Pauliceia desvairada

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Mário de Andrade

Organização: José De Nicola Lucas De Nicola

PAULICEIA DESVAIRADA Rio de Janeiro, 1ª edição, 2021


Copyright © 2021 Edições Arlechino Todos os direitos reservados Responsabilidade editorial: Ana Mortara Coordenação editorial: Casa de Letras Assistência editorial: Paula Dias Revisão: Oficina de Letras Diagramação: Nany Produções Gráficas Capa: Luyse Costa

Catalogação na publicação Elaborada por Bibliotecária Janaina Ramos – CRB-8/9166 A553 Andrade, Mario de Pauliceia Desvairada / Mario de Andrade; José De Nicola (Organizador), Lucas De Nicola (Organizador) – Rio de Janeiro: Arlecchino, 2021. ISBN 978-65-994210-1-3 (Livro do aluno) ISBN 978-65-994210-0-6 (Manual do professor) 1. Poesia. 2. Modernismo. 3. Clássico da literatura brasileira. 4. Modernismo. 5. Literatura brasileira. I. Andrade, Mario de. II. Nicola, José De (Organizador). III. Nicola, Lucas De (Organizador). IV. Título. CDD 869.1 Índice para catálogo sistemático I. Poesia : Literatura brasileira

Rio de Janeiro, 2021 - 1a edição Todos os direitos reservados

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Mário de Andrade

Organização: José De Nicola Lucas De Nicola

PAULICEIA DESVAIRADA



sumário


INTRODUÇÃO O desvairismo contra o leito de Procusto ............. 10 PAULICEIA DESVAIRADA...................................... 33 “A Mário de Andrade”............................................ 35 Prefácio Interessantíssimo..................................... 36 Inspiração................................................................ 68 O trovador............................................................... 69 Os cortejos............................................................... 70 A escalada................................................................ 71 Rua de São Bento..................................................... 73 O rebanho................................................................ 75 Tietê......................................................................... 77 Paisagem nº 1........................................................... 78 Ode ao burguês........................................................ 79 Tristura.................................................................... 81 Domingo.................................................................. 82 O domador.............................................................. 84 Anhangabaú............................................................. 86


A caçada................................................................... 87 Noturno.................................................................... 90 Paisagem nº 2........................................................... 93 Tu............................................................................. 95 Paisagem nº 3........................................................... 97 Colloque sentimental.............................................. 98 Religião...................................................................100 Paisagem nº 4..........................................................102 As enfibraturas do Ipiranga...................................104 NOTAS AOS POEMAS...........................................127 BIBLIOGRAFIA......................................................169 A obra Pauliceia Desvairada...................................172 O autor Mário de Andrade.....................................174 Os organizadores...................................................177 O gênero lírico........................................................178 Por que ler Pauliceia Desvairada?..........................181



introdução


O desvairismo contra o leito de Procusto Por muitos anos procurei-me a mim mesmo. Achei. Agora não me digam que ando à procura da originalidade, porque já descobri onde ela estava, pertence-me, é minha. Mário de Andrade, no “Prefácio interessantíssimo” de Pauliceia desvairada

Conta o mito grego que o bandido Damastes, também chamado de Polipêmon, mas conhecido sobretudo pelo apelidado de Procusto, roubava os viajantes que passavam pelas estradas da península Ática; em algumas versões da narrativa, o seu lugar de ataque preferido ficava no caminho entre as cidade de Mégera e Atenas, separadas por algumas dezenas de quilômetros. Além dos assaltos, o criminoso tinha um hábito cruel para com as suas vítimas: obrigava-as a se deitar sobre o seu leito de ferro, sendo que as que fossem maiores do que a cama, tinham as extremidades de suas pernas cortadas; as que fossem menores, tinham os membros inferiores esticados até o torturado corpo caber perfeitamente na armação metálica. O terrível bandido, em condições semelhantes às de suas vítimas, acabaria morto por Teseu, o mesmo herói que venceu o Minotauro. A certa altura do “Prefácio interessantíssimo” de Pauliceia desvairada, Mário de Andrade faz referência à 10


história do bandido mitológico. Diz o seguinte: “Não acho mais graça nenhuma nisso da gente submeter comoções a um leito de Procusto para que obtenham, em ritmo convencional, número convencional de sílabas”. Nesse trecho, em que há uma patente crítica aos modelos poéticos parnasianos então em voga, já vem expresso muito da proposta poética desse livro fundamental para o entendimento da primeira fase do modernismo brasileiro: a poesia surge da comoção, do sentimento de seu autor, logo, deve ser livre e, a cada ocorrência, única, diferente. Nessa proposta, portanto, não fazia mais sentido a excessiva preocupação em adequar a comoção a um modelo pré-estabelecido, baseado em métrica rigorosa, em rimas fixas e na construção do poema a partir de um padrão formal praticamente inabalável. Em outras palavras, os poetas não podiam mais se comportar como o mitológico bandido, submetendo violentamente suas emoções à dimensão de um rígido metro de ferro. O mundo, a vida e a efervescente Pauliceia do começo do século XX exigiam um novo fazer poético. ◊◊◊ Na mesma passagem do “Prefácio interessantíssimo” em que cita o mito de Procusto, Mário de Andrade faz uma consideração acerca de sua própria trajetória poética, até aquele momento composta somente por 11


um livro: “Já, primeiro livro, usei indiferentemente, sem obrigação de retorno periódico, os diversos metros pares. Agora liberto-me também desse preconceito. Adquiro outros. Razão para que me insultem?” O primeiro livro de Mário fora publicado em meados de 1917, sob o pseudônimo de Mário Sobral; trata-se de um pequeno volume intitulado Há uma gota de sangue em cada poema, com um prefácio em forma de soneto e onze poemas que apresentam tímidas inovações estéticas. O livro contava com projeto gráfico do próprio autor, tipografia de aspecto art nouveau e, acompanhando o título de cada poema, o desenho de uma gota de sangue. O nome da obra, assim, expressava tanto o sentimento de pesar expresso nos versos quanto a própria materialidade da publicação. É um livro bastante peculiar e que, tematicamente, parece algo deslocado de seu meio – Manuel Bandeira, em um juízo ambíguo, diria que a obra era de um “ruim esquisito”.1 Na abertura do volume, os leitores podiam encontrar uma breve biografia do autor, na qual este afirma ter nascido “acompanhado daquela estragosa sensibilidade que deprime os seres e prejudica as existências, medroso e humilde. E para a publicação destes poemas, sentiu-se

1 Manuel Bandeira. “Itinerário de Pasárgada”. In: Poesia completa e prosa. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1985. p. 62.

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mais medroso e mais humilde que ao nascer”.2 É importante comentar que os poemas do livro tinham sido escritos por Mário sob o impacto da perda de seu irmão mais novo, Renato, falecido precocemente após um banal acidente enquanto jogava bola; além disso, tratavam das mazelas da Primeira Guerra Mundial, com um evidente propósito pacifista. Tanto era pacifista que, ao final do volume o autor precisou anexar uma “explicação”, dizendo que os poemas tinham sido compostos em abril de 1917, poucos dias antes de o Brasil entrar na guerra, após um submarino alemão ter afundado um navio brasileiro e um nacionalismo bélico ter tomado conta do país. Diante do exacerbado ufanismo que se fazia sentir, aqueles versos poderiam soar equívocos, até mesmo para o seu próprio autor. Mas foi justamente por esse clima de guerra que Mário acabou conhecendo Oswald de Andrade, um encontro fundamental para a trajetória do modernismo brasileiro. Em novembro de 1917, Oswald, como ele mesmo narra em suas memória, trabalhando como repórter para o Jornal do Comércio, fora escalado para cobrir uma palestra do Secretário da Justiça e Segurança Pública do Estado de São Paulo, Elói Chaves, no Conservatório Dramático

2 Mário Sobral (Mário de Andrade). Há uma gota de sangue em cada poema. São Paulo: Pocai & Companhia, 1917. p. 3.

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Reprodução/Biblioteca Mario de Andrade, São Paulo, SP

e Musical de São Paulo. O discurso de recepção foi feito por Mário – que à época iniciava a sua longa carreira como professor da instituição. O jovem “alto, mulato, de dentuça aberta e de óculos” fez um discurso repleto de referências à natureza do Brasil, o que soou “assombroso” aos ouvidos de Oswald. Impressionado, o repórter correu para o palco e chegou a se altercar com outros jornalistas para obter o original da fala; queria publicá-la integramente no jornal.3

Capa da primeira edição de Há uma gota de sangue em cada poema, publicada pela editora Pocai & Companhia, do tipógrafo Elvino Pocai.

◊◊◊ O “medroso e humilde” poeta que se escondia sob o pseudônimo de Mário Sobral, conforme foi se formando o grupo modernista de São Paulo, começou a passar por Oswald de Andrade. Um homem sem profissão: sob as ordens de mamãe. São Paulo: Globo; Secretaria de Estado da Cultura, 1990. p.109.

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uma série de mudanças e a realizar um aprofundamento de pesquisas. Uma etapa fundamental nesse processo ocorreu entre dezembro de 1917 e janeiro de 1918, quando Anita Malfatti realizou, em um salão da rua Líbero Badaró, a sua “Exposição de Pintura Moderna”. Dentre os principais incentivadores da exposição, estava Di Cavalcanti, jovem desenhista carioca então vivendo em São Paulo. A pintora, que se tornaria grande amiga de Mário – este, um dia em que visitou a exposição, chegou a lhe oferecer “um soneto de forma parnasianíssima” inspirado pela tela O homem amarelo4 – , tinha passado temporadas na Alemanha e nos Estados Unidos, e já realizara, anos antes, uma mostra em São Paulo, sem ter causado grande alvoroço. Dessa feita, suas obras de viés expressionista chamariam a atenção do público, mas não pelos motivos mais louváveis. No final de dezembro de 1917, Monteiro Lobato, que fazia as vias de crítico de arte, publicou no jornal O Estado de S. Paulo um duro texto no qual desaprovava aquilo que via como excessos da arte moderna; em sua opinião, tais descomedimentos só podiam ser frutos da paranoia ou da mistificação. As reações ao polêmico texto e ao escândalo que gerou acabariam por consolidar o primeiro núcleo modernista da cidade, que seria engrossado, nos anos seguintes, por intelectuais como 4 Mário de Andrade. O movimento modernista. Rio de Janeiro: Casa do Estudante do Brasil, 1942. p. 17.

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Rubens Borba de Moraes e Sérgio Millet, e artistas como Regina Gomide e John Graz, todos chegados da Suíça. Também seria fundamental a participação de Menotti del Picchia, autor de um livro poético de grande sucesso, Juca Mulato, publicado em 1917, e que escreveria crônicas, sob o pseudônimo de Hélios, no Correio Paulistano, fazendo de sua coluna uma tribuna dos jovens artistas e escritores então tratados como “futuristas”. Outro momento fundamental na trajetória dos modernistas de São Paulo, e que se ligaria à de Pauliceia desvairada, foi a entrada de Victor Brecheret no grupo. Nascido na Itália, mas tendo vivido na capital paulista quando criança, aos cuidados de uma tia materna, Brecheret tinha feito seus primeiros estudos artísticos no Liceu de Artes e Ofícios de São Paulo. Entre 1913 e 1919, o jovem e promissor artista, contando com limitados recursos financeiros, tinha embarcado de volta para a Itália, a fim de se aprimorar nas suas pesquisas estéticas. Quando voltou para o Brasil, apesar da auspiciosa recepção feita pela imprensa paulista, Brecheret não conseguiu arranjar um bom trabalho; somente tinha conseguido, junto ao conhecido engenheiro Ramos de Azevedo, o diretor do Liceu de Artes e Ofícios, alguns bicos e uma sala no Palácio da Indústrias, localizado no Parque D. Pedro II, onde pode estabelecer o seu ateliê. Foi nessa sala um tanto obscura que Brecheret e sua obra seriam “descobertos” pelos modernistas. 16


Romulo Fialdini/Tempo Composto/ Instituto de Estudos Brasileiros da USP, São Paulo, SP

Se a exposição de Anita fora o embrião para o surgimento do grupo modernista de São Paulo, a admiração por Brecheret, e uma consequente campanha em favor de suas obras, foi o elemento que consolidou o grupo. Nesse sentido, merece destaque a defesa que os modernistas fizeram, em meados de 1920, da construção de um Monumento às Bandeiras, projetado por Brecheret, assim como o destaque que o escultor recebeu nas páginas da revista Papel e Tinta, a primeira publicação organizada pelo grupo. Mário de Andrade, que foi um dos principais divulgadores da arte do escultor, sempre demonstrou predileção por uma peça específica, a Cabeça de Cristo. A admiração era tamanha que encomendou ao artista uma versão da escultura passada em bronze, para o que teve de contrair uma dívida junto a seu irmão mais velho, o advogado Carlos, que lhe emprestou parte do dinheiro da compra.

“Cabeça de Cristo“ c. 1919-20, de Victor Brecheret. Escultura em bronze, 32 x 14 cm.

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Na famosa conferência que Mário realizaria em abril de 1942, no salão do palácio do Itamaraty, no Rio de Janeiro, quando a Semana de Arte Moderna completava vinte anos, o escritor relacionou o surgimento dos poemas de Pauliceia desvairada com a Cabeça de Cristo. Segundo explicou em sua fala, em dezembro de 1920, andava enrolado com a realização dos exames finais no Conservatório e com aulas particulares de reforço. Sofria ainda certos apertos econômicos, decorrência de seus gastos excessivos com livros, revistas e obras de arte. O pior de tudo era a falta de inspiração poética, algo que vinha ocorrendo ao longo dos últimos meses. Somente conseguia produzir, inspirado sobretudo na poética urbana do belga Émile Verhaeren, alguns poucos versos, coisas parnasianas e simbolistas sem muito valor. Vivia em angústia, “numa insuficiência feroz”; sentia-se “insofrido”, como se a poesia tivesse acabado em si. Foi numa dessas “insofridas” noites de verão, no entanto, que a poesia rebentou. Mário teria chegado em sua casa, um sobrado no largo do Paissandu, onde morava com a família, radiante e satisfeito: trazia consigo a sua nova aquisição, a Cabeça de Cristo passada em bronze. A escultura representava um Cristo de pescoço alongado, com expressão de dor e, acinte dos acintes, duas trancinhas que caíam pelas têmporas e acompanhavam o comprido pescoço. Diante da obra, a reação dos parentes foi a pior possível, achavam que aquilo era 18


um disparate, praticamente um pecado, resultado de demasiada leitura e do descabido interesse do jovem por questões artísticas modernas. Por sua vez, Mário também estava possesso, inconformado com a incompreensão da parentada, com seus juízos artísticos tão tacanhos. Subiu para seu quarto com vontade de “botar uma bomba no centro do mundo”. A fim de se acalmar, foi para a sacada observar o movimento do largo do Paissandu e da avenida São João, olhar as luzes da cidade e escutar os seus ruídos. Foi então que, sem qualquer premeditação, sentiu um impulso que o levou até a escrivaninha, pegou caneta e papel, e escreveu duas palavras: Pauliceia desvairada, “o título em que jamais pensara”. A partir daí, irrompeu o “canto bárbaro, duas vezes maior talvez do que isso que o trabalho de arte deu num livro”.5 É difícil saber se os eventos ocorreram realmente dessa forma. Em outras ocasiões, sobretudo em cartas nas quais Mário comentou o surgimento do livro, ele não chegou a falar na escultura de Brecheret. O que importa, entretanto, é que a noção de uma poesia que irrompe de forma quase incontrolável sempre esteve presente. As coisas tinham se dado como um estouro de boiada, segundo a imagem que usou em missiva enviada a Carlos Drummond de Andrade, em 18 de fevereiro de 1925. 5

Mário de Andrade. O movimento modernista. Op. cit. p. 21-22.

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Foi assim que o poeta se libertou definitivamente da cama de Procusto na qual ainda parecia preso e deu vazão a um “canto bárbaro”, a uma poesia livre na forma, capaz de dar sentido aos seus sentimentos e à comoção que a Pauliceia lhe despertava. ◊◊◊ Pauliceia desvairada é uma obra composta por 21 poemas e um longo oratório profano chamado “As enfibraturas do Ipiranga”. O livro trata da cidade de São Paulo, então em acelerado processo de avanço econômico, devido aos negócios do café e à industrialização, e grande crescimento populacional, impulsionado pelos inúmeros imigrantes que a ela chegavam, sobretudo os italianos. Ao longo dos poemas, a Pauliceia, em meio à garoa e à circulação dos bondes, é um lugar de ambições e de desigualdades, de sonhos e de ilusões, de vaidades e frustrações. Uma cidade conflituosa – isso desde o seu clima ferrenho e instável –, uma urbe desigual e diversa, na qual convive uma população tratada como arlequinal. A metáfora arlequinal, além de muito bonita, é das mais significativas: por meio de uma poética livre, cada habitante da cidade, com seus gestos cotidianos, seus anseios, dramas e idiossincrasias, forma um pequeno losango colorido a ser costurado na fantasia de Arlequim que constitui a cidade. Metáfora que tem algo de carnavalesco e de satírico, o

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