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Para aprofundar

Inocência, de Visconde de Taunay, consiste na primeira grande obra de fôlego que consegue retratar o sertão mato-grossense com imaginação literária consistente, transformando a forma romanesca em instrumento de desbravamento de um Brasil ainda não plenamente conhecido pelas classes letradas brasileiras do Brasil da última quadra do Século XIX. Os dilemas e temas apresentados em latência nesta obra não desbotaram, sendo estes cruciais para a compreensão da origem conflitiva da diversidade regional e cultural brasileira. Pensar neste romance significa refletir sobre os tempos e os espaços de nossa experiência cultural.

O espaço do sertão é determinante na obra de Taunay, pois dele se apreende um estado de contradição permanente. Dele se enfatiza belezas arrebatadoras, é fonte de infinitas possibilidades de vida no mesmo compasso que abarca pobreza e desespero - o esplendor e o inóspito são colocados em determinação recíproca, síntese de natureza e cultura simultaneamente.

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Tida como uma obra de transição entre o esgarçamento das idealizações idílicas do romantismo para o chã-chão, terra-terra do fatalismo científico naturalista, o romance aqui adaptado em história em quadrinhos apresenta um amalgama de temas apresentados em termos contraditórios. Uma série de oposições mobilizam a estrutura do enredo impresso nos quadrinhos: Paisagem e conflito dramático; o pitoresco e o cosmopolita; patriarcado colonial de casa grande e dignidade do lugar social da mulher do ponto de vista liberal-positivista; amor platônico e convenções de honra familiar; iluminismo e autoridade intelectual pedante de teatro social. Em Inocência, Taunay acreditava ter realizado a grande aspiração do romantismo brasileiro: a sedimentação do nacionalismo estético.

Ex-militar e descendente de pintores renomados próximos à corte, Taunay conheceu o sertão brasileiro como expedicionário militar da expedição de Mato Grosso integrando a Comissão de Engenheiros como tenente na Guerra do Paraguai. Celebradas páginas de escrito memorialístico amplamente estudadas e concebe sua obra mais célebre depois de Inocência, A retirada da Laguna (1874). É desta experiência que recolhe impressões preciosas como testemunha de paragens, pessoas, hábitos e processos da reprodução da vida social do sertão. O olhar militar e científico combinado com a sensibilidade artística o transformam num dos primeiros sertanistas com sensibilidade poética. Fato que pode ser atestado com o primeiro capítulo de Inocência, em que a descrição apurada da fauna e flora da topografia encontra ritmo e harmonia na riqueza de imagens e vocação para a capacidade retórico-expressiva. Estas páginas são tidas como prefiguração e modelo para as primeira e segunda parte d’Os sertões (1902), de Euclides da Cunha, e passagens diversas do Grande Sertão: Veredas (1956), de Guimarães Rosa.

Ainda assim, mesmo nesta destreza com a objetividade expressiva, o meio exterior serve de artifício para traduzir a interioridades, havendo céu trevoso e hostil quando personagens em desespero são retratados, e paragens verdejantes e de comovente harmonia quando estão satisfeitos e gozando de felicidade plena. Aqui temos a natureza como uma tradução da vida espiritual artisticamente retratada, outro forte traço da estética pertencente ao romantismo.

O retrato do meio sertanejo é reflexo da relação entre pessoas; relações sociais, portanto. O território é ao mesmo tempo espaço quase mítico e espaço que determina a vida de toda uma população. Neste sentido, pensar o território era também pensar cultura e disputas por poder e dominação. Daí o enfoque da trama do romance em conflitos entre personagens de origem urbana e rural, culminando no assassinato do elemento alienígena da cultura local: a eli-

minação de Cirino, ação violenta que restitui ordem e preserva noções de honra ferida. A dimensão trágica do romance parece, dado o destino malogrado dos amantes ingênuos, trazer um balanço sobre esta cultura, relacionando a vitória dos costumes locais como um juízo de negatividade, em que a brutalidade vence a delicadeza e relações de mando triunfam sobre aspirações aparentemente liberais.

Não é sem estranhamento que leitores do século XXI receberão a sentimentalidade por trás do conflito amoroso e desenlace trágico expostos na relação entre Inocência e Cirino. O amor à primeira vista, o desejo pela morte na percepção da impossibilidade da união amorosa, a luta pela honra e a busca pela redenção no momento da morte por amor soam soluções prescritas, quase forçadas. No entanto, é preciso exercer o esforço de aprofundar-se na materialidade artística da obra lida, para evitar que soluções que reproduzem convenções sejam lidas como receitas cumpridas de maneira mecânica.

Os aspectos de novela passional por trás da narrativa de Taunay servem propósitos artísticos bem específicos sobre as diversas colisões que expressam conflitos sociais, políticos e ideológicos já abordados neste manual e que permeiam o enredo de Inocência. É preciso contextualizar o sucesso das obras sentimentais do período romântico, salientar em sala de aula o contexto histórico dos gostos literários. A prevalência do idealismo amoroso concebe o sentimento promovendo-o à categoria do incomensurável, assumindo um estatuto que resvala no religioso, de tal maneira que as tentativas de consumar o amor são tornadas vulgares diante de tal elevada perfeição. Não é difícil entender como será fácil parodiar esta forma de conceber o mundo por grandes autores realistas, basta comparar com qualquer aspecto da vida mundana. Mas aqui, o idílio ainda é convenção legitimada e é preciso entender por quê assim o foi para que a obra possa ser devidamente explorada.

O fatalismo do sentimento que conduz os amantes em suas ideias fixas explora uma noção de intensidade da vida que é incompatível com o mundo real. É dessa fricção entre o plano ideal e os conflitos sociais que foi possível imprimir sentido à resolução trágica. É essa relação contraditória entre idealismo idílico e dureza dos obstáculos da vida real que permite transformar este plano da idealidade em parâmetro de avaliação sobre o que impede a sua realização na vida real. Daí a percepção de um posicionamento crítico da obra sobre forças sociais em conflito.

Taunay via no projeto civilizatório e no lamento pelo triunfo da rusticidade a carência pela unidade nacional, sendo ainda uma luta contra vestígios coloniais para os anseios nacionalistas deste romantismo a superação do vasto território ainda não explorado, governado a partir de núcleos urbanos separados entre si, nunca juntados. Esta percepção também ajuda a pensar sobre o ponto de partida do romance, de dois forasteiros cruzando-se por uma estrada deserta a quilômetros de qualquer vestígio de alma humana. Há, portanto, dentro do reconhecimento de um localismo não explorado uma vontade e anseio por integração nacional, parte dos sonhos do projeto romântico e nacionalista de unidade nacional e cultural forjado no período.

Também pensando no plano do que se manifesta como tensão, a cultura do sertanejo aparece em Inocência aparece com os primeiros vestígios de consciência sobre a penúria, o sofrimento e a falta de condições de vida digna. Pode-se pensar assim as diversas visitas encadeadas de adoecidos que Cirino recebe mesmo não sendo um médico propriamente. A passagem da visita do morfético, o homem que padece de lepra, revela a consciência de que nem todo final pode ser feliz, ou todo sofrimento ter explicação e sentido. Mais alguns anos e esta consciência descambaria para uma nova forma de ver o mundo e conceber obras literárias: o Naturalismo.

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