, Stuart Hall (1997, p.9), diz que as identidades modernas estão sendo “descentradas”, isto é, deslocadas ou fragmentadas. As identidades modernas estão entrando em colapso. Um tipo diferente de mudança estrutural está transformando as sociedades modernas. Isso está fragmentando as paisagens culturais de classe, gênero, sexualidade, etnia, raça e nacionalidade. Esse processo produz o sujeito pós-moderno, conceptualizado como não tendo uma identidade fixa, essencial ou permanente. O sujeito assume identidades diferentes em diferentes momentos, identidades que não são unificadas ao redor de um “eu” coerente. Dentro de nós há identidades contraditórias, empurrando em diferentes direções, de tal modo que nossas identificações estão sendo continuamente deslocadas. Apoiado em estudos sobre a violência percebi que esse fenômeno passa também pela questão da representação lingüística ou da constituição de sentidos nas praticas culturais do cotidiano.

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4. A construção dos sentidos no repente No que se refere a exemplo de Análise, para os estudos sobre as constituições de sentidos da violência foram apresentados três fragmentos de repentes dos seguintes autores: Manoel Clementino, Sebastião Cândido dos Santos, Valdir de Lima e Guilherme Calixto. Os textos analisados pertencem ao gênero situado Repente. Para investigarmos o significado acional que focaliza o texto como modo de (inter)ação em eventos sociais, selecionamos a categoria intertextualidade. Em termos da produção, uma perspectiva intertextual acentua a historicidade dos textos: a maneira como eles sempre constituem acréscimos às cadeias de comunicação verbal existentes, consistindo em textos prévios aos quais respondem, através das diversas vozes que se articulam nos textos (FAIRCLOUGH, 2001, p. 114). Para analisarmos o significado representacional, o qual enfatiza a representação de aspectos do mundo - físico, mental, social - em textos, analisaremos os atos de fala como formas de violência lingüística. E para investigarmos o significado identificacional, isto é o modo como a linguagem constitui identidades sociais, estudaremos as metáforas e comparações. No que se refere intertextualidade nos fragmentos textuais analisados observamos a ausência da articulação de vozes, sendo escassas as instâncias de discurso relatado, predominando hegemonicamente a voz do gênero masculino. Observemos os trechos da prática cultural em questão: (1) Foi cabra valente Que viveu com o pé na lama José Antônio do fechado Morreu em cima da cama Brigou matou muita gente, Morreu mas ficou a fama. (Manoel Clementino) (2) Já nasci assim Sou cabra valente Minha fama e na cantiga Sou feroz e no repente Colega, tome cuidado, escute, fique ciente: Eu, pegando um cantador Sou pior que dor de dente! (Sebastião Cândido dos Santos) (3) Eu pegando uma viola, Não sirvo de mangação: Sou que nem onça no inverno E cascavel no verão! Cantador metido a duro Me vem pedir a benção... (Valdir de Lima)

O significado identificacional está relacionado ao conceito de “estilo”. Estilos constituem o aspecto discursivo de identidades, ou seja, relacionam-se à identificação de atores sociais em textos. Como o processo de identificação no discurso envolve seus efeitos constitutivos, Fairclough (2003) sugere que a identificação seja compreendida como um processo dialético em que discursos são inculcados em identidades, uma vez que a identificação pressupõe a representação em termos de presunções acerca do que se é. Para a análise do significado identificacional em textos, o autor sugere, entre outras categorias, a análise das figuras de linguagem. Lakoff e Johnson (2002, p.45) explicam que as metáforas são infiltradas na vida cotidiana, não somente na linguagem, mas no pensamento e na ação. Percebemos nos exemplos (1), (2) e (3) metáforas e comparações que são dadas discursivamente aos sujeitos: Foi cabra valente que viveu com o pé na lama, Sou pior que dor de dente, que nem onça no inverno,

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e cascavel no verão. Por meio dessas figuras percebemos, em meio a um sentido de disputa, comum à arte do Repente, descrições que naturalizam o discurso machista do nordestino e, nesse caso, a identificação do violeiro como um homem valente e destemido. Esses sentidos são ideologias, pois constroem relações de poder, de dominação versus submissão, através de identificações imagéticodiscursiva, constutivas de identidades historicamente construídas para o nordestino. São práticas discursivas que legitimam a violência e sustentam ideologias machistas. Nos repentes, os violeiros se consideram valentes e destemidos. Nestes fragmentos também se percebe como essa tradição cultural é reforçada no nordeste, esse discurso machista que é historicamente construído, tanto na musica como na literatura e também nas artes em geral, está bem arraigada nessa cultura, são homens que parecem ter a necessidade de se afirmarem e a todo momento estarem repetindo que são machos, fortes, valentes etc. Como efeito desses discursos, temos um sujeito machista através da ideologia que diz que o homem de verdade necessita ser macho, valentão. Essa ideologia está enraizada na linguagem e nas formas de ser dos repentistas. Em (1) Morreu mas ficou a fama, percebemos o quanto é tradicional esse discurso no nordeste. E o quanto era respeitado o sujeito que se comportava dessa forma. Leiamos outros trechos de repente: (4) Quem sabe tudo e diz logo Fica sem nada a dizer Do jeito que eu vou deixar-te, Não vale a pena viver Corto-te o beiço de cima Faço sorrir sem querer (Guilherme Calixto) (5) Lembrança não me faz medo Nem choro não me faz dó: Eu te mando sair daqui Te meto no Xilindró... Se resmungar, leva peia! Se chorar leva cipó! (Valdir de Lima) (6) Eu encontrando um poeta Querendo sê mais do que eu, Parto-lhe o pé na barriga Que ele bota o que comeu. (Sebastião Cândido dos Santos)

Em termos de significado representacional, analisamos nos fragmentos (4), (5) e (6) através do exame dos atos de fala que exaltam a identidade do valentão. Os violeiros são representados como homens fortes e viris que não têm medo de nada, através de atos ilocucionários de ameaça, sublinhados nos textos acima, como em (5) Se resmungar, leva peia! Se chorar leva cipó (6) parto-lhe o pé na barriga. Ser briguento e machão nesse jogo discursivo é algo valoroso. Percebemos que tais atos ilocucionários de ameaça são também atos perlocucionários na medida em que as escolhas lingüísticas dos repentistas realizam ações ao constituírem sentidos específicos para o homem nordestino. Por meio da performatividade, configuram-se atos de fala violento, pela valentia dos repentistas que em um tom insultuoso, desafiam seus adversários de cantoria de um modo que muitas vezes pode acarretar reações de seus interlocutores em formas de violência física. Como afirma Câmara Cascudo (apud RAMALHO. 2000) “E se a cantoria acaba com uma briga, pela virulência dos ápodos ganhará moralmente aquele que cantou o ultimo verso, sinal que seu antagonista não pôde responder e recorreu às vias de fato.”

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5. Considerações finais Observamos identidades machistas que são construídas através dos discursos dos repentistas. Tais identidades constituem sentidos que, como ideologias, operam na sustentação e no estabelecimento das relações de dominação, usando estratégias típicas de construções simbólicas. Desse modo, ideologias machistas e discriminatórias ganham status de senso comum, a partir do momento que são naturalizadas e legitimadas nas práticas culturais do cotidiano. Ao investigar práticas discursivas que reproduzem ideologias, buscamos através deste trabalho analisar a constituição dos sentidos da violência no contexto atual em que certas escolhas linguísticas acarretam certos modos de ser e constroem identidades violentas para os sujeitos, para por meio dessa tomada de consciência, buscarmos reverter práticas cotidianas de violência. Referências AUSTIN, J. L. How to do Things with Words. Harvard University Press, 1962. ______. Quando Dizer é Fazer– Palavras e Ação. Trad. de Danilo Marcondes de Souza Filho. Porto Alegre: Artes Médicas, 1990. HALL, Stuart. A identidade cultural na pós-modernidade. Rio de Janeiro: DP & A Ed, 1997. MOTA, Leonardo. Cantadores. 7ª Ed. Rio - São Paulo – Fortaleza: ABC Editora, 2002. MUSSALIN, Fernanda & Anna Christina BENTES (2001) (orgs.) Introdução à Lingüistica: Domínios e Fronteiras. Volume 2. São Paulo: Cortez Editora. PINTO, Joana Plaza. Estilizações de gênero em discurso sobre linguagem. Campinas, SP: [s.n.], 2002. RAMALHO, Elba Braga. Cantoria nordestina: musica e palavra. São Paulo: Terceira Margem, 2000. RESENDE, Viviane, RAMALHO, Viviane. Análise do Discurso Crítica. São Paulo: Contexto, 2006. WITTGESTEIN, Ludwig. Investigações Filosóficas (Philosophische Untersuchun-gen). São Paulo: Abril Cultural, 1984.

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OS MÚLTIPLOS ECOS DO MITO DE NARCISO NO CONTO LAÇOS DE FAMÍLIA, DE CLARICE LISPECTOR Iandra Fernandes Pereira CALDAS1 Antonia Marly Moura da SILVA2 (Universidade Estadual do Rio Grande do Norte)

RESUMO: A sondagem interior é sem dúvida o drama das personagens de Clarice Lispector. “Quem sou?” é um questionamento recorrente nos contos integrantes de Laços de família (1960), constituindo-se um dos principais vieses da matéria ficcional. O interesse pela problemática existencial representada na ficção lispectoriana, constitui, entretanto, apenas um aspecto de um vasto universo crítico. A experiência da identidade, atrelada a da alteridade, fundamenta o suporte místico e mítico expresso em sua obra. Nesta perspectiva, o objetivo deste trabalho é analisar os possíveis ecos do mito de Narciso no conto Laços de família, parte da coletânea homônima, por reconhecermos nesta obra a expressão de sujeitos narcísicos, fragmentados e estilhaçados. Trata-se de um enfoque crítico-analítico que tenta sublinhar algumas questões teóricas sobre o mito de Narciso, tomando como referência a perspectiva do narcisismo moderno. Na leitura pretendida, busca-se a figurativização do mito de Narciso, a partir de imagens e metáforas que configuram o tema do duplo. O propósito é identificar o modo de representação de personagens que se entrelaçam, mas, não se reconhecem; portanto, configuramse como personagens marcadas por um narcisismo mal resolvido, sujeitos que não enxergam o outro com quem se relacionam e não têm consciência de sua imagem refletida e das máscaras e papéis que representam na sociedade. PALAVRAS-CHAVE: Clarice Lispector; Laços de família; mito de Narciso.

ABSTRACT: The interior survey is without a doubt Clarice Lispector’s characters’ drama. “Who am I?” it is an appealing discussion from the short-stories “Family Ties” (1960), being constituted one of the principal inclination of the fictional matter. The interest for the existential problem represented in the Lispector fiction is composed of, however, just an aspect of a vast critical universe. The experience of the identity, related to alterite, draws its mystic and mythical support expressed in her work. In this perspective, the objective of this work is to analyze the possible echoes of the myth of Narcissus in the story “Families Ties”, which is part of the homonymous collection, for we recognize in this work the expression of narcissus subjects, fragmented and broken into pieces. It is a critical-analytic focus that tries to underline some theoretical issues on the myth of Narcissus, taking as reference the perspective of the modern narcissism. In the intended reading, the figurativation of the myth of Narcissus is looked for, starting from images and metaphors that configure the theme of the double. The purpose is to identify the way of characters’ representation that are entwined, but, which are not recognized; therefore, they are configured as characters marked by a badly resolved narcissism, subjects that which don’t see the other with whom they mix with and they are not aware of their reflected image and of the masks and roles they represent in the society. KEY WORDS: Clarice Lispector; “family ties“; myth of Narcisus. Graduada em Pedagogia pela Universidade Estadual do Rio Grande do Norte/UERN, Especialista em Psicopedagogia pela FVS-CE e Especialista em Literatura e Estudos Culturais/UERN. 2 Doutora em Letras pela Universidade de São Paulo. Professora da Universidade Estadual do Rio Grande do Norte/ Programa de Pós-graduação em Letras – UERN/PPGL. 1


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1. Sob o signo de Narciso Na história do desenvolvimento humano é possível constatar a confluência do passado com o presente, uma vez que em práticas sociais, valores e atitudes do homem é perceptível os indícios de antigos mitos que, atualizados, adquirem nova configuração. Convém salientar que o discurso mítico é matéria privilegiada no discurso poético, pois a literatura, conforme salienta Mielietinski, serve-se de material mítico integrando-o ao conteúdo poético, tornando o mito valorizado em nossa época. Pode-se dizer que das novelas de cavalaria aos romances modernos do século XX, o mito está presente. No caso particular do conto moderno, é recorrente considerar o gênero como o “último elo, o último fato desse processo mítico, a feliz superação do angustiante conflito entre o espírito e a matéria, o homem e a natureza, a poesia e a ‘prosa’ moderna.” (MIELIETINSKI, 1987, p.324). Assim, ao recompor o mito no texto moderno o autor ressignifica-o e abre um novo leque de interpretações, o que faz dele “uma fênix que pode se inscrever, além da situação social na qual apareceu em outras épocas cuja cultura pode por sua vez exprimir de novo o conteúdo de um antigo mito.” (MARTINON, 1971, p.122). Este mundo sensorial, perceptível, leva-nos a trilhar o caminho da alma humana, a entender e desvendar os mistérios que habitam em nós e, principalmente, tentar compreender as nossas contradições. O sujeito contemporâneo vive um momento direcionado para o conhecimento de si e do outro, tentando insistentemente saber quem é aquele diferente de nós e que ao mesmo tempo nos reflete. O interesse e a curiosidade pelo diferente e a busca pela compreensão do eu/outro caminham para o desejo de entendimento da consciência, da busca da individualidade e para a construção da identidade do sujeito. Porém, as identidades modernas estão entrando em colapso, o sujeito que antes tinha uma identidade unificada, estável vive na sociedade moderna uma crise de valores que o leva a assumir: identidades diferentes em diferentes momentos, identidades que não são unificadas ao redor de um ‘eu’ coerente. (HALL, 2005, p.13).

Esta realidade é fruto de profundas mudanças sociais, econômicas, de classe e de gênero que vêm se processando ao longo do século XX. O avanço tecnológico proporcionou profundas transformações na sociedade e nas relações interpessoais, o cotidiano foi invadido por eletrodomésticos, microcomputadores, aparelhos de última geração, sem que ninguém saiba se é decadência ou renascimento. Os meios tecnológicos de comunicação simulam uma realidade virtual e propiciam a interação entre os seres, eles nos informam sobre o mundo, refazendo-o e transformando-o em um grande espetáculo. E os sujeitos, na ânsia de se adequar à sociedade contemporânea, acabam se isolando, protegendo-se em uma couraça de sentimentos individualizantes que desencadeiam no inconsciente subterfúgios para resistir ao enfraquecimento dos vínculos sociais. Desta feita, a psicanálise se apropria do mito para explicar este comportamento. É certo que, uma sociedade hostil produz seres humanos narcísicos e hostis. Como nos revela LASCH: o narcisismo parece realisticamente representar a melhor maneira de lutar em igualdade de condições com as tensões e ansiedades da vida moderna, e as condições sociais predominantes tendem, em conseqüência, fazer aflorar os traços narcisistas presentes, em vários graus, em todos nós.(1983, p.76).

Quanto ao conteúdo simbólico contido na célebre história de Narciso, vale resgatá-la, em uma exposição sumária. O mito conta a história do jovem Narciso, condenado pela deusa Nêmeses a apaixonar-se pelo seu próprio reflexo no lago de Eco. Narciso apaixona-se por sua imagem e é fadado ao fim pela impossibilidade de viver esse amor. Segundo Grimal: Narciso – era belo e gracioso, e certamente ao crescer, se faria amado de deusas, de Ninfas e de mulheres mortais. Ansiosa para saber se Narciso viveria muitos anos, a jovem procurou o cego Tirésias, adivinho [...] Sim, ele terá longa vida, respondeu-lhe o cego, desde que não se reconheça nunca. Ninguém entendeu o sentimento dessas palavras [...] Até o dia em que Narciso, já adulto, deparou com sua própria imagem refletida na calma superfície de uma fonte. Enamorou-se tão perdidamente de si mesmo, que ali ficou dias e dias, a contemplar-se deixando consumir pela fome, pele sede, pela solidão. (1993, p.322).

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Ao aproximar-se da fonte límpida e debruçar-se sobre a água para matar a sede, Narciso percebe seu reflexo e imediatamente apaixona-se por sua própria imagem. Consumido por sua beleza esquece o mundo ao seu redor e aos poucos vai definhando até perceber que ama a si próprio. Desesperado pelo amor por si mesmo, o jovem se autodestrói, pois “apenas espera a morte, impassível a contemplar a própria imagem.” (GRIMAL, 1993, p.435). O reflexo é um dos pontos-chaves do mito de Narciso; a imagem de si sobre a qual se inclina Narciso, não representa, em sua semelhança, suficiente segurança, pois o reflexo é um duplo, contém em si o caráter metafísico da existência enquanto imagem fluida, enigmática, improvável e misteriosa, carregando em si toda a complexidade do eu e do outro. O duplo é a ilusão “aquele que se desdobrou (duplicou) cria para si a ilusão de agir sobre o exterior, quando na verdade não faz mais que objetivar seu drama interior.” (BRUNEL, 1998, p. 267). Nesta perspectiva ilusicionista, não se observa uma recusa da percepção. Nela o eu não é negado, mais apenas deslocado, colocado em outro lugar. Daí a noção paradoxal de duplo: ser ao mesmo tempo o eu e o outro. No mito, este é o momento em que: Narciso busca a si mesmo no outro. Esta presença objetiva do outro que atesta a sua existência. Este outro que o reflete e no qual se vê refletido. Narciso brinca com a imagem de si mesmo no outro e do outro em si mesmo buscando sua própria identidade, sua condição de ser no mundo. Procura na relação dos contrários à natureza do seu existir, a possibilidade de ser, e de deixar de ser do outro. (CAVALCANTI, 1992, p.208).

Este encontro com o “eu” pode provocar diversas reações emocionais extremas que podem variar da atração à repulsa ou à estranheza. O estranho é um sentimento primitivo “pois esse estranho não é nada novo ou alheio, porém algo que é familiar e há muito estabelecido na mente, e que somente se alienou desta através do processo de repressão.” (FREUD, 1996, p.258). O outro é a imagem do nosso reflexo, estranhamos então, por assim dizer, por não aceitarmos a imagem que se reflete tal qual como ela se apresenta, é algo que desejaríamos que fosse oculto, mas que veio à luz. As águas presentes no mito evocam a simbologia do espelho. Por isso é que Narciso, ao contemplar sua imagem refletida na água, tem uma visão idealizante de si mesmo. O reflexo na água permite a revelação de sua identidade e de sua dualidade. O espelho que o reflete é enganador e constitui uma ilusão da visão. Ele mostra não o “eu”, mas um inverso, um outro, não o corpo, mas uma superfície, um reflexo. E é justamente esta qualidade de reflexão mútua que cria o desespero dos Narcisos, pois cada um diz amar o outro para se sentir amado e admirado. O fingimento de um ao outro causa o ‘inferno’ de ambos, uma vez que o jogo dos espelhos revela a verdade e, ao mesmo tempo, a tortura de Narciso ao ver que se amava, mentindo para atender a uma necessidade de seu Ego. A construção de um reflexo - falso ou verdadeiro – que torna as imagens embaçadas, já que um e outro não se miram, mas se torturam e se ferem diante da imagem inventada e fingida. Segundo Giordano Bruno, a vista “é o mais espiritual de todos os sentidos.” (apud NOVAES, 1988, p.17). É através da visão que o homem enxerga o mundo. No mito, o olhar de Narciso nas águas é revelador; “o homem que contempla é absorvido pelo que contempla” (NOVAES, 1988, p.10), mas a necessidade de conhecimento exige do reflexo, mais do que lhe é dado a ver. Nosso herói, consumido pela visão de si, é submetido à prova final. “No mito, esse momento aparece simbolizado pelo mergulho de Narciso em busca da totalidade e tem o significado da individuação de Narciso.” (CAVALCANTI, 1992, p.212). Narciso sente a necessidade de se completar e move-se em busca da plenitude ao mergulhar nas águas do rio. O mergulho nas águas do lago é símbolo de purificação, o herói transpõe suas angústias e sofrimentos e enfrenta seu destino, na busca pelo conhecimento do seu próprio eu, o herói enfrenta inúmeros percalços, mas a sua tarefa heróica se realiza iniciando assim a “construção da sua consciência egóica e o processo de individuação”. (CAVALCANTI, 1992, p.227).

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2. O sentido moderno do mito Na atualidade, o mito de Narciso toma um novo prisma, as mudanças sócio-econômicas que vêm transformando o mundo segundo LASCH (1983), têm grande influência sobre o desenvolvimento de personalidades narcísicas, pois cada época afeta os seres humanos de forma impar e é justamente a necessidade inata do ser humano de viver em sociedade que força os sujeitos a se adaptarem aos novos códigos de convivência e de vida propostos por uma sociedade globalizada e globalizante. Nessa perspectiva, consideramos oportuno o que declara Lash sobre a natureza da sociedade pósmoderna: A vida se apresenta como uma sucessão de imagens ou de sinais eletrônicos, de impressões registradas e reproduzidas por meio da fotografia, filmes animados, televisão e sofisticados aparelhos registradores. A vida moderna é tão profundamente invadida por imagens eletrônicas, que não podemos deixar de responder aos outros como se suas ações – e nossas próprias estivessem sendo registradas e simultaneamente transmitidas a uma audiência invisível. (1983, p.73).

Assim, na ambivalência do mundo contemporâneo em que vivemos, da tecnologia, da simulação, dos espetáculos, da sedução pela mídia, no qual o sujeito não é mais o senhor de sua vontade, mas determinado pelas exigências de uma sociedade consumista, num universo em que a informação não tem referências nem conteúdo, só é possível a existência de sujeitos vazios”. “É o Narciso dessubstancializado. Narcisismo (amor desmedido pela própria imagem) e dessubstancialização (falta de identidade, sentimento de vazio) resumem o sujeito pós-moderno.” (SANTOS, 1986, p.102). Esta perda de sentido do mundo e de si mesmo levou a uma frieza, distanciamento e indiferença. A sensação mais comum é de irrealidade, em que as contradições imperam, o sujeito não é mais uno, mas multifacetado para se adequar às exigências da sociedade em que vive, exerce várias funções e representa vários papéis. O homem contemporâneo é: “Múltiplo, ele é o próprio sincretismo pósmoderno. O indivíduo atual é sincrético, isto é, sua natureza é confusa, indefinida, plural, feita com retalhos que não se fundem num todo”. (SANTOS, 1983, p.102). Ele está se tornando fragmentado, composto de várias identidades. O espelho em que o Narciso moderno se reflete é múltiplo, sua imagem se duplica e se estilhaça, impedindo-o de se reconhecer e reconhecer os outros a sua volta. No Narciso clássico, ele não se reconhece ao contemplar sua imagem refletida, confunde sua própria imagem como sendo de outrem e a deseja. No Narciso moderno, ele é cônscio de seus muitos reflexos, dos diversos papéis que representa. É o Narciso capaz de vivenciar seu vazio materializado numa identidade indefinida, o que torna sua vida marcada pela luta incessante em busca de seu próprio eu. 3. Ecos do mito no conto Laços de família O conto Laços de família é um dos treze textos que integram a obra de mesmo título. Na coletânea, os dramas das personagens põem em questionamento os laços que unem/desunem os sujeitos em família, sustentando um jogo desigual em que a figura feminina atua como um perdedor ou como um sujeito menor. O conto, desde o título, sinaliza para a ideia de união, pois, segundo o Dicionário Aurélio Século XXI (1999), uma das acepções da palavra ‘laço’ significa, exatamente, “aliança”, “vínculo”; na obra, os personagens estão unidos através do vínculo familiar e das convenções sociais. Sendo assim, através do elo sanguíneo ou não, a família exerce o “poder de atar” os membros em um mesmo grupo (CHEVALIER e GUERBRANT, 1992, p.532), ou seja, de unir ou aprisionar cada um em seus papéis sociais. Aqui a palavra simboliza ou expressa o teor poético do conto, pois o verdadeiro significado do título não está nas palavras, mas nas entrelinhas. Em suma, podemos dizer, em linhas bem gerais, que o conto trata dos falsos laços que unem – ou ironicamente separam - as pessoas em família, laços nem sempre harmônicos e que, na verdade, desenlaçam sujeitos que não se reconhecem nestas relações. Laços de família relata a história de Catarina, personagem principal da narrativa, que recebe em sua casa a visita da mãe por alguns dias, período em que a convivência é muito difícil entre os

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membros da família. Há um conflito latente entre o marido e a sogra, pois, incomodado com a presença desse suposto “estranho” em sua casa, a figura masculina passa a discordar das opiniões desse terceiro sujeito sobre seu lar e a criação de seu único filho. Os laços que os unem são aparentes, porém a verdade da relação somente se explicita no momento da despedida. Há um desejo contido de alívio e satisfação no momento da separação. Catarina acompanha sua mãe até a estação e, durante o trajeto, conversam sobre assuntos banais, como se elas nada tivessem para partilhar. O diálogo é retórico, pois a mãe insiste em falar do neto, numa conversa evasiva, dispersa e sem sentido. Catarina, por outro lado, perde-se em divagações sobre as atitudes da mãe e dos dias transcorridos em seu lar. Inesperadamente, o diálogo é interrompido com uma freada do carro; o movimento brusco lança mãe e filha, uma contra a outra, numa intimidade de corpo há muito esquecida. O choque faz despertar sentimentos adormecidos e reflexões sobre o passado. O caminho que mãe e filha percorrem é difícil e conflitante, Catarina não só se desloca fisicamente, mas também subjetivamente, o que a incita a refletir acerca do relacionamento com a mãe, o marido, o filho e consigo mesma. Quando a mãe segue viagem, Catarina retorna ao lar pronta para romper com muitos dos laços que a aprisionam. Livre da presença da mãe, ela reencontra o filho e o marido e, como num passe de mágica, redescobre-se como mãe e como mulher. Após este trajeto, todos os personagens sofrerão profundas mudanças na vida familiar e pessoal. 4. O jogo epifânico do olhar Em Laços de família, o poder encantatório da palavra e das imagens poéticas simbolizam o inexprimível. De forma metafórica, verifica-se no conto que o “ver” e/ou “não ver” é temática recorrente. O ato de olhar configura-se como uma ação metafísica, emblematizando um gesto em que “ser” e “ver” se confundem, o que nos faz lembrar a afirmação de Novaes em seu consagrado livro O olhar: “ver mais do que se vê, é acender a um ser latente.” (1998, p.14). Catarina não se enxerga como filha e, apesar da consciência da presença de sua mãe, não expressa qualquer laço afetivo e natural entre familiares. Não ocorre o ver platônico que denota a ideia de conhecimento. Em suma é a imagem de duas mulheres, estranhas, que se esqueceram delas mesmas. Catarina estava sob a iminência de lhe perguntar se não esquecera nada... - Não esqueci de nada? Perguntou a mãe. Também a Catarina parecia que haviam esquecido de alguma coisa, e ambas se olhavam atônitas – por que se realmente haviam esquecido, agora era tarde demais. (LISPECTOR, 1991, p.120).

Em várias passagens do conto os personagens se perguntam o que haviam esquecido. A sensação de vazio é premente e constantemente elas vasculham a memória em busca de respostas. Elas não lembravam ou não queriam lembrar, resgatar o que estava aprisionado na alma? O esquecimento é prova de que talvez elas prefiram não lembrar. O esquecimento seria o subterfúgio utilizado por elas para esconder o que sentem. É provável que elas tenham esquecido, acima de tudo, de amar uma a outra; nesse caso, lembrar seria doloroso. É o que se pode inferir no momento em que elas colidem fisicamente dentro do automóvel, quando acontece um “desastre”, uma “catástrofe”. Assim, pela primeira vez, ambas, conseguem ver, perceber e entender a situação vivida. A filha contempla a mãe e, por um lapso da memória, o ato é recíproco, como podemos verificar no relato do narrador: quando uma freada súbita do carro lançou-as uma contra a outra e fez despencarem as malas.Ah!ah! exclamou a mãe como a um desastre irremediável, ah! dizia balançando a cabeça em surpresa, de repente envelhecida e pobre... Catarina olhava a mãe, e a mãe olhava a filha. (LISPECTOR, 1991, p.119).

Nesse duplo gesto de contemplação, Catarina olha sua mãe e ausculta seu mistério e sua condição de filha, mulher e também de mãe, percebendo seu reflexo na imagem refletida. No ato de olhar, ocorre uma simbiose mãe e filha, entre o objeto refletido e o ser que o refletiu. Através da imagem de sua mãe, ela cria uma imagem dela própria, ou seja, por meio do reflexo, ela procura apreender-se, alcançar-se como, Narciso diante da fonte.

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Na representação do eixo temático ver e/ou não-ver, a cegueira materializa-se no olhar estrábico da personagem, textualmente referido na caracterização da personagem: “com seus olhos escuros a que um ligeiro estrabismo dava um contínuo brilho de zombaria e frieza.” (LISPECTOR, 1991, p. 117). Assim, por um problema de deficiência visual, a personagem não consegue, realmente, enxergar. Logo, confluem duas cegueiras, a psicológica e a física. A cegueira psicológica nos remete a simbologia da cegueira narcísica. Os sujeitos narcísicos não se reconhecem porque negam o que são. Catarina e a mãe “são incapazes de distinguir entre uma imagem do que se imaginam ser e uma imagem do que realmente são.” (LOWEN, 1993, p.17). Neste contexto, o indivíduo configura-se como um sujeito narcísico, fruto de uma cegueira psíquica que leva a uma cegueira social, o sujeito tem um olhar alienado para si mesmo e para o mundo. É possível que a estranheza e o automatismo contribuam para a ruína das relações sociais e familiares, sendo assim, mãe e filha não percebem a semelhança que existe entre elas, pois atuam como duas estranhas. Aqui é oportuno lembrar o que afirma Freud (1996) sobre o efeito da estranheza, segundo ele, o estranho é assustador porque remete ao que é conhecido, o que é familiar. Ambas são conscientes dos laços entre elas - mãe e filha - mas, não se reconhecem como tal. Ninguém mais pode te amar senão eu, pensou a mulher rindo pelos olhos; e o peso da responsabilidade deu-lhe à boca um gosto de sangue.Como se “mãe e filha” fosse vida e, repugnância.Não, não se podia dizer que amava sua mãe. Sua mãe lhe doía, era isso. (LISPECTOR, 1991, p.120.)

Este encontro com o “eu” pode provocar diversas reações emocionais e extremas que podem variar da atração à repulsa ou à estranheza. A imagem do outro é o nosso reflexo, estranhamos então, por assim dizer, por não aceitar a imagem que se reflete tal qual como ela se apresenta, é algo que desejaríamos que fosse oculto, mas que veio à tona. Esta imagem refletida se constitui no duplo, que causa em Catarina “um gosto de sangue”, “repugnância”, “dor”, estes sentimentos se explicam segundo Brunel: O duplo é ao mesmo tempo idêntico ao original e diferente – até mesmo o oposto – dele. É sempre uma figura fascinante para aquele que ele duplica, em virtude do paradoxo que representa (ele é ao mesmo tempo interior e exterior, está aqui e lá, é oposto e complementar), e provoca reações emocionais extremas (atração/repulsa). (1998, p.263)

Catarina representa o duplo da mãe, apesar de não reconhecê-la dentro de si, por isso a sensação de estranheza frente à mãe, ela estranha aquilo que é familiar, mas deveria ter sido apagado, esquecido. Mãe e filha coexistem uma e outra, uma na outra, porém, reconhecer este fato não é algo assim tão simples, causa desconforto e inquieta Catarina, além de provocar reações de medo ou até mesmo de repulsa, uma vez que a personagem tem plena consciência de que não gostaria de ser igual à mãe. 5. A mensagem cifrada do nome próprio Um dos focos enigmáticos do conto é a escolha providencial dos nomes dos personagens. O nome próprio tem a função de antecipar elementos da história narrada, é um signo que ora vela ora revela o drama das personagens. Considerando o caráter sígnico desse suporte poético, observamos a engenhosidade semântica contida nos nomes e, sobretudo, sua relação com o enredo. Catarina do “grego Katharé: a ‘pura’, ‘casta”. (GUÉRIOS, 1981, p.89). Ela mantém um relacionamento distante com a mãe; Severina, do masculino, Severino cuja acepção deriva do sentido de “severo”. (GUÉRIOS, 1981, p.225) nos induz a pensar que a severidade proposta no signo do nome próprio pode ter influenciado na estranheza da relação mãe e filha. Antônio, por sua vez, o marido engenheiro, carrega no nome a imagem do homem comum que se comprova no decurso do enredo. No jogo anagramático, é perceptível também a forma como mãe e filha se refletem, a forma como a mãe habita na filha, de forma plástica. Severina ”vive” em Catarina, esta realidade é perceptível ao se observar o anagrama que se propõe entre os nomes: CATARINA SEVERINA

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Catarina carrega no signo do nome próprio a sina da procura, pois no próprio radical da palavra CATAR, contida em seu nome, está emblematizada a perspectiva da busca, da procura. Etimologicamente, catar significa “escavar” (GUÉRIOS, 1981, p.89), desse modo, diríamos que Catarina busca algo, talvez a si mesma. No caso específico de sua mãe, Severina, o radical SEVER (IN) A, sugere um comportamento “severo, inflexível, de caráter austero, que demanda circunspecção” (HOLANDA, 1999). Desta forma, pode-se concluir que Severina é aquela que tolhe que castra a constante busca de Catarina por si mesma. Severina representa também o protótipo da mulher que vivencia a SINA de uma condição marcada por valores decorrentes de uma sociedade patriarcal e injusta. A coincidência na terminação, RINA, nos leva a perceber que as histórias das duas mulheres se confluem e se confundem, uma está contida na outra, ou melhor, dizendo, uma se impõe a outra, invadindo, machucando, marcando sua identidade, sua forma de ser. Aparentemente, era mais fácil fugir desta realidade quando a mãe não estava presente “sem a companhia da mãe, recuperara o modo firme de caminhar: sozinha era mais fácil.” (LISPECTOR, 1991, p.122). A força que Severina exerce sobre a filha é de natureza psicológica, como se sua presença a impedisse de ser o que é, castrasse seus sentimentos, suas emoções. A figurativização da freada impõe ao leitor do conto uma reflexão sobre a carga semântica expressa nesta ação, que poderíamos denominá-la como o momento de epifania na narrativa. A freada propicia a revelação, que somente ocorre no exato instante em que mãe e filha colidem: Catarina viu então que sua mãe estava envelhecida e tinha os olhos brilhantes [...] A filha observava divertida. Ninguém mais pode te amar senão eu, pensou a mulher rindo pelos olhos; e o peso da responsabilidade deu-lhe à boca um gosto de sangue.Como se “ mãe e filha” fosse vida e repugnância.Não, não se podia dizer que amava sua mãe.Sua mãe lhe doía, era isso. (LISPECTOR, 1991, p. 119).

O choque físico entre mãe e filha remete a um choque subjetivo e emocional, que desencadeia uma atitude ao propiciar a Catarina compreender sua condição de sujeito perdido em sua própria história de vida. Aparentemente, é um acontecimento simples do cotidiano, uma freada que conduz a personagem filha a um momento de revelação. É um baque violento que transcende o olhar, dizendo mais que a própria palavra. Estreitada a relação, duas consequências surgem daí. A primeira é a identificação entre Catarina e Severina. A segunda é a abertura para o descortinar de um mundo novo. Desta forma, o caminho até a estação se faz longo e difícil, pois além de físico é subjetivo, para mãe e filha o desejo de conhecer-se não ocorre somente em Catarina. Já no trem, Severina tira o espelho da bolsa e se fita. O espelho é um pretexto para o devaneio e reconhecimento do amor de Severina por ela mesma, como ocorre com o jovem Narciso. É o símbolo do narcisismo clássico. O olhar de Severina é severo e narcisista. Talvez ela nunca tenha olhado a vida além de si mesma “olhava-se compondo um ar excessivamente severo onde não faltava alguma admiração por si mesma.” (LISPECTOR, 1991, p.120). Ao mirar-se, Severina ajeita o chapéu, objeto que enfeita, disfarça, mascara algo que ela não admite ou reconhece em si, “a mãe tirou o espelho da bolsa e examinou-se no seu chapéu novo, comprado no mesmo chapeleiro da filha.” (LISPECTOR, 1991, p.120). Neste mesmo fragmento, mais uma vez se afirma a unidade entre mãe e filha. Unidas psicologicamente, mas, separadas por sentimentos de estranhamento e incompreensão. Ao deixar a mãe na estação, o caminho de volta para casa é leve, pois entre o sonho e o devaneio, Catarina se coloca como uma mulher moderna, mesmo que apenas em sua indumentária e modo de mascarar a realidade: “Caminhava serena, moderna nos trajes, os cabelos curtos pintados de acaju.” (LISPECTOR, 1991, p.122). Observando esta cena, é possível inferir que a personagem configura-se como sujeito capaz de se adequar à paisagem urbana. Ou será que tudo não passava de uma máscara? Atentemos para o fato de que a moda é um código, um signo que remete ao desejo de aceitação social. Vestida com a roupa domingueira, a personagem tira as vestes de dona de casa para desfilar pelas ruas como filha e companheira. Voltar para casa, significa o retorno, a retomada do relacionamento com o marido. Vale lembrar que às vezes, ele tenta humilhá-la, surpreendendo-a nua: “entrava no quarto enquanto

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ela mudava de roupa porque sabia que ela detestava ser vista nua. Por que precisava humilhá-la?”. (LISPECTOR, 1991, p.126). Convém destacar que a nudez expõe o que verdadeiramente somos, desvela as máscaras que por ventura assumimos e nos impõe à realidade. Catarina se sentia humilhada, porque desta forma o marido podia vê-la por inteiro, destituída de qualquer disfarce. Nesta mesma cena, o marido também se interroga, “por que precisava humilhá-la?” É possível que não precisasse, o marido talvez desejasse impor seu domínio, subjugá-la e com isto reafirmar as diferenças de gênero. Em muitos dos contos de Clarice é percebível está relação de poder entre os gêneros, posição que se deve a uma realidade social e histórica, contemporânea à escritora. Em suas obras, é possível observar a vulnerabilidade da mulher frente à figura masculina. Lispector observa não só os sofrimentos das mulheres sob o patriarcado, mas também o acesso por vezes tortuoso que elas têm a um poder agressivo; em termos mais amplos, escreve sobre as múltiplas violências inevitavelmente presentes na vida biológica, psíquica e social. (PEIXOTO, 2004, p.18).

Mas, mesmo consciente da realidade vivida, Catarina volta ao seu lar; no percurso, toda trajetória é marcada pelo anseio de liberdade. Desperta, agora Catarina pode analisar sua condição de sujeito, avaliar sua suposta liberdade e pensar sobre a possibilidade de ser uma mulher com direito de ir e vir. Todas as reflexões empreendidas, talvez nem tenham respostas. O certo é que o reencontro com a mãe trouxe à tona todos os fantasmas do passado, todos os medos e incertezas. Em outras palavras, na verdade, a visita da mãe “havia aberto um caminho que lhe ardia no peito.” (LISPECTOR, 1991, p.123). Após o instante de epifania, Catarina chega ao apartamento e reencontra o filho. Ele, possivelmente é uma herança fiel do desejo familiar de banir emoções e sentimentos. O filho denuncia algo. É ele quem a faz lembrar daquilo que deixaram de fora de suas vidas, daquilo que foi usual e ao mesmo tempo proibido: afeto, amor, carinho, compreensão. O menino, não tem nome no conto, é assim esvaziado de sua individualidade, como se de fato nele habitasse algo que sempre foi inominável para essa família. O marido pensa: “de onde nascera esta criatura (o filho) vibrante, se não do que sua mulher e ele haviam cortado da vida diária.” (LISPECTOR, 1991, p.127). A frieza e distanciamento em relação ao menino representam aquilo que a família pretendera ser e cultivar; esse ideal que era retratado no menino como uma caricatura. Ao se dirigir ao quarto, espaço íntimo de privacidade, onde é possível expressar o que realmente somos, Catarina reencontra o filho e demonstra seu carinho, através de um abraço brusco e inconsciente, quase grotesco: “a mulher sentia um calor bom e gostaria de prender o menino para sempre a este momento; puxou-lhe a toalha das mãos em censura; este menino!” (LISPECTOR, 1991, 123). Após este instante de explosão do sentimento, há muito guardado, o menino dirige-se a ela chamando-a de “mamãe”, sem pedir nada, gratuitamente, o que Catarina aceita de bom grado, como um ato divino, inexplicável, único, simbolizando cosmogônicamente, um rito de passagem da desordem para a ordem interior, o equilíbrio necessário à quebra de uma barreira de silêncio emocional, atitude aparentemente intransponível. Neste instante único. Com os olhos sorrindo de sua mentira necessária e, sobretudo da própria tolice, fugindo de Severina, a mulher inesperadamente riu de fato para o menino, não só com os olhos: o corpo todo riu quebrado, quebrado, quebrado um invólucro, e uma aspereza aparecendo como uma rouquidão. (LISPECTOR, 1991, p.124)

Logo em seguida, Catarina resolve sair em companhia do filho enquanto o marido, assustado, rebela-se contra a atitude da mulher, como se pressentisse o momento de liberdade que a mulher conquistara: quem sabe se sua mulher estava fugindo com o filho da sala de luz bem regulada, dos móveis bem escolhidos, das cortinas e dos quadros? Fora isso o que ele lhe dera. Apartamento de um engenheiro. (LISPECTOR, 1991, p.126).

O marido de Catarina é um engenheiro, profissão da área de exatas, o que favorece a prática do cálculo da ação medida e planejada, do que possivelmente foi rotina na relação familiar. Porém,

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agora a situação é outra, Catarina acorda e mantém o controle sobre aquele momento, numa troca de papéis. A cena configura a surpresa e temor do marido ao entender que, em se tratando de relação verdadeira, ele é excluído. O marido repetiu a pergunta que, mesmo sob sua inocência de frase cotidiana, inquietou-o: aonde vão? Via preocupado que sua mulher guiava a criança e temia que neste momento em que ambos estávamos fora de seu alcance eles transmitisse a seu filho [...] Agora mãe e filho compreendiam-se dentro do mistério partilhado (...). Mas e eu, e eu? perguntou assustado. Os dois tinham ido embora sozinhos. (LISPECTOR, 1991, p.125).

Talvez aquele momento fosse intrigante porque ele é consciente do poder da mulher, principalmente que ela é capaz de ultrapassar uma barreira, ao perceber o sentimento de afeto do filho, passagem que se dá quando o filho verbaliza seu amor pela mãe, rompendo com a (herança) de silêncio e ausência de carinho. Também, neste contexto é relevante observar que a rua, o espaço que, segundo Roberto da Matta (1997), é o espaço público da liberdade, da desordem e tido como masculino, fora invadido por Catarina. Nessa cena, o marido aparece na janela, limite entre a casa e a rua, espaço de contenção. Habituado a controlá-la, o marido, em pleno sábado, sozinho, encontra-se perdido e surpreso com a atitude da esposa. O sábado, comumente considerado o dia da folga, da fuga do cotidiano, da liberdade, é também o dia tido como do homem, aquele que pode usufruir do lazer, da ociosidade e do prazer de simplesmente contemplar a vida e sua mulher, sentado em sua poltrona. Enquanto tenta curtir o sábado, o marido observa atônito, a mulher ir embora: “ele a olhara da janela, vira-a andar depressa de mãos dadas com o filho, e dissera-se: ela está tomando o momento de alegria sozinha.” (LISPECTOR, 1991, p.127).

Catarina, por sua vez, cai em si e decide resgatar a vida que perdeu, o sábado propicia essa passagem para uma semana que começa, possivelmente a abertura para uma nova vida, seu próprio rito de passagem. Somente assim, tomando as rédeas de uma vida que se perdeu, tirando a máscara, Catarina se apercebe como sujeito. Transformada e consciente, ela poderá desfazer os falsos laços de filha, de dona de casa e de esposa. Referências ARAGÃO, V. de. O estilhaçamento de Narciso na modernidade. In: CARDOSO, Z. de A. (org.) Mito, religião e sociedade. Atas do II. Congresso Nacional de Estudos Clássicos. São Paulo: SBEC, 1991, p. 69-74. BRUNEL, P (Org.). Dicionário de mitos literários. 2. ed. Trad. Carlos Sussekind et. al. Rio de Janeiro: José Olympio, 1998. CAVALCANTI, R. O mito de narciso: o herói da consciência. São Paulo: Cultrix, 1992. CASSIRER, E. Linguagem e Mito. São Paulo: Perspectiva, 1992. CHEVALIER, J. e GHEERBRANT, A. Dicionário de Símbolos: mitos, sonhos, costumes, gestos, formas, figuras, cores, números. 6. ed. Tradução V. da C. Silva. et al. Rio de Janeiro: José Olympio, 1992. ECO, U. Sobre os espelhos e outros ensaios. Tradução de Beatriz Borges. Rio de Janeiro: Nova Fronteira. 1989. FREUD, S. Sobre o Narcisismo: uma Introdução. Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud. Traduzido do Alemão e do Inglês sob a direção geral de Jayme Salomão. Rio de Janeiro. Imago, 1996. p.81-107. ______. O estranho. Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud. Traduzido sob a direção geral de Jayme Salomão. Rio de Janeiro: Imago, 1990. v. 18. p. 12-85. GRIMAL, P. Dicionário da mitologia grega e romana. 2. ed. Tradução V. Jabouille. Rio de Janeiro: BERTRAND, 1993. GUÉRIOS, Dicionário Etimológico de nomes e sobrenomes. São Paulo. Editora Ave Maria LTDA.1981.

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A ESTRUTURA DAS NARRATIVAS DE ENTERRO AMAZÔNICAS Ingrid Sinimbú CRUZ Regina CRUZ (CNPq) Socorro SIMÕES (Universidade Federal do Pará)

RESUMO: De acordo com Fernandes (2007), a estrutura da narrativa de enterro compreende até seis partes: a origem, a anunciação, a manifestação, a marcação, a provação e o desenlace. No presente estudo, verificase, portanto, se a estrutura estabelecida por Fernandes (2007) para as narrativas de enterro pantaneiras é aplicável às narrativas de enterro orais amazônicas do acervo IFNOPAP. Neste sentido, vinte narrativas orais do acervo em questão foram selecionadas e analisadas. Como resultado da análise, verificou-se que a estrutura estabelecida por Fernandes (2007) é aplicável às narrativas de enterro amazônicas. Constatou-se, igualmente, que as narrativas amazônicas analisadas se assemelham às narrativas pantaneiras por não seguirem uma ordem linear em alguns momentos ou mesmo terem partes da estrutura ausentes. Outra característica comum às narrativas amazônicas e pantaneiras compreende a apresentação não direta de algumas partes. PALAVRAS-CHAVE: Narrativas de Enterro; Narrativas orais; Estrutura da Narrativa; Amazônia Paraense; IFNOPAP.

ABSTRACT: This study intends to analyze the Amazonian burial narratives according to the structure established by Fernandes (2007), to this kind of narrative divided in until six parts: the origin, the annunciation, the manifestation, the marking, the trial and the ending, and is many times the same structure found in the burial narratives of IFNOPAP. Twenty narratives from this collection were selected. According to the analysis, the structure established by Fernandes (2007) is applicable to the Amazonian burial narratives, that are alike to the narrative of Pantanal, and do not have a underline order in some moments or do not have some structures, and these parts aren’t presented in the right way. KEY WORDS: Burial narratives; oral narratives; narrative structure; Amazônia; IFNOPAP.


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Introdução As narrativas orais populares da Amazônia paraense coletadas pelo projeto IFNOPAP (O Imaginário nas Formas Narrativas Orais Populares da Amazônia Paraense) compreende um acervo de notável riqueza montado em dez anos de existência do projeto, considerando o número de narrativas coletadas (mais de 5.000). Em 2006, o acervo foi submetido a um novo tratamento de organização com o objetivo primeiro de sua transferência para uma base fixa (Cruz 2007, Reis 2008, Rosário 2007) que oportunizou uma “revisita” ao acervo e a descoberta das narrativas de enterro. Selecionaram-se, então, vinte narrativas de enterro do acervo em questão para aplicação e análise de acordo com a estrutura de Fernandes (2007) para este tipo de narrativas, que compreende até seis partes: a origem, a anunciação, a manifestação, a marcação, a provação e o desenlace. Neste trabalho verifica-se, portanto, se esta estrutura composta de até seis partes invariantes apresentada por Fernandes (2007) é aplicável às narrativas amazônicas presentes no acervo IFNOPAP. Para tal, iniciamos o presente artigo com o conceito de narrativas de enterro ao mesmo tempo em que descrevemos a estrutura proposta por Fernandes para este tipo de narrativa (secção 1), em seguida descrevemos todos os procedimentos metodológicos seguidos, com destaque para as narrativas selecionadas do acervo IFNOPAP (secção 2), para finalmente apresentarmos os resultados de nossa análise (secção 3). 1. As Narrativas de enterro O enterro é o resgate de um tesouro encantado que, por meio de uma força sobrenatural, se revela a um escolhido (FERNANDES, 2007). Fernandes (2007) formou um corpus representativo de histórias contando os enterros como tema, nos anos 90, por meio de entrevistas orais, no município de Corumbá (MS). Neste repertório de enterros pantaneiros, que formam mais de 30 atualizações, Fernandes (2007) nota um valor moral intrínseco nestas narrativas, demonstrando-se anseio coletivo, de transmissão de valores, de costumes e de preceitos morais, da capacidade de criação do indivíduo sobre o relato ouvido. Segundo este mesmo autor, a presença dos enterros em diferentes comunidades lingüísticas deve ser assimilada como “uma constante atualização e (re)significação do arquétipo enterro. Um arquétipo numa cultural oral manifesta-se por uma pluralidade de textos, cujos sentidos e significados geralmente são alterados a cada performance” (FERNANDES, 2007: 234). Esta assimilação, no âmbito textual, de elementos constitutivos de uma narrativa pelo ouvinte-leitor e do modo como eles se apresentam na reatualização do texto, quando o ouvinteleitor torna-se narrador, compreende o que Fernandes (2007) define como consciência lingüística. A consciência lingüística permite ao narrador associar motivos - que o autor chamará de partes – variáveis e invariáveis no momento a atualização do arquétipo, ou seja, a consciência lingüística evidencia a maneira pela qual as variantes aparecem em um arquétipo. Ao analisar as narrativas de enterro do corpus do Pantanal Mato-grossense, Fernandes (2007) verificou que em algumas narrativas de enterro, vários motivos podem formar até cinco partes de um texto. A primeira parte é a anunciação, nela evidencia-se o modo como o tesouro é revelado ao escolhido. Em seguida ocorre a provação, como o próprio nome já diz são tarefas atribuídas ao escolhido do enterro para que o mesmo possa ser de fato o dono do tesouro. Entre essas duas partes, pode ocorrer a marcação, que diz respeito ao lugar onde está enterrado o tesouro e/ou atitudes a serem cumpridas a fim de não deixar o tesouro escapar. A manifestação mostra a maneira pelo qual o enterro se anuncia, diz respeito às vozes, assombrações, almas, labaredas, luzes, etc. O resultado da trama é visto no desenlace, a parte final, podendo ela ser positiva ou negativa. A origem pode surgir entre as outras partes, como forma de indicar a época, e às vezes, a pessoa responsável pelo enterro ou por comentar fatos de sua natureza.

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A capacidade do narrador de associar os motivos a essas cinco partes depende, além de outros fatores, do improviso do narrador durante o processo de atualização da consciência lingüística. No momento da performance (embate discursivo entre o narrador e o ouvinte) é que se dá o único momento de composição solitária, pois é nesse momento que flui o ato de improvisar. Segundo Zumthor (1997 apud Fernandes 2007), a performance liga-se a um tempo livre, pois não depende de eventos cíclicos como festas, colheitas. Por conta disso, não há uma sequência linear de partes na narrativa oral, em alguns relatos elas são ausentes, em outros, presentes. 2. Metodologia Para o presente trabalho foram selecionadas 20 (vinte) narrativas de enterro do acervo IFNOPAP para formarmos o corpus do presente estudo cujas características estão detalhadas no quadro 2.1. Quadro 2.1 – Características das narrativas de enterro do acervo IFNOPAP selecionadas para o corpus.

Fonte: Cruz (2008: 31)

O projeto IFNOPAP reuniu durante dez anos mais de 5.300 narrativas orais coletadas em 113 municípios da Amazônia paraense que foram registradas em fitas-cassete. Algumas delas foram publicadas em 3 livros da série Pará conta... a saber: Santarém conta...(Simões & Golder, 1995a), Belém conta... ( Simões & Golder, 1995b) e Abaetetuba conta... ( Simões & Golder, 1995c ). Outras ficaram disponíveis em um banco de dados e grande parte delas, armazenadas no acervo do projeto. Durante o processo de transcrição de parte dessas narrativas, criou-se uma codificação para identificar cada uma delas. Neste código, recupera-se o código original da fita-cassete em que foi gravada a narrativa, data e local da gravação, código do pesquisador que realizou a coleta, posição da narrativa gravada na fita e código do informante. Devido o grande tempo de armazenamento desse material em fitas-cassete, muitas informações foram se perdendo, o que ocasionou na transcrição de muitas narrativas sem identificação ou com uma identificação defeituosa, ou mesmo sem título da narrativa. A partir disso, criamos um quadro (quadro 2.1 em anexo) em que podemos observar as informações contidas em cada narrativa selecionada para o corpus deste trabalho. Estas informações

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são: código, local de coleta, informante, se a narrativa possui áudio e a qualidade desse áudio. De acordo com as informações disponíveis em cada narrativa, verifica-se que seria possível organizálas a partir de uma tipologia que considera sua codificação e titulação, elas, portanto, estão divididas em quatro grupos. O primeiro grupo é formado por quatro narrativas e todas possuem código completo e título: “A botija” (cf. Golder & Simões 1995b: 99), “A procura da botija”1, “A visagem”2 e “Misuras”3. O segundo grupo de narrativas é formado por seis narrativas cuja identificação é quase completa, pois se registra a ausência de uma ou mais informações. Neste caso todas as narrativas não possuem título e duas delas não possuem código do informante, porém todas têm registro de áudio, a saber: CL01AVst140893- III 4, “Defunto pesa” (cf. Golder & Simões 1995c:70-74), CM06Anyy030594 – V5, CL01Avbeg290793- I 6, CL05Avflo201193- II 7 e CM03CZsb191093 –XI 8. No terceiro grupo de narrativas, que também é formado por seis narrativas, encontram-se as que não possuem código, mas que fornecem algum tipo de informação, como município, data de coleta ou título, as quais são: narrativa 2409, narrativa 1.39110, O grito (cf. Simões & Golder, 1995a:111-116), Um sonho (cf. Simões & Golder, 1995c:98-99), A árvore do dinheiro11 e Em busca do medo (cf. Golder & Simões 1995c:29-37).

Coletada em Joanes, Ilha do Marajó, esta narrativa conta a história de um senhor que sonhou arrancando uma botija que estava debaixo de uma ponte, foi até lá e descobriu que a botija, na verdade, estava na sua cidade, no Ceará, debaixo de uma enorme pedra. Assim o fez e conseguiu o tesouro. 2 Esta narrativa, coletada em Belém, conta que um senhor seguido pelas ordens de uma visagem foi atrás de uma botija que estava enterrada no Rio do Livramento, porém ao retirar o tesouro de lá, viu uma visagem e não conseguiu o retirar o tesouro. 3 Misuras significa, no popular, visagens, assombrações. Conta que um jovem sonhou que alguém lhe dizia para ir a um buraco à meia-noite levando um pano preto e um saco de sangue. Ao cavar o buraco, deveria jogar o sangue e conseguiria achar a botija cheia de ouro, mas ao meter a mão, saíram muitas misuras do buraco. Ele ficou com medo e desistiu da fortuna. 4 Coletada em Benevides/Pa, a informante conta que sua mãe viu um espírito todo branco de uma mulher que pede a ela que desenterre um dinheiro que havia enterrado quando ainda era viva. Mesmo com a indicação do lugar,o banheiro, a escolhida sente medo e não vai atrás da riqueza. 5 A informante conta que um senhor bêbado pediu a uma família um lugar para dormir, mesmo avisado que o lugar era mal-assombrado, ele foi. Durante a noite apareceu um fantasma querendo de todas as formas lhe assustar, mas não consegue. Percebendo a coragem do homem, o fantasma diz a ele que havia um pote cheio de ouro no quarto da casa. Ao acordar o bêbado, vai atrás da fortuna e fica rico. 6 Nesta história a escolhida é acordada por um espírito de uma amiga que havia morrido. O espírito diz a ela que foi dar um tesouro que estava numa casa velha que já havia morado. Entretanto a escolhida não acredita e conta sobre o assunto para muitas pessoas. Ninguém, mesmo a escolhida, achou o tesouro. 7 Uma mulher viajou para o município da informante para ir atrás de uma botija cheia de ouro que havia ganhado num sonho. O tesouro estava no pé de uma goiabeira, o sinal era o cabo de uma tesoura enterrada, mas ao vê-lo a escolhida sentiu medo e desistiu de cavar e retirar a botija. 8 Um senhor toda noite sonhava que um homem lhe dizia para ir buscar uma riqueza que estava enterrada. De tanto sonhar, o senhor foi atrás, mas ao chegar ao lugar descobriu que a riqueza estava em sua casa. Junto com a mulher cavou e encontrou um tacho cheio de ouro, prata e cobre. O escolhido ficou rico. 9 Nesta narrativa, a escolhida sonha com um conhecido que havia falecido e lhe diz para desenterrar uma botija que estava num pé de mangueira. Porém a escolhida contou o sonho para muitas pessoas e não teve coragem de ir atrás da botija. Um rapaz que foi atrás da botija, nada encontrou além de carvão. 10 Um homem ao ir caçar é chamado por um homem/bicho que não lhe deixa ver o rosto, mas lhe dá um objeto pesado, mas o recomenda a abrir só com o raiar do sol. Seguindo as recomendações, ao abrir o escolhido encontra muitas pedras de ouro e fica rico. 11 A informante conta que um homem muito pobre sonhou com alguém que lhe entregava um tesouro que estava num pé de uma mangueira em Belém. Ao ir atrás, descobre que o tesouro estava no quintal da sua casa. Ao cavar no pé de cajueiro, ele e sua esposa um jarro cheio de dinheiro. O casal ficou muito rico. 1

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O quarto, e último, grupo de narrativas possui quatro narrativas. Neste grupo estão aquelas que não fornecem nenhum tipo de identificação ao leitor, denominadas de Narrativas sem identificação, a saber: Narrativa 1.74312, narrativa 26513, Narrativa 1.50614 e Narrativa 17015. Para o presente estudo constituiu-se, portanto, um corpus de 20 (vinte) narrativas de enterro do acervo IFNOPAP, organizadas de acordo com a tipologia descrita acima: Quadro 2.2 – O corpus final organizado por grupo

Fonte: Cruz (2008: 41)

Uma vez as narrativas selecionadas, procedeu-se a uma numeração de cada linha do texto de modo a facilitar a análise. Como o presente estudo compreende essencialmente uma exploração das narrativas de enterro selecionadas do acervo IFNOPAP, aplicando-lhes a estrutura estabelecida por Fernandes (2007) para narrativas de enterro do Pantanal Mato Grossense, uma vez o corpus formado, procedeuse à análise das mesmas de acordo com a proposta de Fernandes (2007). Como já mencionado acima, segundo Fernandes (2007), a narrativa de enterro é estruturada em até seis partes: a origem, a anunciação, a provação, a marcação, a manifestação e o desenlace. Com o objetivo de verificar se, de fato, a estrutura estabelecida por Fernandes (2007) poderia ser também aplicada às vinte narrativas de enterro amazônicas, coletadas pelo Projeto IFNOPAP, foi criado um quadro contendo as seis partes da estrutura de enterro estabelecida por Fernandes (2007). Cada uma das narrativas foi analisada individualmente, primeiramente de forma estrutural para que O escolhido sonha com alguém que lhe diz onde está um pote com moedas de ouro. Ele então, conta para o amigo que se recusa a ir, mas ao ir atrás da fortuna, só encontra marimbondos. Na intenção de assustar o amigo, joga o pote com insetos, mas ao contrário,só caem do pote muitas moedas de ouro. 13 Semelhante à narrativa CM06Anyy030594 – V, conta que um homem que dizia não ter medo de nada foi dormir num local mal-assombrado e uma visagem tenta lhe amedrontar durante a noite, mas não consegue. Ao notar a coragem do homem, o fantasma leva o escolhido até o local onde estava a botija cheia de dinheiro. De manhã, o homem conta tudo aos donos da casa e a pedido da visagem,que era pai de uma dos donos da casa, pede para que rezem uma missa e desenterrem o restante. 14 Um homem trabalhador enterrava parte de suas economias, porém ao adoecer, veio a falecer. O irmão dele que era preguiçoso certo dia foi visitado pela alma do irmão falecido que pergunta a ele se tem coragem e o leva ao local onde estava a fortuna. O falecido pediu que quando desenterrasse a fortuna, doasse a metade para os cegos viúvas e aleijados. Assim o irmão fez e deixou de beber cachaça e fumar. 15 O fato acontece com a vó da informante que sonha com um rapaz que lhe leva à beira de um lago dizendo que há algo para lhe dar. Ao puxar a ponta de uma corrente, vê uma espécie de caixão repleto de cordões de ouro., porém neste momento passa uma moça ambiciosa e o rapaz resolve fechar o caixão e a escolhida acaba acordando e perde o tesouro. O mesmo rapaz não apareceu novamente em sonho. 12

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se pudessem visualizar melhor os trechos das narrativas (partes variáveis) em cada uma das seis partes invariáveis propostas por Fernandes (2007), no quadro 2.3 abaixo, há um exemplo do quadro criado. Quadro 2.3 – Modelo de quadro estrutural contendo as seis partes da estrutura de enterro segundo Fernandes (2007) utilizado para a análise estrutural das narrativas do IFNOPAP.

A coluna intitulada ‘Parte Invariante’ compreende as partes da narrativa de enterro propostas por Fernandes (2007), a coluna intitulada ‘Variável’ é preenchida com os trechos das narrativas que apresentam as características de cada parte como descrito no item 1, os trechos eram reescritos mantendo-se sua numeração de linha original. 3. A Estrutura das narrativas de Enterro Amazônicas Como nossa intenção era aplicar a estrutura de Fernandes (2007) às narrativas amazônicas, assim como verificar quais são as escolhas e percursos dos narradores amazônicos, neste tipo em particular de narrativa, eis, portanto, o resultado de nossas análises, conhecendo detalhadamente cada uma das variáveis presentes nas narrativas de enterro. Neste capítulo apresenta-se a análise empreendida das narrativas amazônicas com base na proposta de Fernandes (2007). A análise estrutural é proposta é seguida da interpretação de cada invariante, destacando-se por último as particularidades das narrativas de enterro amazônicas com relação às narrativas do Pantanal. 3.1. A Origem Esta parte, que pode ser facultativa, encaminha a narrativa para o eixo da temporalidade, em alguns relatos está ligada ao tempo e outros à imaginação da terra. Essas variáveis que fazem referência à origem do enterro, no caso das narrativas de enterro do Pantanal, Fernandes (2007) observa que as condições sociais e a forma de subsistência de muitos habitantes do Pantanal aproximam o homem da terra, pois dela retira seus alimentos, algumas vezes também, riquezas naturais de onde ele pode tirar lucro. A origem é uma parte que ocorre espontaneamente nos relatos dos informantes pantaneiros, algumas vezes ela pode ocorrer causada por questionamentos do ouvinte. Entretanto quando a origem do enterro é citada, remete, em geral, a dois fatores: a ausência de bancos, numa época não datada, e ao encantamento do ouro devido seu contato com a terra.

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Dentre as narrativas amazônicas selecionadas, a origem possui rara freqüência, ocorre somente na narrativa CL01AVst140893 – III, nela a informante afirma que a alma anunciadora quando viva precisou viajar e não tinha onde deixar seu dinheiro e como forma de garantia preferiu enterrá-lo: Quadro 3.1.1 – Trecho correspondente à parte invariante Origem da narrativa CL01AVst140893 – III.

Fonte: Extraído de Cruz (2008: 54)

3.2. A anunciação A anunciação compreende à revelação do enterro à alguém que é designado escolhido. Não há um critério estabelecido que determine o escolhido, mas em geral, as pessoas escolhidas são aquelas que possuem uma situação financeira desfavorável, são esforçadas, trabalhadoras e que precisariam do ouro para melhorar de vida. A importância do escolhido na anunciação é total, pois somente ele pode desenterrar o ouro, caso contrário, o tesouro muda de lugar ou mesmo, transforma-se em carvão. A sensibilidade do escolhido é fundamental na anunciação do enterro, pois por meio dos sentidos ele capta os seus sinais, sobressaltando-se o caráter. Em geral, a audição e a visão são os meios mais comuns de sensibilidade, mas há também casos em que a pessoa escolhida sente arrepio dos cabelos e/ou sensações de frio. A percepção auditiva também é encontrada em algumas narrativas, neste caso, recebe a anunciação com uma voz. Existem dois aspectos que marcam a anunciação: uma é a mobilidade, em que o sobrenatural se sobressai; e outra é a imobilidade, em que a anunciação serve apenas de referência para que o escolhido possa situar a presença de tachos, botijas e outros tipos de objeto. Outro tipo de manifestação que ocorre nos enterros é através de sonhos. De fato, a esse canal é propício pois algumas vezes o sonho reflete imagens anunciadas no “mundo real”. Este tipo de manifestação é muito ocorrente nas narrativas paraenses, o escolhido sonha com uma alma ou alguém que anuncia o enterro a ele. No caso das narrativas do IFNOPAP, é muito comum a anunciação dar-se não somente através de sonhos, mas também com vozes e com o campo visual, nesse caso, avistando-se almas, assombrações, etc. No caso da narrativa 170, a anunciação se dá com o aparecimento de um rapaz para avó da informante:

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Quadro 3.2.1. – Trecho correspondente à parte invariante Anunciação da narrativa 170.

Fonte: Extraído de Cruz (2008: 103)

Na narrativa amazônica Um sonho comprova-se a grande ocorrência da anunciação de enterro feita através de sonhos: Quadro 3.2.2. – Trecho correspondente à parte invariante Anunciação da narrativa Um sonho.

Fonte: Extraído de Cruz (2008: 83)

3.3. A marcação A marcação corresponde ao lugar onde o tesouro está enterrado, é feita no momento da anunciação. Pode ser de dois tipos: espacial, em que se marca o lugar do enterro a fim de não perdê-lo, e outra simbólica, na qual se pode quebrar o encantamento do enterro, evitando que escape. O primeiro tipo de marcação é apenas referencial, diz respeito ao local onde o enterro se encontra, por isso suas marcações são geográficas: rios, praias, lagos, pé de árvores, algum compartimento da casa, mas em geral, evidenciam-se pontos físicos muito comuns na região. Em algumas narrativas, a marcação não é somente uma indicação de lugar, mas o saber-fazer para que se saiba como agir no espaço geográfico visto suas constantes mudanças. Na narrativa 240 a marcação do enterro é feita num pé de uma árvore frutífera muito comum na capital paraense, a mangueira, notando-se, portanto, um ponto físico comum na região: Quadro 3.3.1 – Trecho correspondente à parte invariante Marcação da narrativa 240.

Fonte: Extraído de Cruz (2008: 72)

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O segundo aspecto comum às marcações diz respeito à capacidade que o escolhido tem de desencantar o tesouro, agindo sobre ele de forma a prendê-lo a si e não perdê-lo, pois alguns narradores afirmam que o enterro é possuidor de vida e de mobilidade. Neste caso o escolhido pode usar do seu conhecimento acerca dos costumes e tradições que são típicas da comunidade narrativa. Sangue ou saliva podem quebrar o encantamento do tesouro e prendê-lo a si. Entretanto este último aspecto não teve nenhuma ocorrência nas narrativas de enterro selecionadas. Em 6 narrativas amazônicas, o escolhido é levado ao local do enterro, fato não muito comum, a exemplo na Narrativa 1.506: Quadro 3.3.2 – Trecho correspondente à parte invariante Marcação da narrativa 1.506.

Fonte: Extraído de Cruz (2008: 101)

3.4. A provação Ser o escolhido do enterro não é somente uma questão de sorte ou necessidade, este passa por uma série de provas que irão testar sua coragem, lealdade e esperteza. Assim como nas narrativas pantaneiras, nos relatos amazônicos o escolhido é posto à provas, de modo a avaliar seu caráter. Entretanto, em alguns casos, essas provas não são evidenciadas para o escolhido ou no relato não é exposto nenhum tipo de provação, é o que acontece em seis das 20 narrativas do IFNOPAP (A procura da botija, CL01AVst140893-III, CL05AVflo201193-II, Um sonho, A árvore do dinheiro, Narrativa 265) Essas provas podem vir num primeiro momento, em geral, como pré-condição durante a anunciação, e posteriormente, em que o escolhido deve cumprir promessas feitas à alma anunciadora do enterro. Em alguns casos, a provação ocorre sutilmente e em outras é evidente. A marcação também pode ser uma forma de prova, neste caso, a falta de conhecimento faz com que se perca a riqueza. A coragem é uma forma de prova mais comuns nos relatos, enfrentar o medo não é uma simples tarefa. Torna-se herói a pessoa que consegue resistir ao medo e anti-herói a que se amedronta. A coragem do escolhido foi posta à prova para que conseguisse o enterro, fato ocorrido na narrativa Misuras em que a pessoa que anuncia o enterro para o escolhido através de sonho, deixa claro que o escolhido deve ser corajoso: Quadro 3.4.1 – Trecho correspondente à parte invariante Provação da narrativa Misuras.

Fonte: Extraído de Cruz (2008: 52)

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Na provação, os valores morais são representativos, por isso a ambição é vista negativamente, o que explica o fato de em muitas narrativas, a prova imposta remeter o escolhido a passar por cima de seus interesses e desejos em favor dos anseios gerais. Quando há punição, associa-se um valor ético e moral à narrativa As narrativas de enterro contribuem desse modo, para a aplicação do rigor da justiça, seja pela disseminação de valores morais ou pela punição da ambição, refratada na perda da riqueza. (FERNANDES, 2007, p. 268).

O caráter do escolhido também é testado com a individualização do segredo, não contar sobre o enterro é fundamental para que se obtenha sucesso na provação. Muitas vezes, pelo fato de contar sobre o assunto a outras pessoas, o enterro pode fugir ou ser roubado, mas a punição mais comum é a perda dele. Fato ocorrido com a escolhida pelo enterro nas narrativa 240, além disso, notase na narrativa que a escolhida não havia conhecimento dessa pré-condição: Quadro 3.4.2 – Trecho correspondente à parte invariante Provação da narrativa 240.

Fonte: Extraído de Cruz (2008: 72)

3.5. O desenlace Parte final da trama, caracteriza-se pelo instante em que a provação tem seu resultado. Sendo assim, somente dois casos podem vir a acontecer: um positivo, em que há sucesso no enterro, o escolhido fica rico e pode desfrutar do tesouro dado a ele, ou o resultado pode ser negativo, o escolhido perde o tesouro. Na maioria dos casos, no final da narrativa algumas ações ficam em aberto, pois mesmo com o desenterro ou não da riqueza, alguns atos não ficam finalizados. O tesouro adquirido serve para que mude a condição social do escolhido, melhorando de vida ou libertando-o de abusos do patrão. A situação da pessoa beneficiada muda, entretanto seu caráter deve permanecer igual. Nas narrativas amazônicas selecionadas, o desenlace é a parte invariante mais fácil de ser reconhecida. Em doze das vinte narrativas o final da trama foi positivo (A procura da botija, Defunto pesa, CI01ASlou140993,CM06ANyy030594-V, CM03CZsb191093-XI,narrativa 1.391, O grito, Um sonho, A árvore do dinheiro, em busca do medo, narrativa 1.743, narrativa 265, narrativa 1.506), a exemplo primeiramente na narrativa A árvore do dinheiro; nas demais narrativas o resultado foi oposto, fato notado na narrativa 170: Quadro 3.5.1 – Trecho correspondente à parte invariante Desenlace da narrativa A árvore do dinheiro.

Fonte: Extraído de Cruz (2008: 87)

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Tema geral: Línguas e Literaturas: Diversidade e Adversidades na América Latina

Quadro 3.5.2 – Trecho correspondente à parte invariante Desenlace da narrativa 170.

Fonte: Extraído de Cruz (2008: 104) No final da trama é comum não ser feito nenhum tipo de comentário sobre a nova condição do escolhido ou mesmo sobre o que aconteceu com a alma que anunciou o enterro, essas conclusões ficam implícitas no texto. Entretanto, esse desfecho em aberto da narrativa não deve ser entendido como algo desfavorável: [...] o término de uma narrativa não indica o fim das expectativas quanto ao seu conteúdo. O narrador, ao finalizar com a obra em aberto, isto é, sem dominar os sentidos da recepção no ouvinte-leitor, infiltra nele inquietações que permitirão a atualização do tema seguinte. O inacabamento da narrativa é, então, o segredo da narrativa bem concluída. (FERNANDES, 2007, p.274).

4. A Consciência Linguística das Narrativas de Enterro do Acervo IFNOPAP A consciência lingüística atribuída às narrativas por Fernandes (2007) é restrita aos enterros e não deve ser aplicada a outros tipos de narrativa. Nas narrativas de enterro, as partes não seguem uma ordem linear, ou mesmo algumas delas se ausentam ou são abordadas de maneiras sutis dentro da trama. Isso acontece devido à improvisação no momento da atualização do arquétipo na performance, quanto ao assunto Fernandes (2007, p. 275) conclui: A tese de consciência lingüística atenta para as diferentes possibilidades de organização de uma narrativa no futuro, uma vez que elas são concebidas a partir da combinação e ajustes das partes, que apresentam direta ou indiretamente na atualização de um arquétipo.

O fator social que é expresso na harmonia existente entre o narrador e a comunidade narrativa é essencial para a constituição e operacionalização de sua consciência lingüística. Como conseqüência disso, as cinco partes da narrativa de enterro se recaracterizam: a) a origem pode servir para a atualização da história do lugar; b) a marcação esclarece o saber-fazer; c) a provação estabelece o modo de agir; d) já a anunciação mostra as relações de representação entre o sujeito e o mundo ao seu redor, e por fim; e) o desenlace, que deixa um ‘porvir’ no ouvinte-leitor (Fernandes 2007). Conclusão Neste trabalho propôs-se mostrar brevemente a análise feita nas narrativas de enterro amazônicas do acervo IFNOPAP de acordo com a estrutura de Fernandes (2007). Para tanto, apresentou-se a estrutura das narrativas de enterro proposta por Fernandes (2007), nas quais fazem referências às narrativas de enterro pantaneiras. De acordo com as análises realizadas com 20 narrativas de enterro amazônicas, conclui-se que a estrutura estabelecida por Fernandes (2007) para esse tipo de narrativas é aplicável às narrativas amazônicas. Nelas encontram-se todas as partes da estrutura proposta pelo autor (origem, anunciação, manifestação, marcação, provação e desenlace). Entretanto há algo relevante observado durante a análise das narrativas de enterro do IFNOPAP, na análise de cada parte da narrativa de enterro, Fernandes (2007) divide as partes da seguinte forma: Origem, Anunciação, marcação, provação e desenlace; deixando a variante Manifestação subtendida na variante Anunciação. Nosso estudo

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comprovou, entretanto, que as duas partes foram analisadas de formas distintas, até mesmo pelo fato de que em muitas narrativas amazônicas, o informante não explicita a forma de manifestação do enterro durante a anunciação. Verificaram-se também particularidades das narrativas de enterro amazônicas, aspectos que não foram encontrados nos relatos pantaneiros como a exploração do meio em que vive o homem dessa região para a marcação do enterro (pé de árvores, plantas e rios). Para se referir ao enterro, o narrador amazônida utiliza a palavra ‘botija’ para designar o objeto no qual se guarda o ouro ou dinheiro, alguns informantes utilizam a palavra ‘tacho’. Outra diferença observada, está nas narrativas Defunto pesa e a narrativa 170 em que o ouro está dentro de um caixão. Na maioria das narrativas o fim da trama é positivo, em doze narrativas o escolhido consegue desenterrar o tesouro e fica rico e/ou consegue melhorias em sua vida. Na demais, o escolhido não obtém sucesso no enterro devido a falta de coragem e na maioria das vezes, falta de lealdade, pois conta para outras pessoas sobre o enterro. Referências CRUZ, Ingrid Sinimbú. Acervo IFNOPAP: da memória oral à memória digital. Belém: PIBIC/ UFPA, 2007. (Plano de Iniciação Científica) CRUZ, Ingrid Sinimbú. Acervo IFNOPAP: o lugar da narrativa no espaço amazônico. Belém: PROAD/ UFPA, 2008. (Plano de Iniciação Científica) CRUZ, Ingrid Sinimbú. A Consciência Linguística das Narrativas de Enterro do Acervo IFNOPAP. Belém: FALE / ILC / UFPA, 2008b. (Trabalho de Conclusão de Curso). FERNANDES, Frederico Augusto Garcia. A voz e o sentido: poesia oral em sincronia. São Paulo: UNESP, 2007. GOLDER, Christophe & SIMÕES, Maria do Socorro. Santarém conta... Belém: Cejup; Universidade Federal do Pará, 1995a. - ( Série Pará conta; 1) ______. Belém conta... Belém: Cejup; Universidade Federal do Pará, 1995b. (Série Pará conta; 2) ______. Abaetetuba conta... Belém: Cejup; Universidade Federal do Pará, 1995c. (Série Pará conta; 3) REIS, Fabíola do Socorro Figueiredo. Tratamento digital das narrativas do acervo IFNOPAP. Belém: PIBIC/ UFPA, 2008. (Plano de Iniciação Científica) ROSÁRIO, Fernanda Beatriz do Nascimento. Tratamento Lingüístico e Literário das Narrativas digitalizadas do projeto IFNOPAP. Belém: PIBIC/ UFPA, 2007. (Plano de Iniciação Científica)

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CONSTITUIÇÃO DE SABERES NA FORMAÇÃO CONTINUADA DE PROFESSORES ALFABETIZADORES Isabel Cristina França dos Santos RODRIGUES Maricilda Nazaré Raposo de BARROS (SEMEC/SEDUC – BELÉM – BRASIL)

RESUMO: O texto expõe reflexões a respeito das práticas docentes evidenciadas nos assessoramentos realizados em 07 escolas da Rede Municipal de Belém/Pa, no Projeto Expertise em Alfabetização. Para isso utiliza produções (orais e escritas) dos professores envolvidos no projeto. Partindo do pressuposto bakhtiniano da compreensão responsiva ativa de que os professores durante as orientações feitas nos encontros do projeto não são passivos, desenvolve-se um trabalho que valorize práticas sociais de leitura e contação de histórias presentes no repertório cultural dos alunos e criar um espaço para discutir questões pertinentes ao processo de alfabetização, na escola, como produto das reflexões dos que participam do projeto estabelecendo relações intertextuais entre os encontros, seus conhecimentos de mundo e suas práticas pedagógicas anteriores, durante a elaboração e condução das atividades de leitura e escrita propostas. Traremos para discussão os estudos de Kleiman (1996; 2001), Chön (2002); Mey (2001), Fiad (1997) e Soares (2000). PALAVRAS-CHAVE: Gêneros discursivos; Alfabetização; Letramento.

ABSTRACT: This text exposes ideas of teachers’ practices during advisements made at 07 municipal schools in Belem/Pa, in Expertise project about reading and writing. It brings out the teachers’ (writing and oral) texts involved with the project. The idea is to explain ways that teachers get knowledge and make transposing didactic. We’ll explain ways these knowleges. We follow bakhtinian responsive comprehension. We developed work to value social practices of telling tales, fairy tales, fables present in students’ popular repose are distinct from those at school system. So, intend to discuss subjects writing and reading process, at school, like a product of teachers’ reflexions of continueding forming making intertextual relations between the meetings, their knowleges and practices before project during the conduction about writing and reading proposes to the students during the project. We’ll bring out the discussion studies of Kleiman (1996; 2001), Chön (2002); Mey (2001), Fiad (1997) and Soares (2000). KEY-WORDS: Discourse genre; Writing and readind teaching; Literacy.


1. Introdução O presente trabalho expõe as reflexões a respeito das práticas docentes durante os encontros de orientações realizados por duas professoras-orientadoras, em 07 escolas da Rede Municipal de Educação de Belém do Pará, a partir das propostas do Projeto Expertise em Alfabetização em 2008, cuja meta era alfabetizar as crianças em 01 ano. Atendemos 46 turmas, com um total de 1.149 alunos. Este trabalho traz à tona produções (orais e escritas) geradas nos diferentes contextos de atuação (escolas assessoradas durante os encontros mensais do projeto) das profissionais envolvidas no projeto. A ideia é apresentar de que maneira as professoras envolvidas no projeto, se apropriam dos conhecimentos e realizam ou não a transposição didática. Dessa forma, mostraremos as formas de apropriação desses saberes associadas às experiências acumuladas por essas profissionais. Partiremos do pressuposto bakhtiniano da compreensão responsiva ativa, posto que as professoras diante das orientações realizadas nos encontros mensais do projeto Expertise não são passivas e, em função disso, respondem de diferentes formas utilizando as atividades de avaliação mensal dos alunos para manifestarem os discursos constituídos em sua experiência profissional ao longo do processo de formação continuada. Por conta disso, desenvolveu-se um trabalho que pretendia valorizar práticas sociais de contar lendas, contos de fadas, fábulas presentes no repertório cultural dos alunos que, na maioria das vezes, são bastante preteridas pela instituição escolar. Dessa forma, pretendeu-se criar um espaço para discutirmos questões pertinentes ao processo de aquisição da leitura e da escrita, na escola, como produto das reflexões dos docentes que participam das atividades de formação continuada estabelecendo relações intertextuais entre os encontros do projeto, seus conhecimentos de mundo e saberes anteriores ao projeto, que perpassam, consciente ou inconscientemente, a elaboração e condução das atividades de leitura e escrita propostas aos alunos durante o desenvolvimento do projeto, na ação. 2. Pressupostos teóricos Observando-se as crianças atendidas em classes do CI 1º ano (Alfabetização) verifica-se que as atividades propostas aos alunos ainda em fase inicial do processo de escolarização, na maioria dos casos refletem aspectos concernentes apenas ao ensino do código escrito (GERALDI, 2002), desconsiderando o plano comunicativo. Conseqüentemente, os alunos são convocados a elaborarem textos (redações) cujos temas não refletirão as experiências comunicativas que eles acumulam em interações com outras comunidades (família, trabalho, igreja, etc.), o que nos revela práticas do letramento autônomo. Com o passar do tempo, os alunos acabam por evadir-se da escola, uma vez que não conseguem atribuir significados às atividades de leitura e escrita relacionadas à língua materna (KLEIMAN, 1995, 1996, 2001, 2003). Contrapondo-se à ideologia do modelo autônomo de letramento, a escola poderia criar estratégias para que os indivíduos não estivessem submetidos ao ensino-aprendizagem da forma, mas da função da língua (KLEIMAN, 2003). Nesse contexto, a escrita assume na alfabetização pré-requisito essencial para que o indivíduo tenha “sucesso” na vida social. O trabalho pautado nos gêneros discursivos traria a possibilidade de criar condições mais próximas das situações de comunicação dos alunos. Apoiando-se na perspectiva do letramento ideológico, os gêneros do discurso presentes na teoria bakhtiniana estabelecem as ligações entre a atividade de linguagem, suas motivações e as relações dessas atividades entre os indivíduos. Os estudos de Bakhtin (1997) são relevantes ao processo de apropriação da leitura e da escrita, na medida em que trazem para o âmbito da linguagem o caráter da enunciação e da interação; não se limitando apenas a detectar os fatos lingüísticos, mas também de perceber o aspecto social das manifestações da linguagem, entre eles os mais centrados nas práticas orais, como é o caso das cantigas de roda, valorizando o aspecto lúdico e cultural presentes nesse gênero para, posteriormente, inserir-se textos mais institucionalizados.


No caso das crianças pertencentes às camadas populares, a escola aparece como uma das poucas agências de letramento, portanto, cabe essa instituição ensinar a ler e escrever de forma a ampliar os níveis de letramento das crianças partindo de gêneros mais próximos das situações cotidianas de comunicação (RODRIGUES, 2005, 2006). Com o tempo, inserir gêneros mais direcionados àquelas situações em que determinadas especificidades da língua escrita serão mais elaboradas. Para tanto, há relevância de se ensinar a partir de uma sequência didática, uma vez que os alunos são avisados da situação a ser estudada, pois criam um contexto para ler e/ou escrever. Para eles, possivelmente, haverá um sujeito a quem seu texto será direcionado; o tempo a ser trabalhado cada gênero é maior, o que lhes permite observar exemplos e especificidades do gênero em questão; os conteúdos são selecionados de modo a ampliar os saberes dos educandos e de forma contextualizada, a avaliação tem um caráter formativo. Isso faz com que o professor reflita a respeito de quais gêneros utilizar em sala de aula, bem como quando eles serão apresentados e/ou retomados ao longo da escolarização. Tal encaminhamento criaria um espaço dialógico, favorecendo o trabalho com diferentes gêneros discursivos. Funalleto (2000) enfatiza esse fato ao afirmar que “os gêneros refletem a própria dinâmica global da sociedade, não se pode listá-los exaustivamente, mas há interesse em selecioná-los por sua relevância social e buscar descrever seu funcionamento para fins pedagógicos” (FUNALLETO, 2000, p. 5). Em virtude disso, as relações estabelecidas em sala de aula são desencontradas, pois professor e alunos estão no mesmo espaço físico, entretanto raramente interagem ou compartilham conhecimentos. Isso ocorre bastante quando não se leva em conta o que os alunos já trazem de suas comunidades, como é o caso dos gêneros cantigas de roda e lendas. Para Gatinho (2006), o contexto de formação continuada é também um espaço de construção e transformação do saber, precisamos compreender que saberes de referência são mobilizados, como chegam aos professores e como esses saberes são interpretados, deslocados, alinhados e realinhados também pelos formadores para que as práticas de ensino possam responder às necessidades criadas pelos documentos oficiais [....] e pelas demandas de sala de aula (p. 145).

Desse modo, percebe-se que não basta que o professor tenha acesso aos embasamentos teóricos, mas que tais conhecimentos sejam mobilizados durante situações mais próximas do contexto de atuação dos educadores, colocando-os em situações de aprendizagem. Assim, eles poderiam ser apoiados em seus planejamentos, através de seus formadores a organizarem atividades que contemplassem as condições didáticas necessárias não só à inserção de diferentes gêneros nas classes de Alfabetização, como também garantissem uma apropriação da língua escrita baseada numa perspectiva do letramento ideológico. Para que isso aconteça é necessário que o poder público nas mais diferentes esferas, garanta a formação continuada aos professores, por meio de cursos de aprofundamento teórico-metodológico, além de assessoramento aos professores em seus contextos de atuação como ocorre no município de Belém. Alie-se a esse encaminhamento o investimento na formação dos formadores (participação em Congressos, Seminários, Fórum), uma vez que estes devem se manter informados a respeito das pesquisas desenvolvidas na área educacional, em especial, no que concerne ao ensino de língua materna. Isso é de grande valia, já que a academia teria bastante o que colaborar com o trabalho realizado na formação. Ao mesmo tempo, cria-se um espaço dialógico de práticas poucas legitimadas no meio acadêmico no que se refere ao trabalho nas séries iniciais, pois experiência tem nos mostrado que há um grande distanciamento entre saber científico, documentos oficiais de ensino e a o fazer docente. 3. Análise dos dados Durante os encontros mensais e nos assessoramentos às escolas, percebemos que as falas das professoras e as formas de trabalharem os textos (na maioria cantigas e contos de fadas no início do ano) revelavam bastante seus avanços na compreensão da necessidade de inserir em suas práticas


atividades que não apenas desafiassem os alunos, mas que refletissem maior segurança em apresentar diferentes gêneros ao longo do ano letivo, como passaremos a apresentar. [01] “os meninos não sabem nem fazer o a, como farão vão trabalhar texto?” [02] “eu escolho os textos, rodo as atividades e cada dia e passo uma a cada dia, trabalhando muitos gêneros”. [03] “não acho que os meninos tão pequenos assim vão produzir textos”. [04] “eu já trabalhei muito com alfabetização, mas não sei se isso vai dar certo. Vou tentar”.

Observa-se que nas falas [01] e [03], a concepção de texto está atrelada a um produto final de habilidades motoras, por isso, deve-se apresentar as letras em uma sequência. No início do projeto, falas semelhantes eram bastante recorrentes. Em [02], verifica-se uma hibridização no trabalho com o texto, pois a professora já desafia os alunos desenvolvendo um trabalho com diferentes gêneros. Entretanto, não propicia um tempo determinado necessário ao trabalho com cada gênero. Isso gerou certa frustração, uma vez que os alunos não conseguem acompanhar o processo, além do fato de que a professora sentia dificuldades em tratar das especificidades de determinados gêneros. Tais dificuldades foram superadas ao longo dos encontros de assessoramento (HP - Hora Pedagógica e Coletivo Mensal do Projeto). Na fala [04], a professora mostra-se receosa diante do desafio, mesmo já possuindo uma longa experiência com classes de alfabetização. Apesar do receio, a professora se propõe a tentar. Essa foi a atitude de uma parcela considerável de professoras. A maioria percebeu que de fato as crianças tinham capacidade de atingirem o nível alfabético, assim como produzirem textos, como se pode observar nos textos das figuras 1 e 2. Percebe-se que nos textos que as professoras desafiaram seus alunos a trabalhar com diferentes gêneros e campos semânticos, fazendo com que os mesmos atribuíssem às produções textuais sentidos específicos a cada situação comunicativa. No que se refere aos encontros realizados mensalmente com os professores, verificou-se que as temáticas trabalhadas refletiam muitas das ações de boas aprendizagens implementadas por determinadas professoras, como se observa em [01] que acabavam por se ver nas orientações. Outro fato interessante foi que as professoras entenderam a coleta mensal das atividades dos alunos como um importante instrumento de avaliação e organização do trabalho educativo e não como mera cobrança, como se pode detectar em [02]: [01] “A partir da observação do vídeo, percebi que muitas das atividades que realizo são muito semelhantes ou iguais a essas. Eu acho que seria interessante socializar assim do jeito como vocês fazem (referindo-se aos slides) apresentar meu trabalho e os outros também, não é?”. [02] “Interessante ver esses bastidores do trabalho de vocês. A gente faz e recebe tudo pronto e nem imagina todo o processo. É bom pra gente se ver nisso”.

Percebe-se também que as professoras se engajaram no projeto de forma a perceber melhor a situação de cada aluno, em função dos parâmetros de avaliação apontarem de maneira mais clara os avanços e limitações das atividades propostas ao longo do mês. Foi inevitável que durante os encontros, acontecessem os relatos de experiências de aprendizagens bem sucedidas. Isso nos fez refletir o quanto o alfabetizador revigorou sua prática. Além disso, aqueles que atuavam em outras turmas (CI ou CII) passaram a adaptar os parâmetros de avaliação (psicogênese e critérios da produção textual) como se observa nos seguintes trechos de relatos docentes: [01] “Hoje eu não consigo pensar nas atividades propostas na escola que não tenha direta relação com as atividades de leitura e escrita. Virou uma mania já”. [02] “Perceber que aquelas crianças que possuem tantas dificuldades em suas casas e que vêm para escola e conseguem aprender é que mostra o quanto a escola pode ajudar esses meninos a terem o mínimo de oportunidades”. [03] “As crianças precisam da gente porque a família praticamente entrega toda essa responsabilidade para nós. É só na escola que eles têm acesso direito ao conhecimento”. [04] “É bom saber que não importa o lugar, mas a vontade de ousar, de fazer os alunos a terem contato com a leitura e aproveitar o tempo para o estudo deles”.


[05] “de fato as crianças lá na nossa escola têm poucos materiais, nem recebem livros, mas as professoras sempre estão lendo para os meninos. Nós temos uma caixa só com revistinhas e livrinhos bem velhinhos, mas que elas aproveitam. A gente tem que fazer algo, pois não dá mais para ficar parado. Todos têm que chegar lá”. [06] “os meninos já discutem as atividades, cobram, sugerem e falam de coisas do tipo ‘esse gênero a gente já sabe, tia’ e isso é forte porque mostra que eles estão se apropriando do processo de ensino-aprendizagem mesmo”. [07] “a partir dos critérios de avaliação da Expertise, comecei a avaliar os demais alunos da escola e a planejar com meus colegas atividades de acordo com as metas a serem alcançadas, delimitando tempo necessário para que elas fossem desenvolvidas”.

4. Conclusão Diante dos relatos docentes, verifica-se o quanto é importante que o professor, em especial, o professor alfabetizador, tenha acesso a um programa de formação continuada. Isso se justifica pelo fato de que a cada assessoramento (nas HP ou em sala de aula), o formador poderá criar condições para que esses profissionais reflitam a respeito de que atividades e encaminhamentos utilizar de modo a desafiar os alunos no maravilhoso caminho da aquisição da língua escrita sem desconsiderar os conhecimentos constituídos pelos educandos em outras esferas comunicativas. A discussão que fiz neste trabalho possui, de certa forma, ponto de partida em outros estudos que surgiram sobre a aprendizagem por gêneros discursivos. Esses estudos, certamente, não analisaram, mas entendemos que a escola deva ser um espaço que deve contribuir para a formação de seus próprios professores. Observa-se ainda um distanciamento entre a prática das salas de aula e o conhecimento acadêmico que pouco tem sido viabilizado aos verdadeiros intermediários do processo de ensinoaprendizagem, ou seja, os professores apresentam dificuldades tanto na formação inicial, quanto na formação continuada no que se refere ao trabalho com a linguagem (ANTUNES, 1998; LOPES, 1996). Isso nas turmas de Alfabetização é bem mais enfático. Torna-se necessário que o professor, em especial, o alfabetizador crie condições favoráveis à apropriação da língua escrita a partir de gêneros mais próximos ao cotidiano dos alunos, mesmo sendo estes centralizados na oralidade. Pois, esse encaminhamento não só valoriza os saberes das crianças, mas favorece uma aprendizagem focalizada em aspectos reais da comunicação, uma vez que, sobretudo para crianças pertencentes às camadas populares a escola representa a grande fonte de conhecimento e exercício da cidadania. Sendo assim, não há bem maior a fornecer a essas crianças que a apropriação da leitura e da escrita como forma de ter condições mínimas de usufruir dos bens culturais, a viajar pelo mundo através de livros os mais diversos possíveis. Se esse embasamento for apresentado nos mais diferentes gêneros, mais chances os alunos de aprofundar seus estudos, interpretar melhor o mundo e exercerem seus direitos de maneira mais consistente. Procuramos identificar algumas discussões nessa formação que fazem com que os professores aprendam em sala de aula e a maneira como buscam ir ao encontro de seus alunos, conscientes da importância de reverem e constantemente refletirem sobre suas ações, tendo como objetivo alcançar os melhores resultados de suas turmas (ALARCÃO, 1996). Percebemos na proposição deste projeto que existe uma intervenção, buscando a formação continuada de professores que, fazendo da reflexão e da ação elementos capazes de assegurar um trabalho coerente com a proposta de uma nova e democrática prática educativa, apoiada em Alarcão (2003, p. 80), que pensa em uma escola reflexiva, espaço de gestão integrada de pessoas e processos. As propostas de formação continuada precisam apostar numa conduta reflexiva dos professores em sua atuação como docente. Essa conduta reflexiva leva o professor a ser mais sensível diante das dificuldades que lhe são apresentadas em seu cotidiano, tornando-o mais eficiente nesse processo de engajamento na sua realidade e na de seu aluno. Engajamento que provoca toda uma mudança conceptual do processo ensino - aprendizagem e modificações empreendidas em sua sala de aula (ZEICHNER, 1993).


Desenvolvemos nossa ação respeitando a fala dos professores, que tentam superar as limitações de modelo marcado por muitas contradições, que já não responde mais aos anseios dos docentes. É hora de apostar em alternativas de formação, que desenvolvam profissionais reflexivos, que sejam centradas na escola e aproveitem todo o potencial pessoal e físico desses espaços educativos. Os impasses e as dificuldades apresentadas pelos profissionais, no que tange à preparação de suas sequências didáticas, principalmente no que diz respeito à avaliação da aprendizagem, são considerações que devem ser questionadas, mais uma vez discutidas em grupo de professores que construam uma autonomia profissional, aliada a uma busca teórica para a compreensão da própria prática (ALARCÃO, 2003). O que se propõe são ações nos encontros e assessoramentos, que levem em conta toda a experiência desses docentes, para que sua formação realmente se efetive. Referências ALARCÃO, Isabel. (Org.). Formação reflexiva de professores: estratégias de supervisão. Porto: Porto Editora, 1996. ALARCÃO, Isabel. Professores reflexivos em uma escola reflexiva. 2. ed. São Paulo: Cortez, 2003. (Questões da Nossa Época, n. 104). ANTUNES, Irandé Costa. Gêneros de texto: uma via de abordagem das variações em língua escrita. João Pessoa. [s.n.]. v. II, n. 1, jan. 1998. BAKHTIN, M. Os gêneros do discurso. In: Estética da criação verbal. São Paulo: Martins Fontes, 1997. FURNALLETO, Mª Marta. Gêneros do discurso. mesa - redonda sobre gêneros do discurso. jun. 2002. GATINHO, João Bebeilson Maia. Sequências de atividades didáticas propostas por professores em formação continuada. In: Gêneros catalisadores: letramento e formação do professor. SIGNORINI, Inês (Org). São Paulo: Parábola Editorial, 2006. GERALDI, João Wanderley. Concepções de linguagem e ensino de português. In: _____ (org.). O texto na sala de aula. 3. ed. São Paulo: Ática, 2002. KLEIMAN, A. B. (Org.) Os Significados do letramento: uma nova perspectiva sobre a prática social da escrita. Campinas, SP: Mercado de Letras, 1995. ______. Leitura: ensino e pesquisa. 3. ed. Campinas, SP : Pontes, 1996. ______. Modelos de letramento e as práticas de alfabetização na escola. In: KLEIMAN, A. B. (Org.). Significados do letramento. Campinas: Mercado de Letras, 2001. ______. Oralidade letrada e competência comunicativa: implicações para a construção da escrita em sala de aula. Scripta. v. 5, nº 10, jul/dez, 2003. LOPES, Luiz Paulo da Moita. A formação do professor de línguas: discurso, produção de conhecimento e cidadania. I Simpósio de Políticas de Ensino de Línguas Estrangeiras: UFSC, 1996. RODRIGUES, I. C. F. S. A Recepção do gênero lenda em sala de aula. In: JORNADA DE ESTUDOS LINGÜÍSTICOS E LITERÁRIOS, 2005, Belém. Anais. Belém: UFPA, 2005. ______. Retextualização e intertextualidade em textos de alunos de 5ª série do ensino fundamental. Dissertação (Mestrado em Letras – Estudos Lingüísticos). Belém (PA): Centro de Letras e Artes, Universidade Federal do Pará, 2006. ZEICHNER, Kenneth M. A formação reflexiva de professores: idéias e práticas. Lisboa: EDUCA, 1993.


Figura 1 - Texto 1, F., 06 anos

Figura 2 - Texto 2, A., 06 anos


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SOB O TRAÇADO DO IMAGINÁ(RIO): NARRANDO A IDENTIDADE AMAZÔNICA Ivone dos Santos VELOSO (Universidade Federal do Pará)

RESUMO: Até a década de 60 do século XX, a ocupação e a urbanização da Amazônia seguiram o traçado do rio, acompanhando, assim, a disposição geográfica que este apresentava. Daí, a razão histórica para a relevância que o rio tem para a região como meio de subsistência, de comunicação, de transporte, e, sobretudo, para a constituição do imaginário social da/sobre essa região, imprimindo-lhes muitas vezes o seu tempo lento, bem como a sua configuração labiríntica, deslizante e sinuosa. Tendo em vista isso, o trabalho ora proposto tenta observar como e até que ponto a imagem do rio afeta as representações identitárias na literatura da Amazônia, sem, contudo, homogeneizá-la. Para tanto me reporto ao personagem Missunga, do romance Marajó de Dalcídio Jurandir, cuja narrativa apresenta uma relação significativa entre o rio e a personalidade desse protagonista, seja pela sua lassidão, melancolia, ou pelo seu caráter deslizante e sinuoso. PALAVRAS-CHAVE: rio; identidade; literatura ; Dalcídio Jurandir

RESUMEN: Hasta los años 60 del siglo XX, la ocupación y urbanización de la Amazonía siguió la ruta del rio. Esta es la razón histórica por la importancia que el río tiene para la región como medio de subsistencia, las comunicaciones, el transporte y, especialmente, para la constitución del imaginario social de / en la región. El trabajo propuesto en este documento trata de observar cómo y en qué medida la imagen del río afecta a la identidad de las representaciones en la literatura de la Amazonia. Para ello me refiero al personaje Missunga, del novela “Marajó “ escrita por Dalcídio Jurandir, la narrativa presenta una relación significativa entre el río y la personalidad de la protagonista. PALABRAS CLAVE: río; la identidad, la literatura, Dalcídio Jurandir


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1. Traçando uma introdução Por em foco um discurso que narra a nação é, em certo sentido, tratar de representações sobre uma dada comunidade, uma vez que o termo pode se referir não apenas ao moderno estado-nação, mas a um significado mais antigo, o de natio, isto é, de uma comunidade local, de um domicílio, de uma condição de pertencimento (TIMOTHI BRENNAN apud HALL, 2003, p.58) nas quais os indivíduos se tornam sujeitos ou objetos de uma série de narrativas sociais e, principalmente, literárias que criam uma imagem e fazem com que esses indivíduos, na maioria das vezes, se identifiquem com ela. Assim, a atitude discursiva de narrar a nação não deve ser entendida como um modo de representar o real que lhe é exterior, e, sim, como um modo de produção de sentidos que interfere em nossas atitudes e no conceito que temos de nós mesmos (HALL, 2003, p.50), sendo, portanto, a instância mesma de criação da realidade. Feito então esses esclarecimentos que creio necessários, percebemos que a Amazônia foi e continua sendo narrada por diversos discursos que constituíram e constituem a sua representação como aquilo que Benedict Anderson (1989) chamou de comunidade imaginada. Uma condição que se funda na imagem de uma paisagem única e homogênea, pensada como um lugar limitado pelas suas fronteiras geográficas, e no perfil de uma comunidade, cuja imagem do homem amazônico se assenta numa fraterna representação de um homem ingênuo, cordial, ligado às coisas da natureza e de hábitos e crenças esdrúxulas, sendo, portanto, mais uma peça desse cenário em que a natureza é sempre pitoresca. Nessa perspectiva, vamos ao encontro da relação rio x homem no imaginário social da literatura da Amazônia, uma relação que se origina a partir da importância indelével que o rio tem para essa região como meio de subsistência, de transporte, de comunicação, imprimindo, muitas vezes, o seu tempo lento ou o seu traçado labiríntico às narrativas, bem como na representação da identidade amazônica, de modo que quando falamos em identidade dos povos amazônicos, inevitavelmente, a imagem do ribeirinho é tão logo lembrada como a mais típica representação da cultura da região (CRUZ, 2007, p.49). Tendo em vista isso, já podemos vislumbrar que a imagem do rio afeta as representações identitárias na literatura da Amazônia. Conforme nos informa Cruz (2007, p.52-53), essa construção da identidade amazônica pautada na imagem do ribeirinho se fez em parte pelo olhar naturalista que invisibilizou, muitas vezes, o homem dessa região, sobrepondo o espaço no quadro de representações da Amazônia, de modo que a identidade desse homem segue a natureza desse espaço, mantendo, inclusive, uma relação direta com a coisa nomeada: de rio, ribeirinho. Por outro lado, essa representação identitária também se deve a certo olhar que romantizou a figura do homem amazônico, constituindo a imagem do “caboclo ribeirinho” como aquilo que é o “o autêntico”, “o original” da região. Tais olhares, por sua vez, engendraram a visão colonialista sobre a identidade amazônica e corporificaram o estereótipo do caboclo que sobrevive até os dias de hoje: um sujeito cordial, melancólico, indolente, lento e atrasado, peculiaridades “herdadas”, por assim dizer, do rio. Não quero com isso adotar uma postura determinista, dizendo que a consciência de pertencimento se deve a localização geográfica, pelo contrário, o que interessa aqui observar é como o espaço amazônico condiciona, afeta ou influência nas representações sobre o homem dessa região. Nesse sentido, parto da idéia que a identidade amazônica pode ser entendida como uma identidade territorial ou socioterritorial. Para Rogério Haesbaert (1999, p.178), uma identidade territorial é aquela cuja alusão ou referência a um território, tanto no sentido simbólico quanto no concreto, é um dos aspectos basilares para a sua construção, de modo que a identidade social se torna uma identidade territorial quanto o referente simbólico central para a estruturação dessa identidade parte ou transpassa o território. Assim, a razão mais contundente que leva a essa representação identitária do homem da Amazônia se deve certamente não só a constituição geofísica do espaço amazônico, mas, principalmente, pela construção histórica desse espaço, bem como pela importância que a natureza, leia-se, nesse caso, que o rio assume para os povos dessa região, inclusive simbolicamente. De modo sucinto, notemos algumas observações a respeito desses aspectos que interferem na construção da(s) identidade(s) na Amazônia.

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a) A constituição geofísica: é fato que a Amazônia possui a mais extensa bacia hidrográfica do Planeta e é a maior em volume de água. Além da Região Norte do Brasil, compreende terras da região Centro-Oeste e de outros seis países da América do Sul: Bolívia, Colômbia, Equador, Guiana, Peru e Venezuela. O Amazonas, por sua vez, é o maior rio do mundo em extensão, cuja largura varia entre quatro e cinco quilômetros, podendo chegar até dez quilômetros em alguns trechos, e por isso mesmo, os primeiros viajantes que passaram por essa região chegaram a denominá-lo de rio-mar. b) A constituição histórica: A colonização do espaço amazônico, bem como a sua urbanização até a década de 1960, se forjou, por assim dizer, seguindo o traçado do rio, visto que era importante e estratégico que as povoações e, mais, tarde, as cidades se estruturassem às margens dos rios, uma vez que isso facilitaria o fluxo entre os lugares e o escoamento de produtos. De acordo com Gonçalves (2001) o espaço amazônico até aquela década, se organizou num padrão que ele chamou rio – várzea -floresta, posto que toda dinâmica econômica se desenvolva num tempo lento a partir do extrativismo, nas várzeas e nos rios. Entretanto, após a década de 60, com a construção de grandes eixos rodoviários na Amazônia, pode-se dizer, que se organizou um novo padrão que Gonçalves (2001) denominou de estrada -terra-firme- subsolo, que reproduz as novas relações socioeconômicas do espaço regional e o surgimento de um tempo rápido, tempo da modernidade. Contudo, isso não significou o fim do padrão anterior, o que determinou que essas experiências espaço-temporais se apresentem ubiquamente no espaço da Amazônia, configurando um tempo móvel, no qual se justapõem em um mesmo plano o antes e o agora, o novo e o antigo, entrelaçando o moderno e o tradicional no cotidiano da região. c) A importância do rio: dada essa presença geofísica do rio e essa relação historicamente construída com ele, o rio adquire um valor singular para aqueles que habitam nas margens dos barrancos, assim como para aqueles que transitam pela região, posto que não se pode negligenciar a sua interferência na rotina da Amazônia, uma vez que este é via de acesso às cidades, às escolas, etc. cujos os meios de transporte, na maioria das vezes dependem do movimento de enchente/vazante para chegarem ao seu destino. O rio é também meio de subsistência, uma vez que, muitos sobrevivem da pesca artesanal; é a força geradora da energia elétrica que chega às casas, enfim, é uma referência concreta no dia-a-dia do povo amazônida, o que o torna também um referencial simbólico, já que, segundo Paes Loureiro “a encantaria é um rio prodigioso submerso num rio utilitário e pronto a emergir sobre o toque do devaneio caboclo ribeirinho” (2000, p.276-277), daí as histórias de botos, iaras, navios encantados, igrejas submersas, dentre outras que sobrevivem no imaginário regional. Como vemos, o rio está em toda parte e tem uma efetiva participação na paisagem, na história e no imaginário desse território, o que justifica a relação com a identidade da região. Entretanto, não creio que a identidade amazônica, seja algo dado, a-histórico, homogêneo, uma identidade raiz única (GLISSANT,1996, p.71), constituindo-se numa essência tipicamente amazônica, nem tão pouco que a construção identitária que mantém sua relação com o rio se paute apenas na imagem do homem ribeirinho como a visão tradicional e colonialista quis firmar. Afinal, crer numa identidade exclusiva, unilateral, coerente e constante é uma ilusão, principalmente, quando se pensa isso em um contexto colonizado por diversos povos (portugueses, franceses, holandeses, africanos, italianos, japoneses) que deixaram suas marcas impressas na cultura e, por conseguinte, no homem. Assim, acredito que a própria imagem dos rios amazônicos pode estruturar outras representações que, por sua vez, podem nos dizer que a identidade amazônica é heterogênea, facetada, múltipla, uma identidade rizomática que vai ao encontro de outras raízes (GLISSANT,1996, 71-72). 2. Narrando um imaginá(rio) Uma dessas representações pode ser vislumbrada no segundo romance do escritor paraense Dalcídio Jurandir, Marajó(1992)1, especialmente, pelo seu protagonista, Missunga, notadamente Apesar de o romance Marajó ter sido publicado originalmente em 1947, pela Livraria José Olympio Editora, a edição referida neste artigo é a publicada pela Editora CEJUP em 1992. Deste ponto em diante todas as referências ao romance Marajó, virão antecedidas da sigla M, acompanhada do número da página. 1

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porque este não prefigura a imagem do ribeirinho, posto que é um rapaz rico, filho de Coronel Coutinho, “dono daquela gente” como assinala o narrador do romance. Contudo, no desenrolar da narrativa observa-se uma intrigante relação entre essa personagem e o rio, o que se torna uma espécie de rastro/resíduo na sua identidade, que como bem afirma Édouard Glissant (1996, p.84) é “ser um si que deriva para o outro”. Nesse sentido, a primeira referência que se faz ao rio no romance já se relaciona ao personagem Missunga, mas especificamente a uma lembrança e um desejo do personagem: o desejo de uma inércia em que todos os desalentos se afundassem, todos os vagos ímpetos morressem para sempre. Seria assim, uma verdadeira experiência da morte, um sono do fundo do rio, um retorno aqueles terrores de menino diante do sono que o assaltava na sombra da rede sem embalo, dos sustos que Mariana lhe dava, dos latidos do cão naquela noite chuvosa em que no barco do pai, subiu o rio morto, passando por um trapiche abandonado onde (por que teria suposto?) devia haver um menino morrendo. (M, p.11)

Nesse pequeno fragmento, já podemos entrever alguns aspectos que se entrecruzam nessa relação entre Missunga e o rio: a inércia, a morte, a lembrança e o desejo. Podemos dizer que esses aspectos vinculam-se a crise de identidade vivenciada por Missunga, que por sua vez também é uma questão de identidade cultural, afinal sua dúvida também se refere ao pertencimento à cultura dominante ou à cultura dominada, o que o leva a um constante descentramento no que se refere ao seu lugar no mundo social e cultural, bem como em relação a si mesmo, um processo conflituoso que atravessa a sua trajetória, o qual é marcado por um comportamento ambíguo. Assim, o rio inerte e morto é para ele o seu espelho, uma vez que a inércia é tão inerente ao comportamento de Missunga, não só porque ele “Queria a inércia que o rio parado lhe dava” (M, p.12), mas, sobretudo, porque a imagem do rio criada no romance expressa a sua negligência diante dos desmandos de seu pai. O rio morto é ele próprio, sem movimento e sem atitude. Por outro lado, essa própria imagem resguarda uma ambigüidade, dado que os rios amazônicos tanto são índice de vida, quanto de morte, nos afogamentos, nos naufrágios, etc. Tal situação de ambivalência é característica de Missunga que comunga da vida e da morte. Morte ao coronelismo, vida ao Missunga do povo. Vida de coronel, morte do bom moço. Com efeito, a personalidade dessa personagem se faz à semelhança dos rios amazônicos. Posto isso, notemos que a observação feita por Euclides da Cunha sobre a imagem do rio na Amazônia, bem poderia apresentar o filho de Coronel Coutinho: “vacilante, efêmero, antinômico, na paragem estranha onde as próprias cidades são errantes, como os homens perpetuamente a mudarem” (CUNHA, 2006, p.07). Um episódio que dá testemunho da enorme confusão da vontade vivida pela personagem é o que se passa na venda de Calilo. Lá, Missunga, ao observar a deprimente situação das mulheres que são obrigadas a comprar pirarucu podre para poderem levar o tabaco para o fumo - amenizador da fome e da miséria - atira, numa atitude quase heróica, os restos do peixe podre na lama. Atitude quase heróica porque, mesmo sentindo que fizera o correto, “Afinal seu pai era culpado, ele como filho era culpado.”, em seguida se arrepende de seu ato: “De resto gostaria que Alaíde tivesse assistido à cena, e Guita e os amigos de Belém que o aplaudiriam. Já no rio, sentia vergonha daquele impulso sem platéia, daquele gesto inútil.” (M. p.65) Observe-se nesse fragmento que, mais uma vez, a figura do rio se faz presente, como a indicar mais uma de suas oscilações e de seu (in) constante movimento. Desse modo, voltamos ao desejo de Missunga expresso naquela referência ao rio. Assim, se, por um lado, querer a inércia do rio é a representação da sua adesão aos valores de uma elite dominadora, de outro, querer o rio, querer ser como o rio, pode ser lido, talvez, como o desejo de ser como ribeirinho e, com efeito, romper com a aquela elite, mudando a condição social daquele povo: “Pudessem os rios correr para o sol com o sonho dos homens, a força das árvores, o espanto e a curiosidade dos bichos!” (M. p,13). Nesse trecho, a imagem criada pelo narrador, parece nos dizer, contraditoriamente, de seu desejo de ir contra o pai, pudesse ele realizar os sonhos daquela gente tão oprimida pelo sistema coronelista.

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Tal desejo, no entanto, é recalcado posto que não se realiza, tornando-se, pois, “um fantasma alimentado”, permanecendo no seu estado de latência e de impossibilidade (FINAZZI-AGRO, p.61), como se verifica no desenrolar do romance. De qualquer forma, pode-se perceber que o processo identitário de Missunga também se dá numa relação complexa com a alteridade, uma relação flutuante entre o desejo e a recusa. Recordemos que essa oscilação não se dá apenas em relação ao sujeito subalterno, mas também em relação ao seu pai, demonstrando que “múltiplos encontros com a alteridade resulta a porosidade das nossas fronteiras: um contínuo processo de transculturação que abre ‘o ser em sua essência’ para ‘o ser-no-outro’’ (GOMES, 2004, p.109). 3. Considerações Finais Tais observações não se esgotam nas que fiz até aqui, há outras que poderiam ainda demonstrar que a ambivalência identitária de Missunga se confunde com as imagens do rio no romance, sendo este, portanto um referencial simbólico relevante para compreendermos a construção da identidade desse personagem, que tenta conciliar mundos diferentes, identificando-se e movimentando-se, desse modo, entre eles de forma desconcertante, o que pode nos remeter à multiplicidade de sistemas de significação e representação cultural e social que nos rodeia e com o quais podemos nos identificar, ainda que provisoriamente. Por fim, acredito que essa condição é, a meu ver, possibilitada exatamente porque escrita em um contexto latino-americano, mais particularmente brasileiro e amazônico, cujo processo de colonização, ou melhor, de ocupação, promoveu a convergência de diversas culturas. E ainda, em uma conjuntura em que a modernidade se deu às avessas, não permitindo uma modernização de fato, e cujos projetos2 nacionais modernizadores constantemente foram interrompidos, gerando, por conseguinte, espaços, tempos e sujeitos fragmentados3, assim como práticas sócio-políticas fronteiriças, que, longe de uma harmonia, estão em constante tensão e negociação (VELOSO, 2007 p.70). Referências ANDERSON, B. Nação e consciência nacional. São Paulo: Ática, 1989 CANCLINI. N. G. Culturas Híbridas. Trad. Ana Ligia Lessa/Heloisa Pezza Cintrao. São Paulo:EDUSP, 2006 CRUZ, V.C. O rio como espaço de referência identitária: reflexões sobre a identidade ribeirinha na Amazônia. IN: TRINDADE JR.S.C.,TAVARES, M.G.C. (Orgs) Cidades Ribeirinhas na Amazônia mudanças e permanências. Belém: EDUFPA, 2007 CUNHA, E. À Margem da História. [s.l]: Biblioteca Virtual do estudante de Língua Portuguesa. 2006, p.3. Disponível em: <www.bibvirt.futuro.usp.br> FINAZZI-AGRO, E. O Dom e a Troca: a identidade modernista entre “negociação” e “despesa”. In: JOBIM, J.L et al.. (Org.). Sentidos dos lugares. Rio de Janeiro: Eduerj/Abralic, 2005, v. , p. -. p.61 Dentre esses projetos está a modernização da cidade de Belém na época do Ciclo da Borracha, que embora tenha permitido um desenvolvimento urbano, não promoveu uma democratização dos bens sociais e culturais a toda população, deixando muitos à margem dessa pretensa modernidade. Sem contar que tal projeto modernizador surge, na verdade, como “uma máscara, um simulacro urdido pelas elites e pelos aparelhos estatais” (CANCLINI: 2006, p.25), já que era construída a partir de uma cultura política anti-moderna, alicerçada, muitas vezes, em práticas clientelistas. Mais recentemente, na década de 80, iniciou-se outro grande projeto modernizador na Amazônia, a hidrelétrica de Tucuruí, que por sua vez possibilitou a produção de energia elétrica para a região, mas não gerou uma racionalização da vida social, seja porque os que viviam à beira dos rios foram obrigados a deixar suas casas, seja pelo desequilíbrio ambiental causado pelas inundações ou, ainda, pela aglomeração de favelas e prostíbulos nos arredores da cidade. 3 Sobre esses espaços fragmentados, lembremos também da cidade de Belém, que à semelhança de outras cidades amazônicas, demonstra na sua arquitetura os diversos projetos implementados naquela região, o que lhe fixou um espaço feito de recortes e retalhos temporais, colocando lado a lado o Brasil colonial, a Amazônia européia de paisagem neoclássica e a Belém modernista. 2

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Anais do II Congresso Internacional de Estudos Linguísticos e Literários na Amazônia (CIELLA) GLISSANT, É. Introdução a uma poética da diversidade.Trad. de Eunice Albergaria Rocha. Juiz de Fora: UFJF,2005 GOMES, R.C. Cosmopolitismos, nacionalismos, lugares e não-lugares na cultura contemporânea. In: BITTENCOUT, G., etti ali. Geografias literárias e culturais: espaços/temporalidades. Porto Alegre:UFRGS, 2004 GONÇALVES, C.W.P.A. Amazônia, Amazônias.São Paulo: Contexto, 2001 HAESBAERT, R. Identidades territoriais. In: ROSENDAHL, Z. CORRÊA, R.L.(Org.) Manifestações culturais no espaço. Rio de Janeiro: EDUERJ:1999 HALL, S. A Identidade cultural na pós-modernidade. Rio de Janeiro: DP&A, 2003 JURANDIR, D. Marajó. Belém: CEJUP, 1992 LOUREIRO, J.J.P. Obras Reunidas. São Paulo: Escrituras, 2000, 3v VELOSO, I.S. Marajó: espaço, sujeito e escrita. Dissertação de Mestrado.UFPA,2006

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a importância da linguagem na edificação e manutenção da ordem institucional e os desafios para o exercícIo da atividade jurídica Ivy de Assis SILVA (Instituto de Ciências Jurídicas - ICJ, Universidade Federal do Pará – UFPA)

RESUMO: Este artigo trata da importância da linguagem no que tangue a ordem institucional, como ela a edifica e promove a sua manutenção, bem como sua relação com o exercício da atividade jurídica. A questão é analisada ao se discorrer sobre o conceito de realidade, de instituição e a relação entre Direito, linguagem e ordem institucional, utilizando-se de teorias contidas em obras de profissionais não só do campo do Direito, mas também da área da Filosofia, além de utilizar-se da obra cinematográfica Nell (1994). Também se faz uso da opinião de pessoas com formação jurídica contida em questionário respondido por meio eletrônico sobre o tema. PALAVRAS-CHAVES: realidade; linguagem; interpretação; edificação; Direito.

RÉSUMÉ: L’article nous montre l’importance du langage por l’ordre institutionnel, comment il l’édifie et la mantenu, et aussi la relation entre le langage et l’exercise de l’activité juridique. Nous faisons l’analyse de la question en parlant du concept de réalité, d’institution et de la liaison entre le Droit, le langage et l’ordre instituitionnel et aussi en utilisant des théories contenues dans les oeuvres de profissionnels du Droit et de la Philosophie, et encore en faisant un rapport avec l’oeuvre cinématographique Nell (1994) et le point de vue des personnes du domaine juridique qui ont répondu une enquête pour courrier électronique sur le thème. MOTS-CLÉS: réalité; langage; interprétation; édification; Droit.


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1. Introdução Realidade é tudo que nos cerca, desde os pequenos objetos de uso cotidiano até as mais diversas relações que podem vir a estabelecer em nossa vida. Sobretudo, ela é a maneira pela qual apreendemos e explicamos esses objetos e relações. Entretanto, como os seres humanos têm maneiras diferentes de interpretar o que se apresenta diante deles – seja pelos sentimentos, seja pela carga de conhecimentos que possuam – a realidade apresenta-se de uma maneira diferente para cada indivíduo, para cada grupo. Existem as realidades cotidianas, científicas, filosóficas, entre outras, dependendo da forma que se utiliza para explicar o que há ao nosso redor. A realidade não é apenas o que já existe antes do homem – a natureza -, mas também é construída pelo homem à medida que ele faz esse trabalho de apreensão e interpretação do mundo, e também sua transformação, seja materialmente, seja por meio das idéias, dos valores, dos pensamentos. Assim, realidade é composta por objetos culturais (construídos pelo homem, seja materialmente, seja no campo dos pensamentos) e objetos naturais (a natureza em si). Um dos inúmeros fatores que influenciam na sua compreensão e interpretação é a linguagem, fator que será explorado neste artigo: “[...] pela linguagem o mundo ganha sentido, significação.” (JÚNIOR, 1994, p. 72). Linguagem também influi na chamada ordem institucional, nas instituições, pois é através dela que se edificam e são mantidas à medida que a linguagem é um instrumento de sua legitimação. Essa ordem é construída pelo homem visando facilitar e organizar a sua existência, e dentro dela encontraremos um importante componente para a sua composição: o Direito. Tendo em vista que o Direito e a linguagem possuem uma ligação visceral, já que o Direito depende dela para transmitir, organizar e interpretar normas e fatos sociais, este artigo focar-se-á em como a linguagem é importante para edificar e manter a ordem institucional, assim como o papel do Direito. Este artigo foi elaborado com base em textos de Júnior (1994); Aranha, Martins (2004); Castro (199-?) e Nader (2006), além do filme Nell (1994) e de entrevistas realizadas por meio eletrônico com Errol Domingos Richetti1 e Alexandre George Vieira Fernandes2. 2. Linguagem construtora de realidades Como foi dito na introdução deste artigo, realidade é tudo que nos cerca, sejam objetos, pessoas, relações. Tudo que construímos, seja materialmente, seja no campo das idéias, é chamado realidade. As árvores, a terra, o mar, a natureza como um todo, também é realidade. Apreender cada objeto, cada relação, é uma ação executada por todo o ser humano, e que depende de fatores como percepção, experiência e conhecimento. Cada pessoa possui um nível próprio desses fatores, assim sendo, essa apreensão se dá de diferentes maneiras, ocasionando várias visões da realidade. São pontos de vista distintos sobre um mesmo objeto. Por exemplo, olhando para a figura 1, supondo que nunca se havia visto tal imagem, a maioria das pessoas veria apenas um rosto. No entanto, no momento que se dissesse que, na verdade, o que se vê é uma palavra, a maneira como se olha a figura se altera. Alguns identificariam algumas vogais e consoantes, mas talvez não fizessem sentido algum. Tendo um pequeno conhecimento de inglês, notar-se-ia que a palavra é “liar” (mentiroso): mudou-se a maneira de ver um objeto, que passou de uma figura para uma palavra.

Bacharel em Ciências Contábeis pela Faculdade Porto Alegrense de Ciências e Letras, bacharel em Direito pela Pontifícia Universidade Católica, Rio grande do Sul. Nomeado pela Superintendência de Seguros Privados (SUSEP) para exercer cargo de Liquidante Extrajudicial (L.E.J) do ex-montepio da família militar atual Montepio MFM em L.E.J, Porto Alegre- RS. 2 Agente da Polícia Federal, formado em Ciências Jurídicas e Sociais, pelo Instituto Cenecista de Ensino Superior de Santo Ângelo (IESA), Santo Ângelo - RS. 1

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Figura 1: palavra “liar” ou um rosto?

Fonte: Site SAP design guild

Mudando-se a perspectiva, e algumas informações, o mundo apresenta-se de uma nova maneira. Portanto, a realidade não é uma, é plural, conforme observação de Júnior (1994). Realidade só é realidade a partir do momento que a entendemos como tal, quando damos significado a cada objeto. Portanto, o homem não é um ser passivo em relação ao mundo: ele o constrói, organiza e lhe dá significado. Para realizar essa ação, ele se utiliza da linguagem. A linguagem é simbólica, estruturada, adequada à cultura dentro da qual se desenvolve, adequada ao tipo de pensamento que vai comunicar/expressar; permite que o ser humano vá além do mundo vivido, do presente, para o mundo das idéias, da reflexão; permite que ele ultrapasse a sua realidade de vida e entre no mundo das possibilidades. Que exerça, enfim, a atividade produtiva de criar sentidos para o mundo e para a sua própria vida. (ARANHA; MARTINS, 2004, p. 34)

A linguagem pode ser constituída de signos não-verbais – desenhos e sons, por exemplo – e verbais, que são as palavras. Através da linguagem, o indivíduo não só se comunica com os seus semelhantes, mas constrói seu próprio mundo onde gestos, palavras, sons, entre outras formas de linguagem, possuem um significado próprio, que pode ser comum ao resto da sociedade bem como possuir um significado que só esse indivíduo compreenda por completo. No filme Nell, filme de 1994 dirigido por Michael Apted com Jodie Foster como Nell, a personagem principal, que dá nome ao filme, vive isolada no meio da floresta e desenvolve uma linguagem própria, não compreendida de início pela sociedade, mas que possui um significado para Nell. Ela se utiliza da mímica, da dança e palavras únicas para se comunicar e atribuir significado às pequenas coisas da sua vida, contribuindo uma realidade diferente da dos médicos e psicólogos com que entrará em contato no decorrer da trama. Esse filme ilustra como a linguagem organiza e coordena o mundo, possibilitando sua interpretação das mais diferentes formas.

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Figura 2: Nell

Fonte: Site Adorocinema.com

Nell tinha uma percepção de mundo única, então a linguagem dela também era única, correspondendo aos seus pensamentos, aos seus pontos de vista, sua experiência de vida, gerando uma interpretação singular do mundo. Assim, a realidade é produto da interação entre o mundo físico, o mundo das idéias e o sistema utilizado para interpretá-lo: a linguagem. 3. A linguagem e a edificação das instituições Entende-se por instituição um sistema organizado de padrões de comportamento relativamente permanentes, que tem por função organizar e atender as necessidades básicas da sociedade. Forma-se assim que certas ações tornam-se padronizadas e podem ser executadas por outros. Decorre de padrões que se estabelecem entre os indivíduos, que assumem determinados papéis e, à medida que eles vão sendo transmitidos a outros, que poderão realizá-los em seu lugar, temos uma instituição. As instituições, quando formadas, possuem um corpo de normas e esquemas que justificam e explicam a sua existência. Ou seja, elas precisam ser legitimadas. Seja qual for a instituição – jurídica, militar, familiar, por exemplo – ela terá um conjunto de conhecimentos que integrará seus vários setores em uma dada ordem – a ordem institucional –, e esses conhecimentos procuram, sem pragmatismo, explicar e justificar a existência dessa ordem institucional, seus papéis, ações, a própria instituição. Esse conjunto de conhecimentos é o que se conhece por universo simbólico. As instituições podem ser legitimadas de várias maneiras, como através da rotina, conhecimentos rudimentares sobre ela, conhecimentos técnicos e através do universo simbólico, mas de nada adiantaria essa gama de conhecimentos se não houvesse uma forma de transmiti-la à sociedade. Como se conclui em Júnior (1994), a mais importante forma de legitimação da instituição é a linguagem, pois é através dela que são traçados e transmitidos seus conceitos e regras. Ela edifica as instituições e as legitima a partir do momento que é usada para fazer essa transmissão. Sem uma linguagem eficiente, seja verbal ou não, que possa ser compreendida pelos indivíduos a que se destina, a instituição não se legitima, pois não foi compreendida.

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4. A linguagem e a manutenção da ordem institucional À instituição não basta apenas ser edificada: ela precisa manter-se. Um dos processos de manutenção de uma instituição é a sua reificação. Reificar uma instituição significa dar-lhe status de coisa, como se fosse algo natural, que sempre foi do jeito que é, como se ela fosse anterior ao homem, fazendo-o esquecer-se de que ele a criou, e que pode derrubá-la. Vista como coisa natural, dificilmente uma instituição viria a cair, pois não seria contestada de forma alguma afinal, ela é naturalmente do jeito que se apresenta. Também o conjunto de teorias e normas que a legitima – desde o conhecimento mais simples até a complexidade de um universo simbólico – é importante para a sua manutenção, pois ela explica e justifica a necessidade de sua existência. Figura 3: Censura

Fonte: Site Nodo50.org

Existem outros mecanismos, que têm por objetivo não só a manutenção da instituição, mas também do seu universo simbólico que, segundo Júnior (1994) são de dois tipos: terapêuticos ou aniquiladores. No primeiro visa-se o tratamento de um indivíduo interno à área de atuação da instituição que diverge na forma de entender e/ou agir estabelecido por ela, e o segundo consiste no confronto de dois universos simbólicos em que um deles tentará fagocitar o outro através da explicação, utilizando-se de suas próprias teorias, a existência e as teorias do outro, incorporando-o ou até mesmo destruindo-o. Em todos os processos, podemos ressaltar a importância da linguagem, pois é através do discurso, e dos signos verbais e não-verbais utilizados por alguém que se pode detectar se essa pessoa ou universo concorda com uma instituição em questão, sendo possível o acionamento de mecanismos que procurem acabar com a divergência, sejam violentos ou não. Também é através da linguagem que a instituição pode conter os divergentes e aniquilar os universos simbólicos concorrentes: propaganda, discursos, livros e outras formas de pregar a defesa da instituição e sua legitimação.

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Por isso em regimes totalitários tinha-se tanta preocupação com os discursos, propagandas, literatura, música, a imprensa e as notícias e idéias difundidas por eles, pois a linguagem, da mesma forma que pode ajudar na manutenção de uma ordem, pode também causar a sua derrocada. Esse é o porquê da censura de meios de comunicação, artistas e intelectuais. 5. O direito e as suas relações com a linguagem e a ordem institucional Direito possui inúmeros conceitos, que transitam por vários campos do conhecimento. Existem conceitos sociológicos, filosóficos, científicos, entre outros. O Direito, como a realidade, possui várias maneiras de ser enxergado. Seja qual for, no entanto, depende inevitavelmente da linguagem para ser transmitido, do discurso. Examinando o Direito Romano, sabemos que, na sua origem, o direito não era um código de normas legais. Direito era um ato solene no qual o juiz pronunciava uma fórmula pela qual duas partes em conflito solucionavam a lide. Direito era uma linguagem solene de fórmulas conhecidas pelo árbitro e reconhecidas pelas partes conflitantes em juízo. Era um juramento pronunciado pelo juiz. (CASTRO, 199-?)

O Direito no Brasil encontra-se escrito e codificado, mas o discurso, bem como a linguagem utilizada para expressá-lo, ainda tem notável importância. Em todo campo de conhecimento, em todas as profissões, há uma linguagem própria, com termos e expressões que em princípio nada significariam – ou possuiriam um significado duvidoso – a quem não pertencesse ou não tivesse o mínimo de conhecimento da área. O direito não é exceção. Como em toda atividade humana, a linguagem é o meio natural de comunicação e no Direito não poderia ser diferente. Há, pois uma linguagem própria (técnica) para o meio jurídico nem sempre de todo entendida pelo leigo, principalmente na interpretação (um professor usava o termo “exegese” da lei). 3

A lei escrita nada mais é que a utilização de um signo verbal buscando traduzir uma idéia, como toda a linguagem. A própria interpretação desses signos utilizar-se-á dela, seja por meio do discurso oral, seja por meio da expressão escrita. Desde a elaboração das leis até a sua aplicação, há uma preocupação com a linguagem utilizada. Vocábulos, termos e expressões devem ser escolhidos com cuidado pois segundo Nader (2006, p. 228) “Um texto de lei mal redigido não conduz à interpretação uniforme. Distorções de linguagem podem levar igualmente a distorções na aplicação do Direito”. Na interpretação da lei também se exige uma linguagem especial. Ao se interpretar uma lei busca-se revelar o sentido das expressões utilizadas em sua redação para que, em conjunto com todos os dados relativos a um caso concreto, seja devidamente aplicada. A finalidade da interpretação consiste em proporcionar ao espírito o conhecimento do Direito. Não se restringe à análise do Direito escrito: lei, medida provisória e decreto, mas se aplica também a outras formas de manifestação do Direito, como as normas costumeiras.(NADER, 2006, p. 225).

Como na redação da lei, é necessário que se dispense atenção especial à linguagem utilizada na interpretação do Direito, seja por meio do discurso oral, seja no escrito. Discursos jurídicos extremamente rebuscados e repletos de aforismos podem ser esteticamente bonitos, perfeitos, mas de nada servirão se não expressarem de maneira correta as idéias que precisam ser expressas. “A sobriedade, simplicidade, clareza e concisão devem ser notas dominantes do estilo jurídico. A preocupação fundamental que deve inspirar ao legislador há de ser a clareza da linguagem e a sua correspondência ao pensamento.” (NADER, 2006, p. 228). Um dos grandes desafios enfrentados pelo Direito, por causa de sua linguagem técnica e certas expressões utilizadas nos materiais jurídicos – entre elas as expressões em latim -, é se fazer entender pelos leigos. Há quem hesite e até desista de seus objetivos quando precisa recorrer ao sistema jurídico, mesmo sendo auxiliado por um advogado, simplesmente por não compreender o que exatamente leis, documentos e certos procedimentos são. 3

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Informação obtida através de questionário em meio eletrônico respondido por Errol Domingos Richetti no dia 24/07/2006.

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Quando questionado sobre a essa situação, Alexandre George Vieira Fernandes respondeu: Acredito que entre os profissionais do Direito, Advogados, Magistrados, Promotores, Desembargadores e demais funcionários ligados a esta área devem todos usar linguagem técnica, pois estão todos preparados e familiarizados com tal vocábulo. Assim como, quando estes profissionais tiverem contatos com a sociedade em geral, não devem esquecer-se que grande parte dos indivíduos são leigos, [...] então estes profissionais devem se valer de um vocabulário mais objetivo e simples, a fim de se fazer entender e serem entendidos, criando quem sabe um vínculo maior de confiança entre a sociedade e o poder judiciário.4

O Direito possui fins, entre eles o bem-comum das pessoas que vivem em determinada sociedade. Para tanto, ele não apenas regulará as relações entre os indivíduos, mas regulará a própria ordem institucional e garantirá sua manutenção. Entre os vários ramos do Direito, podemos citar o Direito Constitucional, que tem a Constituição como instrumento de estudo. Nela, além de haver artigos referentes às garantias individuais dos indivíduos, há inúmeros artigos tratam sobre o Estado, a ordem institucional, os alicerces das instituições. Também há o Direito Administrativo, que se voltará para a administração, regulamentação e ordenamento do serviço público, seus administradores e demais órgãos. O Direito não se isenta no que tange à ordem institucional. Ele [o Direito] alicerça, auxilia a manutenção da ordem, da obediência à própria legalidade da presença e execução das leis. No que tange a promover a manutenção da ordem institucional, é fundamental pois garante a estabilidade de um regime democrático e a legitima, perante toda a sociedade da nação e também no cenário internacional. Quanto a transformar a ordem institucional, é também circunstancial. Quando houver necessidade para tal e um prenúncio de tal momento, vem do anseio da sociedade, através geralmente da sua manifestação pública. A meu ver é este o momento em que se moderniza para melhor o andamento da ordem institucional através da reforma das legislações vigentes, a fim de que nós, como sociedade, tenhamos instrumentos mais atualizados e eficazes na elaboração de uma ordem social mais justa.5

6. Conclusão Através da linguagem, o homem não apenas dá um nome ao que o cerca e se comunica com os seus semelhantes. Ela é muito mais complexa que isso: ela organiza e dá significado ao mundo, desde os pequenos objetos até as mais complexas relações humanas. É com o auxílio dela que o ser humano constrói a realidade, pois é por meio dela que ele é capaz de percebê-la e interagir com ela. Embora ele o possa fazer da maneira material, é com ela que ele pode se utilizar da racionalidade para compreender e alterar o mundo real. No que tange a relação entre linguagem e ordem institucional, conclui-se que é instrumento fundamental para sua edificação e manutenção, pois se utiliza da linguagem, verbal ou não-verbal, para transmitir regras e conceitos de determinada instituição e para mantê-la: de nada adiantaria uma instituição ter um complexo universo simbólico se não pode comunicar a ninguém todos os conhecimentos que possui para explicar e justificar sua existência na sociedade. A linguagem, da mesma forma que pode edificar e promover a sua manutenção, também pode causar a sua derrocada, pois pode tanto transmitir idéias que a favoreçam quanto que lhe contradigam. Quanto ao Direito e a linguagem, constata-se que estão intimamente ligados já que a linguagem é instrumento essencial na redação, aplicação e interpretação das normas jurídicas. Por meio dela o profissional de Direito comunica-se com seus pares e com a sociedade em geral. Entretanto, como a linguagem jurídica trata-se de uma linguagem técnica que muitas vezes não é entendida por leigos, vêse a necessidade da utilização de uma linguagem mais clara quando o profissional estiver em contato com pessoas desconhecedoras da mesma. Relacionando o Direito com a ordem institucional, segundo as palavras de Errol Domingos Richetti, “[...] Promover a sua manutenção e aperfeiçoá-la é dever dos que legislam para que o judiciário ao aplicá-la [a lei] no caso concreto, solucione a lide e propicie o desenvolvimento e bem estar do povo.” 6 Informação obtida através de questionário em meio eletrônico respondido por Alexandre George Vieira Fernandes no dia 27/07/2006. Informação obtida através de questionário em meio eletrônico respondido por Alexandre George Vieira Fernandes no dia 27/07/2006 6 Informação obtida através de questionário em meio eletrônico respondido por Alexandre George Vieira Fernandes no dia 27/07/2006 4 5

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Portanto, o Direito não se isenta no que diz respeito à ordem institucional. Ele é atuante, seja para promover a sua manutenção, seja para o seu aperfeiçoamento. Referências ARANHA, Maria Lúcia de Arruda; MARTINS, Maria Helena Pires. Filosofando: introdução à filosofia. 3. ed. revista. São Paulo: Moderna, 2003. CASTRO, Lincoln Antônio de. Direito e linguagem. Niterói, [199-?]. IN: Seção de Artigos da Universidade Federal Fluminense. Disponível em: <http://www.uff.br/direito/artigos/lac-04.htm>. Acesso em: 24 de julho de 2006. CENSURA.JPG. Disponível em: <www.nodo50.org/eltransito/articulos/bigote.htm>. Acesso em: 20 de julho de 2006. JÚNIOR, João Francisco Duarte. O que é realidade. 10. ed. São Paulo: Brasiliense, 1994. LIAR.JPG. Disponível em: <www.sapdesignguild.org>. Acesso em: 19 de julho de 2006. NADER, Paulo. Introdução ao estudo do direito. 26. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2006. NELL. Direção de Michael Apted. Produção de Jodie Foster e Renée Missel. Estados Unidos da América: 20th Century Fox; PolyGram Filmed Entertainment; Egg Pictures, 1994. 1 videocassete. NELL.JPG. Disponível em: <http://adorocinema.cidadeinternet.com.br/filmes/nell/nell.htm>. Acesso em: 29 de julho de 2006.

ANEXO Questionário enviado por correio eletrônico aos entrevistados e respondido pelos entrevistados em 27 de julho de 2006: 1) Nome, idade e credenciais ( formação, onde se formou e atual posto). 2) Qual a importância da linguagem no meio jurídico? 3) Para o senhor, qual o papel do Direito em relação à ordem institucional? Transformá-la, promover sua manutenção? Justifique. 4) Antes de começar a exercer a atividade jurídica, qual a visão que se possuía do Direito e a função da atividade jurídica na sociedade? 5) O senhor acredita que o vocabulário usado pelos profissionais do Direito é usado como forma de restrição ou até mesmo de exclusão ao acesso à justiça? Respostas: 1° Entrevistado: 1) Nome, idade e credenciais ( formação e atual posto). ERROL DOMINGOS RICHETTI, 62 anos, Bacharel em Ciências Contábeis CRC/RS.24448 e em Direito - OAB/RS Nº 33851. Nomeado pela SUPERINTENDÊNCIA DE SEGUROS PRIVADOS SUSEP para exercer o cargo de Liquidante Extrajudicial do ex-MONTEPIO DA FAMILIA MILITAR atual Montepio MFM em L.E.J. Em Contábeis, me formei pela Faculdade Porto Alegrense de Ciências e Letras e em Direito, pela PUC/RS. 2) Qual a importância da linguagem no meio jurídico? Como em toda a atividade humana, a linguagem é o meio natural de comunicação e no direito não poderia ser diferente. Há, pois uma linguagem própria (técnica) para o meio jurídico nem sempre de todo entendida pelo leigo, principalmente na interpretação (um prof. usava o termo “exegese” da lei. 3) Para o senhor, qual o papel do Direito em relação à ordem institucional? Transformá-la, promover sua manutenção? Justifique. A aplicação da lei na ordem institucional é a garantia de todo o cidadão. Promover a sua manutenção e aperfei-

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Tema geral: Línguas e Literaturas: Diversidade e Adversidades na América Latina çoá-la é dever dos que legislam para que o judiciário ao aplicar-la no caso concreto, solucione a lide e propicie o desenvolvimento e bem estar do povo. 4) Antes de começar a exercer a atividade jurídica, qual a visão que se possuía do Direito e a função da atividade jurídica na sociedade? Era apenas a visão do leigo que, ao imaginar ter os seus direitos ofendidos, busca e exige a reparação, porém, sem a consciência ou conhecimento da legislação, pode não ter o direito e nem ter sido ofendido. Em muitas vezes, imagina que um privilégio seja um direito. 5) O senhor acredita que o vocabulário usado pelos profissionais do Direito é usado como forma de restrição ou até mesmo de exclusão ao acesso à justiça? Não. Em todas as profissões há uma identidade na comunicação, uma linguagem técnica usada pelos aplicadores do direito na comunicação e no trato com o judiciário. Isto não significa exclusão ao acesso à justiça. Particularmente, entendo que o uso de expressões rebuscadas e palavras fora do uso comum tornam o entendimento da sentença ou do trabalho realizado, dificultam a compreensão pelo leigo, mas não o exclue do acesso. 2° Entrevistado: 1) Nome, idade e credenciais ( formação e atual posto). Alexandre George Vieira Fernandes, Agente de Polícia Federal, formado em Ciências Jurídicas e Sociais, pelo IESA (Santo Ângelo/RS). 2) Qual a importância da linguagem no meio jurídico? É a mesma importância em qualquer segmento profissional, pois o bom senso da língua portuguesa é fundamental para que o indivíduo façam-se entender, evitando mal entendimento daquilo que se diz, daquilo que formaliza na expressão oral. 3) Para o senhor, qual o papel do Direito em relação à ordem institucional? Transformá-la, promover sua manutenção? Justifique. Ele alicerça, auxilia a manutenção da ordem, da obediência a própria legalidade da presença e da execução das leis. No que tange a promover a manutenção da ordem institucional, é fundamental pois garante a estabilidade de um regime democrático e a legítima, perante toda a sociedade da nação e também no cenário internacional. Quanto a transformar a ordem institucional, é também circunstancial. Quando houver necessidade para tal é um prenuncio de tal momento, vem do anseio da sociedade, através geralmente da sua manifestação pública. A meu ver é este o momento em que se moderniza para melhor o andamento da ordem institucional através da reforma da legislações vigentes, afim de que nós como sociedade, tenhamos instrumentos mais atualizados e eficazes na elaboração de uma ordem social mais justa. 4) Antes de começar a exercer a atividade jurídica, qual a visão que se possuía do Direito e a função da atividade jurídica na sociedade? Apesar de não exercer atividade jurídica, desde jovem com atividade policial tive relação direta com legislação penal. Como normativa, principalmente no que nestes anos todos o Direito Penal acompanhou-me, claro, fundamenta-se todo o processo na obediência e limites das atitudes dos indivíduos a fim de que estes não cometam qualquer ato a seu bel prazer, agindo de forma primitiva. Insana. Nisso inclui-se a função da atividade jurídica na sociedade, dizendo que não pode ser feito a fim de que todos nós sobrevivamos e não nos exterminemos mutuamente. 5) O senhor acredita que o vocabulário usado pelos profissionais do Direito é usado como forma de restrição ou até mesmo de exclusão ao acesso à justiça? Acredito que entre os profissionais do Direito, Advogados, Magistrados, Promotores, Desembargadores e demais funcionários ligados a esta área devem todos usar de linguagem técnica, pois estão todos preparados e familiarizados com tal vocábulo. Assim como, quando estes profissionais tiverem contatos com a sociedade em geral não devem esquecer-se que grande parte destes indivíduos são leigos, são desconhecedores do direito e por consequência desconhecem o vocábulo técnico de tal área, então este profissionais devem se valer de um vocabulário mais objetivo e simples, a fim de se fazer entender e serem entendidos, criando quem sabe um vínculo maior de confiança entre a sociedade e o poder judiciário.

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Escrever na era da internet

Izabel Cristina Rodrigues SOARES (Universidade Federal do Pará) Lilia Silvestre CHAVES (Universidade Federal do Pará)

RESUMO: Neste artigo serão apresentadas algumas reflexões sobre a escrita na tela, particularmente sobre o papel dos recursos tecnológicos – sobretudo daqueles que são oferecidos pela internet – no desenvolvimento da habilidade de produção escrita em francês língua estrangeira (FLE). Trata-se de um trabalho de investigação desenvolvido no âmbito da pesquisa “Ler e escrever na era da Internet”, cujo objetivo é identificar as especificidades da escrita na tela para, futuramente, propor, com base em algumas possibilidades oferecidas pela informática, práticas pedagógicas inovadoras de modo a desenvolver uma certa autonomia em situações de escrita em alunos de FLE. PALAVRAS-CHAVE: Escrita; tela; internet; FLE.


Anais do II Congresso Internacional de Estudos Linguísticos e Literários na Amazônia (CIELLA) E por aí se vê como a máquina também pode bem servir ao homem. O que era duro e fatigante – transpor períodos, riscar, refazer – tornou-se agradável mister executado à feição e rapidamente, pelo, às vezes desobediente bichinho eletrônico, na falta de suficiente capacidade minha para bem conduzi-lo. Benedito Nunes

Já se tornou lugar comum afirmar que a internet, novo suporte de leitura e de escrita, está promovendo mudanças nos modos de ler e escrever. Muitos estudos e reflexões sobre o assunto têm sido realizados em diferentes esferas do conhecimento – no campo da filosofia, da história, da literatura, da linguística. Entretanto, um balanço geral sobre essas pesquisas parece revelar que a preocupação com a leitura na era da internet tem suplantado a preocupação com a escrita. Se, por um lado, encontramos um número significativo de estudos sobre as especificidades da leitura na tela, em que conceitos como “escrileitura”, “leitura hipertextual”, “leitor-navegador”, “leitor-internauta” explicam as relações entre o leitor e o texto-tela, assim como as especificidades e peculiaridades da leitura no mundo virtual, por outro lado, ainda são poucos os estudos sobre o processo de escrita na tela. No entanto, do mesmo modo que se pode questionar a respeito da leitura na tela, é possível levantar algumas indagações a respeito do gesto de escrever na tela. Além das diferenças quanto à dimensão física dos gestos – desenhar traços escritos, com uma caneta ou um lápis, em uma folha de papel não é a mesma coisa que digitar letras em um teclado –, deve certamente haver outras diferenças. É exatamente a preocupação de identificar as características do gesto de escrever na tela que está na origem deste estudo. Escreve-se na tela da mesma maneira que se escreve no papel? Há especificidades na dinâmica cognitiva que caracterizam os processos redacionais quando se escreve na tela? A escrita na tela perde a fixidez da escrita no papel, tornando-se mais facilmente manipulável? O distanciamento imposto pela tela cria uma distância favorável à correção e à revisão do texto que se escreve? Os recursos oferecidos pela internet facilitam a escrita na tela? Se facilitam, em que medida ocorre essa facilitação? As reflexões que apresentaremos aqui resultam da busca de respostas a algumas dessas indagações e inserem-se no plano da pesquisa “Ler e escrever na era da Internet”. O objetivo central deste estudo é identificar as especificidades da escrita na tela, para, futuramente, propormos, com base em algumas possibilidades oferecidas pela informática, práticas pedagógicas inovadoras de modo a levar alunos de FLE a desenvolver uma certa autonomia em situações de escrita. Começaremos por revisar questões relativas à produção escrita de um modo geral – processos, saberes e conhecimentos que dizem respeito a essa atividade que ainda é o bichopapão para muitos alunos tanto em língua materna (LM), quanto em língua estrangeira (LE). Em seguida, discutiremos algumas dificuldades que caracterizam particularmente a produção escrita em LE. Logo após, procuraremos apresentar algumas especificidades da escrita na tela, com base na análise das respostas a um questionário aplicado a alunos recém-formados e a alunos que estão no penúltimo semestre do Curso de Letras, habilitação em francês, da Universidade Federal do Pará (já tendo cursado todos os níveis de língua), e discorreremos sobre o papel dos recursos tecnológicos – sobretudo daqueles que são oferecidos pela Internet – no desenvolvimento da habilidade de produção escrita em francês língua estrangeira (FLE). A produção escrita As pesquisas desenvolvidas em torno da produção escrita,1 tanto em LM quanto em LE, têm suscitado hipóteses relevantes concernentes (i) às características dos textos produzidos, (ii) ao funcionamento das capacidades/habilidades redatoras em um adulto expert, (iii) à diferença quanto às habilidades de escrita entre redatores competentes e redatores iniciantes (redatores experientes x redatores inexperientes), (iv) à didática da produção escrita.2 As pesquisas sobre produção escrita situam-se em diferentes campos teórico-metodológicos: pedagógico, linguístico, psicolinguístico, sociológico, entre outros. 2 Essas diferentes abordagens revelam-nos antes de qualquer coisa a complexidade de se lidar com esse domínio de estudo, levando-nos à conclusão de que uma abordagem multidisciplinar tem o interesse e a vantagem de fornecer elementos complementares que permitem melhor compreender a natureza da atividade redacional. 1

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Tais pesquisas têm demonstrado, entre outras coisas, que a escrita não é uma simples técnica de transcrição da oral, tampouco uma questão de inspiração ou de dom reservado a poucos eleitos, nem uma fórmula mágica do tipo pensou/escreveu. Escrever um texto é uma tarefa complexa que diz respeito a mecanismos complexos em que diferentes processos e operações cognitivas entram em jogo. Há, na produção escrita, um processo de comunicação entre aquele que escreve e seu(s) destinatário(s). Só que a realização material da função comunicativa nas atividades de produção escrita opera-se diferentemente do oral dialógico: apesar de haver similitudes entre oral e escrita, existe uma ordem escritural e uma ordem oral. Diferentemente da expressão oral, a escrita é uma comunicação a distância, visto que escrever é, via de regra, transmitir uma mensagem a um interlocutor ausente. A não-presença do interlocutor traz certas consequências que podem parecer, à primeira vista, desfavoráveis à escrita: aquele que escreve, além de precisar explicitar elementos de um contexto situacional não partilhado, é obrigado a construir a imagem de um destinatário (suas ações e reações diante do texto) de modo coordenado com o processo de textualização, sem nenhuma possibilidade de ajuste a curto prazo. A produção escrita também diz respeito a um processo cognitivo: a escrita é fruto de um trabalho de busca de ideias, formulação e reformulação, reescrita. Antes da escrita na tela, em que o gesto de deletar não deixa vestígios do trabalho daquele que escreve, pesquisas feitas com base na análise de borrões demonstraram que quem escreve para, pensa, relê, apaga ou risca, corrige, substitui, reformula, reescreve. Isso ocorre porque na escrita pode-se controlar – com rédeas curtas – aquilo que já foi escrito. Esse processo de construção, desconstrução e reconstrução envolve a mobilização simultânea de várias operações intelectuais: é preciso saber o que se vai dizer, pensar o conjunto do texto, colocálo em frases, em parágrafos; é preciso assegurar a coerência entre as frases, entre os parágrafos; é preciso antecipar as reações do leitor de modo a avaliar a pertinência das escolhas feitas. Em uma descrição sucinta, podemos apontar três grandes componentes no processo de produção escrita: (i) formulação – geração/busca/organização de ideias, segundo os objetivos estabelecidos, e adequação ao destinatário; (ii) execução ou textualização (redação propriamente dita) – gestão das restrições textuais globais e locais; (iii) revisão, releitura, avaliação, detecção de problemas e ajustes (muitas vezes com retorno às etapas precedentes para proceder a reformulações e correções). Cada um desses componentes envolve, portanto, outros subcomponentes, igualmente importantes do ponto de vista do esforço cognitivo empreendido (GARCIA-DEBANC, 1986; CHAROLLES, 1986). Ora, a realização dessas operações implica saberes de diferente natureza: (i) saberes necessários para escrever (saber o assunto, saber planejar, saber elaborar objetivos para a execução da tarefa, saber mobilizar e selecionar informações pertinentes e adequadas aos propósitos comunicativos, saber organizar as ideias de acordo com o que foi planejado, saber adequar o texto ao destinatário e aos propósitos comunicativos, saber determinar uma trama); (ii) saberes sobre o escrever, ou seja, saberes sobre o funcionamento da escrita (saber distinguir os diferentes gêneros e tipos de texto, saber quais são as funções do título em diferentes tipos de escrita, saber ajustar as diferentes formas de tematização, saber controlar as redes anafóricas). Evidentemente, vários tipos de conhecimento participam dessa dinâmica cognitiva própria dos processos redacionais: conhecimentos situacionais, temáticos, retóricos, linguísticos, textuais. Durante a escrita, esses diferentes tipos de conhecimento articulam-se em uma combinação que se deve ajustar à tarefa executada e resultar em um texto inteligível. A produção escrita em LE A produção escrita em LE apresenta alguns traços adicionais em relação à que se opera em LM. Há certamente dificuldades que são específicas da escrita em uma LE. Se, por um lado, numerosas competências em LM podem, em princípio, ser transferidas à escrita em LE, por outro lado, há limitações de natureza linguística, sobretudo nos planos lexical e sintático, que tornam

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mais lento (e mais difícil) o processo de produção, porque geram sobrecarga cognitiva. No nível sintático, por exemplo, é necessário passar do sintagma à frase, da frase ao período, do período a sequências mais longas, procurando-se sempre respeitar as combinações permitidas pela LE. É preciso ainda evitar recorrer a expressões ou construções calcadas na LM.3 Observa-se também que muitos alunos não conseguem recorrer, em situações de escrita em LE, a estratégias de produção textual que, em princípio, já deveriam ter sido automatizadas em LM. Ademais, cada língua tem características retóricas próprias que o aluno de LE ainda não conhece muito bem, sem esquecer as dificuldades de ordem sociocultural que podem enfrentar aqueles que estão aprendendo uma nova língua e sua cultura. Há um certo consenso, nas pesquisas sobre a relação entre competência redacional e domínio linguístico, em torno de alguns dados. Verificou-se, por exemplo, que os redatores adultos apóiam-se mais frequentemente em suas habilidades redacionais em LM durante uma tarefa de produção escrita em LE (BARBIER, 2003). Aqueles que já desenvolveram uma competência redatora em LM, embora ainda tenham pouco domínio linguístico na LE, conseguem mais facilmente e mais frequentemente ativar as operações de planejamento (concepção/mobilização de conhecimentos relacionados ao tema a ser desenvolvido, organização dos conhecimentos de acordo com uma ordem cronológica ou hierárquica, e um eventual reajuste ou adequação em função do objetivo inicial e do destinatário real ou potencial). Alguns autores enfatizam inclusive uma certa independência das habilidades redacionais em relação ao domínio linguístico na LE. O modelo desenvolvido por Cummins (1980 apud BARBIER, 2003) postula a existência de uma competência redacional comum a todas as línguas.4 Segundo essa concepção, as habilidades de escrita em LE dependeriam, em parte, da competência redacional em LM. Observou-se que alunos que tinham desenvolvido uma sólida competência redacional em sua língua nativa eram capazes de transferir as estratégias de escrita em LM a diferentes tarefas de produção textual em LE, sendo capazes inclusive de adaptá-las a diferentes tarefas de escrita (escrita de cartas, resumos, composições mais sofisticadas). Tais pesquisas postulam, entretanto, que, apesar de uma relativa independência da competência redacional, para haver transferência dessas habilidades de uma língua a outra, há evidentemente necessidade de um limiar de competência linguística. Em outras palavras, para o aluno poder transferir as habilidades redacionais adquiridas em LM a uma situação de escrita em LE, é fundamentalmente necessário ter atingido um determinado nível de competência linguística na LE, tanto no plano lexical, quanto no plano sintático, sob pena de limitar sua expressão (BARBIER, 2003). Por um lado, a quantidade de ideias expressas pode ser reduzida pela limitação do repertório lexical e sintático do aluno (YAU, 1991 apud BARBIER, 2003). Por outro lado, a realização de tarefas redacionais também pode ser limitada, já que depende da capacidade do redator de gerar, cognitiva e linguisticamente, grandes partes do texto a ser produzido (TING, 1996 apud BARBIER, 2003). Tem-se verificado também que um maior domínio linguístico leva o aluno a propor reformulações ou correções mais adequadas no momento em que relê ou reescreve seu próprio texto. Em outras palavras, quanto mais domínio linguístico tiver o aluno em LE, tanto mais chances terá de desenvolver habilidades retóricas e estilísticas nessa língua. É possível identificar, portanto, semelhanças e diferenças entre a produção escrita em LM e em LE. O modelo geral das estratégias de escrita desenvolvidas e a operacionalização dos processos de planejamento e revisão são semelhantes: - a organização e a gestão dos objetivos; - a alternância entre pausa e escrita; - a sequencialidade ou a recursividade dos processos de composição; Observam-se muitos problemas que resultam do emprego de expressões calcadas na LM ou mesmo de estruturas/ construções calcadas na LM. “Isto não importa” e “cela n’importe (pas)”, “cela ne fait rien”. 4 Common underlying proficiency (CUP). 3

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- a ativação de procedimentos de planejamento equivalentes (tempo reservado à pesquisa e à seleção de ideias, à elaboração de objetivos, ao tratamento da organização do conjunto das ideias, antes e durante a escrita); - estabilidade na maneira de revisar os diferentes níveis do texto, forma e fundo (nas duas línguas, ocorrem revisões semânticas e gramaticais). Essas similaridades indicariam a existência de um sistema de planejamento, de revisão e de controle já consolidado em LM e transferido para a tarefa de redação em LE. Entretanto, tais pesquisas também revelaram que a transferência é um processo bidirecional e interativo entre as duas línguas: também há repercussão na LM das competências desenvolvidas na LE (BARBIER, 2003). Quanto às diferenças, as tarefas de escrita em LE são percebidas pelos alunos como mais difíceis, mais árduas, enfim, são percebidas como se exigissem um esforço cognitivo maior e um tempo maior para serem realizadas, traduzido em um tempo maior para a execução das tarefas. Os processos de formulação são considerados prioritários: é dispensada uma atenção particular ao tratamento lexical e morfossintático, em detrimento da dimensão textual e retórica (BARBIER, 2003). Observa-se uma diminuição do número de ideias planejadas e efetivamente incorporadas ao texto. Conscientes de suas limitações expressivas na LE, impostas por um domínio insatisfatório nessa língua, os alunos diminuem a quantidade de ideias que pretendiam expressar e fazem muitas repetições em seus escritos. Isso se reflete evidentemente em um número menor de palavras na produção em LE (pobreza lexical, pouca densidade informativa). Daí pode advir um grave problema para o desenvolvimento dessa habilidade por si só tão complexa: o aluno, vítima de um bloqueio de expressão, não ousa liberar sua imaginação, sua criatividade, ou sua criticidade, não ousa expressar plenamente suas ideias. Algumas vezes, para compensar a falta de correspondentes linguísticos, os alunos recorrem a termos ou expressões na LM na tentativa de gerar ideias e aperfeiçoar sua escrita. Outra diferença importante diz respeito ao processo de revisão: há geralmente mais episódios de revisão em LE, porque os redatores acabam intensificando seus esforços para que seu texto reflita seus objetivos de escrita. Esse fenômeno também ilustra a preocupação daqueles que escrevem em LE pelos aspectos formais de sua produção. Essa preocupação leva-os a concentrarem-se de tal forma em aspectos formais que acabam inibindo sua capacidade de pensar o seu texto em um nível maior, mais global, mais macro, deixando de lado a dimensão textual-discursiva (BARBIER, 2003). Tais pesquisas também constataram, no plano da formulação, produções mais fragmentadas, com frequentes interrupções nas fronteiras de orações, no interior de orações, entre palavras (BARBIER, 2003). A produção escrita em uma língua estrangeira é, portanto, um modo específico de comunicação que requer novas habilidades, podendo inclusive provocar uma reorganização nas competências já existentes. Por isso, nas situações de escrita em LE, mais ainda do que em LM, é necessário refletir tanto sobre as operações intelectuais necessárias à produção, quanto sobre a necessidade de uma observação cuidadosa das marcas de superfície e da maneira como essas marcas se articulam de acordo com o tipo de texto que se quer / se deve construir. A escrita na tela, escrever na era da internet Hoje parece ter se tornado comum, entre jovens estudantes universitários, a preferência por escrever diretamente na tela a escrever no papel. Por isso, surgem novos questionamentos referentes à produção escrita. Escreve-se na tela da mesma maneira que se escreve no papel? Há especificidades na dinâmica cognitiva que caracteriza os processos redacionais quando se escreve na tela? A escrita na tela perde a fixidez da escrita no papel, tornando-se mais facilmente manipulável? O distanciamento imposto pela tela cria uma distância favorável à correção e à revisão do texto que se escreve? Os recursos oferecidos pela internet facilitam a escrita na tela?

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Na tentativa de avaliar até que ponto a mudança de suporte influencia as estratégias e os processos redacionais, decidimos aplicar um questionário a alunos (15 do sexo feminino e 2 do sexo masculino) do curso de Letras – habilitação francês, da Universidade Federal do Pará, todos já tendo cursado mais de 400 horas de língua, três deles já recém-formados. Para verificar se há especificidades na dinâmica cognitiva quanto aos processos redacionais quando se escreve na tela, partimos de perguntas simples, com o propósito de saber inicialmente se os alunos têm, de fato, o hábito de escrever diretamente na tela, se recorrem a instrumentos de ajuda (mecanismos de busca, dicionários on-line, corretores de texto), a que esses instrumentos se prestam, se imprimem para revisar ou se revisam e corrigem direto na tela. O questionário abaixo foi o instrumento utilizado para realizarmos uma primeira aproximação dessa temática. - Você escreve na tela? - Recorre a mecanismos de busca em francês? Quais? - Consulta dicionários on-line? Quais? - Usa ferramentas de correção de texto? Quais? - Costuma imprimir para revisar o texto impresso? Ou revisa e corrige na tela? - Como é seu processo de escrita em francês? (Procure explicar detalhadamente tudo o que você faz quando escreve na tela). O quadro a seguir apresenta, de forma concisa, os dados obtidos por meio do questionário.

Dos 17 alunos que responderam ao questionário, 13 afirmaram escrever sempre diretamente na tela, um disse escrever muito pouco na tela, dois disseram elaborar um rascunho manuscrito antes de escrever na tela e apenas um disse escrever o texto integralmente no papel para depois digitá-lo.5 Alguns alunos explicaram ainda por que preferem escrever diretamente no computador, apontando algumas vantagens da escrita na tela:

Nesse caso, julgamos que todo o processo de produção escrita operou-se no papel. O gesto de digitar o texto significa tão somente transpor o texto manuscrito para a tela.

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Tema geral: Línguas e Literaturas: Diversidade e Adversidades na América Latina AF-3 Você escreve na tela? – Sim, o advento do computador criou em mim a dificuldade de escrever no papel. Me é muito mais atrativo escrever na tela, pelo dinamismo de poder escrever; apagar o que se escreveu sem deixar aquela confusão que fica no papel (corretivo, riscos etc.); de recortar uma parte do texto e movê-la com muita facilidade para o lugar que eu achar mais conveniente, entre outras. [...] Acredito ser muito mais rápido escrever na tela, as ideias parecem fluir melhor e já estou deveras viciada que perdi o jeito da letra (está ficando até um pouco feia). AF-7 Atualmente, escrevo muito na tela... Tudo começou com o meu TCC que já não poderia ser escrito numa folha de papel e depois transcrito numa versão digital, porque gastava muito papel e tempo.

É interessante observar que alguns alunos (três) disseram escrever diariamente na tela, mas em sites de relacionamento, para comunicar-se com amigos francófonos ou com os colegas de turma com o objetivo de praticar a língua. Essa prática não diz respeito ao tipo de produção escrita com que nos preocupamos neste estudo. Na verdade, os bate-papos virtuais têm uma estrutura temporal próxima do diálogo e das práticas orais. A construção e o processamento dessas produções parecem seguir os mesmos princípios do texto conversacional oral. Só que nelas a escrita é utilizada para conversar, ou seja, trata-se de uma prática que se concretiza por meio de uma modalidade de língua em que fala e escrita mesclam-se. Uma aluna explicitou a especificidade desse uso da escrita para fins conversacionais, manifestando preocupação em usar aquilo que ela chama de “internetês-français”: AF-8 – Como só agora estou fazendo isso direto na tela, posso falar de duas situações: resposta a algum amigo virtual, em e-mail ou no MSN. Nada muito difícil, apenas o trivial. Apesar de eu ter um lépi, não tenho internet, e o que tenho escrito não é produção de texto acadêmico, mas conversas informais e quando o faço é em cyber ou no lab. de informática da UFPA. Nessas conversas eu escrevo as palavras da forma canônica e NUNCA com internetês-français. Não me sinto à vontade em fazê-lo, por isso, tudo é muito direitinho e sem graça. Nem gosto muito... não é espontâneo. É cheio de medo de escrever errado. Um verdadeiro horror. Tenho vergonha de não conseguir usar internetês em francês. Minhas conversas têm sido esporádicas.

A totalidade dos alunos declarou recorrer ou já ter recorrido a mecanismos de busca em francês, mesmo aquele que disse escrever só no papel revelou “recorrer a sites quando encontra dificuldades para conjugar um verbo”. Google.fr foi o mais citado. Em seguida, Yahoo.fr aparece duas vezes. Dos 17 alunos, 14 disseram ter o hábito de consultar dicionários on-line. Lexilogos, L’internaute, o dicionário da TV5, Translito.com, Sensagent.com/fr foram os mais citados. Três disseram não recorrer a essa ferramenta. Disseram preferir o dicionário impresso, mas ainda assim confessaram recorrer à internet em alguns momentos: AF-13 Consulta dicionários on-line? Quais? – Quase nunca. Utilizo Le Petit Robert, versão impressa. Somente quando preciso diferenciar termos (ex. écouter et entendre, amener et emmener), recorro ao dicionário de sinônimos no site TV5. AF-14 ainda me é prazeroso, sentar-me na minha mesinha, rodeada de livros, antes de ir para o computador... mas, não dispenso a net... se porventura, alguma dúvida resistir... nela consigo tirar.

Alguns alunos mencionam as vantagens da consulta a um dicionário on-line: AF-3 Os dicionários on-line possuem, a meu ver, o mesmo dinamismo da escrita na tela. É só digitar a palavra e pronto: eis a resposta. Não perdemos muito tempo procurando no livro.

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A maioria (15 alunos) disse usar ou já ter usado ferramentas de correção de texto. Quase todos citaram o BonPatron.com. Um aluno, ao responder a essa pergunta, disse que recorria a tradutores on-line, outro confessou desconhecer a existência desse tipo de recurso, mas manifestou desejo de conhecer. AM-10 – En français non, parce que je ne sais pas comment le faire. (si vous le savez, s’il vous plaît, dite-le moi).

Apenas dois alunos disseram imprimir sempre para revisar no papel. Um disse fazer uma primeira revisão na tela e, em seguida, imprimir para realizar uma última revisão. Os demais disseram revisar geralmente na tela. Ao serem perguntados sobre o processo de escrita em francês na tela, os alunos responderam de forma bastante variada. Observamos que muitos referem um esforço cognitivo ao escrever em francês na tela. Uns o fazem explicitamente: AF2 Demoro um pouco a escrever, porque preciso sempre me lembrar de um modelo de carta, e sobretudo as saudações, não posso ser muito íntima ou parecer distante (é dificil!). Quando acabo de escrever, sempre volto para fazer outra leitura, mas sempre tem erros (de digitação, falta de atenção etc.).

Outros, ao descreverem seu processo de escrita, também demonstram ser um processo que exige trabalho: AF12 Anoto minhas ideias em tópicos a serem desenvolvidos (rascunho) e após tento desenvolvê-las. Caso eu tenha alguma dúvida quanto a grafia ou o significado da palavra recorro ao dicionário on-line ou o instalado no meu PC. AM10 j’écris avec mon dictionnaire à porté des mains, parce que il y a encore beaucoup de mots dont je ne suis pas sûr de comment on les écrit. En outre, parfois quand j’écrit, il y a des mots ou des expressions ou des structures que il faut chercher au dictionnaire français-portugais pour trouver une correspondance et après vérifier au dictionnaire de français ou vérifier sur l’internet les mots ou les structures pour savoir si elles existent en français. Mais si je suis sur l’internet, je vérifie toujours sur les plusieurs moteurs des recherche français. AF11 Já no período do TCC, como tive que escrever tudo em francês, o meu processo não diferenciou muito. Escrevia, relia, ia ao dicionário, se fosse necessário. Em alguns momentos, ia ao BonPatron para corrigir algo que não sabia se estava correto. Em outros momentos, lia alguns textos franceses na internet para perceber a estrutura do texto.

Alguns reconhecem ser a produção escrita em LE uma atividade em que se cruzam tratamentos de natureza bilíngue: alguns processos são ativados apenas em LE, outros em LM e outros nas duas línguas. AF1 Sempre organizo as ideias em português, mas as escrevo diretamente em francês e quando não sei uma palavra em francês ou simplesmente não lembro dela, tomo como base a palavra em português e recorro, primeiramente, ao dicionário português-francês, depois ao francês-francês para ter certeza que a palavra em questão pode ser empregada no contexto. AF7 Desde que comecei a estudar francês fui incentivada a produzir “diretamente” na língua em questão, porém a LM é a referencia, e por vezes, trechos dos meus textos parecem ser redigidos com um “faux français”.

Muitos alunos manifestaram preocupar-se mais com aspectos formais – ortografia, concordância, conjugação verbal – do que a dimensão informativa do texto (com a busca de ideias / informações) ou com a organização textual-discursiva.

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Tema geral: Línguas e Literaturas: Diversidade e Adversidades na América Latina AM-5 Como a língua francesa não é minha língua materna, busco atentar para todas as palavras que escrevo, ou seja, verifico se a concordância foi feita de forma correta, se as palavras, dependendo do gênero, receberam o artigo correspondente, se os verbos foram conjugados obedecendo a devida terminação verbal, se as expressões que utilizo são próprias da língua francesa ou se estão “aportuguesadas” demais, enfim, o que quero dizer é que redobro a atenção quando escrevo na tela e em francês.

Alguns alunos percebem que a escrita na tela perde a fixidez da escrita no papel, adquirindo maleabilidade e tornando-se facilmente manipulável: AF3 Me é muito mais atrativo escrever na tela, pelo dinamismo de poder escrever; apagar o que se escreveu sem deixar aquela confusão que fica no papel (corretivo, riscos etc.); de recortar uma parte do texto e movê-la com muita facilidade para o lugar que eu achar mais conveniente, entre outras. AF16 Prefiro imprimir quando tiver tudo pronto, pois é bem mais fácil só copiar e colar do bonpatron por exemplo, ou quando você quer mudar alguma ideia que não ficou bem clara é mais fácil “dar um espacinho” e continuar escrevendo do que imprimir várias vezes.

De certa maneira, os alunos também conseguem identificar que a escrita na tela possibilita um distanciamento e um recuo crítico favoráveis, visto que permitem diferentes e sucessivas leituras do texto que está sendo construído e, a cada leitura, esse texto se enriquece, se aperfeiçoa. AF1 Costuma imprimir para revisar o texto impresso? Ou revisa e corrige na tela? – Geralmente, na tela, reviso o texto durante e no fim da produção, e a cada revisão, sempre mudo ou adiciono algo no texto.

Um número significativo de alunos declarou usar vários recursos disponíveis na web para realizar suas tarefas de escrita em francês: mecanismos de busca, dicionários on-line, ferramentas de correção de texto.6 Recorrem a mecanismos de busca para realizar pesquisas, certamente em busca de ideias ou informações para o desenvolvimento do tema. Recorrem a dicionários on-line para verificar a existência de certas expressões ou a grafia das palavras, mas também em busca de sinônimos ou de ajuda para a conjugação de verbos e para a estruturação de frases. Alguns alunos mencionaram ainda buscar na internet ajuda em relação à organização textual, para compreender como devem estruturar o texto a ser construído. Disseram também consultar dicionários on-line e usar ferramentas de correção ao revisar o texto. AF12 Você escreve na tela? – Sim, atualmente utilizo bastante a escrita direta no computador. Não consigo escrever em francês no papel, para mim é mais fácil colocar minhas ideias e até encontrá-las na tela do PC do que no papel. Recorre a mecanismos de busca em francês? Quais? – Sim, caso eu tenha alguma dúvida em relação a estrutura da frase uso o google aspenado a frase que quero investigar a correção. Anoto minhas ideias em tópicos a serem desenvolvidos (rascunho) e após tento desenvolvê-las. Caso eu tenha alguma dúvida quanto a grafia ou o significado da palavra recorro ao dicionário on-line ou o instalado no meu PC. AF11 Mas quando escrevo por meio de e-mails, do MSN ou do Orkut, tento ser mais correta possível. No caso do e-mail e Orkut, sempre reviso a construção da frase, as palavras, para ver se estão adequadas. Recorro até ao dicionário, quando há necessidade. (...) Em outros momentos, lia alguns textos franceses na internet para perceber a estrutura do texto.

É preciso levar em conta que alguns alunos não têm conexão com a internet, e isso os impede de recorrer às ferramentas de ajuda quando estão em casa, mas muitos dizem fazê-lo da UFPA ou de um cibercafé.

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Anais do II Congresso Internacional de Estudos Linguísticos e Literários na Amazônia (CIELLA) AF6 Caso ocorram dúvidas com relação as palavras que desejo utilizar recorro aos dicionários online e ao Petit Robert, instalado no PC, se a dúvida for com as construções frasais, coloco minha frase entre aspas no google.fr para ver se ela já foi utilizada em algum texto e em quais contextos. Ao finalizar minha produção, copio e colo o texto parágrafo por parágrafos no bonpatron.com para averiguar incoerências de ortografia e gramática que me tenham escapado durante a escrita.

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Ainda que seja uma amostragem pequena – apenas 17 alunos responderam ao questionário –, a interpretação das respostas leva-nos a algumas conclusões (absolutamente provisórias). Observamos que grande parte dos alunos prefere de fato escrever diretamente na tela. Observamos ainda que o ambiente virtual parece estar induzindo a novas práticas de escrita. É possível recorrer a mecanismos de ajuda, em diferentes momentos do processo de escrita: durante a fase de planejamento, para buscar e organizar ideias em uma tarefa de escrita; em procedimentos de textualização, para encontrar sinônimos ou construções próprias da língua francesa; durante a revisão e a reescrita, para encontrar soluções para os problemas detectados e proceder a ajustes. É possível, portanto, aperfeiçoar o texto que se constrói na tela em várias dimensões, linguística, textual e referencial. Enfim, nunca foi tão fácil verificar se nosso francês é um “faux français”, nunca foi tão fácil buscar e achar modelos a serem imitados, nunca foi tão simples e prazeroso “transpor períodos, riscar, refazer”, como bem disse o professor emérito Benedito Nunes, ao nos contar um pouco seu processo de escrita: No começo foi a escrita manual. Raramente escrevia diretamente à máquina. O processo era deveras complicado. Ditava os originais manuscritos a uma pessoa amiga, que os datilografava. Acontece que tenho letra ruim, não caligráfica. Assim, os originais, no meu afã de sempre melhorar a qualidade das frases, eram muito riscados. A leitura deles se tornava difícil até para mim. Muitas vezes empacava no ditado, minha paciente amiga à espera. Como se isso não bastasse, corrigia eu à mão o trabalho depois de datilografado, entrelinhando-o, e fora das linhas acrescentando outras emendas por meio de setas. Minha prestante amiga, uma de minhas melhores alunas de Filosofia, tinha de novamente recopiar o escrito. Que corveia para ela, libertada, afinal, pelo advento do computador! Mas antes da presença dessa máquina serviçal, que não demorei a adotar, já tinha elaborado quase todos os meus livros [...] As correções quase obsessivas por mim feitas durante a prevalência do velho método, e que lhe dificultavam a execução, vinham de uma exigência de clareza que me impusera [...]. O computador, que libertou minha colaboradora, também me libertou no sentido de que me deixou à vontade e sempre disponível para trabalhar visando ao ideal de claritas na escrita. E por aí se vê como a máquina também pode bem servir ao homem. O que era duro e fatigante – transpor períodos, riscar, refazer – tornou-se agradável mister executado à feição e rapidamente, pelo, às vezes desobediente bichinho eletrônico.

Referências BARBIER, Marie-Laure. Écrire en L2 : bilan et perspectives des recherches. Centre de Recherche en Psychologie de la Connaissance, du Langage et de l’Émotion (PsyCLÉ, EA 3273), Université de Provence, Aix-en-Provence, France, volume 1-2, p. 6-21, 2003. CHAROLLES, Michel. L’analyse des processus rédactionnels: aspects linguistiques, psycholinguistiques et didactiques. Pratiques, 49, mars 1986, p. 3-21. GARCIA-DEBANC. Intérêts des modèles du processus rédactionnel pour une pédagogie de l’écriture. Pratiques, 49, mars 1986, p. 23-49.

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Godinho Tavares & Cia: Livros a vista e pelo menor preço Izenete Garcia NOBRE (FAPESPA / Universidade Federal do Pará)

RESUMO: Até 1840, Belém possuía duas livrarias que não atendiam às necessidades do público leitor. Segundo Antônio Ladislau Baena, não havia bibliotecas na cidade e as livrarias que existiam não eram suficientes para o cultivo do intelecto. Com a liberação da navegação pelo Amazonas, esse contexto se modifica. Nota-se a instalação de pequenos comerciantes de livros, que, paulatinamente, tornar-se-iam livreiros. Assim, se na primeira metade do século se vendia basicamente livros que “enriquecessem o espírito” como códigos de boa conduta, vida dos santos e livros filosóficos, na segunda metade do século, a presença constante de romances, novelas e contos anunciados nos jornais tornou-se uma realidade. Não importava o gênero ou o formato do livro, o que os livreiros prometiam eram livros pelo menor preço do mercado. Avaliando esse contexto de mudança no consumo livresco, o objetivo desta comunicação é apresentar um livreiro conhecido como Godinho Tavares que divulgava principalmente romances entre os anos de 1857 a 1861. PALAVRAS-CHAVE: Livros; romances; comércio; século XIX.

RESUMÉ: En 1840, Belém a eu deux librairies qui ne répondent pas aux besoins du public lecteur. Selon Ladislau Antonio Baena il n’y avait pas des bibliothèques ni des librairies et en qu’il n’y avait pas suffisamment de la culture de l’intellect. Avec la sortie de la navigation par Amazon, ce contexte est en train de changer. Il est l’installation de petits commerçants de livres, qui, progressivement, devient libraires. Ainsi, si la première moitié du siècle, est essentiellement la vente de livres qui «enrichir l’esprit», telles que des codes de bonne conduite, vie de saints et de livres philosophiques de la seconde moitié du siècle, la présence constante de romans, novellas et de courtes histoires publiées dans les journaux sont devenus Il est une réalité. Peu importe le genre ou le format du livre, le livre promet que les livres étaient les plus bas prix du marché. Évaluer le contexte du changement de la consommation livresco, l’objet de cette communication est de présenter un livre connu sous le nom de Tavares Godinho qui a ensuite diffusé principalement des romans qui circulaient entre les années 1857 à 1861. MOTS-CLES: Livres, romans, commerce, siècle XIX.


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Compreender a circulação de obras é entender, primeiramente como ocorre o processo de circulação, pois o que circula socialmente pode vir a definir as práticas culturais1 de determinada coletividade. O termo em seu sentido neutro, por si mesmo, elucida seu significado primeiro, o de “ato ou efeito de circular” ou o de “movimento contínuo”. Essa ação ininterrupta para a História do Livro e da Leitura não é mera movimentação de mercadorias ou de dinheiro como assemelha esclarecer alguns setores do mercado editorial, envolvidos em um sistema lucrativo no qual a escrita é o principal objeto de consumo, no entanto é concebida como elemento indicador “da composição das mentalidades e das visões de mundo e sujeitos sociais” (COELHO, 2005. p. 349) Desta feita, não basta afirmar, por exemplo, que no século XVIII O piolho viajante foi enormemente lido ou que O judeu errante, de E. Sue foi uma das obras mais consumidas, no Brasil, durante o século XIX, ou ainda esclarecer que Alexandre Dumas se constituiu como um best-seller do romance no XIX. Esse processo é muito mais complexo. Precisa-se ir além dos aspectos formais inerentes a cada obra e entender como o processo de circulação integra leitor, obra e sociedade num processo de “pluralidade de espaços, de técnicas, de maquinas e de indivíduos” (CHARTIER, 2004, p. 64) que colaboraram para a difusão do saber escrito. A circulação do saber escrito, desse modo, descreve-se como um movimento abrangente envolvendo numerosos agentes e “canais” quer sejam comerciais, sociais, políticos ou históricos, todos constitutivos de função primordial para a existência, permanência e reconhecimento da obra literária como bem cultural2. A circulação do escrito funcionaria, portanto, como elemento modificador das formas de sociabilidade. (CHARTIER,1994, p. 12) Dito de outra forma, o livro como um constituinte desse processo é o componente essencial que circula entre leitores e cuja relação é estabelecida mediante fatores imprescindíveis à aceitação e recepção do escrito. Esses fatos estão relacionados e culturalmente envolvidos com um conjunto de gestos e práticas de determinada comunidade. Isto é, “a leitura não é somente uma operação abstrata de intelecção; ela é engajamento do corpo, inscrição num espaço, relação consigo e com os outros”,3 define Roger Chartier, pois cada comunidade de leitores estabelece convenções de leitura, baseada em expectativas e interesses definidos pela história cultural daquele grupo. Assim, o acesso mínimo aos livros presentes em prateleiras de lojistas, mercadores e livreiros inscreve-se em um sistema produtivo, onde as exigências formais do escrito sejam no formato livro ou periódico compunham importante componente para compreender, ainda que de maneira parcelar, a predileção do leitor. Ao se acompanhar o desenvolvimento das condições intrínsecas à formação do leitor, a partir de 1850 no Brasil, “sentia-se a prosperidade no ar, a cultura se aprimorava (...) em um ritmo superior ao da década anterior” (MACHADO, 2003. p. 29), o que corroborou para a expansão do mercado livreiro. É nesse momento que se observou a expansão do livro por todo o território nacional. No Rio de Janeiro, livreiros como Laemmert e Garnier se definiam como grandes editores. Em outras províncias como a do Pará, nesse mesmo período, percebeu-se a veiculação de jornais diários4 pela primeira vez em sua história. Livreiros portugueses e brasileiros se estabeleceram, fazendo concorrência às livrarias religiosas que existiam até então – uma dos religiosos do Convento de Santo Antonio e a outra dos religiosos Carmelitas.5 Sobre a leitura enquanto prática cultural conferir o diálogo entre Pierre Bourdieu e Roger Chartier. In: CHARTIER, Roger et All. Práticas da Leitura. Trad. de NASCIMENTO, Cristiane. São Paulo: Estação Liberdade, 1996. 2 Ibidem, passim. 3 A respeito dessa comunidade de leitores e de uma prática de leitura socialmente definida como conjunto material de práticas culturais ver CHARTIER, Op. cit., p.16. 4 Como referido na introdução, os jornais diários começaram a circular em Belém a partir de 1853 com a fundação do jornal Diário do Gram-Pará. 5 Antonio Ladislau Monteiro Baena afirma terem existido até 1839 quatro livrarias na cidade de Belém. Duas delas que foram dos Jesuítas e dos Mercenários já não existem, permanecendo apenas as dos religiosos ddo Convento de Santo Antonio e dos religiosos Carmelitas. Cf. BAENA, Antonio Ladislau Monteiro. Ensaio corográfico sobre a província do Pará. Brasília: Senado Federal, Conselho Editorial, 2004. p.209-210. Disponível em Http://www.senado.gov.br/web/ conselho/conselho.htm. Acesso em 12 dez 2008. 1

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Neste cenário, novos elementos com suas correspondentes problemáticas foram providenciais para o desenvolvimento do comércio de livros na capital do Pará. A pesquisa histórica revelou que a imigração de estrangeiros para a região interferiu no movimento social, uma vez que auxiliou na aceleração do processo abolicionista e provocou intensas mudanças na estrutura física, econômica e cultural da cidade. 6 O desenvolvimento da província, dessa maneira, ocasionou mudanças no ritmo de vida da população, que passou a basear sua economia no comércio, na indústria e na agroindústria, conforme a afirmativa de Henri Bates, “Os costumes mudaram rapidamente nesse particular, quando os vapores começaram a navegar no Amazonas, trazendo uma onda de novas idéias e modas para a região”(BATES Apud SALLES, 2004, p. 57) Tratando-se das transformações econômicas, sociais e culturais da Província do Pará, no início da segunda metade do século XIX, é necessário recuperar informações histórico-sociais anteriores à imigração estrangeira e a liberação da navegação a vapor pelo Amazonas. Nesse sentido, é relevante mencionar que Antonio Ladislau Monteiro Baena7 indagava, já em 1839, em seu Ensaio Corográfico sobre a Província do Pará8, como era possível conceber uma sociedade em que a economia começava a se apresentar como uma das mais importantes para os cofres nacionais, se o investimento em espaços nos quais se incentivasse o cultivo das belas-letras era quase nulo? Isso, porque o incremento em setores como a educação ainda era insuficiente, embora se começasse a evidenciar a necessidade de um compromisso governamental com áreas do conhecimento, porquanto era inconcebível que nem bibliotecas existissem ainda. Até 1840, Belém contava com duas livrarias cujos proprietários, religiosos carmelitas e jesuítas, limitavam e controlavam a difusão do livro a lugares restritos. Além do número reduzido desses espaços, um no Convento de Santo Antonio e outro no Convento dos Carmelitas, pode-se inferir que houvesse também, uma espécie de controle sobre a circulação de impressos no comércio, uma vez que havia somente três mercadores de livros com estoques restritos a abcedarios e obras para enriquecimento da “alma e do corpo”, como eram definidas pelo apostolado católico. As poucas novelas postas à venda eram censuradas pela igreja e por intelectuais como Baena, que as concebiam como corruptoras do caráter. A instrução pública deveria favorecer o enriquecimento do espírito filosófico e cristão, favorecedores da moral e não induzir a leitura de obras que desrespeitassem o “bom senso” e os “bons costumes”. Em 1850, acompanhando o que acontecia em quase todo o país, começou a surgir os primeiros jornais diários em Belém, que à maneira de França faziam do romance-folhetim seu carro chefe. A produção literária ganhava fôlego e a circulação de romances passou a tomar espaço maior, chegando um mesmo folhetim a ocupar lugar nos rodapés dos jornais durante vários meses. Dessa forma, foi graças, também, ao processo de urbanização e de modernização ocorrido na cidade que se viabilizaram as letras locais e o aparecimento de público, obra e escritores, consagrando à audiência leitora emergente ao gosto de uma nova classe. Não diferente dos demais livreiros, o português Godinho Tavares utilizou a imprensa como meio difusor de sua loja. No entanto, ao se organizar os títulos por ele anunciados, há uma diferença latente ao que ocorre com Manoel Gomes d’Amorim e com os livreiros mais discretos. Godinho Tavares anuncia principalmente, obras francesas que, segundo seus anúncios eram “um variado sortimento de romances dos melhores autores viagens, poezias, dramas etc”.9 Segundo Vicente Salles se estabelecia, novamente, um processo de sincretismo cultural. Durante toda a sua vida, Baena foi extremamente dedicado à construção de uma sociedade alicerçada na moral, na religião, na política, na história e no conhecimento prático, talvez por isso tenha se preocupado em escrever a História do Pará e construir subsídios para os estudos históricos, geográficos, físicos e estatísticos sobre a origem e desenvolvimento dessa província, numa tentativa de compor, conjuntamente aos outros estudos dos historiadores do IHGB, o retrato do território nacional brasileiro e criar um arquivo histórico para as gerações futuras, conforme os prólogos do Ensaio Corográfico sobre a Província do Pará e o Compêndio da Eras da Província do Pará. 8 Obra estatístico-histórica sobre a Província do Pará encomendada pelo presidente da Província, em 1823, publicada em 1839. 9 Diário do Gram-Pará, 01/12/1857. Vendas 6 7

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Outra peculiaridade, é que este mercador de livros raramente anunciava obras de instrução. Seu estoque parecia estar centrado na preferência por obras de entretenimento e recreio, contrariamente aos outros que, apesar de anunciarem romances, novelas, aventuras, dramas e poesias, também anunciavam obras para a instrução como estratégia para conquistar a parcela do público leitor que estava nos colégios e liceus de instrução primária e secundária. A intensidade dos anúncios deixa em aberto essa atividade livresca que se estabelecia. Oferecer o livro e adorná-lo das mais belas descrições poderia ajudar a vendê-lo. Com obras de recreio como fossem os romances e obras de instrução constantemente chegadas do Rio de Janeiro e de Lisboa, Godinho Tavares injetava no mercado paraense os valores e a cultura escrita advindas de grandes centros culturais como eram o Rio e Lisboa se comparados com Belém. Pois “para uma cidade civilizada e de certa importância no mundo [...]”10 ocidental era urgente que todos se conscientizassem da importância, do valor e da influência que a cultura escrita exercia no processo de civilização e tornar visível uma cidade em pleno desenvolvimento econômico como começava a se configurar a Belém oitocentista. LIVROS MUITO BARATOS Na loja de Godinho Tavares & C. no Ver-o-pezo, achão-se a venda, chegados ultimamente de Lisboa os seguintes livros [....] alem destas obras há outras muitas que se vendem por preços muito baratos (Diário do Gram-Pará, 05/08/1857) LIVROS Que se achão a venda na loja de Godinho Tavares & C.ª ao Ver-o-pezo: [....] alem destas obras, tem um variado sortimento de romances dos melhores autores viagens, poezias, dramas etc. que promettem vender o mais barato possível.(Diário do Gram-Pará 01/12/1857) LIVROS -Na loja de Godinho Tavares & C. ª, no Ver-o-pezo, se achão á venda chegados ultimamente de Lisboa e Rio de Janeiro, os seguintes livros: [.....]além destas obras ha um grande sortimento de romances, assim como livros em Direito, e methodos para piano e .... (Diário do Gram-Pará, 21/02/1861) Na loja de Godinho Tavares & C.ª no ver-o-pezo, vende-se muito em conta o seguinte: LIVROS DIVERSOS E PROMOCIONAIS Que Godinho Tavares & Cª ao ver-o- pezo tem resolvido vender por preços mais baratos do que até aqui tem vendido, como se vê dos preços seguintes

Tinha para vender em seu estoque e sempre pelo menor e melhor preço do mercado livros e revistas como “Os dois primeiros annos da Revista Contemporanea de Portugal e brazil, com estampas finas”, Mistérios de Lisboa, por Camillo C. Branco, ditos de Paris por E. Sue, Eugenio, romance marítimo por F.M. Bordalo, Três Mosqueteiros por A. Dumas, Vinte Annos Depois com lindas estampas litographadas, pelo dito, Maria espanhola, Marqueza de Bella-Flor com estampas, Ascanio ou o reinado de Francisco 1º por A. Dumas. Os negócios com livros pareciam prosperar. Romances, livros de instrução, almanaques, clássicos da literatura, dicionários, coleções, obras técnicas e acadêmicas começaram a ser divulgadas regularmente a ponto de que se alguém quisesse alguma obra recorresse ao Godinho Tavares para comprar ou encomendar as mais recentes publicações de Portugal e Europa. Ao lado de Godinho Tavares dividia o mercado de livros outros mercadores que também vislumbravam nesse ramo oportunidade de fixação e reconhecimento na cidade. Foram eles e a disputa pelos leitores os responsáveis pela elevação na quantidade de romances na cidade. Em Belém, desde a década de 1850, o consumo de títulos portugueses se sobressaia a procura dos franceses, embora, no Brasil, grosso modo, “na década de 1860 os livros vindos da França ganha[ssem] repercussão, graças a predileção pelos pensadores franceses e ao sucesso retumbante do romance-folhetim”( EL FAR, 2004, p.33)

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Almanak para o ano de 1871,p. 3

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Tema geral: Línguas e Literaturas: Diversidade e Adversidades na América Latina Livros muito baratos Na loja de Godinho Tavares & C. no Ver-o-pezo, achão-se a venda, chegados ultimamente de Lisboa os seguintes livros: Mistérios de Lisboa, por Camillo C. Branco, ditos de Paris por E. Sue, Eugenio romance marítimo por F.M. Bordalo, três mosqueteiros por A. Dumas, vinte annos depois com lindas estampas litographadas, pelo dito, Maria espanhola, Marqueza de Bella-Flor com estampas, Ascanio ou o reinado de Francisco 1º por A. Dumas, Constantino e Joaninha ou os Jacobinos Polacos romance histórico, Cabana do Tio Thomas, Escravo branco, Rainha Margot por A. Dumas, Os quarenta e cinco pelo dito, Filho do diabo por Feval, Guerra das mulheres por Dumas, Miss Mary por E. Sue, Nodoa de Sangue pelo visconde de Arlincourt, Alfageme de Santarém por Garret, Albina por A. Dumas, A Pomba pelo dito, Pedreiro por Lamertine, Cortezão de Paris, Filhos de Minha mulher por Roch, Eulália ou o amor filhial, recordações d’uma viagem, Marqueza de Camba, Rainha aventureira, Irmãos da Costa, Roza de Castro, Roda da fortuna, A voz da verdade, Funeral de Napoleão, Lusíadas de Camões edicção riquíssima augmentada com a vida do poeta, ima noticia acerca d Vasco da Gama, Discripção histórica do Brazil, Arte poética de Horário Flacco, Diccionário francez-portuguez e portuguez-francez, dito português portátil, Secretário universal ou methodo de escrever toda a espécie de cartas, Código do bom tom, Poesias de Campello, Fables de la Fontaine, alem destas obras há outras muitas que se vendem por preços muito baratos.(“Diário do GramPará”, 05/08/1857)

Prometendo vender o mais barato possível e a melhor obra, Godinho Tavares reclamava n’A Epocha e no Diário do Gram-Pará “LIVROS DIVERSOS E PROMOCIONAIS”, decidindo “vender por preços mais baratos do que até aqui tem vendido”. Esse tipo de liquidação era comum nos seus reclames, fazendo com que de 1857 a 1861 fosse um dos grandes rivais da Livraria Comercial, embora na loja de Godinho se vendessem livros e outras miudezas. Se por um lado Godinho Tavares anunciou uma variedade de romances dos melhores autores, por outro a concorrência que se estabeleceu parecia atrair os leitores também por meio de obras de instrução. O que se pode notar concerta é que procurava se firmar no mercado livresco seja vendendo romance seja vendendo livros ditos para a instrução pública. Dessa forma, usando slogans como “livros muito baratos” ou “livros promocionais” ele associava seu serviço ao produto e a qualidade do que ele oferecia em sua loja. Assim, essa chamada apelativa, mantendo-se na memória do consumidor ratificava certas características de seu negócio, relacionando sua loja de livros à venda segura e barata de títulos variados. Em síntese, percebe-se que começou a se compor um mercado cultural em torno do produto livro e, nesse sentido, todo tipo de estratégia parecia ser válida para chamar a atenção do público consumidor. Assim, ressalta-se a influência exercida por essa cultura escrita, pois se não existisse um público para consumir os produtos não se estabeleceria uma concorrência nesse campo da cultura escrita. LIVROS Mil e uma noute 8 tomos 9$000, piolho viajante 4 tomos 5$000, bíblia sagrada 3$000, Bertoldo e família 3 folhetos 1$000, João de Calais 400, Confissão do marujo 100, Menino da Matta 200, Lembrança do Passado 480, a oração do Senhor 120, Jovem Aldeana 320, Milagres de Nosso Senhor 200, As duas velhinhas 200, Mariquinhas 200, excellencia das escrituras 160, Doutrinas e deveres 200, Henriquinho 640, Sermãos 200, Lembrança do Passado primeira parte 320, a venda na loja de João Baptista da Costa Carneiro, na rua dos Mercadores nº 40 bb. (“A Epocha”, 11/07/1859)

Um leitor contemporâneo, ao se deparar com um tipo de listagem de livros como a de Godinho Tavares, talvez esperasse encontrar tudo organizado, com título, autoria, encadernação, local de edição, editora, preço etc, no entanto, é necessário esclarecer que este livreiro se encontra no século XIX, onde as informações como essas, algumas vezes, eram tidas como corriqueiras ou de pouca importância para o leitor. O gráfico a seguir nos dá uma mostra da porcentagem de livros anunciados em função da nacionalidade, porquanto estavam quase todas enquadradas como romances, novelas, dramas, comédias e poesias, excetuando um ou outro dicionário ou gramática.

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Figura 3 – Gráfico elaborado a partir de anúncios publicados nas folhas Diário do Gram-Pará, A Epocha, Gazeta Official.

O gráfico acima revela que 36% dos livros citados nos anúncios não tiveram sua autoria identificada pelo livreiro, o motivo não se pode afirmar ao certo, tampouco a razão que induziu o livreiro a optar por identificar a autoria de uns em detrimento de outros. O que se sabe é que informações de autoria poderiam não ter sido oferecidas ou porque o livreiro as considerasse corriqueiras, já que de conhecimento geral, ou porque era relevante somente identificar as obras de autoria reconhecida como as de Alexandre Dumas ou Camilo Castelo Branco. Enfim, certeza absoluta do motivo não se tem como identificar a não ser que tivéssemos alguma nota de esclarecimento do comerciante elucidando o fato, mas importa que dos livros identificados por sua autoria entre as 215 obras divulgadas, 33% eram de autoria francesa e 25% de autoria portuguesa o que indica a predileção seja do livreiro ou dos consumidores por obras de escritores franceses. Entre a porcentagem francesa, a obra mais difundida, inquestionavelmente, foram os romances e novelas de Alexandre Dumas com 20 ocorrências, seguido de E. Sue com 11 títulos divulgados. Importa mencionar que, de maneira geral, a vitalidade manifestada por esses espaços induzia a acelerada mudança na maneira de como era concebida a informação, uma vez que, rapidamente se produzia algum folheto, periódico ou obra “ao gosto do freguês” e de acordo com a demanda do público leitor daquele tipo de leitura. Assim, Meira afirma que “muitos (...) trabalhos, compreendendo verso e prosa, poderiam ser resgatados, principalmente como fonte de evolução da literatura paraense através da imprensa, com muito mais desenvoltura depois de 1850”( MEIRA, 1990, p. 35) Em linhas gerais os registros sobre a história da imprensa no Pará parecem ter omitido a existência de algumas tipografias e de homens que injetaram vigor ao mercado de livros na cidade, pois mesmo no trabalho de Ernesto Cruz que estuda as tipografias existentes de 1840 a 1876, ou no Catálogo Paraoras, não encontrei referências à existência da Tipografia Comercial ou da Oficina de encadernação de Levindo Ribeiro ou a importante atuação de Rabello Guimarães para a fixação da imprensa diária. Em resumo, os livros e periódicos comercializados permitem inferir, ainda que hipoteticamente, o que liam os leitores paraenses na segunda metade do XIX. Esses títulos são suficientes para se inquirir quais as leituras correntes daquele momento, quais as mais usuais e no que se diferenciava o leitor da capital do Pará ao das outras províncias. Algo é certo, obras, extremamente, difundidas na

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primeira metade do século, ainda se faziam atualizadas em Belém, por exemplo, O Piolho Viajante, História de Gil Blas As aventuras de Telemaco, Historia do imperador Carlos Magno11 e outras mais atuais à medida que eram lançadas na Europa, como é o caso de Salambó, publicada em 1862 ou L’homme qui rit, editado em 1869 e divulgado nesse mesmo ano, em romance-folhetim, pelo jornal Diário de Belém. É verdade que a implantação de jornais diários muito tem a ver com a ação de agentes estrangeiros proporcionada pela navegação. A fixação de jornais, por eles operados como o Diário do Gram-Pará, Diário de Belém, Jornal do Pará e outros de menor circulação, mas de grande importância para a veiculação de informação, auxiliou na formação de um público leitor. É interessante que o discurso de insuficiência, de falta de informações de todo gênero, de carência de espaços que favorecessem ou estimulassem a aplicação aos estudos, a formação e a permanência de intelectuais na cidade até 1870 ecoava como lugar comum da enunciação. Conforme se pôde apurar, o simples fato de verificarmos a ocorrência de livreiros e tipógrafos, preocupados em se estabelecerem nesse mercado, a partir de 1850, indica que os mesmo visualizavam a atividade livresca como um negócio promissor, desmentindo que somente depois de 1870 haveria uma injeção de ânimo na imprensa e no mercado cultural da cidade. O simples fato de existirem indivíduos se instalando no mercado de livros demonstra a presença de um mercado consumidor seja de obras voltadas para instrução seja de obras voltadas para o entretenimento. Os livros por eles anunciados são uma espécie de inventário do movimento cultural por que passava a cidade. Assim, a difusão de livros é a divulgação da cultura escrita. Referências Fontes Periódicos: Gazeta Official; O Director; Diário do Gram-Pará; Colombo; Diário do Commercio; A Epocha. Outros: Relatórios Provinciais de 1840-1870; Almanak administrativo, mercantil e industrial. Pará- 18681870. Albúm do Pará em 1899; Albúm do Estado do Pará, mandado organisar por s. Ex. O snr. Dr. Augusto Montenegro (governador do estado) (1901 a 1908), Paris, 1908. História de Belém. Textos Críticos e teóricos ALMEIDA, Conceição Maria Rocha de. O Termo Insultuoso: ofensas verbais, história e sensibilidades na Belém do Grão Pará (1850-1900). Dissertação de Mestrado apresentada ao Programa de Pós-Graduação em História Social da Amazônia pela Universidade Federal do Pará: Belém, 2006. CHARTIER, Roger. Do livro à leitura. In: CHARTIER, Roger et All. Práticas da Leitura. Trad. de NASCIMENTO, Cristiane. São Paulo: Estação Liberdade, 1996. COELHO, Geraldo Mártires. Livros, Secos & Molhados. In: _______.O violinos de ingres: leituras de história cultural. Belém: Paka-Tatu, 2005. EL FAR, Alessandra. Páginas de Sensação: Literatura popular e pornográfica no Rio de Janeiro (1870-1924). São Paulo: Companhia das Letras, 2004. LAJOLO, Marisa & ZILBERMAN, Regina. Formação da Leitura no Brasil. 3 ed. São Paulo: Ática, 1999. MACHADO, Ubiratan. Etiqueta de livros no Brasil: subsídios para uma história das livrarias brasileiras. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, Oficina do Livro Rubens Borba de Moraes, Imprensa Oficial do Estado de São Paulo, 2003. MEIRA, Clóvis et Alli. Introdução à Literatura no Pará. 1ed. Belém: Academia Paraense de Letras, 1990. SALLES, Vicente. O negro na formação da sociedade paraense. Belém: Paka-Tatu, 2004. Segundo Márcia Abreu estes livros foram alguns dos títulos mais remetidos para o Brasil, pela mesa censória, entre 1769 e 1826. Cf._____. Rumos da Ficção no Brasil oitocentista. In: Moara: Revista dos cursos de Pós-graduação em Letras da UFPA. Nº 21, p. 7-31, jan./jun., 2004. 11

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O EXERCÍCIO COM LÉXICO EM SALA DE AULA: UMA REFLEXÃO ENUNCIATIVA Jacqueline JORENTE (Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho)

RESUMO: Baseado na Teoria das Operações Predicativas e Enunciativas do lingüista francês Antoine Culioli, este texto aborda a questão lexical por meio de uma perspectiva enunciativa. A partir da crítica um exercício, tomado como exemplo, discutimos o trabalho com léxico em sala de aula. Culioli, autor que, através do conceito de noção, concebe a significação de forma dinâmica, permite olharmos para algumas atividades de uma maneira diferente daquela a partir da qual são tradicionalmente concebidas. Trata-se de pensar na necessária articulação língua/linguagem que, tomada em relação a questões de ensino, implica uma articulação entre produção e interpretação de textos. Tal visão vai permitir questionarmos uma abordagem de termos tomados isoladamente quando se pensa em atividades com léxico na escola, levantando uma discussão voltada ao ensino/aprendizagem de Língua Portuguesa que tem a ótica enunciativa como sustentação. PALAVRAS-CHAVE: Enunciação; léxico; ensino.

RÉSUMÉ: Basé sur la Théorie des Opérations Prédicatives et Énonciatives du linguiste français Antoine Culioli, ce texte aborde la question lexicale à travers une perspective énonciative. À partir d’un exemple de critique d’exercice, nous discutons du travail lexical en salle de cours. Culioli, qui à partir du concept de notion conçoit la signification sous un aspect dynamique, nous permet de percevoir différentes activités avec un nouveau regard. Il est question ici de réfléchir sur l’articulation langue/language qui, prise dans un contexte d’enseignement, implique une articulation entre la production et l’interprétation de textes. Un tel regard nous permet de questionner la manière d’aborder des termes isolés dans le cadre d’activités lexicales à l’école, amenant ainsi une discussion sur l’enseignement et l’apprentissage de la langue portugaise qui s’appuie sur une optique énonciative. MOTS-CLÉS: Énonciation; lexique; enseignement.


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1. Introdução O objetivo deste artigo é o de levantar uma discussão voltada ao ensino/aprendizagem de Língua Portuguesa tendo a ótica enunciativa como sustentação. A crítica a um exercício, tomado como exemplo, permite expormos uma reflexão especificamente sobre a questão lexical, tema ao qual temos nos dedicado desde iniciação científica1 concluída em 2007 e hoje focamos em pesquisa de Mestrado2 que desenvolvemos. Primeiramente, trazemos uma reflexão geral sobre o ensino de Língua Portuguesa, abordando as questões que acreditamos serem importantes quando se pensa em ensino/aprendizagem de língua. Em seguida, apresentamos a linha teórica que seguimos, discutindo a Teoria das Operações Predicativas e Enunciativas do lingüista francês Antoine Culioli, para, finalmente, chegarmos ao exercício ilustrativo de posturas normativas, o qual criticamos a fim de se pensar em formas de trabalho com léxico em sala de aula capazes de atender a proposta que os Parâmetros Curriculares de Língua Portuguesa apresentam como devendo ser o objetivo da escola. Nossa idéia é a de que as reflexões propostas por Antoine Culioli, autor que embasa os estudos que desenvolvemos, ainda que não estejam diretamente voltadas ao ensino/aprendizagem de língua, possam ser consideradas de forma produtiva nesse domínio, conforme trabalhos como os de Rezende (2000) e Onofre (2003a), aos quais faremos referências, sugerem. 2. O ensino de Língua Portuguesa: questões iniciais Quando se pensa em ensino de línguas, duas questões, a nosso ver, são primordiais e por isso acreditamos que todo trabalho que vise discuti-lo deve começar por abordá-las. São elas: concepções de língua e linguagem que se adota e objetivos pretendidos. Muito bem apontadas por Travaglia (1995), tais questões são consideradas interligadas e fundamentais para se pensar o ensino de Português. O trabalho com línguas, em sala de aula, exige que se tenham bem claros os objetivos a serem alcançados com tal ensino e as concepções de língua e linguagem assumidas que delinearão as posições teóricas adotadas pelos professores. Orientando a primeira discussão por nós proposta temos os Parâmetros Curriculares Nacionais de Língua Portuguesa. Neste documento, uma referência desenvolvida pelo Ministério da Educação a fim de orientar o trabalho de professores de Português no processo de elaboração e revisão de propostas didáticas, encontramos que: Tomando-se a linguagem como atividade discursiva, o texto como unidade de ensino e a noção de gramática como relativa ao conhecimento que o falante tem de sua linguagem, as atividades curriculares em Língua Portuguesa correspondem, principalmente, a atividades discursivas: uma prática constante de escuta de textos orais e leitura de textos escritos e de produção de textos orais e escritos, que devem permitir, por meio da análise e reflexão sobre os múltiplos aspectos envolvidos, a expansão e construção de instrumentos que permitam ao aluno, progressivamente, ampliar sua competência discursiva. (BRASIL, 1997, p.27).

Assim, temos que o ensino de Língua Portuguesa deve visar a: [...] desenvolver no aluno seu potencial crítico, sua percepção das múltiplas possibilidades de expressão lingüística, sua capacitação como leitor efetivo dos mais diversos textos representativos de nossa cultura. Para além da memorização mecânica de regras gramaticais ou das características de determinado movimento literário, o aluno deve ter meios para ampliar e articular conhecimentos e competências que possam ser mobilizadas nas inúmeras situações de uso da língua com que se depara, na família, entre amigos, na escola, no mundo do trabalho. (BRASIL, 1999, p.55)

Enunciação lingüística e ensino: o léxico na produção de textos.; trabalho desenvolvido ao longo do ano de 2007, na Universidade Federal de São Carlos (UFSCar), sob orientação da Profª Drª Marilia Blundi Onofre e com o apoio da FAPESP. 2 Relações Parafrásticas: O léxico sob uma perspectiva enunciativa. Pesquisa ainda não concluída, que vem sendo desenvolvida desde março de 2008 junto ao Programa de Pós-Graduação em Lingüística e Língua Portuguesa da Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”, UNESP, campus de Araraquara-SP. Apoio: FAPESP. 1

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É a partir desta diretriz que o objetivo do ensino de língua materna delineia-se como devendo ser o de desenvolver a competência comunicativa dos alunos, o que significa levá-los a uma prática constante de produção e compreensão de textos nas mais diversas situações discursivas. Assim, aulas de Português não dispostas, por exemplo, a propiciar o contato dos alunos com a maior variedade possível de situações de interação comunicativa, não explorando a riqueza da diversidade de situações de enunciação que podem se dar por meio da língua, não vão ao encontro do que se acredita que deva ser feito em trabalhos com Língua Portuguesa. Além desta questão primeira de objetivos, a segunda, que junto a ela consideramos como primordiais para se pensar práticas de ensino, trata-se da compreensão das diferentes concepções de linguagem que envolvem trabalhos desenvolvidos em salas de aula. Quer para questionarmos a eficácia de exercícios que estão sendo aplicados, quer para pensarmos em propostas de atividades a serem promovidas em contexto escolar, acreditamos que esta questão também seja fundamental. Sabemos que sempre é a partir da adoção de uma posição que se trabalha e conhecer a opção feita é bastante importante, já que as concepções do que são linguagem e língua para um determinado professor levarão a maneiras de ensinar diversas, com resultados distintos. Segundo Travaglia (1995), normalmente se tem levantado três possibilidades diferentes de se conceber a linguagem: linguagem como expressão do pensamento, linguagem como instrumento de comunicação e linguagem como forma ou processo de interação. A primeira delas, linguagem como expressão do pensamento, envolve considerações de ordem filosófica que postulam uma relação entre linguagem e pensamento dada por meio de princípios lógicos. Na abordagem em questão, vemos uma grande preocupação em relacionar categorias de língua a categorias da realidade extralingüística, uma associação que se daria sob a forma de três operações lógicas: conceber, julgar e raciocinar. Notamos que tal maneira de abordar a linguagem não tem por base uma ciência lingüística. Trabalhar com ela significa adotar uma postura que vê a língua e a linguagem, as quais não são diferenciadas pelo modelo, apenas como meios e não fins em si mesmas, somente formas de expressar o pensamento, que é o que se busca entender em um contexto de discussões filosóficas envolvendo o homem e suas relações com o mundo. Nos trabalhos desenvolvidos sob esta concepção de busca de uma compreensão do homem e do mundo via linguagem, o sujeito aparece, mas se trata de um sujeito estático, lógico, que não dialoga, relacionando-se com o mundo a partir das operações lógicas de conceber, julgar e raciocinar. Travaglia (1995) ainda destaca que, para esta concepção, as pessoas não se expressam bem, porque não pensam. Segundo ele, neste caso, presume-se que há regras a serem seguidas para a organização lógica do pensamento e, conseqüentemente da linguagem. Seria esta visão que estaria relacionada a práticas prescritivas voltadas a ditar normas gramaticais do chamado falar e escrever bem e que pode ainda hoje ser vista em estudos lingüísticos tradicionais como gramáticas normativas. Já a segunda concepção de linguagem, instrumento de comunicação, trata-se de uma compreensão científica da língua, surgida com os estudos de Saussure, que, a partir da oposição langue/parole, faz uma opção por deixar o sujeito de lado do foco dos estudos lingüísticos. Vemos, neste caso, a escolha da língua como sistema para análises, enquanto o sujeito é deixado de lado, uma vez que o objeto em questão não é o diálogo, a enunciação. O objetivo que se tem é apenas a descrição de línguas, vistas como sistemas, feita a partir de observações exaustivas. Assim, modelos de estudo baseados nesta concepção consistem em formas estruturalistas de análise lingüística, visando apenas a descrição de língua. Situações enunciativas não são consideradas e a língua é vista como sendo algo exterior ao homem, um instrumento do qual este se apodera para se comunicar. Esta comunicação ocorreria de forma mecânica, direta, por meio de codificações e decodificações entre falantes e ouvintes. Esta segunda concepção, ainda que não tenha como enfoque o ensino, pode ser vista na escola, em trabalhos chamados estruturais, exercícios descontextualizados, que não se preocupam com produção de significação, mas tão somente com forma, estrutura.

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Finalmente, em contraposição a estas duas abordagens apresentadas, as quais estariam dentro do que se poderia chamar de lingüística do enunciado, por não trabalharem com a consideração de um sujeito dinâmico em suas análises, temos a concepção de linguagem como forma de interação, que compõe a chamada lingüística da enunciação. Nesta última concepção temos uma ênfase muito grande dada ao sujeito, um sujeito dinâmico, que preencherá de sentido estruturas lingüísticas. Há uma proposta de articulação entre língua e linguagem, entendendo-se a primeira como sistema de representação responsável por veicular a segunda, lugar de diálogo entre interlocutores em situação de enunciação. Nota-se aqui uma preocupação com os sentidos que são produzidos por meio da língua. Consideram-se sempre enunciadores em situações de enunciação específicas, buscando significações particulares. Esta abordagem da língua e da linguagem leva a trabalhos não interessados em apresentações descontextualizadas de estruturas ou prescrições, mas sim voltados à compreensão da significação de enunciados contextualizados. Vemos, assim, que se trata da concepção que traz idéias que mais se aproximam do objetivo pretendido pelo ensino de Língua Portuguesa hoje. Se disposto que os professores devem promover uma ampliação da competência discursiva de seus alunos, parece que esta tarefa só pode ser efetivamente cumprida quando se considera um sujeito dinâmico, preenchendo de sentido estruturas lingüísticas a cada enunciação particular. Trabalhos meramente prescritivos, que estariam ligados à primeira concepção de linguagem apresentada, ou voltados somente a análises estruturais de frases descontextualizadas, caso ligado à segunda abordagem discutida, não têm como propósito desenvolver competência discursiva, não sendo, assim, capazes de levar os alunos a produzirem e compreenderem textos nas mais diversas situações de interação comunicativa. 3. Antoine Culioli e a Teoria das Operações Predicativas e Enunciativas Acreditamos que um caminho que é delineado na direção da terceira concepção de linguagem apresentada pode ser visto em trabalhos que partem de idéias do francês Antoine Culioli, ainda que o autor não tenha um interesse diretamente voltado a questões educacionais. O lingüista é conhecido por ser o responsável pela chamada Teoria das Operações Predicativas e Enunciativas. Em linhas gerais, para o autor, a linguagem trata-se de uma atividade de produção de significação realizada por interlocutores em interação e veiculada pela língua. Podemos dizer, então, que a língua é concebida como um sistema de representação da atividade de linguagem, sendo esta última uma forma de interação, conforme apresenta-nos Onofre (2003b, p.62): [...] Culioli tem uma compreensão da língua como o sistema de representação da atividade de linguagem (produção de significação) produzida por interlocutores em interação. Nesse processo dialógico realizamse as operações de representação mental, referenciação e regulação, que dizem respeito respectivamente às operações de ordem psicológica, sociológica e psicossociológica.

A partir de uma articulação entre língua e linguagem, estudos lingüísticos realizados por meio desta perspectiva visam a explicitar as operações de linguagem responsáveis por gerar a significação veiculada pela língua. Um interesse em processos então se configura e o autor postula que o que é preciso considerar são: [...] des mises en relation d´ordre sémantique et ce que j´apelle des relations primitives, et des relations prédicatives, que l´on appelle très souvent “structurales” ou “proprement syntaxiques”, des relations énonciatives de mise en valeur de tel terme par rapport à tel autre terme. Avec des changements, qui se produisent parce qu´on va ajouter tel déterminant ou tel autre. Vous allez avoir l´intonation, qui va jouer un rôle extrêmement important. Vous allez avoir la situation, parce que c´est elle qui va réguler dans une large mesure le jeu des références. Ces références, elles sont ajustées entre les sujets. Vous allez avoir aussi le rôle des contextes, le rôle des sous-entendus, le rôle des présupposés culturels! (CULIOLI, 2002, p.23-24)

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As relações primitiva, predicativa e enunciativa referidas são três grandes tipos de relações que Culioli postula que são realizadas no processo dialógico que é a atividade de linguagem. Dizendo respeito respectivamente a operações de ordem psicológica, sociológica e psicossociológica, estas três relações levam a análises interessantes, que partem de uma concepção dinâmica de língua/linguagem, rompendo com tradições lingüísticas que tomam como objetos de estudos valores cristalizados no sistema lingüístico. Um dos grandes responsáveis por essa dinamicidade que a teoria culioliana consegue em suas análises e que aparece quando se discute essas três relações lingüísticas é o conceito de noção. Considerá-lo significa conceber linguagem como uma atividade relacionada a uma forma de apreensão do mundo pelo sujeito que se constrói mediada por fatores físico-culturais e mentais. De acordo com Culioli (1990, p.69): A notion can be defined as a complex bundle of structured physico-cultural properties and should not be equated with lexical labels or actual items. Notions are representations and should be treated as such; they epitomize properties (the term is used here in a very extensive and loose way) derived from interaction between persons and persons, persons and objects, biological constraints, technical activity, etc.

Tal idéia sugere uma dialogia que vê conceitos nunca fechados, mas sempre em potencial, delineados somente a cada processo de predicação estabelecido por sujeitos enunciadores. Essas discussões teriam surgido a partir de uma insatisfação em face de atitudes meramente classificatórias, como o autor elucida em um artigo sobre a noção: Je ne pouvais pas me satisfaire des classements des mots, des champs sémantique, des traits sémiques, de la syntaxe coupée de la sémantique (et du reste...), des concepts, qui tirent leur force de leur rigidité; je me refusais à confondre le trans-individuel et l´(inter) subjectif. C´est donc, comme je l´ai souvent dit, de l´inquiétude théorique qu´est née la notion. (CULIOLI, 1997, p.10)

Para Culioli, linguagem é uma atividade de construir representações, que são referenciadas e reguladas. Na construção dessas representações é que a noção estaria, permeando produções de significação que se dão sempre entre sujeitos enunciadores a partir da relação desses com o mundo. É por isso que cada enunciação seria única, não admitindo que se trabalhe com classificações, descontextualizadamente, quando se trata de questões lingüísticas. Ainda que o autor não tenha um interesse diretamente voltado a questões ligadas ao domínio de ensino/aprendizagem de línguas, conforme comentamos, alguns trabalhos no Brasil buscam uma aproximação de reflexões culiolianas com discussões ligadas a esse campo de estudos. Dentre esses trabalhos, podemos destacar Rezende (2000) e Onofre (2003a). Quando se pensa em questões de ensino, a concepção dinâmica de língua/linguagem, proposta pelo autor e por nós discutida anteriormente, permite que se rompa com tradições lingüísticas que tomam como objeto de estudos valores cristalizados no sistema lingüístico. Passa-se a conceber léxico e gramática sempre articulados e o interesse é então não um trabalho pautado em moldes descritivos ou normativos, voltados a categorizações, mas uma busca por compreender processos geradores. A atenção é voltada a como os indivíduos representam lingüisticamente para significar: um caminho que trabalhará não com a oposição entre classes de palavras, com conceitos fechados, mas que se instaura em um momento anterior a estabilizações, buscando sempre compreender os processos envolvidos na produção de significação. 4. Um exercício A partir das idéias que a postura teórica por nós adotada levanta, podemos fazer algumas críticas a atividades que se costuma ver desenvolvidas em sala de aula. Observemos o exercício trazido abaixo, extraído de um livro didático 3: Exercício retirado de livro didático de Língua Portuguesa. Optamos por não citar a fonte por não ser nossa intenção a realização de críticas a obras específicas.

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 Reescreva as frases, substituindo o verbo haver pelo verbo existir. Lembre-se: o verbo haver fica sempre no singular, mas o verbo existir concorda com o sujeito (sujeito no singular, verbo no singular; sujeito no plural, verbo no plural). – Há pessoas famintas sob o viaduto. – Havia duas saídas para a estrada secundária. – Haverá seres vivos em outros planetas? – Há histórias incríveis naquele livro. Este exercício exige uma simples e mecânica substituição de estrutura, deixando de explorar as diferenças de sentidos possíveis de serem construídos a partir dos termos abordados pela atividade. Visa somente a uma memorização de estruturas, não se preocupando em levar os alunos a perceberem as diferenças de significação que podem ser obtidas pelo uso de uma ou de outra dessas formas. É nítido para um olhar mais atento aos enunciados apresentados que o sentido provocado pelas construções focadas não é indistinto, variando quando se opta por existir ou haver a cada contexto enunciativo específico. Por que então, não se explora isso neste exercício? Seria uma ótima oportunidade para levar os alunos a refletirem sobre como se dá o exercício da linguagem, como utilizamos diferentes estruturas para obter significações variadas. Em função da intenção de significação de cada interlocução, escolhe-se, dentre estruturas lingüísticas disponíveis, aquelas que melhor atendem aos nossos objetivos de produção de sentidos específicos. É assim que se opta por utilizar haver em uma determinada situação de enunciação e existir em outras e estas escolhas não são despropositadas. No primeiro caso, por exemplo, “Há pessoas famintas sob o viaduto.” ou “Existem pessoas famintas sob o viaduto.”, parece tratar-se de distinções que apontam para uma oposição entre a pontualidade de um fato versus a apresentação de uma constatação mais ampla, de caráter menos específico, elaborada a partir de uma certa recorrência do fato abordado. Assim, quando se opta pela primeira opção, “Há pessoas famintas sob o viaduto.”, parece haver uma constatação mais pontual em oposição a uma idéia mais geral ligada a recorrências expressa por “Existem pessoas famintas sob o viaduto.”. A opção pelo verbo haver teria sido feita a fim de indicar um fato pontual, aquelas pessoas estariam naquele local naquele momento específico de enunciação, mas anteriormente a ele não estariam ali e provavelmente não permaneceriam muito mais depois (ao menos não seria desejável tal permanência). Ao que nos parece, a primeira ocorrência seria como uma manchete de jornal a anunciar com certa surpresa que algumas pessoas específicas, famintas, que nem sempre se encontrariam naquele local apresentado, teriam passado a ocupá-lo há uma quantidade de tempo pequena anterior à enunciação, enquanto o segundo enunciado transmite a idéia de algo mais geral, uma constatação a que se chegou a partir de uma observação não pontual, mas repetida de fatos recorrentes que levariam a vê-la de uma forma quase que consensual. É assim que “Existem pessoas famintas sob o viaduto.” não estaria preocupado em noticiar a presença de algumas pessoas famintas, sob um determinado viaduto, de uma cidade particular, em um dia ou semana específicos, mas sim em chamar a atenção para uma problemática que seria freqüente de pessoas famintas sob viadutos, assim como se poderia dizer por meio de “Existem anúncios publicitários sob o viaduto.”, por exemplo, que é comum que sejam colocadas propagandas neste local e não que foi feito este tipo de prática apenas num momento específico, chamando a atenção apenas a um fato pontual. No caso do primeiro enunciado abordado, a idéia de especificidade trazida pelo verbo haver parece até mesmo levar-nos a estranhar a falta de um complemento especificando o referido viaduto. Do mesmo modo, seguindo esta mesma idéia de pontualidade versus a expressão de algo mais geral, à qual se teria chegado por meio de uma certa freqüência de observações de fatos específicos que levaria a uma idéia consensual entre certo grupo de indivíduos, quando se diz: “Existem seres vivos em outros planetas?”, enunciado referente ao terceiro exemplo, o que parece ser questionado

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é se é possível encontrarmos seres vivos em outros planetas, se as condições físicas e geográficas de outros planetas permitiriam tal feito, o de formas de vida se desenvolverem fora da Terra. Enquanto isso, “Há seres vivos em outros planetas?” parece questionar sobre uma verificação pontual de seres vivos em outros planetas, já se concordando com o fato de seres vivos habitarem outros planetas. O que se indagaria, então, não seria a possibilidade de desenvolvimento de vida em outros planetas, isto já seria uma premissa. Aquilo que realmente se desejaria saber por meio da escolha do verbo haver para compor o enunciado é se, naquele momento particular da enunciação, estas formas de vida que poderiam lá se desenvolver estariam ou não naqueles locais. Também forçando a uma visão dos verbos haver e existir como sinônimos, deixando de explorar as nuances significativas que um enunciador pode obter por meio da escolha de um ou de outro destes verbos a serem usados em situações enunciativas particulares, o segundo item do exercício pode ser questionado. Mais uma vez, a mesma idéia de pontualidade versus a expressão de fatos mais recorrentes parece estar determinando os sentidos diferentes que são produzidos pela opção por um ou outro dos verbos focados pelo exercício. Ao que nos parece, quando se diz “Havia duas saídas para a estrada secundária.” refere-se a uma ocorrência mais específica ligada ao passado abordado. Assim, o enunciado provavelmente apareceria num contexto de relato de uma verificação pontual das saídas, elementos que não poderiam ser encontrados ao longo de uma grande quantidade de tempo em momentos anteriores ou posteriores a um fato pontual. Enquanto isso, “Existiam duas saídas para a estrada secundária.” parece estar ligado a um fato mais duradouro, que se perpetuou por um espaço de tempo maior, e não específico apenas, no passado sobre o qual se fala. Já no caso da oposição “Há histórias incríveis naquele livro.” / “Existem histórias incríveis naquele livro.”, que constitui o último exemplo, o contraste de significações capazes de ser veiculadas pela opção por um ou outro dos verbos focados faz que a segunda afirmação soe até mesmo estranha, face ao compartilhamento social de que um livro é algo que se caracteriza fundamentalmente por conter histórias. No primeiro caso, parece que se chama a atenção para incríveis, para o fato de serem incríveis as histórias que estão contidas no livro do qual se fala. No segundo caso, parece que o bloco histórias incríveis é tomado como um todo, em oposição, por exemplo, a figuras. Assim, teríamos “Existem histórias incríveis naquele livro.”, em oposição, por exemplo, a “Existem figuras incríveis naquele livro.”, enquanto histórias incríveis é que estaria em oposição a histórias ruins, por exemplo, quanto ao primeiro enunciado. Vemos, assim, por meio destas reflexões, que os pares “Há pessoas famintas sob o viaduto.” / “Existem pessoas famintas sob o viaduto.”, “Havia duas saídas para a estrada secundária.” / “Existiam duas saídas para a estrada secundária.”, “Haverá seres vivos em outros planetas?” / “Existirão seres vivos em outros planetas?”, “Há histórias incríveis naquele livro.” / “Existem histórias incríveis naquele livro.” não são indistintos como o exercício poderia induzir-nos a crer. Ao se propor, no entanto, um tipo de exercício como o apresentado, as nuances significativas destes termos observados são desconsideradas em função de uma focalização da estrutura da língua desarticulada do texto: uma atividade que, considerando apenas uma memorização de formas, volta-se exclusivamente para a forma lingüística em detrimento de uma articulação entre estrutura e significação. Consultando os Parâmetros Curriculares Nacionais de Língua Portuguesa (1997) é possível constatar que este tipo de trabalho exemplificado não visa a promover o desenvolvimento da capacidade de linguagem dos alunos, tal como é proposto nesta diretriz de ensino veiculada pelo Ministério da Educação. Essas considerações mostram-nos que há um descompasso entre o objetivo pretendido pelo ensino/aprendizagem de língua e as práticas adotadas para atingir tal objetivo. Se o que se pretende é desenvolver a capacidade discursiva dos alunos, isso não parece poder ser feito por meio de práticas prescritivas como as exemplificadas pelo exercício analisado. Meras focalizações de estruturas da língua desarticuladas do texto, como a atividade apresentada, não consideram a linguagem em sua totalidade e, dessa maneira, acreditamos que não possam trazer contribuições a uma ampliação da capacidade discursiva dos alunos tal como os PCNs propõem.

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5. Por uma articulação entre gramática e produção/interpretação de textos Em Rezende (2006, p.24) temos que: O sistema lingüístico, a gramática, que pretendemos explicitar, seria o modo pelo qual o exercício da linguagem ou forma, enquanto capacidade humana para elaborar símbolos, organiza um conteúdo ou material extralingüístico (mundo físico e mental) em um sistema de representação específico, que é uma língua natural. Esse sistema lingüístico procurado seria notado/explicado em um sistema de representação metalingüístico.

Trata-se de uma visão que, contrapondo-se a uma gramática do produto lingüístico, propõe para o ensino de língua uma gramática da produção lingüística. O que se quer saber, então, é, conforme aponta-nos Rezende (2006), como indivíduos se apropriam da língua e de seus recursos para se relacionarem com o outro e com o mundo. O foco no processo e não produto está, assim, intimamente relacionado a uma articulação entre língua e linguagem, considerando-se a primeira como sistema de representação responsável por veicular a linguagem, e esta como forma de interação, “atividade humana cujo objetivo é significar”, como discute Onofre (1999, p.577). Considerar língua e linguagem como articuladas significa entender a produção de diferentes significações sempre se dando por meio de processos de linguagem veiculados pela língua. Em uma direção diferente da tomada por modelos prescritivos ou descritivos, que concebem a língua como um produto, o que se propõe a partir desta visão é uma articulação entre o estático e o dinâmico quando da realização de análises textuais, levando em conta sempre que não existem significações prontas e acabadas, mas sim significados que são gerados a cada interlocução de acordo com as intenções dos sujeitos enunciadores que utilizam a língua para representar processos de linguagem. Observar os mecanismos que geram significações e não se ater a concepções preestabelecidas é o que propõe um modelo operatório de análise lingüística tal como a Teoria das Operações Predicativas e Enunciativas, de A. Culioli. Leva-se em conta a construção de significação como operatória, não vendo questões de linguagem de forma estática. Onofre (1999, p.579), em texto já citado, apresenta-nos que: Abordar a gramática sob a ótica enunciativa significa compreendê-la como uma gramática da produção lingüística à medida que o sistema de representação lingüística, ou seja a língua, constitui-se por um conjunto de marcas lingüísticas (morfo-sintático-semântico-discursiva) que se apresentam ao sujeito enunciador como possibilidades para a constituição da significação. O sujeito enunciador em face daquilo que quer enunciar, em uma dada situação enunciativa, opera com as possibilidades que lhes são oferecidas pelo sistema lingüístico de forma a produzir a significação desejada. Podemos observar que nessa gramática da produção lingüística, os sujeitos enunciadores e a situação de enunciação assumem papéis centrais, diferentemente da abordagem tradicional.

Pensando em termos de ensino de língua, tal visão está relacionada a uma articulação entre gramática e produção/interpretação de textos. Quando se fala em articulação entre gramática e produção/interpretação de textos, concebese que produções de significação sejam feitas a partir de uma indissociável ligação entre forma e conteúdo. O que se quer enfatizar e que é defendido é que se deve buscar entender os processos que levam os indivíduos a optarem por determinadas formas e não por outras, para significar de uma determinada maneira e não de outra. Isso, portanto, não significa abandonar estruturas ou só focar produtos, mas implica uma proposta de trabalho que leve em conta as operações lingüísticas. Trata-se de um trabalho com estruturas, mas não por meio de moldes normativos de certo versus errado, e sim voltado a aguçar a sensibilidade dos alunos para observarem como a cada enunciação diferentes formas escolhidas levam a significações variadas: postura que, chamando a atenção para a relação intrínseca forma/ significação propõe que gramática e produção/interpretação de textos não podem estar descoladas. Nossa visão é a de que textos são compostos a partir da seleção de estruturas, não

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podendo haver uma desconsideração destas, mas, ao mesmo tempo, a gramática deve ser estudada contextualizadamente, não havendo conceitos estanques fora de realizações em produções textuais. Nessa direção de reflexão, como professores de Língua Portuguesa, acreditamos que devemos buscar um trabalho de análise e produção de textos que explore a relação entre forma e significação. Ainda que o ensino tradicional costume propor atividades gramaticais desarticuladas, defendemos que a relação gramática e produção/interpretação de textos deve estar presente quando pensamos o ensino de Português. Em um trabalho com nossos alunos, muito mais interessante do que um estudo de definições gramaticais é ver a língua como algo dinâmico, discutindo as escolhas que um enunciador realiza para chegar a uma significação: isto possibilita aos estudantes operarem com os processos de linguagem veiculados pela língua. 6. Conclusão O objetivo deste artigo foi o de, a partir da crítica a um exercício tomado como exemplo, apresentar uma reflexão voltada ao ensino/aprendizagem de Língua Portuguesa feita a partir especificamente da questão lexical. Acreditamos que, quando se trata de ensino/aprendizagem de língua, muito mais interessante que exercícios normativos, como o exemplificado, são atividades voltadas a uma exploração da articulação língua/linguagem, a qual implica conceber gramática e produção/interpretação de textos também de forma não fragmentada, conforme discutimos. Uma reflexão feita a partir da Teoria das Operações Predicativas e Enunciativas de Antoine Culioli, pensada no domínio educacional, permite uma sustentação de tal direção de trabalho. Referências BRASIL. Ministério da Educação. Secretaria da Educação Média e Tecnológica. Parâmetros curriculares nacionais: ensino médio. Brasília: MEC/SEMTEC, 1999. _____. Ministério da Educação. Secretaria da Educação Fundamental. Parâmetros curriculares nacionais: língua portuguesa. v.2. Brasília: MEC/SEF, 1997. CULIOLI, A. Variations sur la linguistique: Entretiens avec Frédéric Fau. Préfaces et notes de Michel Viel. Paris: Klincksieck, 2002. _____. A propos de la notion. In: La notion. Actes du Colloque “La notion” tenu à l´U.F.R. d´études anglophones, Université Paris 7 – Denis Diderot en février 1996, publiés avec le concours de l´Université Paris 7 – Denis Diderot, volume dirigé par Claude Rivière et Marie-Line Groussier. Paris: Ophrys, 1997. ONOFRE, M. B. Operações de linguagem e implicações enunciativas da marca “se”. Tese (Doutorado) – UNESP, Araquara-SP, 2003a. _____. Do nome à noção: do enfoque estático ao dinâmico. In: Versão Beta: sob o signo da palavra, nº 22, ano II, julho de 2003b. _____.Gramática & Produção/Interpretação de texto no ensino de língua. In: XXVIII Estudos Lingüísticos; GEL – Grupo de Estudos Lingüísticos do Estado de São Paulo.Bauru-SP, 1999. REZENDE, L. M. Diversidade experiencial e lingüística e o trabalho do professor de Língua Portuguesa em sala de aula. In: _____. e ONOFRE, M.B. (orgs.). Linguagem e línguas naturais – Diversidade experiencial e lingüística. São Carlos-SP: Pedro & João Editores, 2006. _____. Léxico e gramática: aproximação de problemas lingüísticos com educacionais. V.1. Tese de Livre Docência. Araraquara, UNESP, Faculdade de Ciências e Letras, 2000. TRAVAGLIA, L. C. Gramática e interação: uma proposta para o ensino de gramática no 1º e 2º graus. 3ª edição. São Paulo-SP: Cortez Editora, 1995.

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MULHERES À FRENTE DO SEU TEMPO: CONCEIÇÃO, NOEMI E MARIA MOURA Jairo José Campos da COSTA1 (Universidade Estadual de Alagoas)

RESUMO: O presente trabalho objetiva fazer uma análise de três personagens femininas de Rachel de Queiroz, respectivamente Conceição, em O Quinze, Noemi, de Caminho de Pedras e Maria Moura, do seu último romance, Memorial de Maria Moura, à luz dos estudos de gêneros. Basicamente, é feito um mapeamento dessas três personagens romanescas criadas pela escritora cearense, observando as suas construções dentro do espaço literário em que as mesmas se situam e, pela forma como se comportam, depreender se elas demonstram avanço ou recuo na difícil caminhada pela igualdade dos espaços, nesse modelo de sociedade patriarcal, excludente e que define, de forma preconceituosa, os papéis comportamentais e as relações de poder entre os gêneros. PALAVRAS-CHAVE: Rachel de Queiroz; romance; personagens femininas; gênero.

ABSTRACT: This work intend to analyze three female Rachel de Queiroz’s characters, respectively, Conceição, in O Quinze, Noemi, in Caminho de Pedras, and Maria Moura, in his last novel called Memorial de Maria Moura, through the studies of genres. We have done a map of these three characters created by the cearense writer, observing the construction of the literary scene where they are situated and, as the way they behave, what position they take on, forward or backward, in the difficult struggle to conquer equality in this conservative society. We are investigating how these texts show the treatment with the genders and the power they exert. KEY WORDS: Rachel de Queiroz; novel; female characters; genre. Professor Assistente de Teoria da Literatura e Literatura Luso-brasileira do Curso de Letras do Campus V - União dos Palmares, da Universidade Estadual de Alagoas – UNEAL.

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Anais do II Congresso Internacional de Estudos Linguísticos e Literários na Amazônia (CIELLA) “[...] tento, com a maior insistência, embora com tão precário resultado (como se tornou evidente), incorporar a linguagem que falo e escuto no meu ambiente nativo à língua com que ganho a vida nas folhas impressas. Não que o faça por novidade, apenas por necessidade. Meu parente José de Alencar quase um século atrás vivia brigando por isso e fez escola.”1

1. Introdução O presente trabalho é constituído da análise de três personagens romanescas criadas por Rachel de Queiroz, são elas: Conceição, Noemi e Maria Moura, protagonistas dos romances O Quinze, Caminho de Pedras e Memorial de Maria Moura. O texto está distribuído em quatro partes. Na primeira, trabalhamos com a personagem Conceição enfocando o seu processo de emancipação dentro do contexto histórico em que se situa. Na segunda, trazemos a participação política de Noemi e a sua conseqüente coragem de assumir-se como apaixonada por outro homem, a ponto de jogar tudo pro ar e construir uma outra relação com o seu novo companheiro. Na terceira parte, recuperamos a fábula de Memorial de Maria Moura, destacando a personagem Maria Moura. Dada a complexidade da protagonista do último romance, achamos por bem construir uma quarta parte onde refletimos sobre a tensão comportamental homem X mulher com que ela se constrói. Esse texto é uma tentativa de revisitar a obra literária de Rachel de Queiroz que, como se sabe, foi rotulada pela nossa crítica literária, por alguns críticos, como uma obra que ficou muito colada à realidade, o que, em nossa compreensão, não é verdade, na medida em que ela consegue atingir o princípio da particularidade estética, transferindo da realidade, efetivamente vivida, elementos que compõem um projeto estético audacioso, relacionando o universal e o regional e criando uma literatura digna de atenção e respeito. 2. Conceição: letramento e emancipação em tempos de privação O romance O Quinze, de Rachel de Queiroz, talvez um de seus textos mais populares, foi publicado pela primeira vez em 1930, momento em que a autora tinha apenas 20 anos de idade. Basicamente, a narrativa destaca duas situações: primeiro, o fenômeno da seca e as conseqüências acarretadas para o povo nordestino, personificado a partir dos personagens Vicente e Chico Bento; em outro plano, a relação afetiva entre Conceição e Vicente. Neste texto, nos deteremos ao segundo enfoque, visto que, Rachel, quase que globalmente, em sua prosa de ficção, trabalhou com a criação de mulheres, trazendo à tona a discussão em torno do gênero e a conseqüente luta pelos espaços.2 O romance, embora possua um narrador em terceira pessoa, apresentando a visão distanciada sobre os fatos narrados, com características do chamado narrador onisciente, deixa alguns elementos em abertos ou, diríamos, conscientemente, pintou algumas questões muito sutilmente para que o leitor pudesse estabelecer as suas próprias conclusões, a título de exemplo, a orfandade de Conceição que aparece logo no início da fábula. “Todos os anos, nas férias da escola, Conceição vinha passar uns meses com a avó (que a criara desde que lhe morrera a mãe), no Logradouro, a velha fazenda da família, perto do Quixadá”. (QUEIROZ, 2004, pág. 13). Nada mais é explicitado a respeito de sua mãe, quanto ao pai, esse não é focalizado em nenhum momento. Talvez a falta dos pais tenha ajudado a Conceição assumir uma personalidade de pedra, sendo, na maioria das vezes, agente de sua história, deixando para planos secundários as opiniões externas às suas. 1 2

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http://www.releituras.com/racheldequeiroz_bio.asp < Acesso em: 01/04/2009. Os únicos romances de Rachel de Queiroz que não trabalham questões relacionadas ao feminino, são: João Miguel e O Galo de Ouro.

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Outro elemento que ajuda nessa condução é o fato dela ser professora, morar na metrópole Fortaleza, gostar de ler e escrever e ser uma mulher extremamente inteligente e independente. Esses e outros elementos podem ter ajudado na resolução do impasse quanto à possível união com o seu primo Vicente. Esse que era rude, nascido e criado no interior, portador de uma concepção patriarcal e preconceituosa em relação à mulher, fato comum no contexto sócio-histórico que serviu de inspiração para a materialização do romance O Quinze. Nesse sentido, a forma de vida dos dois, as concepções em torno do casamento e das relações entre homem e mulher, o jeito de encarar e viver as coisas eram por demais diferenciados. O Quinze, em sua construção, nos fatores que lhe conferem literariedade, nos deixa clara a simpatia recíproca que um nutria pelo outro, todavia o sentimento é estremecido quando Conceição não se submete aos caprichos dos homens sertanejos que, geralmente, encaram a mulher, exclusivamente, como objeto sexual destinado à maternidade dos filhos, à gerência da cozinha, entre outras tarefas, que não faziam parte da concepção de Ceição, do ponto de vista das relações a serem construídas entre os gêneros. Depreende-se daí o fato de Vicente, enquanto representação do espaço patriarcal, reproduzir a ideologia quase que predominante no universo masculino, de ver a mulher como um ser frágil, indefeso, dependente do homem, ou melhor dizendo, sendo sua propriedade. Nas palavras da própria personagem Conceição expressas no diálogo abaixo, observa-se o seu jeito emancipado de ser: Vicente riu, abanando a cabeça, Depois perguntou já sério: - Foi por causa da doença que veio só? Ela riu de novo: - Só? Eu sempre ando só! [...] - Pois eu pensei que não se usava uma moça andar só, na cidade. Dona Inácia ajuntou: - Agora é assim... eu também estranhei... Conceição continuou a rir: - Mas eu, é porque sou uma professora velha, que vou para o meu trabalho! Uma mocinha bonitinha não passeia só, não! Ele ainda disse, levado pelo seu zelo de matuto: - Pois mesmo assim, sendo professora velha, como você diz, se eu lhe mandasse, só deixava sair com uma guarda de banda... (QUEIROZ, 2004, p. 80).

A partir do excerto, o fato de Conceição acreditar em valores contrários aos de Vicente, sobretudo no tocante ao comportamento da mulher na sociedade cearense, nordestina por natureza, vai de encontro aos estereótipos socialmente construídos no que tange ao que se esperaria do comportamento de uma mulher naquele contexto de representação. No dizer de (BARBOSA, 1999, p. 37) “Conceição não quer um marido nos padrões da sociedade da época, que aceita a infidelidade do homem com naturalidade, como uma necessidade da sexualidade masculina”. Na ótica de Dona Inácia, a compreensão de Vicente é correta visto que ela considera normal o fato do homem construir outros relacionamentos fora do casamento. O fragmento abaixo, além disso, enfoca outro grave problema de uma significativa parcela do povo nordestino: o preconceito racial. - Tolice, não senhora! Então Mãe Nácia acha uma tolice um moço branco andar se sujando com negras? Dona Inácia sorriu conciliadora: - Mas, minha filha, isso acontece com todos... Homem branco, no sertão – sempre saem com essas histórias... Além disso não é uma negra; é uma caboclinha clara... -Pois eu acho uma falta de vergonha! E o Vicente, todo santinho, é pior do que os outros! A gente é morrendo e aprendendo! (QUEIROZ, 2004, p. 66).

Conceição descarta esse imaginário coletivo presente, inclusive, no discurso feminino, como o fragmento demonstrou e podemos acreditar que ela rejeita esse tipo de relação porque possui uma concepção formada sobre isso, possivelmente adquirida na capital Fortaleza. Assim sendo, contrariando as concepções reinantes naquele interior, inclusive as de sua avó, sendo conhecedora

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dos rótulos que poderiam vir a classificá-la, tais como, vitalina, aleijão, moça velha, entre outros, a personagem opta por viver sozinha, faz a adoção de uma criança e constitui sua família sem a presença de um companheiro. Não se aplica, nesse caso, o princípio da virgem em si mesma? Assim, observa-se que Conceição, pelo grau de independência e autonomia conquistada, rejeitando a instituição casamento e privilegiando a vida numa perspectiva não bem aceita por seus amigos e familiares, pode representar um primeiro degrau na busca pela libertação da mulher e a igualdades entre os espaços. Tal efeito será retomado por outro viés, por Rachel de Queiroz, a partir da criação de outras personagens mulheres, algumas delas trabalhadas neste texto. 3. Noemi: desenlace e assunção O terceiro romance de Rachel de Queiroz foi Caminho de Pedras, publicado em 1937, entremeado por João Miguel, publicado em 1932, volta a transferir elementos da realidade e construir um projeto estético em que, mais uma vez, (re)discute a questão da mulher. Nesse caso específico, aparece em cena a personagem Noemi. Esse projeto literário, para muitos, recupera a participação da autora no período ditatorial intitulado de Estado Novo. Independente disso e acreditando na chamada morte do autor, após haver a isenção da obra no mercado livreiro, observaremos a nova concepção feminina empreendida nesse romance como parte do projeto autoral mais amplo de Rachel. Pois bem, Caminho de Pedras, como o próprio nome já diz, em sua estrutura interna, com um narrador também em terceira pessoa, retrata a trajetória de uma mulher que percorreu um doloroso caminho em busca de sua realização pessoal. Nem sempre, com as suas posturas, reproduzindo o comportamento de uma mulher para os padrões da época. Na verdade, com o seu pensamento, ela representou uma forte ameaça ao espaço do homem, quando, a partir de um determinado momento da trama, participa de um movimento político cujo ideário ia ao encontro da perspectiva socialista, isso porque à mulher, não era dado o direito de participar de atividades políticas. Grande parte do romance gira em torno da organização desse grupo comunista coordenado por Roberto em Fortaleza-CE. Nesse envolvimento, Noemi descobre-se apaixonada pelo líder do grupo, todavia, lhe parecia complexo, visto que não sabia como desconstruiria o seu enlace matrimonial com João Jaques. Neste momento, a personagem estava consciente de tudo que estava por vir, como por exemplo, o preconceito dúbio: primeiro por deixar o marido por outro; segundo, por envolver-se com uma luta que, na concepção da maioria, não chegaria a lugar nenhum; e não só isso, a luta em que estava se envolvendo era de responsabilidade dos homens. À época, repetindo, política era coisa exclusiva dos homens. Tal compreensão é fortemente marcada quando o seu patrão, reproduzindo o ideário machista, em um determinado momento, verbalizou: “Dona Noemi devia deixar essas idéias perigosas. Uma mãe de família tem que cuidar do lar. Idéias são para os políticos”. (QUEIROZ, 1979, p. 93). No início da narrativa, tem-se a idéia de que Noemi é uma mulher feliz, que se sente bem no trabalho com fotografias e ao lado de seu cônjuge. Mais adiante, quando a trama se funde, percebese uma grande mudança na personagem, caracterizando, o que na teoria da narrativa é chamado de personagem redonda, complexa por natureza. Comparada a Conceição, Noemi, nesse aspecto, pode representar uma evolução. Ela vai um pouco mais além, sai das leituras, dá um salto e participa ativamente do processo geral de libertação em busca da construção de uma sociedade democrática, contrapondo-se à ditadura vigente. Embora que, ao final, a personagem termine numa posição sofrida e fragilizada, não tendo o final estável que Conceição teve. É muito forte o momento em que a personagem Noemi resolve, definitivamente, se separar de seu companheiro, instante em que sentimentos de culpa invadem seu interior, deixando-a perturbada. A separação, dentro do contexto representado, seria um rótulo que ela carregaria nas costas por muito tempo. Que justificativas ela daria à sociedade? Como explicar a sua separação?

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Tudo estava apenas começando e a sua via crucis em busca da construção de sua história estava apenas em sua primeira página. A coisa complica, ainda mais, no momento em que ela perde seu filho e o seu novo esposo é preso, numa colônia penal, na região Sul do Brasil. Associado a isso, veio o desemprego e as conseqüentes dificuldades financeiras. O filho de Roberto que Noemi levava em seu ventre, seria, em meio ao turbilhão de fatos desagradáveis, talvez, o único conforto para ela buscar forças e continuar a tocar o seu projeto de vida, em função da criança, ela era obrigada a ter forças para seguir adiante. O final do romance é por demais catártico e representa para a protagonista a idéia de que nem tudo estaria perdido, ela ainda deveria buscar força para fazer crescer o seu filho que se encontrava em seu ventre. Trata-se da cena em que Noemi sobe uma montanha. Tal subida não representaria a ascensão humana em seu mais sentido literal, simbolizando, entre outras coisas, o sentido da vida a partir da demonstração da fecundidade da mulher? Transcrevemos, abaixo, o final do romance: Para que lembrar agora os dias de desespero, se sentindo sozinha e abandonada, sem dinheiro, sem emprego? Afinal, depois de semanas terríveis, inúteis, conseguira se arranjar numa casa de roupas brancas. Costurava o dia todo, curvada sobre a máquina, abafando, interrompendo-se de vez em quando para tomar um pouco de ar, enquanto no ventre o filho de Roberto aumentava e se debatia. Agora mesmo, na subida, ele dava acordo de si, esperneava. Coitadinho, tão maltratado, tão desprezado, sofrendo o que a mãe sofria, sufocado com ela na rede pequena do quarto ruim! Tinha que deixar o trabalho, pensava Noemi. Casa não lhe faltaria, morava com a mãe dum companheiro, entendia-se bem, a velha era boa, caridosa. Arrumar um serviço mais leve, que rendesse para ajudar na comida e permitisse ao menino crescer à vontade, espernear à vontade. Pisou em falso numa pedra solta. Arrimou-se ao muro. O pequeno parece que se sacudiu todo, comovido também com o choque. Noemi sorriu, amparou com a mão o ventre dolorido: - Mais devagar, companheiro! E voltou a subir a ladeira áspera, devagarinho. (QUEIROZ, 1979 p. 124).

Como se viu na cena apresentada, recheada de simbologia, em consonância com o todo do romance, conclui-se o quanto a sociedade brasileira é cruel e desumana. Vejam que o fato de uma mulher participar de atividades políticas e negar um relacionamento com o seu marido é motivo de dizimar alguém à falta de oportunidade, ao desprezo e ao silenciamento total dos direitos humanos. Como Noemi, quantas mulheres, em pleno século XXI, com toda a abertura peculiar deste século, ainda são vitimadas ao insucesso e à discriminação. Quantas mulheres são obrigadas a serem infelizes, a dizerem a todos que estão bem e aceitarem essa triste realidade que ainda se faz presente no inconsciente coletivo da sociedade brasileira. Quantas mulheres se sentem nada, pelo fato de seus companheiros não as fazerem sentirem orgasmos e elas acreditarem que são doentes, além de não ser “correto” ter uma outra experiência fora do casamento. Quantas mulheres são verdadeiras máquinas, só servem para o trabalho, para a reprodução, para o cuidado com o lar... É preciso ter coragem, ter personalidade, ter consciência de onde se quer chegar para romper com tudo e dizer a todos que a essência da vida consiste na busca constante da realização pessoal. Como Noemi, quantas mulheres são rotuladas de levianas, prostitutas, desleais entre outros adjetivos. Concluímos esta parte do nosso texto enaltecendo a coragem de Rachel de Queiroz, escritora, mulher de uma sensibilidade ímpar, que em épocas de um patriarcalismo desumano, em plena década de 30, inserida num contexto também machista, despontou como uma das mais altas expressões da Literatura Brasileira, rompendo, inclusive, com o paradigma de que a arte de escrever não é um atributo específico do homem, mas das pessoas, dos indivíduos, dos sujeitos, portando, da mulher também.

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4. Maria Moura: a donzela guerreira Memorial de Maria Moura, o último romance de Rachel de Queiroz, tem sua fábula situada em meados do século XVIII; todavia, esse recuo no tempo não impede que a protagonista, a heroína Maria Moura, crie formas de resistir às estruturas econômicas, sociais, ideológicas e políticas, a fim de tocar para frente o seu projeto de se tornar uma grande mulher, respeitada e vista, de igual para igual, no círculo das maiores autoridades de seu contexto. A narrativa, basicamente, gira em torno de Maria Moura e de sua determinação em lutar pelo que deseja: a posse de sua terra – a Serra dos Padres -, herança deixada pelo pai, a qual se tornou objeto de desejo, após a invasão de suas terras no Limoeiro, por parte de seus primos. A partir desse momento, podemos dizer que a narrativa inicia-se, já que a trama começa a fundir-se a partir daqui. Ao iniciar o romance, Moura faz descrições de situações vivenciadas quando ainda estava sob a tutela da mãe, mulher viúva, que traz para dentro de casa o seu amante Liberato, fato que modifica a relação dentro da sua família, haja vista ser um estranho que, para Mura, em princípio, representou uma espécie de ameaça ao seu lugar que, até então, era único. Moura passa toda a sua infância e parte da adolescência em um espaço restrito, limitando-se a pequenos passeios e novenas de santos, até o banho acontecia em horários específicos, nas horas em que não tivesse homem por perto. Talvez isso explique, em partes, o desejo dela querer extrapolar os limites que lhe são determinados na busca de sua autonomia. A notícia de que sua mãe havia falecido e a conseqüente idéia de ficar sozinha com o “padrasto”, deixa-a atormentada. A fragilidade que envolve a adolescente vai ao encontro do interesse de Liberato: apropriar-se de sua herança e abusá-la sexualmente. Nesse momento, surge o primeiro envolvimento sexual da protagonista, justamente com o ex-namorado de sua mãe. Tudo parece normal, segundo depoimento da própria personagem. Sempre no escuro, nunca de dia – isso era ele. Ah, bem se diz, carinho não dói. E talvez, desde menina, no fundo do coração, eu tivesse inveja de Mãe: aquele homem enxuto de corpo, branco de cara, cabelo crespo, mostrando os dentes sem falha quando se ria. Começou mais como uma brincadeira. E aos poucos, bem aos poucos, é que foi ficando uma brincadeira perigosa. Devagar, devagar. Os carinhos se tornando cada noite mais atrevidos, se adiantando, indo longe demais. E eu só sei que nem cheguei a ter remorso, parecia até natural. Durante o dia não transparecia nada, pelo menos era o que eu supunha. O que se passava durante a noite era uma espécie de mistério; como as coisas que a gente faz sonhando e não tem culpa. (p. 20-21).

O fato de Moura envolver-se com o seu “padrasto” e, somente depois ter descoberto que ambas, ela e sua mãe, haviam sido vítimas de exploração por Liberato, faz com que ela fique enojada. Assim, trama, planeja e realiza o seu primeiro homicídio. Interessante observar que Moura faz sempre uso de alguém, geralmente do sexo masculino, para a realização de suas tarefas. Livrada de Liberato, Moura recebe a visita dos primos Irineu e Tonho que apareceram com o propósito de discutir a divisão dos bens, já que eles tinham parte nas terras do Limoeiro que ainda não havia sido inventariada. O fato de Moura ser órfã e ainda ser mulher fez com que até a justiça ficasse contra ela. É inegável que, para uma sociedade machista e desigual como a nossa, torna-se mais cômodo ficar do lado do mais forte, do lado que representa o poder. No caso, o lado dos dois primos homens. A propósito, estava nos planos de Irineu, ficar namorando a prima, para ele seria fácil, bastava dar uma “arrastadinha de asa” e a presa já estava pronta para ser fisgada. Neste ínterim, contrariando a idéia de fragilidade da prima, tem início uma grande história de crimes, assaltos, saques e o fortalecimento de um grupo que Maria Moura construiu de forma muito bem planejada, em que ela, por cima de qualquer coisa, tinha que ser a maior, a mais respeitada, com todas as diretrizes por ela planejadas. Os homens que a acompanhavam tinham o dever de obedecer-lhe e cumprir suas determinações, sob pena de serem colocados fora do grupo ou até morrerem.

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Tema geral: Línguas e Literaturas: Diversidade e Adversidades na América Latina Eu levantei a mão avisando: - Vou prevenir a vocês: comigo é capaz de ser pior do que com cabo e sargento. Têm que me obedecer de olhos fechados. Têm que se esquecer que sou mulher – pra isso mesmo estou usando estas calças de homem. Bati no peito: Aqui não tem mulher nenhuma, tem só um chefe de vocês. Se eu disser que atire, vocês atiram; se eu disser que morra é pra morrer. Quem desobedecer paga caro. Tão e caro e tão depressa que não vai ter tempo nem para se arrepender. (p. 83-84).

De acordo com o que observamos no excerto acima, ocorreu, em partes, o apagamento do comportamento feminino da personagem, na medida em que ela assume perante o seu grupo que todos têm que a obedecer e ainda que não há ali mulher nenhuma, mas, tão somente, um chefe. Estando Maria Moura sem nada, iria atrás de uma grande herança, a Serra dos Padres, que ficava muito distante dali. Ela tinha consciência de que era longe e que enfrentaria difíceis problemas, todavia, tratava-se de uma questão de honra apropriar-se do que era seu, dar a volta por cima e se vingar de todos os que quiseram colocá-la para trás. Ao encontrar-se numa região despovoada e sem muitos horizontes, Moura reorganiza e amplia o seu bando para, definitivamente, prosseguir com o seu projeto. Inicialmente, o grupo realiza alguns furtos e, só depois de uma certa convivência com aquele novo modo de vida, passam a realizar grandes assaltos e a desafiar grandes coronéis que ali havia. Nesse sentido, no momento em que Moura observa que pode chegar longe agindo dessa forma, a ambição, característica peculiar da protagonista, faz com que ela pense cada vez mais alto: Eu sentia (e sinto ainda) que não nasci para coisa pequena. Quero ser gente. Quero falar com os grandes de igual para igual. Quero ter riqueza! A minha casa, o meu gado, as minhas terras largas. A minha cabroeira me garantindo. Viver em estrada aberta; e não escondida pelos matos, em cabana disfarçada, como índio ou quilombola. Mas num alto descoberto, deixando ver de longe o casarão lá em cima, telhado vermelho, paredes brancas caiadas. Cavalos de sela comendo milho na estrebaria, bezerro gordo escaramuçando no pátio. (p. 125).

Maria Moura pretende, através da riqueza, adquirir poder, prestígio individual, viver em estrada aberta, passando um apagador em tudo que lhe acontecera no passado, tornando-se temida e respeitada por todos. Chegando à Serra dos Padres, Moura começa a pensar na construção de sua casa, tinha que ser uma grande fortaleza, espaçosa e que pudesse ter espaço para abrigar os vários tipos de pessoas, em quaisquer situações. Na planta da casa construída por Moura, apresentada abaixo, nos chamou atenção o cômodo denominado “cubico”, seria para prender algum cabra do seu bando que cometesse alguma infração ou outro que aparecesse por ali, além de um ótimo esconderijo. Tal cômodo não poderia deixar de existir, pois alguém que vivia, clandestinamente, da forma que ela vivia, inevitavelmente, teria que privilegiar esse espaço: Durante a construção da Casa Forte, Maria Moura sente a necessidade de envolver-se, afetivamente, com alguém. Depois do aparecimento de Duarte, filho bastardo de um tio com a negra Rubina, surge entre os dois um relacionamento que logo foi quebrado quando Moura viu que, pelo grau de parentesco, não daria certo. Outro motivo que levou a guerreira a deixar o relacionamento que mal teve início com seu parente foi o aparecimento de Cirino, rapaz claro que, após cometer um delito onde morava, foi trazido pelo pai até a Casa Forte, onde permaneceu sob a proteção de Moura. Em estando lá, o pai tinha consciência de que o filho estaria “guardado”. Maria Moura entrega-se a uma paixão desesperada pelo rapaz. O sentimento é facilmente percebido por ele, momento em que começa a praticar atos que, num futuro próximo, poderia colocar em xeque a autonomia dela perante o seu bando. Na maior desobediência cometida, Moura, mesmo nutrindo fortes sentimentos por Cirino, obriga-se a eliminá-lo. Para isso, conta com o apoio de

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Valentim, esposo de Marialva, sua prima legítima, irmã de Tonho e Irineu, saltimbanco que possuía habilidades com o truque das facas, certamente não erraria o alvo. Fato consumado. O casal estava morando em uma casa que a prima havia mandado erguer para recebê-los, em função do casamento clandestino que realizaram, dada a não aceitação de seus irmãos Tonho e Irineu. O final do romance é marcado por um grande propósito da personagem, talvez realizar o maior saque da história do bando, extremamente arriscado. Das duas coisas, uma poderia acontecer: ou o reinício de uma vida marcada com mais sucesso, ou a liquidação do bando. Pensando na segunda possibilidade, ela deixa tudo para o recém-chegado filho de Valentim e Marialva, o Alexandre, o Xandó, parente mais novo da protagonista.

5. A tensão masculino x feminino na construção da personagem Maria Moura Antes de mais nada, como propõe (FOUCAULT, 1999, p. 09), é importante observarmos que, comparando os padrões comportamentais estabelecidos entre os séculos XVII e XIX, podemos perceber que, no início do século XVII, existia uma maior liberdade imposta pelos códigos de comportamento, e que, em meados do mesmo século, deu-se início a “ uma época de repressão

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própria das chamadas sociedades burguesas”, à qual ainda estamos sujeitos, gerando, nos últimos séculos, “uma verdadeira explosão discursiva acerca do sexo”. (p. 21). Nessa perspectiva, a protagonista do romance Memorial de Maria Moura é construída a partir de uma polivalência sem igual e recupera, de certa forma, o ideário discursivo da explosão referida por FOUCAULT, anteriormente expressa. Maria Moura é misteriosa, portadora de personalidade dupla e que, a partir dessa heterogeneidade, constitui alvo de estudo sob diversificados olhares. Acreditamos ser uma tarefa difícil dar conta de todos os elementos constitutivos de uma personagem com tais comportamentos. Na verdade, não é a primeira vez que na tradição literária brasileira, aparece uma personagem como Moura, outros autores já criaram personagens que, por uma situação, tiveram que assumir uma dupla identidade, a exemplo de Luzia Homem, Diadorim, entre outras. Nesse sentido, em diferentes olhares, cada personagem possui uma intencionalidade e um enfoque diferenciado. Maria Moura, de fato, é uma mulher que exerce a sua sexualidade com homens, sente-se invadida, em alguns momentos, por sentimento de solidão e carência afetiva. O fato de ela vestir-se de homem, possivelmente, foi uma forma encontrada para se sobressair das situações-problemas que a vida lhe impôs. Caso Moura fosse uma mulher passiva como quase todas de sua época, a sua vida perderia o sentido logo no início da trama; todavia, o forte sentimento de ódio e o obstinado desejo de viver, fizeram com que ela desse a volta por cima e, mesmo sem ser fácil, ela conseguiu mostrar a todos que não somente o homem é símbolo de fortaleza, mas a mulher também, nem que para isso, necessário se faça portar-se como tal. No tocante ao desempenho da sexualidade de Maria Moura, confirmado a tese que ela, pelo menos em princípio, não possui características homo-eróticas, é o fato de ela envolver-se, afetivamente, e realizar seus desejos carnais em três momentos consecutivos: a primeira vez com o Liberato, o responsável pela retirada de sua virgindade, a segunda vez com o Duarte, seu parente próximo e, a última vez, de forma arrebatadora, com o Cirino. Sobretudo com o último, ela consegue entregar-se de corpo e alma a ponto de, por poucos instantes, perder a razão. Interessante destacar que, em todos esses relacionamentos, a coisa foi omitida entre as pessoas do seu convívio, visto que, para ela, o fato de alguém saber que estava se relacionando com alguém, abriria um precedente e ela poderia ser colocada para trás. Na visão de Moura, a prática do relacionamento afetivo entre ela e um homem constituiria, no mínimo, passividade, o que, por uma questão de sobrevivência, não era aceito por hipótese alguma. Rachel de Queiroz, ao criar uma personagem-donzela com esses moldes, pode conduzir-nos ao entendimento de que, a condição de chefe de um bando de homens, todos cangaceiros, alguns foragidos da polícia, faz com que Maria Moura sinta-se obrigada a vestir uma calça, uma camisa comprida e uma bota de homem, além de cortar o cabelo na altura do pescoço para impor respeito e poder tocar o seu projeto. Tal condição apresenta-se para (GALVÃO 1981, p.16) como um disfarce de uma fantasia simbólica [...] sendo o desempenho guerreiro um papel masculino em toda a parte, e talvez o caso mais extremo de comportamento vedado ao sexo feminino, não seria de estranhar que sejam tão numerosas as fantasias femininas de apropriação correlatas. Nessa medida, o que seria da protagonista do romance caso não tivesse chegado à conclusão de que teria de ter, além da vestimenta masculina, uma postura de mulher forte, destemida e determinada? Será que se comportando e se vestindo como antes, nos tempos do Limoeiro, teria conseguido chegar onde chegou? Esse efeito constitui um passo a frente ou um recuo no tão sonhado processo de libertação da mulher? Numa sociedade patriarcal como a representada no romance, o que a mulher precisa fazer para conquistar o seu lugar ao sol? Era tudo ou nada. Ela apostou em algo e deu certo. Prova disso foi a conquista da realização de seus sonhos, claro que a personagem é inconformada e, a todo momento, está querendo mais. Diferentemente de Marialva, Firma, sua mãe e muitas outras mulheres que aparecem no romance, Maria Moura não tinha em mente a compreensão de que o casamento lhe traria felicidade. Ao contrário, ela adquire convicção de que, em sua vida de mulher-guerreira, um homem só atrapalharia. A

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presença de um varão não seria útil àquele tipo de vida que praticava. Por isso, ela prefere manter seus relacionamentos afetivos, pontualmente, às escondidas e longe de qualquer suspeita de seus pares. Nessa perspectiva, a personagem vê a relação homem x mulher da mesma forma que a sociedade sempre viu, ou seja, a lógica de que um homem, na relação com a mulher, necessariamente, tem que ser o maior, o mais forte, o ativo, o que ela não queria para si. Casar-se, construir laços, ter filhos, tomaria o seu tempo de forma que o seu marido poderia querer ocupar o seu lugar e, indubitavelmente, seria colocada pra trás, coisa que nem em sonho passaria por sua cabeça. Maria Moura, durante toda a sua trajetória, construiu grupos isolados de poder, opôs-se à igreja católica, ao estado e à ordem social vigente, criando suas próprias leis. Com sua prática de mulher-guerreira, deu um salto significativo e mostrou a todos que a mulher, quando possui propósitos definidos, consegue também superar desafios e vencer. Sintetizando, a história de Moura é apenas uma de muitas histórias de mulheres que, por motivos vários, obrigaram-se a tomar uma posição que não estava em seus planos. A vestimenta aparente de homem, possivelmente herdada da referência deixada pelo pai, não a faz passar por homem. Simplesmente constitui um mecanismo e expressão de sua rejeição ao papel de uma mulher indefesa, como fora criada por seus pais, passando a ter uma identidade própria, não de homem, mas de Dona Moura, como assim era referendada em seu grupo e pelos poderosos, vizinhos seus de latifúndio. 6. Considerações finais Sem a menor pretensão de concluir a discussão em torno do gênero, muito menos de esgotar as possibilidades de olhares em torno das três personagens femininas de Rachel de Queiroz aqui analisadas, chegamos ao fim desse ensaio de escrita com a certeza de que o texto literário é, na verdade, algo por demais catártico e desperta no chamado leitor inquieto, a capacidade de jogar com possibilidades de sentido, de evadir-se do mundo real, de adentrar no universo das letras artísticas, na busca constante da “polpa da palavra”, como tão bem metaforizou a escritora alagoana Arriete Vilela, em recente bate-papo literário realizado com meus alunos de graduação em Letras no Campus V da Universidade Estadual de Alagoas - UNEAL, em União dos Palmares. Em suas materializações artísticas, os três romances em discussão trazem à tona a discussão do gênero, do feminino, da essência humana em sua mais perfeita harmonia, na medida em que, com enfoques diferenciados, reconstroem histórias de tantas mulheres espalhadas por esse país a fora, (re)construídas em terreno simbólico, na arte, via o estético. Não a história de mulheres passivas, dependentes do homem, sufocadas pelo silenciamento das estruturas de poder que, paradoxalmente, ainda apresenta postura atrasada e conservadora em relação a busca da igualdade entre os gêneros. Rachel de Queiroz, a primeira mulher a ingressar na Academia Brasileira de Letras, sempre vanguardista em sua forma de pensar e escrever, a grande criadora de mulheres, a grande personalidade feminina brasileira que fez ecoar, pelos quatro cantos desse país, através de sua literatura, o latente desejo de ver a sociedade tratar os seus pares com igualdade e respeito, deixou para todos nós, leitores proficientes ou não, o desejo de construir uma sociedade mais justa, uma sociedade onde os sujeitos, dentro de suas especificidades naturais, caminhem juntos, lado a lado, um preenchendo no outro o seu vazio natural. Conceição, Noemi e Maria Moura, uma tríade perfeita de personagens, representam, sob diferentes olhares, o tão sonhado processo de libertação da mulher. Saiam mulheres, dos limites da ficção e se vivifiquem em várias Conceições, Noemis e Marias Mouras! Estremeçam as estruturas do poder e façam acontecer a liberdade plena entre os sujeitos na construção de um mundo melhor onde, independente de qualquer coisa, as pessoas cumpram os seus papéis e façam acender a chama da liberdade.

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Referência BARBOSA, Maria de Lourdes Dias Leite. Protagonistas de Rachel de Queiroz: caminhos e descaminhos. Campinas SP: Pontes, 1999. FOUCAULT, Michel. História da Sexualidade I. Rio de Janeiro: Edições do Graal, 1977. GALVÃO, Walnice Nogueira. A Donzela Guerreira: um estudo de gênero. São Paulo: SENAC, 1998. QUEIROZ, Rachel de. O Quinze. 74 ed. Rio de Janeiro: Livraria José Olympio Editora, 2004. ______. Caminho de Pedras. 7 ed. Rio de Janeiro: Livraria José Olympio Editora, 1979. ______. Memorial de Maria Moura. 9 ed. São Paulo: Siciliano, 1992. http://www.releituras.com/racheldequeiroz_bio.asp < Acesso em: 01/04/2009.

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A HISTORIOGRAFIA DA IMAGEM: PINHEIRO CHAGAS ENTRE TEMPOS Jane Adriane GANDRA (Universidade de São Paulo)1

RESUMO: Este ensaio pretende analisar as imagens construídas de Manuel Pinheiro Chagas nas histórias literárias, e discutir as possíveis causas de sua exclusão do cânone português. PALAVRAS-CHAVE: Manuel Pinheiro Chagas; Geração de 70; Eça de Queirós; Histórias Literárias; Ostracismo Literário.

ABSTRACT: This essay intends to analyze the constructed images of Manuel Pinheiro Chagas in the literary histories, and to argue the possible causes of its exclusion of the Portuguese canon. KEY WORDS: Manuel Pinheiro Chagas; Seventies generation; Eça de Queirós; Literary Histories; Literary ostracism. 1

Doutoranda do Programa de Estudos Comparados de Literatura de Língua Portuguesa da FFLCH_USP, bolsista CNPQ


Anais do II Congresso Internacional de Estudos Linguísticos e Literários na Amazônia (CIELLA) “Conheço que tenho seguido um caminho errado, e vejo finalmente com dor profunda que a posteridade não falará no meu nome senão para o acabrunhar com o seu desprezo. Nunca me remontei, librandome nas asas da inspiração pindárica, os erguidos cumes do sublime, vejo que andei sempre rastejando, e, percorrendo a longa lista dos meus folhetins, noto com imenso desalento que sempre chamei as coisas pelo seu nome”. (Manuel Pinheiro Chagas, 1865)

Eugênio Lisboa, em seu Dicionário cronológico de autores portugueses, registra nas primeiras linhas do seu estudo sobre Pinheiro Chagas a seguinte assertiva: “Figura influente em seu tempo, [...] é hoje pouco mais que um nome.” (LISBOA, s.d, p. 239). Poderíamos citar alguns outros exemplos, mas, talvez, este resuma melhor a real situação do autor do Poema da mocidade no cânone português, pois tomando como base esta afirmativa, a obra de Pinheiro Chagas não seria de interesse de nenhum leitor que lesse esta introdução de Lisboa. Infelizmente, isso não ocorre somente com nosso autor. No século XX, a partir dos anos 60, o movimento de renovação literária começou a discutir a marginalidade e o decréscimo impostos ao espólio cultural de muitos escritores do passado que foram silenciados na historiografia literária. Muitos desses autores participaram de períodos literários de tensão, em que o surgimento de uma nova estética colocava em xeque o estilo então hegemônico e a posição dos seus líderes. Por exemplo, em Portugal no período oitocentista, iniciava-se num campo cultural pequeno e restrito diversas polêmicas, objetivando defender as especificidades de suas escolas. Vale dizer que nessa época, as controvérsias constituíam também, para a classe artística, uma oportunidade de ganhar notoriedade e, assim, poder formar o público que iria consumir a sua arte. Neste ensaio, pretendemos fazer um levantamento bibliográfico desde a crítica literária de seu tempo, passando pelo século XX até aos dias atuais, com o intuito de verificar como se processou a evolução da fortuna crítica sobre Pinheiro Chagas, e se há um sentido paradigmático nas referências ao nosso autor nas histórias literárias. Verificamos que no tempo de Pinheiro Chagas alguns críticos como Visconde Benalcanfor (1874), Gervásio Lobato (1881), Candido Figueiredo (1881), Brito Aranha (1883) e Maria Amália Vaz de Carvalho (1906) o consideravam como uma poderosa individualidade literária. Para eles, isso se devia muito a sua escrita multiforme de estilo rápido, claro e fluente. Gervásio Lobato (1881, p.281) chega a denominá-lo “não só uma celebridade de Portugal, mas sim um punhado de celebridades”. Brito Aranha, Figueiredo e Lobato fazem referência a História de Portugal de Pinheiro Chagas, como uma obra de vulto e de valor notável, que teve grande sucesso e durante muito tempo foi referência histórica em Portugal, preferida fonte de informação e juízo, em concorrência com as idéias da de Oliveira Martins. Outros, como Silva Pinto (1878), reconhecem as qualidades literárias de Pinheiro Chagas apenas no campo historiográfico ou crítico. Mesmo, nesta época, nosso autor ter obtido muito sucesso com alguns de seus romances históricos e com as diversas apresentações do drama A morgadinha de Valflor. Já João Chagas (1906) e Maria Amália Vaz de Carvalho (1906) seguem a mesma linha ao discutirem que Pinheiro Chagas tem muitos artigos políticos admiráveis, pontuados de criticidade, lucidez e humor. Contudo, para os dois críticos em questão, a falha em sua vida literária estaria no fato de este ter escrito a Morgadinha de Valflor, considerada uma peça melodramática, segundo os moldes ultrarromânticos. Por outro lado, há críticas que não valorizam nenhuma das qualidades literárias do autor da Morgadinha Valflor, como a de Luciano Cordeiro (1869). Neste ano, este publica um texto ácido e detrator sobre Pinheiro Chagas em seu Livro de crítica. Arte e literatura portuguesa de hoje. A seu ver, este era medíocre tanto como romancista, poeta ou crítico. Cordeiro faz críticas veladas à permanência de Chagas no circuito das letras, insinuando ser esta oriunda de meios escusos, e que a poligrafia de nosso escritor seria a falta de uma especialidade artística. Já em outros estudos que serão referências no século XIX, como os de Teófilo Braga, um dos mais importantes generacionistas, não há nenhuma análise sobre o espólio literário de Pinheiro Chagas. No entanto, em uma obra de Braga, As Modernas idéias da literatura portuguesa (1892) existe uma

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citação do Poema da mocidade (1865), apenas como exemplificação da crítica protecionista de Castilho. Teófilo Braga associa a literatura dos ultrarromânticos à escola do elogio mútuo, que, para este, fazia da vida jornalística e literária verdadeiros trampolins para cargos no Estado. No fragmento a seguir, apesar de Pinheiro Chagas não ter sido oficialmente citado como integrante desta escola como aparecem os nomes de Rebello da Silva, Mendes Leal, Andrade Corvo, para a Geração de 70, nosso autor era um dos principais beneficiários dessa prática. Desde que Rebello Silva pensou em ser ministro, como todos os outros jornalistas que chegaram ao poder, tratou de provar que era mais do que estilista e um orador. [...] A atividade jornalística e literária serviam em Rebello da Silva para realizar uma aspiração política, um sonho comum a todas as naturezas medíocres mais hábeis – o ser ministro. (BRAGA, 1892, p.161).

Partilham dessas mesmas idéias de Teófilo Braga, em As Farpas, Eça e Ramalho Ortigão. Segundo eles, “[...] quando um sujeito consegue ter assim escrito três romances, a consciência pública reconhece que ele tem servido a causa do progresso e se lhe dá (sic) a pasta da fazenda.”(QUEIRÓS; ORTIGÃO, [1871] 1943, p.57). Em 1881, Oliveira Martins em Portugal Contemporâneo é mais explícito e cita Pinheiro Chagas como um dos últimos ultrarromânticos a conseguir, junto com Tomás Ribeiro, um cargo de ministro. De acordo com este historiador, Castilho seria o Fontes da poesia local. O chefe deste neo-romantismo, entre burocrático e piegas, artificial, sem raízes no coração de uma gente prosaica ou devassa; o chefe desse romantismo cujos derradeiros foram Chagas e Tomáz Ribeiro, com o D. Jaime e a secretaria da Marinha, com a Morgadinha e uma política sempre infeliz; o chefe de uma escola arrebicada e petulante, foi Castilho- um velho Fontes da poesia. (...) e um governo literário de um homem vazio de idéias, repleto de poética sábia. (MARTINS, [1881] 1981, p. 363).

Citando agora Eça de Queirós, devemos esclarecer que este não fez especificamente uma obra de crítica literária. No entanto, o autor de O crime do padre Amaro não deixou de registrar suas impressões sobre os homens do seu tempo e a qualidade de suas obras na sua ficção, correspondências e nos opúsculos que escreveu. Em nossa opinião, como o maior adversário literário e ideológico de Pinheiro Chagas nas polêmicas que digladiou, Eça se tornará, para grande parte da crítica a partir do século XX, uma voz que ecoa na historiografia para ilustrar uma participação retrógrada e conservadora de Chagas, principalmente no meio literário. Excetuando o celebrado Fidelino de Figueiredo, até meados dos anos vinte, teremos citações referentes à fortuna crítica de Pinheiro Chagas, somente em autores de pouco renome junto às histórias literárias atuais, como Pedro Julio Barbuda, (1918), J. Barbosa de Bitencourt (1923) e Simões Dias (1929). Suas análises confluem em estabelecer uma atuação brilhante e multiforme de Chagas no meio literário. Não são, entretanto, elencadas todas as obras de nosso autor e, no fim destes estudos, há apenas uma pequena bibliografia com os títulos mais conhecidos. É deixado de lado também alguma alusão às questões polêmicas que o envolveram com a geração de 70. Pois, interessa-lhes, sobretudo, como bem salienta Júlio Barbuda, confirmar ainda a notoriedade e atuação fantástica que teve este polígrafo português no terceiro quartel do século XIX. Dessa maneira, estes textos, de forma sucinta, expõem a diversidade de atuação de Pinheiro Chagas tanto no meio literário, político e administrativo. Sob forte influência dos dizeres de Antonio Feliciano de Castilho, expressiva parte da crítica deste período recupera as idéias de que a escrita frenética do autor do Poema da mocidade estaria relacionada às suas necessidades pecuniárias. Em relação à Fidelino de Figueiredo (s.d, p.301), este explicita as primeiras considerações depreciativas a respeito de Chagas, como “constante adversário da nova literatura”, principalmente, em relação aos textos ecianos. Por seu turno, José Agostinho, em uma obra publicada em 1927, constitui de forma tímida, o primeiro indício da preocupação de uma crítica quanto à subalternidade imposta à obra multiforme de Pinheiro Chagas, devido a todo tipo de adversidades que esteve exposto. A partir da década de 40, determinantemente, a linha de pensamento dos críticos dessa época vai se afinando com as idéias da geração de 70. As citações aludidas ao nosso autor nas histórias literárias serão em apenas três situações, como pivô da célebre polêmica literária A Questão Coimbrã , como aliado importante de Castilho na Questão Faustina e adversário da carreira literária

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de Eça de Queirós. Outros estudos, como os de Viana Moog (1938), Álvaro Lins (1939), Alberto Ferreira (1966) e João Gaspar Simões (s.d), vão mais longe e reforçam que Chagas considerava as idéias revolucionárias de Eça como depreciações à imagem de Portugal. Muito disso tem sua origem na contenda Brasil e Portugal digladiada entre o autor de O crime do padre Amaro e o d’ A corte de D. João V. Em textos que priorizam o tema geração de 70, como é o de João Gaspar Simões, dificilmente não serão encontradas as alcunhas que Eça de Queirós estabeleceu a Pinheiro Chagas. Portanto, o discurso regerá na seguinte linha de pensamento, enquanto Eça de Queirós seguia pela estrada da razão e da crítica, Pinheiro Chagas trilhava o atalho da eloqüência e do conformismo. Enquanto Eça de Queirós atacava com idéias e ironia, Pinheiro Chagas ameaçava com frases e autoridade. Esse crítico acredita que a partir da discussão que Pinheiro Chagas fez sobre a apresentação do autor de Os Maias nas Conferências do Cassino, num artigo publicado na Revolução de Setembro, nunca mais haverá harmonia entre o “ brigadeiro” e o romancista. (SIMÕES, s.d, p.105).

Para este ensaísta, era um impertinente adversário do realismo em geral, e de Eça de Queirós em particular. Devido a isso, este autor, a partir de certa altura de seu texto, chamará nosso autor de “ brigadeiro Chagas” ou de “ homem fatal”. No entanto, ao final de sua discussão, Gaspar Simões se mostra lúcido e não desmerece toda a crítica de Pinheiro Chagas, pois acredita que é preciso prestar-lhe uma homenagem pela lucidez com que, no seu “ brilhante relatório”, em análise a certos aspectos menos felizes de A Relíquia. [...] não podemos deixar de ver na sua argumentação algo que resgata Pinheiro Chagas de outras mal aplicadas censuras à obra e à personalidade do grande romancista de Os Maias. (SIMÕES, s.d, p.10).

No entanto, nos anos 60, do lado oposto à pequena parte positiva da crítica de Simões a Chagas, está a de Ferreira (1966) que não vislumbra nenhum argumento que se pudesse aproveitar dos textos do autor do Poema da mocidade, principalmente o de suas polêmicas. Ao contrário, ele destaca que a controvérsia Brasil e Portugal terá resquícios ideológicos e emocionais da contenda 1865, pois permaneciam vivos dois sistemas distintos, o Ultrarromantismo tardio e o Realismo já estabelecido. E, conclui que só por meio dessa contenda se poderia ver liquidadas as contas entre esses dois grupos ideologicamente distanciados, ou seja: “[...] Será necessário esperar pachorramente pela saudável gargalhada de Eça, assistir, enfim, de alma lavada, à escalpelização crítica do patriotismo dos ‘brigadeiros vestidos à moderna’ ”.(FERREIRA, 1966, p.106). Neste mesmo sentido, autores importantes, como Augusto França (1969) e Jacinto do Prado Coelho (1969), coincidirão em exaltar o lado polemista de Chagas, citando ainda os traços de saudosista ultrarromântico, mas de dinâmica presença. Mencionam, superficialmente, a numerosa bibliografia desse autor, pois a maior ênfase desses estudos é discutir o lado reacionário do autor de A morgadinha Valflor. Refletindo sobre o que foi discutido até aqui, entendemos que o problema não é somente constatar a depreciação imposta à biobibliografia dos autores silenciados, mas descobrir a maneira como é construída as histórias literárias que permitem sua exclusão. Como podemos verificar em João Medina (1975) sobre a Geração de 70. Este autor ao considerar que a forma mais adequada de agregar as personalidades literárias desse movimento revolucionário cultural seria por meio da cronologia – exclui e desloca Pinheiro Chagas para um lugar indeterminado. Nessa análise, não podemos deixar de ver que o autor do Poema da mocidade torna-se um problema para essa crítica, se considerarmos que cronologicamente este faz parte da nova geração, pois nasceu no mesmo ano que Antero de Quental (1842), um dos integrantes da ínclita Geração de 70. Assim, Chagas seria a vertente desse grupo etário que permanece apagado e depreciado numa espécie de limbo literário. Chegando nos fins do século XX, e iniciando o seu subsequente, elegemos como representantes da crítica literária alguns dos principais estudos, dentre eles, o de Alexandre Cabral (1988), Antonio Machado Pires (1992), Saraiva & Lopes (1996), Helena Carvalhão Buescu (1997) e Carlos Reis (2001). Desta lista, apenas Buescu, depois de fazer uma breve análise de algumas obras deste autor, propõe uma revisão de sua fortuna crítica. Para nós, a centralidade do discurso desses especialistas retoma a conceituação feita pelos grupo de 70 sobre a figura literária de Pinheiro Chagas. Procuram dar mais destaque as atividades políticas do autor do Poema da Mocidade e as diversas polêmicas

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em que se envolveu com os integrantes da escola de Coimbra, principalmente com Eça de Queirós, do que analisarem o conjunto de sua obra multiforme. Talvez seja pelo simples fato, já discutido por José Hermano Saraiva, de que os historiadores da literatura dão muito relevo ao movimento de renovação de idéias e de modelos literários verificados em Portugal nas décadas decorridas entre 1860-1880. Compreende-se essa atenção em decorrência de terem surgido nesta época alguns dos maiores escritores portugueses do século passado, que faziam parte da célebre geração dos novos. Em síntese, a crítica literária deste período reiteram as idéias de Teófilo Braga, Oliveira Martins e Ramalho Ortigão, de que o ultrarromantismo era uma conseqüência do parlamento. Analisam que escritores tão fecundos, admirados e consagrados no período oitocentista, estarem hoje esquecidos, possa estar vinculado ao fato de que associaram literatura à vida política. Mais um texto fundamental, principalmente na formação inicial dos acadêmicos em Letras no estudo de Literatura Portuguesa, é o de Saraiva e Lopes (1996). Neste livro, a obra inaugural de Pinheiro Chagas, o Poema da Mocidade, só é lembrado como o desencadeador da discórdia literária intitulada Bom senso e bom gosto, bem como as relações de favorecimento que mantinha com Castilho, ou, ainda, a autores ligados ao governo da Regeneração, como foram Camilo Castelo Branco, Bulhão Pato, Tomás Ribeiro. Existe, no entanto, uma breve listagem de alguns romances históricos de Chagas, mas nenhum estudo aprofundado de qualquer um destes. Depois deste trajeto historiográfico, indiscutivelmente, percebemos, é uma realidade, a obra multiforme de Chagas praticamente não é estudada. Contudo, os estudos de Maria Fernanda de Abreu (1994) recuperam Pinheiro Chagas numa perspectiva positiva, diferentemente da grande maioria da crítica literária que o vê apenas como o antagonista da geração mais culta e importante do século XIX. Em sua análise, Abreu identifica um certo tipo de modernidade no texto desse autor que de forma inteligente e sensível apresenta aspectos que somente foram percebidos e analisados na mesma medida, por volta de 1960, por Antonio José Saraiva. A discussão do crítico oitocentista considera que há uma raiz folclórica em Sancho Pança; estabelecendo uma progressiva quixotização deste e uma santificação de Dom Quixote. Olhando por este prisma, este novo aspecto contraria aquilo difundido pelos historiadores literários sobre a imagem da crítica de Chagas, sempre representada por meio de um aspecto negativo e regressivo; pois, para eles, os únicos ideais progressivos e humanísticos presentes no Portugal de 1800, a partir da Questão coimbrã, estarão presentes nos discursos do grupo literário da qual Pinheiro Chagas não fazia parte. Gostaríamos de, agora, por fim, discutir as ideias de dois críticos, Nuno Júdice (s.d) e Eduardo Lourenço (1982). O primeiro considera que o ostracismo de nosso autor se deve muito especialmente a concorrência injusta da produção gigantesca de Camilo e, de outro lado, pela produção realista de Eça de Queirós. Já o autor de O labirinto da saudade não concede um lugar a Chagas no cânone que ele constrói. A resposta a essa questão talvez possa ser dada se pensarmos não no que é excluído, mas sim no que é recuperado por esse crítico. Essa é uma conjetura importante, se analisarmos que a partir de Garrett e Herculano, Portugal, enquanto realidade histórico-moral, constituirá o núcleo da pulsão literária determinante. De tal maneira, que a historiografia posterior a essa época entende serem obras “[...] in-significantes ou de pouco relevo [...] em que essa motivação confessa ou oculta está ausente. Não é sem razão que as relegamos para esse curioso espaço literário que designamos de arcadismo póstumo e que não é apanágio, senão por simplificação, do único Castilho”.(LOURENÇO, 1982, p.87 ). Se a obra de Pinheiro Chagas sofre também esse tipo de desqualificação por parte da crítica portuguesa e ainda brasileira, o mesmo não ocorre nos estudos de Frank Kermode (1998) que reincide no elogio a este literato e insiste na urgência da leitura de suas obras de forma a matizar e mesmo desfazer a imagem d’ Epinal que se construiu do romance histórico do período oitocentista. Kemode considera que Chagas seria depois de Fernando Pessoa a maior revelação que a literatura portuguesa produziu. Noticia, ainda, que haverá a reedição de suas obras, principiando pela A Máscara Vermelha. Possivelmente, esses estudos ingleses já tenham encontrado nas obras de Pinheiro Chagas, um escritor potencialmente fecundo que o século dele não soube compreender; fundamento contrário a tudo que a maior parte da historiografia de Portugal e Brasil vem disseminando em seus ensaios de crítica.

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Vimos por meio dos desdobramentos feitos na trajetória da crítica sobre nosso autor, como polígrafo e político, que sua imagem negativa e deturpada recuperada pela história literária é conseqüência das relações tumultuadas que este manteve com os literatos do seu tempo, principalmente com Eça de Queirós. Esse antagonismo de Chagas foi determinante para que fosse estabelecido para ele um papel definitivo de “eterno zoilo da Geração de 70”, assim Ferreira (1966) e Medina (1974) o encarceraram em suas histórias. Entendemos que um ponto de inflexão, certamente, na biografia de Pinheiro Chagas é a Questão Coimbrã, não somente por ser ela a referência mais usual quando o citam, mas também por demarcar, ao mesmo tempo, a sua inauguração nas letras e o começo de uma ridicularização que nos parece imortalizada. Além disso, entendemos que a exclusão de Chagas do cânone português deve-se em boa parte às polêmicas que teve com Eça de Queirós, que o retratou satiricamente como “Brigadeiro do tempo de D. Maria I”, imagem a que o autor ficou reduzido, em muitas histórias literárias. Dessa maneira, ele acabou por ocupar um lugar à sombra até mesmo de escritores certamente de muito menor significado para a literatura de seu tempo. Nossas observações podem parecer parciais por estarmos relacionando o ostracismo literário desse escritor inteiramente ao fato de ter representado o tipo de literatura e patriotismo que a geração nova tentou combater, e não por ter sido o seu espólio literário datado para sua época. Sabemos que a exclusão do cânone se pode dar por diversas maneiras, pois nos parece que já é uma prática habitual nessas histórias a exaltação de um escritor em detrimento de outros tantos, principalmente, em momentos literários que não se tem muito bem definido o início e o fim de uma estética, como foi o caso do Romantismo em relação ao Realismo em Portugal. Dessa maneira, o caber mal de muitos escritores no cânone português estaria diretamente relacionado ao fato de como são construídas as histórias literárias. Especificamente Pinheiro Chagas, quase a totalidade da crítica atual associa a sua literatura às suas decisões conservadoras. Destacam-lhe o oportunismo – no sentido que ele atacava a tudo e a todos que lhe fosse conveniente; a intransigência – quando rivaliza, a todo instante, contra a nova literatura que surgia e, por último, o viver às custas do trabalho das letras – que lhe deu popularidade suficiente para a conquista de posições burocráticas. Não podemos nos esquecer de que esse último argumento Eça discutiu excessivamente em As farpas (1871). Contudo, depois de apresentarmos críticas, mesmo que tímidas como a de Buescu, e outras mais categóricas como a de Abreu, é inevitável não pensarmos que, possivelmente, Pinheiro Chagas não seja tão irrelevante como os seus adversários pensavam e que as histórias literárias hoje divulgam. E somente depois de uma revisitação às obras deste autor, descubram-se outros aspectos de sua biobibliografia que foi indelevelmente refletida, até os nossos dias, pelo monóculo deformador de Eça de Queirós. Defendemos que a visão do autor de O mandarim contamina o olhar de quase toda a crítica que se debruçou até hoje sobre a literatura do seu tempo, persistindo em abandonar o autor do Poema da mocidade no século XIX, como se ele nenhum interesse tivesse para além de ter sido um antagonista dos novos. Nossa intenção, neste ensaio, foi a de tentar mostrar que isso não é a inteira verdade. Referências ARANHA, Brito. Diccionario Bibliográfico Portuguez. Estudos de Innocencio Francisco da Silva. Tomo 16. Lisboa: Imprensa Nacional, 1893 p.288-297 ABREU, Maria Fernanda de. O prefácio de Pinheiro Chagas (1876). In: Cervantes no Romantismo português. Cavaleiros andantes, manuscritos encontrados e gargalhadas moralíssimas. Lisboa: Editorial Estampa, 1994. pp.77-92 BARBUDA, Pedro Júlio. Literatura Portuguesa. Baia: Estabelecimento dos 2 mundos, 1918 p.294-295 BENALCANFOR, Visconde de. Fantasias e Escritores Contemporâneos. Porto: Livraria Internacional de Ernesto Chardron/ Braga: Livraria Internacional de Eugênio Chardron, 1874. pp.165-183 BITENCOURT, J. Barbosa de. História Comparativa da Literatura Portuguesa. Porto: Livraria Chardron, 1923. BRAGA, Theofilo. As Modernas Idéias da Literatura Portugueza .Porto: Lugan & Genelioux, sucessores, 1892

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Tema geral: Línguas e Literaturas: Diversidade e Adversidades na América Latina BUESCU, Helena Carvalhão. Dicionário do Romantismo Literário Português. Lisboa: Editorial Caminho, 1997. CABRAL, Alexandre. Dicionário de Camilo Castelo Branco. Lisboa: Editorial Caminho, 1988 p.178-179 CARVALHO, Maria Amália Vaz de Carvalho. Pinheiro Chagas In: Ao correr do tempo. Lisboa: Parceria Antonio Maria Pereira, 1906. pp. 119-132 CHAGAS, João. Vida literária. Idéias e sensações. Coimbra: França Amado- Editor, 1906 CHAGAS, Manuel Pinheiro. Ensaios críticos. Porto: Em Casa de Viúva Moré Editora, 1866 COELHO, Jacinto do Prado. Dicionário da Literatura Portuguesa e Brasileira , Literatura Portuguesa, Literatura Galega. Estilística literária. Vol I. A.M Rio de Janeiro: GB. Companhia Brasileira de Publicações, 1969. CORDEIRO, Luciano. Literatura de crítica. Arte e Literatura de hoje. Porto: tipografia, Lusitana, 1869 DIAS, Simões J. História da Literatura Portuguesa. 12 ed. Lisboa: M. Teixeira & C. Filhos, 1929 p.271 FERREIRA, Alberto. Bom senso e bom gosto. Questão coimbrã. Textos Integrais da polêmica; recolha, notas e biobibliografia por Maria José Marinho, 4 vols, Lisboa: Portugália Editora, 1966-1970. FIGUEIREDO, Cândido de. Homens e Letras. Galeria de Poetas Contemporâneos. Lisboa: Tipografia Universal, 1881. pp.77-81 e 385-387 FIGUEIREDO, Fidelino. Literatura Portuguesa Desenvolvimento Histórico das origens a atualidade. Rio de Janeiro: Editora à Noite, 1940 ______. Literatura Portuguesa. Desenvolvimento histórico das origens à atualidade. Rio de Janeiro: Editora A noite, s.d. FRANÇA, José Augusto. O Romantismo em Portugal. Os Anos de Contestação. Lisboa: Livros Horizonte, 1969 KERMODE, Frank. In: Revista Colóquio Letras. N°S. 147/148. Jan- jun de 1998. Lisboa: S/ editora LINS, Álvaro. História da literatura de Eça de Queirós. Rio de Janeiro: Livraria José Olímpio Editora, 1939. LISBOA, Eugênio. (coordenação). Dicionário cronológico de autores portugueses. Vol. II. Lisboa: Publicações Europa-América, s.d. pp.239-241 LOBATO, Gervásio. Crônica Moderna. In: Revista crítica ilustrada. Lisboa: Oficina Tipográfica da Empresa Literária de Lisboa, 1881 pp.281-285 LOURENÇO, E. O labirinto da saudade. Psicanálise mítica do destino português. Lisboa: Dom Quixote, 1978. MARTINS, Oliveira. Portugal Contemporâneo. Vol II. Porto: Artes Gráficas, [1881]1981 MATOS, A Campos. Dicionário de Eça de Queirós. 2 ed. Lisboa: Editorial Caminho, 1988 p.711-715 MEDINA, João. A Geração de 70: uma síntese provisória. In: Revista Colóquio Letras. n° 28. Lisboa: s/ editora. novembro de 1975, pp.25-31 MOOG, Vianna. Eça de Queirós e o século XIX. Porto Alegre: Ed. da Livraria do Globo, 1938 ORTIGÃO, Ramalho; QUEIRÓS, Eça de. As farpas. Sel. e pref. de Gilberto Freire. Vol. I Rio de Janeiro: Dois Mundos editora ltda., [1871]1943. pp.53-57 PINTO, Silva. Controvérsias e estudos literários. In: Balzac em Portugal. Porto: Imprensa comercial de Santos Correia e Mathias, 1878. pp.143-155 PIRES, Antonio Machado. A idéia de decadência na Geração de 70. 2 ed. Lisboa: Ed. Veja, 1992 REIS, Carlos. História da literatura portuguesa. Vol.5 Lisboa:Publicações Alfa, 2001 SAMPAIO, Albino Forjaz de. História da literatura portuguesa ilustrada dos séculos XIX e XX. Porto: Livraria Fernando Machado, s.d. SARAIVA, Antonio José; Lopes, Oscar. História da literatura portuguesa. 17 ed. Porto: Editora Ltda., 1996. SARAIVA, José Hermano. História concisa de Portugal 5a ed. Coleção Saber. Publicações Europa-América , s.d. SIMÕES, João Gaspar. A Geração de 70. Alguns tópicos para a sua história. Lisboa: Editorial Inquérito Ltda., s.d.

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A SELEÇÃO DE INFORMAÇÕES E O TRATAMENTO DOS TEMAS NO DISCURSO DOS ALUNOS DA 3ª SÉRIE DO ENSINO FUNDAMENTAL A PARTIR DE UMA ABORDAGEM ETNOGRÁFICA COLABORATIVA Jane Miranda ALVES (Universidade Federal do Pará)

RESUMO: Este artigo propõe descrever e analisar o processo de apropriação do gênero exposição oral por alunos em fase de letramento na ocasião do planejamento da primeira e segunda exposição oral dentro do contexto das práticas de ensino-aprendizagem da Língua Portuguesa. O estudo se particulariza com base em uma abordagem etnográfica colaborativa, uma vez que leva em conta o contexto em que os dados foram gerados, os objetivos pré-estabelecidos, o perfil dos envolvidos na ação e os resultados obtidos. PALAVRAS-CHAVE: apropriação; exposição oral; ensino-aprendizagem; pesquisa colaborativa.


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1. Introdução Dentro de uma perspectiva metodológica interpretativista, nossa pesquisa tem como foco compreender o que os alunos elegem como mais saliente nos textos-base. O tratamento dos temas foi mediado por um conjunto de atividades: a leitura dos textosbase, a seleção de informações centrais, o registro escrito dessas informações e sua reconfiguração na ficha de planejamento da exposição oral. Nossa análise se assenta na teoria bakhtiniana em que as ações de linguagem pressupõe uma atitude apreciativa ativa na medida em que implicam em uma réplica. As fichas preenchidas pelos alunos podem ser tomadas como uma réplica tanto ao gesto didático que solicitou a realização de uma dada tarefa, quanto ao texto-base de que se serviriam os alunos na implementação dessa tarefa. Nessa direção, propomos verificar, a seguir, uma das atividades (a 2ª questão) proposta na Ficha de planejamento1. 2. A teoria na construção do objeto de ensino Schneuwly e Dolz (2004) sublinham um caráter ativo, “processual” da língua oral e superior através de instrumentos didatizadores que facilitam o aprendizado por alunos que se apropriam não só de conteúdos de uma dada disciplina, mas também à aprendizagem dos modos de falar esses conteúdos, de instaurar a fala como o próprio objeto de ensino. A exposição oral pode ser definida como um gênero textual público, geralmente formal e específico que envolve o sujeito- o enunciador/expositor- que age em uma determinada situação definida, a ação- o ouvinte e o instrumento semiótico- o gênero. Seguindo na esteira vygotiskiana de cunho sócio-histórico, o professor promove a interdependência entre os interactantes no ambiente escolar, levando em conta os procedimentos que giram em torno da metodologia colaborativa. Nestas perspectivas o outro passa a ter um papel fundamental no desenvolvimento dos indivíduos, levando-os aos processos ainda em desenvolvimento e remetidos a uma zona de desenvolvimento proximal, que Vigotsky (1896-1934, p. 112) chama de ZDP2. Ela é a distância entre o nível de desenvolvimento real, que se costuma determinar através da solução independente de problemas e o nível de desenvolvimento potencial, determinado através da solução de problemas sob a orientação de um adulto ou em colaboração com companheiros mais capazes.

Durante o trabalho em sala de aula, o professor recorre a dois níveis de ZDP. O primeiro é o nível de desenvolvimento real, em que são levados em conta os conhecimentos já consolidados no aluno, a partir dele o professor parte para o nível de desenvolvimento potencial que requer uma maior intervenção didática. A gestão desse trabalho mediado pelo professor se dá através da interação com outros alunos e de exercícios modelizadores que agem sobre o objeto ensinável. Em resumo, a intervenção do professor se dá a partir de um nível de desenvolvimento real e envereda por um nível de desenvolvimento potencial que envolve a capacidade que a criança tem em desempenhar tarefas com a ajuda não só de adultos, mas também dos colegas de sala de aula. Desta forma, a ZDP propicia um espaço privilegiado de aprendizagem por meio de processos de intenalização, relido bakhtinianamente como apropriação. 3. Metodologia da pesquisa 3.1. Algumas considerações sobre a pesquisa etnográfica colaborativa Nossa pesquisa pode ser considerada um estudo de caráter etnográfico, visto que ela “faz uso das técnicas que tradicionalmente são associadas à etnografia, ou seja, a observação participante, 1 2

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Ver a íntegra nos anexos 01 e 02 Por vezes, em traduções, ele surge como zona de desenvolvimento potencial.

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a entrevista intensiva e a análise de documentos” (ANDRÉ, 1995, p. 28). Nessa direção, a postura que assumimos foi de observadora participante e de colaboradora. O termo colaborativo indica um trabalho em comum com uma ou mais pessoas. Encontramos em Horikawa (2004, p. 124) a seguinte definição: [...] a pesquisa etnográfica de cunho colaborativo defende a necessidade do comprometimento do pesquisador com o local e os sujeitos da pesquisa, no sentido de transformá-los em direção à construção de um espaço escolar que possibilite a formação de sujeitos críticos, autônomos e criativos [...]

Assumimos a perspectiva de uma pesquisa etnográfica colaborativa voltada para a prática reflexiva sobre os sujeitos envolvidos em uma relação de parceria cotidiana. Assim, pesquisador, professor, alunos e outros elementos3 co-habitam o mesmo espaço cujo objetivo é a construção social de um determinado objeto dentro de uma prática pedagógica. Para especificar em que se baseia e a importância da etnografia para nossa pesquisa, fazemos referência a André (1995, p. 30), para quem a pesquisa etnográfica “visa à descoberta de novos conceitos, novas relações, novas formas de entendimento da realidade”. Para nós, o processo de geração dos dados engendra determinadas situações, pessoas, ambientes etc.. Isto nos permitiu, como veremos mais adiante, a descrição de alguns fenômenos ocorridos em sala de aula. Moita Lopes (1996, p. 88), por sua vez, afirma que a pesquisa etnográfica se caracteriza por “uma descrição narrativa dos padrões característicos da vida diária dos participantes sociais (professores e alunos) na sala de aula de línguas na tentativa de compreender os processos de ensinar/ aprender línguas”. Esse tipo de pesquisa visa desvelar os processos que naturalmente ocorrem em sala de aula e que muitas vezes tornam-se invisíveis aos olhos de quem deles participa. A etnografia, portanto, se mostra para nós como uma tentativa de responder a algumas questões do tipo: como são organizados os acontecimentos em um determinado contexto estudado? O que eles significam para professor e alunos? Quais instrumentos usar, para quê e como eles se equivalem em um contexto de aprendizagem? Cançado (1994) e Van Lier (apud WIELEWICK, 2001, p. 28) concordam que o princípio holístico é básico para uma abordagem do tipo etnográfica que tem por objetivo examinar os fenômenos ocorridos em sala de aula como um todo, levando em conta aspectos sociais e pessoais. Nossa pesquisa ganha contornos etnográficos com base em dois traços: a perspectiva naturalista-ecológica e a hipótese qualitativo- fenomenológica. Na primeira, o comportamento humano se situa em um ambiente natural e é influenciado por ele, o contexto. No aspecto fenomenológico4, “passamos a compreender o mundo em que vivemos e nos compreendemos como seres em compromisso e convivência com as coisas e os outros” (SILVA, 1994, p. 30). As necessidades e dificuldades que detectamos ao longo do processo foram transformadas e re-orientadas através de um movimento de investigação reflexiva de nossa ação na sala de aula como um todo. Para que isto acontecesse foi necessário que repensássemos nosso papel de professor com um caráter meramente “técnico” e passássemos “a ter uma visão de si mesmo [nós mesmos] como um prático” (GRIGOLI e TEIXEIRA, 2007, p. 84), ou seja, como um professor-pesquisador. Nesta direção teoria e prática devem caminhar conjuntamente no processo investigativo sobre nossa ação no microcosmo da sala de aula. É nela que passamos a ampliar ainda mais nossa compreensão sobre o processo pedagógico em si. A pesquisa colaborativa deve propiciar um espaço aberto a uma permanente reflexão sobre os fatos ocorridos em sala de aula e suas relações com as teorias de ensino-aprendizagem e os objetivos que queremos alcançar. Desta forma, nos propomos aqui a investigar o espaço escolar, participar das atividades desenvolvidas na escola, registrar os diferentes fenômenos que ocorrem no decorrer das interações no ambiente escolar, como tentativa de construir colaborativamente novas interpretações Consideramos aqui como outros elementos uma teia de relações envolvendo pedagogos, direção, escola. Do ponto de vista filosófico, Merleau-Ponty buscou uma nova noção de comportamento que permitisse a interligação do homem com seu mundo.

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que possam efetivar novas práticas e, assim, nos permitam desencadear macro-ações a fim de favorecer o processo de construção da autonomia, de emancipação e de reflexão dos participantes durante o processo. Este tipo de pesquisa é emancipatório porque nela procuramos registrar cuidadosamente, no caderno de campo, as atividades, as impressões, as reações dos alunos (hetero e auto-avaliações, gestos, expressões na fala e na face, influências midiáticas) reproduzidas posteriormente nas transcrições dos diálogos. O fato de termos nos utilizado de uma câmera nos permitiu revisitar os dados, efetuar mudanças e refiná-las mais ainda. Em linhas gerais, nos debruçamos sobre a investigação dos fenômenos que ocorreram no ambiente escolar observado, tornando-os “visíveis” aos nossos olhos de investigadora e do professor à luz de contribuições teóricas que corroborassem para que nossa prática cotidiana se materializasse e promovesse mudanças no espaço escolar. É fato que pretendemos aqui investigar como é construído o saber discente acerca de um objeto de ensino. Para tanto, buscamos aprofundar o conhecimento sobre este objeto e as relações que se conjugam em seu entorno envolvendo no foco de nossa análise múltiplos fatores que se articulam e se estabelecem nos limites de atuação do professor e do aluno dentro do microcosmo da sala de aula. Em resumo, o desenvolvimento de nossa pesquisa envolveu os seguintes passos: – nossa participação prolongada no ambiente escolar, buscando interagir com o professor da turma, os alunos e o meio cultural da escola; – o estabelecimento de objetivos que pretendíamos atingir; – a “visibilidade” de novas rotinas de trabalho à luz de uma prática cotejada por contribuições teóricas e em constante modificação; – discussões sobre questões que nos permitiram refletir sobre nossa prática em relação ao fenômeno focalizado; – identificação através de atividades orais e escritas do que se torna mais saliente para os alunos levando em conta seu meio social com vistas a um diagnóstico e conseqüentemente à postulação de novos objetivos por parte do professor e do pesquisador; – o registro das ações em caderno de campo, áudio e vídeo; – o estabelecimento de macroações a partir de nossa experiência “em campo”. 3.2. Os sujeitos participantes, o lócus e a ação Nossa pesquisa surgiu de uma necessidade do estudo do gênero oral formal público em séries iniciais. A turma escolhida era constituída de 25 alunos que cursavam a 3ª série do ensino fundamental, na faixa etária entre 8 e 9 anos, provenientes dos mais variados pontos da região metropolitana de Belém e, portanto, bastante heterogênea. Embora o percurso de letramento escolar deles ainda não comportasse conhecimentos relativos ao gênero oral formal público- a exposição, o trabalho com eles constituiu-se em um processo colaborativo, interativo dentro das práticas de ensino-aprendizagem. Os dados são de uma escola pública federal de grande porte, localizada na periferia de Belém (PA), no bairro da Terra Firme. Essa escola funciona como campo de estágio e pesquisa para os alunos que cursam a graduação e pós-graduação na Universidade Federal do Pará (UFPA). Estes dados foram coletados no 4º bimestre do ano letivo de 2007, iniciando-se no mês de novembro e estendendo-se até o início de janeiro de 2008. Inicialmente, a atividade analisada abaixo se desenvolveu a partir de temas5 já previamente escolhidos pelos alunos e selecionados pelo professor da turma e, posteriormente, distribuídos a seis grupos (GRP01, GRP02 e etc.) com temas variados (as cobras, as formigas, a nuvem, a chuva, o papel, 5

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Chamaremos este tema de texto-base.

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o vento). Os textos-base foram estudados em sala de aula a partir de um objeto de ensino em comum evidenciado dentro de uma seqüência didática. 4. A análise dos modos de apropriação de gêneros discursivos como prática no ensinoaprendizagem. Nossa análise gira em torno do que se constitui como mais relevante nas respostas dos alunos em uma atividade da Ficha de planejamento da exposição oral6. 4.1. Os modos de seleção e tratamento de informações dos temas a partir de uma atividade da ficha de Planejamento. Figura01 – Ficha de Planejamento da Exposição oral Ficha de preparação da Exposição oral Agora que já expusemos sobre dois temas e assistimos a um programa sobre “de onde vêm o raio e o trovão”, vamos nos preparar para realizar nossa primeira exposição. Para isso, você deverá trabalhar em grupo, ajudando os colegas a planejar as tarefas e distribuí-las para o grupo. Resolva as questões a seguir que ajudarão você a se preparar melhor para exposição oral: (...) 2.ª) Leia o texto e retire 3 ou mais informações sobre o assunto: 1.ª informação: 2.ª informação: 3.ª informação: (...)

Entre os modos com que se pode dar a seleção e o tratamento de informações sobre os temas temos: i) por meio de reformulações de seqüências textuais do texto-base: a) paráfrases (cópias de trechos do texto), b) substituições, c) expansões; ii) por meio de inserção (acréscimo) pelo aluno de dados de seu próprio repertório de conhecimentos; iii) por meio de exclusão.

abaixo.

Vejamos de que forma esses fenômenos se configuraram nas repostas dos alunos transcritas

i) Por meio de reformulações A reformulação se efetiva para nós como um macroprocesso em que habitam no mesmo espaço paráfrases, substituições e expansões como fenômenos não excludentes, ou seja, eles ocorrem 6

Esta ficha inclui várias atividades que preparam o aluno para as exposições orais.

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simultaneamente nas respostas dos aprendentes. Assim, nos ateremos somente àqueles fenômenos selecionados abaixo. A fim de tornar mais visível nossa análise, indicaremos esses fenômenos assinalando- os, tanto nos textos-base quanto nas respostas dos discentes de forma singular. a) Paráfrases Encontramos em Hilgert (2002: 144) a definição de paráfrase, entre tantas outras, que nos pareceu relevante para nossa análise. A paráfrase (P) é um enunciado lingüístico que, na seqüência do texto, reformula um enunciado anterior, chamado de enunciado-origem ou matriz (M) com o qual mantém, em grau maior ou menor, uma relação de equivalência semântica.

Para este autor, a paráfrase mantém com a matriz, que aqui chamamos de texto-base7, uma relação paradigmática, ou seja, ela “pode ocupar o mesmo lugar sintático da matriz no contexto em que está inserida” (ibidem). No exemplo abaixo procuramos comparar sistematicamente o texto de referência com as respostas dos alunos objetivando a partir delas esclarecer as ocorrências de paráfrases em suas produções. Figura 02 – Texto-base: A chuva Chuva é um fenômeno meteorológico que consiste na precipitação de água sobre a superfície da Terra. A chuva forma-se nas nuvens (...) A chuva tem papel importante no ciclo hidrológico. A quantidade de chuvas é medida usando um instrumento chamado pluviômetro, de funcionamento simples: a boca de um funil de área conhecida faz faz a coleta das gotas de chuva e as acumula em um reservatório colocado abaixo do funil. (...)

Figura 03 – Ficha de preparação da exposição oral inicial 1ª Chuva é um fenômeno meteorológico que consiste na precipição de água Sobre a superfície da terra. 2ª A chuva forma-se nas nuvens. 3ª A chuva tem papel importante no ciclo hidrológico

(RA- GRP05)

Figura 04 – Texto-base: O vento O vento pode ser considerado como o ar em movimento (...) A velocidade do vento é medida com aparelhos chamados anemômetros. Esses aparelhos, normalmente possuem três ou mais pás girando ao redor de um pólo vertical. Quanto mais rápido for esse giro, maior é a velocidade do deslocamento do ar. (...) Curiosidades -O vento atua como agente de transporte efetivo, intervém na polinização e no deslocamento das sementes.

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Todos os itens negritados e sublinhados nos trechos retirados dos textos-base são de responsabilidade dos textos originais.

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Figura 05 – Ficha de exposição oral final 1ª O vento pode ser considerado como o ar em movimento. 2ª A velocidade do vento é medida com aparelhos chamados anemômetros. 3ª O vento atua como agente de transporte efetivo, intervém na polinização e no deslocamento das sementes. (RA- GRP06)

A aluna RA, tanto na primeira quanto na última produção, usou a paráfrase como recurso para apropriar-se das palavras do texto-base. Estas adquiriram um caráter monumental, intocável, embasadas na teoria vigostskyana de que as crianças só se apropriam da palavra e do conceito a partir do momento em que forem usados por ela. Apesar de suas respostas se encontrarem cristalizadas nas palavras do autor, a aluna RA descartou o conceito e a forma de uso do anemômetro (2º item da figura 04), visto que a complexidade e o detalhamento deste aparelho talvez não estivesse suficientemente configurado no repertório de informações de que dispunha a aluna neste intervalo de seu letramento escolar. A nomeação, a conceituação e a importância do vento para o meio ambiente foram considerados por ela como fatores relevantes, seguindo, assim, a linearidade que envolve o texto-base. b) Substituição A reformulação, do ponto de vista formal, pode ocorrer no eixo da substituição. Nela, as idéias centrais do autor estão na mesma dimensão léxico-sintática do texto-base. Fuchs (1982) e Marcuschi (2008, p. 258) destacam a sinonímia como um dos mecanismos de reformulação. Por outro lado, Marcuschi (ibdem) também refere-se aos “horizontes” como diferentes modos que envolve a leitura de um texto-base. Um deles, o “Horizonte mínimo”, aponta para uma leitura parafrástica, uma “espécie de repetição com outras palavras em que podemos deixar algo de lado, selecionar o que dizer e escolher o léxico que nos interessa”. Sendo assim, por uma questão didática, optamos aqui por separar a substituição, referente às escolhas lexicais, da paráfrase, tratada aqui como mera cópia do texto-base. Portanto ocorre substituição nos seguintes exemplos: Figura 06 – Texto-base: As formigas

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Figura 07 – Ficha de preparação da exposição oral inicial

A resposta do aluno M no 1º item se dá por associação à figura e ao tamanho de uma formiga. Neste caso ocorre o que chamamos de “substituição por associação” que conjuga a figura à produção textual do escrevente. A substituição no 2º item está presente na troca verbal de “podem viver” por “vivem”, “enquanto que” por “e”, em “conseguem viver mais de” por “vivem 15 anos” e na troca de “trabalhadoras” por “formigas trabalhadoras”. Neste último encontramos a “substituição por associação” ao termo “trabalhadoras”, presente no texto-base, à imagem da formiga. A capacidade de ficcionalizar e as noções relativas à cadeia alimentar dizem muito sobre o processo de construção de conceitos. No 3º item elas se apresentam a partir das “pistas” contidas no texto-base, ou seja, das informações lidas pelo aluno e presentes no discurso do autor e do lugar nãobanal da fabulação acerca das noções relativas à cadeia alimentar. Figura 08- Texto-base:A nuvem

Figura 09 – Ficha de exposição oral final

A substituição ocorre na troca de “transportadas” por “teletran(s)portadas”, este último é, geralmente, usado em filmes e desenhos de ficção científica. É recorrente nos demais textos do escrevente a influência de personagens fictícios, um exemplo disso é o fato de utilizar- se de personagens de Mangá8. 8

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Mangá refere-se a quadrinhos japoneses e, especificamente neste caso, ao personagem Naruto, um ninja com superpoderes

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Nesse contexto, M responde ativamente ao fato de influenciar e ser influenciado por outros gêneros midiáticos. Assim, consideramos que a partir disso o aluno ficcionaliza em um determinado contexto sociointeracional. c) Expansão A reformulação, do ponto de vista formal, também pode ocorrer no eixo da expansão. Nela, as idéias do autor são reformuladas pelos alunos na medida em que acrescentam termos à seqüência extraída do texto-base. Figura 10 – Texto-base- As formigas

Figura 11 – Ficha de preparação da exposição oral inicial

A aluna GC procurou ainda em sua primeira produção distanciar-se da impessoalidade do texto através do uso da 2ª pessoa (você sabia que...), reconhecendo desta forma, a participação do outro. Figura 12 – Texto-base- As formigas

que vive em um mundo fictício, um Japão feudal com influências tecnológicas. No Brasil esta série começou a ser exibida na TV em 2007 (no mesmo ano em que coletamos nosso corpus).

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Figura 13 – Ficha de exposição oral final

No 1º item, o fenômeno da expansão pode ser visualizado na resposta da aluna GC através do termo “e entre outros”. Ela parte da leitura do texto-base associando-o a sua própria experiência para admitir que existem outros eletrodomésticos que podem ser danificados pelas formigas. ii) Por meio de inserção (acréscimo) Para Marcuschi (2008, p. 255- 257), a introdução de elementos que “não estão implícitos nem são de base textual”, consiste em um acréscimo de termos ao texto original que objetiva explicar como se dá o processo da compreensão de um texto. O autor estabelece o que ele chama de horizontes. Dentre eles, o “horizonte máximo” de produção de sentido refere-se às inferências possíveis a partir de informações e conhecimentos pessoais contidos ou não no texto de referência. Figura 14 – Texto-base: o papel

Figura 15 – Ficha de exposição oral inicial

O aluno JA associa “madeira”, “poder poluente” e “tóxicos” a “aque(c)simento global”. Deste modo confirma o fato de que as inserções estão intrínsecas a outros conhecimentos. Nas respostas

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deste aluno a palavra que até então era alheia torna-se própria, assim a maioria das informações contidas no texto-base sofrem um apagamento em relação às palavras do autor. Dentro do processo de compreensão, Marcuschi (2008, p. 259) denomina de “horizonte máximo” a perspectiva que considera as atividades inferenciais, ou seja, “as atividades de geração de sentidos pela reunião de várias informações do próprio texto, ou pela introdução de informações e conhecimentos pessoais ou outros não contidos no texto”. Figura 16 – Texto-base: As cobras

Figura 17- Ficha de preparação da exposição oral final

A resposta do aluno F denota a reunião de várias informações marcadas de forma singular no texto-base, a partir delas este aluno faz inferências no 2º item. Figura 18- Texto-base: As formigas

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Figura 19- Ficha de preparação da exposição oral inicial

A inserção ocorre em suas respostas no 1º e no 3º item em que a aluna desloca e retoma sua leitura do texto-base, baseando-se na relação homem/ formiga/ sociedade, materializando, desta forma, a inserção de novas idéias. iii) Por meio de exclusão Os alunos selecionam e sintetizam as informações que mais lhe parecem pertinentes em detrimento de outras consideradas por eles menos relevantes e contidas no texto-base por meio da exclusão. Figura 20 – Texto-base: As formigas

Figura 21- Ficha de preparação da exposição oral inicial

No 2º item a aluna GC sintetiza a idéia contida no texto principal excluindo o que lhe parece desnecessário, os advérbios “geralmente” e “rapidamente”.

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Figura 22 – Texto-base: O vento

Figura 23 – Ficha de preparação da exposição oral inicial

A exclusão se dá a partir dos termos marcados no texto-base. Isto indica o movimento que o aluno JV faz a fim de sintetizar as informações do autor. A partir dos trechos acima partimos, então para a análise de um conjunto de 21 respostas9 produzidas pelos alunos (AJ, A, CA, D, F, FP, CG, GM, JE, JA, JV, J, JVT, K, O, PT, P, RA, R, T, M). Percebemos nelas a ocorrência dos seguintes fenômenos ordenados no gráfico abaixo: Gráfico 01

Utilizamo-nos para o gráfico de 21 respostas e não das 25 referentes ao total de alunos visto que alguns não responderam a todas as atividades ou não entregaram algumas das fichas distribuídas em sala de aula.

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Para Fuchs (1982) e Hilgert (2002, p. 143), os interlocutores recorrem com mais freqüência à paráfrase como “uma estratégia de reformulação”. Paraphrases10, c’est se livrer à une activité de reformulation, par laquelle on restitue le sens d’un discours (énoncé ou texte) déjà produit.(...) Pourtant la reformulation est ici essentielle, et l’étude des mécanismes de reformulation est particulièrement éclairante. (FUCHS, 1982, p. 29)

Através do gráfico podemos perceber que a paráfrase, tida aqui como cópia ou repetição do texto-base, tem maior índice de ocorrência tanto na 1ª quanto na 2ª produção dos alunos. Dois fatos isolados muito nos chamaram a atenção, o primeiro deles foi a ocorrência de apenas uma inserção na produção final do aluno F (GRP04- As cobras); o segundo diz respeito ao fato do aluno JA em sua produção inicial e final (GRP03- O papel e GRP01- A chuva, respectivamente) ser o único a não utilizar a paráfrase em seus textos. Para nós, é comprometedor para o resultado obtido aqui o fato de alguns alunos não terem entregues suas Fichas de planejamento, alterando em muito a realidade do gráfico. Entretanto, ele nos dá um claro sinal de como se configura o processo de letramento nas séries iniciais. 5. Algumas considerações finais Retomando o propósito deste artigo – descrever e analisar o que os alunos elegem como mais relevante nos textos-base a partir de uma atividade escrita- é possível afirmar como os aprendentes selecionam e hierarquizam as informações contidas nos texto-base e de que forma eles se apropriam do objeto de ensino. Alguns fatores corroboraram para a efetivação deste processo de apropriação: o processo colaborativo no ambiente escolar, o reconhecimento do outro como parte efetiva da ação, a seqüência didática promovida pelo professor, além de outros conhecimentos já internalizados ao longo de sua escolarização. Isto leva os aprendentes a estabelecer objetivos e a adquirir novas competências e habilidades em torno do objeto de ensino. Entretanto, o elevado número de paráfrases, exclusões e inserções nas exposições iniciais demonstram que os alunos arriscaram muito mais na 1ª do que na 2ª produção. Talvez isto se deva ao fato dos alunos sentirem-se mais à vontade e menos compromissados com o objeto de ensino na primeira produção do que na segunda, possibilitando o surgimento de textos mais espontâneos na 1ª produção. Isto parece refletir no baixo número de inserções em suas exposições finais. O fato de termos um número elevado de paráfrases presentes nas atividades da primeira exposição dos alunos implicou em um maior número de substituições e expansões na exposição final, o que parece apontar para um sinal positivo para o fato na qual Bakhtin (1895-1975, p. 403) fala sobre “a palavra do outro se torna anônima, apropriam-se dela (numa forma reelaborada, é claro)”. O que se percebeu é que os alunos procuram outras formas de se apropriar das palavras alheias apagando em alguns casos a autoria. Acreditamos, portanto, que a troca de experiência entre os envolvidos na ação alimenta um processo reflexivo nas práticas escolares por meio da pesquisa colaborativa. É através dela e à luz dos estudos sócio-histórico, enunciativo-discursivo e da seqüências didáticas que estas práticas se efetivam no espaço escolar contribuindo significativamente para a formação dos atores (professor, pesquisador, alunos etc.) durante o processo.

As paráfrases se envolvem em uma atividade de reformulação, em que se restaura o sentido de um discurso (texto ou enunciado) já produzido. (...). No entanto, a reformulação aqui é crucial, e o estudo dos mecanismos de reformulação é especialmente esclarecedor (Tradução nossa). 10

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Referências ANDRÉ, Marli Eliza. D. A de. Etnografia da prática escolar. Campinas, São Paulo: Papirus, 1995. BAKHTIN, Mikhail (1895-1975). Estética da criação verbal. São Paulo: Martins Fontes, 2000. CANÇADO, Márcia. Um estudo da pesquisa etnográfica em sala de aula. Trabalhos de Lingüística Aplicada. Campinas, no 23, p.55-69, Jan./ Jun. 1994. FUCHS, C. La paraphrase entre la langue et le discours, Langue Française, vol. 53, Paris, 1982, p.22-33. GRIGOLI, Josefa A.G; TEIXEIRA, Leny R.M; LIMA, Claudia Maria de, et al. A formação do professor investigador na escola e as possibilidades da pesquisa colaborativa: um retrato sem retoques. Revista Lusófona de Educação, Lisboa, 2007, no10, p.81-95. ISSN 1645-7250. HILGERT, José Gastón. As paráfrases na construção do texto falado: o caso das paráfrases em relação paradigmática com suas matrizes. KOCH, Ingedore (org.). In Gramática do Português Falado. Campinas, SP: Editora da Unicamp, 2002. Vol.6. Desenvolvimentos, p. 143- 158. HORIKAWA, Alice Yoko. Pesquisa colaborativa: uma construção compartilhada de instrumentos. Revista Intercâmbio, vol. XVIII:22-42, 2008. São Paulo: LAEL/PUC-SP. ISSN 1806-27x. MARCUSCHI, L.Antonio (1946). Produção textual, análise de gêneros e compreensão. São Paulo: Parábola Editorial, 2008. MOITA LOPES, Luis Paulo da. Oficina de lingüística aplicada: a natureza social e educacional dos processos de ensino/ aprendizagem de línguas. Campinas, São Paulo; Mercado de letras, 1996. SCHNEUWLY, B., DOLZ, J. et al. (2004). Gêneros Orais e Escritos na Escola. Campinas, SP: Mercado de Letras (Roxane Rojo & Glaís Sales Cordeiro, org. e trad.), 2004. SILVA, Úrsula Rosa da. A linguagem muda e o pensamento falante: sobra a filosofia da linguagem em Maurice Merleau- Ponty. Porto Alegre: EDIPUCRS, 1994. VIGOSTSKY, Lev Semenovich (1896-1934). A formação social da mente: o desenvolvimento dos processos psicológicos superiores.São Paulo: Martins Fontes, 1998. ______ (1987). Pensamento e linguagem. São Paulo: Martins Fontes, 1993. WIELEWICKI, V. H. G. A pesquisa etnográfica como construção discursiva. Acta Scientiarum, Maringá, 23(1):27-32, 2001, ISSN 1415-6814, 2001.

Anexos Anexo 01 FICHA DE PREPARAÇÃO DA EXPOSIÇÃO ORAL INICIAL

Núcleo Pedagógico Integrado/ 3ª. Série – Disciplina: L. Portuguesa Turma: _____ Data _________ Aluno (a):____________ Professor(a)_______________________ Ficha de preparação da Exposição oral _____________________________________________________________ Agora que já expusemos sobre dois temas e assistimos a um programa sobre “de onde vêm o raio e o trovão”, vamos nos preparar para realizar nossa primeira exposição. Para isso, você deverá trabalhar em grupo, ajudando os colegas a planejar as tarefas e distribuí-las para o grupo. Resolva as questões a seguir que ajudarão você a se preparar melhor para exposição oral:

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1ª) Sobre qual assunto o seu grupo vai expor? _____________________________________________________________________________ _________________________________________________________ 2ª.) Leia o texto e retire 3 ou mais informações sobre o assunto: 1ª. informação: _____________________________________________________________________________ _______________________________________________________________________ 2ª. informação: _____________________________________________________________________________ _______________________________________________________________________ 3ª. informação: _____________________________________________________________________________ _______________________________________________________________________ 4ª.) Como o grupo vai se comportar durante a exposição? Voz: ___________________________________________________________________________ Postura do corpo: ___________________________________________________________________________ Uso do texto escrito: ___________________________________________________________________________ 5ª.) Como o grupo vai organizar a exposição? Defina algumas tarefas e quem vai executá-las: Tarefa Quem vai executar _____________________________________________________________________________ _____________________________________________________________________________ _____________________________________________________________________________ ___________________________________________________________

Anexo 02 FICHA DE PREPARAÇÃO PARA A EXPOSIÇÃO ORAL FINAL Núcleo Pedagógico Integrado/ 3ª. Série – Disciplina: L. Portuguesa Turma: _____ Data _________ Aluno (a):____________ Professor (a)_______________________

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Ficha de preparação da Exposição oral FINAL Chegou a hora de realizarmos nossa última exposição oral do bimestre. Para preparar a exposição, você deverá trabalhar em grupo, ajudando os colegas a planejar as tarefas e distribuí-las para o grupo. Resolva as questões a seguir que ajudarão você a se preparar melhor para exposição oral: 1ª) O assunto do meu grupo é _____________________________________________________________________ 2ª.) Os textos que meu grupo lerá para se preparar para a exposição são: ____________________________________________________________________ 3ª ) Leia os textos e retire 3 ou mais informações principais sobre o assunto: 1ª. informação: _____________________________________________________________________________ _____________________________________________________________ 2ª. informação: _____________________________________________________________________ _____________________________________________________________________ 3ª. informação: _____________________________________________________________________ _____________________________________________________________________ 4ª.) Os recursos de exposição que meu grupo utilizará serão? _____________________________________________________________________________ ___________________________________________________________________ 5ª.) Quem ficará responsável por cada parte da exposição? Escreva o nome dos colegas da equipe em cada linha em branco.

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O PROFESSOR DE INGLÊS DIANTE DO MUNDO TECNOLÓGICO: O COMPUTADOR COMO ACESSO A PRÁTICAS CONTEXTUALIZADAS Jerônimo Coura SOBRINHO (CEFET-MG) Roberto-Márcio dos SANTOS (CEFET-MG / Prefeitura de BH)

RESUMO: Dependendo de como é utilizado, o computador apóia o professor na sua prática, sobretudo se vier aliado aos princípios norteadores do ensino contextualizado e com base comunicativa. No ensino de Inglês pode-se trabalhar as habilidades lingüísticas (i.e., ouvir, falar, ler, escrever) e a diversidade de gêneros textuais, atendendo aos PCN e às tendências do ensino contemporâneo, através da tecnologia. Esse estudo busca investigar a realização dessa prática na sala de aula de Inglês, no âmbito da educação básica do sistema educacional brasileiro. A Internet e a linguagem digital, veículos de acesso aos diversos gêneros textuais, podem ser ferramentas importantes, cuja inclusão na escola viabiliza a utilização de materiais autênticos, atualizados, e possibilita a prática contextualizada e próxima da comunicação real. Por outro lado, essa inclusão deve ser consciente e adequada, de forma a não se endeusar a tecnologia em detrimento dos saberes profissionais do docente. Para esse estudo, foram realizadas entrevistas com professores de Inglês em serviço, das redes pública e privada, e com formadores de professores, a fim de verificar se, na formação inicial, há alguma preparação para lidar com o uso e as demandas geradas pela informática no ensino. Como suporte teórico, estão as idéias de Maingueneau e Marcuschi (gêneros textuais) e de Sharma e Barret (blended learning, combinação balanceada de recursos tecnológicos e práticas tradicionais). Assim, esse trabalho pretende verificar a relevância das tecnologias no ensino, na formação e na atuação do professor de Inglês, a partir da situação profissional e visão dos professores. Palavras-chave: Tecnologia e ensino/aprendizagem de línguas; Computador e ensino de línguas estrangeiras.

ABSTRACT: Depending on the way computers are used, they can support teachers and their practices, especially if they are used in conjunction with the principles of contextualized teaching and communicative approach. While teaching English, one can work with the linguistic skills (listening, speaking, reading, and writing) as well as diverse textual genres, which follow the Education National Parameters and respond to the current trends, by means of technology. This study aims at investigating such practices in the classroom. Internet and digital language can be important tools, which use enable the use of authentic materials and contextualized practices, close to real life. Technological use should not be seen as a definitive solution to everything, but rather something to accompany teachers’ professional competences. In-service teachers were interviewed, from the public or private sectors and from the university. Textual genres (according to Maingueneau & Marcuschi) and blended learning (according to Sharma & Barret) are part of the theoretical background in this study. Thus, this study aims at investigating the relevance of technology upon English teachers’ education and professional behavior, from their own views. KEY WORDS: Technology and teaching/learning English; Computers and Foreign Language teaching.


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1. Introdução What is education but a process by which a person begins to learn how to learn? (P. Ustinov, 1998)

A educação, numa sociedade que passa por mudanças em todos os setores, tende a refletir o contexto de transformação, de tentativas de adaptação e adequação à nova era digital, e de revisão de concepções e práticas que atenderão a novas demandas. Para Brighenti & Barros (apud GALLO, 2004), o estágio aonde chegaram a ciência e a tecnologia hoje acarreta mudanças imensas “no desenvolvimento intelectual, social e cultural de todos os envolvidos com o processo educativo, pois a sociedade contemporânea exige a formação global dos indivíduos para que se adaptem facilmente às freqüentes e rápidas mudanças tecnológicas”. Segundo Passarelli (2007:22), “a reboque da globalização dos mercados, das descobertas da ciência cognitiva e da solidificação da cibercultura, o mundo da educação viu-se obrigado a revisitar teorias e práticas de aprendizagem”. No entanto, deve-se ter em mente que não é suficiente inserir a tecnologia na educação, mas saber usá-la de forma apropriada em termos de prática pedagógica. Ao se inserir recursos de tecnologia na prática pedagógica, independentemente dos recursos de suporte ou artefatos disponíveis, é primordial fundamentar-se em práticas que chamem o interesse dos aprendizes, mais do que nunca. O aluno de hoje, sujeito participante no processo de aprendizagem, não é o mesmo de tempos atrás: a geração contemporânea de aprendizes apresenta características como “atenção fragmentada e orientação por imagens” (VETROMILLE-CASTRO, 2003). Em outras palavras, são alunos guiados por imagens, prestam atenção em tudo e em nada ao mesmo tempo. Se, por exemplo, no computador não há algo que realmente atraia, partem para outra atividade imediatamente. É esperado do profissional docente que ele, na sua prática, corresponda aos novos parâmetros vigentes e às novas expectativas da sociedade da informação e da era digital. Até mesmo a leitura adquiriu novas formas, meios e instrumentos – temos agora, por exemplo, a leitura no ciberespaço e o gênero literário virtual. Nas palavras de Mendes (2008), “a comunicação mediada pelo uso do computador e sua relação com os textos inerentes a esse contexto tecnológico de produção solicitam dos sujeitos uma nova postura como leitores e escritores”. É agora necessário que a escola ofereça ao aluno o letramento digital a fim de que não ocorra um estranhamento do indivíduo “analfabeto digital” inserido numa sociedade digital em praticamente todas as áreas do trabalho, do conhecimento, da informação e do lazer. O ensino de idiomas sempre foi, conforme LeLoup & Ponterio (2004), pioneiro na utilização das diversas mídias: rádio, jornais, filmes, gravador, projetor de slide, laboratório, vídeo, etc. O ensino de línguas nunca teve tantas possibilidades de suporte em termos de materialidade tecnológica como na era atual, dadas as tecnologias acompanhadas das diversas formas e ambientes de aprendizagem agora possíveis. Segundo Sharma & Barrett (2007), o uso da tecnologia no ensino de idiomas pode ser motivador, a interatividade possível traz benefícios, além da vantagem do feedback nos materiais interativos. Os autores afirmam que os aprendizes de hoje têm grandes expectativas com relação a recursos tecnológicos. 2. Suporte teórico Este estudo defende a forma de aprendizagem cunhada de blended learning (aprendizagem mesclada), uma combinação de abordagens - como a “mesclagem” ou combinação de recursos baseados em tecnologia junto com as abordagens tradicionais de ensinar. O ensino de idiomas, em especial, tem tirado muito proveito desse novo modelo, ao se combinarem aulas presenciais normais com ambientes interativos, resultando em uma abordagem diferenciada. Nos últimos anos, tornou-se comum estudar uma língua em um Virtual Learning Environment (i.e., ambiente de aprendizagem virtual). Apropriandose da definição dada por Sharma e Barrett (2007) para blended learning, esta pesquisa pressupõe que tal

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abordagem seja eficaz para atender às novas demandas da atualidade no tocante ao ensino de línguas, principalmente no âmbito da atuação do professor com suas competências, práticas e crenças. Os autores afirmam que blended learning refere-se ao ensino de línguas que mistura o componente face a face em sala de aula convencional com um uso apropriado dos recursos tecnológicos. Desta forma, a partir da blended learning, o professor pode adequar e aprimorar o seu trabalho. Sharma e Barrett (2007) mostram os princípios para se obter um equilíbrio entre abordagens tradicionais e tecnologia: separação das funções do professor e da tecnologia; foco nas necessidades pedagógicas do aprendiz; correlação do ensino convencional na sala de aula com a complementação dos recursos tecnológicos; consideração de que o que é importante não é a tecnologia por si só, mas o que se faz com ela. A era digital tem trazido novos gêneros textuais, os quais não existiam até há pouco tempo. Motta-Roth et al (2002) defendem a idéia de que os novos gêneros discursivos eletrônicos são motivadores na construção do conhecimento. Se os alunos de hoje lidam no dia-a-dia muito mais com e-mails do que cartas, é fundamental que o gênero e-mail esteja incluído nos seus estudos lingüísticos desde o começo de sua escolaridade. Segundo Marcuschi (2005), a cultura eletrônica de hoje tem gerado uma explosão de novos gêneros e novas formas de comunicação na oralidade e na escrita. Os novos gêneros, criados pelas tecnologias digitais, surgem através de mídias as mais diversas. Assim, blogs, wikis, e-mails, chats estão contidos dentro da comunicação e expressão em qualquer língua viva, onde já estavam anteriormente relatórios, bilhetes, contratos, poemas, textos publicitários, resenhas, e todos os outros gêneros existentes. Na verdade, novos termos e novas formas de escrita são criados, a partir das mídias digitais e da Internet. Como o computador pode disponibilizar diferentes gêneros textuais? Que ambientes virtuais ele oferece para prática de línguas? Na verdade, pode-se ter acesso a diferentes textos das mais diversas modalidades ou gêneros, escritos ou orais, já que a rede mundial ou Internet oferece isso – uma possibilidade de acesso amplo e abrangente. Mas cabe ao professor, além de saber encontrar o material adequado, saber principalmente usar os textos eletrônicos encontrados com um espírito crítico e objetivos pedagógicos claros, não a tecnologia por ela mesma. Nunca se teve tanta facilidade de acesso ao texto, material básico de trabalho do professor de língua. Alguns autores explicitam a relação entre os gêneros textuais e o ensino de línguas , como por exemplo as concepções de Marcuschi (2005:35) e Pereira (apud WINCH, 2007). Marcuschi diz que o uso dos gêneros é uma maneira de se trabalhar com a língua nos seus diversos usos do dia-a-dia, e Pereira afirma que os gêneros constituem “subsídios de compreensão de como interagimos pela linguagem”. Tendo em vista a tendência contemporânea de se ensinar línguas através de abordagens comunicativas, as situações vividas pelo aluno na sua aprendizagem devem priorizar a comunicação real (possível nos e-mails e chats, por exemplo) através de interação social ou atividades que exijam atuação e improvisação como o role-play (possível no ambiente da Second Life). 3. Internet, linguagem digital e ensino de Inglês O ensino de línguas sempre foi pioneiro no uso de tecnologias, pela própria natureza dessa área de conhecimento, que envolve a comunicação em todas as suas formas - textos escritos, fala, escuta, - possibilitando assim a inserção fácil dos recursos ou artefatos. Hoje, alguns conceitos convencionais na área de línguas tem mudado, ou adquirido sua versão pós-moderna. Por exemplo, o workbook ainda se refere a um livro com atividades para “lição de casa” (geralmente), porém hoje já existem obras que oferecem duas opções: a versão impressa e a versão eletrônica em cd-rom. Quando se falava em áudio na aula de língua estrangeira nos anos 70 ou 80, pensava-se certamente apenas em gravações em fitas cassete, mas hoje o áudio traz à mente possibilidades de escuta por meio de cd áudio, cd-rom, MP3, iPod, por exemplo. Dudeney e Hockly (2007) apresentam uma série de explicações e sugestões de usos e aplicações de recursos como chats, blogs, wikis, podcasts, e-learning,etc., bem como sobre o uso do quadro interativo e como trabalhar com projetos baseados em Internet nas aulas de idiomas. Goodman et al (2007) argumentam sobre o lugar do Inglês na Internet, a digitalização e os ebooks como um novo gênero, a ficção em hipertexto e as novas práticas de leitura, e sobre os geradores de linguagem artificial.

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4. A pesquisa: entrevistas com professores A pesquisa foi realizada com professores brasileiros que lecionam Inglês em escola pública (15) e curso livre de idiomas (10). Os participantes entrevistados responderam a uma série de perguntas sobre tecnologias no ensino de língua estrangeira. Em seguida foi realizada uma outra entrevista, desta vez com 9 professores formadores de professores de Inglês ou outras línguas, nos cursos de Letras. No questionário apresentado aos entrevistados dos dois primeiros grupos (escola pública – EP – e curso livre – CL), a pergunta Você usa ou já usou recurso(s) tecnológico(s) em suas aulas? [Qual/ Quais? Com que freqüência?] traz dados relevantes para os a pesquisa: Na modalidade “escola pública”, 13 profissionais disseram que sim. Dentre eles, foi mencionado o seguinte com relação a recursos e freqüência de uso:

Quanto os dois participantes de EP que responderam não, EP13 não justificou, e EP07 alegou que “a escola não possui determinados equipamentos de multimídia”. A mesma pergunta, feita aos professores de cursos livres, tem respostas que mostram o seguinte panorama: Todos os entrevistados responderam sim, e em geral explicaram ou complementaram a resposta.

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Nas respostas com relação a se os participantes se acham preparados para trabalhar com tecnologias, registrou-se o seguinte resultado:

As respostas espelham formação variada e carência de capacitação tecnológica de diversos profissionais. Uma outra pergunta do questionário procura descobrir se os profissionais tiveram na sua formação algum tipo de capacitação para lidar com tecnologias. Numa visão geral:

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Assim, poucos professores declaram ser capazes de lidar bem com os recursos, principalmente no setor público. Com relação aos professores universitários dos cursos de Letras, que formam os futuros professores de Inglês ou outros idiomas, nove respondentes responderam ao questionário. Abaixo, segue a relação das principais perguntas, com as respectivas respostas: ______________________________________________________________________ - A formação no curso de Letras tem preparado o aluno para trabalhar / lecionar com o uso de recursos tecnológicos? (No caso de resposta positiva, como?) ______________________________________________________________________ FP01: < ... sim, com ressalvas. (...) os alunos de Letras já ganharam o direito de ter aulas de Fonética (do Inglês) no laboratório, onde cada um pode acessar um site e estudar monitorando suas falas e praticando (...) seguindo um ritmo individual.(...) Não tenho condições de responder se eles estão preparados para lecionar com o uso destes recursos. > FP02: < Sim, pois deixar o aluno fora do ensino acoplado à tecnologia seria exclusivo na formação dos nossos alunos. > FP03: < Nem sempre. (...) ainda são poucos os cursos de Letras de universidades brasileiras que direcionam parte de sua carga horária para a educação tecnológica de seus graduandos/licenciandos. > FP04: <...depende muito ainda de cada instituição e dos formadores de professores envolvidos. Tenho visto as instituições que se preocupam com isso fazerem três coisas: 1) promover palestras ou minicursos (...) em eventos de graduação (tipo ‘semana de letras’); 2) incluir disciplinas (em geral optativas) sobre o tema nos cursos de graduação; e 3) algumas têm oferecido disciplinas on-line, o que acaba forçando os alunos a se familiarizarem um pouco com usos educacionais das novas tecnologias, ao menos para a EAD. Mas acho que ainda é bem pouco... > FP05: < Não acredito que esta seja uma preocupação da licenciatura. Acredito mais que seja uma iniciativa pessoal de cada professor em formação. > FP06: < Na minha universidade, isso é uma realidade para os alunos que se matriculam em disciplinas que tratam da temática. > FP07: < Não diretamente. Mas indiretamente sim na medida em que o aluno pode fazer disciplinas online ou semipresenciais, as quais exigem do estudante o uso de tecnologia em trabalhos e apresentações. > FP08: < Não. Na Faculdade de Letras da UFMG, entretanto, há cursos sobre letramento digital, mas a grande maioria dos alunos não os freqüenta. > FP09: < Ainda que de forma tímida, sim. Através de disciplinas diversas que envolvem o uso de NTCI e/ou disciplinas que tratam especificamente do ensino de línguas mediado por NTCI. >

É relevante o fato de que foi citada em algumas das respostas a inclusão, nos cursos de Letras, de disciplinas voltadas para a formação tecnológica, presenciais, semi-presenciais e on-line, o que sem dúvida já indica o surgimento de um tipo de formação preocupado com o ensino na atualidade do século XXI. ______________________________________________________________________ - A nova linguagem digital e o hipertexto contribuem para o ensino e aprendizagem de Inglês? Justifique sua resposta. ______________________________________________________________________

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Tema geral: Línguas e Literaturas: Diversidade e Adversidades na América Latina FP01: < ... o aprendiz de Inglês é, antes de mais nada, um cidadão do mundo contemporâneo. Estando neste contexto globalizado, (...) é uma conseqüência natural o professor de LE utilizar-se dos recursos da nova mídia no ensino de Inglês (...). O estudo dos novos gêneros textuais – e-mails e blogs – é necessário para integrar o aluno às novas realidades midiáticas. Vejo o hipertexto como estratégia de pesquisa, independente da língua. (...) cabe ao professor ensinar o aluno a pesquisar fazendo uso desta ferramenta. > FP02: < Sim e muito. Pelo uso da internet o universo do aluno se amplia e a autonomia cresce. > FP03: < Sem dúvida. Além de promover a autonomia da aprendizagem, a nova linguagem digital e o hipertexto oferecem aos alunos uma variedade de recursos lingüístico-discursivos que enriquecem seus conhecimentos da língua inglesa e dão condições de avançarem na tomada de decisões em relação às escolhas léxico-gramaticais necessárias para uma comunicação eficaz. > FP04: < ... Ajuda se você souber como integrar com seus objetivos de ensino e com os letramentos digitais que os alunos já possuem ou deveriam possuir para se tornarem professores mais antenados com a comunicação contemporânea. > FP05: < ... são ferramentas que contribuem para o ensino (...). Num trabalho que apresentei (...) obtive como respostas dos alunos informantes que conversar através da tela do PC ajudava a eliminar uma grande barreira: a vergonha de falar em inglês e errar. (...) Já o hipertexto permite utilização de análises mais profundas dos textos trabalhados, por apresentar tantas ligações com outros textos/discursos. As novas tendências no ensino de Inglês apontam para uma abordagem dita discursiva, que vê a língua para além das estruturas lingüísticas, tentando chegar aos elementos culturais e ideológicos presentes no processo de comunicação. Nessa perspectiva o hipertexto tem muito a contribuir para o ensino de Inglês. > FP06: < ... Novas linguagens e tecnologias podem, potencialmente, contribuir para a aprendizagem de assuntos diversos. No caso das línguas, há inúmeros recursos de auto aprendizagem e planejamento de aulas que se baseiam nessas mídias. As contribuições estão relacionadas aos usos que se faz dessas tecnologias, e não delas por si só. > FP07: < ... A quantidade e variedade de recursos bem como a facilidade do acesso e da comunicação enriquecem a qualidade de interação e das aprendizagens. > FP08: < Sim, e muito, pelo oferecimento de opções variadas de recursos on-line (hipertextos de jornais, revistas, artigos; textos multimodais como vídeos, trailers de filmes, podcasts, etc.) ... FP09: < Creio que depende do objetivo da aula. Pode contribuir e pode atrapalhar. >

No meio dessas respostas, um ponto para reflexão é levantado e chama a atenção, pois é enfatizado por mais de uma resposta: o uso “depende do objetivo da aula. Pode contribuir e pode atrapalhar”; “ajuda se integrar com objetivos de ensino”; “as contribuições estão relacionadas ao uso que se faz”. Há que se atentar para a necessidade de conscientização dos objetivos claros e bem definidos junto com um uso interessante ao aprendiz. ______________________________________________________________________ - Os professores de Inglês (ou futuros professores) estão hoje interessados em usar a tecnologia nas suas aulas? Escolas públicas e cursos livres apresentam as condições para isso? ______________________________________________________________________ FP01: < ... os professores estão interessados em usar a tecnologia nas suas aulas, mas precisam ter formação específica porque quando eles estavam em período de formação, não tiveram acesso a isso. Eu tenho utilizado, cada vez mais, de recursos tecnológicos que vão desde a rotina de disponibilizar textos eletrônicos para os alunos até o uso do laboratório. > FP02: < ... a maioria (...) manifesta pleno interesse pelas novas tecnologias, entretanto, nem sempre condições de trabalho são encontradas, principalmente nas escolas públicas. Muitas vezes existe o material, mas a falta de informação não propicia o correto uso das ferramentas. > FP03: < No contexto da universidade pública, tem havido iniciativas nessa direção (...). No contexto das escolas públicas, iniciativas governamentais têm apresentado algum interesse na educação tecnológica de seus alunos; no contexto dos cursos livres, o uso da tecnologia é hoje condição sine qua non para uma aula eficiente. No que tange às escolas públicas (...) três coisas básicas são necessárias para que a educação tecnológica aconteça de fato: 1) educação continuada dos docentes (...); 2) contratação de técnicos para dar suporte aos equipamentos; 3) construção de laboratórios de tecnologia e informática que atendam aos objetivos dos cursos. >

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Anais do II Congresso Internacional de Estudos Linguísticos e Literários na Amazônia (CIELLA) FP04: < ... mesmo os jovens que têm mais familiaridade com as novas tecnologias têm pouca clareza sobre o que fazer com isso como professores ou alunos. Existe (...) uma idéia vaga de que a tecnologia é importante e relevante, mas seu poder transformador raramente é identificado ou acionado. A tecnologia acaba entrando na escola a serviço do currículo e das práticas tradicionais, quando não expulsa da escola porque perturba demais esse currículo e essas práticas. > FP05: < ... acredito que estão interessados e utilizam, na medida das possibilidades oferecidas pelas suas escolas. A maioria das escolas públicas não oferecem recursos tecnológicos suficientes ou mesmo básicos. Os cursos livres parecem oferecer mais condições ... > FP06: < ... Na contemporaneidade, acredito ser um interesse comum a diferentes pessoas a incorporação de tecnologias em variadas práticas sociais, incluindo as profissionais. No caso de professores, portanto, não seria diferente. ... > FP07: < Os professores ainda crêem que precisam ser treinados para usar a tecnologia em vez de perceberem que é no uso da mesma que se aprende a utilizá-la. (...) Com exceções, como tudo na vida, há escolas públicas que oferecem condições para o uso da tecnologia, mas vejo o acomodamento como responsável pelo pouco uso feito de computadores ... > FP08: < Interessados eles são, mas eles não possuem a formação necessária para tal. Raras são as iniciativas de cursos sobre letramento digital para os professores. > FP09: < ... não é possível generalizar. Penso que os professores que fazem uso da tecnologia tendem a se interessarem mais pelo assunto. Em relação às escolas, a grande maioria das públicas hoje tem condições materiais e deveriam ter mais programas de formação de professores continuada e em serviço sobre esse aspecto. Em relação aos cursos livres, parece-me que todos vendem este serviço mas também não possuem os referidos programas de formação. >

Os formadores são unânimes em considerar que existe o interesse por parte dos graduandos em Letras, e concordam no que diz respeito às condições das escolas públicas para o uso das tecnologias: não há formação específica ou programas para letramento digital, falta infra-estrutura, suporte técnico e incentivo. Quanto ao cenário da modalidade cursos livres, as respostas traduzem que em geral existe um uso constante dos recursos e oferecimento de condições mais favoráveis. 5. Considerações finais O professor de Inglês do século XXI encontra-se frente a um cenário inédito, que envolve ao mesmo tempo e num mesmo contexto fatores diversos como a invasão das tecnologias digitais no ensino, as novas modalidades de material didático (i.e., softwares, sites,...), novas terminologias provenientes das hipermídias, a necessidade de realizar práticas interessantes em sala de aulas (acompanhando assim as novas demandas, interesses e necessidades dos aprendizes), e o perfil de um aprendiz ávido por aulas interessantes e condizentes com a dinâmica das TIC contemporâneas. Pode ser frustrante e desafiador para um professor ver-se diante de novas necessidades de assumir uma postura crítica, atuante, com vistas a manter-se atualizado e capaz de atuar com competência e eficácia. Da mesma forma, as instituições formadoras de professores encontram-se diante de semelhantes desafios, no sentido de adequar seus currículos universitários, programas e práticas, para atender ao cenário educacional emergente, indo ao encontro do aprendiz do século XXI e da realidade que o rodeia. Na escola pública, há professores desmotivados, desestimulados, quase sempre desassistidos, freqüentemente despreparados ou mal formandos, sem acesso aos poucos cursos de atualização e especialização. A escola pública brasileira precisa resgatar o papel de instituição de ensino que é também capaz de ensinar bem uma língua estrangeira, necessitando para isso rever, a partir das secretarias de educação, políticas públicas no sentido de maior adequação ao cenário do século XXI, que pede uma infra-estrutura, materialidade e, principalmente, uma capacitação eficaz e constante dos profissionais docentes – ainda o que de mais precioso a escola dispõe.

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VIVÊNCIAS MUSICAIS RELATADAS NOS ROMANCES VENCIDOS E DEGENERADOS, DE NASCIMENTO MORAES, E O MULATO, DE ALUÍZIO AZEVEDO, NA SÃO LUÍS DO FINAL DO SÉCULO XIX João Costa GOUVEIA NETO∗ Edwar de Alencar CASTELO BRANCO** (Universidade Federal do Piauí)

RESUMO: São Luís, capital da província do Maranhão, no último quartel do XIX, era uma sociedade complexa e contrastante que, trazia em seu bojo todas as contradições inerentes a sua organização social elitista e escravista. Através dos romances Vencidos e Degenerados de Nascimento Moraes e O Mulato de Aluízio Azevedo, ambos escritores maranhenses que, relataram os hábitos da sociedade ludovicense, como um todo, e em especial o ambiente cultural dos homens e mulheres que vivenciaram aquele presente, pretendo traçar um olhar sobre as vivências musicais da sociedade de São Luís. Utilizarei ainda, alguns jornais a fim de visualizar com maiores detalhes a organização da cidade e seus habitantes, naquele final do século XIX. PALAVRAS-CHAVE: Literatura; História; Vivências Musicais; São Luís e Século XIX.

ABSTRACT: São Luís, capital of the province of the Maranhão, in the last quarter of the XIX, was a complex and contrastante society that, brought in its bulge all the inherent contradictions its elitist and escravista social organization. Through the romances Vencidos e Degenerados of Nascimento Moraes and O Mulato of Aluízio Azevedo, both maranhenses writers who, they had told the habits of the ludovicense society, as a whole, and in special the cultural environment of the men and women who had lived deeply that gift, I intend to trace a look on the musical experiences of the society of São Luís. I will still use, some periodicals in order to visualize with bigger details the organization of the city and its inhabitants, in that end of century XIX. KEY WORDS: Literature; History; Musical experiences; São Luís and Century XIX


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1. Introdução É notório que, a partir de 1970, década em que emergiram as novas abordagens teóricas e metodológicas implementadas pela Nova História e, que estavam ligadas ao ofício de historiador, dimensões da vida até então impensadas como objeto de entendimento de homens e mulheres que viveram em tempos diferentes dos atuais, como o amor, a tristeza, os ressentimentos, a música, os diários, os poemas, as crônicas, os romances, passaram a serem entendidos como possibilidades de aproximação dos pesquisadores desse passado, inatingível em sua completude. Assim, escreve Ronaldo Vainfas em artigo intitulado História das Mentalidades e História Cultural em que trata sobre essa dimensão teórica ainda extremamente complexa e sem um consenso geral no que se refere à nomenclatura que melhor definiria tão amplas possibilidades de estudos, e que rege o oficio do historiador: [...] a compensar aquelas tendências um tanto empiricistas e negativas das mentalidades, buscou-se afirmálas como a história a mais aberta possível à investigação dos fenômenos humanos no tempo, sem excluir a dimensão individual e mesmo irracional dos comportamentos sociais, e procurando resgatar os padrões menos cambiantes da vida cotidiana, mormente o universo das crenças ligadas ao nascimento, à morte, aos ritos de passagem, ao corpo, aos espaços e ao tempo. [...] Vem igualmente daquela perspectiva a convicção de que a história das mentalidades é a que mais confirma a vocação interdisciplinar dos Annales, sobretudo quanto ao dialogo com a antropologia, a psicologia e a lingüística. (VAINFAS, In: CARDOSO; VAINFAS (orgs.), 1997, p.138).

Com o decorrer dos anos e os avanços no campo da pesquisa, essas possibilidades foram comprovadas e constituem hoje um campo vastíssimo de estudo e de análise das sociedades do passado e dos homens e mulheres que as constituíam. Dentre essa variedade de fontes, escolhi trabalhar com as literárias, sem esquecer que esses escritos não têm nenhum compromisso com o que os historiadores chamam de “real”, mas ao mesmo tempo, entendendo que esses escritores e escritoras, inseridos como estavam numa sociedade e envolvidos com as novas perspectivas literárias que atravessavam o Atlântico, não deixam de refletir os anseios, os desejos, as necessidades da vida ao escreverem, como era o caso dos romances que tratam de costumes, categoria em que estão vinculados os romances O Mulato e Vencidos e Degenerados, respectivamente de autoria de Aluízio Azevedo e Nascimento Moraes. No entanto, alguns parâmetros foram aperfeiçoados ao longo desses anos, pois, como é de conhecimento de “todos”, os escritos literários sempre foram rechaçados pelos historiadores mais ortodoxos por não terem um compromisso latente com a verdade dos acontecimentos. A primeira providência tomada foi a de deixar de lado o entendimento de que há somente uma verdade e que esta seria dada de forma imanente, e sim que, as verdades são construções de homens e mulheres que, com suas lutas, tristezas, alegrias, amores, decepções, vitórias, vivenciaram em algum momento de suas vidas todos esses sentimentos e os construíram de acordo com as conjunturas histórias nas quais estavam inseridos; assim, como diz Pesavento (2006, p.3) “a literatura e a história são narrativas que tem o real como referente, para confirmá-lo ou negá-lo, construindo sobre ele toda uma outra versão, ou ainda para ultrapassá-lo. Como narrativas, são representações que se referem à vida e que a explicam”. Todavia é importante ratificar que a História tem um método próprio, assim como, a Literatura e que, dentro dos limites que esses campos do conhecimento impõem aos seus estudiosos, hoje é possível que historiadores trabalhem com literatura e vice-versa sem perderem suas especificidades. Resolvida essa “pendência” a Literatura passa a ser um dispositivo extremamente rico que traz ao historiador a possibilidade de ir além do que é plausível e o ensina a imaginar com menos pudores e seriedade como fazem os literatos. A essa capacidade imaginativa soma-se a empiria através dos vestígios encontrados durante a pesquisa que, indicam como seria a vida, os hábitos, costumes, valores, de homens e mulheres em tempos tão diversos e distantes dos vividos hoje, visto que, os vestígios ditos confiáveis não são suficientes para tecer as conexões necessárias com as sociedades do passado, como é o caso das personagens construídas por Aluísio Azevedo e Nascimento Moraes em seus romances. Aluísio Azevedo ambienta seu romance O Mulato em São Luís, capital da província do Maranhão e em 1881o lança primeiramente na cidade natal onde, quando de seu lançamento,

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não foi bem aceito por apresentar uma forte crítica aos preconceitos raciais que ainda existiam na sociedade ludovicense e no Brasil como um todo. Aluísio descendia de uma família atípica para aquele aristocrático, escravocrata, elitista e católico século XIX, pois a união de sua mãe D. Emília Amália Pinto de Magalhães, conhecida como Emília Branco, com o comerciante português David Gonçalves de Azevedo não foi abençoada pela igreja, visto que, esta deixara seu primeiro marido e depois “casase”, ou melhor, se junta ao pai de Aluísio. Talvez esta origem pouco convencional, as influências do pai que era arguto leitor, a sensibilidade da mãe e o convívio com o irmão Arthur Azevedo e seus amigos artista no Rio de Janeiro, tenham contribuído para que Aluísio não comungasse dos valores preconceituosos da sociedade maranhense e da brasileira em geral e escrevesse O Mulato. Alguns estudiosos da vida de Aluísio Azevedo e na maioria das coleções que trazem o livro O Mulato afirmam que o David Azevedo, pai de Aluísio já era vice-cônsul e chanceler do Consulado Português de São Luís do Maranhão quando se deu a união de David e Emilia. No entanto, sobre a posição social do pai de Aluísio ao conhecer d. Emília Branco, diz Mérian (1998, p.25): Na realidade ele só se tornaria vice-cônsul no dia 14 de maio de 1859, ou seja dois anos após o nascimento de seu segundo filho, Aluísio. [...] Davi Gonçalves de Azevedo era simplesmente um comerciante muito estimado e respeitado, não só pela comunidade portuguesa mas por toda a sociedade maranhense, pelo papel que havia desempenhado durante o período turbulento dos anos 401 em pela sua incessante ação em prol do progresso social e cultural de São Luís.

José Nascimento Moraes nasce em São Luís, em 19 de março 1882, um ano após Aluísio Azevedo lançar o seu O Mulato e lança Vencidos e Degenerados dois anos após a morte daquele em 1913. Estas datas são representativas visto que, Moraes teve conhecimento das idéias de Aluísio e talvez se inspirou nele para escrever a história do seu Vencidos e Degenerados, pois vivenciara na prática o mesmo preconceito que Raimundo, protagonista de O Mulato. Jean-Yves Mérian (MORAES, 1982, p.5), maior autoridade crítica da obra de Aluísio Azevedo, diz que ao ler Vencidos e Degenerados tem-se a impressão de um mundo já conhecido, pois a ação começa onde termina a trama de O Mulato. O Mulato, como próprio título sugere, relata história de Raimundo José da Silva, mulato, que após vários anos estudando em Portugal volta ao Maranhão para resolver questões de herança e depois de vários acontecimentos inesperados causados pelo coração, se envolve sentimentalmente com sua prima Ana Rosa. Esse amor proibido chega ao conhecimento do pai de Ana, Manuel Pescada, que a afasta de Raimundo. Este sai da casa de Manuel, seu tio, e passa a viver só esperando uma alternativa para casar-se com Ana Rosa. Não obteve sucesso e acaba morrendo de maneira misteriosa. Ana Rosa, grávida de Raimundo, após a morte do amor casa-se com Dias, agora sócio de seu pai. Já o enredo de Vencidos e Degenerados não se apóia numa história de amor. As personagens de Nascimento Moraes transitam em torno das questões sociais que os afetavam naquele final do século XIX após a libertação dos escravos, visto que, alguns personagens eram escravos. A história se desenrola através das vidas do jornalista João Olivier que lutara pela libertação dos escravos, de João Machado, conhecido como paletó Queimado e que após encontrar vários contos de reis em latas de manteiga torna-se capitalista e de Cláudio filho adotivo de João Olivier que segue os passos do pai na luta contra as más condições de vida dos pobres da cidade, após a abolição da escravidão e as crises nas exportações do setor econômico do Maranhão. Assim, esses romances foram escolhidos por serem extremamente representativos dos hábitos e costumes da sociedade maranhense, pela grande repercussão que causaram quando dos seus lançamentos e principalmente pela coragem dos autores em denunciar preconceitos e, no caso de Nascimento Moraes, por sua condição social marginalizada que, através de seu conhecimento e perspicácia alcançou notoriedade.

O Maranhão passa por grave crise política e social que culminou na eclosão do movimento denominado de Balaiada (1838 -1840).

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2. As idéias francesas e a cidade portuguesa O Maranhão, leia-se São Luís, no período em que estão ambientados os romances O Mulato e Vencidos e Degenerados, estava envolto em um clima de grandes transformações, principalmente no campo das idéias. No entanto, essas idéias não eram comungadas por um número considerável da população de São Luís. Como o restante das províncias brasileiras, cidade eminentemente elitista e escravista, em São Luís tais mudanças diziam respeito à existência da escravidão em suas terras. É impossível falar dos anos que antecedem o 13 de Maio de 1888 sem relembrar os dias de sofrimento pelos quais passaram os homens e mulheres que vieram da África onde tiveram sua liberdade usurpada pela força. E como os romances que servem de base para este estudo estão mergulhados nessas memórias de sofrimento e discriminação, se torna impossível não falar no assunto, visto que, as tramas giram em torno das conseqüências de tão longo período de escravidão vivenciado no território brasileiro. A sociedade ludovicense estava, naquele final do século XIX, envolvida nas idéias de modernidade e civilidade que atravessavam o Atlântico nos navios e aportavam em São Luís, numa sociedade sedenta por ser igual à Europa e principalmente a França, modelo de cidade, de elegância e de modernidade, pois como diz Needell (1993,p.23), “esta concepção de um novo Brasil, embora variasse segundo seus proponentes, apresentava um denominador comum: reformulação do país conforme modelos políticos apresentados pelos republicanos norte-americanos e franceses”. Apesar dessas idéias estarem presentes nos jornais que circulavam em São Luís na época, nas leis que eram aprovadas pela Câmara Municipal visando disciplinar os pobres da cidade, aqui não aconteceram mudanças drásticas na paisagem urbana como em outras cidades do Brasil, onde os edifícios públicos e privados foram demolidos, pois além das idéias, um dos símbolos da Bélle Époque eram as construções suntuosas e abertura de grandes avenidas à moda dos bulevares franceses; Na contra-mão São Luís resguardava sua herança lusitana não só nas idéias como também nas edificações. Dentre os exemplos de cidades que foram transformadas aos moldes franceses, além do já muito conhecido processo de transformação pelo qual passa o Rio de Janeiro com as reformas de Pereira Passos, há o caso de Fortaleza que vivenciou, não só nas idéias, mas na prática transformações importantes na sua estrutura urbana, como escreve Pontes (1993, p.35): Naquela década, (1880)2 surgiu o Passeio Publico no local, até então, da Praça dos Mártires, que foi remodelada com implante de bancos, canteiros, café-bar, replicas de esculturas clássicas e 3 planos ou “avenidas” – uma para desfrute das elites, a segunda para as classes médias e a terceira para os populares. Localizado no perímetro central e com ampla vista para o mar, o Passeio tornou-se de pronto a principal área de lazer e sociabilidade [...].

Essas mudanças que estavam se processando nas principais cidades brasileiras nos idos da segunda metade do século XIX, faziam parte, como já dissera anteriormente, do desejo que as elites brasileiras tinham de pelo menos parecerem civilizadas aos seus olhos e aos dos visitantes estrangeiros. Vale lembrar que essa concepção de criação de espaços públicos suntuosos, imponentes e amplos teve como grande modelo o prefeito de Paris, Georges Eugène Haussmann, que transformou a cidade em um grande teatro a céu aberto e inaugurou um novo tipo de vida urbana, fazendo com que os homens e mulheres da burguesia legitimassem a utilização do espaço fora da casa, e faz com a nobreza passe a tecer suas sociabilidades nesses novos espaços sem “proteção”. E como escreve Berman (1997) ao tratar dessas novas formas de sociabilidade e de expressão dos sentimentos, até então recolhidos: Para os amantes, como aqueles de “Os Olhos dos Pobres”, os bulevares criaram uma nova cena primordial: um espaço privado, em publico, onde eles podiam dedicar-se à própria intimidade, sem estar fisicamente sós. [...] Poderiam exibir seu amor diante do interminável desfile de estrangeiros do bulevar – de fato, em uma geração Paris se tornaria mundialmente famosa por essa espécie de exibicionismo amoroso – haurindo deles diferentes formas de alegria. (BERMAN, 1997, p. 147). 2

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Grifo meu.

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Esse era o ideal almejado pelos ludovicenses, no entanto, ainda estavam muito longe de vivenciá-los em seu cotidiano. Assim, utilizarei os pés, as pernas, os braços, o nariz, os olhos e principalmente os ouvidos das personagens de Azevedo e Moraes para me aproximar com mais tonalidades dos homens e mulheres que habitaram São Luís nos idos do século XIX. 3. As vivências musicais A música e a literatura sempre andaram juntas, uma suprindo as debilidades da outra. Exemplo dessa união são os lieder, as óperas, os dramas líricos, os poemas sinfônicos que aliavam a palavra e o som, e sobre essa união escreve Andrade (2003, p.149): “o papel da poesia é, pois dar a significação intelectual básica da obra. O papel da música é reforçar essa significação com os seus valores que são mais dinâmicos, mais profundos que os valores da palavra”. Tenho trabalhado, em minhas pesquisas, principalmente com a música considerada erudita, visto que, como estudo as elites, estas querem a todo custo adquirir os costumes e hábitos europeus e em conseqüência o tipo de música que se ouvia na Europa que era o considerado civilizado, culto e ordeiro. No entanto, nas narrativas de Azevedo e Moraes tanto a música considerada popular quanto a considerada erudita estão presentes e ligadas aos estratos nos quais historicamente elas seriam melhor assimiladas e reproduzidas. Ao adentrar no mundo relatado por Aluísio Azevedo em O Mulato, e pelas linhas de Nascimento Moraes através de Vencidos e Degenerados, fui tendo a grata surpresa de deparar-me com vários momentos nos quais a música é extremamente ativa dando movimento à narrativa. Como argutos observadores que eram do cotidiano e da mente humana, nenhum detalhe escapava às penas de Azevedo e Moraes. Digo isto, porque se as passagens onde as festas, os bailes são descritos fossem suprimidos, suas histórias não perderiam o valor. Ficariam sem o colorido que a música proporciona ao leitor que, com sua imaginação visualiza os homens e as mulheres e se transporta para as festas que acha alegre e mais conveniente. Para as elites a música tocada ao piano e cantada em italiano ou francês, era símbolo de distinção social e para os pobres era sinônimo principalmente de alegria e diversão, pois faziam muitos trocadilhos com as palavras estrangeiras que geralmente eram pronunciadas incorretamente e, por isso, os autores não poderiam deixá-la de fora de suas narrativas, pois como queriam descrever aquele tempo, mesmo sem ter compromisso com o real, suas escritas demonstram esse cuidado e a música vai dando no decorrer da leitura vida às personagens, fazendo com que elas se aproximem do leitor. No tempo em que os romances em questão foram escritos, final do século XIX e início do século XX, muitas mudanças já se processavam no mundo das artes como um todo. É notório que os vários setores artísticos estão em sintonia e, principalmente naquele final do século XIX, para cada movimento de renovação na literatura, pintura correspondia um de tal modo no campo musical. No século XIX, durante o século XX e talvez até os dias atuais muitos ainda fiquem surpresos ao verem uma pessoa pobre tocando piano e isso é motivo para grandes reportagens. No entanto quando se estuda a história da música é possível entender que sempre houve mediações entre as classes sociais, principalmente quando se trata do campo artístico, e esses contatos foram decisivos para que a música brasileira tivesse o timbre que hoje ela apresenta, como escreve Napolitano (2005, p.11-12): A música popular urbana reuniu uma série de elementos musicais, poéticos e performáticos da música erudita (o lied, a chançon, árias de ópera, bel canto, corais etc.), da “música folclórica” (danças dramáticas camponesas, narrativas orais cantos de trabalho, jogos de linguagem e quadrinhas cognitivas e morais e do cancioneiro “interessado” do século XVIII e XIX (músicas religiosas ou revolucionárias, por exemplo). Sua gênese, no final do século XIX e inicio do século XX, está intimamente ligada a urbanização e ao surgimento das classes populares e médias urbanas.[...]

No entanto, quando os autores ambientam suas histórias, os homens e as mulheres daquele presente ainda tinham muito bem definidos os lugares sociais das pessoas e o tipo de música que

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consumiam era utilizado como mais uma forma de diferenciá-los perante os iguais e os diferentes na sociedade e isso Azevedo e Moraes deixam claro durante a escrita dos seus romances, como demonstrarei nas linhas a seguir. No romance O Mulato a maioria das referências a música referem-se à música erudita, visto que, as personagens transitam por ambientes elitizados e o próprio Raimundo, protagonista da história, apesar de ser mulato teve uma educação européia e ao recordar sua vida naquele continente fala das idas ao teatro, das operas que assistiu etc. No Maranhão, resguardadas as diferenças, a família na qual Raimundo é inserido também procura educar Ana Rosa a partir dos costumes da época que requeria como sinônimo de civilidade e elegância falar francês e em relação à música tocar piano, apesar de saber tocar também o violão, como escreve Azevedo (2007, p.11): “Ana Rosa cresceu, pois, como se vê, entre os desvelos insuficientes do pai e o mau gênio da avó. Ainda assim aprendera de cor a gramática de Sotero dos Reis; lera alguma coisa; sabia rudimentos de francês e tocava modinhas sentimentais ao violão e ao piano”. Durante todo o século XIX o piano foi um dos símbolos de elegância, civilidade, e de definição da posição social de um individuo na sociedade, como diz Fonseca (1996, p.50): “a cultura musical da elite caracterizava-se pelo uso do piano, pela partitura e pelo recolhimento dos salões, a cultura musical do povo se caracterizava pelo uso do violão, pela “orelhada” e pelo transbordamento das ruas”. Escreve ainda o mesmo autor (1996, p.57): A música oficial era a que atendia ao gosto da elite, executada por músicos considerados profissionais, com instrumentos de prestígio cujo símbolo era o piano, geralmente para assistência de uma platéia burguesa. Era a música regular dos espetáculos teatrais, das cerimônias oficiais, dos bailes elegantes e dos saraus familiares, e também das cerimônias religiosas em geral. Eram manifestações da cultura dominante, pertinentes ao espaço da ordem e, portanto, sancionadas pelo poder político e policial. A música “desclassificada” era a que atendia ao gosto das camadas pobres, executadas por músicos amadores ou semi-profissionais, geralmente com instrumentos desprestigiados cujo símbolo era o violão. [...] Eram consideradas manifestações da “desordem” e como tal continuamente sofriam intervenções repressivas por parte do poder político e policial (FONSECA, 1996, p.57).

Assim, o piano e o violão estarão geralmente em lados opostos, qualificando quem tinha o primeiro e desqualificando quem portava o segundo, pois se alguém era visto com este último pelas ruas à noite era reprimido, como diz o Jornal para Todos em edição do dia 7 de agosto de 1877, número 21, em que se lê: “Consta-nos que á noite passada ia sendo preso um individuo, só porque levava um violão na mão! Foi necessário mostrar que faltavam nelle tres cordas, para não ser preso. É o caso de só poder transitar pela cidade armas sem fechos”. No entanto, o piano não servia apenar para delimitar os espaços sociais, pois se fosse somente essa a função desse instrumento os mesmos não estariam tão presentes na literatura romanesca do século XIX, mas também como “símbolo da educação das moças românticas. Vários são os episódios em que as personagens exercitam-se ao piano ou exibem-se nos saraus tocando trechos de operas em voga” (FONSECA, 1996, p.159). Em Vencidos e Degenerados, Nascimento Moraes também reforça essa característica do piano ao falar de um baile na casa do personagem João Machado, no qual é o referido instrumento musical que literalmente comanda o andamento da festa, como se lê: O piano soou. Alguém tocava acordes dulcíssimos. Houve um reboliço, como que alma nova infligira mais vida à sociedade, despertando sensações novas; e correu logo: – O Xavier Ribeiro vai declamar! [...] Enchera-se a sala... Machado e a senhora lá estavam juntos, o Cláudio, os velhos que não dançavam, as velhas suspirosas, a criançada e até os criados, que espiavam das portas. Ao piano D. Quetinha Monteiro e de pé ao seu lado o declamador (MORAES, 1982, p.98-99).

No romance de Azevedo a música ao piano também está presente não só sendo citada como exemplo de refinamento, mas soando durante as reuniões familiares, como aconteceu na festa para dar as boas-vindas a Raimundo, como se lê:

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Tema geral: Línguas e Literaturas: Diversidade e Adversidades na América Latina Ana Rosa terminou a sua polca. Bravo! Bravo! Muito bem, D. Anica! E estalaram palmas. Não, senhor, foi uma polca do Marinho. Correram a cumprimentar a pianista. O Freitas profetizou logo “que ali estava um segundo Lira!” (AZEVEDO, 2007, p.45).

No entanto o piano não era unanimidade mesmo entre os representantes das elites, como se depreende a partir dos relatos da personagem D. Amância Sousellas sobre o comportamento das moças e as mudanças que estavam acontecendo na sociedade maranhense e a utilização errônea do referido instrumento musical: [...] Hoje é o maquiavelismo da máquina de costura! Dá uma tarefa grande e é só “zuc-zuc-zuc” e está pronto o serviço! E daí, vai a sirigaita pôr-se de leitura nos jornais, tomar conta do romance ou então vai para a indecência do piano! E jurava que filha sua não havia de aprender semelhante instrumento, porque as desavergonhadas só queriam aquilo para melhor conversar com os namorados sem que os outros desses pela patifaria (AZEVEDO, 2007, p.40-41).

Como dissera anteriormente, durante as festas, sejam elas saraus, bailes, jantares, a música é que dá o andamento da reunião, pois passados os momentos onde a maioria é somente ouvinte e apreciador dos músicos solistas e dos declamadores de poemas, chega a hora mais esperada, no caso do romance de Moraes, o momento da quadrilha, do qual todos indistintamente tinham oportunidade de participar, como escreve o autor: Conversavam ruidosamente na sala e emitiam opiniões sobre poetas e poesias, quando a orquestra deu sinal de quadrilha. Apagou-se, como por encanto, a luz da conversação e houve um reboliço que ia e vinha com onda de sala a sala. A quadrilha! Dansa de progressistas e conservadores, de moços e velhos! Muitos dos que jogavam vieram aos pulos à procura do par. [...] Moças feias, antipáticas, que absolutamente não dançariam, se não tocassem a quadrilha, atiraram-se garbosas, com olhar de desafio pelas salas, porque sabem que são uma necessidade, para que se completem as quadras e para que não faltem vis na francesa. [...] (MORAES, 1982, p.100).

No romance de Nascimento Moraes em questão, a música dita erudita, ordeira e de boa fama e que tem os bailes da casa de João Machado como momento onde está em maior evidência, é majoritária na trama. João Machado apesar de ter sido um caixeiro que se tornou capitalista e por isso não tivera uma criação refinada, após ascender na escala social assimila rapidamente os modos e modas das elites e traz para sua casa e família os hábitos impostos por essa burguesia em ascensão. Mas a música tocada ao violão também está presente na passagem que Cláudio conversa com Neiva sobre os trovadores de esquina companheiros de João da Moda: [...] Aquele povo nos adora. Não imaginas! Tudo quanto escrevemos ali se lê e se estima. Arranjam música para os nossos versos e cantam-nos, com amor e comoção, dando-lhes acentos profundamente sentimentais, tons dulcíssimos, tocante expressão que nos nem tivemos quando os produzimos. Tu não imaginas como esses rapazes a que vulgarmente chamam trovadores de esquina, nos interpretam, nos traduzem e nos compreendem. [...]. (MORAES, 1982, p.113).

Além desse exemplo de música executada ao violão, esse instrumento aparece durante o jantar em comemoração ao casamento do poeta Trancoso com D. Lídia de Freitas, na casa dos recémcasados à Rua do Passeio, onde compareceram “rapazes do comércio, artistas e conhecidos do bairro” (MORAES, 1982, p.170). Como era uma comemoração a música não podia estar de fora e dentre os presentes estava Stélio “um violonista de pulso. Tocava por música e tinha muitos anos de exercícios constantes.” (MORAES, 1982, p.171). E para acompanhar Stélio sugerem o nome de D. Corina, pois quando a mesma estava presente ninguém se atrevia a improvisar. E sobre a atuação de Stélio e D. Corina escreve Moraes (1982, p.172-174): – Que é que vai? Pergunta o Mario. – A filha do infortúnio.

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Anais do II Congresso Internacional de Estudos Linguísticos e Literários na Amazônia (CIELLA) Era uma poesia do Trancoso. Stélio feriu os primeiros compassos do acompanhamento em lá menor. D. Corina tinha uma voz agradável, meiga e delicada. Bem afinada, sustentava a mesma altura e não perdia o timbre. Estava na moda, e era com uma pontinha de despeito que as outras se furtavam a cantar quando ela era presente. [...] O canto parara entre estrepitosas palmas. O Trancoso era quem as batia mais fortes: – Bravos a D. Corina! Bravos! Cada vez mais se superioriza!

As elites não se divertiam somente no ambiente privado e protegido da casa. Naquele final do século XIX as ruas já não eram somente permitidas aos homens, às escravas e as mulheres pobres que em geral precisavam sair de casa para trabalhar. As senhoras das famílias abastadas também já teciam sua sociabilidade também no espaço público. Um desses momentos eram as festas religiosas que Aluísio Azevedo dá bastante visibilidade em seu romance. Azevedo relata a movimentação da festa de Nossa Senhora dos Remédios e de São João. A primeira é descrita a Raimundo por Casusa, como segue: Soltam-se balões de papel fino. Cruzam-se moças aos pares; giram aos pares os janotas; vendem-se roletos de cana, sorvetes, garapa, cerveja, doces, pasteis, chupas de laranja; sentem-se arder charutos de canela; gastam-se os últimos cartuchos; esvaziam-se de todo as algibeiras e, finalmente com grande júbilo geral arde o invariável fogo de artifício. Então rebentam todas as bandas de música a um só tempo, levanta-se uma fumarada capaz de sufocar, e, no meio do estralejar das bombas e do infrene entusiasmo da multidão, aparece no castelo, deslumbrante de luzes, a imagem de Nossa Senhora dos Remédios (AZEVEDO, 2007, p.50).

Já a festa de São João foi vivenciada por Raimundo na prática, pois D. Maria Bárbara realizava todos os anos uma comemoração em homenagem ao Santo. A festa de Maria Bárbara era esperada por todos os conhecidos da família e amigos de Manuel. Azevedo passa várias páginas descrevendo essa festa, desde a saída da casa de Manuel Pescada, o percurso que fizeram a pé até a quinta, a propriedade onde seria realizada a festa, a casa, os aposentos de Maria Bárbara e é claro os festejos e o estado das pessoas durante as danças. A música ficara sob a responsabilidade do Casusa e assim escreve Azevedo (2007, p. 75 e 77) e sobre a chegada dos músicos e convidados à quinta de Maria Bárbara: Às seis e meia da manhã chegou o bonde com os convidados. Trazia música. Era uma “surpresa” arranjada pelo Casusa. E este, encarrapitado na plataforma do cano, doido de entusiasmo, dava vivas a São João, vivas “ao belo madamismo maranhense” e vivas à música. Os músicos romperam com o Hino Nacional. [...] Entraram todos em casa, numa desordem, acossados pela música, que atropelava uma polca do Colás e por uma intempestiva carretilha que soltara Sebastiana.

descrito:

Aluísio trata ainda do que ele chama de a “dança brasileira” que era o chorado, que assim é O chorado! Venha o chorado! Gritavam do fundo da varanda batendo palmas. E a música, sem se fazer de rogada gemeu a lânguida e sensual dança brasileira. De pronto Casusa e Sebastião pularam no meio da sala e puseram-se a sapatear agilmente. Com barulho, estalando os dedos e requebrando todo o corpo. Em breve arrastaram o Serra, o Faísca e o Freitas: e as moças, chamadas por aqueles, entraram na irresistível brincadeira. Elas rodavam na pontinha dos pés, o passo miudinho e ligeiro, os braços dobrados e cabeça inclinada, ora para um lado, ora para outro, estalando a língua contra o céu da boca, numa volúpia original e graciosa. Os velhos babavam-se. Quebra! Berrava o Casusa entusiasmado. Quebra, meu bem! E regamboleava furiosamente a perna. O chorado atingira afinal a sua fase de loucura. Os que não podiam dançar espectavam, acompanhando a música com movimentos de corpo inteiro e palmas cadenciadas e espontâneas (AZEVEDO, 1982, p. 77-78).

Um aspecto interessante quando se analisa o chorado não é tanto a sensualidade e êxtase que sua dança provoca nos homens e nas mulheres que estão envolvidas na dança tanto quanto nas pessoas que estão assistindo, mas a desordem que ela provoca e ser permitida em comemorações de pessoas abastadas. Outro detalhe que não pode ser esquecido e que essa festa era realizada num sitio afastado da cidade; de qualquer forma foge ao discurso que as elites queriam incutir nos seus iguais naquele período e como diz Moraes (1982, p. 125), “a civilização ainda não penetrou mesmo nas camadas mais adiantadas”.

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4. Considerações finais Este é um primeiro olhar sobre as vivências musicais durante o século XIX através dos romances de Aluísio Azevedo e Nascimento Moraes e, por isso, de forma nenhuma o tenho por concluído ou completamente esgotado em suas possibilidades de análise. Por hora e a priori o que é notório é que tanto O Mulato quanto Vencidos e Degenerados são documentos históricos importantíssimos que devem ser considerados como tais devido à riqueza de detalhes com que os autores descrevem a sociedade maranhense, por terem vivido no período em que ambientam suas histórias e principalmente por abordarem questões sociais ainda hoje mal resolvidas e maquiadas por grande da sociedade brasileira. Outro aspecto que salta aos olhos quando se lê os romances O Mulato de Aluísio Azevedo e Vencidos e Degenerados de Nascimento Moraes, é o poder e a capacidade que a música tem de aglutinar, de ordenar e desordenar, e principalmente e simplesmente de sensibilizar as pessoas independente do conhecimento que disponham e fazendo com que pessoas dos estratos menos favorecidos economicamente sejam recebidos nos grandes salões pelo conhecimento e sensibilidade musical que apresentam. Assim, os romances de Azevedo e Moraes são compostos não só de belas palavras, mas de tonalidades vibrantes que às vezes soam um pouco dissonantes, mas seguindo o ritmo da vida. Referências ANDRADE, M. de. Pequena História da Música. Belo Horizonte: Itatiaia, 2003. AZEVEDO, A. O Mulato. São Paulo, SP: Ciranda Cultural Editora e Distribuidora Ltda., 2007. Coleção Clássicos da Literatura. BERMAN, M. Tudo que é solido desmancha no ar: A aventura da modernidade. São Paulo: Cia da Letras, 1997. FONSECA, A. Enredo romântico, música ao fundo: manifestações lúdico-musicais no romance urbano do Romantismo. Rio de Janeiro: Sette Letras, 1996. GOUVEIA NETO, J. C. No palco da cidade: música, civilidade e sociabilidade na São da segunda metade do século XIX. Monografia de conclusão de curso de Licenciatura em História. Universidade Federal do Maranhão – UFMA, 2006. MORAES, N. Vencidos e Degenerados & contos de Valério Santiago/ por Nascimento Moraes Filho. – São Luís: SECMA; SIOGE, 1982. NEEDELL, J. D. Bélle époque tropical: Sociedade e cultura de elite no Rio de Janeiro na virada do século. Tradução de Celso Nogueira. São Paulo: Companhia das Letras, 1993. PESAVENTO, S. História e Literatura: uma velha nova história. In: Nuevo Mundo Mundos Nuevos. N. 6, 2006. PONTE, S. R. Fortaleza Bélle Époque: reformas urbanas e controle social (1860 – 1930). Fortaleza: Fundação Demócrito Rocha/ Multigraf Editora Ltda, 1993. VAINFAS, R. História das Mentalidades e História Cultural. In: CARDOSO, C. F.; VAINFAS, R. (orgs.). Domínios da História: Ensaios de Teoria e Metodologia. – Rio de Janeiro: Campus, 1997, p.127- 162. MÉRIAN, J-Y. Aluísio Azevedo, vida e obra (1857 – 1913): o verdadeiro Brasil do século XIX. Rio de janeiro: Espaço e Tempo Banco Sudameris – Brasil: Brasília: INL, 1998.

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O ESPELHO: A DÚVIDA COMO MÉTODO

Johann Raphael Gomes GUIMARÃES (Universidade Federal do Pará)

RESUMO: Várias imagens são vistas pelo personagem diante do espelho, na décima primeira narrativa do livro Primeiras Estórias (1962). Diante do espelho, o narrador não nomeado vê-se como um monstro, como uma onça, com traços que lhe lembram seu pai e avô, como um vazio, ou simplesmente como a ausência de uma aparência, e, por fim, ele vê, diante dos seus olhos, a imagem de uma criança. A partir da dúvida inicial de quem ele seria por trás da máscara de ilusões sensoriais, o narrador empreende uma jornada de especulações diante do espelho, tendo como único método a dúvida e a negação. O estudo do conto “O espelho” ganha relevância, sendo ele um definidor do modo de olhar a obra. Este trabalho se concentrará na relação entre a filosofia e a literatura, dando atenção ao método cartesiano que o narrador usa. PALAVRAS-CHAVE: Primeiras Estórias, Guimarães Rosa, “O espelho”.

ABSTRACT: Several images are seen by the person in front of the mirror, in eleventh narrative of the book The third bank of the river (1962). Facing the mirror, the unnamed narrator sees himself as a monster, like a jaguar, with features that remember his father and grandfather, as a vacuum, or simply as the absence of an appearance, and, finally, he sees, front of their eyes, the image of a child. From the initial question of who he was behind the mask of sensory illusions, the narrator undertakes a journey of speculation in front of mirror, taking as the only method the doubt and the denial. The study of the short story “The mirror” acquires relevance, by being a definition about the way of looking the literary text. This work will focus on the relationship between philosophy and literature, giving attention to the method that the Cartesian narrator uses. KEY WORDS: The third bank of the river, Guimarães Rosa, “The Mirror”.


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O volume Primeiras Estórias foi o quarto livro de Guimarães Rosa a ser lançado. Antes dele, o escritor já tinha levado ao público as obras Sagarana (1946), Corpo de Baile (1956), e Grande Sertão: Veredas (1956). No lançamento de Primeiras Estórias, a obra de Guimarães Rosa já era lida em diversos países. Daí o apurado trabalho que o escritor empreendeu no processo de criação do seu quarto livro, que demorou um longo tempo para ser terminado. Contendo vinte e uma narrativas curtas, Primeiras Estórias possui inovação até mesmo em seu título: O epíteto não alude a trabalhos da mocidade ou anteriores aos já publicados em volumes, e sim à novidade do gênero adotado, a estória. Esse neologismo de sabor popular, adotado por número crescente de ficcionistas e críticos, embora ainda não registrado pelos dicionaristas, destina-se a absorver um dos significados de ‘história’, o de ‘conto’. (RÓNAI, 1972, p. XXXI )

Segundo Paulo Rónai, os contos de Primeiras Estórias podem ser divididos em diversos subgêneros, cuja diversidade é assim explicada: [...] o conto fantástico, o psicológico, o autobiográfico, o episódio cômico ou trágico, o retrato, a reminiscência, a anedota, a sátira, o poema em prosa... Distinga-se a multiplicidade dos tons: jocoso, patético, sarcástico, lírico, arcaizante, erudito, popular, pedante — multiplicidade decorrente não só do tema, senão também da personalidade do narrador, manifesto ou oculto. (RÓNAI, 1972, p. XXXII)

As histórias do livro são histórias que se passam, em sua maioria, em algum interior não identificável, continuando as experiências do autor no seu trabalho para retratar o sertão mineiro. Sobre as narrativas do volume Primeiras Estórias, a professora Ana Paula Pacheco, diz: As narrativas, remontando por vezes à origem das narrativas, são mythos no duplo sentido, de mito e enredo, que se torna um só: algumas delas tecem cosmogonias contemporâneas (na infância, na rememoração), muitos mantêm, no enredo, um fundo mágico-religioso. (PACHECO, 2006, p. 18)

O estudo se concentrará na análise do conto “O espelho”, o décimo primeiro conto do livro, ocupando o local central entre as outras vinte e uma narrativas do volume. A professora Ana Paula Pacheco vê o conto como “um dos mais difíceis que escreveu Guimarães Rosa, o que mais enquizila o leitor, ao colocar em cena, e bastante à amostra, um amplo arsenal da cultura literária, filosófica, religiosa.” (PACHECO, 2006. p. 223). Os significados das narrativas do escritor são difíceis de serem alcançados, como já observou Benedito Nunes: À maneira dos escritores cabalistas, que conseguiam harmonizar os elementos literal, alegórico e simbólico dos textos que compunham, introduzindo nesta e naquela palavra, sob a forma cifrada, a chave da interpretação global que se lhes devia dar, Guimarães Rosa gostava de esconder, em frases triviais, como um signo oculto e dissimulado, o indício, imperceptível ao mais atento hermeneuta, do significado profundo de uma narrativa. (NUNES, 1968. p. 2)

O conto “O espelho” pode ser descrito brevemente como a história de um homem que vê seu rosto refletido em um jogo de espelhos, em um banheiro público, e a sua imagem é, por causa disto, monstruosa. A visão do monstro choca o personagem que não acredita que aquele monstro seria ele mesmo, assumindo que aquilo que ele vê no espelho não é a sua verdadeira imagem e sim uma máscara produzida por dois elementos de engano: os seus olhos e os espelhos, ele começa a buscar aquilo que seria a sua verdadeira imagem. Para isso, ele se isola do convívio dos homens e começa a explorar o seu reflexo. Partindo do princípio de que sua verdadeira imagem estaria por trás daquela máscara irreal, o personagem passa a decompor o seu reflexo, deixando de ver os elementos que, para ele, compunham a sua falsa aparência. A decomposição da sua imagem continua até que o personagem atinge o total vazio de seu ser diante do espelho. Nem mesmo seus olhos são refletidos. Extremamente perturbado com o fato e com muitas dores de cabeça, o personagem abandona suas experiências. Anos se passam sem que ele retorne a se ver no espelho. Então, um dia, ele se olha casualmente e vê que um esboço vai formando-se. Este esboço toma as formas de um menino e o conto termina com algumas digressões do narrador sobre o que é a existência.

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Como se pode ver pelo breve resumo do enredo do conto, o elemento iniciador da história do conto “O espelho” é quase prosaico. O monstro que tanto fere os olhos do narrador é ele mesmo, visto através de um jogo produzido por dois espelhos, o cenário desta revelação é estranho: um banheiro público. Esta construção lembra o humor e o patético das aventuras de Dom Quixote, famoso personagem de Miguel de Cervantes. Enquanto o personagem do escritor espanhol luta contra gigantes, que na verdade são moinhos de vento, o personagem de Guimarães Rosa se assombra com a sua própria imagem refletida. Além desta tênue dose de humor o conto também apresenta uma série de incertezas, marcas que deixam o leitor no vazio da interpretação daquilo que é lido. Estes elementos de incerteza mantêm, no conto, uma esfera de mistério e dúvida sobre o que é narrado. A primeira incerteza está justamente no momento em que o personagem se mira nos espelhos do banheiro público. Como já foi dito, ele se vê como um monstro, mas fica no leitor mais atento à dúvida: “seria ele de fato um monstro?”. Dois elementos, os olhos e os espelhos, se confrontam neste momento e o personagem é enganado, ou acorda do engano, em que vivia até então. Não só neste momento, mas em todo o relato, o leitor poderá duvidar do que é narrado: “O espelho” é um conto de incertezas de significados. Além disto, há a constante aproximação de elementos contrários. Real e irreal, aqui lidos como mundo real e mundo refletido, misticismo e ciência. Sobre estes dois últimos deve-se dizer que eles opõem-se e, ao mesmo tempo, se unem para formar a história. Paradoxalmente, o narrador conta uma história transcendental, “Reporto-me ao transcendente. Tudo, aliás, é ponta do mistério, inclusive os fatos” (ROSA, 1962, p. 71) e nela ele tenta incluir elementos da ciência para mostrar que ela é verdadeira. O personagem principal também se vê neste jogo de incertezas e contrariedades: ele é um monstro e, mais tarde, uma criança, um homem inteligente e racional e, ao mesmo tempo, um supersticioso, marcado pelas crendices de sua terra natal. Sobre a estrutura do conto a professora Ana Paula Pacheco diz: Um travessão abre “O espelho”, conto central de Primeiras Estórias, introduzindo uma fala ininterrupta. Um interlocutor oculto a ouve, sob segredo, a experiência que teria trazido ao narrador-personagem conhecimento que nenhum homem possui. (PACHECO, 2006, p. 221)

A palavra espelho, em latim (speculum), deu também origem a outra palavra, a especulação. E é justamente diante de um espelho que o narrador da décima primeira narrativa do volume Primeiras Estórias, começa suas especulações sobre a natureza dos espelhos e de uma verdade oculta atrás do seu rosto. “Se quer seguir-me, narro-lhe; não uma aventura, mas experiência, a que me induziram, alternadamente, séries de raciocínios e intuições.” (ROSA, 1962, p. 71) é dessa maneira que o narrador do conto chama o seu leitor para ouvir o seu relato sobre sua experiência. Essa qualidade que o texto tem de chamar o leitor para dentro do texto lembra a estrutura do quadro Las niñas, de Velásquez. Na pintura, o espectador é chamado para dentro da obra através de um jogo de imagens que coloca quem observa o quadro e o rei e a rainha, que posam para o pintor na mesma posição, fora da pintura. É interessante lembrar que o barroco, estilo ao qual o quadro em questão pertence, é marcado por uma crise no modo de olhar o mundo e é justamente por causa de um olhar que o personagem do conto começa a sua experiência. O conto todo se compõe como um relato, um discurso direto, fruto da enunciação do personagem principal que possui um suposto conhecimento raro: o da sua verdadeira imagem. A existência do interlocutor do texto só pode ser percebida dentro da fala do narrador que vai, dentro de seu relato, marcando suas ações. Expressões como: “Vejo que começa a descontar pouco de sua inicial desconfiança, quanto ao meu juízo” (ROSA, 1962, p. 72) e “Levei meses. Sim. Instrutivos” (ROSA, 1962, p. 74) são comuns no texto, marcando as reações do ouvinte diante do que é relatado. Essa mesma forma de narrar já tinha sido utilizada anteriormente por Guimarães rosa em seu romance Grande sertão: veredas. Mas a semelhança entre os dois narradores termina na sua forma de narrar. Diferentemente de Grande Sertão: veredas, o personagem principal, o narrador do conto

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“O espelho”, não é identificado. Seu nome não aparece na história e a única marca da sua origem está na sua afirmação de que ele, juntamente ao seu ouvinte, é um homem do interior. A estrutura filosófica interna do que é narrado é totalmente diferente. Riobaldo é um narrador que se aproxima mais de uma tradição socrática, sempre deixando claro em sua narrativa que ele sabe pouco e é seu interlocutor que detém o conhecimento. Nesse tipo de discurso acaba por se perceber que Riobaldo falseia, sendo ele detentor de grande sabedoria. Já o narrador do conto “O espelho” parece se inclinar para uma tradição cartesiana, como o final do conto deixa transparecer na pergunta provocativa que ele lança ao seu interlocutor: —“Você chegou a existir?” (ROSA, 1962, p. 78). Não só nesse momento de clímax que o narrador deixa transparecer características da filosofia cartesiana. A própria estrutura do relato lembra muito o ceticismo que o filosofo propõe para encontrar a verdade que ele procura. O filosofo francês, assim como o narrador do conto, se propõe a não acreditar em nada do que seus sentidos lhe sugerem, buscando através de experimentos provar as verdades que encontrava. É esse o ceticismo que Descartes se utiliza em seu Discurso do Método, livro em que demonstra as suas considerações sobre a filosofia. Os métodos para alcançar a verdade que o filosofo propõe são simples. ele arma-se do ceticismo e de uma dúvida sobre o que o cerca. Se algo é passível de dúvida, segundo Descartes, deve ser analisado pois não deve ser verdadeiro. Esse método é conhecido como Ceticismo metodológico que consiste em quatro tarefas: a primeira é a verificação de evidências reais e indubitáveis em relação a coisa estudada; a segunda é a analise; a terceira tarefa é a de sintetize para agrupar novamente as unidades estudadas em um todo verdadeiro; por último, enumerar todas as conclusões e princípios utilizados, a fim de manter a ordem do pensamento. Essa é a mesma atitude que o narrador de “O espelho” toma no início do conto. A visão súbita de seu rosto monstruoso lhe causa dúvida, e, assim como Descartes se arma do ceticismo, o narrador do conto também tem seus métodos. Operava com toda a sorte de astúcias: o rapidíssimo relance, os golpes de esguelha, a longa obliqüidade apurada, as contra-surpresas, a finta de pálpebras, a tocaia com a luz de-repente acesa, os ângulos variados incessantemente. (ROSA, 1962, p. 74)

Aliás, o discurso direto é um recurso interessante que passa ao leitor uma aparente legitimidade ao que está sendo narrado. O relato pode ser real ou não. O próprio narrador, diversas vezes, tenta atraí-lo à realidade. Quanto mais absurda é a situação narrada, mais marcas desta tentativa de conferir legitimidade ao que é narrado aparecem. “Fixemo-nos no concreto” (ROSA, 1962, p. 71), diz o narrador quando o relato precisa afastar-se da irrealidade que está sendo narrada. Nesta tentativa de imprimir um maior grau de verdade ao que é narrado, o narrador disfarça os elementos estranhos e fora da realidade do seu relato com um amplo acervo de filosofias e teorias científicas para que seu interlocutor não o tome, desde o início, como um louco. Este recurso do narrador de demonstrar-se como um homem sensato e culto, apesar dele ser também um supersticioso, traz ao conto um imenso acervo de referências à cultura e à literatura universal. Pode-se imaginar que o ouvinte deste estranho relato não toma o narrador como um ignorante quando ele cita ioga ou Lavater1, ou mitos gregos e o conhecimento da física que estuda os espelhos, a óptica. Este recurso parece ser usado por conta do teor fantástico do que é narrado, senão, de outra forma o narrador seria tido como um louco. No conto há esta idéia de no trecho: “Vejo que começa a descontar pouco de sua inicial desconfiança, quanto ao meu juízo” (ROSA, 1962, p. 74). Como pode se ver, o personagem que ouve inicialmente desconfia do narrador, e só aos poucos, através dos argumentos científicos e de seus conhecimentos, que a idéia de loucura é afastada dele. O título do conto imediatamente nos faz lembrar de um conto de mesmo nome, de Machado de Assis. É também diante de um espelho que o personagem principal do conto machadiano desenvolve uma teoria da natureza humana. “Esboço de uma nova teoria humana” é o subtítulo deste conto ácido sobre o modo como as pessoas se enxergam. Nele o personagem só possui um reflexo no espelho 1

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Johann Kaspar Lavater (1741-1801). Escritor e filósofo suíço, fundador da fisiognomia, o estudo das expressões faciais.

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quando está usando a farda que era o símbolo do seu status social. Ele só era alguma coisa diante do espelho por que sua farda instituía o que ele era: alguém com prestigio na sua profissão. O personagem de Guimarães Rosa vê-se refletido no espelho sem que precise usar as parafernálias da sua profissão. Sua profissão sequer é mencionada. Ele olha-se no espelho e, tomado pela dúvida, começa a especular sobre a imagem que vê. No Dicionário de Símbolos de Jean Chevalier e Alain Gheerbrant, os autores relacionam o espelho a “um simbolismo extremamente rico dentro da ordem do conhecimento” (CHEVALEIR, 1996, p. 393) e é justamente conhecimento que o personagem busca ao empreender a sua jornada em busca da sua verdadeira imagem, diferente do que acontece em Machado de Assis, mas o espelho, como elemento que revela o interno, está nos dois contos. Ora, para a Física, o espelho é uma superfície refletora. Em espelhos normais, com superfícies planas, as imagens refletidas são chamadas de virtuais. O que o personagem principal do conto vê no espelho por si só não é real, é apenas um reflexo da realidade, algo que depende de outra coisa para existir. Nisto pode-se fazer um paralelo com a alegoria da caverna, de Platão. No sétimo livro do volume A República, do filosofo grego Platão, há a proposta de que tudo o que nós vemos é uma representação imperfeita da realidade. Platão vai mais além e propõe que tudo o que vemos é uma representação do mundo das idéias, sendo este um plano perfeito. Esta proposta é anunciada através da alegoria da caverna, anunciada por Sócrates a Glauco. Na suposta caverna estariam presos homens que só poderiam ver sombras de objetos reais, fora da caverna, sendo precipitadas em um paredão. Os homens vêem as sombras e aceitam aquilo como a realidade, pois só aquilo eles conheciam. O filosofo usa a alegoria da caverna para mostrar ao seu ouvinte o estado da natureza humana relativa à instrução e à ignorância. Este é o estado do personagem que, ignorante, contempla o espelho buscando conhecimento. Os homens da caverna são descritos como estando de “Pernas e pescoço amarrados com cadeias, de forma que são forçados a ali permanecer e a olhar apenas para frente, impossibilitados, como se acham, pelas cadeias, de virar a cabeça.” (PLATÃO, 1976. p. 285) Estes homens, descritos por Platão, são os ignorantes que, presos as trevas, vêem no irreal, nas sombras projetadas pelo fogo, algo real. Pode-se dizer que o personagem do conto “O espelho” está dentro da caverna de Platão. O reflexo que ele vê de si mesmo é uma espécie de sombra, uma ilusão que ele decide superar. Olhar-se no espelho torna-se uma ação de busca pela verdade, pela imagem real que atingida pela luz, forma a sombra que ele vê através do espelho. O personagem, então, pode ser descrito como alguém que quer sair desta caverna de ignorância e abandonar o caminho de ilusões sensoriais que o resto da humanidade percorre. O personagem do conto “sai da caverna” quando se contempla no espelho e nega que aquilo que é visto é a verdade. A “sombra” no reflexo sugere que há algo real no qual ela é inspirada. Ainda nesta interpretação podemos ver a dificuldade do personagem em busca daquilo que pode ser real. As “gradações de luz, lâmpadas coloridas, pomadas fosforescentes na obscuridade” (ROSA, 1962, p. 75) o “olhar não-vendo” (ROSA, 1962, p. 75) são métodos para fugir da suposta ilusão produzida pelo espelho e pelos seus olhos. Na alegoria da caverna, diz-se que um dos homens da caverna, retirado do seu ambiente de sombras, sofreria, ao ser levado à luz. Seus olhos doeriam diante da luz e ele demoraria a entender as coisas que o cercam. O próprio narrador do conto começa a sentir dores de cabeça, apesar dos cuidados que tomava com a saúde, pode-se dizer que ele fica ofuscado com a luz da verdade, tais quais os homens da caverna, caso deixassem o seu ambiente de trevas e fossem para a luz. Já foi dito que o olhar, no espelho, pode ser visto como um paralelo com a alegoria da caverna, de Platão. Ora, esta busca pela verdade, pela sua verdadeira imagem, pode ser vista como uma busca pela perfeição, já que ele seria, no espelho, imperfeito, monstruoso. A dúvida sobre se aquele monstro é a sua verdadeira imagem, aquilo que ele é, uma vez que para algumas culturas, segundo o narrador, o espelho reflete a alma, faz o personagem empreender a buscar daquilo que seria a sua verdadeira essência, escondida atrás da máscara que ele vê quando se olha no espelho. Este olhar-se

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no espelho pode ser concebido como uma busca pelo conhecimento de si próprio. Toda a experiência que o narrador relata pode ser vista como uma busca pela descoberta da alma, da verdadeira essência humana. Este tema de autoconhecimento é comum no livro Primeiras estórias como se pode ver: O conto gira sobre uma questão central à poética rosiana, tematizada na procura de um rosto verdadeiro e suas decorrências, embate de uma subjetividade que busca reaver o ‘humano’ — concedido pelo personagem como universal —, entretanto em circunstancias especificas. De modo amplo, a pergunta pela identidade, que coloca, está em todos os contos do livro. (PACHECO, 2006, p. 222)

O conto inteiro possui um caráter universal. O personagem principal, que cruza a trilha do autoconhecimento, poderia ser qualquer pessoa, sua experiência não é uma experiência mística inacessível, alcançada através de anos de sacrifícios e práticas de meditação avançada, muito pelo contrário: ela nasce de um simples fato, corriqueiro, deve-se dizer: olhar-se no espelho. Seu enunciado também é universal. Ele pode ser facilmente comparado aos discursos religiosos que estimulam seus ouvintes a seguirem seus exemplos para atingirem um bem maior. O personagem principal relata, mas não explica. Fala como que por parábolas, primeiro alcançando a intimidade com seu ouvinte para depois começar a narrar. Ele, porém, não explica o significado por trás das suas palavras ou os símbolos que usa. Assim como em diversos outros contos do volume Primeiras Estórias, não há respostas concretas para as perguntas levantadas ao longo do conto, longe disto: o personagem principal amplia o clímax do seu discurso e da obscuridade do que ele discursa ao deixar para o ouvinte a descoberta do significado por trás do que lhe é narrado: “Se quiser, infira o senhor mesmo.” (ROSA, 1962, p. 77), diz ele ao seu ouvinte quando o seu estranho relato se encerra. A resposta para a pergunta pela identidade que é colocada no conto é metafísica. O narrador vê-se no espelho como uma criança. “rostinho de menino, de menos-que-menino, só.” (ROSA, 1962 p, 78). Para respondê-la recorre-se a outro filosofo, desta vez o alemão, Nietzsche. Em seu livro, Assim falou Zaratustra, sob a máscara do filosofo persa Zaratustra ou Zoroastro, Nietzsche descreve três transformações pelas quais um homem deveria passar em seu caminhou para algo além do humano. Uma delas é a criança e sobre ela diz: “A criança é a inocência, e o esquecimento, um novo começar, um brinquedo, uma roda que gira sobre si, um novo movimento, uma santa afirmação” (NIETZSCHE, 2006, p. 36). Pode-se ver que a criança que surge ao fim do conto constitui um importante elemento filosófico. Nesse caso, a criança é o fim da jornada, aquilo que seria verdadeiro dentro do personagem, um novo começar, nas palavras de Nietzsche. O personagem, então, estaria passando por uma travessia entre o que ele não era e aquilo que está se tornando, diante do espelho. A última frase de Grande Sertão: Veredas vem a tona neste momento, trazendo também a ideia de travessia em relação ao homem: “O diabo não há! É o que eu digo, se fôr... Existe é homem humano. Travessia.” (ROSA, 1963, p. 465). Segundo Heloisa Vilhena de Araujo, em seu livro O espelho, Primeiras Estórias nasce da necessidade de responder ao homem humano da última frase de Grande Sertão: veredas. Dessa forma, a criança, que surge no final do conto, marca não só a revelação do verdadeiro rosto do personagem principal do conto “O espelho”, mas também o homem humano do Grande Sertão: Veredas. Referências ARAUJO, Heloísa Vilhena de. O Espelho. São Paulo: Mandarim, 1998. 260 p. ASSIS, Machado de. Papéis Avulsos. In: Obra completa. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1994. v. 2, p. 251-366. CHEVALEIR, Jean; GHEERBRANT. Dicionário de Símbolos. Rio de Janeiro: José Olympio, 1996. 746 p. DESCARTES, René. Discurso do método. São Paulo: Martins Fontes, 1989. 102 p. NIETZSCHE, Friedrich. Assim falou Zaratustra. Martin Claret. São Paulo. 2006. 224 p. NUNES, Benedito. Guimarães Rosa em novembro. Minas Gerais. Suplemento Literário, 1968.

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Tema geral: Línguas e Literaturas: Diversidade e Adversidades na América Latina PACHECO, Ana Paula. Lugar do Mito: Narrativa e Processo Social nas Primeiras Estórias de Guimarães Rosa. São Paulo: Nankin, 2006. 271 p. PLATÃO. A república. Belém: Universidade Federal do Pará, 1976. p. 285. RÓNAI, Paulo. Os vastos espaços. In: ROSA, João Guimarães. Primeiras estórias. 6. ed. Rio de Janeiro: J. Olympio, 1972. p. XXIX-LVIII. ROSA, João Guimarães. Grande Sertão: Veredas. 2. ed. São Paulo: Círculo do Livro, 1987. 469 p. ROSA, João Guimarães. Primeiras estórias. 6. ed. Rio de Janeiro: J. Olympio, 1972. 176 p.

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A INTER-RELAÇÃO DO ENSINO-APRENDIZAGEM DE FLE E A EXPLORAÇÃO DIDÁTICA DA LITERATURA Jorge Domingues LOPES (Universidade Federal do Pará)

RESUMO: Partindo das definições do termo Literatura no âmbito da Teoria Literária, da Linguística e da Didática das línguas, faz-se o estudo das relações existentes entre o ensino-aprendizagem de Francês Língua Estrangeira (FLE) e a exploração didática da literatura nos cursos de FLE, bem como se busca explorar aspectos linguísticos de obras literárias nos cursos específicos de literatura francesa e francófona. A partir dos resultados obtidos com a pesquisa de campo, apresentam-se propostas de procedimentos metodológicos para exploração didática do texto literário em classes de FLE, baseadas em novas tecnologias de ensino. PALAVRAS-CHAVE: Ensino-Aprendizagem de Língua Francesa; Literatura Francófona; Prática de Ensino.

RÉSUMÉ: À partir des significations du terme Littérature dans le domaine de la Théorie Littéraire, de la Linguistique et de la Didactique des langues, on fait l’étude des rapports existantes entre l’enseignementapprentissage de FLE et l’exploitation didactique de la littérature dans les cours de FLE (dans les écoles publiques, dans les cours privés et à l’Université) de la ville de Belém, et on cherche exploiter certains aspects linguistiques des oeuvres littéraires dans les cours spécifiques de littérature française et francophone. Compte tenu des résultats obtenus avec notre recherche sur le terrain, on présente des propositions de procédures méthodologiques pour l’exploitation didactique du texte littéraire en classes de FLE, basées soient en ressources traditionnelles soient em nouvelles technologies d’enseignement. MOTS-CLÉS : Enseignement-apprentissage de FLE ; littérature francophone ; pratique d’enseignement.


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1. Introdução O processo de ensino-aprendizagem de uma língua estrangeira (doravante LE) exige do professor mais do que o domínio básico da língua a ser ensinada; é preciso também possuir outras competências específicas, tais como a pragmática, a sociocultural e a didática, tão importantes quanto a competência linguística, pois a língua, além de suas dimensões fonética, morfossintática e semântica, comporta aspectos interacionais, culturais e estéticos, que devem ser didactizados para participar do ensino de línguas. No caso do ensino do francês língua estrangeira (doravante FLE), novos métodos e conteúdos são criados a partir do desenvolvimento de novas teorias no âmbito da Didática das Línguas, da Linguística e de outras ciências afins, o que determinou profundas mudanças no próprio modo de ensinar-aprender a LE. Isso significa dizer que há sim um certo aperfeiçoamento, ao decorrer do tempo, das técnicas e métodos de ensino de LE. Por exemplo, durante algum tempo valorizou-se muito o aspecto linguístico-gramatical do ensino de FLE e isso provocou um quase esquecimento das dimensões estético-culturais da língua (v.g. a dimensão literária), fundamentais para a efetiva aquisição de qualquer LE. Enquanto objeto privilegiado de encontro de línguas e culturas sob uma perspectiva estética, a literatura foi (e é ainda) explorada didaticamente por professores de FLE e por didáticos que, nas várias metodologias, a colocaram em manuais com os mais diferentes objetivos (desde a exploração exclusiva de elementos gramaticais até a análise de características fundamentais do texto literário). Por outro lado, constata-se a situação inversa: um ensino-aprendizagem de literatura que exclui a exploração linguística do texto literário. Assim, língua e literatura estão, às vezes, separados não somente nos cursos de FLE, mas também nos cursos de formação de professores de FLE. A partir dessas observações, questionamos que relações existiriam efetivamente (supondo que elas existem) entre o ensino-aprendizagem de FLE e a exploração didática da literatura nos cursos de FLE na cidade de Belém. Mas também queremos determinar se existe nos cursos específicos de literatura francesa ou francófona “uma preocupação linguística” dirigida para o ensino-aprendizagem de FLE. Em caso positivo, podemos nos perguntar quais conteúdos linguísticos são privilegiados no curso; podemos igualmente perguntar quais estratégias são empregadas pelo professor de FLE com relação à literatura. 2. Os conceitos de literatura Não restrita aos domínios da Teoria da Literatura, a definição de literatura pode ser construída também a partir de outros domínios, de várias perspectivas, seja, por exemplo, da Antropologia, seja da Linguística ou da Didática das Línguas, cada uma reivindicando para si o uso e a análise do texto literário. Nesse trabalho, interessa-nos em particular a definição dada pela Didática das Línguas que concebe a literatura como um recurso didático muito interessante para o ensino-aprendizagem das línguas estrangeiras. Mas, não podemos ignorar as definições de literatura dadas pela Linguística e pela própria Teoria da Literatura. Há muito tempo vem-se buscando uma definição precisa, exata, de Literatura; poderíamos situar o início dessa busca já com os gregos da Antiguidade, dos quais destacamos Aristóteles, cuja “Arte Poética”, que se propunha a “tratar da produção poética em si mesma e de seus diversos gêneros, dizer qual a função de cada um deles, como se deve construir a fábula, no intuito de obter o belo poético” (ARISTÓTELES, 1994, p. 239), influenciou sobremaneira a história do pensamento humano e a própria crítica literária ocidental. Segundo Cândido (1993, p. 23), Literatura é: [...] um sistema de obras ligadas por denominadores comuns, que permitem reconhecer as notas dominantes duma fase. Estes denominadores são, além das características internas (língua, temas, imagens), certos elementos de natureza social e psíquica, embora literariamente organizados, que se manifestam historicamente e fazem da literatura aspecto orgânico da civilização.”=

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Esta definição é bastante importante para nosso trabalho na medida em que situa a literatura como produto social da cultura e da civilização, como forma de representação de elementos de caráter psíquico dos seres humanos e, ao mesmo tempo, de determinadas fases históricas. Além disso, a literatura, enquanto “sistema de símbolos”, serviria como “elementos de contato entre os homens”, ou seja, mais do que manifestação, ela permitiria a intermediação das relações entre indivíduos das mais diferentes classes sociais, culturas e até mesmo de diferentes épocas. Já para a Linguística, como complementação da primeira definição dada, o aspecto mais importante a ser considerado no fato literário é a sua própria natureza linguística, ou seja, conceber a Literatura enquanto resultado do trabalho artístico da linguagem. Deste modo, Literatura seria: “Em sentido lato, as manifestações de língua escrita feitas para um público geral de leitores. Em sentido rigoroso, a aplicação da linguagem com objetivo de arte, equivalente à atividade poética.” (CAMARA JR., 1977, p. 161) Vista sob esse ângulo, a Literatura agiria como fator de unificação entre diferentes povos que compartilham uma mesma língua. Esta mediação linguística é, de certo modo, já uma característica relevante a ser considerada no domínio da Didática das línguas, para o qual o texto literário é extremamente importante, pois, além de servir de base para uma das mais difundidas metodologias do ensino de língua estrangeira, é utilizado como suporte com maior ou menor importância em praticamente todas elas. Por isso, ao construir o verbete Literatura em seu Dicionário de Didática das Línguas, Cuq (2004 : 158) preocupou-se em apresentar, em primeiro lugar, uma definição geral do termo, segundo a qual “O termo literatura designa o conjunto das obras escritas, quer elas sejam de ficção quer elas se inspirem na realidade, que contenham em sua própria expressão a marca de preocupações estéticas.”. Essa definição, centrada no próprio objeto literário, deve ser complementada na Didática das Línguas pela de leitura literária, para introdução da figura do leitor-estudante, enquanto receptor das obras literárias. Deste modo, Cicurel (1991 , p. 126) afirma que “Pode-se entender a leitura literária como uma ‘experiência’ de sentido onde ela evoca um tipo de reação – afetiva, intelectual – que é uma outra coisa que os processos cognitivos voltados para a recepção de um texto de caráter informativo”. Entretanto, a mesma autora adverte que essa leitura literária no contexto escolar nem sempre está acompanhada de bons resultados, ou seja, “A maioria dos estudantes guarda uma lembrança pouco agradável das leituras nas aulas de literatura estrangeira. Eles leram ‘pedaços’ de textos destacados de seu contexto e com os quais era preciso trabalhar (geralmente traduzi-los, analisá-los, responder a questões de compreensão.” (CICUREL, 1991 , p. 128). Esta crítica é pertinente, pois ela nos alerta para um fato crucial: muitos estudantes não gostam de ler textos literários, pois em dado momento de sua formação foram expostos a métodos que valorizavam não o conhecimento ou o prazer do texto, mas tão simplesmente a exploração mecânica do material para atingir fins pouco ou nada significativos para o leitor-estudante. De um modo ou de outro, essa especificidade da leitura literária é um fato que não pode ser ignorado pela Didática das línguas, pois diz respeito à constituição do universo social e emocional do leitor, de suas representações e de sua sensibilidade. Todavia, a própria autora lembra que não é tão fácil explicar as causas dessa singularidade da leitura literária, mas que é possível formular algumas hipóteses, dentre as quais é possível destacar que “A obra literária constrói um mundo que interage com aquele do leitor. (...) – Enfim, o texto não está acabado, tanto que o leitor por sua leitura não vem de algum modo libertar a obra. (...) O texto literário é um texto que permite a interpretação. (CICUREL, 1991 , p. 126-127) 2.2. Relações entre o ensino das línguas estrangeiras e o ensino da literatura nas metodologias de língua estrangeira A literatura no Método Tradicional Durante muito tempo, estudar uma LE era sinônimo de estudo de textos literários consagrados por uma tradição. Com relação ao uso do texto literário nos métodos de FLE, reconhece-

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se inicialmente o Método Tradicional que colocou a literatura e a língua literária no centro do processo de ensino-aprendizagem. Tratava-se de um método em que a língua falada a ser ensinada deveria estar baseada nos “textos exemplares” de uma “boa linguagem”. E para isso, segundo as convicções do século XIX (e de uma parte do século XX), dispunha-se apenas dos textos literários. Corpus ideal pois ela veiculava a norma, reunia os objetivos linguísticos, retóricos e culturais de um ensino que favorecia o escrito, e oferecia um olhar interiorizado sobre a civilização francesa, a literatura foi o instrumento privilegiado (...) e durante muito tempo coroado pelo aprendizado da língua: os textos literários eram pretextos para a aprendizagem da gramática e do vocabulário e o último volume dos métodos era geralmente um reunião de textos literários. (CUQ, 2004 : 158)

Então, para aprender uma língua seria suficiente conhecer muito bem as regras gramaticais e um vasto vocabulário dessa língua; assim, acreditava-se que era possível falar e escrever tão bem quanto os autores consagrados pela tradição literária. Por consequência, não se estudava exatamente a literatura por suas qualidades estéticas, mas pela “norma que ela veiculava” (CUQ, 2004 , p. 158). A literatura nos Métodos Áudios-orais e Audiovisuais Se no Método Tradicional a literatura era o ponto de partida e de chegada de todo o processo de ensino-aprendizagem, o contrário ocorre nos métodos áudios-orais e audiovisuais a partir da metade do século XX. Centrada sobre “a aprendizagem da fala em situação”, esses métodos excluíram quase inteiramente a literatura dos suportes de aprendizagem. Eles favorecem todavia a reescritura e a adaptação das obras literárias em função dos dados do francês fundamental (por exemplo, as coleções ‘Em francês fácil’), pensando assim suprir no mínimo suas ‘obrigações culturais’: cota mal definida que ilustra a difícil questão da divisão civilização/cultura dos anos 1970. (CUQ, 2004 , p. 158)

E mesmo quando se estudava a literatura em um curso específico, apenas se aprendia o esquema tradicional “(...) da ‘sacrossanta’ história da literatura francesa. Essa história era apresentada como uma sequência de épocas, de tendências estéticas, de escritores e de suas obras, sem nenhuma relação com a vida quotidiana” (KALINOWSKA, 2004, p. 27). O mais importante não era compreender ou interpretar as obras literárias, mas “etiquetá-las”, segundo rótulos da história, utilizá-las como modelos não autênticos de escritura ou contenedores da civilização francesa. A literatura no Método Comunicativo O Método Comunicativo representa a terceira tendência citada em que a literatura foi tomada como um importante instrumento didático, tal como o observou Kalinowska (2004, p. 27) : “A necessidade e a utilidade da exploração didática dos textos literários no ensino das línguas estrangeiras são bem reconhecidas após pelo menos três décadas – após a formulação e a colocação em prática dos princípios da abordagem comunicativa.”. A novidade dessa etapa consiste em conceber a literatura como um documento autêntico (não mais no centro da metodologia nem na periferia ou fora dela), cheia de significação, essencial para o desenvolvimento das competências comunicativas e obedecendo sempre a uma progressão estrita segundo o nível de língua e o conhecimento dos estudantes de FLE. Com a abordagem comunicativa, a literatura é de uma certa maneira reabilitada pela introdução de textos literários entre os suportes de aprendizagem. Considerado como um documento autêntico, o texto literário é explorado nos métodos para desenvolver a competência da escrita e como motivador da expressão oral. (CUQ, 2004 , p. 158)

2.2.2 Em Belém Ainda não foi possível definir precisamente de quando data o início do ensino do francês língua estrangeira na cidade de Belém. Entretanto, é possível constatar que, segundo os registros em jornais antigos do Pará, a língua já era ensinada antes da década de 40 do século XIX, apesar de, segundo Lopes (2000, p. 8), « não existir ainda uma regulamentação para o ensino primário e

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secundário na cidade de Belém (...), pois o ensino, em geral, só existia nas poucas instituições religiosas ou nas casas de ‘professores particulares’ ». Somente em 1841 criou-se o « Liceo Paraense » e, por conseguinte, regulamentou-se a instrução primária e secundária no Pará, na qual era previsto o ensino da língua francesa. Deste primeiro período pouco se pôde apurar acerca das metodologias utilizadas no ensino do francês em Belém, sabe-se apenas que livros utilizados nos cursos eram importados da Europa, sobretudo gramáticas e obras literárias. Vale ressaltar que um dos principais motivos que levavam as pessoas a se interessarem pelo estudo do FLE era a forte influência da cultura francesa na cidade de Belém, tal como se observa em anúncio do jornal Treze de Maio (n. 692, samedi le 10 mai 1847, p. 3) Os abaixo assignados avisaõ as pessoas que quiserem dedicar-se ao estudo da Lingua Franceza, que elles abriraõ huma aula particular para esse fim nas casas contiguas a Botica de José Acurcio Cavalleiro de Macedo, no largo da Misericórdia Velha, defronte da loja de ourives de José Ignacio de Farias. As pessoas que desejarem frequenta-la, não só teraõ a vantagem de aprender o Francês, que hé hoje reconhecido como a lingua mais propagada no mundo, e a rainha da litteratura, como poderaõ tambem conhecer melhor a Grammatica Portugueza pela comparação que estaõ todos os dias obrigados a fazer entre as regras d’estas duas lingoas. Aquelles que quiserem seguir este estudo, poderaõ dirigir-se d’hoje em diante a mesma casa das 7 as 9 horas da manhãa. Dão-se 3 lições por semanda pelo modico preço de 3$000 réis mensais. — Antônio Bernardo Rodrigues dos Santos. — Billaz.1

Com relação ao final do século XIX e início do século XX, é possível afirmar que se utiliza a Metodologia Tradicional, tanto nos colégios quanto nas casas dos “professores particu-lares”. Segundo um programa de francês datado da primeira década do século XX, confirma-se a utilização do Método Gramática-Tradução no mais importante colégio da cidade de Belém. Acrescente-se a isso o fato de a literatura servir como modelo linguístico permanente para um suposto modo “erudito e correto de boa linguagem”. Francez 3.a SERIE (3 HORAS)

O ensino será ministrado exclusivamente em francez explicando o professor os principais idiotismos e as particularidades essenciais da lingua. As traducções preparadas com antecedência ou feitas em aula terão de ser resumidas oralmente, devendo exercitar-se os alumnos na elaboração de syntheses claras e concisas. As composições ou serão livres ou obedecerão a um thema obrigado, sendo a critica e a defeza das mesmas feitas na lingua ensinada. Completará o curso uma apreciação das principaes épocas da litteratura franceza. Bibliografia: M. D. Berlitz, 1.o 2.o 3.o livros. Lafontaine, Fábulas. Larive & Freury, Grammatica Franceza. (Gymnasio Paes de Carvalho, 1913, p. 10)

Dentre todas as LE ensinadas à época (inglês, alemão e italiano), o francês era a língua como maior prestígio social e com maior ênfase, fosse em escolas públicas, fosse em escolas particulares. Há inclusive registros publicitários em jornais datados de 1910 que anunciam aulas de reforço em francês para que estudantes de escolas particulares pudessem se preparar para o exame de admissão no « Gymnasio Paes de Carvalho », antigo Liceu Paraense, tal era o seu prestígio junto à sociedade belenense. Desse período até o final da primeira metade do século XX, o ensino das línguas estrangeiras em Belém estruturou-se melhor e expandiu-se, seguindo sempre que possível as inovações metodológicas surgidas na Europa. Progressivamente a Metodologia Tradicional foi substituída por outras mais “modernas”, tais como Áudio-oral, nas décadas de 50 e 60, e a SGAV (structuro-global audio-visuelle), nas décadas de 60 e 70. Nesse segundo quartel do século XX, o Colégio Estadual Paes de Carvalho já não é mais referência no ensino da língua francesa, principalmente porque duas outras grandes instituições 1

Essas transcrições de jornais do século XIX conservam a grafia original utilizada àquela época.

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passam a oferecer cursos regulares de língua francesa, a Aliança Francesa de Belém, fundada em Belém no ano de 1964, e a Universidade Federal do Pará, cujo objetivo era o de formar professores licenciados plenos para o ensino des LE. Atualmente, na cidade de Belém, segundo os dados fornecidos pela Associação dos Professores de Francês do Pará (APFP) e também os coletados em nossa pesquisa (ver questionários em anexo), há mais de 20 estabelecimentos de ensino que mantém cursos regulares de FLE (seja para um público cativo ou não) e que oferecem desde a formação básica inicial até os níveis mais avançados. Grosso modo, é possível classificar essas instituições em quatro grandes categorias : a) Escolas Públicas de Ensino Fundamental e Médio (com Cursos Livres) b) Escolas Particulares de Línguas c) Universidades Públicas (com Cursos Livres) Procuramos, em nossa pesquisa, abranger esses três grandes grupos de instituições, pois cada uma delas oferece cursos regulares de francês com os mais diferentes objetivos. As primeiras o oferecem como disciplina constante de um currículo mínimo de instrução oficial para escolaridade básica mantido pelo governo; as segundas, como cursos específicos de formação em LE, de caráter não obrigatório; as últimas, como meio para formação de formadores em LE. 2.3. A língua e a literatura nas classes de FLE Antes de tudo é preciso reconhecer que o objetivo principal dos cursos de LE hoje é, sem dúvida, o de aprender a língua para comunicar (fala e escrita). Para atingir esse fim, as instituições e os professores devem utilizar alguns métodos (subordinados a fatores históricos de uma ou de várias metodologias, ou seja, eles estão situadas sempre no tempo e no espaço). Isso determina a utilização de um ou de outro recurso pedagógico: um certo manual de língua centrado sobre o escrito e/ou sobre o oral; um certo instrumento tecnológico (gravador, Internet, laboratório de língua); um certo conjunto de textos reunidos das mais diferentes fontes. Nesse contexto, podemos situar a literatura como o centro dos cursos específicos de literatura ou como um dos objetos dos cursos de LE. Enquanto objeto principal de um curso, a literatura não está tão passível de críticas (por parte de professores das LE, por exemplo), pois é “seu lugar mais adequado” e para muito, “o único lugar aceitável”. Por outro lado, observamos que, do ponto de vista de alguns professores de FLE e de algumas instituições de ensino de FLE, língua e literatura são objetos completamente diferentes que nunca podem ficar juntas em um mesmo espaço. É por isso que, em geral, encontram-se cursos de LE que excluem de seus objetivos o estudo ou a exploração didática da literatura seja porque eles a consideram muito difícil para aprender-ensinar, seja porque eles a consideram completamente inútil para o desenvolvimento das competências comunicativas dos estudantes. Outro ponto a considerar é a situação contrária: cursos de literatura que não se preocupam com o desenvolvimento das competências linguísticas dos estudantes. Para todas essas possibilidades com relação à inter-relação entre o ensino de língua e o ensino de literatura, é necessário estabelecer o lugar da literatura em um curso de língua e vice-versa. 2.3.1. A língua literária Antes de tudo é necessário esclarecer que não temos o objetivo de dar à literatura um papel maior do que aquele que ela pode ocupar nos espaços do ensino-aprendizagem de línguas; mas também acreditamos que ela não pode se restringir, considerando suas possibilidades estéticas e linguísticas, a um domínio fechado sobre si mesmo. Partiremos da constatação de Jakobson (1963, p. 209-210) de que a língua (estudada pela Linguística) e a literatura (estudada pela Poética) não pertencem a domínios diferentes, nem são realidades completamente diferentes.

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Diremos que existiria uma interdependência entre elas, ou seja, uma existe na outra. A língua encontra na literatura suas possibilidade de expansão, de experimentação, é o terreno onde ela terá seus limites testados para atingir formas novas, inusitadas, enfim para tornar-se arte. A literatura, sem a língua não existiria, uma vez que ela toma elementos orais e escritos da língua para construir seu corpus, experimentando sempre novas “fórmulas” para manifestar e “reinventar” a realidade linguística. Assim seria possível falar, nessa interseção, de uma forma de língua própria à literatura, nascida da distinção linguística de língua oral e língua escrita. O problema das relações entre língua e literatura se situa no nível do ensino-aprendizagem das LE e provém, na visão de Girard, do contato das metodologias tradicionais com os novos métodos comunicativos. Atualmente essa perspectiva está em vias de desaparecer uma vez que a maior parte dos manuais de FLE não faz mais esta distinção radical entre língua e literatura, pois esta ocupa neles um espaço cada vez maior e porque os textos literários podem complementar o próprio manual de língua. 2.3.2. O texto literário na classe : o interesse Apesar da presença permanente de textos literários nas classes de língua materna (LM), nas classes de LE eles são frequentemente ignorados ou colocados em último plano em sua metodologia. Mas o interesse sobre a exploração dos textos literários nos cursos de LE está em franco crescimento e vários motivos o justificam. Considerar o texto literário como um documento autêntico é um bom ponto de partida para o colocar em um curso de LE. Pois esse uso da língua em um contexto real pode servir para deslanchar não somente a competência escrita do estudante, mas também sua competência oral. Além disso, a literatura pode ser concebida como um espaço privilegiado da cultura do povo que fala a língua que se está aprendendo. “L’âme du pays se lit dans sa littérature. Il est indispensable de fournir cette nourriture aux élèves et il est criminel de les en priver” (PLOQUIN, 2004 , p. 24). Sob o domínio da Didática das línguas, encontramos um outro perfil adequado para apreender o fenômeno literário no campo do ensino-aprendizado das línguas: Ela favorece a priori a compreensão, mas, como sempre, a literatura participa também, mesmo indiretamente, à apropriação da língua: gramática e vocabulário para o essencial. A literatura é igualmente um reservatório das possibilidades da língua, um espaço onde a língua é trabalhada e se trabalha e, ao seu contato, o estudante pode ser sensibilizado a todas as nuanças e ao poder da língua que recria o mundo até o infinito. (CUQ, 2004 , p. 159)

Essa apropriação da língua estrangeira pode ser mais enriquecida e mais satisfatória se se entra em contato com a literatura da língua-alvo, uma vez que isso levaria o estudante a vivenciar a língua sob novas formas e perspectivas. Desenvolver essa consciência é um desafio imposto aos professores das LE diante do fato de muitos estudantes de hoje não gostarem de ler obras literárias. 2.3.3. O texto literário em classe : problemas/obstáculos Exigindo um nível de língua mais elevado, a leitura dita literária é uma prática que deve ser utilizada com cuidado em um curso a fim de evitar a redução do texto literário a suas características estritamente linguísticas. Para além do problema estritamente textual, a questão cultural pode representar uma virtude ou uma barreira na aprendizagem da língua se não há da parte do professor uma preocupação em explicar os conteúdos culturais veiculados pela língua-literatura. Se se opta por valorizar somente os aspectos linguísticos no ensino de uma LE, excluindo quase todos os elementos culturais, corre-se o risco de limitar as possibilidades de sucesso do estudante no universo linguístico e cultural da línguaalvo. Esse problema evoca a necessidade de desenvolver a competência cultural do leitor-estudante

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para lhe permitir entrar no complexo universo de textos literários em língua estrangeira, cujo acesso está restrito àqueles que têm a “chave” para a compreensão da cultura e da conotação. 2.3.4. O texto literário em classe: o lugar da cultura Assim chegamos a um outro ponto que justifica a introdução da literatura nos cursos de LE: é sobretudo sua característica de instrumento cultural e de veículo dessa mesma cultura. AbdallahPretceille acredita que “a aprendizagem de uma língua requer uma tripla competência linguística, comunicativa e cultural” (1996, p. 28). Essa terceira competência não pode ser negligenciada na aprendizagem de uma LE, pois ela é responsável pela formação de bases mínimas para a realização de uma comunicação precisa e eficaz. Se o objeto literatura é um espaço privilegiado para inclusão, manutenção e propagação de culturas, estamos de acordo com Cuq quando ele conclui : Verdadeiro laboratório de língua, a literatura é igualmente o lugar de cruzamento das culturas e o espaço privilegiado da intercultura. A literatura e o texto literário deveriam pois se inserir mais no campo da didática das línguas para ganhar um lugar mais coerente... (CUQ, 2004 , p. 159)

Em outros termos, os Parâmetros Curriculares Nacionais (doravante PCN) justificam a introdução do francês no sistema educativo brasileiro a partir de um critério sustentado pela relevância da cultura francesa pela formação intelectual dos brasileiros de uma certa geração. 3. A pesquisa A pesquisa de campo foi necessária porque decidimos fazer em nosso trabalho um inventário mais ou menos geral da situação atual do ensino de FLE em Belém, cujo objetivo era situar os espaços onde se ensina o francês, descrever os objetivos, os conteúdos e as metodologias dos cursos e conhecer um pouco o perfil dos professores de FLE. 3.1. O espaço Situada na região Norte, Belém, a capital do Estado do Pará, é uma das mais importantes cidades do Brasil. No século XIX, por causa do “ciclo da borracha”, ela se desenvolve econômica e culturalmente, sofrendo uma forte influência da cultura européia, sobretudo da cultura francesa. Durante muito tempo, a língua estrangeira privilegiada no ensino do município foi o francês e, mesmo hoje, ele não perdeu a sua relevância. Então, ao restringir nossa pesquisa à cidade de Belém ocupamo-nos de um espaço historicamente relevante para a francofonia, aqui entendida grosso modo como “o conjunto de populações que utilizam o francês (os países de francês língua materna, os países crioulos, os países de francês língua oficial, os países de francês língua estrangeira...)” (Littérature Francophone, 1992, p. 13)2, mas também buscamos valorizar, dentro desse espaço francófono, a cidade onde obtivemos nossa formação em francês. Mais especificamente, nossa pesquisa se restringe às instituições onde se ensina o francês (língua e literatura), sejam escolas públicas ou privadas, sejam universidades da cidade de Belém. 3.2. O público A partir da determinação do espaço, pudemos escolher o público de nossa pesquisa, quer dizer, dos professores de FLE ou de Literatura francesa ou francófona que trabalham nos cursos de francês na cidade de Belém. Não impusemos outras condições para escolher esses professores, Para melhor definição do termo, podemos aproveitar as observações feitas por Deniau (2001, p.15) acerca da noção de francofonia: “Se é impossível reduzir a francofonia a uma definição única, aparentemente o sentido que ela engloba concorre para seu enriquecimento (...). Vários sentidos para francofonia são possíveis a partir das perspectivas: linguística, geográfica, espiritual e mística, institucional (...). A dimensão geográfica é essencial para a francofonia, pois os milhões de indivíduos capazes de falar o francês e de o propagar são francófonos potenciais.”

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nem quanto à sua formação, nem quanto à sua idade ou sexo, nem quanto ao tempo de experiências profissional ou atual quantidade de classes de francês. 3.3. Os instrumentos da pesquisa Para obter os dados desse trabalho, adotamos o questionário como principal instrumento de pesquisa, porque ele permite a um só tempo adquirir informações a propósito da instituição, do curso e dos professores. É necessário dizer que não realizamos o registro oral das entrevista, devido a limitações de material. Assim, produzimos 5 diferentes tipos de questionários classificados em duas categorias segundo sua forma de aplicação e seu público. Os três primeiros tipos de questionários foram chamados: – Sondagem preliminar das ESCOLAS PÚBLICAS ESTADUAIS e MUNICIPAIS de Belém onde se ensina o francês; – Sondagem preliminar dos CURSOS PARTICULARES DE FLE de Belém; – Sondagem preliminar das INSTITUIÇÕES PÚBLICAS FEDERAIS de Belém onde se ensina o francês. Esses três primeiros questionários tinham o objetivo de obter informações de ordem administrativa a propósito das instituições e de seus cursos de FLE em Belém. É por isso que eles foram aplicados por telefone e puderam ser respondidos não somente por professores, mas também por secretários e diretores, por exemplo. Os dois outros tipos de questionários se chamavam: – Os cursos de FLE na cidade de Belém; – Os cursos de Literatura na cidade de Belém; Esses questionários, muito mais detalhados que os precedentes, foram aplicados diretamente aos professores de FLE e de literatura na cidade de Belém. Seu objetivo foi recolher informações administrativas das instituições, pessoais dos professores e metodológicas dos cursos, apresentadas sob o olhar dos próprios professores em seu trabalho. A aplicação do questionário se fez a partir das entrevistas aos professores onde cada um respondeu às questões propostas no documento (cf. questionários em anexo). 3.4. Os dados 3.4.1. As escolas públicas A rede pública de ensino em Belém divide-se em dois grandes grupos : o municipal, responsável pela Educação Infantil (pré-escolar e alfabetização) e parte do Ensino Fundamental (de 1.a à 4.a série) ; e o estadual, responsável por parte do ensino fundamental (de 5.a à 8.a série) e por todo o Ensino Médio (de 1.a à 3.a série).3 Ambos possuem em seus currículos básicos a disciplina Língua Estrangeira, conforme exigência da Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (Lei n.o 9.394 de 20 dez. 1996) : Art. 36. III – será incluída uma língua estrangeira moderna, como disciplina obrigatória, escolhida pela comunidade escolar, e uma segunda, em caráter optativo, dentro das disponibilidades da instituição.

Contabilizamos, assim, do total de escolas que ofertam pelo menos uma LE, 8, na rede municipal, e 10, na rede estadual, que possuem o Francês em seus currículos. Em cada uma dessas Esse quadro pode variar de acordo com o interesse e a necessidade dos sistemas de ensino, uma vez que a LDB prevê essa possibilidade.

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escolas, há pelo menos um professor de francês cuja formação é de nível superior em Letras com habilitação em LE. Em geral, essas escolas não possuem uma proposta curricular comum para o ensino, pois as secretarias de educação ainda não concluíram ou aprovaram seus currículos oficiais.4 Isso exige que, muitas vezes, o professor elabore o seu próprio programa de ensino e o aplique sem ter, geralmente, recursos didáticos básicos como, por exemplo, um manual da LE ensinada. Há de se observar ainda que as classes são frequentemente bastante numerosas, em torno de 40 a 60 alunos por turma e formadas por um público cativo e diversificado (tanto em idade, quanto em condições sociais). Elas têm em média entre 1h30 e 2h10 de aula de LE por semana em espaços pouco adaptados para esse tipo de ensino. 3.4.1.1. Estaduais Hoje, na cidade de Belém, só existem 10 escolas, de um universo de 243, da rede pública estadual onde se ensina o francês, pois fica a cargo de cada escola escolher qual língua ela vai oferecer em seu sistemas; a maior parte das escolas opta pelo inglês. Dessas 10 escolas: – 3 oferecem o francês exclusivamente nos 4 anos do Ensino Fundamental, com exceção da escola Frei Daniel onde se ensina o francês somente na 6.a série; – 3 oferecem o francês exclusivamente nos 3 anos do Ensino Médio, com exceção do Instituto de Educação do Estado do Pará onde se ensina o francês somente nos dois primeiros anos; e – 4 oferecem o francês nos 7 anos do Ensino Fundamental e Médio, com exceção da escola Aldebaro Macedo Klautau onde não se ensina o francês no último ano do Ensino Médio. 3.4.2.2. O ensino da Literatura De todas as instituições particulares de ensino de FLE da cidade de Belém, a Aliança Francesa de Belém, em convênio com a Universidade de Nancy, é a única a oferecer um curso específico de Literatura Francesa (logo, não abrangendo no espaço da francofonia senão a produção literária especificamente francesa). Presente nos três níveis do curso do Nancy, cuja duração é de 3 anos, a Literatura é ensinada para um público geralmente adulto que deve já possuir o nível avançado de língua francesa. O objetivo desse estudo é prioritariamente o de preparar o estudante para participar dos exames do Nancy, aplicados ao final de cada ano. Segundo os dados obtidos com o questionário respondido por uma das professoras que ministram a disciplina Literatura no curso do Nancy (ver questionário completo no tópico dos Anexos), constatamos que ela é brasileira e que possui uma formação universitária (Licenciatura Plena em Letras com habilitação em Língua Francesa há 17 anos e uma “Maîtrise FLE” pela UAG/UFPA há 5 anos). Com uma carga horária semanal de 2 horas, os 15 alunos das 2 turmas de Literatura não utilizam senão o francês em classe para realização das atividades orais e escritas e para ler as obras literárias. Não havendo um manual específico de literatura, o professor utiliza como recursos didáticos o quadro, o rádio-gravador, o vídeo e algumas obras literárias, dentre as quais podemos citar: “Le Père Goriot”, de Balzac; “Le Bourgois Gentilhomme”, de Molière; “Hiroshima mon amour”, de Marguerite Duras; “Lorenzzacio”, d’Alfred de Musset. É preciso destacar que essas obras não foram escolhidas pelo professor da disciplina, mas pela Universidade de Nancy. Apesar disso, a proposta de leituras de obras completas, mesmo sendo de “leitura obrigatória”, é interessante uma vez que a maior No caso da Secretaria de Estado de Educação (SEDUC), existe um documento oficial intitulado Proposta Curricular de Língua Francesa – Ensino Fundamental (em construção) que circula, desde de 2001, em algumas escolas, porém ainda não foi formalizado pela própria secretaria.

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parte dos estudantes de LE nunca leu (e talvez nunca leia) um livro completo de literatura escrito na LE estudada. Pelo que pudemos constatar, o ensino de Literatura nesse caso não se restringe à leitura das obras literárias, pois a professora preocupa-se em apresentar a obra “traduzida” em outras linguagens (a do cinema, por exemplo). Entretanto, segundo a própria professora da disciplina, ela ainda encontra algumas dificuldades ao trabalhar com as turmas, dentre as principais estão, em primeiro lugar, o próprio conhecimento linguístico dos estudantes (nível de língua), que têm dificuldade em utilizar o francês; em segundo lugar, ela mencionou o pouco conhecimento literário (mesmo das literaturas de língua materna) desses estudantes de alta escolaridade; e, por fim, a pouca motivação dos estudantes para ler os autores escolhidos. Ao explorar os textos literários em classe, a professora realiza atividades que recobrem as quatro competências comunicativas: a compreensão oral (os estudantes acompanham um filme baseado na obra estudada); a compreensão escrita (a própria leitura das obras); a produção oral (a interação sobre a compreensão e as exposições em classe); e a produção escrita (a leitura orientada, “os comentários compostos”, a dissertação). É de suma importância para nosso trabalho a constatação de que a professora utiliza em classe aspectos linguísticos para fazer com que os estudantes possam compreender melhor as obras lidas. Dentre os conteúdos linguísticos aproveitados por ela estão o estudo do emprego dos tempos verbais (ainda mais porque existem, em francês formas verbais que são utilizadas preferencialmente em textos escritos, tal é o caso do “passé simple”) e o das figuras de estilo, base linguística fundamental para compreensão da própria composição do texto poético. Por fim, esse curso de literatura é, segundo as informações fornecidas pela professora, praticamente autônomo dentro da instituição, uma vez que não há nenhum vínculo dele com os demais cursos. 3.4.5. Os manuais de FLE Conhecer os manuais de FLE é imprescindível para nossa pesquisa, pois, já que são eles que apresentam grande parte do conteúdo dos cursos de língua, nada mais necessário do que analisá-los para descobrir se eles mesmos contêm alguma orientação para o uso do texto literário especificamente e, caso positivo, como eles o fazem. Dos manuais encontrados em nossa pesquisa, dois merecem maior destaque: Tempo e Forum. O primeiro porque é um dos mais utilizados em Belém e é o método adotado pela Universidade; o segundo, porque é o livro adotado por um dos mais prestigiados cursos de francês de Belém, o da Aliança Francesa. a) A literatura no método de francês « Tempo 2 » Como já mencionamos anteriormente, o texto literário só é introduzido no livro 2 do Tempo, quando o estudante já possui uma certa proficiência na língua. O Guia Pedagógico A introdução do Guia Pedagógico do manual de francês “Tempo 2” (BERARD, CANIER & LAVENNE, 1997 : 1-3) apresenta, além dos objetivos e da metodologia do manual, a organização do método em unidade didáticas constituídas em torno dos objetivos de aprendizagem. Cada unidade contém “rubricas” que são intituladas “savoir-faire linguistique, grammaire/lexique, écrit, civilisation ou littérature”. Essa última rubrica, encontrada somente no livro 2, tem como finalidade “proposer de la même façon [que les dossiers de ‘Civilisation’] une approche active de textes sélectionnés pour leur intérêt” (BERARD, CANIER & LAVENNE, 1997 , p. 3) Entretanto, sem precisar sua concepção de literatura (ou de texto literário), os autores não mencionam senão “o ecletismo e a diversidade” como critérios (pouco esclarecedores) para a seleção dos textos literários apresentados no manual. Por outro lado, eles são um pouco mais precisos com relação à noção de “approche active”, ou seja, “o aluno [deve] reagir, comparar, apresentar o seu

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ponto de vista” a partir de “uma exploração pedagógica” dos textos de autores franceses clássicos e contemporâneos (Flaubert, Proust, Verlaine, Desnos, etc.); mas, dentre esses autores é preciso destacar o nome de Baba Moustapha, escritor não-francês, representante, segundo o próprio manual, da “literatura africana”, o único caso de abertura para o mundo francófono fora do Hexágono. Para uma leitura dos textos literários No dossiê sobre a Unidade 3 do Guia Pedagógico do “Tempo 2” (BERARD, CANIER & LAVENNE, 1997 , p. 73), há uma descrição do procedimento para a realização da leitura dos textos literários. O livro do aluno A introdução do livro do aluno do “Tempo 2”, menos detalhada que aquela do Guia Pedagógico” no que concerne a apresentação teórica do método e do conteúdo, tem o mérito de justificar a escolha dos textos literários, ou seja, “aborder la littérature (...), avec un choix de textes (...) en étroite relation avec les acquis en cours” (BERARD, CANIER & LAVENNE, 1996, p. 4). Essa proposta de “abordagem” da obra literária pode ser observada ao longo do manual que apresenta mais de 20 textos literários (completos ou extratos), quase todos relacionados a atividades que vão desde a análise de elementos do texto (identificar, classificar, extrair, sublinhar, por exemplo) até atividades que ultrapassam os limites do próprio texto (comparar elementos culturais, defender um ponto de vista, argumentar, representar, produzir novos textos, por exemplo. b) A literatura no método de francês « Forum 3 » Segundo os próprios autores do manual, Forum “est la première méthode de français qui intègre les éléments de réflexion mis en œuvre dans le ‘cadre européen commun de référence’.(...) Destinée à un public d’adultes et de grands adolescents, la méthode couvre trois niveaux” (CAMPÀ et al., 2001 : 5)5 Encontrados apenas nas unidades 2, 4, 6 e 12 do manual Forum, os textos literários (incluímos nessa categoria de literário o texto de uma canção francesa) são explorados das mais diferentes formas e com os mais diferentes objetivos. Na segunda unidade do manual intitulada Parlez-moi d’amour, a exploração do texto de uma canção visa não somente a fins léxico-gramaticais (“relever les mots...”), mas principalmente à compreensão e interpretação do próprio texto (“expliquer le pourquoi de...”, “donner un titre à la chanson”, “faire des hypothèses...”). Da mesma maneira ocorre nas demais unidades, onde a exploração de cada texto pretende adequar-se aos objetivos maiores da própria unidade didática para conduzir o aluno a não somente refletir sobre o texto lido, mas também a produzir seus próprios textos sob a forma de comentários analíticos, de explicações que geralmente ultrapassam as fronteiras do texto, o que exige muitas vezes a ativação do conhecimento enciclopédico do aluno. Isso pode ser bem observado nas atividades da quarta unidade, À chacun sa foi, onde se explora um fragmento do romance de Delerm, “La première Gorgée de bière et d’autres plaisirs minuscules”. Percebemos assim a forte presença do elemento cultural (“règles de savoir-vivre en France/ dans le pays de l’apprenant”), que é, sem dúvida, uma das possibilidades de entrada no texto literário, ou vice-versa, o texto literário como via de acesso à cultura. É preciso lembrar que os próprios autores do manual se propõem a explorar a Interculturalidade (tomando sempre como base a cultura da França, o Hexágono), reservando mesmo um espaço específico, ou seja, um dossiê para ela: “L’Interculturel [est un dossier qui] présente la particularité de rassembler une approche factuelle avec la rubrique Cadres de vie qui présente des aspects du patrimoine culturel français.” (CAMPÀ et al., 2001 , p. 6) Já na sexta unidade do manual, Culture, cultures, destacamos a exploração de dois textos Tradução: “é o primeiro método de francês que integra os elementos de reflexão trabalhados no ‘quadro europeu de referência’. (...) Destinado a um público de adultos e de grandes adolescentes, o método cobre três níveis.”

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literários, um poema de Victor Hugo e um fragmento do romance “Madame Bovary”, de Gustave Flaubert. Em ambos os casos, as atividades incentivam, de uma maneira geral, a análise de conteúdos e estruturas: – Avec des activités pour l’exploitation du texte de Victor Hugo : - identifier le thème du poème, son destinataire et le nombre (constant) de syllabes de chaque vers. - “Et si vous l’appreniez par cœur ?”

Flaubert:

– Avec des activités pour l’exploitation de l’extrait du roman « Madame Bovary », de Gustave - “quelle affirmation est vraie ?” - identifier le type de texte - relever trois informations relatives à la description physique de... ; - observer la proposition X et justifier l’accord du participe passé.

Deve-se notar também que a indicação “Et si vous l’appreniez par cœur” manifesta uma intenção pouco comum nos manuais de FLE, a de levar o aluno a conhecer o poema, antes de tudo, para sua própria fruição, mas pode-se também dizer que há uma intenção linguístico-cultural, pois o aluno, ao memorizar o texto, pode reproduzi-lo cada vez mais com maior fluência e ao mesmo tempo acumula uma nova experiência cultural, típica para os falantes nativos do idioma. O último texto literário explorado, “Nouvelles américaines”, de Vladimir Volkof está na unidade 12, Le français tel qu’on le parle, e explora basicamente a capacidade de síntese do aluno (“trouver un titre pour le texte” e “choisir le résumé qui convient”). Logo, por mais que haja muitas outras atividades interessantes que possam entrar em um método de francês, o que constatamos na leitura desses manuais é que já existe, hoje, uma grande preocupação, antes de tudo, em se utilizar em determinado momento da formação do estudante de francês o texto literário como recurso didático valioso por suas características estético-linguísticoculturais, mas também por ser ele um documento cuja autenticidade é preservada, pois o estudante torna-se um novo leitor da obra, ou seja, um novo destinatário do texto literário. 3.5. Os resultados 3.5.1. Nas escolas públicas Presente em pouco mais de 6% das escolas públicas estaduais e municipais, o ensino de FLE já foi, há algumas décadas, guardadas as devidas proporções, bem mais abrangente na cidade de Belém. Inserido na grade curricular de disciplinas regulares dos cursos de Ensino Fundamental e Médio, com uma carga horária semanal que varia entre 1h30 e 2h15, o ensino de francês, pelo que pudemos constatar, nunca apresenta simultaneamente nesse contexto o objetivo de desenvolver as quatro competências comunicativas. Acrescente-se a isso o fato de inexistir um programa de ensino comum a toda a rede de ensino e de não haver homogeneidade na quantidade de séries em que a LE será ofertada (conforme se verifica na Tabela 1), o que inviabiliza, de certo modo, a progressão de um nível a outro (considerando que, por não haver um programa definido, muitos professores, apesar de terem uma formação acadêmica básica, não se preocupam com essa progressão em seus planejamentos de curso), a transferência do aluno de uma escola a outra ou até o intercâmbio, caso se deseje fazê-lo, entre os alunos dessas escolas. Por outro lado, há de se considerar o fato de, pelo menos, existir o ensino de FLE com objetivos específicos como é o caso das escolas onde se ensina uma espécie de francês instrumental com o objetivo de preparar o estudante, geralmente do nível médio, para as provas de vestibular das universidades.

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Partindo-se dessa realidade, constatamos que a exploração didática de textos literários praticamente não existe nessas escolas da rede pública, apesar de algumas delas terem bibliotecas com obras literárias escritas em francês e também acesso à Internet6, ferramenta que o professor poderia utilizar, principalmente se estivesse buscando desenvolver a capacidade de compreensão de textos autênticos escritos em francês. Acrescente-se a isso também a não obediência por parte de uma grande maioria dos professores de língua francesa a uma importante orientação dos PCN no que diz respeito a desenvolver “a estética da sensibilidade”, conceito interessante que justifica muito bem o papel central da literatura como base para parte do estudo da língua. Se considerarmos que o contato com textos literários não é algo estranho à experiência do aluno de escola pública, não somente no nível do Ensino Médio, mas praticamente de todo o Ensino Fundamental (graças, em parte, aos livros didáticos adotados que inserem poemas, completos ou não, e extratos de textos literários em prosa em cada uma de suas unidades didáticas), não seria inviável permitir ao aluno o contato com textos escritos em francês (ainda que fossem textos francófonos traduzidos para o português). Todavia, conforme os dados da Tabela 2, um problema surge quando pensamos em introduzir o texto literário em sala de aula, o da adequação do conteúdo à idade dos alunos, pois em uma mesma turma, por exemplo, de 5ª. série há pessoas de 11 ou 12 anos convivendo com jovens ou adultos de 16 anos ou mais, cujos interesses são bem diversos dos daquele primeiro grupo. Isso, entretanto, deve ser solucionado se se quiserem seguir as orientações dos PCN, ao determinar que a LE, particularmente no caso do francês, dever ser “um instrumento de acesso ao conhecimento”, e está inscrito em uma tradição: Fatores relativos à tradição: O papel que determinadas línguas estrangeiras tradicionalmente desempenham nas relações culturais entre os países pode ser um fator a ser considerado. O francês, por exemplo,desempenhou e desempenha importante papel do ponto de vista das trocas culturais entre o Brasil e a França e como instrumental de acesso ao conhecimento de toda uma geração de brasileiros. (PCN, 1998 : 23)

Assim, a literatura pode ser, no ensino dessa LE, um dos objetos privilegiados para se atingir os objetivos propostos nos PCN. Logo, percebe-se o quanto é importante o saber ler em língua estrangeira, não somente como forma de aquisição de um instrumento útil para “acesso ao mundo do trabalho e dos estudos avançados”, mas também como “fonte de prazer”, papel atribuído frequentemente ao texto literário. 3.5.2. Nos cursos particulares As instituições particulares de ensino na cidade de Belém que mantêm cursos regulares de FLE apresentam uma grande vantagem sobre as instituições públicas de ensino: o fato de haver entre elas uma certa regularidade em termos de organização, pois a maioria oferece o curso completo em até 3 anos com uma carga horária semanal de 3 horas; o público desses cursos também é dividido segundo critérios como nível de aprofundamento na língua e/ou idade. Outro fato que depõe a favor das instituições particulares está no uso de manuais completos de FLE (originais ou cópias), adquiridos junto a editoras francesas ou produzidos pela própria instituição de ensino. Constatamos, em nossa pesquisa, que os professores dessas instituições particulares têm, a princípio, muito mais possibilidades (mas nem mais ou menos vontade ou competência) de trabalhar o texto literário em sala de aula do que os da escola pública devido a dois fatores: o primeiro refere-se ao fato de, segundo os dados da Tabela 12, a maioria deles utilizar com seus alunos manuais de FLE produzidos a partir da década de 1990 que, em maior ou menor escala, exploram textos literários em suas unidades didáticas; outro fator importante é o de haver certa uniformidade do público alvo e também, de certo modo, o interesse que os move para fazer um curso de LE. Tudo isso colabora para a realização de um planejamento de curso que introduza o texto literário em classe, pois a maioria dos 6

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Cf. o capítulo 4.2.1, sobre o uso da Internet como recurso didático.

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alunos é composta por jovens e adultos de um mesmo nível de estudo da LE e de formação básica comum em língua materna. Entretanto, há de se destacar que, apesar de esses cursos visarem às quatro competências comunicativas, tal como foi verificado na Tabela 13, a ênfase dada recai geralmente sobre os aspectos orais da LE, negligenciando-se até certo ponto o estudo de seus elementos de escrita. Acrescente-se a isso a possibilidade de um professor que atua em um curso particular também estar atuando em uma escola pública e de acreditar que em nenhuma das duas realidades ser viável a introdução do texto literário como instrumento de aprendizado da língua. Com isso, constatamos que o único contato do professor ou do estudante com a literatura nesses cursos particulares de FLE pode ocorrer graças à existência de um manual adotado pela instituição, o que não é nenhuma garantia, uma vez que o professor pode “saltar” a lição que explora o referido tipo de texto. Vale lembrar que, dentre as instituições observadas, apenas a Aliança Francesa mantinha, em caráter não permanente, um curso específico de literatura para atender às demandas de seu convênio com a Universidade de Nancy. Nesse caso, o estudo da literatura ocupa o primeiro plano do curso com a única finalidade de preparar o aluno para provas que conferirão um diploma daquela universidade francesa ao estudante, o que não exclui, segundo observamos no capítulo 3.4.2.2, o trabalho de exploração de elementos gramaticais por parte da professora de literatura. 4. Conclusão Ao nos propormos o estudo da exploração didática da literatura nos cursos de FLE na cidade de Belém, pretendíamos não somente dar conta de um levantamento sistemático acerca da atual situação dessa categoria de ensino, mas principalmente poder, a partir dos resultados, oferecer formas de intervenção nessa realidade. Com essa pesquisa constatamos que, apesar de os professores de FLE da cidade de Belém possuírem em sua maioria o curso de Graduação em Letras com habilitação em Língua Francesa, não aplicavam em sua prática pedagógica princípios básicos aprendidos durante a sua formação. Por isso, a maioria dos entrevistados afirmou já ter estudado algo relacionado a esse tema, o do uso didático da literatura em classes de francês, durante seu curso de graduação, porém esse conhecimento não estava sendo aplicado em seu cotidiano escolar ou porque não mais lembravam dele ou porque não possuíam material e/ou interesse para tal. Em cada um dos grupos estudados, pudemos verificar realidades bastantes diferentes tanto metodológica quanto estruturalmente de funcionamento e de organização dos cursos. Na rede pública de ensino, a disciplina língua francesa é ministrada em muitas escolas de Ensino Fundamental e Médio, porém não há entre elas quase nenhum ponto em comum no que tange o currículo, muito embora todas elas tenham, a princípio, de seguir uma base curricular comum, fornecida pelas Secretarias de Ensino do Município de Belém e do Estado do Pará, estes, por sua vez, baseados nos PCN. Logo, constatamos que, nessa esfera de ensino, os professores não utilizam o texto literário como recurso didático das aulas de francês e nem há muito interesse em fazê-lo. Acreditamos que um curso de aperfeiçoamento voltado especificamente para o estudo de métodos de ensino em FLE seria uma alternativa a ser considerada pelas Secretarias de Ensino e pelos próprios professores, pois eles poderiam ampliar suas possibilidades metodológicas para lidar com a realidade atual das escolas públicas: turmas numerosas, com pouco material didático disponível e pouco contato e interesse pela leitura de textos, tanto por parte dos estudantes quanto por parte dos professores de LE. Contrariamente à escola pública, os cursos particulares possuem uma estrutura material bem mais adequada para o ensino de LE. Entretanto, como pudemos observar em nossa pesquisa, eles também não valorizam muito o uso didático do texto literário. Talvez, a única exceção seja o curso da Universidade de Nancy coordenado pela Aliança Francesa de Belém, que exige do estudante um conhecimento básico e específico de literatura francesa, sem, contudo, estabelecer qualquer vínculo entre as disciplinas de literatura e as de língua (salvo o caso mencionado da professora que

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se preocupava, em certa medida, com a melhoria do nível linguístico dos estudantes que estavam sob sua orientação). Já a Universidade, que teria condições de estabelecer um maior contato entre as disciplinas de língua e literatura do seu curso de Graduação, e, consequentemente, de levar o texto literário com maior frequência para a sala de aula de língua e de evidenciar ainda mais o aprendizado da língua nas aulas de literatura, pouco o faz em virtude de o planejamento das disciplinas não visarem muitas das vezes a uma certa interdisciplinaridade. Apesar de termos obtido algumas informações esporádicas, quer dizer, não totalmente sistematizadas tal como foi feito com relação ao curso de língua, sobre as disciplinas de literatura francesa, importante é frisar que não tivemos acesso às informações específicas dessas disciplinas de literatura do Curso de Letras da Universidade, em virtude de problemas operacionais em nossa pesquisa. A partir da análise de manuais e dos resultados dos questionários, constatamos que os professores de todas as esferas de ensino, quando optam por trabalhar com um texto literário, têm preferência pelos do gênero poético, talvez porque a leitura de um poema ou mesmo a audição de uma canção (cuja letra tenha todos os atributos da função poética), seja, segundo seus pontos de vista, mais “fáceis” de serem explorados por serem textos de menor extensão. Infelizmente ainda predomina a idéia (que se traduz em objetivos de muitos cursos de FLE) de que o texto literário é aquele cuja linguagem é exemplar e, por isso, se presta a uma análise gramatical estrita. Essa concepção conduz o estudante a acreditar que o texto literário tem como única função ser repertório de uma linguagem inacessível (e muitas vezes arcaica), base para exercícios gramaticais insolúveis para o estudante. Outro problema que precisa ser ultrapassado é o da concepção de que a língua francesa tem como única forma de expressão a literatura francesa. Não questionamos em nenhum momento o seu valor, mas é necessário, principalmente nestes tempos de globalização da economia e da cultura, valorizar a noção de literaturas francófonas, cuja qualidade em nada deixa a dever com relação à literatura especificamente francesa. Como meio para tentar amenizar esses problemas, apresentamos ao longo de nosso trabalho algumas propostas para cada esfera de ensino do francês da cidade de Belém. Não tivemos tempo de testá-las em classes junto a estudantes e professores de francês; todavia, buscamos apresentá-las da maneira mais didática possível para que servissem, ao menos, como ponto de partida para novas discussões e práticas pedagógicas. Dentre essas propostas, a valorização da Internet como ferramenta de ensino é uma das mais desafiadoras e que está em franca expansão, haja vista que os estudantes vivem cada vez mais próximos do ciberespaço da Internet e necessitam de orientações adequadas para uso eficaz desse instrumento. Quanto ao uso de conhecimento linguístico em cursos específicos de literatura, pudemos verificar o caso do curso do Nancy, e constatamos que nele há uma preocupação que vai além daquela relativa ao conhecimento da biografia e do conteúdo do texto, pois busca-se conhecer o texto literário em alguns de seus aspectos linguísticos. Devido a impossibilidades de tempo para um maior desenvolvimento de nossas pesquisas, temos consciência de que várias questões por nós levantadas não foram devidamente estudadas, dentre as quais podemos citar a determinação exata de que aspectos gramaticais e textuais merecem atenção do professor de literatura francesa ou francófona no momento da exploração de um texto literário. Isso, entretanto, pode servir como base para novos estudos acerca do uso consciente e planejado, ou não, de elementos linguísticos no discurso do professor de literatura. Por fim, se esse estudo conseguir motivar professores de FLE e de Literatura da cidade de Belém a, pelo menos, refletirem sobre (e, quem sabe, com isso, até a melhorarem) suas práticas em sala de aula, acreditamos ter atingido nosso objetivo.

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A INTERAÇÃO COM O ARQUIVO: SARAMAGO SE APROPRIA DE RICARDO REIS Jorge Luiz MENDES JÚNIOR (Universidade Federal de Juiz de Fora)

RESUMO: O presente trabalho tem por finalidade sugerir uma hipótese de leitura da obra O ano da morte de Ricardo Reis, de José Saramago, a partir da metáfora da ida do escritor ao arquivo, do qual ele recolhe elementos, para usá-los em sua obra. A partir de leituras de autores como Jacques Derrida e Michel Foucault, em Mal de Arquivo e Arqueologia do Saber, respectivamente, pretende-se mostrar que o autor não se limita a uma postura passiva frente ao arquivo, mas sempre lhe acrescenta algo. Na obra de Saramago supracitada, tenta-se mostrar isso mediante o processo de historicização e humanização sofrido pelo heterônimo de Fernando Pessoa. Mediante isso, estende-se a proposta de se repensar a noção de arquivo, conforme já sugerida por Derrida, não sendo este encarado como um “lugar” fechado, mas como uma instância sempre em aberto, sujeita a constantes visitações, modificações e acréscimos. PALAVRAS-CHAVE: Arquivo; Ricardo Reis; José Saramago; Derrida; autor


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Sugerindo-se que a obra literária não e apenas o resultado da mescla de um dado conteúdo com a genialidade artística de um autor, porem sem desconsiderar tais atributos, pode-se ter como hipótese de recepção compreensão da mesma considerando-a como fruto de experiências, pesquisas, trabalho empírico por parte do autor. Quando se considera a figura do autor como um pesquisador, um leitor de outras obras, podese tentar perceber as possíveis relações que ele talvez venha a estabelecer com suas fontes de pesquisa. Um olhar minucioso lançado sobre essas relações pode captar não uma relação meramente passiva do autor frente a seus materiais de pesquisa, mas uma postura ativa, quando se nota que ele se apropria de determinados itens para reinventá-los em sua obra. Essas “fontes de pesquisa”, não importando sua natureza, serão tratadas neste trabalho pelo substantivo arquivo. Na tentativa de conceituar tal substantivo, alguns dicionários assim o fazem: ´.Lugar onde se recolhem e guardam documentos.´ (FERREIRA, 2004), “lugar onde se guarda qualquer coisa” (HOUAISS, 2001). Nessas duas acepções apresentadas, pode-se notar a idéia de o arquivo ser entendido um “lugar” destinado a depósito de elementos. Segundo o filósofo francês Jacques Derrida, “a palavra e a noção de arquivo parecem, numa primeira abordagem, apontar para o passado, remeter aos índices da memória consignada, lembrar a fidelidade da tradição.” ( DERRIDA,2001, pp. 47,48) Juntando-se as idéias de ‘depósito de documentos’ e ‘ registro do passado’, pode-se acabar por reforçar a noção geral preconcebida de o arquivo ser uma instância sempre fechada, apenas guardando registros de fatos passados, ficando estes, metaforicamente falando, como que inseridos em pastas ou gavetas, em permanente estado imutável. Contudo, como propõe Derrida, tal noção não da conta de conceituar arquivo, conforme fica sugerido pela indagação: “Por que reelaborar hoje um conceito do arquivo?” (DERRIDA, 2001. p. 7). A proposta de se encarar a postura ativa do escritor frente ao arquivo pode ser ilustrada mediante uma possível leitura da obra O ano da morte de Ricardo Reis, de José Saramago. Já de início, como é possível inferir-se pelo título, pode ser visto um processo de “apropriação”, por parte de Saramago, da figura criada por Fernando Pessoa. Em síntese, n´O ano da morte de Ricardo Reis, o heterônimo de Fernando Pessoa torna-se um personagem real (ao menos no plano da ficção), regressando a Portugal em 1935, após 16 anos de exílio no Brasil. Na trama, a postura do indivíduo que se contenta em apenas contemplar o espetáculo do mundo vai, paulatinamente, perdendo espaço para a postura de um homem que atua, experimenta, ou seja, emerge uma postura que se poderia denominar empirista. Esse processo é aqui sugerido como fundamental para a construção da obra, ou seja, metaforicamente, é necessário que Ricardo Reis seja humanizado e inserido no plano histórico a fim de que se realize o que já informa o título do romance, a saber, sua morte. Além disso, como também fica sugerido pelo título, o foco não é necessária e exclusivamente a ‘morte’” em si, mas também o “ano” em que ela se dá. Tem-se agora um elemento ligado ao eixo temporal, a História passada, à qual, tendo sido o livro publicado originalmente em 1984, possivelmente só se teve acesso por meio de registros de natureza arquivística. Fatos históricos tornam-se ingredientes da representação ficcional, sendo mesclados com elementos fictícios, ou, em outras palavras, ter-se-ia o que se poderia chamar de ficccinalização da História e historicização da ficção. Junto ao elemento temporal, tem-se, também, a cidade de Lisboa como palco em que se desencadeiam os principais fatos narrados. Assim sendo, pode-se dizer que o romance apresenta bem definidas as categorias de tempo e espaço, bem próprias ao gênero. “Todo o discurso, escrito ou falado, é intertextual, e apeteceria mesmo dizer que nada existe que não o seja. Ora, sendo isto, creio,uma evidência do quotidiano, o que ando a fazer nos meus romances é a procurar os modos e as formas de tornar essa intertextualidade geral literariamente produtiva, se me posso exprimir assim, usá-las como uma personagem mais, encarregada de estabelecer e mostrar nexos, relações, associações entre tudo e tudo.” (SARAMAGO, 1997. p.610)

É justamente através da intertextualidade com o arquivo, apoiada na possibilidade de ficcionalização oferecida pelo discurso literário, que Saramago consegue respaldo para se apropriar do elemento Ricardo Reis e reinventá-lo em seu romance: “(...) nome Ricardo Reis ... parece o princípio duma confissão, ... tudo o que é oculto se contém nesta linha manuscrita, agora o problema é descobrir

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o resto, apenas.” (SARAMAGO, s/d. p. 21) Uma sugestão de leitura do trecho em questão é interpretar o verbo “descobrir” como uma falácia, pois não há o que ser descoberto, mas, sim, inventado. Por meio da invenção o autor constrói na narrativa o que neste trabalho se sugere como um processo de historicização e humanização do protagonista. A personalidade de Reis, conforme deixada registrada por seu criador, vincular-se-ia a uma faceta clássica. Amante da cultura greco-romana, discípulo de Aberto Caeiro, Ricardo Reis não demonstra apego a vida social, optando pela simplicidade das coisas, sendo comedido, com aguda consciência da passagem do tempo e da inevitabilidade da morte, o que pode ser observado em alguns de seus versos: “Sábio é o que se contenta com o espetáculo do mundo” (http://www.citador.pt/ poemas.php?op=10&refid=200809030511) ; “Tudo que cessa é morte” (http://www.jornaldepoesia. jor.br/fp380.html); “Amemo-nos tranquilamente, pensando que podíamos,/ Se quiséssemos, trocar beijos e abraços e carícias,/ Mas que mais vale estarmos sentados ao pé um do outro/ Ouvindo correr o rio e vendo-o” (http://www.pensador.info/frase/NTI2OTEx/) Na obra de Saramago, porém, a inserção de Ricardo Reis no mundo empírico, enquadrando-o num eixo espaço-temporal - necessidade conveniente ao gênero romance -, leva-o, conforme já dito, a passar por um processo de humanização, o que pode ser percebido em dois planos: na relação de Reis com o mundo e na relação físico-afetiva com Lídia e Marcenda. Ao ser reinventado por Saramago, Reis tem sua postura epicurista, ante às tensões vividas em Portugal sob o regime ditatorial de Salazar, bem como à atmosfera conflituosa pela qual passavam diversos outros países outros países europeus no momento que em pouco viria a culminar na Segunda Guerra Mundial, transmutada para a de um sujeito mais aberto à exteriorização de seus sentimentos. A faceta contemplativa e passiva frente aos fatos exteriores vai, gradativamente, perdendo espaço para uma postura ativa, de envolvimento com o meio externo. A observação dos fatos de cunho histórico é iniciada por Ricardo Reis através de leituras de jornais: “Vai Ricardo Reis aos jornais, vai aonde sempre terá de ir quem das coisas do mundo quiser saber”. (SARAMAGO, s/d, p. 35) O verbo “querer”, no trecho agora citado, sugere um indício caracteriscamente humano, a saber, o desejo. Tem-se o início do que aqui se propõe como processo de experimentação. A observação leva o indivíduo a experimentar, tanto em termos físicos quanto intelectuais O olhar lançado por Reis, e registrado pelo narrador, permite ao leitor ter acesso à descrição e/ou à interpretação daqueles, ou daquilo, a quem o protagonista da obra em questão observa. Estão incluídos entre os fatos observados aqueles de natureza histórica, constados dos registros históricos. Sua incorporação como elementos pertinentes à trama pode, provavelmente, ter sido possível mediante pesquisa e apropriação de informações de fontes arquivísticas, por parte do autor, José Saramago, que como dito, entrelaça ficção e realidade. Como recurso de narrativa, o uso de um narrador onisciente parece fundir a voz de quem narra com a voz de quem vive a trama, levando o narrador a oscilar entre a terceira pessoa do singular e primeira do plural: “Nós, por cá, vamos indo tão bem quanto valham as atrás explicadas maravilhas. Em terra de nuestros hermanos é que a vida está fusca, a família muito dividida, se ganha Gil Robles as eleições, se ganha Largo Caballero, , e a Falange já fez saber que fará frente, nas ruas, à ditadura vermelha. Neste nosso oásis de paz assistimos, compungidos, ao espetáculo duma Europa caótica e colérica, em constantes ralhos, em pugnas políticas que, segundo a lição de Marília, nunca levaram a nada de bom, agora constituiu Sarraut em França um governo de concentração republicana e logo lhe caíram as direitas em cima com a sua razão delas, lançando salvas sucessivas de críticas, acusações e injúrias,um desbocamento de tom que mais parece de arruaceiros que de país civilizado, modelo de maneiras e farol da cultura ocidental. O que vale é haver ainda vozes neste continente, e poderosas elas são, que se erguem para pronunciar palavras de pacificação e concórdia, falamos de Hitler, da proclamação que ele fez perante os camisas castanhas. A Alemanha s6 se preocupa em trabalhar dentro da paz, e, para calar definitivamente desconfianças e cepticismos, ousou ir mais longe, afirmou peremptório, Saiba o mundo que a Alemanha será pacífica e amará a paz, como jamais povo algum soube amá-la. É certo que duzentos e cinquenta mil soldados alemães estão prontos a ocupar a Remânia e que uma força militar alemã penetrou há poucos dias em território checoslovaco, porém, se é verdade que vem às vezes Juno em forrna de nuvem, também não é menos verdade que nem todas as nuvens Juno são, a vida das nações faz-se, afinal, de muito ladrar e pouco morder, vão ver que, querendo

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Anais do II Congresso Internacional de Estudos Linguísticos e Literários na Amazônia (CIELLA) Deus, tudo acabará na bela harmonia. Com o que nós não podemos concordar é que venha Lloyd George dizer que Portugal está demasiadamente favorecido de colónias, em comparação com a Alemanha e a Itália. Ainda no outro dia pusemos dorido luto pelo Rei Jorge V deles, andámos por aí, para quem nos quis ver, homens de gravata preta e fumo no braço, senhoras de crepes, e aparece agora aquele a protestar que temos colónias a mais, quando na verdade as temos a menos, haja em vista o mapa cor-de-rosa, tivesse ele vingado, como era de justiça, e hoje ninguém nos poria o pé adiante, de Angola à Ccntra-Costa tudo seria caminho chão e bandeira portuguesa. E foram os ingleses que nos rasteiraram, pérfida Albion, como é costume deles, duvida-se mesmo que sejam capazes doutros comportamentos, está-lhes no vício, não há povo no mundo que não tenha razões de queixa. Quando Fernando Pessoa aí vier, não há-de Ricardo Reis esquecer-se de Ihe apresentar o interessante problema que é o da necessidade ou não necessidade das colónias, não do ponto de vista do Lloyd George, tão preocupado com a maneira de calar a Alemanha dando-lhe o que a outros custou tanto a ganhar, mas do seu próprio, dele, Pessoa, profético, sobre o advento do Quinto Império para que estamos fadados, e como resolverá, por um lado, a contradição, que é sua, de não precisar Portugal de colónias para aquele imgerial destino, mas de sem elas se diminuir perante si mesmo e ante o mundo, material como moralmente, e, por outro lado, a hipótese de virem a ser entregues à Alemanha colónias nossas, e à Itália, como anda a propor Lloyd George, que Quinto Império será então esse, esbulhados, enganados, quem nos irá reconhecer como imperadores, se estamos feitos Senhor da Cana Verde, povo de dores, estendendo as mãos, que bastou atar frouxamente, verdadeira prisão é aceitar estar preso, as mãos humilhadas para o bodo do século, que por enquanto ainda não nos deixou morrer.” (SARAMAGO, s/d, pp 145, 146)

Frente ao que vê, Ricardo Reis limita-se, de início, a apenas observar por meio dos jornais: “Ricardo Reis já tinha aberto um dos jornais, passara todo aquele dia em ignorância do que acontecera no mundo”. (idem, p. 51) Essa postura assemelha-se à da persona criada por Fernando Pessoa, que se mostra satisfeita em apenas contemplar o espetáculo do mundo. Inserir-se no mundo da experiência, porém, parece tornar mais complexa a atitude de distanciamento, e mais necessária a interação com o mundo e com o que este oferece. Tal necessidade, de acordo com o que sugere a narrativa, torna-se mais acentuada devido ao próprio desejo de Ricardo Reis de reafirmar sua identidade nacional: “A sua vida parecia-lhe agora suspensa(...). Minuciosamente, lia os jornais para encontrar guias, fios, traços de um desenho, feições de rosto português, não para delinear delinear um retrato do país, mas para revestir seu próprio rosto e retrato de uma nova substância, poder levar as mãos à cara e reconhecer-se, pôr uma mão sobre a outra e apertá-las, Sou eu e estou aqui”. (idem, pp 87, 88)

Buscar suas “feições de português”, necessidade sentida talvez em função dos dezesseis anos de exílio vividos no Brasil, pode ser apontado como um dos motivos pelo qual, consciente ou inconscientemente, Reis lança seu olhar sobre o outro, este, metaforicamente, sugerido aqui neste trabalho como um espelho, tentando encontrar traços que o assemelhasse e/ou distinguissem do nativo de Portugal. Vê-se Ricardo Reis, paulatinamente, envolvendo-se com os fatos histórico-sociais que o rodeiam, aos quais tem acesso via recursos midiáticos, mais especificadamente, os jornais: “Vai Ricardo Reis aos jornais, vai aonde sempre terá de ir quem das coisas do mundo passado quiser saber” (idem, s/d. p. 35) As tensões vividas por Portugal sob a ditadura Salazarista, bem como a atmosfera conflituosa pela qual passavam diversos outros países europeus no momento que em pouco antecedia o que viria a culminar na Segunda Guerra Mundial, gradualmente, sendo absorvidas como informações por Ricardo Reis, levam-no a transmutar sua postura epicurista para a de um sujeito que deixa mais aberta a exteriorização de seus sentimentos: “Lê Ricardo Reis os jornais e acaba por impor a si mesmo o dever de preocupar-se um pouco.” (idem, p. 370) O ser que se contentava com o ‘espetáculo do mundo’, já tão envolvido nos fatos, já um elemento do mundo e da História, sente a necessidade de interagir com o meio, como pode ser notado no episódio em que se anuncia um comício. Dessa vez Reis não quis esperar pelos jornais, mas “Foi cedo para ter lugar, e de táxi para chegar mais depressa” (idem, p. 394). Tal mudança de comportamento é também referenciada pelo narrador: “para homem de natural tão pouco indagador, há interessantes mudanças em Ricardo Reis” (idem). Essa mudança é o que pode ser entendida pelo que neste trabalho se sugere como processo de humanização

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pelo qual passa o protagonista. À medida que vai humanizando-se, Reis vai sendo sensibilizado pelas emoções, o que o torna diferente do que se apresenta em suas odes, a saber, um sujeito comedido, atento ao autodomínio. Essa atitude, no romance de Saramago, é substituída pelo extravasamento dos sentimentos, como pode ser exemplificado pelo episódio em que o navio Afonso de Albuquerque é bombardeado e Reis, possivelmente movido pela empatia, “entra em casa, atira-se para cima da cama desfeita, escondeu os olhos para poder chorar à vontade” (idem, p. 411). A par do que ocorria na Espanha, Reis busca lançar seu olhar na possível tentativa de compreender a repercussão dos fatos correntes: “Quando sai para o almoço vai atento aos rostos e às palavras, há algum nervosismo no ar”. (idem, p. 372) Pelo que aqui é sugerido como processo de humanização, Reis passa a ter seu distanciamento e seu comedimento abalados: “Uma sombra passa na fronte alheada e imprecisa de Ricardo Reis, que é isto” (idem, p. 301, grifo acrescentado) A indagação pode sugerir incômodo, inquietude, abalo, ou seja, os pilares do “sossego” tão almejado pelo heterônimo pessoano tem sua base afligida. Num segundo plano, pode-se dizer que o processo de humanização de Ricardo Reis se processa mediante a interação físico-afetiva com o sexo oposto. No hotel em que se hospeda quando chega a Portugal, encontra uma criada homônima de uma de suas mais aclamadas musas, a saber, Lídia. Com ela, Reis estabelece uma relação quase que totalmente sexualizada, física, o que se diferencia da relação à distância que demonstrava ter com a Lídia de suas odes. As experiências sexuais já, em si mesmas, conferem-lhe traços humanos identitários, como o da necessidade de higiene sexual. Apesar de Ricardo Reis não identificar uma só semelhança entre a musa por ele idealizada e a criada do hotel, à exceção da igualdade nominal, ainda assim ela lhe suscita outras emoções: “Os olhos de Ricardo Reis encheram-se de lágrimas, umas de vergonha, outras de piedade ... beijou-a muito, na boca, ... na vida há momentos assim” (idem, p. 356) (grifo acrescentado). Em verdade, esse relacionamento limita-se quase que só à experiência física, ou, grosso modo, sexual: “Ela não resistiu mais, não poderia, ainda que o impusessem as conveniências, porque este momento é um dos melhores da sua vida, pôr a água quente a correr, despir-se, entrar devagarinho na tina, sentir os membros lassos no conforto sensual do banho, usar aquele sabonete e aquela esponja, esfregar todo o corpo, as pernas, as coxas, os braços, o ventre, os seios, e saber que para lá daquela porta a espera o homem, que estará ele a fazer, o que pensa adivinho, se aqui entrasse, se viesse ver-me, olharme, e eu nua como estou, que vergonha, será então de vergonha que o coração bate tão depressa, ou de ansiedade, agora sai da água, todo o corpo é belo quando da água sai a escorrer, isto pensa Ricardo Reis que abriu a porta, Lídia está nua, tapou com as mãos o peito e o sexo, diz, Não olhe para mim, é a primeira vez que assim está diante dele, Vá-se embora, deixe-me vestir, e di-lo em voz baixa, ansiosa, mas ele sorri, um tanto de ternura, um tanto de desejo, um tanto de malícia, e diz-lhe, Não te vistas, enxuga-te só, oferece-lhe a grande toalha aberta, envolve-lhe o corpo, depois sai, vai para o quarto e despe-se, a cama foi feita de lavado, os lençóis cheiram a novo, então Lídia entra, segura ainda a toalha à sua frente, com ela se esconde, não delgado cendal, mas deixa-a cair ao chão quando se aproxima da cama, enfim aparece corajosamente nua, hoje é dia de não ter frio, dentro e fora todo o seu corpo arde, e é Ricardo Reis quem treme, chega-se infantilmente para ela, pela primeira vez estão ambos nus, depois de tanto tempo, a primavera sempre acabou por chegar, tardou mas talvez aproveite.” (idem, pp254, 255)

A narrativa permite ao leitor ter acesso a uma característica comum na sociedade portuguesa da época, a saber, o não envolvimento entre seres de classes sociais distintas. A descrição desse traço social é registrada pelo narrador, que capta e toma nota do que acontece entre Reis e Lídia, inclusive que ambos tem consciência desse fato social: “Você não perde tempo, ainda não há três semanas que chegou, e já recebe visitas galantes, (...) Depende do que se queira entender por galante, é uma criada do hotel, (...) Veio o nome Lídia, não veio a mulher,” [Reis em diálogo com Fernando Pessoa] “Tu queres, Quero, Então irás, até que, Até que arranje alguém da sua educação” [Reis em diálogo com Lídia] “Ah, quer dizer que da sua Marcenda só poderia ter um filho se casasse com ela, É fácil concluir que sim, você sabe como são as educações e as famílias, Uma criada não tem complicações,”; “Portanto, se você estivesse vivo e o caso fosse consigo, filho não desejado, mulher desigual” [Ricardo Reis em diálogo com Pessoa] (idem, s/d, pp 118, 200, 360, 361)

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Os diálogos supracitados revelam um traço tipicamente burguês acerca da preocupação com as aparências, bem como a consciência de que uma união entre membros de classes sociais distintas não seria legitimada perante os olhos da sociedade. Já não mais contente com apenas ‘observar o espetáculo do mundo’, apresentando características mais especificamente próprias ao ser humano, Ricardo Reis, em determinados momentos propícios à afloração de sentimentos, abdica de seu convencionalismo, agindo de modo mais passional: “Ricardo Reis avançou um passo (...) os braços (...) apertam-na pela cintura e pelos ombros, puxam-na”. (idem, p. 246) Mais decidido, ele passa agir de modo condizente com os seus desejos: “Amanhã vou a Fátima”. (idem, p. 304) A ida a Fátima leva Reis a entrar em contato com outro elemento bastante presente na cultura portuguesa: a religiosidade. Em meio a “um mar de gente”, aparentemente frustrado por não ter encontrado Marcenda, Reis professa algo pouco esperado de um ser cuja personalidade se identifica com a revelada em suas odes, algo que se poderia chamar de autoquestionamento existencialista: “Quando foi que vivi,” (idem, p. 315) Dois outros momentos da narrativa corroboram a hipótese de ler-se Ricardo Reis na obra de Saramago como tendo sua personalidade reconstruída, que são o que ele pede Marcenda em casamento e o que se entrega ao choro pela morte morte do irmão de Lídia e de outros marinheiros, passando do racionalismo comedido para a exasperação sentimental: “Marcenda, case comigo,” (idem, p. 292) De modo breve, poder-se-ia dizer que é tema comum na literatura portuguesa o saudosismo, recorrência às glórias do passado, sobretudo aquelas ligadas ao período áureo das Grandes Navegações e suas respectivas consecuções. Mesmo num momento em que na literatura as propostas eram de ruptura com a tradição, no início do Modernismo, Fernando Pessoa dedicou parte de sua obra a essa temática, como o poema “Mar Portuguez”, que, já no título, o adjeitvo indicativo de nacionalidade é associado ao elemento do qual os portugueses se tornaram pioneiros: Ó mar salgado, quanto do teu sal/ São lágrimas de Portugal”, “Deus ao mar o perigo e o abysmo deu,/ Mas nelle é que espelhou o céu” (PESSOA, s/d, pp 57, 58) Em artigo publicado na Revista Palavra, Júlio Diniz escreve: “O autor contemporâneo apresenta-se como o ‘leitor infatigável, devorador de livros’, em constante e turbulento diálogo com a tradição cultural.” (DINIZ, 2000, p. 133) Saramago pode ser visto como um leitor de Pessoa, sendo a obra deste uma das fontes às quais o autor recorre para recortar elementos e reinventá-los em sua obra. Vê-se em outras de suas obras um olhar lançado sobre sua terra e sua gente, um olhar que busca retratar o outro lado de Portugal que não aquele pioneiro nas navegações marítimas, retratar um povo, mas não os grandes heróis navegadores: “O que mais há na terra é paisagem”, “terra dividida do maior para o grande”, “E esta outra gente quem é, solta e miúda, que veio com a terra” (SARAMAGO, 2003, pp 11, 13, 14). As breves considerações feitas até aqui sugerem o processo de metamorfose pelo qual passa o heterônimo de Fernando Pessoa, no romance de Saramago. Tornar-se “humano” e um ser “historicizado” pode até mesmo ser entendido como um processo necessário para que se efetue o que já indicia o título: a morte de Ricardo Reis. Assim, vê-se que, ao apropriar-se do arquivo deixado por Pessoa, Saramago o modifica, acrescenta-lhe elementos novos. Tal processo permite que o arquivo não se feche. Para Michel Foucault, “O arquivo é, de início, a lei do que pode ser dito, o sistema que rege o aparecimento dos enunciados como acontecimentos singulares.” ( FOUCAULT, 2000. p. 149) Visto assim, pode-se sugerir que o arquivo está sujeito a diversas modificações, acréscimos, suplementações, tal como atesta Jacques Derrida: “Incorporando o saber, o arquivista produz arquivo ... o arquivo aumenta, cresce, ... o arquivo não se fecha jamais. Abre-se para o Futuro.” (DERRIDA, 2001. p. 88). Referências DERRIDA, Jacques. Mal de Arquivo. Trad. Claudia de Moraes Rego. Rio de Janeiro: Relume Dumará, 2001. DINIZ, Júlio. “Narrativa ficcional e narrativa etnográfica”. In: Revista Palavra. DELET da PUC - Rio, n.7 (2001) Editora Tarefa, 2000.

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Tema geral: Línguas e Literaturas: Diversidade e Adversidades na América Latina FERREIRA, Aurélio Buarque de Holanda. Novo Dicionário Aurélio da Língua Portuguesa. Curitiba: positiva, 2004. FOUCAULT, Michel. A Arqueologia do Saber. Trad. Luiz Felipe B. Neves. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2000 HOUAISS, Antônio; VILLAR, Mauro Salles. Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa. Rio de Janeiro: Objectiva, 2007. PESSOA, Fernando. O eu profundo e os outros eus. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, s/d. SARAMAGO, José. O ano da orte de Ricardo Reis. São Paulo: Record, s/d _____ Cadernos de Lanzarote. São Paulo: Companhia das Letras, 1997. _____ Levantado do chão. São Paulo: Bertrand Brasil, 2003. http://www.citador.pt/poemas.php?op=10&refid=200809030511 http://www.jornaldepoesia.jor.br/fp380.html http://www.pensador.info/frase/NTI2OTEx/

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REPRESENTAÇÕES DA DOENÇA E PERCEPÇÕES DO ATENDIMENTO NA INTERAÇÃO PROFISSIONALCLIENTE EM CONTEXTOS DE SERVIÇOS DE SAÚDE José Carlos GONÇALVES (Universidade Federal Fluminense)

RESUMO: O presente estudo se insere no Projeto de Pesquisa Comunicação é saúde: transformando encontros de serviços de saúde em contextos para a cura, Subprojeto Representações da doença por pacientes e profissionais na interação em contextos de saúde. A pesquisa visa adquirir um entendimento mais amplo e documentado das representações da saúde e da doença para os pacientes e profissionais da saúde, bem como das suas identidades. Neste estudo exploratório, focalizaremos os depoimentos de pesquisadores médicos e investigadores da educação médica em publicações especializadas, cotejando esses depoimentos com as falas de alunos participando de sessões de tutoria em um projeto de mudança curricular para o fortalecimento do modelo usuário-centrado de atenção à saúde. No exame das manifestações lingüísticas das representações e identidades, buscam-se os processos interacionais de identificação e categorização, bem como os atos e comportamentos socialmente reconhecidos e as posturas, demonstrações de pontos de vista, ou atitudes socialmente reconhecidas. PALAVRAS-CHAVE: Interação, identidades, representações sociais,negociação,educação profissional.

ABSTRACT: This presentation reports on a research project entitled Communication is health: transforming health service encounters into contexts for healing, Subproject Representations of illness by patients and professionals interacting in health contexts. The goal of the research is to get a broader understanding of the representations of illness and the social identities of patients and professionals. In this exploratory study we will focus on the renditions of medical researchers and other researchers of medical education and practice excerpted from specialized publications. Those renditions are matched with the speech of medical students participating in tutorials conducted by a medical school engaged in a project aimed at changing its syllabus towards a user-centered model of health care. In the exam of the linguistic manifestations of the social representations and identities, the research focuses on interactional processes of identification and categorization, as well as socially recognized acts, behaviors, postures, points of view and attitudes. KEY WORDS: Interaction, identities, social representations, negotiation, professional education.


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1. Introdução Este estudo exploratório focaliza as representações sociais da medicina e do que é ser médico e a co-construção das identidades dos profissionais de saúde. Discutiremos inicialmente alguns conceitos fundamentais ligados à construção das identidades e às representações sociais como pano de fundo para a análise que visa examinar como as várias identidades e representações sociais sobre o que é medicina e o que é ser médico vão se configurando, com base nos depoimentos sobre a formação médica, excertos de artigos de pesquisadores médicos e estudiosos da formação médica, e na fala dos alunos e tutores de uma instituição particular de ensino médico, engajados em um projeto de integração curricular na formação superior em saúde. 2. A construção de identidades Hall (2006) mostra como “Dentro de nós há identidades contraditórias,empurrando em diferentes direções, de tal modo que nossas identificações estão sendo continuamente deslocadas.” A consequência é que somos bombardeados por uma multiplicidade desconcertante e cambiante de identidades heterogêneas, fragmentadas, ainda em fluxo,muitas vezes contraditórias. Na perspectiva da análise da conversa e da sociolingüística interacional, a identidade é um fenômeno discursivo, co-construído e negociado em situações de fala-em-interação. A identidade não é um fenômeno estático, mas é criada e recriada continuamente ao longo do tempo através dos relacionamentos sociais. Para a análise da conversação, a fala em interação leva à co-construção e à negociação das identidades. A identidade é, pois, uma estratégia, uma construção sensível ao local em que ocorre e às circunstâncias da interação. Na próxima seção, resenhamos brevemente alguns conceitos fundamentais sobre as representações sociais. 3. Representações sociais Cotejamos aqui as palavras de Tura et al(2007): “Moscovici (1978; 2003), analisando a diversidade de sistemas de pensamento e de controle social, afirmou que as representações sociais são uma forma de apreensão e entendimento do mundo. Uma forma de conhecimento que se produz numa apropriação muito específica e particular de elementos circulantes no meio social e que possibilita ao indivíduo remodelá-los e reconstruí-los numa síntese que faz interagir o pessoal e o social.

Oliveira et al(2008) sumarizam a teoria das representações sociais: “As representações sociais (RS) situam-se na interface do psicológico e do social, podendo ser entendidas como formas de conhecimentos elaborados e compartilhados socialmente que contribuem para a construção de uma realidade comum, possibilitando a compreensão e a comunicação do sujeito no mundo. Sendo assim, compreende-se que as representações sociais estão vinculadas a valores, noções e práticas individuais que orientam as condutas no cotidiano das relações sociais e se manifestam através de estereótipos, sentimentos, atitudes, palavras, frases e expressões. É um conhecimento do “senso comum”, socialmente construído e partilhado, diferente do conhecimento científico, que é reificado e fundamentalmente cognitivo.”

As autoras observam que as representações sociais são ao mesmo tempo individuais e sociais: “As respostas individuais são reflexos das manifestações do grupo social com o qual o sujeito compartilha experiências e vivências da sua vida pessoal, e os pronunciamentos semelhantes revelam certo nível de generalização, uma forma de pensar coletiva sobre um mesmo assunto. Isto denota o dinamismo das representações sociais e sua potencialidade para criar e transformar a realidade social.”

Tomando por base as noções de identidade e de representações sociais resenhadas, pretendemos, na seção seguinte, examinar os depoimentos de pesquisadores médicos e outros pesquisadores sobre formação e prática médica, com o objetivo de verificar que identidades e representações sociais estão sendo atribuídas ao ser médico, à medicina, à saúde e ao atendimento,

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ao trabalho, ou à missão do médico enquanto profissional. Examinaremos também alguns estudos sobre a formação médica, responsável pela criação da mentalidade ou paradigma biomédico da medicina da doença, a fim de contrastar essa iniciativa com a postura do Programa de Incentivo às Mudanças Curriculares nos Cursos de Medicina (PROMED) e a proposta de mudança curricular para o fortalecimento do modelo de atenção à saúde usuário-centrado do Centro Universitário Serra dos Órgãos (UNIFESO). 4. Análise e discussão dos dados 4.1. Identidades e representações sociais em estudos sobre a prática médica Londres (2007) ressalta dois aspectos da identidade médica: 1)a representação social da medicina com o viés mercadológico da atuação médica, em que a medicina é representada como um negócio, ou atividade comercial; 2) a falta de foco no paciente como objetivo maior da relação médico-paciente, em que os médicos e hospitais, ou instituições de saúde são representados como profissionais e instituições preocupados apenas com a economia médica e com o lucro, e, em conseqüência, prestam um mau atendimento à população. O alerta de Londres faz eco a outro médico pesquisador Cassel (1985): “O sucesso da medicina criou uma tensão: o doutor conhece o seu papel de curador das doenças e “esquece” o seu papel como “cuidador” dos pacientes... A decisão médica afeta, não apenas o corpo, mas também a vida e o bem-estar do paciente.”

A citação de Cassel torna bem clara essa identidade conflitante exigida pela profissão médica: a de “curador de doenças” e a de “cuidador de pacientes”. A consequência é que somos bombardeados por uma multiplicidade desconcertante e cambiante de identidades heterogêneas, fragmentadas, ainda em fluxo, muitas vezes contraditórias. Outro aspecto da identidade dos médicos é a atenção excessiva à tecnologização do atendimento, que é inversamente proporcional à falta de contato humano, cuidado, interação com o paciente, como afirma Londres(2007):“As máquinas e aparelhos de um hospital tornaram-se mais importantes que os profissionais que trabalham dentro dele.” Lain-Entralgo (1988) nos apresenta uma outra representação da medicina do futuro, uma medicina robotizada, sem médico (humano), onde a objetividade científica e a eficiência tecnológica substituiriam o médico: “É certo que a mentalidade técnica imaginou ou sonhou a utopia de um diagnóstico baseado em dados puramente objetivos (cifras analíticas, traçados gráficos) e um tratamento limitado à execução de prescrições escritas e automaticamente derivados daquele diagnóstico; em suma, a existência futura de uma Medicina sem médico”.

Esta identidade futurista e utópica contrasta frontalmente com a representação do que é ser um bom médico para Balint (1975 “)... Devemos todos ter em mente que o remédio mais usado em medicina é o próprio médico, o qual, como os demais medicamentos, precisa ser conhecido em sua posologia, reações adversas e toxidade.” Na representação de Balint, com a analogia ferina que capta a essência do problema, pois o médico é quem prescreve os medicamentos, a atuação médica é parte integrante do processo da cura, e o próprio médico é o principal medicamento usado, junto com os demais medicamentos. Assim como um remédio, o médico precisa ser conhecido em sua posologia (isto é, em seu comportamento, atitude, como agir), nas diferentes reações (positivas) ou (adversas) que o seu envolvimento ou distanciamento podem respectivamente causar, e mesmo no efeito tóxico (negativo, prejuízos) que a sua atuação pode trazer para o paciente e para o processo da cura. 4.2. O papel da escola médica na formação das identidades profissionais Para tentar entender como a medicina brasileira chegou a esse estado de coisas, vejamos brevemente alguns estudos sobre formação médica no Brasil. Dentre os múltiplos estudos disponíveis,

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Pereira e Almeida (2005) discutem o estado atual das práticas educativas relativas à saúde e a visão fragmentária que estas têm do ser humano, reduzindo-o a um corpo técnico, passivo, objeto de intervenções invasivas e por medicamentos: “Ao excluírem de seu horizonte de referência a dimensão totalizante do ser humano, tais práticas deixam de abordar as injunções sociais, culturais, políticas e psicológicas, presentes no desenvolvimento dos estados de saúde/doença.” Os autores enfatizam que, como instituições sociais, as escolas em geral e a escola médica em particular se identificam, historicamente, com os valores e os interesses dominantes do grupamento social que as legitimam e daí ser compreensível, portanto, que as escolas médicas tenham assumido a tarefa de transmitir o saber médico representado como um saber sobre as doenças, cuja universalidade seria demonstrável no hospital. Como conseqüência, eles apontam, elaborou-se uma proposta pedagógica “que levava o aluno a se conduzir frente ao objeto de estudo como se fora um cientista frente a uma experiência de laboratório, isto é, buscando controlar as variáveis intervenientes ao processo investigado para evitar “contaminações”. A conseqüência desse paradigma (ou dessa representação da medicina) é a visão compartimentalizada, fragmentária, da medicina da doença (em que o médico é representado como um cientista, um pesquisador da doença) e não a medicina do doente (com foco no paciente, no humano). O médico é retratado como um pesquisador distante e objetivo, que não pode se envolver com o paciente, para não contaminar o processo de investigação da doença. Dentro desta visão, afirmam Bastos e Proença (2000): “Tratava-se de ver e tratar a doença expressa da lesão anatomopatológica. Esse era o trabalho médico e a escola médica deveria preparar os alunos – futuros médicos – para executá-lo.” Os autores representam a postura da escola médica tradicional como uma escola que deveria preparar o médico para o tratamento da lesão anatomo-patológica. As manifestações dessa postura da escola de formação médica da doença se evidenciam na atomização das especialidades médicas, onde cada profissional se especializa em uma pequena parte da anatomia do doente, que é visto não como uma pessoa integral, mas como doenças específicas. Essa postura pode levar a uma total despersonalização da prática médica. Para evitar que a total despersonalização do atendimento médico ocorra, Illich (1975) nos alerta: “O paciente é reduzido ao papel de objeto que se conserta, mesmo que não tenha qualquer possibilidade de sair da oficina - esqueceram-se de que ele poderia ser uma pessoa a quem se ajudaria a curar, ou a capengar a seu modo na natureza... Quando os cuidados médicos e a cura tornam-se monopólios de organizações ou de máquinas, a terapêutica transforma-se inevitavelmente em ritual macabro.”

Illich usa do sarcasmo para representar a situação da prática médica despersonalizada e atomizada, comparando o paciente com um objeto (como um carro, ou eletrodoméstico) que se conserta (trocando ou ajustando as peças) em vez de uma pessoa humana que se ajudaria a curar ou pelo menos a capengar na natureza, e o hospital, clínica ou consultório como uma oficina (uma empresa), onde as máquinas transformariam a terapêutica em um ritual macabro. O problema, como afirma Canguilhem(1990), é que “é impossível para o médico compreender a experiência vivida pelo doente a partir do relato dos pacientes. Porque aquilo que exprimem por conceitos usuais não é sua experiência direta, mas sua interpretação de uma experiência para a qual não dispõem de conceitos adequados”. Gonçalves (1993) corrobora Canguilhem (1990) na análise dos esquemas referenciais conflitantes entre o médico e os pacientes. Cassel (1985corrobora esse choque de paradigmas e de enquadres interacionais: “O médico tenderá, desde o princípio, a “ver o que ele sabe”: fazer a realidade conforme suas concepções mais do que alargar essas suas concepções quando elas não estão de acordo com a experiência percebida... Mas os médicos foram treinados, na Medicina, para crer que a subjetividade é inimiga da ciência - e mesmo da verdade... Dessa maneira, uma forma de raciocínio (analítico-científico) esconde outra (valorativoconceitual)... Mas, cada vez mais, as respostas são para as patologias, e a patologia não é senão uma parte da doença... Doutores não tratam doença; tratam pacientes que têm doenças”.

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Aqui se delineiam mais alguns traços da identidade médica: objetividade, raciocínio analítico científico e preconceito contra a fala desconexa, difusa, narrativa, dos pacientes. Mas essa postura nos levou a um dilema retratado por Pereira e Almeida (2005): “O curso médico se constitui, assim, nessa dupla vertente: de um lado, disciplinas que reúnem o saber sobre as dimensões físico-químicas da realidade biológica do adoecer e, de outro, o treinamento constante de uma postura científica frente ao adoecer do paciente.” Isso pode constituir a base da identidade do médico no modelo clínico, organicista e tecnicista – a cultura da medicina científica resultante da formação anatomo-patológica proporcionada pelas escolas de medicina que retirou da formação médica a maneira humanística de ver os seus pacientes. Tal modelo, porém, não é suficiente para dar conta do que se passa na prática médica. No momento em que o aluno é exposto à complexidade do momento assistencial, o modo singular de cada paciente adoecer e a maneira singular com que cada profissional realiza a sua prática se impõem, pois como observa King(1982): “Mesmo que os médicos cientistas estudem os aspectos da doença, seu interesse está mais nas inter-relações entre os fenômenos do que na imediata conexão com o paciente enfermo”. A questão que se coloca é: onde estariam as causas da postura cautelosa, distante (sem conexão com o paciente enfermo), fria, profissional, do atendimento médico? Pereira e Almeida (2005) explicam como “Vários autores (4–14) consideram que o estímulo à “postura desumanizadora” do médico é primordialmente estabelecido na prática pedagógica da dissecção de cadáveres... Consideram o padrão de defesa contra a ansiedade, estruturado durante a dissecção, como potencialmente capaz de se constituir em uma atitude cristalizada de comportamento profissional. O recurso predominante a defesas do tipo rígido, esvaziando e anulando o conteúdo emocional (“não sinto nada”), ou a defesas do tipo onipotente, por ter sido legitimada a transgressão do tabu da violação dos corpos, podem preparar o caminho para atitudes semelhantes em situações de prática assistencial que podem gerar ansiedade....de forma a produzir um modelo de distanciamento que se repete posteriormente na prática clínica, levando o médico a perceber seus pacientes não como seres humanos em sofrimento, mas como abstrações.”

A postura defensiva, rígida, de distanciamento da prática clínica se soma, então, à representação da onipotência (e prepotência) atribuídas à identidade médica. Em síntese, a conclusão do estudo de Bastos e Proença (2000 resume essa faceta negativa da formação médica: “A análise crítica das instituições de ensino médico revela o comprometimento de sua prática pedagógica com a instalação de um modelo de assistência distante e impessoal. Tal comprometimento se evidencia na adoção de uma metodologia de ensino que estimula o aluno a se destacar do seu objeto de trabalho e em uma noção de saber calcada nos critérios de cientificismo estabelecidos no século XVIII.”

Os autores representam a prática pedagógica como assistencialista, distante, impessoal e cientificista. 4.3. A proposta de mudança curricular PROMED/UNIFESO Albuquerque (2007) delineia uma proposta alternativa para uma formação médica mais humanista e integral: “A proposta de mudança inclui a formação para o fortalecimento do modelo de atenção à saúde no qual o compromisso fundamental é com as necessidades do usuário (“usuário-centrado”), como contrapartida do modelo atualmente predominante, em que o principal compromisso do ato de assistir à saúde é com a produção de procedimentos (“procedimento-centrado.”

As novas identidades dos profissionais de saúde almejadas com a proposta se alinhariam com um perfil que compreenda o compromisso com a universalidade, a eqüidade e a integralidade do cuidado, qualidades estas que marcam as representações sociais da proposta de mudança. Na próxima seção, passamos a examinar um pequeno extrato de uma interação ocorrida entre os alunos e o seu tutor, em um desses encontros tutoriais voltados para a implementação do

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novo currículo. Não pretendemos fazer uma análise interacional exaustiva do discurso dos alunos e do tutor. Nosso objetivo, para esse trabalho, será examinar, na fala dos interagentes no evento da tutoria, algumas representações sociais do que é ser médico, das formas do cuidado médico, da atenção ao paciente, em suma, de novas identidades potenciais que poderão estar sendo sinalizadas na interação. 4.3.1. Identidades e representações sociais da prática médica em construção A transcrição apresentada aqui se refere ao início do encontro de tutoria. No trecho 1 Um dos alunos reporta para o grupo alguns resultados de uma entrevista informal feita com um pediatra sobre as fases por que passa um paciente diante da notícia de morte eminente. Tutoria 1 E=Estudantes

T=Tutor

Trecho 1 [...] E1: É as fases né / são a negação, raiva, barganha, depressão, e aceitação... T: Calma, Fabrício, lembra que / peraí / você está falando as fases... E1: As fases da:: pessoa / do ser humano [ ] referente da noticia de morte eminente (+) de morte eminente não, de morte (+) e ela faz essa:: essas cinco características é dela (+) primeiro é a negação, depois é a raiva, depois a barganha, depois a depressão, depois a aceitação (+) a pessoa pode passar pelas cinco ou parar em uma das cinco e não sair até o óbito chegar (+) são fases que um médico ele tem que entender (+) não só o médico como toda a equipe ela tem que entender saber que elas vão passar por isso (+) e tentar é:: apaziguar essas fases (+) porque é difícil não só pro paciente como pra família (+) eles vão ter é:: a sensação de perda ou perca igual a esse paciente E2: Mas todos os pacientes têm que começar com a negação ( ) ou ele não pode aceitar logo? E1: Nunca aceita logo T: Gente mas / E3: Eu acho que isso funciona com com pessoa maior assim (+) não com uma criança de quatro, cinco E1: Porque é o seguinte / o que eu li é o seguinte é que os pais / os próprios pais passam esse sentimento para a criança (+) ela ela ela absorve ela abstrai esse sentimento da família T: Mas Fabrício você viu isso em alguma referência? E1: Não, eu conversei com um pediatra /ele falou que é o seguinte / não eu não tenho referencia eu conversei é com um pediatra ele falou que é o seguinte que querendo ou não nenhuma pessoa é tão fria ao ponto de não passar nenhum sentimento (+) e a família como já entende mais o processo mesmo que não seja o processo de morte mas ela entende que ela vai perder um membro que esse membro vai sofrer que vai acontecer isso que é uma vida que teoricamente não/não conheceu o que o pai ou a mãe já conheceu não viveu o que um pai uma mãe já viveu (+) então eles passam isso pra criança não falando (+) mas em atitudes em brincadeira em excesso de sentimentos a criança sente

Muitas coisas poderiam ser analisadas neste pequeno trecho, mas queremos destacar aqui a representação social que faz o estudante E1 sobre a relação médico-paciente como uma relação afetiva, quando ele afirma, em resposta à intervenção do tutor sobre a referência do comentário que ele havia feito: E1: Não, eu conversei com um pediatra /ele falou que é o seguinte / não eu não tenho referencia eu conversei é com um pediatra ele falou que é o seguinte que querendo ou não nenhuma pessoa é tão fria ao ponto de não passar nenhum sentimento (+)

O enquadre, ou alinhamento que este estudante faz, então, é na direção de uma identidade afetiva, de envolvimento com o paciente. Essa compreensão da doença envolve não só o médico, mas toda a equipe (interdisciplinar) envolvida com o tratamento. Ele deixa transparecer também a preocupação com o ambiente social do paciente, a família, que também vai sofrer junto com o paciente, e que pode ser importante na recuperação ou na morte do paciente. No trecho 2, abaixo, a identidade do médico é colocada como aquela de um informador objetivo, distante, impessoal, que não pode se envolver, para não contaminar o processo do atendimento, como afirmam Pereira e Almeida (2005):

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Tema geral: Línguas e Literaturas: Diversidade e Adversidades na América Latina Trecho 2 ( ) E4: ( ) que até a década de setenta é:: não era comum é:: esse excesso de proteção ainda existe / esse excesso de proteção da criança diante de uma criança enferma ( ) profissionais de saúde mas a partir da década de 70 nos Estados Unidos e na Europa começaram a surgir estudos de que a comunicação pra criança enferma sobre a doença tava melhorando o diagnóstico dela porque dava uma / mesmo criança pequena não só pra família mas pra própria criança porque ( ) como seria daqui pra frente (+) é com reação a vida é:: os novos caminhos que a vida / os novos rumos que irão seguir e isso é a melhor prognóstico então é preconizado que seja comunicado é:: que o médico comunique com auxilio da família ( ) E5: O Nelson ele comenta no primeiro capítulo sobre neoplasia né (+) ele fala que o médico que tem que tirar todas as dúvidas tanto da família quanto da criança (+) é importante deixar a criança bem informada e o quê que ela vai passar é:: o quê que vai acontecer de acordo com cada equipe de câncer (+) por exemplo (+) é:: se ela tem a possibilidade de perder algum membro por causa daquele câncer ou ( ) alguma coisa assim tem que explicar tem que deixar bem claro tem que explicar várias vezes (+) é:: porque a família muitas vezes tem dúvida é muito insegura o médico ele tem que ser é o suporte de informação dessa:: dessa família

Em E4 e E5, os estudantes apontam a representação social do médico como o vetor de informação, como conselheiro do paciente e de sua família. Destacam a importância de o médico dar toda a informação necessária, para que o paciente e a família saibam de todos os possíveis riscos inerentes à doença. A identidade do médico, então, é a de informador, conselheiro, suporte para a família e para o paciente. E5 destaca a postura didática do médico, quase a de professor, que tem que explicar várias vezes, até que o paciente e a família demonstrem compreensão perfeita, dada a insegurança da família. Note-se que, embora o suporte aqui seja apenas no nível informacional, há a sugestão do papel do médico como conselheiro psicológico do paciente e da família. Essas identidades complexas do profissional de saúde, como vetor de informação, conselheiro, suporte e professor (ou informador dos problemas e da condição de saúde dos pacientes) conflitam com a postura levantada pelos estudantes E1 e E5 e E2, no trecho 3,abaixo: Trecho 3 E1: Ele não pode ser o suporte psicológico (+) tem que ser quem vai resolver os problemas porque é se deixar confundir (+) é quem resolve os problemas com o suporte psicológico ou com a âncora ou com / isso pode ser confundido na hora do óbito (+) e o médico pode ser misturar com essa/ com essa:: ocorrência e ele pode acabar se sensibilizando por aquele paciente E5: O Nelson fala disso também fala que que:: exatamente o que o (*) falou o médico não deve se colocar numa situação muito envolvida com a situação ele tem que ser um informador/ ele E2: Ele tem que demonstrar que aquilo é a realidade é aquilo que vai acontecer mas não deve ficar/ po:: tipo:: / se envolver com aquele paciente E5: [ Emocionalmente

E1 é categórico quando afirma que o médico não pode ser o suporte psicológico, não pode se envolver, não pode ser âncora do paciente, pois isso pode causar problemas, o médico pode misturar as coisas, “contaminar”. A identidade que se desenha aqui, então, é a de informador objetivo. E5 endossa também essa opinião, com base no apelo à autoridade, pois eles haviam consultado informalmente um pediatra sobre os problemas de como tratar com os pacientes de perigo de morte eminente. E2 apresenta um novo traço da representação social do médico: a de alguém que encara os fatos com realidade, realismo, sem se deixar envolver, ou se sensibilizar pelo paciente. E5 modaliza, em fala sobreposta, que não pode haver envolvimento emocional, só o envolvimento técnico, profissional do médico enquanto pesquisador da doença, suporte técnico e vetor de informação. No trecho 4, abaixo, E2 introduz o aspecto ético da postura do médico, que deve ser claro, direto, objetivo, dar toda a informação, fornecer o diagnóstico e deixar o paciente livre para procurar segundas opiniões ou tratamentos alternativos em outra instituição: Trecho 4 E2: Você tem que você tem que falar você tem que se posicionar de que aquilo é uma coisa séria (+) de que foi feito o diagnóstico por ele / ele tem total liberdade de procurar por outro médico pra fazer um outro tipo de avaliação ou ir num outro centro de referência que tenha uma avaliação que possa ser mais fiel mas o médico a partir de então desde que ele deu a noticia ele deve ter isso pra ele de que ele tem aquela doença

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Anais do II Congresso Internacional de Estudos Linguísticos e Literários na Amazônia (CIELLA) / ele não pode dizer que / ou ele tem a condição de curar que isso pode acontecer ou então falar assim é:: Deus vai curar porque não é assim existem situações que as coisas podem vir a ser curadas mas não que vá acontecer

Desta forma, a identidade médica técnica, profissional, do médico prevalece, com as devidas salvaguardas da ética e do direito de escolha. E6, todavia, introduz um contraponto e apresenta um novo aspecto da identidade do médico, que tem um papel quase sobrenatural, divino, transcendental, xamânico: aquele que representa uma esperança de cura, algo ou alguém em que acreditar: E6: ( ) todo e qualquer paciente merece um fio de esperança que seja (+) no mínimo que ela seja também

E6 sensibiliza-se para a importância da fé, a importância de acreditar, a importância de ter uma meta a perseguir, mesmo contra todos os contras. Mais à frente, na interação, E6, em dueto com E5, voltam à carga com essa representação da fé, do pensamento positivo: E6: Mas eu acredito que:: o que possa ajudar no tratamento também é:: o pensamento positivo entendeu / o psicológico influenciando muito / ( ) E5: Tem muito estudo sobre isso também né sobre o pensamento positivo E6: A importância até mesmo da religião em situações como essa (+) muita gente pode até não se apegar na religião a fé ( )

Outro traço da identidade médica é apresentado no trecho 5: Trecho 5 E6: ( ) todo e qualquer paciente merece um fio de esperança que seja (+) no mínimo que ela seja também E7: O que eu ouvi foi o seguinte foi assim é:: que todo mundo falou você tem que dar a notícia primeiramente você tem que dar notícia aos pais (+) e junto com os pais você dá a notícia pra a criança / quando você for transmitir pra criança você tem que usar um linguajar totalmente apropriado pra a criança pra ela entender / foi o que eu vi também no Nelson ele falou que também ( ) vamos supor você tem que repetir várias vezes porque dependendo da idade da criança ela não consegue entender na primeira T: Não entendi primeiro você comunica aos pais E2: Aos pais T: Ai depois você também comunica a criança você o médico E2: Você comunica T: Por que a gente ficou na dúvida é ( ) E3: É os pais podem ficar abalados e / ( ) [...] E7: Aí é:: você tem que transmitir pra criança e tem que ter tomar cuidado pra ela entender explicar várias vezes utilizar um linguajar da criança para que ela venha a entender (+) também é:: isso que o (*) falou também é uma outra forma de você::/ não pode dar esperan/ é:: tipo assim você não pode falar que aquilo que vai ser curável mas você também não podem falar igual muitas pessoas ( ) tipo assim você vai ter seis meses de vida / você nunca pode / a pessoa ( )

Em E7, o aluno deixa transparecer uma outra representação da identidade médica; a do comunicador que se preocupa com a adequação sociocomunicativa do seu discurso médico na comunicação com o paciente, no enunciado: “/ quando você for transmitir pra criança você tem que usar um linguajar totalmente apropriado pra a criança pra ela entender / foi o que eu vi também no Nelson ele falou que também ( ) vamos supor você tem que repetir várias vezes porque dependendo da idade da criança ela não consegue entender na primeira”

É uma competência sociolingüística importante que o médico precisa adquirir, pois muitos pacientes se queixam de que não conseguem entender a linguagem hermética, críptica, o jargão técnico que muitos profissionais fazem questão de usar, por força do hábito, ou para manter e aumentar ainda mais a distância que os separa dos pacientes. Esta adequação sociocomunicativa é uma das novas competências que a implementação da nova proposta de humanização curricular visa implementar.

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A postura médica exige o equilíbrio entre a identidade do pesquisador, cientista, e a do suporte psicológico, aquele que tem que dar o apoio, sem, todavia, enganar, ou ser charlatão, como se observa no trecho abaixo de E7: (*) falou também é uma outra forma de você::/ não pode dar esperan/ é:: tipo assim você não pode falar que aquilo que vai ser curável mas você também não podem falar igual muitas pessoas ( ) tipo assim você vai ter seis meses de vida / você nunca pode / a pessoa ( )

Saber, então, comunicar com os pacientes, usando as devidas modalizações discursivas e minimizadores, é uma habilidade importante para o profissional. Fazer os alinhamentos corretos, usar diferentes footings (Gonçalves(2009), em Gonçalves e Almeida (2009) para falar com os adultos e com a criança é um sinal de competência comunicativa profissional. O final da fala de E7: “/ é:: tipo assim você não pode falar que aquilo que vai ser curável mas você também não podem falar igual muitas pessoas ( ) tipo assim você vai ter seis meses de vida / você nunca pode / a pessoa ( )” enceta uma nova representação da medicina, em que se vive o dilema de uma identidade conflitante entre o técnico insensível e o cuidador de pessoas. O comentário de E6, no trecho 6, apresenta uma outra representação de medicina, a de que medicina não é uma ciência exata: Trecho 6 E6: Tem que entender que isso é medicina não é uma ciência exata ( ) E8: você nunca deve falar isso não há nada que se possa fazer porque sempre tem alguma coisa que você pode fazer mesmo que não seja no sentido de curar a doença mas numa forma de deixar tranqüila aquela paciente entendeu nunca pode chegar pra família e falar um negócio desse E7: Então porque é::/ foi o que aquilo dali de como que a medicina não é uma ciência exata ela/ ( )

E8 reafirma a representação do médico como suporte, conselheiro psicológico da família, aquele que pode trazer algum sinal de esperança, de tranqüilidade. A percepção de que sempre há algo que se possa fazer, mesmo que não se possa curar a doença é muito importante e revela esse aspecto da identidade médica que muitas vezes é deixado de lado, por conta do foco excessivo na preocupação técnica de investigar a doença, em detrimento de cuidar do doente. No trecho 7, na continuação do tópico de que a medicina não é uma ciência exata, a conversa introduz uma outra representação da medicina: uma medicina baseada em evidências: Trecho 7 E1: E hoje nós temos muito uma medicina baseada em evidências (+) então você pode até antes de dar esse diagnóstico essa notícia pro paciente (+) você pode consultar / você pode consultar uma:: um banco de dados e dar os dados existentes como oh:: / no Brasil hoje (+) a chance de sobrevida nessa doença é de sete por cento vinte por cento trinta por cento que você tendo uma fonte de dados por trás é muito mais confiável é muito mais certeza do que você está falando E3: Mas eu acho válido ( ) assim cinco por cento E7: Assim se tiver um por cento de chance e se algo tiver desse um por cento entendeu E1: Se ela agarrar naquilo ali e for / então é quem falou isso foi o Maurílio por que a gente teve esse LH ((Laboratório de Habilidades, um componente curricular do curso)) e foi / a questão foi um tumor de ( ) que tinha tantos por cento de chance de não ser maligno (+) que são:: acho que três por cento de chance de ser / é maligno / ai eu citei foi oh:: justamente / se você tem um banco de dados atrás de você / você tem como se respaldar de não né / não está errado você pode usar esses termos que até a família vai se apegar naquilo e vai atrás daquela porcentagem E2: Você não tá dando uma falsa esperança aquilo existe daquela possibilidade de ela ser de um por cento existe mas mas ( ) se ela quer se firmar naquilo ali ( )pelo menos ela não vai se entregar também

O trecho 7 reforça a importância de o médico não se apegar somente à sua identidade científica, no paradigma biomédico, identidade baseada em dados, mas de conciliar essa habilidade com um interesse genuíno pela pessoa do paciente, mesmo que haja apenas um por cento de chance de vida. Ao mesmo tempo o trecho revela também uma representação importante da identidade do

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paciente: pacientes têm expectativas de vida, tem medos, ansiedades, angústias e não apenas sintomas físicos de uma doença. A não atenção a essas expectativas pode, às vezes, significar a diferença entre o sucesso e o fracasso do tratamento. No trecho 8, abaixo, vemos uma representação da medicina que engloba não só o conhecimento científico empiricamente verificável e comprovável, mas deixa margem também para a atuação de outras forças externas ou psicológicas, tais como a força do pensamento positivo e da crença, da fé, da religião, no processo da cura: Trecho 8 E6: Mas eu acredito que:: o que possa ajudar no tratamento também é:: o pensamento positivo entendeu / o psicológico influenciando muito / ( ) E5: Tem muito estudo sobre isso também né sobre o pensamento positivo E6: A importância até mesmo da religião em situações como essa (+) muita gente pode até não se apegar na religião a fé ( ) E2: Se você pensar que um paciente desse possa a vir ficar depressivo vai ter baixa de serotonina aumento de ( ) que vai atrapalhar o próprio tratamento e isso (+) é concreto é fisiológico e se o paciente tiver bem com o pensamento positivo uma ( ) normal bem equilibrada ele vai se aderir melhor vai responder melhor o tratamento ai responder melhor às drogas à radiação ao transplante que seja E6: Estar depressivo já abaixa nosso sistema imunológico E5: Uma vez no segundo período eu li um estudo sobre isso (+) falava sobre:: é a importância da::da crença né/ no prognóstico de doenças é::é::é ( ) ele diz e eles faziam exatamente isso tipo / a conclusão disso tudo e já faz muito tempo que eu li né/ mas é essa não importava no que a pessoa acreditava (+) mas importava que ela acreditava em alguma coisa (+) se ela tiver esse pensamento positivo a::a força espírita ela:: / os pacientes que tinham isso tinham melhor prognóstico do que aqueles que não não criam em nada E7: Inclusive eu tava até conversando com um médico / ele falou nisso nessa hora além de você dar a notícia você deve chegar assim mãe pai vocês acreditam em alguma coisa tem alguma religião / ao a pessoa fala sim / então / agora é hora de você se apegar de você tentar buscar uma E1: Ir pra Igreja E7: De uma solução uma esperança pra você se apegar mais tentar passar essa tranquilidade porque fica difícil de vocês também tentar passar essa tranqüilidade pra criança entendeu e / T: Mas assim sempre relembrando que essas são todas que se iniciam na primeira consulta né então a importância E2: A relação médico paciente T: [desde o inicio né desde o início

A identidade médica que é representada nesse trecho é a de um profissional que não acredita só nas evidências científicas e físicas da doença, mas atribui também importância aos fatores psicossomáticos, tais como motivação, pensamento positivo, crenças da própria pessoa doente. No final deste trecho, o tutor, que estava mais intermediando a conversa e monitorando os turnos de fala dos estudantes, intervém para lembrar a importância de os estudantes entenderem que a relação médico-paciente é uma relação permanente, que se inicia no primeiro contato, na primeira consulta. Além do estabelecimento do rapport, o profissional deve inspirar confiança ao paciente (e à sua família) para o sucesso do tratamento. Os traços da confiabilidade e da conexão com os pacientes, da relação que se estabelece, são essenciais para a identidade do médico. No trecho final desta transcrição, E2 continua falando dessa relação que se estabelece e E5 corrobora o fato de que, mesmo com a relação, o médico deve deixar o paciente livre para escolher (quando possível) uma segunda opinião, o que vai deixar os dois mais confortáveis: Trecho 9 E2: Isso aí também que é difícil assim normalmente a família já cria uma relação com o médico desde a primeira consulta e aquele médico é o médico que ela tem de confiança e às vezes ela quer buscar uma outra fonte uma outra avaliação e ela não vai buscar por causa disso por causa desse então aí que o médico tem que deixar ela bem livre E5: [Confortável E2: Confortável assim não tem problema nenhum se você quiser ver quiser uma outra avaliação de um outro médico fique a vontade isso não vai ter nada acho que é até bom procurar um outro porque é difícil tirar essa relação você se apega muito nessa relação aquele médico é o meu médico e cabou ( ) e aí o médico vai ficar chateado vai não vai mais atender ela tão bem / deve deixar confortável em relação a isso

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Tema geral: Línguas e Literaturas: Diversidade e Adversidades na América Latina T: Vocês conseguem separar ( ) é o médico deve ser um profissional humanístico com a visão humanística da parte é do que a gente falou do envolvimento emocional como é que a gente consegue separar isso E1: Olha é muito difícil é justamente o que o Guilherme falou muitas vezes ( ) até hoje mesmo você vai numa enfermaria você hoje nós tivemos enfermaria você vê o pessoal lá e nós vimos e nós vimos e três casos (16’)

Ao final, o tutor intervém mais uma vez, desta vez procurando sintetizar e pontuar os aspectos principais discutidos na seção de tutoria: T: Vocês conseguem separar ( ) é o médico deve ser um profissional humanístico com a visão humanística da parte é do que a gente falou do envolvimento emocional como é que a gente consegue separar isso

A identidade médica que se quer criar é a de um profissional humanista, com visão humanista, capaz de se envolver, mas preservando também o seu lado profissional técnico e científico. Para realizar tal tarefa, é necessário ter a consideração dos pacientes como parceiros conversacionais reais, não um objeto e/ou um corpo para ser consertado. Desta forma, os médicos estariam praticando a medicina da pessoa, não a medicina da doença. Isso envolve empreender uma profunda transformação da cultura médica, a partir de sua formação pré-serviço. 5. Conclusão O presente estudo exploratório focalizou as representações sociais da medicina e do que é ser médico e a co-construção das identidades dos profissionais de saúde. No exame das manifestações lingüísticas das representações e identidades, buscaram-se os processos interacionais de identificação e categorização, bem como os atos e comportamentos socialmente reconhecidos e as posturas, demonstrações de pontos de vista, ou atitudes socialmente reconhecidas sobre o que é ser médico, sobre a saúde e a doença e sobre as práticas e as identidades médicas. O estudo discutiu, igualmente, alguns conceitos fundamentais ligados à construção das identidades e às representações sociais como pano de fundo para a análise das várias identidades e representações sociais sobre o que é ser médico, sobre a saúde e a doença e sobre as práticas e as identidades médicas. De um ponto de vista socioeconômico e ético, os depoimentos de pesquisadores médicos denunciam a representação social da medicina com o viés mercadológico da atuação médica, em que a medicina é representada com dois problemas graves. O primeiro problema é a visão da medicina como um negócio, ou atividade comercial, em que os médicos e hospitais, ou instituições de saúde são representados como profissionais e instituições preocupados apenas com a economia médica e com o lucro, e, em conseqüência, prestam um mau atendimento à população. O segundo problema, colocado como decorrência do primeiro, numa relação de causa-efeito, é a falta de foco no paciente como objetivo maior da relação médico-paciente e a excessiva dependência da tecnologia, em testes e exames, na investigação da doença, em detrimento da atenção humana ao paciente, o que torna a interação médico-paciente robotizada e impessoal. A identidade do profissional médico é vista como conflitante, no choque entre os papéis de “curador de doenças” e “cuidador de pacientes”. Resultado de enquadres interacionais conflitantes, o médico, então, é representado como um profissional frio, distante, objetivo, não envolvido, preocupado mais com a investigação da doença do que com a conexão com o paciente. O choque entre os paradigmas conflitantes da atuação médica objetiva, orgânica, biomédica, e o paradigma subjetivo dos pacientes tem profundas conseqüências para a interação médico-paciente (Gonçalves 1993). A análise do discurso dos depoimentos dos pesquisadores sobre formação médica efetuada pelos cursos tradicionais de medicina revela uma representação da formação médica limitada, excludente, fragmentária, técnica e cientificista, com foco numa concepção da doença do ponto de vista da lesão anatomo-patológica. Esta formação tipifica a medicina da doença, em contraposição a uma medicina do doente. Um outro aspecto muito relevante também levantado nas representações sociais

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da medicina da doença é a excessiva compartimentalização da ciência médica, com a consequente perda da visão de conjunto da doença como um fenômeno global que atinge a pessoa como um todo, tanto física quanto psicologicamente, com todas as suas implicações sociais e existenciais intervenientes no processo. A análise do discurso dos depoimentos dos estudantes nas sessões de tutoria do FUNESO revelou identidades e representações da prática médica em construção. As várias representações sociais dos papéis e posturas do médico revelam o conflito entre as identidades do médico como pesquisador da doença, distante e objetivo, com o papel do médico como suporte psicológico e conselheiro do paciente e de sua família. Foi ressaltada também a importância de o médico ser um comunicador competente e vetor de informação para o paciente e seus familiares sobre as condições da doença, as alternativas de tratamento, as implicações e desdobramentos do tratamento e dos procedimentos. Isso revela uma preocupação com a identidade ética do médico e com possíveis salvaguardas jurídicas. Outro aspecto importante das representações sociais da prática médica relaciona-se com a manifestação do sentimento e com a crença na possibilidade de existência de outros fatores intervenientes no processo da cura que não são diretamente mensuráveis e explicáveis pelos métodos científicos, tais como a importância da fé e do pensamento positivo. Enfatiza-se também a importância do estabelecimento da conexão com o paciente desde o primeiro contato, para o estabelecimento da confiança e da adesão do paciente ao tratamento e procedimentos. O discurso dos estudantes revela as identidades médicas fragmentárias, ainda em co-construção, no fluxo das experiências, estudos, conversas, ensinamentos e convívio real com profissionais de saúde e pacientes. A proposta de mudança curricular PROMED/UNIFESO nos permite antever que poderá haver uma luz no fim do túnel com a integração dos currículos para a formação dos profissionais de saúde, voltada para o fortalecimento do modelo de atenção à saúde no qual o compromisso fundamental é com as necessidades do usuário em todas as suas dimensões, com compromisso com a universalidade, a equidade e a integralidade do cuidado. Para isso, é necessário envolver todos os segmentos, os estudantes, os docentes e a sociedade como sujeitos ativos no processo ensinoaprendizagem, num contexto de integração entre ensino, trabalho e cidadania. Com isso, talvez possamos, um dia, atingir o ideal da representação e da identidade médica, como nos sugere Pellegrino(1979): “Medicina, então, é todas as três - ciência, arte e virtude sinérgica, integralmente unida nas atividades diárias do médico. Desarticular um dos membros dessa tríade dos outros é desmembrar a Medicina - cuja característica essencial é a relação especial que une ao outro. Quando isso acontece, aí pode existir um cientista, um artista ou um prático, mas não um médico”.

Referências ALBUQUERQUE, V.S. et al: Integração curricular na formação superior em saúde: refletindo sobre o processo de mudança nos cursos do Unifeso. Revista Brasileira de Educação Médica: Rev. bras. educ. med. vol.31 no.3 Rio de Janeiro Sept./Dec. 2007. Disponível em http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_ arttext&pid=S0100-55022007000300013. BALLINT, M. O médico, seu paciente e a doença. Rio de Janeiro: Atheneu. 1975. BASTOS, L. A. M.; PROENÇA, M. A. A prática anatômica e a formação médica. Revista Panam Salud Publica (panam. j. public health), Washington, v. 7, n. 6, 2000. p. 395-402. CANGUILHEM, G. O normal e o patológico. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1990. CASSELL, E.J. The Healer’s Art. Cambridge, MA: MIT Press. 1985. GONÇALVES,J.C.Discourse accommodation strategies in professional-client communication in health services. In Gonçalves, J.C. e Almeida, F.A. (Orgs.) Interação, Contexto e Identidade em Práticas Sociais. Niterói: EDUFF.2009.

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Tema geral: Línguas e Literaturas: Diversidade e Adversidades na América Latina GONÇALVES, J.C. Doctor-Patient Communication: Training Medical Practitioners for Change. In: SCHAFFNER, C.; WENDEN, A. (eds.) Language and Peace. Aldershot, England Dartmouth Publishing Co: 1993. HALL, S. A identidade cultural na pós-modernidade. Rio de Janeiro: DP&A.2006. ILLICH, I. A Expropriação da Saúde: Nêmesis da Medicina. Rio de Janeiro: Editora Nova Fronteira. 1975. KING, L. S. Medical Thinking: A Historical Preface. Princeton: Princeton University Press, 1982. LAIN-ENTRALGO, P. Antropologia Médica. Editora San Paolo Edizioni. 1988. LONDRES, L.R. Sintomas de uma Época: quando o ser humano se torna um objeto. Bom Texto Editora. 2007. OLIVEIRA, J.F.;PAIVA,S.P.; VALENTE,C.L.M. Representações sociais de profissionais de saúde sobre o consumo de drogas: um olhar numa perspectiva de gênero. Ciência e Saúde Coletiva, 11(2): 473-481.2006. PELLEGRINO, L.R. Humanism and the Physician. Tenn.: University of Tennessee Press. 1979. PEREIRA, O. P.; ALMEIDA, T. M. C. Medical education according to a resistance pedagogy. Interfacecomunic., saúde, educ., v.9, n.16, p.69-79, set.2004/fev.2005. Disponível em http://www.scielo.br/pdf/icse/ v9n16/v9n16a06.pdf. Novembro 22, 2007. TURA, M.L.R.; MACEDO,E.F.; e LOPES,A.C. A Representação Social do Ser Aluno. Em V Jornada Internacional e III Conferência Brasileira sobre Representações Sociais. 2007. In Anais Online – Trabalhos Completos. HTTP://www.gosites.com.br/vjrirs/.

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RELATO SOBRE O PROJETO DE PESQUISA REPRESENTAÇÕES DA DOENÇA POR PACIENTES E PROFISSIONAIS NA INTERAÇÃO EM CONTEXTOS DE SAÚDE José Carlos GONÇALVES (Universidade Federal Fluminense)

RESUMO: O presente trabalho reporta uma análise microetnográfica da conversa-em-interação no contexto da saúde. Com a preocupação de dar voz aos diferentes atores que interagem nos encontros de serviços de saúde para a constituição e a expressão das representações da doença, a equipe de pesquisa compôs-se de analistas da conversação, estudantes de pós-graduação, pacientes e profissionais de saúde. Com base na triangulação de três tipos de dados: a) as narrativas dos pacientes e as versões dos profissionais de saúde; b) a gravação de consultas e atendimentos; c) entrevistas com médicos e outros profissionais de saúde, a pesquisa buscou compreender de maneira mais abrangente a condição de saúde do paciente e os processos de constituição e expressão das representações da doença por pacientes e profissionais. Questões cruciais para a pesquisa foram: a percepção dos agentes e a causalidade da doença, a representação do controle ou descontrole da própria vida, as representações do self e da identidade dos pacientes, as trajetórias sociais nas narrativas de mudanças na vida dos pacientes, antes e após a doença, a representação discursiva da doença no ambiente interacional clínico e não clínico e a percepção do atendimento e do tratamento de saúde pelo paciente e pelos profissionais. Esta apresentação focaliza as representações da doença por profissionais e pacientes em uma gama variada de contextos de serviços de saúde, como clínicas de hemodiálise, cirurgia plástica, hospital de olhos, postos de saúde, clínicas de atendimento a dependentes químicos e adolescentes grávidas. PALAVRAS-CHAVE: Interação, identidades, representações sociais, negociação, educação profissional.

ABSTRACT: This presentation reports a micro-ethnographic analysis of client-professional interactions in various health contexts. In an effort to get an understanding of reality as it is constituted and expressed by the various actors involved in the client-professional encounters, the research team included conversation analysts, graduate and undergraduate students , as well as practitioners and clients. Drawing from the triangulation of three data sources: a)patients’ narratives and professionals’ renditions; b) tape-recorded consultations and services; c)interviews with doctors and other health professionals, the research aimed at getting a broader understanding of both the patients’ health condition and the processes by which patients and professionals constitute and express their representations of illness. Crucial research questions were the perception of the agents and causality of illness, the representation of the degree of control of their own lives, the representations of the self and the identities of the patients, the social trajectories in patients’ narratives of life changes before and after the disease, the discourse representation of illness in the clinical and non-clinical environment, and the conflicting perception of both the service and the treatment quality by patients and professionals. This presentation focuses on the representations of illness by professionals and patients in a wide range of healthcare service specialities and contexts such as hemocenters, plastic surgery, eye hospitals, health community centers, specialized clinics for drug addicts and pregnant teen-agers. It is suggested that the knowledge acquired about interaction in health professional/client communication should be applied to both pre and in-service training of practitioners. KEY WORDS: Interaction, identities, social representations, negotiation, professional education.


Introdução Este relato pretende mostrar em detalhes o que vem sendo feito na pesquisa do projeto Comunicação é saúde: transformando encontros de serviço de saúde em contextos para a cura e do subprojeto Representações da doença por pacientes e profissionais na interação em contextos de saúde. Especificamos abaixo as etapas desenvolvidas e as etapas que ainda estão por vir, expondo a metodologia e os processos envolvidos na pesquisa. Apresentamos abaixo um resumo do projeto e do subprojeto de pesquisa: O foco do projeto é uma pesquisa da conversa-em-interação no contexto da saúde, envolvendo analistas do discurso/conversação, estudantes de pós-graduação, pacientes e profissionais de saúde. O principal objetivo da pesquisa é adquirir um entendimento mais amplo e mais documentado das representações da doença para os pacientes e profissionais da saúde através de um estudo que envolva a triangulação de três tipos de dados: a) as narrativas dos pacientes e as versões dos profissionais de saúde; b) a gravação de consultas e atendimentos; c) entrevistas com médicos e outros profissionais de saúde. Em uma análise microetnográfica da conversa-em-interação, com base nesses três tipos de dados, espera-se poder compreender de maneira mais abrangente a condição de saúde do paciente e os processos de constituição e expressão das representações da doença por pacientes e profissionais. Questões cruciais para a pesquisa são: a percepção dos agentes e a causalidade da doença, a representação do controle ou descontrole da própria vida, as representações do self e da identidade dos pacientes, as trajetórias sociais nas narrativas de mudanças na vida dos pacientes, antes e após a doença, a representação discursiva da doença no ambiente interacional clínico e não clínico e a percepção do atendimento e do tratamento de saúde pelo paciente e pelos profissionais. Sugere-se que as descobertas das análises sejam aplicadas para o treinamento e qualificação pré-serviço e em - serviço de profissionais de saúde visando a otimização da qualidade da comunicação e da interação em contextos de serviços de saúde. Especificamos, abaixo, os objetivos da pesquisa: Objetivos – Adquirir um entendimento mais amplo e mais documentado das representações da doença pelos pacientes e profissionais da saúde – Investigar as narrativas dos pacientes sobre a representação da doença e as versões dos profissionais de saúde – Efetuar a observação-participante e a gravação de consultas e atendimentos em contextos de saúde – Documentar as representações do self e da identidade dos pacientes, as trajetórias sociais nas narrativas de mudanças na vida dos pacientes, antes e após a doença – Contrastar a representação discursiva da doença no ambiente interacional clínico e não clínico e a percepção do atendimento e do tratamento de saúde pelo paciente e pelos profissionais – Revelar o que está implícito na vida comum do ambiente de encontros de serviços de saúde através da identificação e documentação de processos pelos quais os resultados são obtidos – Com base nos dados da pesquisa, preparar subsídios para aplicação dos resultados à formação pré-serviço e em serviço de usuários com vistas à qualidade da comunicação no trabalho – Contribuir para transformar os profissionais de saúde em agentes de mudança da sua prática social visando à qualidade na comunicação e a melhoria dos serviços de saúde à população. Sintetizamos, abaixo, os benefícios esperados e a viabilidade técnica da pesquisa:


Benefícios esperados e viabilidade técnica – Aquisição de um entendimento mais amplo e mais documentado das representações da doença para os pacientes e profissionais da saúde – Compreensão mais abrangente da condição de saúde do paciente e dos processos de constituição e expressão das representações da doença por pacientes e profissionais – Com base nos dados da pesquisa, preparar subsídios para aplicação dos resultados à formação pré-serviço e em serviço de profissionais da saúde com vistas à qualidade da comunicação no trabalho – Contribuir para transformar os profissionais de saúde em agentes de mudança da sua prática social visando à qualidade na comunicação e a melhoria dos serviços de saúde à população – Formação técnica de pesquisadores na área de análise do discurso/conversação em contextos de comunicação na saúde (três doutorandos e dois mestrandos da equipe) – Iniciação de bolsistas à pesquisa científica (através da participação no projeto) e no Grupo de Pesquisa CNPq: Discurso, Interação Práticas Sociais. Na próxima seção, definimos as questões da pesquisa: Questões de pesquisa – Quais as diferenças entre as representações da doença pelos pacientes e profissionais da saúde? – O que as narrativas dos pacientes podem revelar sobre a representação da doença e quais são as versões dos profissionais de saúde sobre a doença? – O que a observação-participante e a gravação de consultas e atendimentos em contextos de saúde podem revelar sobre os processos de representação da doença para profissionais e clientes? – Como são as representações do self e da identidade dos pacientes, as trajetórias sociais com base nas narrativas de mudanças na vida dos pacientes, antes e após a doença? – Como os pacientes fazem a representação discursiva da doença no ambiente interacional clínico e não clínico? – Como se compara a percepção do atendimento e do tratamento de saúde pelo paciente e pelos profissionais? – Que processos, estratégias comunicativas e mecanismos lingüísticos, verbais e não verbais, são utilizados pelos interlocutores na produção das trocas conversacionais para a negociação do significado da interação? O projeto Comunicação é saúde: transformando encontros de serviço de saúde em contextos para a cura busca caracterizar a natureza da interação verbal e não verbal nos processos comunicativos entre profissionais e clientes em contextos institucionalizados de serviços de saúde. A metodologia interdisciplinar da Análise Interacional da Conversação analisa gravações de interações entre profissionais e clientes em uma gama de contextos, tendo como objetivo caracterizar os diversos gêneros discursivos característicos desse domínio discursivo, bem como descrever os aspectos tipológicos e as suas capacidades de linguagem dominantes. A micro-análise verbal e não-verbal descreve processos, pistas de contextualização, estratégias comunicativas e mecanismos lingüísticos verbais e não-verbais dos interlocutores no processo de negociação do significado das interações de trabalho.


O subprojeto Representações da doença por pacientes e profissionais na interação em contextos de saúde tem como tema as identidades e representações sociais de profissionais e de seus pacientes em interações em contextos de serviços de saúde. O que o paciente relata e o que e como o médico considera importante são problemas presentes nesse tipo de interação. O médico é parte fundamental no processo da cura, por isso, a interação entre médico-paciente deve ser feita de maneira a atender às necessidades do enfermo. Os estudos sociolingüísticos interacionais são importantes para a compreensão dos papéis sociais que se constroem no momento da interação. Analisar de que modo o discurso é empregado pelo emissor e de que maneira esse discurso é compreendido pelo receptor revela muito da competência comunicativa. Além disso, levar em consideração os fatores extra-linguísticos também ajuda na análise da interação médico-paciente. Os papéis pré-construídos por ambos os interactantes podem favorecer ou dificultar a comunicação. Os estudos linguísticos surgem nesse contexto com o intuito de analisar as relações comunicativas e elucidar de que modo e em que momento ocorrem falhas nessa comunicação. Realizar esse projeto é importante para conhecer as representações e identidades dos profissionais. Esse conhecimento é fundamental para a própria cura da doença, uma vez que a pesquisa pretende, ao conhecer mais da interação médico-paciente, contribuir para melhorá-la. Além disso, executar esse trabalho é importante para a iniciação científica através de um trabalho prático de análise e interpretação dos fatos. O objetivo aplicado da pesquisa, além dos já descritos acima, é preparar subsídios para a formação profissional. Apresentamos, a seguir, algumas considerações excertas do relatório de execução da pesquisa. O estudo se desenvolveu seguindo o seguinte plano de trabalho: Plano de trabalho dos bolsistas de ic – Leitura e resenha dos textos indicados pelo orientador. – Reuniões semanais (duração de 2 horas) com orientador para discussão do material estudado e das tarefas da pesquisa. – Pesquisa bibliográfica, realizada em bibliotecas e na Internet. – Trabalho de campo de coleta, transcrição dos dados. – Análises preliminares e finais de aspectos da pesquisa. – Apresentação de comunicações em congressos e eventos similares. – Preparação de artigo para publicação e apresentação em congresso. – Apresentação do trabalho no congresso de iniciação científica e em congressos similares. Apresentamos abaixo o cronograma da primeira fase da pesquisa:


O plano a seguir são trabalhos que ainda serão executados com a continuação do projeto:

No item a seguir, será especificado o que foi feito e como foi realizada pesquisa. Aqui serão apresentadas em detalhe algumas etapas e os métodos utilizados nesta pesquisa, envolvendo o treinamento dos bolsistas, as coletas e transcrição dos dados e as análises preliminares dos dados. Atividades realizadas Uma pasta foi criada contendo todo o material teórico necessário para a pesquisa. Com base nesse material, era dada a continuidade da pesquisa através de resumos e fichamentos. Outros eventos também serviram como complementação para a pesquisa. Treinamento da equipe Diversas leituras foram previamente organizadas e feitas para que a equipe pudesse ter uma base teórica dentro da metodologia da análise da conversação e sociolinguística interacional no instante de se analisar os dados coletados. Após a leitura de livros e artigos, resumos e fichamentos eram feitos com o intuito de organizar as ideias. Além das leituras, palestras e conferências acerca do tema foram vistas. Após essa etapa, passou-se à coleta de dados. Gravações no contexto da saúde foram feitas para que se pudessem analisar as interações médico-paciente. As conversas foram coletadas pelos alunos da Pós Graduação que fazem parte do Projeto Comunicação é Saúde: transformando encontros de serviço de saúde em contextos para a cura. Encontros semanais com duração de duas horas eram realizados com o orientador para a discussão do material estudado e das tarefas de pesquisa. Além disso, reuniões com toda a equipe do projeto de pesquisa (mestrandos, doutorandos) também eram realizadas com o objetivo de debater, analisar os dados coletados e esclarecer as possíveis dúvidas. Além das leituras e dos fichamentos e resumos, os bolsistas participaram também de oficinas e palestras. A palestra e oficina realizada pelo Prof. Pedro Garcez da UFRGS sobre Metodologia e Práticas de Pesquisa Interpretativa em Linguística Aplicada no VI Simpósio de Estudos Linguísticos do Programa de Pós-Graduação em Letras da UFF em 05/11/08 colaborou decisivamente para o desenvolvimento do projeto , uma vez que esclareceu, através de sua abordagem, métodos e conceitos relativos à linguística sociointeracional. Em tal oficina, foram tratados os seguintes assuntos: produção de conhecimento, quando se trata de produzir conhecimentos sobre as ações


dos membros de uma comunidade de prática social, que vivem em sociedade e atuam em grupos sociais e em comunidade de prática há a necessidade de se fazer um levantamento censitário; vieses das tradições, a busca de relações de causa e efeito, a crença em relações biunívocas entre forma e função e a busca de estabelecimento dessas relações, a ontologia das ações sociais; as dificuldades contemporâneas, representação etnográfica, a ética da pesquisa etnográfica, métodos etnográficos, etnografia nas condições do mundo de hoje. A palestra A mediação e a prática de avaliação proferida pelo prof. Paulo Cortes Gago (UFJF/UERJ) também contribuiu para a pesquisa em termos de teoria. A palestra Micro-análise das interações terapeuta-paciente realizada pelo prof. Alain Blanchet no dia 16/10/08 corroborou para o acréscimo do repertório de conhecimentos dos bolsistas no que diz respeito às interações do ponto de vista da sociolinguística interacional. O projeto segue uma linha de pesquisa embasada na metodologia da Análise da Conversação sob uma perspectiva sistemática comparativa, tomando a conversação como unidade central da comunicação humana. A linguagem é vista como forma de conduta social, isto é, procura-se descrever e explicar as atividades sociais desempenhadas através da linguagem, pela identificação de padrões relacionados com as diferentes atividades organizacionais. Sendo assim, a metodologia apóia-se em uma análise da conversação crítica e funcional, não só descritiva, mas também explicativa do significado social dos processos e produtos das interações de trabalho. A análise sociolingüística interacional é de base interpretativa e etnográfica. Um dos principais objetivos da análise sociointeracional é compreender a linguagem da interação social. A microanálise etnográfica retrata a interação humana imediata como atividade coletiva de indivíduos em relacionamentos institucionalizados que, como eles ocorrem na vida diária localmente e de maneira recorrente, constituem reprodução e transformação de Coleta dos dados Foram feitas gravações de áudio de interações (consultas e atendimentos) entre profissionais e clientes em diferentes contextos de prestação de serviços de saúde, tais como hospitais, clínicas, consultórios, postos de saúde. Com base nas etapas já realizadas, conforme cronograma acima, um banco de dados preliminar foi formado com os seguintes dados:


Os dados a serem analisados são gravações feitas no contexto da saúde por alunos da Pós Graduação que fazem parte do Projeto Comunicação é Saúde para que se possa analisar de que maneira a interação médico-paciente constrói a identidade e a representação social. Para uma análise detalhada da linguagem da interação verbal e não verbal seguem-se alguns procedimentos como revisar, ouvir e ver os dados várias vezes para que os mínimos detalhes possam ser captados. Formatação do banco de dados A formatação e digitalização do banco de dados são atividades que estão sendo desenvolvidas e que terão seguimento conforme a continuação da pesquisa. Elas seguirão o modelo de transcrição adotado pela análise sociointeracional da conversa, como se vê no quadro abaixo:

(Fonte: Colóquio “Transcrição e análise de dados linguístico-interacionais: questões teóricas e metodológicas”. IEL/Unicamp – 24 e 25 de abril de 2008. Pedro Garcez, UFRGS/CNPq).


Sistematização e adaptação do banco de dados para o formato da análise interacional do discurso Nem todas as transcrições seguem o modelo da análise sociointeracional da conversa (afixado acima). Por isso, as transcrições feitas num primeiro momento serão adaptadas seguindo a metodologia da análise sociointeracional da conversa. Digitalização dos dados Preparar as transcrições e incluir as gravações originais (vozes e imagens) dentro de transcrições multimodalizadas (ou seja, que envolvem não só o texto escrito como também trazem as vozes e imagens dos participantes das interações) é o próximo passo da preparação dos dados para a microanálise etnográfica da interação. Fases em desenvolvimento e atividades para a continuação da pesquisa Como previa o cronograma, foi elaborado, por cada um dos bolsistas de PIBIC participantes do projeto um mini-projeto individual de pesquisa. Nos mini-projetos de pesquisa dos bolsistas serão enfocadas as representações sociais e as identidades dos profissionais de saúde. O projeto Representações da doença por pacientes e profissionais na interação em contextos de saúde tem como objetivo adquirir um entendimento mais amplo e mais documentado das representações da doença pelos pacientes e profissionais da saúde, além de analisar de que modo as identidades dos profissionais da saúde são construídas através da interação médicopaciente. O médico e o profissional da saúde são vistos, frequentemente, como mercenários, preocupados somente com os lucros e não com o paciente como ser humano. Além disso, outros fatores, como o avanço tecnológico, contribuem demasiadamente para que o médico se afaste de seu paciente. Ele passa a tratá-lo como uma coisa, como se estivesse diante de um experimento e não de um ser humano. Passa-se, então, a preocupar-se com as técnicas e deixa de lado o foco no paciente, havendo cada vez menos contato entre ambos. O que se verifica é um ensino nas faculdades de Medicina que prioriza a objetividade, o raciocínio analítico-científico e que rechaça a fala desconexa, difusa e narrativa dos pacientes. Ou seja, a formação médica possui uma preocupação com a técnica em detrimento do lado humanista. O objeto de estudo são as conversas no contexto da saúde, tendo como intuito uma compreensão mais ampla e mais documentada do modo como a doença é representada por pacientes e profissionais da saúde. Os mini-projetos individuais de pesquisa têm como tema as identidades e representações sociais de profissionais e de seus pacientes em interações em contextos de serviços de saúde. O que o paciente relata e o que e como o médico considera importante são problemas presentes nesse tipo de interação. Analisar de que maneira essas diferenças nos enquadres interacionais contribuem para o avanço do tratamento também é uma preocupação dos projetos. Para isso, serão também gravadas as narrativas dos pacientes e as versões dos profissionais de saúde sobre o que constitui a doença. Entrevistas com profissionais de saúde serão também conduzidas. Serviços de saúde são vistos aqui numa dimensão mais ampla, envolvendo profissionais médicos, dentistas, nutricionistas, enfermeiros, psicólogos, atendentes, auxiliares administrativos e agentes comunitários de saúde. Entre os participantes da pesquisa incluem-se outros professores do departamento, interessados na mesma linha de pesquisa, alunos de pós-graduação, na linha de pesquisa do Discurso e Interação e Estudos Aplicados de Linguagem, alunos de graduação em projetos de Iniciação Científica e profissionais de saúde envolvidos.


Conclusões Na primeira parte pesquisa, os bolsistas realizaram leituras, fichamentos, resumos e coleta de dados. A próxima etapa consiste em transcrever os dados coletados conforme a análise sociointeracional do discurso, digitalizar os dados para a análise microetnográfica da interação e realizar as análises finais da pesquisa. Para tanto é necessário a continuidade da pesquisa, devido ao caráter da metodologia sociointeracional da pesquisa, que não é somente uma pesquisa bibliográfica, mas também de coleta e sistematização dos dados. A transcrição de dados exige tempo, é um trabalho meticuloso. Além disso, faltam equipamentos para a realização do trabalho. Como computadores, impressoras, gravadores, câmeras de vídeo e espaço físico para os encontros das reuniões, tarefas e trabalhos da pesquisa. Estes equipamentos agilizariam e facilitariam a pesquisa. Existem outras etapas já em andamento. O novo cronograma prevê:

Para a realização desse cronograma serão necessários recursos para que a pesquisa seja feita com mais velocidade e produtividade. O que a Análise Interacional do discurso/conversa da prática profissional médica revela? Os dados preliminares da pesquisa já corroboram as críticas de Cassel (1979) in The Subjective in Clinical Judgement, sobre a postura do atendimento médico: “A maior queixa das pessoas a respeito de seus médicos é de que eles não as ouvem. Ouvir significa não apenas quais os seus sintomas, mas também o que eles significam para os pacientes...Não apenas os sintomas, mas também a totalidade dos significados e a ação que segue esses significados são a doença.... “Mas, para que a informação seja útil, o médico precisa compreender as preocupações do paciente - compreender não apenas qual é a questão, mas o que a questão significa.”

Despertar essa consciência nos médicos e demais profissionais da saúde sobre a importância da qualidade da comunicação como parte integrante do seu próprio trabalho é uma tarefa primordial que a pesquisa enseja. Com isso a análise interacional do discurso/conversa da prática profissional médica estaria dando sua pequena contribuição para resgatar os objetivos essenciais da prática médica, como nos sugere Pellegrino(1979) em The Anatomy of Clinical Judgement: “Medicina, então, é todas as três - ciência, arte e virtude sinérgica, integralmente unidas nas atividades diárias do médico. Desarticular um dos membros dessa tríade dos outros é desmembrar a Medicina - cuja característica essencial é a relação especial que une ao outro. Quando isso acontece, aí pode existir um cientista, um artista ou um prático, mas não um médico”.


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O GÊNERO NOTÍCIA POLICIAL EM TERESINA: ALGUMAS CONSIDERAÇÕES SÓCIO-DISCURSIVAS José Nilson Santos da COSTA FILHO1 (Universidade Federal do Piauí)

RESUMO: Neste trabalho, nos baseamos em Bakhtin (2003) para discorrermos sobre enunciados, gêneros do discurso e dialogismo, buscando tratar desses conceitos de forma entrelaçada. Para a noção de tema, nos alicerçamos em Bakhtin (1997) e Bakhtin (2003), ressaltando a necessidade de não confundir tal conceito com o conceito de conteúdo ou assunto. Aplicamos esta teoria analisando a notícia policial “Tribunal anula julgamento de delegado e manda a novo júri”, veiculada no dia 13 de dezembro de 2008, pelo jornal teresinense Diário do Povo. Adotamos aspectos como o dialogismo, a tematização dos objetos de discurso referidos, o estilo e a composição desta matéria e que relação estes aspectos têm com o posicionamento valorativo em notícias policiais. Percebemos que a forma de construção dos enunciados – o estilo, o tema e a composição – está intimamente ligada a interesses das esferas da comunicação discursiva, ou melhor, da própria empresa jornalística que veicula as notícias. PALAVRAS-CHAVE: Gêneros do discurso; notícia policial; sócio-discursividade.

ABSTRACT: In this work, we rely on Bakhtin (2003) to discuss language, genres of discourse and dialogism, trying to address these concepts so intertwined. For the notion of theme, we rely on Bakhtin (1997) and Bakhtin (2003), emphasizing the need not to confuse this concept with the concept of content or subject. Apply this theory by examining the police report “Tribunal anula julgamento de delegado e manda a novo júri”, broadcast on december 13, 2008, the newspaper “Diário do Povo”, of Teresina. We aspects such as dialogism, is one of the objects of such speech, style and composition of this matter and that these aspects have relation with the position value in police news. I noticed that the construction of the sentence - the style, theme and composition - is closely linked to the interests of discursive spheres of communication, or better, the company’s own newspaper carrying the news. KEY WORDS: Genera of discourse; police news; socio-discursive. 1Aluno do programa de Mestrado Acadêmico em Letras da Universidade Federal do Piauí.


Anais do II Congresso Internacional de Estudos Linguísticos e Literários na Amazônia (CIELLA)

1. Introdução A notícia policial ainda goza do status de gênero jornalístico puramente neutro, tendo apenas o intuito de “dar notícia” de um acontecimento social, sem introduzir qualquer espécie de juízo de valor. Todavia Bakhtin já alertava para o fato de que é impossível fazer uso da língua de modo que não se ponha um posicionamento valorativo, via linguagem, ao mundo. Após a nossa análise pretendemos ter demonstrado esta impossibilidade, mesmo num gênero que ainda hoje é visto como lugar isento de posicionamento valorativo. Contudo, antes de chegarmos a este objetivo principal, precisamos passar necessariamente pela nossa fundamentação teórica. Como o nosso intuito também é tecer algumas considerações a respeito do gênero discursivo notícia policial e de sua relação com o meio social – a nossa análise tem pretensões sócio-discursivas –, de início, discorremos sobre o conceito de enunciados presente em Bakhtin (2003), levando em consideração os elementos que constituem estas unidades concretas do emprego da língua em situações efetivas de comunicação discursiva. Como passo seguinte, tratamos da noção de gêneros do discurso, também em Bakhtin (2003), tentando fazer a distinção entre estes e os enunciados e caracterizando-os, sem deixar de perceber a sua relação com as esferas sociais. Reservamos ainda uma seção específica para tratar das noções de dialogismo (Bakhtin, 2003) e de tema (Bakhtin, 1997). Noutro ponto do trabalho, empreendemos uma análise da notícia policial “Tribunal anula julgamento de delegado e manda a novo júri”, veiculada pelo jornal teresinense Diário do Povo, do dia 13 de dezembro de 2008. A partir desta notícia, buscamos fazer uma análise que se volta para outros enunciados anteriores e para outros posteriores, na tentativa de entender as relações da notícia que é centralizada em nossa análise com outros enunciados. 2. Fundamentação teórica A concepção bakhtiniana de enunciado Para Bakhtin (2003), enunciados são a realização (oral ou escrita) única e concreta da língua ao ser utilizada pelos integrantes das diversas esferas da atividade humana, sendo que os mesmos enunciados refletem as condições específicas e as finalidades destas esferas. Daí o caráter diversificado desses enunciados, já que são também diversos os campos da atividade humana. Essas finalidades e especificidades são expressas tanto pelo conteúdo temático, quanto pelo estilo e ainda pela estrutura composicional desses enunciados. Quanto à relação entre língua (enunciados) e sociedade (esferas, campos), Bakhtin (2003: 268) diz que “Os enunciados e seus tipos, isto é, os gêneros discursivos, são correias de transmissão entre a história da sociedade e a história da linguagem”. Deste modo, conhecer os enunciados produzidos numa dada esfera da atividade humana nos possibilita aprofundar nosso conhecimento a respeito desta esfera. Bakhtin defende ainda que para se compreender o funcionamento dos gêneros do discurso é necessário se compreender a “natureza geral do enunciado” (2003: 263), que, segundo o autor, é “complexa” e “profunda”. Conhecer a natureza geral dos enunciados, a unidade real da comunicação discursiva, significa entender as particularidades dos diversos gêneros do discurso, ou “gêneros dos enunciados”. Bakhtin passa, então, aos aspectos que caracterizam o enunciado em diferenciação com a oração. Primeiro ele afirma que considerar o ouvinte como um ser passivo – visão de fluxo único da fala – diante da recepção de um enunciado é uma pura “ficção”, que deturpa completamente o processo complexo e amplamente ativo da comunicação. Assim Bakhtin introduz a concepção de posicionamento ativo e responsivo por parte do ouvinte, afirmando que compreender um enunciado é portar-se de forma ativa e responsiva diante do mesmo, e que toda compreensão efetiva é marcada pela introdução de resposta.

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Bakhtin afirma que um dos traços fundamentais a ser observado nos enunciados é a alternância dos sujeitos do discurso, o que, segundo o autor, delimita as fronteiras de um enunciado. A alternância é variável de gênero para gênero: dá-se de forma evidente, clara e simples no diálogo real, e de forma bem mais complexa em gêneros artísticos e científicos, no entanto, de modo algum pode deixar de existir. No que concerne à diferença entre enunciado e oração, Bakhtin (2003: 277) afirma que “os limites da oração enquanto unidade da língua nunca são determinados pela alternância de sujeitos do discurso. Essa alternância, que emoldura a oração de ambos os lados, converte-a em um enunciado pleno”. Esta é a característica que é apresentada como a primeira peculiaridade do enunciado. Assim, apenas contextualizada, ou seja, suscitando resposta, é que a oração figura como enunciado. Outra peculiaridade do enunciado trata-se da conclusibilidade, sobre a qual Bakhtin esclarece que funciona como um aspecto interno da alternância dos sujeitos, já que a alternância só pode se dar porque, em uma dada situação, o falante expõe tudo aquilo que objetiva, por meio do enunciado, e esse tudo é percebido pelo ouvinte. É a consciência da conclusão do enunciado do outro que nos permite responder a ele, ou seja, faz com que assumamos uma atitude responsiva, sendo, então, necessária a compreensão do enunciado como um todo. Ainda segundo Bakhtin, três elementos asseguram a conclusibilidade de um enunciado: a exauribilidade do objeto e do sentido, a intenção discursiva do falante, e as formas típicas composicionais e de gênero do acabamento (conclusão). A exauribilidade é variável dependendo do campo da comunicação discursiva: numa ordem militar, por exemplo, ela é quase plena; já numa obra científica ela é muito relativa. Já a intenção, a vontade discursiva do falante, pode ser percebida no todo do enunciado e determina inclusive a escolha do gênero no qual o enunciado será expresso. Quanto ao outro elemento, as formas estáveis de gêneros do enunciado, Bakhtin assegura que a vontade discursiva só se realiza por meio de um gênero: “A intenção discursiva do falante, com toda a sua individualidade e subjetividade, é em seguida aplicada e adaptada ao gênero escolhido, constitui-se e desenvolve-se em uma determinada forma de gênero” (BAKHTIN, 2003: 282). Desde modo, Bakhtin defende que há a necessidade da ativação de um determinado gênero para que o sujeito falante manifeste a sua vontade discursiva. Bakhtin, no final da explanação, apresenta mais um traço que ele diz ser essencial ao enunciado: o seu endereçamento ou direcionamento. Para Bakhtin, no momento da concepção do enunciado, o seu sujeito de discurso já concebe um ouvinte, ou melhor, tem a concepção de um destinatário, que não precisa ser um outro bem definido. Bakhtin (2003: 301) diz que “Cada gênero do discurso em cada campo da enunciação discursiva tem a sua concepção típica de destinatário que o determina como gênero”. Em relação ao tema do enunciado, em Os gêneros do discurso, Bakhtin (2003: 289) afirma que “cada enunciado se caracteriza, antes de tudo, por um determinado conteúdo semântico-objetal. A escolha dos meios lingüísticos e dos gêneros do discurso é determinada, antes de tudo, pelas tarefas (pela idéia) do sujeito do discurso (ou autor) centradas no objeto e no sentido”. Retomaremos este ponto relativo ao tema na seção em que abordamos este aspecto de forma mais detalhada. Algo mais que Bakhtin destaca estar presente nos enunciados, como uma outra característica, é o elemento expressivo, que determina inclusive a composição e o estilo: a escolha dos recursos lexicais, gramaticais e fraseológicos do enunciado. A expressão bakhtiniana (ou valoração) é entendida como “a relação subjetiva emocionalmente valorativa do falante com o conteúdo do objeto e do sentido” (BAKHTIN, 2003: 289). Na nossa análise buscamos abordar essa relação entre o estilo e a valoração por parte do enunciador (a empresa jornalística) em relação ao objeto de discurso a que a notícia policial se refere. Os gêneros do discurso Quando os enunciados de uma determinada esfera da atividade social humana são visto como recorrentes em relação ao seu tema, estilo e composição, estes enunciados são entendidos como pertencentes a um determinado gênero. Assim, os gêneros do discurso são como um

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conjunto de enunciados que apresentam características temáticas, estilísticas e composicionais relativamente comuns. Foi por conta destas considerações, baseadas em Bakhtin, a respeito da noção de gêneros de discurso, que achamos por bem colocar em primeiro lugar, nesta nossa explanação, a concepção bakhtiniana de enunciado, uma vez que eles são entendidos como os constituintes dos gêneros. É sobre a noção de gêneros do discurso como tipos relativamente estáveis de enunciados que buscaremos discorrer nas linhas que se seguem. Como os enunciados, os gêneros estão intimamente ligados às esferas da atividade humana e, assim, aos campos da atividade comunicativa humana. Como o campo da atividade humana é bastante diverso, essa diversidade também se torna propriedade dos gêneros do discurso. É por isso que as primeiras palavras de Bakhtin, relativas ao tratamento dos gêneros do discurso, dão conta da diversidade destes, que vão desde o diálogo comum, cotidiano, até o romance de muitos volumes. Estes são considerados gêneros do discurso por serem constituídos por enunciados (cada romance individualmente) que apresentam as propriedades gerais de qualquer enunciado (natureza verbal dos enunciados e suas características) das quais tratamos na seção anterior. Algumas afirmações de Bakhtin (2003) dizem respeito à extrema heterogeneidade dos gêneros do discurso, o que, segundo ele, torna difícil definir a natureza geral dos enunciados. Bakhtin também trata dos gêneros do discurso em relação à intencionalidade dos seus sujeitos. O autor (2003: 272) expõe que cada gênero discursivo “pressupõe diferentes diretrizes de objetivos, projetos de discurso dos falantes ou escreventes”. Deste modo, o intuito discursivo do sujeito se realiza primeiramente na escolha de um gênero de discurso. Quanto a isto, Bakhtin (2003: 283) ainda diz que “a vontade discursiva individual do falante só se manifesta na escolha de um determinado gênero”. A defesa de que só se usa a língua por meio da utilização de um determinado gênero está em todo o texto do autor, quer na caracterização de enunciado, quer na caracterização de gênero. Desse modo, percebemos que Bakhtin é bastante enfático quanto a esta idéia de que somente nos expressamos por meio de um gênero: qualquer enunciado que produzamos poderá ser inserido em um determinado gênero do discurso específico; os enunciados não podem ficar ‘flutuando’ no universo sócio-discursivo, sem que estejam dentro dos limites de um gênero, seja ele qual for. Para o autor, a nossa expressão lingüística se dá “apenas através de determinados gêneros do discurso, isto é, todos os nossos enunciados possuem formas relativamente estáveis e típicas de construção do todo” (BAKHTIN, 2003: 282, destaques do autor). Quanto a este aspecto, queremos considerar, na tentativa de diferenciar gênero de enunciado, que os gêneros do discurso podem ser vistos como conjuntos, que são compostos por elementos, enunciados, sendo que todos os seus enunciados apresentam características relativamente comuns. Assim podemos comparar, por exemplo, um determinado gênero ao alfabeto de uma língua, sendo o gênero o conjunto das letras; e as letras que o constituem (seus elementos) são os enunciados. Deste modo, apesar de uma letra A ser diferente de um B, e de estas serem, ainda, igualmente diferentes de todas as outras letras do alfabeto, elas têm uma certa natureza comum que as coloca num mesmo conjunto, o das letras; do contrário extrapolariam os limites do seu conjunto, e fariam parte de um outro, como o dos números, por exemplo. Todavia estes elementos, do mesmo modo que qualquer elemento que figure como enunciado, não podem está fora de um gênero, qualquer que seja ele; não há, a nosso ver, na concepção sócio-discursiva dos gêneros, enunciados que não estejam envoltos pelos limites caracterizadores de um gênero, seja ele qual for. O diagrama abaixo pretende esclarecer a nossa explanação a respeito dos gêneros. O retângulo representa o conjunto de esferas da atividade humana; é o conjunto universo. As elipses representam os gêneros do discurso, sendo as letras e números que estão no interior destes gêneros seus enunciados.

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Tema geral: Línguas e Literaturas: Diversidade e Adversidades na América Latina

Diagrama 1: Esfera da atividade humana, gêneros do discurso e enunciados

A parir deste diagrama, suponhamos que A, B, C e D são notícias policias que foram publicadas por jornais diferentes em um mesmo dia. A, B, C e D não são os mesmos enunciados, ou seja, são relativamente diferentes entre si, mas suas diferenças não são capazes de fazer com que os mesmos extrapolem os limites que delimitam o gênero ao qual fazem parte: o gênero discursivo notícia policial, a elipse da esquerda, por exemplo. Se suas características fossem outras, eles fariam parte de outro gênero, como o gênero discursivo editorial; por exemplo, elipse da direita. Quanto às letras e numerais que estão acompanhados por um asterisco, eles representam a impossibilidade de existência no emprego efetivo da língua, ou seja, não existem na efetiva comunicação discursa. Tal constatação deriva-se do fato de que só nos comunicamos por meio de enunciados concretos, os quais estão inseridos em um determinado gênero; os enunciados constituindo os gêneros. Desta forma, já que os enunciados sempre fazem parte de qualquer que seja um dos gêneros, por meio dos quais nos comunicamos na comunicação real, então E*, F*, G*, 5*, 6* e 7* só podem ocorrer dentro do sistema lingüístico, visto de forma abstrata, extraído das situações de comunicação efetiva, ou seja, não podem ser enunciados. O dialogismo como aspecto característico dos enunciados Bakhtin apresenta a concepção de que os enunciados são verdadeiras formas de atividade responsiva a outros enunciados. Isto nos faz discorrer, ainda que de forma rápida, sobre a noção de dialogismo, já que pretendemos fazer menção a este aspecto quando estivermos no nosso exemplo de análise. Pretendemos, na seção de análise, demonstrar que a notícia analisada busca interpelar leitores (especializados e não-especializados) na tentativa de influenciar inclusive a produção de outros gêneros, como o documento que irá representar a próxima decisão do juiz a respeito do caso. Quanto à questão do dialogismo, sentimos a necessidade de apresentar passagens que permeiam de forma enfática todo o texto bakhtiniano em questão, como “Cada enunciado é um elo na corrente completamente organizada de outros enunciados” (BAKHTIN, 2003: 272), “Todo enunciado é um elo na cadeia da comunicação discursiva” (p.289) e “Todo enunciado concreto é um elo na cadeia da comunicação discursiva de um determinado campo” (p.296, grifos nossos). Baseados nisto, iremos buscar reconstituir o diálogo presente no gênero discursivo notícia policial, a partir da análise de um enunciado, o qual servirá de ponto de partida em relação a enunciados anteriores e posteriores. Partindo dos trechos citados acima, percebemos que, na visão de Bakhtin, todo enunciado pressupõe a existência de outros, com os quais dialoga: polemiza, concorda, discorda, faz ressalvas ou

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complementações, etc., mesmo que esta conversa não seja explícita ou de fácil recuperação. Assim mesmo um romance, que pode parecer completamente distinto da réplica oral cotidiana, é um ‘elo na cadeia da comunicação discursiva’. Nas palavras de Bakhtin (2003: 297) Cada enunciado é pleno de ecos e ressonâncias de outros enunciados com os quais está ligado pela identidade da esfera da comunicação discursiva. Cada enunciado deve ser visto antes de tudo como uma resposta aos enunciados precedentes de um determinado campo (aqui concebemos a palavra “resposta” no sentido mais amplo): ela os rejeita, confirma, completa, baseia-se neles, subentende-os como conhecidos, de certo modo os leva em conta.

Assim, mesmo que alguns gêneros pareçam dificultar a percepção destas relações entre seus enunciados, tentaremos sondar a rede de relações que se estabelecem a partir de enunciados produzidos num determinado campo da atividade humana. Antes disso faremos algumas considerações a respeito da noção de tema em Bakhtin. O tema como elemento componente dos gêneros do discurso Tratar a questão do tema como elemento constitutivo dos enunciados não é uma tarefa pouco árdua. Primeiro porque, em Os gêneros do discurso, Bakhtin pouco se deteve à questão do tema. Segundo, porque o conceito geralmente nos leva a tomá-lo apenas como sinônimo de conteúdo ou assunto, o que nos parece, caso ajamos assim, ser uma redução da noção de tema para Bakhtin. Como já se falou, em Os gêneros do discurso, Bakhtin dispensa pouca atenção à questão do tema, limitando-se a apresentar umas poucas passagens que focalizam este conceito, que é tão importante à caracterização dos gêneros do discurso. Trouxemos aqui algumas dessas passagens na tentativa de entender de forma mais fiel a concepção bakhtiniana de tema. Bakhtin (2003) fala, por exemplo, no tratamento aos gêneros do discurso, em “considerações semântico-objetais [ou] (temáticas)” (p.282); afirma que “cada enunciado se caracteriza, antes de tudo, por um determinado conteúdo semântico-objetal” (p.289); para caracterizar o enunciado, fala ainda que este é “acabado e com sentido concreto1 – do conteúdo de um dado enunciado” (p.291). É por conta dessa concretude e atualização do sentido para cada situação que o tema é irrepetível. Em outro trecho, Bakhtin diz: “o enunciado, seu estilo e sua composição são determinados pelo elemento semântico-objetal e por seu elemento expressivo, isto é, pela relação valorativa do falante com o elemento semântico-objetal do enunciado” (p. 296). Deste modo, entendemos que esse “conteúdo semântico-objetal” do enunciado, de que fala Bakhtin, não pode ser visto apenas como o assunto, ou conteúdo, de um determinado enunciado, já que a noção de tema de Bakhtin está associada não somente ao conteúdo, mas também à expressão valorativa a respeito deste conteúdo. Sendo assim, tematizar, no sentido bakhtiniano, é também atribuir sentido (valorar) e não apenas fazer referência a um conteúdo, ou assunto. Assim o tema é algo único e novo a cada enunciado, sendo por isso impossível de ser repetido. Cada vez que nos referimos a um objeto de discurso o abordamos de forma distinta, pois não é possível atribuirmos um sentido idêntico a ele. Em outras palavras, o tematizamos de forma diferente, por algum motivo (ideológico, religioso etc). Diferente do tratamento dado ao conceito de tema em Os gêneros do discurso, a questão é abordada de forma bem mais detida em Tema e significação na língua. Neste texto, o autor afirma que qualquer que seja o enunciado, como um todo, possui um “sentido definido e único”, uma “significação unitária”; a esse sentido particular de um enunciado em um dado emprego é que Bakhtin (1997) dá o nome de tema. A sua conceituação, no entanto, é comparativa: o tema em relação à significação. É, portanto, por meio desta distinção que buscaremos dá continuidade à nossa abordagem do tema bakhtiniano. Em Os gêneros do discurso, é inserida, pelo tradutor do livro de Bakhtin, neste trecho citado, uma indicação de nota de esclarecimento que diz: “No livro Marxismo e filosofia da linguagem, o sentido concreto do enunciado é determinado terminologicamente como seu tema” (BAKHTIN, 2003, 450). 1

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Em relação à significação, Bakhtin (1997) afirma que esta noção está relacionada a elementos lingüísticos, ou seja, é concernente apenas ao próprio sistema da língua, à palavra dicionarizada, funcionando, então, como um “aparato técnico para a realização do tema”. Desta forma, significação são “os elementos da enunciação2 que são reiteráveis e idênticos cada vez que são repetidos” (BAKHTIN, 1997: 129). Já o tema, por seu turno, individual e não-reiterável, pode ser percebido apenas no enunciado completo, podendo pertencer a uma única palavra apenas se esta funcionar como um enunciado pleno. A respeito do tema, Bakhtin (1997: 131) esclarece que este é a “significação contextual de uma dada palavra nas condições de uma enunciação completa”. Do que discorremos até agora, percebemos que a significação está na latência das palavras, no interior do sistema lingüístico, e o tema no emprego efetivo do mesmo, e por isso é irreiterável, já que só é possível no enunciado, no emprego concreto da língua, que também não se repete. Quanto a esta distinção, Bakhtin, defendendo que tema e significação, no entanto, devem ser sempre relacionados, não sendo possível enxergar uma ‘fronteira’ nítida entre estes conceitos, afirma que A maneira mais correta de formular a inter-relação do tema e da significação é a seguinte: o tema constitui o estágio superior real da capacidade lingüística de significar. De fato, apenas o tema significa de maneira determinada. A significação é o estágio inferior da capacidade de significar. A significação não quer dizer nada em si mesma, ela é apenas um potencial, uma possibilidade de significar no interior de um tema concreto (BAKHTIN, 1997: 131, grifos do autor).

O apelo à inter-relação entre tema e significação nos faz entender que elementos lexicais, por exemplo, com suas significações, apresentam um determinado sentido específico, (utilização temática, nas palavras de Bakhtin) em uma dada situação, num enunciado particular; significa ainda que a expressão do estilo de um enunciado, por meio da seleção lexical, pode indicar determinadas apreciações, como defendemos em nossa análise. Bakhtin afirma ainda que somente a compreensão ativa dos enunciados permite-nos compreender o tema, ou melhor, que o tema só é acessível por meio de um ato de compreensão ativa e responsiva por parte do interlocutor. Podemos inferir, então, que se não nos portamos ativamente diante de notícias policiais (ou de qualquer outro gênero), não estamos compreendendo o seu tema, mas apenas o seu assunto, ou seja, captamos apenas o conteúdo que é referido naquele enunciado, sem percebermos a apreciação que é dada ao mesmo. No entanto, para Bakhtin, compreender ativamente um enunciado é ter conosco o “germe da resposta”: “Compreender a enunciação de outrem significa orientar-se em relação a ela, encontrar o seu lugar adequado no contexto correspondente” (BAKHTIN, 1997: 131-132). Assim, vamos tentar entender o contexto da notícia policial analisada, para tentarmos compreender o seu tema, e não apenas termos a visão reducionista do seu conteúdo. Em outras palavras, buscaremos o porquê de uma certa notícia, num dado contexto sócio-discursivoideológico. 3. Um exemplo de análise do gênero notícia policial Rodrigues (2005: 170) afirma que nos gêneros jornalísticos, como um todo, a interação entre o autor e o leitor ocorre em espaço e tempo físicos diferentes e, além disso, não se dá de pessoa para pessoa, ou seja, é mediada ideologicamente pela empresa (a autora utiliza “esfera”) do jornal, tendo ainda uma certa periodicidade (diária, semanal) e validade prevista (vinte e quatro horas nos jornais diários; de uma semana noutros suportes etc.). Deste modo, ao caracterizarmos o gênero notícia policial, não podemos deixar de falar do seu espaço e de seu tempo de “validade”. A tradução de Marxismo e filosofia da linguagem, a partir do francês e do inglês, por razões da própria flutuação terminológica presente em toda a obra de Bakhtin, apresenta ‘enunciação’ e ‘enunciado’ como fazendo referência ao mesmo fenômeno, ou seja, ao emprego concreto e singular da língua, o que vimos até aqui tratando apenas como enunciado. Para evitar problemas de entendimento, continuaremos utilizando apenas o termo ‘enunciado’, e as ocorrências da palavra ‘enunciação’ aparecerão apenas em citações direta da obra citada, devendo, no entanto, ser entendidas como enunciado, ou seja, como emprego único e efetivo da língua.

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No corpo do jornal, o gênero discursivo notícia policial é inserido na seção de polícia, ou, mais especificamente, na página denominada Polícia. Seu status de novidade, presente também nos outros gêneros veiculados no suporte jornalístico, como se citou, têm duração de um dia, tempo limite em que uma nova edição do jornal é lançada ao meio social. A notícia policial se refere a acontecimentos sociais, mas também pode fazer referência a outra notícia – já publicada no mesmo jornal ou noutro suporte – ou a um outro gênero, como decisões judiciais: por exemplo, um habeas corpus, a publicação de induto natalino, ou a abertura de um inquérito etc. Mas, na maioria das vezes, a notícia, com sua busca pelo caráter de novidade, faz referência a um acontecimento social sem mencionar outros gêneros de discurso como ‘atravessadores’. Feitas estas considerações preliminares, pretendemos continuar a nossa análise tecendo algumas considerações a respeito do dialogismo presente na notícia policial que é apresentada abaixo. A análise desta notícia nos parece fecunda, sobretudo pelo fato de o mesmo objeto de discurso que nela é referido, o delegado em relação a um crime, já ter sido tematizado em situações anteriores e numa situação posterior. A notícia policial é a que se segue, publicada pelo jornal Diário do Povo, no dia 13 de dezembro de 2008: Tribunal anula julgamento de delegado e manda a novo júri §1 O Tribunal de Justiça do Estado anulou o julgamento do delegado Wendel Reis Costa Araújo, titular da delegacia do 11º Distrito Policial, no Bairro Piçarreira, na zona Leste de Teresina. Ele havia sido condenado a 13 anos de reclusão pelo Tribunal Popular do Júri e o advogado Nazareno Thé, que patrocinou a defesa, havia recorrido da sentença. §2 O delegado Wendel Reis foi indiciado em inquérito, denunciado pelo Ministério Público e pronunciado pela justiça como acusado de autoria do assassinato do vendedor ambulante Ricardo Seabra Pereira, delito ocorrido em um trailer localizado no bairro Três Andares, na zona sul de Teresina. Ele se apresentou espontaneamente poucos dias depois do crime e contou que o crime aconteceu de forma acidental. §3 A instrução criminal foi feita e o delegado Wendel Reis foi levado a julgamento popular sendo condenado pela justiça, mas o delegado (sic) Nazareno Thé recorreu da sentença alegando que a (sic, entenda-se ‘existe’) quesitação da possibilidade de o crime ter acontecido de forma culposa, ou seja, negligência, imprudência e imperícia. As razões do recurso foram apresentadas posteriormente por outros advogados. §4 Ao ser distribuído, o desembargador Edvaldo Moura ficou como relator que agora decidiu pela nulidade do julgamento e o delegado deverá ser julgado outra vez pelo Tribunal do Júri. Delegado paga pensão à mulher e filha da vítima §5 O delegado Wendel Reis, de forma espontânea, decidiu pagar pensões à esposa e a filha de Ricardo Seabra. A decisão foi levada ao conhecimento da justiça que a homologou e até hoje vem cumprindo de forma integral. Vale ressaltar que essa decisão foi tomada muito antes do seu julgamento pelo Tribunal do Júri. §6 Wendel Reis era amigo pessoal da vítima e garante que não tinha nenhum motivo para matá-la, fato que levou a defesa a levantar durante o seu julgamento a tese de homicídio culposo e, como os integrantes do conselho de sentença não acataram, o advogado – com aval do acusado – recorreu.

Como dissemos, nossa primeira intenção aqui é justamente ver essa notícia como um enunciado que representa um dos elos da cadeia discursiva. Então, antes de qualquer coisa, temos que considerar alguns acontecimentos sócio-discursivos aos quais essa notícia está relacionada. O acontecimento social primeiro que mais tarde iria possibilitar o surgimento dessa notícia foi o cometimento de um crime que envolveu, especificamente, o delegado referido nesta matéria e a pessoa assassinada. Não podemos deixar de destacar que tal acontecimento, de certo, deu origem não apenas ao gênero notícia policial, mas a outros gêneros, até mesmo de outras esferas, que não a jornalística. Após a constatação do acontecido, foi feito um chamado à polícia; na delegacia foi lavrado um boletim de ocorrência; este foi necessário para a abertura de um inquérito e assim por diante, sem contar as conversas de barzinho a respeito do caso, os debates sobre abuso de poder de autoridades etc. Apenas na esfera jurídica, até o julgamento do caso, certamente foi grande o número de gêneros que foram acionados para fazer referência ao acontecimento mundano que ocorreu na noite do crime. Todavia entre os vários enunciados que surgiram a partir do acontecimento, foram produzidas, na esfera jornalística, algumas notícias. Essas sim, no meio midiático, foram possivelmente os primeiros

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enunciados mostrados ao público leitor relacionados ao ocorrido. Exemplos destes enunciados são as noticias policiais “Delegado mata vendedor com um tiro”, Meio Norte, 07/09/2003; “Delegado mata amigo com um tiro e é caçado pela Polícia”, Diário do Povo, 07/09/2003; e “Delegado acusado de matar trabalhador”, O Dia, 07/09/2003. A notícia analisada faz referência à anulação do julgamento do delegado. Deste modo tal notícia dialoga justamente com a decisão do juiz responsável pelo caso – ressalta-se novamente que tal decisão só é efetivada por meio de um gênero, que foi escrito e assinado, e, assim, formalmente concretizado, concretizando também um novo acontecimento social, relacionado a acontecimentos anteriores. Mas a anulação do julgamento dará origem a novos gêneros, pois o caso precisa ser novamente julgado. E é justamente porque a anulação de um julgamento terá outras conseqüências (outro julgamento) que a notícia policial que analisamos aqui foi produzida, ou seja, esta notícia prevê a ocorrência de um novo gênero com o qual ela busca dialogar. Desta forma tal notícia tem um duplo direcionamento: um em relação ao que já ocorreu e outro em relação ao que vai acontecer. Assim o propósito discursivo desta notícia é justamente mostrar para os leitores do jornal que o delegado merece ser absolvido, e, mais que isto, tentar influenciar a decisão do juiz responsável pelo caso. Em qualquer um dos intuitos, o fim é justamente causar compadecimento. Mas como percebermos este propósito discursivo específico nesta notícia? Uma forma pode ser por meio do estilo que é empregado na mesma. Na notícia acima, encontramos vários termos específicos do campo do discurso jurídico, como os termos alegando3 (§3) quesitação (§3), nulidade (§4), conselho de sentença (§6) e aval (§6), que geralmente são substituídos, nas notícias policiais, por sinônimos ou expressões mais conhecidos pelos leitores menos especializados. Como estes termos não passam por uma adequação nesta notícia, somos levados, então, a crê que os sujeitos sociais de primeira instância que se busca alcançar por meio da notícia analisada não são leitores comuns, mas aqueles que estão envolvidos no processo que trata da acusação ao delegado: são o juiz, os advogados de acusação etc. Assim, podemos inferir que a mesma tem o intuito de apresentar uma defesa do advogado e não apenas fazer referência à anulação do julgamento do mesmo. Isto é visto pelo fato de que a empresa jornalística, neste caso, toma a fala de um campo (da comunicação jurídica) e porta-se deste campo, assimilando a fala da defesa do delegado e apresentando a mesma ao meio social em que circula. Quanto à intenção de convencer o juiz a tomar uma decisão favorável à absolvição do delegado, temos a recorrência de ênfase a uma espécie de ‘boa vontade’ e ‘boa índole’ do delegado acusado. Vemos isso em trechos como: “Ele [o delegado] se apresentou espontaneamente poucos dias depois do crime” (§2), “O delegado Wendel Reis, de forma espontânea, decidiu pagar pensões à esposa e a filha de Ricardo Seabra. A decisão foi levada ao conhecimento da justiça que a homologou e até hoje [Wendel] vem cumprindo de forma integral. Vale ressaltar que essa decisão foi tomada muito antes do seu julgamento” (§5) e “Wendel Reis era amigo pessoal da vítima e garante que não tinha nenhum motivo para matá-la” (§6). Poderíamos, a partir desses trechos, nos perguntar: a quem vale ressaltar, justamente, essas informações? Quanto a este ponto, e mais uma vez recorrendo a Rodrigues (2005: 173), a autora, em certo trecho de seu trabalho citado, afirma que “a finalidade discursiva do artigo não se orienta especificamente para a apresentação dos acontecimentos sociais em si (como no gênero notícia)”. A remissão ao gênero notícia como um gênero que se orientaria especificamente para a apresentação dos acontecimentos sociais em si parece-nos significar ‘inocência’ – e que é realmente comum, em se tratando de notícias –, por reduzir o poder que os enunciados têm nos diversos campos da atividade humana. Tal constatação, em qualquer estudo que analise os gêneros do discurso, também parece resumir demais a perspectiva de Bakhtin a respeito dos gêneros e dos enunciados em relação ao meio social, uma vez que o próprio Bakhtin (2003: 289) afirma que “Um enunciado absolutamente neutro é impossível”. O termo alegar é tomado na notícia analisada por seu emprego próprio do campo jurídico, já que é, neste caso, uma ação do advogado de defesa.

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No entanto não é por acaso que ainda se faz esse tipo de referências ao gênero (neutro?) notícia (e de forma mais acentuada ainda à notícia policial). A própria ideologia da esfera de atividade na qual o gênero é produzido e de onde se faz circular (a esfera jornalística) tem este intuito camuflador de remeter à notícia um caráter de neutralidade. É o próprio caráter ideológico do gênero notícia em relação à impessoalidade que faz com que o leitor não busque juízo de valor neste gênero, ou seja, busque apenas o conteúdo, mas não o tema. A própria mídia e estudos estruturalistas desse gênero construíram essa visão ao abordar a notícia pelo viés único da estrutura (composição). Aqui vale ressaltar que por muito tempo se viu, e hoje ainda se vê, a notícia como aquele gênero neutro, que “dá notícia” sobre um acontecimento e que responde a perguntas como o quê, quando, como, onde e por quê? Contrariando esta aparência, percebemos que a notícia não apenas faz referência a um objeto de discurso, mas o tematiza, ou seja, o apresenta expondo o seu posicionamento, o posicionamento (ideológico) do jornal em relação àquilo que é referido. Quanto a isto, percebemos ainda que o jornalista pouco interfere no modo de construir a notícia, sendo a empresa jornalística o verdadeiro enunciador dos textos ali veiculados. Quanto à composição, podemos perceber que esta notícia faz uso de um recurso de certa forma comum no meio jornalístico – o boxe (§§ 5 e 6) – mas que seu emprego não se dá por acaso, haja vista que as “informações” adicionais contidas na notícia a respeito do delegado o tematizam de forma valorativa. Desta forma, este boxe, que pode ser visto como um gênero separado, em nosso caso não será analisado assim, uma vez que o mesmo faz parte da mesma intenção discursiva (e além disso a apresenta de forma mais evidente ainda) da notícia policial. Deste modo, este boxe que é agregado à notícia tem o intuito de fazer a defesa do delegado ao deixar clara a necessidade de se atentar para a boa índole do acusado. A respeito disto podemos observar alguns trechos, como o próprio título do boxe “Delegado paga pensão à mulher e a filha da vítima”, e “até hoje vem cumprindo [o pagamento da pensão] de forma integral” (§5), ou ainda “Wendel Reis era amigo pessoal da vítima” (§6). Quando ocorreu o homicídio, em 06 de setembro de 2003, os três jornais teresinense apresentaram o crime no dia seguinte. No entanto o jornal Diário do Povo foi o mais incisivo em relação à postura do delegado na noite do crime, insinuando inclusive uma necessidade de expulsão do mesmo delegado do quadro da Polícia Civil piauiense. Quando da publicação desta matéria, o delegado ainda não tinha um advogado. Por outro lado, na ocasião em que o delegado se apresentou à polícia, o responsável por sua defesa já era um advogado que veicula seus serviços na página de polícia do jornal referido. Percebemos, então, na matéria relativa ao depoimento do delegado (09/09/2003), que já há uma forma bastante diferente de o jornal tematizá-lo: colocando inclusive um boxe em que aparece o advogado defendendo o seu cliente. A relação da notícia analisada aqui (“Tribunal anula julgamento de delegado e manda a novo júri”) com outras notícias que a seguem é justamente o silêncio da empresa jornalística em relação ao delegado, referido nas matérias veiculadas anteriormente pelo mesmo jornal. Os outros dois jornais teresinenses de maior alcance publicaram no dia 18 de dezembro de 2008 notícias policiais dando conta de que o mesmo delegado foi flagrado, por meio de imagens, recebendo dinheiro de uma pessoa que havia sido surpreendida dias antes em um delito. Os dois outros jornais colocaram as notícias policiais a respeito do delegado como destaque de suas páginas de polícia e fizeram chamadas em suas capas, enquanto o jornal Diário do Povo sequer fez menção ao caso, aparecendo na página policial um gabarito do vestibular realizado em Teresina. Neste caso não se pode deixar de perceber que o silêncio representa o que há de mais evidente na atitude protecionista do jornal Diário do Povo em relação ao acusado; se ainda é possível um trocadilho: cliente de seu cliente. 4. Considerações finais A partir da análise que empreendemos, podemos perceber que realmente há uma relação dialética entre língua e sociedade, ou, mais especificamente em nosso caso, entre os enunciados e

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os campos da atividade humana de onde emanam e circulam estes mesmos enunciados. Pudemos constatar que interesses subjacentes à estrutura verbal interferem na forma de construção dos enunciados, mas tal interferência inevitavelmente deixa marcas nestes, marcas tanto no estilo, quanto na composição, que terminam por nos indicar a forma específica como um determinado objeto de discurso é avaliado, ou seja, percebemos o tema destes enunciados; em nosso caso a notícia policial. Deste modo, entendemos que a utilização de certos elementos verbais, como o emprego do advérbio “espontaneamente”, como recurso estilístico, termina por ‘desestabilizar’ a notícia policial analisada, pois deixa rastros lingüísticos de que a tematização nesta notícia tem o intuito de apresentar o objeto de discurso “delegado Wendel” de forma positiva, e, numa análise comparativa, nos permite ver que o mesmo objeto de discurso apresentado na notícia é tematizado de forma diferente em outros enunciados, tanto do mesmo jornal quanto de jornais diferentes. Assim fica reconhecido que os gêneros de discursos não são estáveis. A instabilidade, neste caso, se dá por todos os elementos mencionados acima: tanto pelo estilo empregado, pela forma explícita lingüisticamente de posicionamento valorativo diante de um determinado objeto discursivo; quanto pela composição, ao ser inserido na notícia um boxe no intuito de apresentar informações favoráveis à defesa do delegado; e ainda pelo tema, que é sinônimo de avaliação positiva do objeto de discurso referido na notícia. Referências BAKHTIN, Mikhail (Volochinov). Tema e significação na língua. In: ______. Marxismo e filosofia da linguagem. Trad. Michel Lahud e Yara Frateschi Vieira. 8 ed. São Paulo: Hucitec, 1997. BAKHTIN, Mikhail. Os gêneros do discurso. In: ______. Estética da criação verbal. Trad. Paulo Bezerra. 4 ed. São Paulo: Martins Fontes, 2003. RODRIGUES, Rosângela Hammes. Os gêneros do discurso na perspectiva dialógica da linguagem: a abordagem de Bakhtin. In: MEURER, J. L.; BONINI, Adair; MOTTA-ROTH, Désirée (orgs.). Gêneros: teorias, métodos e debates. São Paulo: Parábola, 2005.

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NARRATIVAS ORAIS DE CASTANHAL: DO NORDESTE BRASILEIRO AO NORDESTE PARAENSE José VICTOR NETO (Faculdade da Amazônia)

RESUMO: As narrativas orais correntes na cidade de Castanhal-PA aproximam-se muito de outras narrativas coletadas na região Nordeste por renomados pesquisadores, a exemplo de Jerusa Pires Ferreira, Francisco Assis Lima e Câmara Cascudo. Tal fato pode ter relação direta com a vinda de retirantes oriundos do Ceará para a colonização da região Nordeste do Pará durante o primeiro ciclo da borracha, no século XIX. Tal perspectiva leva-nos a lançar um novo olhar sobre a cultura amazônica, buscando destacar a heterogeneidade cultural desta região, e perceber a contribuição dos retirantes que migraram para as terras Amazônicas durante o século XIX, bem como as transformações ocorridas nas referidas narrativas, como resultado da inter-relação entre os diferentes grupos humanos que constituem a região. PALAVRAS-CHAVE: Narrativas; Oralidade; Nordestinos; Migração.

RESUMEN: El actual narraciones orales en la ciudad de Castanhal-PA son muy similares a los otros relatos recogidos en el Nordeste por investigadores de renombre, como Jerusa Pires Ferreira, Francisco Assis Lima y Câmara Cascudo. Esto puede estar directamente relacionado con la venida de retirantes de Ceará, a la colonización del Nordeste de Pará, durante el primer ciclo del caucho en el siglo XIX. Esta perspectiva nos lleva a lanzar una nueva mirada sobre la cultura amazónica, con el objetivo de resaltar la diversidad cultural de esta región, y entender la contribución de retirantes que emigraron a tierras de la Amazonía en el siglo XIX y los cambios en estas narraciones, como resultado de la interrelación entre diferentes grupos humanos que constituyen la región. PALABRAS CLAVE: Narrativas; Oralidad; Nordestinos; Migraciones.


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O interesse em pesquisar a possível migração de um repertório narrativo do Nordeste brasileiro ao Nordeste paraense, a partir das narrativas orais coletadas no município de Castanhal, surgiu ainda durante as pesquisas realizadas por ocasião de meu trabalho de conclusão de curso de graduação, intitulado Memória insone: narrativas orais dos vigias de Castanhal, orientado pela Prof. ª Msc. Ana Alice de Melo Felizola, no qual discorro acerca da atividade narrativa empreendida por um grupo de vigilantes noturnos no centro da cidade de Castanhal, no Pará. Durante a pesquisa de meu trabalho de conclusão de curso de graduação, causaram-me certa surpresa as fortes semelhanças que as narrativas coletadas em Castanhal guardavam em relação às narrativas orais que correm o sertão nordestino. Tais observações levaram-me a formular a hipótese de que a presença dessas narrativas no município de Castanhal poderia ser fruto dos fluxos migratórios ocorridos durante os séculos XIX e XX, durante os quais uma imensa leva de nordestinos, principalmente provenientes do Ceará, veio a povoar as áreas correspondentes à Região Bragantina do Pará, fugindo das fortes secas ou mesmo atraídos pelas promessas de prosperidade nos seringais da Amazônia. E é justamente nesse contexto de migrações nordestinas, impulsionadas pela economia da borracha e por um discurso oficial apoiado na idéia de progresso e desenvolvimento, que surge o núcleo de povoação que futuramente viria a se tornar a cidade de Castanhal, como conseqüência do assentamento dos retirantes no entorno da Estrada de Ferro de Bragança, na construção da qual muitos deles chegaram a trabalhar. Os resultados obtidos a partir de uma intensa pesquisa bibliográfica mostraram-se bastante reveladores, e constituem parte integrante de minha dissertação de mestrado, intitulada Narrativas orais de castanhal migração, ressignificação e contra-discursos à homogeneização cultural, durante a qual procurei fundamentar a hipótese de migração de narrativas orais do Nordeste brasileiro ao Nordeste paraense, bem como propus uma reflexão acerca das metodologias de pesquisa oral atualmente vigentes nos principais projetos de pesquisa oral na Amazônia paraense. Trato aqui, no que concerne aos referidos projetos, especificamente de duas ausências: a desconsideração das migrações nordestinas para a formação da cultura popular na Amazônia; e a desatenção para com a presença de contos populares na Amazônia, em virtude da preferência quase que exclusiva pelo trato das narrativas mítico-lendárias como forma de entender a cultura amazônica. As narrativas orais coletadas junto aos vigilantes narradores da cidade de Castanhal apresentam características bastante diversas das narrativas míticas comumente estudadas no Estado do Pará por projetos de pesquisa científica, a exemplo do Projeto IFNOPAP, apresentando as primeiras correspondências com algumas narrativas coletadas no Nordeste brasileiro. Algumas das narrativas castanhalenses contêm em seu corpus elementos que remetem de modo direto à “terra das secas” e, de acordo com minha hipótese, migraram para cá trazidos pelos retirantes nordestinos durante os ciclos migratórios de ocupação e exploração da borracha. Um desses elementos de ligação entre as narrativas coletadas em Castanhal e as narrativas coletadas no Nordeste diz respeito aos resquícios medievais, que ainda hoje sobrevivem na Literatura de Cordel e nos Contos Populares. Acerca dessa persistência, a Professora Jerusa Pires Ferreira, em seu livro Cavalaria em cordel (1993), estuda as novelas de cavalaria que correm o Nordeste, em forma de folheto, como uma forte evidência da conservação de um vasto repertório de procedência medieval na literatura popular: “do confronto genético resultou o observar de uma atuação, que tipifica o poeta popular e uma verdadeira volta à Idade Média, à gesta e aos seus propósitos e andamentos” (FERREIRA, 1993, p.116). Entre as narrativas coletadas em Castanhal, há uma grande quantidade de histórias em que figuram reis, rainhas, princesas, castelos, espadas e demais elementos pertencentes ao repertório medieval, como nas narrativas estudadas pela professora Jerusa. Tais ocorrências são bastante comuns aos popularíssimos contos de fadas, como os dos Irmãos Grimm e os de Charles Perrault, que chegaram a nós por meios impressos. Especificamente com referência a esse ponto, há um trabalho de pesquisa bastante profícuo. Trata-se do trabalho de dissertação de mestrado da professora Renilda Bastos, intitulado Itinerário Poético: do Era uma Vez ao agora. Segundo a professora Renilda Bastos, os contos populares por ela considerados, coletados no município de Bragança, constituem-se em versões paraenses de contos europeus, que teriam chegado à Amazônia através

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da publicação de coletâneas de contos populares traduzidos de renomados escritores, como Charles Perrault e Os irmãos Grimm, em edições que circularam no Brasil no final do século XIX. O caráter intrigante da pesquisa realizada pela professora Renilda Bastos quanto ao que concerne à presença de tais contos na Amazônia paraense fica evidente a partir dos questionamentos acerca das vias de acesso a que permitiram aos contadores paraenses tomar conhecimento dessas histórias: Na tradição oral paraense há a circulação da letra e da voz de forma exuberante, a prova disso é a formação de um acervo de contos coligidos no estado do Pará, prenhe de histórias famosas por sua forma escrita e que o contador paraense teve acesso de alguma maneira (BASTOS, 1999, p.42)

Considero as pretensões de minhas pesquisas como sendo da mesma natureza e intuito das realizadas por Bastos, visto que ambas as pesquisas tratam da migração de contos populares para a Amazônia, sendo que o pressuposto que as diferencia seria apenas quanto à forma com que esses contos aportaram em terras paraenses. Segundo a professora Renilda Bastos, o possível aporte de tais narrativas em terras amazônicas deu-se a partir da publicação do livro Histórias da Dona Baratinha, de Figueiredo Pimentel, que traduziu e publicou na referida obra famosos contos europeus, como os de Perrault, Andersen e Irmãos Grimm. No caso de minha pesquisa, a hipótese levantada defende a chegada desses contos ao Pará através dos migrantes nordestinos, sendo que, a transmissão dos mesmos, segundo tal perspectiva, teria se dado a partir da difusão oral. Não tenho a pretensão de invalidar a excelente pesquisa da professora Renilda Bastos, que por sinal encheu-me de entusiasmo durante a leitura, principalmente pela coerência das assertivas e da hipótese defendida. Parece ter ficado mais do que claro o parentesco entre as narrativas analisadas por Bastos e as versões impressas consagradas por Perrault e pelos irmãos Grimm. No entanto, julgo mais provável que tais narrativas, embora constituam variantes das matrizes impressas aqui consideradas, tenham chegado a terras paraenses por intermédio dos migrantes nordestinos que aqui vieram se assentar em busca de uma vida melhor. Um dos fatores que justificam tal hipótese, como já fora exposto, diz respeito à intensa migração nordestina para a região bragantina do Pará, na qual se situa a cidade de Bragança, onde foram coletadas as narrativas analisadas pela professora Renilda, e que como as outras cidades dessa área, recebeu também muitos nordestinos. Outro dado a se considerar diz respeito à presença das narrativas Manoel e Maria e A madrasta, analisadas pela professora Renilda entre as possíveis variantes das matrizes impressas de O pequeno Polegar e Cinderela, de Charles Perrault, respectivamente. Tais narrativas apresentam versões coligidas no nordeste por Francisco Assis de Sousa Lima – Conto popular e comunidade narrativa (1985) – sob o nome de História do Pescador e por Luis da Câmara Cascudo – Contos tradicionais do Brasil (2004) – com o nome de A menina enterrada viva, respectivamente, cujas características assemelham-se muito às versões paraenses, a meu ver, principalmente no caso de A madrasta, em maior grau do que as semelhanças entre as versões paraenses e as de Perrault. Esse dado pode, com efeito, constituir um indicativo de que, nesse percurso entre a escritura e a versão oral paraense, pode ter havido um intermediário, no caso, o migrante nordestino. Defendo a maior probabilidade de este conto ter vindo do Nordeste para cá, e não o inverso, posto que o fluxo humano de migrantes nordestinos para essa área foi consideravelmente grande, principalmente durante a segunda metade do século XIX até as primeiras décadas do século XX. As narrativas orais que constituem o objeto de pesquisa deste trabalho apresentam correspondência direta com possíveis variantes encontradas no Nordeste brasileiro, anteriormente catalogadas por pesquisadores da oralidade, a exemplo de Luis da Câmara Cascudo, Jerusa Pires Ferreira, Francisco Assis de Souza Lima, Gustavo Barroso, Celso de Magalhães, entre outros. Ao todo, até então, esta pesquisa já pôde atestar a correspondência entre dezesseis narrativas castanhalenses com uma ou mais narrativas coletadas no Nordeste brasileiro, adaptadas à nossa região com o passar do tempo e através de sucessivas narrações, e apresentando já em seu corpus sutis diferenças em comparação às suas possíveis matrizes, caracterizando o processo de ressignificação de que fala a professora Jerusa Pires Ferreira.

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Para melhor ilustrar este processo de ressignificação ao qual me refiro ao falar das narrativas encontradas em Castanhal, pretendo tratar aqui mais detidamente da narrativa oral “d’O padre e o menino”, que tem sido bastante representativa pra se entender as ocorrências narrativas na cidade de Castanhal. A narrativa “d’O menino sabido e o padre”, que aparece publicada de modo quase idêntico em Contos tradicionais do Brasil, de Câmara Cascudo, e em O matuto cearense e o caboclo do Pará, de José Carvalho (salvo por atualizações na linguagem escrita, presentes em Câmara Cascudo), é também bastante parecida com a versão desta narrativa coletada entre os vigilantes noturnos do município de Castanhal. Salvo por pequenas alterações, as versões da narrativa aqui consideradas guardam em comum seus motivos centrais. Tal narrativa figura, também, por entre as primeiras memórias do narrador de Infância, do escritor nordestino Graciliano Ramos, conservando quase intacta uma pequena estrutura em versos que permite identificá-la perfeitamente à versão coletada em Castanhal. Como se sabe, Graciliano Ramos é um escritor nordestino de grande projeção no cenário da literatura nacional. Nasceu em Quebrângulo, sertão de Alagoas e criou-se entre as cidades de Viçosa (AL), Palmeira dos Índios (AL) e Buíque (PE). A narrativa em questão aparece um tanto diluída, embora ainda conserve quase intacta sua estrutura em versos, logo no primeiro conto – intitulado Nuvens – da obra autobiográfica Infância, de Graciliano, por entre as memórias da infância do narrador daquela obra. À versão desta narrativa publicada no livro Contos tradicionais do Brasil, de Câmara Cascudo, foi atribuída pelo autor como fonte o livro O matuto cearense e o caboclo do Pará, de autoria do folclorista José Carvalho, que data da década de trinta. Tanto na versão de Câmara Cascudo quanto na de José Carvalho (que se apresentam quase idênticas), a narrativa em questão apresenta em seu corpus elementos que parecem fazer menção direta ao ambiente do sertão nordestino, a possível “terra das secas”, merecendo, inclusive, um comentário do próprio José Carvalho a esse respeito, como podemos observar: – Menino, quê de teu pae? – Meu pai está no canto dos arrependidos. (O pae, no anno passado, tinha feito um grande roçado e não chovêra, para plantá-lo; neste ano, que não fizera roçado, houvera um bom inverno). (Esta circunstância está a indicar que a história se deu na terra das secas.). (sic) (CARVALHO, 1930, p.81).

A narrativa em questão, considerando-se as três versões da mesma – a coletada Castanhal e a que consta nos livros Contos tradicionais do Brasil, de Câmara Cascudo, e O Matuto Cearense e o Caboclo do Pará, de José Carvalho – trata da história de um padre que, após se molhar todo na travessia de um rio por conta da resposta esdrúxula de um menino acerca de sua profundidade, leva o garoto para morar consigo, a pretexto de educá-lo e alfabetizá-lo. No entanto, as lições do padre mostram ser apenas um pretexto para impingir castigos ao menino, que é obrigado a responder a perguntas aparentemente óbvias, para as quais o padre dá sempre repostas esdrúxulas, castigando-o pelos supostos erros com “bolos” de palmatória. Não suportando mais a vida de castigos, o menino decide vingar-se do padre: prende um pano embebido em combustível (gasolina ou gordura, dependendo da versão) no rabo de um gato, ateia fogo ao mesmo e solta o gato pela casa, causando um incêndio de grandes proporções. Feito isso, o menino foge, proferindo uma frase em versos, na qual se pode ver uma composição com ritmo e rimas simples, utilizando-se de todas as respostas esdrúxulas dadas pelo padre para castigá-lo, o que gera um efeito humorístico. A versão encontrada na obra Infância, de Graciliano Ramos, apresenta algumas variações no que diz respeito ao enredo, talvez pela memória fragmentada, com que o narrador tece sua narrativa, ou talvez por se tratar de outra variante da mesma história, visto que o processo dinâmico de mutação a que estão sujeitas as manifestações de cultura popular gera constantes transformações de seus objetos, o que propicia as atualizações dos mesmos. Segue-se a versão do enredo dada pelo narrador de Infância: Um menino pobre foi recebido caridosamente em casa de certo Vigário amancebado. Temendo ver na rua os seus podres, o Reverendo ensinou ao pequeno uma gíria extravagante que baldaria qualquer indiscrição possível. Afirmou que se chamava Papa-hóstia e à amante deu o nome de Folgazona; gato era papa-rato, fogo era tributo. Esqueci o resto, e não consigo adivinhar por que razão tributo serviu para designar

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Tema geral: Línguas e Literaturas: Diversidade e Adversidades na América Latina fogo. Seguros de que o rapaz não os denunciaria, o padre e a rapariga começaram a maltratá-lo. Não se mencionou o gênero dos maus-tratos, mas calculei que deviam assemelhar-se aos que meus pais me infligiam: bolos, chicotadas, cocorotes, puxões de orelhas. (RAMOS, 1969, p.32)

Em todas as versões aqui consideradas da narrativa oral “O menino sabido e o padre”, mesmo na que figura por entre a obra de Graciliano, o menino vinga-se do padre ateando fogo ao rabo do gato e fugindo em seguida, proferindo os versos finais e deixando para trás o pavoroso incêndio. A versão oral desta narrativa, como já foi dito, foi por mim encontrada no município de Castanhal, durante a coleta em campo realizada por ocasião da confecção de meu Trabalho de Conclusão de Curso. Tive a felicidade de me deparar com a mesma narrativa, como já havia mencionado, transcrita e publicada entre o acervo de narrativas coletadas pelo folclorista José Carvalho, considerando-se as pequenas variações entre uma e outra versão. Na versão de José Carvalho, como também na versão encontrada em Castanhal, os castigos do padre se dão associados às perguntas feitas ao menino e às respostas esdrúxulas dadas pelo vigário, com a intenção de vingar-se por ter-se molhado na travessia do rio; e não como estratégia para ocultar o amancebamento do vigário caracterizado pelo narrador de Infância, como se pode observar: Quando lá chegaram, o padre, armado de uma palmatória, foi ensinar ao menino. – Como é o meu nome? – perguntou. O menino respondeu: – Não é padre? – Padre, não! Papa hóstia! – disse o mestre, e ... bolo! – Como se chama aquilo? – Não é mulher? – Mulher, não! folgazona...– bolo! – E aquilo? – Gato! – Gato, não! – papa-rato... bolo! – E aquilo? – Fôgo! – Fôgo, não! claro-no-mundo! – bolo! – E aquilo? – Agua! – Agua, não!– abundancia... bolo! – E aquilo? – Casa! – Casa, não! – traficancia! ...- bolo! Foi aquelle o primeiro dia de aula (sic) (CARVALHO, 1930, p.81/82).

Tal narrativa apresenta também a pequena estrutura em versos, que constitui a frase final do menino em fuga, após por fogo na casa do padre. É justamente este trecho versificado que constitui o mais evidente elo entre a narrativa oral e a obra de Graciliano, visto ser esta a parte da estrutura da narrativa original que se manteve, com pequena margem de variação. Segue-se a estrutura encontrada na versão de José Carvalho: – Acorde, seu papa-hóstia, dos braços da folgazona, que lá vai o papa-ratos com o claro-no-mundo no rabo, si não accudir com a abundancia, leva o diabo a traficância! (sic) (1930, p.82).

Como já se sabe, a estrutura versificada facilita a memorização e, ao que parece, pôde manter-se entre as memórias mais remotas do então infante narrador de Infância. Acerca dessa questão, Ferreira, em testemunho pessoal presente em seu livro Armadilhas da memória: conto e poesia popular, discorre sobre a retenção parcial de uma narrativa que ouvira quando criança: “Infelizmente não tive condições de reter a forma e linguagem em que foi narrada a estória: ficou somente a seqüência

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cantada”. (1991, p.21). A referida “seqüência cantada” diz respeito a uma pequena construção em versos, com presença de rimas, constituindo parte da história de Dimas e Dimá, ouvida pela professora em sua infância na Bahia. Na obra de Graciliano, o rememorar do trecho em versos por parte do narrador da obra – considerando-se este como sendo um narrador personagem literário, guiado pelo gênio artístico do autor, e não o tipo de narrador de que se tem tratado até então nessa pesquisa – apresenta-se dificultoso e eivado de lacunas. No entanto, apesar dos “buracos” na memória do narrador, então criança, a seqüência em versos preservou ainda, embora mesclada à obra literária de Graciliano, uma estrutura praticamente idêntica à das narrativas orais aqui consideradas. Observemos os trechos da obra que se seguem: Acorde, seu papa... Papa quê? Julgo a princípio que se trata de papa-figo, vejo que me engano, lembro-me de papa-rato e finalmente de papa-hóstia. É papa-hóstia, sem dúvida: Acorde, seu Papa-hóstia, Nos braços de... (RAMOS, 1969, p.31) Levante, seu Papa-hóstia, Dos braços de Folgazona. Venha ver o papa-rato, Com um tributo no rabo Falta meia dúzia de linhas, não chego a reconstituí-las, sei que tendo queimado roupas e móveis, a estória finda assim, furiosamente: Acuda com todos os diabos (RAMOS, 1969, p.33)

Graciliano Ramos dá testemunho da ocorrência da narrativa “O menino sabido e o padre” em sua terra natal, narrada por sua mãe, mesclando em seu texto a estrutura em versos presente na narrativa, que conserva aqui também pequena margem de variação em relação às versões de Castanhal e de José Carvalho, embora com lacunas que tendem a reforçar a pretendida idéia de memória fragmentária e imprecisa dos primeiros anos de vida do autor. A narrativa oral “O padre e o menino” coletada em Castanhal traz em seu corpus um acréscimo bastante interessante, de um trecho que não se encontra nem na versão de José Carvalho, nem nos fragmentos presentes na obra Infância, de Graciliano Ramos. Trata-se de uma pequena seqüência, na qual o menino, para tentar aplacar a ira do padre – que havia se molhado todo por culpa de uma resposta esdrúxula do menino –, oferece-lhe mingau. Após o padre ter tomado uma cuia inteira de mingau, o menino lhe oferece outra. O padre, ressabiado, pergunta ao menino se a mãe dele não iria zangar-se por ele tomar tanto mingau. O menino lhe responde que não, pois havia um rato morto no mesmo e eles iam jogá-lo fora. Irado, o padre ameaça quebrar a cuia na cabeça do menino, que suplica que não o faça, justificando que aquela cuia servia de penico à sua mãe. Durante a pesquisa bibliográfica, tive a satisfação de deparar-me com o referido trecho reproduzido quase que de maneira idêntica em um folheto de cordel, intitulado As Proezas de João Grilo, de autoria de João Ferreira de Lima, cordelista nordestino que viveu durante a primeira metade do século passado. Segue-se o referido trecho na versão de João Ferreira de Lima: Um dia a mãe de João Grilo Foi buscar água à tardinha Deixou João Grilo em casa E quando deu fé, lá vinha Um padre pedindo água Nessa ocasião não tinha João disse: - Só tem garapa Disse o padre: - De onde é? João Grilo lhe respondeu:

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Tema geral: Línguas e Literaturas: Diversidade e Adversidades na América Latina - É do engenho Catolé... Disse o padre: - Pois eu quero! João trouxe numa coité. O padre bebeu e disse: - Oh! Que garapa boa! João Grilo disse: - Quer mais? O padre disse: - E a patroa, Não brigará com você? João disse: - Tem uma canoa! João trouxe outra coité Naquele mesmo momento Disse ao padre: - Beba mais, Não precisa acanhamento Na garapa tinha um rato Estava podre e fedorento! O padre disse: - Menino, Tenha mais educação E por que não me disseste? Oh! Natureza do cão! Pegou a dita coité Arrebentou-a no chão. João Grilo disse: - Danou-se Misericórdia São Bento! Com isto minha mãe se dana Me pague mil e quinhentos, Essa coité, seu vigário É da mamãe mijar dentro! O padre deu uma pôpa Disse para o sacristão: - Este menino é o diabo Em figura de cristão! Meteu o dedo na goela Quase vomita o pulmão! (2001, p. 3-4)

Pode-se observar aqui um bom exemplo da substituição de elementos na narrativa como parte do processo de ressignificação. A substituição da garapa pelo mingau e da coité por uma cuia deu-se, provavelmente, objetivando a inserção de elementos mais familiares às populações da Amazônia. Nesse sentido, a referência à zona rural como “colônia” faz também remissão à história da ocupação humana na zona bragantina, que se deu através da criação de colônias agrícolas, nas quais os nordestinos tiveram uma participação fundamental. Há ainda, no caso da versão castanhalense, substituições e acréscimos de elementos que cumprem a finalidade de atualização não só espacial – a transposição para a Amazônia –, como no exemplo anterior, mas também temporal. Na versão castanhalense, o narrador “Manel” justifica que o padre estava a cavalo por que o lugar que ia visitar seria de difícil acesso a uma moto, veículo esse mais próximo de nós do que dos contemporâneos de José carvalho, cuja versão foi coletada no início do século XX. Embora se considerem as pequenas diferenças entre da versão coletada em Castanhal e a história de cordel, decorrentes do processo de ressignificação, pode-se perceber claramente tratarem-se de versões de uma mesma narrativa. A este trecho de narrativa, antecede um trecho em comum entre versões da narrativa “O menino sabido e o padre” de José Carvalho e a encontrada em Castanhal. Trata-se justamente de um trecho que as interliga, mas que não se apresenta nos fragmentos desta presentes no romance Infância, de Graciliano Ramos. Esta passagem diz respeito ao episódio da pergunta acerca da profundidade do rio, no qual o padre acaba se molhando todo, após obter a resposta esdrúxula do menino. Segue-se o trecho presente na versão de José Carvalho:

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Anais do II Congresso Internacional de Estudos Linguísticos e Literários na Amazônia (CIELLA) O padre perguntou: – Menino, este rio é fundo? – Não! O gado de meu pae passa com água pelas costellas!(sic) O padre foi passar o rio a cavallo e quasi morre afogado; o rio era muito fundo. (sic) (O gado do pae do menino era os patos!) (sic) (CARVALHO, 1930, p.81).

No caso do cordel As Proezas de João Grilo, de João Ferreira de Lima, o interlocutor do menino é um vaqueiro, e não um padre. No entanto, a estrutura interna do referido trecho é idêntica, sendo apenas um pouco mais extensa, se comparada à versão de José Carvalho, visto que no cordel de João Ferreira de Lima, a personagem João Grilo volta ao rio trazendo um rebanho de patos para comprovar a veracidade de sua resposta. Observe-se o seguinte trecho: João perdeu o seu pai Com sete anos de idade Morava perto de um rio Ia pescar toda tarde Um dia fez uma cena Que admirou a cidade. O rio estava de nado Vinha um vaqueiro de fora Perguntou: - Dará passagem? João Grilo disse: - Inda agora O gadinho do meu pai Passou com o lombo de fora. O vaqueiro botou o cavalo Com uma braça deu nado Foi sair já muito embaixo Quase que morre afogado Voltou e disse ao menino: - Você é um desgraçado! João Grilo foi ver o gado Pra provar aquele ato Veio trazendo na frente Um bom rebanho de pato Os patos passaram n’água João provou que era exato. (LIMA, 2001, p. 2)

Há ainda entre as versões da narrativa oral “O menino sabido e o padre”, considerando aqui a versão coletada em Castanhal, a coletada por José Carvalho e os fragmentos da mesma na obra Infância, semelhanças e diferenças no que diz respeito à nomenclatura utilizada para identificar os elementos que compõem as respostas esdrúxulas dadas pelo padre às perguntas feitas ao menino. Tais diferenças, no entanto, constituem simples variações sobre o tema, de maneira que fica claro tratar-se de uma mesma narrativa, ou melhor, de variantes de uma mesma narrativa. Na versão coletada por José Carvalho, padre corresponde a “papa-hóstia”, a água é chamada de “abundância”, o fogo é chamado de “claro-no-mundo” e à freira é dada a designação de “folgazona”. Portanto, a frase final que o menino profere em fuga após incendiar a casa é a seguinte: -Acorde, seu papa-hóstia, dos braços da folgazona, que lá vai o papa-ratos com o claro-no-mundo no rabo, si não accudir com a abundancia, leva o diabo a traficância! (sic) (CARVALHO, 1930, p.82). Já na narrativa oral “O padre e o menino” coletada em Castanhal, a designação dada ao padre é “papa-santo”, a água é chamada de “bonança”, o fogo é chamado de “clarimundo” e a freira, por sua vez, é chamada de “fragazona”. Portanto, na versão da narrativa coletada em Castanhal, a frase final proferida pelo menino em sua fuga é a seguinte: Acorda papa-santo, do braço da fragazona, acode com a bonança, que senão a traficância leva o diabo. (Manel).

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Quanto aos demais elementos que compõem as respostas finais do menino em fuga, ambas as narrativas apresentam-se em comum acordo, considerando-se, é claro, pequenas omissões de elementos presentes em uma e ausentes em outra. A pretensão que guiou a confecção deste artigo foi a de enfatizar a importância do processo de ressignificação para se acessar às narrativas orais coletadas no município de Castanhal, utilizando, para isso, exemplificações construídas a partir de uma abordagem preliminar da narrativa oral “O padre e o menino”. Pretendeu-se também, através da comparação direta entre esta narrativa e as versões da mesma anteriormente coletadas na região Nordeste, reforçar a hipótese de que as narrativas orais que circulam na cidade de Castanhal possam, provavelmente, ter sido trazidas a esta cidade pelos nordestinos migrantes que vieram a povoar a região bragantina. Além da narrativa oral “O padre e o menino”, escolhida para ilustrar a hipótese aqui defendida, há ainda a presença de outras que apresentam correspondência direta com outras narrativas coletadas no Nordeste brasileiro. Devido à extensão que o trabalho iria assumir em decorrência de uma análise mais aprofundada de todas elas, em cotejo com as suas respectivas variantes nordestinas, busquei deter-me apenas na narrativa oral “O padre e o menino”, por ser uma das mais representativas para os propósitos desse trabalho, devido ao número de versões oriundas do Nordeste brasileiro com a qual a mesma se relaciona de modo direto. Mas atestar a pertinência da hipótese aqui considerada, acerca da migração de contos populares do Nordeste brasileiro ao Nordeste paraense, seria apenas uma pequena parte da real tarefa da pesquisa aqui realizada. Muitas das narrativas coletadas em Castanhal apresentam possíveis matrizes européias, sobretudo de origem portuguesa. Uma investigação acerca dos processos pelos quais tais narrativas chegaram da Europa ao Nordeste brasileiro, para depois virem ao Norte do país, bem como a consideração e o cotejo de tais contos com suas supostas matrizes européias seriam bastante esclarecedores para o entendimento mais amplo do repertório narrativo presente na região. Tal empreitada constitui uma tarefa a ser realizada no futuro. Por hora, apenas adentrar por tais caminhos talvez possa apontar um novo norte para as pesquisas orais na Amazônia paraense, e abrir caminhos para a realização de novas pesquisas, ainda mais aprofundadas, sobre o assunto. Referências BASTOS, Renilda do Rosário Moreira Rodrigues. Itinerário Poético: do era uma vez ao agora. Belém: [s.n.], 1999. Monografia (Dissertação de Mestrado em Letras – Estudos Literários) – Universidade Federal do Pará,1999. CARVALHO, José, O Matuto Cearense e o Caboclo do Pará: contribuição ao folk-lore nacional. Belém, of graf, jornal de Belém,1930. CASCUDO, Luis da Câmara. Contos tradicionais do Brasil. São Paulo: Global, 2004. CASCUDO, Luis da Câmara. Literatura oral no Brasil. Belo Horizonte: ed. Itatiaia; São Paulo: Ed. Da Universidade de São Paulo, 1984. FERREIRA, Jerusa Pires. Cavalaria em Cordel: O Passo das Águas Mortas. 2.ed. São Paulo: Hucitec, 1993. FERREIRA, Jerusa Pires. Armadilhas da memória: (conto e poesia popular). Salvador, BA: Fundação Casa de Jorge Amado, 1991. (Casa de palavras, n.º 8) LIMA, Francisco Assis de Sousa. Conto popular e comunidade narrativa. Rio de Janeiro: FUNARTE/Instituto Nacional do Folclore, 1985 LIMA, João Ferreira de. As Proezas de João Grilo. Fortaleza: Tupinanquim Editora/ABC-Academia Brasileira de Cordel, 2001. RAMOS, Graciliano. Infância. 7ª ed. São Paulo: Livraria Martins Editora S/A, 1969.

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DESVENDANDO HOMERO

Jovelina Maria Ramos de SOUZA (Faculdade de Filosofia – UFPA)

RESUMO: Para os gregos antigos, a poesia envolvia todos os elementos constitutivos da tradicional educação aristocrática, sendo Homero seu principal representante. Nossa análise observará a influência da tradição poética no processo constitutivo da cultura grega, tomando como base o papel educativo e normativo da poesia. Nesse sentido, mostraremos que entre os gregos, a poesia sempre foi norteada por determinados valores e princípios, a partir dos quais, Homero definia a ação de seus personagens. Analisaremos o caráter próprio da poesia grega como fato de cultura, centrados em duas perspectivas: a da controvérsia entre os estudiosos de Homero a respeito de sua existência histórica e a do valor do aedo como transmissor das leis e dos costumes, através de seus relatos orais. Destacaremos, sobretudo, sua importância como educador, em uma sociedade em que a escrita ainda não é predominante e as informações, normas e valores fundamentais são repassados através de seus cantos. PALAVRAS-CHAVE: Homero, poesia, aedo.

ABSTRACT: For the Ancient Greeks, poetry summoned all the essential elements of traditional aristocratic education, and Homer was its principal representative. Our analysis will show the influence of the poetic tradition on the constitutive process of Greek culture, focusing on the educational and normative role of poetry. Therefore, we will show that, among the greeks, poetry was always guided by values and principles, and Homer used those to define the course of action of his characters. We will study the particularity of Greek poetry as a cultural fact, focusing on two issues: the controversy among Homer scholars about his historical existence, and the aedo’s function as the communicator of law and customs through oral tales. We emphasize, above all, his importance as educator in a society where writing still wasn’t predominant and, therefore, information, rules, and fundamental values had to be transmitted through poetry. KEY WORDS: Homer, poetry, aedo.


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Desvendar Homero significa, para nós, compreender a importância de suas epopéias na paideía do homem grego. Analisaremos esse aspecto, na Ilíada e na Odisséia, a partir de dois elementos centrais, primeiro, o da retomada da controvérsia entre os estudiosos do educador hegemônico da Grécia, acerca de sua própria existência histórica, segundo, a relevância do aedo para a preservação dos costumes e da cultura grega. 1. Homero ou homéridas A primeira coisa que se exige, em se tratando da compreensão da importância de Homero, ou, caso se queira, das obras às quais está ligado o seu nome, para a formação da identidade cultural dos gregos, é a determinação mais precisa possível dos elementos que envolvem sua figura, independente de toda polêmica em torno de sua existência histórica ou imaginada. É com a finalidade de formar um quadro geral que nos permita certa orientação em relação ao que se convencionou chamar de “questão homérica” que faremos as considerações seguintes. Contemporaneamente, questiona-se a situação temporal do mundo descrito por Homero na Ilíada e na Odisséia. Trabulsi aponta três grandes correntes de interpretação histórica dos poemas homéricos. A primeira dessas correntes, apoiada na tradição histórica, reconhece a descontinuidade entre as descrições do aedo e o resultado das descobertas arqueológicas, contudo julga tratar-se do mundo micênico, em virtude de uma certa continuidade histórica entre o mundo dos palácios e a aurora da cidade grega. Finley, principal defensor da segunda corrente, descarta esta hipótese, pelo fato de não admitir qualquer relação de continuidade entre o mundo descrito nas epopéias e as revelações arqueológicas, situando o mundo homérico entre os séculos X e IX. Já os defensores da terceira corrente, diminuem o alcance das teses acerca das continuidades históricas e relevam o próprio processo de criação poética, seja este individual ou coletivo, pois consideram improvável se obter uma informação precisa acerca de um período em que o meio de preservação da cultura é predominantemente oral (Trabulsi, 2001, p. 19-23). A discussão de fundo dessa problemática, na verdade, sustenta-se na incerteza em saber se as narrativas homéricas possuem mesmo uma base histórica ou não passam de relatos fictícios. Isso nos leva a refletir sobre outro ponto bastante controverso em relação a Homero, que diz respeito a sua identidade e a autenticidade de sua obra. A dúvida entre os estudiosos é se a Ilíada e a Odisséia, escritas com apurado refinamento e senso de percepção, surgidas em um período onde a escrita começava a se estabelecer na Grécia, seriam produção de um único poeta ou de um grupo de poetas, herdeiros da antiga tradição oral que tentam preservar a memória da cultura grega através da escrita, reunidos sob a denominação de Homéridas. Para Romilly, a questão homérica, como é chamada, tornou-se objeto de reflexão a partir da publicação de Conjecturas acadêmicas ou dissertação sobre a Ilíada (1715) do abade d’Aubignac, e, posteriormente, de Prolegômenos a Homero (1795) de Wolf (Romilly, 1984, p. 24). No tratamento dessa questão surgem duas correntes, a unitária e a analista. A primeira defende o pressuposto de que a Ilíada e a Odisséia seriam dois grandes poemas, cada um deles dotado de unidade literária completa. A segunda apregoa a hipótese de essas duas obras não passarem de um arranjo de poemas, totalmente independentes uns dos outros e concebidos em datas diversas (Romilly, 1984, p. 24-25). Ao longo da história da humanidade uma dessas correntes se sobrepõe à outra, não havendo meios de garantir qual seria a mais correta, o que propicia abertura para novas discussões e interpretações. Em um estudo recente acerca dessa questão, West defende a não existência de um poeta chamado Homero, sendo esse um nome fictício, e que a única alusão a este nome, encontrado no século VII, estaria associada não à Ilíada e à Odisséia, mas a uma epopéia extraviada intitulada Tebaida. Sua tese sustenta-se na imprecisão e no distanciamento das datas de circulação da Ilíada e o da Odisséia. Entre o surgimento de uma e outra epopéia, West calcula uma distância de um século a um século e meio, sendo que a Ilíada teria entrado em circulação aproximadamente em 630. Outro ponto a destacar em defesa de sua argumentação diz respeito ao surgimento da crença que Homero seria o autor dessas duas epopéias. Segundo o autor, essa

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tradição iniciou, quando Hiparco, poeta cômico, institui a recitação regular das façanhas contidas na Ilíada e na Odisséia, nas Grandes Panatenéias, isso por volta de 520 (West, 1999, p. 364). Seus argumentos contrários à existência de um poeta chamado Homero reforçam-se, a partir da constatação que, embora fosse usual a prática do anonimato entre as civilizações antigas1, na Grécia arcaica, alguns poetas se identificavam em suas obras, como é o caso de Hesíodo, o primeiro a romper com a antiga regra, assim como Alcman, Safo, Alceu, Teógnis e Sólon. Outro ponto forte de sua discussão se concentra na tendência natural do praticante da epopéia a ser chamado de aedo (aoidós) e não poeta (poietés). Em não sendo o produtor e sim o cantor, torna-se difícil distinguir o verdadeiro produtor do mero intérprete desse canto (aoidé), em virtude de os poetas épicos não serem representados criando poemas, mas apenas reproduzindo os cantos preservados em sua memória pelo poder das Musas, que lhes concedem o dom de falar sobre a ação dos homens e dos deuses (West, 1999, p. 365). Nas epopéias encontradas nesse período encontramos três possibilidades de identificação entre autor e obra. Na primeira, as epopéias são relacionadas não pelo autor, mas pela região da qual são provenientes, como é o caso dos Cantos Cíprios, Fócia, Naupáctia, e, certamente, Ilíada e Pequena Ilíada. Na segunda possibilidade, a identificação se dá pela unidade dos temas, como nas obras Danaides, Phoronis, Alcmeonides. No terceiro modo, são atribuídos nomes de autores às epopéias, como no caso da Pequena Ilíada, em que pelo menos cinco nomes aparecem como seus possíveis autores. Não havendo um consenso em torno de um nome, torna-se impossível conceber que um deles seja o verdadeiro autor da obra. O que existe de concreto acerca de Homero? Para West, se existiu mesmo um poeta grego com esse nome, só pode ter sido o apelido de um poeta anônimo. Homero, cujo significado é refém (hómeros), não parece ser um nome regular na Grécia, não havendo registro dele antes do período helenístico. Quanto à denominação Homéridas, originariamente, os descendentes de Homero recebem de Píndaro uma descrição idêntica à de rapsodo, a de cantores que “costuram” versos. Somente no século V, início do século IV se tornam conhecidos como “uma espécie de associação de rapsodos que recitam a poesia de Homero”2 (West, 1999, 367). Mas, bem antes disso, na segunda metade do século VI, existiu uma companhia de rapsodos chamados Homéridas, que atribuía a origem desse nome a um poeta cego (hómeros) do passado, autor de um conjunto de poemas. A questão agora é saber como os Homéridas poderiam ter existido, se tudo leva a crer que Homero é produto de uma lenda? Isso se torna possível, se pensarmos no sentido do verbo homereîn, encontrar-se com, estar unido junto a, como aparece em Odisséia, XVI, 4683, e, posteriormente, aplicado por Hesíodo em Teogonia, 39 como referência a cantar. Esses dois empregos do verbo sustentam a hipótese de homereîn ser um ideal buscado pelos aedos. Nesse sentido, os vocábulos hómeroi ou homerídai identificariam os praticantes de um “gênero poético”, cuja característica era não tanto a criação, mas a tentativa de ligar, costurar, como os rapsodos, versos entre si. Uma outra hipótese para a origem dos Homéridas seria uma derivação a partir da palavra que designa a assembléia de rapsodos (homáros ou homáris), o lugar de encontro dos poetas para a realização das competições poéticas, como as Panatenéias em Atenas ou as Panionias em Delos, cujos participantes seriam chamados de homérios ou Homéridas. A tese de West, corroborada pela de Durante sustenta a possibilidade de o nome Homero ser uma derivação da palavra Homéridas, e não o contrário, como prega a tradição. Apesar da dificuldade em se justificar a origem do termo Homéridas, o fato é que, entre os poetas gregos dos séculos VIII-VI encontramos uma constante alusão a Homero e é isso que importa considerar. Tratando-se de um Homero real ou de um Homero epônimo, o que parece haver de certo West cita como exemplo, o Antigo Testamento, onde, a exceção do Livro dos Profetas, não conhecemos a autoria dos demais livros. Essa mesma tradição encontramos na epopéia Babilônica, na escrita Ugarítica, na literatura Hitita, no Mahabharata, entre outras obras. 2 Essa definição será encontrada em Píndaro, Neméias, II, 1-2; Platão, Fedro, 252b5; Ion, 530d7; Politéia, X, 599e6; Isócrates, Helena, 65. 3 Esse verbo, afirma West na nota 30, tem um sentido similar ao do verbo symbállomai que também pode significar ir ao encontro de, encontrar; enquanto o substantivo hómera ao de sýmbolon, que se encontra com (West, 1999, p. 374). 1

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é que poetas e pensadores desse período, na medida em que sempre faziam referência à mesma figura, alimentaram em nosso imaginário, consciente ou inconscientemente, a existência de um Homero a quem é possível até associar uma constituição física e localização histórica. Esse processo culmina no reconhecimento e na admiração do lendário poeta jônico nas Panatenaicas, e, posteriormente, nas Délias e nas Panegírias, consagrando-o nessa lenda, ainda hoje reinante entre nós. A despeito de tudo o que foi dito, o que importa é o reconhecimento da importância dos cantos homéricos para entendermos a formação e a fixação de uma cultura própria e exclusiva do povo grego. Inaugurando a tradição mitopoética, a Ilíada e a Odisséia são as fontes de inspiração para Hesíodo e toda uma geração de poetas e pensadores. Pela sua natureza enciclopédica, em virtude de mostrarem-se como o repositório do saber e da tradição, os cantos homéricos são o referencial para pensarmos a consciência e a identidade cultural dos gregos arcaicos. Inscrita no processo de transição, entre a tradição oral e a escrita, a narratividade de Homero, sobretudo a da Ilíada, é marcada pela profunda identidade, como defende Parry, entre discurso e realidade, por se situar em um tempo onde parece inexistir a ruptura efetuada, a partir do séc. VI, entre mito e realidade. Instaurados nessa mescla entre pensamento e realidade, aparência e realidade, passemos a evidenciar, com mais precisão, o papel do aedo no processo formativo dos gregos. 2. O papel do aedo Quando Homero utiliza aoidé, palavra originária do verbo aoidiáo, cantar4, sua pretensão parece ser unicamente mostrar que, em uma sociedade de tradição eminentemente oral, as composições são transmitidas ao grupo na forma cantada. Se tomarmos o Canto I da Odisséia veremos, na narrativa do banquete dos pretendentes de Penélope na casa de Odisseu, que todos estão silenciosamente postados em torno ao aedo, para escutá-lo cantar o retorno dos combatentes aqueus e a série de presságios lançados sobre estes por Palas Atena na volta deles para casa, após a guerra de Tróia. Em seu relato, este dá ênfase especial às façanhas de Odisseu. Penélope, filha de Ícaro, que até então não havia entrado em cena, ouvindo o canto do aedo Fêmio, desce de seus aposentos (I, 328) e, dirigindose a ele, pede-lhe para cantar os feitos dos heróis e dos deuses tão do agrado de todos, de modo que “não prossiga neste canto tão triste” (I, 340), pois o mesmo lhe faz lembrar Odisseu. Em seguida à sua fala, Telêmaco, seu filho, interpela-a mostrando-lhe que Zeus e não o aedo é o responsável pelo destino de cada um dos homens, portanto, a ele não deve ser negado o dom de cantar, “pois entre o povo recebem mais altos louvores os cantos” (I, 351) que falam dos acontecimentos vivenciados por todos e que tornam presentes os fatos mais recentes, no caso, as desgraças dos dânaos no retorno de Tróia. Na postura de mãe e filho podemos observar duas variantes. A intermediação de Penélope, por exemplo, coloca-nos diante de um fenômeno bastante comum na época: o do acordo tácito existente entre o aedo, aquele que compõe o seu próprio canto e seus ouvintes, no qual, o primeiro, na condição de prestador de serviços deve ajustar a sua narrativa à demanda de quem o contratou. Já a intervenção de Telêmaco, além de sensata, vem afirmar a função político-pedagógica do aedos: a de imortalizar os deuses e os heróis através de seus cantos. Educado por poetas, o filho de Odisseu sabe da importância de suas atuações para a preservação “das condutas, dos mores e dos ditames” (Havelock, 1996, p. 138) de sua comunidade. Do mesmo modo, seu pai, o herói astucioso, cujos feitos são cantados na Odisséia, também é apresentado como aprendiz destes preceitos. Nesta obra, Homero inicia o seu relato invocando as Musas, as detentoras da memória, afim de estas recontarem-lhe a saga de Odisseu, desde a invasão de Tróia. O mesmo é apresentado como um peregrino que, “de muitos homens viu as cidades e o espírito conheceu” (I, 1-5) (Trad. Brandão, 2001, p. 23). A invocação inicial da Odisséia coloca-nos diante de um fato inconteste: Homero é plenamente consciente de seu papel político enquanto aedo. Afinal, não é em vão que este inclui em sua narrativa dois representantes desse tipo de composição: Fêmio, cantando para os pretendentes de Penélope na 4

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Encontramos ocorrências do verbo aoidiáo na Odisséia (V, 61; X, 227).

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casa de Odisseu, e o cego Demódoco, membro da corte de Alcino, no banquete em homenagem a Odisseu, no palácio do rei dos feácios, quando o arauto conduz o aedo “a que a Musa tanto amou e deu um bem e um mal: / Dos olhos privou-o, deu-lhe o agradável canto (hedeîan aoidén)” (VIII, 62-64) (Trad. Brandão, 2001, p. 23). Tão logo todos saciaram o desejo de beber e de comer, “a Musa ao aedo impeliu a cantar a fama (kléa) dos guerreiros” (VIII, 73) (Trad. Brandão, 2001, p. 23). Demódoco passa então a relatar a contenda entre Odisseu e o pelida Aquiles, o mais valoroso de todos os heróis homéricos. O glorioso aqueu emociona-se com tais relatos e incita o aedo a cantar o episódio do Cavalo de Pau feito por Epeio com a ajuda de Palas Atena, dentro do qual, astuciosamente, ele introduziu seus guerreiros em território troiano, conseguindo vencer a batalha. Exigente, Odisseu insiste que, “o cantor, por um deus inspirado dê logo começo” (VIII, 499) e cante suas gestas como se ele próprio tivesse estado presente a estes acontecimentos, pois só assim seu canto poderá ser consagrado como divino5. Assim como Penélope tentara, anteriormente, Odisseu persuade o aedo a cantar o que é de seu agrado; este, ciente de suas atribuições, atende o pedido daquele e passa a narrar a invasão de Tróia. A presença de Fêmio e Demódoco em cena parece levar Homero a refletir sobre a posição do aedo na sociedade grega, cuja função seria proporcionar o prazer e o esquecimento das aflições de seus ouvintes através de seu canto. Apesar de suas composições serem consideradas o próprio retrato de seu tempo e de seu povo, Homero, como ninguém, parece ter consciência da influência que os senhores exercem sobre o seu canto. Talvez seja proveniente desta constatação o fato de este concentrar em seus principais heróis o dom do canto. É o caso de Odisseu, na Odisséia e de Aquiles, na Ilíada, ambos aptos a cantar os feitos gloriosos dos heróis. Mas é em Helena que ele concentra, como em nenhum de seus outros personagens, essa conscientização, ao mesmo tempo, do valor do canto e da função política do aedo: o de perpetuar em seus cantos o destino dos heróis gloriosos. Instalado o combate, no Canto VI da Ilíada, Heitor volta à cidade à procura de Alexandre. Ao encontrá-lo deitado em seu palácio, ao lado de Helena, e, portanto afastado do campo de batalha, recrimina-lhes os sentimentos e responsabiliza-os por terem desencadeado tão cruenta guerra entre troianos e aqueus. Diante da ira de Heitor, ambos admitem sua culpa. Helena, porém, além de atribuir aos deuses a responsabilidade de seus atos e de suas posteriores desditas, também tem a consciência de que ela e Alexandre precisavam ter agido impetuosamente para serem cantados pelos aedos: “Triste destino (kakòn morón) Zeus grande nos deu, para que nos celebrem, nas gerações porvindoiras, os cantos (aoidímoi) excelsos dos vates” (VI, 357-358). Pela voz de Helena, Homero reafirma a sua posição de transmissor das leis (nómoi) e dos costumes (éthé) da sociedade grega. Através dela, este se mostra ciente de sua tarefa de educador numa sociedade onde a preservação dos costumes, das tradições e da própria identidade do grupo de língua grega dependem exclusivamente da transmissão de seus relatos orais. O canto de Helena prenuncia, portanto, o destino de seu próprio canto: o de servir como instrumento de conservação e difusão da cultura de sua época. Para uma sociedade não-alfabetizada como a homérica, as composições poéticas têm o efeito de paradigma. Através delas, os jovens aprendem acerca dos eventos passados e presentes de sua comunidade. O fator importante a destacar na análise dos ensinamentos transmitidos oralmente é que estes não devem apresentar um retrato fidedigno dos acontecimentos passados. Os mesmos são invocados apenas na medida em que são exigidos no presente. Para uma comunidade ágrafa, o modelo é continuamente retomado e reajustado de acordo com as necessidades da vida contemporânea, e isto sem deixar de levar em conta a sua diretriz primordial: a de tornar-se instrumento de educação. Quando Fêmio canta a desdita dos dânaos em Ítaca, seu canto tanto é capaz de provocar a tristeza de Penélope como a censura de Telêmaco a sua mãe, pois este sabe o quanto é importante para a educação política dos ouvintes ficarem inteirados dos fatos recentes por intermédio dos cantos dos aedos. Hartog vê nessa cena, a primeira narrativa histórica acerca da guerra de Tróia. Traçando um paralelo entre Ulisses e Demódoco, o mesmo irá determinar ao herói o papel de testemunha, e ao aedo o de historiador, pois apesar de não ter estado presente aos acontecimentos vivenciados por Ulisses, o mesmo torna-os possíveis através de sua narrativa, 2001, p. 36-37.

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Fechando este ciclo de nossa discussão podemos concluir que, a poesia de Homero, numa sociedade pré-alfabetizada como a Grécia, onde surgem a Ilíada e a Odisséia, tornou-se “um veiculo de experiência conservada, de ensinamento moral e de memória histórica” (Havelock, 1996, p. 64). Homero como nenhum outro poeta de sua época mostra-se um profundo conhecedor do complexo sistema ético e político vigente no período arcaico. Resultante desse processo de formação do espírito grego, a poesia de Homero mostra-se como uma fonte inesgotável de valores ético-políticos a serem assimilados e incorporados à prática cotidiana dessa sociedade. Dada a função utilitarista da poesia homérica, a sua capacidade de conservar e transmitir os preceitos e a educação prescritos pela tradição, a mesma assemelha-se a “uma espécie de enciclopédia de ética, política, história e tecnologia que os cidadãos ativos eram obrigados a aprender como a essência do seu preparo educacional” (Havelock, 1996, p. 44). Pensada como uma espécie de enciclopédia social, a poesia homérica mostra-se como o receptáculo do “conhecimento e da sabedoria que a cultura helênica havia acumulado e armazenado” (Havelock, 1996, p. 64). Nesse sentido, ler Homero, é tornar-se inteirado de todo o processo sóciocultural e ético-político de sua época. Referências ADRADOS, Francisco Rodríguez. El mundo de la lírica griega antigua. Madrid: Alianza, 1981. AUBRETON, Robert. Introdução a Homero. São Paulo: DIFEL, 1968 BRANDÃO, Jacyntho Lins. Do épos à epopéia: sobre a gênese dos poemas homéricos. Textos de Cultura Clássica 12 (1990) p. 1-13. CHANTRAINE, Pierre. Dictionnaire étymologique de la langue grecque. Paris: Klincksieck, 1968. CUNLIFFE, R. J. (Ed.). A lexicon of the homeric dialect. Norman; London: University Oklahoma Press, 1963. DETIENNE, Marcel. Os mestres da verdade na Grécia Arcaica. Trad. A. Daher. Rio de Janeiro: Zahar, 1988. _____. A invenção da Mitologia. Tradução de André Telles e Gilza Martins Saldanha da Gama. Rio de Janeiro: José Olympio; Brasília: UnB, 1998. EASTERLING, P. E.; KNOX, B. M. (Ed.) Historia de la Literatura Clásica I: Literatura Griega. Madrid: Gredos, 1990. GERMAIN, Gabriel. Homére. Paris: Seuil, 1958. GÖRGEMANNS, Herwig; LATACZ, Joachin (Ed.) Die griechische Literatur in Text und Darstellung. Band I: Archaische Periode. Stuttgart : Reclam, 1991. HARTOG, François. A história de Homero a Santo Agostinho. Tradução de Jacyntho Lins Brandão. Belo Horizonte: UFMG, 2001. HAVELOCK, Eric. Prefácio à Platão. Trad. Enid Abreu Dobránzsky. São Paulo: Papirus, 1996. HOMÈRE. Illiade. Texte établi et traduit par Paul Mazon, avec la collaborat de Pierre Chantraine, Paul Collart et René Langumier. Paris: Les Belles Lettres, 1937-1938. ______. L’Iliade. Traduction par Eugène Lasserre. Paris: GF Flammarion, 2000. HOMERO. Ilíada. Trad. Carlos Alberto Nunes. Rio de Janeiro: Tecnoprint, s/d. ______. Ilíada, 2v. Trad. Haroldo de Campos. 3. ed. São Paulo: Arx, 2002. HOMÈRE. L’Odissée. Tomes I-III. Texte établi et traduit par Victor Bérard. Paris: Les Belles Lettres (1924) 1972. ______. L’Odyssée. Traduction par C. Garcia. Paris: GF Flammarion, 2001. HOMERO. Odisséia. Trad. Carlos Alberto Nunes. Rio de Janeiro: Tecnoprint, s/d. ______. Odisséia, 3 v. Trad. Donaldo Schüler. Porto Alegre: L&PM, 2007.

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Tema geral: Línguas e Literaturas: Diversidade e Adversidades na América Latina KIRK, G. S. The songs of Homer. London, New York: Cambridge University Press, 1962. LABARBE, Jules. L’Homère de Platon. Paris: Les Belles Lettres, 1987. PARRY, Adam. The language of Achilles. In: KIRK, G. S. Language and Background of Homer. Cambridge : Heffer, 1964, p. 48-67. ROMILLY, Jacqueline. La douceur dans la pensée grecque. Paris: Les Belles Lettres, 1979. ______. Fundamentos de Literatura Grega. Trad. M.G. Kury. Rio de Janeiro: Zahar, 1980. ______. Perspectives actuelles sur l’épopée homérique. Paris : PUF, 1983. SAÏDS, S.; TREDE, M.; LE BOULLUEC, A. Histoire de la littérature grecque. Paris: PUF, 1997. SCHÜLER, Donaldo. A construção da Ilíada: uma análise de sua elaboração. Porto Alegre: L&PM, 2004. WEST, Martin L. The Invention of Homer. Classical Quarterly 49, 2 (1999) p. 364-382.

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A CARTEIRA DE MEU TIO: FICÇÃO E HISTÓRIA EM JOAQUIM MANUEL DE MACEDO Juliana Maia de QUEIROZ (Unicamp)

RESUMO: Este trabalho pretende explorar os principais componentes históricos e fictícios do romance A

carteira de meu tio, de Joaquim Manuel de Macedo, publicado no Rio de Janeiro em 1855. Procuramos observar de que modo a relação entre ficção e história se faz presente nesta narrativa do autor, uma vez que Macedo, além de importante homem de letras no século XIX, foi também político e membro de vários órgãos institucionais na sociedade carioca e esteve diretamente ligado ao Imperador Pedro II. Desse modo, algumas das referências históricas de sua narrativa, tais como a política da conciliação e a constituição de 1824 ganham destaque neste romance especificamente. Além disso, procuramos colocar à mostra outra face do autor de A moreninha, comumente pouco estudada. PALAVRAS-CHAVE: Joaquim Manuel de Macedo; A carteira de meu tio; Ficção; História.

ABSTRACT: This article intends to analyze the main fictional and historical aspects of the novel, A carteira de meu tio, written by Joaquim Manuel de Macedo and published in 1855, in Rio de Janeiro, Brazil. We try to observe the relation between fiction and history in this narrative considering the fact that Macedo, apart from a well-known writer in the 19th Century, was also a politician and a member of important cultural institutions connected to Pedro II, the Emperor. Therefore, some of the historical references turned into fiction in this specific novel, such as the “Conciliation” and the Constitution of 1824 gain another representation in his work. KEY WORDS: Joaquim Manuel de Macedo; A carteira de meu tio; Fiction; History.


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A carteira de meu tio veio à luz em 1855, inicialmente como folhetim em A marmota fluminense, do livreiro-editor Paula Brito, e publicada em volume poucos meses depois de sua estréia no periódico1. Foi pelas mãos do mesmo editor que o público teve acesso à primeira edição em livro desta narrativa de Joaquim Manuel de Macedo que parece ter agradado os leitores cariocas da segunda metade do século XIX, a considerar as três edições da obra ao longo da segunda metade do século XIX. De estilo e estrutura bem diversos de A moreninha (1844), este romance de Macedo merece destaque por colocar à mostra uma face menos conhecida deste importante autor da literatura brasileira oitocentista. Comecemos com o próprio narrador-personagem, o sobrinho, cuja voz em primeira pessoa é anunciada como: EU... Bravo! Bem começado! Com razão se diz que – pelo dedo se conhece o gigante! – Principiei tratando logo da minha pessoa; e o mais é que dei no vinte; porque a regra da época ensina que – cada um trate de si antes de tudo e de todos.2

De saída, vale ressaltar que estamos diante de um narrador bastante diferente de A moreninha (1844), por exemplo, que praticamente pega o leitor pela mão e o guia diante das cenas, locais e pessoas descritas, fazendo-se cúmplice daquele, como pode ser observado, por exemplo, no uso do pronome nós em: “Agora são quatro horas da manhã; o sarau está terminado, os convidados vão retirando-se, e nós, entrando no toilette, vamos ouvir quatro belas conhecidas nossas, que conversam com ardor e fogo” (MACEDO, apud Lajolo & Zilberman, 2002, p. 96). As autoras analisam o quanto Macedo constrói um narrador que tem a função de educar seus leitores, sobretudo, para a leitura do próprio gênero romanesco, uma vez que o romance nacional estava em processo de formação no início dos anos quarenta do Oitocentos no Brasil. Desse modo, a intimidade entre narrador e leitor é concretizada justamente por este quadro descritivo em que ambos tomam parte igualmente, como se estivessem observando ao mesmo tempo aquilo que se narra. De modo diverso, em A carteira de meu tio, o recurso utilizado pelo narrador para garantir certa cumplicidade entre ele e seus possíveis leitores é construído a partir de algo que poderíamos chamar de confissão+confiança: o sobrinho é demasiado sincero desde o início, quando confessa suas idéias mais torpes sobre si mesmo e sobre a política de seu tempo, assegurando assim, paradoxalmente, que o leitor confie em suas palavras, já que ele, ao contrário de todos os outros políticos, não mente, nem naquilo que deveria ser escondido: seu mau-caratismo. Os fatos narrados mostram ao leitor atitudes, sobretudo ações políticas, condenáveis. Assim, enquanto leitor, ele não se identificaria diretamente com o personagem do sobrinho, pois este último se confessa o tempo todo inescrupuloso e vil. Por outro lado, ao ler as reflexões do sobrinho-narrador, poderia se tornar mais simpático às críticas feitas ao sistema político. Os primeiros trechos de A carteira de meu tio citados anteriormente compõem os parágrafos iniciais do romance que, ao invés de um prefácio, possui uma espécie de apresentação, intitulada Introdução e etc, cujo objetivo, além de explicitar o porquê do título e do conteúdo, parece ser mostrar ao leitor, em tom irônico, seu tema central: as críticas à política da época: Senhores, eu sou sem mais nem menos o sobrinho de meu tio: não se riam, que não há razão para isso: queriam o meu nome de batismo ou de família? Não valho nada por ele, e por meu tio sim, que é um

Na edição do Jornal do Comércio do Rio de Janeiro de 16 de janeiro de 1855, Paula Brito anuncia o início deste folhetim: “Esta novela político-joco-séria, trabalho engenhoso de uma de nossas mais bem amparadas penas, principiará nesta sexta-feira e aparecerá regularmente em todos os números da Marmota”. Já em 03 de abril do mesmo ano, Paula Brito voltaria a anunciar A carteira de meu tio, mas agora, além de sua continuidade do folhetim, também disponível em volume: “O primeiro folheto da Carteira de meu tio publicou-se hoje contendo mais de 100 páginas e vende-se a 500 réis, lojas de Paula Brito”. Devido tanto à continuidade desta narrativa de Macedo como um dos folhetins de A marmota, quanto da rapidez com que parte dela foi disponibilizada em um primeiro volume, levantamos a hipótese de que muito provavelmente Paula Brito tenha aproveitado o material já impresso para seu periódico e o preparado em formato brochura. 2 MACEDO, Joaquim Manuel de. A carteira de meu tio. Rio de Janeiro: Garnier, 4ª edição, 1880, p.1. Esta nota tem o objetivo de ressaltar que optamos pela atualização da ortografia em todas as citações, mas mantivemos os sinais ou recursos gráficos, como o uso de aspas, itálico, por exemplo, pois observamos que os mesmos foram mantidos ao longo das edições do século XX que pudemos consultar. 1

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Tema geral: Línguas e Literaturas: Diversidade e Adversidades na América Latina grande homem. Estou exatamente no caso de alguns candidatos ao parlamento e a importantes empregos públicos, cuja única recomendação é neste o ser filho do Sr. Fulano, naquele ser neto do Sr. Beltrano, e até às vezes naquele outro ser primo da Sra. Sicrana. (MACEDO, 1880, p. 4)

As críticas partem sempre do mais amplo, neste caso o apadrinhamento político, ao invés de apontarem para qualquer modo de individualização, a começar pela dupla formada pelo sobrinho e pelo tio, cujos nomes/identidades são suprimidos. Assim, qualquer leitor poderia ser o tio ou o sobrinho e, do mesmo modo, nenhum deles. Nesse sentido, vale a lembrança de outro anúncio da seção do Jornal do Comércio, de janeiro de 1855, em que o anunciante faz questão de frisar que este romance seria cheio de “carapuças bem talhadas, que por servirem a muitos, ninguém as toma para si e com toda a razão”.3 Mas o que narra A carteira de meu tio especificamente? Poderíamos dizer que este romance está centrado na figura do sobrinho e naquilo que ele pensa sobre a política no Brasil de meados do século XIX. Após retornar à terra natal, depois de ter sido financiado pelo tio por vários anos na Europa, é indagado pelo mesmo sobre qual profissão deseja seguir. Diante da confissão ao leitor, mas não ao tio (afinal, ele é fiel ao leitor e não às personagens!), de que sua estadia não havia servido aos estudos, mas sim ao mero divertimento, responde que após muito refletir, chegara à conclusão de que queria ser político: Com efeito, do mesmo modo que sucede a todos os vadios de certa classe, a primeira idéia que me sorria, tinha sido a política! – Mas olha que a política não é meio de vida– observou o velho. – Engano, meu tio! A pátria deve pagar bem a quem quer fazer o enorme sacrifício de viver à custa dela. (MACEDO, 1880, p.8) – Concordo pois com a tua sábia resolução: serás político; mas com a condição de fazeres o contrário do que fazem os grandes estadistas da nossa terra. – Então que é que eles fazem, e que é que eu devo fazer, meu tio? – Eles empregam no Brasil uma governação que aprendem nos livros da França e da Inglaterra; improvisam no mundo novo as instituições do mundo velho, algumas das quais têm tanta relação com as nossas circunstâncias como um ovo com um espeto! (MACEDO, 1880, p. 9-10.)

Embora concorde com a escolha do sobrinho em se tornar político, o tio lança a ele um desafio: uma viagem a ser feita a cavalo pelas províncias do país como forma de aprendizagem política e moral. O sobrinho deve ver o que realmente acontece em sua pátria para agir de forma diversa daqueles que a governam. E como companheira de viagem, ele levará consigo a Constituição do Império do Brasil: – Ei-la aí; eu a deposito em tuas mãos; vai e viaja com ela; observa o que se passa em nossa terra, e compara o que observares com o que ela te disser em teus sábios preceitos: escreve tudo; porque quando a Carteira de teu tio estiver cheia das tuas impressões de viagem, e enfim, voltares a ter comigo, terás já aprendido a grande verdade, a única tábua de salvação do Estado, o remédio santo e exclusivo para curar todos os nossos sofrimentos políticos; isto é, terás reconhecido por experiência que a Constituição nunca foi e não é ainda hoje executada, e que, quando o for, o Brasil será feliz e apreciará devidamente e mais que até agora a sua bela monarquia... E porque não há livro sem título, darei ao que sou obrigado a escrever, o que melhor lhe compete; chamarse-á, pois, A CARTEIRA DE MEU TIO. (MACEDO, 1880, p. 18)

Explicitado está, portanto, o porquê do título e o motivo que rege a viagem empreendida pelo sobrinho: ver a realidade de perto, compará-la às leis e artigos que estão na Constituição de 1824 e fazer anotações em uma pequena caderneta chamada de carteira. Tratar-se-ia, à primeira vista, de uma narrativa de viagens, poderiam supor não apenas os leitores contemporâneos a Macedo, bem como seus sucessores, uma vez que este gênero seduziu alguns de nossos primeiros romancistas. Segundo Flora Sussekind, “percorrer o país, registrar a paisagem, colher tradições: esta a tarefa não só dos viajantes estrangeiros” que aqui estiveram no século XIX, “este o papel que se atribuem também escritores e pesquisadores 3

Cf. Jornal do Comércio. Edição de 24 de janeiro de 1855, seção de anúncios.

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locais à época” (SUSSEKIND, 2006, p. 55). A pesquisadora, no mesmo ensaio, explicita ainda o ideário que se formou no Brasil do século XIX em torno da importância dos relatos de viagens para a instrução dos leitores, a partir, sobretudo, daqueles relatos dos viajantes franceses que aqui circularam, tais como os de Auguste de Saint-Hilaire, Ferdinand Denis e Debret, por exemplo. No entanto, o narrador de A carteira de meu tio evidencia sua postura contrária àquela dos típicos viajantes estrangeiros que por aqui passaram no tempo do Brasil imperial e deixaram registrados em seus diários suas impressões sobre as regiões visitadas. Não se trata de uma viagem de reconhecimento e descrição da natureza local; muito pelo contrário, não há nenhuma referência geográfica dos locais por onde passam as personagens. No romance, em mais de um momento, o sobrinho-narrador reitera que ele seria um viajante mais legítimo não apenas por ser nacional, mas por empreender uma viagem cujo maior resultado seria a formação de uma personalidade político-virtuosa: Assim que tive a certeza de que estava com seiscentos mil réis na algibeira, veio-me logo a idéia de partir para a corte (...) e improvisar nas horas vagas duas mil mentiras, com que pudesse encher a Carteira de meu tio. Esta pouca vergonha não teria nada de original, e não podia espantar ninguém: alguns dos meus colegas viajantes, e principalmente os franceses, que são incomparáveis nesta, como em muitas outras espécies de charlatanismo. (MACEDO, 1880, p. 25.)

O sobrinho desiste de uma ação inescrupulosa e opta por empreender de fato a viagem desejada pelo tio. Este elemento reforçaria ainda mais aquilo que chamamos anteriormente de cumplicidade e confiança estabelecida entre o narrador e seu leitor, uma vez que o primeiro torna-se cada vez mais confiável, dando, inclusive, voz ao supostos leitores, como em trechos em que dialoga com eles: Larguei a rédea no pescoço do ruço-queimado: abri o paletó, e tirei do bolso do peito... o quê? ... adivinhem lá. – A sua companheira de viagem, a Constituição do Império – pensarão alguns. Pois não, senhores: o que tirei do bolso, e consultei antes de tudo, foi a bolsa que meu tio me dera ao despedir-se... (MACEDO, 1880, p. 23)

O diálogo entre aquele que narra e aquele que lê é privilegiado sobremaneira pelo uso de uma linguagem irônico-coloquial que se estende, por sua vez, às vozes de outros personagens como é o caso do compadre Paciência, por exemplo, seu companheiro de viagem. Enviado pelo tio para auxiliar o sobrinho, ele o acompanha até o final da jornada: – Sou um roceiro ignorante e rústico, que ainda reza pela cartilha da independência: não faça caso das minhas excentricidades; tenho a mania de ser homem de bem, e de acreditar que a base de toda a política deve ser a virtude: asneiras de homem da roça. (MACEDO, 1880, p. 73.)

Sua caracterização, como um roceiro, é reforçada pela mula ruça no qual viaja montado, fazendo par, por sua vez, com o cavalo ruço-queimado, que seu tio escolhera para transportar o sobrinho. O cavalo, contudo, em nada se assemelha aos animais das grandes epopéias ou histórias de aventuras, pois, além da aparência física nada pomposa, possui “uma constância inabalável: tem um só andar, que não é passo, nem marcha, nem trote: é um movimento inexplicável (...) porque quer o castiguem, quer não, anda sempre do mesmo modo.” (MACEDO, 1880, p. 33). Vejamos a mula: O meu companheiro de viagem, digo, ia tão mal montado como eu. Cavalgava numa mula ruça pequenina, velha, cambaia, e que não tinha senão um trotezinho curto e abaloso; mas o que me causou um verdadeiro sentimento de compaixão, foi o ar de triste simpatia com que o cavalo de meu tio e a mula ruça do compadre Paciência se olhavam; não sei o que tinham aqueles dois bichinhos da terra para irem assim andando e olhando-se tão melancólicos, como dois bois que marcham para o matadouro. Enfim, provavelmente eles lá se entendem! (MACEDO, 1880, p. 50.)

Poderíamos dizer que a dupla, formada pelo cavalo e pela mula reforçariam ainda mais a dupla formada pelo sobrinho e pelo compadre Paciência: o primeiro um aspirante a político que acaba vivenciando uma realidade capenga ao viajar pelo país, tal como seu cavalo, que poderia ser garboso, mas não passa de um lento pangaré. Já o compadre, um homem da roça, honesto, vivido e bastante

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paciente, não deixe de ser um pouco descrente em relação à realidade política que ele vivencia em sua pátria; segue montado numa mula igualmente resignada às agruras das estradas e dos lugares por onde passam. Por outro lado, não nos esqueçamos que o compadre caracteriza um contraponto ao sobrinho, já que o último é um homem vivido na Europa e confesso em relação aos seus próprios vícios, ao passo que o compadre é um homem virtuoso. Assim como a dupla sobrinho/compadre, todas as personagens, de um modo ou de outro, são representantes de um jeito de fazer política, independentemente de partido ou ideologia. Neste romance específico, Macedo transporta para o mundo da ficção algo que vivenciou na vida real: a política. Além desta ocupação, Joaquim Manuel de Macedo foi membro do IHGB, professor de História e Corografia do colégio Pedro II, bem como professor das filhas do Imperador, além de deputado e escritor. Todas as posições políticas e sociais que ele ocupou na sociedade fluminense, sobretudo na segunda metade do século XIX, certamente influenciaram não apenas sua carreira, bem como sua prosa literária, como é o caso de A carteira de meu tio. Dividido em quatro capítulos, a política, como procuramos assinalar anteriormente, é o mote central do romance, a começar pelo propósito do título: um objeto, a carteira ou caderneta, na qual o sobrinho deve anotar a realidade que vê e compará-la às leis e aos artigos da Constituição de 1824 que ele leva como companheira de viagem, nomeada pelo tio como defunta. Jurada em 1824 por D. Pedro I, suas principais leis sofreriam pequenas modificações ao longo dos anos e regeriam o país até 1889. Segundo a historiadora Emilia Viotti da Costa, A Constituição afirmava a igualdade de todos perante a lei, bem como garantia a liberdade individual. A maioria da população, no entanto, permanecia escravizada, não se definindo em termos jurídicos como cidadãos. A Constituição garantia o direito de propriedade, mas 19/20 da população rural que não se enquadrava na categoria de escravos era composta de ‘moradores’ vivendo em terras alheias, sem nenhum direito a elas. A Constituição assegurava a liberdade de pensamento e expressão, mas não foram raros os que pagaram com a vida o uso desse direito, que, teoricamente, lhes era garantido pela Constituição. A lei garantia a segurança individual, mas por alguns poucos mil-réis podia-se mandar matar, impunemente, um desafeto. A independência da Justiça era, teoricamente, assegurada pela Constituição, mas tanto a justiça quanto a administração transformaram-se num instrumento dos grandes proprietários ... Reconhecia-se o direito de todos serem admitidos aos cargos públicos sem outra diferença que não fosse a de seus talentos e virtudes, mas o critério de amizade e compadrio, típico do sistema de clientela vigente, prevaleceria nas nomeações para os cargos burocráticos. (COSTA, 1977, p. 52.)

O longo trecho esclarece o leque de possibilidades de interpretação para o fato de ser a Constituição de 1824, representada ficcionalmente por Macedo, como uma defunta. Claro está que os direitos e deveres expressos naquela carta constitucional dificilmente repercutiam na realidade empírica no Brasil de meados do XIX. Em várias passagens do romance, o narrador faz questão de mostrar ao leitor esta incompatibilidade, como por exemplo, no último capítulo em que, visitando uma delegacia pública, o sobrinho se depara com partes das Folhinhas Laemmert, contendo alguns dos artigos da Constituição que justamente assegurariam a limpeza e a segurança nas cadeias públicas.4 A cena narrada é absolutamente o contrário do que pregaria a constituição, pois o que o sobrinho e o compadre presenciam são vários presos amontoados em celas insalubres. Poderíamos dizer que o intuito central do narrador parece ser convencer seus leitores de que aquilo que se narra é para provarlhes o quanto a Constituição de 1824 virara uma defunta de fato e, para isso, longas digressões e diálogos são compostos, sempre deflagrados a partir de um acontecimento fortuito durante a viagem, como a cena do atoleiro, por exemplo: A estrada era cheia de socavões, atoleiros e precipícios... ficou, em conseqüência, para mim demonstrado que o presidente da província não tinha amigo, nem compadre, a visitasse uma vez ou outra, ali por aqueles lugares: um passeio, ou viagem do presidente da província é, no meu entender, o que melhor esclarece a urgência do concerto de uma estrada: enquanto as tropas carregadas dos fazendeiros e lavradores se estropiam no caminho, e algumas bestas morrem atoladas na lama, ainda se pode sofrer o mal; mas dar um solavanco a carruagem de S. Exa.!... misericórdia, ficava a pátria em perigo! (MACEDO, 1880, p. 34-35.) As Folhinhas Laemmert, nome dado a um tipo de calendário anual, contendo várias informações da vida cotidiana e pública, publicadas pelos irmãos Laemmert, importantes comerciantes e editores de livros no Brasil do Oitocentos. 4

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Esta reflexão do narrador ocorre no primeiro capítulo, após a saída da cidade do Rio de Janeiro em direção ao interior da província, muito embora não haja especificação nenhuma em relação aos locais exatos por onde passa o personagem. Como já afirmarmos, a intenção do narrador está longe de ser a descrição local, mas tão somente desenvolver suas reflexões políticas, sempre de forma irônica. Montado no ruço-queimado, o sobrinho, logo no início da viagem, se depara com o compadre Paciência, com quem, a partir de uma discussão sobre qual o melhor caminho a seguir para sair do lamarão no qual atolaram o sobrinho e o cavalo, pronuncia: “Atolei-me, sim, meu caro; dou porém parabéns a minha fortuna, porque descobri neste lamarão um grande pensamento político” (MACEDO, 1880, p. 37). A partir, portanto, de um encontro fortuito, diante de um atoleiro, seguemse seis páginas de diálogo, com extensas observações, entre os dois personagens que, aparentemente, não estão em situações opostas, pois ambos estão de acordo com o fato de que o problema não é o estado monárquico em si, mas a maneira como o país está sendo administrado pelos presidentes de províncias que não executam as leis constitucionais como deveria ser. Eis um exemplo do diálogo: – Mas, em tal caso, por que não sabem os deputados tomar severas contas, censurar, e responsabilizar os presidentes de província? – Ora ... porque entre nós o voto livre exprime sempre e seja como for, a vontade de quem domina; o povo vota sempre em quem governa, porque sabe que quando assim o não quer fazer, fica reduzido a cão leproso, que apanha e não tem quem lhe acuda; e portanto os deputados provinciais são, em regra geral, escolhidos a dedo pelos presidentes de província. (MACEDO, 1880, p. 41.)

Maria de Fátima Silva Gouvêa, em O Império das Províncias, analisa detidamente vários aspectos relativos à província do Rio de Janeiro entre 1822 e 1889 e, no que diz respeito ao sistema eleitoral, confirma justamente a supremacia dos presidentes de província explicitando que eram eles que registravam os votantes e organizavam os colégios eleitorais. Outro estudo que merece destaque neste momento é a organização das crônicas que Joaquim Manuel de Macedo publicou na seção intitulada Labirinto, no Jornal do Comércio do Rio de Janeiro no ano de 1860, realizada por Jefferson Cano. Na crônica do dia 26 de agosto de 1860, Macedo assim se refere ao governo e ao sistema eleitoral após criticar a existência, na cidade do Rio de Janeiro, de boticas que vendem “medicamentos de importância falsificada”: Deixemos porém em paz os boticários desmazelados, ou criminosamente ambiciosos que, felizmente, não fazem o maior número, e continuemos com o assunto eleitoral. De todos os lados clama-se pelo voto livre; o Sr. Ministro da Justiça assevera que o governo há de garantir, e a oposição desconfia que não. Quanto a nós, não há novidade nem na declaração oficial, nem na desconfiança oposicionista. O governo e a oposição dizem sempre a mesma cousa. O que é verdade incontestável e por todos reconhecida é que no Brasil o tal voto livre ainda não passou de utopia: poderá ter havido, poderá mesmo haver voto livre aqui na capital do império, ou ainda em um ou outro ponto excepcional; fora porém da corte, e aí por esse interior, o voto livre é quase sempre uma grande peta e uma famosa burla. (MACEDO, 2004, p. 128)

Não é por acaso que A carteira de meu tio já foi caracterizada, tanto por Tania Serra, como por outros críticos, como uma crônica romanceada, pois os pequenos episódios narrados têm a função principal de garantir, no romance, a expressão de idéias políticas. O enredo é sustentado, na verdade, não pelo desencadeamento de fatos narrados, mas, sobremaneira, por pequenas cenas seguidas de longas discussões, em forma de diálogos, como este em que o sobrinho é indagado, pelo compadre, sobre os dois partidos políticos na época: – mas vamos a saber: qual dos partidos pretende seguir? ... o Saquarema ou o Luzia?... – Qual é o que está de cima agora?... – Homem, eu também não sei. – Pois hei de me informar para me alistar nas duas fileiras. – Dizem por aí que o partido que está no poder é o saquarema; note bem, que eu não o asseguro, porque às vezes são mais as vozes do que as nozes; parecia-me, porém, que o compadre não se devia decidir a favor de qualquer partido, pelo simples fato de vê-lo no poleiro. (MACEDO, 1880, p. 73-74.)

Notemos o papel moralizante do compadre Paciência na narrativa, uma vez que sua voz é sempre a do bom senso e da correção política. As páginas que seguem este pequeno trecho são

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repletas de explicações didáticas e metafóricas na tentativa de fazer com que o sobrinho tenha cautela, não especificamente na escolha de um ou outro partido, mas simplesmente para tentar fazer política honestamente. Segundo Lilia Schwarcs, “era comum, em meados do século, ouvir dizer que não havia nada mais parecido com um Saquarema – apelido dos conservadores – do que um Luzia, como eram conhecidos os liberais no poder” (SCHWARCS, 2006, p.120). O leitor deste texto poderia indagar em relação a qual partido Joaquim Manuel de Macedo esteve ligado, já que transpôs para a ficção muito de suas experiências da vida pública, certamente. A pesquisa biográfica e literária de Tânia Rebelo Costa Serra revela que, em 1854, Macedo foi eleito pela primeira vez como deputado, pelo partido liberal, na Assembléia Provincial do Rio de Janeiro sendo então reeleito até 1859. Depois, em 1863, foi eleito para a Assembléia Geral. Além disso, membro do IHGB desde 1845, foi eleito primeiro secretário desta instituição em 1851 e, em 1856, passou à condição de orador. Como se vê, estamos diante de um escritor imerso nos espaços de sociabilidade letrada da corte imperial de meados do século XIX, como bem analisou Jefferson Cano na apresentação das crônicas do escritor: Especialmente emblemático da constituição destes espaços de sociabilidade letrada é o Instituto Histórico, no qual Macedo ingressa aos 25 anos, certamente muito mais respaldado por sua glória literária do que por qualquer trabalho de cunho histórico. Fundado em 1838, sob a imediata proteção de Sua Majestade, e inspirado no Instituto Histórico da França, que desde 1834 congregava nomes como Lamartine, Michelet, Chateaubriand e Thierry, o IHGB era síntese do que constituía a elite intelectual e política do Império, mescla que marcava tanto o seu projeto quanto as trajetórias de seus sócios. (MACEDO, 2004, p. 22-23)

Macedo foi um homem de letras diretamente ligado ao Imperador Pedro II e à vida pública e política do II Reinado, sendo, portanto improvável ver na crônica romanceada, A carteira de meu tio, uma crítica ao Regime Monárquico e, muito menos, à figura do Imperador. A representação dos políticos nesta narrativa seria a apropriação ficcional de uma forma de fazer política com a qual Macedo provavelmente não concordava, tal como a política da Conciliação, instaurada no Brasil pelo Marquês de Paraná no início da década de cinqüenta do Oitocentos, e que, no romance, é reiteradamente mencionada, ora nos diálogos, ora em passagens como a que se segue: Vai tudo o melhor possível; Oh, que fortuna tão bela! Navegando em mar de Rosas, Nossa pátria vai à vela. Viva o dinheiro! Fora o ideal! Viva o progresso Material!... A vida que nós passamos É contra a Constituição, Mas não faz mal é milagre Da santa conciliação. Viva o dinheiro! Viva o ideal! Viva o progresso Material!... Isso de pátria e virtude Honra e glória é só – poesia Poder dinheiro et cetera É que tem gosto e valia. Viva o dinheiro! Fora o ideal! Viva o progresso Material!... Nosso altar é a algibeira, Nossos deuses prata e ouro, Nossa oração – venha a nós,

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Anais do II Congresso Internacional de Estudos Linguísticos e Literários na Amazônia (CIELLA) E o nosso Céu o tesouro. Viva o dinheiro! Fora o ideal! Viva o progresso Material!... (MACEDO, 1880, p. 154-155)

Os versos anteriores compõem a cena de uma visão/sonho que o sobrinho-narrador tem, depois de parar para descansar e comer com o compadre Paciência em uma estalagem à beira da estrada. Seu proprietário, chamado Sr. Constante, defende não apenas o governo de sua província, bem como os ministros que estão no poder, sátira expressa em seu próprio nome: o desejo por uma constância no sistema. Num primeiro momento da narrativa, o sobrinho tenta discordar dele alegando que o governo ministerial estaria em crise e que certas mudanças precisariam ser feitas, ao que o outro reage muito mal, atrasando-lhe a comida e a salgando. Impossibilitado de comer e com sede, o sobrinho, na manhã seguinte, finge se render aos ideais políticos conservadores de Constante. A partir deste fato, toda uma discussão é deflagrada sobre a política do estômago como metáfora para a política da Conciliação, uma vez que, assim como a fome faz o indivíduo se render a qualquer prerrogativa, no Brasil se muda de partido ou de ideal político de acordo com os interesses do momento. Além da Conciliação referida nos versos anteriores, há forte crítica ao chamado progresso material que, por sua vez, representou toda uma aposta da Coroa, de ministros e da Imprensa no início da segunda metade do século XIX: As iniciativas econômicas e financeiras, com o gosto pelas novidades da técnica, com as estradas de ferro e caminhos em geral, fábricas de todo tipo, telégrafos, bancos, tudo parecia anunciar uma nova realidade que em parte se frustrou, um vez que o país ainda não amadurecera para ela, eram ainda muito fortes as garras que impediam o vôo da modernização. (IGLESIAS, 1967, p. 38)

Nesse sentido, a visão ou sonho que o sobrinho tem após se sentir saciado é emblemática enquanto sátira da vida pública daquele tempo. Na visão da procissão representada nos versos anteriores, homens de farda, chamados de figurões, são seguidos por pessoas “de todos os tamanhos; algumas tinham grande barriga e fisionomia risonha; outras estavam magras e abatidas e levavam as mãos estendidas, como quem pedia alguma coisa; todas porem traziam de fora línguas enormes” (MACEDO, Op. Cit, p. 150). Selecionamos esta passagem do romance, pois ela sintetiza, a nosso ver, as idéias mais importantes sobre a política de meados do século XIX referidas na narrativa. Como se vê, neste romance de Macedo não houve espaço para histórias de amor e nem mesmo para o retrato de costumes, dois vetores comumente apontados pelos historiadores da literatura ao abordarem sua obra. O foco aqui é o retrato da política em uma sociedade monárquica da qual Macedo fez parte ativamente, inclusive como deputado. Ao que tudo indica, seu público leitor parece ter gostado de ler este outro Macedo, falando de forma irônica e satírica da política, tanto que treze anos depois publicou a continuação desta narrativa sob o título Memórias do sobrinho de meu tio, em 1868. Referências COSTA, E. V. Da monarquia à República: Momentos Decisivos. São Paulo, Editorial Grijalbo, 1977. GOUVÊA, M. F. S. O Império das Províncias: Rio de Janeiro, 1822-1889. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2008. IGLESIAS, F. História Geral da Civilização Brasileira, Tomo II (O Brasil Monárquico), 3º volume (Reações e Transações). São Paulo: Difel, 1967. LAJOLO, M; ZILBERMAN, R. A leitura rarefeita: leitura e livro no Brasil. São Paulo: Editora Ática, 2002. MACEDO, J. M. de. A carteira de meu tio. Rio de Janeiro: Garnier, 1880. ______. Labirinto. Organização, apresentação e notas de Jefferson Cano. Campinas: Mercado de Letras, 2004. SCHWARCZ, L. M. As barbas do Imperador. D. Pedro II, um monarca nos trópicos. São Paulo: Companhia das Letras, 2006.

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Tema geral: Línguas e Literaturas: Diversidade e Adversidades na América Latina SERRA, T.R.C. Joaquim Manuel de Macedo ou Os Dois Macedos: A luneta mágica do II Reinado. Rio de Janeiro: Fundação Biblioteca Nacional, 1994. SUSSEKIND, F. O Brasil não é longe daqui. O narrador, a viagem. São Paulo: Companhia das Letras, 2006.

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O LEITOR, A METAMORFOSE E O SILÊNCIO EM MEU TIO O IAUARETÊ Loíde Leão dos SANTOS (Mestranda em Letras pela UFPA) Prof. Dr. Sílvio Augusto de Oliveira HOLANDA (Docente da UFPA – Orientador)

RESUMO: Pretende-se, com a abordagem do conto “Meu Tio o Iauaretê,” da obra póstuma Estas Estórias (1969), de João Guimarães Rosa, mostrar que o leitor, no percurso do texto ficcional, pode assumir uma dupla postura. Objetiva-se destacar que o conto é um texto constituído como uma escritura vocalizada; e o leitor pode participar de sua atualização preenchendo as lacunas e observando atentamente os vestígios deixados pelo narrador. O estudo será feito com base no trabalho de pesquisa de Thais Tait sobre “O Jogo e a Performance em ‘Meu Tio o Iauaretê’” (2007), assim como, nas afirmações do teórico Haroldo de Campos no ensaio “A Linguagem do Iauaretê” (1967). Evidencia-se o pacto investido na experiência da metamorfose materializada em todos os níveis narrativos. Procura-se destacar a relação entre interlocutor e leitor; letra e voz; linguagem articulada e desarticulação da linguagem, presença vocal que nos remete ao silêncio das origens. PALAVRAS-CHAVE: “Meu Tio o Iauaretê”; leitor; metamorfose.

ABSTRACT: Intend, with the approach of the tale “Meu Tio o Iauretê,” of the posthumous work Estas Estórias (1969), of João Guimarães Rosa, to show that the reader, in journey of the fictional text, can assume a duo posture. Objective to detach that the tale is a text constituted as a vocaled scripture; and the reader can take part of its actualization filling the gaps and observing attentively the traces left for the narrator. The study will be with base in the Thais Tait’ work of research about “O Jogo e a Performance em ‘Meu Tio o Iauaretê’” (2007), as well as, in the assertion Haroldo de Campos’ theoretical in the rehearse “A Linguagem do Iauaretê” (1967). Show up the attack pact in the metamorphosis’ materialized experience in all the level narratives. Search to detach the relationship inter interlocutor and reader; letter and voice; articulated language and language’s disarticulation, presence vocal that send us at origins’ silence. KEY WORDS: “Meu Tio o Iauaretê;” reader; metamorphosis.


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1. Introdução No estudo do conto “Meu Tio o iauaretê,” o leitor aparece como um questionamento importante e primordial, partindo-se da constatação de que a construção da linguagem do conto; assim como de seu enredo, possui características peculiares, as quais serão enfatizadas nesta pesquisa. Por observar estes aspectos diferenciais do conto, a pesquisadora Thais Tait, em sua dissertação sobre “O Jogo e a Performance em ‘Meu Tio o Iauaretê’” (2007), traz esclarecimentos sobre a posição do leitor quando em contato com esta criação de Guimarães Rosa. O conto está inserido na obra Estas Estórias (1969), e nesta narrativa o enredo é desenvolvido a partir da fala do onceiro, entretanto nessa fala estão contidos traços que confirmam a presença do interlocutor. A fala do interlocutor é interpretada não só pelo onceiro, mais pelo leitor que precisa separar e entender toda a estratégia de linguagem utilizada pelo autor do texto. Sobre este aspecto, Thais Tait, com base em Iser, na obra O ato da leitura (1996), fala do autor e do leitor implícito, lembrando que, para a pesquisadora, esse tipo de autor se distingue do autor real; trata-se de um autor que se mistura ao texto ficcional apagando suas marcas; sendo, portanto, um autor dos bastidores. Seguindo esse mesmo pensamento, a estudiosa fala do leitor que se confunde com o interlocutor da estória; anunciando desta forma o pacto ficcional do autor e leitor implícitos. Confirmando esta hipótese, Haroldo de Campos também denomina o interlocutor como “virtual”; aquele que percebe as ações do onceiro e atira contra ele para se livra do ataque de morte. Neste sentido, o leitor implícito implica uma estrutura textual que prevê a presença de um receptor; este tipo de leitor é uma imagem criada pelo autor, e que normalmente é detectado no texto pelo chamamento “meu caro, leitor” ou “meu amigo, leitor”. No entanto em “Meu tio o iauaretê,” não ocorre esse tipo de situação; o que se percebe, é um narrador que sugere a fala do interlocutor, e o leitor real ao observar as estratégias desse interlocutor, anseia também pela sobrevivência, como se estivesse no lugar deste. 2. O leitor e a narrativa O leitor precisa, assim como o interlocutor, interpretar na fala do onceiro as imagens que se avolumam diante de si, o que deve ser feito de maneira categórica; visto que segundo Jauss, na obra, O texto poético na mudança de horizonte de leitura (1983), “a compreensão no ato da percepção estética não pode depender de um interpretar que reduza o excesso de significados do texto poético” (JAUSS, 1983, p. 308), pois para o teórico, o processo de leitura é infinito num certo sentido. Desta forma, se considerarmos, a situação tensa das falas do onceiro e do visitante, detectadas no monólogo, entenderse-á a importância do processo de ampliação de significados referidos por Jauss. Considerando que seguir as pistas da fala do visitante, deixadas pelo narrador, venha a requerer vastas possibilidades. Segundo Iser, o texto não se adapta ao leitor como as demais relações sociais; ocorrendo o jogo do texto, no qual o leitor preencherá as lacunas deixadas na narrativa. Para Iser, o texto é composto por um mundo que ainda será identificado pelo leitor, que será incitado a imaginá-lo e interpretá-lo. Em termos iserianos o leitor é guiado pelo dito e pelo não-dito de cenas triviais, como por lugares vazios; e neste sentido, o silêncio e interrupções da fala de “Meu Tio o Iauaretê” é contínuo, havendo sempre a necessidade de preenchimento da leitura por parte do leitor, que ao ser levado para dentro dos acontecimentos é incentivado a imaginar o não-dito, e a construir um significado. O texto controla o leitor, embora os lugares vazios o incorporem ao texto para que ele mesmo coordene suas perspectivas. Os lugares vazios impulsionam as atividades constitutivas do leitor. Neste sentido Thaís Tait afirma que Interrompendo a coerência do texto, os lugares vazios se transformam em estímulos para a formação de representações por parte do leitor. Assim eles funcionam como estruturas auto reguladoras; o que por eles é suspenso impulsiona a imaginação do leitor: trata-se de ocupar através de representações o que é encoberto. (TAIT, 1999, p. 144)

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Segundo Thait, os lugares vazios fazem o leitor interagir com o texto possibilitando várias perspectivas textuais. Sobre essa interação, observemos o parágrafo introdutório do monólogo diálogo. — Hum? Eh-eh... É. Nhor sim. Ã-hã, quer entrar, pode entrar... Hum, hum. Mecê sabia que eu moro aqui? Como é que sabia? Hum-hum... Eh. Nhor não, n’t, n’t... Cavalo seu é esse só? Ixe! Cavalo tá manco, aguado. Presta mais não. Axi... Pois sim. Hum, hum. Mecê enxergou este foguinho meu, de longe? É. A’ pois. Mecê entra, cê pode ficar aqui. (ROSA, 1969, p. 127)

Logo na interjeição inicial “— Hum?”, percebe-se uma indagação que sugere uma pergunta anterior, a partir desta observação, já se confirma o ato interativo entre o leitor e o texto; contudo, esta não é apenas uma condição inicial, e sim, um aspecto constante observado em todo conto. Na sequência da leitura encontramos a expressão “Eh-eh... É”, no que se refere à inferência da leitura, a expressão consiste na aceitação da visita por parte do onceiro. As constantes interrupções do leitor são necessárias na leitura de qualquer narrativa, no entanto, nesta, o leitor precisa participar a todo momento. Considerando-se tamanha participação, Thaís Tait coloca o leitor no lugar do interlocutor afirmando que é no lugar vazio do interlocutor, que o leitor empírico acompanha os acontecimentos e se torna testemunha dos atos do onceiro. Neste lugar em que o leitor se põe, pode arrancar da fala do onceiro o seu transformar e ser onça: De noite eu fiquei mexendo, sei nada não, mexendo por mexer, dormir não podia, não; que começa, que não acaba, sabia não, como é que é, não. Fiquei com a vontade... Vontade doida de virar onça, eu, eu, onça grande. Sair de onça, no escurinho da madrugada... Tava urrando calado dentro de em mim... Eu tava com as unhas... Tinha soroca sem dono, de jaguaretê-pinima que eu matei; sai pra lá. Cheiro dela inda tava forte. Deitei no chão... Eh, fico frio, frio. Frio vai saindo de todo mato em roda, saindo da parte do rancho... Eu arrupeio. Frio que não tem outro, frio nenhum tanto assim. Que eu podia tremer, de despedaçar... Ai eu tinha uma cãibra no corpo todo, sacudindo; dei acesso. (ROSA, 1969, p. 86)

O narrador descreve a grande vontade de virar onça que crescia dentro do onceiro, a presença da onça que havia matado presa a ele pelo cheiro, a sensação de frio, as cãibras pelo corpo; tudo é contemplado pelo leitor na força da palavra multiplicadora de visões. Os traços irracionais vistos homem animal, que perde a razão e busca o outro lado daquilo que Walnice Galvão, com base na teoria de Lévi-Strauss, denomina de “o impossível retorno”. O leitor observa no onceiro “A rejeição do mundo civilizado, domínio do cozido, é acompanhada pela volta ao mundo da natureza, domínio do cru.” (GALVÃO, 1978, p. 13). Na continuação da descrição feita pelo onceiro ao visitante esta possibilidade confirma-se: Eh, agora cê sabe; será? Hã-hã. Nhem? Aã, pois eu sai caminhando de mão no chão, fui indo. Deu em mim uma raiva grande, vontade de matar tudo, cortar na unha, no dente... Urrei. Eh, eu — esturrei! No outro dia, cavalo branco meu, que eu trouxe, me deram, cavalo tava estraçalhado meio comido, morto, eu ’manheci todo breado de sangue seco... Nhem? Fez mal não, gosto de cavalo não... Cavalo tava machucado na perna, prestava mais não... (ROSA, 1969, p. 86)

Na expressão “eu ’manheci todo breado de sangue seco...”, constata-se a transformação do caboclo em onça, animal feroz, selecionado por Guimarães Rosa, talvez, no intuito de fazer a relação entre o eu humano e o eu animal. Na temática do homem onça o escritor resgata o comportamento humano levado ao auge, na fronteira onde o humano se confunde com o não humano, levantando o questionamento de até onde o ser humano pode isola-se da sociedade e deixar todos os seus ímpetos animalescos aflorarem. Até onde o homem pode desiludir-se com o ser civilizado e romper com seu lado racional para viver o irracional. O conto do Iauaretê surge, assim, numa dosagem exagerada dos ímpetos interiores, de vontades que o leitor possui em pequena quantidade, e que não pode tornar real. A personagem revela a perda total do controle dos sentidos revelados em ações desconcertantes, como nos assassinatos descritos pelo onceiro, os quais o leitor é levado a interpretar terem sido incentivados por ele mesmo. Se como afirma Jauss, o processo de leitura é contínuo, e considerando-se que durante a narrativa o onceiro afirma o fato, e em seguida, nega-o; então ele mesmo pode como onça ter comido suas vítimas.

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Acerca deste pensamento, Jauss defende que a “relação mútua da relevância da interpretação e da motivação determina a constituição da experiência subjetiva no mundo da vida” (JAUSS, 1983, p. 309); então, se concordará que o universo e os aspectos característicos da linguagem construídos na narrativa do Iauaretê — que coloca o interlocutor/leitor como caçador do onceiro — se constituem na motivação, que absorve a experiência de mundo do leitor, tornando perfeito o pacto ficcional aqui exigido. Referente ao pensamento aqui desenvolvido, Jauss ressalta a importância da experiência; neste sentido, o teórico afirma: Se a hermenêutica literária, assim como a teológica ou jurídica, deve chegar à aplicação, partindo da compreensão e passando pela interpretação, esta aplicação de um lado não pode desemborcar numa ação prática, mas, do outro, pode satisfazer um interesse não menos legitimo, o de medir e ampliar, na comunicação literária com o passado, o horizonte da experiência própria a partir da experiência de outros. (JAUSS, 1983, p.313)

No que se refere a esse pensamento, Jauss declara ainda, que “A vida histórica da obra literária não pode ser concebida sem a participação ativa de seu destinatário” (JAUSS, 1970, p. 169), logo, à luz da estética da recepção, o leitor, que é o destinatário, tem participação ativa na construção histórica da obra literária, assim sendo, confirmamos o pensamento Jaussiano sobre a experiência do leitor e sua influência na construção da interpretação do texto literário. Na obra A história da literatura como provocação à teoria literária (1994), Jauss, em uma de suas teses, declara que a relação entre literatura e leitor é condição para o caráter artístico da historicidade da obra. Esta idéia se a adequa a discussão aqui colada sobre o leitor, nestes termos, observemos na integra a colocação de Jauss: Considerando-se que, tanto em seu caráter artístico quanto em sua historicidade, a obra literária é condicionada primordialmente pela relação dialógica entre literatura e leitor — relação esta que pode ser entendida tanto como aquela da comunicação (informação) com o receptor quanto como uma relação de pergunta e resposta —, há de ser possível, no âmbito de uma história da literatura, embasar nessa mesma relação o nexo entre as obras literárias. E isso porque a relação entre literatura e leitor possui implicações tanto estéticas quanto históricas. A implicação estética reside no fato de já a recepção primária de uma obra pelo leitor encerrar uma avaliação de seu valor estético, pela comparação com outras obras já lidas. (JAUSS, 1994, p.23)

No contexto de obra literária, entende-se então, que em “Meu Tio o Iauaretê” a relação dialógica referida por Jauss, está tanto no âmbito de comunicação com o receptor, quanto na relação de pergunta e resposta; visto que, sendo um monólogo composto de um narrador que insinua a fala do outro por meio de perguntas e repetição de falas, neste sentido esta narrativa se enquadra perfeitamente na tese de Jauss. Pensa-se que a recepção inicial de um leitor do iauaretê, depende do momento em que a leitura foi feita, considere-se que a recepção de Haroldo de Campos, expressa no ensaio “A linguagem do iauaretê” (1967); em 1961, com a primeira publicação do conto, na revista Senhor, deva ter sido diferente da visão de um leitor contemporâneo, que tenha descoberto a narrativa na publicação de pós morte do autor Guimarães Rosa, com a primeira edição de Estas Estórias em 1969. Isto tudo possui um sentido maior, se colocarmos aqui a lembrança de que “Meu Tio o Iauaretê”, possui uma estrutura narrativa semelhante a de Grande Sertão: veredas (1956), assim a recepção primária de “Meu Tio o Iauaretê”, feita por um leitor que previamente tenha lido — Grande Sertão: veredas — será comparada em seu valor estético e histórico, o que retoma a idéia da influência da experiência do leitor já discutida anteriormente. Sobre a implicação histórica, Jauss tece afirmações acerca de sua relação com primeiros leitores de um texto literário, neste sentido ele diz: A implicação histórica manifesta-se na possibilidade de, numa cadeia de recepções, a compreensão dos primeiros leitores ter continuidade e enriquecer-se de geração em geração, decidindo, assim, o próprio significado histórico de uma obra e tornando visível sua qualidade estética. Se, pois, se contempla a literatura na dimensão de sua recepção e de seu efeito, então a oposição entre seu aspecto estético e seu aspecto histórico vê-se constantemente mediada, e reatado o fio que liga o fenômeno passado à experiência presente da poesia, fio este que o historicismo rompera. (JAUSS, 1994, p.23)

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Quanto a recepção de “Meu Tio o Iauaretê”, ela tem sido, desde a sua primeira publicação, pequena; contudo, nos últimos anos vem crescendo gradativamente o número de estudiosos que se aplicam ao estudo desta narrativa, talvez porque, somente agora seu texto esteja sendo descoberto pelos leitores. Deste modo, entende-se que o significado histórico da obra, seu efeito de recepção ainda está sendo construído, seu efeito no presente tem sido significativo para os estudiosos da literatura. As vozes dos primeiros leitores estendem a cadeia de recepção do conto, até o presente estudo. Voltando ao texto de Thaís Tait, a voz silenciosa do narrador estabelece o vazio que controla e põe à prova a capacidade imaginativa do leitor. E neste exato momento de uso da imaginação, que o leitor participa da atualização do texto, tornando-se um novo narrador. Tomando como referência as teorias de Zumthor na obra A Letra e a Voz (1993), Tait afirma que nesta narrativa o texto poético, portanto, instaura um confronto entre recepção e performance, no ato da leitura silenciosa. Segundo a pesquisadora, por se tratar de uma escritura vocalizada, o leitor também participa da atualização do texto, quando se aproveita dos vestígios de oralidade deixados pelo narrador. Vestígios estes, que unificados à tupinização da sintaxe, resultam no “estágio mais avançado” do experimento de Guimarães Rosa com a prosa, na opinião de Haroldo de Campos. No conto “Meu Tio o Iauaretê”, segundo o teórico, o nível da criação poética rosiana, não é mais uma tentativa, e sim, uma realização plena, definida e definitiva. Sobre este aspecto, Thaís Tait contribui dizendo que: “Meu Tio o Iauaretê” é um texto que se oferece como uma escritura vocalizada e o leitor real participa da sua atualização preenchendo as lacunas e atento aos vestígios da oralidade deixada pelo narrador, que abusando das aliterações, onomatopéias, interjeições ruídos e rugidos sutilmente o ensina a ler o texto imitando o movimento da onça... (TAIT, 1999, p. 66)

Na narrativa de “Meu tio o iauaretê,” Guimarães Rosa exige do leitor, um esforço maior, cabe a este o trabalho de preenchimento dos acontecimentos. A imaginação, ou, a visualização dos fatos por parte do leitor são qualidades essenciais para a leitura deste texto rosiano; pois assim ocorrerá o que argumenta Thaís Tait, ao dizer, que “ao realizar o ato imaginativo o leitor se aproxima do leitor ideal;” (TAIT, 2007, p. 64). Haroldo de Campos, no ensaio, declara que na linguagem empregada em “Meu Tio o Iauaretê”, “a palavra configura personagem e ação,”(CAMPOS, 1967, p. 59) ela é responsável em sua articulação e desarticulação, em envolver o leitor na performance, no ato. Observe-se o seguinte trecho da narrativa: “Vou ensinar, hem; mecê vê do lado de donde não tá vindo o vento — ai mecê vigia, porque dai é que a onça de repente pode aparecer, pular em mecê... Pula de lado, muda o repulo no ar. Pula em-cruz. É bom mecê aprender. É um pulo e um despulo.” (ROSA, 1969, p. 76). O narrador ensina, e o interlocutor vai aos poucos aprendendo sobre onça, estando neste pensamento inserida a idéia de um leitor caçador vivido no papel do interlocutor. O narrador proporciona ao leitor o aprendizado de vir a ser onça, o leitor como onça a fala ininterrupta do onceiro embebeda o leitor e o faz testemunha atuante nos acontecimentos da narrativa. Para Thaís Tait, na descrição da linguagem do Iauaretê, ocorre a contaminação entre letra e voz numa metamorfose que abrange não apenas o onceiro, como também, o leitor. Neste sentido a pesquisadora declara: A metamorfose atinge, desse modo, todas as categorias dessa narrativa, inclusive autor e leitor empíricos. Leitor que realiza uma leitura imersiva e vive a experiência do ser onça por meio de uma leitura que, mesmo silenciosa, é capaz de fazer o instante durar. Autor cujo projeto de uma escritura contaminada pela voz — escritura vocal — viola normas e simula uma narrativa entre escritura e voz, na qual o leitor só poderá lê se também souber contar e encenar. (TAIT, 1999, p. 67)

3. A metamorfose e o silêncio Todos os aspectos aqui mencionados sobre a posição do leitor, são importantes para entendermos que para a estudiosa, o leitor de “Meu Tio o Iauaretê”, assim como o onceiro, ocupa o dúplice papel de interpretar e atuar, acompanhando, da mesma forma que o interlocutor, a metamorfose do onceiro. O leitor é o verdadeiro autor da voz que surge no silêncio. Assim, o leitor deixa de ser passivo e torna-se um co-intérprete, imerge na leitura para viver a metamorfose

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e retira-se do texto oncificado. Para comprovar esta afirmativa destacou-se o seguinte trecho da obra literária: Eu vou dormir não, tá quage em hora d’eu sair por aí, todo dia eu levanto cedo, muito em antes do romper da aurora. Mecê dorme. Por que é que não deita? — fica só acordado me preguntando coisas, despois eu respondo, despois cê pregunta outra vez outras coisas? Pra quê? Daí, eh, eu bebo sua cachaça toda. Hum, hum, fico bêbado não. Fico bêbado só quando eu bebo muito, muito sangue... Cê pode dormir sossegado, eu tomo conta, sei ter olho em tudo. Tou vendo, cê tã com sono. Ói, se eu quero eu risco dois redondos no chão — pra ser seus olhos de mecê — despois piso em riba, cê dorme de repente... Ei, mas mecê também é corajoso capaz de encarar homem. Mecê tem olho forte. Podia até caçar onça... Fica quieto. Mecê é meu amigo. (ROSA, 1969, p. 80)

O próprio narrador descobre e desconfia que haja no visitante característica de caçador, que como ele que aprendeu sobre as onças para poder caçá-las, entretanto o comportamento do animal ficou nele impregnado ao ponto de confundir-se com um felino. Podemos, portanto supor que o leitor também adquira o faro da caça. O leitor pode ser comparado à onça pela necessidade de usar os dois sentidos mais aguçados do animal — ouvir e enxergar. Ao considerarmos a desarticulação da linguagem e o esforço do leitor em imaginar o que o interlocutor viveu naquela noite, na cabana, com um onceiro que perdeu seu lado humano e se comporta como um animal; entende-se, então, que, de maneira bem presente, o leitor vive o papel do interlocutor, visualizando cada cena, do pegar na arma aos disparos e sons finais, até o silêncio do cadáver onça. O leitor rosiano deve reconhecer que o ato da leitura é transformador. Para percebermos a perda do lado humano do onceiro, observemos a metamorfose original da narrativa: Desvira êsse revólver! Mecê brinca não, vira o revólver pra outra banda... Mexo não, tou quieto, quieto... Ói: cê quer me matar, ui? Tira, tira revólver pra lá! Mecê tá doente, mecê tá variando... Veio me prender? Ói: tou pondo mão no chão é por nada, não, é á toa... Ói o frio... Mecê tá doido?! Atiê! Sai pra fora, rancho é meu, xô! Atimbora! Mecê me mata, camarada vem, manda prender mecê... Onça vem, Maria-Maria, come mecê... Onça meu parente... Ei, por causa do prêto? Matei prêto não, tava contando bobagem... Ói a onça! Ui, ui, mecê é bom, faz isso comigo não, me mata não... Eu — Macuncôzo... Faz isso não, faz não... Nhenhenhém... Heeé!... Hé... Aar-rrâ... Aaâh... Cê me arrhoôu... Remuaci... Rêiucàanacê... Araaã... Uhm... Ui... Ui... Uh... uh... êeêê... êê... ê... ê... (ROSA, 1969, p. 159)

O onceiro é arrastado, enganado em sua própria narrativa protéica, e como a personagem Proteu da mitologia, que podia se metamorfosear, ele incorpora a metamorfose em ato, em palavras tupis que aparecem no texto para marcar o tema de onça, finalizando numa narrativa quase totalmente tupi. O lado animal é mostrado, mas não é aceito, e retorna-se não ao lado irracional, mas ao silêncio figurado na morte do onceiro mudado em fera, a palavra mostra a transformação e desaparece, desfaz-se, chega ao fim, como chega ao fim a saga de mortes do homem onça. É irônico que uma narrativa contada no jogo de palavras, em um trabalho com a linguagem, desapareça com a perda de condição humana da personagem que a possibilitou, ficando como eco de uma narrativa tão dinâmica apenas o silêncio. Referências CAMPOS, Haroldo de. Metalinguagem: ensaio de teoria e crítica literária. Petrópolis: Vozes, 1967. 111 p. GALVÃO, Walnice Nogueira. O impossível retorno. Língua e Literatura, São Paulo, v. 4, n. 14, p. 33-58, 1975. ISER, Wolfgang. O ato da leitura. Trad. Johannes Kretschmer. São Paulo: Ed. 34, 1996. 2 v. JAUSS, Hans Robert. A história da literatura como provocação à teoria literária. São Paulo: Ática, 1994. 78 p. ______. O texto poético na mudança de horizonte de leitura. Trad. Marion S. Hirschman. In LIMA, Luiz Costa (org.) Teoria da Literatura em suas fontes. 2. ed. Ver. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1983. v. 2, p. 305-358. ROSA, João Guimarães. Estas Estórias. 2. ed. Rio de Janeiro: J. Olympio, 1976. 231 p.

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Tema geral: Línguas e Literaturas: Diversidade e Adversidades na América Latina TAIT, Thais Calvi. O jogo entre interpretação e performance em “Meu Tio o Iauaretê”, de Guimarães Rosa. São Paulo, 2007. 76 p. Dissertação de Mestrado em Letras (Literatura e Crítica Literária), Pontifícia Universidade Católica de São Paulo.

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O TRABALHO COM O INSÓLITO NO MICRORRELATO DE AUGUSTO MONTERROSO Luciana Aparecida da SILVA (Universidade Federal do Rio de Janeiro)1

RESUMO: Durante a Idade Média, as fábulas utilizaram a narrativa, por meio da retórica, para que os ouvintes, através da atuação dos personagens-que geralmente eram animais, objetos inanimados, etc.- refletissem como recomendações sólitas as morais das histórias, após os desfechos destas. Posteriormente, apareceram escritas na prosa por autores consagrados como Esopo, etc. Já os contos apresentaram uma forma cristalizada, construídos com narrativas breves, com temas variados, com espaços e tempos imaginários, com efeitos surpresa nos desfechos; e cabe a cada leitor interpretá-lo, de forma subjetiva, conforme a experiência sociocultural no mundo plural o qual vivemos. Através da junção das fábulas e dos contos, o autor Monterroso através do microrrelato, apresenta um texto insólito brevíssimo e utiliza a narrativa com o léxico compreensível aos leitores, e através da paródia, humor e ironia, etc., apresenta histórias correlacionadas com as vidas humanas. Recorro ao texto O Fabulista e seus críticos, para a compreensão. PALAVRAS-CHAVE: fábulas; contos; microrrelato.

RESUMEN: En la Edad Media eran utilizadas las fábulas como forma de expresión narrativa que, a través de la actuación de sus personajes, caracterizados en general por animales, objetos inanimados, etc., conseguían con su retórica, que los oyentes reflexionaran sobre las enseñanzas de las moralejas que finalizaban sus historias. Más tarde, aparecieron escritas en prosa por autores entre los que se destaco Esopo. Luego las historias evoluyeron hacia una forma más cristalina, hechas con narrativas breves y varios temas, con espacios de imaginación y efectos sorpresa en sus finales; y cada lector las interpreta, subjetivamente,conforme la experiencia sociocultural en el mundo plural donde vivimos. El autor Monterroso, en sus microrelatos, une las fábulas y los cuentos y nos presenta un texto insólito, brevísimo, usando una narrativa con un lenguaje de fácil comprensión para los lectores, y a través de la parodia, el humor o la ironía, ofrece historias correlacionadas con las vidas humanas. Para ejemplificar, utilizaré el texto “El Fabulista y Sus Críticos”. PALABRAS LLAVE: fábula; cuentos; microrelato. Mestranda em Literaturas Hispânicas. Escola Municipal Maria Isabel Bivar-RJ. Colégio Estadual Professor Clóvis Monteiro- RJ.

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1. Introdução Este trabalho possui como proposta inicial definir o conceito de microrrelato. Para conhecer o âmago deste, convém esclarecer a origem desta modalidade do gênero conto produzida pelo autor e o verdadeiro sentido do que este representa para o campo literário. Através do conceito de fábula e de conto, e por meio da mistura entre estas, originou outra forma híbrida para a criação desta nova forma literária. Primeiramente será feita uma abordagem teórica sobre a fábula, que é sólita, onde serão delineados os principais aspectos deste gênero. Em seguida será apresentado o conto, que teve uma grande repercussão na América, e também serão apresentados os principais aspectos deste, para a formação do insólito no microrrelato. Posteriormente, será apresentado o autor latino-americano guatemalteco, que é conhecido como o autor inovador desta especificidade, que teve a repercussão em outros países na América Latina e na Europa, cujo nome é Augusto Monterroso. No termo coexistente na literatura contemporânea, o microrrelato é consagrado como diferente, inovador, indutivo, questionador e enfim: uma novidade literária e insólita. É tomado como exemplo e análise, o microrrelato “O Fabulista e seus críticos”, da tradução do livro “La Oveja negra y otras fábulas”, por Millôr Fernandes. É importante ressaltar que o autor Monterroso se destaca pela exposição de textos inovadores através da concisão, da exatidão, da rapidez, das adaptações, da vida e das variedades das criações fictícias, como resultado da própria imaginação individual do escritor. Estas características do autor explanam que a América possui em si mesma realidades e identidades próprias, com a precisão de mostrá-las para um conhecimento mais amplo ao mundo. 2. Fundamentação Teórica Para a análise da estrutura do microrrelato, é necessário o conhecimento prévio de quais são as características entre a fábula e o conto, as semelhanças e as diferenças de ambos os gêneros, e como estes aparecem neste exemplo do microrrelato de Monterroso. Em primeiro lugar, a palavra morfologia, de acordo com o formalista russo Vladimir Propp, significa o estudo das formas para redigir as obras literárias. Durante a Idade Média, a tradição de contar fábulas, para o professor (FERREIRA, 1999, p. 870, “do latim fabula, narração breve, de caráter alegórico, em verso ou em prosa, destinada a ilustrar um preceito”), possuía como hábito, o uso da fala oral do(s) narrador(es), como exemplos de narrações retóricas e curtas, para que as pessoas escutassem as diversas fábulas, que utilizavam poucos personagens no contexto, mas com a diversidade infinita: como protagonistas eram os animais, os objetos inanimados, os deuses da mitologia grega, entre outros, que aparecem nas fábulas. As figuras são empregadas como metonímias, de acordo com o professor (SACCONI, 1996, p. 437 e 438), (“a substituição de um nome por outro em virtude de haver entre eles algum relacionamento. [...] j) o abstrato pelo concreto”), isto é, estas constituem na apresentação estética do corpus as representações abstratas por meio de animais ou de outros personagens, e de modo abrangente, se comportam, pensam e agem como os homens nas sociedades onde vivem, com a correlação de situações cotidianas das vidas humanas nas histórias das fábulas. E, ao final de cada uma das fábulas, eram usadas como síntese, as “morais das histórias”, com os propósitos de mostrar vários modelos de aprendizagens educativas para os públicos espectadores, equivalentes a conselhos ou advertências, através de fáceis compreensões e interpretações, devido aos vocabulários usados. O entendimento auditivo das fábulas, para aqueles que as seguiam, eram compreendidas como lições de vida, sermões ou de lições morais, para que qualquer presenciador aprendesse a conviver com outros seres humanos diariamente nas sociedades onde se encontravam, sempre sintetizadas nos finais, como verdades sólitas. De acordo com os estudos da professora (DEZOTTI, 2003, p.27) há vários tipos de fábulas,

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Tema geral: Línguas e Literaturas: Diversidade e Adversidades na América Latina Além das famosas “histórias de animais”, a fábula servia de anedotas, narrativas em que tomam parte personagens humanas exclusivamente [...]; de etiologias, narrativas que visam a explicar a origem de algum aspecto do mundo natural [...]; de narrativas zoológicas, que exploram algum comportamento peculiar de uma dada espécie animal [...]; do conto maravilhoso, cujas personagens são desafiadas a vencer algumas provas [...]; do provérbio apológico, narrativas tão concisas que se resumem em máximas [...]; e do mito, de cujas narrativas participam os deuses.

Convém ressaltar que a fábula clássica foi escrita posteriormente em prosa por autores conhecidos como Esopo, La Fontaine, entre outros. Cabe acentuar que La Fontaine, de acordo com os estudos da professora (DEZOTTI, 2003, p.129), Aos vinte anos, foi estudar em Paris, onde freqüentou um círculo de jovens poetas. Ao longo de todos esses anos não se descuidou da leitura: leu os romances medievais, os contos italianos e franceses e foi grande admirador dos autores do século XVI e dos Antigos, que virão a ser os seus modelos. [...]dez anos mais tarde, em 1668, lançou a primeira coletânea das Fábulas (Fables choises mises en vers) que teve um sucesso extraordinário: seis edições em dois anos. Das 124 fábulas que compõem a obra, uma centena segue a tradição de Esopo.

A premissa deste fragmento expressa que vários autores escreveram fábulas idênticas, ou seja, com os mesmos personagens e ações; porém, as composições narrativas foram escritas de formas diferentes (em versos ou em prosas). Este gênero literário possui histórias que as faz serem sempre atuais, já que os tempos são seqüências ao longo dos séculos; e os espaços transcorrem de acordo com as organizações mentais dos leitores. Por tudo isto, a fábula foi utilizada como um dos gêneros na elaboração do microrrelato por Monterroso. De acordo com o escritor (ECO, 2004, p.42) as fábulas, Não há nada mais aberto que um texto fechado. Só que a sua abertura é efeito de iniciativa externa, de um modo de usar o texto, e não de ser suavemente usados por ele. [...] Decide (eis onde a tipologia dos textos corre o risco de converter-se num continuum de esfumaturas) até que ponto deve controlar a cooperação do leitor e onde esta é provocada, para onde é dirigida, onde deve transformar-se em livre aventura interpretativa.

Dito em outras palavras, se a fábula é observada para os leitores como uma estrutura de alicerces fechados, na qual os leitores se tornavam conduzidos com o decorrer da leitura, e sempre concordavam com as morais das fábulas; para um melhor entendimento, esta possui uma estética circular, isto é, organiza-se em torno de um conceito de verdade com um centro que só admite uma única interpretação. Ao vê-la sob outra ótica, o autor a apresentará escrita de forma diferente, com múltiplas interpretações, que será apresentada no microrrelato selecionado. Em segundo lugar, os contos constituem um outro gênero; para o filósofo russo que estuda os contos tradicionais, nos enredos dos contos (PROPP, 2006, p.241), O problema, porém, não reside nos textos (os quais, diga-se de passagem, existem em quantidade realmente suficiente), mas no fato de que os enredos têm origem nos costumes do povo, em sua vida cotidiana e nas formas de pensamento que deles provêm, nos primeiros estágios do desenvolvimento da sociedade humana, e que o aparecimento destes enredos corresponde a uma necessidade histórica.

A lógica das narrativas que contêm formas variadas e cristalizadas, isto é, escritas em prosa, apresentam efeitos momentâneos e impactantes nos leitores, por meio de um tempo de leitura breve e rápida; e destas construções arquitetônicas nas suas elaborações, estes possuem quaisquer fatos simples e destacados em todas as sociedades, porém em ações desenvolvidas que estruturam os enredos compreensíveis, sem redigir muito e sem explicações, insólitos. Convém evidenciar que os contos são escritos por vários autores; e cada conto escrito na ficção possui o foco nos personagens (representados pelas pessoas como metáforas), indagando a realidade que sempre vivem em determinados momentos sociais, em específicos tempos históricos; e, através da literatura, é possível observar minuciosamente o transcorrer da História, que é sempre orgânica diante do público leitor.

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E os contos, que revelam em seus discursos textuais mediante a exposição estética do corpus as manifestações variáveis (personagens), um número infinito de idéias (ações e funções), as linguagens expressivas (que alteram a ordem sintagmática, de acordo com cada texto) para as exposições de modo resumido do que narram, e as variedades de histórias, as quais produzem enigmas nas narrativas dos mistérios nas questões abordadas; e, ao provocar as tensões entre as alegorias durante o decorrer das leituras e as interpretações dos leitores, cabe a cada um destes interpretarem os desfechos de modo subjetivo. Para as conclusões da professora (SOARES, 2006, p.54), Quanto mais concentrado, mais se caracteriza como arte de sugestão, resultante de rigoroso trabalho de seleção e de harmonização dos elementos selecionados e de ênfase no essencial. Embora possuindo os mesmos componentes do romance [...], o conto elimina as análises minuciosas, complicações no enredo e delimita fortemente o tempo e o espaço.

Os contos aplicam, por meio da quimera, a aspiração de estender o efeito de suspense, que designa uma manifestação sucessiva no decorrer das leituras (às vezes, podem ser neutras ou implícitas, de acordo com as leituras dos títulos e dos textos de cada conto) aos leitores; semelhantes a vários flashes, para que estes, através das contínuas participações individuais, leiam e releiam os contos quantas vezes for primordial, até aclarar os epílogos oblíquos, e da maneira como cada leitor os captou. Como são obras abertas, sem fins, equivalem a histórias transformadoras: cada leitor ativo concluirá, através dos diversos subtextos implícitos em todos os contos, qual prisma dará a leitura, que está à espera de análises diferentes, a cada momento de releitura. Geralmente estes possuem um ou dois personagens variáveis, e os autores adotam léxicos compreensíveis para os leitores; e, de acordo com o tempo e o espaço subjuntivos e simultâneos nas estratégias narrativas, onde são desenvolvidos os contos, permitem mais de um centro de verdade: as narrativas contêm estruturas arbóreas, com diversas ramificações de interpretações que estão presentes nos intelectos individuais dos leitores. Nas organizações escritas dos contos, há as essências das belezas estéticas junto com as poéticas nas criações ficcionais para uma fluidez de apreensões breves. O conto representa, para o escritor (RODRÍGUEZ, 1989, p.5), “Se constituye así el modelo más perfecto inventado por la humanidad como tentativa de um texto infinito, que lo diga y que lo explique todo, en cada tiempo y en cada circunstancia.”1 Para a análise do microrrelato, é necessário o conhecimento prévio das semelhanças e/ou diferenças entre as fábulas e os contos, para a proposição da organização da construção desta criação ficcional, que transcorre quando é escrito qualquer texto, em qualquer período histórico, e como estes aparecem no microrrelato. As fábulas se assemelham aos contos porque ambos os gêneros apresentam narrações breves, evidenciam problemas fáceis que são resolvidos pelos personagens e empregam o léxico acessível e de fácil assimilação aos leitores. Porém, as diferenças entre as fábulas e os contos, são as seguintes: os títulos das fábulas geralmente possuem os nomes de animais ou objetos inanimados, aclarando quais são os personagens que atuarão nas fábulas antes de ouvi-las ou lê-las, enquanto que nos contos nem sempre acontece o mesmo. Dito em outras palavras, os contos apresentam títulos que levam aos leitores nas tentativas de descobertas do que realmente significam. As fábulas apresentam as morais das histórias, que são sinônimos de valores morais aos leitores, e só admitem um único julgamento pessoal; no entanto, os contos não abordam morais de histórias ou fins, já que são obras sem limites para as diversas interpretações dos leitores de fatos imaginários nas leituras destes. 3. O microrrelato e a apresentação de um escrito pelo autor Monterroso para a compreensão deste gênero Augusto Monterroso, guatemalteco (1921-2003), devido ao envolvimento na ditadura contra Jorge Ubico em 1940, se exilou no México e hoje é consagrado como o primeiro autor que escreveu o microrrelato. (Tradução nossa): “Se constitui assim como o modelo mais perfeito inventado pela humanidade como a tentativa de um texto infinito, que diga e que explique tudo, em cada tempo e em cada circunstância.”

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Quando o elaborou, não utilizou regras para a sua formatação; usufruiu da poética e deixou explícito ao público leitor a beleza artística subjetiva da criação da ficção no microrrelato; e usou como características da percepção o uso do humor, da ironia, da paródia, do aforismo e da elipse e explicita uma estrutura sem epílogo: é aberta, idêntica a uma árvore para múltiplos entendimentos dos leitores, no atual contexto pós-moderno: é insólito. Para aclarar esta seqüência de palavras como características empregadas pelo autor, é aplicado como exemplo a tradução do microrrelato “O Fabuloso e seus críticos”, por Millôr Fernandes, para a elucidação de uma obra contemporânea. “O Fabulista e seus críticos” Na Selva vivia há muito tempo um Fabulista cujos criticados se reuniram um dia e o visitaram para queixarse dele (fingindo alegremente que não falavam por eles mas pelos outros), na base de que suas críticas não nasciam da boa intenção mas do ódio. Como ele estava de acordo, eles se retiraram envergonhados, como na vez em que a Cigarra se decidiu e disse à Formiga tudo o que tinha de dizer.

Além destas características, é interessante frisar inicialmente que neste corpus como exemplo, Monterroso não escreve da forma tradicional dos fabulistas- que, ao iniciar uma fábula, como práxis, sempre está escrito ao início “Era uma vez”, “Há muito tempo”, entre outros- mas o autor o coloca posterior ao início da introdução; esta é uma forma humorística de exprimir que ele não se baseia na reprodução dos códigos estabelecidos para a escrita das fábulas clássicas; é uma dialética dele para que o leitor a perceba. O espaço que o autor utiliza neste texto, a selva, é uma metáfora que equivale às sociedades metropolitanas onde os homens vivem; e os personagens, os animais-também representam a metáfora dos homens-já que pensam, dialogam e agem de maneira e semelhança no comportamento dos seres humanos; logo, a selva e os animais dizem respeito a uma forma de questionamento aos leitores se o que a história escreveu representa a autenticidade ou não. A primeira característica do autor é o uso do humor negro, isto é, que extrai da realidade do mundo, alguma situação séria que pode ser elaborada de outro feitio, e a desenvolve através da intelectualidade, uma outra perspectiva de interpretação crítica, na posição de um tipo de comédia, em tom satírico. Como exemplo, do microrrelato citado, destaco o título “O Fabulista e seus Críticos”. Nunca foram escritos em livros, jornais ou revistas, documentos com críticas acirradas a qualquer fabulador, questionando se tudo o que está escrito na prosa é verdadeiro ou não. O cânone está na forma diferente de como o fabulista escreve; logo, ele é criticado. Portanto, este título aclara o sentido desta característica, e introduz ao leitor uma reflexão dialética no título-até que ponto é relevante a ontologia de um fabulista, que sempre escreveu com o intuito de aconselhar ou ensinar a quaisquer leitores. A segunda é o aforismo, uma sentença moral breve e sintética; este é usado em lugar estratégico, dentro do texto, que expressa um conceito ou uma opinião, como uma reflexão, em várias releituras. No corpus citado acima, está em destaque o aforismo no segundo parágrafo, anteposto a vírgula: “Como ele estava de acordo, eles se retiraram envergonhados, [...]”. Não há lógica de que um fabulista, aceite de modo conformista, qualquer crítica que não seja construtiva, e sim destrutiva, do trabalho que sempre elabora. Este exemplo esclarece a particularidade. A terceira é a ironia, que demonstra uma explicação, contudo oposta ao pensamento da psique do leitor, no momento da leitura; idêntica a um contraste que equivale a uma brincadeira. Para iluminar esta definição, cito do primeiro parágrafo “[...] na base de que suas críticas não nasciam da boa intenção mas do ódio.” Indica que o fabulista nunca teve a intenção de escrever bem, porém escreve como uma crítica, incluindo as façanhas das figuras da sociedade na qual observa, já que não está satisfeito. Este exemplo esclarece a característica. A quarta é a elipse, que omite na oração algum elemento (importante na redução), e fica subentendido no texto a quem se refere. A amostra para esta definição é “Na Selva vivia há muito tempo um Fabulista cujos criticados se reuniram um dia e o visitaram para queixar-se dele[...]”. A contração dele se refere ao fabulista, citado no início do texto.

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A quinta é a paródia, que significa uma autocrítica de uma história ou de um personagem, modificando o que foi escrito. O exemplo “[...] como na vez em que a Cigarra se decidiu e disse à Formiga tudo o que tinha de dizer”, ao final do microrrelato, inverte a escrita da conhecida fábula “A cigarra e a formiga”, ocorre o contrário: é a cigarra que diz à formiga o que deseja, ao contrário da fábula: a formiga diz o que deseja à cigarra. De acordo com a percepção da autora (HUTCHEON, 1991, p. 28), “Em certo sentido, a paródia é uma forma pós-moderna perfeita, pois, paradoxalmente, incorpora e desafia aquilo a que parodia. Ela também obriga a uma reconsideração da idéia de origem ou originalidade, idéia compatível com outros questionamentos pós-modernos sobre os pressupostos do humanismo liberal.”

Nestes termos, a personagem formiga das fábulas, que sempre trabalha diariamente, carregando o peso da alimentação além das forças de seu corpo, para sustentar-se diariamente, pensa no seu bem estar pessoal; fazendo uma ponte com a realidade contemporânea, a formiga representa o trabalhador da sociedade da massa nas nações sociais. E a cigarra, que sempre cantou e nunca se preocupou com a passagem do tempo, é a metáfora do patrão de uma empresa da sociedade capitalista; este pode dizer o que quiser aos empregados, que jamais nenhum deles argumentarão ou questionarão as suas idéias ou ordens. Ao utilizar a paródia, Monterroso desconstrói a imagem tradicional da fábula para que o leitor questione e reflita esta ficção, para a reelaboração do final verdadeiro e individual do microrrelato. Para uma premissa que esclareça o que foi escrito anteriormente em relação aos personagens das fábulas, é útil frisar que, de acordo com os estudos do filósofo Thomas Adorno, no livro da dialética negativa, o homem não nasce de primeira natureza, como Adão e Eva. Dito em outras palavras, o ser humano não nasce em contato com as árvores, com os animais e os rios, sem roupas para o uso, e sem o uso de linguagens e culturas diferentes. O homem nasce de segunda natureza, isto é, nasce em uma determinada sociedade, em um determinado país, adquire uma língua como meio de comunicação, obtém uma determinada cultura e nasce em um determinado período da História humana. Estas informações são úteis para a compreensão das metonímias empregadas nos animais das fábulas, para elucidar uma escrita diferente destes personagens no microrrelato, nesta resumida apresentação. Outra observação é que, no final do microrrelato, o autor coloca a fábula “a cigarra e a formiga”, como encaixe, todavia escrita de modo divergente das consagradas fábulas; ou seja, a formiga que sempre trabalhou para guardar o que necessitava para viver, e a cigarra que só pensou em cantar e não se preocupou com a vida real – mas agora esta tem o poder nas palavras, e disse o que desejou para aquela que somente trabalhou – para deixar em aberto a interpretação do trabalho ao leitor, em um tom bem humorístico e crítico. Este é um exemplo de uma outra narrativa diferente da conhecida tradicionalmente; e sob o ponto de vista do filósofo russo (TZVETZAN, 2006, p.126), Contando a história de uma outra narrativa, a primeira atinge seu tema essencial e, ao mesmo tempo, se reflete nessa imagem de si mesma; a narrativa encaixada é ao mesmo tempo a imagem dessa grande narrativa abstrata da qual todas as outras são apenas partes ínfimas, e também da narrativa encaixante, que a precede diretamente. Ser a narrativa de uma narrativa é o destino de toda narrativa que se realiza através do encaixe.

A observação de Tzvetzan significa que, ao ser utilizada como introduzida no término da narrativa do microrrelato, em oposição à conhecida fábula clássica “A cigarra e a formiga”, é reescrita de outro modo, de forma profunda de toda narrativa; embora utilize os mesmos personagens, é considerada uma narrativa de uma narrativa, ou seja, não atinge a igualdade de escrita da fábula clássica, mas sim o tema de outros círculos de análises feitas pelos leitores. A poética é aplicada na literatura como meio de estudar o texto além das aparências nas margens; e de acordo com a observação da escritora (HUTCHEON, 1991, p.40), “O modelo de contradições aqui apresentado-embora reconheça ser apenas mais um modelo-teria a pretensão de abrir qualquer poética do pós-modernismo a elementos plurais e contestatórios sem reduzi-los ou recuperá-los necessariamente.”

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Esta citação explicita que a poética aclara a formação bela do microrrelato como um gênero de construções autônomas, com a narratividade ficcional na prosa, que conta uma história concisa, o uso de uma linguagem paradoxal e um final surpreendente aos leitores que vivem num mundo sociocultural plural, envolvido de tensões, onde cada um expõe a dialética individual. A leitura se torna agradável, num sentido amplo. Para qualquer autor, quanto menos se pensa no ato de escrever, melhor se destaca no resultado da ficção narrativa. E esta forma de agir não é voluntária; significa um dos vários aspectos da concepção artística, cujo efeito e configuração serão bem sucedidos. 4. Conclusão O microrrelato apresenta na forma estética a característica de ser um texto muito curto (entre uma a duzentas palavras) e expõe de forma natural as histórias breves; os personagens (nem todos) não possuem nomes (como exemplo, o fabulista); é híbrido (utilizou uma fábula clássica como encaixe e, simultaneamente, o sub-texto para criar o microrrelato apresentado); é fragmentário (utiliza diversas características para expor uma crítica a um mundo plural e ambíguo no qual os homens vivem) e integra pela poética a História e a arte orgânicas para a criação do microrrelato. A literatura é uma forma de expressar a arte produzida pelos autores (produtores) para os outros (leitores): por meio do fio tecedor dos autores dos microrrelatos, usam a criatividade para escrever em prosa aos homens com o espírito crítico da realidade contemporânea. Cabe ao professor, que queira aplicar este exemplo de microrrelato como um trabalho de leitura e interpretação nas escolas, antes de fornecer-lhes o texto, elaborar uma composição que explicite o conhecimento prévio sobre o autor escolhido e as características que ele utiliza nos textos, para uma ampla compreensão de uma particularidade do conto, que é o microrrelato. Após toda esta apresentação, são exibidas algumas sugestões de perguntas de análise aos alunos (para que despertem as curiosidades deles e os fomentem a pesquisar ou a redigir as suas opiniões individuais, incluindo nas elaborações de redações na língua portuguesa). As perguntas são as seguintes: 1) Qual é o nome do fabulista? Por quê? 2) Por quem ele é criticado? 3) Por que o fabulista vivia na Selva? 4) O que ele fazia? 5) Quais personagens foram criticá-lo? 6) Estes personagens estavam contentes com a presença do fabulista na selva ou não? Por quê? 7) O que o fabulista escrevia era bom ou era ruim para aqueles que liam os textos? Por quê? 8) O fabulista concordou com o que reclamaram de suas histórias? Por quê? 9) A fábula “A cigarra e a formiga” aparece ao final como comparação com o que aconteceu com o fabulista. Está escrita da mesma forma que você conhece? 10) O que há de diferente em relação à fábula que você conhece? 11) O que você imagina que a cigarra falou para a formiga? 12) Termine esta história com um final subjetivo. De acordo com o escritor (ZAVALA, 2004, p. 110), “Algunos minitextos tienen un notable valor poético.Otros tienen claro sentido del humor o de la ironía. Y en el resto se exploran otras posibilidades de la prosa breve, como la alegoria, la metaficción y la parodia.”*.2 2

(Tradução nossa): “Alguns mini-textos têm um notável valor poético. Outros têm o claro sentido do humor ou da ironia.

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Esta observação significa que o microrrelato se resume numa obra que, junto com a poética, utiliza a prosa como um texto “breve, com aforismos, ironia, elipse, humor negro, é fragmentário, híbrido, aberto a diversas interpretações e apresenta a essência da beleza artística e o desejo da perfeição que encanta ao mundo”. Referências DEZOTTI, M.C.C. A tradição da fábula. De Esopo a La Fontaine. São Paulo: IMESP, 2003, p.27-119. ECO, Umberto. Lector in fabula. A cooperação interpretativa nos textos narrativos. São Paulo: Perspectiva, 2002, p.42. FERNANDES, M. A ovelha negra. Tradução original em língua espanhola La Oveja Negra Y Demás Fábulas, Editora Record, Rio de Janeiro, 1983, p. 85. FERREIRA, A.B.H. Novo Aurélio Século XXI: o dicionário da língua portuguesa. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1999, p. 870. HUTCHEON, L. Poética do Pós-Modernismo: história, teoria, ficção. Rio de Janeiro, Imago Ed., 1991, p.28-40. RODRÍGUEZ, A. A. Los cuentos populares o la tentativa de um texto infinito. Alicante: Biblioteca Virtual Miguel de Cervantes, 2007. Disponível em: . Acesso em: 6 set. 2007. SACCONI, L.A. Nossa Gramática. Teoria e Prática. São Paulo, Atual Editora, 1994, p.437-438. SOARES, A. Gêneros Literários. São Paulo, Editora Ática, 2006, p.54. TZVETZAN, T. As estruturas narrativas. 4ed. São Paulo, Editora perspectiva, 2006, p. 126. ZAVALA, L. Cartografías del cuento y la minificción. Madrid: Editorial Renacimiento, 2004, p.110.

E no resto se registram outras possibilidades da prosa breve, como a alegoria, a metaficção e a paródia.”

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A antropofagia entre a oralidade e a escrita na moderna literatura brasileira, o caso de Benedicto Monteiro Luciano FUSSIEGER (Secretaria de Estado de Educação do Pará)

RESUMO: O presente trabalho defende que, tomadas algumas obras da moderna literatura brasileira, há a eclosão de uma escrita anômala, fundada num espaço entre as esferas poéticas da escrita e as da oralidade. Pensa-se em textos como Grande Sertão: Veredas, Sargento Getúlio, Verde Vagomundo, O Minossauro, Aquele Um e A Terceira Margem do Rio; todos propondo uma escritura que forja um ato comunicativo nos moldes orais. Todos arquitetam a narração de uma narração, ou melhor, de um ato narrativo. Tal ato, praticado pela personagem central, encena na escrita um ato performático, típico dos contextos poéticos da oralidade e de seus agentes: os contadores de histórias. Nesse ato encenado, instaura-se, nos moldes da oralidade, uma relação intersubjetiva. O EU construído na narrativa funda, em relação ao seu discurso, um TU fi ctício que recebe o narrado e interagem com o eu via presença presumida. Essa escritura “anômala” instaura-se como forma cujo signifi cado deve ser buscado no conteúdo construído e veiculado pelo discurso do eu. De fato, é notório que nas obras citadas ganham voz personagens construídas sob bases do imaginário popular. Tais personagens se constroem pelo seu discurso-teia que é um tecer de citações de lugares, saberes culturais, falas regionais, os quais circunscrevem um imaginário que cristaliza uma espécie de fi gura-mito (os jagunços Riobaldo e Getúlio, na obra de Rosa e Ubaldo representando o Sertão e seu povo; o caboclo Miguel representando a Amazônia e seu povo, na obra de Monteiro) representada sempre pelo eu que se constrói no enunciado e que se contrasta, a título de diferença, com o outro, o tu da enunciação. PALAVRAS-CHAVE: Escrita; Oralidade; Escritura anômala.


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I É fato notório que um ramo da literatura brasileira dos últimos cinqüenta anos namora uma série de elementos do que podemos chamar da “poética da oralidade”. Desnecessário citar os inúmeros trabalhos, neste sentido, que exploram a obra de escritores canônicos como Guimarães Rosa, João Ubaldo Ribeiro e Ariano Suassuna. Todos declarados tecelões de tecidos intertextuais cujos fios provem tanto da cultura letrada quanto do universo da oralidade brasileira. Nossa proposta aqui é tratar de um fenômeno que vislumbramos em obras diversas destes escritores que usam esta escrita intertextual acima referida. Proporemos uma visão ampla dos fenômenos intertextuais erigidos por esta escrita que busca o universo da oralidade, afim de ao final, melhor elucidarmos o fenômeno específico que se apresenta como uma “escrita anômala”. Como exemplificação, analisaremos o romance Verde Vagomundo, de Benedicto Monteiro, romance que se constrói, em parte, dentro do que chamamos de “escrita anômala”, e que se compara neste sentido com outras obras como Sargento Getúlio, de João Ubaldo Ribeiro e Grande Sertão: Veredas, de João Guimarães Rosa, formando com estas um sistema, onde o signo “escrita anômala” pode ser ativado, ou para usarmos uma feliz expressão de Octávio Paz, posto em rotação, a fim de produzirmos sentidos aceitáveis. II Dentre as obras da literatura brasileira que propõe forte intertextualidade, tanto substancial quanto formal, com as esferas poéticas da oralidade, podemos vislumbrar três grupos, com tendências distintas. O primeiro explora a intertextualidade dos temas e motivos difundidos na oralidade em suas manifestações (contos, provérbios, chistes, lendas, mitos, romances, cordéis, lengalengas, cantigas, etc), centralizando em si os sentidos múltiplos que estes outros textos possuem. O texto escrito, surgido de tal fenômeno, pratica seu ritual antropofágico principalmente incorporando a vitalidade do conteúdo imagético difundido pelas tradições orais, ou seja, suas imagens, clichês, situações, personagens, versos, provérbios, léxico, etc. Tal intertextualidade, ao propor o texto escrito como centro de confluência e principalmente de visibilidade do imaginário oral, frente a uma tradição ocidental de escrita, concretiza bem sua natureza intertextual, pois como diz Jenny Laurent, em seu célebre ensaio A estratégia da forma, “a intertextualidade é pois máquina perturbadora”(1979: 45). Ao dar visibilidade, via escrita, às tradições populares orais, tal intertextualidade subverte uma escrita calcada nas convenções do bom escrever e falar e nas imagens de uma vida média burguesa, neste sentido, podemos dizer que tais obras da moderna literatura brasileira assumiram, concretizaram e radicalizaram o projeto aberto pelos modernistas. Sua ideologia é de renovação e expansão, via literatura e via intertextualidade, do imaginário comum brasileiro. Tal movimento pode ser ilustrado pelas obras de Hermilo Borba Filho (Os Ambulantes de Deus, O Coronel está Pintando, Sete dias a Cavalo, As Meninas do Sobrado), Candido de Carvalho (O Coronel e o Lobisomem), Herberto Salles (O lobisomem e outros contos) e Ariano Suassuna (O Romance da Pedra do Reino, O Auto da Compadecida, O santo e a Porca, O Casamento Suspeitoso). O segundo movimento de antropofagia diz respeito a um fenômeno mais antigo, em se tratando de literatura brasileira, citado pela crítica. Trata-se de uma escrita que procura apresentarse num tom oral, próximo ao da fala. É um recurso estilístico, presente em Dom Casmurro, Memórias Póstumas de Brás Cubas e em São Bernardo, por exemplo. Este tom oral da escrita é mencionado por Antônio Cândido em seu Literatura e Sociedade. Tal idéia é recuperada, teorizada e exemplificada por Irene Machado em seu livro O Romance e a Voz, quando da sua discussão do fenômeno do Skaz, descrito pela teoria bakhtiniana do romance. Com efeito, Bakhtin, propunha ser o romance a forma, o gênero onde o discurso constrói a imagem de diversas linguagens. Estas imagens se relacionam dentro do fenômeno chamado de dialogismo, compreendido, grosso modo, como a significação construída na relação necessária que um discurso mantém com os demais discursos, sejam discursos estéticos, históricos, filosóficos, sociais, etc. Com base na teoria Bakhtiniana, Irene Machado enquadra o referido tom oral, na escrita de certos romances, dentro da categoria do Skaz, entendido por ela como “um discurso de violação que atua no interior do próprio discurso no sentido de alterar sua entoação geral, quer dizer,

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o discurso escrito deve se oferecer ao leitor como enunciação de vozes capazes de criar a ilusão oral do relato.” (MACHADO, 1995: 162). Machado chama a atenção para que não confundamos este tom oral que o discurso escrito procura atingir, com a oralidade cristalizada em grafia, comum na transcrição de relatos orais, ou na literatura fortemente regionalista. O skaz é um fenômeno estético de manifestação do dialogismo, é “fala estilizada que define o skaz e o revela como possibilidade de marcar o tom pessoal da performance oral do autor-narrador ou dos personagens” (MACHADO, 1995: 162). Inserido neste campo teórico, esta segunda antropofagia apresentada é absorção de certo modo de se apresentar, que a escrita procura na oralidade (fala), propondo textos cujos narradores ou personagens travam quasediálogos com seus leitores pressupostos. Há um tom de conversa neste discurso escrito, por mais que o contraponto do outro, seja fingido pelo discurso do eu. É neste sentido que o skaz é fala estilizada, pois procura incorporar na escrita a intersubjetividade presente no diálogo “cara-a-cara”. Caso bem ilustrado pela escrita machadiana de Memórias Póstumas, onde Brás Cubas, nos “fala” antecipando em seu discurso todas as possíveis objeções e apontamentos que seu discurso poderia acionar frente a outrem. O terceiro movimento de antropofagia entre a oralidade e a escrita, diz respeito a um fenômeno contemporâneo de escritura, onde o sujeito da enunciação não só traz um tom oral(de fala) para a escrita, como também faz estar presente o interlocutor - o outro a quem o discurso se destina- e a instância performática de enunciação. Tal absorção de forças da oralidade por parte da escrita, provoca a eclosão de uma escrita anômala, que ficcionaliza (estiliza) não só a fala como também a performance na qual tal fala eclode. Este fenômeno é próximo do skaz e foi tangenciado por Irene Machado (no livro já citado) e por Silviano Santiago, em Vale quanto pesa. Ambos, ao analisarem Grande Sertão: Veredas, deram-se conta de que há uma interação envolvendo o personagem-narrador Riobaldo e seu interlocutor, identificado como “o senhor”. Machado interpreta esta relação voltando seu olhar para a questão da memória e da narração da memória, sendo o “senhor” um ponto de contato que Riobaldo possui com a realidade, permitindo a organização da narrativa, mesmo que de modo fragmentário. Já Santiago, propõe a hermenêutica sociológica para o fenômeno, mostrando o papel simbólico que cada um ocupa e a inversão produzida na obra. Torna-se pertinente assinalar que o lugar ocupado no discurso anterior pelo narrador-intelectual, agora se encontra preenchido por alguém que obedece e desobedece ao mando do senhor, o jagunço Riobaldo. Riobaldo que apenas pode falar, e fala “em ignorância’ a este “senhor” que a todo momento aflora silencioso na narrativa. Com isso, passa o intelectual, citadino e dono da cultura ocidental, a ser apenas ouvinte e escrevente, habitando o espaço textual – não com seu enorme e inflado eu – mas com seu silêncio. (SANTIAGO, 1982:34).

Apesar de pertinentes e interessantes, ambas as leituras não se preocupam, quiçá por não velo plenamente, com o fenômeno da “escrita anômala” enquanto escritura, ou seja, enquanto forma ou proposta de linguagem. Proporemos preencher esta lacuna. III A absorção antropofágica que a escrita anômala pratica em relação à oralidade, não é só da ordem dos temas e motivos, nem só da ordem de um pressuposto tom de fala. A escrita anômala propõe uma encenação, no texto, daquilo que é o centro da atividade poética dada em contextos orais: a performance. Com efeito, a realização performática é o que confere às manifestações poéticas orais sua idiossincrasia enquanto arte. Citando um grande estudioso da oralidade, Paul Zumthor (2000), dizemos que a performance é o modo pelo qual a poesia, em sua manifestação oral, pratica a “ritualização da linguagem”, característica de tudo aquilo que aspira ser poético. A performance propõe o ritual através do qual ocorre a simbiose semiótica praticada pelo ator maior da oralidade: o contador/cantador. Na performance, ocorre a junção do ambiente sócio-histórico, do público, do contador, seus gestos, palavras, entonação de voz, olhares, tudo para propor ao receptor a única forma de fruição plena das manifestações orais, qual seja, a vivência. A escrita anômala, ao fundar-se como uma forma de escritura intersticial, procura, via grafismo, cristalizar o máximo do fenômeno performático das manifestações poéticas da oralidade. Mas o que vem a ser este máximo que a escrita pode cristalizar?

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Na instância do discurso da performance ocorre um fenômeno de rearranjo do espaço/tempo e dos sujeitos da enunciação, ocorre o que Zumthor (2000) chama de “ um outro colocar em cena do sujeito”. Como nos demonstra Benveniste (1995), o sujeito, ou melhor, o ego, que, numa instância de discurso, adentra a linguagem para enunciar-se, preenche a categoria formal de subjetividade que a língua lhe reserva, o EU. Ao fazê-lo, imediatamente e necessariamente ergue-se o outro pólo de pessoalidade, o TU. O TU, fundado pelo EU, ocupa o espaço da recepção do enunciado de EU, produzido na instancia de discurso onde ego adentrou a linguagem, preenchendo os espaços formais de subjetividade dados pela língua. Assim, o TU só pode enunciar quando tornar-se um EU, fazendo o mesmo caminho de preenchimento das categorias formais de subjetividade da língua e fundando um TU em relação ao seu enunciado. No rearranjo mencionado por Zumthor, em contextos performáticos, a palavra de EU, de ego que adentrou a linguagem na foram de contador, adquire, juntamente com o tempo/espaço da instância de discurso da performance, um outro estatuto que não o do diálogo, criando o contexto ritual da linguagem1. É proibido a TU virar EU para colocar (em temos Bakhtinianos) sua contrapalavra. Tal fenômeno lingüístico pode ser mais bem elucidado e enriquecido com outros elementos, se propormos um passeio via teoria da comunicação, aos moldes jakobsianos. Como teorizou Jakobson, para haver uma comunicação são necessários seis elementos2, dentre os quais nos interessa, aquele que Jakobson batizou de contato “um canal físico e uma conexão psicológica entre remetente e destinatário, que os capacite a ambos a entrarem e permanecerem em comunicação”(JAKOBSON, 2003: 123). A cada elemento da comunicação, Jakobson atrela uma função. Para o elemento contato temos a função fática, definida como as “mensagens que servem fundamentalmente para prolongar ou interromper a comunicação, para verificar se o canal funciona (“Alô, está me ouvindo?”), para atrair a atenção do interlocutor ou confirmar sua atenção continuada[...]”(JAKOBSON, 2003: 126). Pois bem, no entrar em cena do sujeito da performance, a comunicação centra-se na palavra do EU, criador e organizador do mundo narrado. A função fática torna-se predominante na comunicação intersubjetiva. O destinatário desta palavra, deve entendê-la como fictícia e, principalmente, deve entender seu papel no ritual, o de ouvinte. Assim, na performance oral o interlocutor (o TU) aparece somente incorporado à fala do narrador que fica constantemente testando o contato, vendo se ambos, narrador e platéia, estão em sintonia. Aqui, cria-se um ponto interessante para pensarmos a escrita anômala. São estas características do uso da linguagem performática pela oralidade, que a escrita anômala irá absorver. Com efeito, tal escritura procura ficcionalizar esta interação narrador/platéia marcada pela predominância, na comunicação, do uso da função fática. Além disso, há também a ficcionalização do rearranjo dos papéis dos sujeitos (seu tempo e espaço) envolvidos na comunicação. È o que ocorre, como procuraremos demonstrar, na escrita do romance Verde Vagomundo, de Benedicto Monteiro. IV Verde vagomundo constrói-se de modo a dar margem a uma óbvia e fácil leitura sociológica. Passando-se num período pré-golpe militar, teatraliza toda uma rede de interesses e papéis sociais que se centralizam na visita do major Antônio Medeiros a longínqua cidade de Alenquer, situada na região amazônica. Filho da terra, o militar volta, após fazer carreira no exército, inclusive com participação na 2ª guerra mundial, para vender uma farta herança em terras. Ao longo da “quase-narrativa” desta Podemos ilustrar tal fenômeno facilmente com uma experiência cotidiana. Quem nunca contou ou ouviu uma história de amigo ou familiar que inicia com uma interjeição regional, seguida de uma espécie de fórmula lingüística tipo, “você nem sabe o que me aconteceu” ou “você nem vai acreditar no que me aconteceu”; depois da qual ouvimos ou narramos, sem intervenção de nosso interlocutor – sem construção de diálogo propriamente dito -, uma história? Tal experiência é a da contação de história, da performance, da ritualização. Sabemos que estamos frente a um determinado comportamento de linguagem que nos aliena da troca de palavras propriamente ditas, assumimos o papel marcado, ou de contador ou de ouvinte. Há o rearranjo dos papéis e do tempo/espaço, pois resemantizamos os gestos, as expressões, a tonalidade da voz, as indicações de tempo e espaço, para que tudo signifique de modo distinto acrescentando sentido a história contada. 2 Os outros cinco elementos constituintes da comunicação, segundo Jakobson, são: o remetente, o destinatário, a mensagem, o contexto e o código. 1

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ação, vemos envolverem-se inúmeros personagens representativos dos mais diversos papéis sociais, o migrante enriquecido, o capitalista, o nativo explorado, o comerciante descendente da colonização, o emigrado que retorna a terra; assim como as instituições: o estado, a igreja e a família. Passando por esta abordagem óbvia, vemos que o romance se enriquece em sentido ao percebermos sua construção formal. Em verdade, tendo a forma de apresentação do discurso em foco, podemos dizer que Verde vagomundo enquadra-se naquilo que alguns chamam de romance pósmoderno. Com efeito, não há uma história propriamente dita em evolução no romance. Este se constrói num jogo de vozes que se apresentam de inúmeras formas. Há o discurso auto-reflexivo em primeira pessoa do major Antônio Medeiros, personagem-autor e unificador do romance. Seus comentários tecem, através de reflexões histórico-sociais, existenciais e metalingüísticas, os demais discursos que se apresentam ao leitor. Estes nos chegam por meio dos recorrentes capítulos intitulados “Gravadorautomático – Fita nº...” e “Rádio – Transistor 10/...”, onde o primeiro reproduz falas gravadas pelo major e o segundo um mosaico de manchetes provenientes de programas jornalísticos de rádio. O primeiro ciclo retrata a fala e imaginários locais e o segundo provoca um conectar com a situação histórica brasileira e mundial. Em ambos podemos ver a tentativa de remeter à oralidade, já que simulam a audição. Tal fato é relevante se pensarmos o primeiro ciclo, o do “gravador automático”, no qual percebemos a eclosão do fenômeno da escrita anômala, que tentamos teorizar acima. O romance de Monteiro proporciona uma rica exemplificação do fenômeno, pois não só se constrói em parte por ele, como também dramatiza, por meio da voz do personagem-autor, o major Antônio Medeiros, a escrita, ou melhor, a impossibilidade da escrita da performance oral. Exemplos da ficcionalização da performance podem ser percebidos a partir da entrada em cena do personagem Miguel dos Santos Prazeres, vulgo Cabra da Peste, um caboclo amazônida que acompanha o Major em sua excursão pelas matas, para visitação de suas terras. Como muitos romances antes de Verde vagomundo, o motivo, viagem, aparece para a eclosão das histórias, narradas como modo de passar o tempo. É o que se dá na transição do capítulo “Rádio – Transistor 10/4” para o capítulo “Gravador- automático – Fita nº3”. O primeiro termina com a descrição do contexto inicial de uma performance oral, de uma contação de história. O major Antônio, curioso pela figura de Miguel, sempre quieto e atento à mata, procura incentivar a fala do caboclo Provoquei a fala de Miguel com a primeira pergunta: – Miguel, será que você nunca teve vontade de sair daqui pra viajar por outras terras? - Já, seu Major, já tive muita. Foi um dia na passação do gado do Coronel Quintino, quando ouvi um caboco dizer: é, o negócio é correr terra... o negócio é correr terra...(MONTEIRO, 1991: 68-69)

Se voltarmos na leitura do capítulo, notamos que este se forma de um intenso diálogo entre o major e o tripulante Pepe Rico, possível interessado nas terras de Antônio Medeiros, cortado por pequenas participações de Miguel. Após este diálogo, o capítulo termina como o citamos acima, temos então a transição para o capítulo seguinte (“Gravador- automático – Fita nº3”), que se constrói com base na escrita anômala, isto é, ficcionalizando a performance iniciada pela provocação do major, onde podemos perceber o fenômeno da recolocação do sujeito em cena, pois a passagem insere uma clara fórmula “Foi um dia...”, prima-irmã de Era uma vez..., que marca o início da contação, e que encerra o diálogo propriamente dito. Dentro desta contação, que forma o maior dentre os discursos formadores do romance-mosaico, são inúmeros os trechos para a exemplificação da função fática da linguagem, característica da contação de histórias. O senhor pensa que desanimei, seu Major? Não. Voltei novamente pra mata, e procurei outra árvore. Uma árvore. No terreiro da casa é que não ficava bem. Ia sair pelo mundo, enfrentar a vida, lutar contra a sorte, sem contar com a proteção nem de mãe nem de pai. Mal comparado, eu podia me meter até num igapó ou num chavascal, o que o senhor acha, seu Major? (MONTEIRO, 1991: 73)

A partir deste capítulo, o discurso do caboclo Miguel vai sendo introduzido aos poucos, sempre entrecortado pelos demais discursos. A cada audição das fitas gravadas, o Major vai refletindo sobre a natureza daquela história, sua incompletude agora que gravada, a impossibilidade dele, enquanto autor de um livro, passar para o escrito a riqueza da performance oral.

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Anais do II Congresso Internacional de Estudos Linguísticos e Literários na Amazônia (CIELLA) Mesmo copiando de um gravador, onde gravei em fita todas as nossas conversas, não sei se posso transpor para o papel com fidelidade, a linguagem interessantíssima desse caboclo extraordinário que é Cabra da Peste. O próprio timbre da sua voz, que eu ouço agora na fita magnética, já não é o mesmo que ouvi sair da sua garganta. As palavras que saíam estalando entre aquelas alvas carreiras de dentes, parece até que nem são as mesmas, que estão aqui irremediavelmente escritas, nestas letras quase mortas. E o brilho dos seus olhos! Os gestos, os gestos das mãos! A dança do corpo! Parece até que condicionavam o próprio ritmo. O ritmo: eis aí o toque mágico das palavras do caboclo! Será que escritas no papel essas palavras, terão o mesmo ritmo que eu senti, quando elas jorravam da boca? Bastará por acaso, a simples pontuação gramatical, como acontece com o compasso, na leitura da música? Confesso, que depois de escrever todas essas palavras, deparo com estas dificuldades e temo em fazer dos meus heróis, simples criaturas. (MONTEIRO, 1991:144)

Esta grande reflexão metalingüística é apresentada no capítulo intitulado “O diário”, já do meio para o fim do romance, e se destaca por justamente refletir sobre a performance e, num truque enunciativo interessante, apresentá-la discursivamente, justamente na reflexão da impossibilidade de fazê-lo via escrita. Temos descrito nesta reflexão justo aquilo que defendíamos acima, como sendo a grande característica estética das manifestações orais, sua performance. Bem como, a incapacidade da escrita de absorvê-la da oralidade. A fala do Major ficcionaliza este drama, assim como sua escrita da contação de Miguel se constrói dentro da escrita anômala, ficcionalizando a perfomance. V Seguindo nossa elucidação da escrita anômala, cabe a pergunta hermenêutica: que sentido se abre com esta chave, a escrita anômala? O que tal escritura traz de novo em matéria de sentido? Voltando um pouco ao início de nossa argumentação e remontando o corpus onde dissemos se vislumbrar o fenômeno, Sargento Getúlio, Grande Sertão: veredas e Verde vagomundo (podendo-se somar a este os demais romances que formam a tetralogia de Monteiro), podemos afirmar que a forma da escritura destes romances endossa e radicaliza aquilo que os críticos vêem somente ao nível do conteúdo. Expliquemos. Grande Sertão: veredas, por exemplo, é tido como subversivo em sua enunciação por apresentar o imaginário popular do sertão, sua riqueza e beleza, invertendo, como mostra Santiago e confirmam outros, o papel enunciativo. Não estamos mais frente ao “narradorintelectual”, citadino, “culto”, detentor do saber legitimado; o papel se inverte, quem se enuncia é o imaginário marginalizado, simbolizado na figura do jagunço/sertanejo Riobaldo. O mesmo ocorre em todos os romances citados neste artigo. Porém, no caso do corpus onde eclode a escrita anômala, há, além da inversão do lócus enunciativo e do sujeito da enunciação, a ficcionalização da forma como tal imaginário se enuncia em seu lócus nativo, ou seja, temos não só a emergência, via ficção, do conteúdo de um imaginário popular regionalmente circunscrito, mas também a emergência da forma – ficcionalizada- como esse conteúdo se propaga no seu lócus nativo, a oralidade. Esta forma, como demonstramos, é a performance. Destarte, os romances que se constroem ficcionalizando a performance da contação de história, subvertem em um grau maior a “lógica legitimada”. Não somente dão voz aos imaginários marginalizados, mas o fazem numa escritura intersticial que procura boicotar até mesmo a forma como a lógica legitimada se manifesta. Provocando assim, uma escritura anômala, frente à escrita do intelectual, citadino, culto, detentor do saber legitimado. Escritura que ficcionaliza a força da performance, o encantamento da manifestação da oralidade, o “toque mágico” ao qual se refere o personagem de Monteiro. Eis aí o sentido maior deste fenômeno. Referências BAKHTIN, Mikhail. Problemas da Poética de Dostoiévski. Benveniste,Émile. Problemas da Linguística Geral. Campinas, SP. Pontes, 1995, 4ª ed, V. I. SANTIAGO, Silviano. Vale quanto pesa. IN: SANTIAGO, Silviano. Vale quanto pesa: Ensaios sobre questões político-culturais. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1982.

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Tema geral: Línguas e Literaturas: Diversidade e Adversidades na América Latina LAURET, Jenny. A estratégia da forma. IN: Intertextualidades. Coimbra. Livraria Almedina, 1979. JAKOBSON, Roman. Lingüística e poética. IN: JAKOBSON, Roman. Lingüística e comunicação. São Paulo: Cultrix, 2003, 19ª ed. MACHADO, Irene A. O Romance e a Voz: a prosaica dialógica de Mikhail Bakhtin. Rio de Janeiro: Imago, 1995. MONTEIRO, Benedicto. Verde vagomundo. Belém. Cejup, 1991, 3ª Ed. ZUMTHOR, Paul. Performance, recepção, leitura. São Paulo: EDUC, 2000.

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O NATURALISMO PRESENTE NO ROMANCE TENTAÇÃO, DE ADOLFO CAMINHA Luena Mitié Takada BARROS (Universidade do Estado do Pará) Márcio de SOUSA E SILVA (Universidade do Estado do Pará)

RESUMO: O presente trabalho demonstra como a corrente literária naturalista está impregnada na produção de Adolfo Caminha. O Naturalismo, como um estilo de época da literatura, é reflexo do contexto históricosocial em que surgiu e transmite às obras literárias as idéias em trânsito do período referido. Dentro dos textos1, as características naturalistas perpassam a semântica e a sintaxe; a partir da análise bakhtiniana, faz-se a afirmação de que forma e conteúdo estão em uma estreita relação que transmite as impressões do autor e as idéias trabalhadas. PALAVRAS-CHAVE: Naturalismo; Adolfo Caminha; semântica; sintaxe; Bakhtin.

ABSTRACT: The present article demonstrates how the literary naturalism is permeated in Adolfo Caminha’s production. Naturalism, as a literature epoch style, is an historical and social context reflex where it appeared and transmits to literary compositions the period current ideas. Inside the texts, the naturalists’ characteristics pass semantics and syntax areas; from Bakhtin’s analysis, the affirmation that form and content are in a strict relation which transmits the author impressions and the ideas worked is done. KEY WORDS: Naturalism; Adolfo Caminha; semantics; syntax; Bakhtin. O termo “texto” empregado na frase é entendido no seu sentido estrito, i. é, em qualquer “passagem falada ou escrita que forma um todo significativo independente de sua extensão” (FÁVERO, 2003). Faz-se, todavia, neste trabalho uma análise do texto no seu sentido amplo, ou seja, em nível discursivo, partindo-se das idéias de Bakhtin. The term “text” used on the phrase is understood in its strict meaning, that is, in any “passage said or wrote that forms a significant totality independent of its extension” (FÁVERO, 2003). It is done, however, in this article, a text analysis in its large meaning, that is, in a discursive level, emanated of Bakhtin’s ideas. 1


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1. Introdução Este artigo tem como finalidade fazer a análise do discurso, tomando como fundamento a crítica bakhtiniana à “ruptura entre o ‘formalismo’ e o ‘idealogismo’” (BAKHTIN, 1998). Como discurso pressupõe-se o processo que engloba as relações sintagmáticas de qualquer sistema de signos; como um conjunto organizado de estruturações internas e objeto dialogante com contexto extraverbal. Por meio da análise do discurso é possível determinar o caráter plural do romance, reflexo da concepção que este pretende passar. Assim, “Tentação” de Adolfo Caminha, representa esta cadeia de construções que convergem para o discurso objetivo do Naturalismo e da época em que se manifestou. A isto se associa o fator sócio-ideológico do discurso e a sua inclusão em um contexto histórico-social. Aos signos, carregados de inúmeras significações vinculadas aos contextos vividos, está sempre inerente a ideologia, que traz consigo as mudanças sociais. 2. Fundamentação Teórica 2.1. A corrente naturalista e suas características O Naturalismo está intrincado ao Realismo, porém detém características que configuram plenamente a sua existência autônoma. Para Afrânio Coutinho o Naturalismo “é um Realismo a que se acrescentam certos elementos, que o distinguem e tornam inconfundível sua fisionomia em relação a ele” (COUTINHO, 1976, p. 184). O Realismo-Naturalismo surge na segunda metade do século XIX, num período em que novos princípios passam a marcar as atitudes humanas. O avanço da ciência sobrepunha-se aos dogmas religiosos, às especulações e ao senso-comum; passou-se a analisar a realidade circundante e propor leis determinantes aos processos de toda e qualquer ordem. Em meio a isso, Ernest Renan escreve “O Futuro da Ciência”, Augusto Comte lança bases para o Positivismo, Darwin publica “A Origem das Espécies” e Claude Bernard, “Introdução ao Estudo da Medicina Experimental”, com os pressupostos que regem a corrente naturalista. Além disso, o filósofo Schopenhauer acresce a corrente com as idéias de que a utopia colaboraria para o sofrimento humano, ficando a cargo da ciência, fundada na verdade, desvelar a realidade. No Brasil, o Realismo-Naturalismo choca-se com a sociedade em processo de transformação – do latifúndio escravocrata passava-se para a burguesia urbana, já com a formação do “marginalismo populacional” e do proletariado. Paralelo a isso, houve movimentos que marcaram o país, a exemplo: abolição do tráfico de escravos, Guerra do Paraguai, campanha abolicionista, Proclamação da República, entre outros. O movimento literário aponta, sobretudo, a este cenário, à sua observação e crítica. Os princípios naturalistas fundamentam-se em várias doutrinas, três a se destacar: positivismo, determinismo e darwinismo. O positivismo se apóia na tese da funcionalidade das partes, na organização de um todo para a manutenção do equilíbrio e da ordem. O determinismo submete todo e qualquer fenômeno a leis regidas por uma relação de causalidade e admite os acontecimentos como naturais. E, o darwinismo defende a seleção natural e, portanto, a constituição de seres geneticamente mais evoluídos que outros. A literatura traz essas doutrinas e o rigor científico às obras. Preza-se por uma descrição objetiva e analítica da realidade, revelando a logicidade do andamento das narrativas (“retratos do real”). Por isso, critica-se arduamente o idealismo romântico, que omitiria as mazelas da sociedade. É o que Eça de Queiroz manifesta em sua famosa conferência em 1871: “O Romantismo era a apoteose do sentimento; o realismo é a anatomia do caráter. É a crítica do homem. É a arte que nos pinta a nossos próprios olhos – para nos conhecermos, para que saibamos se somos verdadeiros ou falsos, para condenar o que houve de mau na nossa sociedade.” (COUTINHO, 1976, p. 184)

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Especificamente, o Naturalismo distingue-se pelos seguintes elementos: a) a concepção de que o homem é orientado pela hereditariedade e pelo meio físico-social em que se insere; b) a idéia de que o homem deve ser analisado “cientificamente”; c) a preferência por temas da patologia social, com a intenção realista de reverter este quadro social; d) o amoralismo. 2.2. Análise semântica de “Tentação” a partir da corrente naturalista O título “Tentação” articula-se à obra desempenhando a função poética e expressiva. Justificase à medida que o leitor vai fazendo a leitura do texto. Logo no primeiro capítulo percebemos que a “tentação” encontra-se na cidade do Rio de Janeiro, o centro econômico, político e cultural, onde Evaristo enxerga a possibilidade de enriquecimento e melhoria de vida. Além disso, a ambigüidade do título evidencia o próprio caráter plurissignificativo do texto literário. A “tentação” está na possibilidade de riqueza da família Holanda, na presença tentadora de Adelaide para Luís Furtado, na cogitação de um adultério por ela. São várias as “tentações” no texto, assim como na vida real são encontradas ofertas tentadoras. Na obra de Caminha são abordadas as temáticas da desigualdade social e adultério. A família Holanda vai à corte almejando a ascensão social, passando a conviver com os Furtado, membros da aristocracia carioca. Ao deparar-se com Adelaide, Luís Furtado tenta conquistá-la, chegando a beijar, audaciosamente sua mão durante o piquenique no Jardim Botânico. O narrador descreve o fato objetivamente, ato, até então, imoral para a época: “E no momento em que ela fechava a bolsa para continuar o passeio, Furtado abaixou a cabeça, num movimento nobre, e beijou-lhe audaciosamente a mão, oferecendo-lhe, ato contínuo, o braço. – Senhor!... Ia exclamando: – Senhor Furtado!... – num tom de admiração e de queixa; mas, o insólito procedimento do secretário gelou-a. Um beijo!... Faltava-lhe toda a coragem, toda a presença de espírito, para reagir no mesmo instante, lembrando ao marido de D. Branca o respeito que todo o homem deve a uma senhora casada. Penderamlhe os braços, curvou a cabeça, e em vez de uma explosão de palavras que demonstrassem a Furtado a sua indignação e o seu assombro, ela deixou que as lágrimas corressem como pérolas de rosário desfiado. Nunca homem algum se atrevera a tanto, nunca o seu pudor de mulher fora tão cruelmente magoado como naquela ocasião e por um homem que devia ser o primeiro a respeitá-la.” (CAPÍTULO IV)

O amoralismo também se apresenta na vida conjugal de D. Branca e Luís Furtado. D. Branca tem conhecimento dos casos extraconjugais do marido (“D. Branca nunca se agastava com ele, nunca lhe fizera a menor objeção no tocante às suas aventuras donjuanescas.”) e, ela própria omitia o seu amor por outro homem, o Visconde de Santa Quitéria: “(...) A Branca ia muito bem na companhia dele, do Santa Quitéria. Este, enquanto o bacharel discursava e vendo-se longe de ouvidos perigosos, abriu válvulas ao coração, baixinho e disfarçadamente. – Creio que não a posso esquecer; acordo e deito-me pensando no nosso grande amor... Imagine se estivéssemos sós aqui. – Oh!... Mas deixe estar que ainda havemos de ser muito felizes... muito felizes.” (CAPÍTULO IV)

O romance apresenta a funcionalidade positivista; com a substituição da poesia idealista do Romantismo, tem-se um tipo de arte objetiva, voltada para a coletividade humana. Dessa forma, os temas propostos nada mais são do que patologias observadas na sociedade que, analisadas pelo autor, cumprem a sua função “reparadora”. O comportamento das personagens é pré-determinado, i. é, é movido por forças atávicas e/ou sociais. Mesmo que desejem algo, têm suas vontades vencidas pelo determinismo. Sendo assim,

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Adelaide autocensura-se ao pensar no conquistador Luís Furtado; Luís preocupa-se em conter-se na frente de seu amigo Evaristo, marido da mulher que deseja; D. Branca esconde seu amor pelo Visconde; e, Evaristo, por vezes, tem de adequar-se em cumprir as formalidades (à brindar durante o batizado de Julinha ou comprar roupas “adequadas” para tal, por exemplo). Cada personagem traz os elementos naturalistas: Adelaide é a dona de casa honesta que controla seus ímpetos e desempenha sua função dentro da sociedade; Luís, o homem com seus instintos aflorados, adúltero, componente de uma patologia social; Evaristo, republicano, abolicionista, retrata a preocupação revolucionária, a atitude crítica e combatente; até mesmo, a escrava Balbina representa as desigualdades sociais, a diversidade social como produto da evolução. 2.3. Análise sintática de “Tentação” a partir da corrente naturalista O romance é focado no período contemporâneo ao autor, não se voltando para o tempo passado ou futuro como faziam os românticos. Escrito em 1896, época de idéias científicas, republicanistas e abolicionistas, em “Tentação”, Caminha retrata o seu tempo, analisando o que observa. A narração explica-se pela pretensão de sempre fornecer uma interpretação da vida. São feitas inúmeras descrições, o que confere lentidão à narrativa; porém, revelam a objetividade do autor e a tendência à retratação tão fiel quanto possível da realidade. Desse modo, privilegiando “o retrato fiel dos personagens (...), considerando que as ações são meras decorrências dos fatores temperamentais e de circunstâncias ambientais.” (D’ONOFRIO, 2000). Exemplo disto é o trecho: “Adelaide, contrafeita, risonha por delicadeza, mas, em verdade, bem fora dos seus hábitos, ia notando intimamente, sem expressão de surpresa no olhar, a perspectiva do início carioca. Enquanto esperava a mulher de Furtado, abstraía-se na contemplação dos objetos que a cercavam agora, cada um dos quais era uma novidade para ela. Imobilizava-se, retraída, quase esmagada pelo aspecto luxuoso e confortável da mobília, dos quadros, das tapeçarias que ornavam a sala do secretário. E aquilo dava-lhe uma volúpia de bem-estar, uns arrepios de gozo calmo e de independência honesta que estava um pouco na massa do seu sangue.” (CAPÍTULO I)

A linguagem adotada é simples, e dentro dos moldes gramaticais. Preza-se a clareza, o equilíbrio e a harmonia dentro da obra; uma “linguagem próxima da realidade, sem rebuscamentos, natural” (FILHO, 2004), como observado no parágrafo acima. O funcionalismo estende-se na classificação das personagens – os protagonistas, antagonistas e secundários. Os protagonistas são as figuras principais da narrativa, no caso, Evaristo e Adelaide. O antagonista da trama, Luís, é o que se opõe às figuras principais, entrando em tensão direta no desenvolvimento da história. As secundárias não participam decisivamente da ação, como D. Branca, Balbina, Visconde de Santa Quitéria, entre outros. Além disso, deve-se destacar a figura do narrador, que tem a função de conduzir a narração. Os parágrafos também seguem essa tendência. No trecho destacado, há primeiro a apresentação de uma tese (“Adelaide, contrafeita, risonha por delicadeza, mas, em verdade, bem fora dos seus hábitos, ia notando intimamente, sem expressão de surpresa no olhar, a perspectiva do início carioca”) e a demonstração dela que se segue ao longo do parágrafo (a análise de Adelaide, as suas impressões da cidade). A objetividade figura na escrita, com o detalhamento minucioso e a visão “imparcial” do autor; o funcionalismo e o seqüenciamento lógico na construção das personagens e dos parágrafos. O rigor científico, objetivo, lógico, inerente ao Naturalismo permeia-se na estrutura da obra. 2.4. A indissociação semântica e sintática do discurso do romance “Tentação” Como se percebe tanto o plano de conteúdo quanto o plano de expressão transmitem as características naturalistas. “A forma e o conteúdo estão unidos no discurso, entendido como fenômeno social” (BAKHTIN, 1998) e, portanto, não devem ser analisados separadamente. “Tentação” poderia ser caracterizada como uma “construção híbrida”. Segundo Bakhtin, esta construção seria um enunciado pertencente a um único falante onde estariam confundidos, em verdade, dois enunciados, dois modos de falar, dois estilos, duas perspectivas semânticas e axiológicas.

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Sendo assim, neste enunciado cruzar-se-iam dois sentidos divergentes. Exemplo desta divergência seria a “motivação pseudo-objetiva” da obra naturalista, pois a motivação do autor é transposta nas falas das personagens, i. é, o caráter subjetivo do autor é colocado na perspectiva subjetiva das suas personagens, ou mesmo, da opinião corrente. A presença de dois ou mais enunciados confere o caráter plurilíngüe, base do estilo romanesco. Desse modo, a intencionalidade do autor dissolve-se nesse jogo de linguagens, como explicado pelo teórico: “É como se o autor não possuísse linguagem própria, mas com seu estilo, com sua regra orgânica e única de um jogo com as linguagens e de uma refração nelas das suas autênticas intenções semânticas e expressivas. Esse jogo com as linguagens e freqüentemente a ausência completa de um discurso direto, inteiramente seu, não diminui nem um pouco, é claro, a intencionalidade geral e profunda, ou seja, o significado ideológico, de toda a obra.” (BAKHTIN, 1998, p. 116)

A multiplicidade de vozes do narrador, das personagens e, implicitamente, do autor compõem o discurso naturalista. Ao refletir sobre o papel da mulher na sociedade, (“Na sua simplicidade provinciana a jovem esposa do bacharel começava a compreender o papel inferior da mulher na civilização”) Adelaide apresenta o discurso funcional, trabalhado na corrente naturalista. Outro exemplo é o de Evaristo, ao personificar o discurso republicanista e o abolicionista também do Naturalismo (“interessava-se, como republicano, pela saúde do monarca e pelos escândalos mais ou menos ruidosos da Rua do Ouvidor”). As várias linguagens trabalhadas estão relacionadas dialogicamente, de modo que, pode-se perceber a intencionalidade de Caminha em sua obra. Todavia, não é possível apontar que a linguagem do narrador ou a linguagem literária normal são a linguagem do autor. Ele utiliza-se de ambas, neste processo de diálogo das duas e com as duas, para parecer neutro e não entregar inteiramente suas intenções. Não somente o autor participa deste processo: “Tentação”, como obra literária, está em constante processo de dialogismo com outras obras naturalistas e outras correntes literárias. Assim, permitindo a construção do discurso dos leitores de cada contexto sócio-histórico que a obra atravessa. 3. Conclusão A partir da análise apresentada pode-se perceber de que maneira a obra literária está inserida no contexto sócio-histórico em que foi produzida. O Naturalismo foi resultado das intensas modificações sociais no pós-Revolução Industrial, que imprimiram em “Tentação” de Adolfo Caminha o cientificismo em voga. As características naturalistas estendem-se à forma e ao conteúdo, os princípios que regulariam o comportamento humano orientam também a construção literária. O próprio papel da literatura muda à medida que atende às necessidades naturalistas. Bakhtin contribuiu imensamente na crítica literária ao lançar suas idéias sobre a indissociação de conteúdo, forma, contexto e discurso e o processo dialógico que permite o não-encerramento da obra em si mesma. Referências BAKHTIN, Mikhail. Questões de Literatura e Estética – A Teoria do Romance. 4 ª edição. São Paulo: UNESP, 1998. CAMINHA, Adolfo. Tentação. Disponível em: < http://www.biblio.com.br/ >. Acesso em 8 dez. 2008. COUTINHO, Afrânio. Introdução à Literatura no Brasil. 8ª edição. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1976. p. 184. In: FILHO, Domício Proença. Estilos de Época na Literatura. 15ª edição. São Paulo: Ática, 2004. p. 242; 239. D’ONOFRIO, Salvatore. Literatura Ocidental – Autores e Obras Fundamentais. 2ª edição. São Paulo: Ática, 2000. FÁVERO, Leonor Lopes. Coesão e Coerência Textuais. 9ª edição. São Paulo: Ática, 2003. FILHO, Domício Proença. Estilos de Época na Literatura. 15ª edição. São Paulo: Ática, 2004. (p. 91-102; 239-256)

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Anais do II Congresso Internacional de Estudos Linguísticos e Literários na Amazônia (CIELLA) GOULART, Audemaro Taranto; SILVA, Oscar Vieira da. Introdução ao Estudo da Literatura. Belo Horizonte, MG: Ed. Lê, 1994. GUIMARÃES, Elisa. A Articulação do Texto. 9ª edição. São Paulo: Ática, 2005. O NATURALISMO NA LITERATURA BRASILEIRA. Disponível em: <http://www.casaruibarbosa.gov.br/ Expo/naturalismo>. Avesso em 8 dez. 2008. RODRIGUES, Rosângela Hammes. Análise de Gêneros do Discurso na Teoria Bakhtiniana: Algumas Questões Teóricas e Metodológicas. Revista Linguagem em (Dis)curso, Tubarão, SC, jan/jun, 2004. Disponível em: <http:// www3.unisul.br/paginas/ensino/pos/linguagem/0402/08.htm>. Acesso em 8 dez. 2008.

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SOBRE O II CIELLA

O Congresso Internacional de Estudos Linguísticos e Literários na Amazônia (CIELLA) é um evento bianual que resultou do bom desenvolvimento e projeção de um tradicional encontro intitulado Jornada de Estudos Linguísticos e Literários (JELL), promovido pelo Programa de Pós-Graduação em Letras da Universidade Federal do Pará (UFPA) durante 10 anos consecutivos. O II CIELLA foi realizado na UFPA, em Belém, nos dias 06, 07 e 08 de abril de 2009 e teve como tema principal “Línguas e Literaturas: diversidade e adversidades na América latina”. O objetivo do encontro é integrar os pesquisadores da área de estudos linguísticos, literários e culturais implicados na discussão de problemas característicos do contexto latino-americano e na busca de soluções diferenciadas, oportunizando o diálogo com os demais atores sociais envolvidos, de modo a favorecer a elaboração de propostas político-educacionais diversificadas.

www.ufpa.br/ciella


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PÚBLICO ALVO Como evento acadêmico, o II CIELLA volta-se para professores universitários, pesquisadores, estudantes de Graduação e Pós-Graduação de instituições locais, nacionais e internacionais. Assinalamos que o evento caracteriza-se também por estabelecer um diálogo com profissionais e gestores interessados nas repercussões econômicas, políticas e socioculturais dessas pesquisas. Além disso, abre-se, de forma pioneira, na região norte, para estudantes de Ensino Médio, participantes do Programa Institucional de Bolsas de Iniciação Científica Júnior da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado do Pará. Essa dinâmica, congregando vários atores sociais, permite estabelecer intercâmbio efetivo entre a academia e as comunidades envolvidas, garantindo maior circulação dos resultados de pesquisas. CARACTERÍSTICAS DO EVENTO Por se tratar de um evento com fortes características interdisciplinares, o II CIELLA explora tanto o universo linguístico quanto o literário e o cultural. Nesta segunda edição, Língua, Literatura e Cultura serão abordadas sob vários aspectos. Da perspectiva da Linguística, as discussões serão centradas especialmente nas seguintes questões (ver detalhamento nos subtemas): 1. Efeitos de situações de plurilinguismo e contato, tanto de um ponto de vista social quanto cultural e linguístico. 2. Aspectos tipológicos, principalmente das línguas indígenas sul-americanas, bem como a sua contribuição para o debate sobre universais linguísticos. 3. Avanços e contribuições que a tecnologia proporciona na compreensão, estudo e ensino de línguas. 4. Usos concretos da língua na relação com as estruturas e demandas sociais. 5. Aspectos relativos à textualização da interação humana e às relações entre oralidade e escrita. 6. Relação entre língua e sociedade, considerando-se seus vários aspectos: sociolinguístico, aquisição, ensino/aprendizagem, etc. No campo literário, os temas indicam um diálogo com os domínios das ciências sociais, da história e de outras ciências, em especial aquelas voltadas para os estudos culturais e as manifestações artísticas nas diferentes sociedades: 7. Relações entre literatura, sociologia e antropologia, tendo em vista as contribuições decorrentes da interdisciplinaridade. 8. Literatura e as tradições orais. 9. Unidade e a diversidade literária, especialmente na América Latina. 10. Regimes de produção e circulação do livro, bem como práticas de leitura no contexto latino-americano. 11. Reflexões sobre epistemologia, história e crítica da produção literária. 12. Relação entre literatura e outras artes. TEMA GERAL DO II CIELLA Línguas e Literaturas: Diversidade e Adversidades na América Latina.

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SUBTEMAS Para o II CIELLA, foram definidos 6 subtemas voltados para a área de Estudos literários e culturais e 6 outros dedicados à área de Estudos Linguísticos. As propostas de intervenção dos participantes às diferentes modalidades da Programação se inscreveram no âmbito de um desses subtemas: I. SUBTEMAS DA ÁREA DE ESTUDOS LITERÁRIOS E CULTURAIS 1. História do livro e das práticas de leitura O texto, manuscrito ou impresso, lido silenciosamente ou em voz alta, encarna-se em suportes materiais e submete-se a regimes de produção e circulação que possuem uma dimensão histórica e social. As práticas de leitura, por sua vez, encarnam-se em gestos, hábitos e lugares, também marcados pela historicidade e por partilhas de natureza social. Assim sendo, o presente subtema pretende reunir sessões temáticas que se dediquem: i) ao estudo dos regimes de produção e circulação das obras, nos quais estão implicados autores, livreiros, impressores, etc.; ii) às relações entre os suportes materiais do texto literário e sua recepção pelas diferentes comunidades de leitores; iii) aos lugares sociais em que o livro é dado a ler, como bibliotecas e gabinetes de leitura; iv) às práticas de leitura propriamente ditas; v) aos suportes materiais dos textos, sejam eles manuscritos, impressos, ou dispostos na tela de um computador. 2. Literatura, diferenças culturais e relações de poder O campo dos estudos culturais envolve toda discussão acerca das relações entre cultura e sociedade, a partir da luta pelo poder existente entre os diversos grupos sociais, ou mesmo entre sociedades, notadamente as tensões presentes nas formas e nas instituições e práticas culturais. A par desse princípio dos estudos culturais, serão agrupadas nesse subtema sessões temáticas que envolvam a discussão sobre hegemonia e identidade nacional, culturas populares e indústria cultural, produção de hierarquias sociais e políticas a partir das relações culturais, comunicação e práticas sociais, memória e narrativas nacionais, e afins. A abordagem pode considerar: i) a interdisciplinaridade, evidente no tripé comunicação, sociologia e antropologia; ii) a construção do nacional; iii) hegemonia e diversidade cultural; iv) o cânone literário e o popular. 3. Epistemologia, história e crítica literária A história do objeto literário se funda sobre o princípio do passado como portador de valor. Mas esse passado sempre é visto pelas lentes do presente que, por meio do exercício da escritura, organiza, fabrica e valora a produção literária, a partir de determinados pressupostos teórico-epistemológicos. Tendo isto em vista, o presente subtema tem por objetivo reunir sessões temáticas sobre poéticas escritas e orais, práticas historiográficas, a recepção crítica de obras, sempre plurais e móveis, bem como sobre as teorias da literatura que, associadas ou não ao discurso histórico, constituem e fundam as categorias de análise e percepção a partir das quais a produção literária é discutida. A abordagem pode considerar: i) a construção de poéticas orais e/ou escritas; ii) o papel do intelectual no conhecimento literário; iii) recepção crítica de obras literárias; iv) historiografia e teorias da literatura. 4. Literatura e tradição orais As poéticas orais permaneceram, por longo tempo, alijadas dos estudos literários. Quando muito, foram objeto de estudos das ciências sociais, notadamente a antropologia. A partir dos anos de 1970, no entanto, alguns estudiosos, como Paul Zumthor, dedicaram pesquisas à oralidade, afirmando a natureza artística e etnográfica do texto oral. Hodiernamente, o texto poético oral não se restringe ao seu caráter verbal, atentando-se, também, para seu caráter translinguístico, enquanto narração (gestos, pausas, entonações, movimentos corporais), e para seu caráter de tradição, como condutor

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de imaginário intercultural e da memória coletiva, mesmo a despeito da realização intersubjetiva desta. Por outro lado, não se deve perder de vista que a relação oral/escrito antes de ser excludente é complementar, fato este que nos remete à gênese ocidental da Literatura. Essas são as reflexões que serão abordadas nas sessões temáticas organizadas no âmbito do presente subtema. A abordagem pode considerar: i) marcas translinguísticas em poéticas orais; ii) matrizes narrativas orais em obras literárias; iii) relação oralidade e escrita; iv) tradição etnográfica e história oral. 5. Relações literárias latino americanas: unidade e diversidade A história colonial na América Latina concorreu para a caracterização da produção cultural e literária do continente sob dois enfoques: por um lado a afirmação de modelos eurocêntricos, próxima à emulação; de outro lado, a negação desses modelos, na esteira dos nacionalismos românticos. Sem polarizar as escolhas, alguns autores latino-americanos, como Angel Rama, Edouard Glissant, Garcia Canclíni e Silviano Santiago optaram por uma mediação entre o local e o supostamente universal, ao elaborarem os conceitos de transculturação narrativa, de poética da diversidade, de culturas híbridas, de supra-regionalismo e de entre-lugar, como saída para compreender a produção literária latino-americana como uma vertente inclusiva. Os trabalhos apresentados nas sessões temáticas organizadas em torno deste subtema versaram sobre a tensão entre esses conceitos e modelos, assim como indicar leituras alternativas que apontem para a mediação literária. A abordagem pode considerar: i) poéticas oriundas de movimentos migratórios; ii) relação entre local e universal na construção do entre-lugar; iii) diálogos literários entre produção literária brasileira e produção literária da Hispano-América; iv) transculturalidades na produção literária. 6. Literatura e outras artes Na perspectiva de Jakobson, a poesia e, por extensão, a literatura é o uso artístico da linguagem. Quais são as relações dessa arte linguageira com as outras artes, quais são as representações recíprocas, como se operam as transposições da literatura para as outras artes e vice versa, quais são os limites desses processos de trans-semiose: essas grandes questões e suas múltiplas ramificações constituem o objeto das sessões temáticas que este subtema agrupa. II. SUBTEMAS DA ÁREA DE ESTUDOS LINGUÍSTICOS 7. Plurilinguismo e línguas em contato O plurilinguismo impõe-se atualmente como um tema fortemente mobilizador. Para muitos, constitui uma proposta incontornável para preservar a riqueza e a diversidade linguístico-culturais em um mundo globalizado; para outros, não passa de uma utopia anti-uniformização em prol de grupos minoritários fadados ao desaparecimento ou ainda de um vetor de interesses político-econômicos diversos. Em uma América Latina que representou a si mesma, nos últimos séculos, como exclusivamente monolíngue, (re)descobrem-se as múltiplas situações de contato entre línguas como desafio para as políticas públicas, principalmente as educacionais, e para as tentativas de manutenção e revitalização de línguas ameaçadas. Tratando tanto das situações de contato entre línguas (nos casos de comunidades tradicionais indígenas, fronteiriças, de migrantes, de falantes de línguas de sinais etc.) quanto das situações de plurilinguismo no sistema escolar, as sessões temáticas aqui reunidas permitiram abordar essas questões na perspectiva: (i) da descrição linguística, (ii) das políticas educacionais, (iii) das experiências de ensino/aprendizagem e (iv) das experiências de manutenção e revitalização de línguas. 8. Descrição linguística, tipologia e universais A comparação das gramáticas das línguas revela padrões sistemáticos de variação entre estas. Pesquisa em tipologia e universais evidencia esses padrões e possibilita a formulação de universais

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sobre línguas e, com isso, a expansão do debate em torno de explicações para universais linguísticos (ex. CROFT, 2003). O objetivo das sessões temáticas organizadas em torno deste subtema é abordar diferentes aspectos da descrição de línguas naturais, podendo referir-se a questões de (i) fonologia, (ii) morfologia e sintaxe e (iii) semântica, em uma perspectiva tipológico-universal ou não. 9. Tecnologia(s) e estudos de línguas Aplicações tecnológicas constituem atualmente um forte recurso para o estudo de línguas tanto na área da descrição quanto na de ensino/aprendizagem. Com este subtema, pesquisadores são convidados para uma discussão sobre as interações entre tecnologia, linguística e ensino/aprendizagem de línguas, focalizando em questões como: (i) preparação de corpora para o estudo de línguas; (ii) bases de dados para armazenamento e recuperação de dados linguísticos; (iii) instrumentos e métodos experimentais para análises linguísticas e tratamentos estatísticos; (iv) tecnologias da informação e da comunicação no ensino de línguas maternas e estrangeiras. 10. Gêneros discursivos, oralidade e escrita Pensar a linguagem enquanto forma de manifestação do que inexoravelmente caracteriza o humano e, portanto, singulariza-o como homo sapiens, é pensar a própria natureza desse homem que se (re)vela por meio de suas práticas e se constitui enquanto sujeito em sua necessária relação com o mundo e com o outro. Essa entidade psicossocial faz-se na e pela linguagem, num jogo em que o texto se configura como o próprio lugar da interação e os interlocutores, como participantes ativos na construção das representações que fundam a comunicação. Em assim sendo, investigar as formas sociocomunicativas constitutivas de nossas atividades diárias parece ser de importância vital à explicitação e compreensão do modus faciendi que nos permite a socialização e o trânsito pelas variadas situações sociais do dia-a-dia. Importa, então, discutir os usos concretos da língua em sua necessária relação com as estruturas e demandas sociais, bem como aspectos relativos à textualização da interação humana. Incluem-se aqui sessões temáticas que versem sobre: (i) gêneros do discurso; (ii) interação verbal no mundo off-line e no virtual; (iii) relação entre oralidade e escrita; (iv) produção e compreensão do texto oral, do texto escrito e do texto eletrônico. 11. Língua, Sociedade e Identidade Considerando-se a dinâmica das relações sociais nos processos criativos de uso das línguas e nas práticas de produção textuais, o presente subtema abre espaço para sessões temáticas que versem sobre as inter-relações entre sociedade e linguagem, tanto do ponto de vista das análises discursivas quanto dos estudos sociolinguísticos, enfocando questões como: (i) variação e usos linguísticos; (ii) mudança linguística; (iii) estudo do léxico; (iv) práticas identitárias; (v) práticas discursivas. 12. Línguas, linguagem e apropriação linguageira O presente subtema abrange os diversos fenômenos envolvidos na apropriação de uma ou de várias línguas, oralmente ou por escrito, quaisquer que sejam o status sociopolítico dessa(s) língua(s), os processos de aquisição/aprendizagem considerados e o contexto didático-metodológico em que ocorrem. Incluem-se, portanto, aqui sessões temáticas voltadas para: (i) a aquisição da linguagem; (ii) o desenvolvimento das competências interacionais; (iii) as práticas de letramento na escola e fora dela; (iv) a seleção e organização dos objetos didáticos; (v) a elaboração e exploração de materiais didáticos; (vi) as modalidades de ensino e de aprendizagem de línguas; (vii) a avaliação e a certificação das competências linguageiras.

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MODALIDADES DE PARTICIPAÇÃO As atividades do evento foram organizadas para permitir que a discussão sobre os subtemas escolhidos seja bastante diversificada, podendo acontecer em forma de debates entre profissionais da área ou até como relatos de experiência. As modalidades são as seguintes: 1. CONFERÊNCIAS (SOMENTE CONVIDADOS) Seis conferencistas convidados abordaram temas como: Teoria e Análise Linguística; Tipologia e Diversidade Linguística; Linguística Histórica e Comparativa; Plurilinguismo e Pluriletramentos; Estudos Culturais e Literatura; Imaginário Amazônico e Construção da Identidade. 2. DEBATES (SOMENTE CONVIDADOS) Quatro debates reuniram pesquisadores, profissionais e/ou responsáveis políticos convidados, de instituições nacionais e internacionais, em torno de questões da atualidade, como: (1) Línguas/culturas ameaçadas de extinção; (2) A renovação do ensino da língua materna no Brasil: avanços, obstáculos e perspectivas; (3) Narrativa latino-americana contemporânea; (4) Literatura e identidade nacional. Foi reservado um tempo para os ouvintes intervirem. 3. MESAS-REDONDAS (SOMENTE CONVIDADOS) Oito mesas redondas, animadas por um mediador, contaram, cada uma, com a participação de 4 pesquisadores, convidados com base nos resumos recebidos, apresentando trabalhos com tema afim e enfoques diferenciados. Foi reservado um tempo para os ouvintes intervirem. 4. SESSÕES DE COMUNICAÇÃO (ABERTO PARA INSCRIÇÕES) Foram definidos 12 subtemas em torno dos quais foram organizadas as diferentes sessões de comunicação. Nelas, os participantes – professores, pesquisadores e alunos de pós-graduação – inscreveram comunicações de resultados de pesquisas acadêmicas. Cada apresentação teve duração de 20 minutos e houve 10 minutos para discussão. 5. PAINÉIS (ABERTO PARA INSCRIÇÕES) As apresentações de painéis são destinadas mais especificamente a divulgar trabalhos de Iniciação Científica de alunos da graduação (Bolsas institucionais PIBIC-CNPq e voluntários) e do Ensino Médio (Programa Institucional de Bolsas de Iniciação Científica Júnior – PIBIC JÚNIOR). 6. SESSÕES DE RELATOS DE EXPERIÊNCIAS (ABERTO PARA INSCRIÇÕES) Pesquisadores, profissionais de diversas áreas e educadores do Ensino Básico puderam apresentar relatos de experiências de trabalho em torno das temáticas do Congresso. O objetivo dessas sessões é de discutir problemas no andamento de pesquisas ou no encaminhamento de propostas de intervenção e de partilhar soluções experimentadas ou sucessos obtidos. Cada relator teve 10 minutos para apresentar sua experiência e houve 10 minutos para discussão. 7. LANÇAMENTO DE LIVROS (ABERTO PARA INSCRIÇÕES) Nestas sessões, seguidas de assinatura das obras, cada autor dispôs de 45 minutos para apresentar e discutir com o público sua obra.

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8. MINICURSOS Minicursos, com duração total de 4h cada, foram ministrados pelos pesquisadores convidados. Obs.: Um mesmo apresentador pôde inscrever uma comunicação, um relato de experiência e um livro para lançamento (unicamente trabalhos acadêmicos), se assim o desejasse. Obs2.: Foi autorizada a apresentação de trabalhos em co-autoria, desde que pelo menos um dos autores esteja presente no evento. Para submeter o resumo à apreciação da Comissão Científica, recomendou-se o seguinte: cada um dos autores devia preencher o formulário de cadastro em seu nome, mas apenas um submetia o resumo. Os outros autores deveriam inscrever uma observação no campo “resumo”: Trabalho apresentado com Fulano – nome completo. PUBLICAÇÃO DE TRABALHOS Os trabalhos aceitos pela Comissão Científica foram publicados nos Anais do evento, que estão disponibilizados no site do evento. Uma seleção dos melhores artigos foi destinada à publicação de um número especial da Revista Moara (Qualis B2 Nacional). Os artigos foram remetidos em arquivo anexado para o e-mail 2ciella@gmail.com, de acordo com as normas da revista expressas em “Normas para publicação” (válidas para conferências, mesas-redondas, comunicações, painéis e relatos de experiência). NORMAS PARA PUBLICAÇÃO DE TRABALHOS NOS ANAIS Para serem incluídos nos Anais do evento, os textos devem impreterivelmente respeitar as seguintes normas: 1. Redigir o texto em português, inglês, francês ou espanhol. 2. Utilizar margens de 3 cm. à esquerda, 2 cm. à direita, 3 cm. na margem superior e 2 cm. na margem inferior em formato de papel A4. 3. O texto digitado deve ter entre 4 mil e 8 mil palavras, incluindo os anexos. 4. Digitar o texto em Word for Windows (edição 6.0 ou superior), fonte Garamond, corpo 12, espaçamento simples entre linhas e parágrafos, em modo justificado. 5. Entre partes do texto e entre texto e exemplos, citações, tabelas, ilustrações etc, utilizar espaço duplo. Para fazer isso, basta redigi-los na segunda linha após o parágrafo anterior. 6. Para texto citado com mais de três linhas, adentrar o texto em 2 cm. e utilizar fonte Garamond, corpo 10. 7. Para texto citado com menos de três linhas, usar aspas no próprio corpo do texto. 8. Para notas de rodapé, usar fonte Garamond, corpo 10. 9. Utilizar paragrafação automática. 10. Apresentar o texto na seguinte sequência: título do artigo, nome(s) do(s) autor(es), resumo na língua do artigo e em alemão, francês, espanhol ou inglês, palavras-chave em português e na outra língua do resumo apresentado, texto, referências e anexos. 11. Digitar o título do artigo centralizado na primeira linha da primeira página com fonte Garamond, tamanho12, em formato negrito, todas as letras maiúsculas. 12. Digitar o(s) nome(s) do(s) autor(es) de forma completa na ordem direta, na segunda linha abaixo do título, com alinhamento à direita, seguido do nome completo da Instituição de filiação, entre parênteses. Letras maiúsculas devem ser utilizadas apenas para as iniciais e para o sobrenome principal. 13. Os resumos devem ser antecedidos pela expressão RESUMO em maiúsculas, seguida de dois pontos, na terceira linha abaixo do nome do autor e sem adentramento. O texto dos resumos segue na mesma linha e deve ficar entre 100 e 150 palavras. Digitá-lo em fonte Garamond, corpo 11. 14. As palavras-chave devem ser antecedidas pela expressão PALAVRAS-CHAVE em maiúsculas, seguida de

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Anais do II Congresso Internacional de Estudos Linguísticos e Literários na Amazônia (CIELLA) dois pontos, na segunda linha abaixo do resumo e duas linhas acima do início do texto. Utilizar entre três e cinco palavras-chave com fonte Garamond, tamanho 11, separadas por ponto e vírgula. 15. Digitar os títulos de seções com fonte Garamond, tamanho12, em negrito. O título da introdução deve ser redigido na terceira linha após as palavras-chave. Os demais títulos, duas linhas após o último parágrafo da seção anterior (pular linha). Os títulos de seções são numerados com algarismos arábicos seguidos de ponto (por exemplo, 1. Introdução, 2. Fundamentação teórica). Apenas a primeira letra de cada subtítulo deve ser grafada com caracteres maiúsculos, exceto nomes próprios. 16. Digitar a primeira linha de cada parágrafo de texto com adentramento. 17. As referências no texto devem ser indexadas pelo sistema autor data. Para citar, resumir ou parafrasear um trecho da página 36 de um texto de 2005 de Pedro da Silva, a indexação completa deve ser (SILVA, 2005, p. 36). Quando o sobrenome vier fora dos parênteses deve-se utilizar apenas a primeira letra em maiúscula. 18. Citações no meio do texto sempre devem vir entre aspas e nunca em itálico. Use itálico para indicar ênfase ou grafar termos estrangeiros. 19. Exemplos de corpora analisados devem vir no padrão de citação. 20. Caso seja necessária transcrição fonética, o autor deve enviar a fonte utilizada juntamente com seu artigo, a fim de que a mesma possa ser instalada para editoração do artigo. 21. Notas devem ser digitadas em rodapé em sequência numérica. Se houver nota no título, marcar com asterisco (*). Não se deve usar nota para citar referência 22. Tabelas, quadros, ilustrações (desenhos, gráficos etc.) devem ser entregues prontos para a editoração eletrônica. Não se admitem ilustrações xerocopiadas. Elas deverão ser devidamente escaneadas e inseridas no texto. Os títulos de figuras devem ser digitados com fonte Garamond, tamanho 12, em formato normal, centralizado. Tabelas, quadros, ilustrações devem ser identificados por legendas. 23. Os anexos devem ser entregues prontos para a editoração eletrônica. Para anexos que se constituem de textos já publicados, o autor deve incluir referência bibliográfica completa. 24. As referências devem ser antecedidas da expressão Referências, em negrito. A primeira referência deve ser redigida na segunda linha abaixo dessa expressão. As referências devem seguir a NBR 6023 da ABNT: os autores devem ser citados em ordem alfabética, sem numeração, sem espaço entre as referências e sem adentramento; o principal sobrenome do autor em maiúsculas, seguido de vírgula e iniciais dos demais nomes do autor. Se houver outros autores devem ser separados uns dos outros por ponto e vírgula; título de livro, de revista e de anais, em itálico; título de artigo: letra normal, como a do texto; se houver mais de uma obra do mesmo autor, seu nome deve ser substituído por um traço de cinco toques; mais de uma obra do mesmo autor no mesmo ano, use uma letra (a, b, ...) após a data. Ordene referências de mesmo autor em ordem decrescente. Exemplos: FERREIRA, M. Morfossintaxe da Língua Parkatêjê. Munique: Lincom-Europa, 2005. FURTADO, M. T. A visão da Amazônia em Euclides da Cunha, Ferreira de Castro e Dalcídio Jurandir. In: XX JORNADA NACIONAL DE ESTUDOS LINGUÍSTICOS – GELNE, 2004, João Pessoa, Paraíba. Anais... João Pessoa, 2004. p.1869-1874. MAGNO E SILVA, W. Estratégias de Aprendizagem de Línguas Estrangeiras – Um Caminho em Direção à Autonomia. Intercâmbio, vol. XV. São Paulo: LAEL/PUC –SP, 2006. Disponível em: Acesso em: 5 set. 2007. PESSOA, F. C. As relações interpessoais nos domínios do contar e fazer contar as narrativas populares da Amazônia paraense. In: MARINHO, J. H. C.; PIRES, M. S. O.; VILLELA, A. M. N. (orgs.). Análise do discurso: ensaios sobre a complexidade discursiva. Belo Horizonte: CEFET-MG, 2007, p. 139-157. SALES, G. M. A. Um público leitor em formação. Moara, Belém, v. 23, p. 23-42, 2006.

INSTITUIÇÃO ORGANIZADORA UFPA – Instituto de Letras e Comunicação (ILC) – Programa de Pós-Graduação em Letras Cidade Universitária Professor José da Silveira Netto Rua Augusto Corrêa, 01 – Guamá – 66.075-900, Belém (PA) Fone/Fax: (91) 3201.7499 E-mail: mletras@ufpa.br Site: http://www.ufpa.br/mletras

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Site oficial do II CIELLA

www.ufpa.br/ciella



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