Passando-se MDP

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PASSANDO-SE de NELLA LARSEN Material digital do professor Julio Silveira

livrosdecriação


SUMÁRIO

Carta aos professores

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Propostas de atividade I Tema 1, pré-leitura

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Tema 2, leitura

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Tema 3, pós-leitura

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Propostas de atividade II Tema 1, pré-leitura

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Tema 2, leitura

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Tema 2, pós-leitura

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Aprofundamento a autora e a obra

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O gênero novela

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Projeto de vida e protagonismo

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Referências

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Bibliografia comentada

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Carta aos professores Cara educadora, caro educador Este manual apresenta o livro Passando-se e destaca alguns temas que podem ser instrumentais para o processo educativo e contribuir para a formação de seus educandos. Passando-se trata do lugar que queremos ocupar no mundo, e do espaço em que somos confinados pelas normas da sociedade e pela conjuntura histórica e política. O título refere-se a pessoas de ascendência africana que, por terem a pele clara, “passavam-se” por branca. Ser “negra” ou “branca” determinava o espaço (até mesmo o físico) que uma pessoa poderia ocupar na sociedade racista estadunidense nos anos 1920. E qual seria o lugar para uma pessoa de ascendência negra e branca? Eis uma questão urgente no Brasil — onde quase metade da população (o maior contingente) não se declara nem branca, nem negra. Tentar responder essa questão é avançar para a redução das desigualdades legadas pelo período escravocrata. Estamos seguros de que, pelas situações que retrata, muitos alunos e alunas irão “se ler” nas páginas deste romance e que as questões apresentadas em Passando-se suscitarão reflexões que vão contribuir para que seus alunos, na formulação de seu projeto de vida, encontrem e conquistem o espaço que eles desejarem no mundo.

Boa aula!

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Os editores


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PROPO STAS DE AT IVIDADE I

ATIVIDADE I TEMA 1

Identidade e identificação HABILIDADES BNCC EM13LGG102, EM13LP18, EM13LP19 ATIVIDADE DE PRÉ-LEITURA

CONTEÚDO Explorar os processos de “identidade” investigando o impacto da visão do grupo e da pressão social na formação da auto-imagem no indivíduo. Analisar os mecanismos do preconceito, destacando o papel da linguagem. OBJETIVO Estimular alunas e alunos a compreender os processos identitários, conflitos e relações de poder que permeiam as práticas sociais de linguagem, respeitar a diversidade, exercitando a empatia, o diálogo, a resolução de conflitos e a cooperação, e combatendo preconceitos de qualquer natureza. Capacitar alunas e alunos a lidar com visões de mundo conflitantes, amplificando a compreensão e interpretação crítica, para identificar e dirimir preconceitos na linguagem corrente e nas diversas mídias. JUSTIFICATIVA

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Passando-se mostra como uma distinção arbitrária, como uma suposta “raça” ou “cor”, pode confinar (muitas vezes literalmente) um indivíduo a uma posição social e a um campo cultural, moldando ou mesmo aniquilando sua identidade pessoal ou auto-imagem, sobrepujando-a com uma identidade coletiva baseada no preconceito. Esse tema encontra enorme ressonância entre os alunos do ensino médio brasileiro por duas razões. Primeiramente, por eles se encontrarem na fase da vida em que forjamos nossa identidade pessoal (que determinará, em boa parte, sua trajetória profissional e cidadã) e quando justamente estamos


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mais suscetíveis à opinião que “os outros” (pais, colegas, “influenciadores”, sociedade) tem de nós. A segunda e mais grave razão é que nosso passado escravocrata está ainda muito presente, e o ambiente de repressão e conflito que as personagens de Passando-se enfrentaram nos Estados Unidos dos anos 1920 não é tão diferente da que muitos jovens vivenciam no Brasil, um século depois. Ainda que menos de 10% de nossa população declare-se como “negra”, quase a metade (o maior contingente) define-se como “nem branca, nem preta”, empregando ou termos que estão sendo reavaliados (“pardo”, “mulato”) ou eufemismos (“marrom”, “café com leite”, “moreno escuro”). Embora as protagonistas de Passando-se tenham de fato ascendência africana e caucasiana, pela dicotomia racial americana, onde o racismo tinha até os anos 1960 base na lei, elas são negras. Também no Brasil, mesmo que nosso racismo seja dissimulado por uma extensa gama de meios-tons entre o branco e o negro, quem tiver a pele mais escura receberá maiories restrições de ordens sociais, econômicas e culturais, impostas pelo preconceito. Nas palavras da escritora Eliana Alves Cruz, “assumir a identidade não é tarefa fácil para quem descende dos que foram sequestrados no outro lado do Atlântico. No surpreendente Passando-se, Nella Larsen expõe com maestria os matizes e consequências deste movimento violento. Curiosamente, o romance fala de maneira contundente com o público negro brasileiro que, independentemente das marcas mais ou menos evidentes deixadas em sua pele, está reivindicando ancestralidade para, finalmente, ocupar o lugar que sempre lhe foi de direito na história do mundo.” A compreensão pelo educando, seja ele/ela negro, branco ou de outra etnia, dos mecanismos do preconceito, imbuídos muitas vezes nos discursos de diversos registros e nas mídias, pode capacitá-lo a assumir uma posição mais empática e construtiva na sociedade, abrindo-se para a diversidade e expandindo seu repertório cultural. Ao mesmo tempo, compreender de forma crítica o processo identitário — como o meio em que vivemos conforma nossa identidade e como nossa individualidade é em boa parte moldada pela posição que nos é permitida no espaço comum — capacita-nos a gestar conflitos que permeiam as práticas sociais de linguagem. Em Passando-se o choque entre o desejo de individualidade na personagem Claire e o cumprimento ao status social, personificado na narradora Irene, conduzem a trama até o inevitável conflito.

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METODOLOGIA Proponha às alunas e aos alunos a elaboração de uma apresentação pessoal, isto é, que façam uma apresentação individual sobre si mesmos, por meio de ferramentas digitais.


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Entre as ferramentas digitais estão: vídeos e animações curtas ao estilo “Tiktok” ou “Stories”; “Memes” (com vídeos, imagens, gifs ou quadrinhos); Apresentações multimídia (“Powerpoint”); vídeos musicais etc. As apresentações devem responder a duas perguntas básicas: 1) “Como eu me vejo” e 2) “Como os outros me veem”. A critério do aluno, a segunda pergunta pode ser desdobrada em múltiplos “outros” (por exemplo: “como meu pai me vê”, “como meu professor me vê”, “como o guarda na rua me vê” etc). Quando apresentar a tarefa, ressalte para os alunos sobre a necessidade de, ao responder as perguntas, refletirem sobre preconceitos (por “cor”, gênero, situação social, alguma eventual deficiência ou distinção física), tanto os que lhe são imputados por terceiros (“os outros”) quanto os preconceitos (ou “complexos”) que eles mesmos se impingem. Estimule-os a detectar os preconceitos inconscientes e os que estão embutidos, subliminarmente, nos diferentes discursos da linguagem escrita e oral. Finalizado o prazo para produção, selecione alguns alunos para apresentarem diante da turma o seu trabalho. Estimule a turma a refletir sobre os resultados, a partir de algumas perguntas-chave: Quão diferente é a nossa imagem pessoal (“como me vejo”) da imagem que as pessoas têm da gente? O que da visão/opinião “dos outros” a gente concorda ou deseja para si? O que da visão/opinião “dos outros”, mesmo a gente não concordando, influencia o que a gente é ou será (por exemplo, no projeto de vida, na situação social etc) Quanto da opinião “dos outros” sobre a gente vem não daquilo que a gente fala ou faz, mas sim de sinais como a “cor”, as roupas, o gênero, a postura etc?

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Peça para os alunos apresentarem uma conclusão sobre o papel do preconceito, e dos padrões sociais, na conformação de nossa identidade pessoal. Peça também que tracem um paralelo com a trama de Passando-e, perguntando quantos na turma acham que podemos ser quem a gente quiser (até mesmo “passarmo-nos” por outros), como Claire e quantos na turma acham que temos que fazer o melhor que pudermos dentro do espaço que a sociedade nos designar, como faz Irene.


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HABILIDADES

EM13LGG102 Analisar visões de mundo, conflitos de interesse, preconceitos e ideologias presentes nos discursos veiculados nas diferentes mídias, ampliando suas possibilidades de explicação, interpretação e intervenção crítica da/na realidade. EM13LP18 Utilizar softwares de edição de textos, fotos, vídeos e áudio, além de ferramentas e ambientes colaborativos para criar textos e produções multissemióticas com finalidades diversas, explorando os recursos e efeitos disponíveis e apropriando-se de práticas colaborativas de escrita, de construção coletiva do conhecimento e de desenvolvimento de projetos.

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EM13LP19 Apresentar-se por meio de textos multimodais diversos (perfis variados, gifs biográficos, biodata, currículo web, videocurrículo etc.) e de ferramentas digitais (ferramenta de gif, wiki, site etc.), para falar de si mesmo de formas variadas, considerando diferentes situações e objetivos.


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ATIVIDADE I TEMA 2

Leitura e releituras HABILIDADES BNCC EM13LP01, EM13LP50, EM13LP40 ATIVIDADE DE LEITURA

CONTEÚDO Partindo de uma história ancestral (uma passagem do Velho Testamento), comparamos as interpretações, distorções e adaptações em contextos históricos distintos, e em diferentes formas de expressão artística até chegarmos às fake news. Em seguida investigamos a intencionalidade das “leituras” de modo a privilegiar este ou aquele objetivo ou visão de mundo, e a corroborar um sistema social baseado na subjugação de um segmento étnico. OBJETIVO Tornar o educando consciente dos elementos extrínsecos da narrativa, como o contexto sócio-histórico de circulação (perspectivas, época, papel social do autor) e a intencionalidade (leitor previsto, objetivos). Capacitar alunas e alunos a detectarem relações intertextuais e interdiscursivas entre obras de diferentes autores e época e o diálogo biunívoco entre a literatura e outras expressões artísticas, nomeadamente as artes plásticas. Tornar os alunos capazes de leituras mais amplas e ativas, e de compreender os contextos e subtextos socioideológicos nas narrativas.

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JUSTIFICATIVA A recente democratização radical dos meios de comunicação, quando qualquer indivíduo passou a poder “publicar” (“postar”) a partir de seus smartphones em redes sociais e, supostamente, passar de leitor passivo a “produtor de conteúdo” — em que pese os aspectos positivos de liberdade preconizados por, entre outros, McLuhan — deu vazão a uma produção avassaladora de textos, curtos, superficiais e enfáticos, que dão sustentação a variadas “narrativas” da realidade, quase sempre independente dos fatos a que estavam minimamente vinculadas quando as “notícias” eram monopólio dos “meios de comunicação”. “Pós-verdades” e “fake news” são alguns dos nomes dessas “informações” curtas, que apelam para sentimentos de raiva e/ou medo do público para disseminarem-se de forma virótica e que muitas vezes, também como os vírus, infectam a vida civil e política dos brasileiros.


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Bombardeados, voluntariamente, por informações e outros estímulos, o jovem brasileiro precisa desenvolver urgentemente um filtro crítico pelo qual possa detectar, depurar e avaliar o contexto, as correlações com outras notícias e expressões e, sobretudo, a intencionalidade do emissor. As habilidades digitais definidas na Base Nacional Comum Curricular podem ser complementadas pelo desenvolvimento da Literacia Digital, especialmente nas habilidades de ramificação (construção de conhecimento a partir de navegação não-linear e hipertextual) e de informação (avaliação da qualidade e validade da informação). (Eshet-Alkali e Amichai-Hamburger, 2004). Esta atividade propõe acompanhar as diversas leituras, por diferentes épocas, e em diversos meios, de uma história que, segundo estudiosos, veio da tradição oral e fixou-se em texto há, possivelmente, 3.000 anos: o livro bíblico do Gênesis, mais especificamente o trecho em que Noé amaldiçoou os descendentes de seu filho, Cam. Um diálogo de Passando-se irá comentar como esse mito ancestral foi “lido” e transformado em argumento para sustentar o racismo. Em seguida, ainda em torno de Cam, desdobramos essa leitura, e suas consequências na vida dos afrodescendentes, em uma célebre pintura brasileira de fins do século 19. O passeio pelas diferentes interpretações, épocas e formas de expressão pode estimular os alunos a uma compreensão mais ampla, ativa e consciente da leitura. METODOLOGIA Para esta atividade, faz-se necessária a projeção de imagens. Proponha para a classe a leitura do trecho de Passando-se em que Claire conta como foi morar com suas tias brancas, da página 45 [“A verdade é que ela estava curiosa. Havia coisas que queria perguntar a Clare Kendry.…”] até a 49 [“Aposto que elas eram boas e que se lamentaram mais tarde”]. Considerando que a personagem tinha 16 anos à época (a mesma idade de muitos dos alunos do Ensino Médio) pergunte quem se identifica com a situação apresentada. Peça que os alunos interpretem, à sua maneira, as expressões como “arruinar uma garota” e “um pé na cozinha” e que identifiquem, na linguagem vernacular, outros eufemismos que reforçam o racismo. Destacando o trecho abaixo,

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Claire deu um sorrisinho malicioso e prosseguiu. “Além do mais, na visão delas, o trabalho duro era bom para mim. Eu tinha sangue negro nas veias, e elas pertenciam à geração que havia escrito e lido longos artigos com títulos como ‘Será que os negros vão trabalhar?’ Sim, elas não tinham tanta certeza de que Deus tinha obrigado os filhos e filhas de Cam a suar por ele ter feito graça com o velho


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Noé quando bebeu mais do que devia. Lembro-me das tias me contando a toda hora que aquele velho bêbado havia amaldiçoado Cam e seus filhos para todo o sempre”. [pág. 45]

Apresente em seguida à classe os versículos bíblicos (Gênesis 9:20) que relatam “a maldição de Cam”: E começou Noé a ser lavrador da terra, e plantou uma vinha. E bebeu do vinho, e embebedou-se; e descobriu-se no meio de sua tenda. E viu Cam, o pai de Canaã, a nudez do seu pai, e fê-lo saber a ambos seus irmãos no lado de fora. Então tomaram Sem e Jafé uma capa, e puseram-na sobre ambos os seus ombros, e indo virados para trás, cobriram a nudez do seu pai, e os seus rostos estavam virados, de maneira que não viram a nudez do seu pai. E despertou Noé do seu vinho, e soube o que seu filho menor lhe fizera. E disse: Maldito seja Canaã; servo dos servos seja aos seus irmãos. E disse: Bendito seja o Senhor Deus de Sem; e seja-lhe Canaã por servo. Alargue Deus a Jafé, e habite nas tendas de Sem; e seja-lhe Canaã por servo. [Tradução Nova Almeida Fiel Corrigida]

[Ilustração das Crônicas de Nuremberg, 1493. Domínio Publico. Disponível neste link]

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Peça à classe para identificar a época em que a história foi escrita, ou fixada em texto (há quase três mil anos), o local onde foi escrita (Oriente Médio) e a cultura em que foi escrita. Explore com os alunos as possíveis interpretações do relato bíblico e a interpretação usada na argumentação racista a


Apresente à classe o quadro Redenção de Cam, do pintor Modesto Brocos, pintado em 1895:

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partir do século 19. Questione as consequências dessa interpretação específica para os descendentes de africanos, como Claire e Irene, bem como para os brasileiros.

[Museu Nacional de Belas Artes. Domínio Publico. Disponível neste link.]

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Correlacionando a “Redenção” (quadro) à “Maldição” (relato bíblico) peça para a classe discorrer sobre a intenção do pintor e o contexto histórico e social no qual o quadro foi criado. Em seguida, apresente à classe, para debate, a análise da antropóloga Tatiana Lotierzo:


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O contexto de difusão do mito bíblico sobre a maldição de Noé é o do início da chamada Era Moderna, quando a cristandade europeia buscava formas de justificar a escravização de habitantes do continente africano, sob o marco do cristianismo.

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A ‘Redenção de Cam’ tem sua própria tese no marco racista oitocentista, um pensamento que se exprime como um modo de ver, uma perspectiva que é oferecida ao olhar de quem a observa.

O mito é reinterpretado por Brocos [o pintor] que aponta, seguindo as teorias da sua época, que a salvação – ou “redenção” – dos descendentes de Cam se daria por meio da sua extinção, por efeito do branqueamento [gradual a cada geração.]

[Nexo Jornal, 12 de junho de 2018. Disponível neste link]

A partir da última frase, peça para os alunos identificarem e comentarem como as diferentes formas de expressão — de textos, a pinturas e a “memes” — tentam impingir ao leitor/espectador a perspectiva ou opinião do autor/emissor.

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A partir disso, abra a discussão sobre “Fake news”, pedindo exemplos, avaliando os riscos e as consequências e escrevendo, com a turma, dicas para detectar um post ou mensagem malicioso e conter sua disseminação. As dicas devem estar em linha com os preceitos da literacia digital: avaliar a qualidade fonte e a intenção do autor; procurar outras fontes confiáveis para corroborar a informação; avaliar se houve uma edição apelativa e não reproduzir, repostar ou reenviar sem critério.


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HABILIDADES

EM13LP01 Relacionar o texto, tanto na produção como na leitura/ escuta, com suas condições de produção e seu contexto sócio-histórico de circulação (leitor/audiência previstos, objetivos, pontos de vista e perspectivas, papel social do autor, época, gênero do discurso etc.), de forma a ampliar as possibilidades de construção de sentidos e de análise crítica e produzir textos adequados a diferentes situações. EM13LP40 Analisar o fenômeno da pós-verdade – discutindo as condições e os mecanismos de disseminação de fake news e também exemplos, causas e consequências desse fenômeno e da prevalência de crenças e opiniões sobre fatos –, de forma a adotar atitude crítica em relação ao fenômeno e desenvolver uma postura flexível que permita rever crenças e opiniões quando fatos apurados as contradisserem.

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EM13LP50 Analisar relações intertextuais e interdiscursivas entre obras de diferentes autores e gêneros literários de um mesmo momento histórico e de momentos históricos diversos, explorando os modos como a literatura e as artes em geral se constituem, dialogam e se retroalimentam.


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ATIVIDADE I TEMA 3

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CONTEÚDO

Desigualdade social e variação linguística HABILIDADES BNCC EM13LGG302, EM13LGG303, EM13LP05, EM13LP27 ATIVIDADE DE PÓS LEITURA

Analisando o fenômeno da variação linguística na sua dimensão social e etária, observando sua ocorrência na vida cotidiana, investigaremos como certas formas de se expressar, no texto e na fala, quando discrepantes das variedades linguísticas de prestígio, são depreciadas como forma de estigmatizar as camadas sociais ou étnicas que as empregam, identificando esse fenômeno com o processo histórico de preconceito e inferiorização de camadas da população. OBJETIVO Sensibilizar o educando para o fenômeno da variação linguística, em especial em sua dimensão social, de forma a ampliar sua compreensão sobre a estigmatização da linguagem na manutenção de formas de desigualdade e preconceito, desnaturalizando e problematizando estas, e propondo ações que promovam o respeito às diferenças e às escolhas individuais. Capacitar alunas e alunos a compreender e posicionar-se criticamente diante de diversas visões de mundo, levando em conta seus contextos de produção e de circulação e a debater questões polêmicas de relevância social, analisando diferentes argumentos e opiniões manifestados, para negociar e sustentar posições, formular propostas, que levem em conta o bem comum e os Direitos Humanos. JUSTIFICATIVA

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O desenho de um “projeto de vida” de um jovem é em síntese uma tentativa de responder às questões “quem eu sou” e “quem eu quero ser”. Trata-se, portanto, da definição de uma identidade, nem tanto a individual, mas a que lançará esse jovem aos processos de incorporação e internalização de valores e papéis e à teia de relações que configura o processo de socialização. A afirmação de sua identidade passa portanto pelos vínculos culturais a um determinado grupo e, por extensão, à elaboração e rejeição do “outro”, de quem não está no grupo. A constituição de um repertório cultural próprio, incluindo variações da linguagem (gírias etc), ainda que seja instrumental


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para a afirmação (ou até a conquista de território) de certo grupo, pode contribuir, inversamente para seu alijamento, quando, por exemplo, a variedade linguística desse grupo é referida e depreciativamente comparada com a variação de prestígio (ou a “norma culta”) em expressões de preconceito. O “preconceito linguístico” torna-se então mais uma forma de invalidação de pessoas por sua origem, posição social ou “cor”. Não obstante toda a diversidade do imenso território brasileiro, aqueles que não se expressam com a variedade linguística de prestígio, isto é, a fala das zonas centrais do Rio ou São Paulo, correm o risco de terem sua fala taxada como “errada” e sua mensagem, invalidada. Aprender a viver em sociedade significa, então, submeter-se a processos de socialização, ou seja, processos de incorporação e internalização de valores, papéis e identidades. É preciso intensificar o desenvolvimento de habilidades que possibilitem o trato com o diverso e o debate de ideias. Tal desenvolvimento deve ser pautado pelo respeito, pela ética e pela rejeição aos discursos de ódio. O grande desafio é desenvolver a capacidade dos estudantes de estabelecer diálogos entre indivíduos, grupos sociais e cidadãos de diversas nacionalidades, saberes e culturas distintas. A atividade ora proposta parte da observação do fenômeno da variedade linguística quando empregada para marcar situações de desigualdade social e perpetuação do preconceito, no cotidiano. Após a reflexão, os educandos são estimulados ao diálogo empático e a assumirem o ponto de vista do “outro”, assim ampliando sua percepção crítica, colocando em prática a dúvida sistemática, elemento essencial para o aprimoramento da conduta humana, com vistas a assumirem uma postura ativa para o enfrentamento coletivo dos problemas sociais. METODOLOGIA O trabalho parte da participação de um personagem secundário em Passando-se, Jack Bellew, o marido racista da protagonista Claire, que não sabe que sua esposa, que está “passando-se” por branca, é negra. No trecho [pág. 47], Jack Bellew chega em casa e depara-se com uma reunião de Claire com suas amigas Irene e Gertrude, todas elas negras. Como elas têm a pele clara e são amigas de sua esposa e como, principalmente, estão em um ambiente “branco”, John Bellew acredita que sejam todas brancas e as trata com cortesia, entremeando gentilezas com comentários racistas à guisa de humor.

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“Olá, Nig”, foi sua saudação a Clare. Gertrude, que começava a erguer-se, voltou a se sentar e olhou secretamente para Irene, que havia prendido o lábio com seus dentes e olhava admirada para o marido e a esposa. Era difícil de acreditar que até mesmo Clare Kendry pudesse permitir ter sua raça ridicularizada por um estranho, mesmo que este


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fosse seu marido. Então ele sabia, ao fim das contas, que Clare era uma negra? Pela conversa do outro dia, Irene havia compreendido que ele não sabia. Mas que grosseria, certamente um insulto isso de ele chamá-la assim na presença das convidadas! Nos olhos de Clare, quando apresentava seu marido, havia um brilho estranho, uma zombaria talvez. Irene não conseguia definir. Uma vez concluída a mecânica das apresentações, ela perguntou: “Ouviu do que o Jack me chamou?” “Sim”, Gertrude respondeu, rindo com uma disposição obediente. Irene nada falou. Seu olhar manteve-se focado no rosto sorridente de Clare. Os olhos negros fluíram para baixo. “Conta para elas, meu bem, porque me chamou assim.” O homem deu risadinhas, espremendo os olhos, não desconfortavelmente, Irene sentiu-se obrigada a reconhecer. Explicou: “Bem, vocês vejam, é assim. Quando nos casamos, ela era branca como um — como um — bem, branca como um lírio. Mas eu afirmo que ela está ficando cada vez mais escura. Eu digo para ela que, se não se cuidar, um dia desses vai acordar e descobrir que se transformou em uma nigger.” Soltou uma risada ruidosa. A risada de Clare, tinindo como um sino, juntou-se à dele. Gertrude, após mais uma mudança desconfortável em seu assento, acrescentou a sua, estridente. Irene, que estava sentada com os lábios bem comprimidos, gritou “essa é boa!” e começou a gargalhar. Ela ria e ria e ria. As lágrimas escorriam de seu rosto. Suas faces doíam. Sua garganta ardia. Ela riu e continuou a rir, bem depois de as risadas dos outros terem abrandado. Até que, atentando para o rosto de Clare, a necessidade de um riso mais contido para essa piada impagável, bem como de cautela, a atingiu. E cessou de vez. Clare entregou a seu marido o chá e pôs sua mão nos ombros dele, com um leve gesto de afeto. Falando com confiança, e também por diversão, disse: “Por deus, Jack! Que diferença faria se, depois de todos esses anos, você descobrisse que eu era um ou dois por cento de cor?” Bellew estendeu a mão em um movimento de repúdio, final e definitivo. “Oh não, Nig”, declarou. “Comigo não tem isso. Sei que você não é uma nigger, então está tudo bem. Por mim você pode ficar mais preta o quanto quiser, já que sei que você não é nenhuma nigger. Esse é o meu limite. Nada de niggers na minha família. Nunca houve e nunca haverá.” […] Para quem chegasse agora, refletiu Irene, aquele pareceria o mais caloroso dos chás, cheio de sorrisos, piadas e risadas hilariantes. Ela disse, com humor, “então não gosta dos negros, senhor Bellew?” Mas sua curiosidade estava somente em seus pensamentos, não em suas palavras. John Bellew deu uma curta risada de contestação. “Não me entenda mal, senhora Redfield. Não é nada disso. Não é que eu não goste deles: eu os odeio. E Nig também odeia, mesmo que esteja tentando tornar-se uma. Ela não aceitaria uma criada negra aqui, nem por amor nem por dinheiro. Não que eu quisesse também. Elas me dão arrepios. Esses nojentos desses demônios pretos.” Isso não era engraçado. Teria Bellew, perguntou Irene, conhecido algum negro? O tom defensivo em sua voz disparou outra mexida nas cadeiras da desconfortável Gertrude, e, mesmo com toda a aparente serenidade, um rápido


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olhar de reprovação da parte de Clare. Bellew respondeu: “Graças a Deus, não! E espero não conhecer! Mas conheço gente que os conhece melhor do que esses pretos conhecem a si mesmos. E leio nos jornais a respeito deles. Sempre roubando e matando as pessoas. E...”, acrescentou, soturno, “coisa pior”. Da direção de Gertrude veio um estranho som suprimido, como uma fungada ou um riso. Irene não conseguia identificar. Houve um breve silêncio, durante o qual ela temeu que seu autocontrole estivesse a ponto de mostrar-se frágil demais para conter sua crescente raiva e indignação. Sentiu um ímpeto de gritar para o homem ao seu lado: “e você está aqui, cercado de três demônios pretos, bebendo chá”.

Peça à classe para observar que o personagem Jack Bellew, uma vez que se achava somente entre pessoas brancas, deu vazão ao seu preconceito livremente e, assim, empregou termos extremamente ofensivos para se referir às pessoas negras, quase sempre sob a desculpa do “humor”; e que ele empregou uma mesma palavra (“nigger”) em duas situações com “significados” (conotações) opostas: usou o termo ofensivo “nigger” para atacar um grupo e uma contração, “Nig” para expressar afeto por sua esposa. — Que expressões cotidianas são usadas para reforçar estereótipos e preconceitos contra pessoas por conta de sua cor, posição social, origem e gênero? [Peça exemplos] — Qual diferença (se tanto) quando se empregam tais expressões em um contexto de agressão ou de “humor”. [Suas conotações/denotações] — Qual seria a linguagem de Jack Bellew se ele tivesse consciência de que estava conversando com mulheres negras? Seria da mesma forma se conversasse com homens brancos? — Qual a relevância do contexto e da situação social para definição da variedade linguística (“norma culta” em contraste com gírias e regionalismos)? Nós falamos do mesmo jeito não importando a situação ou em ambientes diferentes — com os pais ou amigos, no trabalho, escola, internet… — usamos formas de falar diferentes? — Há uma forma “certa” de se escrever e falar? Se sim a quem “pertence” essa forma de falar? E quem fala “errado”?

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Após essas reflexões, a classe deve ser dividida em dois grupos, para um debate. Inicialmente, cada lado defenderá uma das seguintes teses: A tese “corretista”. Todos os grupos devem falar e escrever do mesmo jeito, o “correto”, em todas as situações, evitando ruídos causados por “erros” e gírias para que assim a comunicação fique mais clara, exata e “igual”, favorecendo o bem comum.


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A tese “libertista”. Cada grupo deve falar e escrever do jeito que quiser e com a sua linguagem particular, porque o estabelecimento de uma “forma certa” significa impor a linguagem de um grupo prestigiado e a estigmatização dos outros, o que reforça a desigualdade e prejudica o bem comum. Cada lado deverá abrir com uma defesa oral de sua tese, de até cinco minutos, alternadamente, a que se seguirão duas rodadas de réplicas. À critério do educador, nesse ponto os grupos “trocam de lado” e devem começar a defender a tese oposta à que tinham combatido. O fim do debate deve gerar um “compromisso” escrito, com ponderações de ambas as partes. HABILIDADES EM13LGG302 Posicionar-se criticamente diante de diversas visões de mundo presentes nos discursos em diferentes linguagens, levando em conta seus contextos de produção e de circulação. EM13LGG303 Debater questões polêmicas de relevância social, analisando diferentes argumentos e opiniões, para formular, negociar e sustentar posições, frente à análise de perspectivas distintas. EM13LP05 Analisar, em textos argumentativos, os posicionamentos assumidos, os movimentos argumentativos (sustentação, refutação/contra-argumentação e negociação) e os argumentos utilizados para sustentá-los, para avaliar sua força e eficácia, e posicionar-se criticamente diante da questão discutida e/ou dos argumentos utilizados, recorrendo aos mecanismos linguísticos necessários.

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EM13LP27 Engajar-se na busca de solução para problemas que envolvam a coletividade, denunciando o desrespeito a direitos, organizando e/ou participando de discussões, campanhas e debates, produzindo textos reivindicatórios, normativos, entre outras possibilidades, como forma de fomentar os princípios democráticos e uma atuação pautada pela ética da responsabilidade, pelo consumo consciente e pela consciência socioambiental.


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PROP OSTA S DE AT IVIDADE II

ATIVIDADE II TEMA 1

As leis de Direitos Humanos e suas interpretações HABILIDADES BNCC EM13CHS601, EM13LP26, EM13LP27, EM13CHS605 ATIVIDADE DE PRÉ-LEITURA

CONTEÚDO Leitura crítica de textos e dispositivos legais ao longo da história, em âmbito universal (Declaração dos Direitos Humanos), nacional (Constituição) e local (posturas municipais e estatutos particulares) analisando o contexto em que foram redigidas, e as contradições lógicas e éticas entre as próprias legislações e contrastando-as à prática social efetivamente observada. Essa leitura procura ampliar a compreensão de direitos e deveres, na perspectiva dos processos históricos da América do Norte e Sul e inclusão precária de grupos de afrodescendentes na ordem social e econômica atual. OBJETIVOS Capacitar os educandos a compreender e posicionar-se criticamente com relação aos processos de legitimização e regularização de desigualdades e supressão de direitos de um segmento da população ao arrepio de marcos civilizatórios como a Declaração dos Direitos Humanos.

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Estimular os alunos a participar, de forma consciente e informada, do debate público sobre a afirmação e defesa dos direitos pessoais e coletivos, engajando-os na busca de solução de problemas que envolvam a coletividade, denunciando o desrespeito a direitos, organizando, participando de discussões, campanhas e debates e produzindo textos.


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JUSTIFICATIVA

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Para o jovem poder assumir o protagonismo e projetar, com confiança e qualificação, o rumo que sua vida tomará, nos campos pessoal e profissional, é preciso primeiro deslocá-da posição passiva e conscientizá-lo tanto do seu potencial quanto dos direitos a que possa reivindicar e exercer e dos deveres para o enfrentamento coletivo dos desafios da comunidade, do mundo do trabalho e da sociedade em geral. “A ninguém é dado desconhecer a lei” é um princípio ancestral do Direito, atestando que ninguém pode ser dispensado de cumprir seus deveres ape-


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nas alegando não saber que eles existem. Porém o mesmo princípio aplica-se ao inverso: desconhecer que a Lei abriga nossos direitos, e não reivindicá-los ou protegê-los, tem consequências graves para nossa vida pessoal e nossa comunidade. “Na prática a teoria é outra”, é outra frase de efeito muitas vezes invocada para explicar como o que a lei preconiza em caráter universal algumas vezes choca-se com sua aplicação específica e efetiva. Tome-se por exemplo o tema básico da igualdade entre as pessoas. Desde as revoluções iluministas que abriram a Era Contemporânea em fins do século 18, há documentos gloriosos como a “Declaração dos Direitos do Homem” que afirmam, já de saída, que “os Homens nascem e são livres e iguais em direitos.” Mas efetivamente o que se observou nos mais de dois séculos que se sucederam a sua publicação? A escravidão — a mais extrema forma de desigualdade — persistiria no Brasil, por exemplo, mais de 100 anos depois que a Declaração foi promulgada. O século 19 viu o imperialismo e o colonialismo subjugarem e oprimir pessoas da África, Ásia, Oceania e Américas, como se os que nascessem nessas terras não fossem também “livres e iguais”. “Alguns são mais iguais que os outros” brincou George Orwell, mostrando a hipocrisia da Europa, onde foi escrita a Declaração dos Direitos do Homem, que se viu envolvida em massacres baseados na suposta desigualdade racial e étnica, no próprio território (Holocausto). “Direitos humanos são para humanos direitos” é outra frase com que deparamo-nos com frequência, e que demonstra como os Direitos dos Homens estão longe de serem “Universais”, como quer afirmar a Declaração da ONU (1948). O apelo (muitas vezes violento) à desigualdade, amplificado por porta-vozes do medo e raiva nas redes sociais é uma razão urgente pela qual a escola deve contribuir para a formação de alunos conscientes de seus direitos e com coragem para reivindicá-los. Nesta atividade, portanto, vamos contrastar textos legais à prática social observada, refletindo sobre o contexto histórico no qual foram redigidos e promulgados como forma a ampliar a origem das desigualdades persistentes na realidade brasileira (nomeadamente o racismo) para nos munirmos de ferramentas para a transformação da sociedade e aplicação concreta dos preceitos legais da igualdade entre as pessoas.

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METODOLOGIA Primeira etapa Coletivamente, ou em grupos, os alunos devem construir uma “Linha do Tempo da (Des)Igualdade)”, ordenando cronologicamente os trechos (de textos legais e de Passando-se) abaixo elencados. Os alunos podem, a critério do(a) educador(a), pesquisar outros trechos que ajudem a compor e ilustrar a linha do tempo.


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A linha do tempo deve ter três eixos paralelos, situando os documentos em a) Mundo, para documentos de caráter universal; b) Estados Unidos, para o trecho de Passando-se e para legislações locais e c) Brasil. A linha do tempo pode ser apresentada com recursos visuais plásticos (cartazes), com emprego de ferramentas digitais (“Powerpoint”, video etc). Os trechos, que devem ser apresentados aos educando fora da ordem cronológica aqui listados, são: 1.

Trecho de Passando-se em que Irene, receia que descubram que seja negra e por isso a expulsem do restaurante em que está tomando chá. A cena ocorre em fins da década de 1920, em Chicago, Norte dos Estado Unidos. Tornou a olhar para cima e, por um momento, seus olhos castanhos devolveram educadamente a encarada dos olhos negros da outra, que nem por um instante desviaram ou hesitaram. Irene fez um pequeno desdém mental. Ah, se quiser, pode olhar! Tentou tratar a mulher, e seu olhar, com indiferença, mas não pôde. Todos os seus esforços para ignorá-la foram inúteis. A espreitou pelo canto dos olhos. Ainda a estava olhando. E que estranhos olhos lânguidos ela tinha! E gradualmente foi crescendo em Irene uma perturbação leve e interna, odiosamente familiar. Ela riu suavemente, mas seus olhos se acenderam. Será que aquela mulher, seria possível que aquela mulher, de alguma forma, sabia que, diante de seus olhos, no terraço do Drayton, estava sentada uma negra? Absurdo! Impossível! Os brancos eram tão estúpidos a esse respeito, sobre o que eles acham que conseguem distinguir; e pelos “sinais” mais ridículos: unhas, palma da mão, formato da orelha, dentes e outras bobagens. Eles sempre a tomavam por uma italiana, espanhola, mexicana ou cigana. Nunca, quando ela estava sozinha, teriam remotamente suspeitado de que ela era uma negra. Não, a mulher sentada ali, a encarando, não teria como saber. Mesmo assim, Irene sentiu, por sua vez, raiva, humilhação e medo a invadirem. Não é que ela sentisse vergonha de ser uma negra, ou que a chamassem assim. Era a ideia de ser expulsa de um lugar, mesmo na maneira educada e cautelosa com que o Drayton provavelmente o faria, que a perturbava.

2.

Trecho da Constituição dos Estados Unidos da América, escrita na Filadélfia, Norte dos Estados Unidos, 1787 Acreditamos por auto-evidentes estas verdades, de que todos os homens são criados iguais, e que são agraciados por seu Criador de certos Direitos inalienáveis, e que entre esses está a vida, a liberdade e a busca de felicidade.

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3.

Trecho da “Declaração do Homem e do Cidadão”, escrita em Paris, França, em 1789 (aqui por “homem” entende-se toda a humanidade)


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Os Homens nascem e são livres e iguais em direitos. As distinções sociais só podem fundamentar-se na utilidade comum.

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4. Trecho da “Declaração Universal dos Direitos Humanos”, redigida conjuntamente pela Organização das Nações Unidas em 1948 Todos os seres humanos nascem livres e iguais em dignidade e direitos. São dotados de razão e consciência e devem agir em relação uns aos outros com espírito de fraternidade. […]Todo ser humano tem capacidade para gozar os direitos e as liberdades estabelecidos nesta Declaração, sem distinção de qualquer espécie, seja de raça, cor, sexo, língua, religião, opinião política ou de outra natureza, origem nacional ou social, riqueza, nascimento, ou qualquer outra condição.

5.

Constituição Brasileira de 1988, redigida e promulgada no Brasil

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Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade.

6. “Car act”, lei estadual da Louisiana, sul dos Estados Unidos, promulgada em 1890 (Foi a primeira vez que o racismo foi oficializado por uma lei. Um homem, que tinha um bisavô negro, foi preso com base nessa lei e entrou na justiça. A Suprema Corte acabou julgando legal e assim legitimou que os governos, clubes e instituições particulares vetassem a entrada de negros. O precedente jurídico possibilitou uma série de


Qualquer passageiro que insista em sentar-se no vagão ou compartimento no qual, pela raça a que pertença, não é o seu lugar, pagará multa de 25 dólares ou, na falta, ficará detido por não mais de vinte dias na prisão paroquial.

7.

Código Geral das leis de Birmingham, Alabama, Sul dos Estados Unidos, 1948-1950 É contra a lei um restaurante no qual brancos e pessoas de cor são servidas na mesma sala, a não ser que tais pessoas brancas de de cor sejam de fato separadas por uma divisória sólida, estendendo-se do chão até uma altura de 7 pés (2,10 metros) ou mais alta, e a não ser que haja uma entrada separada da rua para cada um dos compartimentos.

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leis de segregação racial, as “Leis Jim Crow”, em suposto conflito com os preceitos de igualdade na Constiuição estadounidense.

Qualquer pessoa que, sendo proprietário, mantenedor ou gerente de qualquer taverna, estalagem, restaurante, quadra de esportes, estádio ou outro ambiente ou espaço público, ou ainda um servidor, balconista ou empregado de dito proprietário, mantenedor ou gerente, que em consciência permitir que um Negro e uma pessoa de cor joguem juntos ou na companhia um do outro, em qualquer partida de baseball, softball ou outro esporte com bolas, nessa casa ou em um espaço sob sua responsabilidade, supervisão ou controle, será punido conforme estipulado na Seção 4.

8. Estatuto social de constituição do Esporte Clube Bahia, publicado em 1906 no Brasil. Art. 6º do Capítulo 2º, da Admissão dos sócios Para admissão do Clube é necessário: a) ser proposto por um sócio em gozo de seus direitos; […] que a proposta tenha parecer favorável da comissão de sindicância. Parágrafo único: em hipótese alguma poderá fazer parte do Clube pessoas de côr.

9.

Lei nº 14.363, de 15/03/2011, promulgada em São Paulo, Brasil.

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Artigo 1º - Fica vedada qualquer forma de discriminação em virtude de raça, sexo, cor, origem, orientação sexual, identidade de gênero, condição social, idade, porte ou presença de deficiência, ou doença não contagiosa por contato social no acesso aos elevadores de todos os edifícios públicos ou particulares, comerciais, industriais e residenciais multifamiliares existentes no Estado de São Paulo.”; § 1º - Os avisos de que trata o “caput” deste artigo devem configurar-se em forma de cartaz, placa ou plaqueta com os seguintes dizeres: “É vedada qualquer forma de discriminação em virtude de raça, sexo, cor, origem, orientação sexual, identidade de gênero, condição social, idade, porte ou presença de deficiência, ou doença não contagiosa por contato social no acesso aos elevadores deste edifício”.


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SEGUNDA ETAPA Mostrando o que foi produzido pela classe ou pelos grupos, sem cartazes ou apresentações digitais, estimule a discussão a partir das seguintes perguntas: Se, como dizem as Constituições e Declarações, as pessoas são iguais, será que elas são tratadas, na prática, como iguais? Quais são as diferenças na forma como a sociedade trata determinados grupos, a partir da condição social ou “cor”? Da “Constituição dos Estados Unidos” e a “Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão” — os primeiros documentos a afirmar a igualdade dos homens — no fim do século 18 até os dias de hoje, o começo do século 21, a “Igualdade entre os homens” tornou-se uma verdade ou “ficou só papel”? Nós evoluímos ou estamos no mesmo estágio que em 1789 no referente aos direitos iguais para todo mundo? Seria admissível hoje legalmente um clube, por exemplo, vedar a entrada de pessoas por conta da “cor” ou do gênero? E, se a lei o permitisse, seria ético, por exemplo, que um clube impedisse a entrada de brancos? Embora nunca tenha havido, no Brasil, leis que proibissem ou coibissem o direito de ir e vir dos negros, como houve nos Estados Unidos, será que houve (ou ainda há) aqui espaços e territórios culturalmente vedados aos afrodescendentes?

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Na sociedade norte-americana racista onde se desenrola a história de Passando-se o espaço dos brancos era vedado, cultural ou legalmente, aos negros, mesmo que estes fossem, como Irene, claros a ponto de “passarem-se por brancos” e que tivessem uma alta posição sócio-econômica. No Brasil há uma graduação que torne os negros mais “iguais” aos brancos se forem mais claros ou ricos?


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HABILIDADES

EM13LP26 Relacionar textos e documentos legais e normativos de âmbito universal, nacional, local ou escolar que envolvam a definição de direitos e deveres – em especial, os voltados a adolescentes e jovens – aos seus contextos de produção, identificando ou inferindo possíveis motivações e finalidades, como forma de ampliar a compreensão desses direitos e deveres. EM13LP27 Engajar-se na busca de solução para problemas que envolvam a coletividade, denunciando o desrespeito a direitos, organizando e/ou participando de discussões, campanhas e debates, produzindo textos reivindicatórios, normativos, entre outras possibilidades, como forma de fomentar os princípios democráticos e uma atuação pautada pela ética da responsabilidade, pelo consumo consciente e pela consciência socioambiental. EM13CHS605 Analisar os princípios da declaração dos Direitos Humanos, recorrendo às noções de justiça, igualdade e fraternidade, identificar os progressos e entraves à concretização desses direitos nas diversas sociedades contemporâneas e promover ações concretas diante da desigualdade e das violações desses direitos em diferentes espaços de vivência, respeitando a identidade de cada grupo e de cada indivíduo.

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EM13CHS601 Identificar e analisar as demandas e os protagonismos políticos, sociais e culturais dos povos indígenas e das populações afrodescendentes (incluindo as quilombolas) no Brasil contemporâneo considerando a história das Américas e o contexto de exclusão e inclusão precária desses grupos na ordem social e econômica atual, promovendo ações para a redução das desigualdades étnico-raciais no país.


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ATIVIDADE II TEMA

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OBJETIVO

Trabalho e identidade racial HABILIDADES BNCC EM13CHS402, EM13CHS404, EM13CHS601, EM13MAT104 ATIVIDADE DE LEITURA

Desenvolver nos alunos a habilidade de analisar e comparar indicadores de emprego e renda e a interpretar taxas e índices de natureza sócioeconômica, associando-os a processos de estratificação e desigualdade. Identificar e analisar as demandas das populações afrodescendentes no Brasil contemporâneo considerando o contexto de exclusão e inclusão precária desses grupos na ordem social e econômica atual, promovendo ações para a redução das desigualdades étnico-raciais no país. JUSTIFICATIVA No Brasil, um país caracterizado por profundas desigualdades sociais, os sistemas e redes de ensino devem construir currículos, e as escolas precisam elaborar propostas pedagógicas que considerem as necessidades, as possibilidades e os interesses dos estudantes, assim como suas identidades linguísticas, étnicas e culturais. Um indicador claro da desigualdade socioeconômica é o hiato entre a renda dos trabalhadores brancos e os negros. Na análise desta disparidade, que se mantém constante, veio se acrescentar um novo componente: mais e mais brasileiros, que se declaravam como “pardos”, passaram a identificar-se como “negros”. Ao apresentar ao estudante índices de trabalho, renda e “raça”, vamos propor a reflexão sobre a realidade brasileira, ao mesmo tempo em que o estimulamos a formular propostas para contribuir com geração de renda e com a redução da desigualdade. METODOLOGIA

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Vamos partir de um trecho de Passando-se, em que a protagonista, Irene, negra de pele clara e elevada situação social, confessa “passar-se” por branca para ter alguns privilégios cotidianos.


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Acho que nunca me passei por branca na minha vida, a não ser quando era conveniente: restaurantes, ingressos para o teatro, e coisas assim. Quero dizer, nunca fiz isso socialmente, somente uma vez. Você acaba de passar pela primeira pessoa que conheci enquanto estava disfarçada de mulher branca.

A partir desse depoimento, vamos abrir a discussão sobre identidade racial e disparidade econômica. ATIVIDADE DE LEITURA

Apresente aos alunos os seguintes gráficos, extraídos da “Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios Contínua”, do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística, IBGE. Esclareça que, no Brasil, a identidade racial é autodefinida. Isto é: cabe aos entrevistados declararem se se consideram “brancos”, “pretos”, “pardos” ou qualquer outro termo. Informe-os também que o IBGE agrupa na categoria “pardo”, todos os que se declaram com termos genéricos, como “mulato”, “moreno escuro”, “caboclo” etc.

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[Reproduzido de O Globo, 22/05/2019. Disponível neste link.]


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A partir dos gráficos, estimule os estudantes a analisaram os índices apresentados e os correlacionarem com a realidade do seu grupo social, do seu bairro e cidade. Levante os seguintes pontos de discussão: Porque mais pessoas estão se declarando “negras”? Qual o significado do maior contingente populacional brasileiro deixar de ser “branco” e passar a ser “pardo”, ou “preto”? Se valessem os critérios do livro Passando-se, e todos os pardos fossem considerados “negros”, qual seria a composição racial no Brasil e o que significaria?

ATIVIDADE DE PÓS-LEITURA

Agora vamos estender a discussão sobre identidade racial, que abordamos em paralelo à leitura de Passando-se, incluindo os componentes “renda” e “trabalho”. Apresente aos alunos o conjunto de quadros estatísticos abaixo e peça que interpretem a informação.

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[Reproduzido de O Globo, 22/05/2019. Disponível neste link.]


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[Reproduzido de Nexo Jornal, 22/05/2019. Disponível neste link.]

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[“Educação, culutra periferia e racismo”. Estudo da CUFA e Locomotiva. Apresentação disponível neste link.]


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Explore a questão da disparidade de renda e da taxa de desemprego entre brancos e negros/pardos. Peça que a classe investigue a possível correlação entre renda e nível de escolaridade. Após a discussão coletiva, peça aos alunos que pesquisem e formulem caminhos para estreitar o hiato de renda, trabalho e escolaridade entre brancos e não brancos. As conclusões e propostas podem ser apresentadas em texto dissertativo ou por meio de cartazes e ferramentas digitais. HABILIDADES

EM13CHS402 Analisar e comparar indicadores de emprego, trabalho e renda em diferentes espaços, escalas e tempos, associando-os a processos de estratificação e desigualdade socioeconômica. EM13CHS404 Identificar e discutir os múltiplos aspectos do trabalho em diferentes circunstâncias e contextos históricos e/ou geográficos e seus efeitos sobre as gerações, em especial, os jovens, levando em consideração, na atualidade, as transformações técnicas, tecnológicas e informacionais. EM13CHS601 Identificar e analisar as demandas e os protagonismos políticos, sociais e culturais dos povos indígenas e das populações afrodescendentes (incluindo as quilombolas) no Brasil contemporâneo considerando a história das Américas e o contexto de exclusão e inclusão precária desses grupos na ordem social e econômica atual, promovendo ações para a redução das desigualdades étnico-raciais no país.

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EM13MAT104 Interpretar taxas e índices de natureza socioeconômica (índice de desenvolvimento humano, taxas de inflação, entre outros), investigando os processos de cálculo desses números, para analisar criticamente a realidade e produzir argumentos.


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Aprofundamento A AUTORA Nella Larsen (1895 – 1964), filha de pai negro caribenho e mãe branca dinamarquesa, passou a infância em um bairro operário branco de Chicago, norte dos Estados Unidos, e a vida adulta na burguesia negra do Harlem. Publicou, em 1928, Areia movediça (Quicksand), romance com tintas autobiográficas sobre uma mulher de ascendência africana e escandinava em seu permanente deslocamento em um mundo em preto ou branco. No ano seguinte publicou Passando-se (Passing) sobre a tensa dinâmica entre duas “negras” (segundo o critério segregacionista das leis Jim Crow) que “passam-se”, social ou intelectualmente, por brancas, em plena sociedade racista dos Estados Unidos nos anos 1920. Nella hoje é considerada uma das maiores escritoras negras contemporâneas e foi expoente do movimento cultural conhecido por Renascença do Harlem. Os livros lhe trouxeram reconhecimento mas também o ostracismo e ela que, em dois anos criou duas obras fundamentais, não publicaria nada mais até sua morte, sozinha, em 1964.

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A OBRA Nesta novela, escrita por meio de relatos e de cartas, Clare e Irene se reencontraram, por acaso, no terraço de um elegante hotel. Na Chicago dos anos 1920, elas nem poderiam, pela lei, estar ali: são negras que, por conta da pele clara, estavam passando-se por brancas. Irene, é verdade, manteve-se na raça: mora no ­Harlem e é membro ativo da Sociedade Negra. Já Clare, para deixar a pobreza, adotou uma identidade de branca e casou-se com um homem rico — e profundamente racista. Irene é negra por compromisso moral; Clare quer voltar a ser negra, por prazer. Em uma sociedade cega à ambiguidade racial, Irene e Clare, estão em constante busca por um espaço que nunca pode-


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rão ocupar plenamente. Clare, a negra que se passa por branca, fascina e angustia Irene, a negra que “pensa como branca”. Nos polos opostos, seus maridos: o branco racista que quer levar Clare para a Europa; o médico negro que sonha em mudar a família para o Brasil. Essa perigosa tensão social precipita o desfecho inexorável para as pessoas de cor que não encontram seu lugar em um mundo em preto e branco. A escritora brasileira Eliana Alves Cruz destacou que “assumir a identidade não é tarefa fácil para quem descende dos que foram sequestrados no outro lado do Atlântico. Nella Larsen expõe com maestria os matizes e consequências desse movimento violento. Curiosamente, o romance fala de maneira contundente com o público negro brasileiro que está […] reivindicando ancestralidade para, finalmente, ocupar o lugar que sempre lhe foi de direito na história do mundo.” O GÊNERO NOVELA Passando-se é muitas vezes mencionado como um romance “realista” ou “moderno” mas é melhor definido como de outro gênero de narrativa: a “novela”, a exemplo das obras O alienista de Machado de Assis e A metamorfose de Franz Kafka. O gênero literário “novela” é bem próximo dos gêneros “romance” e “conto”, com os quais muitas vezes é confundido, e é comum ser definido, simplificadamente, como um “meio-termo entre um conto e um romance”. Não obstante, alguns estudiosos distinguem os romances das novelas apontando neste último gênero algumas características distintas:

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Ao contrário do que acontece com o conto, a novela pode desenvolver vários enredos ao longo da narrativa, que podem estabelecer conexões entre si (pluralidade dramática). Em contraste com o romance, a novela tem um ritmo mais acelerado, geralmente menos contemplativo e mais cadenciado nas ações dos personagens, o que torna fácil a sua dramatização e adaptação para outros meios e explica a origem do termo “telenovela”. No caso de Passando-se pode-se observar ainda uma aproximação ao gênero teatral ou dramático: sua estrutura é composta em três seções e um epílogo, que correspondem perfeitamente à estrutura de três atos e um finale trágico, típico de uma ópera como Madame Butterlfyn ou Dama das camélias. São também marcas da novela a delimitação clara do espaço e do tempo em que se passa a história. Em Passando-se a autora ambienta as cenas em cenários bem enunciados, como um hotel de Chicago em um dia de verão, ou as ruas do Harlem novaiorquino em um dia de vento invernal. Também estão bem claros os códigos da época em que se passa a trama, com a menção explícita de marcos culturais, como peças de teatro em cartaz, ou a descrição de vestidos e outros elementos da moda que situam a história fortemente nos últimos anos da década de 1920. Também a linguagem é fator de identificação, com a autora reproduzindo o linguajar elaborado e um tanto pernóstico que ela provavelmente ouvia de seus amigos nas rodas intelectuais da chamada “Renascença do Harlem”,


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um movimento cultural que propunha a afirmação da arte criada por negros nos Estados Unidos. Como recurso dramático e estilístico, a autora empregou, para determinados trechos do livro, a narrativa epistolar, isto é, a troca de cartas entre as personagens. Ao contrário dos romances epistolares, no entanto, a autora não se furtou a expressar os sentimentos da personagem ao ler as cartas. PROJETO DE VIDA E PROTAGONISMO EM PASSANDO-SE De acordo com a Base Nacional Curricular Comum, é finalidade do Ensino Médio contemporâneo “valorizar os papéis sociais desempenhados pelos jovens, para além de sua condição de estudante, e qualificar os processos de construção de sua(s) identidade(s) e de seu projeto de vida”. Para a formação de seus educandos em sujeitos “críticos, autônomos e responsáveis”, é papel da escola oferecer-lhe “experiências que garantam as aprendizagens necessárias para a leitura da realidade, com seus desafios sociais e a tomada de decisões éticas”. Para formar esses jovens como sujeitos críticos, criativos, autônomos e responsáveis, cabe às escolas de Ensino Médio proporcionar experiências e processos que lhes garantam as aprendizagens necessárias para a leitura da realidade, o enfrentamento dos novos desafios da contemporaneidade (sociais, econômicos e ambientais) e a tomada de decisões éticas e fundamentadas. O mundo deve lhes ser apresentado como campo aberto para investigação e intervenção quanto a seus aspectos políticos, sociais, produtivos, ambientais e culturais, de modo que se sintam estimulados a equacionar e resolver questões legadas pelas gerações anteriores – e que se refletem nos contextos atuais –, abrindo-se criativamente para o novo. Em Passando-se acompanhamos a vida de duas estudantes do ensino médio, duas amigas, ambas de ascendência mista (negra e branca), mas cujas vidas irão traçar trajetórias diametralmente opostas. Irene, a narradora, que desfruta de uma posição social estável, identifica-se com a comunidade negra, para qual contribui com eventos sociais. Já Claire, para sair da pobreza, reinventa-se em uma identidade “branca”, casa-se com um homem rico e racista (que não sabe das origens da esposa). A reaproximação das duas, depois de muito tempo separada, dispara graves conflitos éticos com os quais a protagonista tem que lidar, evidenciados neste trecho:

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“Recuou da ideia de contar àquele homem, ao marido branco de Clare Kendry, nada que o levasse a suspeitar que sua esposa era uma negra.[…] Estava presa entre dois compromissos morais. Consigo mesma. E com sua raça. Raça! A coisa que a amarrava e a sufocava. Qualquer passo que desse, se viesse a dar algum passo, iria arrasar alguma coisa. A pessoa ou a raça. Nada, ela imaginou, era


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mais tragicamente irônico. Sozinha, Irene Redfield desejou, pela primeira vez na vida, não ter nascido uma negra. Pela primeira vez ela sofreu e rebelou-se por não poder ignorar o fardo da raça. Já era suficiente, gritou em silêncio, sofrer como mulher, um indivíduo, por conta própria, sem ter de sofrer pela raça também. Era uma brutalidade, e imerecida.”

Ao conflito étnico soma-se o contexto de uma sociedade escancaradamente racista, instigando leitores aos desafios da contemporaneidade, estimulando-os a “equacionar e resolver questões legadas pelas gerações anteriores – e que se refletem nos contextos atuais”. A decisão ética do conflito, como aprenderá o aluno/leitor, passará pela definição e afirmação de uma identidade, dentro da diversidade brasileira, o primeiro passo para que ele/ela assuma o protagonismo, formule e conduza seu projeto de vida.


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Referências A IDENTIDADE DO “NEM BRANCO, NEM NEGRO” NA ARTE BRASILEIRA

Marrom e amarelo, de Paulo Scott. São Paulo : Companhia das Letras, 2019. Um romance contemporâneo sobre dois irmãos, um claro o suficiente para ser tratado como “branco” pela sociedade, outro escuro o bastante para ser considerado negro.

O mulato, deAluísio Azevedo, 1881. Considerada uma das primeiras obras naturalistas de nossa literatura, este livro aborda o conflito de um personagem de ascendência negra e branca (filho bastardo de um senhor de engenho com uma escrava) que prospera no mundo dominado pelos brancos até ser limitado por sua “cor”.

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A escrava Isaura, de Bernardo Guimarães, 1875. Escrito em plena campanha abolicionista, à qual o autor apoiava, tem por protagonista uma escravizada que é repetidamente descrita como branca, embora seja, assim como Claire e Irene, mestiça ou, na definição norte-americana, negra. A ênfase na branquitude da personagem Isaura pode ser explicada como uma tentativa de ganhar a compaixão das mulheres da elite do Brasil, o público leitor a que se destinava o romance.


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“Haiti”. Canção de Caetano Veloso e Gilberto Gil que suscitou discussões sobre a cisão racial no Brasil. Este trecho exemplifica como a “cor” de uma pessoa é definida pela sociedade brasileira muitas vezes em função de sua posição social.

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Quando você for convidado pra subir no adro da fundação Casa de Jorge Amado pra ver do alto a fila de soldados, quase todos pretos, dando porrada na nuca de malandros pretos, de ladrões mulatos e outros quase brancos tratados como pretos, só pra mostrar aos outros quase pretos (e são quase todos pretos) como é que pretos, pobres e mulatos, e quase brancos quase pretos de tão pobres, são tratados.

As “mulatas”. Durante o Estado Novo, houve uma tentativa de mitificar a mulata, um rescaldo da velha ideia eugenista de “branquear” a população pela miscinenação. Esse mito ecoou em muitas canções, como “É luxo só” (Ary Barroso). Algumas canções hoje em dia já não se pode ouvir com a mesma ingenuidade, como a “Mulata assanhada” de Ataulfo Alves (“ai meu Deus que bom seria, se voltasse a escravidão…”) ou “Seu cabelo não nega, mulata”, de Lamartine Babo e Irmãos Valença (“mas como a cor não pega, mulata…”)

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© MAM RJ

O mestiço. Nas artes plásticas, os negros de pele clara são temas constante. Para além do ranço racista de A redenção de Cam (1895), valem menção as “mulatas” de Di Cavalcanti, os épicos Mestiço e o O lavrador de café de Portinari (1934) e a Lindoneia, de Rubens Gerchman (1966), homeageada na canção homônima de Caetano Veloso, que a descreve como “Lindonéia, cor parda, fruta na feira, Lindonéia solteira”.


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Bibliografia comentada Escravidão: do primeiro leilão de cativos em Portugal até a morte de Zumbi dos Palmares, volume I. Laurentino Gomes. Rio de Janeiro : Globo, 2019. O primeiro volume de um longo trabalho de pesquisa sobre a história do comércio escravagista transatlântico, abordando os aspectos históricos e econômicos. Uma visão histórica sobre as origens do racismo brasileiro.

Pequeno manual antirracista. Djamila Ribeiro. São Paulo: Companhia das Letras, 2019. A filósofa e ativista Djamila Ribeiro trata de temas como atualidade do racismo, negritude, branquitude, violência racial, cultura, desejos e afetos. Em onze capítulos curtos e contundentes, a autora apresenta caminhos de reflexão para aqueles que queiram aprofundar sua percepção sobre discriminações racistas estruturais e assumir a responsabilidade pela transformação do estado das coisas.

Racismo estrutural. Silvio Almeida. São Paulo, Pólen: 2019. Muito mais do que a ação de indivíduos com motivações pessoais, o racismo está infiltrado nas instituições e na cultura, gerando condições deficitárias a priori para boa parte da população. É a partir desse conceito que o autor Silvio Almeida apresenta dados estatísticos e discute como o racismo está na estrutura social, política e econômica da sociedade brasileira.

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Quarto de despejo. Carolina Maria de Jesus. São Paulo: Editora Ática, 1960. O diário da catadora de papel Carolina Maria de Jesus, relatando o cotidiano triste e cruel da vida na favela. A linguagem simples, mas contundente, comove o leitor pelo realismo e pelo olhar sensível na hora de contar o que viu, viveu e sentiu nos anos em que morou na comunidade do Canindé, em São Paulo, com três filhos.


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PASSANDO-SE, de Nella Larsen Material Digital do Professor Autor Pesquisa Revisão

Julio Silveira Livros de Criação Carla Monteiro


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