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Mino Carta
ª edição
hedra São Paulo_
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Pró-memória
Recordações esparsas, anotações súbitas, deixadas neste caderno sem método algum e para a serventia exclusiva de quem as fez nos últimos seis meses, ou seja, eu, a partir do dia do meu vigésimo terceiro aniversário, antes de procurar outro lugar para plantar minha tenda.
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Naquele tempo eu me chamava Mat, embora tivesse sido batizado Aginulfo. Este nome sempre me soou pesado, mas tenho certeza que, atirados do alto da torre de Pisa, Aginulfo e Mat ao mesmo tempo atingiram o chão dezenas de metros abaixo. Vovó Dudja, mãe da minha mãe, costumava repetir “questo bambino è mao”, este menino é louco, daí o apelido, que muito me agradou, atirei-o sobre a pele do mar qual um seixo chato e liso e correu sobre a água aos saltos cada vez mais largos até o infinito. Era manhã de bonança. Meus pais não teriam aprovado a mudança, morreram juntos antes de se pronunciarem, acidente de carro, meu pai não era bom volante, mesmo assim supus buscada aquela morte, diziam amar-se para sempre. Acabei entregue aos cuidados da vovó, vivia em sua casa de uma alvura cegante, a oferecer espaço para a dança das árvores, oliveiras, enodoadas nos troncos em imperscrutáveis tormentos e enfim liberadas pela agitação das frondes de prata. * Vovó vive na lembrança do marido, Lui, falecido aos cinquenta e seis de misteriosa enfermidade, tal-
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vez de origem tropical, comandava cargueiros pelas rotas do Atlântico e do Pacífico, e das viagens trazia jades, porcelanas, tapetes, molduras e telas peruanas dispostas a alimentar meus pesadelos, pratos, sopeiras, travessas da Companhia das Índias, ali nereides orientais perfumam-se de manjerico. A família paterna é de um lugar muito distante e meu pai pareceu tê-la esquecido deliberadamente. Havia, dera-me a entender vovó já na minha adolescência, um nó de tormento no passado do meu pai antes de chegar à juventude, ainda não completara quinze anos ao fugir de casa. Com a mãe, marquesa de cabelos azuis, segundo Dudja, que no entanto jamais a vira, mantivera raros contatos epistolares. O pai de vovó era rico, amealhara fortuna ao produzir vinho e azeite e era dono de vastas extensões de terra, que Dudja acabou por vender para adquirir imóveis urbanos, um quarto da cidade era dela e hoje é meu, tudo alugado a bom preço. * Habitamos a beira-mar, e sobre a terra que cerca a casa se instala um vinhedo, em gárrula indisciplina um renque de ameixeiras, de soturna dignidade os marmelos, intrigados com a graça das mimosas, um eucalipto, raridade exótica, figueiras ásperas com seus frutos contraditórios, chorões resignados, fluem-lhes as lágrimas com abundância dramática.
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À horta, vovó ia de volta da missa das sete, carregava um pequeno cesto e uma tesoura, ia colher os contornos do dia, tomates como aqueles nunca mais encontrarei, tampouco vagens, abobrinhas, ervilhas, alegradas pelo vento das glicínias. Pendurado de cabeça para baixo na grade da janela da cozinha, um coelho sangrava pela goela cortada por Nino, o colono, chamado a cometer o assassínio, mora na casinhola da encosta e de noite, deitado na cama de ferro esmaltado aos pés da tia bisavó cor de terra emoldurada em ouro, ouço seu ressonar. No dia seguinte, o filho me traz o tributo de uma vara de pescar.
* De quando em quando, vovó recebia a visita da senhora Zonchello, fora amiga da minha mãe e, três anos após o acidente, brandia o propósito de consolatrix afflictorum, conquanto pousasse sobre os cílios alguma complacência benevolente como de quem, ao cumprir o papel, concede-se. Nem por isso deixava de me atrair de forma insólita e até surpreendente na comparação com os meus sentimentos de então, tinha eu pouco mais de três anos, razões havia, entretanto. Lembrava-me a fada dos cabelos turquesa protetora de Pinóquio, livro volumoso cujas ilustrações me encantavam, e sobretudo, ao cruzar as pernas, sentada na poltrona de couro merecedora de desvelo, no lugar de honra da sala por ter sido a preferida
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do avô, a seda das meias emitia um sussurro enternecedor. Tomava-me o súbito impulso de cair de joelhos aos pés da senhora Zonchello tão logo se erguesse, para, ao investir por trás, abrigar-me debaixo de sua saia rodada, onde, os sonhos noturnos enfim esclareceriam, seria aspirado por uma força invencível capaz de me reassumir na crisálida ancestral. Faltava-me entender como o processo da reabsorção se daria, certo o desfecho, a beatitude do retorno ao começo. Somente agora abalo-me a registrar por escrito esta remota passagem da minha vida, silenciada não por vergonha, mas pelo receio da incompreensão alheia.
* A costa despenca sobre o mar com determinação vigorosa e logo escava o fundo pedregoso atapetado pelas algas de verdes volúveis ao sabor do sol, às vezes a colher o faiscar das agulhas dos ouriços, pretos e vermelhos (magenta), ou a fuga lampejante de um polvo, de um esconderijo a outro. Pesca de vara, embora equipado pelo filho do colono, exigia a paciência que a dos polvos dispensa, basta uma vara curta e uma isca eficaz a camuflar o tridente arrebitado, torneado por anzóis graúdos, basta mergulhar ao fundo onde as sombras arrepiam as algas enquanto o pescador tateia com a ponta da vara o sopé das pedras. O bicho sempre aparece, só cabe ser mais veloz do que ele, e então capturado,
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dilacerado pelos anzóis, trazê-lo à tona para mordê-lo no topo víscido da cabeça, de sorte a aplacar os tentáculos frenéticos no delírio da defesa. Isso tudo aprendi mais tarde, dois ou três anos depois. Por enquanto, fingia pescar de vara. Do alto de uma pedra, vagueio com o olhar, sonho. Lembrança viva, e de conforto. Os galhos da árvore de damasco batem nas venezianas do meu quarto, abro a janela para o infinito, um veleiro voa na manhã sem céu e sem mar como um grande pássaro de asas imaculadas. Os frutos estavam maduros e o sol recém-nascido perfuma-se de damasco, estico a mão e logo mastigo a manhã de pele aveludada e polpa inebriante. Não sei dar um nome ao que sinto, uma empolgação aparentemente sem motivo. * Ouço a voz de Nino, sugada pelo sotaque da terra, tomada de saída por precipitação, não sei se pelo receio de não atingir o fim do período ou para afirmar uma presença imperiosa, e de todo modo respeitável, e logo a se extinguir mansamente como um canto que receia perder-se. Cada palavra assume este pentagrama, com a preponderância do si bemol. Nino trouxe dois polvos recém-capturados, são de bom tamanho, e ele os soergue com a ponta dos indicadores, intrusos entre os tentáculos desmilinguidos, breve cascata cor-de-rosa represada ao cabo em um penacho invertido de tom violeta. Pinga água salgada.
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Cartas a Pipo
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Aqui estou eu de caneta na mão, gostaria de escrever ao amigo que não tenho. Certo… certo? Certo seria ter um Cassius, fosse eu Brutus, a se ouvir Shakespeare, um pensador capaz de pôr em versos sua filosofia. Agora, vejamos, seriam amigos verdadeiros Brutus e Cassius? Unidos pela conspiração contra Cesar, mas sei lá… Nem por isso deixam de existir conforme Shakespeare os viu. Me soa nos ouvidos, como enrolado no ar que respiro, o erre forte de Pipo, um erre talvez um tanto sardônico, e ele o cultivava com desvelo, às vezes cheguei a imaginar que ele o forçasse, como a esticar a distância, mais e mais, de quem não possui aquele erre a se revirar sobre si mesmo. “Honest Cassius”, dizia Brutus, “Honest Pipo” ficaria bem? Não somos personagens shakespearianos, mas pouco importa. E eu estou aqui de caneta na mão, e sem amigo para remetê-la, a carta que me escapa dos dedos e da mente. Para escrever a Pipo não preciso de caneta e papel, sequer esperar por resposta. Necessária resposta? Nada mais quero se não contar esta cidade lúvega, Pipo sabe o que significa lúvega, a ninguém mais poderia dizer lúvega, e te59
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ria de explicar muita coisa para justificar a escolha atual, de uma cidade lúvega. É verdade, estamos no inverno, e eu venho de um inesgotável verão, o frio embaça as janelas, certas manhãs abro as cortinas e dou com os arabescos que o inverno desenha sobre os vidros, lindos, a natureza aqui é árabe. Debaixo dos braços levei quatro das minhas telas, duas marinhas, o retrato de uma oliveira, sim retrato, a árvore, não somente aquela, tem caráter, personalidade, para merecer o retrato… ah, sim, uma paisagem mais abrangente, um casario rivierasco. Pois é, levei minhas quatro telas à galeria de Istvan Abdo, o célebre marchand, um dos dois mais conhecidos nesta cidade lúvega, sua galeria tem seu nome, Galeria Istvan, mas eu sinto preponderante nele o lado Abdo. É uma espécie de batráquio enrugado e, ao falar, emite um chiado de longo alcance, sibila igual a borracha derretida sobre chapa em brasa. Move-se ágil apesar do corpanzil, pesa mais de cem quilos. Percebo nele a habilidade ao lidar com o semelhante e com as obras que expõe. Pergunto: “Acha muita ousadia minha vir até aqui para incomodar o mais famoso marchand da cidade?”. “Não me bajule, respondeu, não precisa, sua pintura é muito interessante, tem talento, uma técnica apreciável, uma sinceridade encantadora.” Sorri e logo, em tom corriqueiro: “Suponho que cogite em uma exposição na Galeria Istvan, ou estou en-
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ganado?”. Balbucio a minha modéstia, nem sei se posso, recua até a mesa carregada de papéis, pastas, livros, no meio desponta uma estatueta de Mercúrio com seus pés alados, de origem romana. Abre uma agenda, percorre a topografia acidentada da mesa com mãos enluvadas em pele do sapo, em busca de uma caneta, e a encontra, ergue-a como a batuta do maestro: “e tal duas semanas na segunda metade de abril?”. Estou emocionado. Sorri de novo: “Será primavera”.
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Mala tempora currunt
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Os bigodes do general Da Silva falam. Uma taturana negra pousou debaixo do nariz do general, dali se propaga a voz borbulhante como água em fervura, de peixe, fogo lento, dada, porém, a alguns falsetes. “O senhor – diz o general – tem de dar conta do seu papel dentro da sociedade, o senhor não é uma pessoa comum.” Prossegue, diante do olhar interrogativo de Mat. “Se o senhor participa de… certas reuniões… o senhor, do alto de sua importância, transfere-a a quem só a tem pelo perigo que representa… mas sirva-se destes biscoitinhos, muito bons, creia…” “Agradeço seu interesse pela minha pessoa, tão desimportante, aliás… Confesso, de todo modo, alguma perplexidade…” “Ora, ora, o senhor é um artista de renome internacional, suas telas estão nos museus e valem… uma dinheirama… o senhor não pode negar sua importância, assim como não pode negar que as reuniões a que me refiro não justificam sua presença… mas por que o senhor não experimenta os biscoitinhos?”
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“Realmente, deliciosos seus biscoitinhos”, diz Mat, em meio à mastigação diligente. Mat admite que Da Silva, no instante, seja capaz de um sorriso de aparente indulgência, não vai além da suposição, os bigodes impedem uma boa leitura da expressão. E lá vem o falsete: “O senhor sabe perfeitamente do que estou falando e finge não entender, o que me constrange… o senhor entende? Confesso que quase me irrita… tanto mais porque procuro ser gentil, como é do meu feitio”. O falsete escorrega em um do sustenido. Mat fica em silêncio, não era o que o general esperava. Pigarreia, gira os olhos à sua volta, como se procurasse resposta nas paredes adamascadas do antigo palácio em que estabeleceu seu gabinete e as dependências dos seus auxiliares, a maioria de farda, alguns poucos à paisana, terno escuro, feral. “Meu caro – diz enfim Da Silva –, permita que lhe de um conselho: afaste-se das más companhias… e lhe dou um conselho porque, pelo senhor, tenho muito respeito e, digo mesmo, simpatia.” Mat levanta-se: “Obrigado pelo convite e pelo conselho, se o senhor me dá licença, eu me retiro”. Nuvem o esperava apreensiva, Nuvem, a mulher apaixonada, mãe de um filho, Frau, ganhara dois ou três quilos em relação ao tempo de modelo, até mais formosa agora. e queria o general? “Me assustar,
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ao menos de leve.” Ele sorriu, ela não retribuiu. “Pois é…” disse, entredentes. adra turva, as forças armadas haviam erguido a crista diante da “leniência governista, a permitir manifestações subversivas e congressos de pseudointelectuais que ameaçam a paz social”. A mídia acabava de dar grandes destaques ao comunicado assinado pelo general Da Silva, advertência peremptória ao presidente Lupiscinio Costa, liberalão cordato. “Vou avisar seu pai”, disse Mat, e ela o abraçou. “Estou assustada.” Ao apertá-la como de hábito, Mat sentiu o apelo do calor da fêmea, mas na circunstância transformou o impulso em carinho. “Sabe, a gente se expõe de caso pensado, e recuar é impossível… mesmo assim, ainda é cedo para avaliar corretamente a situação.” Beijaram-se, ele sorriu de novo: “E eu te amo…”. A promessa descumprida de um novo estatuto dos trabalhadores precipitava greves frequentes, havia, porém, outros motivos a provocar Da Silva, a começar pela inquietação dos empresários graúdos, que o visitavam, não somente com o propósito de organizar jogos de pôquer e oferecer os préstimos de moçoilas roliças. “Aonde iremos acabar?”, clamou o doutor Rastel, dono da Turbocar, o timbre agudo feriu os tímpanos dos interlocutores, grupo farto, felizmente as paredes adamascadas do gabinete de Da Silva impediam eco capaz de causar estragos maiores.
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“Estamos à beira de uma revolução vermelha.” “Um pouco de objetividade, meus senhores: tudo indica ser preciso agir sem demora.” “Caso contrário, seremos aplastrados.” “O país já está à deriva.” “Temos um governo sem força, sem vontade, entregue à maré.” Agir, agir, agir. Já. Mat não se iludia, sentia o risco na pele. A Ecio admitiu o que não dizia a Nuvem: “Meu velho, o golpe está no ar, de uma hora para outra desaba como um raio de Júpiter”. E então? “E então a gente acaba mal, a não ser que consiga dar no pé antes.” Ecio, taxativo: “Não vou fugir”. O amigo anui, em concordância. Ecio abre uma garrafa de vinho. No terceiro copo, um tinto leal, os demônios estão sopitados. Ao voltar para casa, Mat recebe outro gênero de notícia: Istvan está nas últimas. Há duas semanas hospitalizado, o marchand piorou. A cabeceira da cama envolta por uma floresta de suportes de poções malogradas, Mat toma a mão de Istvan. O doente sussurra: “Sou realmente uma besta… insisti para que você não se casasse com Nuvem… vaticinava um futuro sombrio para aquele matrimônio… errei… e como… Nuvem é a companheira perfeita, uma santa…”.
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